Você está na página 1de 218

Volume 2

Crônicas da Contra-Terra

Foragidos de Gor
por John Norman

Tradução:
Irvin Schnyder

Revisão:
Sindy Schmooz, Tatyana W. Fewer

Grupo: Crônicas da Contra-Terra


https://www.facebook.com/groups/882184151819480/
2
Foragidos de Gor
Índice

Uma Nota Em Um Manuscrito 5


I A Declaração de Harrison Smith 6
II Retorno a Gor 14
III Zosk 19
IV A Sleen 26
V O Vale de Ko-ro-ba 31
VI Vera 37
VII Thorn, Capitão de Tharna 47
VIII A Cidade de Tharna 52
IX A Loja de Kal-da 59
X O Palácio da Tatrix 67
XI Lara, Tatrix de Tharna 72
XII Andreas da Casta dos Poetas 83
XIII Os Entretenimentos de Tharna 90
XIV O Tarn Negro 98
XV Um Trato é Acertado 108
XVI O Pilar de Trocas 119
XVII As Minas de Tharna 125
XVIII Nós Somos da Mesma Corrente 131
XIX Revolta Nas Minas 139
XX A Barreira Invisível 147
XXI Eu Compro Uma Garota 155
XXII Cordas Amarelas 167
XXIII Retorno a Tharna 177
XXIV A Barricada 188
XXV O Topo do Palácio 201
XXVI Uma Carta de Tarl Cabot 209
Uma Nota Conclusiva no Manuscrito 218

3
Foragidos de Gor
4
Foragidos de Gor
Uma Nota em um Manuscrito

Meu amigo, Harrison Smith, um jovem advogado da cidade, recentemente me enviou


um segundo manuscrito, supostamente escrito por Tarl Cabot. Era de seu desejo que eu
trouxesse este segundo documento, assim como fiz com o primeiro, para a atenção do
público. Desta vez, contudo, devido às numerosas reclamações e pedidos de informações
geradas pelo primeiro manuscrito, Tarnsman de Gor (recorrentes a várias questões que
vão desde as alegações documentadas sobre a existência da Contra-Terra, até as disputas
referentes à autoria dos manuscritos), eu garanti a Smith que iria escrever algo como um
prefácio para esta segunda edição, deixando claro seu papel em tais questões e dizendo
um pouco mais sobre Tarl Cabot, a quem eu nunca tive a sorte de conhecer pessoalmente.

John Norman

5
Foragidos de Gor
I

A Declaração de Harrison Smith

A primeira vez que encontrei Tarl Cabot foi em uma pequena faculdade de artes liberais
em New Hampshire, onde tínhamos ambos sido aprovados como professores do
primeiro ano. Ele ensinava História Inglesa e eu, na intenção de trabalhar por três anos
para poupar dinheiro para a faculdade de direito, tinha aceitado o emprego de professor
de educação física, um campo no qual, para minha tristeza, Cabot nunca admitiu ser
necessário ao currículo de uma instituição educacional. Nós nos demos bem,
conversávamos e andávamos juntos, e como eu esperava, nos tornamos amigos. Eu
gostava do jovem e gentil Inglês. Ele era quieto e simpático, embora algumas vezes ele
parecesse distante, ou sozinho, de algum modo não desejando deixar transparecer aquele
escudo protetor de formalidade, por trás do qual o educado homem Inglês, de coração
talvez tão sentimental e aquecido como qualquer outro homem, tentava esconder seus
sentimentos.

O jovem Cabot era bem alto, um homem de boa estatura, bem formado, com o jeito de
andar tranquilo como o dos animais, que talvez combinasse com a portuária Bristol, sua
cidade natal, mais do que com os claustros de Oxford, cujo em um dos colégios ele foi
educado. Seus olhos eram claros e azuis, diretos e honestos. Ele era bem complicado. Seus
cabelos, lamentavelmente talvez, embora alguns de nós o amasse por isso, eram
vermelhos, mas não simplesmente vermelhos. Eram bastante embaraçados, uma ardente
afronta às características de um acadêmico bem preparado. Eu duvidava que ele tivesse
um pente e eu poderia jurar que ele não usaria um se o tivesse. De qualquer modo, Tarl
Cabot parecia ser para nós um jovem, quieto e cortês cavalheiro de Oxford, exceto pelo
cabelo. E então, já não tínhamos mais certeza de nada.

Para minha consternação e também da faculdade, Cabot desapareceu por uns tempos
depois da conclusão do primeiro semestre. Tenho certeza que não era sua intenção. Cabot
é um homem que honra seus compromissos.

Ao término do semestre, Cabot, como o resto de nós, estava cansado da rotina acadêmica
e procurava por alguma diversão. Ele decidiu acampar – sozinho – nas então próximas
Montanhas Brancas, que eram muito belas em seu branco e frágil esplendor no fevereiro
de New Hampshire.
6
Foragidos de Gor
Eu emprestei para ele parte do meu equipamento de acampar e o levei até as montanhas,
o deixando na rodovia próxima. Ele me pediu, e eu sabia que estava falando sério, para
encontrá-lo daqui a três dias. Eu voltei no tempo combinado, mas ele não apareceu para
me encontrar. Esperei por várias horas, então voltei lá de novo no dia seguinte, na mesma
hora marcada. Ele também não apareceu. Consequentemente, alarmado, eu notifiquei as
autoridades e, ao entardecer, uma grande busca estava em andamento.

Eventualmente encontramos o que supostamente seriam as cinzas de sua fogueira, perto


de uma grande pedra plana, cerca de nove horas de escalada a partir da rodovia. Nossa
busca, ainda assim, foi infrutífera. Então, severos meses depois, eu soube que Tarl Cabot
saiu daquelas montanhas, vivo e bem, mas aparentemente sob o stress de algum tipo de
choque emocional no qual tinha culminado em amnésia – ao menos durante o período
em que ele esteve desaparecido.

Ele nunca mais voltou a dar aulas na faculdade, para o alívio de muitos dos meus colegas
mais velhos que confessaram achar que o jovem Cabot realmente nunca se encaixou bem
lá. Mais tarde, no entanto, eu descobri que eu também não me encaixava lá e deixei a
faculdade. Recebi um cheque de Cabot para cobrir o custo do meu material de
acampamento, o qual ele aparentemente perdeu. Foi um gesto nobre mas eu preferia que
ele tivesse vindo me ver. Eu teria apertado sua mão e o forçado a falar comigo, para me
dizer o que aconteceu.

De algum modo, diferente de meus colegas da escola, eu tinha achado a explicação sobre
a amnésia muito simples. Não era uma explicação adequada. Não poderia ser. Como ele
tinha vivido por todos aqueles meses, onde ele tinha estado, o que tinha feito?

Já faziam quase sete anos desde que eu conheci Tarl Cabot naquela faculdade, quando eu
o vi nas ruas de Manhattan. Naquele tempo, eu já tinha economizado o dinheiro que
precisava para a faculdade de direito e tinha parado de dar aulas há três anos. De fato,
eu estava então completando meus estudos na escola de direito em uma das melhores e
mais conhecidas universidades privadas de Nova York.

Ele tinha mudado muito pouco, ou praticamente nada. Eu corri para ele sem pensar e
agarrei o seu ombro. O que aconteceu em seguida pareceu quase que inacreditável, difícil
de se compreender. Ele se virou como um tigre em um repentino grito de fúria, falando
uma estranha língua e eu me encontrei com as mãos imobilizadas por seus punhos que
pareciam de aço. Sob o efeito de uma grande força fui jogado indefeso sobre seus joelhos,
minha coluna curvada como se estivesse a uma única polegada de ser quebrada, tão
facilmente como se quebraria um graveto de madeira.

Em um instante ele me soltou, se desculpando profundamente até mesmo antes de me


reconhecer. Horrorizado eu me dei conta de que, o que ele tinha feito era mais do que um

7
Foragidos de Gor
mero reflexo, como o piscar de um olho ou o saltar de uma perna sob efeito de um martelo
de um médico. Aquilo tinha sido o reflexo de um animal no qual apenas o instinto o guia
para destruir antes que seja destruído, ou de um ser humano que tivesse sido tratado
como um animal, um ser humano que tivesse sido condicionado a matar rapidamente,
selvagemente ou ser morto da mesma maneira. Eu estava coberto de suor. Eu sabia que
eu tinha passado perto da morte. Seria este o gentil Cabot que eu conheci?

“Harrison!” ele gritou. “Harrison Smith!” Ele me levantou com facilidade, suas palavras
saíram rápidas e tropeçantes, tentando me tranquilizar. “Me desculpe,” ele continuou a
dizer, “me perdoe! Me perdoe, Velho Homem!”

Nós nos entreolhamos.

Ele estendeu sua mão impulsivamente, se desculpando. Eu a segurei e nós apertamos as


mãos um do outro. Senti que meu aperto estava um pouco fraco e que minha mão tremia
de leve. “Estou de verdade, terrivelmente arrependido,” ele disse.

Algumas pessoas tinham se aglomerado de pé a uma distância segura sobre a calçada.

Ele sorriu, o ingênuo sorriso de garoto que eu me lembrava de New Hampshire.


“Gostaria de beber algo?” ele perguntou.

Eu sorri também. “Não me cairia mal,” eu disse.

Em um pequeno bar do centro de Manhattan, nada mais que uma porta e um corredor,
Tarl Cabot e eu renovamos nossa amizade. Falamos sobre dezenas de coisas, mas nenhum
de nós mencionou seu abrupto comportamento quando o tinha tocado antes, nem eu falei
sobre os misteriosos meses nos quais ele tinha desaparecido nas montanhas de New
Hampshire.

Nos meses subsequentes, tanto quanto meus estudos permitiram, nos víamos com certa
frequência. Eu parecia nutrir minha desesperada necessidade de companhia humana
com aquele homem solitário e de minha parte, eu estava mais que contente de saber que
eu era seu amigo – infortunadamente talvez, seu único amigo. Eu sentia que chegaria a
hora em que Cabot tocaria no assunto da montanha e que ele mesmo teria de escolher o
momento. Eu estava ansioso para me intrometer em seus negócios ou seus segredos,
como assim parecia ser. Era bom ser mais uma vez seu amigo. Eu me perguntava em
certas ocasiões por que Cabot não falava comigo mais abertamente sobre certas questões,
por que ele guardava, tão ciosamente, os mistérios daqueles meses nos quais ele tinha se
ausentado da faculdade. Eu agora sabia por que ele não tinha falado antes. Ele temia que
eu o tomasse por louco.

Era tarde em certa noite, no começo de Fevereiro e nós tínhamos bebido mais uma vez
no pequeno bar, o mesmo em que bebemos nossa primeira bebida naquela inacreditável
8
Foragidos de Gor
tarde ensolarada, alguns meses atrás. Do lado de fora caía uma neve fraca, leve e colorida
pelas solitárias luzes de neon da rua. Cabot assistia a isso enquanto dava goladas em seu
Uísque. Ele parecia taciturno, melancólico. Eu me lembrei de que foi em Fevereiro que
ele tinha deixado a faculdade anos atrás.

“Talvez fosse melhor ir para casa,” eu disse.

Cabot continuava a olhar para fora da janela, assistindo a neve de neon caindo à deriva
até a cinzenta e pisoteada calçada.

“Eu a amo,” disse Cabot, ele não estava realmente falando comigo.

“Quem?” eu perguntei.

Ele sacudiu a cabeça e continuou a assistir a neve.

“Vamos para casa,” eu disse. “Está tarde.”

“Onde é casa?” perguntou Cabot, olhando dentro do copo cheio até a metade.

“Seu apartamento, a algumas quadras daqui,” eu disse, querendo que ele voltasse,
querendo que ele saísse daquele lugar. Seu estado de espírito era alheio a qualquer coisa
que eu já tivesse visto nele antes. De algum modo, eu estremeci.

Ele não se moveria. Puxou seu braço para longe de minha mão. “É tarde,” ele disse,
parecendo concordar comigo, mas se referindo talvez a algo mais. “Não deve ser tão
tarde,” ele disse, como se tivesse se resolvido sobre alguma coisa, como que pela simples
força da sua vontade ele pudesse parar o fluxo do tempo, a trajetória randômica dos
eventos.

Eu me recostei em minha cadeira. Cabot, apenas partiria quando estivesse pronto. Não
antes. Me dei conta de seu silêncio, da luz depressiva e da conversação dentro do bar, do
tilintar de vidro, dos sons de um pé raspando o chão, de líquido sendo servido dentro de
um pequeno e pesado copo de vidro.

Cabot levantou seu Uísque de novo, segurando o copo perante ele, sem beber. Então,
cerimoniosamente, amargamente, ele derramou um pouco do líquido na mesa, que
espirrou, molhando parcialmente um guardanapo. Quando fez esse gesto, ele proferiu
alguma sentença naquela língua estranha a qual eu o ouvi dizer uma vez antes – quando
sucumbi em suas mãos. De algum modo eu tinha a impressão de que ele estava se
tornando perigoso. Fiquei apreensivo.
9
Foragidos de Gor
“Que você está fazendo?” eu perguntei.

“Estou fazendo uma oferenda,” ele disse. “Ta-Sardar-Gor.”

“O que isso significa?” perguntei, minhas palavras vacilaram um pouco, desfocadas pelo
uísque, instáveis pelo medo.

“Isso quer dizer,” gargalhou Cabot, uma desconsolada gargalhada, “para os Sacerdotes-
Reis de Gor!”

Ele se levantou instável. Parecia alto, estranho, quase de outro mundo sob aquela luz
depressiva, naquela quieta atmosfera de pequenos e geniais ruídos civilizados.

Então, sem aviso, com uma risada amarga, mais parecida com um lamento e grito de
raiva, ele atirou o copo violentamente contra a parede. O objeto se despedaçou em
milhões de esporádicos fragmentos brilhantes, submetendo o ambiente a um momento
de supremo silêncio. Eu o ouvi claramente, intensamente, repetindo em um rouco
sussurro aquela estranha frase, “Ta-Sardar-Gor!”

O garçom, um grande homem com a cara redonda, gingou em direção à mesa. Uma de
suas mãos gordas nervosamente segurava um cassetete de couro, recheado com
pequenas esferas de metal para dar peso. O garçom apontou seu dedão em direção à
porta, repetindo o gesto. Cabot, se armando contra ele, parecia não compreender. O
homem levantou o porrete em gesto de ameaça. Cabot simplesmente pegou a arma,
parecendo tirá-la facilmente das mãos do homem gordo. Ele olhou de cima pra baixo
dentro da face suada e estremecida do homem.

“Você levantou uma arma contra mim,” ele disse. “Meus códigos me permitem matar
você.”

O garçom e eu assistimos aterrorizados, enquanto as mãos firmes de Cabot torciam e


despedaçavam o cassetete, rasgando a costura, da mesma forma que eu torceria um rolo
de papelão. Algumas das esferas de ferro caíram ao chão e rolaram por baixo das mesas.

“Ele está bêbado,” eu disse para o garçom. Segurei firmemente no braço de Cabot. Ele
não pareceu estar mais com raiva e eu pude ver que ele não pretendia machucar ninguém.
Meu toque pareceu despertá-lo do estranho estado em que estava. Ele entregou o
cassetete arruinado, de forma tranquila agora para o garçom.

“Me desculpe,” disse Cabot. “De verdade.” Ele levou a mão dentro de sua carteira e
pressionou uma nota dentro da mão do garçom. Era uma nota de cem dólares.

Vestimos nossos casacos e saímos para dentro da noite de fevereiro, dentro da leve neve
a cair.

10
Foragidos de Gor
Fora do bar ficamos em pé sob a neve, sem falar. Cabot, ainda meio bêbado, olhou em
volta de si mesmo, para a brutal geometria elétrica da cidade grande, para as negras e
solitárias formas que se moviam através da neve suave e para os pálidos brilhos dos faróis
dos carros.

“Essa é uma grande cidade,” disse Cabot, “e ainda assim não é amada. Quantos são
aqueles aqui que morreriam por esta cidade? Quantos defenderiam seus perímetros até
a morte? Quantos se submeteriam à tortura a seu favor?”

“Você está bêbado,” eu disse, rindo.

“Esta cidade não é amada,” ele disse. “Caso contrário não seria usada desse jeito, mantida
desse jeito.”

Ele caminhou tristemente.

De alguma forma eu sabia que esta era a noite na qual eu saberia o segredo de Tarl Cabot.

“Espera!” Eu gritei para ele, de repente.

Ele se virou e eu senti que ele estava satisfeito que eu o tinha chamado, minha companhia
naquela noite significava muito para ele.

Me juntei a ele e juntos fomos para seu apartamento. Primeiro ele preparou um pouco de
café forte, um ato no qual meus sentidos ficaram mais que agradecidos. Então, sem parar,
ele foi para seu armário e voltou trazendo um cofre. Destrancou com uma chave que ele
carregava consigo mesmo e removeu um manuscrito, escrito com suas próprias mãos
claras, decisivas, estava amarrado com um barbante. Ele colocou o manuscrito em minhas
mãos.

Era um documento referente ao que Cabot chamava de Contra-Terra, a história de um


guerreiro, do cerco a uma cidade e do amor de uma garota. Você talvez conheça essa
estória como Tarnsman de Gor.

Quando, logo após o amanhecer, eu terminei de ler, olhei para Cabot, que todo o tempo,
esteve sentado perante a janela, seu queixo em suas mãos, assistindo a neve a cair,
perdido em pensamentos que eu escassamente podia conjecturar.

Ele virou de frente pra mim.

“É verdade,” ele disse, “mas você não precisa acreditar.”

Eu não sabia o que dizer. Poderia, é claro, ser mentira, ainda assim eu tinha Cabot como
um dos homens mais honestos que eu já conheci.

11
Foragidos de Gor
Então eu notei seu anel, quase como se fosse pela primeira vez, embora eu já tivesse visto
aquilo milhares de vezes. Ele tinha sido mencionado em seu testemunho, aquele simples
anel de metal vermelho, trazendo a insígnia dos Cabot.

“Sim,” disse Cabot, estendendo sua mão, “este é o anel.”

Eu apontei para o manuscrito. “Por que você me mostrou isso?” perguntei.

“Eu queria que alguém soubesse dessas coisas,” disse Cabot, simplesmente.

Levantei-me, agora consciente pela primeira vez depois de uma noite de sono perdida,
sob os efeitos da bebida e dos severos copos de café amargo. Eu sorri ironicamente. “Eu
acho,” falei, “que é melhor eu ir embora.”

“É claro,” disse Cabot, me ajudando com meu casaco. Na porta ele estendeu sua mão.
“Adeus,” ele disse.

“Vejo você amanhã,” eu disse.

“Não,” ele disse. “Eu estou indo de novo para as montanhas.”

Era fevereiro a época que ele tinha desaparecido, há sete anos atrás.

Fui abalado por um franco sentimento. “Não vá,” eu disse.

“Estou indo,” ele disse.

“Deixe-me ir com você,” eu disse.

“Não,” ele disse, “eu posso não retornar.”

Apertamos as mãos, e eu tive o estranho pressentimento de que eu nunca mais veria Tarl
Cabot novamente. Minha mão estava fechada firmemente na dele e a dele na minha.
Tentava mostrar alguma coisa para ele e ele para mim, e agora vejo como quão simples
isso pode ser quando amigos se separam para sempre, para nunca mais ver ou falar um
com o outro novamente.

Eu me encontrava agora no gelado e branco corredor do lado de fora de seu apartamento,


piscando sob a exposta luz do teto. Eu andei por algumas horas, em despeito à minha
fadiga, pensando, raciocinando sobre as estranhas coisas nas quais eu tinha escutado.

Então de repente eu me virei, literalmente, correndo de volta para seu apartamento. Eu


tinha abandonado meu amigo para algo que eu não fazia ideia do que era. Corri para a
porta do apartamento e a esmurrei com meus punhos. Não houve resposta. Chutei a
porta, arrancando a fechadura do batente. Entrei no apartamento. Tarl Cabot tinha
partido!

12
Foragidos de Gor
Sobre a mesa naquele pequeno apartamento mobiliado estava o manuscrito que eu tinha
lido durante a noite – com um envelope preso sob o barbante. O envelope trazia o meu
nome e endereço. Dentro estava uma simples nota: “Para Harrison Smith, ele deverá
cuidar disso.” Abatido, eu deixei o apartamento, carregando o manuscrito no qual
subsequentemente foi publicado como Tarnsman de Gor. Isso e a memória, eram tudo o
que havia restado de meu amigo, Tarl Cabot.

Meus exames chegaram e foram completados com sucesso. Mais tarde, depois de mais
algumas provas, eu me formei no Estado de Nova York e entrei em um dos imensos
escritórios de advocacia da cidade, esperando obter eventualmente experiência suficiente
e capital para abrir meu próprio negócio. Na pressa do trabalho, na interminável
demanda da selva de detalhes requeridos em minha profissão, a memória de Cabot foi se
perdendo de minha mente. Agora, talvez, não há muito mais o que dizer aqui, além do
fato que eu não o vi mais. Embora tivesse razões para acreditar que ele estava vivo.

Num fim de tarde, depois do trabalho, eu voltava para meu apartamento. Lá – a despeito
das portas trancadas e janelas – em uma mesa de centro à frente do sofá, estava um
segundo manuscrito, este que agora se segue. Não havia nenhuma nota, nenhuma
explicação.

Talvez, como Tarl Cabot uma vez comentou, “Os agentes dos Sacerdotes-Reis estão entre
nós.”

13
Foragidos de Gor
II

Retorno a Gor

Uma vez mais, eu, Tarl Cabot, caminho sobre os verdes campos de Gor.

Eu acordei nu nos pastos varridos pelo vento, debaixo daquela flamejante estrela que é o
popular sol de meus dois mundos, meu planeta natal, a Terra, e sua secreta irmã, a
Contra-Terra, Gor.

Levantei-me lentamente, minha pele viva sob o vento, meu cabelo esvoaçante com seus
sopros, meus músculos, cada um deles se contraindo e deleitando-se em seus primeiros
movimentos após semanas talvez, pois eu tinha novamente entrado naquele prateado
disco nas Montanhas Brancas, o qual era a nave dos Sacerdotes-Reis, usada para as
Viagens de Aquisição e, ao entrar, caí na inconsciência. Em tal estado, assim como
aconteceu uma vez há tempos atrás, eu tinha vindo para este mundo.

Fiquei lá de pé por alguns minutos, a fim de deixar cada sentido, cada nervo, beber da
maravilha do meu regresso.

Eu estava ciente novamente da baixa gravidade do planeta, mas tal sensação passaria
assim que meu corpo se acomodasse naturalmente ao meu novo ambiente. Dada a
gravidade inferior, feitos de bravura que poderiam parecer sobre-humanos na terra eram
comuns em Gor. O sol, como eu me lembrava, parecia um pouco mais largo que o da
terra, mas como antes, era difícil estar completamente certo disso.

À distância eu pude ver algumas manchas amarelas, pomares de Ka-la-na que pintavam
os campos de Gor. Distante, à minha esquerda, eu vi um esplêndido campo de Sa-Tarna,
balançando vistoso com o vento, aqueles altos e amarelos grãos que formam a base da
dieta Goreana. À direita, ao longe, eu vi um borrão de montanhas. Dado sua extensão e
altura, tanto quanto eu podia julgar, imaginei serem as montanhas de Thentis. Baseado
nelas, se fossem elas realmente, eu poderia traçar meu caminho para Ko-ro-ba, aquela
cidade de cilindros a qual, anos atrás, eu tinha prometido minha espada.

14
Foragidos de Gor
Então, de pé, o sol sobre mim, sem pensar eu levantei meus braços em uma prece pagã a
fim de reconhecer o poder dos Sacerdotes-Reis, os quais tinham uma vez me trazido da
Terra para este mundo, o poder no qual uma vez antes tinha me arrancado de Gor,
quando eles não precisavam mais de mim, me levando de minha cidade adotada, meu
pai, meus amigos e da garota que eu amava, a bela de cabelos negros, Talena, filha de
Marlenus, que uma vez foi Ubar de Ar, a maior cidade conhecida de toda Gor.

Não havia amor no coração dos Sacerdotes-Reis, estes misteriosos habitantes das
Montanhas de Sardar, fossem eles o que, ou quem quer que pudessem ser, mas havia
gratidão em meu coração, até mesmo para eles ou para as estranhas forças que os
moviam.

Se eu tinha retornado a Gor para procurar uma vez mais minha cidade e meu amor, eu
não tinha certeza, por mais que pudesse ser um espontâneo gesto de generosidade, ou de
justiça, como assim parecia ser. Os Sacerdotes-Reis, Guardiões do Local Sagrado nas
Montanhas de Sardar, pareciam saber de tudo o que ocorria em Gor. Mestres da terrível
Chama da Morte que poderia consumir em fogo destruindo o que quer que desejassem,
sempre que desejassem, estes não eram tão cruelmente motivados quanto os homens.
Não eram suscetíveis aos imperativos da decência e respeito que podem, em certas
ocasiões, guiar as ações de humanos. Seus interesses eram para com seus próprios,
remotos e misteriosos fins. Criaturas humanas eram tratadas como instrumentos
subservientes. Existia um rumor de que eles usavam homens da mesma forma que se
usam as peças em um jogo e, quando a peça tivesse desempenhado seu papel, poderia
então ser descartada, ou talvez, em muitos casos, removidas do tabuleiro até que fosse
do desejo dos Sacerdotes-Reis, começar um novo jogo.

Eu notei, a alguns pés de distância, sobre a grama, um elmo, escudo e lança, e um pacote
embrulhado em couro. Ajoelhei-me para examinar os artigos.

O elmo era de bronze, trabalhado à moda grega, com uma unitária abertura parecida com
o formato de um Y. Não trazia insígnia alguma e o lugar onde deveria estar a crista estava
vazio.

O escudo redondo, concêntricas e sobrepostas camadas de couro endurecido presos


juntos com rebites, fixados com aros de metal, moldados para encaixar as duplas tiras de
couro usadas para carregá-lo no braço esquerdo, estava também sem marca alguma.
Normalmente o escudo Goreano é pintado audaciosamente e traz gravado nele algum
dispositivo para identificar a cidade de quem o porta. Se esse escudo fosse planejado para
mim - e eu tinha poucas dúvidas sobre isso- deveria ter nele o símbolo de Ko-ro-ba, minha
cidade.

15
Foragidos de Gor
A lança era uma típica lança Goreana, com cerca de sete pés de altura, pesada, robusta,
com uma ponta cônica de bronze de aproximadamente dezoito polegadas de
comprimento. Esta era uma arma terrível e, auxiliada pela menor gravidade de Gor,
quando lançada com considerável força, podia perfurar um escudo a curta distância ou
enterrar sua ponta a um pé de profundidade em madeira sólida. Com esta arma grupos
de homens caçam até mesmo um larl em suas nativas tocas nas Cordilheiras Voltai,
aquele inacreditável carnívoro parecido com uma pantera, o qual de pé, pode chegar a
medir de seis a oito pés de altura até o pescoço.

De fato, a lança Goreana é tal que muitos guerreiros chegam a desprezar as armas de
longo alcance menores, tais como o arco longo e a besta, ambas as quais são facilmente
encontradas em Gor. Eu lamentava, contudo, que nenhum arco estava entre as armas ao
meu dispor, já que eu, em minha prévia estadia temporária em Gor, tinha desenvolvido
habilidade com tal arma e tinha reconhecidamente uma predileção por ela, um gosto que
escandalizou meu antigo mestre de armas.

Eu relembrava dele com afeição, o Velho Tarl. Tarl é um nome comum em Gor. Eu
procurava ansiosamente vê-lo novamente, aquele áspero viking gigante, aquele
orgulhoso, barbudo, um afeiçoado espadachim beligerante que tinha me ensinado o
ofício das armas usadas pelos guerreiros de Gor.

Abri o pacote de couro. Lá dentro encontrei uma túnica escarlate, sandálias e uma capa,
que constituem a indumentária normal de um membro da Casta dos Guerreiros.
Continha o que deveria conter, já que eu era de tal casta e tinha sido desde aquela manhã,
há alguns anos atrás, quando na Câmara do Conselho das Castas Altas eu tinha aceitado
as armas das mãos de meu pai, Matthew Cabot, Administrador de Ko-ro-ba, e tinha pego
a Pedra da Casa da cidade em minhas próprias mãos.

Para os Goreanos, embora eles raramente falem de tais coisas, a cidade é algo mais do
que pedras e mármores, cilindros e pontes. Não é simplesmente um lugar, uma
localidade geográfica na qual homens se veem aptos para construir suas moradias, uma
coleção de estruturas onde eles devem convenientemente conduzir suas tarefas.

Os Goreanos sentem, ou acreditam, que a cidade não pode simplesmente ser identificada
por seus elementos naturais, os quais sofrem suas transformações da mesma forma que
as células do corpo humano.

Para eles a cidade é quase uma coisa viva, ou mais que uma coisa viva, é uma entidade
com uma história. Pedras e rios não tem história. É uma entidade com uma tradição, uma
herança, costumes, práticas, pessoas, intenções, esperanças. Quando um Goreano diz, por
exemplo, que ele é de Ar ou Ko-ro-ba, ele está fazendo muito mais do que informar a você
seu local de residência.

16
Foragidos de Gor
Os Goreanos, geralmente, embora existam exceções, particularmente a Casta dos
Iniciados, não acreditam em imortalidade. Portanto, ser de uma cidade significa, em um
senso, ser parte de algo menos perecível que ele próprio, algo divino no sentido de que
não morre, mas é claro, como todo Goreano sabe, cidades também são mortais, já que
cidades podem ser destruídas assim como homens.

O amor por sua cidade tende a ser dedicado a uma pedra na qual é conhecida como a
Pedra da Casa, e a qual é normalmente mantida no cilindro mais alto da cidade. Na Pedra
da Casa a cidade encontra seu símbolo. Às vezes nada mais que um cru pedaço de pedra
esculpida, datada talvez por severas centenas de gerações, desde quando a cidade era
apenas um emaranhado de cabanas às margens de um rio, outras vezes um magnífico e
impressionante cubo trabalhado de mármore ou granito com joias encrustadas. No
entanto, por se tratar de um símbolo, está além de uma simples marca. É quase como se
a cidade por si só fosse identificada pela Pedra da Casa, como se esta fosse para a cidade
o que a vida é para um homem. Os mitos envoltos em tais questões são tais que enquanto
a Pedra da Casa sobrevive, então, também, a cidade irá viver.

Mas não é apenas o caso de que cada cidade tem sua Pedra da Casa. A mais simples e
humilde vila, e até mesmo a mais primitiva cabana da vila, talvez somente um cone de
palha, terá a sua própria Pedra da Casa, assim como a terá também a mais fantástica
câmara do Administrador de uma cidade tão grande como a cidade de Ar.

Minha Pedra da Casa era a Pedra da Casa de Ko-ro-ba, a cidade na qual eu tinha, há sete
anos atrás, prometido minha espada. Eu estava agora ansioso para retornar à minha
cidade.

Dentro do pacote, enrolado na túnica e na capa, encontrei a ombreira, a bainha e a espada


curta dos Goreanos. Retirei a espada de sua bainha. Era bem balanceada, perversa, de
dois gumes com cerca de vinte a vinte e duas polegadas de comprimento. Eu conhecia
aquela empunhadura e eu pude reconhecer algumas marcas na lâmina. Era a arma que
eu usei no cerco de Ar. Senti-me estranho em segurá-la novamente em minha mão, senti
seu peso, senti a familiar forma de seu cabo. Essa espada tinha aberto seu caminho escada
acima no Cilindro Central de Ar, quando eu resgatei Marlenus, que estava preparado
para o combate, o Ubar daquela cidade. Ela tinha cruzado com a espada de Pa-Kur,
mestre assassino, no telhado do Cilindro da Justiça de Ar, quando eu lutei por meu amor,
Talena. E agora novamente, eu a tinha em minhas mãos. Eu me perguntei por que, e
soube que simplesmente os Sacerdotes-Reis tinham a intenção que fosse assim.

Existiam dois itens que eu esperava encontrar dentro do pacote, que na verdade não
estavam lá: um aguilhão e um apito de tarn. O aguilhão é um instrumento na forma de
bastão, cerca de vinte polegadas em comprimento. Tinha um botão perto da
empunhadura, muito parecido com o interruptor de uma lâmpada. Quando o aguilhão
17
Foragidos de Gor
estivesse ligado e ele tocasse um objeto, ele emitia um violento choque e dispersava uma
cascata de faíscas vermelhas. É usado para controlar tarns - os gigantescos pássaros,
parecidos com falcões e vestidos com selas - de Gor. De fato, tais pássaros eram
condicionados a responder ao aguilhão, desde sua infância.

O apito de tarn, como alguém já deve esperar, é usado para chamar o pássaro.
Usualmente, os mais treinados dos tarns irão responder apenas a uma nota, aquela tocada
pelo apito de seus mestres. Não há nada de surpreendente nisso levando em conta que
cada pássaro é treinado, pela Casta dos Guardiões de Tarns, para responder a apenas
uma nota. Quando o tarn é presenteado a um guerreiro ou vendido para um, o apito
acompanha o pássaro. Nem é preciso dizer que o apito é importante e cuidadosamente
guardado, pois uma vez perdido ou nas mãos de um inimigo, o guerreiro, em todos os
propósitos práticos, perde sua montaria.

Eu agora tinha me vestido com o traje escarlate de um guerreiro de Gor. Eu estava


confuso sobre o traje, já que o elmo e o escudo, não traziam nenhuma insígnia. Isso era
contrário aos modos de Gor, onde normalmente apenas os trajes de foragidos e exilados,
homens sem uma cidade, carecem de um estratagema de identificação do qual Goreanos
se orgulham tanto.

Eu coloquei o elmo, e pendurei o escudo e a espada em meu ombro esquerdo. Peguei a


pesada lança de forma leve em minha mão direita. A julgar pelo sol e sabendo que Ko-
ro-ba ficava a noroeste das montanhas, eu comecei a caminhar na direção da minha
cidade.

Meus passos eram leves, meu coração estava feliz. Eu estava em casa, onde meu amor
esperava por mim. Onde meu pai tinha me encontrado depois de mais de vinte anos de
separação, onde meus camaradas guerreiros e eu tínhamos bebido e gargalhado juntos,
onde eu tinha conhecido e aprendido com meu pequeno amigo, Torm, o Escriba, lá era
minha casa.

Me peguei pensando em Goreano, tão fluente como se não tivesse estado ausente por sete
anos. Dei-me conta de estar cantando enquanto andava através da relva, uma canção de
guerreiros.

Eu tinha retornado a Gor.

18
Foragidos de Gor
III
Zosk

Eu tinha andado por algumas horas na direção de Ko-ro-ba quando fui tentado a ir para
uma das estreitas estradas da cidade. Eu a reconheci e, mesmo que não reconhecesse, as
cilíndricas pedras pasang que marcavam seu comprimento traziam em cada uma o
símbolo da cidade inscrito nelas e a contagem pasang apropriada à sua posição. Um
pasang Goreano é aproximadamente 0,7 de uma milha.

A estrada, assim como a maioria das estradas Goreanas, era construída como um paredão
deitado na terra e era feita para durar por centenas de gerações. Os Goreanos tinham
pouco senso de progresso quando comparados a nós, eram bem cuidadosos em suas
construções e acabamentos. O que eles constroem, o fazem para ser usado por homens
até que as tempestades do tempo as transformem em poeira. Ainda assim, esta estrada
feita com toda a dedicação dos homens da Casta dos Construtores era apenas uma
despretensiosa e subsidiária estrada, mal larga o suficiente para duas carroças passarem.
De fato, até mesmo as estradas principais para Ko-ro-ba nem chegavam aos pés das
grandes rodovias que conduziam para uma metrópole como Ar.

Surpreendentemente, embora as pedras pasang me dissessem que eu estava próximo de


Ko-ro-ba, obstinados tufos de grama cresciam por entre as pedras, e ocasionais videiras
avançavam, gavinha por gavinha, através dos grandes blocos.

Já era fim de tarde e, a julgar pelas pedras pasang, eu estava a algumas horas da cidade.
Embora ainda estivesse claro, muitos dos coloridos pássaros plumados já tinham
retornado para seus ninhos. Aqui e ali, enxames de insetos noturnos começavam a se
mover, se levantando sobre as folhas dos arbustos ao longo da estrada. As sombras das
pedras pasang cresciam longas e, a julgar pelo ângulo dessas sombras (já que as pedras
eram posicionadas de modo a servirem também como um relógio de sol), já passava do
décimo quarto Ahn Goreano, ou hora. O dia Goreano é dividido em vinte Ahn, o qual é
numerado consecutivamente. O décimo Ahn é o meio dia, o vigésimo, meia noite. Cada
Ahn consiste de quarenta Ehn, ou minutos, e cada Ehn é formado por oitenta Ihn ou
segundos.

Eu me perguntava se seria prático continuar minha jornada. O sol iria se pôr em breve, e
a noite Goreana pode ser perigosa, particularmente para um homem a pé.

19
Foragidos de Gor
É a noite que as sleens caçam, aqueles longos carnívoros mamíferos de seis patas, um
animal quase semelhante a uma cobra. Eu nunca tinha visto uma, mas já tinha visto suas
pegadas há sete anos atrás.

Também, à noite, a cruzar os luminosos discos que eram as três luas de Gor,
ocasionalmente podia-se ver a silenciosa e predatória sombra de um ul, um gigante
pterodátilo voando longe de seus pântanos nativos no delta do Vosk.

Talvez eu temesse mais aquelas noites em que se podia ouvir os gritos dos bandos de
vart, um cego enxame de roedores parecidos com morcegos, cada um do tamanho de um
cachorro pequeno. Eles poderiam devorar uma carcaça em questão de minutos, cada um
carregando um esvoaçante filete de carne para os recessos de uma escura caverna
qualquer, que o enxame escolhia como casa. Além do que, alguns bandos de vart eram
violentos.

Um dos perigos mais óbvios se encontrava na própria estrada, ainda mais que eu não
tinha nenhuma lanterna. Depois que escurecia, várias serpentes se moviam para a estrada
à procura de calor, as pedras da estrada retinham o calor do sol por mais tempo que os
campos circundantes. Um dos tipos de serpentes era a grande, cheia de marcas, uma
python Goreana, a hith. Uma a ser até mais temida talvez, era a pequena ost, um
venenoso réptil laranja brilhante, que media pouco mais que um pé em comprimento,
cuja mordida provocava uma excruciante morte em segundos.

Portanto, em despeito à minha ansiedade para voltar a Ko-ro-ba, eu decidi que eu deveria
sair da estrada, me enrolar em minha capa e passar a noite no abrigo de alguma pedra,
ou talvez, me enfiar dentro de algum emaranhado de arbustos espinhosos, onde poderia
dormir em relativa segurança. Agora que eu considerava fazer uma pausa em minha
jornada, eu subitamente me dei conta de que eu estava com uma fome e sede agudas.
Nenhuma provisão ou cantil de água tinham sido deixados naquele pacote que eu
encontrei minhas armas. Eu mal tinha pisado fora das pedras da estrada quando, vindo
estrada abaixo, cada passo cuidadosamente medido e sólido, eu vi uma curvada e larga
figura, dobrada sob um maço gigante de pedaços de pau, amarrado às suas costas por
duas cordas as quais ele segurava enrolada em seus pulsos à frente de seu corpo. Sua
estatura e peso o proclamava como um membro da Casta dos Carregadores de Madeira,
ou Lenhadores, aquela casta Goreana na qual, assim como a Casta dos Produtores de
Carvão, providencia a maior parte dos usuais combustíveis para as cidades Goreanas.

O peso que o homem estava carregando era prodigioso e fariam cambalear os homens da
maioria das outras castas, até mesmo da dos Guerreiros. O maço se elevava até a altura
de um homem sobre suas costas curvadas e media talvez algo em torno de quatro pés de
largura. Eu sabia que o truque para suportar aquele peso dependia parcialmente da
habilidade no manuseio das cordas e das costas, mas força bruta era também uma
20
Foragidos de Gor
necessidade óbvia; e este homem, e seus irmãos de casta, através das gerações, tinham se
adaptado a esta tarefa. Homens inferiores se tornavam criminosos ou morriam. Em casos
raros, alguém poderia ser permitido, pelo Conselho das Castas Altas, a subir de casta.
Ninguém, é claro, aceitaria ser rebaixado de casta e existiam castas baixas, a Casta dos
Camponeses, por exemplo, a casta mais básica de toda Gor.

O homem tinha se aproximado de mim. Seus olhos estavam quase cobertos por um
branco e desgrenhado tufo de cabelo, emaranhado em galhos e folhas. Seu bigode tinha
sido raspado, provavelmente pela lâmina do amplo machado de madeira com duas
lâminas, amarrado ao topo do maço. Ele vestia o curto robe de mangas esfarrapadas de
seu ofício, reforçado com couro nas costas e ombros. Seus pés estavam descalços, e negros
até os tornozelos.

Eu caminhei pra dentro da estrada, perante ele.

“Tal,” eu disse, levantando meu braço direito, palma pra dentro, em um usual
cumprimento Goreano.

A desgrenhada criatura, larga, poderosa, monstruosa na orgulhosa deformação de seu


ofício, estava de pé perante mim, seus pés plantados firmemente na estrada. Sua cabeça
se levantou. Seus olhos amplos, semicerrados, brancos como água, me fitaram através da
moita de cabelo que quase os escondia.

Apesar de sua lenta reação à minha presença, seus deliberados e calmos movimentos, eu
concluí que ele estava surpreso. Ele aparentemente não esperava encontrar alguém nesta
estrada. Aquilo me intrigou.

“Tal,” ele disse, sua voz era grossa, quase não humana.

Eu senti que ele estava considerando quão rápido ele poderia alcançar o machado
amarrado em seu maço.

“Eu não pretendo machucar você,” eu disse.

“O que você quer?” perguntou o carregador de madeira, que agora já deveria ter
percebido que meu escudo e equipamentos não traziam nenhuma insígnia, e teria assim
concluído que eu era um criminoso.

“Não sou um criminoso,” eu disse.

Ele obviamente não acreditou.

“Estou faminto,” eu disse. “Não como nada há muitas horas.”

“Eu também, estou com fome,” ele disse, “e não tive nada para comer em muitas horas.”

21
Foragidos de Gor
“Sua cabana é aqui por perto?” perguntei. Eu sabia que era, devido a hora do dia na qual
eu o encontrei. O sol regula a agenda da maioria dos ofícios Goreanos e os lenhadores
agora deveriam estar retornando com a lenha cortada de um dia de trabalho.

“Não,” ele disse.

“Eu não desejo nenhum mal a você ou a sua Pedra da Casa,” eu disse. “Não tenho
dinheiro e não posso pagar você, mas estou faminto.”

“Um guerreiro toma o que ele desejar,” disse o homem.

“Não desejo tomar nada de você,” eu disse.

Ele me encarou e eu vi os vestígios de um sorriso rachado através da pele mal barbeada


de seu rosto largo.

“Não tenho uma filha,” ele disse. “Não tenho prata e nem mercadorias.”

“Então eu lhe desejo prosperidade,” gargalhei, “e irei seguir meu caminho.” Eu passei
por ele e continuei a caminhar estrada abaixo.

Eu tinha andado apenas alguns passos quando sua voz me alcançou. Era difícil entender
suas palavras, já que aqueles da solitária Casta dos Lenhadores não falavam com
frequência.

“Eu tenho ervilhas e nabos, alho e cebola em minha cabana,” disse o homem, seu pacote
mais parecia uma corcunda gigante em suas costas.

“Os próprios Sacerdotes-Reis,” eu disse, “não pediriam por mais do que isso.”

“Então, Guerreiro,” disse o homem, emitindo o direto convite Goreano para um jantar de
casta baixa, “compartilhe minha caldeira.”

“Estou honrado,” eu disse, e eu estava.

Visto que eu era de casta alta e ele, baixa, ainda assim, quando estivéssemos em sua
própria cabana ele seria, pelas leis de Gor, um príncipe e soberano, ele estaria no mesmo
lugar onde ficava sua própria Pedra da Casa. De fato, um simples homem servente, que
nunca pensaria em retirar seu olhar do chão quando na presença de um membro de alta
casta, fosse um oprimido aldeão sem espírito, ou um desacreditado vilão ou covarde, um
miserável e obsequioso mendigo, frequentemente se torna, quando no local de sua
própria Pedra da Casa, um autêntico leão perante seus companheiros, orgulhoso e
esplendoroso, generoso e solidário, um rei mesmo que apenas dentro de sua própria toca.

De fato, frequentes eram as estórias onde até mesmo um guerreiro se subjugava a um


áspero aldeão quando dentro de sua cabana, em defesa de sua Pedra da Casa homens
lutavam com a mesma coragem, selvageria e desenvoltura de um larl da montanha. Mais
22
Foragidos de Gor
de um eram os campos de aldeões de Gor que tinham se manchado com o sangue fresco
de guerreiros tolos.

O carregador de peitoral amplo abriu um sorriso de orelha a orelha. Ele teria um


convidado esta noite. Ele por si só falaria pouco, já que não era habilidoso com a fala e
sendo também orgulhoso demais para formar sentenças das quais ele mesmo sabia que
poderiam ser mal feitas e com falhas gramaticais. Ele sentaria em frente ao fogo até o
amanhecer, se recusando a dormir, esperando que eu falasse com ele, para contar
histórias, relembrar aventuras, para falar sobre notícias de lugares distantes. O que eu
dissesse, eu sabia, seria menos importante do que a própria ação de dizer alguma coisa,
pois assim ele não estaria sozinho novamente.

“Eu sou Zosk,” ele disse.

Eu me perguntava se esse seria um pseudônimo ou seu nome real. Membros das castas
baixas frequentemente se intitulavam por um pseudônimo, reservando o nome real para
pessoas íntimas e amigos, para proteger tal nome de ser conhecido por um feiticeiro ou
pessoas que trabalhassem com magia, já que estes poderiam usar seu nome para fazer-
lhe mal. Por algum motivo eu senti que Zosk era seu nome real.

“Zosk de que cidade?” eu perguntei.

A baixa, curvada e ampla figura pareceu se enrijecer. Os músculos de suas pernas


repentinamente pareceram se contrair como um cabo. A harmonia que eu havia
conseguido ter com ele parece que subitamente desapareceu, como um pardal que foge
voando ou uma folha que se desprende subitamente de um galho.

“Zosk...” ele disse.

“De qual cidade?” perguntei.

“De cidade nenhuma,” ele disse.

“Com certeza,” eu disse, “você é de Ko-ro-ba.”

O atarracado e deformado homem gigante pareceu se encolher mais ainda como se


tivesse sido golpeado, e estremeceu. Eu senti que este simples e sincero homem primata
estava subitamente com medo. Zosk, eu senti, poderia enfrentar um larl armado apenas
com seu machado, mas ainda assim, aqui, ele parecia estremecido. Os grandes punhos
que seguravam as cordas de seu maço embranqueceram; os galhos sacudiram dentro do
maço.

“Eu sou Tarl Cabot,” eu disse. “Tarl de Ko-ro-ba.”

Zosk proferiu um inarticulado grito e começou a cambalear para trás. Suas mãos
vacilaram nas cordas e o grande maço de madeira afrouxou e se esparramou sobre as
23
Foragidos de Gor
pedras que cobriam a estrada. Se virando para correr, seus pés tropeçaram em um dos
pedaços de madeira e ele caiu. Ele caiu quase que em cima do machado que agora
repousava sobre a estrada. Impulsivamente, como se fosse uma forma de se agarrar à
vida no turbilhão de seu medo, ele apanhou o machado.

Com o machado em mãos, subitamente ele pareceu relembrar de sua casta e se agachou
na estrada, na escuridão, a poucos pés de mim, como um gorila agarrado ao machado de
duas cabeças, respirando profundamente, aspirando o ar, controlando seu medo.

Seus olhos se arregalavam na minha direção atrás dos grisalhos e embaraçados feixes de
seu cabelo. Eu não podia entender seu medo, mas eu estava orgulhoso de ver que ele
tinha controlado tal medo, pois o medo é o grande inimigo comum de todas as coisas
vivas, e sua vitória, eu senti de alguma forma, era também minha. Eu me lembrava de
quando eu mesmo tinha sentido medo assim, nas montanhas de New Hampshire, e como
vergonhosamente me rendi ao meu medo e corri, um escravo da única paixão aviltante
de um homem.

Zosk se ergueu tanto quanto o arco formado pelos gigantes ossos de sua coluna, o
permitiu fazer.

Ele não tinha mais medo.

Ele falou lentamente. Sua voz era grossa, mas estava completamente sob controle.

“Diga que você não é Tarl Cabot de Ko-ro-ba,” ele disse.

“Mas eu sou,” eu disse.

“Eu peço a você um favor,” disse Zosk, sua voz cheia de emoção. Ele estava pleiteando.

“Diga que você não é Tarl Cabot de Ko-ro-ba.”

“Eu sou Tarl Cabot de Ko-ro-ba,” eu repeti firmemente.

Zosk levantou seu machado.

Parecia leve em seu aperto massivo. Eu senti que ele poderia cortar uma pequena árvore
com apenas um golpe. Passo a passo, ele se aproximava de mim, o machado levantado
sobre seu ombro com ambas as mãos. Finalmente ele parou perante mim. Eu pensei ver
lágrimas em seus olhos. Não fiz nenhum movimento para me defender. De algum modo
eu sabia que Zosk não iria me golpear. Ele brigava consigo mesmo, sua simples e ampla
face se contorcia em agonia, seus olhos torturados.

“Que os Sacerdotes-Reis me perdoem!” ele gritou.

Ele largou o machado, que se chocou contra as pedras da estrada de Ko-ro-ba. Zosk se
encolheu e sentou de pernas cruzadas na estrada, sua figura gigante se sacudia com seus
24
Foragidos de Gor
soluços, sua imensa cabeça enterrada em suas mãos, sua voz grossa e gutural gemia em
angústia.

Em momentos como estes não se deve dirigir a palavra a um homem, pois de acordo com
o modo Goreano de pensar, a pena humilha tanto aquele que se compadece, quanto
aquele de que se sente pena. De acordo com o modo Goreano, alguém pode amar o outro,
mas não pode sentir pena.

Então eu me retirei.

Eu tinha esquecido minha fome. Não mais considerava os perigos da estrada.

Eu seguiria para Ko-ro-ba na escuridão.

25
Foragidos de Gor
IV

A Sleen

Na escuridão eu tropeçava a caminho de Ko-ro-ba, batendo nas pedras da estrada com o


cabo de minha lança a fim de continuar na estrada e evitar possíveis serpentes em meu
caminho. Aquela jornada era um pesadelo, e era tola. Tentava avançar através da noite
para chegar à minha cidade, me contundindo, caindo, me arrastando dentro da
escuridão, ainda guiado pelo tormento da dúvida e receio de tal modo que eu não me
permitiria algum descanso até que estivesse de pé perante as exuberantes pontes de Ko-
ro-ba.

Eu não era Tarl de Ko-ro-ba? Não existia tal cidade? Cada pedra pasang proclamava que
ela existia no fim desta estrada. Então por que ela estava largada? Por que não estava
sendo usada? Por que tinha Zosk da Casta dos Carregadores de Madeira agido daquele
modo? Por que meu escudo, meu elmo e meu equipamento não traziam a orgulhosa
insígnia de Ko-ro-ba?

Então eu gritei de dor. Duas presas tinham mordido minha panturrilha. Uma ost, eu
pensei! Mas as presas se mantiveram firmes e pude ouvir o som pulsante, como se
estivesse sugando, o som de uma vesícula em forma de vagem de uma planta
sanguessuga, que se expandia e se contraía como pequenos e repulsivos pulmões. Me
abaixei e arranquei a planta do solo a um canto da estrada. Ela se enrolou em minha mão
como uma serpente, sua embocadura arfando. Retirei os dois espinhos com formato de
presa de minha perna. A planta sanguessuga ataca como uma cobra e finca seus dois
espinhos ocos dentro da vítima. As respostas químicas da embocadura vesicular
induzem-na a uma ação de bombeamento mecânico e o sangue é sugado para dentro da
planta, que se nutre dele. Quanto retirei aquela coisa de minha perna, fiquei feliz que a
picada não tinha sido de uma venenosa ost, as três luas de Gor se precipitaram por de
trás da cortina de nuvens que as escondiam. Eu segurava a planta que se debatia. Então
eu a torci várias vezes. Agora meu sangue, negro sob a noite prateada, se misturava com
as seivas da planta, manchando o caule até as raízes. Em questão de talvez dois ou três
segundos, ela tinha drenado talvez uma caneca de líquido. Sentindo um arrepio eu
arremessei a asquerosa planta para longe da estrada. Normalmente tais plantas são
retiradas das bordas das estradas e de áreas habitadas. Elas são essencialmente perigosas

26
Foragidos de Gor
para crianças e pequenos animais, mas um homem adulto que perdesse seu equilíbrio e
caísse no meio delas dificilmente teria chances de sobreviver.

Preparei-me para seguir adiante em minha jornada novamente, grato que agora as três
luas de Gor poderiam guiar meu caminho nesta perigosa estrada. Eu me perguntei, em
um momento de sanidade, se eu não deveria procurar abrigo - e eu sabia que deveria,
mas não podia, porque aquelas questões queimavam dentro de mim e eu não ousaria
respondê-las. Apenas evidências aos meus olhos e ouvidos poderiam aliviar meus
medos, meu aturdimento. Eu solicitava uma verdade que eu não conhecia, mas sabia que
iria descobrir. E a resposta estava no final desta estrada.

Detectei um estranho e desagradável cheiro, mais parecido com o cheiro de uma doninha
ou furão, porém mais forte. Naquele momento todos os meus sentidos entraram em
alerta. Eu congelei, uma resposta quase que instintiva.

Fiquei em silêncio, procurando o abrigo da quietude e imobilidade. Minha cabeça virava


imperceptivelmente enquanto eu sondava as rochas e arbustos às margens da estrada.
Pensei ouvir um leve fungar, um grunhido, como o lamurio de um pequeno cachorro.
Então, nada.

A coisa também tinha se congelado, provavelmente sentindo minha presença. Deveria


ser uma sleen e eu esperava que fosse jovem. Imaginei que ela não deveria estar me
caçando, caso contrário não estaria fungando daquele jeito. Acho que fiquei de pé lá por
cerca de seis ou sete minutos. Então eu a vi, em suas seis patas curtas, caminhando através
da estrada, como um lagarto peludo, seu pontiagudo focinho bigodudo balançando de
um lado para o outro, testando o vento.

Eu soltei um suspiro de alívio.

Era de fato uma jovem sleen, não maior que seis pés de comprimento, e não tinha a
paciência de um animal adulto. Seu ataque, caso ela detectasse minha presença, seria
barulhento, uma corrida sibilante, uma investida desajeitada e esganiçada. Ela deslizou
para dentro das sombras, talvez não totalmente convencida de que estivesse sozinha, um
animal jovem pronto para negligenciar e esquecer os ligeiros vestígios que podem ditar
a diferença entre morrer ou sobreviver no brutal e predatório mundo de Gor.

Eu continuei em minha jornada.

Uma negra carreira de nuvens novamente obscureceu as três luas de Gor e o vento
começou a soprar. Eu ainda podia ver as sombras das altas árvores de Ka-la-na oscilando
dentro da escuridão da noite, suas folhas se levantando e farfalhando nos longos galhos.
Senti o cheiro de chuva no ar. Ao longe, pude ver um repentino flash de luz e o remoto
som de um trovão me alcançou alguns segundos depois.

27
Foragidos de Gor
Enquanto eu me apressava, fui ficando mais apreensivo. Agora eu já deveria estar vendo
as luzes da cidade de cilindros de Ko-ro-ba. O vento ficou mais forte, como se quisesse
rasgar as árvores.

Em um clarão de luz pude ver uma pedra pasang e, ansiosamente, corri até ela. Sob o
forte vento e na escuridão, eu pude ainda delinear o número na pedra. Era verdade.
Agora eu deveria estar vendo as luzes de Ko-ro-ba, mas eu não via nada. A cidade deveria
estar no escuro.

Por que as lanternas não estavam lá balançando nas imponentes pontes? Por que não
estavam as lamparinas de centenas de cores e chamas, acesas nos compartimentos da
cidade, indicando, através dos códigos de lamparinas de Gor, que conversavam, bebiam
ou faziam amor? Por que os imensos faróis sobre a muralha não estavam queimando, a
chamar à distância os itinerantes tarnsmans de volta para o abrigo de seus muros?

Eu estava lá de pé perante a pedra pasang, tentando entender. Estava confuso, incerto.


Agora que eu não tinha visto as luzes de Ko-ro-ba, como eu esperava ver, eu me dei conta,
forçadamente, de que eu também não tinha avistado nem mesmo as luzes das fogueiras
de cozimento dos aldeões, que deveriam estar acesas nas colinas que cercavam a cidade
ou as arrojadas tochas dos que caçavam sleens por esporte durante a noite. Sim, e agora
eu já deveria ter sido abordado uma dúzia de vezes pelas patrulhas noturnas de Ko-ro-
ba!

Um monstruoso relâmpago explodiu na noite acima de mim, me ensurdecendo com o


estrondoso grito de seu trovão, dividindo a noite em violentos fragmentos, quebrando-a
em pedaços como se fosse uma tigela de barro atingida por um martelo em chamas. E,
com o relâmpago, a tempestade desceu. Fortes e frias torrentes de chuva gelada, açoitadas
pelo vento.

Em pouco tempo eu estava encharcado pela água gelada. O vento a rasgar minha túnica.
Estava cego na fúria da tempestade. Limpei a água fria de meus olhos e passei meus
dedos entre meus cabelos a fim de os forçar para trás. A ofuscante fúria de um relâmpago
como um chicote de eletricidade golpeou de novo e de novo dentro das colinas, me
cegando por um instante em atordoante agonia, desaparecendo novamente dentro da
escuridão.

Um raio de luz destruiu a estrada a não mais de quinze jardas à minha frente. Por um
instante aquilo pareceu estar lá de pé como uma gigantesca e tortuosa lança posicionada
em meu caminho, luminosa, sinistra, proibidora, e então desapareceu. Aquilo tinha caído
em meu caminho. Um pensamento cruzou minha mente, de que aquilo era um sinal dos
Sacerdotes-Reis de que eu deveria voltar.

28
Foragidos de Gor
Eu continuei à frente e parei onde o raio tinha caído. A despeito do vento e da chuva
gelados, eu pude sentir o calor das pedras através de minhas sandálias. Levantei meus
olhos para a cima, e também minha lança e escudo, e gritei pra dentro da tempestade, um
desafiador grito ao vento se arremessou de encontro as forças que pareciam investir
contra mim.

“Estou indo para Ko-ro-ba!” eu gritei.

Eu mal dei um passo quando, com o flash de um relâmpago, eu vi a sleen. Desta vez um
animal completamente adulto, com cerca de dezenove ou vinte pés em comprimento,
correndo na minha direção, rapidamente, silenciosamente, suas orelhas alinhadas com
sua cabeça pontuda, seus pelos lustrados pela chuva, suas garras nuas, seus amplos olhos
noturnos brilhavam com o desejo de matar.

Um estranho ruído escapou de mim, uma inacreditável gargalhada. Aquilo era algo que
eu podia ver, podia sentir, podia lutar!

Com a ânsia e desejo que eram comparáveis aos da própria besta, eu avancei na escuridão
e, quando julguei que ela iria saltar, eu projetei para frente a ponta ampla da lança de
Gor. Meus braços pareceram molhados e presos, e foram fustigados pelas garras, eu girei
enquanto o animal se debatia em fúria e dor e rolei para fora da estrada. Eu retirei meu
braço da agora fraca e imóvel mandíbula fechada.

Outro clarão de relâmpago e eu vi a sleen deitada, atravessado em sua boca estava o cabo
da lança, seus olhos noturnos estavam sem foco e vítreos. Meu braço estava
ensanguentado, mas o sangue era em maior parte da própria sleen. Meu braço tinha
quase que entrado inteiro dentro da garganta do animal, seguindo a lança que eu tinha
cravado dentro de sua boca. Movi meu braço e dedos. Eu estava intacto.

No próximo flash de luz, eu vi que a sleen estava morta.

Um arrepio involuntário me percorreu, embora eu não soubesse se tinha sido provocado


pelo frio da chuva ou a pela visão do longo e peludo corpo parecido com um lagarto que
estava caído aos meus pés. Tentei extrair a lança mas estava presa entre as costelas do
animal.

Friamente eu retirei minha espada e cortei fora a cabeça da besta, puxando e liberando a
lança. Então, assim como os caçadores de sleens fazem, por sorte e porque eu estava com
fome, usando a espada eu cortei a pele do animal e comi seu coração.

É dito que somente o coração de um larl da montanha traz mais sorte que o de uma
perversa e astuta sleen. A carne crua, aquecida ainda pelo sangue do animal, me nutriu,
e eu agachei ao lado de minha presa na estrada de Ko-ro-ba, outro predador entre
predadores.
29
Foragidos de Gor
Eu gargalhei. “Será que você, Oh Irmão Negro da Noite, pensou que iria me impedir de
alcançar Ko-ro-ba?”

Quão absurdo isso me pareceu que uma mera sleen teria ficado entre mim e minha
cidade. Irracionalmente eu gargalhei, pensando quão tolo o animal tinha sido. Mas como
ele poderia saber? Como ele saberia que eu era Tarl de Ko-ro-ba e que eu estava
retornando para minha cidade? Tinha um provérbio Goreano que dizia que um homem
que está retornando para sua cidade não deve ser detido. Será que a sleen não conhecia
esse ditado?

Eu sacudi minha cabeça, para livrá-la desses pensamentos loucos. Eu senti que isso era
irracional, talvez estivesse um pouco bêbado após a morte de minha presa e do primeiro
alimento que tive após severas horas.

Então, sobriamente, embora eu soubesse que isso era uma superstição, eu realizei o ritual
Goreano de olhar dentro do sangue. Com minhas mãos juntas em forma de concha, eu
bebi um punhado de sangue, e então, segurando mais sangue em minhas mãos, eu
esperei pelo clarão de um raio.

Aquele que olha dentro do sangue em suas próprias mãos em concha, é dito que se ele
vê um semblante negro e desgastado, ele irá morrer de doença, se ele vê a si mesmo
rasgado e vermelho, irá morrer em batalha, se ele vê a si mesmo velho e de cabelos
brancos, irá morrer em paz e deixará filhos no mundo.

O relâmpago brilhou novamente e eu olhei dentro do sangue. Por um breve momento,


na pequena poça de sangue que eu segurava, eu vi não a mim mesmo, mas uma estranha
face, como um globo de ouro com olhos reprovadores, uma face como eu nunca tinha
visto antes, uma face que preencheu meu coração com um estranho terror.

A escuridão retornou e no próximo flash de luz eu examinei o sangue novamente, mas


agora era apenas sangue, o sangue de uma sleen que eu tinha matado na estrada de Ko-
ro-ba. Aquilo não podia nem mesmo refletir minha face em sua superfície. Bebi o sangue,
completando o ritual.

Levantei-me e limpei a lança tão bem quanto pude nos pelos da sleen. Seu coração tinha
me dado força.

“Obrigado, Irmão Negro da Noite,” eu disse para o animal.

Eu vi a água que tinha se acumulado na côncava cavidade do escudo. Agradecido, eu o


levantei e bebi daquela água.

30
Foragidos de Gor
V

O Vale de Ko-ro-ba

Eu começava a subir agora.

A estrada era familiar, uma longa e relativamente íngreme ladeira até o topo daquela
série de cumes nos quais, em seu centro, situava-se Ko-ro-ba, uma ladeira que era a
desgraça dos mestres das caravanas, de transportadores como o pobre Zosk, o lenhador,
e de todos os viajantes a pé.

Ko-ro-ba situava-se no meio de colinas verdes e ondulantes, algumas centenas de pés


abaixo do nível do distante Golfo Tamber e daquela misteriosa massa de água além do
golfo, referida pelos Goreanos simplesmente como Thassa, o Oceano. Ko-ro-ba não tinha
sido fundada nas alturas remotas como tinha sido por exemplo, Thentis, nas montanhas
de Thentis, famosas por seus bandos de tarns, mas ela não era uma cidade de vastas
planícies também, como a luxuriosa metrópole de Ar, ou costeira, como a desordenada,
tumultuada e sensual Port Kar, no Golfo Tamber. Enquanto Ar era gloriosa, uma cidade
que impunha grandeza, reconhecida até mesmo por seus inimigos de sangue; enquanto
Thentis tinha a orgulhosa imponência das rudes montanhas de Thentis para se assentar;
enquanto Port Kar poderia ostentar o amplo Tamber para sua irmã, a brilhosa, misteriosa
Thassa, eu via a minha cidade como sendo verdadeiramente a mais bela, com sua
variedade de majestosos cilindros se erguendo tão gentilmente, tão adoravelmente, entre
as calmas e verdes colinas.

Um antigo poeta, que por incrível que pareça para as mentes dos Goreanos, tinha cantado
as glórias de muitas das cidades de Gor, tinha falado de Ko-ro-ba como as Torres da
Manhã, e ela é referida as vezes por este nome. A atual palavra Ko-ro-ba por si mesma,
mais prosaicamente, é simplesmente uma expressão no Goreano arcaico que se refere a
uma vila mercante.

A tempestade não diminuíra mas eu tinha deixado de me importar. Encharcado, com frio,
eu subia, segurando meu escudo obliquamente perante mim para defletir o vento e fazer
a subida mais fácil. Finalmente, no topo, eu esperei e limpei a água fria de meus olhos,
aguardando pelo próximo flash de um raio que finalmente após esses longos anos de
espera, revelaria minha cidade.

31
Foragidos de Gor
Eu ansiava pela minha cidade, e por meu pai, o magnífico Matthew Cabot, uma vez Ubar,
agora Administrador de Ko-ro-ba, e por meus amigos, o orgulhoso Velho Tarl, meu
mestre de armas, e Torm, o bem disposto e resmungão escriba, que via até mesmo o sono
e a comida como conspiradores para separá-lo dos estudos e de seus amados
pergaminhos; e principalmente, eu ansiava por Talena, ela quem eu tinha escolhido como
minha companhia, ela por quem eu tinha lutado no Cilindro da Justiça de Ar, ela que
tinha me amado, e a quem eu amava, de cabelos negros, a bela Talena, filha de Marlenus,
uma vez Ubar de Ar.

“Eu amo você, Talena!” eu gritei.

E assim que o grito saiu de meus lábios houve um grande clarão de um relâmpago e o
vale entre as colinas se revelou com a luz, e eu vi que o vale estava vazio.

Ko-ro-ba se foi!

A cidade tinha desaparecido!

A escuridão que se seguiu após o flash de luz e o estrondo do trovão me abalaram com
horror.

De novo e de novo a luz piscou, e o trovão me martelou, a escuridão me engoliu uma vez
mais. E a cada vez eu via o que tinha visto antes. O vale vazio. Ko-ro-ba não estava lá.

“Você foi tocado pelos Sacerdotes-Reis,” disse uma voz atrás de mim.

Eu me virei, escudo levantado, lança em riste.

No próximo clarão, eu vi o branco robe de um Iniciado, a cabeça raspada e os tristes olhos


de um membro da Casta Abençoada, serventes como dizem, dos Sacerdotes-Reis, por
eles mesmos. Ele estava de pé com seus braços dentro de seu robe, alto na estrada, me
observando.

De algum modo este homem parecia diferente para mim, dos outros Iniciados que eu
tinha conhecido em Gor. Eu não poderia achar a diferença, ainda assim parecia ter algo
nele, ou sobre ele, que o diferenciava dos outros membros de sua casta. Ele poderia ser
como qualquer outro Iniciado, mas não era. Não tinha nada de extraordinário nele, exceto
talvez, que sua sobrancelha era maior que o comum, e seus olhos que pareciam ter visto
o que poucos homens já viram.

Um pensamento me ocorreu, de que eu, Tarl de Ko-ro-ba, um mortal, aqui essa noite,
nessa estrada, poderia estar olhando para a face de um Sacerdote-Rei.

Quando nos entreolhamos, a tempestade cessou, os relâmpagos não destruíam mais a


noite, os trovões não rosnavam mais em meus ouvidos. O vento se acalmou. As nuvens

32
Foragidos de Gor
tinham se dissipado. Refletidas nas poças de água fria que se deitavam sobre as pedras
da estrada eu pude ver as três luas de Gor.

Eu me virei e olhei para o vale no qual antes Ko-ro-ba se encontrava.

“Você é Tarl de Ko-ro-ba,” disse o homem.

Eu me surpreendi. “Sim,” eu disse, “Eu sou Tarl de Ko-ro-ba.” Me virei para faceá-lo.

“Eu estive esperando por você,” ele disse.

“Você é,” eu perguntei, “um Sacerdote-Rei?”

“Não,” ele disse.

Eu olhava para o homem, que parecia ser um homem igual a tantos outros.

“Você fala pelos Sacerdotes-Reis?” eu perguntei.

“Sim,” ele disse.

Eu acreditei nele.

Era comum, é claro, para os Iniciados afirmarem falar em nome dos Sacerdotes-Reis; de
fato, era presumivelmente o papel de sua casta interpretar os desejos dos Sacerdotes-Reis
para os homens.

Mas neste homem eu acreditei.

Ele não era como os outros Iniciados, embora ele vestisse os mesmos robes.

“Você realmente é da Casta dos Iniciados?” eu perguntei.

“Eu sou um dos que transmitem a vontade dos Sacerdotes-Reis para os mortais,” disse o
homem, escolhendo não responder minha pergunta.

Fiquei em silêncio.

“Daqui em diante,” disse o homem, “você é Tarl de cidade nenhuma.”

“Eu sou Tarl de Ko-ro-ba,” eu disse orgulhoso.

“Ko-ro-ba foi destruída,” disse o homem. “É como se nunca tivesse existido. Suas pedras
e pessoas foram dispersados pelos cantos do mundo, e nem duas pedras e nem dois
homens de Ko-ro-ba ficarão de pé lado a lado novamente.”

“Por que Ko-ro-ba foi destruída?” eu demandei.

“Assim foi o desejo dos Sacerdotes-Reis,” disse o homem.

“Mas por que este foi o desejo dos Sacerdotes-Reis?” eu gritei.


33
Foragidos de Gor
“Porque foi,” disse o homem, “e não há nada tão elevado a ponto de questionar ou
determinar os desejos dos Sacerdotes-Reis.”

“Eu não aceito a vontade deles,” eu disse.

“Submeta-se,” disse o homem.

“Eu não me submeto,” eu disse.

“Então assim será,” ele disse, “você daqui em diante está condenado a vagar pelo mundo
sozinho e sem amigos, sem cidade, sem muros para clamar como seus, sem Pedra da Casa
para estimar. Você será daqui em diante um homem sem uma cidade, você será um aviso
para todos, para que não desprezem a vontade dos Sacerdotes-Reis – fora isso, você não
será mais nada.”

“O que houve com Talena?” eu gritei. “Meu pai, meus amigos, as pessoas da cidade?”

“Espalhados pelas córneas do mundo,” disse a figura nos robes, “e nem uma pedra
sobrou sobre pedra”

“Eu não servi aos Sacerdotes-Reis,” eu perguntei, “no cerco de Ar?”

“Os Sacerdotes-Reis usaram você para seus fins, da forma que os agradou fazer.”

Eu levantei minha lança e senti que poderia assassinar a figura vestida em robes, tão
calmo e terrível perante mim.

“Mate-me se assim desejar,” disse o homem.

Eu abaixei a lança. Meus olhos se encheram de lágrimas. Eu estava aturdido. Seria minha
culpa que a cidade tivesse sucumbido? Seria eu quem tinha trazido a desgraça para as
pessoas, para meu pai, para meus amigos e para Talena? Tinha sido eu tão tolo de não
entender que eu não era nada perante o poder dos Sacerdotes-Reis? Estaria eu agora
condenado a vagar pelas abandonadas estradas e campos de Gor em culpa e agonia, um
terrível exemplo do destino que os Sacerdotes-Reis poderiam impor aos tolos e
arrogantes?

Então subitamente eu parei de sentir pena de mim mesmo, e eu estava chocado, pois
quando olhei para os olhos da figura vestida em robe, eu vi um fervor humano neles,
lágrimas escorriam por mim. Era pena, a proibida emoção, e ainda assim ele não pode se
conter. De algum modo o poder que eu tinha sentido em sua presença tinha desaparecido.
Eu estava agora apenas na presença de um homem, um camarada humano, mesmo que
este vestisse o sublime robe da soberba Casta dos Iniciados.

Ele parecia estar lutando contra ele mesmo, como que se procurasse dizer suas próprias
palavras e não aquelas dos Sacerdotes-Reis. Ele parecia abalado pela dor, suas mãos se
34
Foragidos de Gor
pressionaram contra sua cabeça, tentando falar comigo, tentando me dizer algo. Uma de
suas mãos se esticou tentando me alcançar, e as palavras, suas próprias palavras, longe
da ressoante autoridade de seu antigo tom, foram roucas e quase inaudíveis.

“Tarl de Ko-ro-ba,” ele disse, “atire-se sobre sua própria espada.”

Ele parecia pronto para desabar e eu o segurei.

Ele olhou dentro de meus olhos. “Atire-se sobre sua espada,” ele implorou.

“Isso não frustraria a vontade dos Sacerdotes-Reis?” eu perguntei.

“Sim,” ele disse.

“Por que você me diz isso então?” eu demandei.

“Eu segui você no cerco de Ar,” ele disse. “No Cilindro da Justiça eu lutei com você contra
Pa-Kur e seus assassinos.”

“Um Iniciado?” eu perguntei.

Ele sacudiu sua cabeça. “Não,” ele disse, “eu era um dos guardas de Ar e eu lutei para
salvar minha cidade.”

“A Gloriosa Ar,” eu disse, falando gentilmente.

Ele estava morrendo.

“A Gloriosa Ar,” ele disse, fraco, mas com orgulho. Ele me olhou novamente. “Morra
agora, Tarl de Ko-ro-ba,” ele disse, “Herói de Ar.” Seus olhos pareceram começar a
queimar em sua cabeça. “Não se envergonhe.”

De repente ele berrou como um cachorro torturado e o que aconteceu então eu não sou
capaz de descrever em detalhes. Pareceu como se toda a parte interna de sua cabeça
entrasse em combustão e queimasse, para efervescer uma horrível e perversa lava dentro
da cratera de seu crânio.

Foi uma morte feia – só por ter tentado falar comigo, por ter tentado me dizer o que ia
em seu coração.

Estava começando a clarear agora e o alvorecer surgia por entre as gentis colinas que
antes tinham abrigado Ko-ro-ba. Eu removi o odiado robe dos Iniciados do corpo do
homem e carreguei seu corpo nu para longe pela estrada.

Quando comecei a cobrir o corpo com as pedras, eu notava o que tinha sobrado do crânio,
agora nada mais que um punhado de estilhaços. O cérebro tinha literalmente evaporado
em ebulição. A luz da manhã refletiu brevemente em algo dourado por entre os

35
Foragidos de Gor
estilhaços. Eu peguei a coisa e levantei. Era um fio feito de um fino cabo dourado. Eu não
podia fazer nada com aquilo e joguei fora a um canto.

Eu empilhava as pedras sobre o corpo, pedras suficientes para que cobrissem a cova e
mantivesse os predadores afastados.

Coloquei uma larga pedra plana próximo do topo do monte de pedras, e com a ponta da
minha lança, arranhei uma inscrição. “Eu sou um homem da Gloriosa Ar.” Era tudo o
que eu sabia sobre ele.

Eu estava de pé ao lado do túmulo e desembainhei minha espada. Ele tinha me dito para
me jogar sobre ela, para evitar minha vergonha, para frustrar de uma vez o desejo dos
poderosos Sacerdotes-Reis de Gor.

“Não, Amigo,” eu disse para os restos do antigo guerreiro de Ar. “Não, eu não irei me
jogar sobre minha espada. Nem irei rastejar para os Sacerdotes-Reis, nem viverei a vida
de vergonha que eles reservaram para mim.”

Levantei a espada na direção do vale onde Ko-ro-ba um dia existiu.

“Muito tempo atrás,” eu disse, “eu prometi esta espada a serviço de Ko-ro-ba. E assim ela
continua prometida.”

Como todo homem de Gor eu sabia a direção das Montanhas de Sardar, a casa dos
Sacerdotes-Reis, a proibida vastidão dentro da qual nenhum homem abaixo das
montanhas, nenhum mortal poderia penetrar. Era dito que a Suprema Pedra da Casa de
toda Gor estava naquelas montanhas, que nenhum homem tinha visto um Sacerdote-Rei
e sobrevivido.

Eu retornei minha espada para a bainha, prendi meu elmo sobre meu ombro, levantei o
escudo e a lança e parti na direção das Montanhas de Sardar.

36
Foragidos de Gor
VI
Vera

As Montanhas de Sardar, as quais eu nunca tinha visto, residiam a mais de mil pasangs
de Ko-ro-ba. Ainda que os Homens Abaixo das Montanhas, como os mortais são
chamados, raramente entrem nas montanhas e os que assim o fazem raramente retornam,
muitos frequentemente se aventuram em suas bordas, mesmo que somente para ficar
sobre as sombras daqueles penhascos que escondem os segredos dos Sacerdotes-Reis. De
fato, ao menos uma vez na vida de cada Goreano é esperado que ele faça tal jornada.

Quatro vezes ao ano, de acordo com os solstícios e equinócios, feiras eram realizadas nas
planícies abaixo das montanhas, presididas por comissões de Iniciados, feiras nas quais
homens de muitas cidades se misturavam sem derramar sangue, tempos de trégua,
tempos de conquistas e jogos, de barganha e mercado.

Torm, meu amigo da Casta dos Escribas, frequentava tais feiras para trocar pergaminhos
com estudiosos de outras cidades, os quais ainda amavam ideias mais do que odiavam
seus inimigos, homens como Torm, eram tão apaixonados por aprender que arriscariam
uma perigosa jornada para as Montanhas de Sardar apenas para ter a chance de discutir
um texto ou pechinchar por um cobiçado pergaminho. Similarmente homens de castas
tais como a dos Médicos e Construtores faziam uso das feiras para disseminar e trocar
informações pertinentes aos seus respectivos ofícios.

As feiras eram uma forma de unir a intelectualidade, das quais sem ela, seriam nada mais
que isoladas cidades de Gor. E eu especulava que as feiras, de modo similar
desempenhavam o papel de estabilizar os dialetos de Gor, os quais poderiam, caso
contrário, em poucas gerações ter divergido ao ponto de serem mutualmente inteligíveis
– pois os Goreanos tinham uma coisa em comum, sua língua mãe em todas as suas
centenas de permutações, a qual eles simplesmente referem como a Linguagem, e todos
que falhassem em falar ela, independentemente de sua genealogia ou status, de suas
normas ou nível de civilização, eram vistos quase que como se estivessem fora dos limites
da humanidade. Diferentemente dos homens da terra, os Goreanos tinham pouca
sensibilidade para com a raça, mas muita para com a linguagem e cidade. Assim como
nós, eles encontram suas razões para odiar seus semelhantes, mas tais razões eram
diferentes.

37
Foragidos de Gor
Eu poderia fazer qualquer coisa para ter um tarn em minha jornada, embora eu soubesse
que nenhum tarn voaria para dentro daquelas montanhas. Por alguma razão nem o mais
destemido dos tarns, nem o mais estúpido dos tharlarions, os protótipos de montaria em
forma de lagarto de Gor, poderiam entrar nas montanhas. Os tharlarions ficam
incontroláveis e, embora o tarn esteja engajado em seu voo, o pássaro quase que
imediatamente se torna desorientado, descoordenado e volta gritando para as planícies
abaixo.

Gor era esparsamente habitada por seres humanos e abundante em vida animal de tal
forma que eu sabia que nas próximas semanas eu não teria dificuldades em sobreviver
através da caça. Eu suplementei minha dieta com frutas frescas que eu catava de arbustos
e árvores, e pescava com um espeto nos frios e velozes córregos correntes de Gor. Certa
vez eu trouxe a carcaça de um tabuk, um dos amarelos antílopes de Gor com um único
chifre, o qual eu tinha abatido em um arvoredo de Ka-la-na, para a cabana de um aldeão
e sua esposa. Sem perguntar, como seria conveniente dado a ausência de uma insígnia
em minhas vestes, eles comemoraram meu sucesso na caçada e me deram cordas, pedras
para fazer fogo e um odre de vinho.

Os aldeões de Gor não temem foragidos, pois eles raramente têm alguma coisa de valor
para ser roubada, exceto se tiverem uma filha. De fato, os aldeões e foragidos em Gor
vivem quase que sob um acordo não falado, o aldeão tende a proteger o foragido e o
foragido retribui compartilhando parte de seu saque e ganhos com o aldeão. O aldeão
não vê isso como desonesto de sua parte ou como ganância. É simplesmente o modo de
vida no qual ele está habituado. É um caso diferente, é claro, se for explicitamente
conhecido que o foragido é de uma outra cidade que não a mesma do aldeão. Neste caso
ele é normalmente visto como um inimigo que deve ser reportado para as patrulhas o
mais rápido possível. Ele é, acima de tudo, de outra cidade.

Como era sensato, eu evitei cidades em minha longa jornada, embora eu tenha passado
por mais de uma. Entrar em uma cidade sem permissão ou um motivo satisfatório era o
mesmo que cometer um crime capital, e a punição é geralmente o rápido e brutal
empalamento. Lanças sobre os muros das Cidades Goreanas frequentemente traziam os
restos de convidados indesejados. Os Goreanos sempre suspeitam de estranhos,
particularmente nas proximidades de seus muros nativos. De fato, em Goreano a mesma
palavra é usada para estranho e inimigo.

Existia uma conhecida exceção para esta prevalecente atitude hostil para com estranhos,
a cidade de Tharna, a qual, de acordo com os rumores, estava disposta a engajar no que
em Gor poderia ser avaliado como uma aventura de hospitalidade. Existiam muitas
coisas supostamente estranhas sobre Tharna, uma delas era de que ela era governada por
uma rainha, ou Tatrix e, dadas as sensatas circunstâncias, a posição das mulheres naquela

38
Foragidos de Gor
cidade, em contraste com os mais comuns costumes Goreanos, era de privilégio e
oportunidade.

Eu alegrei-me de saber que pelo menos em uma cidade de Gor as mulheres livres não
eram obrigadas a vestir os Robes de Encobrimento, limitadas em suas atividades em
grande parte dentro de seus próprios aposentos e limitadas a falar apenas com seus
parentes de sangue e, eventualmente, seu Companheiro Livre.

Eu pensei que muitas das barbaridades de Gor poderiam talvez serem atribuídas a esta
tola supressão do sexo belo, cuja delicadeza e inteligência poderia ter contribuído para
amolecer seus modos severos. Para ser exato, em certas cidades, como era o caso de Ko-
ro-ba, mulheres eram permitidas a ter status dentro do sistema de castas e tinham uma
relativa irrestrita existência.

De fato, em Ko-ro-ba, uma mulher poderia até mesmo deixar seus aposentos sem
primeiro obter permissão de um homem relacionado a ela ou seu Companheiro Livre, a
liberdade da qual era incomum em Gor. As mulheres de Ko-ro-ba podiam até mesmo ser
encontradas sentadas sozinhas em um teatro ou a ler poemas épicos.

Das cidades de Gor que eu conhecia, com a possível exceção de Tharna, as mulheres
tinham sido mais livres em Ko-ro-ba, mas agora Ko-ro-ba não mais existia.

Eu imaginava se seria capaz de obter um tarn na intrigante cidade de Tharna. Isso


encurtaria minha viagem para as Montanhas de Sardar por semanas. Eu não tinha
dinheiro comigo que pudesse comprar um tarn mas eu especulava que meu preço de
contratação como um espadachim poderia ser suficiente para comprar uma montaria.
Essa era a questão, embora eu não considerasse seriamente a possibilidade, por não ter
uma cidade, eu era efetivamente um foragido, eu tinha ainda o direito, no modo Goreano
de pensar, de adquirir um pássaro ou pagar por seu preço da forma que eu julgasse
apropriada.

Enquanto eu ponderava sobre tais questões, eu observei aproximando-se de mim, mas


sem me ver, à distância, movendo-se através da verde campina, a figura escura de uma
mulher. Embora ela fosse jovem, ela andava lentamente, pesarosamente,
descontraidamente, sem rumo.

É incomum encontrar uma mulher sem escolta fora dos muros de uma cidade, até mesmo
próxima dos muros. Eu estava espantado de vê-la sozinha neste selvagem e deserto lugar,
longe das ruas e cidades. Eu decidi esperar até que ela se aproximasse.

Eu estava confuso.

Em Gor normalmente uma mulher só viaja com uma comitiva adequada de guardas
armados. Mulheres, neste mundo bárbaro, são frequentemente vistas, infelizmente, como
39
Foragidos de Gor
nada mais do que prêmios para amar, frutos da conquista e apreensão. Muitas vezes elas
não são vistas como pessoas, como seres humanos com direitos, indivíduos merecedores
de preocupação e respeito, mas sim como potenciais escravas do prazer, vestidas em
sedas, algemadas prisioneiras, possivelmente adornadas para os jardins de prazer de seus
captores. Tem um ditado em Gor que diz que as leis de uma cidade não se estendem além
de seus muros.

Ela ainda não tinha me visto. Eu repousei minha lança e esperei.

A severa instituição exogâmica de captura está entrelaçada dentro do próprio tecido da


vida Goreana. É considerado como meritório o ato de raptar mulheres, preferencialmente
se forem de uma cidade inimiga. Talvez esta instituição, que em sua superfície parece ser
tão deplorável, seja vantajosa do ponto de vista racial, prevenindo a gradual endogamia
de outra forma nas tão isoladas cidades auto suficientes. Poucos parecem contestar a
instituição de captura, nem mesmo as mulheres que podem ser suas vítimas. Ao
contrário, por incrível que pareça, sua vaidade é terrivelmente ofendida se elas não forem
consideradas merecedoras do risco que há ao serem capturadas, que geralmente é a
mutilação ou o empalamento. Uma cruel cortesã da grande cidade de Ar, agora nada
mais que uma desdentada de pele enrugada, vangloriava-se pelo fato de que mais de
quatrocentos homens haviam morrido por causa de sua beleza.

Por que aquela garota estaria sozinha?

Será que seus protetores tinham sido assassinados? Seria ela talvez uma escrava fugitiva,
escapando de um mestre odiado? Poderia ela ser como eu, um exilado de Ko-ro-ba? As
pessoas de lá foram dispersadas, eu disse para mim mesmo, e nem duas pedras nem dois
homens de Ko-ro-ba poderiam estar de pé lado a lado novamente. Eu cerrei os dentes. O
pensamento corria através de minha cabeça, nenhuma pedra ficará sobre pedra.

Se ela fosse de Ko-ro-ba, eu sabia que eu não poderia, para seu próprio bem, ficar com ela
ou perto dela. Seria um convite à Chama da Morte dos Sacerdotes-Reis para um ou outro,
talvez, para ambos de nós. Eu já tinha visto um homem morrer pela Chama da Morte, o
Alto Iniciado de Ar no topo do Cilindro da Justiça de Ar, consumido em súbita erupção
de fogo azul que era o presságio do descontentamento dos Sacerdotes-Reis.

Se fosse uma mulher livre ela tinha sorte, pois estar sozinha em um lugar como este era
imprudência e insensatez.

Ela devia saber disso, ainda assim ela parecia não se importar.

Um pouco da natureza da instituição de captura e a atitude dos Goreanos perante ela se


torna claro quando se sabe que uma das primeiras missões de um jovem tarnsman é
geralmente a captura de uma escrava para seus aposentos pessoais. Quando ele traz sua
captura para sua casa, amarrada nua sobre a sela de seu tarn, ele entrega ela, contente,
40
Foragidos de Gor
para as irmãs dele, para que seja banhada, perfumada e vestida no curto uniforme de
uma escrava de Gor.

E à noite, na grande festa, ele exibe sua captura, agora adequadamente adornada por suas
irmãs nas diáfanas e escarlates sedas de dança de Gor. Sinetas são amarradas em seus
calcanhares e ela é presa em braceletes de escravas. Orgulhoso, ele a apresenta para seus
parentes, seus amigos e camaradas guerreiros.

Então, sob a festiva música de flautas e tambores, a garota se ajoelha. O jovem homem se
aproxima dela, trazendo um colar de escrava, gravado nele o seu nome e o de sua cidade.
A música cresce em intensidade, um crescendo barbárico, avassalador, que para de
repente, abruptamente. A sala fica em silêncio, absolutamente quieta, exceto pelo
decisivo clique da fechadura do colar.

Este é um som que uma garota jamais esquece.

Tão cedo a fechadura se tranca, se segue um grande grito, felicitando, saudando o jovem
homem. Ele retorna para seu lugar entre as mesas que se alinham na câmara de teto baixo,
onde balançam lamparinas de latão a brilhar. Ele senta no meio de sua família, os mais
próximos o saúdam, seus companheiros de espada, pernas cruzadas no chão à moda
Goreana, atrás da longa e baixa mesa de madeira, recheada de comida, que se prostra na
frente do salão.

Agora todos os olhos estão na garota.

Os restringentes braceletes de escrava são removidos. Ela se levanta. Seus pés descalços
sobre o grosso e ricamente forjado tapete que cobre o piso da câmara. Houve-se o leve
som dos sinos amarrados em seus calcanhares. Ela está com raiva, provocante. Embora
ela estivesse vestida somente na diáfana seda escarlate de dança de Gor, suas costas estão
eretas, sua cabeça alta. Ela está determinada a não ser domada, não se submeter e sua
orgulhosa postura prediz este fato. Os espectadores parecem se divertir. Ela os encara.
Raivosa ela olha face por face. Não há ninguém lá que ela conheça ou que pudesse
conhecer, porque ela foi raptada de uma cidade hostil, ela é a mulher do inimigo. Punhos
cerrados, ela fica de pé no centro do salão, todos os olhos sobre ela, bela à luz das
lamparinas penduradas.

Ela se vira para o jovem homem, vestindo seu colar.

“Você nunca irá me domar!” ela grita.

Sua explosão provoca gargalhadas, observações céticas e algumas vaias de boa índole.

“Eu irei domá-la aos meus prazeres,” responde o jovem homem e gesticula para os
músicos.

41
Foragidos de Gor
A música começa novamente. Porém a garota hesita. Tem um chicote escravo pendurado
na parede. Então, sob a barbárica, inebriante música das flautas e tambores, ela dança
para seu captor, os sinos em seus tornozelos marcando cada um de seus movimentos, os
movimentos de uma garota roubada de sua casa, que deve agora viver para agradar o
atrevido estranho em cujas cordas ela tinha sido amarrada, cujo colar ela agora vestia.

Ao término de sua dança é dado a ela um copo de vinho, mas ela não deve beber. Ela se
aproxima do jovem homem e se ajoelha perante ele, seus joelhos na delicada posição de
uma Escrava de Prazer e, com a cabeça baixa, ela oferece o vinho para ele. Ele bebe. Há
outro clamor da multidão em louvor e felicitações. A festa começa e ninguém antes do
jovem homem deve tocar na comida em tais ocasiões. A partir daquele momento as irmãs
do homem nunca mais o servirão, pois essa agora é a tarefa da garota. Ela é sua escrava.

Enquanto ela o serve de novo e de novo ao decorrer da longa festa, ela lança olhares a ele
e observa que ele é até mesmo mais maravilhoso do que ela pensou. De sua coragem e
força ela já tinha tido ampla evidência. Enquanto ele come e bebe com prazer na ocasião
de seu triunfo, ela o contempla furtivamente, com uma estranha mistura de medo e
prazer.

“Apenas tal homem,” ela diz para si mesma, “poderia me domar.”

Talvez devêssemos acrescentar que o mestre Goreano, embora muitas vezes ele seja
rigoroso, raramente ele é cruel. A garota sabe, que se ela o agradar, seu fado será fácil.
Ela quase nunca encontrará sadismo ou crueldade libertina, pois o ambiente psicológico
que tende a gerar essas doenças é praticamente inexistente em Gor. Isso não significa que
ela não espera ser castigada caso desobedeça ou falhe em agradar o seu mestre. Por outro
lado, é comum ter um conjunto de compartimentos em Gor onde o mestre, de fato,
voluntariamente faz uso do colar e de sua adorável escrava, ao exercitar os ardis
deliciosos do sexo dela, com êxito escandaloso a induz de modo triunfante para a
satisfação de um em prol do outro.

Eu me perguntava se a garota que se aproximava era bela.

Eu sorri comigo mesmo.

Paradoxalmente, o Goreano, que parece pensar tão pouco das mulheres em alguns
aspectos, glorificam-nas extravagantemente em outros. O Goreano é sutilmente
suscetível à beleza; isso alegra seu coração, e suas canções e arte são frequentemente hinos
à glória delas. Mulheres Goreanas, sejam escravas ou livres, sabem que sua simples
presença traz alegria aos homens, e eu não posso deixar de pensar que isso as agrada.

Eu percebi que a garota era bonita. Parecia ter alguma coisa em seu comportamento, algo
sutil e gracioso, algo que não pudesse ser escondido pelo aspecto abatido de seus ombros,
por sua marcha lenta e pela aparente exaustão, não, nem mesmo pelas grossas e pesadas
42
Foragidos de Gor
vestes que ela usava. Tal garota, eu pensei, certamente deveria ter um mestre ou, como
eu esperava, um protetor e companheiro.

Não existe matrimônio, do jeito que nós conhecemos, em Gor, mas existe a instituição do
Livre Companheirismo, que é seu correspondente mais próximo. Surpreendentemente,
uma mulher que é comprada de seus pais, por tarns ou ouro, é considerada uma
Companhia Livre, mesmo que embora ela não tenha sido consultada sobre a transação.
De forma louvável, uma mulher livre pode ela mesma, por sua própria vontade,
concordar em ser uma companhia. E não é incomum para um mestre, libertar uma de
suas escravas a fim de que ela possa compartilhar todos os privilégios de um
Companheirismo Livre. Ele pode ter, em determinado tempo, um número indefinido de
escravas, mas somente uma Companheira Livre. Tal relacionamento não é assumido
levianamente, e eles normalmente se separam apenas na morte. Ocasionalmente os
Goreanos, assim como seus irmãos em nosso mundo, talvez até mesmo com mais
frequência, aprendem o significado do amor.

A garota estava agora muito perto de mim e ainda não tinha me visto. Sua cabeça estava
baixa. Ela vestia os Robes de Encobrimento, mas a textura e cor estavam longe de ter as
vaidades gloriosas muitas vezes expressas nesse tipo de indumentária, os tons roxos,
amarelos e escarlates em que as donzelas Goreanas se deleitavam; as vestes eram de um
grosso tecido marrom, esfarrapado e coberto de poeira. Tudo nela predizia miséria e
melancolia.

“Tal,” eu disse, em tom baixo, para que eu não a assustasse demais, levantando meu braço
em gentil saudação.

Ela não tinha detectado minha presença e ainda assim não pareceu muito surpresa. Este
era o momento que ela aparentemente tinha esperado por muitos dias, e agora ele tinha
chegado. Sua cabeça levantou e seus olhos, finos olhos acinzentados, entorpecidos com
mágoa e talvez fome, me observaram. Ela não demonstrou grande interesse em mim ou
no que eu poderia fazer à ela. Deduzi que eu deveria ter sido como qualquer outro para
ela.

Nós nos entreolhamos sem falar por um momento.

“Tal, Guerreiro,” ela disse, suavemente, sua voz sem emoção.

Então, para uma mulher Goreana, ela fez uma coisa incrível.

Sem falar, ela lentamente desprendeu o véu de sua face e o deixou cair sobre seu ombro.
Ela ficou de pé perante mim e, como dizem, de face desnudada, e por suas próprias mãos.
Ela me fitou abertamente, diretamente, não descaradamente mas sem medo. Seu cabelo
era castanho e fino, os esplêndidos olhos acinzentados ainda mais claros, e sua face, eu
vi, era bela, até mesmo mais bela do que eu tinha imaginado.
43
Foragidos de Gor
“Eu agrado você?” ela perguntou.

“Sim,” eu disse. “Você me agrada muito.”

Eu sabia que esta poderia ser a primeira vez que um homem via sua face, exceto talvez
por um membro de sua família, se ela tivesse uma.

“Eu sou bela?” ela perguntou.

“Sim,” eu disse, “você é bela.”

Deliberadamente, com ambas as mãos, ela abaixou suas vestes algumas polegadas abaixo
de seus ombros, revelando totalmente seu pescoço branco. Estava nu, não circundado por
um dos finos e graciosos colares de escravas de Gor. Ela era livre.

“Você deseja que eu me ajoelhe para você me encoleirar?” ela perguntou.

“Não,” eu disse.

“Você deseja me ver por inteira?” ela perguntou.

“Não,” eu disse.

“Eu nunca fui possuída antes,” ela disse. “Eu não sei como atuar ou o que fazer – salvo
apenas pelo fato de que sei que devo fazer qualquer coisa que você desejar.”

“Você era livre antes,” eu disse, “e você é livre agora.”

Pela primeira vez ela pareceu assustada. “Você não é um deles?” ela perguntou.

“Um deles quem?” eu perguntei, agora alerta, pois se tivessem traficantes de escravos no
rastro dessa garota isso significaria problemas, talvez até derramamento de sangue.

“Os quatro homens que estiveram me seguindo, homens de Tharna,” ela disse.

“Tharna?” eu perguntei, genuinamente surpreso. “Eu pensei que os homens de Tharna


reverenciavam mulheres, os únicos talvez, em toda Gor.”

Ela gargalhou amargamente. “Eles não estão em Tharna agora,” ela disse.

“Eles não poderiam levar você para Tharna como uma escrava,” eu disse. “A Tatrix não
libertaria você?”

“Eles não me levariam para Tharna,” ela respondeu. “Eles me usariam e me venderiam,
talvez para algum mercador de passagem, talvez na Rua das Marcas em Ar.”

“Qual é o seu nome?” eu perguntei.


“Vera,” ela disse.

44
Foragidos de Gor
“De qual cidade?” perguntei.

Antes que ela pudesse responder, se tivesse resposta, seus olhos subitamente se abriram
em medo, e eu me virei. Se aproximando através da campina, pés afundados na grama
molhada, estavam quatro guerreiros, vestindo elmos e carregando lanças e escudos. Pela
insígnia do escudo e pelos elmos azuis eu sabia que eram homens de Tharna.

“Corra!” ela gritou e se virou para correr.

Eu segurei seu braço.

Ela se enrijeceu em ódio. “Eu sei!” ela chiou. “Você irá me segurar para eles, você vai
reivindicar o direito de captura e exigir uma parcela do meu preço!” ela deu uma bofetada
em minha face.

Eu estava satisfeito com seu espírito.

“Fique quieta,” eu disse. “Você não iria longe.”

“Eu venho fugindo desses homens por seis dias,” lamentou a garota, “vivendo de frutas
e insetos, dormindo em valas, escondendo e correndo.”

Ela não conseguiria correr se quisesse. Suas pernas pareciam tremer abaixo dela. Eu pus
meu braço em volta dela, emprestando meu suporte.

Os guerreiros se aproximaram de mim profissionalmente, se afastando uns dos outros,


abrindo suas posições. Um deles, não o oficial, se aproximou diretamente; outro, a alguns
pés atrás do primeiro e a sua esquerda, o seguia. O oficial era o terceiro homem na
formação e o outro guerreiro se situava a severas jardas na retaguarda. Era seu papel
observar todo o campo, pois eu poderia não estar sozinho e assim ele cobriria a retirada
de seus companheiros com sua lança caso a necessidade chegasse. Eu admirei a manobra
simples, executada sem nenhum comando, quase que como um reflexo e senti porque
Tharna, a despeito de ser governada por uma mulher, tinha sobrevivido em meio as
hostis cidades de Gor.

“Nós queremos a mulher,” disse o oficial.

Eu gentilmente me soltei da mulher e a coloquei atrás de mim. O significado desta ação


não deixou de ser notado pelos guerreiros.

Os olhos do oficial se apertaram dentro da abertura em Y de seu elmo.

“Eu sou Thorn,” ele disse, “um Capitão de Tharna.”

“Por que você quer a mulher?” eu provoquei. “Os homens de Tharna não reverenciam as
mulheres?”

45
Foragidos de Gor
“Este não é o solo de Tharna,” disse o oficial, aborrecido.

“Por que eu deveria entregar ela a você?” eu perguntei.

“Por que eu sou um Capitão de Tharna,” ele disse.

“Mas este não é o solo de Tharna,” eu o relembrei.

Atrás de mim a garota sussurrou, um abjeto sussurro. “Guerreiro, não morra por minha
causa. No fim de tudo será a mesma coisa.” Então, levantando sua voz, ela falou para o
oficial. “Não mate ele, Thorn de Tharna. Eu irei com você.”

Ela deu um passo atrás de mim, orgulhosa mas resignada ao seu destino, pronta para dar
a si mesma àqueles desgraçados, para ser encoleirada e acorrentada, despida e vendida
nos mercados de Gor.

Eu gargalhei.

“Ela é minha,” eu disse, “e você não a terá.”

A garota deu um suspiro de espanto e me olhou interrogativamente.

“A não ser que você pague pelo seu preço,” eu adicionei.

A garota fechou seus olhos, moída.

“E qual o seu preço?” perguntou Thorn.

“O preço dela é o aço,” eu disse.

Um olhar de gratidão surgiu na face da garota.

“Matem-no,” disse Thorn para seus homens.

46
Foragidos de Gor
VII
Thorn, Capitão de Tharna

Em apenas um único som, três lâminas saltaram de suas bainhas, a minha, a do oficial e
a do guerreiro que me engajaria primeiro. O homem da direita não desembainhou sua
lâmina, mas aguardava até que o primeiro guerreiro tivesse feito seu ataque e então
poderia me atacar pela lateral com sua lança. O guerreiro à frente apenas levantou sua
lança, pronto para a jogar assim que uma abertura se apresentasse.

Mas fui eu quem atacou primeiro.

Subitamente virei-me para o guerreiro com a lança à minha direita e, com a agilidade de
um larl das montanhas, eu me lancei sobre ele me desviando de seu desajeitado e
alarmado golpe e enterrei minha lâmina entre suas costelas, puxando-a de volta e me
virando a tempo de encontrar o ataque da espada de seu companheiro. Nossas lâminas
mal se cruzaram seis vezes quando ele, também, caiu aos meus pés, curvado em agonia,
agarrando o gramado.

O oficial tinha avançado mas agora, ele parou. Ele, assim como seus homens, tinha sido
pego de surpresa. Embora eles fossem quatro e eu um, eu tinha levado a batalha até eles.
O oficial não tinha chegado a tempo. Agora minha espada estava entre eles e meu corpo.
O outro guerreiro, atrás dele, com sua lança posicionada, tinha se aproximado cerca de
dez jardas. Àquela distância ele dificilmente erraria. De fato, mesmo se o projétil se
chocasse e penetrasse meu escudo, eu teria de descartar o escudo e me encontraria em
séria desvantagem. Ainda assim, minhas chances eram grandes, ainda mais agora.

“Venha, Thorn de Tharna,” eu disse, acenando para ele. “Vamos testar suas habilidades.”

Mas Thorn recuava e acenou para o outro guerreiro para que abaixasse sua lança. Ele
removeu seu elmo e sentou sobre seus calcanhares no gramado, o guerreiro atrás dele.

Thorn, Capitão de Tharna, olhou para mim e eu para ele.

Ele tinha um novo respeito por mim agora, o que significava que ele seria mais perigoso.
Ele tinha visto a forma rápida com que engajei seus espadachins e ele estava
provavelmente considerando se poderia ou não superar meu talento. Eu senti que ele não
cruzaria espadas comigo a não ser que estivesse convencido que poderia me vencer, e ele
não estava totalmente convencido disso, ao menos, ainda não.

47
Foragidos de Gor
“Vamos conversar,” disse Thorn de Tharna.

Eu sentei-me sobre meus calcanhares, assim como ele tinha feito.

“Vamos conversar,” eu concordei.

Pusemos nossas espadas em suas bainhas.

Thorn era um homem largo, de ossos grandes, poderoso, tendendo à corpulência. Sua
face era pesada e amarelada, mas era mosqueada com manchas púrpuras onde pequenas
veias tinham se rompido debaixo da pele. Ele não usava barba, salvo pelo traço de um
tufo de cabelo que marcava cada lado de seu queixo, quase como um veio de sujeira. Seus
cabelos eram longos e amarrados em um nó atrás de sua cabeça à maneira Mongol. Seus
olhos, assim como os de um urt, um dos pequenos roedores de Gor, se encaixavam
obliquamente em seu crânio. Eles não eram claros, sua coloração era avermelhada e havia
sombras debaixo deles, testemunhando longas noites de indulgência e desperdício. Era
óbvio que Thorn, diferindo do meu velho inimigo Pa-Kur, quem presumivelmente tinha
perecido no cerco de Ar, não era um homem que estava acima dos vícios lascivos, não
era um homem que em sua fanática pureza e sincera devoção sacrificaria a si mesmo ou
sacrificaria povos inteiros até os confins de sua ambição e poder. Thorn nunca se tornaria
um Ubar. Ele seria sempre um escudeiro.

“Entregue-me meu homem,” disse Thorn, apontando para a figura caída na grama, que
ainda se movia.

Eu percebi que Thorn, o que quer que ele fosse ou não fosse, era um bom oficial.

“Pode pegá-lo,” eu disse.

O lanceiro ao lado de Thorn veio até o homem caído e examinou suas feridas. O outro
guerreiro estava nitidamente morto.
“Ele deve viver,” disse o lanceiro.

Thorn concordou com a cabeça. “Amarre suas feridas.”

Thorn se virou para mim novamente.

“Eu ainda quero a mulher,” ele disse.

“Você não a terá,” eu disse.

“Ela é apenas uma mulher,” disse Thorn.

“Então desista dela,” eu disse.

“Um de meus homens está morto,” disse Thorn. “Você pode ter a parte dele no preço de
venda dela.”
48
Foragidos de Gor
“Você é generoso,” eu disse.

“Então você concorda?” ele perguntou.

“Não,” eu disse.

“Eu acho que podemos matar você,” disse Thorn, arrancando um pedaço de mato e
meditativamente mastigando ele, me considerando por um tempo.

“Talvez,” eu admiti.

“Por outro lado,” disse Thorn, “eu não desejo perder outro homem.”

“Então desista da mulher,” eu disse.

Thorn olhou para mim atentamente, confuso, mastigando o pedaço de mato.

“Quem é você?” ele perguntou.

Fiquei em silêncio.

“Você é um foragido,” ele disse. “Isso eu posso ver pela falta de uma insígnia no seu
escudo e túnica.”

Eu não vi razão alguma para contestar sua opinião.

“Foragido,” ele disse, “qual é o seu nome?”

“Tarl,” eu respondi.

“De que cidade?” ele perguntou.

Esta era uma pergunta inevitável.

“Ko-ro-ba,” eu disse.

O efeito foi elétrico. A garota, que tinha ficado de pé atrás de nós, sufocou um grito. Thorn
e seu guerreiro pularam de pé. Minha espada estava fora da bainha novamente.

“Retornado das Cidades de Poeira,” disse o guerreiro, arfante.

“Não,” eu disse, “eu sou um homem vivo, assim como você.”

“Melhor se tivesse ido para as Cidades de Poeira,” disse Thorn. “Você é amaldiçoado
pelos Sacerdotes-Reis.”

Eu olhei para a garota.

“Seu nome é o mais odiado de Gor,” ela disse, sua voz lisa, seus olhos não querendo
encontrar os meus.

49
Foragidos de Gor
Nós quatro estávamos de pé, sem falar nada. Pareceu passar um longo tempo. Eu sentia
a grama em meus tornozelos, ainda molhadas pelo orvalho da manhã. Ouvi um pássaro
gritar ao longe.

Thorn deu de ombros.

“Precisarei de tempo,” ele disse, “para sepultar meu homem.”

Silenciosamente, Thorn e o outro guerreiro escavaram uma estreita vala e enterraram seu
companheiro. Então enrolando uma capa sobre duas lanças e amarrando com uma corda,
ele improvisou uma padiola. Nela, Thorn e seu guerreiro colocaram o homem ferido.

Thorn olhou para a garota e para meu assombro, ela se aproximou dele e estendeu seus
pulsos. Ele trancou um bracelete de escrava neles.

“Você não precisa ir com eles,” eu disse à ela.

“Eu não traria prazer à você,” ela disse amargamente.

“Eu irei libertar você,” eu disse.

“Eu não aceito nada das mãos de Tarl de Ko-ro-ba,” ela disse.

Eu levantei minha mão para tocá-la, e ela estremeceu e se afastou.

Thorn gargalhou melancolicamente. “Melhor que tivesse ido para as Cidades de Poeira
do que ser Tarl de Ko-ro-ba,” ele disse.

Eu olhei para a garota, agora após seus longos dias de sofrimento e fuga, ela tinha se
tornado uma prisioneira, seus delgados pulsos circundados a pouco pelos odiados
braceletes de Thorn, braceletes esplendidamente forjados, assim como tantos outros, de
acabamento requintado, brilhante em cor, recheado de joias, mas como todos os
braceletes de escravas, feito em aço inflexível.

Os braceletes contrastavam com o significado de sua esfarrapada veste marrom. Thorn


manuseou sua vestimenta. “Vamos nos livrar disso,” ele disse à ela. “Em breve, quando
você tiver adequadamente preparada, você será vestida na suntuosa seda de prazer, com
sandálias talvez, lenços, véus e joias, vestes para satisfazer o coração de uma donzela.”

“De uma escrava,” ela disse.

Thorn levantou o queixo dela com seu dedo. “Você tem um belo pescoço,” ele disse.

Ela o olhou com raiva, entendendo o sentido que ele falou.

“Em breve aí terá um colar,” ele disse.

“De quem?” ela demandou altivamente.


50
Foragidos de Gor
Thorn olhou para ela cuidadosamente. A caçada, vendo em seus olhos agora, tinha
aparentemente valido a pena. “Minha,” ele disse.

A garota quase desfaleceu.

Meus punhos se cerraram.

“Bem, Tarl de Ko-ro-ba,” disse Thorn, “isso acaba assim. Eu levo esta garota e deixo você
para os Sacerdotes-Reis.”

“Se você a levar para Tharna,” eu disse, “a Tatrix irá libertá-la.”

“Eu não a levarei para Tharna, mas para minha vila,” disse Thorn, “que se localiza fora
da cidade.” Ele gargalhou desagradavelmente. “E lá,” ele disse, “como um bom homem
de Tharna deveria, eu irei venerá-la para o contento do meu coração.”

Senti minha mão se fechar sobre o cabo de minha espada.

“Segure sua mão, Guerreiro,” disse Thorn. Ele se virou para a garota. “A quem você
pertence?” ele perguntou.

“Eu pertenço a Thorn, Capitão de Tharna,” ela disse.

Eu recoloquei a espada na bainha, aniquilado, incapaz. Eu poderia matar Thorn e seu


guerreiro talvez e libertá-la. Mas e então? Libertá-la para as bestas de Gor, para outro
caçador de escravas? Ela nunca aceitaria minha proteção e por suas próprias ações ela
preferia Thorn e a escravidão do que o favor de um homem chamado Tarl de Ko-ro-ba.

Eu olhei para ela. “Você é de Ko-ro-ba?” eu perguntei.

Ela endureceu e olhou para mim com ódio. “Eu era,” ela disse.

“Me desculpe,” eu disse.

Ela me olhava, lágrimas ferventes de ódio em seus olhos. “Por que você ousou continuar
vivo após sua cidade morrer?” ela perguntou.

“Para me vingar,” eu respondi.

Ela olhou dentro de meus olhos por um longo tempo. E então, enquanto Thorn e o
guerreiro suspendiam a liteira com seu companheiro ferido e partiam, ela disse para mim,
“Adeus, Tarl de Ko-ro-ba.”

“Eu desejo você bem, Vera das Torres da Manhã,” eu disse.

Ela se virou rapidamente, seguindo seu mestre e eu fiquei lá de pé, sozinho sobre o
campo.

51
Foragidos de Gor
VIII

A Cidade de Tharna

As ruas de Tharna eram tumultuadas, ainda assim estranhamente silenciosas. O portão


tinha sido aberto e embora eu tenha sido cuidadosamente revistado pelos guardas, altos
lanceiros em elmos azuis, nenhuma objeção foi feita à minha entrada. Deveria ser como
eu tinha ouvido falar, que as ruas de Tharna eram abertas para todos os homens que
vinham em paz, seja qual for sua cidade.

Curiosamente, eu examinei a multidão, todos pareciam concentrados em seus afazeres,


ainda assim murmuravam de forma estranha, deprimente, muito diferente das normais
e barulhentas multidões de uma cidade Goreana. A maioria dos cidadãos homens
vestiam túnicas cinzas, talvez fosse um indicativo de sua superioridade ao prazer, sua
determinação para ser sério e responsável, dignos herdeiros daquela cidade industrial e
sóbria.

Em geral eles me pareceram muito pálidos e deprimidos, mas eu estava confidente de


que eles poderiam cumprir o que eles fixavam em suas mentes, que eles poderiam ter
sucesso em tarefas nas quais boa parte dos homens Goreanos, com sua impaciência e
coração leve, simplesmente abandonariam por ser desagradável ou não valer o esforço,
pois boa parte dos homens Goreanos, isso deve ser admitido, tendem a considerar os
prazeres da vida como algo bem mais valoroso do que seus deveres.

Sobre os ombros de suas túnicas cinzas apenas uma pequenina faixa colorida indicava
sua casta. Normalmente as cores das castas de Gor estavam em abundante evidência,
alegrando as ruas e pontes da cidade, um glorioso espetáculo no claro e limpo ar de Gor.

Eu me perguntava se os homens desta cidade eram tão orgulhosos de suas castas como
eram, em sua totalidade, os outros Goreanos, até mesmo aqueles das assim chamadas
castas baixas. Mesmo homens de casta baixa tais como a dos Treinadores de Tarns eram
intoleravelmente orgulhosos de seus deveres, pois quem mais poderia se levantar e
treinar aquelas monstruosas aves de rapina? Eu supunha que Zosk o Lenhador se
orgulhava de saber que ele com seu grande machado de cabeça larga poderia derrubar
uma árvore com um único golpe, e isso talvez nem mesmo um Ubar poderia fazer. Até
mesmo a Casta dos Camponeses se consideravam como o “Boi onde a Pedra Casa

52
Foragidos de Gor
descansa” e assim raramente eram encorajados a deixar seus estreitos pedaços de terra,
ao qual eles e seus pais antes deles, tomaram posse e tornaram frutíferas.

Eu dei falta na multidão da presença das escravas, comuns em outras cidades,


usualmente adoráveis garotas vestidas somente no curto uniforme de escravas de Gor
com suas listras diagonais, sem mangas, curtas vestes que em sua parte inferior se
assemelhavam a saias que terminavam a algumas polegadas acima do joelho, uma
vestimenta que contrastava violentamente com os pesados e incômodos Robes de
Encobrimento, usados pelas mulheres livres. De fato, era sabido que algumas mulheres
livres realmente invejavam suas irmãs de cativeiro em suas roupas curtas, livres, embora
vestissem um colar, podiam ir e vir como desejassem, sentir o vento nas altas pontes,
sentir os braços de um mestre que celebrava sua beleza e a clamava como dele. Eu me
lembrei que em Tharna, que era governada por uma Tatrix, deveriam existir poucas, se
alguma, mulheres escravizadas. Se tinha ou não escravos homens eu não poderia saber
direito, pois o colar poderia ser escondido pelas vestes cinzentas. Não existe uma veste
distintiva para um escravo em Gor, desde que, como é dito, não é bom que eles saibam
quão numerosos eles são.

O propósito, incidentalmente, da veste curta das escravas não é simplesmente o de


evidenciar a garota como escrava, mas sim expor seus charmes, para fazer delas, antes de
suas irmãs livres, o alvo favorito de ataque por parte de tarnsmans itinerantes. Embora
exista um certo status na captura de uma mulher livre, o risco na captura de uma escrava
é menor; a busca nunca é tão minuciosa e determinada nesses casos, e nenhum tarnsman
irá pôr a própria vida em risco por uma garota que pode, uma vez que os Robes de
Encobrimento forem removidos, se revelar com a face de uma urt e o temperamento de
uma sleen.

Talvez, lá nas ruas silenciosas de Tharna, eu tenha ficado mais assustado com as mulheres
livres. Elas andavam em sua cidade sem assistência, com passos imperiosos, os homens
de Tharna se moviam para deixa-las passar – de tal modo que elas nunca fossem tocadas.
Cada uma dessas mulheres vestia resplandecentes Robes de Encobrimento, ricos em cor
e artesanato, destacando-se entre as roupas monótonas dos homens, mas em vez do véu
comum a essas vestes, as feições de cada uma delas estavam escondidas atrás de uma
máscara de prata. As máscaras eram todas idênticas em seu esboço, cada uma formada
na aparência de uma bela, mas fria face. Algumas dessas máscaras direcionavam seu
olhar sobre mim enquanto eu passava, minha túnica de guerreiro escarlate sendo
capturada por seus olhos. Eu me sentia desconfortável em ser o objeto contemplado por
elas, por ser confrontado por aquelas impassíveis cintilantes máscaras de prata.

Vagando pela cidade eu me encontrei no mercado de Tharna. Embora fosse


aparentemente um dia de mercado, a julgar pelas numerosas tendas de vegetais, os

53
Foragidos de Gor
cavaletes com carne sob toldos, os baldes de peixes salgados, os tecidos e bugigangas
espalhados pelos carpetes perante os mercadores sentados de pernas cruzadas, não havia
nenhum som de clamor que costumeiramente se ouve em um mercado Goreano. Eu
sentia falta dos estridentes, intermináveis chamados dos vendedores, cada um diferente;
as brincadeiras afáveis de amigos no mercado a trocar fofocas e convites para jantar; os
gritos dos corpulentos ceramistas costurando seus caminhos dentro do tumulto; os gritos
das crianças que escaparam de seus tutores e brincavam de pega-pega por entre os
estandes; os risos das garotas veladas provocando e sendo provocadas por jovens
homens, garotas que supostamente estavam a entregar recados para suas famílias, mas
de alguma forma encontravam tempo para provocar os jovens pretendentes da cidade,
mesmo que por apenas um flash de seus olhos escuros e um ajuste demasiadamente
casual de seus véus.

Embora em Gor, por costume se espera da donzela livre que veja seu futuro companheiro
apenas depois que seus pais o tiverem selecionado, é de conhecimento comum que ele
seja muitas vezes um jovem que ela conheceu no mercado. Ele que pede por sua mão,
especialmente se ela for de casta baixa, raramente é um desconhecido para ela, embora
os pais e os jovens solenemente agem como se este fosse o caso. A mesma donzela a qual
seu pai deve severamente ordenar a comparecer na presença de seu pretendente, a
mesma garota tímida, a quem seus pais notam aprovativamente, que se encontra
delicadamente incapaz de levantar seus olhos em sua presença, é provavelmente a
mesma garota que o esbofeteou com um peixe ontem e lhe lançou uma torrente de
insultos que seus ouvidos até agora se lembravam, e tudo porque aconteceu de ele
acidentalmente estar olhando em sua direção quando um vento imprevisível tinha,
apesar de seu grande esforço, desarrumado temporariamente as dobras de seu véu.

Mas este mercado não era como os outros mercados que eu tinha conhecido em Gor. Este
era simplesmente um lugar monótono onde se podia comprar comida e trocar
mercadorias. Até mesmo as barganhas que se seguiam agora, pois não existem preços
fixados nos mercados Goreanos, pareciam ser melancólicas, austeras, sem o entusiasmo
e disputa dos outros mercados que eu tinha visto, os gloriosos expletivos e superlativos
insultos trocados entre os compradores e vendedores com estilo e prazer incomparáveis.
De fato, em certas ocasiões, em outros mercados, um comprador que tentasse vencer o
regateio poderia atirar cinco vezes mais o número de moedas que tinha concordado em
pagar ao vendedor, o humilhando com sua presunção, “Porque eu quero pagar o que isso
vale.” Então, se o vendedor ficasse suficientemente enfurecido, ele poderia dar de volta
as moedas ao comprador, incluindo boa parte do que ele tinha concordado em pagar,
dizendo, em falso arrependimento, “Eu não desejo enganar você.” Então uma próxima
etapa de insultos começava, e eventualmente, quando ambas as partes estivessem
satisfeitas, alguns compromissos firmados, a transação seria concluída. Comprador e

54
Foragidos de Gor
vendedor, cada qual convencido de que ele tinha conseguido de longe se sair melhor na
barganha.

Neste mercado, por outro lado, um cliente poderia simplesmente se aproximar de um


vendedor e apontar para um artigo, levantando um certo número de dedos. O vendedor
então faria o mesmo mas com um preço maior, algumas vezes, dobrando a articulação de
um dedo para indicar a fração de uma unidade, que poderia ser, presumivelmente, um
disco tarn de cobre. O cliente poderia então aceitar sua oferta ou se preparar para ir
embora. O vendedor então o deixaria partir ou abaixaria o preço, levantando agora
menos dedos do que tinha feito antes. Quando uma das partes desejasse dar sua última
oferta, ele fechava seus punhos. Se a venda se concretizasse, o cliente pegaria um número
de moedas perfuradas, amarradas em um barbante pendurado em seu ombro esquerdo,
as entregando para o vendedor, pegaria seu artigo e partiria. Quando palavras eram
usadas, elas eram sussurradas e curtas.

Assim que deixei o mercado, eu notei dois homens, furtivos, de ombros arredondados
em seus robes cinzentos não descritíveis, que me seguiam. Suas faces estavam escondidas
pelas dobras de suas vestes, a qual tinha sido puxada sobre suas cabeças como se fosse
um capuz. Espiões, eu pensei. Era uma precaução inteligente por parte de Tharna, para
manter os olhos em estranhos, evitando que abusassem de sua hospitalidade. Não tentei
fugir de sua vigilância, pois isso poderia ser interpretado até mesmo como uma confissão
de que eu estava mal-intencionado. Além disso, o fato deles saberem que eu sabia que
eles me seguiam, me dava uma certa vantagem na questão. Era possível, é claro, que eles
fossem meros curiosos. Afinal de contas, quantos guerreiros em uniformes escarlates
apareciam no dia a dia das ruas enfadonhas de Tharna?

Eu subi em uma das torres de Tharna, querendo ver a cidade do alto. E emergi na ponte
mais alta que pude encontrar. Ela era cercada com parapeitos, ada forma que a maioria
das pontes Goreanas, altas ou baixas, não são. Lentamente deixei meus olhos vaguearem
pela cidade, sobre as pessoas e seus costumes, uns dos mais incomuns em Gor.

Tharna, embora fosse uma cidade de cilindros, não pareceu aos meus olhos, tão bela
quanto muitas outras cidades que eu tinha visto. Talvez devido à forma dos cilindros,
menos altivos que aqueles de outras cidades, e muito mais largos, dando a impressão de
um conjunto de acocorados e acumulados discos, tão diferentes da altiva floresta de
torres e ameias que desafiavam os céus da maioria das cidades Goreanas. Além disso, em
contraste com a maioria das cidades, os cilindros de Tharna pareciam excessivamente
solenes, como se fossem derrotados por seu próprio peso. Era difícil distinguir um do
outro, um agregado de cinzas e marrons, tão diferentes das milhares de cores alegres que
cintilavam na maioria das cidades, onde cada cilindro em altaneiro esplendor
apresentava sua pretensão de ser o mais bravo e belo de todos.

55
Foragidos de Gor
Até mesmo as horizontais planícies em volta de Tharna, marcadas por ocasionais
afloramentos de pedregulhos encharcados, pareciam ser cinzas, muito frios e sombrios,
talvez tristes. Tharna não era uma cidade que elevava o coração de um homem. Ainda
assim eu sabia que esta cidade era, do meu ponto de vista, uma das mais cultas e
civilizadas de Gor. A despeito desta convicção, incompreensivelmente, eu me encontrei
deprimido por Tharna, e me perguntava se ela, a seu modo, não seria de alguma forma,
sutilmente, mais barbárica, mais dura, menos humana do que o seu mais rude homem,
menos nobre. Eu decidi que tentaria conseguir um tarn e procederia o mais rápido
possível para as Montanhas de Sardar, para manter meu compromisso com os
Sacerdotes-Reis.

“Estrangeiro,” disse uma voz.

Eu me virei.

Um dos dois homens não descritíveis que tinham me seguido se aproximou. Sua face
escondida nas dobras de seu robe. Com uma das mãos ele segurava as dobras juntas,
impedindo que o vendo levantasse o tecido e revelasse sua face, e com a outra mão, ele
apoiava no parapeito da ponte, como se estivesse desconfortável, inseguro àquela altura.

Uma leve chuva começou a cair.

“Tal,” eu disse para o homem, levantando meu braço na usual saudação Goreana.

“Tal,” ele respondeu, sem tirar seu braço da ponte. Ele se aproximou de mim, mais perto
do que eu gostaria.

“Você é um estranho nesta cidade,” ele disse.

“Sim,” eu disse.

“Quem é você, Estranho?”

“Eu sou um homem sem cidade,” eu disse, “o qual se chama Tarl.” Eu não queria causar
mais estragos como tinha feito antes, pela mera menção do nome Ko-ro-ba

“Quais são seus negócios em Tharna?” ele perguntou.

“Eu gostaria de obter um tarn,” eu disse, “para uma viagem que tenho em mente.” Eu
tinha respondido a ele muito diretamente. Eu pensava que se ele era um espião,
incumbido de descobrir minhas razões para visitar Tharna. Não tinha problemas em
revelar minhas razões, embora o objetivo de minha jornada eu reservei para mim mesmo.
O fato de eu estar determinado a ir para as Montanhas de Sardar ele não precisava saber.
Que se eu tinha negócios a tratar com os Sacerdotes-Reis, não seria de sua conta.

“Um tarn é caro,” ele disse.


56
Foragidos de Gor
“Eu sei,” eu falei.

“Você tem dinheiro?” ele perguntou.

“Não,” eu disse.

“Como então,” ele perguntou, “você intenciona obter seu tarn?”

“Eu não sou um foragido,” eu disse, “embora minha túnica ou escudo não tenham uma
insígnia.”

“É claro que não,” ele disse rapidamente. “Não há lugar em Tharna para um foragido.
Nós somos um povo trabalhador e honesto.”

Eu podia ver que ele não acreditava em mim, e de algum modo eu não acreditava nele
também. Sem motivo eu começava a não gostar dele. Com ambas as mãos eu alcancei seu
capuz e o puxei fora de sua face. Ele arrebatou o tecido e recolocou o capuz rapidamente.
Eu capturei um breve vislumbre de uma pálida face, com pele parecida com a de um
limão seco e pálidos olhos azuis. Seu companheiro, que estivera furtivamente espreitando
ao redor, avançou um pouco e então parou. O homem de face pálida, puxando as dobras
do capuz sobre sua face, virou sua cabeça para a esquerda e direita para ver se alguém
estava por perto, se alguém o tinha visto.

“Eu gosto de ver com quem estou falando,” eu disse.

“É claro,” disse o homem, insinuantemente, um pouco instável, puxando o capuz ainda


mais sobre sua face.

“Eu quero obter um tarn,” eu disse. “Você pode me ajudar?” Se ele não pudesse, eu estava
decidido a terminar essa entrevista.

“Sim,” disse o homem.

Eu me interessei.

“Eu posso ajudá-lo a obter não apenas um tarn,” disse o homem, “mas mil discos tarn de
ouro e provisões para a mais longa jornada que você desejar fazer.”

“Eu não sou um assassino,” eu disse.

“Ah!” disse o homem.

Desde o cerco de Ar, quando Pa-Kur, Mestre Assassino, tinha violado os limites de sua
casta e decidido, em contradição com as tradições de Gor, liderar uma horda sobre a
cidade, intencionando fazer dele mesmo um Ubar, a Casta dos Assassinos tinha se
tornado odiada, homens caçados, não mais estimados mercenários quais os serviços eram
comprados pelas cidades e frequentemente, pelas facções das cidades. Agora muitos
57
Foragidos de Gor
assassinos vagavam por Gor, temendo vestir a sombria túnica negra de sua casta,
disfarçados como membros de outras castas, frequentemente como guerreiros.

“Eu não sou um assassino,” eu repeti.

“Claro que não,” disse o homem. “A Casta dos Assassinos não mais existe.”

Eu duvidei disso.

“Mas você não está intrigado, Estranho,” perguntou o homem, seus pálidos olhos me
olhando de soslaio por trás das dobras de seu robe cinzento, “com a oferta de um tarn,
ouro e provisões?”

“O que devo fazer para ter isso?” eu perguntei.

“Você não precisa matar ninguém,” disse o homem.

“O que então?” eu disse.

“Você é grande e forte,” ele disse.

“O que devo fazer?” perguntei.

“Você sem dúvida tem experiência em tarefas desse tipo,” sugeriu o homem.

“O que seria isso que você quer que eu faça?” eu demandei.

“Carregar uma mulher para fora daqui,” ele disse.

A leve garoa, quase como uma bruma cinza coincidindo com a miserável solenidade de
Tharna, não tinha cessado, e agora, ensopava minhas vestes. O vento, que até agora eu
nem tinha notado, pareceu frio.

“Que mulher?” eu perguntei.

“Lara,” ele disse.

“E quem é Lara?” perguntei.

“Tatrix de Tharna,” ele disse.

58
Foragidos de Gor
IX
A Loja de Kal-Da

De pé lá na ponte, sob a chuva, de frente para o obsequioso conspirador encapuzado, eu


me senti subitamente triste. Aqui, mesmo que fosse a nobre cidade de Tharna havia
intriga, conflito político, ambição que não toleravam ser confinadas. Fui tomado por um
assassino, ou um foragido, fui avaliado como um provável instrumento para a
manutenção dos esquemas sujos de uma das facções insatisfeitas de Tharna.

“Eu recuso,” eu disse.

O pequeno homem com cara de limão se afastou como se tivesse tomado um tapa. “Eu
represento um personagem de poder nesta cidade,” ele disse.

“Eu não desejo nenhum mal a Lara, Tatrix de Tharna,” eu disse a ele.

“O que ela é para você?” perguntou o homem.

“Nada,” eu disse.

“E ainda assim você recusa?”

“Sim,” eu disse, “eu recuso.”

“Você está com medo,” ele disse.

“Não,” eu disse, “não tenho medo.”

“Você nunca conseguirá seu tarn,” chiou o homem. Ele se virou e ainda se apoiando no
parapeito da ponte correu para a entrada do cilindro, seu companheiro à sua frente. Logo
na entrada ele gritou de volta. “Você nunca deixará os muros de Tharna vivo,” ele disse.

“Que assim seja,” eu disse, “não irei aceitar seu convite.”

A franzina figura em robe cinza, quase tão irreal quando a própria névoa, pareceu pronto
para partir, mas subitamente hesitou. Ele pareceu vacilar por um momento, então ele
brevemente aconselhou-se com seu companheiro. Eles pareceram chegar a um acordo.
Cautelosamente, seu companheiro ficou na retaguarda enquanto ele, saiu para a ponte
novamente.

“Eu falei precipitadamente,” ele disse. “Nenhum mal lhe acontecerá em Tharna. Nós
somos um povo honesto e trabalhador.”
59
Foragidos de Gor
“Estou contente de ouvir isso,” eu disse.

Então para minha surpresa ele pressionou um pequeno e pesado saco de couro cheio de
moedas contra minha mão. Ele sorriu para mim, um torto sorriso visível através das
obscuras dobras de seu robe cinzento. “Bem-vindo a Tharna!” ele disse, e escapou através
da ponte para dentro do cilindro.

“Volte aqui!” Eu gritei, apontando o saco de moeda em sua direção. “Volte aqui! ”

Mas ele tinha partido.

****

Pelo menos essa noite, nessa noite chuvosa, eu não dormiria ao relento. Graças ao
estranho presente do conspirador encapuzado, eu tive meios de pagar por um
alojamento. Deixei a ponte, e descendo pela escadaria em espiral do cilindro, em breve
me encontrei nas ruas novamente.

Pousadas, por assim dizer, não são abundantes em Gor, sendo a hostilidade das cidades
do jeito que era, mas usualmente uma ao menos poderia ser encontrada em cada cidade.
Lá, afinal, deve-se fazer provisões para entreter os mercadores, delegações de outras
cidades, visitantes autorizados de um tipo ou de outro, e para ser franco o estalajadeiro
não é sempre escrupuloso sobre as credenciais de seus convidados, perguntando pouca
coisa se ele tiver seu punhado de discos tarn de cobre. Em Tharna, contudo, famosa por
sua hospitalidade, eu estava confiante que as pousadas deveriam ser comuns. E me
surpreendi quando percebi que não conseguia localizar nenhuma.

Eu decidi, caso o pior viesse a piorar, que eu poderia sempre ir para uma simples Taverna
de Paga onde, se aquelas de Tharna fossem como aquelas de Ko-ro-ba e Ar, alguém
poderia, enrolado no tapete atrás das mesas baixas, discretamente passar a noite pelo
preço de um cântaro de Paga, uma forte bebida fermentada fabricada a partir daqueles
grãos amarelos que faziam parte do cultivo básico de Gor, Sa-Tarna ou Vida-Filha. A
expressão está relacionada com Sa-Tassna, que significa carne, ou comida em termos
gerais, ao qual se refere por Vida-Mãe. Paga é um termo distorcido de Pagar-Sa-Tarna, o
qual significa Prazer da Vida-Filha. É normal encontrar muitas outras coisas além de Paga
nas Tavernas de Paga, mas na cinzenta Tharna, os címbalos, tambores e flautas dos
músicos, o tilintar das pulseiras nos tornozelos das dançarinas, eram sons não muito
familiares.

Eu parei uma das anônimas figuras em robes cinzentos, que se apressava através das
sombras úmidas e frias.

“Homem de Tharna,” eu perguntei, “onde posso encontrar uma pousada?”

60
Foragidos de Gor
“Não existem pousadas em Tharna,” disse o homem, me olhando de perto. “Você é um
forasteiro,” ele disse.

“Um viajante cansado que procura por hospedagem,” eu disse.

“Fuja, Forasteiro,” ele disse.

“Eu sou bem vindo em Tharna,” eu disse.

“Saia daqui enquanto ainda há tempo,” ele disse, olhando ao redor para conferir se
alguém o escutava.

“Não tem nenhuma Taverna de Paga nas proximidades,” eu perguntei, “onde eu possa
descansar?”

“Não há Tavernas de Paga em Tharna,” disse o homem, tive a impressão de que ele se
divertiu.

“Onde posso passar a noite?” eu perguntei.

“Você pode passar a noite por entre os muros, ao relento,” ele disse, “ou você pode ir
para o Palácio da Tatrix.”

“Me parece que o Palácio da Tatrix seria mais confortável,” eu disse.

O homem soltou uma gargalhada amarga. “A quantas horas, Guerreiro,” ele me


perguntou, “você está dentro dos muros de Tharna?”

“Na sexta hora eu entrei em Tharna,” eu disse.

“Então já é tarde demais,” disse o homem, com um ar de tristeza, “pois você já está dentro
dos muros por mais de dez horas.”

“O que você quer dizer?” eu perguntei.

“Bem-vindo a Tharna,” disse o homem, e correu para dentro das sombras.

Eu fiquei perturbado com essa conversa e sem realmente entender, comecei a andar na
direção dos muros. Eu estava de pé perante o grande portão de Tharna. As duas vigas
gigantes que o seguravam de pé, vigas que poderiam somente ser removidas por um
grupo de grandes tharlarions, um tipo de lagarto de Gor, ou então por cem escravos. Os
portões, fixados por suas barras de aço, pregados por placas de latão fosco sem brilho na
névoa, com sua madeira preta a pairar sobre mim, foram fechados.

“Bem-vindo a Tharna,” disse um guarda, se inclinando com sua lança às sombras do


portão.

“Obrigado, Guerreiro,” eu disse, e me virei de volta pra dentro da cidade.


61
Foragidos de Gor
Atrás de mim pude ouvi-lo gargalhando, a mesma gargalhada amarga que eu tinha
ouvido antes do cidadão.

Vagando através das ruas, eu cheguei finalmente a um atarracado portal na parede de


um cilindro. De cada lado da porta, sob um pequeno nicho protegido da garoa, crepitava
a chama amarelada de uma pequena lamparina de óleo de tharlarion. Por sua luz
vacilante eu pude ler a desbotada escrita na porta: VENDE-SE KAL-DA AQUI.

Kal-da é uma bebida quente, quase escaldante, feita de vinho Ka-la-na diluído, misturado
com sucos cítricos e temperos picantes. Eu não ligava muito para essa mistura que
queimava a boca, mas ela era popular entre alguns das castas baixas, particularmente
aqueles que realizavam estrênuos trabalhos manuais. Eu penso que sua popularidade se
devia mais à sua capacidade de aquecer um homem e alfinetar suas costelas, e ao seu
baixo preço (um vinho Ka-la-na de baixa categoria era usado em sua preparação), do que
uma excelência gustativa qualquer. Mas eu pensava que para esta noite, mais do que
todas as outras, essa noite fria, depressivamente molhada, uma taça de Kal-da cairia
realmente bem. Além disso, onde havia Kal-da deveria haver também pão e carne. Me
lembrei do amarelo pão Goreano, cozido em formato de redondos e achatados pães,
frescos e quentes; minha boca encheu d’água pensando em um bife de tabuk ou, talvez,
se eu tivesse sorte, uma fatia de tarsk assado, o formidável javali selvagem de seis presas
das florestas temperadas de Gor. Eu sorri para mim mesmo, toquei o saco de moedas em
minha túnica, me inclinei e empurrei a porta aberta.

Eu desci três degraus, e me encontrei em uma quente e mal iluminada sala de teto baixo,
desordenada com suas mesas baixas tão comuns em Gor, em torno das quais
amontoavam-se grupos de cinco ou seis dos homens vestidos com os robes cinzas de
Tharna. Os murmúrios da conversação cessaram quando eu entrei. Os homens me
encaravam. Parecia não ter guerreiros naquela sala. Nenhum dos homens parecia estar
armado.

Eu devo ter parecido estranho para eles, um guerreiro em veste escarlate, carregando
armas, entrando de repente, um homem de outra cidade inesperadamente no meio deles.

“Quais são seus negócios aqui?” perguntou o proprietário do lugar, um pequeno e magro
homem de cabeça raspada, vestindo uma curta e sem manga túnica cinza, e um liso
avental preto. Ele não se aproximou, mas permaneceu atrás do balcão de madeira,
lentamente, deliberadamente limpando as manchas de Kal-da derramada na superfície
suja do balcão.

“Estou passando por Tharna,” eu disse. “E gostaria de adquirir um tarn para continuar
minha jornada. Esta noite eu quero comida e hospedagem.”
“Este não é um lugar,” disse o homem, “para alguém da Casta Alta.”
62
Foragidos de Gor
Eu olhei em volta, para os homens na sala, para as suas desanimadas e abatidas faces.
Sob aquela luz era difícil determinar suas castas, pois todos eles vestiam os robes cinzas
de Tharna e somente uma faixa colorida no ombro indicava sua posição na teia social. O
que mais me chocou a respeito deles não tinha nada a ver com a casta, mas sim com sua
falta de espírito. Eu não sabia se eram fracos, ou se eles meramente pensavam pouco de
si mesmos. Eles pareciam não ter energia, sem orgulho, pareciam rasos, secos, homens
esmagados, homens sem respeito próprio.

“Você é de casta alta, da Casta dos Guerreiros,” disse o proprietário. “Não é adequado
que você permaneça aqui.”

Eu não me importava muito com a perspectiva de entrar novamente dentro da fria noite
chuvosa, de vagar uma vez mais através das ruas, em miséria, com frio até os ossos, a
procura de um lugar para comer e dormir. Retirei uma moeda do saco de couro e a joguei
para o proprietário. Ele agarrou o objeto no ar com destreza como um incrédulo
ganancioso. Ele examinou a moeda. Era um disco tarn de prata. Ele mordeu o metal, os
músculos de sua mandíbula protuberantes sob a luz de lamparina. Um traço de prazer e
avareza apareceu em seus olhos. Eu sabia que ele não me devolveria a moeda.

“De que casta é isto?” eu demandei.

O proprietário sorriu. “Dinheiro não tem casta,” ele disse.

“Traga-me comida e bebida,” eu falei.

Fui para uma obscura e solitária mesa perto da parte de trás da sala, onde eu poderia ver
a porta. Repousei meu escudo e lança contra a parede, coloquei o elmo ao lado da mesa,
retirei o cinto que segurava a espada, colocando a arma sobre a mesa perante mim, e me
preparei para esperar.

Eu mal tinha me ajeitado atrás da mesa quando o proprietário veio colocando uma grande
e gorda tigela de Kal-da fumegante perante mim. Aquilo quase queimou minhas mãos
quando tentei levantar a tigela. Tomei um longo e quente gole da bebida fermentada, que
em outra ocasião, eu poderia não gostar, mas esta noite ela cantou através de meu corpo
como o borbulhante fogo que era, um gosto escaldante, brutal e irritante que provei ser
tão ruim e ainda assim me encantou tanto que eu tive vontade de rir.

E eu gargalhei.

Os homens de Tharna que estavam aglomerados naquele lugar me olharam como se


pensassem que eu fosse louco. Descrença, falta de compreensão, estava escrito na face
deles. Este homem tinha gargalhado. Eu me perguntava se homens gargalhavam em
Tharna.

63
Foragidos de Gor
Era um lugar melancólico, mas a Kal-da tinha já feito aquilo parecer de algum modo mais
promissor.

“Falem, brinquem!” Eu disse para os homens de Tharna, que não tinham dito uma
palavra depois que entrei. Eu os encarava. Tomei mais um longo gole de Kal-da e sacudi
minha cabeça para espantar o turbilhão de fogo de meus olhos e cérebro. Retirei minha
lança da parede e a coloquei sobre a mesa.

“Se não podem falar,” eu disse, “se não podem sorrir, então cantem!”

Eles estavam convencidos de que estavam na presença de um débil mental. Aquilo se


devia, eu suponho, à Kal-da, mas eu gosto de pensar, também, que era apenas
impaciência para com os homens de Tharna, a expressão destemperada da minha
exasperação com este lugar cinza, sombrio, taciturno e seus solenes habitantes apáticos.
Os homens de Tharna se recusaram a quebrar seu silêncio.

“Não falamos a mesma Linguagem?” eu perguntei, referindo-me à bela língua mãe falada
normalmente na maioria das cidades Goreanas. “Esta não é a Linguagem de vocês?” eu
demandei.

“É sim,” balbuciou um dos homens.

“Então porque você não fala ela?” eu desafiei.

O homem ficou em silêncio.

O proprietário apareceu com pão quente, mel, sal e, para meu deleite, um grande e quente
pedaço de tarsk assado. Eu abarrotei minha boca de comida e a lavei com outro trovejante
gole de Kal-da.

“Proprietário!” eu gritei, batendo na mesa com minha lança.

“Sim, Guerreiro,” ele gritou de volta.

“Onde estão as Escravas de Prazer?” eu demandei.

O proprietário pareceu atordoado.

“Eu gostaria de ver uma mulher dançar,” eu disse.

Os homens de Tharna pareceram horrorizados. Um deles sussurrou, “Não há Escravas


de Prazer em Tharna.”

“Ai de mim!” eu gritei, “nem um único bracelete em toda Tharna!”

Dois ou três dos homens gargalharam. Ao menos eu os tinha tocado de alguma forma.

64
Foragidos de Gor
“Essas criaturas que pairam pelas ruas atrás de máscaras de prata,” eu perguntei, “elas
são mulheres de verdade?”

“Sim, de verdade,” disse um dos homens, contendo uma gargalhada.

“Eu duvido,” eu gritei. “Devo eu ir buscar uma, para ver se ela irá dançar para nós?”

Os homens gargalharam.

Eu fingi que ia levantar, e o proprietário, com horror, me empurrou de volta, e correu


para buscar mais Kal-da. Sua estratégia era empurrar-me tanta Kal-da goela abaixo que
eu ficaria incapaz de fazer qualquer coisa a não ser rolar para baixo da mesa e dormir.
Alguns dos homens amontoavam-se em volta da minha mesa agora.

“De onde você é?” perguntou um, avidamente.

“Eu vivi toda minha vida em Tharna,” eu disse a eles.

Houve um grande estrondo de gargalhadas.

Em pouco tempo, marcando o tempo ao bater na mesa com o cabo de minha lança, eu
liderava uma rodada estridente de músicas, em sua maioria músicas rústicas de bêbados,
músicas de guerreiros, músicas de acampamento e marcha, mas eu também os ensinei
canções que tinha aprendido na caravana de Mintar, o Mercador, tanto tempo atrás,
quando me apaixonei por Talena, canções de amor, de solidão, das belezas de uma
cidade, e dos campos de Gor.

A Kal-da correu livre aquela noite e três vezes o óleo nas penduradas lamparinas de
tharlarion precisaram ser renovados pelo suado e alegre proprietário da loja de Kal-da.
Homens nas ruas, estupefatos com os sons que vinham de dentro, empurravam a porta
achatada e em breve se juntavam a nós. Alguns guerreiros entraram, também, e ao invés
de tentar restaurar a ordem, eles incrivelmente retiraram seus elmos, os encheram com
Kal-da e sentaram de pernas cruzadas juntamente a nós, para cantar e beber alegremente.

As luzes nas lâmpadas tharlarion tinham finalmente, piscado e se apagado, e a abstrata


luz do amanhecer finalmente começava a iluminar a sala. Muitos dos homens já tinham
partido, muitos estavam caídos sobre as mesas, ou se deitavam ao longo das laterais da
sala. Até mesmo o proprietário dormiu, sua cabeça sobre seus braços cruzados a um
canto, atrás de onde ficavam os grandes vasos de fermentar Kal-da, agora frios e vazios.
Eu esfreguei o sono de meus olhos. Tinha uma mão em meu ombro.

“Acorde,” demandou uma voz.

“É ele,” disse outra voz, que me pareceu familiar.

Eu lutei para ficar de pé, e confrontei o pequeno conspirador com cara de limão.
65
Foragidos de Gor
“Estivemos procurando por você,” disse outra voz, a qual agora eu via que era de um
corpulento soldado da guarda de Tharna. Atrás dele em seus elmos azuis estavam mais
três de pé.

“Ele é o ladrão,” disse o homem com cara de limão, apontando para mim. Sua mão se
virou apontando agora para o saco de moedas aberto, as moedas meio esparramadas
sobre as poças secas de Kal-da.

“Estas são minhas moedas,” disse o conspirador. “Meu nome está costurado dentro do
couro do saco.” Ele empurrou o saco debaixo do nariz dos guardas.

“Ost,” leram os guardas. Esse era também o nome de uma espécie de réptil pequeno e
alaranjado, um dos mais venenosos de Gor.

“Eu não sou um ladrão,” eu disse. “Ele me deu as moedas.”

“Ele está mentindo,” disse Ost.

“Não estou,” eu disse.

“Você está preso,” disse o guarda.

“Em nome de quem?” eu demandei.

“Em nome de Lara,” disse o homem, “Tatrix de Tharna.”

66
Foragidos de Gor
X

O Palácio da Tatrix

Resistir seria inútil.

Minhas armas tinham sido confiscadas enquanto eu dormia, tolo e confiante na


hospitalidade de Tharna. Eu enfrentaria os guardas desarmado. No entanto o oficial deve
ter lido o desafio em meus olhos porque ele sinalizou para seus homens, e três lanças
apontaram ameaçadoramente para meu peito.

“Não roubei nada,” eu disse.

“Você deve pleitear seu caso perante a Tatrix,” disse o guarda.

“Algemem ele,” insistiu Ost.

“Você é um guerreiro?” perguntou o guarda.

“Eu sou,” eu disse.

“Tenho sua palavra que você me acompanhará passivamente até o palácio da Tatrix?”

“Sim,” eu disse.

O guarda falou para seus homens. “Algemas não serão necessárias.”

“Eu sou inocente,” eu disse para o guarda.

Ele me olhou, seus olhos cinzas eram sinceros na abertura em Y do seu sombreado elmo
azul de Tharna. “Isso é a Tatrix quem decidirá,” ele disse.

“Você deve prendê-lo!” bufou Ost.

“Quieto, verme,” disse o guarda, e o conspirador se encolheu em um sofrido silêncio.

Eu segui o guarda, ainda que cercado por seus homens, até o palácio da Tatrix. Ost vinha
correndo atrás de nós, bufando e ofegando, suas curtas pernas arqueadas lutando para
manter o ritmo junto aos passos dos soldados.

67
Foragidos de Gor
Eu senti que mesmo que escolhesse renegar minha promessa, a qual como um guerreiro
de Gor eu não poderia negar, minhas chances de escapar teriam de fato sido pequenas.
Seria mais provável que três lanças me impedissem de alcançar a liberdade logo nos meus
primeiros passos. Eu respeitei os tranquilos e eficientes guardas de Tharna, e eu já tinha
encontrado seus habilidosos guerreiros em um campo longe da cidade. Eu me
perguntava se Thorn estaria na cidade, e se Vera agora vestia sua seda de prazer em sua
vila.

Eu sabia que se a justiça fosse feita em Tharna eu seria absolvido, mas eu estava ainda
inquieto – pois como eu poderia saber se meu caso seria ouvido e julgado de forma justa?
O fato de eu estar em posse do saco de moedas de Ost certamente parecia ser uma boa
prova da minha culpa, e isso poderia muito bem influenciar a decisão da Tatrix. Como
poderia minha palavra, a palavra de um estranho, pesar contra as palavras de Ost, um
cidadão de Tharna e talvez alguém de importância na cidade?

No entanto, por incrível que pareça, eu estava ansioso para ver o palácio e a Tatrix, para
encontrar cara a cara a incomum mulher que governava, e governava bem, uma cidade
de Gor. Caso eu não tivesse sido preso, eu imagino que poderia, de livre e espontânea
vontade, ter apelado para a Tatrix de Tharna, como um cidadão mesmo tinha dito, para
passar minha noite em seu palácio.

Depois de termos andado talvez por uns vinte minutos das monótonas, pedregosas,
tortuosas ruas de Tharna, seus cidadãos cinzentos abrindo caminho para dar passagem e
encarar inexpressivamente o prisioneiro vestido em escarlate, chegamos a uma ampla
avenida sinuosa, íngreme e pavimentada com paralelepípedos pretos, que ainda
brilhavam devido à chuva da noite. A cada lado da avenida estava um muro de pedra
que ascendia gradualmente, e conforme marchávamos os muros de cada lado se
elevavam e a avenida estreitava.

Finalmente, cem jardas à frente, frio à luz da manhã, eu vi o palácio, atualmente uma
fortaleza arredondada de pedras, negro, pesado, sem adornos e formidável. Na entrada
do palácio, a sombria e molhada avenida se encolhia em uma passagem larga o suficiente
apenas para um único homem, ao mesmo tempo que as paredes subiam a uma altura de
talvez trinta pés.

A entrada em si era nada mais que uma pequena porta de ferro simples, com talvez
dezoito polegadas de largura e cinco pés de altura. Apenas um homem por vez poderia
entrar ou sair do Palácio de Tharna. Era de longe muito diferente dos amplos portais dos
cilindros centrais de muitas das cidades Goreanas, através da qual um par de tharlarions
em arreios de ouro poderiam ser conduzidos com facilidade. Eu me perguntava se dentro
da austera, brutal fortaleza, deste palácio da Tatrix de Tharna, justiça poderia ser feita.

68
Foragidos de Gor
Os soldados da guardas fizeram sinal para a porta, e deram um passo para trás de mim.
Eu estava de frente para a porta, seria o primeiro na estreita passagem.

“Nós não entraremos,” disse o guarda. “Apenas você e Ost.”

Eu virei para olhar pra eles, e três lanças se levantaram em meu peito.

Houve o som de barras deslizando e a porta de ferro se abriu, revelando nada mais do
que escuridão.

“Entre,” comandou o guarda.

Olhei mais uma vez para as lanças, sorri de leve para o guarda, virei-me e abaixando a
cabeça, entrei na pequena porta.

De repente eu gritei alarmado, apalpando o nada, caindo. Ouvi Ost gritar com surpresa
e terror quando ele foi empurrado através da porta atrás de mim.

A cerca de vinte pés abaixo do nível da porta, em absoluta escuridão, com um impacto
brutal, eu bati no fundo, no chão de pedra, coberto com palha molhada. O corpo de Ost
me atingiu quase ao mesmo tempo. Eu lutava para respirar. Em minha visão ofuscada
pude ver que estava cercado por ciscos dourados e púrpuros. Eu estava vagamente
consciente de que tinha sido capturado pela boca de algum animal de grande porte e
estava sendo puxado através de uma abertura parecida com um túnel curvado. Eu tentei
lutar, mas era inútil. Minha respiração tinha sido roubada de mim, o túnel não me dava
espaço para me movimentar. Eu senti o cheiro do pelo molhado do animal, algum tipo
de roedor, sentia os cheiros de sua toca, da palha suja. Eu estava consciente dos
longínquos gritos histéricos de Ost.

Por algum tempo, o animal, andava de costas, com sua presa segura em suas mandíbulas,
se movendo através do túnel. Aquilo me arrastou em uma série de rápidos, violentos
puxões pelo túnel, me fazendo raspar nas paredes de pedra, me arranhando, rasgando
minha túnica.

Finalmente aquilo me arrastou pra dentro de um aposento circular de forma esférica,


iluminado por duas tochas em suportes de ferro. O animal soltou um grito agudo em
descontentamento. Ouvi o estalar de um chicote e o mesmo comando, foi repetido agora
com mais força. Relutante o animal afrouxou seu aperto e andou pra trás, se abaixando,
me observando com seus longos, oblíquos olhos ardentes, que mais pareciam fendas de
ouro derretidos à luz de tochas.

Era um urt gigante, gordo, lustroso e branco; ele mostrava suas três fileiras de dentes
brancos afiados para mim e avançou em fúria; dois chifres como presas curvas saíam de
sua mandíbula; outros dois chifres, similares aos primeiros, modificações de seu tecido
ósseo e que faziam parte do cume superior da cavidade ocular, projetavam-se sobre
69
Foragidos de Gor
aqueles olhos brilhantes que pareciam banquetear-se sobre mim, como se esperasse
permissão de seu detentor para lançar-se sobre seu alimento. Seu corpo gordo tremia com
antecipação.

O chicote estalou novamente, e outro comando foi proferido, e o animal, com sua longa
calda sem pelos, balançando em frustração, se esgueirou dentro de outro túnel. Um
portão de ferro, feito com barras, caiu atrás dele.

Vários pares de mãos fortes me agarraram, e eu captei o vislumbre de um pesado,


curvado objeto prateado. Tentei levantar mas fui pressionado para baixo, minha face
contra a pedra. Um objeto pesado, espesso como uma viga articulada, foi pressionado
por baixo e por cima de meu pescoço. Meus pulsos foram mantidos no lugar e o
dispositivo foi fechado em meu pescoço e pulsos. Com uma sensação de impotência pude
ouvir o estalado de uma pesada fechadura se trancando.

“Ele está jungido,” disse uma voz.

“Levante, Escravo,” disse outra.

Eu tentei levantar, mas o peso era demasiado. Ouvi o silvo de um chicote e cerrei os
dentes quando o couro mordeu minha carne. De novo, e outra vez, fui golpeado de cima
para baixo, os golpes como relâmpagos de couro em chamas. Consegui levantar sobre
meus joelhos, e então, dolorosamente, empurrei o jugo para cima, lutando contra a
instabilidade de meus pés.

“Muito bem, Escravo,” disse a voz.

Em meio às feridas que queimavam eu senti o frio ar do calabouço em minhas costas. O


chicote tinha aberto minha túnica, eu deveria estar sangrando. Virei para olhar para o
homem que tinha falado. Era ele quem segurava o chicote. Notei sombriamente que seu
couro estava manchado com o meu sangue.

“Eu não sou escravo,” eu disse.

O homem estava despido até a cintura, um sujeito musculoso vestindo braçadeiras de


couro, seu cabelo amarrado atrás de sua cabeça por uma faixa de pano acinzentada.

“Em Tharna,” ele disse, “um homem como você não pode ser nada além de um escravo.”

Olhei em volta da sala, que se curvava em uma cúpula com cerca de vinte e cinco pés
acima do chão. Haviam várias saídas, a maioria delas em pequenas aberturas gradeadas.
De algumas delas eu pude ouvir gemidos. De outras eu ouvi o arrastar e o guinchado de
animais, talvez mais dos urts gigantes. A uma parede pude ver uma grande tigela com
carvão a queimar, a partir da qual se projetavam várias alças de ferro. Um certo tipo de
rack foi posicionado perto da tigela de carvão. Era grande o suficiente para acomodar um
70
Foragidos de Gor
ser humano. Em algumas das paredes, correntes foram fixadas, aqui e ali, outras correntes
também pendiam do teto. Nas paredes, como se faz em algumas oficinas, pendiam
instrumentos de vários tipos, que não vou descrever, exceto para dizer que eles foram
engenhosamente concebidos para o tormento de seres humanos.

Era um lugar feio.

“Assim,” disse o homem orgulhosamente, “a paz é mantida em Tharna.”

“Eu exijo,” eu disse, “ser levado até a Tatrix.”

“É claro,” disse o homem. Ele riu desagradavelmente. “Eu mesmo o levarei até a Tatrix.”

Pude ouvir uma corrente se enrolar em um guincho, e vi um dos portões de barras que
levava para fora da câmara, se levantando. O homem acenou com seu chicote. Eu entendi
que deveria ir pela abertura.

“A Tatrix de Tharna está esperando por você,” ele disse.

71
Foragidos de Gor
XI
Lara, Tatrix de Tharna

Passei através da abertura, e dolorosamente comecei a subir a pequena passagem circular,


cambaleando a cada passo sob o peso do jugo de metal pesado. O homem com o chicote,
amaldiçoando, me impelia a aumentar a velocidade. Ele me cutucou violentamente com
o chicote, a estreita passagem não o permitia usar o chicote da forma que desejava.

Minhas pernas e ombros já doíam devido à tensão do jugo.

Emergimos em um salão amplo, mas obscuro. Várias portas poderiam nos levar para fora
deste salão. Com seu chicote, me cutucando com desdém, o homem com braçadeiras de
couro me direcionava através de uma dessas portas. A porta nos levou para um outro
corredor, que por sua vez também tinham várias portas, e assim por diante. Era como ser
conduzido através de um labirinto ou uma rede de esgotos. Os corredores eram
ocasionalmente iluminados por lâmpadas de óleo de tharlarion, encaixadas em
luminárias de ferro montadas nas paredes. O interior do palácio parecia estar deserto, era
de uma cor inocente, com adornos. Cambaleei adiante, sofrendo com as feridas causadas
pelo chicote, quase esmagado pelo peso do jugo. Eu duvidava que eu seria capaz de
encontrar, sem ajuda, meu caminho através deste sinistro labirinto.

Finalmente eu me encontrei em uma sala grande e abobadada, iluminada por tochas


presas nas paredes. Apesar de seu tamanho, ela também era simples, assim como as
outras salas e corredores que eu tinha visto, sombria, opressiva. Apenas um adorno
aliviava a parede de seu aspecto melancólico, a imagem de uma máscara dourada
gigante, esculpida à semelhança de uma mulher bonita. Sob essa máscara, em um elevado
estrado, tinha um monumental trono de ouro.

Nos largos degraus que levavam ao trono, haviam cadeiras curule, nas quais sentavam,
assim pensei, os membros do Alto Conselho de Tharna. Suas brilhantes máscaras de
prata, cada uma delas esculpida na imagem da mesma mulher bonita, me olhavam sem
expressão alguma.

Em volta da sala, aqui e ali, guerreiros de Tharna estavam de pé, austeros em seus elmos
azuis, cada um com uma pequena máscara de prata sobre a têmpora – membros da

72
Foragidos de Gor
guarda do palácio. Um desses guerreiros com elmos estava de pé perto do trono. Algo
nele me parecia familiar.

No trono em si, lá estava sentada uma mulher, orgulhosa, soberba em austera dignidade,
vestida regiamente em um majestoso robe dourado, usando uma máscara não de prata,
mas de puro ouro, esculpida assim como as outras na imagem de uma bela mulher. Os
olhos por trás da brilhante máscara de ouro me olhavam. Ninguém precisava me dizer
que eu estava na presença de Lara, Tatrix de Tharna.

O guerreiro aos pés do trono removeu seu elmo. Era Thorn, Capitão de Tharna, quem eu
tinha encontrado nos campos longe da cidade. Seus olhos apertados, como os de um urt,
caíram sobre mim desdenhosamente.

Ele caminhou para me encarar de perto.

“Ajoelhe,” ele comandou. “Você está de pé perante Lara, Tatrix de Tharna.”

Eu não ia ficar de joelhos.

Thorn chutou meus pés, e sob o peso do jugo, eu caí ao chão, indefeso.

“A chibata,” disse Thorn, estendendo sua mão. O corpulento homem com braçadeiras de
couro colocou o objeto na mão dele. Thorn levantou o instrumento para o deixar cair
sobre minhas costas expostas ao seu severo golpe.

“Não o agrida,” disse uma voz imperiosa, e o braço que segurava o chicote caiu como se
seus músculos tivessem sido cortados. A voz veio da mulher atrás da máscara de ouro, a
própria Lara. Eu fiquei grato.

Quente e suado, cada fibra do meu corpo gritava em agonia, eu consegui subir sobre
meus joelhos. As mãos de Thorn não me permitiram subir mais. Eu estava ajoelhado,
jungido, perante a Tatrix de Tharna.

Os olhos atrás da máscara amarela me consideravam, curiosamente.

“Era assim, Estranho,” ela perguntou, seu tom era frio, “que você esperava levar para
fora da cidade a riqueza de Tharna?”

Eu estava confuso, meu corpo era dilacerado pela dor, minha visão turva pelo suor.

“O jugo é feito da prata," ela disse, “das minas de Tharna.”

Eu me espantei, pois se o jugo era realmente de prata, o metal nos meus ombros poderia
ter resgatado um Ubar.

“Nós de Tharna,” disse a Tatrix, “fazemos pouco das riquezas que usamos para jungir
nossos escravos.”
73
Foragidos de Gor
Meu olhar furioso dizia a ela que eu não me considerava um escravo.

Da cadeira curule ao lado do trono ergueu-se uma outra mulher, vestindo uma intricada
máscara forjada de prata e vestes de um magnífico tecido prateado. Ela ficou altiva ao
lado da Tatrix, a máscara de prata inexpressiva brilhando em minha direção, medonha
sob a luz das tochas que ela refletia. Falando com a Tatrix, mas sem tirar a máscara de
mim, ela disse, “Destrua o animal.” Era uma voz fria, vibrante, clara, decisiva e
autoritária.

“As leis de Tharna não dão a ele o direito de falar, Dorna a Altiva, Segunda em Tharna?”
perguntou a Tatrix, cuja voz também, era imperiosa e fria, ainda assim me agradava mais
do que os tons daquela que vestia a máscara de prata.

“As leis se aplicam aos animais?” perguntou a mulher cujo nome era Dorna a Altiva. Era
quase como se ela desafiasse sua Tatrix, e eu me perguntei se Dorna a Altiva estava
contente em ser a Segunda em Tharna. O sarcasmo em sua voz tinha sido mal escondido.

A Tatrix escolheu não responder à pergunta de Dorna a Altiva.

“Ele ainda tem língua?” perguntou a Tatrix para o homem com as braçadeiras de couro,
que estava de pé atrás de mim.

“Sim, Tatrix,” disse o homem.

Tive a impressão de que a mulher na máscara de prata, que tinha sido chamada de a
Segunda em Tharna, pareceu endurecer apreensivamente com tal revelação. A máscara
de prata se virou na direção do homem com as braçadeiras de couro. A voz dele gaguejou
e eu me perguntei se atrás de mim, seu corpo não tremia agora. “Foi o desejo da Tatrix
que o escravo fosse jungido e trazido para a Câmara da Máscara de Ouro o mais rápido
possível, e ileso.”

Eu sorri comigo mesmo, pensando nos dentes do urt e no chicote, ambos tinham
encontrado minha carne.

“Por que você não se ajoelhou, Estranho?” perguntou a Tatrix de Tharna.

“Eu sou um guerreiro,” eu respondi.

“Você é um escravo!” resmungou Dorna a Altiva de trás de sua máscara inexpressiva.


Então ela se virou para a Tatrix. “Remova sua língua!” ela disse.

“Você agora dá ordens para aquela que é a Primeira em Tharna?” perguntou a Tatrix.

“Não, Amada Tatrix,” disse Dorna a Altiva.

“Escravo,” disse a Tatrix.

74
Foragidos de Gor
Eu não reconheci seu chamado.

“Guerreiro,” ela disse.

Debaixo do jugo eu levantei meus olhos para sua máscara. Em suas mãos, cobertas com
uma luva dourada, ela segurava um pequeno saco de couro negro, cheio até a metade
com moedas. Eu assumi que eram as moedas de Ost e me perguntei onde estaria o
conspirador. “Confesse que você roubou estas moedas de Ost de Tharna,” disse a Tatrix.

“Não roubei nada,” eu disse. “Liberte-me.”

Thorn gargalhou desagradavelmente atrás de mim.

“Eu o aconselho,” disse a Tatrix, “a confessar.”

Percebi que, por alguma razão, ela estava ansiosa para que eu me declarasse culpado do
crime, mas como era inocente, eu recusei.

“Eu não roubei as moedas,” eu disse.

“Então, Estranho,” disse a Tatrix, “Sinto muito por você.”

Eu não pude entender sua observação, e minhas costas pareciam prontas a sucumbir sob
o peso do jugo. Meu pescoço doía por seu peso. O suor escorria pelo meu corpo e minhas
costas ainda ardiam devido as chicotadas.

“Tragam Ost!” ordenou a Tatrix.

Pude notar que Dorna a Altiva se agitava inquieta na cadeira curule. Ela alisava as dobras
de seu robe com as mãos nervosas, enluvadas em prata.

Ouvi choramingos e um tumulto atrás de mim, e para meu espanto, vi a pequena máscara
de prata brilhando na têmpora esquerda de um elmo, era um dos guardas do palácio, que
atirou Ost, o conspirador, jungido e choramingando, aos pés do trono. O jugo de Ost era
bem mais leve que o meu, mas ele era um homem menor, o peso poderia ser demais para
ele.

“De joelhos para a Tatrix,” comandou Thorn, quem ainda segurava o chicote.

Ost, tremendo de medo, tentou levantar, mas não podia erguer o jugo.

A mão de Thorn que segurava o chicote levantou.

Eu esperava que a Tatrix fosse intervir a seu favor, assim como tinha feito comigo, mas,
ao invés disso, ela não disse nada. Ela parecia estar me observando. Eu me perguntava
quais pensamentos brilhavam por trás daquela plácida máscara de ouro.

“Não bata nele,” eu disse.


75
Foragidos de Gor
Sem tirar seus olhos de mim, Lara falou para Thorn. “Prepare-se para golpear,” ela disse.

A amarelada face com marcas púrpuras rachou em um sorriso e o punho de Thorn se


apertou no chicote. Ele não tirou seus olhos da Tatrix, esperando para golpear no
primeiro instante que ela permitisse.

“Levante,” disse a Tatrix para Ost, “ou você irá morrer deitado como a serpente que é.”

“Não posso,” chorou Ost. “Não posso.”

A Tatrix friamente levantou sua mão enluvada. Quando abaixasse então assim também
desceria a chibata.

“Não,” eu disse.

Lentamente, todos os músculos do meu corpo se esforçaram para manter o equilíbrio, as


cordas em minhas pernas e costas como cabos torturantes, eu estendi minha mão para
Ost e, lutando em agonia para manter meu equilíbrio, acrescentei o peso de seu jugo ao
meu quando o levantei para que ficasse de joelhos.

Houve suspiros vindos das mulheres nas máscaras de prata na sala. Um ou dois
guerreiros, sem se importar com as regras de Tharna, reconheceram meu ato batendo
seus escudos nas cabeças de bronze de suas lanças.

Thorn, irritado, arremessou o chicote de volta para as mãos do homem com as braçadeiras
de couro.

“Você é forte,” disse a Tatrix de Tharna.

“Força é um atributo dos animais,” disse Dorna a Altiva.

“Verdade,” disse a Tatrix.

“Ainda assim ele é um belo animal, não é?” perguntou uma das mulheres em máscaras
de prata.

“Que ele seja usado para os Entretenimentos de Tharna,” urgiu outra.

Lara manteve sua mão levantada ordenando silêncio.

“Como é isso,” eu perguntei, “de você poupar um guerreiro da chibata e ao mesmo tempo
a usar em um infeliz tão miserável como Ost?”

“Eu esperava que você fosse inocente, Estranho,” ela disse. “Que Ost é culpado eu já
sabia.”

“Eu sou inocente,” eu falei.

“No entanto,” ela disse, “você admite que não roubou as moedas.”
76
Foragidos de Gor
Meu cérebro titubeou. “Isso é verdade,” eu disse, “eu não roubei as moedas.”

“Então você é culpado,” disse a voz de Lara, que me pareceu triste agora.

“Culpado de que?” eu perguntei querendo saber.

“De conspiração contra o trono de Tharna,” disse a Tatrix.

Fiquei estupefato.

“Ost,” disse a Tatrix, sua voz congelada, “você é culpado de traição contra Tharna. É
sabido que você conspirou contra o trono.”

Um dos guardas, o que tinha trazido Ost, falou. “É como seus espiões reportaram, Tatrix.
Em seus aposentos foram encontrados sediciosos documentos, cartas de instrução
relativas ao embargo do trono, bolsas de ouro para serem usadas na obtenção de
cúmplices.”

“Ele também confessou tais coisas?” perguntou Lara.

Ost choramingava desamparadamente por misericórdia, seu fino pescoço contorcia sob
o jugo.

O guarda gargalhou. “Bastou apenas um olhar do urt branco e ele admitiu tudo.”

“Quem, Serpente,” perguntou a Tatrix, “forneceu o ouro? De quem veio as cartas com
instruções?”

“Eu não sei, Amada Tatrix,” ganiu Ost. “As cartas e o ouro foram entregues por um
guerreiro com elmo.”

“Joguem-no para o urt!” escarneceu Dorna a Altiva.

Ost se contorcia, gritando por misericórdia. Thorn o chutou para silenciá-lo.

“O que mais você sabe sobre esta trama contra o trono?” perguntou Lara para o lastimoso
Ost.

“Nada, Amada Lara,” lamuriou ele.

“Muito bem,” disse Lara, e virou a máscara brilhante para o guarda que tinha atirado o
jungido Ost aos seus pés, “leve-o para a Câmara das Urts.”

“Não, não, não!” lamuriava Ost. “Eu sei mais, mais!”

As mulheres nas máscaras de prata se inclinaram à frente sobre suas cadeiras. Apenas a
própria Tatrix e Dorna a Altiva sentavam-se eretas. Embora a sala estivesse fria eu notei
que Thorn, Capitão de Tharna, estava suando. Suas mãos se fechavam e abriam.

77
Foragidos de Gor
“O que mais você sabe?” demandou a Tatrix.

Ost olhou em volta de si mesmo da forma que pode, seus olhos arregalados com terror.

“Você conhece o guerreiro que trouxe as cartas e o ouro?” ela demandou.

“Ele eu não conheço,” disse Ost.

“Permita-me,” implorou Thorn, “sangrar o jugo.” Ele retirou sua espada. “Permita-me
acabar com este miserável aqui mesmo!”

“Não,” disse Lara. “O que mais você sabe, Serpente?” ela perguntou para o miserável
conspirador.

“Eu sei,” disse Ost, “que o líder da conspiração é uma pessoa influente em Tharna –
alguém que veste a máscara de prata, uma mulher.”

“Impossível!” gritou Lara, se levantando. “Ninguém que use a máscara de prata poderia
ser desleal para com Tharna!”

“No entanto, é verdade,” lastimou Ost.

“Quem é a traidora?” demandou Lara.

“Eu não sei o nome dela,” disse Ost.

Thorn gargalhou.

“Mas,” disse Ost, esperançoso, “eu uma vez falei com ela e eu posso reconhecer sua voz
se me permitirem viver.”

Thorn gargalhou mais uma vez. “Isso é um truque para salvar sua vida.”

“O que você acha, Dorna a Altiva?” perguntou Lara para aquela que era a Segunda em
Tharna.

Mas invés de responder, Dorna a Altiva pareceu estranhamente quieta. Ela estendeu sua
mão em luva de prata, palma virada para ela mesma e a desceu brutalmente como se
fosse uma lâmina.

“Piedade, Grande Dorna!” gritou Ost.

Dorna repetiu o gesto, lentamente, cruelmente.

Mas as mãos de Lara estavam estendidas, palmas para cima, e ela as levantou levemente;
este era um gracioso gesto que predizia misericórdia.

“Obrigado, Amada Tatrix,” lamentou Ost, seus olhos se enchendo de lágrimas,


“Obrigado!”
78
Foragidos de Gor
“Me diga, Serpente,” disse Lara, “este guerreiro roubou as moedas de você?”

“Não, não,” lastimou Ost.

“Você as deu para ele?” ela perguntou.

“Eu dei,” ele disse. “Eu dei.”

“E ele as aceitou?” ela perguntou.

“Sim,” disse Ost.

“Você pressionou o saco sobre mim e correu,” eu disse. “Eu não tive escolha.”

“Ele aceitou as moedas,” murmurou Ost, me olhando malevolentemente, aparentemente


determinado a compartilhar qualquer que fosse seu destino comigo.

“Eu não tive escolha,” eu disse calmamente.

Ost lançou um venenoso olhar em minha direção.

“Se eu fosse um conspirador,” eu disse, “se eu tivesse aliança com este homem, porque
ele me acusaria de ladrão de moedas, porque ele iria me querer preso?”

Ost embranqueceu. Sua minúscula mente de roedor corria de pensamento em


pensamento, mas sua boca apenas se movia incontrolavelmente, silenciosa.

Thorn falou. “Ost sabia que seria suspeito de tramar contra o trono.”

Ost pareceu confuso.

“Assim,” disse Thorn, “para não parecer que ele tinha dado dinheiro para este guerreiro,
ou assassino como deve ser o caso, ele fingiu que tinha sido roubado por ele. Deste modo
ele poderia ficar livre de culpa e destruir o homem que sabia de sua cumplicidade.”

“Isso é verdade,” exclamou Ost em reconhecimento, ansioso para assumir seu papel no
palpite de tão poderosa figura como era Thorn.

“Como foi isso de Ost te dar as moedas, Guerreiro?” perguntou a Tatrix.

“Ost as deu para mim,” eu disse, “...como um presente.”

Thorn jogou sua cabeça para trás gargalhando.

“Ost nunca deu nada de graça em toda sua vida,” rosnou Thorn, limpando sua boca,
lutando para ganhar compostura.

Houve até um leve som de divertimento por parte das figuras em máscaras de prata que
sentavam sobre os degraus do trono.

79
Foragidos de Gor
O próprio Ost riu em silêncio.

Mas a máscara da Tatrix brilhou sobre Ost, e seu sorriso morreu dentro de sua garganta.
A Tatrix se levantou do trono, e apontou seu dedo para o maldito conspirador. Sua voz
era fria e ela falou para os guardas que o tinham trazido até a câmara. “Para as minas
com ele,” ela disse.

“Não, Amada Tatrix, não!” gritou Ost. O terror, como de um gato encurralado, parecia
arranhar por trás de seus olhos, e ele começou a se sacudir em seu jugo como um animal
doente. Desdenhosamente os guardas o levantaram de pé e o arrastaram a se debater e
lamentar para fora da sala. Eu calculei que a sentença de ir para as minas seria equivalente
a sentença de morte.

“Você é cruel,” eu disse para a Tatrix.

“Uma Tatrix deve ser cruel,” disse Dorna.

“Isso,” eu disse, “eu deveria ouvir da boca da própria Tatrix.”

Dorna se endureceu sob a rejeição.

Depois de um tempo a Tatrix, que estava quieta em seu trono, falou. Sua voz era baixa.
“Às vezes, Estranho,” ela disse, “é difícil ser a Primeira de Tharna.”

Eu não esperava por esta resposta.

Eu me perguntava que tipo de mulher era a Tatrix de Tharna, o que estaria escondido por
trás daquela máscara de ouro. Por um momento senti pena da criatura dourada cujo trono
eu me ajoelhava agora.

“E você,” disse Lara, sua máscara brilhando sobre mim, “você admite que não roubou as
moedas de Ost, e com esta admissão, você concorda que ele as deu para você.”

“Ele as empurrou em minhas mãos,” eu disse, “e correu.” Eu olhava para a Tatrix. “Eu
vim para Tharna a fim de obter um tarn. Eu não tinha dinheiro. Com as moedas de Ost
eu poderia comprar um e continuar minha jornada. Eu deveria tê-la jogado fora?”

“Estas moedas,” disse Lara, segurando o pequeno saco em sua mão, enluvada em ouro,
“eram para comprar minha morte.”

“Tão poucas moedas?” eu perguntei, cético.

“Obviamente a quantia total viria assim que se completasse a façanha,” ela disse.

“As moedas foram um presente,” eu disse. “Ou foi assim que pensei.”

“Eu não acredito em você,” ela disse.

80
Foragidos de Gor
Fiquei em silêncio.

“Qual era a soma total que Ost lhe ofereceu?” ela perguntou.

“Eu recusei fazer parte de seus esquemas,” eu disse.

“Qual foi a soma total que Ost lhe ofereceu?” repetiu a Tatrix.

“Ele falou,” eu disse, “de um tarn, mil discos tarn de ouro e provisões para uma longa
jornada.”

“Discos tarn de ouro – diferente daqueles de prata – são escassos em Tharna,” disse a
Tatrix. “Alguém está aparentemente disposto a pagar alto por minha morte.”

“Não por sua morte,” eu disse.

“Então o que?” ela perguntou.

“Sua abdução,” eu disse.

A Tatrix endureceu subitamente, seu corpo inteiro tremendo em fúria. Ela se levantou,
aparentemente fora de si, em sua fúria.

“Sangre o jugo,” urgiu Dorna.

Thorn deu um passo à frente, sua lâmina se ergueu.

“Não,” gritou a Tatrix, e para o assombro de todos, ela desceu os amplos degraus de seu
estrado.

Tremendo em fúria ela ficou de pé perante mim, e sobre mim, em seu robe e máscara de
ouro. “Me passe o chicote!” Ela gritou. “Me dê o chicote!” O homem com braçadeiras de
couro se ajoelhou perante ela, levantando o chicote até suas mãos. Ela o estalou
cruelmente no ar, e seus movimentos foram cortantes e mordazes.

“Então,” ela disse para mim, ambas as mãos cerradas no cabo da chibata, “você me teria
perante você mesmo no tapete escarlate, amarrada com suas cordas amarelas, não é?”

Eu não entendi o que ela quis dizer.

“Você poderia me ter em um camisk e em uma coleira, não é?” ela chiou histericamente.

As mulheres nas mascaras de prata se recolheram, tremendo. Houve clamores de raiva e


horror.

“Eu sou uma mulher de Tharna,” ela gritou, “Primeira em Tharna! Primeira!”

81
Foragidos de Gor
Em seguida, fora de si, em fúria, segurando a chibata com as duas mãos, ela me atacou
violentamente. “Este é o beijo da chibata para você!” ela gritou. De novo e de novo ela
me golpeou, ainda assim, depois disso tudo, eu consegui ficar ajoelhado, sem cair.

Meus sentidos vacilaram, meu corpo, torturado pelo peso do jugo de prata, agora envolto
nas chamas do chicote, balançava em incontrolável agonia. Então, quando a Tatrix tinha
se esgotado, com algum esforço eu entendi que era difícil de compreender, eu consegui
ficar de pé, sangrando, vestindo o jugo, minha carne em frangalhos – e olhei para ela.

Ela se virou e fugiu para o estrado. Subiu correndo os degraus e se virou apenas quando
estava de pé perante seu trono. Ela apontou sua mão imperiosamente para mim, aquela
mão vestindo sua luva dourada, agora salpicada com meu sangue, molhada e escura pelo
suor de sua mão.

“Que ele seja usado nos Entretenimentos de Tharna!” ela disse.

82
Foragidos de Gor
XII

Andreas da Casta dos Poetas

Fui encapuzado e conduzido através das ruas, cambaleando sob o peso do jugo. Antes eu
tinha entrado em uma construção e desci uma longa e curvada rampa, através de
passagens úmidas. Quando removeram o capuz, meu jugo já estava acorrentado no muro
de uma masmorra.

O lugar era iluminado por pequenas, sujas lamparinas tharlarion colocadas nas paredes
perto do teto. Eu não fazia ideia quão longe abaixo do solo nós tínhamos descido. O chão
e as paredes eram de pedras negras, extraídas de pedreiras em grandes blocos ou talvez
em pedaços menores. A lamparina secava a umidade da pedra ao seu redor, mas o chão
e a maior parte das paredes eram úmidas e cheiravam a mofo. Um pouco de palha se
espalhava pelo chão. De onde eu estava acorrentado, eu podia alcançar uma cisterna de
água. Uma panela de comida repousava perto de meus pés.

Exausto, meu corpo dolorido pelo peso do jugo e pelas picadas do chicote, eu me deitei
sobre as pedras e dormi. Por quanto tempo eu dormi eu não sei. Quando despertei, cada
um dos meus músculos doía, mas agora, era uma tediosa dor causada pelo frio. Tentei
me mover, mas meus ferimentos me torturavam.

Apesar do jugo, eu lutei e consegui me sentar de pernas cruzadas, sacudi minha cabeça.
Na panela de comida eu vi a metade de um naco de pão grosso. Jungido como estava,
não tinha como pegar o pão e trazer até minha boca. Eu teria de rastejar até o pão, de
bruços, e se minha fome fosse grande o bastante, eu sabia que teria de fazê-lo, mas tal
pensamento me irritou. O jugo não era simplesmente um dispositivo para prender um
homem, mas para humilhá-lo, para trata-lo como se fosse um animal.

“Deixe-me te ajudar,” disse uma voz de garota.

Virei-me, a dinâmica do jugo quase me carregando pra dentro da parede. Duas mãos
pequenas me seguraram, e com esforço, cuidaram de levantar o jugo de volta,
devolvendo meu equilíbrio.

83
Foragidos de Gor
Olhei para a garota. Apesar de ser singela, eu a achei atraente. Tinha um calor nela que
eu não esperava encontrar em Tharna. Seus olhos negros me fitaram, cheios de
preocupação. Seu cabelo, o qual era de um marrom avermelhado, estava amarrado atrás
de sua cabeça com um barbante grosso.

Enquanto eu a olhava ela abaixou seus olhos timidamente. Ela vestia apenas uma única
peça, um longo, estreito retângulo marrom de material áspero, talvez com dezoito
polegadas de largura, jogado por sua cabeça como um poncho, que caía na frente e atrás
até um pouco acima do joelho, e amarrado em sua cintura por uma corrente.

“Sim,” ela disse com vergonha. “Eu visto o camisk.”

“Você está adorável,” eu disse.

Ela me olhou, assustada, ainda que grata.

Nós encarávamos um ao outro sob a meia escuridão da masmorra, sem falar. Não havia
nenhum som naquele lugar escuro e frio. As sombras da pequenina lamparina tharlarion
à distância trepidavam nas paredes, na face da garota.

Sua mão se estendeu e tocou o jugo prateado que eu vestia. “Eles são cruéis,” ela disse.

Então, sem dizer mais nada, ela pegou o pão da panela, e o segurou para mim. Dei duas
ou três bocadas vorazes no grosso pão, mastiguei e engoli.

Reparei que seu pescoço estava circundado por um colar de metal cinza. Supus que
aquilo indicava que ela era uma escrava do estado de Tharna.

Ela foi até a cisterna, primeiro ela ciscou na superfície da água para remover a sujeira
verde que flutuava lá, e então, juntando as mãos no formato de concha, ela carregou a
água até meus lábios entreabertos.

“Obrigado,” eu disse.

Ela sorriu pra mim. “Ninguém agradece uma escrava,” ela disse.

“Pensei que as mulheres eram livres em Tharna,” eu disse, apontando com minha cabeça
na direção do colar de metal que ela vestia.

“Não serei mantida em Tharna,” disse ela. “Serei enviada para fora da cidade, para as
Grandes Fazendas, onde irei carregar água para os Campos de Escravos.”

“Qual foi seu crime?” perguntei.

“Eu traí Tharna,” ela disse.

“Você conspirou contra o trono?” eu perguntei.

84
Foragidos de Gor
“Não,” disse a garota. “Eu gostei de um homem.”

Fiquei sem palavras.

“Eu uma vez vesti a máscara de prata, Guerreiro,” disse a garota. “Mas agora eu sou
apenas uma Mulher Rebaixada, porque permiti a mim mesma o amor.”

“Isso não é crime,” eu disse.

A garota riu alegremente. Eu amo ouvir a súbita música contente do riso de uma mulher,
o riso que tanto alegra um homem, que age em seus sentidos como vinho Ka-la-na.

De repente pareceu que eu não mais sentia o peso do jugo.

“Fale-me sobre ele,” eu disse, “mas antes me diga o seu nome.”

“Eu sou Linna de Tharna,” ela disse. “Qual o seu nome?”

“Tarl,” eu disse.

“De qual cidade?”

“De nenhuma cidade.”

“Ah!” disse a garota, sorrindo e não perguntando mais nada. Ela deve ter se dado conta
de que compartilhava a cela com um foragido. Ela sentou sobre seus calcanhares, seus
olhos estavam alegres. “Ele nem era,” ela disse, “desta cidade.”

Eu assobiei. Isso sim seria algo sério aos olhos dos Goreanos.

“E pior ainda,” ela riu, batendo palmas, “ele era da Casta dos Cantores.”

Poderia ter sido pior, eu pensei. Afinal, embora a Casta dos Cantores, ou Poetas, não fosse
uma casta alta, ela tinha mais prestígio do que, por exemplo, a Casta dos Oleiros, ou a
dos Seleiros, com a qual era comparada às vezes. Em Gor, o cantor, ou poeta, é visto como
um artesão que cria provérbios consistentes, da mesma forma que um oleiro cria um bom
pote ou um seleiro faz uma boa sela. Ele tem um papel a desempenhar na estrutura social,
celebrando batalhas e histórias, canções de heróis e cidades, mas também, é esperado dele
que cante sobre a existência, sobre o amor e a alegria, não somente de brasões e glórias; e
também, é sua função relembrar os Goreanos de tempo em tempo, da solidão e da morte,
para que eles não se esqueçam de que são homens.

O cantor era visto como portador de uma habilidade rara, mas assim também o eram, os
treinadores de tarns e os lenhadores. Poetas em Gor, assim como em meu mundo nativo,
eram vistos com certo ceticismo e pensavam-se que eram meio tolos, mas ninguém
pensava que eles pudessem sofrer de uma loucura divina, ou que seriam beneficiários
periódicos da inspiração dos deuses. Os Sacerdotes-Reis de Gor, que serviam como uma
85
Foragidos de Gor
forma de divindade para este planeta rude, inspiravam nada mais que admiração, e
ocasionalmente, temor. Os homens viviam em uma trégua com os Sacerdotes-Reis,
mantendo suas leis e festivais, fazendo os sacrifícios requeridos e libações necessárias,
mas, no final das contas, se esqueciam deles sempre que possível. Se fosse sugerido para
um poeta que ele tinha sido inspirado por um Sacerdote-Rei, ele ficaria escandalizado.
“Eu, fulano de tal, de tal cidade, fiz essa canção,” ele poderia dizer, “não um Sacerdote-
Rei.”

Salvo algumas exceções, o Poeta, ou Cantor, era amado em Gor. Ele não se dava conta da
miséria e tormento de sua profissão, e, na maioria dos casos, a Casta dos Poetas era vista
como o bando de homens mais felizes de Gor. “Um punhado de pão por uma canção,”
era um convite Goreano comum para os membros desta casta, e poderia vir dos lábios de
um aldeão ou de um Ubar, e o poeta tinha muito orgulho de poder cantar a mesma canção
em ambos os lugares, na cabana de um aldeão e nos salões de um Ubar, embora ele
ganhasse apenas uma crosta de pão em um lugar e um punhado de ouro no outro, ouro
frequentemente desperdiçado com belas mulheres que muitas vezes o deixava com nada
mais do que suas canções.

Poetas, geralmente, não vivem bem em Gor, mas eles nunca passam fome, nunca são
forçados a queimar os robes de sua casta. Alguns até mesmo cantam suas canções em seu
caminho de cidade a cidade, sua pobreza os protegia dos bandidos, e sua sorte os protegia
dos predatórios animais de Gor. Nove cidades, muito tempo depois de sua morte,
reivindicavam o homem que a séculos atrás, tinha chamado Ko-ro-ba de Torres do
Amanhecer.

“A Casta dos Poetas não é tão ruim,” eu disse para Linna.

“Claro que não,” ela disse, “mas eles são banidos em Tharna.”

“Oh,” eu disse.

“No entanto,” ela disse, seus olhos alegres, “este homem, Andreas, da Cidade de Tor, no
Deserto, se esgueirou para dentro da cidade – procurando por uma canção, como ele
mesmo disse.” Ela gargalhou. “Mas eu acho que ele na verdade queria olhar o que tinha
atrás das máscaras de prata de nossas mulheres.” Ela bateu palmas com alegria. “Fui eu,”
ela continuou, “quem o repreendeu e desafiou, eu que vi a lira sob suas vestes cinzentas
e soube que ele era um cantor. Em minha máscara de prata eu o segui, e me certifiquei
que ele tinha estado na cidade por mais de dez horas.”

“Qual o significado disso?” eu perguntei, pois eu tinha antes ouvido algo desse gênero.

“Esse é o tempo em que alguém é bem-vindo em Tharna” disse a garota, “e isso significa
que esse alguém será enviado para as Grandes Fazendas para ser um Escravo de Campo,
para cultivar o solo de Tharna em correntes, até que esse alguém morra.”
86
Foragidos de Gor
“Por que os forasteiros não são avisados sobre isso,” eu perguntei, “quando eles entram
pelos portões?”

“Isso seria tolice de fato, não seria?” a garota riu. “Pois como então as fileiras de Escravos
de Campo seriam reabastecidas?”

“Entendo,” eu disse, agora entendendo pela primeira vez parte da motivação por trás da
hospitalidade de Tharna.

“Como alguém que vestia a máscara de prata,” continuou a garota, “era meu dever
reportar aquele homem para as autoridades. Ainda assim eu estava curiosa pois eu nunca
conheci um homem que não fosse de Tharna. Eu o segui, até que ele ficou sozinho, e então
eu o desafiei, informando-o sobre o destino que cairia sobre ele.”

“O que ele fez então?” eu perguntei.

Ela abaixou a cabeça envergonhada. “Ele retirou minha máscara de prata e me beijou,”
ela disse, “assim eu não poderia nem mesmo gritar por ajuda.”

Eu sorri para ela.

“Eu nunca tinha estado nos braços de um homem antes,” ela disse, “pois os homens de
Tharna não podem tocar as mulheres.”

Agora eu devo ter parecido perplexo.

“A Casta dos Médicos,” ela disse, “sob a direção do Alto Conselho de Tharna, cuida
dessas questões.”

“Entendo,” eu disse.

“Também,” ela disse, “embora eu vestisse a máscara de prata, e me considerasse uma


mulher de Tharna, quando ele me pegou em seus braços, eu não achei a situação
desagradável.” Ela olhava para mim, um pouco tristonha. “Eu soube então que eu não
era melhor do que ele, eu não era melhor do que um animal, e eu merecia apenas ser uma
escrava.”

“Você não acredita nisso, certo?” eu demandei.

“Sim,” ela disse, “mas não me importo, pois eu prefiro vestir o camisk e poder sentir seu
beijo, que viver para sempre atrás de uma máscara de prata.” Seus ombros tremeram. Eu
desejava poder pegar ela em meus braços e confortá-la. “Eu sou uma criatura
degradante,” ela disse, “envergonhada, uma traidora de tudo que é nobre em Tharna.”

“O que aconteceu com o homem?” eu perguntei.

87
Foragidos de Gor
“Eu o abriguei,” ela disse, “e cuidei de retirá-lo da cidade.” Ela suspirou. “Ele me fez
prometer que o seguiria, mas eu sabia que eu não poderia fazer isso.”

“O que você fez então?” eu perguntei.

“Quando ele estava a salvo,” ela disse, “eu cumpri meu dever, me entregando ao Alto
Conselho de Tharna e confessando tudo. Foi decretado que eu deveria perder minha
máscara de prata, vestir o camisk e ser encoleirada, e ser enviada para as Grandes
Fazendas para carregar água para os Escravos de Campo.”

Ela começou a chorar.

“Você não deveria ter se entregado para o Alto Conselho,” eu disse.

“Por que?” ela perguntou. “Eu não era culpada?”

“Você não era culpada,” eu disse.

“O amor não é um crime?” ela perguntou.

“Apenas em Tharna,” eu disse.

Ela gargalhou. “Você é estranho, também,” ela disse, “assim como Andreas de Tor.”

“E Andreas?” eu perguntei, “Já que você não se juntou a ele, será que ele não virá a sua
procura, e voltará à cidade?”

“Não,” ela disse. “Ele irá pensar que eu não o amava mais.” Ela abaixou sua cabeça. “Ele
irá embora, e encontrará outra mulher, alguma mais amável do que a garota de Tharna.”

“Você acredita nisso?” eu perguntei.

“Sim,” disse ela. “E,” ela adicionou, “ele não entrará na cidade. Ele sabe que poderia ser
capturado e, considerando seu crime, ele pode ser mandado para as minas.” Ela deu de
ombros. “Talvez até mesmo ser usado nos Entretenimentos de Tharna.”

“Então você acha que ele tem medo de entrar na cidade?” eu perguntei.

“Sim,” disse ela, “ele não irá entrar na cidade. Ele não é um tolo.”

“O que,” gritou uma voz jovem e divertida, insolente e de boa índole, “poderia uma
jovem como você saber sobre os tolos, os da Casta dos Cantores, dos Poetas?”

Linna saltou de pé.

Através da porta do calabouço, uma figura jungida foi empurrada pelos cabos de duas
lanças. Ele tropeçou pela sala inteira até bater contra a parede com seu jugo. Ele tratou de
virar o jugo deslizando pela parede até se sentar.

88
Foragidos de Gor
Era um rapaz de aparência forte, despenteado, com olhos azuis alegres e um tufo de
cabelo que mais parecia a juba de um larl negro. Ele se sentou sobre a palha, e sorriu para
nós, um alegre e travesso sorriso envergonhado. Ele esticou o pescoço no jugo e moveu
seus dedos.

“Muito bem, Linna,” ele disse. “Eu cheguei para te levar embora.”

“Andreas,” ela gritou, correndo para ele.

89
Foragidos de Gor
XIII

Os Entretenimentos de Tharna

O sol castigava meus olhos. A areia branca, perfumada, polvilhada com mica e fitas
vermelhas, queimava meus pés. Eu pisquei, de novo, e de novo, tentando atenuar a
tortura do brilho intenso. Eu já podia sentir o calor do sol se infiltrando dentro do jugo
de prata que eu vestia.

Minhas costas sentiam o cutucar das lanças enquanto eu era impelido à frente aos
tropeços, instável sob o peso do jugo, meus pés afundando até os tornozelos na areia
escaldante. Em ambos os lados, estavam outros miseráveis companheiros, similarmente
jungidos, alguns lamentando, outros praguejando, já que eles, também, eram conduzidos
à frente como animais. Um deles, silencioso, à minha esquerda, eu sabia que era Andreas,
da Árida Cidade de Tor. Ao menos agora eu não mais sentia a ponta da lança em minhas
costas.

“Ajoelhem para a Tatrix de Tharna,” comandou uma voz imperial, falando através de um
tipo de trombeta.

Ouvi a voz de Andreas próxima de mim. “Estranho,” disse ele, “normalmente a Tatrix
não comparece aos Entretenimentos de Tharna.”

Eu me perguntei se poderia ser eu a razão da presença da própria Tatrix.

“Ajoelhem para a Tatrix de Tharna,” repetiu a voz imperial.

Nossos companheiros prisioneiros se a joelharam. Apenas Andreas e eu permanecemos


de pé.

“Por que você não se ajoelhou?” eu perguntei.

“Você acha que apenas guerreiros são bravos?” ele perguntou.

De repente ele foi golpeado por trás, brutalmente, nas costas, pelo cabo de uma lança, e
com um gemido, ele arriou de joelhos. A lança me golpeou também, de novo, e de novo,
nas costas e nos ombros, mas eu permaneci de pé, de alguma forma ainda forte no jugo,
90
Foragidos de Gor
como um boi. Então com uma lapada forte, o chicote subitamente golpeou minha perna
e se enrolou nela como uma serpente escaldante. Minhas pernas foram puxadas debaixo
de mim e eu caí com força na areia.

Olhei à minha volta.

Como tinha esperado, eu e meus companheiros prisioneiros estávamos ajoelhados nas


areias de uma arena.

Era um recinto oval, talvez com cem jardas de diâmetro em seu eixo mais longo, e cercado
por muros de doze pés de altura. Os muros eram divididos em seções, as quais eram
brilhantemente coloridas, com dourados, púrpuras, vermelhos, laranjas, amarelos e
azuis.

A superfície da área, areia branca, perfumada e polvilhada com mica e fitas vermelhas,
contribuíam para o semblante colorido do lugar. Pendurados sobre as porções
favorecidas da arquibancada, que se ascendiam de todos os lados, estavam toldos
listrados gigantes de seda esvoaçante vermelha e amarela.

Parecia que todas as gloriosas cores de Gor que tinham sido proibidas às construções de
Tharna foram esbanjadas neste lugar de entretenimento.

Nas arquibancadas, sob as sombras dos toldos, eu vi centenas de máscaras prateadas, as


nobres mulheres de Tharna, reclinadas sobre os bancos suavizados com almofadas de
sedas coloridas – vieram para ver os Entretenimentos.

Eu também reparei o cinza dos homens nas arquibancadas. Alguns estavam armados
como guerreiros, talvez colocados lá para manter a paz, mas muitos deveriam ser
cidadãos comuns de Tharna. Alguns pareciam conversar entre si, talvez fazendo apostas
de um tipo ou outro, mas em sua maioria estavam sentados sobre bancos de pedra,
quietos e sombrios em suas vestes cinzentas, dificilmente se poderia saber o que
pensavam. Linna, no calabouço, tinha dito a Andreas e a mim que um homem de Tharna
tem de comparecer aos Entretenimentos de Tharna pelo menos quatro vezes ao ano, e
que, se faltar, ele mesmo fará parte do evento por si só.

Houve gritos de impaciência vindos da arquibancada, estridentes vozes femininas


extravagantemente contrastando com a placidez das máscaras de prata. Todos os olhos
se viraram para uma única seção da arquibancada, aquela à frente de onde nos
ajoelhávamos, a seção que brilhava com o ouro.

Olhei sobre o muro e vi, vestida em seus robes dourados, régia em um trono de ouro, ela
que era a única que podia vestir uma máscara de ouro, ela que era a Primeira em Tharna
– Lara, a Tatrix em pessoa.

91
Foragidos de Gor
A Tatrix ergueu-se e levantou sua mão. Pura em sua luva de ouro, ela segurava uma
echarpe dourada.

A arquibancada caiu no silêncio.

Então, para meu assombro, os homens de Tharna que estavam jungidos na arena,
ajoelhados, rejeitados por sua cidade, condenados, entoaram um estranho hino. Andreas
e eu, como não éramos de Tharna, ficamos em silêncio, e eu podia adivinhar que ele
estava tão surpreso quanto eu.

Embora somos animais abjetos

Aptos apenas para viver pelo seu conforto

Aptos apenas para morrer pelo seu prazer

Ainda assim nós glorificamos as Máscaras de Tharna.

Salve as Máscaras de Tharna.

Salve a Tatrix de nossa Cidade.

A echarpe dourada flutuou até a areia da arena e a Tatrix se resumiu ao seu trono,
reclinando-se em suas almofadas.

A voz que falava na trombeta disse, “Que comecem os Entretenimentos de Tharna.”

Gritos agudos de antecipação saudaram este anúncio, mas mal tive tempo de ouvir pois
estava sendo arrastado pelos pés.

“Primeiro,” disse a voz, “teremos o Torneio dos Bois.”

Tinha cerca de quarenta infelizes jungidos na arena. Em pouco tempo os guardas tinham
nos dividido em times de quatro, prendendo nossos jugos juntos com correntes. Então,
com seus chicotes, eles nos conduziram para um conjunto de grandes blocos de pedra de
granito, pesando talvez uma tonelada cada pedaço, nas laterais desses blocos estavam
pesados anéis de ferro. Mais correntes fixavam cada time em seu próprio bloco.

O percurso nos foi indicado. A corrida começaria e terminaria perante o muro dourado
sobre o qual, em altivo esplendor, se sentava a Tatrix de Tharna. Cada time teria seu guia,
que trazia um chicote e ficaria em cima do bloco. Dolorosamente nós arrastamos o pesado
bloco para o muro dourado. O jugo prateado, quente pelo sol, queimava meu pescoço e
ombros.

Enquanto eu estava de pé à frente do muro pude ouvir a gargalhada da Tatrix e meu


semblante escureceu em fúria.

92
Foragidos de Gor
Nosso guia era o homem com braçadeiras de couro, aquele da Câmara dos Urts, aquele
que tinha primeiramente me trazido na presença da Tatrix. Ele se aproximou de nós,
individualmente, checando os arreios de corrente. Enquanto ele examinava meu jugo e
corrente, ele disse, “Dorna a Altiva apostou cem discos tarn de ouro neste bloco. Cuide
para que ela não perca.”

“E se isso acontecer?” eu perguntei.

“Ela irá te cozinhar vivo em óleo de tharlarion,” ele disse, gargalhando.

A mão da Tatrix levantou de leve, quase langorosamente, do braço de seu trono, e a


corrida começou.

Nosso bloco não perdeu.

Selvagemente, nossas costas arqueadas, ardendo sob as frenéticas chicotadas de nosso


guia, amaldiçoando as areias coloridas da arena que se amontoavam na frente do bloco
enquanto nós o arrastávamos passo a passo sobre o percurso, nós conseguimos chegar
primeiro na zona do muro dourado. Quando fomos desacorrentados descobrimos que
tínhamos arrastado também um homem que tinha morrido nas correntes.

Sem nenhuma vergonha nós caímos sobre a areia.

“As Batalhas dos Bois,” gritou uma máscara prateada, e seu grito foi repetido por dez
mais e então por cem outros mais. Rapidamente as arquibancadas pareciam inteiras a
gritar. “As Batalhas dos Bois,” gritavam as mulheres de Tharna. “Que comecem as
batalhas!”

Fomos puxados de pé novamente, e para meu horror, nossos jugos foram acoplados com
chifres de aço, dezoito polegadas de comprimento e pontiagudos como unhas.

Andreas, uma vez que seu jugo foi similarmente guarnecido como o meu, falou comigo.

“Esse pode ser o fim, Guerreiro,” ele disse. “Espero apenas que não nos confrontemos.”

“Eu não te mataria,” eu disse.

Ele me olhou de modo estranho. “Nem eu o mataria,” ele disse depois de um tempo.
“Mas,” ele disse, “se nos confrontarmos e não lutarmos, eles irão matar a nós dois.”

“Então que assim seja,” eu disse.

Andreas sorriu para mim. “Que assim seja, Guerreiro,” ele concordou.

Embora jungidos, nós faceamos um ao outro, homens, cada um sabendo que tinha
encontrado um amigo nas areias da arena de Tharna.

93
Foragidos de Gor
Meu oponente não foi Andreas, mas um atarracado, poderoso homem com cabelo curto
e loiro, Kron de Tharna, da Casta dos Ferreiros. Seus olhos eram azuis como metal. Uma
orelha tinha sido rasgada de sua cabeça.

“Eu sobrevivi aos Entretenimentos de Tharna três vezes,” ele disse quando virou para
mim.

Eu o observei cuidadosamente. Ele poderia ser um oponente perigoso.

O homem com as pulseiras de couro nos rodeava com seu chicote, seu olhar voltado para
o trono da Tatrix. Quando a luva de ouro uma vez mais se levantasse, o terrível conflito
começaria.

“Vamos ser homens,” eu disse para meu oponente, “e recusar a assassinar um ao outro
pelo passatempo daquelas em máscaras de prata.”

Aquela cabeça de cabelos curtos e amarelos me fitou, quase não me compreendendo.


Então pareceu que o que eu tinha dito de repente o golpeou, lá no fundo, em alguma
parte sensível. Os pálidos olhos azuis brilharam por um breve momento; então se
nublaram. “Ambos seríamos assassinados,” ele disse.

“Sim,” eu disse.

“Estranho,” ele disse, “eu pretendo sobreviver aos Entretenimentos de Tharna ao menos
uma vez mais.”

“Muito bem,” eu disse, e assumi posição de luta contra ele.

A mão da Tatrix deveria ter levantado. Eu não olhei pois não queria tirar os olhos de meu
oponente. “Comece,” disse o homem nas pulseiras de couro.

E então Kron e eu começamos a nos rodear, meio inclinados, assim as projeções no jugo
poderiam ser usadas com melhor vantagem.

Uma, duas vezes, ele investiu, mas eu pulei de leve, para cima, vendo se ele poderia me
empurrar, me desequilibrar com o choque da sua investida. Nos movíamos
cautelosamente, ocasionalmente simulando ataques com nossos terríveis jugos. A plateia
cresceu inquieta. O homem com braçadeiras de couro ricocheteou seu chicote.

“Deixe o sangue correr,” ele disse.

Subitamente o pé de Kron deslizou através da branca e perfumada areia, brilhosa com


mica e fitas vermelhas, e chutou uma boa porção de partículas na direção de meus olhos.
Aquilo veio como uma tempestade avermelhada de prata, me pegando de surpresa, me
cegando.

94
Foragidos de Gor
Eu caí de joelhos quase que instantaneamente, e em sua investida os chifres de Kron
passaram por cima de mim. Eu empinei debaixo do corpo dele, levantando-o com meus
ombros, o jogando de costas sobre a areia. Pude ouvir quando ele bateu no chão, com
impacto, atrás de mim, e ouvi um grunhido de raiva e medo, vindo de Kron. Não pude
virar e conduzir os espinhos até ele porque não podia arriscar um erro.

Sacudi minha cabeça descontroladamente; minhas mãos, impotentes no jugo, tentaram


em vão alcançar meus olhos, para limpar as cegantes partículas em minha visão. No calor
e cegueira, instáveis sob o violento balanço do jugo, eu ouvia os gritos agudos da
multidão em delírio.

Cego eu ouvi Kron se recompor de pé, levantando o pesado jugo que o prendia. Ouvi sua
respiração pesada, como o resfolegar de um animal. Ouvi seus curtos, rápidos passos a
correr na areia, baqueando em minha direção correndo como um búfalo.

Virei meu jugo obliquamente, escorregando por entre os chifres, bloqueando seu golpe.
Era como se fosse o som de duas bigornas que se chocavam violentamente. Minhas mãos
caçaram as dele, mas ele manteve seus punhos fechados e se afastou o quanto pode no
bracelete do jugo. Minhas mãos se fecharam em seu punho e escorregaram, incapazes de
manter o aperto devido ao suor dele e meu.

Uma, duas vezes mais ele investiu, e cada vez eu tratei de bloquear seu golpe, resistindo
ao choque dos jugos a se colidir, escapando da estocada dos chifres mortais. Uma vez eu
não tive sorte e o chifre de metal raspou a lateral de meu corpo, deixando um rasgo de
sangue. A multidão gritava enlouquecida.

De repente eu consegui por minhas mãos debaixo de seu jugo.

Ele estava quente, assim como o meu sob o sol, e minhas mãos queimaram no metal. Kron
era um homem pesado, porém baixo, e eu levantei seu jugo, e o meu, para o assombro da
arquibancada, que caia agora no silêncio.

Kron praguejou quando ele sentiu seus pés deixando a areia. Dolorosamente, enquanto
ele se contorcia, pendurado ao jugo, eu o carreguei até o muro dourado, e o atirei contra
a parede. O impacto de Kron, preso ao jugo, poderia ter matado um homem menor,
quebrando seu pescoço.

Kron, ainda preso ao jugo, agora inconsciente, escorregou muro abaixo, o peso do jugo
tombando seu corpo inerte para o lado, na areia. Meu suor e lágrimas causadas pela
irritação da areia, agora lavavam minha visão.

Olhei para cima, dentro da máscara brilhosa da Tatrix. Ao lado dela eu vi a máscara
prateada de Dorna a Altiva.
“Mate-o,” disse Dorna a Altiva, apontando para o inconsciente Kron.
95
Foragidos de Gor
Eu olhei para a arquibancada.

Em todo lugar eu vi as máscaras prateadas, e ouvi o estridente comando, “Mate-o!” De


todos os lados eu vi o gesto de impiedade, a mão direita estendida, palma virada pra
dentro, o cruel, movimento descendente da mão. Aquelas que vestiam as máscaras de
prata se levantaram de pé, e a força de seus gritos me pressionaram como punhais, o
próprio ar parecia preenchido com a balbúrdia de seus comandos, “Mate-o!”

Me virei e caminhei lentamente até o centro da arena.

Fiquei lá de pé, pés afundados na areia, coberto de suor e areia, minhas costas abertas
pelas chicotadas da corrida, minha lateral rasgada pelo chifre do jugo de Kron. Eu fiquei
lá, imóvel.

A fúria nas arquibancadas era descontrolada.

Enquanto eu estava lá de pé no centro da arena, sozinho, quieto, indiferente, parecendo


não ouvi-los, aquelas centenas, talvez milhares, das que vestiam as máscaras de prata
entenderam que suas vontades foram desprezadas, que essa criatura solitária na areia
abaixo delas tinha frustrado seus prazeres. De pé, gritando, sacudindo seus punhos em
luvas de prata na minha direção, elas despejaram sua frustração, suas injúrias e abusos
sobre minha cabeça. Os gritos estridentes de fúria daquelas criaturas mascaradas
pareciam não conhecer nenhum limite, pareciam estar à beira da histeria, da loucura.

Pacientemente eu esperei no centro da arena pelos guerreiros.

O primeiro homem que me alcançou foi o homem com braçadeiras de couro, sua face
pálida de raiva. Ele selvagemente me golpeou na face com seu chicote enrolado. “Sleen,”
ele gritou, “você estragou os Entretenimentos de Tharna!” Dois guerreiros
apressadamente desprenderam os chifres de meu jugo e me arrastaram até o muro
dourado.

Mais uma vez eu estava diante da dourada máscara da Tatrix.

Eu me perguntava se minha morte seria rápida.

As arquibancadas estavam quietas. Havia uma tensão no ar, enquanto eu aguardava


pelas palavras da Tatrix. Sua máscara e robe dourados brilhando sobre mim. Suas
palavras foram claras, inconfundíveis.

“Remova seu jugo,” ela disse.

Eu mal pude acreditar em meus ouvidos.

Será que eu ganharia minha liberdade? Era assim nos Entretenimentos de Tharna? Ou
teria a feroz, altiva Tatrix agora se dado conta da crueldade dos Entretenimentos? Teria
96
Foragidos de Gor
aquele coração, escondido naqueles frios, brilhantes robes de inflexível ouro pelo menos
abrandado, se mostrado susceptível de compaixão? Ou teria o grito da justiça finalmente
triunfado em seu peito, de tal modo que minha inocência tivesse sido reconhecida, minha
causa reivindicada, para que agora eu pudesse rapidamente retomar o meu caminho para
fora da cinzenta Tharna?

Uma emoção cresceu em meu coração, gratidão. “Obrigado, Tatrix,” eu disse.

Ela gargalhou. “- que ele vire comida para o tarn,” ela adicionou.

97
Foragidos de Gor
XIV

O Tarn Negro

Eu não vestia mais o jugo.

Os outros prisioneiros, ainda jungidos, tinham sido varridos da arena, para as masmorras
abaixo, para serem usados novamente nos Entretenimentos de Tharna, ou talvez para
serem enviados às minas. Andreas de Tor tentou ficar ao meu lado, para compartilhar
meu destino, mas ele foi surrado e arrastado inconsciente para fora da arena.

A multidão parecia ansiosa para ver o que aconteceria a seguir. Eles se remexiam
impacientemente debaixo das sedas esvoaçantes dos toldos, aprumando suas almofadas
de sedas, compartilhando balas e doces distribuídos por figuras em robes cinzentos. Seus
gritos chamando pelo tarn, se misturavam ocasionalmente com as provocações e
sarcasmos lançados à arena.

Talvez os Entretenimentos de Tharna não tinham sido arruinados afinal; será que o
melhor ainda estaria por vir? Certamente minha morte sob o bico e garras do tarn
providenciaria um espetáculo gratificante para as insaciáveis máscaras de Tharna, mas
seria essa uma adequada compensação para as decepções desta tarde, pelo desprezo para
com suas vontades, para a provocação que haviam testemunhado?

Embora eu sentisse que fosse morrer, eu não estava de todo insatisfeito com a maneira
que morreria. Por mais hedionda que tal morte pudesse parecer para as máscaras
prateadas de Tharna, eles não sabiam que eu era um tarnsman, e eu conhecia tais
pássaros, seu poder, sua ferocidade; assim, a meu modo eu os amava; e como um
guerreiro eu não consideraria a morte pelo tarn ignóbil.

Sombriamente eu sorri comigo mesmo.

Como a maioria dos membros de minha Casta, mais do que os monstruosos tarns, aqueles
carnívoros de Gor que pareciam falcões gigantes, nós temíamos outras criaturas tais como
a pequena ost, aquele pequenino réptil venenoso, laranja, mal medindo algumas poucas

98
Foragidos de Gor
polegadas em comprimento, que podem esconder-se nas sandálias de alguém e então,
sem provocação ou aviso, atacar, suas presas eram o prelúdio de um excruciante
tormento, terminando somente com a morte certa. Entre guerreiros, a mordida de uma
ost é considerada a mais cruel de todas as entradas para as Cidades de Poeira; preferiam
muito mais os bicos e as terríveis garras de um tarn.

Eu não estava amarrado.

Estava livre para vagar na areia, enclausurado apenas pelos muros. Eu me deleitei sobre
essa nova liberdade, na ausência do jugo, embora eu soubesse que tal liberdade tinha me
sido dada apenas para aprimorar o espetáculo. Para que eu pudesse correr, pudesse gritar
e me humilhar, para que eu pudesse tentar me defender na areia, isso sim encantaria as
máscaras prateadas de Tharna.

Movi minhas mãos e ombros, minhas costas. Minha túnica já tinha há muito sido rasgada
até a cintura e agora eu arranquei os pedaços até o cinto, irritado com o pano esfarrapado.
Meus músculos pareceram exuberantes em meu corpo, se deleitando com sua liberdade.

Caminhei lentamente até os pés do muro dourado, onde se encontrava a echarpe dourada
da Tatrix, aquela mesma echarpe que ao cair assinalou o início dos Entretenimentos.

Eu a peguei.

“Guarde como um presente,” disse uma áspera voz acima de mim.

Olhei para cima, dentro da brilhante máscara dourada da Tatrix.

“Como algo para lembrar da Tatrix de Tharna,” disse a voz atrás da máscara de ouro, se
divertindo.

Eu sorri ironicamente para a máscara dourada, e pegando a echarpe lentamente limpei a


areia e o suor de minha face.

Acima de mim a Tatrix gritou em fúria.

Enrolei a echarpe sobre meus ombros e fui para o centro da arena.

Mal eu tinha chegado no centro quando uma das seções do muro rolou para trás,
revelando um portal quase tão alto quanto o muro e talvez com trinta pés de largura.
Através deste portal, em duas longas fileiras, chicoteados pelos feitores, jungidos
escravos encabrestados em correntes puxavam a grande plataforma de madeira montada
sobre rodas. Eu aguardei até que a plataforma emergisse sob a luz do sol.

Houve gritos de admiração e surpresa, de prazer, das emocionadas máscaras de prata de


Tharna. Lentamente enquanto a crepitante plataforma rolava para fora, para dentro da
areia, puxada por seus escravos a se esforçar, jungidos como bois, eu vi o tarn aparecer,
99
Foragidos de Gor
um gigante negro, encapuzado, seus bicos amarrados juntos, uma grande barra de prata
acorrentada à uma de suas patas. Ele não poderia voar, mas podia se mover, arrastando
a barra de prata. Ele, também, em Tharna, vestia seu jugo.

A plataforma se aproximou, e para o espanto da multidão eu fui ao encontro dela.

Meu coração batia enlouquecido.

Eu examinei o tarn.

Seus traços não me eram estranhos. Eu examinei a reluzente plumagem negra; o


monstruoso bico amarelo agora cruelmente amarrados juntos. Vi as grandes asas a bater,
ferindo o ar, o furacão de seu golpe derrubando os escravos na areia, embaralhando as
correntes, enquanto a besta, levantando sua cabeça e cheirando o ar, golpeava com suas
asas.

Ele não tentaria voar encapuzado; de fato, eu duvidava que o pássaro tentasse voar
enquanto estivesse preso à barra de prata. Se ele fosse mesmo o pássaro que estava
pensando que era, ele não lutaria futilmente contra o peso de sua trava degradante, ele
não iria expor sua impotência para seus captores. E sei que isso pode soar estranho, mas
eu acredito que alguns animais têm orgulho, e se assim for, eu sabia que este monstro
aqui era um deles.

“Para trás,” gritou um dos homens com um chicote.

Eu arranquei o chicote de suas mãos, e com meu braço o atingi de lado. Ele voou e caiu
na areia. Eu joguei longe o chicote desdenhando do homem.

Eu estava de pé perto da plataforma agora. Tentava ver o anel que o pássaro vestia em
seu tornozelo. Com satisfação notei que suas garras estavam calçadas com aço. Era um
Tarn de Guerra, criado para ter coragem, para ter resistência, para o combate nos céus de
Gor. Minhas narinas beberam daquele selvagem e forte odor do tarn, tão ofensivos para
alguns, ainda uma ambrosia para as narinas do tarnsman. Tal cheiro relembrava os berços
de tarn de Ko-ro-ba e Ar, dos Complexos de Mintar na Cidade de Tendas de Pa-Kur, no
Vosk, nos acampamentos do foragido Marlenus entre os penhascos da Cordilheira Voltai.

Enquanto eu estava lá de pé ao lado do pássaro, me sentia feliz, embora eu soubesse que


a intenção era a de ele ser meu executor. Isso era talvez a tola afeição que um tarnsman
sente por estas perigosas, ferozes montarias, quase tão perigoso para ele como seria para
qualquer um. No entanto, tinha algo mais talvez, pois enquanto eu estava perto do
pássaro, eu sentia quase como se estivesse voltando para casa, para Ko-ro-ba, era como
se eu estivesse aqui agora nesta hostil cidade cinzenta, com alguma coisa que me
conhecesse e que fosse minha, algo que tivesse visualizado as Torres do Amanhecer, e
tivesse aberto suas asas sobre os brilhantes cilindros da Gloriosa Ar, algo que tivesse me
100
Foragidos de Gor
carregado em batalha e que tivesse levado também Talena, meu amor, e eu de volta do
cerco de Ar para a Festa de nosso Livre Companheirismo em Ko-ro-ba. Pequei o anel no
tornozelo do pássaro e notei, como eu esperava, que o nome de sua cidade tinha sido
limado.

“Este pássaro,” eu disse para um dos escravos jungidos, “é de Ko-ro-ba.”

O escravo estremeceu em seu jugo à menção deste nome. Ele se virou, desesperado para
ser desacorrentado para correr como um animal até a segurança das masmorras.

Embora a maioria dos que observavam pudessem perceber que o tarn estava
estranhamente calmo, eu senti que ele tremia, assim como eu, mas de excitação. Parecia
incerto. Sua cabeça estava alta, alerta dentro da escuridão em seu capuz de couro. De
forma quase inaudível ele puxava o ar através das fendas em seu bico. Eu me perguntava
se ele tinha captado meu cheiro. Então o grande bico amarelo, em forma de gancho para
rasgar uma presa, agora preso por uma cinta, se virou curiosamente, lentamente na
minha direção.

O homem com braçadeiras de couro, o indivíduo corpulento que tinha me agredido com
tanto prazer, ele com uma tira de tecido cinza amarrado sobre a ferida em sua testa, se
aproximou de mim, seu chicote levantado.

“Saia fora daqui,” ele gritou.

Eu me virei para encará-lo. “Eu agora não sou mais um escravo jungido,” eu disse. “Você
confronta um guerreiro.”

Sua mão se apertou no chicote.

Eu gargalhei na cara dele. “Me golpeie agora,” eu disse, “e eu irei matar você.”

“Não tenho medo de você,” ele disse, sua face branca, se retraindo. Seu braço do chicote
abaixou. Ele tremia.

Eu gargalhei novamente.

“Você estará morto em breve,” ele disse, balbuciando nas palavras. “Cem tarnsmans
tentaram montar esta besta, e cem tarnsmans morreram. A Tatrix decretou que ele só
deveria ser usado nos Entretenimentos de Tharna, para se alimentar de sleens como
você.”

“Removam o capuz,” eu comandei. “Libertem-no!”

O homem me olhou como se eu tivesse enlouquecido. Para dizer a verdade, minha


exuberância assustou até a mim mesmo. Guerreiros com lanças correram à frente, me

101
Foragidos de Gor
forçando a afastar, mas mantendo distância do tarn. Eu estava de pé na areia, longe da
plataforma, e assistia-os realizarem a delicada tarefa de retirar o capuz do tarn.

Nenhum som vinha das areias.

Eu me perguntava que pensamentos passavam por trás da máscara dourada de Lara,


Tatrix da cidade de Tharna.

Me perguntava se o pássaro me reconheceria.

Um ágil escravo, sem perder tempo, e segurando no ombro de um outro escravo, soltou
a cinta que segurava o bico do tarn e o capuz que estava preso em sua cabeça. Ele não os
removeu, apenas afrouxou, e tão cedo o fez, ele e seu companheiro correram para a
segurança da seção aberta no muro, a qual depois deslizou se fechando silenciosamente.

O tarn abriu seu bico e as correias que o prendiam se desfizeram em pedaços. Ele sacudiu
a cabeça, como se limpasse a água em suas penas e o capuz de couro foi atirado longe no
ar e atrás do pássaro. Então ele esticou suas asas e bateu no ar, levantando seu bico e
pronunciando o aterrorizante grito de desafio de sua raça. Sua crista negra, agora não
mais confinada no capuz, se expandiu ereta como um som de fogo, e o vento parecia
levantar e alisar cada uma das penas.

Eu o achei belo.

Eu sabia que eu contemplava agora um dos maiores e mais terríveis predadores de Gor.

Mas eu o achava belo.

Os brilhantes olhos redondos, as pupilas negras como estrelas, cintilaram sobre mim.

“Ho! Ubar dos Céus!” eu gritei, com meus braços estendidos. Meus olhos brilharam com
lágrimas. “Você não me reconhece? Eu sou Tarl! Tarl de Ko-ro-ba!” eu gritei alto. Eu não
sei qual foi o efeito que este grito causou nas arquibancadas da arena, pois eu tinha me
esquecido deles. Eu me dirigia ao tarn gigante, como se ele fosse um guerreiro, um
membro de minha casta. “Você pelo menos,” eu disse, “não teme o nome de minha
cidade.”

Desconsiderando o perigo eu corri para o pássaro. Pulei na pesada plataforma em que


ele estava de pé. Afundei meus braços em seu pescoço, chorando. O grande bico
curiosamente me tocou. Não poderia haver emoção, é claro, em tal besta. Ainda assim
enquanto seus grandes olhos arredondados me observavam eu me perguntei quais
pensamentos poderiam estar cruzando seu cérebro aviário. Eu me perguntei se ele
também lembrava do trovão do vento, dos estrondos das armas quando os tarnsmans
duelavam em pleno voo, da vista das cavalarias de tarns de Gor revoluteando em
formação sob as batidas dos tambores de tarn, ou dos longos, estáveis, solitários voos
102
Foragidos de Gor
planos que fizemos juntos sobre os campos verdes de Gor. Será que ele se lembrava do
Vosk como uma fita prateada abaixo de suas asas? Ele se lembrava de sua luta contra as
rajadas de vento na acidentada Cordilheira Voltai? Será que se lembrava de Thentis,
famosa por seus bandos de tarn, das torres cintilantes de Ko-ro-ba, ou de como as luzes
de Ar brilhavam na noite da Festa do Plantio de Sa-Tarna, quando nós dois ousamos
investir contra a Pedra da Casa da maior cidade de toda a conhecida Gor? Não, eu
pensava que nenhuma dessas memórias, tão queridas para mim, poderiam encontrar seu
lugar no simples cérebro deste gigante plumado. Gentilmente o pássaro empurrou seu
bico para debaixo de meu braço.

Eu sabia que os guerreiros de Tharna poderiam matar a nós dois, pois o enorme tarn me
defenderia até a morte.

Ele levantou sua enorme, aterrorizante cabeça, examinando as arquibancadas. Ele


sacudiu a perna que estava acorrentada na grande barra de prata. Ele poderia se mover,
arrastando o peso da barra, mas não podia voar.

Eu ajoelhei para examinar a tranca. Não tinha sido forjada no lugar já que deveria ser
removida nos confinamentos onde o tarn dormia, para permitir que o pássaro subisse em
seu poleiro, como era costume. Por sorte ela não tinha sido bloqueada no local. Mas tinha,
contudo, sido trancada, presa com um parafuso pesado, de cabeça quadrada, muito
parecido com parafusos de máquinas de grande porte, seu eixo deveria ter cerca de uma
polegada e meia de diâmetro.

Minhas mãos pressionaram o metal. Estava apertado. Tinha sido fechado com uma chave.
Minhas mãos se fecharam sobre o parafuso, tentando torcer para abri-lo. Ele resistiu. Eu
lutei com ele. O amaldiçoei. Interiormente eu gritava para que aquilo abrisse. Mas não
abriu.

Eu agora me dava conta dos gritos nas arquibancadas. Não eram apenas gritos de
impaciência, mas de pavor. As máscaras de prata não estavam simplesmente se sentindo
enganadas no espetáculo, mas também, aturdidas, confusas.

A voz da Tatrix ecoou através das areias. “Matem-no,” ela gritou. Ouvi, também, a voz
de Dorna a Altiva incitando os guerreiros para a tarefa. Em pouco tempo os lanceiros de
Tharna estariam sobre nós. Um ou dois já tinham pulado sobre o muro das arquibancadas
e estavam se aproximando. A grande porta através da qual o tarn tinha sido trazido
também estava se abrindo, e uma fila de guerreiros passavam através da abertura.

Minhas mãos se fecharam ainda mais apertadas sobre as peças do parafuso. Ele estava
agora manchado com meu sangue. Pude sentir os músculos de meu braço e costas usando
sua força contra o inflexível metal. Uma lança afundou na madeira da plataforma. Suor
irrompia por cada poro de meu corpo. Outra lança se chocou contra a madeira, mais perto
103
Foragidos de Gor
que a primeira. O metal parecia rasgar a carne de minhas mãos, quebrar os ossos de meus
dedos. Outra lança contra a madeira, passou raspando em minha perna. O tarn empurrou
sua cabeça sobre mim e soltou um perfurante grito feroz, um terrível grito de fúria que
deve ter estremecido os corações de todos dentro dos limites da arena. Os lanceiros
pareceram congelar, e se afastaram, como se o grande pássaro estivesse livre para ataca-
los.

“Tolos!” gritou a voz do homem com as braçadeiras de couro. “O pássaro esta


acorrentado! Ataquem! Matem os dois!”

Naquele instante o parafuso cedeu, e a porca girou para fora da peça!

O tarn, como se entendesse que agora estava livre, sacudiu o odioso metal para fora de
sua perna e levantou seu bico para o céu, proferindo tal grito que deve ter sido ouvido
por todos em Tharna, um grito que era raramente ouvido exceto nas montanhas de
Thentis ou entre os desfiladeiros de Voltai, o grito de um tarn selvagem, vitorioso, que
clama como seu território a terra e todos que vivem nela.

Por um momento, talvez por um injustificado instante, eu temi que o pássaro voasse
imediatamente para os céus, mas embora o metal estivesse fora de sua perna, embora
estivesse livre, embora os lanceiros avançassem, ele não se moveu.

Eu saltei em suas costas e agarrei as robustas penas de seu pescoço. O que eu não daria
por uma sela de tarn e uma ampla correia púrpura que prendia o guerreiro na sela!

Tão cedo o tarn sentiu meu peso ele gritou novamente e com uma explosão de suas asas
levantou dentro do ar, ascendendo em tortuosos círculos. Algumas lanças passavam
descrevendo parábolas preguiçosas abaixo de nós, atiradas de longe, caindo de volta na
areia em cores festivas da arena. Houve gritos de fúria vindos de baixo de nós quando as
máscaras de prata de Tharna começaram a entender que eles tinham sido enganados por
sua presa, os Entretenimentos tinham acabado mal.

Eu não tinha como guiar o tarn de forma eficiente. Normalmente o tarn é guiado por um
arreio. Existe uma cinta no pescoço que habitualmente, se conecta a seis rédeas no sentido
horário. Estas passam a partir da alça do pescoço para o anel principal da sela, que é
fixado na mesma. Alguém pode guiar o pássaro exercendo pressão sobre estas rédeas.
Mas eu não tinha nem a sela, nem os arreios. Na verdade, eu não tinha sequer um
aguilhão de tarn, e sem isso a maioria dos tarnsmans nem sequer se aproximavam de
suas montarias ferozes.

Eu não temia muito estas questões, entretanto, eu raramente tinha usado o aguilhão neste
pássaro. No início, eu me abstive de usá-lo muitas vezes, porque eu temia que o efeito do
estímulo cruel poderia ser diminuído através da aplicação frequente, mas eventualmente
eu acabei abandonando seu uso por completo, guardando-o apenas para me proteger no
104
Foragidos de Gor
caso do pássaro, principalmente quando estivesse com fome, se virar contra mim. Em
severos casos, tarns devoravam seus próprios mestres, e era comum, quando soltos para
se alimentar, que eles atacassem seres humanos com o mesmo entusiasmo predatório que
conferiam à um antílope amarelo, um tabuk, sua presa favorita, ou o mal-humorado bosk
pesado, um desgrenhado boi selvagem de pelos compridos das planícies Goreanas. Eu
achava que o aguilhão, com este monstro não melhorava, mas sim, prejudicava sua
performance. Ele parecia se ressentir com o aguilhão, para combatê-lo, e se comportava
erraticamente quando o aguilhão era usado com ele; quando golpeado ele poderia até
mesmo retardar o seu voo, ou deliberadamente desobedecer aos comandos das rédeas de
tarn. Assim o aguilhão raramente deixava sua bainha no lado direito da sela.

Eu me perguntava às vezes se aquele pássaro, meu Ubar dos Céus, o tarn dos tarns,
chamados pelos Goreanos de Irmãos do Vento, poderia considerar a si mesmo como
superior ao aguilhão, se ofendendo com seu choque e faíscas, ressentido por que aquele
débil dispositivo humano fingia ensiná-lo, ele, o tarn dos tarns, fingia ensiná-lo como
voar, quão rápido e quão longe. Mas eu tomei tais pensamentos como absurdos. O tarn
era nada mais que outro dos animais de Gor. O sentimento que eu tentava atribuir à ele
estava além do alcance de tão simples criatura.

Eu vi as torres de Tharna, e o brilho oval de sua arena, o cruel anfiteatro, se afastando


debaixo das asas do tarn. Algo da mesma hilaridade que senti em meu primeiro voo em
um tarn, neste gigante, agora me emocionava novamente. Além de Tharna e seu solo
sombrio, continuamente quebrado por seus afloramentos rochosos, eu pude ver os
campos verdes de Gor, clareiras das amarelas árvores Ka-la-na, a superfície cintilante de
um lago plácido e o céu azul brilhante, aberto e em movimento.

“Estou livre!” eu gritei.

Mas eu sabia que por mais que eu gritasse que estava livre, e queimasse com a vergonha
de ter pressagiado tal coisa, como poderia eu estar livre enquanto outros estavam presos
naquela cidade cinzenta?

Tinha a garota, de olhos mornos, Linna, que tinha sido tão gentil comigo, cujos cabelos
ruivos estavam amarrados com barbante grosso, que vestia o colar cinzento de uma
escrava do estado de Tharna. Tinha Andreas de Tor, da Casta dos Cantores, jovem,
valente, irreprimível, seus cabelos revoltos como a juba de um larl negro, que preferiu
morrer do que tentar me matar, condenado aos Entretenimentos de Tharna. E quantos
outros mais, jungidos e não jungidos, presos e livres, nas minas, nas Grandes Fazendas,
na própria cidade que sofriam na miséria de Tharna e suas leis, que estavam sujeitos ao
peso esmagador de suas tradições, e sabiam que na melhor das hipóteses não teriam nada
melhor na vida do que uma taça do barato Kal-da no final de um árduo dia de trabalho
vergonhoso?
105
Foragidos de Gor
“Tabuk!” eu gritei para o gigante plumado. “Tabuk!”

Tabuk é o mais comum antílope Goreano, um pequeno animal gracioso, de um chifre só,
amarelo, que habita nos emaranhados de Ka-la-na ao redor do planeta e ocasionalmente
se aventura pelos seus prados em busca de frutas e água. Ele é também uma das presas
favoritas de um tarn.

O grito “Tabuk!” é usado pelo tarnsman em voos longos quando o tempo é precioso, e
ele não deseja desmontar e libertar o pássaro para encontrar a presa. Quando ele vê um
tabuk nos campos abaixo, ou, de fato, qualquer animal ao alcance do tarn, ele pode gritar
“Tabuk!” e a este sinal o tarn inicia sua caçada. Ele faz a morte, devora, e retoma o voo, o
tarnsman nunca deixa a sela. Esta era a primeira vez que eu tinha usado o “Tabuk!” mas
o pássaro tinha sido condicionado para o chamado, pelos treinadores de tarns de Ko-ro-
ba anos atrás, e ainda respondia a tal. Eu mesmo sempre libertei o pássaro para se
alimentar. Eu sempre achei que isso ajudava o pássaro a descansar, removendo a sela, e
também, eu nunca me interessei em estar presente quando um tarn se alimenta.

O grande tarn negro, ao ouvir o grito “Tabuk!”, para minha alegria, começou a descrever
seu longo voo circular de caça, quase como se tivesse recebido seu treinamento ontem.
Ele era realmente o tarn dos tarns, meu Ubar dos Céus!

Era um plano desesperado que eu tinha pensado, não mais que uma chance em um
milhão, a não ser que o grande tarn mudasse a balança a meu favor. Seus olhos brilhavam
perversos, vasculhando o chão, cabeça e bico jogados para frente, suas asas ainda,
planando silenciosamente em grandes varreduras, cada vez mais baixo, sobre as torres
cinzentas de Tharna.

Agora nós passávamos sobre a arena de Tharna, ainda fervendo com sua latejante
multidão revoltada. Os toldos tinham sido rasgados, mas as arquibancadas ainda
estavam cheias, enquanto as milhares de máscaras de prata de Tharna esperavam pela
própria Tatrix dourada para ser a primeira a deixar a cena dos macabros entretenimentos
da cidade cinzenta.

Muito abaixo, no meio da multidão eu avistei as vestes douradas da Tatrix.

“Tabuk!” eu gritei. “Tabuk!”

O grande predador rodava no céu, virando tão levemente como um punhal sobre um fio.
Ele emparelhou com o sol em sua traseira. Suas garras, calçadas com aço, desceram como
grandes ganchos; pareciam tremer quase imóveis no ar; e então suas asas, paralelas, se
levantaram, quase me envolvendo, e lá permaneceram.

A descida foi tão suave e silenciosa como a queda de uma rocha, ou o abrir de uma mão.
Agarrei-me ferozmente no pássaro. Meu estômago parecia subir pela minha garganta. As
106
Foragidos de Gor
arquibancadas da arena, repletas de robes e máscaras, pareciam vir voando na minha
direção.

Houve gritos estridentes de terror vindos de baixo. Em cada mão, robes e regalias
esvoaçantes, as máscaras de prata de Tharna que tinham tão insolentemente gritado
alguns momentos atrás por sangue, corriam agora por suas vidas em uma desesperada
debandada, atropelando uns aos outros, arranhando e rasgando uns aos outros, lutando
ao longo dos bancos, empurrando se até mesmo por cima dos muros nas areias abaixo.

Em um instante que deve ter sido o mais aterrorizante de sua vida, a Tatrix ficou lá de
pé, sozinha, olhando para cima, abandonada por todos, nos degraus a frente de seu trono,
em meio às almofadas caídas e bandejas de doces e guloseimas. Um grito selvagem foi
emitido por de trás daquela plácida e inexpressiva máscara de ouro. Os longos braços de
seu robe, as mãos enluvadas em ouro, se levantaram sobre sua face. Os olhos por trás da
máscara, os quais eu pude ver naquela fração de segundo, estavam histéricos de medo.

O tarn golpeou.

Imobilizando suas garras calçadas com aço fechadas como grandes ganchos no corpo da
histérica Tatrix. E assim por um instante o tarn parou, sua cabeça e bicos estendidos, suas
assas estalando, sua presa trancada em suas garras, e proferiu o grito de captura
aterrorizante de um tarn, que era ao mesmo tempo um grito de vitória, e de desafio.

Naquelas titânicas, impiedosas garras o corpo da Tatrix estava indefeso. Ela tremia em
terror, se debatendo incontrolavelmente como um gracioso tabuk capturado, esperando
para ser levado para o ninho. A Tatrix não mais podia nem mesmo gritar.

Em uma tempestade de asas o tarn castigou o ar e se levantou, à vista de todos, sobre as


arquibancadas, sobre a arena, sobre as torres e muros de Tharna, e se apressou na direção
do horizonte, o corpo em robe dourado da Tatrix apertado em suas garras.

107
Foragidos de Gor
XV

Um Trato é Acertado

O grito tabuk é a única palavra na qual um tarn é treinado para reagir. Fora isso o resto é
tudo feito através das rédeas e do aguilhão de tarn. Eu me criticava duramente por não
ter condicionado o pássaro a responder a comandos de voz. Agora, acima de tudo, sem
um arreio e uma sela, tal treinamento teria sido de grande ajuda.

Um estranho pensamento me ocorreu. Quanto eu trouxe Talena para casa, de Ar para Ko-
ro-ba eu a tinha ensinado a guiar o tarn através do arreio e a ajudado, mesmo que comigo
guiando, a aprender a dominar o bruto animal.

Sob o vento sibilante, quando tinha necessidade, eu gritava para ela, “Primeira-rédea!”,
“Sexta-rédea!” e assim por diante, e ela então puxava a rédea. Aquela era a única
associação entre a voz de um homem e os arranjos das rédeas que o tarn poderia fazer. O
pássaro, é claro, não seria condicionado em tão pouco tempo, e nem tinha sido minha
intenção condicionar a ave – pois eu tinha falado apenas para ensinar Talena. No entanto,
mesmo que fosse o caso de o pássaro ter sido inadvertidamente condicionado naquele
curto espaço de tempo, não seria possível que ele ainda retivesse a memória daquele
causal imprinting, que tinha acontecido a mais de seis anos atrás.

“Sexta-rédea!” eu gritei.

O grande pássaro desviou-se para a esquerda e começou a subir de leve.

“Segunda-rédea!” eu falei, e a ave agora desviou-se para a direita, ainda subindo no


mesmo ângulo de antes.

“Quarta rédea!” eu chamei, e o pássaro começou a descer na direção da terra, preparando


para pousar.

“Primeira-rédea!” eu gargalhei, alegre, explodindo de prazer, e o gigante plumado,


aquele titã de Gor, começou a subir de forma íngreme.

108
Foragidos de Gor
Não disse mais nada e o pássaro se nivelou, suas asas golpeando o ar em grandes batidas
rítmicas, ocasionalmente planando de forma rasa, se elevando, por um bom tempo. Eu
observava os pasangs fluindo abaixo de mim, eu vi Tharna desaparecer ao longe.

Espontaneamente, sem pensar, eu enrolei meus braços em volta do pescoço da grande


criatura e o abracei. Suas asas batendo forte, sem resposta, não me dando atenção. Eu
gargalhei, e dei dois tapas em seu pescoço. Ele era, é claro, apenas outra das bestas de
Gor, mas eu gostava dele.

Perdoe-me se eu digo isso, mas eu estava feliz, como não deveria estar dada as
circunstâncias, mas meus sentimentos eram tais que um tarnsman poderia facilmente
entender. Eu conheço apenas poucas sensações tão esplêndidas, tão divinas, quanto as de
voar sobre um tarn.

Eu era daqueles tipos de homens, um tarnsman, que preferem a sela de uma dessas
titânicas feras predadoras do que o trono de um Ubar.

Uma vez que alguém se torna um tarnsman, é dito, que ele deve voltar de novo, e de
novo para os gigantes, selvagens pássaros. Na minha opinião esse ditado reflete a
realidade. Ele sabe que deve dominá-los ou ser devorado. Ele sabe que eles não são
confiáveis, que eles são perversos. Um tarnsman sabe que seu pássaro pode se virar
contra ele sem o menor aviso. Ainda assim o tarnsman não escolhe outra vida. Ele
continua a montar os pássaros, para subir em suas selas com o coração repleto de alegria,
para pilotar o monstro no ar. Mais que o ouro de cem mercadores, mais que os incontáveis
cilindros de Ar, ele valoriza aqueles sublimes, solitários momentos, alto sobre a terra,
cortando o vento, ele e o pássaro como uma única criatura, sozinhos, majestosos, velozes,
livres. Vamos dizer que eu simplesmente, estava contente, pois estava nas costas de um
tarn uma vez mais.

Pude ouvir um longo e estremecido gemido vindo debaixo do pássaro, um impotente e


descontrolado som da presa dourada confinada em suas garras.

Eu me amaldiçoei por minha tolice imprudente, pois na hilaridade do voo, por mais que
me pareça incompreensível agora, eu tinha me esquecido da Tatrix. Quão tenebrosos
devem ter sido para ela esses poucos minutos de voo, enroscada nas garras, centenas de
pés acima das planícies de Tharna, sem saber se seria jogada das alturas a qualquer
instante, ou carregada até alguma elevação e rasgada em pedaços pelo monstruoso bico
do pássaro, por suas hediondas garras calçadas em aço.

Olhei para trás para saber se alguém me seguia. Certamente poderiam ter feito isso, a pé
ou em tarns. Tharna não mantém uma larga cavalaria de tarns, mas com certeza poderiam
lançar ao menos alguns esquadrões de tarnsmans para resgatar e vingar sua Tatrix. Um
homem de Tharna, ensinado desde o nascimento a se ver como sem valor, uma ignóbil e
109
Foragidos de Gor
inferior criatura, na melhor das hipóteses um estúpido animal de carga, não daria, ao
todo, um bom tarnsman. Mesmo assim eu sabia que tinham tarnsmans em Tharna, e
alguns bons, pois o nome de tal cidade era respeitada pelas militares e hostis cidades de
Gor. Seus tarnsmans eram bem vistos por eles mesmos e mantiveram pelo menos o que
restou do orgulho de sua casta.

Embora eu escrutinasse o céu atrás de mim, procurando por pequenos pontos que
poderiam ser tarns voando ao longe, não vi nada. Estava azul e vazio. Nesse momento
cada tarnsman em Tharna deveria estar voando. Ainda assim não pude ver nada.

Outro gemido escapou da prisioneira dourada.

Distante, cerca de talvez quarenta pasangs ao longe, eu vi um conjunto de cordilheiras,


altas e íngremes, se elevando sobre um grande prado amarelado por talêndulas, uma
delicada flor de pétalas amarelas, frequentemente usadas nas guirlandas das donzelas
Goreanas. Dentro de seus próprios aposentos, desveladas mulheres Goreanas, com sua
família e seus amores, costumam prender talêndulas em seu cabelo. Uma coroa de
talêndulas era usualmente vestida por uma garota na festa de celebração de seu Livre
Companheirismo.

Talvez em dez minutos as cordilheiras já estariam abaixo de nós.

“Quarta-rédea!” eu gritei.

O grande pássaro pausou em seu voo, freando com suas asas, e então suavemente desceu
para uma alta saliência em um dos cumes, um lugar acessível apenas para alguém que
montasse um tarn.

Eu pulei das costas do monstro e corri para a Tatrix, para protege-la no caso do tarn tentar
se alimentar. Puxei as garras fechadas sobre seu corpo, gritando para o tarn, empurrando
suas pernas. O pássaro pareceu confuso. Eu não tinha gritado “Tabuk!?” essa coisa que
ele tinha capturado não era para ser devorada agora? Não era uma presa?

Empurrei o tarn para trás e para longe da garota, e a segurei em meus braços. A deitei
gentilmente sobre a pedra do penhasco, o mais longe possível da beirada. O abrigo
pedregoso no qual nos encontrávamos tinha talvez vinte pés de largura e vinte de
profundidade, do tamanho daqueles que os tarns escolhem para fazerem seus ninhos.

De pé entre a Tatrix e o carnívoro alado, eu gritei “Tabuk!” Ele começou a espreitar na


direção da garota, que se levantava sobre seus joelhos, suas costas pressionadas contra o
firme muro do penhasco. Ela gritou.

“Tabuk!” eu gritei novamente, segurando o grande bico em minhas mãos e o virando na


direção dos campos abertos abaixo.

110
Foragidos de Gor
O pássaro pareceu hesitar, e então, com um movimento quase que suave, ele pressionou
seu bico contra meu corpo. “Tabuk,” eu disse em tom baixo, uma vez mais virando seu
bico para os campos abertos.

Dando uma última olhada para Tatrix o pássaro virou e espreitou as bordas daquela
magnífica saliência, e com um simples bater de suas grandes asas, saltou no ar, sua
sombra levava uma mensagem de terror pra qualquer um que se encontrasse debaixo
dela.

Eu me virei para ficar de frente para a Tatrix.

“Está ferida?” eu perguntei.

Às vezes quando um tarn captura um tabuk, ele quebra a coluna do animal. Foi um risco
que eu tive de correr. Eu sabia que não tinha muita escolha. Com a Tatrix em mãos, eu
estaria em condições de barganhar com Tharna. Eu não pensei que poderia mudar
qualquer coisa em sua forma dura de governar, mas eu tinha esperança de usá-la para
conseguir a liberdade de Linna e Andreas, e talvez daqueles pobres miseráveis que
encontrei na arena. Isso com certeza seria um preço baixo pelo retorno da Tatrix dourada.

A Tatrix se esforçou pra ficar de pé.

Era um costume em Gor que uma prisioneira fêmea se ajoelhasse na presença de seu
captor, mas ela era, antes de tudo, a Tatrix, e eu não desejava força-la a tal ponto. Suas
mãos, ainda em suas luvas de ouro, tocaram sua máscara dourada, como se ela temesse
que o objeto estivesse fora do lugar. Só então suas mãos tentaram arrumar e aprumar
seus robes. Eu sorri. As vestes tinham sido rasgadas pelas garras, esfarrapadas pelos
ventos furiosos. Orgulhosamente ela as arrumou sobre seu corpo, se cobrindo da melhor
forma que pôde. Exceto pela máscara, metálica, fria, brilhosa como sempre, eu percebi
que a Tatrix poderia ser bonita.

“Não,” ela disse, orgulhosa, “eu estou intacta.”

Era a resposta que eu esperava, embora sem dúvidas seu corpo tivesse quase sido
quebrado, sua carne quase sido esmagada até os ossos.

“Você está dolorida,” eu disse, “mas principalmente, agora, você deve estar estarrecida e
com frio pela perda da circulação.” Eu a observava. “Mais tarde,” eu disse, “irá doer ainda
mais.”

A máscara sem expressão me encarava.

“Eu também,” eu disse, “já estive nas garras de um tarn.”


“Por que o tarn não te matou na arena?” ela perguntou.

111
Foragidos de Gor
“Esse tarn é meu,” eu disse, simplesmente. O que mais poderia dizer a ela? O fato dele
não ter me matado, conhecendo a natureza dos tarns, pareceria quase que inacreditável
para mim, assim como para ela. Se eu conhecesse mais sobre os tarns, eu teria adivinhado
que ele tinha algum tipo de afeição por mim.

A Tatrix olhou em volta, examinou o céu. “Quando ele voltará?” ela perguntou. Sua voz
saiu num sussurro. Eu sabia que se existisse algo que pudesse aterrorizar o coração da
Tatrix, isso seria o tarn.

“Em breve,” eu disse. “Vamos esperar que ele encontre algo para comer nos campos lá
em baixo.”

A Tatrix tremeu de leve.

“Se ele não encontrar um passatempo,” ela disse, “ele vai voltar com raiva e com fome.”

“Certamente,” eu concordei.

“Ele pode tentar se alimentar de nós -” ela disse.

“Talvez,” eu disse.

Finalmente ela proferiu as palavras, lentamente, cuidadosamente. “Se ele não encontrar
um passatempo,” ela perguntou, “você irá me dar de comida para o tarn?”

“Sim,” eu disse.

Com um grito de medo a Tatrix caiu sobre seus joelhos perante mim, suas mãos
estendidas, implorando. Lara, Tatrix de Tharna, estava aos meus pés, suplicante.

“A não ser que você se comporte,” eu adicionei.

Colericamente a Tatrix pulou de pé. “Você me enganou!” ela gritou. “Você me enganou
me fazendo assumir a postura de uma fêmea em cativeiro.”

Eu sorri.

Seus punhos enluvados me golpearam. Eu agarrei seus pulsos e a segurei rapidamente.


Pude notar que os olhos atrás da máscara eram azuis. Eu a soltei permitindo que ela se
virasse. Ela correu para o muro e ficou lá de pé, de costas para mim.

“Eu divirto você?” ela perguntou.

“Me desculpe,” eu disse.

“Eu sou sua prisioneira, não sou?” ela perguntou, insolentemente.

“Sim,” eu disse.

112
Foragidos de Gor
“O que você vai fazer comigo?” ela perguntou, de face para o paredão, indigna de olhar
para mim.

“Trocar você por uma sela e armas,” eu disse. Eu tentava alarmar a Tatrix, seria bom
para beneficiar minha posição de barganha.

Sua estrutura se abalou com medo, e fúria. Ela se virou para me encarar, seus punhos
enluvados fechados. “Nunca!” ela gritou.

“Vou sim, se for meu desejo,” eu disse.

A Tatrix, tremendo em fúria, me olhava. Eu mal podia conjecturar o ódio que fervia por
trás daquela máscara de ouro plácida. Finalmente ela falou. Suas palavras foram como
gotas de ácido.

“Você está brincando,” ela disse.

“Remova a máscara,” eu sugeri, “para que eu possa julgar melhor o quanto posso
conseguir por você na Rua das Marcas.”

“Não!” ela gritou, suas mãos se agarrando à máscara dourada.

“Eu acho que só essa máscara,” eu disse, “deve valer o preço de um bom escudo e uma
lança.”

A Tatrix gargalhou amargamente. “Isso poderia lhe comprar um tarn,” ela disse.

Eu poderia dizer que ela não estava levando a sério o que eu estava falando, que ela não
acreditava realmente que eu faria o que eu disse. Era importante para meus planos
convencê-la de que estava em perigo, que eu ousaria coloca-la em um camisk e um colar.

Ela riu, me testando, segurando a esfarrapada borda de seu robe na minha direção. “Você
vê,” ela disse, em dissimulado desespero, “eu não vou valer muito nestas pobres vestes.”

“Isso é verdade,” eu disse.

Ela gargalhou.

“Você valerá muito mais sem isso,” eu adicionei.

Ela pareceu se abalar por esta resposta tão prática. Eu poderia dizer que ela não mais
estava confidente de sua posição. Ela decidiu jogar sua carta trunfo então. Ela assumiu
uma postura desafiante contra mim, régia, altiva, insolente. Sua voz foi fria, cada palavra
como um cristal de gelo. “Você não ousaria,” ela disse, “me vender.”

“Porque não?” eu perguntei.

113
Foragidos de Gor
“Por que,” disse ela, se elevando sobre si mesma, aprumando seus esfarrapados robes
sobre ela, “Eu sou a Tatrix de Tharna.”

Eu peguei uma pequena pedra e a joguei para fora da saliência, assistindo enquanto ela
navegava em queda até os campos abaixo. Assisti as nuvens em correria através do céu
que escurecia, escutei o vento assoviando por entre os cumes solitários. E me virei para a
Tatrix.

“Isso aumentaria ainda mais o seu preço,” eu disse.

A Tatrix pareceu aturdida. Sua postura altiva a abandonou agora.

“Você realmente,” ela perguntou, sua voz vacilante, “me colocaria à venda?”

Eu a olhei sem responder.

Suas mãos tocaram a máscara. “Você tiraria isso de mim?”

“E seus robes também,” eu disse.

Ela embranqueceu.

“Você será simplesmente uma escrava entre outras escravas,” eu disse, “nem mais nem
menos.”

Tais palavras foram duras para ela. “Eu seria – exibida?”

“É claro,” eu disse.

“- sem roupa?”

“Talvez lhe permita vestir braceletes de escrava,” eu rebati, irritado.

Pareceu agora que ela fosse desmaiar.

“Apenas um tolo,” eu disse, “compraria uma mulher vestida.”

“Não – não,” ela disse.

“Esse é o costume,” eu disse, simplesmente.

Ela andou para trás, se afastando de mim, e agora ela tocava o obdurado granito da
parede do penhasco. Ela sacudia sua cabeça. Embora aquela plácida máscara não
mostrasse emoção alguma, eu pude ler o desespero no corpo da Tatrix.

“Você faria isso comigo?” ela perguntou, sua voz estremecida em um sussurro.

“Daqui a duas noites,” eu disse, “você estará nua, de pé sobre um bloco em Ar e será
vendida para quem der o maior lance.”

114
Foragidos de Gor
“Não, não, não,” ela choramingou, e seu corpo torturado se recusou a sustenta-la. Ela se
derreteu lamentavelmente contra o muro, chorando.

Isso já ia além do que eu tinha pretendido, e eu tive de resistir à vontade de confortá-la,


de dizer a ela que eu não a machucaria, que ela estava segura, mas, sem me esquecer de
Linna e Andreas, e dos outros pobres coitados nos Entretenimentos, eu contive minha
compaixão. Na verdade, pelo que eu sabia da cruel Tatrix, do que ela tinha feito, eu me
perguntava se, de fato, eu não deveria leva-la até Ar e me livrar dela na Rua das Marcas.
Certamente ela seria mais inofensiva nos Jardins dos Prazeres de um tarnsman do que no
trono de Tharna.

“Guerreiro,” ela disse, sua cabeça se levantando lastimosa, “você precisa reclamar uma
vingança tão terrível sobre mim?”

Eu sorri comigo mesmo. Aquilo soava agora como se a Tatrix procurasse um acordo.
“Você me prejudicou demais,” eu disse firmemente.

“Mas você é apenas um homem,” ela disse. “Apenas uma besta.”

“Eu, também, sou humano,” eu disse a ela.

“Devolva minha liberdade,” ela implorou.

“Você me pôs em um jugo,” eu disse. “Você me chicoteou. Me condenou à Arena. Você


me daria de comida para o tarn.” Eu gargalhei. “E você agora pede por sua liberdade!”

“Eu irei pagar mil vezes mais o meu valor nos blocos de Ar,” ela declarou.

“Mil vezes mais o seu valor em um bloco de Ar,” eu disse severamente, “não satisfaria
minha vingança – apenas você no bloco de Ar o faria.”

Ela gemeu.

Agora, eu pensei, era a hora. “E,” eu disse, “você não prejudicou apenas a mim, mas
também escravizou meus amigos.”

A Tatrix pôs-se de joelhos. “Eu irei libertá-los!” ela gritou.

“Você pode mudar as leis de Tharna?” eu demandei.

“Ai de mim,” ela gritou, “posso fazer mais do que isso, eu posso libertar os seus amigos!
Eu irei libertá-los! Minha liberdade pela deles!”

Eu aparentei pensar sobre a questão.

Ela pulou de pé. “Pense, Guerreiro,” ela gritou, “em sua honra.” Sua voz estava
triunfante. “Você satisfaria sua vingança pelo preço da escravidão de seus amigos?”

115
Foragidos de Gor
“Não,” eu gritei nervoso, mas na verdade me deleitando, “pois eu sou um guerreiro!”

A voz dela estava exultante. “Então, Guerreiro, você deve barganhar comigo!”

“Com você não!” eu gritei, tentando parecer consternado.

“Sim,” ela gargalhou, “minha liberdade pela deles!”

“Isso não é suficiente,” eu retruquei.

“Então o que mais?” ela gritou.

“Liberdade para todos que são usados nos Entretenimentos de Tharna!”

A Tatrix pareceu recuar.

“Todos,” eu gritei, “- ou o bloco em Ar!”

Sua cabeça se abaixou. “Muito bem, Guerreiro,” ela disse. “Eu libertarei a todos.”

“Posso confiar em você?” eu perguntei.

“Sim,” ela disse, sem me olhar diretamente, “você tem a palavra da Tatrix de Tharna.”

Eu me perguntava se podia acreditar nas palavras dela. E me dei conta de que tinha pouca
escolha.

“Meus amigos,” eu disse, “são Linna de Tharna e Andreas de Tor.”

A Tatrix olhou para mim. “Mas,” ela disse, incrédula, “eles se apaixonaram um pelo
outro.”

“No entanto,” eu disse, “liberte-os.”

“Ela é uma Mulher Rebaixada,” disse a Tatrix, “e ele membro de uma casta banida em
Tharna.”

“Liberte-os,” eu disse.

“Muito bem,” disse a Tatrix humildemente. “Eu libertarei.”

“E eu vou precisar de armas e uma sela,” eu disse.

“Você os terá,” ela disse.

Naquele momento a sombra do tarn cobriu a saliência e, com um grande bater de asas, o
monstro se juntou a nós. Em suas garras ele trouxe um grande pedaço de carne, crua e
sangrando, que tinha sido retirada de alguma presa, talvez um bosk a mais de vinte
pasangs de distância. Ele soltou o grande pedaço de carne na minha frente.

Eu não me movi.
116
Foragidos de Gor
Eu não tinha intenção de contestar o prêmio do grande pássaro. Mas o tarn não atacou a
carne. Eu imaginei que ele já devia ter se alimentado em algum lugar nas planícies abaixo.
Ao examinar seu bico eu confirmei meu palpite. E não tinha nenhum ninho na saliência,
nenhum tarn fêmea, nenhum filhote guinchando. O grande bico cutucou a carne contra
minha perna.

Aquilo era um presente.

Eu dei um tapa no pássaro afetuosamente. “Obrigado, Ubar dos Céus,” eu disse.

Eu me inclinei, e com mãos e dentes, arranquei um pedaço da carne. Vi a Tatrix


estremecer quando eu ataquei a carne crua, mas eu estava faminto, e as sutilezas das
mesas baixas, quaisquer que fossem, foram abandonadas. Ofereci um pedaço para a
Tatrix, mas seu corpo balançou como se ela estivesse doente, e eu não iria insistir.

Enquanto eu comia o presente do Tarn gigante, a Tatrix ficou de pé perto da beirada do


abrigo de pedras, observando os campos de talêndulas. Elas eram belas, e sua delicada
fragrância flutuava até aquela saliência acre. Ela segurava seus robes sobre ela e assistia
as flores, como um mar amarelo, rolando e ondulando com o vento. Eu achei que ela
parecia uma figura solitária, perdida quando falou.

“Talêndulas,” ela disse para si mesma.

Eu estava agachado ao lado da carne, minha boca mastigava, cheia de carne crua. “O que
uma mulher de Tharna sabe sobre Talêndulas?” eu a provoquei.

Ela se virou, sem responder.

Quando acabei de comer, ela disse, “Leve-me agora para o Pilar de Trocas.”

“Que isso?” eu perguntei.

“Um pilar nas bordas de Tharna,” ela disse, “onde Tharna e seus inimigos efetuam as
trocas de prisioneiros. Eu irei guiar você.” Ela adicionou, “você será recebido lá pelos
homens de Tharna, que estão à sua espera.”

“Me esperando?” eu perguntei.

“É claro,” ela disse, “você não se perguntou por que não te perseguiram?” ela gargalhou
pesarosamente. “Quem seria tolo o suficiente para ir embora com a Tatrix de Tharna
quando ela poderia ser resgatada pelo valor em ouro de uma dúzia de Ubars?”

Eu olhei para ela.

“Eu temia,” ela disse, seus olhos baixos, “que você fosse tal tolo.” Agora pareceu ter uma
emoção na sua voz que eu não pude entender.

117
Foragidos de Gor
“Não,” eu sorri, “vou voltar para Tharna com você!”

Eu ainda vestia a echarpe dourada em meu pescoço, na arena, aquela echarpe tinha
iniciado os jogos, e eu a tinha pego na areia para limpar a sujeira e o calor. Eu a retirei de
meu pescoço.

“Vire-se,” eu disse para a Tatrix, “e coloque suas mãos pra trás, em suas costas.”

Com a cabeça empinada, a Tatrix fez como lhe foi dito. Eu tirei as luvas de ouro de suas
mãos e as guardei em meu cinto. Então, com a echarpe, usando simples nós de captura
de Gor, eu amarrei seus pulsos juntos.

Eu joguei a Tatrix levemente nas costas do tarn e pulei ao lado dela. Então, segurando ela
com um braço, e fixando uma mão fundo nas penas do pescoço do tarn, eu chamei
“Primeira-Rédea!” e a besta saltou da saliência e começou a subir.

118
Foragidos de Gor
XVI

O Pilar de Trocas

Guiado pela Tatrix, em talvez não mais de trinta minutos, nós avistamos, brilhando ao
longe, o Pilar de Trocas. Se localizava a cerca de cem pasangs a noroeste da cidade, e era
uma coluna solitária de mármore sólido, talvez com quatrocentos pés de altura e cem pés
em diâmetro. Era acessível somente através de um tarn.

Não era um lugar ruim para a troca de prisioneiros, e oferecia uma situação quase que
ideal no intuito de evitar uma emboscada. O sólido pilar não permitiria a entrada de
homens que estivessem no chão, e tarns que se aproximassem seriam facilmente
avistados à milhas antes que chegassem perto.

Eu examinei a zona rural cuidadosamente. Parecia vazia. No pilar tinha três tarns, e seus
respectivos guerreiros também, e uma mulher, que vestia a máscara de prata de Tharna.
Quando passei sobre o pilar, um guerreiro removeu seu elmo, e sinalizou para mim para
que trouxesse meu tarn para baixo. Eu vi que era Thorn, Capitão de Tharna. Notei que
ele e seus companheiros estavam armados.

“Esse é o costume,” eu disse para a Tatrix, “de guerreiros levarem armas para o Pilar de
Trocas?”

“Não haverá traição,” disse a Tatrix.

Eu considerei virar o tarn e não correr o risco.

“Você pode acreditar em mim,” ela disse.

“Como posso saber se diz a verdade?” eu a desafiei.

“Por que eu sou a Tatrix de Tharna,” ela disse orgulhosa.

“Quarta-rédea!” eu gritei para o pássaro, para o fazer descer até o pilar. O pássaro
pareceu não entender. “Quarta-rédea!” eu repeti, mais severamente. Por alguma razão o

119
Foragidos de Gor
pássaro parecia se negar a pousar. “Quarta-rédea!” gritei, comandando o pássaro
severamente para que me obedecesse.

O grande gigante pousou no pilar de mármore, suas garras calçadas com aço rangendo
na pedra.

Eu não desmontei, e segurei a Tatrix mais firmemente.

O Tarn parecia nervoso. Tentei acalmar o pássaro. Falei com ele em tom baixo, batendo
bruscamente em seu pescoço.

A mulher na máscara de prata se aproximou. “Saudações à nossa Amada Tatrix!” ela


gritou. Era Dorna a Altiva.

“Não chegue mais perto,” eu ordenei.

Dorna parou, cerca de cinco jardas à frente de Thorn e dos dois guerreiros, que não
tinham ainda se movido.

A Tatrix respondeu à saudação de Dorna a Altiva apenas com um régio aceno de sua
cabeça.

“Tharna é toda sua, Guerreiro,” gritou Dorna a Altiva, “se você libertar a nobre Tatrix! A
cidade chora pelo seu retorno! Eu temo que não haverá mais alegria em Tharna até que
ela sente novamente em seu trono dourado!”

Eu gargalhei.

Dorna a Altiva endureceu. “Quais são os seus termos, Guerreiro?” ela demandou.

“Uma sela e armas,” eu respondi, “e a liberdade de Linna de Tharna, Andreas de Tor, e


de todos aqueles que lutaram esta tarde nos Entretenimentos de Tharna.”

Fez-se silêncio.

“Isso é tudo?” perguntou Dorna a Altiva, confusa.

“Sim,” eu disse.

Atrás dela, Thorn gargalhou.

Dorna lançou um olhar para a Tatrix. “Eu devo acrescentar,” ela disse, “o peso de cinco
tarns em ouro, uma sala de prata, elmos recheados com joias!”

“Você ama de verdade sua Tatrix,” eu disse.

“De fato, Guerreiro,” disse Dorna.

“E você é excessivamente generosa,” eu adicionei.


120
Foragidos de Gor
A Tatrix se debateu em meus braços.

“Menos que isso,” disse Dorna a Altiva, “seria um insulto à nossa Amada Tatrix.”

Eu estava satisfeito, pois embora eu tivesse pouco uso para tais riquezas nas Montanhas
de Sardar, Linna e Andreas, e os pobres coitados da arena, poderiam se aproveitar disso.

Lara, a Tatrix, se endireitou em meus braços. “Eu não acho esses termos satisfatórios,”
ela disse. “Dê a ele o que ele pede e mais, o peso de dez tarns em ouro, duas salas de
pratas e cem elmos recheados com joias.”

Dorna a Altiva se curvou em graciosa aquiescência. “De fato, Guerreiro,” disse ela, “por
nossa Tatrix nós daríamos até mesmo as pedras de nossas muralhas.”

“Meus termos são satisfatórios para você?” perguntou a Tatrix, bastante condescendente,
eu pensei.

“Sim,” eu disse, sentindo a afronta que tinha sido oferecida à Dorna a Altiva.

“Liberte-me,” eu disse.

“Muito bem,” eu disse.

Eu deslizei das costas do tarn, a Tatrix em meus braços. A coloquei de pé sob o vento, no
topo daquele pilar nas bordas de Tharna, e me inclinei para remover a echarpe dourada
que a restringia.

Tão cedo seus pulsos foram soltos e ela se tornou novamente, em cada parte de si, a
majestosa Tatrix de Tharna.

Eu me perguntava se ela poderia ser aquela garota que tinha passado por tal aventura
angustiante, cujas vestes foram despedaçadas, cujo corpo ainda deveria sentir a miserável
dor de ter permanecido nas garras do meu tarn.

Imperiosamente, como se eu não fosse digno de falar com ela, ela gesticulou apontando
para suas luvas de ouro que estavam agora em meu cinto. Eu as devolvi para ela. Ela as
vestiu, lentamente deliberadamente, me encarando enquanto o fazia.

Algo em seu semblante me preocupou.

Ela virou e caminhou majestosamente até Dorna e os guerreiros.

Quando ela estava ao lado deles, ela se virou e com um repentino girar daqueles robes
dourados ela apontou um dedo imperial para mim. “Prendam-no,” ela disse.

Thorn e os guerreiros avançaram, e eu me vi cercado por suas armas.

“Traidora!” eu gritei.
121
Foragidos de Gor
A voz da Tatrix agora estava alegre. “Tolo!” ela gargalhou, “você ainda não aprendeu
que ninguém faz pactos com um animal, que ninguém barganha com uma besta?”

“Você me deu sua palavra!” eu gritei.

A Tatrix ajeitou seu robe. “Você é apenas um homem,” ela disse.

“Vamos mata-lo,” disse Thorn.

“Não,” disse a Tatrix, imperiosamente, “isso não seria o bastante.” A máscara brilhou
sobre mim, refletindo a luz do sol poente. Parecia agora, mais do que nunca, possuir uma
ferocidade, parecia medonha, como se estivesse se fundindo. “Algemem-no,” ela disse,
“e o envie para as minas de Tharna.”

Atrás de mim o tarn subitamente gritou em fúria e suas assas bateram no ar.

Thorn e os guerreiros se assustaram, e naquele instante eu pulei por entre suas armas,
agarrei Thorn e um guerreiro, puxei os dois os fazendo colidir um com o outro, e joguei
os dois, sob o som de suas armas a se chocar, ao chão de mármore do pilar. A Tatrix e
Dorna a Altiva gritaram.

O outro guerreiro tentou me trespassar com sua espada mas eu dei um passo para o lado
fugindo de seu golpe e agarrei seu braço da espada. Eu torci seu braço e empurrei para
cima, sobre meu braço esquerdo, e então puxei para baixo fazendo uma chave de braço,
seu cotovelo subitamente estalou. Ele caiu ao chão choramingando.

Thorn tinha se levantado e investiu sobre mim, pelas minhas costas, e o outro guerreiro
também, pouco depois dele. Eu parti para o ataque corpo a corpo, agarrando eles,
ferozmente. Então, lentamente, enquanto eles me amaldiçoavam, impotentes, eu os
levantei, polegada por polegada sobre meus ombros, e os joguei de repente sobre o
mármore aos meus pés. Naquele momento, ambas, a Tatrix e Dorna a Altiva fincaram
instrumentos pontiagudos, grampos de algum tipo, nas minhas costas e em meu braço.

Eu ri de quão absurdo era aquilo que elas tentaram fazer, mas então, com minha visão a
escurecer, o pilar a girar, eu caí a seus pés. Meus músculos não mais obedeciam à minha
vontade.

“Algemem-no,” disse a Tatrix.

Enquanto o mundo lentamente girava abaixo de mim, eu senti minhas pernas e braços,
mancos, fracos como a névoa, se juntarem bruscamente. Ouvi o ruído de uma corrente e
senti meus membros sendo apertados pelas algemas.

A gargalhada alegre da Tatrix ecoava em meus ouvidos.

Ouvi Dorna a Altiva dizer, “Mate o tarn.”


122
Foragidos de Gor
“Ele se foi,” disse o guerreiro que estava são.

Lentamente, ainda que a força não tenha retornado ao meu corpo, minha visão começou
a clarear, primeiro na parte central, e então gradualmente nas bordas, até que eu pude
ver novamente o pilar, o céu ao redor e meus inimigos.

Ao longe eu vi um minúsculo ponto voando, que deveria ser o tarn. Quando ele me viu
cair ele aparentemente levantou voo. Agora, eu pensei, ele estaria livre, escapando
finalmente para algum rude habitat onde ele poderia, sem selas e arreios, sem a trela de
prata, reinar como o Ubar dos Céus que ele era. Sua partida me entristeceu, mas eu estava
contente que ele tinha conseguido escapar. Melhor que morrer sob a lança de um dos
guerreiros.

Thorn agarrou as algemas em meus pulsos e me arrastou através do topo do pilar para
um dos três tarns que aguardavam. Eu estava indefeso. Minhas pernas e braços não
poderiam ser menos inúteis se cada nervo delas tivesse sido cortado com uma faca.

Fui acorrentado a um anel na pata de um dos tarns.

A Tatrix tinha aparentemente perdido o interesse em mim, pois ela se virou para Dorna
a Altiva e Thorn, Capitão de Tharna.

O guerreiro cujo braço estava quebrado se ajoelhou no piso de mármore do pilar, se


inclinou, balançando pra frente e pra trás, seu braço injuriado pressionado contra seu
corpo. Seus companheiros estavam de pé próximos de mim, entre os tarns, talvez para
me vigiar, talvez para segurar e acalmar os gigantes excitados.

Arrogantemente a Tatrix se voltou para Dorna e Thorn. “Por que,” ela os perguntou, “tem
tão poucos de meus soldados aqui?”

“Nós somos suficientes,” disse Thorn.

A Tatrix olhou para as planícies, na direção da cidade. “Neste momento,” ela disse, “filas
de cidadãos cheios de alegria devem estar comemorando na cidade.”

Nem Dorna a Altiva, nem Thorn, Capitão de Tharna, a responderam.

A Tatrix andou através do pilar, régia em seus robes esfarrapados, e parou perto de mim.
Ela apontou para as planícies, na direção de Tharna. “Guerreiro,” ela disse, “se você
permanecer tempo suficiente neste pilar você irá ver procissões vindo para me dar as
boas-vindas em meu retorno a Tharna.”

A voz de Dorna a Altiva ecoou sobre o pilar. “Eu acho que não, Amada Tatrix,” ela disse.

A Tatrix se virou, confusa. “Por que não?” ela perguntou.

123
Foragidos de Gor
“Porque,” disse Dorna a Altiva, e eu pude predizer que por trás daquela máscara de
prata, ela sorria, “você não voltará para Tharna.”

A Tatrix ficou lá de pé, como se estivesse atordoada, sem entender.

O guerreiro machucado agora tinha subido na sela do tarn, o que vestia o anel no
tornozelo, onde eu estava acorrentado impotente. Ele puxou a primeira-rédea e o monstro
alçou voo. Dolorosamente eu fui puxado pra dentro do ar e, cruelmente pendurado pelas
algemas em meus pulsos, eu vi a coluna branca se afastando abaixo de mim, assim como
as figuras sobre ela, dois guerreiros, uma mulher em uma máscara prateada, e a dourada
Tatrix de Tharna.

124
Foragidos de Gor
XVII

As Minas de Tharna

A sala era longa, baixa, estreita, quatro pés de altura por quatro pés de largura, e cem pés
de comprimento. Pequenas e sujas lamparinas tharlarion queimavam em cada lado.
Quantas salas como essa haviam debaixo do solo de Tharna, em todas as suas minas, eu
não sabia. A longa fila de escravos, acorrentados juntos, parados e agachados, ia até o fim
da sala. Quando a fila ficou cheia com seus amaldiçoados ocupantes, uma porta de ferro,
com um painel deslizante de ferro, se fechou. Pude ouvir quatro linguetas sendo
empurradas trancando a porta.

Era um lugar frio e úmido. Tinha poças de água aqui e ali, sobre o chão; as paredes eram
úmidas também; em certos locais água escorria do teto. Era inadequadamente ventilada
por um conjunto de pequenas aberturas circulares, com cerca de uma polegada de
diâmetro, abertas na sala a cada vinte pés. Uma abertura larga, um buraco circular com
dois pés de diâmetro, era visível no centro da longa sala.

Andreas de Tor, que estava algemado ao meu lado, apontou. “Aquele buraco,” ele disse,
“inunda a sala.”

Concordei com a cabeça e me recostei contra a úmida e sólida pedra que formava as
laterais da câmara. Eu me perguntava quantas vezes, sob o solo de Tharna, tal câmara
tinha sido inundada, quantos coitados acorrentados tinham se afogado em tais
armadilhas, que se assemelhavam à uma rede de esgoto. Eu tinha ouvido que apenas a
um mês atrás, em uma mina a não mais de quinhentas jardas desta aqui, houve um
problema gerado por um único prisioneiro. “Afoguem todos eles,” tinha sido a decisão
do Administrador das Minas. Eu não me surpreendia então que os prisioneiros tinham
horror só de pensar em qualquer tipo de resistência. Eles preferiam estrangular um de
seus companheiros que pensasse em se rebelar, do que arriscar ter a câmara alagada. De
fato, a mina por inteiro, em caso de emergência, poderia ser inundada. Uma vez, como
disseram, fizeram isso, para conter uma rebelião. Só para drenar a água para fora e limpar
os túneis cheios de corpos levou semanas.

125
Foragidos de Gor
Andreas disse para mim, “Para aqueles que não se afeiçoam a vida, este lugar tem muitas
conveniências.”

“Com certeza,” eu concordei.

Ele pôs uma cebola e um pedaço de pão em minhas mãos. “Fique com isso,” ele disse.

“Obrigado,” eu disse. Peguei a comida e comecei a mastigá-la.

“Você vai aprender,” ele disse, “a se misturar com o resto de nós.”

Antes de sermos levados para a cela, do lado de fora, em uma ampla e retangular câmara,
dois dos atendentes das minas tinham virado um tonel com pães e vegetais dentro da
manjedoura fixada na parede, e os escravos correram na direção dela, como animais,
gritando, xingando, empurrando, acotovelando, tentando pôr a mão no cocho antes que
a comida tivesse se acabado. Revoltado, eu não me juntei à eles em sua disputa miserável,
embora tivesse sido arrastado até a borda da calha devido às correntes que vestia. E eu
sabia, como Andreas tinha dito, que eu aprenderia como chegar até o cocho, pois eu não
queria morrer, e eu não podia continuar a viver da caridade dele.

Eu sorri, me perguntando porque que eu, e meus companheiros prisioneiros, parecíamos


tão determinados a viver. Por que nós escolhemos viver? Talvez essa questão fosse tola,
mas não parecia ser quando se está dentro das minas de Tharna.

“Devemos achar um jeito de escapar,” eu disse para Andreas.

“Quieto, seu tolo!” sibilou uma baixa e aterrorizada voz, talvez a uns doze pés de
distância.

Era Ost de Tharna, aquele que, assim como Andreas e eu, tinha sido também condenado
às minas.

Ele me odiava, me culpava de alguma forma pelo fato de ele se encontrar nesta terrível
situação. Hoje, mais de uma vez, foi ele quem surrupiou o minério no qual eu, com mãos
e joelhos ao chão, tinha coletado nos estreitos túneis da mina. E duas vezes mais ele
roubou a pilha de minério que eu tinha empilhado, empurrando para dentro do saco de
tecido que nós escravos carregávamos pendurado em nosso pescoço, nas minas. Eu fui
açoitado pelo Escravo do Chicote por não ter contribuído com minha parte na quota do
dia de minério, que era requerida dos escravos que estavam na mesma corrente que eu.

Se a cota não fosse alcançada, os escravos não teriam comida por aquela noite. Se a cota
não fosse alcançada em três dias seguidos, os escravos seriam chicoteados dentro daquela
cela longa, a porta seria trancada, e a cela inundada. Muitos dos escravos me olhavam
com desaprovação. Talvez pelo fato da cota ter sido aumentada no dia em que fui

126
Foragidos de Gor
adicionado à corrente deles. Eu, por mim mesmo, achava que aquilo era mais do que uma
coincidência.

“Eu vou te denunciar,” chiou Ost, “por tramar uma fuga.”

Sob a meia luz das pequenas lamparinas tharlarion colocadas em cada canto da sala, eu
vi a pesada figura agachada ao lado de Ost enrolar a corrente de seu pulso
silenciosamente em volta da garganta daquela criatura. O círculo de corrente apertou, e
Ost arranhava tentando agarrar a corrente, impotente, seus olhos esbugalhados. “Você
não irá denunciar ninguém,” disse a voz, que agora eu reconhecia como a voz daquele
homem que mais parecia um touro, Kron de Tharna, da Casta dos Ferreiros, ele quem eu
tinha poupado a vida na arena, durante a Batalha dos Bois. A corrente apertou mais
ainda, Ost tremia como um macaco em convulsão.

“Não mate ele,” eu disse para Kron.

“Como quiser, Guerreiro,” disse Kron, e soltou o estremecido Ost, bruscamente


removendo sua corrente da garganta da criatura. Ost caiu sobre o chão úmido, suas mãos
em sua garganta, arfando tentando respirar.

“Parece que você tem um amigo,” disse Andreas de Tor.

Com um chacoalhar de correntes e rolando sobre seus grandes ombros, Kron se estendeu
no chão tão bem quanto pode naquele aposento apertado. Em um minuto sua respiração
pesada me avisou que ele tinha adormecido.

“Onde está Linna?” eu perguntei a Andreas.

Pela primeira vez sua voz ficou triste. “Nas Grandes Fazendas,” ele disse. “Eu falhei com
ela.”

“Todos nós falhamos,” eu disse.

Não havia muita conversa na cela, pois os homens talvez tivessem pouco a dizer, e seus
corpos estavam cansados do cruel trabalho daquele dia. Eu sentava com minhas costas
recostadas na parede úmida, ouvindo os sons que emitiam enquanto dormiam.

Eu estava longe das Montanhas de Sardar, longe dos Sacerdotes-Reis de Gor. Eu tinha
falhado com minha cidade, com minha amada Talena, meu pai, meus amigos. Não
haveria pedra sobre pedra. O enigma dos Sacerdotes-Reis, em sua crueldade, seu desejo
incompreensível, não seria solucionado. Seus segredos continuariam guardados, e eu
morreria, cedo ou tarde, chicoteado e faminto, nos canis das minas de Tharna.

Tharna tinha cerca de cem ou mais minas, cada uma mantida por seus próprios escravos
em correntes. Estas minas eram redes de túneis tortuosos que se ramificam, polegada por
polegada, irregularmente através dos ricos minérios que eram a base da riqueza da
127
Foragidos de Gor
cidade. A maior parte destes veios de túneis não permitem que um homem fique de pé
dentro deles. Muitos são inadequadamente apoiados. Quando o escravo trabalha dentro
do túnel ele deve rastejar com suas mãos e joelhos, que sangram no início, mas
gradualmente desenvolve-se calos de tecido grosso e escabroso. Em volta de seu pescoço
o escravo pendura um saco de tecido, dentro do qual os pedaços de minério são levados
para as balanças. O minério em si é arrancado das paredes das minas por uma pequena
picareta. A luz é suprida por pequenas lâmpadas, nada mais que pequeninas tigelas com
óleo de tharlarion e pavios de cordas.

O dia de trabalho tem quinze horas Goreanas (Ahns), o qual, dada a leve diferença no
período de rotação do planeta, seria aproximadamente dezoito horas da Terra. Os
escravos nunca são levados à superfície, e uma vez jogados dentro da escuridão das
minas, nunca mais verão o sol novamente. O único consolo em sua existência vem uma
vez ao ano, com o aniversário da Tatrix, onde podem desfrutar de um pequeno bolo, feito
com mel e sementes de gergelim, e uma pequena tigela da pobre Kal-da. Um indivíduo
da minha corrente, nada mais que um esqueleto desdentado, ostentou que já tinha bebido
Kal-da três vezes nas minas. A maioria não tem tanta sorte. A expectativa de vida de um
escravo nas minas, dado o trabalho e a comida, se ele não morrer antes pelo chicote dos
feitores, é geralmente de seis meses a um ano.

Eu me peguei olhando para o largo buraco circular no teto da cela apertada.

****

Pela manhã, embora eu soubesse que tinha amanhecido somente pelo praguejar dos
Escravos do Chicote, o estalido de suas chibatas, os gritos dos escravos e o chacoalhar das
correntes, eu e meus companheiros prisioneiros nos arrastávamos para fora de nossa cela,
emergindo novamente na ampla sala retangular que dava diretamente para nossa cela.

A manjedoura já estava cheia.

Os escravos se esgueiravam para a calha, mas eram chicoteados de volta. A palavra não
tinha sido dita, a que lhes permitiria cair sobre a calha.

O Escravo do Chicote, outro escravo de Tharna, o responsável pela corrente, se satisfazia


com seu trabalho. Embora ele nunca visse a luz do sol, ainda assim, era ele quem segurava
a chibata, ele que era o Ubar neste calabouço macabro.

Os escravos estavam tensos, seus olhos fixos na calha. O chicote foi levantado. Quando
ele caísse, seria o sinal de que eles deveriam correr para a calha.

128
Foragidos de Gor
Havia prazer nos olhos do Escravo do Chicote como se ele gostasse do angustiante
momento de suspense que seu chicote levantado infligia nos pobres escravos
esfomeados.

O chicote estalou. “Comam!” ele gritou.

Os escravos avançaram.

“Não!” eu gritei, minha voz os fez parar.

Alguns deles tropeçaram e caíram, se estatelando com um chacoalhar de correntes ao


chão, arrastando os outros pra baixo. Mas a maioria tratou de se levantar, recuperando o
equilíbrio, e, quase como se fossem juntos um único homem, aquele amontoado de
escravos miseráveis viraram seus olhos estremecidos na minha direção.

“Comam!” gritou o Escravo do Chicote, estalando o chicote novamente.

“Não,” eu disse.

O amontoado de homens hesitou.

Ost tentou puxa-los na direção da calha, mas ele estava acorrentado a Kron, que recusava
a se mover. Era como se Ost estivesse acorrentado a uma árvore.

O Escravo do Chicote se aproximou de mim. Sete vezes a chibata me golpeou, e eu não


recuei.

Então eu disse, “Não me bata novamente.”

Ele se afastou, o braço do chicote abaixou. Ele tinha me entendido, ele sabia que sua vida
estava em perigo. Que consolação ele teria se antes da mina ser completamente inundada
ele tivesse perecido pela minha corrente em volta de seu pescoço?

Eu virei para os homens. “Vocês não são animais,” eu disse. “Vocês são homens.”

Em seguida, apontando para frente, eu os conduzi até o cocho.

“Ost,” eu disse, “irá distribuir a comida.”

Ost meteu as mãos dentro do cocho, e abarrotou sua boca com um punhado de pão.

A corrente no pulso de Kron acertou ele entre a bochecha e orelha, e o pão foi lançado
para fora de sua boca.

“Distribua a comida,” disse Kron.

“Nós escolhemos você,” disse Andreas de Tor, “porque você é conhecido por sua
honestidade.”

129
Foragidos de Gor
E é incrível dizer, que aqueles miseráveis acorrentados caíram na gargalhada.

Sentindo ainda dor, enquanto o Escravo do Chicote ficou de pé lá assistindo a tudo,


irritado com seu medo, Ost distribuiu a pobre comida que estava dentro do cocho.

O último pedaço de pão, eu parti em dois, pegando metade e dando a outra metade para
Ost. “Coma,” eu disse.

Em fúria, seus olhos correndo de um lado para o outro, como os de um urt, ele mordeu o
pão e engoliu. “A câmara vai ser inundada por isso,” ele disse.

Andreas de Tor disse, “Eu sou um, que ficaria honrado em morrer na companhia de Ost.”

E novamente os homens gargalharam, e eu vi que até mesmo Ost sorriu.

O Escravo do Chicote assistia enquanto nós nos enfileirávamos na longa rampa que dava
para os túneis, seu braço do chicote estava abaixado. Confuso, ele nos assistia, pois um
dos homens, da Casta dos Camponeses, tinha começado a cantarolar uma canção de
arado, e um por um, os outros se juntaram à ele.

A quota foi facilmente alcançada naquele dia, e no dia seguinte.

130
Foragidos de Gor
XVIII

Nós Somos da Mesma Corrente

Ocasionalmente algumas notícias se infiltravam lá em baixo nas minas, trazidas pelos


escravos que enchiam os coxos. Esses escravos eram sortudos pois eles tinham acesso à
via central. Cada uma das centenas de minas de Tharna, em um nível ou outro, se abria
para esta via. Ela era diferente das outras vias de minério que eram muito menores e
individuais para cada mina. As vias de minério eram como estreitos afluentes que
afundavam na pedra e seus pisos mal podiam acomodar o saco de minério de um escravo.

É através da via central que as minas de Tharna são abastecidas. Por tal via não desce
apenas comida, mas também quando necessário, lona, ferramentas e correntes. Água
potável, é claro, era suprida por poços naturais em cada mina. Eu mesmo, e meus
companheiros escravos, descemos pela via central. Apenas escravos mortos sobem por
ela.

Começando pelos escravos que trabalhavam nas polias que controlavam a plataforma de
suprimentos na via central, as notícias se espalhavam, de uma mina para outra, até que
chegasse na nossa mina, que era a mais profunda da via.

Tinha uma nova Tatrix em Tharna.

“Quem é a nova Tatrix?” eu perguntei.

“Dorna a Altiva,” disse o escravo, que derramava cebolas, nabos, rabanetes, batatas e pão
dentro do cocho de alimentação.

“O que aconteceu com Lara?” eu perguntei.

Ele gargalhou. “Você é um ignorante!” ele exclamou.

“Notícias não viajam tão rápido dentro das minas,” eu disse.

“Ela foi levada embora,” ele disse.


131
Foragidos de Gor
“O que?” eu gritei.

“Sim,” disse ele, “por um tarnsman, que se rebelou.”

“Qual o nome dele?” eu perguntei.

“Tarl,” disse ele, e sua voz baixou ao tom de um sussurro, “- de Ko-ro-ba.”

Eu estava estupefato.

“Ele é um foragido,” disse o homem, “que sobreviveu aos Entretenimentos de Tharna.”

“Eu sei,” eu disse.

“Tinha um tarn, que vestia uma coxeadura de prata, que teria de matá-lo, mas ele libertou
o tarn, pulou nas costas dele e caiu fora.” O escravo colocou no chão o tonel de vegetais
e pães. Seus olhos ficaram úmidos de alegria e ele deu um tapa na própria coxa. “Ele
voltou em tempo suficiente para atacar a própria Tatrix com seu tarn,” ele disse. “O tarn
a carregou como se fosse um tabuk!” Sua gargalhada, que logo se espalhou para os outros
escravos na sala, aqueles que estavam acorrentados a mim, foi estrondosa, e eu entendi
melhor do que tinha entendido antes, a afeição que tinham pela Tatrix de Tharna lá
naquelas minas.

E eu fui o único que não riu.

“E o Pilar das Trocas?” eu perguntei. “A Tatrix não foi trazida até o Pillar, e libertada?”

“Todos pensaram que ela seria sim,” disse o escravo, “mas o tarnsman aparentemente
preferiu ela que as riquezas de Tharna.”

“Que homem!” gritou um dos escravos.

“Talvez ela fosse muito bonita,” disse outro.

“Ela não foi trocada?” eu perguntei ao escravo com o tonel de comida.

“Não,” ele disse. “Dois dos mais altos em Tharna, Dorna a Altiva, e Thorn, um Capitão,
foram para o Pilar das Trocas, mas a Tatrix nunca foi devolvida. Iniciaram uma busca, os
penhascos e campos foram vasculhados sem sucesso. Apenas seus robes esfarrapados e
a máscara dourada foram encontrados, por Dorna a Altiva e Thorn, Capitão de Tharna.”
O escravo sentou sobre o tonel. “Agora,” disse ele, “Dorna veste a máscara.”

“Qual,” eu perguntei, “você acha que foi o destino de Lara, que era a Tatrix?”

O escravo riu alto, e assim, também, riram os outros.

“Bem,” disse ele, “nós sabemos que ela não mais vestia seus robes dourados.”

“Sem dúvida,” disse um dos escravos, “algum traje mais adequado os substituiu.”
132
Foragidos de Gor
O escravo gargalhou. “Sim,” ele berrou, batendo em sua coxa. “Sedas do Prazer!” Ele se
remexia sobre o tonel. “Você pode imaginar?” ele gargalhava, “Lara, a Tatrix de Tharna,
em uma seda do prazer?!”

Os escravos acorrentados gargalhavam, todos exceto eu, e Andreas de Tor, que me


observava curiosamente. Eu sorri para ele, e dei de ombros. Eu não tinha a resposta para
esta questão.

****

Pouco a pouco, eu tentava restaurar a auto estima de meus companheiros escravos.


Começou de forma simples lá no coxo de alimentação. Então eu comecei a encorajá-los a
falar uns com os outros, a chamar uns aos outros pelos seus nomes, e suas cidades, e
embora tivesse homens de diferentes cidades aqui, eles compartilhavam a mesma
corrente e coxo, e eles aceitaram uns aos outros.

Quando um homem ficava doente, outros cuidavam de encher seu saco de minério.
Quando um homem apanhava, outros passavam água de mão em mão para banhar suas
feridas, para que pudesse beber quando a corrente não o permitisse chegar até a água. E
com o tempo, cada um de nós conhecia os outros que compartilhavam a mesma corrente.
Não éramos mais escuras formas anônimas uns para os outros, se empurrando sobre a
lama das minas de Tharna. Com o tempo, apenas Ost permaneceu intimidado por esta
mudança, ele continuamente temia o alagamento da câmara.

Os homens de minha corrente trabalhavam bem, e a quota era atingida dia após dia, e
quando era aumentada, nós a alcançávamos novamente. Às vezes os homens, até mesmo
cantarolavam enquanto trabalhavam, o som alto ressoava nos túneis da mina. Os
Escravos do Chicote ficaram indecisos, e começaram a nos temer.

Notícias começaram a se espalhar a partir do setor de distribuição de comida, através dos


escravos que carregavam os tonéis com alimentos, de mina para mina. Eles comentavam
sobre as estranhas e novas coisas que aconteciam na mina mais funda da via central, como
os homens se ajudavam uns aos outros, e como eles encontravam tempo e vontade para
relembrar uma cantiga.

Conforme o tempo passou eu descobri através dos escravos responsáveis pela comida,
que esta revolução, já que não tinha sido anunciada e era silenciosa como a pata de um
larl, tinha começado a se espalhar de mina para mina. Em breve, eu notei que os escravos
da comida não falavam mais, e imaginei que eles tivessem sido advertidos para ficarem
em silêncio. Ainda, olhando em suas faces, eu soube que a epidemia de auto estima e
nobreza inflamava nas minas abaixo de Tharna. Aqui, no subterrâneo, nas minas, a casa
daqueles que eram os mais inferiores e mais degradantes de Tharna, homens começaram
a olhar uns para os outros, e para eles mesmos, com satisfação.
133
Foragidos de Gor
Eu decidi que era a hora.

Esta noite, depois que eles nos tocaram para dentro das longas celas, e os ferrolhos se
fecharam sobre as portas, eu falei para os homens.

“Quem dentre vocês,” eu perguntei, “gostaria de ser livre?”

“Eu,” disse Andreas de Tor.

“E eu,” rugiu Kron de Tharna.

“E eu!” gritaram outras vozes.

Apenas Ost hesitou. “Falar assim é insubordinação,” ele choramingou.

“Eu tenho um plano,” eu disse, “mas irá requerer grande coragem, e todos podemos
morrer.”

“Lidere-nos, Guerreiro,” disse Andreas.

“Primeiro,” eu disse, “teremos de inundar a câmara.”

Ost guinchou em terror, e o grande punho de Kron se fechou sobre sua traqueia, o
silenciando. Ost se debateu, lutando na escuridão, impotente. “Quieto, Serpente,” disse
Kron, o homem que parecia um touro. Ele soltou Ost, e o conspirador se arrastou até onde
sua corrente permitiu e se comprimiu contra a parede, tremendo de medo.

O grito agudo de Ost me disse o que eu procurava saber. Eu agora sabia como
poderíamos fazer para a câmara ser inundada.

“Amanhã à noite,” eu disse simplesmente, olhando na direção de Ost, “nós iremos atrás
de nossa liberdade.”

****

No dia seguinte, como eu esperava, aconteceu um acidente com Ost. Ele aparentemente
machucou seu pé com sua picareta, e ele suplicou tão honestamente para o Escravo do
Chicote que o indivíduo o removeu de sua corrente e, colocando um colar em seu
pescoço, o guiou a mancar para longe. Esta foi uma solicitação não usual da parte do
Escravo do Chicote, mas era óbvio para ele assim como era para o resto de nós, que Ost
desejava falar com ele a sós, para comunicar uma informação de extrema importância.

“Você devia ter matado ele,” disse Kron de Tharna.

“Não,” eu disse.

O homem-touro de Tharna olhou para mim sem entender e deu de ombros.

134
Foragidos de Gor
Naquela noite os escravos que traziam o tonel de comida vieram acompanhados por uma
dúzia de guerreiros.

Naquela noite Ost não voltou para sua corrente. “Seu pé precisa de cuidados,” disse o
Escravo do Chicote, apontando na direção da longa cela.

Quando a porta de ferro foi fechada e os ferrolhos presos no lugar, eu ouvi o Escravo do
Chicote gargalhar.

Os homens ficaram desencorajados.

“Esta noite,” disse Andreas de Tor, “você sabe que a câmara será inundada.”

“Sim,” eu disse, e ele me olhou com descrença.

Eu chamei o homem que estava no final da câmara. “Me passe a lamparina,” eu disse.

Eu peguei a lamparina e andei, alguns dos meus companheiros prisioneiros


inevitavelmente me acompanharam, e segurei o objeto sob o buraco, que tinha cerca de
dois pés de diâmetro, por onde a água iria descer violentamente. Tinha uma grade de
ferro fixada na pedra, a cerca de oito pés acima do buraco. Vindo de algum lugar nós
ouvimos o som de uma válvula em movimento.

“Me levantem!” eu gritei, e sobre os ombros de Andreas de do escravo que estava


algemado ao meu lado, eu fui içado para dentro do buraco. As laterais eram lisas e
pegajosas. Minhas mãos escorregavam nelas.

Acorrentado como eu estava, eu não conseguiria alcançar a grade.

Eu praguejei.

Então pareceu que Andreas e o escravo cresceram abaixo de meus pés. Outros escravos
se ajoelharam abaixo deles, dando suas costas para que eles subissem em cima e se
elevassem. De pé, lado a lado eles me levantaram mais alto dentro do veio.

Meus pulsos algemados alcançaram o gradeado.

“Peguei,” eu gritei. “Me puxem pra baixo!”

Então Andreas e o escravo pularam para fora do buraco e eu senti as correntes que
prendiam meus pulsos e tornozelos aos deles rasgando meus membros. “Puxem!” eu
gritei, e os cem escravos na longa sala começaram a puxar as correntes. Minhas mãos
sangravam na grade, o sangue respingava na minha face virada para cima, mas eu não
soltaria as barras. “Puxem!” eu gritava.

Um fio de água vindo de cima escorria na lateral das pedras.

A válvula estava sendo aberta.


135
Foragidos de Gor
“Puxem!” eu gritei novamente.

De repente o gradeado arrebentou e eu e a grade caímos com um tinido de correntes e


metal sobre o chão.

Agora tinha uma corrente de água fluindo pelo buraco.

“Primeiro da corrente!” eu chamei.

Sob o chacoalhar de correntes um pequeno homem com um tufo de cabelo cor de palha
sobre sua testa se esgueirou entre os outros e apareceu na minha frente.

“Você deve subir,” eu disse.

“Como?” ele perguntou, aturdido.

“Pressione seus pés contra as paredes do buraco,” eu disse. “Use seus pés!”

“Não consigo,” ele disse.

“Você consegue,” eu disse.

Eu e seus companheiros o pegamos e todos juntos o jogamos através da abertura.

Nós ouvíamos ele dentro do veio, grunhindo, arfando, os sons de suas correntes contra
as pedras enquanto ele começava a tortuosa escalada, polegada por polegada.

“Estou escorregando!” ele gritou, e deslizou pelo buraco caindo no chão da cela
choramingando.

“De novo!” eu disse.

“Não consigo,” ele gritou histericamente.

Eu o agarrei pelos ombros e o sacudi. “Você é de Tharna,” eu disse. “Mostre-nos o que


um homem de Tharna pode fazer!”

Aquilo era um desafio lançado para os poucos homens de Tharna.

Nós o levantamos novamente para dentro do veio.

Posicionei o segundo na corrente abaixo dele, e o terceiro abaixo do segundo.

A água escorregava através da abertura agora, em um fluxo da grossura do meu punho.


No chão do túnel ela já batia em nossos tornozelos.

Então o primeiro homem na corrente conseguiu suportar seu peso, e o segundo, ao tilintar
de correntes, começou a escalar o túnel vertical, suportado pelo terceiro, que agora estava
de pé sobre as costas do quarto homem, e assim por diante.

136
Foragidos de Gor
Uma hora o segundo homem escorregou, arrastando o primeiro para baixo com ele, e
fazendo com que o terceiro perdesse a firmeza, mas agora tinha uma sólida corrente de
homens dentro do túnel, e o quarto e quinto homem os seguraram. O primeiro começou
sua escalada tortuosa uma vez mais, seguido pelo segundo e terceiro.

A água estava talvez a dois pés de altura dentro da cela, me empurrando para cima contra
o teto baixo, quando eu segui Andreas para dentro do túnel. Kron foi o quarto homem,
ele estava atrás de mim.

Andreas, Kron e eu estávamos no túnel, mas o que seria dos pobres miseráveis na
corrente atrás de nós?

Olhei para cima no longo buraco, para a fila de escravos a subir, polegada por polegada.

“Rápido!” eu gritei.

A corrente de água agora parecia nos pressionar para baixo, para impedir nosso
progresso. Era como uma pequena cachoeira.

“Rápido! Rápido!” gritou a voz de um homem ainda lá em baixo, um rouco e aterrorizado


grito.

O primeiro homem na corrente tinha agora escalado o túnel até a origem da água, um
outro túnel. Ouvimos um súbito som alto e veloz de água corrente. Ele gritou em
desespero, “Está vindo, está vindo com tudo!”

“Segurem-se!” eu gritei para aqueles acima e abaixo de mim. “Puxem os últimos homens
para dentro do túnel!” Eu berrei. “Tirem eles da cela!”

Mas minhas últimas palavras foram afogadas em uma catarata de água que se chocou
contra meu corpo como um grande punho, arrancando a respiração de mim. Ela rugiu
buraco abaixo, martelando nos homens. Alguns perderam o equilíbrio e ficaram
pendurados dentro do veio. Era impossível respirar, mover ou ver.

Então, tão repentinamente como começou, a catarata cessou. Lá em cima, quem quer que
manejasse a válvula deveria ter ficado impaciente e abriu ela toda de uma vez, ou talvez
a súbita torrente de água tinha sido um gesto intencional de misericórdia para afogar os
sobreviventes rapidamente.

Assim que recuperei a respiração, eu sacudi meus cabelos ensopados para fora de meus
olhos. Olhei para cima na escuridão encharcada, recheada de corpos acorrentados.

“Continuem subindo,” eu disse.

Em talvez mais alguns dois ou três minutos eu alcancei o túnel horizontal que tinha
alimentado o túnel horizontal com a torrente de água. Encontrei aqueles que estavam à
137
Foragidos de Gor
minha frente na corrente. Assim como eu, eles estavam ensopados e tremendo, mas ainda
assim vivos. Agarrei os ombros do primeiro homem.

“Você se saiu bem!” eu disse para ele.

“Eu sou de Tharna,” ele disse orgulhoso.

Finalmente cada homem de cada corrente estava dentro do túnel horizontal, ainda que
os quatro últimos homens tiveram de ser arrastados para cima, pois seus corpos moles
estavam pendurados pelas correntes. Quanto tempo eles ficaram debaixo d’água era
difícil dizer.

Nós nos focamos neles, debruçando sobre eles na escuridão, eu e três homens de Port
Kar, que sabiam o que deveria ser feito. Os outros dois escravos nas correntes esperaram
pacientemente, ninguém reclamou, ninguém insistiu para que nos apressássemos.
Finalmente, um por um, os inertes corpos se mexeram, seus pulmões abrindo para puxar
o úmido e frio ar da mina.

O homem que eu tinha salvado se aproximou e me tocou.

“Nós somos da mesma corrente,” eu disse.

Esse era um ditado que nós mesmos criamos dentro da mina.

“Venha!” eu disse para o homem.

Conduzindo eles em duas filas, algemados atrás de mim, nós nos esgueiramos através do
túnel horizontal.

138
Foragidos de Gor
XIX

Revolta nas Minas

“Não, não!” gritava Ost.

Nós o encontramos na válvula que liberava a água do reservatório para dentro da


masmorra de escravos a mais de duzentos pés abaixo. Ele agora vestia os trajes de um
Escravo do Chicote, uma recompensa por sua traição. Ele largou o chicote e tentou fugir,
correndo como um urt, mas para todo lugar que ele se virava, um grupo de violentos e
abatidos homens acorrentados o impedia, e quando o cercaram, Ost caiu de joelhos
tremendo.

“Não o machuquem,” eu disse.

Mas as mãos daquele homem em forma de touro, Kron de Tharna, já estavam no pescoço
do conspirador.

“Esse é um problema para os homens de Tharna,” disse ele. Aqueles olhos azuis como
metal olharam em volta para as faces obstinadas dos escravos acorrentados.

E os olhos de Ost, também, como aqueles de um urt aterrorizado, olharam face a face,
implorando, mas Ost não encontrou pena naqueles olhos que estavam sobre ele, era como
se eles fossem feitos de pedra.

“Ost é da corrente?” perguntou Kron.

“Não,” gritou uma dúzia de vozes. “Ele não é da corrente.”

“Sim,” gritou Ost. “Eu sou da corrente.” Ele olhava como um roedor para dentro das
faces de seus captores. “Levem-me com vocês. Libertem-me!”

“É insubordinação falar assim,” disse um dos homens.

Ost tremeu.

“Amarrem-no e deixem ele aqui,” eu disse.

“Sim,” implorou Ost histericamente, rastejante aos pés de Kron. “Façam isso, Mestres!”
139
Foragidos de Gor
Andreas de Tor falou. “Façam como Tarl de Ko-ro-ba pede,” ele disse. “Não manchem
suas correntes com o sangue dessa serpente.”

“Obrigado, Mestres,” disse Ost, bufando aliviado, sua face uma vez mais retomando
aquele semblante frio, aquele olhar esperto que eu conhecia tão bem.

Mas Kron olhou dentro da face de Ost, e Ost ficou branco.

“Você terá uma chance melhor do que a chance que você nos deu,” disse o homem touro
de Tharna.

Ost deu um grito agudo de terror.

Eu tentei avançar, mas os homens na corrente me seguraram firme. Eu não pude ajudar
o conspirador.

Ele tentou rastejar na minha direção, suas mãos estendidas. Eu estiquei minhas mãos,
mas Kron tinha agarrado ele e o puxado de volta.

O pequeno conspirador foi jogado de escravo a escravo por toda a extensão das correntes
até que o último homem o arremessou, de cabeça para baixo, gritando por misericórdia,
dentro do estreito canal escuro que nós tínhamos escalado. Ouvimos seu corpo se
chocando contra as laterais uma dúzia de vezes, e seus gritos estridentes a se distanciar
foram somente silenciados pelo distante som de um corpo se chocando contra a água
longe abaixo de nós.

****

Aquela era uma noite como nenhuma outra nas minas de Tharna.

Liderando as correntes de escravos em duas fileiras atrás de mim, nós varremos os veios
como uma erupção vinda do núcleo fundido da terra. Armados somente com pedras de
minério e as picaretas que escavavam o minério das paredes, nós invadimos os aposentos
dos Escravos do Chicote e dos guardas, que mal tiveram tempo de agarrar suas armas.
Aqueles que não morreram no combate selvagem, que ocorreu em maior parte dentro
das escuras vias, foram trancados com algemas nos tornozelos e empurrados para dentro
da câmara de armazenamento, os homens das correntes não trataram seus antigos
opressores gentilmente.

Em pouco tempo encontramos os martelos que arrancariam nossas correntes de nós e,


um por um, formamos uma fila atrás da grande bigorna onde Kron de Tharna, da Casta
dos Ferreiros, com golpes de perito, arrancava as correntes de nossos pulsos e tornozelos.
140
Foragidos de Gor
“Para o Veio Central!” eu gritei, segurando uma espada que tinha retirado de um guarda,
agora acorrentado nos veios lá atrás.

Um escravo que carregava toneis de comida para os coxos abaixo ficou realmente
satisfeito de nos guiar lá dentro.

Finalmente alcançamos o Veio Central.

A entrada que dava para nossa mina no veio central deveria estar talvez a mil pés abaixo
da superfície. Nós podíamos ver as grandes correntes penduradas no veio, delineadas
pela luz das pequenas lamparinas nas entradas das outras minas acima de nós, e, bem lá
no alto do veio, podia-se ver o branco reflexo da luz do luar. Os homens se amontoavam
sobre o piso do veio, que ficava apenas a um pé acima da entrada de nossa mina, pois a
nossa era a mina mais baixa de todas.

Eles olhavam para o alto.

O homem que tinha se gabado de ter bebido Kal-da três vezes nas minas de Tharna
chorou quando olhou para cima e vislumbrou uma das três luas de Gor.

Enviei vários homens para escalar até o topo das correntes, lá em cima.

“Vocês têm de proteger as correntes,” eu disse. “Elas não devem ser retiradas de lá.”

Determinadas figuras negras, ágeis com a fúria da esperança, começaram a subir pelas
correntes na direção das luas acima.

Para meu orgulho nenhum dos homens sugeriu que o seguíssemos, nenhum implorou
para fugirmos antes que dessem o alarme geral.

Não! Nós escalamos pela segunda vez!

Quão terríveis aqueles momentos devem ter sido para os guardas e Escravos do Chicote,
que de repente viram, a desacorrentada e avassaladora avalanche de ira e vingança que
se chocou contra eles! Dados e cartas, tabuleiros de jogos e cálices com bebida se
esparramaram pelo chão da câmara dos guardas quando Escravos do Chicote e guardas
tiveram em suas gargantas as lâminas dos desesperados e condenados homens, agora
entorpecidos pelo gosto da liberdade e determinados a libertar seus companheiros.

Cela após cela foi esvaziada pelos seus miseráveis ocupantes acorrentados, somente para
serem reabastecidas com guardas e Escravos do Chicote acorrentados, homens que
sabiam que o menor sinal de resistência traria somente uma rápida e sangrenta morte.

Mina após mina foi libertada, e quando cada mina era libertada, seus escravos,
renunciando a sua própria segurança, vertiam para as minas de cima para libertar seus
companheiros. Isso foi feito como se tivesse sido planejado, mas eu sabia que era apenas
141
Foragidos de Gor
uma ação espontânea dos homens que tinham agora aprendido a respeitarem a si
mesmos, os homens das minas de Tharna.

Eu fui o último dos escravos a deixar as minas. Escalei uma das grandes correntes do
enorme guindaste que ficava sobre o veio e me encontrei entre centenas de homens
animados, suas correntes removidas, suas mãos ostentando armas mesmo que fossem
apenas um pedaço de pedra afiada ou um par de algemas. As formas torcidas e escuras,
muitos deles curvados e desgastados pelo trabalho, me saudaram à luz das três
apressadas luas de Gor. Eles gritaram meu nome e da minha cidade, sem medo. Fiquei
de pé na borda do grande buraco e senti o vento frio da noite sobre mim.

Eu estava satisfeito.

E estava orgulhoso.

Pude ver a grande válvula que eu sabia que era usada para alagar as minas de Tharna, e
percebi que ela estava fechada.

Me orgulhei quando vi que meus escravos tinham defendido a válvula, pois perante ela
se encontravam os corpos dos soldados que tentaram alcança-la; mas fiquei mais
orgulhoso quando me dei conta de que os escravos não abriram a válvula, quando
souberam que lá embaixo, nos confins dos funestos túneis e celas, acorrentados e
indefesos, estavam seus opressores e mortais inimigos. Eu pude imaginar o terror
daquelas pobres criaturas encolhidas em suas prisões no subsolo esperando para ouvir o
distante fluxo de água através dos túneis. Mas isso não aconteceria.

Eu me perguntava se eles podiam entender que tal ação não era digna de um homem
livre, e que os homens que aqui lutavam – que fizeram sua conquista nesta fria noite, que
tinham lutado como larls na escuridão lá em baixo, que abriram mão da própria
segurança para ajudar a libertar seus companheiros - eram tais homens.

Eu pulei sobre o guindaste e levantei meus braços, a escuridão da via central iminente
abaixo de mim.

Fez-se silêncio.

“Homens de Tharna,” eu gritei, “e das Cidades de Gor, vocês estão livres!”

Houve um grande clamor de alegria.

“As notícias de nosso feito agora devem estar chegando no Palácio da Tatrix,” eu gritei.

“Que ela trema!” gritou Kron de Tharna com uma voz aterrorizante.

“Pense, Kron de Tharna,” eu gritei, “em breve tarnsmans estarão voando sobre as
muralhas de Tharna e a infantaria virá atrás de nós.”
142
Foragidos de Gor
Houve murmúrios de apreensão vindos das massas de escravos libertados.

“Fale, Tarl de Ko-ro-ba,” disse Kron, usando o nome de minha cidade tão facilmente
como se diria o nome de qualquer outra.

“Nós não temos armas ou treinamento ou as bestas que precisaríamos para combater os
soldados de Tharna,” eu disse. “Seríamos destruídos, esmagados como urts pisoteados.”
Eu fiz uma pausa. “Portanto, devemos adentrar nas florestas e nas montanhas, nos
resguardando da forma que pudermos. Teremos de viver da terra. Em breve seremos
procurados por todos os soldados e guardas que Tharna puder usar para nos rastrear.
Seremos perseguidos e dominados por lanceiros montados em tharlarions! Seremos
caçados e mortos pelos dardos das bestas dos tarnsmans.”

“Mas morreremos livres!” gritou Andreas de Tor, e o eco de seu grito veio na forma de
centenas de outras vozes.

“E eles também morrerão então!” Eu gritei. “Vocês devem se esconder de dia e se mover
a noite. Vocês devem enganar seus perseguidores. Vocês devem levar sua liberdade para
os outros!”

“Você está pedindo que nos tornemos guerreiros?” gritou uma voz.

“Sim!” eu gritei, e tais palavras nunca antes tinham sido ditas em Gor. “Nesta causa,” eu
disse, “sendo ou não da Casta dos Camponeses, ou dos Poetas, ou dos Ferreiros, ou dos
Seleiros, vocês devem ser guerreiros!”

“Nós seremos,” disse Kron de Tharna, seus punhos agarrando o grande martelo que ele
tinha usado para quebrar nossas correntes.

“Este é o desejo dos Sacerdotes-Reis? Perguntou uma voz.”

“Se este for o desejo dos Sacerdotes-Reis,” eu disse, “vamos realizá-lo.” E então eu
levantei minhas mãos novamente, e de pé em cima do guindaste, sobre a via, sob o vento,
com as luas de Gor acima de mim, eu gritei. “E se este não for o desejo dos Sacerdotes-
Reis – ainda assim, vamos realiza-lo!”

“Façamos isso,” disse a voz grossa de Kron.

“Façamos isso,” disseram os homens, primeiro um e depois outro, até que se formasse
um firme coro de consentimento, baixo mas poderoso, e eu sabia que nunca antes neste
mundo áspero, homens tinham falado dessa forma. E aquilo parecia estranho para mim,
que essa rebelião, essa complacência em buscar pelos seus direitos, independente da
vontade dos Sacerdotes-Reis, não tinha vindo em primeiro lugar dos Guerreiros de Gor,
nem dos Escribas, nem dos Construtores nem dos Médicos, nem de nenhuma das castas

143
Foragidos de Gor
altas das muitas cidades de Gor, mas sim, tinha vindo dos mais baixos e desprezíveis dos
homens, dos miseráveis escravos das minas de Tharna.

Fiquei de pé lá assistindo os escravos enquanto partiam, silenciosamente agora, como


sombras, abandonando os recintos das minas para irem atrás de suas sinas como
foragidos, seus destinos para além das leis e tradições de suas cidades.

A frase Goreana para dizer adeus saiu silenciosamente de meus lábios. “Desejo-lhes
bem.”

Kron parou ao lado do veio.

Eu andei sobre a barra do guindaste e pulei ao seu lado.

O gigante atarracado da Casta dos Ferreiros estava em pé, plantado no chão. Ele segurava
o grande martelo em seu pulso massivo como se fosse uma lança à frente de seu corpo.
Reparei que seu cabelo curto era agora um cabelo loiro e embaraçado. Vi que aqueles
olhos, normalmente azuis como o aço, pareciam agora mais brandos do que eu me
lembrava deles.

“Eu lhe desejo bem, Tarl de Ko-ro-ba,” ele disse.

“Eu lhe desejo bem, Kron de Tharna,” eu disse.

“Nós somos da mesma corrente,” ele disse.

“Sim,” eu disse.

Ele então se virou, abruptamente eu acho, e se moveu rápido para dentro das sombras.

Agora apenas Andreas de Tor permaneceu ao meu lado.

Ele esfregava aquela juba de cabelo negro como um larl e sorriu por entre os dentes para
mim. “Bem,” ele disse, “eu experimentei as minas de Tharna, e agora acho que devo
experimentar as Grandes Fazendas.”

“Boa sorte,” eu disse.

Eu tinha uma ardente esperança de que ele poderia encontrar aquela ruiva que vestia o
camisk, a gentil Linna de Tharna.

“E para onde você vai?” perguntou Andreas, despreocupadamente.

“Eu tenho negócios a tratar com os Sacerdotes-Reis,” eu disse.

“Ah!” disse Andreas, e ficou em silêncio.

Nós ficamos um de frente para o outro sob as três luas. Ele parecia triste, foi uma das
poucas vezes que eu o vi assim.
144
Foragidos de Gor
“Eu estou indo com você,” ele disse.

Eu sorri. Andreas sabia tão bem quanto eu que os homens não retornam das Montanhas
de Sardar.

“Não,” eu disse. “Eu acho que você não encontraria muitas canções nas montanhas.”

“Um poeta,” disse ele, “procura por canções em qualquer lugar.”

“Me desculpe,” eu disse, “mas eu não posso deixar que me acompanhe.”

Andreas bateu com suas mãos em meus ombros. “Escuta aqui, miolo mole da Casta dos
Guerreiros,” ele disse, “meus amigos são mais importantes para mim do que minhas
canções.”

Eu tentei parecer sábio, fingindo ceticismo. “Você realmente é da Casta dos Poetas?”

“Nunca fui tanto quanto o sou agora,” disse Andreas, “pois como minhas canções
poderiam ser mais importantes do que as coisas que elas celebram?”

Fiquei admirado que ele tenha dito isso, pois eu sabia que o jovem Andreas de Tor daria
seu braço ou anos de sua vida para aquilo que poderia ter sido a verdadeira canção, digna
do que ele tivesse visto, ou sentido, ou gostado.

“Linna precisa de você,” eu disse. “Vá procura-la.”

Andreas da Casta dos Poetas ficou atormentado perante mim, com agonia em seus olhos.

“Eu desejo-lhe bem,” eu disse, “-Poeta.”

Ele concordou com a cabeça. “Eu desejo-lhe bem,” ele disse, “- Guerreiro.”

Talvez nós dois estivéssemos nos perguntando naquele momento, se seria possível existir
amizade entre membros de castas tão diferentes, mas talvez, nós dois soubéssemos,
embora não tivéssemos comentado nada, que nos corações dos homens, armas e canções
nunca estão muito distantes umas das outras.

Andreas tinha virado para partir, mas hesitou, e se virou para mim uma vez mais. “Os
Sacerdotes-Reis,” ele disse, “estarão esperando por você.”

“É claro,” eu disse.

Andreas levantou seu braço. “Tal,” ele disse, triste. Eu me perguntei por que ele tinha
dito aquilo, pois essa era uma forma de saudação.

“Tal,” eu disse, retornando a saudação.

145
Foragidos de Gor
Eu acho que talvez ele quisesse me saudar uma vez mais, já que ele acreditava que jamais
voltaria a ter tal oportunidade.

Andreas se virou e partiu.

E eu devo iniciar minha jornada para as Montanhas de Sardar.

Como Andreas tinha dito, eu estaria sendo esperado. Eu sabia que pouca coisa do que se
passava em Gor não era de algum modo sabido nas Montanhas de Sardar. O poder e
conhecimento dos Sacerdotes-Reis está talvez além da compreensão dos homens mortais,
ou como dito em Gor, dos Homens Abaixo das Montanhas.

É dito que o que nós somos em relação à ameba e ao paramecium então assim também o
são os Sacerdotes-Reis para nós, que os maiores voos líricos de nosso intelecto são,
quando comparados aos pensamentos dos Sacerdotes-Reis, nada mais do que os
tropismos de um organismo unicelular. Pensei em tal organismo, cegamente estendendo
seus pseudópodes para englobar uma partícula de alimento, um organismo complacente
neste mundo – que talvez seja nada mais que uma placa de ágar na mesa de algum ser
superior.

Eu já tinha visto o poder dos Sacerdotes-Reis em ação – nas montanhas de New


Hampshire anos atrás quando tal poder foi usado de forma tão delicada para afetar o
ponteiro de minha bússola, no vale de Ko-ro-ba quando eu encontrei a cidade devastada
de forma tão casual como se esmaga um formigueiro.

Ainda assim, eu sabia que o poder dos Sacerdotes-Reis – que de acordo com os rumores
consegue controlar até mesmo a gravidade – poderia devastar cidades, dispersar
populações, separar amigos, arrancar amantes dos braços um do outro ou levar à morte
hedionda quem quer que eles escolhessem. Como todos os homens de Gor eu também
sabia que seu poder inspirava terror através do mundo e que não se podia fazer frente a
tal poder.

As palavras daquele homem de Ar, ele que vestia os robes dos Iniciados, ele quem tinha
me trazido a mensagem dos Sacerdotes-Reis na estrada para Ko-ro-ba, naquela violenta
noite meses atrás, aquelas palavras soavam em meus ouvidos, “Atire-se sobre sua espada,
Tarl de Ko-ro-ba!”

E soube então que eu não poderia me jogar sobre minha espada, e que eu não o faria
agora. Eu soube então como sei agora que invés disso eu iria para as Montanhas de
Sardar, que eu entraria lá e procuraria pelos próprios Sacerdotes-Reis.

Eu os encontraria.

Em algum lugar no meio daquelas escarpas glaciais inacessíveis até mesmo para o tarn
selvagem, eles esperavam por mim, essas espécies de deuses deste mundo áspero.
146
Foragidos de Gor
XX

A Barreira Invisível

Em minha mão eu segurava uma espada, que peguei de um guarda nas minas. Ela era a
única arma que eu carregava. Antes de começar a subir as montanhas, me pareceu sábio
conseguir algum equipamento. A maioria dos soldados que lutaram com os escravos no
topo do veio foram mortos ou fugiram. Aqueles que tinham morrido foram desprovidos
de suas roupas e armas, ambas requeridas desesperadamente pelos malvestidos escravos.

Eu sabia que não tinha muito tempo, pois os vingativos tarnsmans de Tharna em breve
estariam visíveis sob as três luas.

Eu examinei as pequenas construções de madeiras que decoravam a feia paisagem nas


proximidades das minas. Quase todas tinham sido arrombadas pelos escravos, e o que
quer que tivesse lá dentro havia sido levado ou retirado. Não sobrou nem uma única peça
de aço no barracão de armas; nem uma casca de pão nos tonéis das cabanas do comissário.

No escritório do Administrador das Minas, ele que tinha uma vez dado o comando,
“Afoguem todos eles,” eu encontrei um corpo despido, desfigurado de tal forma que
quase não dava para reconhecê-lo. No entanto eu o tinha visto apenas uma vez antes,
quando eu tinha sido trazido de volta pelo soldado para seus gentis cuidados. Era o
Administrador das Minas, o próprio. O corpulento e sofrido corpo estava agora rasgado
em centenas de lugares.

Na parede haviam centenas de bainhas vazias. Eu esperava que ele pelo menos tivesse
tido tempo de desembainhar sua lâmina antes dos escravos terem corrido e pulado sobre
ele. Embora fosse fácil para mim odiá-lo, eu não desejava que tivesse morrido desarmado.

Na frenética luta corpo a corpo na escuridão, ou sob as luzes das lamparinas tharlarion,
talvez os escravos não notaram as bainhas, ou não as quiseram. As espadas por si só, é
claro, foram levadas. Eu decidi que poderia usar uma bainha, e peguei uma da parede.

147
Foragidos de Gor
No primeiro raio de luz, agora brilhando através da janela empoeirada da cabana, eu vi
que a bainha era decorada com seis pedras. Esmeraldas. Talvez não de grande valor, mas
que valia a pena pegar.

Joguei minha arma dentro da bainha vazia, afivelei o cinto da espada e, à maneira
Goreana, o pendurei sobre meu ombro esquerdo.

Deixei a cabana, vasculhando os céus. Não havia tarnsmans ainda à vista. As três luas
estavam fracas agora, como pálidos discos brancos no céu brilhante, e o sol já tinha se
erguido até a metade em seu trono no horizonte.

Exposta à luz sombria, a ruina daquela noite se revelou em flagrante e brutal lucidez. O
feio terreno do complexo, e suas solitárias cabanas de madeira, seu solo pardo e as
bruscas pedras nuas, estavam desertos exceto pelos mortos. Por entre a bagunça
empilhada – papéis, caixas abertas, tábuas quebradas, quadros partidos e cordas –
estavam lá, esparramados, imóveis e rígidos, em grotescas posturas, a evidente forma da
morte, os contorcidos corpos de homens nus dilacerados, espalhados pelo local.

Tufos de poeira passavam rodopiando, como animais fungando aos pés dos corpos. A
porta de um dos galpões, com a fechadura quebrada, se mexia solta em suas dobradiças,
batendo com o vento.

Eu caminhava através do complexo e peguei um elmo que estava meio escondido na


bagunça. Suas correias foram partidas mas poderiam ser amarradas juntas. Eu me
perguntei se os escravos tinham notado isso.

Eu tinha coletado meu equipamento, mas tinha encontrado apenas uma bainha e um
elmo danificado, e em breve os tarnsmans de Tharna chegariam. Usando a Marcha de
Guerreiro, uma caminhada lenta que pode ser prolongada por horas, eu então saí dos
Complexos das Minas.

Eu mal tinha alcançado o abrigo sob uma fileira de árvores quando vi, em torno de mil
jardas atrás de mim, descendo para o Complexo das Minas, como uma nuvem de vespas,
os tarnsmans de Tharna.

****

Foi nas imediações do Pilar de Trocas, três dias depois, que eu encontrei o tarn. Eu tinha
visto sua sombra e temi que ele tivesse se tornado selvagem, e que estivesse se
preparando para tirar minha vida, mas a grande besta, meu próprio gigante plumado,
que deve ter vasculhado o Pilar de Trocas por semanas, pousou nas planícies a mais de
trinta jardas de mim, sacudindo suas grandes asas, e correu para o meu lado.

148
Foragidos de Gor
Este foi o motivo de eu retornar ao Pilar, na esperança de que talvez o monstro pudesse
ter permanecido na região. Tinha boa caça nas redondezas, e os penhascos onde eu tinha
levado a Tatrix ofereciam abrigo para seu ninho.

Quando ele se aproximou e estendeu sua cabeça, eu me perguntei se aquilo que não ousei
ter esperança seria verdade, que o pássaro pudesse estar esperando meu regresso.

Ele não ofereceu resistência, não mostrou raiva, quando eu pulei em suas costas e gritei,
como antes, “Primeira-rédea!” sob tal sinal, com um grito estridente e um salto poderoso,
aquelas gigantescas asas estalaram como chicotes, e escavaram seu caminho dentro do ar
na glória do voo.

Quando passamos sobre o Pilar das Trocas eu me lembrei que o pássaro estava lá quando
eu fui traído por aquela que uma vez foi a Tatrix de Tharna. Eu me perguntava qual teria
sido o destino daquela mulher. Perguntei-me também sobre sua deslealdade, sobre o
estranho ódio que tinha por mim, pois de alguma forma isso não parecia típico daquela
solitária garota na saliência, que tinha ficado em silêncio contemplando os campos de
talêndulas enquanto um guerreiro se empanturrava na presa de seu tarn. Então,
novamente, minha memória escureceu em fúria ao lembrar de seu gesto imperioso,
aquele insolente comando, “Prendam-no!”

Qualquer que fosse seu destino, eu insistia em pensar que foi o que ela realmente
mereceu. Ainda assim eu me peguei tendo esperança de que ela não tivesse sido morta.
Fiquei imaginando que tipo de vingança poderia satisfazer o ódio cultivado a Lara, a
Tatrix, por Dorna a Altiva. Deduzi infelizmente que ela poderia ter lançado Lara em um
poço cheio de osts ou ficado assistindo enquanto ela fervia viva em óleo de tharlarion.
Talvez ela teria sido jogada nua às garras das perigosas plantas sanguessuga de Gor ou
jogada para alimentar os urts gigantes nas masmorras abaixo de seu próprio palácio. Eu
sabia que o ódio dos homens é nada mais que uma febre quando comparado ao ódio das
mulheres, e eu imaginava quanto seria preciso para saciar a sede de vingança de tal
mulher como Dorna a Altiva. O que seria necessário para satisfazê-la?

****

Agora estávamos no mês do equinócio de primavera em Gor, chamado de En’Kara, ou a


Primeira Kara. A expressão completa seria En’Kara-Lar-Torvis, que significa,
literalmente, O Primeiro Turno do Fogo Central. Lar-Torvis é a expressão Goreana para
o sol. Geralmente, embora nunca no contexto de tempo, o sol é referido como Tor-tu-Gor,
ou Luz Sobre a Pedra da Casa. O mês do equinócio de outono é chamado de Se’Kara-Lar-
Torvis, mas normalmente falam apenas Se’Kara, O Segundo Kara, ou O Segundo Turno.
149
Foragidos de Gor
Como seria de se esperar existem expressões relacionadas aos meses dos solstícios,
En’Var-Lar-Torvis e Se’Var-Lar-Torvis, ou novamente na forma literal, O Primeiro
Descanso e O Segundo Descanso do Fogo Central. Estes, contudo, assim como as outras
expressões, geralmente ocorrem na língua apenas como En’Var e Se’Var, ou O Primeiro
Descanso e O Segundo Descanso.

Cronologia, aliás, é o desespero dos estudiosos de Gor, pois cada cidade mantém seu
controle do tempo, em virtude dos Registros de seus próprios Administradores. Alguém
pode pensar que certa estabilidade pode ser conseguida através dos Iniciados que
mantém um calendário para suas festas e observâncias, mas os Iniciados de uma cidade
nem sempre celebram as mesmas festas nos mesmos dias que os de outras cidades. Caso
os Altos Iniciados de Ar tiverem sucesso em estender sua hegemonia sobre os Altos
Iniciados de uma cidade rival, aliás, uma hegemonia que eles alegam já possuir, então
um calendário unificado pode ser introduzido. Porém já que até agora não houve
nenhuma vitória militar de Ar sobre outras cidades, portanto, sem portar espadas, os
Iniciados de cada cidade se consideram supremos dentro de suas próprias muralhas.

Há, no entanto, alguns fatores que tendem a reduzir o desespero em tais situações. Um
deles são as feiras nas Montanhas de Sardar, que ocorrem quatro vezes ao ano e são
numeradas em ordem cronológica. Outro fator, é que as vezes, cidades se dispõem a
adicionar em seus registros, ao lado de suas próprias datas, as datas de Ar, que é a maior
cidade de Gor.

A cronologia em Ar, felizmente, não é baseada nos Registros de seu Administrador, mas
sim no mito de um órfão, o primeiro homem de Gor, um herói que dizem que foi criado
pelos Sacerdotes-Reis a partir do lodo, da terra e do sangue dos tarns. O tempo é contado
“Constanta Ar”, ou “a partir da fundação de Ar.” O ano em que estou, de acordo com o
calendário de Ar, se for de interesse, é o ano de 10.117. Na verdade, eu suponho que Ar
não tenha nem um terço dessa idade. Sua Pedra da Casa, no entanto, como eu mesmo vi,
atesta uma antiguidade considerável.

****

Cerca de quatro dias depois que eu recuperei o tarn, nós avistamos ao longe as
Montanhas de Sardar. Se eu tivesse em posse de uma bússola Goreana, seu ponteiro
apontaria invariavelmente para aquelas montanhas, como se indicasse a casa dos
Sacerdotes-Reis. Perante as montanhas, em um panorama de sedas e bandeiras, eu vi os
pavilhões da Feria de En’Kara, ou a Feira do Primeiro Turno.

150
Foragidos de Gor
Girei o tarn no céu, não querendo me aproximar demais, ainda. Olhei sobre as montanhas
que eu agora via pela primeira vez. Um frio que não vinha dos altos ventos me fustigou
nas costas do tarn, se entranhando dentro de meu corpo.

As montanhas de Sardar não eram tão vastas e magníficas cordilheiras como os


desfiladeiros ásperos e escarlates da Voltai, aquela quase que impenetrável vastidão
montanhosa na qual eu uma vez fui feito prisioneiro do foragido Ubar, Marlenus de Ar,
ambicioso e bélico pai da feroz e bela Talena, ela quem eu amei, quem eu carreguei nas
costas do tarn até Ko-ro-ba anos atrás, para ser minha Livre Companheira. Não, as
Cordilheiras de Sardar não tinham a esplêndida vastidão natural que tinha Voltai. Seus
picos não desdenhavam das planícies abaixo. Seu cume não provocava o céu e nem, no
frio da noite, desafiava as estrelas. Nela, não se podia ouvir os gritos dos tarns e os
rugidos dos larls. Era inferior a Voltai em ambos, dimensão e altitude. Ainda assim,
quando eu olhava para ela, eu a temia, mais do que temi aquele glorioso e selvagem covil
de larls, a Voltai.

Cheguei mais perto com o tarn.

As montanhas diante de mim eram negras, exceto pelos altos picos e passagens, que eram
manchados de branco pela fria neve reluzente. Procurei pelo verde de vegetação nas
encostas mais baixas e não avistei nada. Nas Montanhas de Sardar, nada cresce.

Lá parecia haver uma ameaça, um intangível e amedrontador efeito sobre suas formas
angulares à distância. Subi com o tarn o mais alto que pude, até que suas asas batessem
freneticamente contra o ar rarefeito, mas não fui capaz de ver nada que pudesse ser a
moradia dos Sacerdotes-Reis.

Eu pensei – uma estranha suspeita que de repente passou pela minha cabeça – e se as
Montanhas de Sardar estivessem atualmente vazias? – se não tivesse nada, simplesmente
nada além de vento e neve naquelas tenebrosas montanhas, e se os homens, sem saber,
veneravam o nada? O que dizer das intermináveis preces dos Iniciados, dos sacrifícios,
das observâncias, dos rituais, dos inúmeros santuários, altares e templos para os
Sacerdotes-Reis? Seria possível que a fumaça dos sacrifícios queimados, a fragrância dos
incensos, os murmúrios dos Iniciados, toda a prostração e bajulação eram dedicados a
nada além do que os vazios cumes de Sardar, à neve, ao frio e ao vento que uivavam por
entre estes penhascos negros?

De repente o tarn gritou e se debateu no ar!

A ideia de ausência nas Cordilheiras de Sardar foi banida de minha mente, pois aqui
estava uma evidência dos Sacerdotes-Reis!

Aquilo foi quase como se o pássaro tivesse sido agarrado por um punho invisível.

151
Foragidos de Gor
Eu não sentia nada.

Os olhos do pássaro, talvez pela primeira vez em sua vida, se encheram de terror, um
incompreensível terror cego.

E eu não via nada.

Protestando, gritando, a grande ave começou a titubear impotente para baixo. Suas vastas
asas, futilmente, selvagemente, batendo, descoordenadas e frenéticas, como os membros
de um nadador que se afoga. Parecia que o próprio ar se recusava a suportar seu peso.
Em ébrios, tortuosos círculos, aos gritos, aturdido, indefeso, o pássaro caiu, enquanto eu,
por minha vida, desesperadamente agarrava as grossas penas de seu pescoço.

Quando alcançamos uma altitude de talvez cem jardas do chão, o efeito passou, de forma
tão repentina quanto tinha começado. O pássaro reganhou sua força e seus sentidos,
exceto pelo fato de que eu ainda estava agitado, quase que inepto.

Então para minha admiração, a valente criatura começou a subir, determinado a


recuperar a altitude que tínhamos perdido.

De novo, e de novo ele tentou subir e de novo e de novo ele foi forçado a descer.

Sobre as costas da besta eu podia sentir o esforço de seus músculos, sentir o martelar
enfurecido daquele coração indomável. Mas cada vez que alcançávamos uma certa
altitude, os olhos do tarn pareciam perder seu foco, e o equilíbrio e coordenação precisos
do monstro negro pareciam ser despedaçados. Ele não estava mais assustado, estava
agora apenas com raiva. Ele tentaria subir uma vez mais, ainda mais rápido, ainda mais
feroz.

Então misericordiosamente eu gritei “Quarta-rédea!”

Eu temia que a corajosa besta pudesse se matar antes de se render para a força oculta que
bloqueava seu caminho.

A contragosto o pássaro pousou nas verdejantes planícies a cerca de uma légua da Feira
de En’Kara. Tive a impressão que aqueles grandes olhos me olhavam com reprovação.
Porque eu não pulava novamente em suas costas e gritava uma vez mais “Primeira-
rédea!” Porque nós não tentávamos de novo?

Eu bati no seu bico com afeição e, apalpando por entre as penas de seu pescoço com meus
dedos, arranquei alguns piolhos, do tamanho de bolas de gude, que infestavam tarns
selvagens. Joguei-os sobre sua língua comprida. Depois de um momento de impaciência,
com suas penas se eriçando em protesto, o tarn sucumbiu relutantemente à sua modéstia,
e os parasitas desapareceram dentro de seu bico curvado em forma de cimitarra.

152
Foragidos de Gor
O que aconteceu poderia ser visto pela mente destreinada de um Goreano,
particularmente um indivíduo de uma casta baixa, como uma evidência de forças
sobrenaturais, como o efeito mágico dos desejos dos Sacerdotes-Reis. Eu pessoalmente
não era adepto de tais hipóteses.

O tarn tinha atingido algum tipo de campo, que talvez afetasse o funcionamento do
ouvido interno, resultando na perda do equilíbrio e coordenação. Um dispositivo similar,
eu supunha, pode impedir a entrada de tharlarions, os lagartos equipados com selas, de
Gor, para dentro das montanhas. Contrariado eu tive de admirar os Sacerdotes-Reis. Eu
sabia agora que aquilo era verdade, o que tinham me dito, que aqueles que entrassem nas
montanhas deveriam ir a pé.

Eu lamentava ter de abandonar o tarn, mas ele não poderia me acompanhar.

Conversei com ele por talvez uma hora, uma coisa tola de se fazer talvez, e então dei um
forte tapa em seu bico e o empurrei para longe de mim. Apontei para os campos, longe
das montanhas. “Tabuk!” eu disse.

A besta não se mexeu.

“Tabuk!” eu repeti.

Eu acho, embora isso seja absurdo, que a besta sentia que tinha falhado comigo, já que
ele não me levou montanha adentro. Eu acho, também, embora isso seja ainda mais
absurdo, que ele sabia que eu não estaria esperando por ele quando ele voltasse de sua
caçada.

A grande cabeça se moveu de forma meiga e afundou na direção do chão, se esfregando


em minha perna.

Tinha ele falhado comigo? Estaria eu o rejeitando agora?


“Vá, Ubar dos Céus,” eu disse. “Vá.”

Quando eu disse Ubar dos Céus, o pássaro levantou sua cabeça, mais de uma jarda acima
da minha própria cabeça. Eu o tinha chamado assim quando o reconheci na arena de
Tharna, quando ascendemos ao céu juntos como se fossemos uma única criatura.

A grande ave se afastou de mim, cerca de quinze jardas, e então se virou, para me olhar
de novo.

Eu apontei para os campos longe das montanhas.

Ele bateu suas asas e gritou, se lançando contra o vento. Eu fiquei lá assistindo até que se
tornasse um pequeno cisco contra o azul do céu, e assim ele desapareceu à distância.

Senti-me inexplicavelmente triste, e virei-me de frente para as Montanhas de Sardar.


153
Foragidos de Gor
Perante ela, sobre as planícies gramadas abaixo, estava a Feira de En’Kara.

Eu mal tinha caminhado mais de um pasang quando, vindo de um arvoredo à minha


direita, do outro lado de um córrego estreito e veloz que fluía de Sardar, eu ouvi o grito
aterrorizado de uma garota.

154
Foragidos de Gor
XXI

Eu Compro uma Garota

Fora da bainha saltou minha espada e eu cruzei o córrego gelado, fazendo meu caminho
até o bosque de árvores do outro lado.

Uma vez mais o grito aterrorizado fez-se ouvir.

Agora eu estava entre as árvores, me movendo rápido, mas cautelosamente.

Então o cheiro de algo sendo cozido em uma fogueira alcançou minhas narinas. Ouvi os
murmúrios de uma calma conversação. Através das árvores eu pude ver as lonas das
tendas, um vagão de tharlarion, os mestres das rédeas removendo os arreios de um
tharlarion abaixado, aquele enorme herbívoro de Gor que se parecia com um lagarto.
Aparentemente, eu podia dizer que ou nenhum deles ouviu os gritos, ou não deram
atenção.

Reduzi meu ritmo para o de uma caminhada e entrei na clareira entre as tendas. Um ou
dois guardas me olharam curiosos. Um deles se levantou e foi checar a mata atrás de
mim, para ver se eu estava sozinho. Olhei ao redor. Era uma cena pacífica, as fogueiras
de cozimento, as tendas abobadadas, os animais sem arreios, uma cena que me lembrou
da caravana de Mintar, da grande Casta dos Mercadores. Mas este era um acampamento
pequeno, não tinha todos aqueles pasangs de vagões que constituíam a comitiva do rico
Mintar.

Ouvi o grito mais uma vez.

Percebi que a lona que cobria o vagão de tharlarion, que tinha sido puxada para cima, era
de seda azul e amarela.

Aquele era o acampamento de um mercador de escravos.

Coloquei minha espada de volta em sua bainha e retirei meu elmo.

155
Foragidos de Gor
“Tal,” eu disse para dois guardas que estavam agachados ao lado de uma fogueira,
jogando Pedras, um jogo de adivinhação no qual uma pessoa tem de adivinhar se o
número de pedras no punho da outra é par ou ímpar.

“Tal,” disse um dos guardas. O outro, na tentativa de adivinhar as pedras, nem mesmo
levantou seu olhar.

Eu caminhei por entre as tendas e vi a garota.

Era uma loira e seus cabelos dourados caíam longos até abaixo de suas costas. Seus olhos
eram azuis. Ela era de uma beleza estonteante. Tremia como um animal frenético, suas
costas pressionadas contra o tronco fino e branco de uma árvore videira na qual ela estava
acorrentada nua. Suas mãos estavam presas juntas sobre sua cabeça e atrás do tronco por
braceletes de escravas. Seus tornozelos aprisionados de forma semelhante por uma curta
corrente de escravas enrolada na árvore.

Seus olhos se viraram para mim, implorando, pedindo, como se eu pudesse livrá-la de
sua situação, mas quando ela me olhou, aqueles olhos repletos de medo, se possível,
pareceram ainda mais aterrorizados. Ela soltou um grito desesperado. Começou a se
debater incontrolavelmente com sua cabeça caída para frente em desespero.

Eu imaginei que ela pensava que eu era outro mercador de escravos.

Tinha um braseiro de ferro perto da árvore, que estava repleto de carvão em brasa. Eu
podia sentir o calor a dez jardas de distância. De dentro do braseiro se projetavam os
cabos de três ferros.

Tinha um homem ao lado dos ferros, despido até a cintura, vestindo grosas luvas de
couro, um dos criados do mercador de escravos. Ele era um homem de cabelos grisalhos,
bem pesado, suado, cego de um olho. Ele me olhou sem muito interesse também, parecia
esperar que os ferros esquentassem.

Eu notei a coxa da garota.

Não tinha sido marcada ainda.

Quando um indivíduo captura uma garota para seu próprio uso, ele nem sempre marca
ela, embora seja o mais comum a ser feito. Por outro lado, o mercador de escravos
profissional, em uma prática comum a esse tipo de negócio, quase sempre marca seus
bens, e é muito raro que uma garota sem marca suba sobre os blocos.

A marca é para ser diferente do colar, embora ambos sejam uma forma de designar a
escravidão. A primeira função do colar é que ele identifique o mestre e sua cidade. O
colar de uma dada garota pode ser trocado incontáveis vezes, mas a marca continua seja
qual for o status que ela alcance. A marca é normalmente escondida pelo curto traje das
156
Foragidos de Gor
escravas de Gor mas, é claro, quando o camisk é vestido, ela fica claramente visível,
relembrando a garota e os outros de sua situação.

A marca por si só, no caso das garotas, é uma marca muito graciosa, sendo ela a primeira
letra da expressão Goreana para escravo na escrita corrente. Se um homem é marcado, a
mesma inicial é usada, mas é feita com a letra em negrito.

Notando meu interesse pela garota, o homem ao lado dos ferros foi até a garota, e
agarrando ela pelo cabelo, puxou sua cabeça para trás para que eu pudesse inspecioná-
la. “Ela é uma beleza, não é?” ele disse.

Eu concordei com a cabeça.

Eu me perguntava por que aqueles lamentáveis olhos me olhavam com tanto medo.

“Talvez você queira comprá-la?” perguntou o homem.

“Não,” eu disse.

O grande e forte homem piscou seu olho cego na minha direção. Sua voz se abaixou ao
tom de um sussurro conspiratório. “Ela não é treinada,” ele disse. “E ela é tão difícil de
lidar quanto uma sleen.”

Eu sorri.

“Mas,” disse o homem, “o ferro irá tirar isso dela.”

Eu me perguntei se isso seria possível.

Ele retirou um dos ferros do fogo. Aquilo brilhava com um vermelho feroz.

Quando avistou o metal brilhante a garota gritou descontroladamente, pulando sobre os


braceletes de escravas, nas algemas que prendiam ela na árvore.

O homem corpulento colocou o ferro de volta dentro do braseiro.

“Ela é escandalosa,” ele disse, meio envergonhando. Então, dando de ombros na minha
direção, como se pedindo perdão, ele se voltou para a garota e pegou um tufo do longo
cabelo dela. Ele embolou seu cabelo formando uma pequena bola comprimida e
empurrou para dentro da boca da garota. A bola imediatamente se expandiu e antes que
ela pudesse cuspir o cabelo para fora, ele pegou mais de seus cabelos e o enrolou sobre a
cabeça dela, amarrando, de modo a manter a bola de cabelo expandida dentro de sua
boca. A garota engasgou silenciosamente, tentando cuspir a bola para fora de sua boca,
mas é claro, ela não conseguiu. Este era um velho truque dos mercadores de escravos. Eu
sabia que tarnsmans às vezes silenciavam suas capturas da mesma forma.

157
Foragidos de Gor
“Me desculpe, Doce Meretriz,” disse o homem de cabelos grisalhos, sacudindo a cabeça
da garota de forma amigável, “mas nós não queremos que Targo venha aqui com seu
chicote e nos espanque arrancando óleo de tharlarion de nosso couro, não é mesmo?”

Soluçando silenciosamente a cabeça da garota abaixou novamente sobre seu peito.

O homem grisalho distraidamente cantava uma canção de caravana enquanto esperava


que os ferros esquentassem.

Minhas emoções estavam misturadas. Eu tinha corrido para o local a fim de libertar a
garota, para protegê-la. Então, quando eu cheguei, me dei conta de que era só uma
escrava, e que seu proprietário, de forma muito apropriada do ponto de vista de Gor,
estava cumprindo com a rotina de seu negócio e marcando sua propriedade. Se eu
tentasse libertá-la, isso seria visto como um furto, seria o mesmo que eu tentar roubar o
vagão de tharlarion.

Além disso, estes homens não conferiam perigo para a garota. Para eles ela era apenas
outra meretriz em sua corrente, talvez mal treinada e menos dócil que a maioria. No mais,
eles estavam apenas impacientes com ela, e pensavam que ela fazia muito alarde sobre
as coisas. Eles não podiam compreender seus sentimentos, sua humilhação, sua
vergonha, seu terror.

Eu achava que até mesmo as outras garotas, as outras que eram transportadas pela
caravana, deveriam pensar também que ela exagerava demais. Afinal, como pode uma
escrava não esperar pelo ferro? E pelo chicote?

Eu vi as outras garotas a algumas trinta jardas de distância, em camisks, a mais barata


das vestes de escravas, elas riam e conversavam umas com as outras, se divertindo tão
prazerosamente quanto donzelas livres o fariam. Eu quase não notei as correntes que
estavam escondidas na grama. Elas passavam através de um anel no tornozelo de cada
garota e, no final, se enrolavam em uma árvore trancadas com cadeados.

O ferro em breve estaria quente.

A garota a minha frente, tão indefesa em suas correntes, em breve seria marcada.

Naquela ocasião eu me perguntei por que marcas são tão usadas em escravos Goreanos.
Certamente Goreanos tem à sua disposição meios para indelevelmente, mas sem dor,
marcar o corpo humano. Minha suposição, que foi confirmada em certa parte pelas
especulações do Velho Tarl, quem tinha me ensinado o ofício das armas em Ko-ro-ba anos
atrás, era de que a marca é usada primariamente, de forma curiosa, por causa de seu
renomado efeito psicológico.

Em teoria, se não na prática, quando uma garota se vê marcada como um animal, quando
vê sua pele exposta marcada pelo ferro de um mestre, ela não pode deixar, de algum
158
Foragidos de Gor
modo, nos níveis mais profundos de seus pensamentos, de se considerar como algo que
é possuído, como mera propriedade, como alguma coisa que pertence ao bruto que
colocou o ferro em brasa sobre sua coxa.

De forma mais simples, é suposto que a marca convença a garota de que ela é realmente
possuída; é suposto que a faça sentir como propriedade. Quando o ferro é puxado de
volta e ela sente a dor e a degradação, e sente o odor de sua carne queimada, é suposto
que ela diga para si mesma, entendendo sua completa e terrível implicação, EU SOU
DELE.

Na verdade, eu acho que o efeito da marca depende muito da garota. Em muitas garotas
eu poderia supor que a marca tem pouco efeito além de aumentar sua vergonha, sua
miséria e humilhação. Com outras garotas ela pode muito bem aumentar a sua
insociabilidade, sua hostilidade. Por outro lado, já vi vários casos onde uma mulher
insolente, orgulhosa, até mesmo de grande inteligência, que resistiu ao mestre até que
fosse tocada pelo ferro, uma vez marcada se tornou instantaneamente uma apaixonada e
obediente Escrava de Prazer.

Mas afinal, depois de tudo, eu ainda não sei se a marca é usada principalmente por seu
efeito psicológico ou não. Talvez seja um mero dispositivo para que mercadores tenham
meios de rastrear escravos fugitivos, pois isso constituiria um risco caro para seu
comércio. Às vezes eu acho que o ferro é nada mais que um sobrevivente anacrônico de
uma era mais atrasada tecnologicamente.

Uma coisa era certo. A pobre criatura perante mim não desejava o ferro.

Eu me senti triste por ela.

O criado do mercador de escravos retirou outro ferro do fogo. Seu único olho considerava
o metal, o avaliando. Estava rubro. O homem pareceu satisfeito.

A garota se encolheu contra a árvore, suas costas contra a branca, áspera casca do tronco.
Seus pulsos e tornozelos forçavam as correntes que os esticavam atrás da árvore. Sua
respiração era espasmódica; ela tremia. Havia terror em seus olhos azuis. Ela chorava.
Um outro som que ela teria proferido foi abafado pela mordaça feita de cabelo.

O criado do mercador envolveu a coxa direita dela em seu braço esquerdo, a segurando
imóvel. “Não se mexa, Doce Meretriz,” ele disse, sendo gentil. “Você pode estragar a
marca.” Ele falou com a garota de forma leve, como se quisesse acalmá-la. “Você quer
uma limpa e bonita marca, não quer? Isso irá aumentar seu preço e você irá conseguir um
mestre melhor.”

O ferro agora estava posicionado para a firme e súbita impressão.

159
Foragidos de Gor
Pude notar que alguns dos delicados fios de cabelos dourados em sua coxa, devido à
proximidade do ferro, se curvaram e escureceram.

Ela fechou seus olhos e contraiu seu corpo para o repentino, inevitável, lancinante pico
de dor.

“Não marque ela,” eu disse.

O homem olhou para mim, confuso.

Os olhos cheios de terror da garota se abriram, me olhando interrogativamente.

“Por que não?” perguntou o homem.

“Eu irei compra-la,” eu disse.

O criado do mercador se levantou e me fitou curiosamente. Ele se virou para a tenda


abobadada. “Targo!” ele chamou. Então ele jogou o ferro de volta para dentro do braseiro.
O corpo da garota se amoleceu nas correntes. Ela tinha desmaiado.

De dentro das tendas em forma de cúpula, vestindo um robe rodado de seda azul e
amarela, com uma faixa na cabeça do mesmo material, saiu um homem baixo e gordo,
Targo o Mercador de Escravos, ele que era o mestre desta pequena caravana. Targo vestia
sandálias roxas, com tiras decoradas com pérolas. Seus grossos dedos estavam cobertos
com anéis, que brilhavam quando ele movia suas mãos. Em seu pescoço, como era de
praxe em um negociador, ele vestia um conjunto de moedas amarradas em um fio de
prata. Do lóbulo de cada pequena e redonda orelha pendia um enorme brinco, um
pingente de safira em haste de ouro. Seu corpo tinha sido recentemente banhado em óleo,
e eu deduzi que ele tinha sido banhado naquela tenda a pouco tempo atrás, um prazer
no qual mestres de caravanas apreciam ao final de um dia quente e empoeirado de
viajem. Seu cabelo, longo e preto atrás da faixa de seda amarela e azul, estava penteado
e lustroso. Aquilo me lembrava do pelo arrumado e brilhante de um urt doméstico.

“Bom dia, Mestre,” sorriu Targo, se inclinando tanto quanto sua cintura o permitia, às
pressas, levando em conta o improvável estranho que estava diante dele. Em seguida ele
se virou para o homem que vigiava os ferros. Sua voz agora foi mais dura e desagradável.
“O que está acontecendo aqui?”

O homem grisalho apontou para mim. “Ele não quer que eu marque a garota,” ele disse.

Targo olhou para mim, sem entender. “Mas por que?” ele perguntou.

Eu me senti um tolo. O que eu poderia dizer para este mercador, este especialista no
tráfico de humanos, este homem de negócios que conhecia bem as antigas tradições e
práticas de seu comércio? Eu poderia dizer que eu não queria que machucassem a garota?
Ele me tomaria por louco. Que outro motivo então eu poderia ter?
160
Foragidos de Gor
Me sentindo estúpido, eu disse a verdade. “Eu não desejo vê-la ferida.”

Targo e o mestre grisalho dos ferros trocaram olhares.

“Mas ela é só uma escrava,” disse Targo.

“Eu sei,” eu disse.

O homem grisalho falou. “Ele disse que quer compra-la.”

“Ah!” disse Targo, e seus pequenos olhos cintilaram. “Isso é diferente.” Então uma
expressão de grande tristeza se formou em sua grande cara redonda. “Mas é uma pena
pois ela é tão cara.”

“Não tenho dinheiro,” eu disse.

Targo arregalou os olhos sobre mim, incompreensivelmente. Seu pequeno e gordo corpo
se contraiu como um punho rechonchudo. Estava nervoso. Ele se virou para o homem
grisalho, e não mais olhou para mim. “Marque a garota,” ele disse.

O homem grisalho se ajoelhou para puxar um dos ferros do braseiro.

Minha espada agora pressionada contra a barriga do comerciante, forçou um quarto de


polegada.

“Não marque a garota,” disse Targo.

Obedientemente o homem jogou o ferro de volta dentro do fogo. Ele notou que minha
espada estava na barriga de seu mestre, mas não pareceu nem um pouco perturbado.
“Devo chamar os guardas?” ele perguntou.

“Duvido que eles cheguem a tempo,” eu disse, imparcialmente.

“Não chame os guardas,” disse Targo, que agora estava suando.

“Eu não tenho dinheiro,” eu disse, “mas eu tenho esta bainha.”

Os olhos de Targo saltaram sobre a bainha e se moveram de uma esmeralda para outra.
Seus lábios se mexeram silenciosamente. Ele contou seis delas.

“Talvez,” disse Targo, “possamos chegar a um acordo.”

Eu guardei a espada.

Targo falou rispidamente para o homem grisalho. “Acorde a escrava.”

Aos resmungos o homem foi buscar água em um recipiente de couro no estreito córrego
perto do acampamento. Targo e eu nos entreolhávamos até que o homem voltou,
trazendo o recipiente de couro pendurado em seu ombro por sua alça.
161
Foragidos de Gor
Ele virou o recipiente com água gelada, oriunda da neve derretida de Sardar, sobre a
garota acorrentada, que praguejando e tremendo, abriu seus olhos.

Targo, em seus curtos e bamboleantes passos, andou até a garota e colocou um dedão,
que vestia um largo anel de rubi, abaixo do queixo dela, levantando sua cabeça.

“Uma verdadeira beldade,” disse Targo. “E perfeitamente treinada por meses nos currais
de escravos de Ar.”

Atrás de Targo eu pude ver o homem grisalho sacudindo sua cabeça negativamente.

“E,” disse Targo, “ela está ansiosa para agradar.”

Atrás dele o homem piscou seu olho cego e sufocou um bufado.

“Tão gentil quanto uma pomba, tão dócil quanto uma gatinha,” continuou Targo.

Posicionei a lâmina de minha espada entre a bochecha da garota e o cabelo que estava
amarrado sobre sua boca. Removi a mordaça, e seus cabelos, tão leves como o próprio ar
flutuaram sobre a lâmina.

A garota fixou seus olhos em Targo. “Seu gordo urt imundo!” ela sussurrou.

“Quieta, sua Tharlarion!” ele disse.

“Eu não acho que ela tenha muito valor,” eu disse.

“Oh, Mestre,” gritou Targo, rodando seus robes, descrente que eu pudesse ter proferido
tal ideia. “Eu em pessoa paguei cem discos tarns de prata por ela!”

Atrás de Targo o homem grisalho rapidamente levantou seus dedos, abrindo e fechando-
os cinco vezes.

“Eu duvido,” falei para Targo, “que ela valha mais do que cinquenta.”

Targo pareceu atordoado. Ele me olhava agora com um novo respeito. Será que talvez eu
já tenha sido um comerciante? Atualmente, cinquenta discos tarns de prata era um preço
extremamente alto, e indicava que a garota provavelmente fosse de casta alta assim como
extremamente bela. Uma garota ordinária, de casta baixa, graciosa, mas destreinada,
pode, dependendo do mercado, ser vendida por não menos de cinco e não mais que trinta
discos tarns.

“Vou te dar duas das pedras desta bainha, por ela,” eu disse. Na verdade, eu não tinha
ideia do valor das pedras, e não sabia se a oferta era sensata ou não. Aborrecido, olhando
para os anéis de Targo e as safiras penduradas em suas orelhas, eu sabia que ele estava
muito mais apto a julgar seu valor do que eu.

“Absurdo!” disse Targo, sacudindo sua cabeça com veemência.


162
Foragidos de Gor
Deduzi que ele não estava blefando, pois como poderia ele saber que eu não tinha ideia
do verdadeiro valor das pedras? Como ele saberia se eu não as tinha comprado e
encaixado elas na bainha por mim mesmo?

“Você dificulta a barganha,” eu disse. “Quatro -”

“Posso ver a bainha, Guerreiro?” ele perguntou.

“Com certeza,” eu disse, e retirei a bainha de meu cinto, entregando à ele. A espada eu
retive, dando um nó nas tiras que seguravam a bainha e colocando a espada entre elas.

Targo olhava para as pedras, apreciando. “Nada mal,” ele disse, “mas não é o bastante-”

Fingi estar impaciente. “Então me mostre outras garotas,” eu disse.

Pude notar que isso não agradou Targo, pois aparentemente ele desejava livrar suas
correntes da loira. Talvez ela fosse problemática, ou fosse perigoso retê-la por alguma
outra razão.

“Mostre a ele as outras,” disse o homem grisalho. “Essa aí nem mesmo vai dizer ‘Me
compre, Mestre’.”

Targo lançou um olhar violento para o homem grisalho, que sorria para si mesmo,
supervisionando os ferros no braseiro.

Nervoso, Targo mostrou o caminho para a verde clareira entre as árvores.

Ele bateu palmas, com força, duas vezes, e houve então uma correria e tumulto de corpos
ao som de longas correntes que deslizavam através de anéis de tornozelos. As garotas
agora se ajoelharam, cada uma na posição de uma Escrava de Prazer, em seus camisks
sobre a grama, alinhadas entre duas árvores as quais suas correntes estavam presas.
Enquanto eu passava por cada uma, elas audaciosamente levantavam seus olhos para os
meus e diziam, “Me Compre, Mestre.”

Muitas delas eram beldades, e eu percebi que a corrente, embora pequena, era rica,
daquelas correntes onde qualquer homem encontraria uma mulher de seu gosto. Elas
eram vitais, esplêndidas criaturas, muitas delas sem dúvida requintadamente treinadas
para deliciar os sentidos de um mestre. E muitas das cidades de Gor estavam
representadas naquela corrente, muitas vezes chamada de o Colar do Mercador de
Escravos – tinha uma loira da grandiosa Thentis, tinha uma garota de pele escura com
cabelos negros que caíam até seus tornozelos da cidade do deserto, Tor, tinham garotas
das miseráveis ruas de Port Kar no delta do Vosk, garotas até mesmo dos altos cilindros
da própria Grande Ar. Eu me perguntava quantas delas eram escravas de nascença e
quantas uma vez já foram livres.

163
Foragidos de Gor
E quando eu parava perante cada uma das beldades naquela corrente e encontrava seus
olhos, e ouvia suas palavras, “Me Compre, Mestre,” eu me perguntava por que eu não a
compraria, por que eu não libertaria uma delas em vez da outra garota. Seriam essas
criaturas maravilhosas, que já vestiam a graciosa marca de uma escrava, menos
merecedoras do que a outra?

“Não,” eu disse para Targo. “Não vou comprar nenhuma delas.”

Para minha surpresa um suspiro de desapontamento, até mesmo forte frustração,


percorreu a corrente. Duas das garotas, a de Tor e uma das outras de Ar choraram, suas
faces enterradas em suas mãos. Eu desejei não ter ido vê-las.

Após refletir, aquilo me pareceu claro, que a corrente deve, enfim, ser um lugar solitário
para uma garota, cheia de vida, sabendo que a marca tinha sido destinada a ela para
amar, que cada uma delas deve cobiçar por um homem que goste tanto dela que a
compre, que cada uma deve ansiar para seguir um homem de volta pra casa até seus
aposentos, vestindo seu colar e suas correntes, onde elas irão aprender o coração e a força
dele, e serão ensinadas nas delícias da submissão. Melhor os braços de um mestre que o
frio aço de um anel no tornozelo.

Quando elas me disseram, “Me Compre, Mestre,” aquilo não foi simplesmente dito como
um ritual. Elas queriam ser vendidas para mim – ou, eu supunha, para qualquer homem
que as retirassem da odiosa corrente de Targo.

Targo pareceu aliviado. Agarrando meu cotovelo, ele me guiou de volta para a árvore
onde a loira se ajoelhava acorrentada.

Quando eu olhei para ela eu me perguntei, por que ela? Por que não outra, ou por que
tinha de comprar uma garota? De que importaria se sua coxa, também, trouxesse uma
graciosa marca? Eu imaginei que era a instituição escravista que eu repudiava, e que essa
instituição não mudaria em nada se eu, em um ato de tolo sentimentalismo, libertasse
uma garota. Ela não poderia ir comigo para dentro de Sardar, é claro, e quando eu a
abandonasse, ela, sozinha e desprotegida, seria presa fácil para as bestas ou então se
encontraria de novo na corrente de outro mercador de escravos. Sim, eu disse para mim
mesmo, isso era tolice.

“Eu decidi não comprar ela,” eu disse.

Então, de modo estranho, a garota levantou sua cabeça e olhou dentro de meus olhos. Ela
tentou sorrir. As palavras foram doces, mas ditas de forma clara e inconfundíveis, “Me
compre, Mestre.”

“Ai!” gritou o homem grisalho, e até mesmo Targo o Mercador de Escravos pareceu
perplexo.
164
Foragidos de Gor
Era a primeira vez que a garota proferia a frase de praxe.

Olhei para ela, e vi que era de fato bela, mas principalmente, eu vi que seus olhos se
declaravam para os meus. E quando vi isso, minha decisão racional de abandoná-la se
dissipou, e eu me rendi, como fiz algumas vezes no passado, a um ato sentimental.

“Fique com a bainha,” eu disse para Targo. “Vou compra-la.”

“E o elmo!” disse Targo.

“Fechado,” eu disse.

Ele agarrou a bainha e a alegria com que ele a segurava me disse que eu tinha sido, em
sua mente, dolorosamente derrotado na barganha. Quase que como uma reflexão tardia
ele arrancou o capacete de minhas mãos. Tanto ele quanto eu sabíamos que aquilo seria
praticamente inútil. Sorri com tristeza para mim mesmo. Eu não era muito bom em tais
assuntos, eu supunha. Mas e se eu soubesse o valor real daquelas pedras?

Os olhos da garota olhavam dentro dos meus, talvez tentando ler em meus olhos qual
seria o seu destino, pois sua sina agora estava em minhas mãos, eu era seu mestre.

Estranhos e cruéis são os modos de Gor, eu pensei, onde seis pequenas pedras verdes,
pesando talvez duas onças, e um elmo danificado, poderiam comprar um ser humano.

Targo e o homem grisalho foram para a tenda curvada para buscar as chaves das
correntes da garota.

“Qual é o seu nome?” eu perguntei a garota.

“Uma escrava não tem nome,” ela disse. “Você pode me dar um se desejar.”

Em Gor uma escrava, não sendo uma pessoa legalizada, não tem direito a um nome,
assim como na terra, nossos animais domésticos, não sendo pessoas perante a lei, não tem
nomes também. O nome que ela tem quando nasce, pelo qual ela se chama e se conhece,
este nome que tanto faz parte de sua própria concepção de si mesma, de sua verdadeira
e mais íntima identidade, subitamente desaparece.

“Vejo que você não é uma escrava de nascença,” eu disse.

Ela sorriu e balançou a cabeça. “Não,” ela disse.

“Eu me contento,” eu disse, “em chama-la pelo nome que você usava quando era livre.”

“Você é gentil,” ela disse.

“Qual era seu nome quando você era livre?” eu perguntei.

“Lara,” ela disse.


165
Foragidos de Gor
“Lara?” eu perguntei.

“Sim Guerreiro,” ela disse. “Você não me reconhece? Eu fui Tatrix de Tharna.”

166
Foragidos de Gor
XXII

Cordas Amarelas

Quando a garota foi desacorrentada, eu a levantei em meus braços e a carreguei para


dentro de uma das tentas abobadadas que tinham me indicado.

Lá nós ficaríamos esperando até que seu colar fosse gravado.

O chão da tenda era coberto por espessos e coloridos tapetes, e o lado de dentro era
decorado com inúmeras sedas penduradas. A luz era fornecida por uma lamparina de
bronze com óleo de tharlarion, a qual estava pendurada por três correntes. Almofadas se
espalhavam sobre os tapetes. A um lado da tenda estava, com suas correias, um Cavalete
de Prazer.

Coloquei a garota no chão gentilmente.

Ela olhou para o cavalete.

“Primeiro,” ela disse, “você vai me usar, não vai?”

“Não,” eu disse.

Então ela se ajoelhou aos meus pés e tocou o tapete com a cabeça, jogando seu cabelo
sobre sua cabeça, expondo seu pescoço.

“Golpeie,” ela disse.

Eu a pus de pé.

“Você não me comprou para me matar?” ela perguntou, aturdida.

“Não,” eu disse. “Foi por isso que você me disse, ‘Compre-me, Mestre’?”

“Eu acho que sim,” ela disse. “Acho que eu queria que você me matasse.” Ela então olhou
para mim. “Mas não tenho certeza.”

“Porque você queria morrer?” eu perguntei.

“Eu que uma vez fui Tatrix de Tharna,” ela disse, seus olhos abatidos, “não desejo viver
como uma escrava.”
167
Foragidos de Gor
“Não vou te matar,” eu disse.

“Dê-me sua espada, Guerreiro,” ela disse, “e eu vou me jogar sobre ela.”

“Não,” eu disse.

“Ah sim,” ela disse, “um guerreiro nunca está disposto a ter o sangue de uma mulher em
sua espada.”

“Você é jovem,” eu disse, “- bonita e muito viva. Tire as Cidades de Poeira de sua mente.”

Ela gargalhou amarga.

“Por que você me comprou?” ela perguntou. “Você certamente deseja reclamar sua
vingança? Você se esqueceu que fui eu que te coloquei em um jugo, quem te chicoteou,
que te condenou aos Entretenimentos, quem te deu para o tarn? Esqueceu que fui eu
quem te traiu e o enviou para as minas de Tharna?”

“Não,” eu disse, meus olhos endureceram. “Não me esqueci.”

“E nem eu,” ela disse orgulhosamente, deixando claro que ela não me pediria nada, e não
esperaria nada de mim, nem mesmo por sua vida.

Ela permaneceu brava perante mim, mesmo estando tão impotente, tão à minha mercê.
Ela poderia ter ficado assim perante um larl na Voltai. Para ela era importante morrer
bem. Eu a admirei por isso, e a achei bela em seu desespero e desafio. Seu lábio inferior
tremia, mesmo que levemente. Quase que imperceptivelmente ela o mordeu para
controlar seu movimento, para que eu não notasse. Eu a achei magnífica. Uma pequena
gota de sangue apareceu eu seus lábios. Sacudi minha cabeça para afastar o pensamento
de que eu queria provar do sangue em seus lábios, de beijar sua boca.

Eu simplesmente disse, “não desejo lhe fazer mal.”

Ela me olhou, sem compreender.

“Por que você me comprou?” ela perguntou.

“Te comprei para te libertar,” eu disse.

“Você não sabia até então, que eu era a Tatrix de Tharna,” ela zombou.

“Não,” eu disse.

“Agora que você sabe,” ela perguntou, “o que irá fazer comigo? Vai usar o óleo de
tharlarion? Vai me jogar para as plantas sanguessugas? Vai me dar para seu tarn, me usar
de isca em uma armadilha para sleen?”

Eu gargalhei, e ela me encarou, aturdida.


168
Foragidos de Gor
“Então?” ela demandou.

“Você me deu muitas opções para pensar,” eu admiti.

“O que irá fazer comigo?” ela demandou.

“Vou libertá-la,” eu disse.

Ela deu um passo para trás, descrente. Seus olhos azuis pareceram se encher de espanto,
e então eles brilharam com lágrimas. Seus ombros se sacudiam enquanto ela soluçava.

Envolvi seus frágeis ombros com meus braços e para meu espanto, ela que tinha vestido
a máscara de ouro de Tharna, ela que tinha sido a Tatrix daquela grande cidade, colocou
sua cabeça sobre meu peito e chorou. “Não,” ela disse, “eu sou digna apenas de ser uma
escrava.”

“Isso não é verdade,” eu disse. “Lembre-se que uma vez você disse para um homem não
me bater. Lembre-se que uma vez você disse que era difícil ser a primeira de Tharna.
Lembre-se que uma vez você olhava para um campo de talêndulas e eu fui extremamente
rude e tolo ao falar com você.”

Ela permaneceu dentro de meus braços, seus olhos cheios de lágrimas se levantaram para
encontrar os meus. “Por que você me levou de volta para Tharna?” ela perguntou.

“Para trocar você pela liberdade de meus amigos,” eu disse.

“E não pela prata e joias de Tharna?” ela perguntou.

“Não,” eu disse.

Ela se afastou. “Eu não sou bela?”

Eu a observei com atenção.

“Você é de fato linda,” eu disse. “- tão linda que mil guerreiros dariam suas vidas para
ver sua face, tão linda que centenas de cidades poderiam cair em ruinas em seu nome.”

“Eu não agradaria – uma besta?” ela perguntou.

“Seria uma vitória para um homem ter você em suas correntes,” eu disse.

“No entanto, Guerreiro,” ela disse, “você não ficou comigo – você ameaçou me colocar
sobre o bloco e me vender para outro.”

Fiquei em silêncio.

“Por que não me manteve para você?”

169
Foragidos de Gor
Essa foi uma pergunta corajosa, estranha vindo dessa garota, que uma vez foi a Tatrix de
Tharna. “Meu amor é Talena,” eu disse, “filha de Marlenus que uma vez foi Ubar de Ar.”

“Um homem pode ter muitas escravas,” ela bufou. “Com certeza em seus Jardins de
Prazer – sejam eles onde forem – muitas belas prisioneiras vestem seu colar, certo?”

“Não,” eu disse.

“Você é um guerreiro estranho...”

Eu dei de ombros.

Ela ficou lá, corajosa perante mim. “Você não me quer?”

“Ver você é querer você,” eu admiti.

“Então me tome,” ela desafiou. “Eu sou sua.”

Olhei para baixo, para o tapete, imaginando o que dizer para ela.

“Eu não entendo,” eu disse.

“Bestas são idiotas!” ela exclamou.

Depois dessa inacreditável explosão ela foi para um canto da tenda, e segurou uma das
sedas penduradas com seu punho, atirando sua face contra ela.

Ela então se virou, ainda agarrando a seda em seu punho. Seus olhos estavam cheios de
lágrimas, mas raivosos. “Você me levou de volta para Tharna,” ela disse, quase como se
fizesse uma acusação.

“Pelo amor de meus amigos,” eu disse.

“E honra!” ela disse.

“Talvez, por honra também,” eu admiti.

“Eu odeio sua honra!” ela gritou.

“Algumas coisas,” eu disse, “são mais atraentes até mesmo do que a beleza de uma
mulher.”

“Eu te odeio,” ela disse.

“Sinto muito.”

Lara riu, um pequeno e triste riso, e sentou no tapete a um canto da tenda, aconchegando
seus joelhos debaixo de seu queixo. “Eu não te odeio, você sabe,” ela disse.

“Eu sei.”
170
Foragidos de Gor
“Mas eu odiei – eu odiei você. Quando eu era Tatrix de Tharna eu te odiava. Eu te odiava
tanto.”

Fiquei em silêncio. Sabia que ela tinha dito a verdade. Eu tinha percebido esses
sentimentos virulentos com os quais ela uma vez, inexplicável para minha mente, havia
nutrido por mim.

“Você sabe, Guerreiro,” ela perguntou, “por que eu – agora apenas uma escrava
miserável – te odiava tanto?”

“Não,” eu disse.

“Por que na primeira vez que te vi eu te reconheci de mil sonhos proibidos.” Seus olhos
me procuraram. Ela falou de forma suave agora. “Nestes sonhos eu estava orgulhosa em
meu palácio, cercada pelos meus conselheiros e guerreiros e então, estilhaçando o teto de
vidro, um grande tarn desceu, trazendo um guerreiro com elmo. Ele estraçalhou meus
conselheiros e derrotou meus soldados, e me pegou, e arrancou minhas roupas, me
amarrou nua sobre a sela de seu pássaro e então, com um grande grito, ele me levou para
sua cidade, e lá eu, uma vez a orgulhosa Tatrix de Tharna, vesti sua marca e sua coleira.”

“Não tema tais sonhos,” eu disse.

“E em sua cidade,” disse a garota, seus olhos brilhavam, “ele colocou sinos em meus
tornozelos me vestiu em sedas de dança. Eu não tinha escolha, você não entenderia. Eu
devia fazer o que ele desejava. E quando eu não podia mais dançar ele me pegou em seus
braços e como um animal me forçou a servir aos seus prazeres.”

“Este foi um sonho cruel,” eu disse.

Ela gargalhou, e sua face se queimou com vergonha. “Não,” ela disse, “este não foi um
sonho cruel.”
“Não entendo,” eu disse.

“Nos braços dele eu aprendi o que Tharna não pôde me ensinar. Nos braços dele eu
aprendi a compartilhar o ardente esplendor de sua paixão. Nos braços dele eu conheci
montanhas e flores e os gritos dos tarns selvagens, e o toque da unha de um larl. Pela
primeira vez em minha vida meus sentidos foram despertados – pela primeira vez eu
pude sentir o movimento das roupas sobre meu corpo, pela primeira vez eu aprendi a
abrir os olhos e soube qual é, de verdade, a sensação do toque de uma mão – e eu soube
então que eu não era nem mais nem menos do que ele ou qualquer outra criatura viva, e
eu o amei por isso!”

Eu não disse nada.

171
Foragidos de Gor
“Eu não seria capaz,” ela disse, “de desistir de sua coleira nem por todo o ouro e prata de
Tharna, nem por todas as pedras de sua muralha cinzenta.”

“Mas você não era livre neste sonho,” eu disse.

“Eu era livre em Tharna?” ela perguntou.

Abaixei meu olhar para a intrincada decoração do tapete, sem falar nada.

“É claro,” ela disse, “como alguém que vestia a máscara de Tharna eu repeli este sonho.
Eu o odiei. Ele me aterrorizava. Ele sugeria para mim que eu, mesmo sendo a Tatrix,
poderia compartilhar da vil natureza de uma besta.” Ela sorriu. “Então eu vi você,
Guerreiro, pensei que você poderia ser o guerreiro deste sonho. Então foi por isso que te
odiei e tentei te destruir, pois você era uma ameaça para mim e para tudo o que eu era, e
ao mesmo tempo que te odiava, eu te temia, e também te desejava.”

Levantei meu olhar, surpreso.

“Sim,” ela disse. “Eu te desejava.” Sua cabeça abaixou e sua voz ficou quase que
inaudível. “Embora eu fosse a Tatrix de Tharna,” ela disse, “eu queria me deitar aos seus
pés sobre o tapete escarlate. Eu queria ser amarrada com cordas amarelas.”

Me lembrei de que ela tinha dito algo sobre um tapete e cordas lá na câmara do conselho
de Tharna, quando ela parecia consumida pela ira, quando ela pareceu querer cortar a
carne de meus ossos.

“Qual o significado do tapete e das cordas?” eu perguntei.

“Nos dias antigos, em Tharna,” disse Lara, “as coisas eram diferentes do que são hoje.”

E então, na tenda do mercador de escravos, Lara, que tinha sido a Tatrix de Tharna, me
contou sobre a estranha história de sua cidade. No começo Tharna era muito parecida
com as outras cidades de Gor, onde mulheres eram muito pouco respeitadas e gozavam
de poucos direitos também. Em tais dias, como parte dos Ritos da Submissão, que era
praticado em Tharna, era comum despir e amarrar uma prisioneira com cordas amarelas
e a colocar sobre um tapete escarlate, o amarelo das cordas simbolizava as talêndulas,
uma flor frequentemente associada com o amor feminino e a beleza, o escarlate do tapete
simbolizava o sangue, e talvez a paixão.

Aquele que tinha capturado a garota colocaria sua espada nos seios dela e assim proferia
as rituais frases do processo de escravidão. Aquelas seriam a últimas palavras que ela
ouviria como uma mulher livre.

Chore, Donzela Livre.

Lembre-se de seu orgulho e chore.


172
Foragidos de Gor
Lembre-se de seu riso e chore.

Lembre-se que você foi minha inimiga e chore.

Agora você é minha prisioneira impotente.

Lembre-se que você se levantou contra mim.

Agora você se deita aos meus pés.

Eu te amarrei com cordas amarelas.

Eu te coloquei sobre o tapete escarlate.

Assim, pelas leis de Tharna eu clamo você.

Lembre-se de que foi livre.

Saiba que agora você é minha escrava.

Chore, Escrava.

Neste ponto o captor desamarrava os tornozelos da garota e completava o ritual. Quando


ela se levantava do tapete para segui-lo, ela era, aos olhos dele e dela, uma escrava.

Depois de um tempo esta prática cruel caiu em desuso e as mulheres de Tharna passaram
a ser vistas de forma mais razoável e humana. De fato, através de seu amor e ternura, elas
ensinavam seus captores que elas, também, eram merecedoras de respeito e afeição. E é
claro, como o captor gradualmente com o tempo vinha a gostar de suas escravas, o desejo
de subjugá-las diminuía, pois, poucos homens desejam subjugar por longo tempo uma
criatura a quem eles se importam genuinamente, a não ser talvez que eles temam perde-
la, caso ela se torne livre.

Assim como o status das mulheres se tornou mais enobrecido e menos claramente
definido, as sutis tensões entre dominação e submissão, instintivas através de todo o
mundo animal, tenderam a se acertar.

O equilíbrio no respeito mútuo é sempre delicado, e estatisticamente, é improvável que


possa ser mantido por longo tempo em toda uma população. Assim, explorando
gradualmente, talvez inconscientemente, as oportunidades que apareciam no
aprendizado infantil e na afeição de seus homens, as mulheres de Tharna melhoraram
sua posição consideravelmente ao longo das gerações, adicionando também ao seu poder
social a dádiva econômica de vários fundos e heranças.

Eventualmente, principalmente através do condicionamento dos jovens e do controle da


educação, esta superioridade na qual as fêmeas naturalmente possuem veio a aumentar
em relação à superioridade dos machos. E assim como em nosso próprio mundo, é
173
Foragidos de Gor
possível condicionar populações inteiras a acreditar no que, do ponto de vista de outra
população, é incompreensível e absurdo, então em Tharna ambos, homens e mulheres
vieram eventualmente a acreditar nos mitos ou distorções vantajosas da dominação
feminina. E foi assim que gradualmente e sem ser notado, a ginocracia de Tharna veio a
ser estabelecida, e honrada com todo o peso da tradição e costumes, estas amarras
invisíveis são mais pesadas que correntes, pois não se tem ideia de que elas existem.

No entanto esta situação, por mais socialmente viável que possa ser durante gerações,
não é um meio em que se produz felicidade humana de verdade. De fato, não é totalmente
claro se é preferível o etos de dominação masculina da maioria das cidades Goreanas, o
qual, também, certamente tem seu lado negativo. Em uma cidade como Tharna os
homens, ensinados a se verem como bestas, como seres inferiores, raramente
desenvolvem o completo respeito por si mesmos que é essencial para a verdadeira
masculinidade. Mas de modo mais estranho ainda, as mulheres de Tharna não parecem
contentes em sua ginocracia. Embora elas desprezem homens e se vangloriem em seus
mais altos status, me parece que elas, também, falham em respeitarem a si mesmas.
Odiando seus homens elas odeiam a si mesmas.

Eu já me perguntei algumas vezes se seria possível para um homem se tornar homem


sem precisar dominar uma mulher e se seria possível para uma mulher se tornar mulher
sem precisar ser dominada. Já me perguntei por quanto tempo as leis da natureza, se é
que são leis, seriam subvertidas em Tharna. Eu pude sentir a ansiedade que um homem
de Tharna tinha para remover a máscara de uma mulher, e eu suspeitava do quanto uma
mulher lá deveria ansiar para ter sua máscara removida. Caso houvesse uma revolução
nos costumes de Tharna eu teria pena de suas mulheres – pelo menos no começo – pois
elas seriam o alvo da frustração reprimida de gerações. Se o pêndulo oscilasse em Tharna,
ele iria oscilar muito. Talvez até mesmo de volta ao tapete escarlate e às cordas amarelas.

Ouvimos a voz de Targo vindo do lado de fora da tenda.

Para minha surpresa Lara caiu de joelhos, os colocando na posição de uma Escrava de
Prazer, e abaixando sua cabeça de forma submissa.

Targo irrompeu dentro da tenda carregando um pequeno pacote e aprovativamente


notando a postura da garota.

“É Mestre,” ele disse, “parece que com você ela aprende rápido.” Ele olhou radiante para
mim. “Eu apaguei meus registros. Ela é sua.” Ele colocou o pacote em minhas mãos. Era
um camisk dobrado, e dentro dele tinha uma coleira. “Um símbolo de meu apreço pela
nossa negociação,” disse Targo. “Não haverá nenhum custo extra.”

Eu sorri comigo mesmo. Os mais profissionais mercadores de escravos teriam fornecido


muito mais do que isso. Notei que Targo nem mesmo forneceu o mais comum uniforme
174
Foragidos de Gor
de escravas de Gor, mas ao invés disso, proveu-me com um mero camisk, o qual
claramente já tinha sido usado antes.

Targo então tateou dentro do saco que ele vestia e retirou duas cordas amarelas, com
cerca de dezoito polegadas cada uma. “Eu notei pelo seu elmo azul,” ele disse, “que você
é de Tharna.”

“Não,” eu disse, “não sou de Tharna.”

“Ah, bem,” disse Targo, “como é que se poderia saber?” Ele jogou as cordas sobre o tapete
na frente da garota.

“Não tenho mais chicotes de escravos,” disse Targo, balançando seus ombros tristemente,
“mas a cinta de sua espada vai servir muito bem.”

“Tenho certeza que sim,” eu disse, devolvendo a coleira e o camisk.

Targo olhou confuso.

“Traga para ela as roupas de uma mulher livre,” eu disse.

Targo ficou de queixo caído.

“- de uma mulher livre,” eu repeti.

Targo olhou de soslaio para o Cavalete de Prazer a um canto da tenda, talvez à procura
de manchas de suor nas correias.

“Tem certeza?” ele perguntou.

Gargalhei e girei o pequeno companheiro gordo, com uma mão no colarinho de seus
robes e outra firmemente afixada em baixo do colarinho, o empurrei aos tropeços na
direção da saída da tenda.

Ele recuperou seu equilíbrio lá e, com seus brincos a balançar, se virou para me fitar como
se pensasse que eu tivesse perdido meu juízo. “Será que talvez o Mestre não está
cometendo um erro?” ele sugeriu.

“Talvez,” eu admiti.

“Onde,” perguntou Targo, “no acampamento de um legítimo mercador de escravos, você


espera que eu encontre roupas adequadas para uma mulher livre?”

Eu gargalhei, e Targo sorriu e saiu da tenda.

Eu tentei imaginar em quantas noites, mulheres livres, prisioneiras amarradas, tinham


sido jogadas aos seus pés para serem acessadas e compradas, quantas mulheres livres

175
Foragidos de Gor
tinham em seu acampamento trocado suas ricas vestimentas por um camisk e um anel de
tornozelo em sua corrente.

Pouco tempo depois Targo tropeçou de volta pra dentro da tenda, seus braços
abarrotados com roupas. Ele as atirou sobre o tapete, bufando. “Escolha uma, Mestre,”
ele disse, e saiu da tenda, sacudindo sua cabeça.

Eu sorri e olhei para Lara.

A garota tinha se levantado de pé.

Para minha surpresa ela andou até as abas da entrada da tenda e as fechou, amarrando-
as juntas e fechadas por dentro.

Ela se virou para me facear, sem respirar.

Era muito bela sob a luz de lamparina, entre as ricas sedas penduradas da tenda.

Ela pegou as duas cordas amarelas, e as segurando em suas mãos, se ajoelhou perante
mim na posição de uma Escrava de Prazer.

“Eu vou te libertar,” eu disse.

Humildemente ela levantou as cordas para que eu as aceitassem, seus olhos brilhantes,
suplicantes, se levantaram olhando para os meus.

“Eu não sou de Tharna,” eu disse.

“Mas eu sou,” ela disse.

Percebi que ela se ajoelhava sobre um tapete escarlate.

“Vou te libertar,” eu disse.


“Não sou livre ainda,” ela disse.

Fiquei quieto.

“Por favor,” ela implorou, “- Mestre.”

E então eu peguei as cordas de suas mãos, e na mesma noite, Lara que tinha uma vez sido
a orgulhosa Tatrix de Tharna se tornou, segundo os antigos ritos de sua cidade, minha
escrava – e uma mulher livre.

176
Foragidos de Gor
XXIII

Retorno a Tharna

Do lado de fora do acampamento de Targo, Lara e eu subimos em uma pequena colina e


ficamos de pé em seu topo. Eu pude ver à minha frente, a alguns pasangs ao longe, os
pavilhões da Feira de En'Kara, e atrás deles os iminentes cumes da Sardar, ominosos,
negros, absolutos. Entre a Feira e as montanhas, se levantando subitamente nas planícies,
eu pude ver a cerca de troncos de madeira negra, afinadas no topo, que separava a Feira
das montanhas.

Homens que buscavam as montanhas, homens cansados da vida, jovens idealistas,


oportunistas ansiosos para aprender os segredos da imortalidade em seu recesso, usavam
o portão no final da avenida central da Feira, um portão duplo feito de toras negras
montado sobre gigantes dobradiças de madeira, um portão que ao se abrir a partir do
centro, revelava a Sardar através dele.

Mesmo lá de pé sobre a colina eu pude ouvir o lento rangido de um pesado tubo de metal
oco, que indicava que o portão negro estava se abrindo. O triste, lento som alcançava o
monte onde estávamos.

Lara estava ao meu lado, vestida como mulher livre mas não nos Robes de Encobrimento.
Ela tinha encurtado e aparado uma das mais graciosas vestes Goreanas, cortando-a na
altura de seus joelhos e removendo as mangas de modo que cobrissem apenas até seus
cotovelos. Era uma veste amarelo claro e ela tinha usado uma faixa escarlate como cinto.
Seus pés vestiam sandálias planas de couro vermelho. Sobre seus ombros, por sugestão
minha, ela enrolou uma capa de lã pesada. Era escarlate. Eu pensei que ela precisaria
disso para se aquecer. Eu acho que ela gostou pois combinava com a faixa em sua cintura.
Sorri comigo mesmo. Ela estava livre.

Eu estava satisfeito, pois ela parecia feliz.

Ela tinha recusado os usuais Robes de Encobrimento. Alegando que ela seria um
empecilho para mim caso se vestisse dessa forma. Eu não argumentei, pois ela estava
177
Foragidos de Gor
certa. Enquanto eu assistia seus cabelos loiros a balançar atrás dela com o vento, enquanto
eu considerava os prazerosos delineamentos de sua beleza, eu também me sentia
contente por ela não ter escolhido, quaisquer que fossem suas razões, se vestir da maneira
tradicional.

No entanto, embora eu não fosse capaz de reprimir a admiração que tinha por essa garota,
e pela transformação que tinha acontecido com ela, da fria Tatrix de Tharna para a escrava
humilhada e depois para esta gloriosa criatura que agora estava aqui ao meu lado, meus
pensamentos estavam mais voltados para Sardar, pois eu sabia que eu não tinha tido
ainda meu encontro com os Sacerdotes-Reis.

Pude ouvir o lento, sombrio rangido da barra oca do portão.

“Alguém entrou nas montanhas,” disse Lara.

“Sim,” eu disse.

“Ele irá morrer,” ela disse.

Eu concordei com a cabeça.

Eu tinha falado para ela do meu objetivo de ir para as montanhas, que meu destino residia
lá. Ela tinha simplesmente dito, “eu vou com você.”

Ela sabia, assim como eu, que aqueles que entravam nas montanhas não retornavam. Ela
conhecia assim como eu, talvez melhor, o temeroso poder dos Sacerdotes-Reis.

Ainda assim ela tinha dito que iria comigo.

“Você é livre,” eu tinha dito.

“Quando eu era sua escrava,” ela tinha me dito, “você poderia me ordenar a te seguir.
Agora que sou livre irei acompanha-lo por minha própria vontade.”

Olhei para a garota. Quão orgulhosa e ainda assim, quão maravilhosa ela estava ao meu
lado. Percebi que ela tinha catado uma talêndula na colina, e que a tinha posto em seu
cabelo.

Eu sacudi minha cabeça.

Mesmo que toda a força da minha vontade me impelisse para as montanhas, mesmo que
nas montanhas os Sacerdotes-Reis esperassem por mim, eu não poderia ir ainda. Seria
inaceitável eu levar esta garota para dentro de Sardar para ser destruída assim como eu
seria destruído, seria inaceitável que eu pudesse devastar sua jovem vida tão
recentemente iniciada dentro das glórias das sensações, a qual tinha acabado de despertar
para as vitórias da vida e dos sentimentos.

178
Foragidos de Gor
O que eu poderia usar para convencê-la? – minha honra, minha sede de vingança, minha
curiosidade, minha frustração, minha fúria?

Coloquei meu braço sobre seu ombro e a conduzi colina abaixo.

Ela me olhava curiosa.

“Os Sacerdotes-Reis devem esperar,” eu disse.

“O que você vai fazer?” ela perguntou.

“Retornar você para o trono de Tharna,” eu disse.

Ela pulou para longe de mim, seus olhos se encheram de lágrimas.

Eu a puxei de volta para meus braços e a beijei gentilmente.

Ela olhou para mim, seus olhos molhados com lágrimas.

“Sim,” eu disse, “eu quero isso.”

Ela recostou sua cabeça contra meu ombro.

“Bela Lara,” eu disse, “perdoe-me.” Eu a abracei mais apertado. “Eu não posso leva-la
para Sardar. Não posso deixa-la aqui. Você seria morta pelas bestas ou voltaria para a
escravidão.”

“Vai me levar de volta pra Tharna?” ela perguntou. “Eu odeio Tharna.”

“Eu não tenho uma cidade na qual pudesse levar você,” eu disse. “E eu acredito que você
pode transformar Tharna em algo que você não mais irá odiar.”

“O que eu devo fazer?” ela perguntou.

“Isso você tem que decidir por você mesma,” eu disse.

Eu a beijei.

Segurando sua cabeça em minhas mãos eu olhei dentro dos olhos dela.

“Sim,” eu disse orgulhosamente, “você foi feita para governar.”

Limpei as lágrimas de seus olhos.

“Sem lágrimas,” eu disse, “pois você é a Tatrix de Tharna.”

Ela olhou para cima, para mim e sorriu, um sorriso triste. “É claro, Guerreiro,” ela disse,
“não deve haver lágrimas – pois eu sou a Tatrix de Tharna e uma Tatrix não chora.”

Ela retirou a talêndula de seu cabelo.

179
Foragidos de Gor
Eu me abaixei pegando a flor e a recoloquei no lugar.

“Eu amo você,” ela disse.

“É difícil ser a primeira em Tharna,” eu disse, a conduzindo colina abaixo, para longe das
Montanhas de Sardar.

****

O incêndio que queimava nas Minas de Tharna não tinha ainda sido extinguido. A revolta
dos escravos tinha se espalhado das minas para as Grandes Fazendas. Algemas tinham
sido quebradas e armas foram apreendidas. Homens raivosos, armados com qualquer
ferramenta capaz de destruir que encontrassem, perambulavam pelas terras, evitando os
soldados de Tharna, caçando celeiros para roubar, construções para queimar, escravos
para libertar. De fazenda a fazenda a rebelião se espalhou e os suprimentos das fazendas
para a cidade se tornaram esporádicos ou cessaram. O que os escravos não pudessem
usar ou esconder, eles cortavam ou queimavam.

A não mais de duas horas da colina, onde eu tinha tomado a decisão de retornar Lara
para sua cidade nativa o tarn nos encontrou, assim como pensei que ele faria. Assim como
ele fez no Pilar de Trocas, quando o pássaro vasculhou a vizinhança, agora, pela segunda
vez, sua paciência foi recompensada. Ele pousou a umas quinze jardas de nós e corremos
para seu lado, eu primeiro, Lara depois de mim, ela ainda estava apreensiva com a besta.

Minha alegria foi tão grande que eu abracei o pescoço daquele monstro negro.

Aqueles olhos redondos e ardentes me fitaram, aquelas grandes asas se levantaram e


sacudiram, seu bico se levantou para o céu e ele guinchou o estridente grito do tarn.

Lara gritou em terror quando o monstro me tocou com seu bico.

Eu não me movi e o grande e terrível bico se fechou gentilmente em meu braço. Caso o
tarn quisesse, apenas ao girar sua gloriosa cabeça, ele poderia arrancar o membro de meu
corpo. Embora seu toque fosse quase que afetuoso. Eu dei um tapa em seu bico e joguei
Lara sobre suas amplas costas e pulei atrás dela.

Novamente aquela indescritível emoção me possuiu e eu acho que desta vez até mesmo
Lara compartilhou de meus sentimentos. “Primeira-rédea!” eu gritei, e a monstruosa
figura do tarn se impulsionou uma vez mais para os céus.

Quanto mais subíamos, mais campos carbonizados de Sa-Tarna víamos abaixo de nós. A
sombra do tarn flutuava sobre as armações enegrecidas das construções, sobre currais
180
Foragidos de Gor
quebrados que uma vez guarneceram os animais das fazendas, sobre pomares que agora
eram nada mais que árvores destruídas, suas folhas e frutos estavam marrons e murchos.

Sobre as costas do tarn Lara chorou ao ver a desolação que tinha acometido sua terra.

“Isso que eles fizeram foi cruel,” ela disse.

“Também foi cruel o que fizeram com eles,” eu disse.

Ela ficou quieta.

O exército de Tharna tinha atacado aqui e ali, em esconderijos de escravos que tinham
sido reportados, mas quase que invariavelmente, não encontraram nada. Talvez alguns
utensílios quebrados, as cinzas de fogueiras. Os escravos, avisados de sua chegada por
outros escravos ou por camponeses, apoiados pelas Grandes Fazendas, faziam sua fuga,
e atacavam apenas quando estavam prontos, quando eram inesperados e quando eram
superiores em força.

As investidas dos tarnsmans tinham mais sucesso, mas a maior parte dos bandos de
escravos, que agora eram quase regimentos, se moviam apenas à noite e se escondiam
durante o dia. Com o tempo ficou perigoso para a pequena cavalaria de Tharna investir
contra eles, para enfrentar a brava tempestade de flechas que parecia subir do próprio
solo, de todos os lados.

Muitas vezes de fato, eram feitas emboscadas, um pequeno grupo de escravos se permitia
ser rastreado e fugia para dentro dos corredores rochosos das regiões montanhosas de
Tharna, lá seus perseguidores eram assaltados por grupos de rebeldes escondidos;
algumas vezes tarnsmans desciam para capturar um escravo apenas para encontrar as
flechas de centenas de homens escondidos em covas encobertas.

Talvez com o tempo, contudo, os indisciplinados, mas corajosos bandos de escravos


fossem dispersados e destruídos pelas unidades de Tharna, se não fosse o fato da
revolução em si, que tinha começado nas minas e se espalhado até as Grandes Fazendas,
ter agora inflamado para dentro da própria cidade. Não eram apenas escravos da cidade
que levantavam suas bandeiras de desafio, mas homens das castas baixas também,
aqueles cujos irmãos ou amigos tinham sido enviados para as minas ou sido usados nos
Entretenimentos, estes agora finalmente ousaram levantar os instrumentos de seu ofício
contra os guardas e soldados de Tharna. Era dito que a rebelião na cidade era liderada
por um homem pequeno, forte, com olhos azuis e cabelos curtos, que antes foi da Casta
dos Ferreiros.

Certas partes da cidade tinham sido queimadas para exterminar os elementos rebeldes e
este ato cruel de repressão apenas contribuiu para trazer os homens confusos e não
decididos para o lado dos rebeldes. Agora era dito que a maior parte da cidade estava
181
Foragidos de Gor
nas mãos dos rebeldes. As máscaras de prata de Tharna, quando puderam, escaparam
para as partes da cidade que ainda estavam sob o domínio dos soldados. Muitas foram
enviadas para se abrigarem nos confinamentos do próprio palácio real. O destino
daquelas que não conseguiram escapar dos rebeldes não se sabia ainda.

Foi no fim de tarde do quinto dia que nós avistamos ao longe as cinzentas muralhas de
Tharna. Não fomos ameaçados ou abordados por nenhuma patrulha. Na verdade,
pudemos ver tarnsmans em suas montarias aqui e ali por entre os cilindros, mas nenhum
veio para nos desafiar.

Em muitos lugares da cidade, longas cortinas de fumaça subiam em espiral e então


desvaneciam em filetes vagos e negros.

O portão principal estava pendurado aberto sobre suas dobradiças, pequenas e isoladas
figuras transitavam para dentro e para fora.

Não haviam carroças de tharlarions ou filas de lenhadores ou vendedores ambulantes


fazendo seu caminho para dentro ou fora da cidade. Do lado de fora dos muros muitas
das pequenas construções estavam queimadas. Na própria muralha, sobre os portões, em
grandes letras rabiscaram a frase “Sa'ng-Fori”, literalmente “Sem Correntes” mas talvez
melhor traduzido simplesmente como “Independência” ou “Liberdade”.

Trouxe o tarn para baixo e pousei sobre a muralha perto do portão. Libertei o pássaro.
Não havia puleiros lá no qual eu pudesse deixa-lo, e também, mesmo se tivesse, eu não
confiaria nos guardiões de tarns de Tharna. Eu não sabia quem estava e quem não estava
a favor rebelião. Talvez eu realmente quis deixar o pássaro livre para o caso de minhas
esperanças terminarem em desastre, no caso da Tatrix e eu perecermos em algum beco
de Tharna.

No topo do muro nós avistamos a forma contorcida de um guarda caído. Ele se moveu
de leve. Ouvi um baixo som de dor. Ele aparentemente tinha sido deixado lá para morrer
e estava agora recuperando a consciência. Suas vestes cinzas assim como a tira escarlate
de pano amarrada em seu ombro estavam manchadas com sangue. Eu desprendi seu
elmo e gentilmente o removi.

Um dos lados do elmo estava rachado e aberto, talvez pelo golpe de um machado. A
correia do elmo, a parte de dentro do elmo e os cabelos loiros do soldado estavam
ensopados com seu sangue. Ele era apenas um garoto.

Assim que ele sentiu o vento sobre a muralha soprando em sua face ele abriu seus olhos
azuis acinzentados. Sua mão tentou agarrar sua arma, mas a bainha estava vazia.

“Não se esforce,” eu disse para ele, olhando para a ferida. O elmo absorveu a maior parte
do impacto, mas a lâmina do instrumento que o golpeou vincou seu crânio, o que fez o
182
Foragidos de Gor
sangue escorrer. É mais provável que foi a força do golpe que o deixou inconsciente e o
sangue sugeriu para quem o atacou que o trabalho estava acabado. Seu agressor
aparentemente não era um guerreiro.

Com um pedaço da capa de Lara eu amarrei a ferida. Estava limpa e não era profunda.

“Você vai ficar bem,” eu disse para ele.

Seus olhos alternavam entre mim e Lara. “Você está do lado da Tatrix?” ele perguntou.

“Sim,” eu disse.

“Eu lutei por ela,” disse o garoto, recostando sua cabeça em meu braço. “Eu cumpri meu
dever.”

Pude notar que ele não gostou de fazer seu trabalho, e que talvez seu coração estivesse
com os rebeldes, mas o orgulho de sua casta o manteve em seu posto. Até mesmo em sua
juventude ele tinha a lealdade cega de um guerreiro, a lealdade na qual eu respeitava e
que talvez não fosse mais cega do que a mesma lealdade que eu tinha. Tais homens são
terríveis adversários, mesmo que suas espadas estejam juradas para as mais desprezíveis
das causas.

“Você não lutou por nossa Tatrix,” eu disse imparcialmente.

O jovem guerreiro em meus braços se motivou. “Lutei sim,” ele gritou.

“Não,” eu disse, “você lutou por Dorna a Altiva, pretendente ao trono de Tharna – uma
usurpadora e traidora.”

Os olhos do guerreiro se abriram enquanto ele nos fitava.

“Aqui,” eu disse, apontando para a bela garota ao meu lado, “está Lara, a verdadeira
Tatrix de Tharna.”

“Sim, bravo Guarda,” disse a garota, colocando sua mão gentilmente em sua testa como
se quisesse acalmá-lo, “eu sou Lara.”

O guarda se remexeu em meus braços, e então caiu de volta, fechando seus olhos, em dor.

“Lara,” ele disse, embora de olhos fechados, “foi levada para longe pelo tarnsman nos
Entretenimentos.”

“Eu sou ele,” eu disse.

Os olhos azuis acinzentados lentamente se abriram e observaram minha face por um


longo tempo, e gradualmente o reconhecimento transformou as feições do jovem guarda.
“Sim,” ele disse, “eu me lembro.”

183
Foragidos de Gor
“O tarnsman,” disse Lara, falando suavemente, “me levou de volta para o Pilar de Trocas.
Lá eu fui sequestrada por Dorna a Altiva e por Thorn, seu cúmplice, e assim fui vendida
para a escravidão. O tarnsman me libertou e agora me trouxe de volta para meu povo.”

“Eu lutei por Dorna a Altiva,” disse o garoto. Seus olhos azuis cinzentos se encheram com
lágrimas. “Perdoe-me, verdadeira Tatrix de Tharna,” ele implorou. E se não fosse
proibido, já que um homem de Tharna não poderia tocar ela, uma mulher de Tharna, eu
acho que ele teria esticado sua mão na direção dela.

Para seu deleite Lara pegou as mãos dele com as delas. “Você fez bem,” ela disse. “Estou
orgulhosa de você, meu guarda.”

O garoto fechou seus olhos e seu corpo relaxou em meus braços.

Lara me olhou, seus olhos estavam temerosos.

“Não,” eu disse, “ele não morreu. Ele apenas é jovem e perdeu muito sangue.”

“Olhe!” gritou a garota, apontando para os pés da muralha.

Seis figuras, cinzas, carregando lanças e escudos estavam se movendo rapidamente na


minha direção.

“Guardas,” eu disse, sacando minha espada.

De repente eu vi os escudos mudarem de posição, de frente para nós agora, e vi os braços


direitos deles se levantarem, lanças ao alto, sem vacilar sob os rápidos passos dos
homens. Em pouco mais de uma dúzia de passos as seis lanças iriam voar arremessadas
sob aquele mesmo passo rápido em que estavam agora.

Sem perder tempo eu coloquei a espada de volta no meu cinto e agarrei Lara pela cintura.
Enquanto ela protestava eu me virei e a forcei a correr ao meu lado.

“Espere!” ela suplicou. “Eu vou falar com eles!”

Eu a peguei no colo e corri.

Mal tínhamos alcançado a escada de pedra em espiral que levava para baixo da muralha
quando as seis lanças, suas pontas descrevendo um círculo de talvez uma jarda de
diâmetro, bateram contra o muro sobre nossas cabeças lascando as pedras.

Uma vez que alcançamos o chão nos mantivemos perto da base da muralha assim não
seríamos alvo fácil para as lanças. Por outro lado, eu não acredito que os guardas
lançariam suas armas de cima do muro. Caso errassem, ou se não errassem também,
teriam de descer dos muros para recuperar as armas. Era improvável que um pequeno
grupo como aquele abandonaria a vantagem de estar sobre a alta muralha para perseguir
dois rebeldes.
184
Foragidos de Gor
****

Começamos a traçar nosso tortuoso caminho através das ruas de Tharna, perigosas e
manchadas de sangue. Algumas construções tinham sido destruídas. Lojas tinham sido
bloqueadas. A desordem estava por todo lado. Lixo queimava em valetas. As ruas
estavam extremamente desertas salvo aqui ou ali, onde podia-se encontrar um corpo, às
vezes de um guerreiro de Tharna, mais frequentemente o corpo de um de seus cidadões
em vestes cinzentas. Em muitos dos muros podia-se ler a palavra “Sa'ng-Fori”.

Em certas ocasiões olhos aterrorizados nos inspecionavam temerosamente através das


frestas de janelas bloqueadas. Eu suspeitava que não houvesse uma porta em Tharna que
não tivesse barreiras naquele dia.

“Alto!” gritou uma voz, e nós paramos.

Pela frente e por trás de nós um grupo de homens pareceu se materializar. Muitos deles
seguravam bestas; pelo menos quatro deles tinham lanças posicionadas; outros
ostentavam espadas; mas a maioria carregava nada mais que uma corrente ou uma estaca
com ponta afiada.

“Rebeldes!” disse Lara.

“Sim,” eu disse.

Podíamos ler o desafio taciturno, a determinação, a capacidade de matar naqueles olhos,


vermelhos por não dormirem, a desesperada postura daqueles corpos em vestes cinzas,
ávidos e rancorosos com a típica tensão da luta de rua. Haviam lobos nas ruas de Tharna.

Eu lentamente puxei a espada, e empurrei a garota para um lado da rua, contra o muro.

Um deles gargalhou.

Eu também ri, pois resistir seria inútil, ainda assim eu sabia que eu devia resistir, que eu
não seria desarmado até que tivesse caído morto sobre as pedras da rua.

E Lara?

Qual seria seu destino nas mãos daquele bando de enlouquecidos e desesperados
homens? Eu fitava meus inimigos enfurecidos, alguns deles estavam feridos. Eles
estavam imundos, selvagens, exaustos, nervosos, talvez famintos. Ela provavelmente
seria assassinada ali mesmo no muro em que estava de pé. Seria brutal mas rápido, de
toda forma, seria misericordioso.

185
Foragidos de Gor
Os braços das lanças se armaram, as bestas se levantaram apontando. Correntes foram
agarradas mais firmemente; as poucas espadas se levantaram na minha direção; até
mesmo as afiadas estacas se inclinaram na direção de meu peito.

“Tarl de Ko-ro-ba!” gritou uma voz, e eu vi um pequeno homem, esguio com um tufo de
cabelo cor de areia sobre sua testa, abrindo caminho por entre o bando de rebeldes
enfurecidos que nos confrontavam.

Era aquele homem que tinha sido o primeiro na corrente, nas minas, ele que teve de ser
o primeiro a escalar o buraco do canil de escravos para a liberdade.

Sua face estava transfigurada com alegria e ele correu à frente e me abraçou.

“É ele!” o homem gritou. “É Tarl de Ko-ro-ba!”

A esse ponto, para meu deleite, o bando de esfarrapados levantou suas armas e soltou
um grito barbárico. Eu fui arrancado do chão e atirado sobre os ombros deles. Fui
carregado através das ruas e outros rebeldes, vindos de vãos de portas e janelas, quase
que como se brotassem das pedras das ruas, se juntaram ao que se transformou em uma
procissão de triunfo.

As vozes desses abatidos, mas também transformados homens começaram a cantar. Eu


reconheci a cantiga. Era uma canção de arar que eu ouvi pela primeira vez de um
camponês nas minas. Ela tinha se tornado o hino da revolução.

Lara, tão descrente quanto eu, corria por entre os homens, ficando tão perto de mim
quanto a tumultuada multidão permitia.

Assim, transportado no alto, de rua em rua, no meio da gritaria alegre, armas se


levantavam de todos os lados em saudação, meus ouvidos zunindo com a canção de
arado, aquela canção que tinha um valor simbólico para Tharna, e que há muito foi
suplantada pelas Grandes Fazendas, assim eu me encontrei carregado até aquela loja de
Kal-da, a qual eu me lembrava muito bem, onde eu tinha jantado em Tharna e depois fui
acordado pelo traiçoeiro Ost. Aquela loja tinha se tornado o quartel general da revolução,
talvez por que os homens de Tharna se lembravam de que foi lá onde aprenderam a
cantar.

Lá, de pé perante a porta baixa, eu avistei uma vez mais a atarracada e poderosa figura
de Kron, da Casta dos Ferreiros. Seu grande martelo estava pendurado em seu cinto e
seus olhos azuis brilhavam de felicidade. As grandes mãos cheias de cicatrizes do ferreiro
estavam estendidas na minha direção.

Ao seu lado, para minha alegria, eu vi a face imprudente de Andreas, com aquele tufo de
cabelo preto quase tapando sua testa inteira. Atrás de Andreas, em um vestido de mulher

186
Foragidos de Gor
livre, sem véu, com seu pescoço não mais envolto na coleira de escrava do estado, eu vi
a estonteante, a radiante Linna de Tharna.

Andreas se moveu através dos homens na porta e me alcançou. Ele me agarrou pelas
mãos e me arrastou para a rua, me dando um abraço brusco e gargalhando de alegria.

“Bem-vindo a Tharna!” ele disse. “Bem-vindo a Tharna!”

“Sim,” disse Kron, a apenas um passo atrás dele, agarrando meu braço. “Bem-vindo a
Tharna.”

187
Foragidos de Gor
XXIV

A Barricada

Eu abaixei minha cabeça e empurrei a pesada porta de madeira da loja de Kal-da. A placa
VENDE-SE KAL-DA AQUI tinha sido repintada em letras mais claras. Também, pintada
perto das letras, escrita a dedo, estava a convocação desafiadora para a rebelião – “Sa'ng-
Fori.”

Desci os curtos e largos degraus até o interior. Desta vez a loja estava tumultuada. Era
difícil ver onde eu pisava. Estava cheia e barulhenta. Mais parecia uma Taverna de Paga
de Ko-ro-ba ou de Ar, não uma simples loja de Kal-da de Tharna. Meus ouvidos eram
atacados pelos ruídos, pela jovial algazarra dos homens que não mais temiam rir ou
gritar.

A loja por si mesma estava agora repleta com talvez meia centena de lamparinas e as
paredes foram coloridas com as cores das castas dos homens que bebiam aqui. Espessos
tapetes tinham sido jogados por baixo das mesas baixas e estavam repletos de manchas
de Kal-da que derramavam.

Atrás do balcão, o magro proprietário de cabeça raspada, com sua testa a brilhar, com seu
liso avental preto manchado por especiarias, sucos e vinho, trabalhava duro com sua
longa colher de cozinha em um vasto pote de Kal-da borbulhante. Funguei com meu
nariz. Não havia dúvidas de que aquele cheiro era de Kal-da sendo preparada.

Atrás de três ou quatro mesas baixas, à esquerda do balcão, uma banda de músicos
suados se sentava alegremente de pernas cruzadas sobre o tapete, de alguma forma eles
produziam naqueles estranhos tubos e cordas, tambores, discos e fios, as mais intrigantes,
selvagens, encantadoras – belas – barbáricas melodias de Gor.

Neste momento eu me perguntei se a Casta dos Músicos tinha sido, assim como a Casta
dos Poetas, exilada de Tharna. Eles, assim como a Casta dos Poetas, tinham sido uma
casta que era vista pelas soberbas máscaras de Tharna como não pertencente a uma
cidade de gente séria e delicada, pois a música, assim como a Paga e as canções, pode

188
Foragidos de Gor
acender o coração dos homens e quando os corações dos homens estão em chamas não é
fácil saber para onde as chamas irão se espalhar.

Quando entrei na sala os homens se levantaram de pé e gritaram, levantando suas taças


em saudação.

Quase como um só eles gritaram, “Tal, Guerreiro!”

“Tal, Guerreiros!” eu respondi, levantando meu braço, me dirigindo a todos eles pelo
título de minha casta, pois eu sabia que em sua causa, cada um deles era um guerreiro.
Isso tinha sido determinado lá nas Minas de Tharna.

Atrás de mim, descendo as escadas vinham Kron e Andreas, seguidos por Lara e Linna.

Eu me perguntava qual impressão aquela loja de Kal-da causaria na verdadeira Tatrix de


Tharna.

Kron agarrou meu braço e me guiou para uma mesa próxima do centro da sala.
Segurando Lara pela mão eu o segui. Os olhos dela estavam perplexos, mas assim como
os olhos de uma criança, estavam também cheios de curiosidade. Ela nunca imaginou
que os homens de Tharna poderia ser assim.

Às vezes quando alguém a encarava audaciosamente, ela abaixava sua cabeça e corava.

Finalmente eu me sentei de pernas cruzadas atrás de uma mesa baixa e Lara, à maneira
da mulher Goreana, se ajoelhou ao meu lado, descansando sobre seus calcanhares.

Quando eu entrei a música tinha parado, mas Kron agora bateu suas mãos duas vezes e
os músicos voltaram para seus instrumentos.

“Kal-da de graça para todos!” gritou Kron, e quando o proprietário, que conhecia os
códigos de sua casta, tentou contestar, Kron jogou um disco tarn de ouro para ele. Feliz
da vida o homem se abaixou e pegou o disco no chão.

“Ouro é mais comum aqui do que pão,” disse Andreas, se sentando perto de nós.

Para dizer a verdade a comida nas mesas baixas não era tão abundante e era bem simples,
mas ninguém parecia notar isso dado o bom ânimo dos homens no recinto. Aquilo
deveria parecer para eles, comida vinda das mesas dos próprios Sacerdotes-Reis. Até
mesmo a vulgar Kal-da para eles, que se deleitavam pela primeira vez intoxicados por
sua liberdade, era a mais rara e mais potente das bebidas.

Kron bateu palmas novamente e para minha surpresa ouvi o repentino som de sinetas, e
quatro garotas estonteantes, obviamente escolhidas por sua beleza e graça, se
apresentaram perante nossa mesa, vestindo somente as escarlates sedas das dançarinas

189
Foragidos de Gor
de Gor. Elas jogaram suas cabeças para trás e levantaram seus braços e sob um
decaimento barbárico feito pelos músicos, elas dançaram perante nós.

Lara, para minha surpresa, assistia encantada.

“Onde em Tharna,” eu perguntei, “você encontrou Escravas de Prazer?” Eu tinha notado


que os pescoços das garotas estavam circundados por coleiras prateadas.

Andreas, que estava enchendo a boca com um pedaço de pão, respondeu, suas palavras
saíram em um balbuciado alegre. “Atrás de cada máscara de prata,” ele respondeu
sentenciosamente, “existe uma potencial Escrava do Prazer.”

“Andreas!” gritou Linna, e ela gesticulou como se fosse dar um tapa nele por sua
insolência, mas ele a calou com um beijo, e ela alegremente começou a mordiscar o pão
preso nos dentes dele.

“Estas são realmente máscaras prateadas de Tharna?” eu perguntei a Kron, cético.

“Sim,” disse ele. “Elas são boas, não são?”

“Como elas aprenderam isso?” eu perguntei.

Ele deu de ombros. “Essas coisas são instintivas em uma mulher,” ele disse. “Mas elas
são destreinadas, é claro.”

Eu ri comigo mesmo. Kron de Tharna falou como qualquer homem de qualquer cidade
de Gor – menos como um homem de Tharna.

“Por que elas estão dançando para você?” perguntou Lara.

“Elas serão chicoteadas se não dançarem,” disse Kron.

Lara abaixou seu olhar.

“Você vê as coleiras,” disse Kron, apontando para as finas e graciosas peças de prata que
cada garota vestia em seu pescoço. “Nós derretemos as máscaras e usamos a prata para
fazer a coleira.”

Outras garotas agora apareceram por entre as mesas, vestidas somente em um camisk e
em uma coleira de prata, e subitamente, silenciosamente, começaram a servir a Kal-da
que Kron tinha pedido. Cada uma carregava um pesado pote da rude, fervente bebida
fermentada e, taça por taça, reabasteceram os homens.

Algumas delas lançaram um olhar invejoso para Lara, outras lançaram um olhar de ódio.
Seus olhares diziam para Lara, por que você não está vestida como nós? Por que você não
usa uma coleira e serve como nós servimos?

190
Foragidos de Gor
Para meu espanto Lara removeu sua capa e pegou um pote de Kal-da de uma das garotas
e começou a servir os homens.

Algumas garotas olharam para ela com gratidão pois ela era livre e fazendo isso ela
mostrava que não se considerava melhor do que elas.

“Esta,” eu disse para Kron, apontando para Lara, “é a Tatrix de Tharna.”

Enquanto Andreas a assistia ele disse em tom baixo, “Ela realmente é uma Tatrix.”

Linna se levantou agora e começou a ajudar a servir.

****

Quando Kron ficou cansado de assistir as dançarinas ele bateu palmas duas vezes e sob
o chacoalhar discordante das sinetas em seus tornozelos elas rapidamente deixaram a
sala.

Kron levantou sua taça de Kal-da e virou de frente para mim. “Andreas me disse que
você pretendia entrar em Sardar,” ele disse. “Vejo que você não foi para lá então.”

Kron quis dizer que se eu tivesse entrado em Sardar eu não teria retornado.

“Eu vou para Sardar,” eu disse, “mas antes tenho negócios em Tharna.”

“Ótimo!” disse Kron. “Nós precisamos de sua espada.”

“Eu vim para colocar Lara de volta no trono de Tharna,” eu disse.

Kron e Andreas me olharam surpresos.

“Não,” disse Kron. “Eu não sei como ela te enfeitiçou mas nós não teremos Tatrix em
Tharna!”

“Ela é tudo pelo qual lutamos contra,” protestou Andreas. “Se ela ascender ao trono,
nossa batalha estará perdida. Tharna voltaria a ser a mesma.”

“Tharna,” eu disse, “jamais será a mesma novamente.”

Andreas sacudiu sua cabeça como se tentasse compreender o significado do que eu


queria dizer. “Como podemos esperar que o que ele diz faça sentido?” Andreas
perguntou para Kron. “Afinal de contas, ele não é um poeta.”

Kron não achou graça.

“Ou um ferreiro,” adicionou Andreas, esperançoso.


Ainda assim Kron não riu.
191
Foragidos de Gor
Sua severa personalidade formada entre as bigornas e forjas de seu ofício não aceitavam
bem a monstruosidade que eu tinha dito.

“Você terá de me matar primeiro,” disse Kron.

“Nós não somos mais da mesma corrente?” eu perguntei.

Kron ficou em silêncio. Então, me observando imparcialmente com aqueles olhos azuis
prateados ele disse, “Nós sempre seremos da mesma corrente.”

“Então deixe-me falar,” eu disse.

Kron concordou com a cabeça de leve.

Muitos homens agora rodeavam a mesa.

“Vocês são homens de Tharna,” eu disse, “Mas os homens com quem vocês lutam
também são de Tharna.”

Um dos homens falou. “Eu tenho um irmão na guarda.”

“É correto que os homens de Tharna levantem suas armas uns contra os outros, homens
dentro das mesmas muralhas?”

“Essa é uma coisa triste,” disse Kron. “Mas tem de ser assim.”

“Não precisa ser assim,” eu protestei. “Os soldados e guardas de Tharna são
comprometidos com sua Tatrix, mas a Tatrix que eles defendem é uma traidora. A
verdadeira Tatrix de Tharna, Lara em pessoa, é esta que essa nesta sala.”

Kron observou a garota, que por sua vez não estava ciente da conversa. Do outro lado da
sala ela estava servindo Kal-da para os homens que levantavam a taça para ela.

“Enquanto ela viver,” disse Kron, “a revolução não estará segura.”

“Isso não é verdade,” eu disse.

“Ela tem de morrer,” disse Kron.

“Não,” eu disse. “Ela também sentiu a corrente e a chibata.”

Houve murmúrios de perplexidade vindos dos homens ao redor da mesa.

“Os soldados de Tharna e seus guardas irão abandonar sua falsa Tatrix e servirão à
verdadeira Tatrix,” eu disse.

“Isso se ela viver -” concordou Kron, olhando para a inocente garota do outro lado da
sala.

192
Foragidos de Gor
“Ela vai viver,” eu incitei. “Ela irá trazer um novo dia para Tharna. Ela irá unir ambos, os
rebeldes e os homens que se opõem a você. Ela entendeu como são cruéis e miseráveis os
modos de Tharna. Olhe para ela!”

E os homens olharam para a garota calma servindo a Kal-da, por vontade própria
compartilhando do trabalho das outras mulheres de Tharna. Isso não era o que alguém
esperava de uma Tatrix.

“Ela é digna de governar,” eu disse.

“Ela é o que nós lutamos contra,” disse Kron.

“Não,” eu disse, “você luta contra os modos cruéis de Tharna. Você luta pelo seu orgulho
e liberdade, não contra esta garota.”

“Nós lutamos contra a máscara de ouro de Tharna,” gritou Kron, martelando com seu
punho sobre a mesa.

O barulho repentino atraiu a atenção da sala inteira e todos os olhos se voltaram em nossa
direção. Lara, ajeitando suas costas de forma graciosa e ereta, colocou o pote de Kal-da a
um canto, veio até nós e parou na frente de Kron.

“Eu não visto mais a máscara de ouro,” ela disse.

E Kron olhou para a bela garota que se prostrava perante ele com toda a graça e
dignidade, sem nenhum traço de orgulho ou crueldade, ou medo.

“Minha Tatrix,” ele sussurrou.

****

Nós marchávamos através da cidade, as ruas atrás de nós encheram-se de rebeldes, como
rios cinzentos, cada homem com sua própria arma, assim o som de tais rios convergia
para o palácio da Tatrix, e eram antes de qualquer coisa, cinzentos. Era o som da canção
de arado, tão lento e irresistível como o som de gelo se quebrando em rios congelados,
um simples, melódico hino dedicado ao solo, celebrando o primeiro trabalho sobre a
terra.

À frente daquela esplendida e esfarrapada procissão, cinco marchavam; Kron, chefe dos
rebeldes; Andreas, um poeta; sua mulher, Linna de Tharna, sem um véu; um guerreiro
de uma cidade devastada e amaldiçoada pelos Sacerdotes-Reis; e uma garota de cabelos
dourados, sem medo, a magnífica Lara, ela que era a verdadeira Tatrix de Tharna.

193
Foragidos de Gor
Era óbvio para os defensores do palácio, os que formavam a maior parte do bastião do
regime contestado de Dorna, que este problema seria decidido naquele dia, e pela espada.
Boatos já tinham se espalhado como se voassem nas asas de um tarn, boatos de que os
rebeldes tinham abandonado suas táticas de emboscadas e evasão, e estavam finalmente
marchando na direção do palácio.

Eu via perante nós, uma vez mais, aquela ampla, curvada mas estreita avenida que dava
no palácio da Tatrix. Cantando, os rebeldes começaram a subir os degraus da avenida.
Os paralelepípedos negros podiam ser facilmente sentidos através do couro de nossas
sandálias.

Uma vez mais eu notei que os muros nas laterais da avenida ficavam mais altos conforme
a avenida se estreitava, mas desta vez, bem antes de alcançarmos a pequena porta de
ferro, nós vimos uma barricada dupla montada na avenida, feita de um segundo muro
que sobrepunha o primeiro e de onde projéteis poderiam ser disparados naqueles que
tentassem atacar o primeiro muro. A barricada tinha sido montada entre os dois grandes
muros laterais na parte em que se distanciavam por talvez cinquenta jardas um do outro.
A primeira barricada tinha talvez cerca de doze pés de altura; a segunda, cerca de vinte.

Atrás das barricadas eu pude ver o brilho das armas e o movimento de elmos azuis.

Estávamos ao alcance das bestas.

Eu gesticulei para os outros para que ficassem na retaguarda e, carregando um escudo e


uma lança além de minha espada, eu me aproximei da barricada.

No telhado do palácio, atrás da dupla barricada eu podia ocasionalmente ver a cabeça de


um tarn e ouvir seus gritos. Tarns, contudo, não seriam muito efetivos contra rebeldes
em uma cidade. Muitos de nós tinham abandonado os arcos longos e a maioria estavam
armados com lanças e bestas de guerreiros mortos. Seria um negócio arriscado se
aproximar demais com as garras de um tarn para dentro do combate.

E também, caso os guerreiros tentassem usar os tarns somente para atirar flechas na
multidão, eles repentinamente encontrariam as ruas vazias, até que a sombra do pássaro
tivesse passado e assim os rebeldes poderiam se mover mais uma centena de jardas para
perto do palácio. Infantaria treinada, incidentalmente, pode se mover rapidamente
através das ruas de uma cidade com seus escudos protegendo suas cabeças, bem parecido
com a estratégia Romana chamada testudo, mas essa formação requer disciplina e
precisão, e não se pode esperar dos rebeldes de Tharna um grau elevado de virtudes
marciais.

A cerca de cem jardas da barricada eu abaixei meu escudo e lança, demonstrando pedir
por uma trégua temporária.

194
Foragidos de Gor
Uma figura alta apareceu na barricada e fez o mesmo que eu tinha feito.

Embora ele vestisse o elmo azul de Tharna eu sabia que se tratava de Thorn.

Outra vez eu comecei a me aproximar da barricada.

Aquela parecia ser uma longa caminhada.

Passo a passo eu subi a escura avenida me perguntando se a trégua seria respeitada. Caso
Dorna a Altiva estivesse no comando da barricada ao invés de Thorn, um Capitão, e um
membro da minha própria casta, eu tinha certeza de que o dardo de alguma besta já teria
perfurado meu corpo sem o menor aviso.

Quando eu finalmente parei ileso sobre os negros paralelepípedos aos pés da barricada
dupla eu soube que embora Dorna a Altiva pudesse governar Tharna, embora fosse ela
quem se sentava sobre o trono de ouro da cidade, eu soube que era a palavra de um
guerreiro que comandava aqueles nas barricadas acima de mim.

“Tal, Guerreiro,” disse Thorn, removendo seu elmo.

“Tal, Guerreiro,” eu disse.

Os olhos de Thorn estavam mais claros agora do que de quando eu me lembrava deles, e
o largo corpo que tendia à corpulência tinha, sob o stress da luta, se transformado em
musculoso vigor. As manchas púrpuras que marcavam sua face amarelada pareciam
menos pronunciadas agora do que antes. Duas mexas de cabelo ainda marcavam seu
queixo em duas listras amarelas e na parte de trás de sua cabeça seu longo cabelo estava
ainda preso em um nó, no estilo Mongol. Seus olhos claros agora, e oblíquos, me
observavam.

“Eu deveria ter te matado no Pilar de Trocas,” disse Thorn.

Eu falei alto para que minha voz alcançasse todos que estavam na barricada dupla.

“Eu venho a pedido de Lara, que é a verdadeira Tatrix de Tharna. Guardem suas armas.
Não derramem mais o sangue dos homens de sua própria cidade. Eu peço isso em nome
de Lara, em nome da cidade de Tharna e de seu povo. E eu peço isso em nome dos códigos
de sua própria casta, pois suas espadas estão juradas para a verdadeira Tatrix – Lara –
não Dorna a Altiva!”

Eu pude sentir a reação dos homens atrás da barricada.

Thorn também agora falou alto para que os guerreiros escutassem. “Lara está morta.
Dorna é a Tatrix de Tharna.”

195
Foragidos de Gor
“Estou viva!” gritou uma voz atrás de mim e eu me virei, e para meu assombro, eu vi que
Lara tinha me seguido até a barricada. Se ela fosse morta a esperança dos rebeldes seria
destruída, e a cidade mergulharia num conflito civil interminável.

Thorn olhou para a garota e eu admirei a frieza com a qual ele a observou. Sua mente
deveria estar em tumulto, pois ele não achava que aquela garota apresentada pelos
rebeldes como a verdadeira Tatrix poderia ser atualmente Lara.

“Ela não é Lara,” ele disse, friamente.

“Eu sou,” ela gritou.

“A Tatrix de Tharna,” zombou Thorn, olhando para a face descoberta de Lara, “veste
uma máscara de ouro.”

“A Tatrix de Tharna,” disse Lara, “escolhe não mais vestir uma máscara de ouro.”

“Onde você conseguiu essa criada do campo, seu impostor?” perguntou Thorn.

“Eu a comprei de um mercador de escravo,” eu disse.

Thorn gargalhou e seus homens atrás da barricada também.

“O mesmo mercador para quem você a vendeu,” eu adicionei.

Thorn não ria mais.

Eu gritei para os homens atrás da barricada. “Eu trouxe de volta essa garota – sua Tatrix
– para o Pilar de Trocas onde a entreguei nas mãos de Thorn, este Capitão, e Dorna a
Altiva. Então, traiçoeiramente eu fui atacado e enviado para as Minas de Tharna, e Dorna
a Altiva e Thorn, este capitão, prenderam Lara, sua Tatrix, e a venderam para a escravidão
– a venderam para Targo, cujo acampamento está agora na Feira de En'Kara, a venderam
pela quantia de cinquenta discos tarns de prata!”

“O que ele diz é falso,” gritou Thorn.

Ouvi uma voz vinda de trás da barricada, uma voz jovem. “Dorna a Altiva veste um colar
com cinquenta discos tarns de prata!”

“Dorna a Altiva é atrevida de fato,” eu gritei, “para ostentar as moedas pela qual sua rival
– sua verdadeira Tatrix – foi entregue para dentro das correntes de uma escrava!”

Houve murmúrios de indignação, alguns gritos raivosos vieram de trás das barricadas.

“Ele mente,” disse Thorn.

196
Foragidos de Gor
“Vocês ouviram,” eu gritei, “ele dizer que deveria ter me matado no Pilar de Trocas!
Vocês sabem que fui eu quem roubou sua Tatrix nos Entretenimentos de Tharna. Por que
eu voltaria ao Pilar de Trocas se não fosse para entrega-la aos emissários de Tharna?”

Uma voz gritou atrás da barricada. “Por que você não levou mais homens com você para
o Pilar de Trocas, Thorn de Tharna?”

Thorn se virou nervoso na direção da voz.

Eu respondi a pergunta. “Não é óbvio?” eu perguntei. “Ele queria proteger o segredo de


seu plano de abduzir a Tatrix e colocar Dorna a Altiva em seu trono.”

Outro homem apareceu no topo da barricada. Ele removeu seu elmo. Eu vi que era o
jovem guerreiro cuja ferida eu e Lara tínhamos cuidado sobre a muralha de Tharna.

“Eu acredito neste guerreiro!” ele gritou, apontando para baixo, para mim.

“Isso é um truque para nos dividir!” gritou Thorn. “Volte para seu posto!”

Outros guerreiros em seus elmos azuis e túnicas cinzas de Tharna subiram ao topo da
barricada, para ver mais claramente o que acontecia.

“Voltem para seus postos!” gritou Thorn.

“Vocês são guerreiros!” eu gritei. “Suas espadas estão juradas para sua cidade, para suas
muralhas, para seu povo e sua Tatrix! Sirvam a ela!”

“Eu servirei a verdadeira Tatrix de Tharna!” gritou o jovem guerreiro.

Ele pulou para fora da barricada e deitou sua espada nas pedras aos pés de Lara.

“Pegue sua espada de volta,” ela disse, “em nome de Lara, a verdadeira Tatrix de
Tharna.”

“Assim eu faço então,” ele disse.

Ele pôs um joelho ao chão se ajoelhando perante a garota e agarrou o cabo da arma. “Eu
empunho minha espada,” ele disse, “em nome de Lara, que é a verdadeira Tatrix de
Tharna.”

Ele se pôs de pé e saudou a garota com a arma. “Ela é a verdadeira Tatrix de Tharna!” ele
gritou.

“Esta não é Lara!” gritou Thorn, apontando para a garota.

“Como você pode ter tanta certeza?” perguntou um dos guerreiros sobre o muro.

Thorn ficou em silêncio, pois como ele poderia dizer saber que aquela garota não era
Lara, quando presumivelmente ele nunca tinha olhado para a face da verdadeira Tatrix?
197
Foragidos de Gor
“Eu sou ela,” gritou a garota. “Não tem ninguém dentre vocês que serviu na Câmara da
Máscara de Ouro? Nenhum de vocês que possa reconhecer minha voz?”

“É ela!” gritou um dos homens. “Eu tenho certeza!” ele removeu seu elmo.

“Você é Stam,” ela disse, “primeiro guarda do portão norte e você pode lançar sua lança
mais longe do que qualquer outro homem de Tharna. Você foi o primeiro nos jogos
militares de En'Kara no segundo ano de meu reinado.”

Outro guerreiro removeu seu elmo.

“Você é Tai,” disse ela, “um tarnsman, ferido na guerra com Thentis um ano antes de eu
ascender ao Trono de Tharna.”

Mais um homem retirou seu elmo azul de sua cabeça.

“Eu não conheço você,” ela disse.

Os homens no muro murmuraram.

“Você não poderia me conhecer,” disse o homem, “pois eu sou um mercenário de Ar que
está a serviço de Tharna apenas enquanto durar a revolta.”

“Ela é Lara!” gritou outro homem. Ele pulou sobre o muro e colocou também sua espada
nas pedras aos pés dela.

Uma vez mais ela graciosamente requisitou que a arma fosse levantada em seu nome, e
assim foi feito.

Um dos blocos da barricada foi tombado para dentro da rua. Os guerreiros estavam
desmantelando a barricada.

Thorn tinha desaparecido do muro.

Lentamente os rebeldes, ao meu aceno, se aproximaram do muro. Eles tinham abaixado


suas armas e, cantando, marcharam para o palácio.

Os soldados saíram através da barricada e os encontraram na avenida com alegria. Os


homens de Tarna apertavam os braços uns dos outros e apertavam suas mãos em
concordância. Rebeldes e defensores se misturavam felizes nas ruas e irmão solicitava
irmão entre aqueles que a minutos atrás tinham sido inimigos mortais.

Abraçado com Lara, eu caminhei através da barricada, e atrás de nós veio o jovem
guerreiro, os outros defensores da barricada, e Kron, Andreas, Linna e muitos dos
rebeldes.

198
Foragidos de Gor
Andreas trazia com ele o escudo e lança que eu tinha colocado ao chão quando pedi pela
trégua, e assim eu peguei as armas de volta. Nos aproximamos da pequena porta de ferro
que dava acesso ao palácio, eu estava na frente.

Pedi por uma tocha.

A porta estava destrancada e eu a chutei, abrindo-a, e me protegendo com o escudo.

Lá dentro havia apenas silêncio e escuridão.

O rebelde que tinha sido o primeiro na corrente lá nas minas jogou uma tocha em minhas
mãos.

O chão parecia sólido, mas desta vez eu conhecia o perigo que ele ocultava.

Uma longa prancha retirada do andaime da barricada foi trazida e nós a deitamos sobre
os limites do chão.

A tocha foi levantada alta, eu entrei, cuidadosamente sobre a prancha. Desta vez a
armadilha não abriu e eu me encontrei em um estreito e mal iluminado corredor do lado
oposto da porta do palácio.

“Esperem aqui,” eu comandei para os outros.

Eu não escutei os protestos e sem dizer mais nada comecei minha jornada à luz da tocha
por entre o agora escuro labirinto dos corredores do palácio. Minha memória e senso de
direção começaram a me levar infalivelmente de salão a salão, me guiando rapidamente
na direção da Câmara da Máscara de Ouro.

Não encontrei ninguém.

O silêncio parecia sinistro e a escuridão era intensa, após sair da brilhante luz sol das ruas
no lado de fora. Eu não ouvia nada além de quietude, nada além do silencioso ruído de
minha própria sandália nas pedras do corredor.

O palácio talvez tivesse sido abandonado.

Finalmente cheguei na Câmara da Máscara de Ouro.

Eu me encostei na pesada porta e a empurrei, abrindo-a;

Havia luz lá dentro. As tochas nas paredes ainda queimavam. Atrás do trono de ouro da
Tatrix agigantava-se a enfadonha máscara de ouro, feita na imagem de uma fria, mas bela
mulher, os reflexos das tochas nas paredes se agitavam de forma grotesca em sua
superfície polida.

Sobre o trono sentava-se uma mulher vestida nos robes dourados e na máscara da Tatrix
de Tharna. Sobre o seu pescoço estava um colar recheado com discos tarns de prata. Nos
199
Foragidos de Gor
degraus perante o trono estava um guerreiro, completamente armado, que segurava em
suas mãos o elmo azul de sua cidade.

Thorn abaixou seu elmo lentamente sobre sua cabeça. Ele desprendeu sua espada em sua
bainha. Retirou seu escudo e sua longa lança de cabeça achatada de seu ombro esquerdo.

“Eu estava esperando por você,” ele disse.

200
Foragidos de Gor
XXV

O Topo do Palácio

Os gritos de guerra de Tharna e Ko-ro-ba se misturaram quando Thorn pulou das escadas
ao meu encontro, e eu corri ao encontro dele.

Nós dois arremessamos nossas lanças ao mesmo tempo e as duas armas passaram uma
pela outra como dois borrões de luz amarelados. Ambos ao lançar a arma tínhamos
inclinado nossos escudos de modo a diminuir o impacto de um golpe direto. Ambos
lançamos bem e o solavanco daquele enorme projétil trovejando contra meu escudo me
vez girar para o lado.

A cabeça de bronze da lança cortou através dos círculos de bronze do escudo e perfurou
as sete camadas concêntricas de couro de bosk endurecido do qual era feito. O escudo,
perfurado, era inútil. Mal meu escudo foi perfurado quando minha espada saltou de sua
bainha e deslizou sobre as tiras de couro do escudo, cortando e removendo-o de meu
braço.

Pouco tempo depois de mim o escudo de Thorn também foi atirado sobre as pedras do
piso da câmara. Minha lança tinha atravessado seu escudo em uma jarda e a cabeça dela
passou sobre o ombro esquerdo dele quando ele se agachou atrás do escudo.

Sua espada também estava fora da bainha agora, e nós corremos na direção um do outro
como larls na Voltai, nossas armas se encontraram em um afiado e aberto som de choque
metálico, o trêmulo e brilhante rangido das lâminas bem temperadas, cada tom ressoando
na clara e cintilante música da esgrima.

Parecendo quase impassível, a figura em robes dourados sobre o trono assistia aos dois
guerreiros se movendo pra frente e pra trás perante ela, um vestindo o elmo azul e túnica
cinza de Tharna, o outro na universal túnica escarlate da Casta dos Guerreiros Goreanos.

Nossos reflexos lutavam um contra o outro projetados na cintilante superfície da grande


máscara dourada atrás do trono.

Nossas sombras ferozes se distorciam como gigantes engajados em combate contra as


altivas paredes da câmara iluminada por tochas.
201
Foragidos de Gor
Então, em um momento havia apenas um reflexo e apenas um gigante, uma única
grotesca sombra projetada sobre as paredes da Câmara da Máscara de Ouro.

Thorn estava caído aos meus pés.

Eu chutei a espada de sua mão e virei o corpo com meu pé. Seu peito tremia debaixo de
sua túnica manchada; sua boca mordia o ar como se tentasse captura-lo, como se o ar
escapasse de sua garganta. Sua cabeça virava de um lado a outro sobre as pedras.

“Você lutou bem,” eu disse.

“Eu venci,” ele disse, suas palavras saiam cuspidas em um tipo de sussurro, um
contorcido sorriso em sua face.

Eu me perguntei o que ele queria dizer.

Me afastei do corpo e olhei para a mulher sobre o trono.

Lentamente, insensivelmente, ela desceu do trono, passo a passo, e então para meu
assombro ela caiu de joelhos ao lado de Thorn e abaixou sua cabeça até o peito
ensanguentado dele, chorando.

Eu limpei a lâmina em minha túnica e a recoloquei na bainha.

“Me desculpe,” eu disse.

A figura parecia não me ouvir.

Eu me afastei, para a deixar com sua aflição. Pude ouvir os sons dos homens se
aproximando nos corredores. Eram os soldados e rebeldes, e os salões do palácio ecoaram
com o hino da canção de arado.

A garota levantou sua cabeça e a máscara de ouro me encarou.

Eu nunca imaginei que uma mulher como Dorna a Altiva pudesse ter gostado de um
homem.

A voz, pela primeira vez, falou através da máscara.

“Thorn,” ela disse, “derrotou você.”

“Eu acho que não,” eu disse, sem entender, “e você Dorna a Altiva é agora minha
prisioneira.”

Uma desconsolada gargalhada soou através da máscara e as mãos em luvas de ouro


seguraram a máscara, e para meu assombro, a removeu.

Ao lado de Thorn não se ajoelhava Dorna a Altiva, mas sim Vera de Ko-ro-ba, que foi sua
escrava.
202
Foragidos de Gor
“Você vê?” ela disse, “meu mestre te derrotou, do jeito que ele sabia que podia, não pela
espada mas pelo desperdício de tempo. Dorna a Altiva escapou intacta.”

“Por que você fez isso!?” eu a desafiei.

Ela sorriu. “Thorn era gentil comigo,” ela disse.

“Você está livre agora,” eu disse.

Uma vez mais sua cabeça se deitou sobre o peito ensanguentado do Capitão de Tharna e
seu corpo tremeu com soluços.

Naquele momento, os soldados irromperam pra dentro da sala, Kron e Lara na frente.

Eu apontei para a garota ao chão. “Não a machuquem!” eu comandei. “Ela não é Dorna
a Altiva mas sim Vera de Ko-ro-ba, que era escrava de Thorn.”

“Onde está Dorna?” demandou Kron.

“Escapou,” eu disse, em tom sombrio.

Lara olhou para mim. “Mas o palácio está cercado,” ela disse.

“O topo!” eu gritei, me lembrando dos tarns. “Rápido!”

Lara correu na minha frente e eu a segui enquanto ela mostrava o caminho para o topo
do palácio. Através dos corredores escuros ela correu com a familiaridade da longa
convivência com o lugar. Finalmente alcançamos o cômodo onde ficava a escada em
espiral.

“Aqui!” ela gritou.

Eu puxei ela atrás de mim, e com minha outra mão no muro, subi a escura escadaria tão
rápido quanto pude. No topo das escadas eu pressionei contra uma porta e a empurrei
aberta. Do lado de fora eu pude ver o brilho azul do céu aberto. A luz me cegou por um
momento.

Senti o cheiro de um grande animal peludo e o odor de tarn.

Eu emergi sobre o topo, meus olhos meio fechados contra a intensa luz.

Haviam três homens no telhado, dois guardas e o homem com a braçadeira de couro, o
que serviu como mestre das masmorras de Tharna. Ele segurava, encoleirado, o grande
e lustroso urt branco que eu tinha encontrado no poço naquela primeira porta do palácio.

Os dois guardas estavam prendendo um cesto de transporte nos arreios de um grande


tarn de plumagem marrom. A rédea do tarn estava fixada a um anel à frente do cesto.

203
Foragidos de Gor
Dentro do cesto estava uma mulher cujo comportamento e figura eu sabia ser de Dorna
a Altiva, embora ela agora vestisse apenas uma simples máscara de prata de Tharna.

“Pare!” eu gritei, correndo adiante.

“Mate!” gritou o homem nas braçadeiras de couro, apontando o chicote na minha direção,
e soltando o urt, que investiu feroz pra cima de mim.

Seu jeito de correr como um rato era incompreensivelmente rápido e quase antes que eu
pudesse me preparar contra sua investida ele já tinha cruzado o topo cilíndrico do palácio
em dois ou três saltos e já dava o bote para me capturar em suas presas nuas.

Minha lâmina entrou no céu de sua boca empurrando sua cabeça para cima e para longe
de minha garganta. Seu grito deve ter alcançado as muralhas de Tharna. Seu pescoço se
torceu e a espada foi arrancada de minha mão. Meus braços envolveram seu pescoço e
minha face foi pressionada contra seu lustroso pelo branco. A espada soltou de sua boca
e tilintou contra o piso do topo do palácio. Eu me agarrava ao pescoço do animal para
fugir das mordidas de suas mandíbulas, daquelas três fileiras de afiados, frenéticos
dentes brancos lacerantes, que procuravam se enterrar em minha carne.

Ele rolava sobre o chão tentando me arrancar de seu pescoço; ele pulava e sacolejava, se
contorcia e se debatia. O homem com braçadeiras de couro tinha pego a espada e com ela
em mãos, e com seu chicote, nos circundava, esperando pela oportunidade de me
golpear.

Eu tentava virar o animal de maneira a deixar seu corpo a se debater entre mim e o
homem com braçadeiras de couro.

Sangue da boca do animal escorria em seu pelo e em meu braço. Eu pude sentir quando
o sangue respingou na lateral de minha face e em meu cabelo.

Então eu me virei para que o meu corpo ficasse exposto para o golpe da espada nas mãos
do homem em braçadeiras de couro. Ouvi seu grunhido de satisfação quando ele
avançou. Um instante depois que eu soube que a lâmina desceria sobre mim eu soltei
meus braços do pescoço do animal e deslizei sobre sua barriga. O animal veio ao meu
encontro e seu pescoço se moveu como se fosse um chicote, eu pude sentir os longos e
afiados dentes raspando em meu braço, mas ao mesmo tempo eu ouvi outro guinchado
de dor e o grito de horror do homem com braçadeiras de couro.

Eu rolei para longe do animal e me virei para ver o bicho faceando o homem com as
braçadeiras. Uma orelha tinha sido cortada de sua cabeça e o pelo no lado esquerdo
estava ensopado com o sangue que jorrava. Agora o animal tinha seus olhos fixados no
homem com a espada, ele que tinha desferido o último golpe.

204
Foragidos de Gor
Pude ouvir seu comando aterrorizado, o débil estalar daquele chicote segurado por um
braço quase paralisado de medo, pude ouvir seu abrupto e quase que silencioso grito.

O urt estava sobre ele, suas ancas levantadas, seus ombros quase que no nível do chão, o
animal estava mordendo.

Eu espantei a visão de meus olhos me virando para os outros que estavam no topo do
palácio.

O cesto de transporte tinha sido fixado e a mulher estava de pé dentro dele, as rédeas em
suas mãos.

A impassível máscara de prata me olhava e eu senti que aqueles olhos negros atrás dela
queimavam com indescritível ódio.

Sua voz falou para os dois guardas. “Destruam-no.”

Eu não tinha armas.

Para meu espanto os homens não levantaram suas armas contra mim. Um deles
respondeu para ela.

“Você escolheu abandonar sua cidade,” ele disse. “Daqui em diante você não tem mais
cidade, pois você escolheu renunciar a ela.”

“Besta insolente!” ela gritou para ele. Então ela ordenou ao outro guerreiro que matasse
o primeiro.

“Você não mais governa em Tharna,” simplesmente disse o outro guerreiro.

“Bestas!” ela gritou.

“Se você ficasse para morrer nos pés de seu trono nós a seguiríamos e morreríamos ao
seu lado,” disse o primeiro guerreiro.

“Isso é verdade,” disse o segundo. “Fique como uma Tatrix, e nossas espadas estarão
presas ao seu serviço. Fuja como uma escrava e desista do seu direito de comandar nosso
metal.”

“Tolos!” ela gritou.

Dorna a Altiva olhou para mim a algumas jardas dela sobre o topo.

O ódio que ela nutria por mim, sua crueldade, seu orgulho, eram tão tangíveis quanto
um fenômeno físico, como ondas de calor ou gelo se formando.

“Thorn morreu por você,” eu disse.

Ela gargalhou. “Ele também era um tolo, como todas as bestas o são.”
205
Foragidos de Gor
Eu me perguntava como foi que Thorn pôde dar sua vida por esta mulher. Não me
pareceu que foi um caso de obrigação de sua casta pois esta obrigação ele teria de ter não
para com Dorna mas sim para com Lara. Ele tinha quebrado os códigos de sua casta para
apoiar a traição de Dorna a Altiva.

Eu subitamente soube a resposta, eu soube que Thorn de alguma forma amou esta mulher
cruel, que seu coração de guerreiro se voltou para ela embora ele nunca tivesse visto sua
face, embora ela nunca tivesse dado para ele um sorriso ou um toque de sua mão. E eu
soube então que Thorn, homem de confiança que deve ter sido, em seu dissoluto e
selvagem antagonismo, tinha ainda assim sido maior do que aquela que foi o objeto de
sua desesperada e trágica afeição. Sua ruína foi gostar de uma máscara de prata.

“Se renda,” eu gritei para Dorna a Altiva.

“Nunca,” ela respondeu, arrogante.

“Onde você vai e o que irá fazer?” eu perguntei.

Eu sabia que Dorna teria poucas chances sozinha em Gor. Cheia de recursos como ela era,
mesmo que carregasse as riquezas que trouxe com ela, ainda assim ela era apenas uma
mulher e, em Gor, até mesmo uma máscara de prata precisa da espada de um homem
para protege-la. Ela acabaria como a presa de uma besta, talvez de seu próprio tarn, ou
seria capturada por um tarnsman itinerante ou por um grupo de mercadores de escravas.

“Fique para encarar a justiça de Tharna,” eu disse.

Dorna levantou sua cabeça e gargalhou.

“Você também,” ela disse, “é um tolo.”

Sua mão estava enrolada na primeira rédea. O tarn se movia apreensivamente.

Olhei para trás e vi que Lara agora estava de pé, perto de mim, observando Dorna, e que
atrás dela Kron e Andreas, seguido por Linna, os rebeldes e soldados, tinham subido até
o topo do palácio.

A máscara de prata de Dorna a Altiva se virou para Lara, que não vestia nenhuma
máscara, nem véu. “Animal sem vergonha,” ela escarneceu, “você não é melhor do que
eles – bestas!”

“Sim,” disse Lara, “isso é verdade.”

“Eu sentia isso em você,” disse Dorna. “Você nunca foi digna de ser a Tatrix de Tharna.
Eu era a única digna de ser a verdadeira Tatrix de Tharna.”

“A Tharna de que você fala,” disse Lara, “não mais existe.”

206
Foragidos de Gor
Então como se fosse uma só voz, os soldados, guardas e rebeldes levantaram suas armas
e saudaram Lara como a verdadeira Tatrix de Tharna.

“Salve Lara, a verdadeira Tatrix de Tharna!” eles gritaram, e como era o costume da
cidade, cinco vezes aquelas armas brandiram e cinco vezes aquele alegre grito ressoou.

O corpo de Dorna a Altiva se encolheu como se tivesse sido golpeado cinco vezes.

Suas mãos enluvadas em prata se apertaram em fúria sobre a primeira rédea e debaixo
daquelas brilhantes luvas eu soube que os nós de seus dedos, sem sangue devido a força
que usava, estavam brancos com sua ira.

Ela olhou uma vez mais para os rebeldes, soldados e guardas, e para Lara, com uma
repugnância que eu pude sentir por trás daquela impassível máscara, e então aquela
imagem de metal se virou uma vez mais para mim.

“Adeus, Tarl de Ko-ro-ba,” ela disse. “Não se esqueça de Dorna a Altiva, pois nós temos
contas a acertar!”

As mãos em suas luvas de prata puxaram selvagemente a primeira-rédea e as asas do


tarn romperam em voo. O cesto de transporte permaneceu por um momento sobre o teto
e então, preso por longas cordas entrelaçadas com fios, ele deslizou um ou dois passos e
deu uma guinada para cima seguindo o rastro do grande tarn.

Eu assistia o cesto balançando abaixo do pássaro enquanto ele voava fazendo seu
caminho sobre a cidade.

Por um momento o sol refletiu sobra aquela máscara de prata.

O pássaro agora era nada mais que um cisco no céu azul sobre a cidade livre de Tharna.

Dorna a Altiva, graças ao sacrifício de Thorn, seu capitão, tinha conseguido fazer sua
fuga, embora seu destino eu não ousaria conjecturar.

Ela tinha falado em acertar as contas comigo.

Sorri comigo mesmo, pensando que ela teria poucas oportunidades para tais questões.
De fato, se ela conseguisse sobreviver de qualquer modo, ela teria sorte se não se
encontrasse vestindo um anel de tornozelo na corrente de algum mercador de escravos.

Talvez ela se encontraria confinada dentro dos muros do Jardim de Prazeres de algum
guerreiro, vestida nas sedas que ele escolhesse, trazendo sinetas trancadas em seus
tornozelos e não tendo desejos que não fossem os dele; talvez ela seria comprada pelo
mestre de uma Taverna de Paga, ou até mesmo de uma humilde loja de Kal-da, para
dançar e servir, e agradar seus clientes.

207
Foragidos de Gor
Talvez ela seria comprada para a cozinha de um cilindro Goreano e sua vida se revelaria
limitada aos azulejos das paredes e ao vapor e sabão dos baldes de limpeza. Ela poderia
ganhar uma esteira de palha úmida e um camisk, sobras das mesas das salas de jantar, e
chibatadas caso ousasse deixar a sala ou fugir de seu trabalho.

Talvez um camponês a comprasse para ajudá-lo no arado. Eu imaginava, caso isso


acontecesse, se ela amargamente se lembraria dos Entretenimentos de Tharna. Eu me
perguntava, caso este miserável destino fosse o dela, se a imperiosa Dorna a Altiva, nua
e suada, com suas costas expostas para o chicote de boi, aprenderia sob as rédeas de um
camponês, que ele era um mestre duro.

Mas eu me livrei desses pensamentos, sobre qual poderia ser o destino de Dorna a Altiva.

Eu tinha outras coisas com as quais ocupar minha mente.

De fato, eu mesmo tinha negócios a tratar – contas a acertar – apenas meus assuntos não
resolvidos poderiam me levar até as Montanhas de Sardar, pois os negócios que eu tinha
a tratar eram com os Sacerdotes-Reis de Gor.

208
Foragidos de Gor
XXVI

Uma Carta de Tarl Cabot

Inscrito na Cidade de Tharna,

No Vigésimo Terceiro dia de En’Kara

No Quarto Ano do Reinado de Lara, Tatrix de Tharna,

No Ano 10,117 a partir da Fundação de Ar.

Tal aos homens da Terra –

Nestes últimos dias passados em Tharna eu tive o tempo necessário para escrever esta
estória. Agora que ela foi contada eu devo começar minha jornada para as Montanhas de
Sardar.

Em cinco dias a partir de agora eu estarei de pé perante o portão negro das paliçadas que
cercam as montanhas sagradas.

Eu vou bater com minha lança no portão e o portão se abrirá, e quando entrar eu ouvirei
o fúnebre som das grandes barras presas ao portão, significando que mais um dos
Homens Abaixo das Montanhas, outro homem mortal, ousou entrar em Sardar.

Eu entregarei este manuscrito para algum membro da Casta dos Escribas que encontrar
na Feira de En’Kara na base de Sardar. A partir desse ponto se ele vai ser passado adiante
ou não, vai depender, assim como muitas outras coisas que eu passei a amar nesse mundo
bárbaro – da vontade inescrutável dos Sacerdotes-Reis.

Eles amaldiçoaram a mim e a minha cidade.

Eles tiraram de mim meu pai e a garota que eu amava, e meus amigos, e me deram
sofrimento e privação, me expuseram ao perigo, e ainda assim, eu sentia que de um modo
estranho, a despeito de mim mesmo, eu tinha servido a eles – sentia que era o desejo deles
209
Foragidos de Gor
que eu viesse a Tharna. Eles tinham destruído uma cidade, e de certo modo, restauraram
outra.

Que tipo de coisas eles são eu não sei, mas estou determinado a descobrir.

Muitos entraram nas montanhas e muitos devem ter aprendido os segredos dos
Sacerdotes-Reis, embora nenhum deles voltou para contar.

Mas deixe-me falar agora de Tharna.

Tharna agora é uma cidade diferente do que qualquer coisa que já tivesse sido na
memória dos homens vivos.

Sua regente – a graciosa e bela Lara – é sem dúvida um dos mais sensatos e mais justos
dos soberanos neste mundo bárbaro, e dela foi a tortuosa tarefa de recuperar uma cidade
despedaçada pela guerra civil, de fazer paz entre facções e agir de forma justa com todos.
Se ela não fosse amada como é pelos homens de Tharna sua tarefa seria praticamente
impossível.

Quando ela ascendeu uma vez mais ao trono nenhuma nota de proibição foi postada mas
sim uma anistia geral foi garantida a todos, tanto para aqueles que abraçaram sua causa
quanto para aqueles que tinham lutado por Dorna a Altiva.

Nessa anistia apenas as máscaras de prata de Tharna foram excluídas.

O sangue correu solto nas ruas de Tharna depois da revolta e homens enfurecidos, tanto
os rebeldes quanto os defensores, iniciaram uma caçada brutal às máscaras de prata.
Aquelas pobres criaturas foram caçadas de cilindro a cilindro, de salão a salão.

Quando encontradas elas eram arrastadas para as ruas, sem máscara, cruelmente
amarradas juntas e guiadas para o palácio pela ponta das armas, suas máscaras pendiam
sobre seus pescoços.

Muitas das máscaras de prata foram descobertas a se esconder em obscuras câmaras


dentro do próprio palácio e nas masmorras abaixo do palácio que em pouco tempo se
encheu com as correntes de justificadas e lamentosas prisioneiras. Em pouco tempo as
celas dos animais abaixo da arena dos Entretenimentos de Tharna tiveram de ser usadas,
e em seguida, também, a própria arena.

Algumas das Máscaras de Prata foram descobertas até mesmo nos esgotos abaixo da
cidade e estas eram afugentadas por gigantes urts em coleiras através dos longos tubos
até que enchessem as redes de captura posicionadas nas aberturas da rede de esgoto.

Outras Máscaras de Prata tinham se refugiado nas montanhas além dos muros e estas
foram caçadas como sleens por um bando de camponeses irados, que se posicionavam

210
Foragidos de Gor
formando um anel, e as direcionavam para o centro do círculo, onde, sem máscaras e
amarradas, elas eram tocadas para a cidade para encontrar seu destino.

Muitas das máscaras de prata no entanto, quando entenderam que sua batalha tinha sido
perdida e que as leis de Tharna seriam irrevogavelmente aniquiladas, vieram por sua
própria vontade para as ruas e se submeteram da forma tradicional de uma prisioneira
Goreana, se ajoelhando, abaixando a cabeça, e levantando os braços, pulsos cruzados
para que fossem amarrados.

O pendulo em Tharna tinha oscilado.

Eu mesmo estava aos pés dos degraus do trono de ouro quando Lara ordenou que a
gigante máscara de ouro pendurada atrás dela fosse retirada da parede pelas lanças e
jogada ao chão, aos seus pés.

Não mais aquela fria e serena fisionomia iria espreitar a sala do trono de Tharna.

Os homens de Tharna assistiam quase descrentes enquanto a grande máscara era


removida, parafuso por parafuso, da parede, quando ela tombou para frente e finalmente,
caiu por seu próprio peso, solta, mergulhando nos degraus do trono produzindo aquele
barulho de metal a se chocar contra o piso, se quebrando em centenas de pedaços.

“Levem isso para ser derretido,” Lara tinha dito, “a transformem em discos tarn de ouro
e distribuam para aqueles que sofreram em nossos dias ruins.”

“E acrescentem aos discos tarn de ouro,” ela tinha exclamado, “discos tarn de prata que
devem ser feitos das máscaras de nossas mulheres, pois daqui em diante em Tharna
nenhuma mulher vestirá uma máscara, seja de ouro ou seja de prata, nem mesmo se ela
for a Tatrix de Tharna em pessoa!”

E assim que ela falou, de acordo com os costumes de Tharna, suas palavras viraram leis
e a partir daquele dia nenhuma mulher em Tharna poderá vestir uma máscara.

Nas ruas de Tharna, logo depois do fim da revolta, as cores das castas de Gor começaram
a aparecer abertamente nas vestes dos cidadãos. Os maravilhosos detalhes reluzentes da
Casta dos Construtores, por tanto tempo proibidos, ditos frívolos e caros, começaram a
aparecer nas paredes dos cilindros, até mesmo nos próprios muros da cidade. Ruas em
cascalho agora estavam sendo pavimentadas com blocos de pedras coloridas colocadas
de forma padronizada para agradar aos olhos. A madeira do grande portão foi encerada
e seu bronze polido. Novas pinturas resplandeciam nas pontes.

O som dos sinos de caravanas não é mais um som estranho em Tharna e torrentes de
mercadores traçavam seu caminho até os portões, para explorar o mais surpreendente de
todos os mercados.

211
Foragidos de Gor
Aqui e ali a montaria de um tarnsman se gabava com seu arreio de ouro. Em um dia no
mercado eu vi um camponês, com seu saco de farelo de Sa-Tarna em suas costas, cujas
sandálias eram feitas de tiras de prata.

Eu tinha visto apartamentos privados cujas paredes eram decoradas com tapeçarias das
fábricas de Ar; e minhas sandálias algumas vezes encontraram debaixo delas, ricos e
coloridos tapetes intrincados de tecidos vindos da distante Tor.

Talvez seja uma coisa pequena, ver no cinto de um artesão uma fivela de prata do estilo
usado na montanhosa Thentis ou notar a delicadeza das enguias desidratadas de Port
Kar no mercado, mas essas coisas, por mais pequenas que fossem, mostravam para mim
uma nova Tharna.

Nas ruas eu ouvia os gritos, as canções e o clamor que é tipicamente Goreano. O mercado
não tem mais simplesmente alguns acres de piso onde os negócios devem ser conduzidos
de forma rígida. Ele é agora um lugar onde amigos se encontram, combinam jantares,
trocam convites, discutem sobre política, sobre o tempo, estratégia, filosofia e sobre a
gestão de escravas.

Uma mudança que achei interessante, embora eu não possa aprovar de coração, os
corrimões foram removidos das pontes altas de Tharna. Eu achei isso sem sentido, e
talvez perigoso, mas Kron tinha dito simplesmente, “Que aqueles temem andar sobre as
pontes altas, não andem sobre as pontes altas.”

Alguém até poderia mencionar que os homens de Tharna retomaram o costume de


carregar no cinto de suas túnicas, duas cordas amarelas, cada uma com dezoito polegadas
de comprimento. Através deste símbolo os homens de outras cidades agora podiam
reconhecer um homem de Tharna.

No vigésimo dia após ser declarada a paz em Tharna, o destino das máscaras de prata foi
determinado.

Elas foram amontoadas, amarradas umas às outras pelo pescoço, sem véu, pulsos presos
atrás em suas costas, organizadas em longas filas na arena dos Entretenimentos de
Tharna. Lá elas puderam ouvir o julgamento de Lara, sua Tatrix. Elas se ajoelharam
perante ela – uma vez orgulhosas máscaras de prata, agora, tementes e indefesas
prisioneiras – sobre a mesma areia reluzente que tinha tão frequentemente sido machada
com o sangue dos homens de Tharna.

Lara tinha pensado muito sobre tais questões e as tinha discutido com muitos, incluindo
eu mesmo. No final, ela tomou sua decisão por conta própria. Eu não acho que se eu
tivesse de decidir, eu seria tão duro quanto ela, mas eu admito que Lara conhecia sua
cidade e suas máscaras de prata melhor do que eu.

212
Foragidos de Gor
Eu reconhecia que não seria possível restaurar a velha ordem de Tharna, nem era
desejado que fosse assim. Também, eu sabia que não havia mais nenhuma provisão
adequada – dada a destruição das instituições de Tharna – para abrigar indefinidamente
um grande número de mulheres livres dentro dos muros da cidade. A família, por
exemplo, não existiu em Tharna por gerações, tinha sido substituída pela divisão entre
os sexos e as isoladas creches públicas.

E também deve-se lembrar que os homens de Tharna que tinham provado uma mulher
durante a revolta, agora demandavam por elas como que por direito. Nenhum homem
que tivesse visto uma mulher nas Sedas de Prazer, ou assistido ela a dançar, ou ouvido o
som de uma sineta de tornozelo, ou observado o cabelo de uma mulher, solto, caindo até
sua cintura, não, nenhum deles poderia viver agora sem ter a posse de tais deliciosas
criaturas.

Também, deve-se observar que não seria realista oferecer para as máscaras de prata a
alternativa de exílio, pois isso poderia simplesmente condená-las à morte violenta ou à
escravidão em território estrangeiro.

Deste modo, sob tais circunstâncias, o julgamento de Lara foi misericordioso – embora
tenha sido saudado com gemidos de lamentação vindos das prisioneiras amarradas.

Cada máscara de prata teria seis meses para que pudesse ser libertada, para viver dentro
da cidade e se alimentar nas mesas comuns, muito parecido como era antes da revolta.
Mas nesses seis meses ela teria de encontrar um homem de Tharna no qual ela deveria se
propor como uma Livre Companheira.

Caso ele não a aceite como uma Livre Companheira – e alguns homens de Tharna
certamente vão estar dispostos a não fornecer os privilégios de um Companheirismo
Livre para uma máscara de prata – ele pode então, sem mais delongas, simplesmente
encoleirar ela como sua escrava, ou se ele desejar, pode rejeitá-la completamente. Se ela
for rejeitada ela pode ainda se oferecer de forma similar para outros homens de Tharna,
e talvez outro e depois, outro.

Depois desses seis meses, contudo – teria ela talvez sido relutante em procurar um
mestre? – sua iniciativa em tais questões podia se perder e ela pertenceria ao primeiro
homem que circundou seu pescoço com o gracioso, brilhante emblema da servidão.
Nesses casos ela não é considerada de forma diferente, e não é tratada de forma diferente
daquelas garotas trazidas nas costas de um tarn, vindas de uma distante cidade.

Na realidade, considerando o temperamento dos homens de Tharna, o julgamento de


Lara deu às máscaras de prata a oportunidade, por um tempo, de escolher um mestre, ou
depois deste tempo, de serem escolhidas como escravas. Assim cada máscara de prata irá
com o tempo, pertencer a uma besta, embora no começo foi dado a ela a oportunidade de
213
Foragidos de Gor
determinar de quem seria as cordas amarelas que ela iria sentir, no tapete de quem a
cerimônia da submissão seria realizada.

Talvez Lara tenha entendido, e eu não, que tais mulheres como as máscaras de prata
deveriam ser ensinadas a amar, e só poderiam aprender isso de um mestre. Não era sua
intenção condenar suas irmãs de Tharna em uma interminável e miserável escravidão,
mas sim força-las a darem o primeiro passo na estrada que elas teriam de viajar por conta
própria, nas estranhas estradas que podem levar ao amor. Quando a questionei, Lara
tinha me dito que somente depois que se aprende o verdadeiro amor é que se torna
possível o Livre Companheirismo, e que algumas mulheres só conseguem aprender a
amar se estiverem em correntes. Eu refletia sobre suas palavras.

Não tem muito mais a dizer.

Kron permanece em Tharna, onde ele tem uma posição alta no Conselho da Tatrix Lara.

Andreas e Linna vão deixar a cidade, pois ele me disse que tem muitas estradas em Gor
que ele ainda não vagou e ele acha que em uma delas ele pode encontrar a canção pela
qual ele sempre procurou. Eu espero com todo meu coração que ele a encontre.

A garota Vera de Ko-ro-ba, pelo menos por enquanto, irá residir em Tharna, onde ela irá
viver como uma mulher livre. Por não ser da cidade ela é isentada das restrições impostas
sobre as máscaras de prata.

Se ela vai ou não escolher continuar na cidade eu não sei. Ela, assim como eu, e todos de
Ko-ro-ba, é uma exilada, e exilados às vezes acham difícil chamar uma cidade estrangeira
de casa; às vezes eles consideram os riscos da vida selvagem preferível ao abrigo de um
muro alienígena. E também, em Tharna poderia encontrar a memória de Thorn, um
capitão.

Esta manhã eu disse adeus para a Tatrix, a nobre e bela Lara. Eu sei que nós gostávamos
um do outro, mas nossos destinos não eram os mesmos.

Ao se despedir nós nos beijamos.

“Governe bem,” eu disse.

“Eu tentarei,” ela disse.

Sua cabeça estava recostada em meu ombro.

“E caso eu seja mais uma vez tentada a ser arrogante ou cruel,” ela disse, sua voz estava
risonha, “eu vou simplesmente lembrar que uma vez fui vendida por quinze discos tarn
de prata – e que um guerreiro uma vez me comprou por nada mais que a bainha de uma
espada e um elmo.”

214
Foragidos de Gor
“Seis esmeraldas,” eu a corrigi, sorrindo.

“E um elmo,” ela gargalhou.

Eu pude sentir a umidade de suas lágrimas através de minha túnica.

“Eu desejo você bem, Bela Lara,” eu disse.

“E eu desejo você bem, Guerreiro,” disse a garota.

Ela olhou para mim, seus olhos cheios de lágrimas, ainda assim sorrindo. Ela riu por um
momento. “E se o tempo chegar, Guerreiro, quando você desejar uma escrava, alguma
garota para vestir sua seda e sua coleira, sua marca se assim quiser – lembre-se de Lara,
aquela que é a Tatrix de Tharna.”

“Eu lembrarei,” eu disse. “Eu lembrarei.”

E eu a beijei, e nós nos separamos.

Ela irá governar em Tharna e governar bem, e eu irei começar minha jornada para Sardar.

O que vou encontrar lá eu não sei.

Por mais de sete anos eu me questionei sobre os mistérios escondidos nas reentrâncias
daqueles penhascos negros. Eu me questionei sobre os Sacerdotes-Reis e seu poder, suas
naves e seus agentes, seus planos para seu mundo e para o meu; mas o mais importante,
eu tenho de saber por que minha cidade foi destruída e suas pessoas foram dispersas, por
que nenhuma pedra pôde ficar sobre outra pedra; e eu devo descobrir o destino de meus
amigos, meu pai e de Talena, meu amor. Mas eu vou para Sardar por mais do que a
verdade; acima de tudo, em meu cérebro há uma chama, como aço determinado, o grito
por sangue e vingança, minha por direito de espada, minha pela afinidade de sangue,
casta e cidade, minha pois eu sou prometido para vingar o povo desaparecido, as
muralhas caídas e as torres, uma cidade inteira que foi desaprovada pelos Sacerdotes-
Reis, pois eu sou um Guerreiro de Ko-ro-ba! Eu busco mais do que verdade em Sardar;
Eu busco o sangue dos Sacerdotes-Reis!

Mas como é tolo falar assim.

Eu falo como se meu frágil braço pudesse fazer frente ao poder dos Sacerdotes-Reis.
Quem sou eu para desafiar seu poder? Eu não sou nada; nem mesmo um grão de poeira,
levantado pelo vento como um minúsculo punho em desafio; nem mesmo a folha da
grama que arranha o tornozelo de deuses que caminham sobre ela. Ainda assim, eu, Tarl
Cabot, vou para Sardar; vou me encontrar com os Sacerdotes-Reis, e deles, embora sejam
os deuses de Gor, eu vou cobrar uma conta pendente.

215
Foragidos de Gor
Do lado de fora, sobre a ponte eu ouvi o grito de Acender as Lanternas. “Acendam suas
lanternas,” ele clamou. “Acendam as lanternas do amor.”

Eu me pergunto algumas vezes se caso eu tivesse ido antes para Sardar se minha cidade
não teria sido destruída. Ao meu ver, se eu tivesse simplesmente retornado a Gor, e
retornado para minha cidade, meu pai, meus amigos e minha amada Talena, eu não teria
me preocupado em entrar em Sardar, eu não teria me preocupado em renunciar às
alegrias da vida para ir investigar os segredos daquelas montanhas negras. E eu me
perguntei algumas vezes, e tal pensamento me apavora e me estremece, será que minha
cidade não tinha sido destruída apenas para que eu fosse até as montanhas dos
Sacerdotes-Reis? Pois eles certamente sabiam que eu poderia desafia-los, que eu poderia
ir para Sardar, que eu subiria até as próprias luas de Gor, para exigir satisfação.

E foi assim que eu talvez fui movido no tabuleiro dos Sacerdotes-Reis – talvez eu tenha
jurado minha vingança e partido para Sardar do jeito que eles sabiam que eu faria, do
jeito que eles calcularam e pensaram, do jeito que eles planejaram. Mas mesmo assim eu
disse para mim mesmo, que era eu quem me movia, e não os Sacerdotes-Reis, mesmo que
eu esteja me movendo sobre seu tabuleiro; se é da intenção deles que eu vá cobrar uma
pendência, essa é minha intenção também; se isso é o jogo deles, então é também o meu.

Mas por que os Sacerdotes-Reis desejariam que Tarl Cabot fosse até suas montanhas? Ele
não é nada para eles, nada para nenhum homem; ele é apenas um guerreiro, um homem
sem cidade para chamar de sua, sendo assim, um foragido. Poderia os Sacerdotes-Reis,
com seu conhecimento e poder, necessitar de tal homem? Mas os Sacerdotes-Reis não
necessitam de nada dos homens, e uma vez mais meus pensamentos tenderam para a
tolice.

Agora é hora de por a caneta de lado. Eu lastimo apenas o fato de ninguém voltar de
Sardar, pois eu amo a vida. E neste mundo bárbaro eu pude ver a vida em toda sua beleza
e crueldade, em toda sua glória e tristeza. Eu aprendi que a vida é esplêndida,
assustadora e sem preço. Eu pude ver isso nas torres destruídas de Ko-ro-ba e no voo de
um tarn, nos movimentos de uma linda mulher, no brilho das armas, no som dos
tambores de tarn e no estrondo de um trovão sobre o campo. Eu pude encontrar isso nas
mesas com companheiros de espada e no estrondo dos metais na guerra, no toque dos
lábios e dos cabelos de uma garota, no sangue de uma sleen, nas areias e nas correntes de
Tharna, no perfume das talêndulas e no silvo de um chicote. Eu sou grato aos elementos
imortais que conspiraram para que eu pudesse existir.

Eu era Tarl Cabot, Guerreiro de Ko-ro-ba.

Isso nem mesmo os Sacerdotes-Reis de Gor podem mudar.

216
Foragidos de Gor
Já se aproxima do anoitecer agora, e as lanternas do amor estão acesas em muitas das
janelas dos cilindros de Tharna. As fogueiras sinalizadoras estão acesas sobre suas
muralhas, e eu posso ouvir o grito de guardas distantes dizendo que tudo está bem em
Tharna.

Os cilindros se impõem negros contra o céu a escurecer. Em breve a noite cairá. Haverá
poucos para notar o estranho partindo da cidade, talvez poucos para relembrar que ele
uma vez já esteve dentro dessas muralhas.

Minhas armas, meu escudo e elmo estão em mãos.

Do lado de fora eu ouço o grito do tarn.

Eu estou satisfeito.

Eu desejo você bem,

Tarl Cabot.

217
Foragidos de Gor
Uma Nota Conclusiva
no Manuscrito

O MANUSCRITO TERMINA COM a carta de Tarl Cabot. Não havia nada mais. Nestes
severos meses depois da entrega misteriosa do manuscrito, nenhuma outra palavra foi
recebida.

É minha desconfiança, se é que devemos dar crédito à narrativa, e eu sou tentado a assim
fazer, que Cabot de fato entrou nas Montanhas de Sardar. Eu não vou especular no que
ele pode ter encontrado lá. E nem acho provável que nós iremos um dia saber.

J.N.

218
Foragidos de Gor

Você também pode gostar