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CURSO DE ESPECIALIZAÇÃO EM EDUCAÇÃO ESPECIAL, DOMÍNIO COGNITIVO-MOTOR

Adaptações Curriculares e Metodologia de Intervenção


para a Criança com NEE

Análise crítica do filme “The King Gimp”

"Obstacles and challenges are a universal part of the human condition. We all face them in
everyday life, however we also have a choice as to how we deal with them. Many of us are
likely to get discouraged during difficult times in our lives. In my work I hope to show
everybody that they have the ability to persevere."

Dan Keplinger

O documentário sobre a história de vida de Dan Keplinger, na sua simplicidade, comporta tamanha
riqueza de vivências que agitam os nossos sentimentos e nos fazem refletir sobre atitudes e formas
de estar perante a vida pessoal e a profissional. Dan dá-nos, ao longo do seu percurso, um exemplo
de perseverança, revelando, face às adversidades a sua capacidade resiliente, nunca deixando de
perder a vontade de lutar pelos sonhos, pelas suas expectativas.
Este percurso, documentado, reflete as dificuldades encontradas na procura da inclusão, sendo
marcado por episódios de rejeição e por outros motivadores, em que a família, os amigos, os
professores e/ou outros técnicos assumiram um papel fundamental, reconhecendo e valorizando em
Dan as suas particularidades, as suas potencialidades.
Pelo seu espírito lutador e por todas as condições criadas (passo a passo), Dan cresceu enquanto
pessoa e artista, deixando um testemunho sobre os “difíceis caminhos” a percorrer para a inclusão.

A sua batalha começou logo aquando o seu nascimento (período perinatal). Fruto de um parto difícil,
Keplinger teve problemas em respirar, pelo que, por consequência, lhe diagnosticaram uma paralisia
cerebral atáxica, que afetou intensamente toda a sua coordenação motora e toda a sua vida.
Naturalmente, a família esperava receber um filho vindo de Itália, mas, contrariamente às suas
expectativas, Dan veio da Holanda, que apesar de ser um país maravilhoso, deslumbrante e rico em
diversidade, o seu pai não foi capaz de apreciar, optando por negligenciar o seu papel. Pelo
contrário, a mãe, com certeza que também vivendo as suas angústias, não se deixou esmorecer por
sentimentos de impotência face ao problema do filho e acreditou que institucionalizar seria uma
atitude de fuga muito egoísta. Talvez o facto de o pai nunca ter conseguido ultrapassar a fase de
luto/aceitação desta realidade, tenha levado à separação do casal, quando Dan tinha seis anos.
A mãe sempre o tratou como é pressuposto tratar-se qualquer criança, criando expectativas positivas
em relação ao filho e procurando, para isso, as possíveis e melhores respostas (educativas,
terapêuticas, etc.), apoiando-o incondicionalmente nas suas escolhas.
Entre os seis e os catorze anos Dan frequentou uma escola especial (Ridge) onde, com outros alunos
com deficiência, aprendeu e usufruiu de terapias direcionadas para a sua problemática. Aí, diz que se
sentia protegido por não se sentir discriminado, nem alvo de chacota. No entanto as suas
potencialidades viriam a verificar-se maiores, pressupondo novas exigências, novos desafios.
Foi ainda nesta instituição que perceberam que as capacidades de Dan não se coadunavam com as
limitações motoras que apresentava, era capaz de, com precisão, montar quebra-cabeças com os
joelhos.
Dan sentia-se aprisionado dentro de um corpo, dependente da ajuda de outros para se poder
movimentar. Foi, então, por volta dos doze anos que experienciou sentimentos de liberdade, quando
recebeu a sua primeira cadeira de rodas “poderosa” que lhe permitia “correr” pelos campos,
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acompanhando o esvoaçar dos pássaros, tomando ele próprio consciência que, mesmo com as suas
limitações, também poderia voar mais alto.
Assim, com catorze anos, coincidindo com a morte (distrofia muscular) do seu melhor amigo, aquele
que considerava o único capaz de o entender e com quem conseguia conversar, Keplinger, achou que
esta escola que, numa perspetiva histórica da educação especial podemos considerar segregadora, já
não correspondia suficientemente às suas expectativas. Ele queria e precisava de mais.
Sempre com o apoio incondicional da sua mãe começou, assim, a sua luta por integrar o ensino
regular, pela sua inclusão.
Esta decisão foi questionada por muitos que a consideravam errada, sendo que o próprio psicólogo
alegou que Dan não seria capaz de lidar com um ambiente “normal” e que não estaria preparado
para as exigências deste novo ciclo. “Ninguém conseguia perceber que havia uma pessoa inteligente
dentro deste corpo.” (Keplinger).

Gostaria aqui de salientar que, embora esta fase se reporte aos anos oitenta, penso que ainda hoje
continue a emergir esta relutância à mudança de mentalidades, receando-se os desafios de uma
aprendizagem inclusiva, aberta à diversidade e não discriminatória.

Retomando o fio condutor desta “história de vida”, por mais que Dan e sua mãe fossem instigados
por opiniões derrotistas, não desistiram, e desafiando estas formas de pensar, com persistência e
muita dedicação foram ultrapassando, passo a passo, cada obstáculo, cada barreira.

Na escola de Parkville, Keplinger, inicialmente, receou fracassar pois ainda não se sentia preparado
para acompanhar as novas exigências. Deparou-se com uma realidade que não se adaptava às suas
necessidades (almoçava num espaço à parte, fazia corpo presente em algumas aulas, etc),
procurando ele próprio estratégias que o fizessem sentir adaptado. Estaria, assim, perante numa
escola ainda situada numa fase de integração e cujos princípios continuam a proliferar em muitas
escolas da atualidade, ainda que hoje se proclame a construção de uma escola inclusiva.
Dan teve de trabalhar arduamente para poder progredir. Em contexto de sala de aula, era
acompanhado por uma professora especializada e em casa contava com a ajuda de Laura que se
ofereceu para o apoiar na realização dos trabalhos de casa e que viria a tornar-se uma verdadeira
amiga. Lentamente, foi progredindo e tornando-se capaz de participar nas aulas com sucesso, o que
o motivava ainda mais para aprender.
Neste percurso foi foram imprescindíveis as condições e recursos disponibilizados a Dan, ainda que
continuasse a deparar-se com algumas barreiras arquitetónicas. Para além da sua cadeira
“poderosa”, Dan utilizava um capacete com ponteira que lhe possibilitava escrever no computador e
que viria também a ser fundamental para praticar a sua arte. Deslocava-se no autocarro com os
restantes colegas e podia aceder a outras tecnologias de apoio que se julgassem pertinentes. No
entanto, recusou utilizar um sintetizador de voz, por considerá-lo impessoal e incapaz de expressar
os sentimentos que tinha dentro de si.
Foi em Parkeville que Dan despertou para a sua arte. Descobriram a sua potencialidade, deram-lhe
ferramentas e ofereceram-lhe oportunidades de sucesso.
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Acreditando que o ser humano é único, não podemos cingir as suas capacidades a competências de
leitura, escrita e cálculo, mas sim dimensioná-lo em todas as suas vertentes. Como defendia Gardner
com a sua Teoria das Inteligências Múltiplas, cada individuo possui características cognitivas
distintas, sendo que cada um pode evidenciar-se por outras formas de inteligência e, através delas,
crescer em conhecimento. Trata-se de tornar o ensino inteligente, diversificá-lo, dando ao individuo
a possibilidade de aprender através dos seus potenciais. Foi, talvez, nesta perspetiva criativa de ver
aprendizagem que Dan conseguiu “encontrar-se” e, mesmo reconhecendo as suas limitações, decidiu
lutar pelos seus sonhos.
Reforçando mais uma vez o seu lado persistente e testando a sua autonomia, no ano precedente à
entrada na universidade, Dan, com o apoio da mãe e com as condições necessárias criadas, decidiu
viver sozinho, enfrentando todos os seus medos, especialmente o de “ser esquecido”, preparando,
desta forma, sua transição para o passo seguinte.
É de salientar que no final do nível secundário Dan parecia sentir-se integrado no grupo de pares,
vivenciando as experiências e as dúvidas características da idade, com a consciência de que consigo
tudo aconteceria de forma diferente, nomeadamente no campo afetivo. O papel desses que com ele
interagiam foi também crucial para a construção do seu Eu, tentando incentivá-lo e encorajando-o
frequentemente.
Keplinger foi o primeiro elemento da família a entrar para a universidade. Conforme referido
anteriormente, tentou preparar-se autonomamente e psicologicamente para esta transição. Mas
tudo foi muito complicado, fazendo-o reviver o início de um processo moroso e doloroso de
integração.

Parece que o tempo passa, as leis mudam e as mentalidades mantêm-se. Talvez possamos dizer que
esta é uma característica comum às sociedades que teimam em projetar escolas italianas.

Embora Dan tenha encontrado outras acessibilidades físicas, os seus maiores obstáculos afiguraram-
se de caráter humano. A falta de sensibilidade, abertura e compreensão, por parte de alguns
professores, quase destruíram os seus sonhos.

“Eu queria formar-me em artes mas um professor disse que eu nunca seria um artista (…) Eu tive dois
professores que nem falavam comigo. (…) Eu pensei em dizer: que se lixe isso tudo! Eu senti-me tão mal que
não queria pintar mais, por causa daquele professor.”

Aqui, emerge a importância que um professor poderá ter no percurso de um aluno, na sua
capacidade de o motivar, criando um ciclo de expectativas positivas relativamente às suas
capacidades. É fundamental que o professor não demostre apenas conhecimento sobre teorias
inclusivas mas que as pratique, sem receio de se entregar ao desafio da diversidade, criando
ambientes de aprendizagem criativos, desafiantes e inovadores, apelando à riqueza das
potencialidades individuais e das interações sociais, de forma a permitir que o processo inclusivo
floresça naturalmente.
Dan Keplinger, ainda fragilizado pelas atitudes de resistência, encontrou um professor que se
enquadrava neste perfil (com certeza entre outros), que o compreendia e que conseguiu fazer
renascer as suas expectativas. Atendendo às suas particularidades e valorizando as suas
potencialidades visuo-espaciais, Stuart Stein, respeitou a diferença, compreendeu as dificuldades
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(experimentou pintar como Dan), promoveu a cooperação (envolveu os pares na concretização de


trabalhos), desenvolveu estratégias diversificadas (utilização do computador para fazer a escultura),
adaptou o currículo, favorecendo oportunidades de sucesso num ambiente dinâmico, aliciante e
proativo.

Com o seu espírito de luta, Dan concretizou pelo menos parte dos seus sonhos. Concluiu o seu curso,
rodeado de amigos, e tornou-se num artista reconhecido, sendo a miúde solicitado para deixar o seu
testemunho em palestras ou outros eventos.
As suas obras representam a sua vida, as suas emoções, a sua perseverança e a sua perceção sobre a
realidade em vários momentos, sendo que muitas delas são autorretratos ou alusões à sua
deficiência.

O documentário “The King Gimp”, conotado por Dan como espírito lutador, desperta-nos para
realidades presentes de um vislumbrar inclusivo, levando-nos a questionar sobre a forma como
gerimos e valorizamos as nossas vidas. Faz-nos também repensar as nossas práticas, o nosso papel
enquanto profissionais de educação capazes de abraçar os desafios da diversidade, de forma
pluridimensional (família/comunidade educativa) e numa perspetiva de que todos temos uma
responsabilidade acrescida na promoção da igualdade de oportunidades.

De que serve uma escola apetrechada de todos os recursos físicos, se mantiver o coração e a mente
fechados à riqueza da heterogeneidade…

Trabalho elaborado por:


C. Alves

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