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"O que quer dizer este quadro?

Não quer dizer nada, porque, se pudesse dizer, não seria um quadro e sim um texto!
Pergunta mais besta, meu Deus!
Tem gente que acha que tudo na vida tem de ter utilidade. Até a beleza. Mas a beleza
não tem de ter utilidade nenhuma, aliás, a utilidade da beleza está em ser supérflua. Ela
é o que sobra sem poder faltar. É o elemento que preenche os mínimos espaços. Deixa
grande, dilata e assombra com seu poder de encantamento. Mas não é útil. É apenas
necessária.
Quem disse que a música tem de ter utilidade? Tudo o que nasce para ser utilizado já
nasce para morrer. É por isso que a beleza nasce para ser eterna. Surpreende o mundo
das utilidades com sua capacidade de não servir para nada e, mesmo assim, ter valor.
Penso nas coisas belas. Vejo-as em suas estruturas silenciosas, a nos roubar reações.
O poema de Adélia Prado me faz chorar! Choro sem saber porquê. O texto não me disse
nada, apenas me comunicou coisas que não são palavras. Assombrou-me com seu poder
de encanto e beldade, e depois se despediu de mim. Apronto-me para virar a página.
Virar pra quê? A vida pode acabar aqui nesta página, pois estou completo. O poema me
fez provar mil anos nesses poucos minutos que precisei para fazer sua leitura.
E por isso quero a supressão da continuidade! Parem os trens, parem os ônibus, pare a
vida, porque a beleza está aqui. Deixem que zarpem os que partem e que ancorem os
que chegam. Deixem que os navios concluam suas rotas, mas não me peçam para acenar
bandeiras de boas vindas a quem quer que seja.
O que quero é o direito de provar esta quietude que agora me envolve por inteiro - quero
sorver até o fim esta quase convulsão de febre que por ora paralisa os meus sentidos no
ato de aguçá-los.
É que a beleza tem o poder de paralisar mexendo, remoendo, provocando.
A música chegou. A pergunta besta também: "Pra que serve?". "Pra tocar na rádio",
respondo a esmo. Chegou para animar velórios, comemorar datas, eleger políticos e
vender ocasiões. Chega! Não me perguntem mais nada. Fiquem com a utilidade, que eu
fico com a beleza. Para mim, ela não precisa ser útil. Basta que seja bela. Não preciso
entender sua rebuscada construção harmônica. Basta que seja supérflua. Não precisa me
dizer nada, basta que me cale.
"Para que serve esta escultura?" "Pra enfeitar a sala, filhinho". Mentira. Ela não serve
para nada. Casualmente, por ser bela, resolvemos colocá-la aí, mas a beleza não tem
endereço. Continuaria sendo bela no banheiro. Vai para onde quer e se dá por acaso. A
escultura não tem de enfeitar sala nenhuma. Ela apenas quer ficar em qualquer canto,
longe da responsabilidade de ter de corresponder às expectativas dos utilitaristas, porque
para eles a beleza tem prazo de validade. Ela passa e, logo depois, será substituída.
Gosto de observar a beleza das coisas esquecidas. Daquelas que não tem mais nenhuma
utilidade, e que por isso estão livres para ser o que verdadeiramente são. Gosto da
despretensiosa forma com que vivem no esquecimento. Entulhados podem finalmente
descansar em seu eterno poder de sedução e total inutilidade.
Nelas repousa uma história consumada, livre de toda e qualquer forma de
aprisionamento, de definição e de interpretação. Estão esquecidas, distantes dos olhares
que lhes atribuíam utilidades. Não mais estão presas às equivocadas atribuições a que
foram submetidas. Finalmente descansam em paz. Indisciplinadas, harmônicas,
sinfônicas, sem fônicas, irônicas e absolutamente supérfluas, assim como toda beleza!"

Pe. Fábio de Melo

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