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A literatura comparada neste início de milênio:

Tendências e perspectivas

Anselmo Peres Alós


Doutor em Literatura Comparada pelo Programa de Pós-Graduação em
Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Professor da Universidade Federal de Santa Maria.

RESUMO:
Este artigo pretende, através de uma revisitação das
origens do método comparatista, mapear o estado da
arte desse campo disciplinar, a partir da evolução de
diferentes compreensões teóricas e epistemológicas do
fazer comparatista.

PALAVRAS-CHAVE:
literatura comparada – teoria literária – historiografia
literária – epistemologias comparatistas.

RESUMEN:
Este artículo busca, a través de una revisitación de los
orígenes de la metodología comparatista, mapear el estado
del arte de ese campo disciplinar a partir de la evolución
de distintas comprensiones teóricas y epistemológicas del
hacer comparatista.

PALABRAS-CLAVE:
Literatura comparada – teoría literaria – historiografía
literaria – epistemologías comparatistas.

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REMONTANDO AOS PRIMÓRDIOS c) estudos mesológicos, quando o objetivo do exercício compara-
tista é a compreensão dos fatores intermediários que funcionam
O nascimento da Literatura Comparada como campo como pontos de contato entre duas ou mais literaturas nacionais,
diferencial nas investigações literárias data do final do século tais como a circulação de traduções de obras estrangeiras em
XIX e inícios do século XX, com a intenção de, a partir da apro- uma determinada literatura nacional (CARVALHAL, 2004).
ximação das diferentes histórias literárias nacionais, construir A denominação “escola americana” passa a circular com
uma história da literatura universal (CARVALHAL, 1994). Se maior destaque no cenário comparatista internacional a partir
é verdade que a prática comparatista remonta aos inícios do da polêmica instaurada pelo trabalho “The Crisis of Compa-
século XIX, com o trabalho levado a cabo por Madamme de rative Literature”, apresentado no II Congresso Internacional
Stäel em De l’Alemmagne, com intenções de compreender e da ACLA (American Comparative Literature Association), em
divulgar a literatura, a filosofia e a cultura alemãs na França, Chapell Hill, no ano de 1958, por René Wellek. No compara-
também é mister salientar que o projeto mais amplo de cons- tismo de orientação americana, a necessidade de se dar conta
trução de uma historiografia cosmopolita de alcance universal de “duas nações e duas línguas distintas” como conditio sine
nasce com Goethe e a formulação da categoria Weltliteratur qua non para caracterizar um estudo literário como um estudo
(ALÓS e SCHMIDT, 2009). de natureza comparatista passa a ser questionado, e emergem
O comparatismo não se limita a uma simples metodo- propostas como a de estudos que contemplem duas literaturas
logia de abordagem do fenômeno literário ou de corpora de nacionais, mas apenas uma língua (como estudos de aproxi-
obras específicas; trata-se de um campo disciplinar com uma mação da literatura brasileira com a portuguesa e a moçambi-
longa tradição institucional. Basta mencionar, neste sentido, a cana), ou estudos que deem conta de uma única nação e duas
criação dos departamentos de Literatura Comparada dentro línguas (como, por exemplo, um estudo hipotético sobre a poe-
das universidades estadunidenses, como em Columbia, em sia paraguaia escrita em castelhano e em guarani). A interdisci-
1899, e Harvard, em 1904 (COUTINHO, 2006). Mesmo com plinaridade passa a ser acolhida no interior do comparatismo,
a sua institucionalização, a literatura comparada estabeleceu, seja através de estudos que aproximam diferentes linguagens
desde os seus primórdios, tensas relações com outras aborda- artísticas (envolvendo, por exemplo, literatura e cinema, lite-
gens consolidadas dos estudos literários. O campo de atuação ratura e pintura, literatura e escultura) ou diferentes campos
da história, da crítica e da teoria literária, e as relações dos disciplinares (estudos que dão conta de um determinado cor-
comparatismo com estes campos, de forte tradição em função pus de obras literárias, concomitantemente, a partir do ponto
das abordagens herdeiras dos estudos filológicos, sempre foi de vista dos estudos literários e de outro campo de estudos,
tensa, uma vez que buscava sedimentar suas especificidades como a antropologia, a filosofia, a sociologia ou a psicologia).
e sua autonomia em um espaço no qual sempre foi considera- A escola “soviética”, que tem entre seus principais expo-
da secundária. Com relação à tradição de investigação da his- entes fundadores Victor Zhirmunsky e Dionyz Ďurišin, cos-
toriografia literária, por exemplo, a literatura comparada foi tuma julgar a literatura como produto da sociedade na qual é
vista durante longo tempo como disciplina-meio, e não como produzida, buscando sempre estabelecer correspondências en-
disciplina-fim. tre a evolução da literatura e a evolução da sociedade na qual
Ao longo do século XX, tornou-se quase um lugar co- é produzida, ao longo da história (ZHIRMUNSKY, 1994). O
mum a afirmação de três grandes subdivisões ou tendências princípio subjacente a este tipo de investigação é o de que para
dentro dos estudos comparatistas, as quais convencionalmente cada mudança ocorrida no funcionamento social de uma de-
são referenciadas como as grandes “escolas” do comparatis- terminada nação correponde uma mudança no continuum da
mo: a francesa, a americana e a soviética (CARVALHAL, 1994; literatura, seja no campo das formas, seja no campo dos temas
2004). Ainda que estas correntes não sejam estanques nem res- abordados. É inegável aqui o impacto do estudo “Da evolu-
peitem à risca suas denominações marcadamente geográficas ção literária”, de Iuri Tynianov, na estruturação desta corrente
(René Etiemble, apesar de francês, aproxima-se muito da esco- comparatista. Segundo Tynianov, há uma correspondência en-
la comparatista americana, por exemplo), cabe aqui uma breve tre o que ele denomina como sendo a “série social” (o conjunto
retomada dessa taxionomia que já não dá conta das práticas de acontecimentos e relações de causa e consequência no cam-
comparatistas realizadas na contemporaneidade. po da estrutura social ao longo do tempo) e a “série literária”,
Sob a rubrica de “escola francesa”, aloca-se uma perspec- ou seja, o conjunto de interrelações, fenômenos e mudanças no
tiva de trabalho que enfatiza sobretudo as questões de estudo campo da evolução de uma determinada literatura ao longo do
de fontes e influências, seja de um determinado autor sobre tempo (TYNIANOV, 1971).
outro, seja de uma literatura nacional sobre outra. Tania Fran-
co Carvalhal refere-se a esta modalidade de estudos subdivi-
dindo-a em três modalidades, de acordo com a ênfase dada DA CONSOLIDAÇÃO E
ao longo da investigação comparatista: a) estudos cronológicos, INSTITUCIONALIZAÇÃO
quando a ênfase recai em textos literários, autores ou literatu- DO COMPARATISMO
ras nacionais que funcionam como fontes, influenciando outros
textos, autores ou literaturas nacionais; b) estudos doxológicos, A literatura comparada não é apenas um método ou
quando se preocupam com o destino de determinadas obras abordagem de análise literária. A partir da segunda metade do
literárias fora da tradição nacional na qual foram produzidas, século XX, o comparatismo consolida-se não apenas como es-
bem como das opiniões cristalizadas pela crítica, em um deter- tratégia de aproximação do fenômeno literário, mas como um
minado país, com relação a um determinado autor estrangeiro; campo disciplinar institucionalizado. Um estudo comparatista

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strictu sensu demandava do investigador o conhecimento de tencimento do estudo era deixado claro. Hoje essas fronteiras
pelo menos duas línguas distintas e e de duas tradições literárias foram lançadas por terra e o sentido da interdisciplinaridade
nacionais distintas. se amplia de tal modo que tende a generalizar-se, sendo mui-
Entretando, um dos grandes e espinhosos debates ao lon- tas vezes substituído pela ideia de cultura (COUTINHO, 2006,
p. 50).
go da história do comparatismo foi o que tentava – e tenta, aon-
da hoje – chegar a um ponto pacífico com relação aos métodos
e ao objeto de investigação deste campo disciplinar. Em defesa Uma das evoluções das investigações neste campo, ori-
das abordagens interdisciplinares, Henry H. H. Remak define ginadas dos estudos de recepção, influências de traduções de
a literatura comparada como “a comparação de uma literatura obras estrangeiras em uma determinada literatura nacional,
com outra ou outras, e a comparação da literatura com outras abriu margem para o campo dos estudos de traduções semióti-
esferas da expressão humana” (REMAK, 1961, p. 3). De acordo cas. Neste campo a adaptação de um romance para o cinema,
com Alfred Owen Aldridge, por sua vez, “a Literatura Compa- por exemplo, é considerada como uma prática de tradução em
rada pode ser o estudo de qualquer fenômeno literário do pon- chave ampla.
to de vista de mais de uma literatura nacional ou em conjunto
com outra disciplina intelectual, ou até mesmo várias” (1969, 4) Os estudos que se focam no diálogo entre a literatura
p. 1). Estas redefinições do campo de atuação comparatista comparada e outras abordagens do fenômeno literário: a histo-
surgem como tentativa de dar conta dos problemas levantados riografia, a teoria e a crítica literária. O trabalho de René Wellek
por Wellek em “The Crisis of Comparative Literature”. Mes- e Austin Warren com o volume Theory of Literature (1949, p.
mo em trabalhos recentes, como no livro de Susan Bassnett, 29-56) é um dos trabalhos pioneiros no estabelecimento destas
a questão da definição dos limites e da definição do objeto do relações.
comparatismo são retomados. A autora afirma que, ao fim e ao 5) Os estudos que dão conta de eras, períodos ou mo-
cabo, o que se pode afirmar com segurança é que a Literatura vimentos literários, dedicando mais atenção às características
Comparada “envolve o estudo de textos entre culturas, que gerais que se fazem presente em uma determinada época do
ela é interdisciplinar e que ela está voltada para os padrões de que à análise de obras individuais. Esta vertente está fortemen-
relações entre as literaturas no tempo e no espaço” (1993, p. te ligada aos pressupostos operantes na historiografia literária,
1). Como resultado destas discussões, o comparatismo sob a apontando para uma vocação mais cosmopolita, ao colocar em
rubrica de “escola americana” passa a se organizar em torno de confronto tradições literárias distintas2. O relatório redigido
cinco modalidades relativamente bem diferenciadas, as quais, por Charles Bernheimer, acerca do estado da arte do compara-
ao serem recuperadas, permitem que melhor se compreenda o tismo nas universidades estadunidenes, no seio da American
estado da arte do comparatismo no cenário da academia con- Comparative Literature Association (ACLA), e publicado no
temporânea: volume coletivo por ele organizado, intitulado Comparative
Literature In The Age of Globalization, bem como as discus-
1) Estudos dos gêneros literários, suas formas e sua evo- sões que se produziram em seu entorno, marcaram o ano de
lução ao longo do tempo. Sob a rubrica generalista de estudos 1993 como o momento da virada multiculturalista nos estudos
de poética desdobram-se abordagens específicas e frutíferas, de literatura comparada. Como em todas as grandes viradas,
tais como em teoria dos gêneros literários e a narratologia. A esta reformulação dos rumos epistemológicos da disciplina
narratologia configura um exemplo pertinente para mostrar resultou em ganhos e em perdas. Dos ganhos, o maior deles
como uma abordagem inicialmente restrita ao âmbito dos es- foi uma fertilização do campo comparatista, a partir da aber-
tudos literários acaba estendendo-se a estudos em outros cam- tura institucionalizada para os estudos culturais, marcando
pos, como a teoria fílmica (AUMONT, 1995) e a análise cultural uma tomada de consciência com relação ao papel político da
(BAL, 1994, 1997 e 2000). literatura no campo mais amplo dos debates acadêmicos das
2) Estudos de temas ou de mitos literários – método que ciências humanas. Das perdas, a maior delas foi uma fragili-
remonta à Stoffgeschichte1 de orientação germanófila – , de suas zação ainda maior da identidade institucional da literatura
recorrências, transformações e deformações ao longo do tem- comparada como campo de investigação, ao assumir seu inte-
po e do espaço, isto é, do tratamento dado a determinados resse por objetos de estudo tradicionalmente restritos a outros
conteúdos como elementos constituintes das obras literárias. campos disciplinares, tais como a antropologia e a sociologia3.
Dentro da tematologia, merece destaque um campo específico: O impacto deste relatório foi tal que a Associação Brasileira de
a imagologia, que se preocupa em investigar como os textos Literatura Comparada (ABRALIC), em seu VI Encontro Inter-
literários de uma determinada literatura nacional projetam nacional, ocorrido em 1998, na Universidade Federal de Santa
uma imagem de identidade nacional, e como outras literaturas Catarina, faz da proposta epistemológica lançada por Bernhei-
nacionais recebem e absorvem essas representações. mer em 1993 o tema central do evento: “Literatura Comparada
3) Estudos interartes ou interdisciplinares, isto é, aqueles = Estudos Culturais?”.
que aproximam uma determinada obra ou um determinado O impacto dos estudos culturais britânicos, na tradição
corpus de obras literárias a uma obra ou corpus de obras artísti- de nomes como Raymond Williams e Stuart Hall, ao revalori-
cas de outra natureza, tal como a música, a pintura, a escultura zar manifestações culturais das classes subalternizadas, e dan-
ou o cinema: do atenção para a cultura popular, impacta de maneira intensa
os estudos literários, e uma das principais consequências é o
Na fase clássica da disciplina, havia, sem dúvida, uma pene- questionamento das categorias de análise mais basilares para
tração em áreas distintas do conhecimento, mas o locus de per- a história da literatura comparada, tais como as de nação, lín-
gua nacional e literariedade (este último, uma espécie de “por-

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to seguro” teórico para os estudos literários em cena desde América, “inventa-se” também a si mesma (e até com maior
o advento do formalismo russo). Na América Latina, merece eficácia do que “inventa” a América). Imaginar o outro é um
destaque o questinamento feito à noção de literaridade por gesto interpretativo bastante produtivo na tarefa de figurar a
Antonio Cornejo Polar com a sua defesa da heterogeneidade si mesmo. Não se deve, em nenhum momento, subestimar o
(simultaneidade do oral e do escrito) como traço distintivo das poder da imagem sobre aquilo que é imaginado:
literaturas andinas.
Um dos traços diferenciadores do pensamento de Cor- [...] cada sujeito decide a história que lhe corresponde, à qual
nejo Polar é a sua insistência no fato de que o ponto de parti- pertence e à qual se deve. [...] muitos hispanistas imaginam
da para o historiador das literaturas latino-americanas é a sua que as nações andinas começaram com a conquista, e todos
interpretação pessoal daquilo que conta como “literatura” em os indigenistas encontram as raízes nacionais muito antes, na
sua interpretação e avaliação da herança literária. Para ele, a época pré-hispânica (CORNEJO POLAR, 2000, p. 57).
literatura não é apenas um reflexo ou produto da sociedade
na qual foi gendrada, mas uma força produtiva que contribui
para o delineamento do perfil cultural desta mesma sociedade. O PRESENTE E O FUTURO
Em outras palavras, a literatura não é apenas uma manifes- DO COMPARATISMO
tação cultural de caráter derivativo, mas é também produtiva.
Outro traço importante de seu pensamento é a insistência na Como resultado destas reflexões e indagações ao lon-
diferença irredutível que existe entre a temporalidade da tradi- go do desenvolvimento da Literatura Comparada entendida
ção popular e a da tradição letrada das elites latino americanas, como campo disciplinar, os cânones revelam-se como os maio-
fortemente marcadas pela herança do pensamento iluminista res esteios de uma tradição euro/falocêntrica e racista, que pri-
que guiou o processo de formação das nações latino-america- vilegiou certas vozes em detrimento de outras na construção
nas. Isto é de grande monta para que se compreenda a ques- dos paradigmas de referência e de valoração estética. O texto
tão da marginalização das literaturas dos povos originários da literário passa a ser avaliado em suas relações com outras ma-
América Latina (sejam as tradições orais, independentemente nifestações culturais, sem o privilégio concedido pela literarie-
da língua que utilizam, sejam as manifestações literárias escri- dade, e os critérios valorativos/judicativos passam a oscilar a
tas em línguas autóctones, tais como o aimará e o quéchua. partir do locus de enunciação do investigador comparatista. Isso
Para ele, a tradição latino-americana forma uma totalidade não implica na falência da crítica literária, da história da lite-
marcada por uma natureza contraditória entre seus diferentes ratura, ou do próprio comparatismo, mas sim na tomada de
setores e subsistemas, dos quais o confronto mais visível é o consciência de os valores que entram em cena nestes campos
embate entre as tradições orais autóctones e a tradição escrita disciplinares e não são absolutos. Como consequência salutar,
trazida pelos europeus: são problematizados os pressupostos paradigmáticos da teo-
ria da literatura, fazendo com que o trabalho de produção de
De fato, como literaturas produzidas por classe e etnias do- conhecimento acerca dos fenômenos literários redefinam-se
minadas, [as literaturas latino-americanas de expressão como um exercício metacrítico (isto é, “uma crítica da crítica”).
autóctone] estão atomizadas e não-comunicantes: formam, A problematização das visões lineares e teleológicas da
na realidade, verdadeiros arquipélagos, e não está claro se História faz-se presente nas discussões sobre periodização
constituem sistemas independentes ou se, em alguns casos, e historiografia literárias, para se pensar a tradição literária
são subsistemas que convergem para um determinado eixo não como o mero acúmulo da produção de tetos ao longo da
unificador (CORNEJO POLAR, 2000, p. 29). história, mas como um processo constante de reescritura do
passado a partir de problemas do presente, estabelecendo, nos
A importância de se recontextualizar o potencial semió- estudos comparatistas, uma verdadeira dialética entre passa-
tico da literatura ao produzir sentidos em diferentes contextos do e presente4. A relativização dos processos de constituição
históricos coloca o comparatista, já de antemão, em uma postu- dos cânones nacionais abre um espaço importante para grupos
ra de leitura dupla, levando em conta simultaneamente o con- minoritários que dele se viram excluídos ao longo da história.
texto de produção e o de recepção de uma obra: “a História Li- Assumindo suas próprias vozes e reivindicando tradições cul-
terária passa a ser a história da produção e recepção de textos, turais próprias, estes grupos passal a lutar pela constituição de
e, para o historiador, esses textos constituem ao mesmo tempo outros cânones, ou então, pela flexiblização dos parâmetros do
documentos do passado e experiências do presente” (COUTI- cânone com vistas a abrir espaço para outras obras. As críticas
NHO, 2003, p. 77). Cornejo Polar, em outros termos, coloca a feministas passam a dedicar esforços aos trabalhos de “arque-
mesma questão, ao afirmar que “reconhecer um passado como ologia literária”, recuperando a produção das mulheres deixa-
nosso próprio passado supõe um certo modo de definir o pre- das à margem da historiografia literária “oficial” e canônica.
sente e de identificar a índole do futuro” (CORNEJO POLAR, Um importante exemplo deste trabalho no contexto brasileiro
2000, p. 52). Tomar a chegada dos espanhóis, por um lado, ou a é dado pelos dos volumes da antologia Escritoras brasileiras
tradição pré-colombiana, por outro, como ponto de origem das do século XIX (MUZART, 1999, 2004 e 2009), nos quais são res-
tradições literárias da América Latina denuncia dois posiciona- gatados dos arquivos esquecidos os nomes de mais de cento e
mentos bastante distintos com relação à valoração da tradição cinquenta escritoras brasileiras deixadas à margem dos manu-
herdada e ao que se projeta como possibilidade para o futuro. ais de historiografia literária brasileira, todos eles sintomatica-
Partindo do caminho já aberto pelo comparatista pales- mente escritos por homens.
tino Edward W. Said em Orientalism (1978), Cornejo Polar Discutir e relativizar o cânone viabiliza o abalo de tradi-
salienta que a Europa, ao mesmo tempo em que “inventa” a

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ções e sistemas de valores instituídos pelos centros de poder. _____. Double Exposures: The Subject of Cultural Analysis. London:
A literatura comparada articula, no presente, um importante Routledge, 1996.
papel nestas discussões. Enquanto as nações periféricas rela- _____. Narratology. 2nd Edition. Buffalo: The University of Toronto
Press, 1997.
tivizam os critérios estéticos impostos pelas metrópoles, os
_____. “Poetics, Today”. Poetics Today. v. 21, nº 3, Fall, 2000. p. 479-
países centrais são assolados pelas reivindicações de grupos 502.
subalternizados, nos quais mulheres, negros e homossexuais BASSNETT, Susan. Comparative Literature: A Critical Introduction.
reivindicam parâmetros alternativos para a avaliação da pro- Oxford: Blackwell, 1993.
dução cultural em um importante gesto de descolonização do BERNHEIMER, Charles. “The Bernheimer Report, 1993: Comparative
imaginário. Tais discussões não deslocam apenas nossa com- Literature at The Turn of the Century”. In: _____. (Ed.). Comparative
Literature In The Age of Globalization. Baltimore: The John Hopkins
preensão acerca de noções como “literatura”, “identidade” e
University Press, 1995. p. 39-50.
“valor estético”, mas contribuem para uma discussão mais am- CARVALHAL, Tania Franco. “Teorias em literatura comparada”. Re-
pla sobre o universal e o particular, instaurando novas possi- vista Brasileira de Literatura Comparada. ABRALIC (São Paulo), n. 2,
bilidades éticas que invocam a alteridade como conceito-chave maio de 1994, p. 9-19.
na crítica cultural. Redimensionar os regimes de representação _____. Literatura comparada. 6 ed. revista e ampliada. São Paulo: Ática,
das comunidades humanas, preocupação comum à Literatura 2006.
CASANOVA, Pascale. “Literature as a World”. New Left Review.
Comparada e aos Estudos Culturais neste início de século, é
Number 31, Jan./Feb. 2005, p. 71-90.
o primeiro passo para que se construam novas possibilidades CORNEJO POLAR, Antonio. O condor voa. Organização de Mário J.
de relacionamento no campo social. Atrevo-me aqui a afirmar Valdés. Belo Horizonte: UFMG, 2000.
que o papel do comparatismo no cenário atual dos estudos li- COUTINHO, Eduardo. Literatura comparada na América Latina: en-
terários e culturais pode ser definido como o de viabilizar a saios. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2003.
constituição de um espaço pós-disciplinar permeado simulta- _____. “Literatura comparada: reflexões sobre uma disciplina acadê-
neamente pelo saber e pelo poder articulados sobre a diferença mica”. Revista Brasileira de Literatura Comparada. ABRALIC (Rio de
Janeiro), nº 8, julho de 2006, p. 41-58.
cultural.
DEFOE, Daniel. As aventuras de Robinson Crusoé. Trad. Albino Poli
Jr. Porto Alegre: L&PM Pocket, 1997.
ĎURIŠIN, Dionyz. Theory of Literary Comparatistics. Trans. Jessie
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Stoffgeschichte é um termo de origem alemã, de difícil tradução para Rebelo. In: COUTINHO, Eduardo e CARVALHAL, Tania Franco (or-
outras línguas, em especial para as línguas latinas. Trata da história de ganização). Literatura comparada: textos fundadores. Rio de Janeiro:
um determinado tema (como o amor ou os oceanos) ou mito (como o de Rocco, 1994. p. 191-198.
Narciso ou o de Don Juan) ao longo do tempo, em diferentes tradições MORETTI, Franco. “Conjectures on World Literature”. New Left Re-
literárias. A tradução mais recorrente para esta ideia, no campo dos view. Number 1, Jan./Feb. 2000. p. 54-68.
estudos comparatistas, seria “tematologia”. _____. “More Conjectures on World Literature”. News Left Review.
Number 20, Mar./Apr., 2003. p. 73-81.
2
A sistematização dessas cinco áreas de estudo comparatista dentro da MUZART, Zahidé L. (Org.). Escritoras brasileiras do século XIX: Vo-
era clássica da “escola americana” e sua importância para a compreen- lume I. Florianópolis: Mulheres; Santa Cruz do Sul: UNISC, 1999.
são do campo dos estudos comparatistas no presente é apresentanda _____. Escritoras brasileiras do século XIX: Volume II. Florianópolis:
por Eduardo Coutinho (2006, p. 45). Mulheres; Santa Cruz do Sul: UNISC, 2004.
_____. Escritoras brasileiras do século XIX: Volume III. Florianópolis:
3
A importância dada aqui a este relatório institucional não deve ser Mulheres; Santa Cruz do Sul: UNISC, 2009.
lida como um ato de subserviência ao colonialismo cultural estadu- REMAK, Henry H. H. “Comparative Literature: Definition and Func-
nidense, mas sim como o reconhecimento da envergadura da ACLA, tion”. In: STALKNECHT, N. and FRENZ, H. (Eds.). Comparative Lit-
uma importante associação comparatista que em muito contribuiu para erature: Method and Perspective. Southern Illinois University Press,
a constituição da Associação Internacional de Literatura Comparada. 1961, p. 3-19.
SAID, Edward W. Orientalism. New York: Pantheon, 1978.
4
Para evidenciar isto, pode-se pensar, como exemplo ilustrativo, no STAËL, Mme. de. De l’Allemagne. Paris: Charpentier, 1844.
trabalho de reescritura do romance Robinson Crusoe (de Daniel Defoe) TOURNIER, Michel. Vendredi ou les limbes du pacifique. Paris: Folio,
por Michel Tournier em Vendredi ou les limbes du Pacifique, no qual a 2001.
missão colonialista de Crusoe sobre a ilha deserta (e sobre a subjetivi- TYNIANOV, Iuri. “Da evolução literária”. In: TOLEDO, Dionísio de
dade de Sexta-Feira) é explicitada. Oliveira Toledo (organização). Teoria da literatura: formalistas russos.
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tica/poéticas da margem: o comparatismo planetário como prática de ZHIRMUNSKY, Victor. Sobre o estudo da literatura comparada. Trad.
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