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Ministério

da Educação
A FORMAÇÃO DO
CIDADÃO PRODUTIVO
A CULTURA DE MERCADO
NO ENSINO MÉDIO TÉCNICO
Presidente da República Federativa do Brasil
Luiz Inácio Lula da Silva

Ministro da Educação
Fernando Haddad

Secretário Executivo
Jairo Jorge

Presidente do Instituto Nacional de Estudos


e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep)
Reynaldo Fernandes

Diretora de Tratamento e Disseminação de Informações Educacionais (DTDIE)


Oroslinda Taranto Goulart
A FORMAÇÃO DO
CIDADÃO PRODUTIVO
A CULTURA DE MERCADO
NO ENSINO MÉDIO TÉCNICO

Organizado por:
Gaudêncio Frigotto
e Maria Ciavatta

Brasília, Inep, 2006


Coordenadora-Geral de Linha Editorial e Publicações
Lia Scholze

Coordenadora de Produção Editorial


Rosa dos Anjos Oliveira

Coordenadora de Programação Visual


Márcia Terezinha dos Reis

Editor Executivo
Jair Santana Moraes

Revisão
Maria Helena Oliveira

Projeto gráfico, diagramação e capa (pastel raspado sobre papel)


Rodrigo Murtinho

Tiragem
1.000 exemplares

Apoio à Pesquisa
Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal Fluminense
Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq)
Fundação da Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ)

EDITORIA
Inep/MEC – Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira
Esplanada dos Ministérios, Bloco L, Anexo I, 4º Andar, Sala 418
CEP 70047-900 – Brasília-DF – Brasil
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DISTRIBUIÇÃO
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A exatidão das informações e os conceitos e opiniões emitidos são de exclusiva responsabilidade dos
autores.
Dados Internacionais de Catalogação na Fonte (CIP)

A formação do cidadão produtivo : a cultura de mercado no ensino médio técnico /


Organizado por: Gaudêncio Frigotto e Maria Ciavatta. – Brasília : Instituto
Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira, 2006.
372 p. : il.

ISBN 85-86260-09-6
1. Política educacional – Brasil. 2. Ensino médio. 3. Cidadão. I. Frigotto,
Gaudêncio. II. Ciavatta, Maria.
CDU 37.014.53(81)
SUMÁRIO

Sobre os autores ........................................................................................... 8

Apresentação ................................................................................................ 11

PARTE I | AS DÉCADAS DE 1980 E 1990

Capítulo 1 | Anos 1980 e 1990: a relação entre o estrutural e o


conjuntural e as políticas de educação tecnológica e profissional ............. 25
Gaudêncio Frigotto

Capítulo 2 | Educar o trabalhador


cidadão produtivo ou o ser humano emancipado? ....................................... 55
Gaudêncio Frigotto e Maria Ciavatta

Capítulo 3 | O estado-da-arte das políticas


de expansão do ensino médio técnico nos anos 1980
e de fragmentação da educação profissional nos anos 1990 .......................... 71
Gaudêncio Frigotto e Maria Ciavatta

Capítulo 4 | A produção capitalista, trabalho


e educação: um balanço da discussão nos anos 1980 e 1990 ...................... 97
Eunice Trein e Maria Ciavatta

Capítulo 5 | Estudos comparados


sobre formação profissional e técnica ........................................................... 117
Maria Ciavatta
PARTE II | A DÉCADA DE 1980

Capítulo 1 | Programa de melhoria e


expansão do ensino técnico: expressão de
um conflito de concepções de educação tecnológica ................................. 139
Gaudêncio Frigotto, Maria Ciavatta Franco e Ana Lucia Magalhães

Capítulo 2 | Formação profissional e mercado


de trabalho: o ensino de segundo grau e a
profissionalização em questão na década de 1980 ....................................... 151
Ramon de Oliveira

Capítulo 3 | Tempo da Constituinte: a educação dos


trabalhadores frente às mudanças e inovações tecnológicas ...................... 165
Francisco José da Silveira Lobo Neto

PARTE III | A DÉCADA DE 1990

Capítulo 1 | Início dos anos 1990: reestruturação


produtiva, reforma do estado e do sistema educacional .............................. 187
Jailson dos Santos

Capítulo 2 | Reestruturação produtiva, reforma


do estado e formação profissional no início dos anos 1990 .......................... 201
Laura Souza Fonseca

Capítulo 3 | Década de 1990:


a reestruturação produtiva e a educação do trabalhador ........................... 221
Anita Handfas

Capítulo 4 | A nova cultura do trabalho:


subjetividades e novas identidades dos trabalhadores ................................ 237
Vera Corrêa
Capítulo 5 | A reforma do ensino
médio técnico: concepções, políticas e legislação ....................................... 259
Antonio Fernando Vieira Ney

Capítulo 6 | A reforma do ensino


médio técnico nas instituições federais
de educação tecnológica: da legislação aos fatos ........................................ 283
Marise N. Ramos

Capítulo 7 | Do discurso à imagem


– Fragmentos da história fotográfica da
reforma do Ensino Médio Técnico no CEFET Química .............................. 311
Maria Ciavatta e Ana Margarida Campello

Capítulo 8 | Os embates da Reforma do


Ensino Técnico: resistência, adesão e consentimento ................................. 343
Gaudêncio Frigotto e Maria Ciavatta
SOBRE OS AUTORES

Gaudêncio Frigotto
Doutor em Educação (PUC- São Paulo), Professor Titular Associado no
Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal Fluminense
e Professor Visitante na Faculdade de Educação da Universidade do Estado
do Rio de Janeiro. e-mail: gfrigotto@globo.com

Maria Ciavatta
Doutora em Ciências Humanas (Educação, PUC-RJ), Professora Titular
Associada ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade
Federal Fluminense. e-mail: mciavatta@terra.com.br

Ana Lúcia Magalhães


Mestre em Educação, ex-Professora Assistente da Faculdade de Educação da
Universidade Federal Fluminense.

Ana Margarida Campello


Doutora em Educação (UFF), Pesquisadora Visitante da Escola Politécnica de
Saúde Joaquim Venâncio/Fiocruz.

Anita Handfas
Doutoranda em Educação na Universidade Federal Fluminense, Professora
Assistente da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Antonio Fernando Ney


Doutorando em Educação da Universidade Federal Fluminense, Chefe do
Departamento de Capacitação e Treinamento do Arsenal da Marinha do Rio
de Janeiro.

Eunice Trein
Doutora em Educação (UFRJ), Professora Adjunta da Faculdade de Educação
da Universidade Federal Fluminense.

8
Francisco Lobo Neto
Doutorando em Educação da Universidade Federal Fluminense, Professor da História
da Educação da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense.

Jailson dos Santos


Doutorando em Educação da Universidade Federal Fluminense, Professor do
Departamento de Administração Educacional da Universidade Federal do Rio
de Janeiro.

Laura Souza Fonseca


Doutoranda em Educação da Universidade Federal Fluminense, Professora de
Educação de Jovens e Adultos na Faculdade de Educação da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul.

Marise Ramos
Doutora em Educação (UFF), Professora Adjunta da Universidade do Estado
do Rio de Janeiro, vice-Diretora de Ensino da Escola Politécnica de Saúde
Joaquim Venâncio/Fiocruz.

Ramon de Oliveira
Doutor em Educação (UFF), Professor Adjunto da Universidade Federal de
Pernambuco.

Vera Corrêa
Doutora em Educação (UFF), Professora Adjunta da Faculdade de Educação
e do Programa de Mestrado em Odontologia da Universidade Estadual do Rio
de Janeiro.

9
10
APRESENTAÇÃO

A presente coletânea de artigos tem por base o Projeto Integrado de


Pesquisa “A formação do ‘cidadão produtivo’. Da política de expansão do ensino
médio técnico nos anos 80 à fragmentação da educação profissional nos anos
90: entre discursos e imagens (2001-2004)”, desenvolvido no Núcleo de Estudos,
Documentação e Dados sobre Trabalho e Educação (NEDDATE) do Programa
de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal Fluminense, com
apoio do CNPq e da FAPERJ.
Seu resultado final é parte de um percurso de aproximadamente 20 anos de
pesquisa sobre ensino técnico e formação profissional. Vincula-se à temática geral
Formação humana e dimensões históricas da relação trabalho e educação, que define,
no CNPq, o grupo de pesquisa coordenado pelos pesquisadores que também
coordenam o Projeto Integrado objeto desta coletânea.
Expressa-se aqui uma continuidade de pesquisa e de acúmulo de
conhecimentos no campo do ensino técnico de nível médio e da formação
profissional – hoje, com a nova LDB, denominado educação profissional – articulada
com dois outros projetos anteriores: “A relação educação e trabalho. Uma
contribuição à sua reconstrução histórica no pensamento educacional brasileiro”
(apoio INEP e CAPES) e “Acompanhamento, documentação e análise dos
Programas de Expansão e Melhoria do Ensino Técnico (1984-1990)” (apoio INEP).
Importa, nesta breve apresentação, destacar a problemática, a opção
teórico-metodológica da análise e a estrutura geral da coletânea.
As mudanças de concepção e de política que ocorreram especialmente a
partir do início da década de 1990 conduziram-nos a um balanço do ensino
médio técnico e da educação profissional sob uma visão de totalidade social, de
seu significado educativo, socioeconômico, político e cultural. O produto central
do projeto e do relatório é o estado-da-arte da política de expansão do ensino
médio técnico nos anos 80 à fragmentação da educação profissional nos anos 90:
entre discursos e imagens. O resultado, como se pode depreender desta coletânea,
vai muito além disso.
Um conjunto de questões de natureza ampla esteve na origem da pesquisa
e alimentou a análise exposta nos textos aqui apresentados: o que significa ser

11
A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico

um “cidadão produtivo”? Quais as transformações sociais econômicas, políticas,


culturais que deram origem à terminologia “cidadão produtivo”?
Qual o papel da educação em sua relação com o trabalho, na legitimação
da ordem social?
Como a educação profissional tem respondido às novas demandas?
Que políticas públicas têm sido levadas adiante para responder às
exigências do setor produtivo?
Como se caracterizam as políticas educacionais da década de 1980 para
o ensino médio técnico e como se distinguem das políticas implementadas na
década de 1990?
Considerando a presença ostensiva dos organismos bilaterais na definição
dessas políticas, qual o sentido de suas ações?
Como se expressam essas ações no discurso oficial (leis, medidas
provisórias, pareceres, atos normativos) e na produção escrita e iconográfica
das instituições escolares (documentos internos, jornais, fotografias)?
Qual a memória preservada nas instituições educativas de ensino médio
profissional?
Existe relação entre a memória preservada, as ações do presente e os
projetos de futuro?
Considerando que, há aproximadamente 10 anos, o Brasil mantém
governos democraticamente eleitos e que, pela consolidação de relações
democráticas em todos os níveis, parece haver consenso no país, como se
expressa a democracia nas ações governamentais e na aceitação ou resistência
às reformas do ensino técnico, particularmente nos Centros Federais de
Educação Tecnológica – CEFETs?
Trata-se de questões que emergem das relações e dos conflitos entre as
conjunturas e a materialidade estrutural da sociedade. A complexidade da
apreensão do sentido e natureza dessas mudanças amplia-se quando o tecido
estrutural da sociedade, em suas múltiplas dimensões, apresenta tensões e mudanças
abruptas e profundas, sem, todavia, haver a ruptura do modo de produção.
Assim parece ser o período histórico que vivemos neste início de século.
Com efeito, a partir, sobretudo, do final da década de 1980, o mundo foi palco
de transformações políticas com a crise e o colapso do socialismo real, e a
emergência da ideologia e das políticas neoliberais; mudanças socioeconômicas
com a afirmação de uma nova base científico-técnica do processo produtivo e

1
Chesnais, F. A mundialização do capital, São Paulo: Scrita, 1996.

12
APRESENTAÇÃO

a mundialização do capital (Chesnais 1996).1 Pelo monopólio da mídia, aceleram-


se as mudanças no âmbito cultural. Essa complexidade é sobredeterminada pela
crescente desigualdade que se produz internamente, nos países, e entre os centros
orgânicos do capital e o capitalismo periférico (Arrighi, 1996 e 1998).2
Esse movimento ampliado do capital, principalmente o financeiro, a
reestruturação produtiva e a nova organização do trabalho, alicerçados pela
microeletrônica e pela informática, combinam-se à ideologia neoliberal para a
implementação de políticas educativas de cunho conservador, particularmente
nos países periféricos ao núcleo orgânico do capital.
As reformas educativas impostas à sociedade brasileira na década de
1990 refletem esse contexto e a postura subserviente e associada da classe
dominante, e alteram profundamente o sentido das reformas pretendidas na
década de 1980, no momento da Constituinte e da nova Constituição. As
mudanças efetivadas no ensino médio técnico (Rede de Escolas Técnicas
Federais) no curto período de uma década, certamente podem ser tomadas
como as mais emblemáticas e elucidativas de seu sentido desestruturante e
desintegrador. Nesse caso, passou-se de uma perspectiva de políticas que
apontavam para a expansão e melhoria do ensino técnico de nível médio na
década de 1980 (Frigotto, Franco e Magalhães) 3 para uma política de
fragmentação da educação profissional e de separação entre o ensino médio e
o ensino técnico na década de 1990.
A análise que apresentamos neste relatório, fundada na relação entre as
mediações de ordem econômica, política, sociocultural e educacional,
conduzem-nos à síntese de que a gênese e a execução da reforma do ensino
técnico de nível médio, em sua vinculação com as políticas do ajuste econômico
sob a nova (des)ordem mundial, expressam, por parte dos seus protagonistas,
uma opção consciente de consentimento ativo e de subalternidade.
Do ponto de vista teórico-metodológico, partimos do pressuposto de que
a pluralidade de referenciais de análise é, sem dúvida, real e pertinente no
campo acadêmico. O contexto em que vivemos, porém, de um lado, é de
negação pura e simples de determinados referenciais; de outro, em nome da
alteridade, chega-se ao paroxismo de que cada “pesquisador”, no limite, ter
sua teoria. O entendimento que orientou nossa análise é o de que não há soma

2
Arrighi, G. O longo século XX. São Paulo: UNESP, 1996. Ver, também, do mesmo autor, A ilusão do
desenvolvimento. São Paulo: UNESP, 1998.
3
Frigotto, G.; Franco, M.C.; Magalhães, Ana Lúcia F. de. Programa de Melhoria e Expansão do Ensino
Técnico: expressão de um conflito de concepções de educação tecnológica. Contexto & Educação, v. 7,
n. 27, Ijuí: Ed. Unijuí, jul./set. 1992: 38-48.

13
A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico

de teorias e que elas expressam a disputa de sentido e de significado que


damos à realidade histórica. O pressuposto que assumimos é o de que a
concepção materialista histórica de análise da realidade social parece-nos a
que melhor nos ajuda a decifrar a forma que assume a relação capital e como
essa forma está na base da reforma educativa que analisamos.
De imediato, a partir dessa perspectiva, assumimos um ponto de vista
contrário e mesmo antagônico às teses que afirmam que as ciências sociais e
humanas se situam hoje dentro de um novo paradigma – neoliberal, pós-
estruturalista, pós-moderno –, tendo em vista o colapso do paradigma
estruturado na modernidade. Como conseqüência, estaria superada a
concepção teórica do materialismo histórico entendida como metateoria.
A afirmação da existência de um novo paradigma científico, sem a ruptura
da materialidade das relações sociais capitalistas, embora com bruscas
mudanças, resulta ela mesma de uma determinada concepção de realidade
despida de historicidade. Trata-se de uma concepção que não distingue, no
plano histórico, mudanças ou rupturas que modificam a natureza das relações
sociais e do modo de produção vigente daquelas que trazem alterações, porém
mantendo a velha ordem social. A compreensão que buscamos aprofundar, na
linha da que nos instiga Jameson (1994, 1996 e 1997)4 é a de que todos os
referenciais teóricos se encontram em crise em face das mudanças sem
precedentes das relações sociais capitalistas e socialistas. Vale dizer, suas
categorias analíticas não dão conta de apreender as mediações e determinações
constitutivas das relações sociais. Crise, entretanto, não significa fim do
capitalismo e dos referenciais funcionalistas e positivistas ou críticos. No que
concerne ao materialismo histórico, como observa Jameson, esse referencial
sempre entrou em crise quando o capitalismo, seu objeto de crítica, sofreu
mudanças bruscas. Esse referencial que se estrutura como crítica radical ao
capitalismo, lembra esse autor, só pode, portanto, efetivamente acabar quando
as relações capitalistas forem superadas.
Essa compreensão e, de certa forma, esse pressuposto não desconhecem
as tensões e os problemas que o próprio referencial traz desde sua gênese
(Konder, 1988 e 1992),5 sobretudo os diversos descaminhos trilhados ao longo

4
Jameson, F. Espaço e imagem – Teorias do pós-moderno e outros ensaios. Rio de Janeiro: Edufrj, 1994;
Pós-modernismo. A lógica cultural do capitalismo tardio. São Paulo: Ática, 1996; As sementes do
tempo. São Paulo: Ática, 1997.
5
Konder, L. A derrota da dialética. Rio de Janeiro: Campus, 1988; O futuro da filosofia da práxis.
Petrópolis: Vozes, 1992.

14
APRESENTAÇÃO

de mais de século e meio, dos quais o economicismo e o viés estruturalista são


os mais candentes.6 Também não ignoram as dificuldades intrínsecas de operar
analiticamente com as categorias fundamentais do materialismo histórico.
Nessa mesma ordem de considerações, entende-se que, ao se afirmar o
materialismo histórico como o instrumental mais radical na análise das relações
sociais capitalistas, não se está caindo na postura ingênua de ignorar a existência
de outros referenciais críticos ou não ao capitalismo. Uma leitura atenta das
análises positivistas e funcionalistas indica-nos um intenso embate interpretativo
da realidade por diferentes grupos ou frações da classe burguesa e seus
intelectuais. Como já alertou Marx, porém a “ciência burguesa”, mediada pela
ideologia que naturaliza as relações capitalistas, centra-se em entender as
funções e disfunções internas dessas relações e ignora o que historicamente as
produz. Por isso mesmo é que – na busca de responder aos problemas concretos
como o da desigualdade nos diferentes âmbitos humano-sociais, que é inerente
à forma social capitalista – a ciência burguesa, que os percebe como mera
disfunção, acaba sempre atacando, de forma focalizada, as conseqüências e
não as determinações.
Nessa concepção de análise, ganhou centralidade na investigação o processo
de reconstituição histórica. A pesquisa em educação beneficiou-se dos novos
estudos históricos, superando a visão factual, ampliando a compreensão dos fatos,
renovando os enfoques, introduzindo fontes alternativas nos estudos. Isso significou
um alargamento na pesquisa dos fenômenos educativos em dois sentidos: primeiro,
compreendendo-os como questão social; segundo, buscando subsídios teórico-
metodológicos nas ciências sociais (economia, história, sociologia, antropologia,
ciência política, comunicação).
A introdução do uso de fontes alternativas, como a fotografia, ainda é um
processo restrito na área trabalho e educação; mas ele se introduz e ganha
densidade na década de 1980 quando, com a crítica à economia política, são
superados os limites herdados do economicismo, do positivismo e do enfoque
restrito à formação técnica e profissional para o desenvolvimento econômico, de
acordo com a teoria do capital humano, o tecnicismo e as teorias reprodutivistas.
Das greves do ABC paulista e da força dos trabalhadores nas ruas, com no ocaso
da ditadura pós-1964 e nas esperanças que acompanharam a transição para a
democracia, desloca-se o eixo das questões técnicas dos estudos sobre a
profissionalização na escola para a formação do sujeito complexo, que é o
trabalhador submetido aos processos produtivos e à preparação para o trabalho.
7
Franco, Maria Ciavatta. O trabalho como princípio educativo. Uma investigação teórico-metodológica
(1930-1960). Tese (Doutorado) – PUC-RJ, Rio de Janeiro. 1990.

15
A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico

Da história como processo, como história do desenvolvimento das forças


produtivas dentro de temporalidades próprias, de determinadas relações entre
o Estado e a sociedade, de uma certa estrutura de divisão do trabalho e de
classes sociais, passa-se à história como método. A produção do conhecimento
na área caminha no sentido da reconstrução histórica da relação entre trabalho
e educação em meio a um conjunto de relações que envolvem a sociedade, a
produção e a cultura em suas múltiplas articulações com o mundo do saber,
com os sistemas educacionais, a escola e suas particularidades como espaço de
formação (Franco, 1990).7
A periodização utilizada, as décadas de 1980 e 1990, baseia-se na
compreensão do tempo social, que não se esgota em dados pontuais. A noção
de tempo, tal como a entendemos no mundo ocidental é eminentemente
cultural. Pesquisas antropológicas mostram que alguns povos não têm a idéia
de tempo como nós, isto é, consciência de presente, passado e futuro, e sua
medição matemática. Durante séculos, prevaleceu no Ocidente a noção,
metafísica e newtoniana, de tempo absoluto, independente das coisas e dos
processos, o que é uma concepção de tempo exterior aos homens e que
constituiu a percepção imediata do tempo no senso comum – tão bem apropriada
pela civilização industrial em máximas como “tempo é ouro”, “tempo é dinheiro”,
isto é, um tempo reificado, que se torna “coisa”. A idéia de um tempo uniforme
dominou largamente a história no estabelecimento da seqüência temporal dos
acontecimentos, na periodização (Franco, 1994).8
A importância da questão do tempo na pesquisa histórica está no fato de
ele ser um aspecto fundamental na constituição do objeto de pesquisa que é,
também, a questão da relação sujeito/objeto no trato com a realidade social à
qual ambos pertencem (Zemelman, 1983).9 Assumimos ainda que a realidade
social é o campo das mediações históricas ou de processos complexos que ocorrem
no tempo e no espaço.
Recorremos ao conceito de tempos múltiplos, de Braudel (1989),10 que
se refere à história, do tempo da história, que tem, basicamente, três dimensões:
a curta duração dos acontecimentos, a média duração da conjuntura (por sua
vez, com múltiplos tempos e ritmos) e a longa duração das estruturas – à qual
ele acrescenta a longuíssima duração da geo-história. No caso desta pesquisa,

8
Franco, Maria Ciavatta. A escola do trabalho no tempo: a fotografia como fonte histórica. Niterói: UFF,
1994. (mimeo.)
9
Zemelman, Hugo. Uso crítico da teoria. En torno a las funciones analíticas de la totalidad. Tokio:
Universidad de las Naciones Unidas/ El Colegio de México, 1987.
10
Baraudel, Fernand. Uma lição de história. Rio de Janeiro: Zahar, 1989.

16
APRESENTAÇÃO

a longa duração antecede a existência das escolas e pode ser identificada no


movimento do capitalismo que estrutura e reestrutura, no tempo e no espaço,
as formas de apropriação econômica e social (cultural, educacional etc.).
A média duração da conjuntura pode ser identificada nos dois períodos
(aproximadamente 20 anos) em que encontramos fenômenos político-
econômicos que estão na gênese da política de expansão do ensino médio
técnico na década de 1980 e da fragmentação da educação profissional, com a
separação dos ensino médio e técnico, na década de 1990.
A curta duração dos acontecimentos deve ser buscada no exame dos
processos particulares que caracterizam as reformas e sua implementação nas
escolas. Nesse sentido, a análise da literatura produzida sobre o tema, no período,
foi extremamente valiosa para a identificação dos aspectos mais relevantes
dessa transformação de muitas faces.
Tendo como problemática e enfoque teórico-metodológico os acima
assinalados, a coletânea condensa o material que foi a base histórico-empírica
e documental da pesquisa: 201 artigos selecionados em 13 periódicos nacionais
especializados no campo educacional,11 e nove entrevistas com dirigentes e
professores de Centros Federais de Educação Tecnológica – CEFETs12 e um de
Escola Técnica, que constam do Relatório Final da pesquisa e Anexos I, II e III.13
A coletânea reúne o núcleo central da pesquisa e compõe-se de três
partes, em que se dividem 15 capítulos e alguns anexos.
A Parte I reúne cinco capítulos que buscam apreender, por vários ângulos,
questões mais amplas de caráter teórico e histórico para o entendimento dos
processos sociais e educativos das décadas de 1980 e 1990, e o estado-da-arte
das políticas de expansão do ensino médio técnico e de fragmentação da
educação profissional nestas décadas.
Com efeito, dois capítulos buscam ajudar-nos a entender, um (Frigotto),
a relação entre a materialidade estrutural de nossa formação histórico-social
e a especificidade das conjunturas das décadas de 1980 e 1990, e o outro
(Frigotto e Ciavatta) o embate conceptual no processo de formação humana

11
Cadernos de Pesquisa (FCC), Educação e Sociedade (CEDES), Em Aberto (INEP), Fórum Educacional
(FGV-IESAE), Caderno CEDES, Boletim do SENAC, Trabalho & Educação – Revista do NETE
(UFMG), Revista Proposta (FASE), Caderno da UPEL, Contemporaneidade & Educação (IEC),
Educação e Tecnologia (ABT), Revista de Educação da PUC-SP, Universidade e Sociedade (ANDES).
12
CEFET Química, CEFET Pelotas, CEFET Rio de Janeiro, CEFET Campos, CEFET Pelotas, CEFET Paraná.
13
FRIGOTTO, Gaudêncio e CIAVATTA, Maria (coords.). A formação do “cidadão produtivo”. Da política de
expansão do ensino técnico nos anos 80 à política de fragmentação da educação profissional nos anos 90:
entre discursos e imagens. 4 vols. Niterói: UFF, abril de 2005. Relatório Final.

17
A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico

do trabalhador entre o “cidadão produtivo” assujeitado à lógica mercantil e a


construção de um sujeito emancipado.
Os capítulos três, quatro e cinco buscam apreender como essas questões
mais gerais se materializam na produção acadêmica das duas décadas. No
terceiro (Frigotto e Ciavatta) efetiva-se o balaço do estado-da-arte sobre os
textos selecionados dos periódicos nacionais.
O quarto capítulo (Trein e Ciavatta) sintetiza os debates da discussão,
nas duas décadas estudadas, sobre a relação entre produção capitalista, trabalho
e educação.
Concluindo essa primeira parte, o capítulo cinco (Ciavatta) traz uma visão
dos estudos comparados sobre a formação profissional e técnica nas mesmas décadas.
Feita a análise mais estrutural sobre o objeto da pesquisa, nas duas partes
seguintes busca-se, em cada década, mediações mais específicas. As partes II e
III efetivam o detalhamento das ênfases e seu conteúdo, respectivamente.
A década de 1980 constitui-se em espaço de lutas entre travessias
alternativas no sentido de romper ou reiterar as estruturas econômicas, jurídico-
políticas, culturais e educativas que nos conformaram em uma reiterada
“modernização conservadora” e nos têm mantido como uma das sociedades
mais desiguais e injustas do mundo, como vimos no primeiro capítulo da parte
I. A sociedade brasileira saía de um longo período ditatorial e buscava construir
a transição para a democracia efetiva. Trata-se de período rico de debate e de
construção de formulação em todos os âmbitos da sociedade.
Os três capítulos da Parte II expressam esse movimento de travessia da
sociedade. O primeiro (Frigotto, Ciavatta e Magalhães) evidencia o conflito
de concepções em disputa da educação tecnológica que se estendeu ao longo
de toda a década de 1980 e que encontra um ponto de confluência na discussão
do Programa de Melhoria e Expansão do Ensino Técnico. Esse capítulo é
resultado de uma pesquisa anterior, já mencionada acima, mas que nos permite
efetivar um elo importante na compreensão do movimento de disputas,
definições e conseqüências político-práticas.
No capítulo dois, Oliveira ajuda-nos a entender como o embate entre
as perspectivas produtivista e da conformação do cidadão produtivo e a
perspectiva de uma educação básica de segundo grau, hoje ensino médio, de
caráter formativo de sujeitos autônomos estava em pauta e disputa na década
de 1980. Na verdade, como mostra Rodrigues (1998),14 tais debate e disputa
remontam à década de 1930, ainda que em caráter mais restrito no âmbito

14
Rodrigues, J. O moderno príncipe industrial. Campinas: Autores Associados, 1998.

18
APRESENTAÇÃO

dos homens de negócio vinculados à burguesia industrial e seus aparelhos


de hegemonia.
Por fim, Lobo Neto, no capítulo três dessa segunda parte, explicita o
jogo de forças que disputam a direção da sociedade brasileira em todos os
âmbitos e, no campo específico da pesquisa – a educação dos trabalhadores –
, num cenário de profundas mudanças da base científica e tecnológica dos
processos produtivos nos setores primário, secundário e terciário.
O final da década de 1990, como discutido no primeiro capítulo, Parte I,
reservou mudanças abruptas nos cenários internacional e nacional. Foi um
final de década de muitos “fins”: queda do muro de Berlim; colapso do socialismo
real ou realmente existente, como o denomina o historiador Eric Hobsbawm;
falência do ideário de um capitalismo que regula o capital dentro da proposta
do Estado intervencionista de Keynes, o teórico mais importante na óptica do
capitalismo realmente existente no século XX; esgotamento do sistema de
regulação fordista, estado de bem-estar social ou regimes sociais democratas.
Uma síntese emblemática e, ao mesmo tempo, cínica é apresentada por
Fukuyama com sua tese do “fim da história”. Isso provaria que não há alternativa
fora da “sociedade de tipo natural” – a capitalista. Um tempo de vingança do
capital contra o trabalhador. No plano interno do Brasil, a eleição de Collor de
Mello explicita que a transição dos embates da década de 1980 é a reiteração
do castigo de Sísifo da modernização conservadora.
A Parte III, referente à década de 1990, é a mais extensa do primeiro
volume, com oito capítulos em que se explicitam três aspectos centrais: as
mudanças na base material da produção com a tese da reestruturação
produtiva, as reformas do Estado e as reformas educacionais que plasmam
técnica e culturalmente o “novo trabalhador cidadão produtivo”; a
correspondente construção supra-estrutural de natureza jurídico-política
plasmada na nova legislação e, finalmente, a maneira como a reforma do
ensino médio técnico foi-se constituindo nos atuais Centros Federais de
Educação Tecnológica – CEFETs.
O primeiro aspecto acima referido é trabalhado nos quatro capítulos
iniciais. No primeiro, Santos efetiva uma análise que busca captar a relação
orgânica entre as mudanças da base material, a reestruturação produtiva, a
reforma de Estado e as demandas no processo educacional, já no contexto de
regressão neoliberal.
No segundo, Fonseca reitera o debate da relação entre a reestruturação
produtiva, a reforma de Estado e, mais especificamente, a questão da formação
profissional no início da década de 1990.

19
A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico

Os capítulos três e quatro retomam um sentido mais amplo da formação do


trabalhador. No três, Handfas aborda a natureza da demanda da educação que
conforma o trabalhador produtivo para a nova base técnica da produção capitalista.
No quatro, que encerra esse aspecto, Correa efetiva uma análise que
mostra como a formação do trabalhador produtivo se constitui no bojo de uma
nova cultura do trabalho e qual é o esforço para amoldar e produzir novas
subjetividades e identidades dos trabalhadores.
O segundo aspecto engloba dois capítulos – quinto e sexto da Parte III –
que tratam da normatização jurídico-política e legal das reformas do ensino médio
técnico. No cinco, Ney aborda um aspecto mais específico da reforma do ensino
médio técnico vinculado às concepções, às políticas e à legislação. Ramos, no seis,
analisa o modo como a rede de instituições federais foi incorporando em sua
estrutura organizacional e político-pedagógica a nova legislação. Nesse processo,
sinalizam-se tensões, adaptações e lutas que explicitam embates mais amplos
efetivados no seio da sociedade brasileira.
Por fim, os dois últimos capítulos da Parte III e do primeiro volume buscam
apreender como a reforma se estatuiu na rede de instituições federais. Aqui
nos valemos de dois instrumentos de pesquisa, um mais inédito, que é a utilização
da imagem, mormente a fotografia, como instrumento de pesquisa, o outro,
mais usual: entrevistas em forma de debate com dirigentes ou professores que
protagonizaram a reforma nessa rede.
No capítulo sete, Ciavatta e Campello estudam o caso de uma instituição
federal de ensino técnico e buscam explicitar como a fotografia é recurso que
permite apreender fragmentos da história institucional ampliando a
compreensão do discurso sobre a reforma. Trata-se de uma parte da análise
que engendra importante contribuição metodológica para futuras pesquisas
na área específica da educação técnica e da educação mais amplamente.
O capítulo oito resulta de um cuidadoso trabalho de entrevistas em forma
de seminários. Partindo de um roteiro básico, igual para todos entrevistados, a
equipe enriquecia a entrevista com sua participação ativa. O segundo volume
do relatório condensa o conteúdo integral das entrevistas, que também estão
arquivadas em fitas. Apenas duas foram feitas na instituição de origem do
entrevistado. Como o leitor poderá depreender da análise efetivada por Frigotto
e Ciavatta, as reformas neoconservadoras penetraram profundamente as
instituições estudadas. Embora tenha havido resistência e embates, no plano
geral, nota-se adesão e consentimento passivo.
O balanço dos anos de pesquisa, em termos dos produtos alcançados e
do espaço formativo que representou é, inequivocamente, positivo. Salientamos

20
APRESENTAÇÃO

a participação ativa de doutorandos, mestrandos, alunos de graduação e bolsistas


de Apoio Técnico (APT) e de Iniciação Científica (IC). Como coordenadores,
cabe-nos agradecer a toda a equipe por seu empenho e responsabilidade
coletiva.
Agradecemos, igualmente, a disponibilidade dos entrevistados e a
autorização de utilização e divulgação do material. Por fim, agradecemos o
apoio do CNPq com Bolsa de Produtividade aos pesquisadores e os recursos
para a pesquisa (grants), assim como as Bolsas de Iniciação Científica. Também
registramos o apoio da FAPERJ com as Bolsas de Apoio Técnico (APT), do
Programa de Pós-Graduação em Educação e da Pro-Reitoria de Pesquisa da
UFF com Bolsas de Iniciação Científica (CNPq-PIBIC).
Aos mestrandos, doutorandos e professores associados, co-autores dos
textos, que nos acompanharam neste percurso, agradecemos o estímulo de sua
presença e a riqueza das discussões. Aos bolsistas de Iniciação Científica Aline
Ribeiro da Silva, Angélica Menezes Lins, Rossana Duarte Emmerich, Thaís
Rabelo de Souza, Teo Brandão e Tânia de Carvalho Cortinhas (in memoriam)
e aos bolsistas de Apoio Técnico Maria Célia Freire de Carvalho e Sérgio
Mendes Pinto somos gratos pela presença, dedicação e apoio inestimável nas
diversas fases e atividades do Projeto.
O trabalho de pesquisa em três anos mostrou-se complexo, mas,
sobretudo, satisfatório pela possibilidade de alargamento de perspectivas sobre
o tema e pelo aprofundamento de algumas questões no coletivo que se organizou
e permaneceu estudando o assunto e alimentando suas próprias pesquisas.
O término de um processo de investigação científica é sempre uma
abertura para novos estudos. Na renovação de toda teoria, submetida à realidade
que se transforma, está o sentido da vida universitária, principalmente na pós-
graduação. É a educação em seu sentido mais criativo. Balizar novas análises,
subsidiar novas discussões, contribuir para a compreensão e o encaminhamento
dos problemas do país é o objetivo central da produção do conhecimento. Sua
apropriação efetiva é uma questão de políticas públicas e de demanda dos
setores organizados da sociedade que podem fazer avançar as lutas sociais.

Rio de Janeiro, 05 de setembro de 2005

Gaudêncio Frigotto e Maria Ciavatta (coordenadores)

21
22
PARTE I | AS DÉCADAS DE 1980 E 1990

23
24
CAPÍTULO 1 | ANOS 1980 E 1990: A RELAÇÃO ENTRE O
ESTRUTURAL E O CONJUNTURAL E AS POLÍTICAS DE
EDUCAÇÃO TECNOLÓGICA E PROFISSIONAL

GAUDÊNCIO FRIGOTTO

Neste capítulo, de caráter introdutório, discutiremos dois aspectos. Um


primeiro no qual se busca destacar a relação necessária, dada pelo processo
histórico concreto, entre o estrutural e o conjuntural na compreensão do
estado-da-arte das políticas de educação tecnológica e profissional nas décadas
de 1980 e 1990. Essa relação mostrou-se presente ao longo da análise dos temas
específicos. Isso decorre da compreensão de que se de fato as décadas de 1980
e 1990 têm especificidades claras, esse tempo cronológico guarda mediações
estruturais de um tempo histórico de maior duração.1 Nos ateremos, mais
especificamente, em caracterizar o jogo de relações de força entre interesses
de classe, grupos ou frações de classe que se reiteram a partir de 1930.
O segundo aspecto centra-se em apreender qual a especificidade das
décadas de 1980 e 1990, enquanto rearranjo específico de forças em disputa
por projetos societários e de educação. Aqui parecem muito pertinentes as
observações de Boris Fausto (1984)2 que, valendo-se de uma análise de Álvaro
Caropreso e Raimundo Pereira, mapeia a especificidade de diferentes
conjunturas a partir de 1930 até, justamente, o início da década de 1980.

1
Na apreensão dessa questão do tempo de longa duração, as análises de Fernand Braudel (1982) constituem-
se na referência básica para as formulações de vários pesquisadores, e não apenas historiadores. Exemplo
do que estamos assinalando é a densa análise de Arrighi (1996) sobre os ciclos de longa duração do sistema
capitalista. Por outro lado, o que define uma análise histórica, no sentido do materialismo histórico, é a
apreensão das mediações que expressam a materialidade dos fenômenos em sua singularidade e
particularidade dentro de uma totalidade concreta. Ver, a esse respeito, Ciavatta, 2002.
2
As análises de Boris Fausto no âmbito interpretativo da formação histórico-social brasileira caminham
numa direção diversa das análises, mormente, de Florestan Fernandes e Francisco de Oliveira. Para
Fausto não ocorre no Brasil uma efetiva revolução burguesa. A sinalização que nos traz da materialidade
das relações das forças sociais em disputa, em conjunturas específicas das décadas de 1930 a 1980, é
fecunda , independentemente de estarmos de acordo ou não com sua interpretação, para a busca do
entendimento das décadas que são objeto desta pesquisa – 1980 e 1990.

25
A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico

Nessa apreensão, de médio prazo, faz duas distinções importantes para o nosso
objeto de estudo.
Na análise das conjunturas de crise no Brasil, assinala, é importante
distinguir as que se caracterizam “pela derrubada de forças no poder”, como é
o caso de 1930, 1945 e 1954, das que “representam uma consolidação de forças
hegemônicas”, como as de 1937 e 1968. Mais especificamente, Fausto apresenta
a distinção entre “conjunturas decisivas no sentido de que quebram uma ordem
anterior (1930 e 1964)”, e as “que acumulam condições, assinalam derrotas ou
vitórias parciais no caminho da ruptura, como é o caso de 1954”. Trata-se aqui
de “quebras” ou “rupturas” dentro da “(des)ordem” capitalista, embora possamos
identificar forças que lutavam contra o sistema capitalista.
O aspecto analítico e político crucial na relação entre o movimento
estrutural e o conjuntural é a apreensão da natureza das mediações que
definem a correlação de forças entre classes e frações de classe e o sentido
das mesmas para mudanças que corroboram para a conservação da (des)ordem
do capital estabelecida (mudar para conservar) ou mudanças que apontam
para sua superação.

1. A relação entre o estrutural e o conjuntural na formação social


brasileira: o eterno castigo de Sísifo
Um dos dilemas de qualquer pesquisa que busque desenvolver-se dentro
da concepção histórica ou materialista histórica do conhecimento situa-se na
necessidade de delimitar um objeto de estudo no tempo e no espaço e, ao
mesmo tempo, captar as determinações, mediações e contradições mais
imediatas e mediatas que o constituem. A realidade não obedece à lógica do
pensamento ou da razão; antes, o desafio é do pensamento humano ou da razão
no sentido de apreender a materialidade contraditória, não linear,
particularmente no campo humano-social, dos fenômenos ou fatos que buscamos
analisar e compreender. Temporalidades diversas entranham-se como
constitutivas do presente. Trata-se de entender que a singularidade, a
particularidade e a universalidade se produzem numa mesma totalidade
histórica a ser reconstruída no processo de investigação.
Esse esforço, em termos do método dialético do legado de Marx e Engels,
não é senão o desafio de ascender do “empírico ponto de partida ao concreto
pensado”, sendo esse sempre síntese de múltiplas determinações que têm que
ser apreendidas minuciosamente no plano da pesquisa e ordenadas analiticamente
no processo de exposição. Vale dizer que a delimitação não pode ser arbitrária,
mas sim fundada em elementos dados pela realidade a ser estudada.

26
PARTE I | AS DÉCADAS DE 1980 E 1990

O elemento crucial na análise dialética no campo das ciências sociais e


humanas é, pois, a capacidade de apreender a relação entre os elementos
estruturais e conjunturais que definem um determinado fato ou fenômeno
histórico. O campo estrutural fornece a materialidade de processos históricos
de longo prazo e o campo conjuntural indica, no médio e no curto prazo, as
maneiras como os grupos, classes ou frações de classe, em síntese, as forças
sociais disputam seus interesses e estabelecem relações mediadas por
instituições, movimentos e lutas concretas.
Por certo, a realidade brasileira em sua dimensão estrutural não muda
como gostariam as perspectivas voluntaristas ou as pós-modernas, centradas
na fluidez do imediato e do presentismo, e na negação de elementos estruturais
ou de continuidade histórica das relações de poder e de classe que condicionam
as práticas e políticas sociais e educacionais.
Há na sociedade brasileira um tecido estrutural profundamente opaco
nas relações de poder e de propriedade que se move em conjunturas muito
específicas, mas que, em seu núcleo duro, de marca excludente, de
subalternidade e de violência, se mantém recalcitrante. Um olhar atento sobre
a estrutura de classe e o desenvolvimento histórico do capitalismo no Brasil
nos revelará um exemplo emblemático de sociedade que mantém estrutura de
desigualdade brutal mediante os processos políticos que Gramsci denomina
revolução passiva e de transformismo.3
Trata-se de mudanças (rearranjo das frações e dos interesses da classe
dominante) nos âmbitos político, econômico, social, cultural e educacional
cujo resultado é a manutenção das estruturas de poder e do privilégio. Vale
dizer, a manutenção do latifúndio ou da extrema concentração da propriedade
da terra, concentração extrema da riqueza e da renda, isenção de impostos a
grandes fortunas, grupos econômicos poderosos e sistema financeiro ou
tributação fiscal regressiva. O resultado desse sistema é a produção da
indigência, da miséria e da violência social.
Vários autores ajudam-nos a delinear o tecido estrutural opaco, violento
produtor de formação societária altamente injusta e desigual no Brasil. Quem
quiser dispor-se a compreender o período mais recente e profundo (1930-2004)
dessa permanência, que se reedita em formas, conteúdos e métodos cada vez
mais perversos, terá em Celso Furtado (1966, 1972, 1992, 1999, 1999a e 2002),
Florestan Fernandes (1974, 1975, 1981, 1989) Francisco de Oliveira (1988,

3
Para uma análise desses aspectos em seu plano conceitual ver Gramsci, 1978.

27
A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico

1999, 2000 e 2003), Otavio Ianni (1991 e 1996), Luiz Fiori (1995, 2001, 2002)
e Carlos Nelson Coutinho (2002) as referências básicas. Pelo escopo deste texto,
faremos aqui uma discussão apenas indicativa.
Trata-se de análises que transitam, com ênfases maiores ou menores,
entre o político, o econômico, o social e o cultural. Todas elas afirmam, todavia,
um processo histórico que não conseguiu romper com uma sociedade que se
define como um capitalismo que se robustece e expande aprofundando sua
dependência, associada ao sistema capital em seus centros hegemônicos e,
conseqüentemente, precarizando e destruindo direitos elementares de milhões
de brasileiros.
Celso Furtado, sem dúvida, é o intelectual brasileiro do século XX que
tem a mais ampla análise sobre a formação econômico-social brasileira e a
especificidade (dependente e interdependente) e nosso desenvolvimento. Com
Caio Pardo Junior e Ignácio Rangel, constitui-se uma referência clássica do
pensamento econômico-social brasileiro. Aproximadamente três dezenas de
livros e incontáveis artigos, traduzidos em mais de uma dezena de idiomas,
fazem uma radiografia das forças sociais que disputam o tipo de desenvolvimento
no Brasil, marcadamente ao longo do século XX.
Como síntese crítica de seu pensamento sobre os rumos das opções que
o Brasil reiteradamente tem pautado, Furtado, ao longo de sua obra, situa a
sociedade brasileira no seguinte dilema: a construção de uma sociedade ou de
uma nação em que os seres humanos possam produzir dignamente sua existência
ou a permanência num projeto de sociedade que aprofunda sua dependência
aos grandes interesses dos centros hegemônicos do capitalismo mundial. É nesse
horizonte que Furtado faz a crítica ao “modelo brasileiro” de capitalismo
modernizador e dependente, uma constante do passado e do presente.
Em seus escritos mais recentes, Furtado (2000) reitera a crítica aos que
centram sua visão de desenvolvimento na idéia modernizadora do progresso
técnico. Trata-se para o autor de uma visão que mascara o conjunto de
transformações, particularmente a partir da fase do chamado milagre brasileiro,
os processos de concentração de renda. Com efeito, “(....) a tendência à
concentração de renda é inerente ao tipo de capitalismo que veio prevalecer
em nosso país, e que a ação do regime militar-tecnocrático exacerbou esse
traço perverso de nossa economia” (Furtado, 1982).
Numa mesma direção, Ianni (1991) analisa o dilema reiterado por Furtado
ao mostrar a tendência pendular de nossas opções de desenvolvimento a partir
da década de 1930: integração autônoma com o plano internacional e o
desenvolvimento de um mercado interno com participação das massas ou um

28
PARTE I | AS DÉCADAS DE 1980 E 1990

capitalismo associado e dependente do grande capital e que beneficia


especialmente os grandes grupos financeiros.
A opção que a classe dominante tomou foi a da dependência consentida e
associada ao grande capital. Opção geradora de amarras que estreitam, imobilizam
e inviabilizam, cada vez mais profundamente, a possibilidade estratégica de um
projeto de desenvolvimento autônomo. Para Furtado, trata-se de uma política não
apenas anti-social mas, principalmente antinacional. E a perversidade, para o autor,
consiste no fato de que “não existem tribunais para apurar crimes da história,
quando não seja a memória dos povos que por eles são vitimados”.
Com aporte analítico de cunho mais sociológico e político na leitura de
nossa formação econômica, e com base teórica mais diretamente ligada à
tradição marxista, Florestan Fernandes e Francisco de Oliveira evidenciam
traços marcantes da forma estrutural de reprodução das relações políticas,
econômicas e culturais da sociedade brasileira. Suas análises, de forma aguda,
permitem superar o enfoque analítico que busca explicar nossos impasses
centrando-se na tese da antinomia de uma sociedade cindida entre o
tradicional, atrasado e subdesenvolvido, e o moderno e desenvolvido. Essa
superação efetiva-se pela apreensão da relação dialética entre o arcaico,
atrasado, tradicional e subdesenvolvido, e o moderno e desenvolvido na
especificidade ou particularidade de nossa formação social capitalista.
No âmbito da constituição da classe detentora do capital ou burguesia
nacional, a análise de Fernandes (1975) não compartilha da tese de que a
“revolução burguesa” foi abortada pela natureza de dualidade da nossa formação
social (Brasil arcaico, marcado pelo atraso e responsável pelo ritmo lento do
desenvolvimento do Brasil moderno). Ao contrário, para Fernandes, o que vai
ocorrer no plano estrutural é que as crises conjunturais entre as frações da
classe dominante acabam sendo superadas mediante processos de rearticulação
do poder da classe burguesa numa estratégia de conciliação de interesses entre
os denominados arcaico e moderno. Assim, por exemplo, após a revolução
constitucional de 1932, não se observa a eliminação da oligarquia agrária ligada
ao Brasil arcaico ou tradicional. Pelo contrário, o Governo Vargas recompõe as
frações da classe burguesa, rearticulando os interesses em disputa onde antigas
e novas formas de dominação se potenciam em nome do poder de classe. Trata-
se, para Fernandes, de um processo que reitera, ao longo de nossa história, a
“modernização do arcaico” e não a ruptura de estruturas de profunda
desigualdade econômica, social, cultural e educacional.
Francisco de Oliveira (1972), na mesma escola de pensamento de
Florestan Fernandes, também se contrapõe à tese da estrutura dual segundo a

29
A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico

qual um país arcaico e tradicional amarra ou impede avanços do país


desenvolvido e moderno. Pelo contrário, sustenta Oliveira, a imbricação do
atraso, do tradicional e do arcaico com o moderno e desenvolvido potencializam
nossa forma específica de sociedade capitalista dependente e de nossa inserção
subalterna na divisão internacional do trabalho. Mais incisivamente, os setores
denominados atrasado, improdutivo e informal constituem condição essencial
para a modernização do núcleo integrado ao capitalismo orgânico mundial.
Dito de outra forma, os setores modernos e integrados da economia
capitalista (interna e externa) alimentam-se e crescem apoiados e em simbiose
com os setores atrasados. Assim, o atraso da época na agricultura, a persistência
da economia de sobrevivência nas cidades, uma ampliação ou inchaço do setor
terciário com baixo custo e alta exploração da mão-de-obra foram funcionais
à elevada acumulação capitalista, ao patrimonialismo e à concentração de
propriedade e de renda.
A reedição da Crítica à razão dualista, 30 anos depois de sua aparição
original com um texto de atualização – “O ornitorrinco” – nos dá o fio condutor
para entender as mediações do tecido estrutural de nosso subdesenvolvimento,
a associação subordinada aos centros hegemônicos do capitalismo e os impasses
a que fomos sendo conduzidos no presente.
Para Roberto Schwarz, Crítica à razão dualista e o texto “O ornitorrinco”
“representam, respectivamente, momentos de intervenção e de constatação
sardônica. Num, a inteligência procura clarificar os termos da luta contra o
subdesenvolvimento; no outro, ela reconhece o monstrengo social em que, até
segunda ordem, nos transformamos” (Schwarz, 2003:12).
A metáfora do ornitorrinco traz, então, uma particularidade estrutural
de nossa formação econômica, social, política e cultural, em que a “exceção”
se constitui em regra, como forma de manter o privilégio de minorias.
O ornitorrinco é isso: não há possibilidade de permanecer como
subdesenvolvido e aproveitar as brechas que a Segunda Revolução Industrial
propiciava; não há possibilidade de avançar, no sentido da acumulação digital-
molecular: as bases internas da acumulação são insuficientes, estão aquém
das necessidades para uma ruptura desse porte.(...) O ornitorrinco capitalista
é uma acumulação truncada e uma sociedade desigualitária sem remissão.
(Oliveira, 2003: 150)

As relações de poder e de classe que foram sendo construídas no Brasil


permitiram apenas parcial e precariamente a vigência do modo de regulação
fordista tanto no plano tecnológico quanto no plano social. Da mesma forma, a
atual mudança científico-técnica, digital-molecular, que imprime grande

30
PARTE I | AS DÉCADAS DE 1980 E 1990

velocidade à competição e à obsolescência dos conhecimentos, torna nossa


tradição de dependência e cópia ainda mais inútil.
A síntese do processo histórico construído no Brasil define-se, para
Oliveira (2003), por um tipo de desenvolvimento “que se ergueu pela
desigualdade e se alimenta dela”.
O desafio do salto implica enorme esforço de investimento em educação,
ciência e tecnologia e infra-estrutura. E isso demanda, além das reformas sociais
de base (agrária, tributária, jurídica e política), um volume de recursos que o
pagamento exorbitante de juros da dívida interna e externa, além da tradição
regressiva dos impostos, não permite. Trata-se de um impasse que não é
conjuntural, mas estrutural em nossa história.
Como esboço indicativo do que acabamos de sinalizar, é elucidativa a
breve síntese de Fiori (2002) sobre os três projetos societários que “conviveram
e lutaram entre si durante todo o século XX”. O primeiro projeto nasceu das
idéias do liberalismo econômico centrado na “política monetarista ortodoxa e
na defesa intransigente do equilíbrio fiscal e do padrão-ouro, dos governos
paulistas Prudente de Moraes, Campos Sales e Rodrigues Alves” (id. ibid., p. 2)
Ao longo do século XX, é a concepção dominante, incorporada pelos ministros
da Fazenda C. Castro, Eugênio Gudin, Otávio Bulhões e Roberto Campos (no
período da ditadura de 64).
Esse projeto, destaca Fiori, “foi o berço da estratégia econômica do
Governo Cardoso” cujo ministro, ao longo de dois mandatos, foi Pedro Malan.
Projeto que sempre se contrapôs ao que Fiori denomina “nacional
desenvolvimentismo” ou “desenvolvimentismo conservador”, presente na
Constituinte de 1891 e nos anos 30. Essa contraposição, como vimos na
análise de Florestan Fernandes, não impediu que Vargas construísse uma
acomodação dos interesses da burguesia enquanto classe dominante. Vargas,
de certa forma inaugura a “modernização do arcaico”, que corresponde ao
segundo projeto.
O terceiro – “desenvolvimento econômico nacional e popular” –
fortemente combatido pelo primeiro e impedido pelo segundo, postula as
reformas estruturais de base, constituição de forte mercado interno e relação
soberana e autônoma no plano internacional e a constituição de uma
democracia efetiva com ampla participação popular. Essa terceira alternativa
nunca ocupou o poder estatal nem comandou a política econômica de nenhum
governo republicano, a não ser uma breve e pontual experiência, não por acaso,
com Celso Furtado no governo João Goulart, abruptamente interrompida pelo
“regime militar-tecnocrático” (como o denomina Furtado) instaurado pelo golpe

31
A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico

de 1964. As teses desse projeto nacional popular, porém, tiveram “enorme


presença no campo da luta ideológico-cultural e nas mobilizações democráticas”
(id. ibid., p. 3).
Assim como o passado nos permitiu apreender, ainda que
esquematicamente, a materialidade estrutural das relações de poder e de
dominação de classe que nos impediram a constituição de uma sociedade com
efetiva democracia econômico-social, cultural e educacional, o presente pode
ter elementos cruciais para entender a profundidade do poder conservador
que a classe dominante brasileira detém para manter as estruturas geradoras
de desigualdades, cada vez mais insustentáveis e inaceitáveis em face ao
aumento sensível da produtividade e riqueza nacionais. As questões
inquietantes, do presente, que se colocam como desafio analítico e que não
são objeto deste trabalho são as seguintes:
Como explicar que as forças que assumiram o governo federal em janeiro
de 2003 e cujas história e biografia estão vinculadas ao embate teórico e à luta
ideológica por um projeto de desenvolvimento nacional popular que acabamos
de referir, estão dando continuidade às políticas econômicas, numa espécie de
simbiose do projeto liberal conservador e nacionalista conservador? O que
explica o fato de que o PT que elegeu o presidente da República, que é
majoritário na Câmara dos Deputados e que fez do orçamento participativo da
Prefeitura de Porto Alegre e de sua ampliação para outras prefeituras e estados
governados por frentes populares uma experiência reconhecida mundialmente
como inovadora a esquecesse em nome da autonomia do Banco Central e da
parceria entre público e privado (PPP)?
Um elemento sintomático de algo mais profundo relativo aos partidos de
esquerda e seu vínculo de classe e de um projeto histórico alternativo ao
capitalismo4 ou da vulgata do fim das ideologias é expresso de forma clara pelo
presidente do Partido dos Trabalhadores, José Genoíno, ao responder a um
jornalista sobre a indagação “quais os pensadores que fazem a cabeça dos
dirigentes do PT hoje?”
Não temos. O PT, teoricamente, é pluralista pra valer. Tem Marx, tem Gramsci,
os marxistas modernos, os pós-marxistas, e há teóricos sem vinculação. Não
temos referência teórica e isso é ótimo porque atualmente, com essa crise de
paradigmas, é muito ruim ter uma espécie de tutor. Hoje temos que contar

4
Para uma análise da desvinculação dos partidos de “esquerda” do projeto de classe, na qual exemplifica,
entre outros casos, o do Partido dos Trabalhadores (PT) do Brasil, ver o texto “Adiós al movimiento
obrero clásico?” (Hobsbawm, 2003).

32
PARTE I | AS DÉCADAS DE 1980 E 1990

com várias teorias, com várias reflexões, para elaborar um projeto próprio
para a realidade brasileira. (Veja, 11.08. 2003)5

O que o presente nos indica, num eterno castigo de Sísifo, é que nos
encontramos, uma vez mais, diante da “conversa mole da política” das elites
com os jargões da “conciliação”, do “consenso”, da negociação ou do
“entendimento”. (Benevides 1984) 6 Trata-se de estratégias que reeditam a
velha política dos arranjos de poder da classe dominante, afirmando uma
democracia “de tipo americano”, débil e pelo alto. Traços históricos das relações
de poder marcadas pela “revolução passiva” e pelo transformismo ou reformas
conservadoras que mudam para conservar a velha ordem. (Coutinho, 2002)
Adiam-se, novamente, mudanças até mesmo nos marcos da construção de
uma sociedade capitalista nos padrões das democracias de tipo europeu e impõe-
se uma profunda derrota às forças sociais vinculadas a um projeto alternativo
ao capitalismo.7

2. As conjunturas de 1980 e 1990: da travessia interrompida à


regressão ao conservadorismo
O período histórico que elegemos para esta pesquisa nos fornece detalhes,
no plano mais conjuntural e de curto prazo, sobre a materialidade estrutural das
relações de poder em nossa sociedade. A pertinência do recorte analítico das
décadas de 1980 e 1990, para construir o estado-da-arte da educação profissional,

5
Giovanni Arrighi (1996), referindo-se a Telly, lembra que a soma de todas as teorias é igual a zero. Por
outro lado, a visão gramsciana de que é mais correta a posição daqueles que partem dos pontos de vista
mais avançados de seus adversários teóricos e, se for o caso, incorporando, de forma subordinada,
algumas de suas idéias, mostra como o presidente do PT confunde a construção da teoria que se dá no
e pelo conflito com a negociação no âmbito político nos marcos da democracia burguesa. Essa discussão,
do ponto de vista da problemática da crise da teoria, tem sido objeto de uma análise mais ampla no livro
Teoria e Educação no Labirinto do Capital. Ver Frigotto e Ciavatta, 2001.
6
Benevides nos mostra que a estratégia de “conciliação” dos grupos ou frações de classe se reitera desde
o Império com a conciliação, “no Gabinete Paraná (1853), de conservadores e liberais”. Isso se repete
em 1848, após a Revolução Praieira; em 1932, após a Revolução Constitucionalista; e na Constituição
de 1946, “que derrubou a ditadura sem substituir os instrumentos do Estado Novo” (Benevides, 1984).
7
Como assinalamos, não é objeto desta pesquisa analisar a conjuntura que vivemos atualmente na sociedade
brasileira. Todavia, as análises disponíveis dos dois primeiros anos de Governo Lula e o que se anuncia em
termos de continuidade de suas políticas indicam que nenhuma reforma estrutural está em pauta. Isso
pode significar não apenas o continuísmo, mas a desorganização das forças políticas que historicamente se
engajaram na construção, pelo menos, de um projeto nacional popular comprometido com as mudanças
estruturais e, conseqüentemente, com construção de uma “democracia de massa” substantiva, marcada
pela inclusão das maiorias aos direitos sociais e subjetivos. Para aprofundar a compreensão dos impasses e
descaminhos da atual política de governo, ver Oliveira, 2003; Boito, 2004; Pochman, 2004; Frigotto, 2004.

33
A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico

foi ficando cada vez mais clara à medida que nos aprofundamos na compreensão
das mudanças de posicionamento das forças sociais em disputa nesses dois períodos.
A ampliação do prazo da pesquisa, por um ano, embora não tenha mudado
o recorte temporal, possibilitou uma compreensão mais clara, tanto do equilíbrio
instável das relações entre as forças sociais em disputa ao longo da década de
1980 quanto da profundidade negativa das reformas da década de 1990 que
redefinem o jogo de forças, estruturando um bloco histórico que não apenas
reedita o conservadorismo e a violência de uma sociedade que se ergue pela
desigualdade e se alimenta dela, mas o aprofunda.
Podemos assumir a visão de que a década de 1980 foi uma dura travessia
da ditadura à redemocratização em que se explicitou, com mais clareza, os
embates entre as frações de classe da burguesia brasileira (industrial, agrária e
financeira) e seus vínculos com a burguesia mundial e destas em confronto
com a heterogênea classe trabalhadora e os movimentos sociais que se
desenvolverem em seu interior. A questão democrática assume centralidade
nos debates e nas lutas em todos os âmbitos da sociedade ao longo dessa década.
Nos termos acima colocados na categorização das conjunturas feita por
Boris Fausto, a década de 1980 define-se como uma conjuntura em que, ao
mesmo tempo, se tenta romper com o regime da ditadura e seu modelo
econômico-social e se “acumulam condições, assinalam derrotas ou vitórias
parciais no caminho da ruptura” dessa situação histórica para uma transição
que o tempo nos mostrou ter sido restrita e, assim mesmo, interrompida.
Poderíamos dizer que a década começou em 1979, com o reaparecimento em
cena da classe trabalhadora, e terminou em 1989, com a queda do Muro de
Berlim, elaboração da cartilha ou credo das políticas neoconservadoras ou
neoliberais, batizada de Consenso de Washington, e a eleição de Collor de Mello.
Com efeito, em março de 1979 inicia-se a mais longa greve dos
metalúrgicos do ABCD paulista, que vai durar 41 dias. Nesse período, Lula é
preso, o Sindicato dos Metalúrgicos sofre intervenção, sendo fechado, mas,
dias depois, é reaberto, e Lula é solto. Nesse mesmo ano, em 30 de outubro,
Santos Dias, líder operário, é assassinado. Lula afirma-se como líder, e a imprensa
internacional compara-o ao líder operário Lesch Walessa.8 Os embates são
cada vez mais fortes, e o confronto com o regime ditatorial está aberto. O golpe
civil-militar de 64 não tinha mais como se prolongar por muito tempo.

8
À época, a comparação sinalizava a possibilidade de mudanças significativas. Hoje, após o que a história
mostrou sobre o papel de Walessa na Polônia, Lula novamente vem sendo comparado com Walessa, mas
com sinal negativo, acusado de assimilação do status quo e do conservadorismo.

34
PARTE I | AS DÉCADAS DE 1980 E 1990

Na verdade, o que esse início de década mostrava era uma mudança


significativa e paradoxal da sociedade civil. Para Coutinho (2002), o Brasil
entrou no regime ditatorial como uma sociedade, em termos gramscianos, de
tipo oriental – um Estado forte, autocrático e vertical –, e saímos da ditadura
como uma sociedade de tipo ocidental – com mais equilíbrio entre o Estado e
a sociedade civil. Uma sociedade civil, todavia, que não é neutra, mas expressa
um alargamento da complexidade das classes e frações de classe.
No campo da classe detentora do capital, temos o surgimento ou
adensamento de poderosos aparelhos de hegemonia e instituições políticas
criadas ou moldadas na óptica de seus interesses. A poderosa Rede Globo –
último vagão do último trem da abertura – como bem demarca Sonia Rummert
(1986), constituiu-se no aparelho de hegemonia mais poderoso da ditadura e
das forças que buscavam prolongá-la. Roberto Marinho constitui-se no primeiro-
ministro de fato, por esse poder, até praticamente sua morte.
Dois episódios emblemáticos, um no início da década de 1980 e outro ao
final, elucidam o que acabamos de afirmar. A campanha das Diretas já,
desencadeada em 1984, de forma crescente foi reunindo multidões em comícios.
Mais de 100 mil em Curitiba, na abertura da campanha, em 12.01.1984; no
mesmo mês, 250 mil em Belo Horizonte; em abril, 300 mil na praça da Sé, em
São Paulo. No dia 10 de abril, 1.100.000, na Candelária, e, finalmente, 1.500.00
na praça da Sé, em 16 de abri de 1984. A Rede Globo fazia de conta que nada
estava acontecendo como no caso do megacomício da praça da Sé, em São
Paulo, que ela noticiou se tratasse dos festejos do aniversário da cidade.
O outro episódio foi a armação da sinopse do último debate dos candidatos
Collor de Mello e Lula, sob os auspícios da emissora. Passou a ser um escândalo
jornalístico internacional, com ampla documentação da BBC de Londres, a
forma parcial da reiterada divulgação ultratendenciosa síntese do debate.
Fortificaram-se, também, como organismos de classe do capital e ganham
espaço as Confederações Nacionais da Indústria – CNI e do Comércio – CNC,
bem como criaram-se institutos a elas vinculados, como o Instituto Euvaldo Lodi
– IEL e o Instituto Herbert Levy – IHL.9 A Federação das Indústrias do Estado
de São Paulo – FIESP ganha espaço político e disputa, aliada aos demais órgãos
que representam o capital, o projeto educacional em debate na Constituinte.
No espaço agrário cria-se a União Democrática Ruralista – UDR,
expressão das forças que expressam a resistência mais violenta contra a reforma

9
A importância desses aparelhos de hegemonia na disputa do projeto societário e, especificamente,
educacional nas décadas de 1980 e 1990 é evidenciada de forma detalhada por Rodrigues, 1998.

35
A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico

agrária e as reformas de base mais amplas na sociedade brasileira. Forças que


se ramificam no Parlamento, com uma poderosa bancada de deputados e
senadores, filiados a novos partidos de perfil claramente de direita (PP e PFL),
no Judiciário com juízes comprometidos com o latifúndio, e no Executivo,
mormente nos setores ligados à agricultura.
No âmbito das forças vinculadas aos interesses da classe trabalhadora e
às demandas populares, emergem novos sujeitos políticos: as comunidades
eclesiais de base, uma fração da Igreja católica, mas não só, vinculada à luta
contra a ditadura e pela redemocratização do país tem papel importante no
início da década de 1980. A criação da Central Única dos Trabalhadores –
CUT, em julho de 1983, expressa um campo de forças da classe trabalhadora,
afirmando, naquele momento, o que se denominou um “novo sindicalismo”
com perfil explícito de classe.10 O PT, cujo manifesto de criação foi divulgado
em 10.02.1980, tem sua base fundamental nesses dois sujeitos coletivos.
Mas é, sem dúvida, a organização oficial do Movimento dos Sem Terra –
MST em 1984 que expressa o surgimento de um novo sujeito social que coloca
como pauta de luta o direito à terra e um novo projeto de desenvolvimento e
de relações de propriedade no campo. A luta pela reforma agrária é a pedra
angular, mas com a clareza de que ela, por si só, não representa uma ruptura
com o capitalismo. O projeto do MST vai além das reformas para manter a
ordem do capital e busca outras que promovam, no campo e na cidade, forças
para um projeto que vise a superação. O campo da cultura e da educação, de
início incipiente, vai ganhando prioridade e centralidade ao final da década.
A primeira metade da década de 1980 caracteriza-se por movimentos
lentos de conquistas democráticas elementares, mas, ao mesmo tempo, de clara
resistência das forças de direita que estavam instaladas na força bruta da
ditadura no tecido social amplo.
Os sinais de redemocratização são dados pelo fim da censura oficial em
fevereiro de 1980; pela volta dos exilados em 1981; pelas eleições diretas para
governadores, em 1982; pela apresentação, pelo deputado Dante de Oliveira,
da emenda das eleições diretas para Presidência – Emenda que foi derrotada
em 25.04.1984. A eleição seria indireta, e o novo presidente, eleito pelo “Colégio
Eleitoral”, instituição plasmada pela ditadura e sob seu controle. No âmbito
sindical, em julho de 1983, a CUT convocou a primeira greve geral.

10
O desdobramento desse sindicalismo na década de 1990 e, especialmente, no momento que vivemos a
partir de 2003 obriga o campo da esquerda a um inventário e a uma análise mais profunda sobre a
natureza desse sindicalismo. As análises, já mencionadas sob outros aspectos, de Oliveira (2003) e de
Boito (2004) nos propiciam as primeiras indicações desse inventário.

36
PARTE I | AS DÉCADAS DE 1980 E 1990

As forças brutas da ditadura não se davam por vencidas e buscavam


desestabilizar os passos iniciais da frágil redemocratização política. Em 25 março
de 1981, explode uma bomba no jornal Tribuna da Imprensa, reconhecidamente
crítico do regime. Dois meses depois, em 15 de maio, monta-se o atentado com
bombas, abortado por erro, no Rio Centro, onde estavam concentradas milhares
de pessoas num evento artístico e de apoio à redemocratização. Um ano mais
tarde, setembro de 1982, o último presidente da ditadura civil-miltar, Figueiredo,
proibiu debates eleitorais na televisão. São sinais inequívocos de que boa parte
dos promotores da ditadura não tinha entregado todas as fichas.
A segunda metade da década de 1980 é inaugurada com a eleição indireta
de Tancredo Neves, em chapa com José Sarney. Tanto a forma indireta de eleição
quanto os perfis dos candidatos explicitam o teor conservador emblemático da
natureza da transição “democrática”. Tancredo Neves, um político historicamente
hábil na artimanha de “conciliação, consenso, negociação e entendimento”,
acima referidos, no rearranjo do poder das elites dominantes. Arte de mudar,
conservando, agora em mãos de civis. José Sarney, figura também hábil, oriunda
das oligarquias nordestinas e que presidiu o maior partido (ARENA) que deu à
ditadura o disfarce de um parlamento em funcionamento.
A morte inesperada de Tancredo dá espaço para uma comoção produzida
pela mídia, mormente a Rede Globo, e para dias de impasse sobre o futuro.
Sarney assume, sem dúvida, com frágil poder político. A crise econômica
produzida no bojo da tese do milagre econômico, com fortíssimo endividamento
interno e externo, habilmente retardada pelos últimos ministros do regime
ditatorial, detonou, ironicamente, nas mãos de quem tinha sido o avalista
político dessas medidas ao longo da ditadura.
Paralelamente, desenha-se um novo cenário internacional, em que os
países ricos se organizam e estabelecem uma agenda para manter sua posição
hegemônica. Já estavam em curso as medidas e a elaboração das regras a serem
impostas aos países devedores, que foi batizada, no final da década (1989)
como “Consenso de Washington”. A economia interna foi sendo cada vez mais
desestabilizada por uma inflação desenfreada e agravada pelo processo de
estagflação (inflação com recessão econômica), aumento das dívidas interna e
externa, aumento do desemprego etc. Nesse contexto, as equipes econômicas
tentam a magia de planos econômicos de estabilização.
Em 1986 veio o Plano Cruzado com mudança de moeda. Em fevereiro de
1987, o governo declara a moratória unilateral da dívida externa. Em junho do
mesmo ano, um novo instrumento econômico – o Plano Bresser – em referência
ao então ministro da Fazenda. Finalmente, em janeiro de 1989, último ano de

37
A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico

governo, o Plano Verão, com mudança de moeda, o corte de três zeros e o


congelamento de salários e preços.
Na área social, esses planos tiveram resultados que agravaram as condições
de pobreza dos trabalhadores, tremendamente atingidos pelas políticas do “arrocho
salarial” dos governos da ditadura e pelo desemprego e subemprego.11 É o Governo
Sarney que inaugura a adoção de políticas focais e de alívio à pobreza, tão em
voga como recomendação explícita dos organismos internacionais, mormente o
Banco Mundial, a partir dessa época. Um dos programas, sustentado com intensa
propaganda, era o de “distribuição de leite” às crianças pobres. É nesse período,
também, que começam a ser separados os planos econômicos e social.
Renato Janine Ribeiro (2000) sintetizou essa tendência como sendo “a
sociedade contra o social” em que, “no discurso dos governantes ou no dos
economistas, a ‘sociedade’ veio a designar o conjunto dos que detêm o poder
econômico, ao passo que o ‘social’ remete, na fala dos mesmos governantes ou
dos publicistas, a uma política que procura minorar a miséria”. (p. 19)
É nesse quadro econômico e social mais amplo que se dá o embate da
Constituinte. A Assembléia Nacional Constituinte inicia-se em 1987 e se
encerra, em 1988, com a aprovação da nova Constituição que, sem dúvida,
contabiliza ganhos significativos para os direitos políticos, sociais e subjetivos.
Expressa o equilíbrio das forças sociais nas diferentes frações de classe do capital
e do trabalho, não se apresentando, portanto, nenhuma dessas forças como
hegemônica. O dado histórico empírico que reforça essa compreensão diz
respeito ao fato de que as teses e políticas neoliberais já em prática em várias
partes do mundo não vingaram no texto da Constituição.
Se as políticas expressassem, em seguida, a letra da nova Constituição,
com um século de atraso, poderíamos construir reformas que nos aproximariam
das democracias européias que, nos últimos 50 anos, conseguiram regular o capital
e criar sociedades com acessos mais democráticos aos bens e aos direitos políticos,
sociais e subjetivos. Se isso ocorresse, certamente Ulisses Guimarães teria tido
razão ao dizer que se tratava de uma “Constituição cidadã”, ainda que,
certamente, nos marcos da cidadania restrita, possível na sociedade capitalista.
O campo educacional, em sentido amplo e no âmbito específico do objeto
desta pesquisa – a educação tecnológica e profissional de nível médio –, é
constituinte e constitutivo do embate das forças sociais em disputa na década.

11
No Atlas da Exclusão Social no Brasil II, Campos, Pochmann, Morin, e Silva, (2003) revelam que nas
décadas de 1980 e 1990 há uma piora geral nos indicadores sociais, mormente com o crescimento do
desemprego e da violência.

38
PARTE I | AS DÉCADAS DE 1980 E 1990

Com efeito, como mostra Cunha (1991), a área educacional, capitalizando o


debate crítico e o confronto de concepções, mobiliza-se com novas experiências
e lutas. De início em cidades (já ao findar a década de 1970) e, depois, em
estados (Paraná, Minas), estruturam-se propostas alternativas de educação,
tendo como foco a democratização e a superação do tecnicismo. Também o
movimento sindical docente cresce e rearticula-se. Em 1980 as Associações de
Docentes de Ensino Superior deflagram uma greve nacional que se estendeu
por mais de dois meses.
No âmbito do debate de idéias e propostas no campo da educação,
ao longo da década de 1980, organizam-se cinco Conferencias Brasileiras
de Educação – CBEs, sendo a primeira em abril de 1980, e a última em
agosto de 1988. A primeira, não por acaso, efetivada na PUC de São
Paulo, onde se desenvolvia um programa de doutoramento, iniciado em
1978, com base dominante num referencial de análise inscrito na tradição
do materialismo histórico.
O caráter aglutinador e difusor do debate crítico em âmbito nacional,
especialmente das CBEs, pode ser aferido pelo número de participantes da
primeira à quinta: 1.400; 2.000, 5.000, 6.000 e 6.000, respectivamente. Tratava-
se de um debate de forte traço ideológico e político, e, no campo teórico, com
ênfase nas concepções por Saviani (1986) denominadas “crítico reprodutivistas”
mas também incluindo concepções “crítico-críticas”. A idéia de democratização
substantiva no campo educacional, fortemente presente na década de 1980,
expressava uma reação ao caráter autoritário das reformas e políticas
educacionais efetivadas ao longo da ditadura civil-militar. O confronto no
âmbito da concepção de práticas educativas na escola dá-se entre tecnicismo,
economicismo, fragmentação, dualismo e a perspectiva da escola pública,
gratuita, laica, universal, unitária, omnilateral, politécnica ou tecnológica.
Trata-se de conceitos, por um lado de tradição republicana (escola pública,
laica, gratuita e universal) e, por outro, de tradição marxista (unitária,
omnilateral, politécnica ou tecnológica).12
No âmbito dos confrontos ao longo do processo constituinte e,
especialmente em seguida, no início da nova Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional, ganha ampla centralidade política e ideológica o debate
da educação politécnica. Os aparelhos de hegemonia vinculados ao

12
Mais recentemente têm surgido análises que sinalizam a melhor pertinência do conceito de educação
tecnológica para expressar a concepção de Marx de educação. A discussão que Saviani (2003) efetiva
a esse respeito, argumentando que no Brasil, por razões históricas específicas, é mais adequado o
conceito de politecnia, parece-nos pertinente e consistente.

39
A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico

capital13 reclamavam mudanças na educação, sob o argumento das mudanças


tecnológicas, centrando seu foco, todavia, na concepção de educação
polivalente para um trabalhador multifuncional, adaptado, subserviente ao
mercado. Um dos dirigentes mais influente do SENAI, sintetiza com clareza a
óptica educativa que o capital disputava.
Longe de se pensar na desqualificação da força de trabalho pelo advento da
informatização, o que se considera é a formação integral do técnico que de uma
certa forma vem a ser a polivalência, distinta dos princípios marxistas e ajustada
à realidade do desenvolvimento da ciência e da tecnologia (...) A polivalência
na escola deve aproximar-se da polivalência do mercado. (Boclin, 1992: 21)

O exame da produção escrita, porém, como revelam os textos analisados


nesta pesquisa e a pequena presença desse debate e de sua práxis efetiva na
escola, nos permite hoje perceber que a discussão sobre a educação politécnica
foi marcada dominantemente no plano político e ideológico.14 A ênfase que
assumiram discussão da politecnia e sua repercussão na mídia deveu-se, em
grande parte, ao fato muito particular de que o deputado Otavio Elisio, atento
ao debate educacional da época, tomou quase literalmente o texto de uma
conferência que Dermeval Saviani (1988) faria na XI Reunião Anual da
Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Educação – ANPEd e
o transformou em proposta de projeto de lei. O texto tinha como título
“Contribuição à elaboração da nova lei de Diretrizes e Bases para a Educação
Nacional: Um início de conversa”, e expunha a concepção de educação
politécnica como o horizonte para o debate da LDB.15
Não por acaso os embates mais duros no processo constituinte e desde os
primeiros debates da LDB deram-se em torno da educação tecnológica e
profissional. A forte mobilização da sociedade civil vinculada aos interesses dos
trabalhadores pela democratização e por uma nova função do Sistema S, o embate

13
Referimo-nos, entre outros à Confederação Nacional das Indústrias (CNI), Instituto Euvaldo Lodi
(IEL), Federação das Indústrias de São Paulo (FIESP), Instituto Herbert Levy (IHL) e Serviço
Nacional de Aprendizagem Industrial (SENAI).
14
Florestan Fernandes (1995), num balanço crítico sobre as dificuldades do avanço da luta revolucionária
no Brasil sinaliza que o campo de esquerda tem, por vezes, compensando essa dificuldade pela
“exaltação teórica” ou “revolucionarismo subjetivo”. Trata-se, em outros termos, da ênfase no embate
ideológico, que é fundamental, mas que fica distante do avanço mais amplo na materialidade das
relações sociais e práticas educativas.
15
Por motivos pessoais Dermeval Saviani não pôde ir à referida reunião, mas mandou como contribuição
o texto acima referido. Não poderia passar pela cabeça do autor que aquele texto fosse apropriado,
quase na íntegra, em forma de proposta de projeto de lei.

40
PARTE I | AS DÉCADAS DE 1980 E 1990

quanto à tese da gestão tripartite, a ser incluída no texto constitucional, e a


orgânica resistência dos aparelhos de hegemonia do capital evidenciavam que
a mentalidade empresarial e seus gestores não estavam dispostos de ir além da
“modernização do arcaico”. Na disputa de assinaturas colhidas na sociedade
sobre a gestão tripartite, as forças associadas ao capital tiveram ampla supremacia.
Isso serviu de base para que prevalecesse a tendência conservadora do Congresso
Constituinte nesse âmbito. Num âmbito mais geral, os setores conservadores
das igrejas. mormente a católica, mas não só, aplicavam um duro golpe à tese
da educação laica.
Como um dos deputados constituintes mais combativos no campo da
educação, com sua profunda compreensão do jogo das frações da burguesia
brasileira e das forças conservadoras, Florestan Fernandes percebeu que aos
poucos o texto constitucional que seria aprovado não alteraria o status quo no
campo educacional.
A educação nunca foi algo de fundamental no Brasil, e muitos esperavam
que isso mudasse com a convocação da Assembléia Nacional Constituinte.
Mas a constituição promulgada em 1988,confirmando que a educação é tida
como assunto menor, não aliterou a situação. (Fernandes, 1992)

A educação tecnológica e profissional de nível médio, foco básico desta


pesquisa, foi alvo também de intensos debates e mudanças ao longo da década.
Particularmente a Rede de Escolas Técnicas Federais, algumas delas já
transformadas em Centros Federais de Educação Tecnológica, foi objeto de debates
e disputas. Uma rede que durante a ditadura civil-militar se constituía num
enclave, e cujas direções, na maioria, eram abertamente favoráveis ao regime ou
se mantinham, por interesse, coniventes. O debate político ideológico e teórico
acima referido, que vinha da sociedade, refletia-se também internamente.
Ampliava-se a demanda de maior democratização e de novos enfoques educativos
que rompessem com o tecnicismo e o economicismo na rede.
O mecanismo de eleições internas permitiu, em alguns casos, a ascensão à
direção das escolas de professores engajados na luta política pela redemocratização.
A Escola Técnica de Campos foi pioneira ao desbancar um diretor que se mantinha
no poder por mais de uma década, passando, então, a desenvolver intenso processo
de democratização organizativa e nas concepções educativas.
No campo das políticas do Estado, porém, as mudanças que se efetivavam
eram de caráter conservador. Por um lado, a tentativa de implantar os cursos
de tecnólogos de curta duração, mormente na área de engenharia da produção.
Por outro, um projeto de expansão do ensino técnico com a criação de 200

41
A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico

escolas técnicas industriais e agrotécnicas. Em relação aos cursos de tecnólogos,


a resistência veio tanto das críticas pelo campo da esquerda quanto da cultura
do “bacharel” ou do diploma do ensino superior.
Quanto à expansão do ensino técnico, como demonstramos em pesquisa
sobre o tema, os dados empíricos e “especialmente as avaliações qualitativas,
reforçam o indício da mentalidade clientelista e “obrerista” (...). A melhoria e
expansão se ateve, sobretudo, aos prédios. O que falta, e para isso não se sente
no projeto vontade política – é construir a materialidade de um projeto que
rompa com a visão imediatista, mercadológica de educação (...) e busque
construir uma nova função social às escolas técnicas existentes”. (Frigotto,
Franco e Magalhães, 1992: 47)16
O balanço no campo educativo da década de 1990 indica que pelo fato
de haver forte mobilização política, sindical, dos intelectuais, dos artistas e
dos movimentos sociais engajados na luta democrática, mantinha-se a esperança
de que a conclusão da transição para a democracia, e com sentido progressista,
poderia ocorrer, com as eleições de 1989.
O último ano da década de 1980 reservaria, entretanto, três fatos
altamente correlacionados, dois de ordem internacional e um nacional,
indicando de imediato que a Constituição não seria para valer e que se
aprofundaria a regressão societária no mundo e, particularmente, no Brasil.
Em 09 de janeiro de 1989 dá-se a derrubada do Muro de Berlim,
concomitante com a derrota do socialismo real. Esse fato fonece a base para
construir a tese sofística de Francis Fukuyama a respeito do Fim da História,
designando o fim da utopia socialista e a “verdade eterna” das leis de mercado
e do capital. A tese neoconservadora de Margaret Teacher de que não há
sociedade e sim indivíduos, passa a se constituir no emblema implícito das
políticas neoliberais no plano econômico, cultural e educacional.
O segundo, já mencionado, é o Consenso de Washington, que traça um
programa ultraconservador monetarista de ajuste mediante reformas que
permitissem a desregulamentação da atividade econômica, privatização do
patrimônio público e a abertura, sem restrições, das economias nacionais
(periféricas e semiperiféricas) ao mercado e competição internacional.

16
A pesquisa que coordenamos teve como objeto o “acompanhamento, documentação e análise dos programas
de melhoria e expansão do ensino técnico industrial, 1984-1989, INEP/UFF. Vale ressaltar que esse programa
se desenvolveu, principalmente, durante o Governo Sarney e que, desde sua origem, disputava espaço no
plano da luta política com o projeto dos CIEPs, que se constituía na peça básica de propaganda política do
governador do Rio de Janeiro, Leonel Brizola, abertamente declarado candidato à Presidência da República.

42
PARTE I | AS DÉCADAS DE 1980 E 1990

Finalmente, no plano nacional as forças do capital (internas e externas), sem


alternativa de um candidato para a primeira eleição direta após a ditadura, articulam-
se em torno de Fernando Collor, que viabilizou sua candidatura num partido nanico:
Partido da Reconstrução Nacional – PRN. As forças conservadoras utilizaram todos
os mecanismos para impedir a vitória de Luiz Inácio da Silva no segundo turno, por
entenderem que era uma ameaça real, mormente naquele contexto, aos novos
tempos programados para a “vingança do capital” contra as políticas e forças que o
regulamentavam.. Estava aberto o cenário para a década de 1990 anular, uma a
uma, as conquistas constitucionais do capítulo da ordem econômica e social.
A primeira metade da década de 1990, numa direção socialmente
regressiva, é, também marcada pela instabilidade. O ano de 1990 começa com
os “delírios” de um presidente sem condições éticas, políticas e psicológicas de
governar. Surpreende o país com o Plano Collor, com o confisco da poupança e
um decálogo de medidas quiméricas para colocar o país na “era da modernidade”.
Na verdade, seu programa de reconstrução nacional buscava atender às diretrizes
dos organismos internacionais, de abertura do mercado, reforma do Estado e
restrição dos direitos sociais enunciados pelo Consenso de Washington.
O sintoma desse ideário é dado em documento da Federação das Indústrias
de São Paulo (1990), cujo título sintetiza seu conteúdo ideológico – Livre para
crescer. Com efeito, o documento mostra a essência da direção das reformas:
“Aqui se faz uma opção: por um Brasil moderno, eficiente e competitivo, adulto
e sem paternalismo; inserido no Primeiro Mundo, respeitando os valores
fundamentais da comunidade Internacional, que são também os nossos”.
Se o início da década de 1980 foi marcado pelo tema da democracia, o
da década de 1990 é demarcado pela idéia de globalização, livre mercado,
competitividade, produtividade, reestruturação produtiva e reengenharia, e
“revolução tecnológica”. Um decálogo de noções de ampla vulgata ideológica
em busca do “consenso neoliberal”.
Mas não foi preciso muito tempo para que o capital internacional e a
burguesia nacional a ele associado e subordinado percebessem a incapacidade,
sob todos os ângulos, de Collor no sentido de cumprir o ideário acima sintetizado.
A tese do impeachment surgiu forte, paradoxalmente, no interior de duas forças
antagônicas: do campo da esquerda, na defesa dos direitos dos trabalhadores
assegurados na nova Constituição e da direita, na defesa e pela ampliação dos
interesses do capital e, portanto, da reforma daquilo que a nova Constituição
restringisse. Em setembro de 1992 consuma-se o impeachment, assumindo o
vice-presidente Itamar Franco, que nomearia como ministro da Fazenda o
sociólogo Fernando Henrique Cardoso.

43
A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico

O período do Governo Itamar Franco é marcado por um aparente


equilíbrio de forças. Aparente porque, na essência, as diretrizes da política
econômica não mudaram substantivamente. A prova empírica disso é que os
organismos internacionais e as forças do capital no Brasil foram percebendo no
ministro da Fazenda o candidato ideal para evitar o risco da eleição de Luís I.
da Silva – Lula. E, dessa vez, os organismos gestores da ordem do capital
internacional e nacional não se equivocaram.
Ao assumir o governo, Fernando Henrique Cardoso já tinha um projeto
amplo construído na “conciliação” dos interesses das diversas forças representantes
do capital no âmbito internacional, tanto para seu projeto de oito anos como para
as sucessões seguintes. Projetava-se, como mostra Oliveira (1996 e 2001), um período
de 20 anos para instaurar uma hegemonia burguesa capaz de acabar com a “era
Vargas” e impedir a construção da democracia efetiva de marca nacional popular.
Tratava-se de efetivar o ajuste recomendado pelos organismos
internacionais mediante as políticas de desregulamentação, descentralização
e privatização. Para isso era preciso reformar o Estado, definindo como sua
função básica dar garantias às exorbitantes taxas de lucro do capital,
internacional e nacional a ele associado, e, como conseqüência, mutilar os
direitos sociais. Manteve, durante os oito anos de mandato o mesmo ministro
da Fazenda, Pedro Malan – um competente quadro técnico brasileiro, até então
trabalhando nos organismos internacionais.
A década de 1990, não sem resistências, foi de profunda regressão no
plano dos direitos sociais e subjetivos. Transitou-se da ditadura civil-militar
para a ditadura do mercado. Essa regressão conduz à conclusão de que o capital
se expande na consecução de seus objetivos, tanto com a ditadura quanto com
a democracia restrita e pelo alto.
Na perspectiva da análise de Bosi, essa conjuntura foi de reafirmação e
consolidação daquilo que dominou ao longo do século XX no Brasil: a concepção
liberal conservadora, monetarista, fiscalista e mercantilista como parâmetro das
políticas de Estado. Em termos estruturais, a modernização conservadora ou do
arcaico, 20 anos após o fim da ditadura, estava garantida, e os interesses dos
diferentes grupos ou frações da classe detentores do capital nacional e, sobretudo,
os interesses do grande capital mundial, rearticulados e atendidos.17

17
O poder desse projeto, mesmo com a perda inesperada de Luiz E. Magalhães, pensado como possível
sucessor de Cardoso, é evidenciado pela exigência dos organismos internacionais, representantes da
ordem do capital, que os candidatos assinassem, quatro meses antes da eleição (julho de 2002), uma
carta-compromisso afirmando que o eleito honraria todos os contratos internacionais.

44
PARTE I | AS DÉCADAS DE 1980 E 1990

J. Petras e H. Veltmeyer (2001) indicam que o “Brasil de Cardoso” efetivou


uma ampla “desapropriação do país” tornado-o seguro para o capital e
profundamente inseguro para a maioria da população. Em outro balanço do
Governo Cardoso, sob diferentes ângulos, várias análises mostram que houve
“o desmonte da nação”. (Lesbaupin, 1999).
O grau de articulação entre os grupos da classe burguesa, bem como o
de associação de interesses com os centros hegemônicos do capital mundial,
sobretudo financeiro, reduziu profundamente as possibilidades de uma estratégia
de mudança em direção diferente da que fora traçada. Seis meses antes da
eleição, numa espécie de rendição ao credo das políticas de liberação
econômica, todos os candidatos à Presidência foram pressionados a assinar um
documento mediante o qual se comprometiam a honrar os acordos feitos com
os credores e investidores do capital mundial, ou seja, seguir completando as
reformas em curso, como a da previdência.
Paulo Renato de Souza também permaneceu os oito anos, como ministro
da Educação. Com a experiência de funcionário do Banco Mundial, liderou,
de forma competente, as reformas educacionais necessárias ao ajuste estrutural
da sociedade no plano organizativo e do pensamento. Cunha (1995), ao expor
os projetos de educação brasileira dos candidatos Fernando H. Cardoso e Luiz
I. da Silva, então em disputa, sinaliza que a “plataforma de Lula resultou de
um processo mais indutivo, de modo que segmentos de interesse social e
partidário tiveram especial espaço nos documentos (...). O documento de
campanha de FHC foi elaborado por especialistas em planejamento
governamental, razão pela qual se pôde selecionar as demandas que seriam
incorporadas a partir das diretrizes gerais” (p. 95).
A síntese de Cunha torna-se duplamente esclarecedora quando se
examina quem eram os especialistas que “elaboraram” os documentos. Trata-
se, a começar por Paulo Renato de Souza, Cláudio de Moura Castro, João
Batista de Araújo e Guiomar Namo de Mello (a mais neófita), de profissionais
com vínculos orgânicos com as instituições internacionais, mormente o Banco
Mundial, de onde emanavam as diretrizes básicas das reformas.
A síntese da revista Exame de um pronunciamento do ministro Paulo Renato
de Souza a uma platéia de empresários logo no início de seu mandato (1996) delineia
o ideário de um país que renuncia a ter um projeto próprio e, ao mesmo tempo, o
projeto educativo adequado a o nosso papel na divisão internacional do trabalho:
Segundo o ministro a ênfase no ensino universitário foi uma característica de
um modelo de desenvolvimento auto-sustentado despugado (sic) da economia
internacional e hoje em estado de agonia terminal. Para mantê-lo era necessário

45
A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico

criar uma pesquisa e tecnologia próprias, diz Paulo Renato. Com a abertura e
globalização, a coisa muda de figura. O acesso ao conhecimento fica facilitado,
as associações e jointventures se encarregam de prover as empresas dos países
como o Brasil do Know-How que necessitam. ‘Alguns países como a Coréia,
chegaram a terceirizar a universidade’, diz Paulo Renato. ‘Seus melhores
quadros vão estudar em escolas dos estados Unidos e da Europa. Faz mais
sentido do ponto de vista econômico.18

No ensino superior, tratava-se, então, de congelar a universidade pública


e, mais do que isso, direcioná-la como uma “organização social” vinculada e
orientada pelo mercado, deixando livre, paralelamente, o mercado do ensino
privado. O foco de atenção e de prioridade era a educação básica, como estratégia
de alívio da pobreza e uma profunda inversão de direção do ensino médio.
Para isso, a estratégia foi a de ir cumprindo, por medidas provisórias e
outros instrumentos legais, todas as mudanças necessárias no campo educativo,
coerentes com o ideário da desregulamentação. Era necessário protelar e impedir
a aprovação da proposta de Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional
discutida e negociada entre a Câmara dos Deputados e a sociedade civil,
assim como abortar, mais adiante, o Plano Nacional de Educação.19 O resultado
no aspecto organizativo foi a ênfase da educação como serviço, regulado pelo
mercado, e não mais como direito social.
A dimensão certamente mais profunda e de conseqüências mais graves,
no plano do desmonte da esfera pública, foi a privatização do pensamento
pedagógico. Tratava-se, então, de transformar a ideologia privada do capital,
do mercado e dos homens de negócio em política oficial do Estado. Não é
inocente o ideário pedagógico dos parâmetros e diretrizes curriculares e dos
processos de avaliação centrados na concepção produtivista e empresarial das
competências, da competitividade e da empregabilidade.20
O projeto de LDB proposto pelo senador Darcy Ribeiro, após emendas
diversas, foi aprovado. Seu caráter minimalista, como o caracterizou Saviani
(1997), era adequado às reformas estruturais orientadas pelas leis do mercado.
Por isso aquilo que não constituía um ex-post do já decidido abriria caminho
para ser imposto verticalmente.

18
A revista Exame, São Paulo, (v. 30, n. 15, de 17 de julho de 1996, p. 46).
19
Dermeval Saviani, em duas obras (1997 e 1998), efetiva a análise mais completa das propostas de LDB e
de Plano Nacional de Educação da sociedade e os aprovados, de cima para baixo, pelo Governo Cardoso.
20
Ver, a esse respeito, Frigotto, 1998, 2002; Neves, 1994 e 1995, Rodrigues, 1998; e Ramos, 2001.

46
PARTE I | AS DÉCADAS DE 1980 E 1990

A reforma da educação tecnológica e profissional elucida de forma


emblemática o que acabamos de assinalar. O governo estava buscando efetivar
mudanças profundas, criando um sistema paralelo e dual de educação tecnológica
e profissional mediante o PL 2.603/96. Por ter que ser aprovado no Congresso e pelo
movimento ativo do Fórum em Defesa da Escola Pública, bem como pelo avançado
debate crítico interno na Rede de Escolas Técnicas Federais e CEFETs, o conteúdo
original desse projeto sofria dura resistência e teve, como veremos com mais detalhes
em outros capítulos, que se abrir ao debate e à negociação com a sociedade.
Com a aprovação da nova LDB em 1997, o governo entendeu que poderia,
por um ato do Executivo mediante um decreto, livrar-se das resistências e,
finalmente, levar adiante seu projeto. Isso ocorreu com a publicação do Decreto
n. 2.208/97 e outras medidas “legais” complementares, como a Portaria SEMTEC/
MEC n. 646/97. Por diferentes estratégias, entre elas a destinação de recursos
ou não do PROEP, a transformação das escolas técnicas em Centros Federais
de Educação Tecnológica e o incentivo para uma relação cada vez maior com
o mercado na venda de serviços, a implantação da reforma foi sendo efetivado
por persuasão, quando não pela força “onde havia resistência”.21
Na educação profissional mais diretamente ligada à formação intensiva
de mão-de-obra, o governo permitiu ao Sistema S ampliar sua função privatista
e seletiva, e minimizar sua função social. Num âmbito mais amplo, o Plano
Nacional de Qualificação do Trabalhador – PLANFOR, vinculado ao Ministério
do Trabalho, completou o conjunto de reformas no campo educacional
subordinadas às reformas estruturais de desregulamentação e privatização.22
A reforma e as políticas educacionais da década de 1990 caracterizam-
se por profunda regressão, com outras roupagens, ao pensamento educacional
orientado pelo pragmatismo, tecnicismo e economicismo. O projeto educacional
do capital, dirigido interna e externamente pelos organismos internacionais,
tornou-se a política oficial do governo.

3. A título de conclusão
A breve análise de caráter estrutural da construção da formação social
brasileira, tomando-se um longo ou médio tempo histórico, sinaliza o reiterado

21
Os depoimentos das entrevistas , analisadas no capítulo 8 (parte III) e a postura da maioria do corpo
diretivo dos CEFETs ao longo dos debates pela revogação do decreto 2.208/97 e, sobretudo, o imobilismo
perante o novo Decreto 5.154/2004 indicam que a política implementada no final da década de 1990
pelo Decreto 2.2008, penetrou profundamente a organização e concepção pedagógica dos CEFETs.
22
Para uma ampla análise crítica do PLANFOR ver Céa, 2003.

47
A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico

rearranjo das relações de poder da burguesia acertando suas lutas internas na


busca da acumulação ampliada do capital. Trata-se de um processo histórico
comandado por revolução passiva, transformismo ou modernização
conservadora. Esse processo tem mantido intactas as estruturas sociais e de
poder que geram a desigualdade, o aumento da concentração de renda e da
degradação da qualidade de vida da classe trabalhadora. Aprofundou-se, por
outro lado, a relação de vinculação associada e subordinada da burguesia
nacional com os centros hegemônicos do capital mundial. Nesse contexto,
desaparece o ideário de um projeto de desenvolvimento nacional e de ampla
inclusão das massas aos direitos sociais básicos. O foco concentra-se no controle
da inflação, na estabilidade econômica e no superávit, para dar confiança aos
investidores e pagar os juros da dívida. O país agiganta-se como economia
capitalista dependente e associada em eterno ajustar-se à lógica insaciável
dos centros hegemônicos do capital. A conseqüência configura-se no aumento
de desemprego e subemprego, violência e pobreza.
No plano ideológico, estiveram presentes, ao longo do século XX, projetos
de democracia popular e projetos que sinalizam a ruptura com as relações
sociais capitalistas. A sustentação desse ideário nas duas décadas analisadas,
no âmbito social, cultural e educacional, concentrou-se, especialmente, em
experiências de governos populares em prefeituras e as lutas do Movimento
Sem Terra. E nesse espaço de lutas insurgiram-se várias organizações que se
contrapõem ao processo de mundialização (globalização) destrutiva do capital,
organizando o Fórum Mundial Social e o Fórum Mundial de Educação.
No plano conjuntural, as duas décadas objetos desta pesquisa explicitam
o duplo movimento de acúmulo de forças e articulações para a consolidação
da superação da ditadura civil-militar e disputa da travessia entre um projeto
democrático-popular e uma restrita “democracia-burguesa”. Toda a década de
1980 desenvolveu-se num tenso embate e articulação de movimentos para
superar a ditadura e, em seguida, na disputa das alternativas em jogo: a travessia
para uma democracia de marca nacional popular que viabilizasse as reformas
de base e uma relação autônoma e soberana internacional ou a reafirmação e
aprofundamento do projeto liberal conservador em sua vinculação associada e
dependente ao capital internacional. O texto da nova Constituição revelou
um equilíbrio relativo dos projetos em disputa.
A década de 1990 não só interrompeu a travessia para um projeto de
democracia popular como retomou, de forma mais radical, a tradição do
liberalismo conservador. A derrubada do Muro de Berlim em 1989 efetivou-se
simultaneamente à divulgação da cartilha do Consenso de Washington com as

48
PARTE I | AS DÉCADAS DE 1980 E 1990

normas do ajuste, desregulamentação e processos de privatização e


desnacionalização dos países periféricos e semiperiféricos. No plano nacional,
a eleição de Collor de Mello e seu projeto de modernização conservadora
iniciaram o desmanche das conquistas da década anterior. Mas foram os dois
mandatos de Fernando Henrique Cardoso e seus ministros mais importantes –
Pedro Malan, da Fazenda, e Paulo Renato de Souza, da Educação – que
efetivaram as reformas de consentimento associado e subordinado à nova
(des)ordem do capital e plasmaram, uma vez mais, a “modernização
conservadora” ou a “modernização do arcaico”. A metáfora do ornitorrinco, de
Francisco de Oliveira, expressa a situação da sociedade brasileira ao final da
década de 1990 e início de uma nova década e um novo século. O “mostrengo
social” permanece e se aprofunda.
O campo educacional reflete, tanto estruturalmente quanto nas
conjunturas analisadas, o jogo de forças em disputa. Estruturalmente também
se reitera a “modernização conservadora”. Há uma ampla expansão em todos
os níveis de ensino, mas, por seu conteúdo e forma produtivista e mercantilista
dominante, trata-se, como sustenta a tese de Algebaile (2004), de um sistema
que se “amplia para menos”.
A década de 1980 demarcou avanços nos planos teórico e prático: forte
esforço de superação do legado do projeto educativo da ditadura civil-militar
e a disputa da travessia para definir que projeto de sociedade e de educação
se afirmaria. Nesse contexto efetiva-se o denso debate da escola pública, laica,
gratuita, universal, unitária e politécnica. Sua apropriação mais efetiva
concretiza-se em experiências de governos democráticos populares em
prefeituras e alguns estados. A década de 1990, porém, como vimos, é de
“vingança contra os ganhos de direitos sociais da classe trabalhadora”.
A modernização conservadora impõe reformas educacionais ajustadas
ao processo de desregulamentação e privatização. A educação, de direito social
e subjetivo, passa a ser vista como serviço, e seu ideário é o pensamento dos
aparelhos de hegemonia do capital. Na formulação teórica e nas políticas
concretas, instaura-se uma profunda regressão ao produtivismo, fragmentação
e economicismo. A reforma da educação profissional, por ser de interesse direto
do capital, talvez expresse essa regressão de forma mais emblemática, bem
como um tecido cultural na área, no plano dirigente, mas não só,
dominantemente conservador. Isso talvez possa nos ajudar a entender tanto a
pouca produção acadêmica sobre escola unitária e politécnica quanto a
acomodação silenciosa, especialmente da rede CEFET, após a revogação do
Decreto 2.208/97 e a publicação do Decreto 5.154/04.

49
A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico

No campo da esquerda, cabe a pergunta sobre a que o teria conduzido a


situar-se dominantemente numa posição defensiva ao tema da revolução
tecnológica e reestruturação produtiva, e secundado o embate teórico e político-
prático da escola unitária e politécnica da tradição marxista. Por certo, a crise
do marxismo e a ampla incorporação do pós-modernismo na área ajudam-nos a
responder em parte à questão, mas não a esgotam. Talvez o inventário no campo
da esquerda implique também aprofundar a sinalização dada por um dos teóricos
marxistas mais importantes no Brasil no século XX, Florestan Fernandes, quando
se refere aos desvios tortuosos por meio da “exaltação teórica” ou
“revolucionarismo subjetivo”.

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A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico

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PARTE I | AS DÉCADAS DE 1980 E 1990

CAPÍTULO 2 | EDUCAR O TRABALHADOR CIDADÃO


PRODUTIVO OU O SER HUMANO EMANCIPADO?1

GAUDÊNCIO FRIGOTTO
MARIA CIAVATTA

Introdução
As palavras ou vocábulos que usamos para nomear as coisas ou os fatos e
acontecimentos não são inocentes. Buscam dar sentido ou significar estas coisas,
fatos ou acontecimentos em consonância com interesses vinculados a
determinados grupos, classes ou frações de classe. Mesmo os conceitos
resultantes de um processo de elaboração sistemática e crítica ou científica
não são, como querem os positivistas ou as visões metafísicas da realidade,
imunes aos interesses em jogo nas diferentes ações e atividades que os seres
humanos efetivam na produção de sua existência. É nesse sentido que autores
como Bakhtin (1981) e Gramsci (1978) assinalam que toda linguagem, mesmo
a denominada científica, é ideológica2 . Outra face da mesma problemática
situa-se no fato de que, em determinadas épocas, certas palavras são focalizadas
e afirmadas e outras silenciadas ou banidas. Isso também não é fortuito.
Essa compreensão nos indica que a atitude mais adequada a se adotar,
tanto do ponto de vista da produção do conhecimento quanto da ação político-
prática, é a de vigilância crítica, buscando desvendar o sentido e o significado
das palavras e dos conceitos, bem como perceber o que nomeiam ou escondem
e que interesses articulam. Essa vigilância necessita ser redobrada nos períodos
históricos em que os conflitos e as disputas se acirram. Declaramos ser esse o
caso do nosso tempo não apenas porque a abundante literatura sobre o tema
assim afirma, assinalando sua grave crise e profundas transformações econômicas,

1
Este texto foi publicado na revista Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, Fiocruz, v. 1, n. 1, março
de 2003, p. 45-60.
2
A ideologia é aqui tomada não simplesmente como falsa consciência, mas como uma concepção ou visão
de mundo. Ver, a esse respeito, Gramsci,1978; Bakhtin,1981 e Lowy, 1990.

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A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico

científicas, culturais e políticas, mas, também, por ser o tempo em que vivemos.
Um tempo, como assinala Robin Blackburn (1992), em que como nunca “houve
tanto fim”, ou a “era dos extremos”, como afirma Eric Hobsbawm (1995),
referindo-se ao século XX.
Ocuparemo-nos aqui da análise, inicialmente, de termos que por vezes
se expressam como noções ou conceitos e que ganham força no contexto dos
embates da ideologia da globalização ou da mundialização do capital e de
formas societárias alternativas: trabalho e trabalhador produtivo, cidadania e
cidadão produtivo e emancipação, buscando resgatá-los em sua historicidade
e nos limites da concepção liberal burguesa. Em desdobramento, analisaremos
como esses conceitos mais gerais se explicitam no campo educativo, mormente
da educação profissional, configurando perspectivas de projetos alternativos,
particularmente na realidade brasileira. Percebemos que, no Brasil, nos anos
90, praticamente desapareceram, nas reformas educativas efetivadas pelo atual
governo, as expressões educação integral, omnilateral, laica, unitária,
politécnica ou tecnológica e emancipadora, realçando-se o ideário da
polivalência, da qualidade total, das competências, do cidadão produtivo e da
empregabilidade.

1. A nova sociabilidade do capital e o “imperialismo simbólico”


Diferentes autores chamam atenção para o fato de que as mudanças
societárias que vivemos a partir das últimas décadas do século XX trazem, de
forma insistente, um conjunto de vocábulos ou noções que, no entender de
Bourdieu e Wacquant (2000), constituem uma espécie de “nova língua” e
configuram uma espécie de vulgata aparentemente sem muito sentido. Esses
autores fazem uma síntese ampla dessa nova vulgata no contexto da nova
(des)ordem mundial decorrente da mundialização do capital, da ideologia
neoliberal e do pós-modernismo.
Em todos os países avançados patrões, altos funcionários internacionais,
intelectuais de projeção na mídia e jornalistas de primeiro escalão se puseram
em acordo em falar uma estranha novlangue cujo vocabulário, aparentemente
sem origem, está em todas as bocas: “globalização”, “flexibilidade”,
“governabilidade”, “empregabilidade”, “underclass e exclusão”; nova economia
e “tolerância zero”, “comunitarismo”, “multiculturalismo” e seus primos pós-
modernos, “etnicidade”, “identidade”, “fragmentação” etc. A difusão dessa
nova vulgata planetária da qual estão notavelmente ausentes capitalismo,
classe, exploração, dominação, desigualdade, e tantos vocábulos decisivamente
revogados sob o pretexto de obsolescência ou de presumida impertinência é

56
PARTE I | AS DÉCADAS DE 1980 E 1990

produto de um imperialismo apropriadamente simbólico: seus efeitos são tão


mais poderosos e perniciosos porque ele é veiculado não apenas pelos partidários
da revolução neoliberal que, sob a capa da “modernização”, entende reconstruir
o mundo fazendo tábula rasa das conquistas sociais e econômicas resultantes
de cem anos de lutas sociais, descritas, a partir dos novos tempos, como arcaísmos
e obstáculos à nova ordem nascente, porém também por produtores culturais
(pesquisadores, escritores, artistas) e militantes de esquerda que, em sua maioria,
ainda se consideram progressistas (Bourdieu e Wacquant, 2000, p. 1).

Luiz Fernando Veríssimo (2001), referindo-se à ideologia neoliberal na


América Latina, mostra-nos como a classe dominante manipula a informação
e deturpa conceitos, configurando um “inferno semântico”. Noam Chomsky
(2002), consagrado lingüista e hoje um dos mais importantes intelectuais críticos
do capitalismo das megacorporações, ao analisar o sentido histórico e humano
do II Fórum Social Mundial – 2002, mostra como o termo globalização, que na
tradição da I e II Internacional Socialista tem o sentido de internacionalismo,
de solidariedade entre os seres humanos e de partilha dos bens do mundo, é
apropriado pelos detentores do grande capital na perspectiva dos processos
predatórios, em nome do lucro.
A nova vulgata a que se referem Bourdieu e Wacquant representa uma
forte investida, no plano supra-estrutural, dos detentores do grande capital e
do poder, e indica a forma como se representam as relações sociais, econômicas,
culturais e educativas. Trata-se de pautar a agenda do pensamento único,
silenciando determinadas perspectivas analíticas e conceitos, e hipertrofiando
outros. Com efeito, como sintetiza Galeano, (2000) a partir do que viu escrito
em uma parede em Quito, “Quando tínhamos todas as respostas, mudaram as
perguntas”.
Para desespero de milhões de seres humanos, muitos dos quais vivem no
Brasil e necessitam de emprego, de casa, de saúde e educação pública, de
cultura, lazer e aposentadoria digna, quem mudou as perguntas foi o
conservadorismo ou os profetas do neoliberalismo.

Algo muito profundo está ocorrendo quando a sociedade não se indaga Quais
os caminhos para vencer o subdesenvolvimento e a desigualdade? Mas Como atrair
capitais; quando a preocupação principal dos trabalhadores deixa de ser Como
ampliar direitos? e se torna Como encontrar emprego? Quando reluzem em
bancas de revista títulos tipo Com quem Madonna está saindo? Ou Que dieta
pode salvar seu casamento?, e não mais Onde vai parar a revolução sexual? (sic)
(Le Monde Diplomatique, 2000: 1)

57
A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico

Essa mesma imprensa, com poderosas redes mundiais controladas por


tais forças conservadoras, substitui a milenar sentença de Protágoras de que o
ser humano é “a medida de todas as coisas” pelo ideário de que o mercado é,
agora, o parâmetro de tudo. Divulgam, aos quatro cantos do mundo, um vocábulo
cujo epílogo é a precarização da vida das maiorias e a perda de direitos: “Ajuste
estrutural. Austeridade. Corte de gastos públicos. Superávit primário. Privatização.
Abertura comercial. Eficiência. Produtividade. Garantia aos investidores.
Enxugamento. Terceirização. Flexibilização de direitos. Demissões”(ibidem). No
campo educacional, esse decálogo, traduz-se por vocábulos como qualidade
total, sociedade do conhecimento, educar por competência e para a
competitividade, empregabilidade, cidadão ou trabalhador produtivo etc.
Entendendo a linguagem como criadora de sentidos e significados
mediatamente constitutivos da realidade histórica e apreendendo-a, portanto,
vinculada às relações sociais de produção da existência humana, sublinhamos
a importância política que assume o embate teórico de crítica às noções
dominantes ou a destruição das perspectivas que Karel Kosik (1968) denomina
pseudoconcretas. O desafio mais complexo, para aqueles que se fundamentam
no materialismo histórico, como indica Francisco de Oliveira (1987), é de
saturar de historicidade os conceitos e as categorias analíticas.

2. Trabalho e trabalhador produtivo


O debate sobre trabalho e trabalhador produtivo é tão velho quanto a
própria história humana. Em última instância, trata-se de compreender como
os seres humanos, em sua pré-história de sociedades classistas, como as definiu
Marx, significaram e atribuíram valor às atividades de produção e reprodução
de sua vida material e simbólica, intelectual ou espiritual. A idéia, ainda hoje
forte, de que o trabalho do espírito ou o trabalho intelectual é superior ao
trabalho material não é algo natural e eterno, mas é produto de determinadas
relações sociais historicamente determinadas pelos seres humanos.
Com a emergência e afirmação do modo de produção capitalista rompe-
se, por necessidade intrínseca, com a escravidão e busca-se ressignificar o
trabalho, passando de sua conotação negativa de tripalium (castigo) para uma
conotação positiva de labor.3 Essa afirmação positiva engendra uma dupla força:
de embate contra as relações sociais e de produção dos modos de produção
pré-capitalistas, sobretudo o feudal, e de afirmação daquilo que é o nec plus

3
Ver, a esse respeito, a análise empreendida por Nosella (1987).

58
PARTE I | AS DÉCADAS DE 1980 E 1990

ultra da forma especificamente capitalista de produção: extrair o máximo de


trabalho não pago ou a mais-valia absoluta, relativa ou ambas combinadas.
Desde o início, os intelectuais encarregados de produzir o cimento
ideológico na nova ordem social foram expressando sua representação de
trabalho e trabalhador produtivo e da própria concepção de produtividade.
Não se trata, aqui, sobretudo, de uma maquinação maquiavélica, mas da visão
de classe que engendram e expõem, e cujo desfecho é a naturalização da
sociedade de classes.
Marx, na análise das teorias da mais-valia estabelece um longo debate
crítico mostrando qual é a compreensão de produtividade e de trabalhador
produtivo no pensamento dos fisiocratas, dos mercantilistas e dos teóricos do
capitalismo: Smith, Ricardo, Sismondi.4 Todos esses autores vão disseminar
idéias vulgares ou parciais do que seja trabalho e trabalhador produtivo que,
em última análise, encobrem o sentido forte e efetivo de produtividade e de
trabalhador produtivo para o capital.
A luta da classe trabalhadora e de seus intelectuais ao longo de dois
séculos do capitalismo foi buscar, sistematicamente, não só desmascarar o
falseamento das noções de produtividade e de trabalhador produtivo, mas lograr
conquistas importantes em termos de regulamentação do capital e de freio à
superexploração. A regulamentação da jornada de trabalho é, sem dúvida,
uma de suas conquistas fundamentais.
É compreensível que, no contexto da desregulamentação do capital, na
nova (des)ordem mundial sob a égide da ideologia neoliberal, a vulgata da
produtividade, das competências, retorne com grande peso. Cabe um
sistemático embate para explicitar o significado deste novo senso comum. Nesse
embate, deve-se aprofundar os seguintes aspectos relacionados à produtividade
e ao trabalho produtivo:
a) No sentido absoluto de produção de bens, valores de uso ou de serviços,
tanto no plano material como imaterial, toda atividade humana produz algo,
sendo portanto, produtiva. O agricultor que planta em seu pequeno lote de
terra para gerar sua sobrevivência, a mulher ou homem que preparam alimento
para si ou para outros, a dona-de-casa que cuida dos afazeres domésticos,
entre outros, todos podem ser considerados produtivos. Podemos dizer, também,
que, variando os meios utilizados, a tecnologia etc., essas atividades podem
ter maior ou menor produtividade. A maior produtividade decorre de obter,
em menores ou iguais tempo e espaço de trabalho, mais produtos e de melhor

4
Ver, Marx,1974; Rosdolsky, 2001 e Napoleoni,1981.

59
A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico

qualidade. Improdutivo, seria, então, aquele que vive do ócio e não faz coisa
alguma. Ou que, em relação aos produtivos, produz menos.
No senso comum e dentro da vulgata neoliberal, hoje, trabalho e
trabalhador produtivos estão profundamente permeados pela idéia daquele
que faz, que produz mais rapidamente, daquele que tem qualidade ou que é
mais competente. O fulcro central das visões apologéticas de produtividade e
de trabalho produtivo resulta na idéia de que cada trabalhador é socialmente
remunerado ou socialmente valorizado para manter-se empregado ou não, de
acordo com sua produtividade, vale dizer, de acordo com sua efetiva
contribuição para a sociedade, ou seja, o que o trabalhador ganha corresponde
àquilo com que contribui, e o que cada um tem em termos de riqueza depende
de seu mérito, de seu esforço.
b) O trabalho produtivo e a produtividade do trabalho, no âmbito da
produção capitalista, têm um sentido específico e, portanto, não podem ser
tomados em sua dimensão absoluta de produção de valores de uso. O trabalho,
sob o capitalismo, é transformado em força de trabalho despendida pelo
trabalhador, mercadoria especial e única capaz de acrescentar ao valor
produzido um valor excedente. Por isso, “trabalho produtivo no sentido da
produção capitalista é o trabalho assalariado que, na troca pela parte variável
do capital (a parte do capital despendida em salário), além de reproduzir essa
parte do capital (ou o valor da própria força de trabalho) ainda produz mais-
valia para o capitalista (...) A produtividade no sentido capitalista baseia-se
na produtividade relativa; então, o trabalhador não só repõe um valor
precedente, mas também cria um novo; materializa em seu produto mais tempo
de trabalho materializado no produto que o mantém vivo como trabalhador.
Dessa espécie de trabalho produtivo depende a existência do capital” (Marx, 1974:
132-3) (grifos nossos).
Maior exploração pode dar-se mediante a extensão da jornada de
trabalho, aumentando as horas de trabalho não pago ou de sobretrabalho. Isso
consubstancia a mais-valia absoluta. Há um aumento de produção de
mercadorias ou serviços pela ampliação da jornada de trabalho. No início do
capitalismo, vamos encontrar jornadas de trabalho de até 18 horas. Com a
incorporação da ciência e da técnica, bem como com a criação de métodos e
estratégias de gerência científica do trabalho, o capital acelera o ritmo do
trabalho e da produção, e, em menos tempo, produz mais mercadorias. Gera
um aumento exponencial de produção de mercadorias e serviços pelo aumento
da produtividade (intensidade) do trabalho. Isso consubstancia o que Marx
denominou mais-valia relativa.

60
PARTE I | AS DÉCADAS DE 1980 E 1990

Historicamente, observa- se que, dependendo do grau de


desregulamentação do capital e da força ou fragilidade da classe trabalhadora,
combinam-se simultaneamente os processos geradores da mais-valia absoluta
e relativa. As estratégias neoliberais de desregulamentação e flexibilização
das leis do trabalho, atualmente em curso no Brasil, são um exemplo
emblemático de uma carta branca para o capital exercer a superexploração
dos trabalhadores.
A apreensão atenta da sociabilidade do capital permite-nos perceber
que, após os anos 20 do século passado, ao mesmo tempo em que se efetiva,
pela luta dos trabalhadores e pelas contradições do próprio sistema do capital,
uma regulação mediante o fordismo, o keynesianismo e as políticas do Estado
de bem-estar, instauram-se mecanismos de ruptura dessa regulação. Com efeito,
como observa Chesnais (1996), a estratégia das multinacionais, hoje, a
mundialização do capital, ideologicamente apresentada como globalização
(Cardoso, 1999), representa um longo processo de recuperação do capital no
sentido de mover-se sem barreiras e tornar-se como nunca anticivilizatório e
destruidor de direitos (Mészáros, 1996). O ideário de flexibilização,
desregulamentação e descentralização, nesse ordenamento do capital, é um
ex-post ou a expressão do imperialismo simbólico legitimador dessa destruição
e violência. Trata-se de uma cuidadosa elaboração superestrutural e ideológica
da forma de representar, falsear e cimentar a visão unidimensional do capital
sobre a realidade econômica, psicossocial, política e cultural. O plano da
dominação cultural, como mostra Jameson (2001), é atualmente o terreno mais
fecundo dessa disseminação ideológica.
No âmbito educacional, constatamos o surgimento da teoria do capital
humano como explicação reducionista5 da não-universalização das políticas
regulatórias e do Estado de bem-estar, como indica Hobsbawm (1990 e 1995).
Passa-se a idéia de que a desigualdade entre nações e indivíduos não se deve
aos processos históricos de dominação e de relações de poder assimétricas e de
relações de classe, mas ao diferencial de escolaridade e saúde da classe
trabalhadora. Associam-se, de forma linear, a educação, o treinamento e a
saúde à produtividade. A idéia de capital humano, nos termos do ideário
capitalista, situa-se ainda no contexto das políticas keynesianas de
desenvolvimento e de busca do pleno emprego. Mesmo nos marcos do ideário
capitalista, a educação é considerada um direito e uma estratégia de
investimento do Estado

5
Ver a esse respeito, Frigotto, 1997, 2000 e 2002.

61
A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico

O fim da idade de ouro do capitalismo e a nova ‘era do mercado’ e


daquilo que assinalamos como o processo de mundialização do capital e
monopólio privado pelas megacorporações, do avanço da ciência e da tecnologia
(Chomsky,1999) e de sua relação com o processo produtivo, constituem uma
materialidade de relações econômicas e socioculturais que demandam novas
noções no plano simbólico e ideológico. Não se trata de afirmar a ocupação, a
profissão e o emprego; trata-se antes de uma realidade desregulamentada e
flexível. O ideário pedagógico vai afirmar as noções de polivalência, qualidade
total, habilidades, competências6 e empregabilidade do cidadão produtivo (um
trabalhador que maximize a produtividade) sendo um cidadão mínimo.

3. A cidadania e a formação do cidadão produtivo


O Plano Nacional de Qualificação do Trabalhador – PLANFOR
consagrou a expressão ‘formação do cidadão produtivo” segundo algumas
diretrizes básicas (MTb, s.d.): consolidação da estabilidade econômica,
desenvolvimento com eqüidade social, modernização das relações capital/
trabalho, construção da cidadania, universalização da educação básica de
qualidade, educação profissional contínua em vista da complementaridade
entre a educação básica e a educação profissional, geração e melhor distribuição
de renda em vista de mais e melhores empregos e empregabilidade para o
acesso e a permanência no mercado de trabalho.
Algumas dessas diretrizes são, historicamente, bandeiras da esquerda
no Brasil. No conjunto, são altamente ideologizadas em função do modelo
econômico neoliberal, com primazia do mercado aberto ao capitalismo
internacional, à privatização dos serviços básicos e à redução do papel do Estado,
transferindo para a sociedade civil a responsabilidade pelo bem-estar social
sem a transferência devida dos recursos financeiros.
As estratégias definidas pelo PLANFOR também são bandeiras que a
esquerda poderia assumir: negociação, participação, parceria, articulação,
integração, descentralização. Poderia e, de fato, assumiu, por intermédio de
sindicatos, ONGs, universidades, desenvolvendo projetos de educação profissional
financiados pelo Fundo de Amparo ao Trabalhador – FAT, selecionados pelas
Comissões Municipais ou Estaduais de Emprego e/ou pelas Secretarias de Trabalho
e Desenvolvimento Social dos estados ou pela própria Secretaria de Formação
Profissional – SEFOR do Ministério de Trabalho e Emprego.7

6
Sobre a pedagogia das competências, ver Ramos, 2001.
7
Sobre a avaliação dos primeiros anos do PLANFOR, ver Lima Neto, 1999 e Ciavatta, 2000.

62
PARTE I | AS DÉCADAS DE 1980 E 1990

Mas, se, de um lado, essas estratégias e suas bandeiras sinalizam o


fortalecimento da sociedade civil, de outro, a ênfase na cidadania recai sobre
o “cidadão produtivo” sujeito às exigências do mercado, no qual o termo
produtivo se refere ao trabalhador mais capaz de gerar mais-valia – o que
significa submeter-se às exigências do capital que vão no sentido da
subordinação e não da participação para o desenvolvimento de todas as suas
potencialidades.
Na área acadêmica com inserção política, a utilização do termo
cidadania é lugar-comum nas reflexões que tratam das questões educacionais,
principalmente a partir do final dos anos 70, quando o país ressurge da ditadura
para um movimento amplo de luta pelos direitos, de afirmação dos direitos da
cidadania para todos os brasileiros. Entretanto, seu uso generalizado na produção
acadêmica dos grupos progressistas, mesmo os filiados ao materialismo histórico,
apóia-se analiticamente no conceito de origem liberal de cidadania individual,
que compreende os direitos civis, os políticos e os sociais (Marshall, 1967).8
O conceito de cidadania, porém, parece um conceito pouco elaborado
entre nós. Não apenas por carência de reflexão, mas porque a própria questão
da cidadania é, originalmente, uma questão alheia à constituição da sociedade
brasileira pós-colonial, situação que se teria prolongado sob o fenômeno da
exclusão dos “cidadãos” brasileiros de diversas instâncias da vida social. A
questão subjacente é sobre quem pertence à comunidade política e, por
extensão, quem são os cidadãos e quais são seus direitos de brasileiros.
Devemos remontar brevemente à história do nascimento da nação
brasileira após a ruptura com o império colonialista. Para Santos (1978: 78-80),
os anos de 1822 a 1841 foram cruciais para a definição do tipo de sociedade que
seria o Brasil. Segundo os liberais que conspiraram contra o regime colonial, o
poder imperial deveria ser diminuído e a sociedade brasileira deveria governar o
país. O que significava responder a várias questões: de onde emanava a fonte do
poder político legítimo; se este deveria repousar sobre o centro de poder ou se o

8
Marlene Ribeiro realiza um cuidadoso retrospecto da origem do termo cidadania nos clássicos da
filosofia política e considera que “um conceito delimitado histórica e socialmente pelas camadas
proprietárias, seja muito restrito para abarcar as questões de gênero, de raça, de etnia, de classe social
que deverão estar incluídas em um projeto que se pretenda emancipante das, pelas e para as camadas
subalternas” (2001: 78). De nosso ponto de vista, em função de sua origem histórica, muitas outras
palavras seriam impróprias para servir aos sujeitos de um projeto libertador, tais como educação, escola
e tantas mais. Entendemos que não se deva banir as palavras porque elas fazem parte da memória que
permite resgatar o passado e projetar o futuro. As palavras devem ser historicizadas em sua compreensão,
e mostrados seus limites, como faz a autora. Mas julgamos que elas devam também ser ressignificadas
segundo projetos alternativos emancipadores.

63
A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico

poder deveria ser delegado mediante mecanismos de representação política e social;


quem estava qualificado para essas funções; quem pertencia à comunidade política
como cidadão político pleno; para que serviam o governo e o Estado.
Não obstante o conhecimento do pensamento liberal (Locke,
Montesquieu e a versão americana do liberalismo), o pensamento que
prevaleceu afastou-se do ideário liberal. No pacto constitucional apoiado pela
elite brasileira, estabeleceu-se que o poder imperial antecedia a criação da
sociedade. O príncipe que rompeu a subordinação colonial tinha autonomia
em relação ao pacto constitucional, à sociedade brasileira e à representação
política. Nenhum dos poderes da comunidade política, o Legislativo, o
Judiciário e o Executivo, poderia ultrapassar o poder imperial cuja função era
exprimir a vontade do povo. O imperador era o Poder Moderador, e a ele
respondiam todos os ministros, e não à comunidade política.
A questão sobre quem pertencia à comunidade política e, por extensão,
nos termos atuais, quem era cidadão, recebeu interpretações ao longo do tempo.
A primeira delas só excluía da comunidade política os criminosos, os estrangeiros
e os religiosos. Mas, como o pacto político deveria expressar as igualdades e
desigualdades existentes na sociedade e que, no pensamento da época, eram
naturais, definiu-se que os homens de posses eram os responsáveis pela riqueza
do país e constituíam a comunidade política. O que se traduziu pelo critério
censitário de renda para distribuição dos direitos de voto.
Esse artifício ideológico era, também, legitimado pelo pensamento liberal,
para o qual o objetivo do governo seria proteger a vida, a liberdade e a
propriedade dos cidadãos. Se a constituição de 1824 inaugurava a nação
brasileira e considerava todos os homens cidadãos livres e iguais, também
garantia a todos o direito à propriedade, nela incluídos os escravos. Esse seria
outro grande limite do pensamento liberal e das categorias de pertencimento à
comunidade política.
A supressão progressiva da escravidão (1850 – proibição do tráfico
negreiro, 1865 – Lei dos Sexagenários, 1871 – Lei do Ventre Livre) não dirimiu
a contradição entre cidadania e propriedade escravista.
A manutenção da escravidão e a restrição legal do gozo pleno dos direitos civis
e políticos aos libertos tornavam o que hoje identificamos como “discriminação
racial” uma questão crucial na vida de amplas camadas das populações urbanas
e rurais do período. Apesar da igualdade de direitos civis entre os cidadãos
brasileiros reconhecidos pela Constituição, os cidadãos não-brancos
continuavam a ter mesmo o seu direito de ir e vir dramaticamente dependente
do reconhecimento costumeiro de sua condição de liberdade (Mattos, 2000).

64
PARTE I | AS DÉCADAS DE 1980 E 1990

É com o duplo paradoxo “Na República que não era, a cidade não tinha
cidadãos” que José Murilo de Carvalho (1987: 162) assinala a “castração política”
da cidade do Rio de Janeiro, impedindo seu autogoverno e reprimindo a
mobilização política de sua população urbana. O interesse das elites apresenta-
se como o interesse de toda a sociedade, e instaura-se um novo sistema político
sem que se alterem substancialmente as condições de vida precárias da
população. Regimes ditatoriais, autoritarismo e repressão, paternalismo e
clientelismo alimentam a subalternidade e o atraso social, conduzindo a uma
“modernização conservadora” (Ciavatta, 2000: 77).
Esse breve histórico nos permite-nos visualizar a complexidade negativa
do estabelecimento de uma comunidade política no Brasil que se pautasse, ao
menos, pelo pensamento liberal, assegurando efetivamente os direitos da
cidadania brasileira. Assim, se as categorias apresentadas por Marshall não
correspondem exatamente aos fundamentos da utopia socialista da emancipação
de todos os homens, elas são, ainda hoje, um instrumento útil para a
compreensão dos limites históricos da cidadania no Brasil.
Marshall trabalha com os direitos individuais. Os primeiros a serem
conquistados foram os direitos civis, que são os direitos à integridade física, à
liberdade de ir e vir e de palavra. Historicamente, a esses seguem os direitos
políticos, o direito de votar e ser votado. Seriam os direitos sociais, o direito
aos benefícios da riqueza social (habitação, saúde, educação etc.) os de mais
tardia conquista no mundo ocidental.
Entendemos que, no Brasil embora formalmente todos sejamos cidadãos, há
níveis e situações concretas diferenciados de cidadania de acordo com as classes
sociais. O que significa, efetivamente, acesso diferenciado aos bens necessários à
sobrevivência, criando a situação de escândalo público (impune) dos indicadores
de renda, traduzidos em pobreza e miséria.9 O pertencimento formal à sociedade
política não assegura direitos iguais para todos porque prevalece, na prática, o
princípio lockeano do direito à propriedade. Prevalecem “a idéia liberal de que o
governo não deveria violar os direitos econômicos do cidadão, privadamente
definidos” (Santos, op. cit.: 79) e a idéia da primazia do mercado, ou seja, de que
nenhuma lei impeça seu livre funcionamento, conforme teorizada por Adam Smith.
A realidade dos fatos expõe a fragilidade das bases do conceito. Essa é a
cidadania individual à qual Gohn se refere ao distingui-la da cidadania

9
Os 20% mais ricos da população detêm 64,1% da renda nacional, enquanto os 64,1% mais pobres detêm
o equivalente a 2,2%, conforme o Informe de Desenvolvimento Mundial 2002. O Globo, Rio de Janeiro,
segunda-feira, 22 de abril de 2002, p. 15.

65
A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico

coletiva. Em ambas, duas dimensões são fundamentais, a liberdade e a


igualdade. “A cidadania individual pressupõe a liberdade e a autonomia dos
indivíduos num sistema de mercado, de livre jogo da competição, em que
todos sejam respeitados e tenham garantias mínimas para a livre manifestação
de suas opiniões – basicamente pelo voto – e da auto-realização de suas
potencialidades” (Gohn, 1995: 195). Supõe também um árbitro mediador, o
Estado, o poder público.
A cidadania coletiva teria como referência, primeiro, a idéia de cidadão
da polis grega e as virtudes cívicas que os cidadãos exercitam na comunidade
em que vivem. A segunda referência diz respeito aos os movimentos sociais da
atualidade e à busca de leis e direitos para categorias sociais historicamente
excluídas da sociedade, lutas pela terra na cidade, nas favelas e no campo, e
as lutas de certas camadas sociais, como as mulheres, as minorias étnicas, os
homossexuais etc. “Assim, a cidadania coletiva privilegia a dimensão sócio-
cultural, reivindicando direitos sob a forma da concessão de bens e serviços, e
não apenas a inscrição desses direitos em lei; reivindica espaços sócio-políticos”
mantendo sua identidade cultural (id. ibid.: 196).
Trein recupera o sentido de cidadania coletiva em Marx para fins de
superação da cidadania burguesa. Como crítico do capitalismo e do liberalismo,
Marx argumenta sobre as inconsistências do projeto liberal burguês na sociedade
ocidental e da realidade prático-teórica que impede a emancipação completa
do ser humano e limita o exercício da liberdade “que o mantém preso à idéia
liberal de que é livre quem em sua vontade não está submetido a interferências
e coerções” (Trein, 1994: 126-7).
A emancipação se daria em dois momentos: o genético e o conjuntural.
Quanto ao genético, a pergunta fundamental é sobre que espécie de emancipação
está em questão. Com isso, Marx busca superar a perspectiva liberal burguesa de
emancipação política posta pela Revolução Francesa, para situá-la em outro nível.
Com a Revolução Francesa, alterou-se a forma de participação no poder
político. Se, no feudalismo, a participação política de cada um era proporcional
a sua participação social, ou seja, à apropriação da riqueza material, cultural
e, necessariamente, desigual, com a Revolução Francesa os assuntos do Estado
são assumidos como se fossem o interesse do povo e a vontade dos cidadãos. A
emancipação política constituiu-se em emancipação da sociedade civil em
relação à política.
Diferente do que supunha Rousseau, a participação de direito de todos
os cidadãos na sociedade política não garante a igualdade e a liberdade contra
os interesses particulares que visam ao interesse próprio. A emancipação política

66
PARTE I | AS DÉCADAS DE 1980 E 1990

torna-se a garantia das desigualdades existentes na sociedade civil, que é


entendida como desigualdade da ordem natural. Diz Marx (1991: 50) que “O
homem não se libertou da religião, ele obteve a liberdade religiosa. Ele não se
libertou da propriedade. Ele obteve a liberdade de propriedade. Ele não se
libertou do egoísmo do ofício, ele obteve a liberdade de ofício”.
No mesmo sentido, os direitos humanos originam-se de direitos
particulares do indivíduo, dissociado de sua comunidade. O direito humano à
propriedade privada é o direito de desfrutar de seu patrimônio “sem atender
aos demais homens, independentemente da sociedade, é o direito do interesse
pessoal” (id. ibid.: 43).
No pensamento marxiano, o conceito de cidadania tem maior
complexidade e está ligado ao coletivo ao qual o homem pertence:
Somente quando o homem individual real recupera em si o cidadão abstrato
e se converte, como homem individual, em ser genérico, em seu trabalho
individual e em suas relações individuais; somente quando o homem tenha
reconhecido e organizado suas “próprias forças” como forças sociais e quando,
portanto, já não separa de si a força social sob a forma de força política, somente
então se processa a emancipação humana (Marx, id. ibid: 52, grifos do autor).

Trein (op. cit.: 133-37) observa que, na sociedade atual, apesar da crise
econômica e política e de seus graves desdobramentos sociais (fala a respeito
de 1994 com absoluta atualidade para o presente), há um alargamento dos
espaços de atuação das classes sociais na sociedade civil, para além da sociedade
política. De outra parte, as características de uma sociedade complexa, em
que a dinâmica social leva os indivíduos a participar de diferentes esferas da
sociedade, exigem-lhes uma ‘competência’ particular para que a própria
cidadania possa ser exercida. Essa diz respeito à capacidade do homem de,
enquanto indivíduo real, recuperar em si o universal, o cidadão abstrato, a
relação com o todo, a sociedade, em uma condição de ‘co-pertencimento’ a
sua condição de indivíduo e de cidadão.

4. Considerações finais
Vivemos tempos difíceis, em que a nova sociabilidade do capital, ao
mesmo tempo em que aprofunda as desigualdades reais de trabalho e de
condições de vida, dissemina uma nova semântica da qual estão notavelmente
ausentes termos como capitalismo, classe, exploração, dominação, desigualdade.
E o faz com o apoio muitos intelectuais, de tecnologias mercadológicas e de
poderosos meios de comunicação.

67
A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico

A ‘competência’ para a cidadania, se a entendemos como parte de um


projeto emancipador, apresenta, de modo especial, alguns obstáculos apontados
por Bobbio (apud Trein, op. cit.) em relação à democracia e em relação ao trabalho.
Em primeiro lugar, as condições de atendimento na democracia são cada vez
mais restritas pela existência da distância gerada pelas grandes organizações,
pelo aumento da tecnoburocracia e de seu poder para tolher o atendimento aos
direitos e por limitações à participação de muitos. Quanto ao trabalho, à medida
que crescem os bens materiais, as relações de trabalho tornam-se mais complexas
e exigem competências técnicas e políticas. Paralelamente, assistimos à
desregulamentação acelerada da legislação laboral e à perda dos direitos pelos
quais os trabalhadores lutaram durante todo o século XX.
A idéia de cidadania coletiva implica o resgate da individualidade como
parte de um coletivo e, portanto, como sujeito político. Cabe observar o quanto
a concepção de cidadania coletiva está distante da noção mercantil de cidadão
produtivo. Este deve possuir as qualidades para a inserção em uma economia
de mercado que o aliena de sua generalidade em comunhão política com os
demais homens, para submetê-lo aos ditames da produtividade exigida pela
reprodução do capital.
A concepção de Marx sobre trabalho produtivo é clara em suas duas
referências: à produção de valores de uso e à extração de um valor excedente
ao valor do trabalho remunerado pelo capital. Permite-nos entender que o
senso comum, que se apropria dos termos trabalho produtivo e cidadão produtivo
com o sentido de produtor de valor de uso, está, historicamente, contaminado
pela idéia da produtividade do trabalho segundo os padrões do capitalismo.
O conceito de educação do homem integrado às forças sociais difere da
mera submissão às forças produtivas. Essa concepção distancia-se dos cursos
breves de educação profissional – a exemplo do PLANFOR –,
descontextualizados de uma política de desenvolvimento, geradora de trabalho,
emprego e renda, e de políticas sociais que sinalizem a melhoria de vida da
população e a mudança de rumo na falta de perspectiva para os jovens e adultos
desempregados. Distancia-se, também, das reformas educativas em curso no
ensino médio técnico, com seus cursos breves modulares, com a redução do
saber e da técnica às questões operacionais, com valores pautados pelo
individualismo e a pela competitividade exigidos pelo mundo empresarial. A
educação do cidadão produtivo onde o mercado funciona como princípio
organizador do conjunto da vida coletiva, distancia-se dos projetos do ser
humano emancipado para o exercício de uma humanidade solidária e a
construção de projetos sociais alternativos.

68
PARTE I | AS DÉCADAS DE 1980 E 1990

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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70
PARTE I | AS DÉCADAS DE 1980 E 1990

CAPÍTULO 3 | O ESTADO-DA-ARTE DAS POLÍTICAS


DE EXPANSÃO DO ENSINO MÉDIO TÉCNICO
NOS ANOS 1980 E DE FRAGMENTAÇÃO DA
EDUCAÇÃO PROFISSIONAL NOS ANOS 1990

GAUDÊNCIO FRIGOTTO
MARIA CIAVATTA

Introdução
Os estudos que pretendem constituir um “estado-da-arte” sobre determinado
assunto ou questão têm tradição restrita entre nós. Existem, mas não são muitos,
embora, mais recentemente, com o crescimento da produção científica induzida
pelas políticas de ensino superior nos anos 1990, com o governo de Fernando Henrique
Cardoso, eles comecem a ser uma necessidade de mapeamento do conhecimento
produzido, das questões emergentes ou ainda abertas à pesquisa – o que implica
um inventário do que se produziu no período de tempo que se deseja investigar ou
ter como ponto de partida para novos estudos.
Os termos “estado-da-arte” e “estado do conhecimento”, como outras
classificações acadêmicas, têm sido importados dos padrões anglo-saxões e
americanos a partir dos termos “state of arts” e “state of knowledge”. As duas
expressões parecem ter, entre nós, uso indiscriminado para se referir a trabalhos
onde se procede a um levantamento e análise crítica do pensamento produzido
sobre determinada questão (Ciavatta Franco e Baeta, 1985).

Esse é o sentido dado ao trabalho “Quinze anos de vestibular (1969-


1983)”. Em estudo precedente sobre evasão e repetência no ensino de primeiro
grau, em período de 10 anos, Brandão et al. (1983) observam que as expressões
decorrem de tradução literal do inglês. Embora usual na literatura americana,
a expressão “estado-da-arte” ainda era de uso desconhecido entre pesquisadores
brasileiros (id. ibid.: 7). Estudo semelhante sobre trabalho e educação foi realizado
por Kuenzer (1987), utilizando a expressão “estado da questão”.

71
A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico

Neste trabalho, por estado-da-arte – estado do conhecimento ou estado


da questão – queremos significar o levantamento e análise crítica do
pensamento produzido sobre um conjunto selecionado de trabalhos acadêmico-
científicos, artigos publicados em revistas especializadas na área de educação
(Frigotto e Ciavatta, 2001, p. 15).
No presente capítulo, buscamos recuperar as questões principais
encontradas na literatura analisada de modo a constituir uma síntese do estado-
da-arte das políticas educacionais de expansão do ensino médio técnico nos
anos 1980 e de fragmentação da educação profissional nos anos 1990. Ele tem
por base (i) o capítulo introdutório, em que se analisa a relação entre o estrutural
e o conjuntural e as políticas de educação profissional e tecnológica; (ii) um
conjunto de textos selecionados que tratam do tema;1 e (iii) as principais
questões dos trabalhos desenvolvidos sobre temas específicos, como estudos
para o estado-da-arte.

1. Estrutura e conjuntura: o contexto das políticas educacionais das


décadas de 1980 e 1990
Utilizamos o termo contexto no sentido de resgatar as múltiplas mediações
de ordem social, política e econômica com as quais as políticas educacionais
se articulam não no sentido de relações determinadas de forma mecânica ou
economicista, mas em seu sentido dialético. Trata-se da relação entre a
estrutura social e as diversas conjunturas que se mostram presentes ao longo
da análise dos temas específicos da educação. Isso decorre da compreensão de
que, se de fato as décadas de 1980 e 1990 têm especificidades claras, essas
temporalidades guardam mediações estruturais de um tempo histórico de maior
duração (Braudel, 1982). Nos ateremos, mais especificamente, a caracterizar
o jogo de relações de força entre interesses de classe, grupos ou frações de
classe que se reiteram a partir de 1930.
O segundo aspecto centra-se em apreender qual a especificidade das
décadas de 1980 e 1990 enquanto rearranjo específico de forças em disputa
por projetos societários e de educação. Trata-se da consolidação do ideário
liberal conservador que tem na violência destrutiva do livre mercado ou do
capital sem controles externos o centro das relações sociais.

1
Gomes, 1980; Isaac e Graeli, 1980; Velloso, 1980; Ciavatta Franco e Castro, 1981; Fonseca, 1983;
Franco, Durigan e Orth, 1983; Covre, 1984; Salm, 1984; MEC, 1985; Muniz e Moreira, 1986;
Depresbiteris, 1986 e 1988; Costa, 1994; Masson, 1994; Paiva, 1994; Secco, 1995; Silva, 1996; Weinberg,
1996; Shiroma e Campos, 1997; Tumolo, 1997; Corggio, 1997; Soares, 1997; Manfredi e Bastos, 1997;
Abreu, Jorge e Sorj, 1997; Pronko, 1998; Paiva, 1999.

72
PARTE I | AS DÉCADAS DE 1980 E 1990

O elemento crucial na análise dialética nas ciências sociais e humanas


é, pois, a capacidade de apreender a relação entre os elementos estruturais e
conjunturais que definem um determinado fato ou fenômeno histórico. O
campo estrutural fornece a materialidade de processos históricos de longo prazo,
e o campo conjuntural indica, nos médio e curto prazos, como os grupos, classes
ou frações de classe, em síntese, as forças sociais disputam seus interesses e
estabelecem relações mediadas por instituições, movimentos e lutas concretas.
É o campo da particularidade em que se situam as mediações históricas
que nos permite apreender elementos da articulação entre a produção científica
publicada em periódicos especializados no período aproximado de 20 anos, a
estrutura econômico-social do país e suas diferentes conjunturas. Não se trata
de encontrar o “reflexo” dessa estrutura no sentido clássico do realismo filosófico
ou literário, mas de buscar compreender como os pesquisadores, no período
investigado, interpretaram e revelaram os fenômenos educacionais em curso,
à luz da realidade que lhes dá o sentido político e o significado no plano dos
indivíduos, dos grupos e das classes sociais com seus interesses particulares e
suas ideologias.
Fiori (2002) avalia a existência de três grandes projetos da sociedade
brasileira, em que identifica, no tempo do capitalismo que se implantava no
país, as diferentes conjunturas políticas. O primeiro projeto de país vem do
liberalismo econômico do Império, de base conservadora, no século XIX,
pautado pela política econômica ortodoxa, pela defesa intransigente do
equilíbrio fiscal e do padrão ouro, que regeu também a República do início
do século XX, reaparecendo em momentos subseqüentes da vida do país,
como no Governo FHC.
O segundo grande projeto estratégico surge na tese dos “industrialistas”
já na Constituinte de 1881, mas começa na década de 1930, como “nacional-
desenvolvimentismo” ou “desenvolvimentismo conservador”.
O terceiro projeto “nunca ocupou o poder estatal nem comandou a
política econômica de nenhum governo republicano”. Sua presença ocorre
no campo da luta ideológico-cultural e das mobilizações sociais por um projeto
de desenvolvimento econômico nacional e popular e pela democratização da
política, da terra, da renda, da riqueza, do sistema educacional (Fiori, op.
cit.: 1-3).
Com a roupagem da ideologia neoliberal e os influxos da sociedade de
mercado globalizada, o Governo Fernando Henrique Cardoso (1995-1998 e
1998-2002) retoma o projeto monetarista e de ajuste fiscal da Primeira
República, privilegia a estabilidade econômica, os compromissos com os bancos

73
A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico

internacionais, a privatização dos serviços e das grandes empresas estatais, o


desmonte das universidades públicas federais e a expansão do setor privado.2
As décadas de 1980 e de 1990 têm sentidos históricos marcadamente
diversos. A de 1980 evidencia o equilíbrio instável das relações entre as forças
sociais em disputa ao longo da década, enquanto a de 1990 é marcada pela
profundidade negativa das reformas que redefinem o jogo de forças, estruturando
um bloco histórico que não apenas reedita o conservadorismo, mas o radicaliza.
A década de 1980 foi de uma dura travessia da ditadura à redemocratização em
que se explicitaram, com mais clareza, os embates entre as frações de classe da
burguesia brasileira (industrial, agrária e financeira) e seus vínculos com a
burguesia mundial, e destas em confronto com a heterogênea classe trabalhadora
e os movimentos sociais que se desenvolveram em seu interior. A questão
democrática assume centralidade nos debates e nas lutas em todos os âmbitos da
sociedade ao longo dessa década. Se seu início foi marcado pelos movimentos
organizados em torno do tema da democracia, o começo da década de 1990 é
demarcado pela idéia de globalização, livre mercado, competitividade,
produtividade, reestruturação produtiva, reengenharia e “revolução tecnológica”.
A reforma e as políticas educacionais da década de 1990 caracterizam-se
por processos diversos de privatização da educação e pela ampla regressão, com
outras roupagens, do pensamento educacional orientado pelo pragmatismo,
tecnicismo e economicismo. O projeto educacional do capital, orientado interna e
externamente pelos organismos internacionais, torna-se a política oficial do governo.

2. A produção acadêmica dos anos 1980 e 1990: ênfases e abordagens


Neste item buscamos destacar algumas ênfases das abordagens presentes
nos periódicos selecionados, em quatro momentos: dois na década de 1980, e
dois na década de 1990. Trata-se de textos mais gerais, já que as abordagens
mais específicas estão presentes nos capítulos seguintes. Aqui também não há
fronteira estanque entre esses recortes. Ao contrário, há continuidades,
descontinuidades e ênfases nos autores. Os textos que foram caracterizados
como os que se relacionam com o movimento conjuntural das duas décadas
não têm todos a mesma importância. Por isso, como tem sido a orientação

2
Dois anos depois da posse de Luiz Inácio Lula da Silva (eleito no final de 2002), não obstante o abundante
marketing em contrário, a continuidade das diretrizes fundamentais do projeto econômico (Carvalho,
2003) neoliberal e conservador, revela-se na satisfação dos banqueiros e das elites associadas ao capital
internacional, na política econômica regressiva, no desemprego, terceirização e precarização das relações
de trabalho, nas políticas assistencialistas e no padrão de vida empobrecido dos setores médios e baixos.

74
PARTE I | AS DÉCADAS DE 1980 E 1990

metodológica dos artigos que discutem aspectos específicos da pesquisa, deter-


nos-emos naqueles que têm uma contribuição mais central.
Uma visão de conjunto dos textos indica que, dos 26 selecionados, oito
são relativos ao período 1980-1984, quatro ao período 1985-1989; quatro,
também, ao período de 1990 e 1995, e, finalmente, o número mais significativo
de 10 textos ao período de 1996 a 2000.

2.1. Anos 1980-1985 – A busca da superação do ideário


pedagógico do ciclo da ditadura
Os artigos publicados na década de 1980 expressam, de forma indicativa,
em seu conteúdo analítico, o contexto conjuntural acima sinalizado. O período
de 1980 a 1984 se caracteriza-se pela busca de superação do ideário pedagógico
imposto pelas reformas educacionais do ciclo da ditadura civil-militar.
Dois textos centram-se sobre a relação entre educação técnica e profissional
e mobilidade social. Ambos fazem análises comparativas internacionais.
O primeiro, de Gomes (1980), discute os modelos de mobilidade social
no Brasil relacionando a “educação acadêmica e profissionalizante” e trazendo
comparações com o modelo americano e inglês. O eixo analítico relaciona o
status socioeconômico e as mudanças curriculares para aferir se as estas últimas
e o tipo de formação têm maior poder de mobilidade social.
A conclusão a que chega é de que não há evidências de que a formação
profissionalizante, como uma especificidade curricular, efetive maior mobilidade
social. O peso do “status socioeconômico”, no tipo de escolha de escolaridade, leva
o autor a ponderar que os “currículos não são automaticamente influentes” na
mobilidade que denomina “competitiva”, em contraposição à patrocinada. Sua
análise tem como referencial básico a tipologia de Turner – modelo que relaciona
a mobilidade social e a distribuição de conhecimento por meio dos currículos.
O segundo texto, de Ciavatta Franco e Castro (1981), trata da
“contribuição da educação técnica à mobilidade social” em um estudo
comparativo na América Latina. Trata-se de dois autores que têm base teórica
e visões de mundo diversas. Castro é pesquisador rigoroso nos marcos da
concepção positivista de conhecimento, um dos pioneiros da economia da
educação no Brasil e do estudo do ensino técnico-profissional. Suas teses a
esse respeito seriam a base da reforma da educação profissional nos anos 1990.
Ciavatta Franco era, à época, pesquisadora em início de carreira, cujo horizonte
teórico se filiava às posturas críticas que têm como referencial a visão histórica
e dialética de conhecimento.

75
A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico

O texto, sem dúvida, reflete esse embate de pontos de vista. Em seu âmbito
mais geral, comparando dados da Colômbia, do Paraguai, México e Argentina,
chega à conclusão de que “os efeitos da educação técnica em termos de mobilidade
social são restritos”. Seu alcance “em termos de benefícios sociais significativos para
os indivíduos depende de toda a estrutura econômica e social”. O texto avança no
sentido de ir além da análise de Gomes, centrada na idéia do status socioeconômico.
Aqui se expõe, de forma explícita, como determinante fundamental, a estrutura
socioeconômica e a questão da origem de classe social dos alunos.
Três outros textos ocupam-se da relação entre escola e produção ou
trabalho no capitalismo, tema que vai ser marcante ao longo da década de
1980. Velloso (1980) trata do debate da socialização que a escola efetiva e de
sua funcionalidade para a produção capitalista. Seu texto baseia-se,
especialmente, no debate da sociologia crítica (reprodutivista) americana
(Bowles, Gintis, Edwards, Levin), que defendem a tese de que a escola é mais
funcional à produção capitalista pelos traços comportamentais que desenvolve
do que pelos conhecimentos que transmite. Tomando algumas pesquisas,
enfatiza a pertinência de tal tese. Os empregadores fixam-se mais em aspectos
comportamentais, tais como, responsabilidade, dedicação, relacionamento etc.,
do que naqueles referentes ao conhecimento,
Salm (1984), num breve texto, efetiva uma síntese de sua tese de
doutoramento sobre escola e trabalho. Para o autor, há desvinculação entre
escola e produção capitalista, e, portanto, é um equívoco os educadores
buscarem essa relação. O artigo é uma reação às críticas de educadores do
campo marxista a sua tese. Para Salm, o apelo a Marx para relacionar escola e
trabalho é equivocado. Esse equívoco levaria os críticos a assumirem, com
outros termos, as teses dos teóricos do capital humano.
O terceiro texto, de Covre (1984), discute a lógica tecnocrática do
pensamento dominante na educação no Brasil nos marcos do capital monopolista
e sinaliza visões em disputa. Caracteriza, dentro do pensamento tecnocrático,
aquelas mais humanistas de educação, vinculadas à formação para o capital, e
aquelas mais diretamente tecnicistas da empresa-educação. Ambas retratam
a perspectiva burguesa de educação, em que o homem é uma abstração.
A educação é tratada, no economicismo tecnocrático, como técnica
social ou formadora de “recursos humanos”. Como perspectiva alternativa,
sinaliza a concepção de educação como práxis coletiva que se vincula a projetos
societários em disputa. Situa como horizonte as análises de Gramsci, Saviani e
Tratemberg. Covre debate a abordagem de Salm, acima referida, assinalando
que “embora indique que ela ‘funciona como elemento de reprodução das classes

76
PARTE I | AS DÉCADAS DE 1980 E 1990

sociais’ sua discussão está restrita à escola-empresa (...) Todavia, destaca a autora,
‘para manter sua própria relação de exploração o capital não prescinde que o
Estado use a escola para legitimar seu domínio (...) o capital não pode prescindir
da função legitimadora da desigualdade, de que ele é motor’” (Covre, op. cit.: 85).
Finalmente, outros três textos, completam o conjunto dos selecionados
nesse período. Dois são específicos à discussão da educação profissional no Serviço
de Aprendizagem Comercial – SENAC. Ambos se ocupam dos desafios que
representam as mudanças tecnológicas para a formação profissional na instituição.
O primeiro, de Isaac e Graeli (1980), sinaliza as mudanças no âmbito da informação
e da comunicação, e as possibilidades de potencializar a teleducação. Em seguida,
passa a analisar o Programa de Teleducação do SENAC, sua expansão, seus
aspectos técnicos e logísticos, metodologia e materiais, custos e avaliação. O
segundo texto, de Fonseca (1983), discute de forma muito sucinta a formação
profissional no SENAC frente a uma sociedade em mudança. A autora questiona
qual é a formação mais adequada, em face das mudanças tecnológicas e sociais,
com o objetivo de subsidiar o III Plano Nacional de Ação do SENAC.
O último texto do período, de Franco, Durigan e Orth (1983), discute
os problemas do ensino de segundo grau no contexto da Reforma de 1971 (Lei
n. 5.692/71). As autoras tomam como campo empírico o Estado de São Paulo e
centram sua análise nas explicações, críticas e controvérsias referentes às duas
mudanças básicas trazidas pela nova lei: a fusão dos cursos primário e ginasial,
transformados em ensino de primeiro grau, de oito anos, e “a profissionalização
universal e compulsória” do ensino de segundo grau. Após examinar dados
empíricos relativos às situações e distorções das condições físicas e materiais das
escolas de segundo grau em São Paulo, às características da população que as
freqüentam, à oferta de matrículas nas diferentes modalidades de ensino
profissionalizante, as autoras concluem que a profissionalização compulsória no
segundo grau da rede pública em São Paulo “não passa de um lamentável engodo”.

2.2. Anos 1985-1990 – O debate que ganha força na política: a


ausência e a presença da politecnia
Os textos encontrados nos periódicos consultados do período de 1985 a
1989 são poucos (quatro) e, certamente, não contemplam o intenso debate dos
períodos pré-Constituinte e Constituinte. Avaliamos que a ausência desse
importante debate dos periódicos especializados possa ser atribuída-as seguintes
razões: o debate ainda incipiente no período; a intensa mobilização dos
educadores na luta política em congressos, seminários (como mostra a realização
de cinco Conferências Nacionais de Educação, de 1980 a 1988) e ações junto
77
A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico

aos parlamentares constituintes (como do Fórum Nacional em Defesa da Escola


Pública, que reunia cerca de 15 entidades da sociedade civil); seu deslocamento
para teses, pesquisas e dissertações, que vieram a ser publicadas como livros
no final dos anos 1980 e durante os anos 1990 (a exemplo de Saviani, 1989;
Machado, 1989; Markert, 1995; Rodrigues, 1998), quando o debate e a luta
política se tornaram mais acirrados.
Essa produção estará mais presente, portanto, nos primeiros anos da
década de 1990. Dois temas, entretanto, aparecem em cena. O primeiro, com
três textos, diz respeito, à avaliação da formação profissional na indústria e no
comércio, e o segundo, à questão de educação e trabalho para o jovem brasileiro.
Em dois artigos, Depresbiteris (1986 e 1988) discute a necessidade de
uma visão mais ampla de avaliação da formação profissional e a avaliação de
programas específicos de formação profissional na indústria, respectivamente
Os textos da autora, uma pesquisadora ligada à área universitária e funcionária
do SENAI, refletem uma demanda de parte da sociedade brasileira que disputa
mudanças mais profundas na sociedade e cobram uma nova função social do
Sistema S. O tema da avaliação, nesse sentido, ganha proeminência. Outro
texto, de Muniz e Moreira (1986), centra-se em ampla avaliação da orientação
para o trabalho e orientação profissional, implantada no SENAC em 1981.
Discute os conceitos, a natureza do trabalho de orientação e os aspectos mais
amplos de natureza cultural que envolvem a orientação.
O último texto é o Relatório Final do Simpósio Nacional de Educação e
Trabalho do Jovem Brasileiro (MEC, 1985), promovido pela Comissão Nacional
do Ano Internacional da Juventude, uma promoção oficial dos ministérios da
Educação, do Trabalho, da Previdência e da Assistência Social e da Secretaria
de Planejamento da Presidência da República. O conteúdo reflete os debates
sobre a inserção precoce de crianças e jovens no trabalho, em detrimento do
direito à educação de primeiro e segundo graus, e tece críticas às políticas
focalizadas e fragmentadas, fortemente presentes no governo. Reflete, de outra
parte, a situação de estagflação e o conseqüente aumento do desemprego e da
pobreza, obrigando as famílias da classe trabalhadora a buscar estratégias de
sobrevivência no trabalho de crianças e adolescentes.

2.3. Anos 1990-1995 – A crítica à reestruturação produtiva e ao


determinismo tecnológico
A década de 1990, como já assinalamos, é de regressão do ponto de vista
de projeto societário. Uma característica mais geral dos textos selecionados na

78
PARTE I | AS DÉCADAS DE 1980 E 1990

década de 1990 é o fato de expressarem divórcio das reformas e políticas em


curso pelo governo.
Com ênfases diversas, os quatro textos selecionados no período de 1990
a 1995, caracterizam-se por uma postura crítica ao determinismo tecnológico
articulado à reestruturação produtiva e às demandas educacionais para um
“novo trabalhador”.
Costa (1994) aborda a questão da influência da visão liberal e a crise do
Estado nas reformas educativas em processo. Para o autor, o enfrentamento da
questão educacional exige mudanças no âmbito do Estado, todavia numa direção
diversa daquelas do “receituário internacionalmente hegemônico”. Entre os
aspectos contra-hegemônicos, assinala a necessidade do “aumento e redistribuição
dos recursos sociais e a retomada do desenvolvimento em novos padrões”.
Masson (1994) observa as demandas de educação e de formação
profissional em face das transformações no processo de produção capitalista.
Após analisar a especificidade das demandas de formação sob a organização
“taylorista-fordista” do trabalho e as demandas postas pelas novas tecnologias
e pelas mudanças da base produtiva, conclui destacando duas vertentes em
relação às mudanças tecnológicas e à formação do “novo trabalhador”. A
primeira, afirmativamente, destaca o fim do trabalhador cumpridor de ordens
e executor de tarefas, e a necessidade de um trabalhador com autonomia para
tomar iniciativas e com formação polivalente capaz de atender à diversificação
das demandas. A segunda, ao contrário, sustenta que não “há autonomia efetiva
do trabalhador, continuando o trabalho subordinado ao capital”. Para o autor,
não é “pela via da mudança tecnológica que poderá se processar a ruptura
com a dinâmica do ethos burguês do trabalho” (Masson, op. cit.: 45).
Em um texto que versa, também, sobre a inovação tecnológica e as
demandas de qualificação, Paiva (1994) trata das conseqüências do rápido
desenvolvimento tecnológico e das exigências que hoje são feitas ao ensino
profissional. Destaca a questão “da qualidade do ensino e da qualificação
intelectual no cerne da questão contemporânea”. Sustenta as teses, certamente
não consensuais, da tendência de “elevação da qualificação média” e de
“elevação absoluta da qualificação e sua redução relativa”. Enfatiza, em sua
análise, a “qualificação intelectual como a fonte da competência”. Realça a
idéia de que o pensamento abstrato é o fundamento da “aquisição de competências
de longo prazo”. Por fim, salienta que a tecnificação dos lares acaba demandando
maior letramento e qualificação da população. Na visão da autora, a elevação
da qualificação e de sua qualidade não se restringe ao preparo para o trabalho/
emprego, mas ao trabalho e às demandas da vida mais amplamente.

79
A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico

No último texto analisado nesse período, Secco (1995) apresenta uma


visão crítica ao pensamento dominante da reestruturação produtiva e de sua
relação com a educação. Com base nos trabalhos de Marx e de autores marxistas,
discute a relação entre o trabalho produtivo (o que produz mais-valia) e os
serviços educacionais. Discorda, nesse particular, de Dermeval Saviani, que
não considera adequada a distinção entre trabalho produtivo e improdutivo
no fazer pedagógico. Destaca que a distinção que Saviani efetiva é correta em
relação ao “trabalho economicamente produtivo, mas não atenta para o trabalho
socialmente produtivo”. O autor destaca que é possível pensar a educação na
perspectiva da emancipação dos trabalhadores e, conseqüentemente, como
exigência da superação sistêmica das relações capitalistas.

2.4. Anos 1996-2000 – A política educacional na contramão


O período 1995 a 2000 reúne o maior número de textos, 10, cuja natureza
podemos dividir em três categorias. Um primeiro grupo, com sete textos que, com
ênfases e ângulos diversos dão, continuidade ao tema das mudanças tecnológicas
na produção e as demandas na formação e na educação dos trabalhadores. Um
texto que discute a nova institucionalidade para a formação configura a segunda
categoria. Finalmente, no terceiro, dois textos discutem alternativas econômicas
e de desenvolvimento humano, e de geração de emprego e renda.
O texto mais amplo do primeiro grupo é de Shiroma e Campos (1997).
Trata-se de um balanço das pesquisas em educação que abordam o tema da
qualificação e reestruturação produtiva ao longo de uma década (1987-1997).
As autoras, de forma densa, expõem os principais embates que as pesquisas
revelam, tais como: teses da elevação da qualificação, como vimos em Paiva
(1995), ou desqualificação; conceituação de qualificação; formação polivalente
ou politécnica; centralidade da educação básica e a noção de empregabilidade.
As autoras chamam atenção para o fato de que estamos diante de uma nova
inflexão nos debates sobre educação, que faz reaparecerem, com outras
roupagens, velhos temas
da psicologia social, da aprendizagem, da personalidade e, paralelamente, um
renascimento da economia da educação que se concentra na rentabilidade do
investimento. (...) de igual modo, há a ênfase nos temas da competência, da
habilidade de gestão e da qualidade total (Shiiroma e Campos, op. cit.: 30-31).

Num recorte mais específico, Tumolo (1997) também tem como objetivo
um balanço das análises e críticas ao modelo japonês de organização do
trabalho, bem como apontar seus limites quando se toma como referência a

80
PARTE I | AS DÉCADAS DE 1980 E 1990

atual fase de acumulação flexível do capital. Para o autor, a superação desses


limites implica enfrentar o caminho complexo seguindo o método “que vai do
concreto aparente até o mergulho ao concreto pensado”, referência ao Método
da Economia Política em Marx.
Soares (1997) parte da constatação de que há poucas análises no campo
educacional que debatem o conceito socialista de educação na “tendência do
novo ordenamento mundial, onde se configura a crise do ‘socialismo real’”.
Discute, por outro lado, a questão de que o debate sobre a concepção socialista
de educação no Brasil não teve como referência a experiência do socialismo
real, mas, sim, a filosofia política do socialismo. Constata que, tanto antes da
crise do socialismo real quanto depois, o conceito socialista de escola permanece
confuso. A autora não aprofunda nenhuma das questões que levanta, propondo-
se, apenas, a registrar “notas introdutórias”.
A análise de Silva (1996) centra-se sobre os aspectos finais da análise
de Shiroma e Campos (1997), debatendo a retórica da qualidade total no
projeto educacional da “nova” direita. O autor sinaliza que, na óptica neoliberal,
há uma estratégica retórica cujo propósito se resume: no deslocamento das
relações de poder e de desigualdade para o gerenciamento dos recursos; na
culpabilização das vítimas da pobreza e da exclusão; na despolitização e
naturalização do social; na demonização do público e santificação do privado;
e no apagamento da memória e da história. Esse deslocamento é produzido
pela ideologia do gerenciamento da qualidade total, que expressa uma visão
tecnocrática, empresarial, pragmática e instrumental de qualidade. Para o autor,
a disputa e a luta política são por uma qualidade efetivamente democrática e
substantiva de qualidade, contra a escola excludente.
O artigo de Paiva (1999) é, em realidade, continuidade do texto de
1995, aqui analisado, com ênfase numa abordagem mais ampla, a “nova relação
entre educação, economia e sociedade”. A autora destaca as mudanças
profundas ocorridas nas duas últimas décadas entre qualificação e renda, como
conseqüência da transformação produtiva e organizacional. Há, de um lado,
uma redução drástica do emprego e, de outro, uma tendência à elevação da
qualificação. Reitera também, nesse texto, que a precedência da formação
geral se justifica não só em relação às demandas da estrutura produtiva e do
emprego formal, mas em função de um crescente número de pessoas que
necessitam de outras alternativas de inserção no mundo do trabalho.
Tendo como foco uma abordagem histórica, Pronko (1998) destaca a
disputa entre capital e trabalho na concepção e na formulação de políticas de
formação técnico-profissional no Brasil. Nesse inventário a autora constata

81
A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico

que o que prevalece é a história dos vencedores. De outra parte mostra que o
Estado brasileiro, recorrentemente ao longo da história, delegou as políticas
de formação dos trabalhadores. Como conseqüência, constata que há poucos
registros de experiências de formação profissional das organizações dos
trabalhadores, e, nesse quadro, a disputa torna-se desigual.
O texto de Manfredi e Bastos (1997), de certa forma, minimiza a ausência
de registro de experiências dos trabalhadores na organização e execução de
sua formação profissional, referida por Pronko. As autoras tratam, justamente,
das “experiências e projetos de formação profissional entre trabalhadores
brasileiros”. Após um breve histórico da preocupação do movimento sindical e
popular com a formação dos trabalhadores na perspectiva de seus interesses,
analisam o conjunto de organizações que fazem parte do Conselho de Escolas
de Trabalhadores, algumas de suas experiências de formação e as concepções
que as embasam. Em seguida, discutem as propostas de formação profissional
no âmbito da CUT e da Força Sindical, e concluem que essas experiências
têm a possibilidade de
romper alguns monopólios, tradicionalmente detidos por especialistas em
educação e por representantes de empresários, bem como tenderá a alargar as
fronteiras e os limites em que vêm sendo concebidas e desenvolvidas as políticas
públicas de educação básica e de educação profissional no Brasil (Manfredi e
Bastos, op. cit.: 138).

A segunda categoria de análises desse período, em verdade, tem um


texto apenas, que é também o único a expressar e assumir abertamente a visão
dos organismos internacionais e dos governos latino-americanos a eles
subordinados sobre as justificativas das reformas da educação profissional e de
sua mudança de concepção e de institucionalidade. Trata-se de um texto
escrito por Weimberg (1996), diretor do Cinterfor/OIT.
Em sua análise, o autor advoga a necessidade de uma nova
institucionalidade da formação profissional como decorrência
do processo de globalização econômica e seu correlato, que foram as políticas
de abertura em nível nacional; a transformação tecnológica e a sua repercussão
sobre os processo produtivos; o papel regulador atribuído ao Estado; a ampliação
da cobertura dos sistemas educativos; e a nova organização do trabalho
(Weimberg, op. cit.: 3).

A nova institucionalidade começa pela mudança conceitual de formação


centrada nos seguintes aspectos: a formação e seus vínculos com o sistema de
relações trabalhistas; a formação como parte do processo de transferência de

82
PARTE I | AS DÉCADAS DE 1980 E 1990

tecnologia; a formação enquanto fenômeno educativo, articulado coma as


esferas do trabalho e da tecnologia; e, por último, a formação para as
competências, que supera as simples qualificações
Como evidências de reformas que pautam essa nova institucionalidade,
toma como exemplos, com suas particularidades, o Brasil, o México e a Colômbia.
No caso do Brasil, o autor refere-se às mudanças na formação profissional para
adaptá-las aos processos de mudanças aqui referidos, qualificando-as de
“engenhosas”. É um texto que traduz de forma detalhada os pressupostos e as
concepções de reforma da educação profissional sob a orientação dos organismos
internacionais.
Por fim, dois textos do período de 1995 a 2000 trazem ao debate uma
problemática que tem ganhado no Brasil, como em outras partes da América
Latina, cada dia mais espaço. Se, no final da década de 1980, alguns autores
questionavam a categorização da economia ou do mercado formal e informal
mostrando sua incapacidade para captar a heterogeneidade econômica e do
mundo do trabalho, esse debate vai ganhar centralidade na segunda metade
da década de 1990. Com efeito, várias denominações buscam dar conta das
estratégias de sobrevivência de milhões de trabalhadores expulsos e não mais
necessários no sistema de emprego formal. Entre as denominações em debate,
encontramos; por exemplo, economia solidária, economia cooperativa, economia
popular, economia social, economia de sobrevivência e economia subterrânea.
Um dos autores que se tem ocupado desse debate de forma intensa na
América Latina é José Luiz Coraggio. Em seu texto, Coraggio (1997) expõe a
proposta da economia popular a partir de um debate mais amplo das “alternativas
para o desenvolvimento humano em um mundo globalizado”. Situa sua análise
em um contexto histórico em que o Estado tinha força de regular o capital e o
mercado e, como tal, podia efetivar políticas econômicas e sociais. A
globalização constitui-se em um processo de ruptura dos mecanismos que
regulavam o capital, deixando-o livre em nível mundial. As conseqüências
dessa desregulamentação têm sido o desemprego e o subemprego estruturais e
a precarização da vida de milhões de seres humanos.
O autor discute a idéia de desenvolvimento humano centrado nos direitos
sociais, cujo aspecto fundamental é o direito à reprodução da vida dignamente.
Como perspectiva de travessia, analisa a economia popular, situando-a como um
terceiro pólo. O pólo dominante é o da economia empresarial, centrada na
“acumulação de capital”; o segundo pólo é o da economia pública, que busca a
“acumulação e legitimação de poder”; finalmente, o pólo da economia popular
tem o objetivo da “reprodução ampliada da vida”.

83
A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico

Em relação à viabilidade da convivência desses três pólos, o autor se


pergunta: “é possível construir tal subsistema sem pretender a grandiosa tarefa
de substituir o sistema capitalista?” Os desdobramentos de sua análise nos
conduzem a uma resposta negativa. Se a realidade dada impõe uma travessia
em que velhas e novas relações convivem, a possibilidade de relações sociais
centradas na reprodução ampliada da vida, para todos, demanda um projeto
de lutas capaz de instaurar novas relações jurídicas, políticas e culturais que
rompam com o modo de produção social capitalista.
No campo de alternativas ao desemprego estrutural, Abreu, Jorge e
Sorj (1997) analisam projetos de geração de renda para mulheres de “baixa
renda” como alternativa ao desemprego estrutural. Analisam quatro grupos
de produção em que atuam mulheres de baixa renda e sinalizam que, com
políticas públicas de apoio, é possível melhorar a qualidade de vida e ampliar
a renda desses grupos.
A análise que os autores efetuam tem um horizonte mais restrito, pontual
e conformista em relação à proposta de Coraggio. Com efeito, ao constatarem
a impossibilidade do pleno emprego e a situação de um enorme contingente de
mulheres com pouca ou nenhuma qualificação, o que parecem propor é o menos
pior. Construir, “fora do eixo central do mercado”, formas de trabalho para
mulheres pobres.

3. O estado-da-arte das políticas de formação profissional dos anos


1980 e 1990 – Uma síntese aproximada
Os textos selecionados permitiram diversos recortes na leitura das
questões que emergiram da literatura especializada da época. Além da produção
acadêmica de caráter mais geral apresentada na seção anterior, foram realizados
estudos específicos sobre alguns temas (Campello e Ciavatta, 2005; Ciavatta,
2005; Corrêa, 2005; Fonseca, 2005; Frigotto, 2005; Frigotto e Ciavatta, 2002 e
2005; Handfas, 2005; Lobo Neto, 2005; Ney, 2005; Oliveira, 2005; Ramos, 2005;
Santos, 2005; Trein e Ciavatta, 2005).
Cada conjuntura tem seus determinantes estruturais e questões
particulares à história que se desenvolve naquele momento. Os fenômenos
educacionais são parte do conjunto de relações sociais desses diversos momentos
históricos. A literatura produzida nos meios acadêmicos, publicada ou não,
apresenta grande heterogeneidade, seja quanto às análises e aos enfoques
teóricos, seja quanto aos veículos utilizados para divulgação ( papers não
publicados, publicação on-line, artigos publicados em revistas, capítulos em
livros, teses ou dissertações, relatórios de pesquisa, livros etc.). Nosso trabalho,

84
PARTE I | AS DÉCADAS DE 1980 E 1990

que cobriu 20 anos de publicação de artigos em 13 periódicos especializados,3


selecionando 211 artigos sobre a temática da pesquisa, evidencia essa
heterogeneidade na produção (ver Relação de artigos selecionados, em anexo).
Certos temas catalisam um grande número de artigos, outros são apenas
residuais; alguns perpassam todas as conjunturas, outros são específicos de um
certo momento, acompanhando a emergência de uma lei ou de um movimento
na sociedade e os debates a respeito.

3.1. A educação na “transição para a democracia”


O tema da transição para a democracia dominou o debate acadêmico
durante, aproximadamente 10 anos, do início do Governo João Figueiredo
(1979) até o final do Governo José Sarney (1989). A passagem dos regimes
autoritários para sistemas representativos no Brasil, como em outros países latino-
americanos, trouxe, como tema político maior, a questão da “transição para a
democracia”. “Observa-se que as sociedades latino-americanas, em processo
de ‘transição para a democracia’, são sociedades parcialmente modernas,
altamente dependentes e atravessadas por elementos autoritários profundamente
enraizados na vida social.” Esses são fenômenos que se articulam e se combinam
de modo heterogêneo em cada caso. Acrescente-se, ainda, na análise do
fenômeno, a importação de modelos de interpretação que homogeneizam as
potencialidades de cada país, desprendendo-as de sua especificidade histórica
(Ciavatta, 2002, p. 88).
Os anos 1980 são marcados por três grandes questões: o esgotamento da
profissionalização obrigatória, implantada pela Lei n. 5.692/71; a discussão da
relação trabalho e educação versus educação e mercado de trabalho; a educação
na Constituinte; e a nova lei da educação. Um texto preliminar à presente
pesquisa, germe do qual ela se originou, vem de um projeto de pesquisa
desenvolvido de 1984 a 1990 (Frigotto, Ciavatta Franco e Magalhães, 1992),
sobre melhoria e expansão do ensino técnico industrial no Brasil. Nele,
faz-se uma crítica aos programas de ensino técnico centrados em uma visão
produtivista, fragmentária e adaptativa do conhecimento, quando a revolução
científico-tecnológica estabelece mudanças profundas na sociedade, exigindo
uma formação mais complexa, abstrata e polivalente (Frigotto, Ciavatta Franco
e Magalhães, op. cit: 1).

3
Boletim Técnico do SENAC, Cadernos CEDES, Cadernos de Pesquisa/FCC, Cadernos UFPel, Educação &
Contemporaneidade, Educação e Sociedade/CEDES, Educação e Tecnologial Educacional, Em Aberto/INEP,
Fórum Educacional/IESAE-FGV, Revista de Educação/PUC-SP, Revista do NETE/UFMG, Revista Proposta.

85
A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico

O Governo Sarney alardeara a criação de “200 escolas técnicas”, e a


idéia de que a educação tinha por horizonte o “mercado de trabalho”, em uma
“sociedade onde 50% ou mais da PEA (população economicamente ativa)
está no setor informal da economia” (id. ibid.: 40). E, acrescenta-se no qual o
paradigma taylorista-fordista de organização do trabalho e de qualificação
técnica não dá mais conta dos processos produtivos que apontam para a
revolução científico-tecnológica com base na microeletrônica e seus
desdobramentos no campo da informática, da robótica, da biotecnologia,
engenharia genética etc.
O texto contrapõe-se à visão dualista do ensino, postulando uma escola
unitária4 e o primeiro e segundo graus concebidos como educação básica ou
fundamental; denuncia o clientelismo político em jogo no programa e o
esmaecimento do caráter federal e público do ensino técnico industrial – o
que viria a ser o programa de governo implementado nos anos 1990 pelo MEC.
A discussão da relação trabalho e educação versus educação e mercado
de trabalho é analisada em dois estudos para esse estado-da-arte (Oliveira,
2005; Lobo Neto, 2005). Em um dos trabalhos, Ramon de Oliveira (2005) chama
a atenção para “a inquietação da comunidade acadêmica sobre a necessidade
de se constituir uma identidade para o ensino médio” e para as reformas
conduzidas sem a participação de setores mais amplos da sociedade. Registra
ainda a questão do papel centralizador do Estado e a participação da sociedade,
restrita aos setores ligados à economia.
Referindo-se à reforma conduzida pela Lei n. 5.692/71, destaca que a
“última reforma do ensino médio e da educação profissional teve forte
intervenção das agências multilaterais e de parte do empresariado brasileiro”
que, com propostas economicistas, promoveram um “reducionismo pedagógico”
para atender exclusivamente ao setor produtivo. A escola assume o papel de
formadora de capital humano. Na formação profissional, os currículos são
pautados pelo pragmatismo e pelo imediatismo da formação especializada
(Oliveira, op. cit.: 3-5).
Os limites da lei revelam-se ao tratar a relação trabalho/educação como
a relação entre educação e mercado de trabalho; em sua inadequação à

4
Para Gramsci, a escola unitária implica que o Estado assuma todos os gastos com a formação das novas
gerações, sem divisão de classes e grupos. “A escola unitária ou de formação humanística (entendendo
o sentido humanístico no sentido amplo e não apenas no sentido tradicional) deveria propor-se introduzir
na atividade social dos jovens, depois de tê-los levado a um certo grau de maturidade e capacidade,
à criação intelectual e prática e de autonomia na orientação e na iniciativa” (Gramsci, 1981, p. 121).

86
PARTE I | AS DÉCADAS DE 1980 E 1990

clientela que buscava o ensino médio; na inadequação aos recursos humanos


e dos recursos materiais disponíveis para atuar na formação profissional, com a
conseqüente concentração dos cursos no setor terciário, que envolve menores
investimentos; e na frustração de seus objetivos de estender a formação a todos
os estudantes, eliminar o dualismo entre a escola de formação geral e a
profissionalizante e oferecer alternativa à educação superior (id. ibid.: 5-6). A
profissionalização compulsória, tão criticada e ultrapassada na prática,
principalmente pelos setores mais descontentes – as grandes escolas privadas
que preparam para o ingresso no ensino superior –, foi tornada opcional pela
Lei n. 7.044/82.
O estudo de Francisco José da Silveira Lobo Neto (2005) estende a
discussão crítica sobre o trabalho e a educação ao tempo de sua discussão, ao
tempo da Constituinte e à formação dos trabalhadores. É um tempo que antecede
a promulgação da Constituição de 1988 e se prolonga depois dela na discussão
sobre a nova LDB, que viria a ser concluída em 1996. O tema novo introduzido
no tempo da Constituinte é a discussão da lei nos termos da “formação do
cidadão trabalhador”. As questões norteadoras do debate são “a tecnologia na
redefinição do modo de produzir, a busca de uma nova concepção do ensino de
segundo grau e a formação do sujeito da prática social: o cidadão trabalhador”.
Redefinem-se “as características da produção industrial: os parâmetros
quantitativos dos processos massivos são substituídos pelos parâmetros
quantitativos”, ocorrendo crescente subordinação ao sistema de divisão
internacional do trabalho. Revela-se nos estudos acadêmicos o que já vinha
acontecendo desde a década de 1970 nos países de capitalismo central, “a
reorganização do sistema de produção mundial” para que os países avançados
se dedicassem à pesquisa e ao desenvolvimento com a incorporação da ciência
e da tecnologia aos processos produtivos e, conseqüentemente, tivessem maior
controle sobre a produção industrial nos países da periferia do capital (Lobo
Neto, op. cit.: 3-5).
Essa realidade social impõe uma nova concepção de ensino de segundo
grau e de formação profissional. Os textos produzidos destinam-se a pensar a
educação escolar, mas há também um deles que busca oferecer uma reflexão
ao movimento sindical. “Para superar a visão de profissionalização,
recorrentemente criticada, a educação deve contemplar as exigências e
contradições na qualificação, postas pelo desenvolvimento científico-
tecnológico, precisa direcionar-se para os interesses dos trabalhadores, e o
ensino técnico precisa centrar-se no domínio de princípios que permitam
entender o capitalismo contemporâneo” (id. ibid.: 6-7).

87
A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico

3.2. O projeto neoliberal no trabalho e na educação


O projeto neoliberal dominou a cena política, econômica e educacional
nos anos 1990. Os primeiros anos da década são marcados pelo Governo Collor,
cuja herança de abertura dos mercados e globalização sob o ideário neoliberal
vai ser implementada pelos governos subseqüentes, em particular por F.H.
Cardoso durante seu mandato de oito anos (1994-2002).
A produção acadêmica do período supera em muito a quantidade de
textos publicados sobre a temática que se concentra sobre a reestruturação
produtiva e suas conseqüências para a educação. Com focos analíticos
particulares aos temas dos artigos selecionados, os estudos produzidos para o
estado-da-arte ocupam-se de algumas questões específicas, tendo como pano
de fundo as grandes questões do período: a produção de conhecimento voltada
para a reestruturação produtiva e as transformações tecnológicas, a nova
organização de trabalho, o desemprego e o trabalho precarizado, os novos sujeitos
sociais e a nova cultura do trabalho. No âmbito da educação, discutem-se as
novas exigências de qualificação dos trabalhadores, a nova Lei de Diretrizes e
Bases da Educação Nacional – LDB (Lei n. 9.394/96), que viria a ser promulgada
quase 10 anos depois de sua primeira versão, de 1988, e seus desdobramentos
legais que deram forma à reforma do ensino médio e técnico (Santos, 2005,
Fonseca, 2005; Ney, 2005; Handfas, 2005, Corrêa, 2005).
Jailson dos Santos e Laura Souza Fonseca centram sua análise na reforma
do Estado, na reestruturação produtiva e no sistema educacional, em particular,
a educação profissional, conforme a terminologia da nova LDB. A “reestruturação
produtiva se expressa pela adoção de novas tecnologias que se articulam com as
novas formas de organização e de gestão da produção, e se baseia
fundamentalmente no modelo japonês – o toyotismo”. Acompanha-a o desemprego
com a “redução drástica do quadro de empregados”, tanto de operários quanto
de postos mais altos na hierarquia, com conseqüências para o chão da fábrica,
no comportamento psicossocial e nas formas de atuação do trabalhador e na vida
privada das famílias, na sociedade como um todo (Santos, 2005: 5-7).
No âmbito das empresas, a qualidade tornou-se meta fundamental
quando “o capital passou a estabelecer padrões rígidos através de ISO 9000”,
incluindo a reconversão profissional, que a partir de então é desenvolvida por
meio de estratégias de negociação e de gerenciamento por iniciativa do poder
público e do Sistema Nacional de Aprendizagem Industrial – SENAI, no âmbito
da gestão, com entidades representativas de trabalhadores, dos empresários e
do governo, e de outras instituições da sociedade civil. “De acordo com alguns

88
PARTE I | AS DÉCADAS DE 1980 E 1990

analistas, as empresas passaram a empreender esforços no sentido de qualificar


sua força de trabalho e passaram a exigir do Estado que equipasse o seu sistema
educacional com o objetivo de elevar o nível de escolaridade dos trabalhadores”
(id. ibid.: 8-11).
Outros aspectos da modernização tecnológica e da expansão do capital
sob a ideologia do Estado mínimo são a terceirização e privatização dos serviços,
a apropriação privada da esfera pública, o congelamento dos salários do
funcionalismo público e a redução de seus quadros. Há uma tentativa de atenuar
os efeitos das mudanças no mundo da produção mediante políticas de formação
profissional. Incentiva-se a privatização progressiva de instituições públicas
(como os Centros Federais de Educação Tecnológica e as Escolas Técnicas)
por mecanismos de aproximação com as empresas e de apoio governamental
(Fonseca, 2005).
Os textos analisados recuperam a história do ensino técnico e da formação
profissional no país, analisam os vínculos da escola com a produção capitalista,
retomando antigas discussões sobre a teoria do capital humano e seus críticos.
À “lógica do mercado” instalada na educação profissional, opõe-se a “lógica
da cidadania”, em que se inserem o debate sobre a politecnia e a crítica ao
dualismo entre a educação básica e a formação profissional. À educação
politécnica, opõe-se o treinamento polivalente “descrito como uma educação
de caráter geral, abrangente e abstrata, habilidade prática e capacidade de
raciocínio abstrato, domínio de algumas funções determinadas e conhecimento
de algumas funções conexas” (Fonseca, op. cit.: 7 e 16), o que expressa o novo
ideário da educação.
Antonio Fernando Vieira Ney focaliza, especificamente, a reforma do
ensino técnico de nível médio no final dos anos 1990, “tendo por objetivo
investigativo a materialização da política educacional do governo FHC para a
educação profissional.5 A concepção dual da reforma do ensino médio técnico,
o embate entre a perspectiva humanista e a visão mercantil das competências,
a reforma curricular, a educação tecnológica e a nova legislação” são os temas
tratados (Ney, 2005, p. 1).
Alguns autores, idealizadores da reforma concretizada pela
regulamentação dos artigos 39 a 42 da Lei n. 9.394/96 pelo Decreto n. 2.208/
97, ou com ela afinados, prevêem a formação do “cidadão produtivo” de perfil

5
Foi a LDB (Lei n. 9.394/96) que introduziu a expressão “educação profissional” (Cap. III, art. 39 a 42)
em substituição à expressão tradicional na educação brasileira e de outros países de línguas neolatinas
“formação profissional”.

89
A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico

multifuncional, polivalente e flexível, adequado à visão mercantil das


competências. O aspecto mais impositivo do decreto foi a separação do ensino
médio da educação profissional nas escolas técnicas federais (com repercussão
na forma de modelo para os estados), em um processo semelhante ao da formação
modularizada e fragmentada, voltada para funções especificadas nas indústria,
oferecida pelo Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial – SENAI (id.
ibid.: 4-7 e 19).
Também em pleno Governo FHC, os artigos selecionados que são objeto
da análise de Anita Handfas, reiteram o enxugamento das funções do Estado,
as medidas de restrição ou de eliminação do protecionismo do mercado interno,
a desregulamentação das relações de trabalho e redução dos direitos sociais e
do trabalho. Reitera-se, também, “o discurso sobre a urgência de formação de
um ‘novo’ tipo de trabalhador, autônomo e coletivo”, à medida que avança a
introdução de novas tecnologias na produção (Handfas, 2005, p. 1).
Vale destacar um tema que recebeu raro tratamento acadêmico no
período, a educação profissional promovida pelo Plano Nacional de Formação
– PLANFOR-MTE, que propunha “uma educação profissional baseada numa
nova dinâmica de acumulação capitalista, onde o Estado deixa de ter papel
regulador e as instituições da sociedade civil passam a exercer papel
importante na condução direta das atividades educacionais” ( id. ibid.: 6).
Os temas da formação ou da educação profissional, da politecnia, da
polivalência, da qualificação e das competências vão ser tratados sob
diferentes enfoques pelos autores.
Em uma análise final das duas problemáticas presentes nos artigos
selecionados, “a globalização e a formação profissional”, que “estaria pautada
na concepção do mercado e dos homens de negócio, onde a qualificação
passaria a ser vista como condição para que o indivíduo possa se adaptar ao
mercado” (id. ibid.: 3) e “as mudanças nos processos de trabalho e educação”,
em que estão presentes diversos aspectos da questão e suas contradições.
Essas, porém, “não representam por si só qualquer mudança estrutural do
modo de produção, mas, pelo contrário, apenas reproduzem o capitalismo
numa outra escala” (id. ibid.: 13).
Handfas conclui ressalvando a contribuição das análises, mas destacando
sua insuficiência por partirem do discurso dominante sobre a formação de um
“novo” trabalhador, seja para atender ao mercado, seja pela crítica a esse discurso:
Dessa forma, a ‘crítica’ se limita a reivindicar um tipo de formação mais
humanizada, num discurso bastante identificado como o discurso dominante.
Afinal, são vários os exemplos à nossa disposição de um otimismo exacerbado

90
PARTE I | AS DÉCADAS DE 1980 E 1990

no que diz respeito às perspectivas de trabalho e do trabalhador,6 muito


semelhantes, vale dizer, a muitos discursos ‘críticos’ que encontramos
(id. ibid.:14).

O tema da formação para a reestruturação produtiva, para a nova


organização do trabalho, o desemprego, a precarização das relações de trabalho
e a informalidade, repercutiu no sentido dos estudos da nova cultura do
trabalho, das novas subjetividades e identidades dos trabalhadores. É o que
revela o estudo para o estado-da-arte de Vera Corrêa.
Um primeiro conjunto de artigos selecionados trata das abordagens da
nova cultura do trabalho em relação ao mercado de trabalho de transição, à
regulação pública ativa, à economia popular, às relações das mulheres com o
trabalho, a projetos de geração de renda e a campos profissionais da “nova era
capitalista”. As novas situações que conduzem a uma nova cultura do trabalho
são analisadas: “pelo aspecto libertador do descentramento do trabalho, permitindo
que o indivíduo possa ajustá-lo a seu ritmo de vida”, e “pelo aspecto da penalização
do trabalhador diante da crise do emprego” (Corrêa, 2005: 2-3).
Entre as questões abordadas pelos autores que “mais diretamente tratam
das questões relacionadas com a produção de identidades e de subjetividades”
estão as “concepções sobre seu processo de produção, qualificação, diferença,
‘trabalhador flexível’, socialização pelo trabalho e socialização alternativa”.
Há ausência do conceito de classe e do trabalho assalariado nessas concepções.
Mas “se o trabalho assalariado não é mais definidor de identidades, quais os
novos elementos estruturantes na conformação de identidades?”, pergunta-se.
Para as autoras de alguns dos trabalhos examinados, “o consumo vem se tornando
um elemento importante na conformação de novos estilos de vida, identidades
e hierarquias sociais”. Há ainda “a fragmentação do espaço social [que] trouxe
implicações para a produção de identidades coletivas e para o surgimento de
novas formas de sociabilidade” (id. ibid.: 15-18).

4. A título de conclusão
Tratamos, ao longo deste texto, de três ordens de questões. O caráter
breve da análise, em cada item, permite apenas conclusões indicativas. A
análise de caráter estrutural da construção da formação social brasileira,

6
“Por exemplo, as palavras de José Pastore (...). Para ele, está claro que o mundo do futuro exigirá muita
educação e profissionais polivalentes, multifuncionais, alertas, curiosos – pessoas que se comportam
como o aluno interessado o tempo todo” (Pastore, J. O futuro do trabalho no Brasil. Em Aberto, v. 15,
n. 65, Brasília: INEP, jan./mar. 1995.

91
A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico

tomando-se longo ou médio tempo histórico, sinaliza um reiterado rearranjo


das relações de poder da burguesia, acertando suas lutas internas na busca da
acumulação ampliada do capital. Trata-se de um processo histórico comandado
pela revolução passiva, pelo transformismo ou pela modernização conservadora.
Esse processo tem mantido intactas as estruturas sociais e de poder que geram
a desigualdade, o aumento da concentração de renda e da degradação da
qualidade de vida da classe trabalhadora. Aprofundou-se, por outro lado, a
relação de vinculação associada e subordinada da burguesia nacional com os
centros hegemônicos do capital mundial.
No plano ideológico, estiveram presentes ao longo do século XX
especialmente, projetos de democracia popular e projetos que sinalizam a
ruptura com as relações sociais capitalistas, na medida em que existam sujeitos
sociais que se oponham à ordem destrutiva do capital.
Os textos selecionados na caracterização geral das duas décadas captam,
mas apenas parcialmente, os embates no campo da educação. O denso e amplo
debate das Conferências Brasileiras, das reuniões anuais da Associação Nacional
de Pesquisa e Pós-Graduação –ANPEd e dos Congressos Nacionais de Educação
– CONEDs não está suficientemente representado nos textos. O debate sobre
a escola pública, gratuita, laica, universal e unitária, e aqueles sobre a
perspectiva da polivalência e politecnia também estão marginalmente presentes.
Por fim, se de fato, de forma quase total, positivamente os textos são
críticos às concepções e às políticas, especialmente em relação à reestruturação
produtiva e ao determinismo tecnológico, contraditória e negativamente revela-
se o campo crítico que, praticamente, abandonou a produção dentro da agenda
da escola unitária e politécnica ou sua veiculação em periódicos especializados
em favor de outras frentes de debate. Em síntese, o estado-da-arte expressa,
dominantemente, a crítica, mas não a retomada, a ampliação e o
aprofundamento das concepções societárias e educacionais, que reforçam as
possibilidades de ruptura com as relações sociais e educativas capitalistas.

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96
PARTE I | AS DÉCADAS DE 1980 E 1990

CAPÍTULO 4 | A PRODUÇÃO CAPITALISTA, TRABALHO


E EDUCAÇÃO: UM BALANÇO DA DISCUSSÃO
NOS ANOS 1980 E 1990

EUNICE TREIN
MARIA CIAVATTA

Introdução
Este texto é parte de um estado-da-arte1 sobre concepções e políticas
do ensino médio técnico nos anos 1980 e 1990, a partir do levantamento
realizado sobre artigos publicados em revistas especializada na área de educação,
no período. Os trabalhos selecionados para o tratamento do tema proposto
abordam de grandes questões da economia e da política educacional, questões
que vão constituir os tópicos principais deste texto:
(i) trabalho, capital e desenvolvimento, em que são enfocadas as seguintes
questões: a crítica à educação como mercadoria (Gandini, 1980); programas
de treinamento e desenvolvimento de recursos humanos (Tomei, 1989); a
reinserção de pessoas qualificadas no mercado de trabalho (Paiva, 1998); as
mudanças na ocupação e a formação profissional Pochmann (2000).
(ii) a história do ensino médio e da formação profissional: a evolução
quantitativa do ensino de segundo grau (Rosemberg, 1989); a educação para
atender às demandas da produção (Fonseca, 1985; Brandão, 1999);
(iii) balanço crítico da área trabalho e educação no Brasil: (Madeira,
1984; Trein e Ciavatta, 2003).
Para compreender as transformações dos processos educativos, é
importante que se apreendam as relações, as tensões e os conflitos entre as
mudanças conjunturais e a materialidade estrutural de uma determinada

1
Sobre estado-da-arte, ver Brandão et al. (1983), Ciavatta Franco e Baeta (1985), Kuenzer (1987),
Frigotto e Ciavatta (2001).

97
A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico

sociedade, que, em verdade, formam o tecido social que nos permite


compreender, de forma dialética, o sentido e a natureza das alterações em um
determinado momento histórico. A complexidade da apreensão do sentido e
da natureza destas mudanças amplia-se quando o tecido estrutural da
sociedade, em suas múltiplas dimensões, apresenta tensões e mudanças abruptas
e profundas, sem, todavia, haver uma ruptura do modo de produção.
A partir, sobretudo, dos anos 1980, o mundo foi palco de profundas
mudanças políticas com a crise e o colapso do socialismo real e a emergência
da ideologia e das políticas neoliberais; mudanças socioeconômicas com a
afirmação de uma nova base científico-técnica do processo produtivo e a
mundialização do capital (Chesnais, 1996, Harvey, 1993), e com o
monopólio da mídia acelerando as mudanças nos âmbitos ideológico e
cultural (Frigotto e Ciavatta, 2001). Essa complexidade é sobredeterminada
pela crescente desigualdade que se produz internamente, nos países, e
entre os centros orgânicos do capital e o capitalismo periférico. (Arrighi,
1996 e 1998).
Do ponto de vista teórico-metodológico, a área trabalho e educação
tem como eixo teórico orientador a crítica à economia política que conduz a
uma visão histórica da relação entre o mundo do trabalho e a educação,
buscando compreender as diferentes mediações sociais constitutivas dessa
relação que devem ser reconstruídas no nível do discurso.
Tanto o trabalho quanto a educação ocorrem em uma dupla perspectiva.
O trabalho tem um sentido ontológico, de atividade criativa e fundamental da
vida humana; e tem formas históricas, socialmente produzidas, em particular,
no espaço das relações capitalistas (Lukács, 1978). A educação tem seu sentido
fundamental como formação humana e humanizadora, com base em valores e
em práticas ética e culturalmente elevados; e também ocorre em formas
pragmáticas a serviço de interesses e valores do mercado, da produção
capitalista, nem sempre convergentes com seu sentido fundamental (Frigotto
e Ciavatta, 2001).
Esses dois sentidos expressam, no plano macrossocial, a estrutura de classes
da sociedade capitalista e a divisão social do trabalho manual/trabalho
intelectual. Nas últimas décadas, as diversas forças políticas do país têm-se
confrontado entre estes dois sentidos básicos do trabalho e da educação: ou a
formação profissional destina-se a preparar mão-de-obra para o mercado de
trabalho, mediante o treinamento em empresas ou em escolas do Sistema S e
outras afins; ou luta-se para integrar à preparação operacional elementos
científico-tecnológicos e histórico-sociais, de modo a ampliar o horizonte de

98
PARTE I | AS DÉCADAS DE 1980 E 1990

compreensão do jovem e do adulto trabalhador para a produção e a apropriação


privada da ciência e da tecnologia que regem o mundo da produção.2

1. Trabalho, capitalismo e desenvolvimento


No Brasil, vivemos o aprofundamento das mudanças ocorridas nas relações
econômicas, sociais e culturais que reclamam políticas públicas para enfrentar
os rebatimentos da crise estrutural do capital nas variadas formas que ela assume
na realidade brasileira.
As políticas de desmonte do Estado, iniciadas nos anos 80 do século
passado, fizeram com que, hoje, as políticas governamentais sejam de incentivo
à sociedade civil para que ela se some às ações de políticas públicas sociais e,
assim, contribua para minimizar os danos concretos impostos à classe
trabalhadora pelo ideário do Estado mínimo.
O que observamos em nossa sociedade não é um fato isolado; insere-se
num quadro de mundialização do capital (Chesnais, 1996) com trágicos
desdobramentos nos países periféricos (Arrighi, 1998), tais como aumento da
concentração de renda, disparidade crescente nos níveis de escolaridade da
população, acesso precário à informação, mercantilização da cultura e da
ciência, subordinação aos padrões produtivos poupadores de força de trabalho,
tanto no setor primário quanto no industrial e de serviços. Esse quadro é
acompanhado da ampliação dos requisitos de formação geral e técnica para
trabalhos simples, pelo aumento da oferta de força de trabalho qualificada,
sem incremento nos salários.
Todas essas questões fragilizam um projeto de sociedade apoiado numa
ilusão desenvolvimentalista que desde os anos 30 nos acompanha enquanto
Estado-Nação e que assumiu diversos matizes, destacando-se nos períodos que
compreendem a era Vargas e os governos subseqüentes – Juscelino Kubitschek,
João Goulart, a ditadura militar –, encerrando-se com Fernando Collor e Itamar
Franco. Os dois governos de Fernando Henrique Cardoso consolidaram as
propostas do Estado mínimo, da abertura da economia ao capital internacional

2
No momento em que redigíamos este texto, essa disputa teve mais um lance com a revogação da Portaria
n. 646/97 e do Decreto n. 2.208/97 que separaram o ensino médio da educação profissional, e a
aprovação do Decreto n. 5.154/2004, que restabelece, nas escolas, o estímulo legal para a educação
profissional integrada ao ensino médio. Contraditoriamente, o governo anunciava o projeto de criação
de 500 “escolas de fábrica” para jovens aprendizes, sob a orientação do Movimento Brasil Competitivo
– MBC, de iniciativa de empresários (Escola, 2004).

99
A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico

e da financeirização econômica atingindo o setor produtivo, debilitado por


uma década de estagnação durante os anos 80 e que pouco se recuperou na
última década e meia.
Por isso, no Brasil, a discussão sobre as possibilidades da retomada de um
desenvolvimento econômico e social, nos marcos do modo de produção capitalista
com um viés reformador, traz desafios ao governo e exige um olhar crítico e
propositivo da classe trabalhadora. Isso porque há uma década as transformações
no mundo do trabalho vêm acarretando a ampliação do desemprego acompanhada
da precarização das relações de produção, o que tem fragilizado as organizações
sindicais. Nesse quadro econômico diminuem as possibilidades de enfrentamento
coletivo e solidário dessas questões por parte da classe trabalhadora. A reforma
da previdência, a reforma trabalhista e sindical, tal como estão sendo
encaminhadas, com crescente retirada de direitos dos trabalhadores, deve agravar
ainda mais a realidade do mercado de trabalho no Brasil.
Retomamos, neste texto, contribuições de vários autores com o intuito
de recuperar uma pauta temática que, comparada com o momento atual, nos
ajude a elucidar melhor quais os caminhos que se delineiam para os que se
ocupam em estabelecer os vínculos entre o mundo do trabalho e a educação.
Analisamos os textos buscando agrupá-los por grandes eixos: os que se
dedicam a uma análise macroestrutural e seus desdobramentos para a educação
à luz da inter-relação entre capitalismo, mundo do trabalho e modelos de
desenvolvimento; os que enfocam as relações entre trabalho e educação em
diversos momentos da história da educação no Brasil; aqueles que tematizam
a formação profissional no marco dos estudos comparados. Por fim retomamos
dois balanços críticos do que foi produzido na área trabalho e educação a
partir dos anos 80 para, como já foi dito, apontar questões que signifiquem
caminhos de pesquisa, não necessariamente novos, uma vez que vários problemas
já tematizados ressurgem sempre, como se tratássemos de problemas sem
solução, mas que, sabemos, expressam de forma vigorosa o conflito de classes e
a contradição capital e trabalho.
Os textos de Vanilda Paiva (1998) e Márcio Pochmann (2000)
aproximam-se na análise macroestrutural da crise capitalista e seus impactos
na educação dos trabalhadores. Vanilda Paiva ocupa-se das relações entre
educação, economia e sociedade, identificando os impasses dos anos 90 e
situando as formas alternativas de inserção profissional dos setores mais
qualificados da força de trabalho.
No texto, a autora retoma o debate sobre o valor econômico da educação
referindo-se a diversos autores para discutir a questão que, se ainda hoje é

100
PARTE I | AS DÉCADAS DE 1980 E 1990

comprovável que os setores da população mais educada tendem a obter benefícios


mais elevados, mais significativo, no entanto, é o fato de que o diferencial mais
marcante é constatado nos extratos menos educados da população. Assim, se poderia
concluir que o investimento no ensino fundamental seria mais rentável do que em
outros níveis educacionais. A autora chama a atenção sobre os impactos nas políticas
públicas para a educação decorrentes de tal lógica, como a perda de significado de
outros níveis educacionais nos médio e longo prazos (Paiva, op. cit.: 8).
As políticas do Banco Mundial para a educação na América Latina e as
políticas públicas brasileiras amparadas em pesquisas que privilegiam o aspecto
econômico da educação, a relação custo/benefício, as taxas de retorno para o
capital e o trabalho, as medições dos diferenciais de rendimento por meio da
relação salário e qualificação induziram, por exemplo, à reforma do ensino
técnico e aos programas de formação profissional financiadas pelo FAT. Paiva
observa que, nessa abordagem dos organismos internacionais e nacionais, há
um proposital esquecimento da vasta produção acadêmica brasileira que
evidencia a falácia do estabelecimento de uma relação direta entre nível de
escolaridade, emprego e renda. Sua hipótese é a de que o discurso em prol da
educação como panacéia para os males do desemprego traduzido pela introdução
de critérios empresariais de produtividade nos sistemas de ensino para efeito
de financiamento, omite as reais causas dos problemas que advêm da
reestruturação produtiva no novo estágio do capitalismo mundializado.
Outra questão importante apontada pela autora é que as teorias que
afirmavam a desqualificação progressiva da força de trabalho, pela crescente
incorporação de ciência e tecnologia nos processos produtivos, não se
confirmaram. No entanto, as teorias que destacam a crescente qualificação da
classe trabalhadora em termos absolutos mantêm vigente a desqualificação em
termos relativos. Citando vários autores, Paiva destaca que a progressiva
substituição do padrão taylorista-fordista de produção pelo padrão de produção
flexível, principalmente nos países centrais do capitalismo, tem produzido a
redução drástica dos postos de trabalho, o que ocasiona que trabalhadores
com alta qualificação estejam exercendo tarefas simples, que exigem menor
qualificação. Isso resulta em queda dos salários e do status social desse segmento
da classe trabalhadora. Por outro lado, observa-se que, para além dos requisitos
educacionais, outros critérios são utilizados para a admissão no mercado formal
de trabalho, no qual se inserem setores mais qualificados da força de trabalho
se inserem. Além da sólida formação geral e contato com outras culturas,
também a posição na escala social serve de parâmetro para disputar uma vaga
no mercado (id. ibid.: 9-11).

101
A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico

A autora conclui que os vínculos entre trabalho, educação e economia,


no atual estágio do desenvolvimento capitalista, se tornaram mais tênues do
que supunha a economia da educação. Para Vanilda Paiva a certificação
mediante diplomas não perdeu seu valor, mas a qualificação real, fruto de
saberes construídos ao longo da vida, para além da escolaridade formal, é
exigida no mundo do trabalho. Para ela, se hoje há muito espaço nos países
periféricos para a educação fundamental e média, e para a formação profissional,
isso não autoriza a retomada do entusiasmo pela educação como solução para
o desemprego estrutural (id. ibid.: 17).
Na mesma linha de abordagem de Vanilda Paiva, Márcio Pochmann discute
as novas formas de organização do trabalho, dando ênfase às estratégias empresariais
para a organização do mundo do trabalho e o estabelecimento de requisitos
educacionais dos trabalhadores. O autor percorre historicamente os últimos 50
anos, caracterizando, comparativamente, no Brasil e em algumas economias mais
avançadas, os modelos de educação e formação profissional requeridos.
Segundo ele, na atual conjuntura de forte concorrência e instabilidade
econômica, as empresas precisam encarar as mudanças na organização da
produção e na gestão da mão de obra numa fase de superação do modelo
taylorista-fordista pelo modelo da produção flexível. Hoje teríamos o predomínio
da empresa “enxuta” e competitiva, o que demandaria dos trabalhadores um
novo perfil de qualificação. Essas mudanças na qualificação profissional não
garantiriam enriquecimento e diversidade no conteúdo do trabalho, assim como
não apontam para uma conduta homogênea dos empresários em relação à
implantação de estratégias de produtividade e competitividade (Pochmann,
op. cit.: 48).
De seus estudos Pochmann depreende que, se as mudanças no mundo
do trabalho, decorrentes da reestruturação produtiva, abrem a possibilidade
para um trabalho mais complexo, menos repetitivo e monótono, e com menores
riscos de acidentes, por outro lado, podem acarretar uma intensificação do
ritmo das tarefas implicando em novas doenças ocupacionais e a superexploração
da força de trabalho (id. ibid.: 52).
Os autores citados coincidem também quando discutem a aparente
contradição entre as exigências de mais qualificação da força de trabalho num
período de desindustrialização relativa. Para Pochmann isso se explica pelo
fato de que o atual estágio do capitalismo produz ainda ocupações precárias e
degradantes em grande quantidade, ao lado de empregos que exigem elevado
padrão de qualificação. O autor destaca ainda a diferença entre as economias
avançadas – em que os setores de serviços e industrial estão articulados e

102
PARTE I | AS DÉCADAS DE 1980 E 1990

demandam uma força de trabalho qualificada – e países, como o Brasil, em


que um setor industrial pouco desenvolvido ou pouco expandido gera, também
no terciário, ocupações que demandam pouca qualificação. Assim, as nações
mais desenvolvidas puderam paulatinamente ajustar a passagem de contingentes
da força de trabalho da indústria para os serviços e por fim articular ou
complementar os diversos setores da economia, permitindo uma “acomodação”
da força de trabalho. Já nos países de industrialização tardia, que implementaram
processos produtivos poupadores de força de trabalho, essa “acomodação” não
foi possível, gerando desemprego, subemprego e subutilização da força de trabalho
mais qualificada disponível no mercado (id. ibid.: 57-59). Esse cenário corresponde
ao já enunciado por Vanilda Paiva, demonstrando que o entusiasmo pela
educação, por parte dos que revisitam a teoria do capital humano como panacéia
para o desemprego, não encontra sustentação nas pesquisas sobre o tema.
Outra questão importante apontada por Pochmann no texto aqui citado,=
diz respeito à trajetória peculiar da formação profissional no Brasil. Ao se referir
aos últimos 50 anos de formação da classe trabalhadora, ele destaca que o país
consolidou um sistema de qualificação de grande destaque na periferia do
capitalismo mundial. Analisando principalmente a era Vargas e a consolidação
de instituições como SENAI e SENAC ao longo de décadas, ele conclui que,
desde a década de 1990, esse modelo de formação profissional dá sinais de
esgotamento e inadequação a um processo produtivo que enfatiza a produção
enxuta, destruidora de postos de trabalho. Conclui chamando a atenção para
a experiência acumulada tanto pelo capital quanto pelos trabalhadores ao longo
dos últimos 50 anos, que criaria as condições para estabelecer-se, de forma
pactuada, um novo modelo de formação profissional para o país.
Numa visão bastante cética e crítica, já nos anos 80, Raquel Gandini
(1980) expressava suas preocupações quanto ao cenário de superexploração
do trabalho e de concentração de renda que se delineava nos países periféricos
e que, no Brasil, se refletia na educação como crescente desresponsabilização
do Estado na garantia dos direitos sociais e na mercantilização desses direitos,
entendidos agora como serviços. Isso se devia, segundo a autora, à extensão da
racionalidade capitalista e empresarial à educação. Para Gandini, apenas a
organização da classe trabalhadora poderia pressionar na direção contrária.
Nesse esforço, a participação dos trabalhadores da educação na luta pela
garantia da educação como um direito social para todos seria essencial.
Nos mesmos anos 1980, alguns textos da área da administração e da
gerência enfatizavam, pelo contrário, a importância do treinamento e do
desenvolvimento de recursos humanos como elemento fundamental para a

103
A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico

modernização do setor produtivo e a integração mais efetiva do Brasil num


cenário de globalização da economia (Gandini, op. cit.: 136).
Essa disputa de paradigmas na esfera acadêmica tem prepassado as
discussões sobre a formação profissional e os modelos de desenvolvimento em
disputa muito além do espaço acadêmico. Hoje, nas esferas governamentais,
nas empresas e nos sindicatos, a “retomada do desenvolvimento” parece ser a
grande solução para o desemprego, a desigualdade social, a fome, a concentração
de renda e os desequilíbrios regionais.
O texto de Patrícia Amélia Tomei (1989) parece-nos, nesse sentido,
exemplar pois estabelece parâmetros para que essa retomada do desenvolvimento
aconteça. A autora, a partir de pesquisa realizada em empresas brasileiras,
norte-americanas e japonesas, avalia que as organizações de um modo geral
estão preocupadas em maximizar a produtividade por meio da qualificação de
seus trabalhadores. Nos Estados Unidos, isso ocorreria diretamente nas
organizações; já no Japão, a educação desempenharia um papel relevante na
escola e na universidade, preparando os indivíduos em “forte esquema
competitivo” para disputar os postos de trabalho mais qualificados nas
organizações de maior prestígio.
No Brasil, segundo a autora, esse processo estaria ainda mais no nível do
discurso do que propriamente na prática, porque os mecanismos de avaliação,
que poderiam comprovar a eficiência e eficácia dos programas de treinamento,
são ainda pouco utilizados para realimentar o processo de planejamento das
empresas (Tomei, op. cit.: 199). Em sua pesquisa, Tomei enfatiza o papel do
treinamento como investimento que pode ser amortizado ao longo da carreira
dos trabalhadores, priorizando a formação comportamental/atitudinal com ênfase
nas habilidades e qualificações. Isso poderia contribuir para a harmonia no interior
das empresas e criaria a interação necessária entre capital, trabalho e tecnologia,
assegurando às empresas as condições de competitividade numa economia
mundializada (id. ibid.: 193). Já no Brasil, a autora vê as empresas contabilizando
o treinamento não como investimento, mas como despesa, uma vez que, sem
uma correta avaliação dos resultados que poderiam realimentar o planejamento
empresarial, o treinamento gera frustrações e desmotivação, criando novas áreas
do conflito – o contrário do que se deveria esperar. Tomei conclui que as empresas
brasileiras, para obter resultados semelhantes aos encontrados nos outros países
pesquisados, Estados Unidos e Japão, deveriam investir mais em treinamento,
em processos avaliativos que realimentassem o planejamento estratégico, gerando
mais qualidade e competitividade no mercado a partir de uma correta política
de treinamento e de desenvolvimento de recursos humanos.

104
PARTE I | AS DÉCADAS DE 1980 E 1990

Trouxemos esse exemplo de enfoque empresarial porque nos parece que


o diálogo e a compreensão do referencial de análise que sustenta o discurso
empresarial é importante para acompanhar os debates e as diferentes abordagens
que alimentaram, nas duas últimas décadas, as políticas de formação da classe
trabalhadora.

2. O ensino de segundo grau e a educação profissional no Brasil:


dados históricos e quantitativos
É recorrente em dois textos analisados nesta seção (Fonseca, 1985 e
Brandão, 1999), apesar da diferença de mais de uma década de publicação, o
paralelo entre a industrialização ou o desenvolvimento econômico e a evolução
da relação entre trabalho e educação ou formação profissional e técnica. O
terceiro artigo (Rosemberg, 1989) descreve e analisa, em termos quantitativos,
a evolução do ensino de segundo grau (atual ensino médio).
Este último foi elaborado dentro do modelo estrito da pesquisa estatística
que dominou a pesquisa em educação no Brasil, nos anos 1970, quando são
criados o sistema de pós-graduação e, em meados dos anos 1980,
aproximadamente, a rede de programas de pós-graduação e pesquisa em
educação. A análise dos dados, portanto, é feita sem entrar no mérito das
condições sociais, econômicas, políticas e culturais em que ocorrem os
fenômenos quantificados. Não obstante os limites da concepção positivista que
orienta esse tratamento da questão, o texto mapeia e descreve o ensino de
segundo grau e sinaliza as políticas educacionais vigentes dos anos 1970 à
metade da década de 1980.

2.1. A formação/educação profissional no Brasil ao longo da história


Apesar de ter sido escrito 15 anos depois da publicação do trabalho de
Fonseca (1985), Brandão (1999) justifica sua antecipação neste resgate
histórico. Seu trabalho percorre os documentos legais e os principais autores
que escreveram sobre os primeiros 30 anos da formação profissional no Brasil,
pari passu ao desenvolvimento da indústria. Essa análise registra dois aspectos
políticos da cultura brasileira, ao que vemos hoje, secularmente indicadores
do atraso na educação do povo brasileiro para a conquista da cidadania. O mais
antigo é o estigma do trabalho manual, artesanal e manufatureiro, sua inferioridade
atribuída a quantos produziam a existência material das elites na colônia e no
Império, negros, mestiços e brancos pobres, alcançando os imigrantes europeus
na Primeira República. O segundo aspecto é o ensino de ofícios como

105
A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico

assistencialismo, como amparo aos órfãos, pobres e desamparados, “como solução


privilegiada para a manutenção da ordem” (Brandão, op. cit.: 17).
Marisa Brandão destaca, desde o início da organização de instituições
profissionalizantes, a ausência de preocupação efetiva com a mão-de-obra
qualificada. Dentro do princípio de evitar idéias contestadoras da ordem, há
iniciativas do governo federal, dos estados e de instituições particulares tendo
em vista oferecer às classes populares preparação para o trabalho.
O marco desse movimento, como política governamental, está em 1906,
na plataforma do presidente da República Afonso Pena, que prevê a criação
de institutos de ensino técnico e profissional “para o progresso das indústrias,
proporcionando-lhes mestres e operários instruídos e hábeis” (Fonseca, 1986,
apud Brandão, op. cit.). O decreto que cria o Ministério da Agricultura,
Indústria e Comércio determina que ele terá a seu cargo o ensino agrícola, a
escola veterinária, a escola de minas e o ensino profissional, embora os assuntos
educacionais estivessem vinculados ao Ministério da Justiça. O ensino
profissional era de nível primário, não se vinculando à educação, à formação
intelectual. Antes, estava voltado para o trabalho manual, para uma indústria
incipiente, artesanal e de manufatura. Em 1909, é criada a rede de Escolas de
Aprendizes Artífices, justificada como de interesse para o desenvolvimento
industrial do país.
Luiz Antonio Cunha critica a interpretação de que a localização em
cada um dos estados da federação seria devida ao desenvolvimento da indústria.
Não há dados que confirmem esse desenvolvimento nos estados. A distribuição
das escolas teria sido de caráter político-administrativo (Cunha, 1983, apud
Brandão, op. cit., p. 19), e seu objetivo era dar “hábitos de trabalho profícuo”
aos filhos dos trabalhadores.3
Ensinavam-se nas escolas marcenaria, sapataria, alfaiataria e, em número
menor de escolas, carpintaria, ferraria, funilaria, selaria, encadernação ou,
ainda, mecânica, tornearia, eletricidade. O preparo intelectual adviria das
aulas do curso primário e de desenho, que eram responsabilidade do professor;
a prática era feita nas oficinas e cabia ao mestre.

3
“Considerando: que o aumento constante da população das cidades exige que se facilite às classes
proletárias os meios de vencer as dificuldades sempre crescentes da luta pela existência; que para isso
se torna necessário, não só habilitar os filhos dos desfavorecidos da fortuna com o indispensável
preparo técnico e intelectual, como fazê-los adquirir hábitos de trabalho profícuo que os afastará da
ociosidade, escola do vício e do crime (...)” (Decreto n. 7.566 de 29 de dezembro de 1909, apud Fonseca,
1986, p. 177).

106
PARTE I | AS DÉCADAS DE 1980 E 1990

Ao longo dos anos 1920 e 1930, algumas iniciativas marcam “a ciência


da indústria” com reflexo na transformação da formação profissional, como
tentativas de racionalização da produção e de tornar mais didático o ensino de
ofícios.4 Com a vitória de Vargas em 1930 e a criação do Ministério da Educação
em 1931, várias são as transformações que ocorrem na estrutura administrativa
do ensino profissional em paralelo com as diretrizes econômicas no sentido da
industrialização. Em 1934, o decreto que transforma a Inspetoria do Ensino
Profissional em Superintendência do Ensino Industrial tem, entre seus
considerandos, o que que “a evolução das indústrias nacionais impõe a
adaptação do ensino indispensável à formação dos operários às exigências da
técnica moderna (...)”. Por ele, os estabelecimentos de ensino diversificam-se
em escolas federais de ensino profissional técnico, estabelecimentos de ensino
industrial, escolas federais de ensino industrial, institutos profissionais da União
e escolas industriais. Não obstante isso, o perfil assistencialista do ensino
profissional, “destinado às classes desfavorecidas”, reaparece na Constituição
Federal de 1937 (Brandão, op. cit.: 26-27).
Martha Amaral Fonseca (1985) busca examinar historicamente a evolução
da educação profissional no Brasil “em estreito paralelo com o desenvolvimento
econômico, político, social e cultural do país” (Fonseca, op. cit. : 5). Nos
primórdios, a formação ocorria nas próprias empresas mediante a familiarização
dos trabalhadores com o ofício, patrões e capatazes exercendo o papel de mestres
ou incorporando a mão-de-obra dos imigrantes, em geral, com alguma formação.
Nos anos 1940, a industrialização concentrou-se nas grandes cidades e
atraiu amplos contingentes de trabalhadores rurais. Para as indústrias, trouxe
a necessidade de pessoal mais qualificado, principalmente, para os setores de
transformação, metalurgia, siderurgia, eletricidade, manufatura e outros, além

4
Em 1920/21 é criado o Serviço de Remodelação do Ensino Industrial sob a forma de uma comissão e a direção
de João Luderitz, visando tornar o ensino profissional mais eficiente. Em 1924, começam a ser utilizadas as
“séries metódicas de aprendizagem”, de Coryntho da Fonseca, com a criação da Escola Profissional
Mecânica no Liceu de Artes e Ofícios de São Paulo e um acordo entre as companhias ferroviárias e o
Liceu. São feitas duas tentativas de unir o ensino profissional à educação geral, uma em 1922, com um
projeto do deputado Fidélis Reis, aprovado em 1927 e nunca posto em execução; e outra em 1927, com o
projeto do deputado Graco Cardoso que cria o ensino técnico, mas também não é aprovado (id. ibid.: 211
e ss.). Após a crise de 1929, com o aumento das reivindicações dos trabalhadores e a ameaça à taxa de
lucros, é introduzido o taylorismo (para o corte de custos e aumento da produtividade), os exames
psicotécnicos de seleção dos mais capazes e o ensino sistemático dos ofícios, como iniciativa do Instituto
de Organização Racional do Trabalho – IDORT, fundado em 1931, pelo engenheiro Roberto Mange, com
o patrocínio das Associação Comercial e da Federação das Indústrias de São Paulo. Ainda em 1931, o
recém-criado Ministério da Educação e Cultura instituí a Inspetoria de Ensino Profissional Técnico que,
em 1934, vai ser transformada em Superintendência do Ensino Industrial (Brandão, op. cit.: 22).

107
A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico

daqueles de comércio e serviços. É na articulação entre o governo e a classe


empresarial que surgem o SENAI, em 1942, e o SENAC, em 1946, administrados
pelas Confederações Nacionais da Indústria e do Comércio, respectivamente.
Seu objetivo era a formação de mão-de-obra de menores aprendizes de 14 a 18
anos e jovens e adultos em busca de emprego.5
A partir dos anos 1960 a formação profissional ganha cada vez mais
destaque e, em 1971, a Lei n. 5.692 determina a reforma do ensino de primeiro
e segundo graus (atuais ensino fundamental e médio) e a profissionalização
obrigatória para todos os estudantes desses níveis de ensino. As empresas
receberam incentivos fiscais (Lei dos Incentivos Fiscais) para oferecer programas
de formação profissional. Em 1976 foram instituídos o Sistema Nacional de
Mão-de-obra – SNFMO e algumas instâncias gestoras para coordenar políticas,
orientações, implementação, produção de subsídios técnicos, intercâmbio,
estímulo e financiamento de projetos especiais. Ainda em 1976, cria-se o
SENAR, ligado ao Ministério do Trabalho. Naquele momento, a oferta de
empregos era determinante dessa política, ainda considerando sobretudo a
baixa escolaridade dos trabalhadores e o desconhecimento da complexidade
dos processos produtivos.
Sob a visão economicista da época, “educação – trabalho, formação
profissional – e emprego eram pensados de uma forma linear com o apoio de
conteúdos, metodologias, técnicas, recursos instrucionais, características de
seleção e de orientação profissional” (id. ibid.: 8). A crise mundial dos anos de
passagem da década de 1970 para a de 1980 anunciava as mudanças em curso
advindas do que a autora considera “um ESTADO de mudança na própria
civilização”, agora característica de ordem estrutural, a demandar “uma ação
integrada e harmônica, solidária na compreensão e encaminhamento de
alternativas para a melhoria de vida da população (id. ibid.: 9).
As mudanças manifestam-se na informática, na automação, na natureza
do trabalho e na problemática do emprego. É nesse contexto que se questiona
o papel da formação profissional, que deve estar voltada para a atividade
produtiva, mas não de forma absoluta. Há que tentar “conciliar as necessidades
técnicas com valores, aspirações e potencial da clientela”, formação profissional
e absorção da mão-de-obra. A dimensão social deve permear todas as

5
Note-se a referência apenas en passant sobre o ensino profissional e técnico regulares. Na mesma
conjuntura da criação do SENAI e do SENAC, as Leis Orgânicas do Ensino Industrial em 1943, do
Ensino Comercial em 1943 e do Ensino Agrícola em 1946, todas na forma de decretos-lei, emanadas do
Ministério de Educação e Culturas, vieram reorganizar o sistema federal de educação profissional e
técnica iniciado com as Escolas de Aprendizes Artífices em 1909.

108
PARTE I | AS DÉCADAS DE 1980 E 1990

alternativas (id. ibid.: 10). Para o grande contingente da população que não
pode ser absorvido pelos empregos existentes, a autora pleiteia a abertura de
novas fontes de trabalho, “motivação para a auto-produção, para o trabalho
independente, a constituição de formas associativas e cooperativas de produção
e criação de micro-empresas” nos três setores da economia (id. ibid.: 11), o que
sugere a necessidade de integração de esforços e envolvimento de empregadores,
trabalhadores e Estado na definição das políticas de formação profissional.
À relação emprego/mão-de-obra/produção, privilegiando a economia,
deve-se opor trabalho/indivíduo/sociedade, na qual o Homem é o foco central
da formação profissional. Debates promovidos por diferentes instâncias, públicas
e privadas (MEC, MTb, SERPLAN, USP, PUCs, CENAFOR, SENAC, SENAI
e outras) buscam rever criticamente sua visão política e ideológica. A autora
(na época, Coordenadora de Recursos Instrucionais SMO/MTb) considera
que a verdadeira dimensão social de educação e da formação profissional é
essencialmente humanista, o fazer e o saber, o homo faber e o homo sapiens
como duas categorias essencialmente integradas, como dimensões da conquista
da liberdade e da autonomia (Lobo Neto, 1983, apud Fonseca: 13).
Também a Organização do Trabalho – OIT6 adota e recomenda uma
concepção de formação profissional que apóia no desenvolvimento das aptidões
humanas para a vida produtiva a forma de desenvolver-se a atuar sobre o meio
social. O texto critica “os programas intensivos, maciçamente específicos,
exclusivamente operacionais”, obsoletos que, “em época ultrapassada” teriam
sido vistos como solução para a qualificação. Defende a educação contínua
não apenas profissional, mas também na compreensão das mudanças tecnológica
e científica (Vilas Boas, 1982, apud Fonseca, op. cit.: 14-15). É essa concepção
que baliza o Sistema Nacional de Mão-de-Obra, coordenado pelo MTb.7
O que a autora não menciona é a ideologia da “teoria do capital humano”
que, naquele momento, permeava o ideário da sociedade brasileira vinculando
educação e desenvolvimento econômico, educação e renda, educação e
mobilidade social.8 Fonseca escreve num momento em que “o milagre econômico”
(que ela não menciona) já terminara, e não se alimentavam mais aquelas ilusões.

6
Recomendação 150/1975, reincorporada em termos gerais no documento “La formación: reto de los años
80” (apud Brandão op. cit.: 13).
7
Conforme o documento “Terminologia da Formação Profissional”, elaborado em 1981, para introduzir as
diretrizes básicas da Política Nacional de Formação de Mão-de-Obra firmada em 1982.
8
A “teoria do capital humano” foi alvo da crítica de muitos pesquisadores. Ver, especialmente, Frigotto,
1984: 38; “A teoria do capital humano que, a partir de uma visão reducionista busca erigir-se como um dos
elementos explicativos do desenvolvimento e equidade social e como uma teoria de educação (...)”.

109
A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico

Admitindo que alguns fatos sobre a crise são percebidos hoje com mais
clareza, sua análise, não obstante a boa intenção, passa ao largo da crise
intrínseca de acumulação do capitalismo e das contradições sociais expressas,
principalmente, no crescimento exponencial da riqueza para uma minoria e no
aumento da pobreza para dois terços da humanidade.
Independente do tom um pouco ingênuo do texto, em relação ao olhar
de hoje, deve-se destacar que, no início dos anos 80, quando começa a tomar
forma institucional a redemocratização do país, a ideologia política popular e
humanista dá o tom da esperança e do discurso, até em instâncias do Estado,
em cargos ocupados por intelectuais e políticos progressistas. Por outro lado,
cabe reconhecer, com desconforto, “o castigo de Sísifo” (tantas vezes lembrado
por Gaudêncio Frigotto) a que está sujeita a sociedade brasileira. A nova LDB
– Lei n. 9.394/96, e o Decreto n. 2.208/97 vieram desfazer todas as ilusões em
torno de uma formação profissional emancipadora. Com a revogação daquele
decreto e a aprovação do, novo, Decreto n. 5.154, reacendem-se as
expectativas, mas sempre com um travo de dúvida, em uma sociedade cuja
hegemonia está nas leis do lucro do capital.

2.2. A evolução do ensino de segundo grau em termos


quantitativos: anos de 1970 e 1980
Complementando a visão dos anos 1980, Fúlvia Rosemberg (1989)
enriquece a perspectiva histórica com números preocupantes ao descrever e
analisar a evolução do ensino de segundo grau (atual médio) no Brasil. Sua
primeira crítica é de ordem metodológica, quanto à qualidade dos dados
estatísticos: “a pobreza de informações publicadas; a inconsistência através do
tempo das definições usadas para caracterizar os quesitos; e a fragilidade – por
vezes mesmo inadequação – dos indicadores educacionais utilizados ou
disponíveis” (Rosembreg, op. cit.: 41).
Quanto ao ensino de segundo grau, considera que, premido entre o primeiro
grau (ensino fundamental hoje) e o superior, parece “não ter forjado uma
identidade própria, não ser estruturado por uma política própria”. Acrescenta-se
ainda a dificuldade de acompanhar a lógica de sua expansão através dos fluxos
e refluxos na matrícula e na dotação orçamentária, e a polarização ensino
profissionalizante-terminal e propedêutico, principalmente considerando-se que
“40% de seus estudantes são trabalhadores” (PNAD de 1982).
O primeiro aspecto examinado é a cobertura ou a relação entre a população
escolarizável e a população escolarizada. Dos dados referentes aos anos 1970 a

110
PARTE I | AS DÉCADAS DE 1980 E 1990

1982 depreende-se uma ampla dispersão etária que se reduz progressivamente:


de 58,3% de 15 a 19 anos para 71,2%. Em outra forma de calcular a cobertura,
relacionando a população de 15 a 19 anos cursando o segundo grau à população
da mesma faixa etária com primeira grau completo, a taxa é de 42%, o que
significa mais da metade dessa faixa de idade fora da escola (Salm, 1984, apud
Rosemberg: 42). A crítica a essa análise diz respeito a sua distorção decorrente
do grande número de alunos que não completavam o primeiro grau (38% apenas
o faziam), além de que 20% dos matriculados no 1o grau estavam fora da faixa de
sete a 14 anos (Brasil, 1988, apud Rosemberg, op. cit.: 42). Uma terceira forma de
calcular apresentada pela SEEC/MEC consiste na relação entre a população
escolarizável entendida como aquela que concluiu o primeiro grau nos quatro
anos anteriores e as matrículas iniciais de segundo grau, o que gerou taxas
progressivas de 78,1% em 1980 a 86,9% em 1985 (id. ibid.: 43).
Dados mais graves referem-se à “estrutura da pirâmide educacional
brasileira” que se mantinha constante desde 1976: 85% de estudantes no
primeiro grau, 10% no segundo, e 5% na universidade. Comparado com outros
países, o Brasil tinha menos estudantes no ensino médio entre 11 países da
América Latina (id. ibid.: 43-44).9
Quanto às redes de ensino e à clientela no segundo grau, os dados
mostram crescimento ou retração entre as redes pública e privada nas diversas
conjunturas econômicas; aumento da população feminina; pauperização da
clientela de 1976, quando 35,6% provinham de famílias até cinco salários
mínimos, a 1982, quando essa proporção se elevou para 45,4%. Evidencia-se
ainda que “o segundo grau permanece um nível de ensino que interpõe
acentuada barreira de classe social”, observando-se que 53,3% dos alunos
provêm de famílias com rendimento superior a cinco salários mínimos; no
Nordeste, esse valor sobe para 10 salários mínimos (id. ibid.: 45-46).
Dados da PNAD 1982 apontam que 40,5% dos estudantes do segundo
grau trabalham. A variação para mais ou para menos pode ter a ver com a
oportunidade de empregos na região. Já os cursos noturnos abrigavam 53% de
toda a matrícula, com predomínio dos que trabalham (id. ibid.: 48); 58% dos
alunos abandonam a escola entre a primeira e a segunda séries (Franco, 1987,
apud Rosemberg, op. cit.: 48). E, o que é mais grave, em 1976, 80% deles chegavam
à escola sem jantar; 20% dormiam durante as aulas, e até mais de 50% não
conseguiam aprovação (Gibran e Pruks, 1982, apud rosemberg, op. cit.).

9
Cuba tinha 37% dos estudantes no ensino médio, a Guiana, 32%, a Colômbia, 29, Costa Rica, 25% a Argentina
e a Venezuela, 23%. Os mais próximos do Brasil: Paraguai, 17%, e Guatemala, 16% (Brasil, 1988).

111
A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico

Questionando “o mito da democracia racial” no Brasil, das pessoas com


instrução, 12,3% eram do segmento racial branco com 9 a 11 anos de estudo,
havendo apenas 6,9% do segmento racial negro, o que equivaleria à proporção
de estudantes no segundo grau (Censo 1980, apud Rosemberg, op. cit.: 49). O
estudo particulariza a participação feminina nesse nível de ensino, mostrando
melhores taxas de rendimento do que o segmento masculino, menos taxas de
evasão, talvez por maior proximidade da socialização feminina com a escola e
menor pressão familiar para a entrada no mercado de trabalho; maior presença,
95,8% no curso normal, e apenas 19,9 no ensino industrial, o que também
ocorria em outros países da América Latina (id. ibid.: 50-51).
Rosemberg começa a tratar a questão dos recursos ressaltando a
dificuldade de compatibilizar programas, ações, rubricas e denominações
diferentes com gastos reais. 10 Em 1985, a União dispendia 49% com o
primeiro grau, 7% com o segundo grau (dos quais três quartos destinados
às escolas técnicas e agrotécnicas federais, para a manutenção de 137
estabelecimentos) e 44% com o terceiro grau. Mantendo a tradição desde
o Império, os recursos para o segundo provêm quase esclusivamente dos
estados (para a manutenção de 5.059 estabelecimentos) (IPEA, 1988, apud
Rosemberg, op. cit. : 52). Em parte, essa distribuição de verbas explica a
pirâmide educacional brasileira.
Como conclusão de seu estudo, a autora destaca que a repartição dos
recursos federais carece de planos locais de educação pública e de critérios
explícitos de alocação; “o Governo Federal tem garantido o ‘núcleo’ mais nobre
e mais caro do ensino técnico-profissional”; aos estados tem faltado competência
técnico-administrativa e política nesse setor; o setor privado tem cuidado do
ensino propedêutico à universidade; “40% dos recursos transferidos pelo MEC
para programas de segundo grau foram destinados a instituições particulares”.
A autora faz uma pergunta que, lamentavelmente, tem sentido até hoje, a
respeito de como seria cumprido o Inciso II do Artigo 208 da Constituição
Federal de 1988, que prevê a “progressiva extensão da obrigatoriedade e
gratuidade ao ensino médio” (Rosemberg, op. cit.: 53).

10
A função educação era financiada pela União (MEC e outros ministérios), pelos estados e municípios
e por recursos externos (BIRD, BID). Em 1985, 31% desse financiamento provinha do MEC (sendo
10% do exterior), 7% de outros ministérios; 51,8% dos estados e do Distrito Federal, 10,1% dos
municípios (Brasil, 1988, id. ibid.: 52).

112
PARTE I | AS DÉCADAS DE 1980 E 1990

3. Considerações finais – Balanço crítico da produção na área trabalho


e educação
Em recente estudo publicado pela Revista Educação Brasileira, sobre a
produção do GT Trabalho e Educação da ANPEd, analisamos os temas
recorrentes nos trabalhos apresentados, os referenciais teórico-metodológicos
que predominam na área e a compreensão dos processos pedagógicos escolares
e não escolares que servem de base empírica para os estudos da área (Ciavatta
e Trein, 2003).
No presente estudo aprofundamos a compreensão sobre a relação trabalho
e educação e a formação profissional por meio da análise de textos publicados
em periódicos, buscando caracterizar essa produção sob a perspectiva da relação
entre sociedade, economia e desenvolvimento. Compreendemos este texto como
parte de um todo maior, o projeto integrado, que busca contribuir para a
construção da história da produção acadêmica no que diz respeito ao mundo
do trabalho e à formação humana.
A leitura que fizemos está ancorada na concepção de trabalho enquanto
práxis humana e no entendimento de que o mundo do trabalho, nas relações
sociais e produtivas que o compõem, se constitui como processo educativo.
Sob visão dialética da relação trabalho e educação, compreendemos que a
formação do sujeito trabalhador não se faz desvinculada das condições materiais
e históricas que conformam o modo de produção capitalista, seu estágio de
desenvolvimento, as relações sociais de produção que o caracterizam e a
formação humana necessária às mudanças na base técnica da produção.
Na década de 1980, Felícia Madeira publicou um balanço crítico da
produção acadêmica sobre o vínculo entre trabalho e educação e sobre as
políticas educacionais daí decorrentes (1984). Aquele trabalho foi fruto de
pesquisa mais ampla realizada por ela e por Celso Ferretti e publicada nos
Cadernos de Pesquisa da Fundação Carlos Chagas.
Retomamos aqui o artigo publicado por Madeira na Em Aberto (1984),
pois nele encontramos muitos dos referenciais e questionamentos presentes
nos demais textos analisados por nós tanto para o presente artigo quanto no
estado-da-arte que elaboramos sobre o GT Trabalho e Educação da ANPEd.
Destacamos sucintamente algumas questões que “perseguem” a área
nas últimas duas décadas e que se constituem ainda hoje como pauta de pesquisa
para os estudiosos dos vínculos entre o mundo do trabalho e a educação.
No marco teórico utilizado pela maior parte dos autores dos textos
trabalhados tanto no estudo referido por Madeira quanto nos estudos realizados

113
A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico

por nós – este e o de 2003 – prevalece uma visão materialista dialética. São
reiteradas as críticas à teoria do capital humano, ao “entusiasmo” pela educação
como panacéia para o desemprego, o subemprego e a estagnação que o país
viveu nos anos 80 e da qual ainda não se recuperou. Dessa visão crítica
decorrem algumas questões: a formação profissional estará qualificando uma
força de trabalho que hoje não é mais necessária para o atual estágio do
desenvolvimento científico tecnológico incorporado à produção? Será que a
elevação da escolaridade da classe trabalhadora e seu nível de qualificação
não leva a uma grande frustração dada a qualidade dos postos de trabalho
existentes que, em sua maioria, exigem trabalhos simples e pouco qualificados?
Em que pese a ampliação das possibilidades de formação profissional não estará
a classe trabalhadora sendo preterida, em favor de setores da classe média,
num mercado de trabalho escasso, no qual não apenas o nível de escolaridade
mas também o pertencimento a determinado grupo social é critério de escolha?
A manutenção de um modelo desenvolvimentista urbano-industrial não
continua pautando as discussões sobre a formação profissional e, com isso,
toldando as críticas à forma como se organiza o mundo do trabalho sob o modo
de produção capitalista?
No momento atual, em que a sociedade brasileira é exortada a uma “retomada
do desenvolvimento” como política de geração de emprego e renda e de inclusão
social, as reflexões sobre a formação da classe trabalhadora permanecem atuais, mas
é preciso que avancemos para além da discussão sobre as formas que essa educação
deve assumir: formação profissional, formação geral, escola unitária? É preciso tematizar
o próprio conceito de desenvolvimento e retomar o embate político e ideológico
sobre os projetos societários sempre, e ainda, em disputa no Brasil.

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115
A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico

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116
PARTE I | AS DÉCADAS DE 1980 E 1990

CAPÍTULO 5 | ESTUDOS COMPARADOS SOBRE


FORMAÇÃO PROFISSIONAL E TÉCNICA

MARIA CIAVATTA

Introdução
Este texto é parte de um estado-da-arte sobre concepções, políticas e
sistemas de ensino profissional e médio técnico vistos em termos comparativos
nos anos 1980 e 1990, a partir de levantamento de artigos publicados em revistas
especializadas na área de educação, no período.1
Antes de iniciarmos a apresentação dos textos que compõem esta síntese
em termos comparativos, julgamos oportuno destacar uma questão de ordem
teórica e sua correlação de ordem histórica no tratamento da relação trabalho
e educação, e, conseqüentemente, da formação profissional. Do ponto de vista
teórico-metodológico, a área tem como eixo teórico norteador a crítica à
economia política que conduz a uma visão histórica da relação entre o mundo
do trabalho e a educação, buscando-se compreender e reconstruir no nível do
discurso as diferentes mediações sociais constitutivas dessa relação.
Tanto o trabalho quanto a educação ocorrem em uma dupla perspectiva.
O trabalho tem um sentido ontológico, de atividade criativa e fundamental da
vida humana; e tem formas históricas, socialmente produzidas, particularmente,
no espaço das relações capitalistas (Lukács, 1978). A educação tem seu sentido
fundamental como formação humana e humanizadora, com base em valores e
em práticas ética e culturalmente elevados; e também ocorre em formas
pragmáticas a serviço de interesses e valores do mercado, da produção
capitalista, nem sempre convergentes com seu sentido fundamental (Frigotto
e Ciavatta, 2001).

1
Sobre estado-da-arte, ver Brandão et al. (1983), Ciavatta Franco e Baeta (1985), Kuenzer (1987),
Frigotto e Ciavatta (2001).

117
A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico

A crise econômica deflagrada nos anos 1970 só foi mais bem


compreendida nos países em desenvolvimento nos anos 1980. As tentativas
de encaminhamento de solução para essa crise de acumulação ( id. ibid.)
foram alimentadas pela ideologia neoliberal e ganharam visibilidade por
meio das transformações ocorridas no mundo da produção. Expressaram-se
na reestruturação produtiva, na introdução de novas tecnologias, nas novas
formas de organização do trabalho, na redução de custos, no acirramento
da competição entre as empresas, principalmente, as grandes
multinacionais, na política guiada pelos organismos internacionais de
redução do papel do Estado, no desemprego estrutural e no empobrecimento
de grandes massas da população em todo o mundo. A formação de mão-
de-obra adequada às novas necessidades empresariais fez-se sentir nas
mudanças ocorridas nos sistemas de formação profissional em todos os países.
Este texto tenta sumariar como alguns especialistas analisaram,
comparativamente, essas transformações em países europeus, do leste asiático
e do continente americano – norte e sul.
O primeiro texto trata da formação profissional do ponto de vista da
relação educação e trabalho na América Latina (Gomes, 1984); os demais
focalizam, de modo mais específico, a formação profissional nos seguintes países:
Brasil, Alemanha, Reino Unido e França (Barone, 1998); Argentina, Chile,
Colômbia, México e Panamá (Weinberg, 1999); Brasil, Argentina e Chile
(Cunha, 2000); França, Alemanha e Japão (Maurice, 2001).
Em trabalho anterior sobre estudos comparados, chamamos atenção para
o significado da comparação nos processos de conhecimento dos indivíduos e
das sociedades:
Fazer analogias, comparar, são processos inerentes à consciência e à vida
humana. Da mesma forma, procurar conhecer as diferentes soluções que
outros países e outros povos dão aos seus problemas, às suas instituições, como
no caso da educação, sempre foi um meio de desenvolvimento e de
enriquecimento. Mas, para fazer comparações, além da dificuldade de entender
as diferentes línguas e seus complexos significados, há o problema do
conhecimento e da interpretação de sua história e de sua cultura. No mundo
atual, pelos recursos dos meios de comunicação e pelos problemas postos,
primeiro, pela internacionalização e, depois, pela globalização da economia,
pelas relações desiguais entre os países, pelo aumento da pobreza e a necessidade
de imigrar, de encontrar trabalho e meios de vida em alguma parte, a questão
do outro e das relações interculturais passam a ter um lugar central nas ciências
sociais, nos projetos de solidariedade e cooperação. Sob estas relações estão
sempre as situações de analogia e de comparação (Ciavatta, 2000: 198).

118
PARTE I | AS DÉCADAS DE 1980 E 1990

Os estudos comparados em educação, no Brasil e na América Latina,


têm uma tradição de grandes surveys quantitativos, buscando a comparação
pelo destaque às descrições quantitativas permitidas pela homogeneização
operada nos dados estatísticos. Os textos examinados superam o viés
quantitativo, oscilando entre análises descritivas qualitativas e outras com
alguma historicidade.

1. Comparando a formação profissional e técnica em países latino-


americanos
Os textos selecionados nos periódicos especializados em educação e que
se ocupam de comparar trabalho e educação o fazem segundo critérios
diferentes. Cândido Gomes (1984) apresenta uma síntese de uma seção de
trabalho do Encontro Anual de Educação Comparada, Seção Sudeste, realizado
em maio de 1984. Duas são as questões principais apresentadas: a pluralidade
de tendências e de posições, e o questionamento sobre o tipo de vínculo que a
escola deve manter com o trabalho, se deve ou não se envolver diretamente na
formação profissional, preparando os indivíduos para as ocupações específicas.
Além da imprecisão do conceito de “preparação para o trabalho”, como a escola
faria a integração com o trabalho? Estaria contribuindo para a manutenção ou
para a mudança da estrutura de classes sociais?
Colocam as experiências de outros locais, de outros países e constatam
que as modalidades de formação profissional são mais ou menos efetivas
dependendo da região, do ramo da atividade econômica, do nível ocupacional
etc. Mas, de alguma forma, põem em dúvida a pertinência de a escola buscar
profissionalizar porque “mesmo em países desenvolvidos, com estatísticas
sofisticadas, não se sabe com relativa precisão quantos postos de trabalho exigem
preparação formal em escolas e quantos exigem apenas treinamento em serviço”.
Os dados existentes também não permitem “discernir como a escolarização
atua” (Gomes, op. cit.: 34-35).
Duas críticas são brevemente assinaladas: a primeira ao papel reprodutor
da escola, que tanto atua como elemento democratizante como reproduz a
estratificação social; a segunda à teoria do capital humano, que enfatiza o
papel da oferta da mão-de-obra enquanto cresce a preocupação com a demanda.
À orientação vocacional cabe ajudar o jovem a fazer uma boa escolha com
base no contexto socioeducacional. Outra crítica dirige-se aos educadores
que se mantêm afastados de decisões de política social e têm “uma visão
academicista a ser superada”, que os impede de assumir maior responsabilidade
social. Conclui-se no sentido de rejeitar “a cópia servil de modelos alienígenas”
119
A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico

ou “o isolamento xenófobo” e aproveitar a educação comparada, que pode


propiciar a análise de experiências de outros espaços geográficos, ensejando
“soluções brasileiras para os problemas brasileiros” (id. ibid.: 37).
Escrevendo mais de uma década depois, os demais autores revelam um
outro panorama no campo da produção e na formação. Preocupam-se com a
transformação dos sistemas educacionais dos diversos países europeus, do Japão e
de países latino-americanos, a partir da dicotomia formação geral e formação
profissional (Barone, Cunha e Weinberg) ou da relação escola e empresa (Maurice).
Rosa Elisa Barone (1998) apresenta experiências internacionais cuja
referência básica para os sistemas educativos é o mercado. Observa que há
“quase um consenso sobre a íntima relação que se estabelece entre o aumento
do nível educacional da população com maior produtividade e, também, com
maior capacidade para os problemas advindos do desemprego”. Na América
Latina, o ideário para a formação profissional foi difundido pelos diferentes
organismos internacionais. Segundo o Banco Mundial – BIRD, isso se daria
pelo fortalecimento da educação geral (primária e secundária) e com programas
específicos de treinamento/formação profissional. Paralelamente, seguindo a
tendência mundial, haveria “diminuição na intervenção do Estado no
funcionamento dos mercados e a crescente integração do comércio, dos fluxos
de capital e o intercâmbio de informação e de tecnologia” (Barone, op. cit.:
13). No entanto, a importação de estratégias e de outros modelos de países
mais competitivos, não pode ser feita de forma linear.
A América Latina é analisada a partir dos modelos de desenvolvimento
econômico que orientaram a região: nos anos 1940 e 1950, o modelo de substituição
das importações pela industrialização; no campo da formação, implantaram-se
sistemas de formação técnica e profissional, a exemplo do Brasil; nos anos 1960 e
1970, há uma aproximação entre o modelo de formação e os projetos de
desenvolvimento econômico, por meio do treinamento de mão-de-obra.
Dos anos 1970 em diante, ganhando maior expressão nos anos 1990, o
cenário está marcado pela globalização da economia. Há fragmentação do
mercado de emprego, das demandas qualitativas da mão-de-obra, do
atendimento às empresas e do crescimento do setor informal. Critica-se a
formação profissional que não estaria atendendo à modernização das empresas
quanto às habilidades de gestão, trabalho em equipe, controle de qualidade,
capacidade de adaptação e de resolução de problemas. Organismos
internacionais como o Banco Mundial, a ONU e a CEPAL sustentam as novas
tendências de revisão dos programas de educação como condição para a
competitividade dos países. A experiência chilena é apresentada como o modelo

120
PARTE I | AS DÉCADAS DE 1980 E 1990

de formação profissional que responde às medidas de ajuste estrutural definidas


pelos organismos internacionais.
O Chile tem um sistema de formação profissional centralizado e dividido
em dois subsistemas: a educação técnica e profissional ligada ao Ministério da
Educação e a capacitação ocupacional não formal, sob a supervisão do Ministério
do Trabalho. O primeiro atende jovens ainda fora do mercado de trabalho.
Nele predomina, em geral, uma formação de base teórica e geral. A capacitação
ocupacional de trabalhadores é feita por de programas públicos presentes desde
os anos 50. 2 Atendendo a jovens e adultos, é uma formação basicamente
prática, no local de trabalho e/ou em instituições especializadas. Para suprir as
deficiências educacionais da clientela, seu conteúdo vem sendo ampliado com
temas tecnológicos, científicos e culturais básicos. Eduardo Spinoza Martinez
(1992, apud Barone, op. cit.: 23) aponta três aspectos embasadores do modelo
no Chile: subsídio à demanda de capacitação, eficiência na produção de serviços
de capacitação e ação subsidiária do Estado.
Em 1976, com a mudança profunda no papel do Estado na formação
profissional e o Estatuto de Capacitação e Emprego, o Estado deixa de responder
pelos serviços gratuitos, por intermédio do INCAP, e converte-se em financiador
de um sistema voltado para as empresas. De outra parte, o sistema formal de
ensino médio-técnico-profissional passa por uma revisão curricular, pedagógica,
de seleção e de recursos didáticos; criam-se os Centros de Formação Técnica,
oferecendo carreiras de dois a três anos de duração que outorgam o título de
técnico de nível superior nas áreas de administração e comércio (sempre que
não houver estrutura adequada aos ramos tecnológicos), sem conexão com a
educação média técnico-profissional, gerando superposição de títulos confusa
para o público e para os empresários.
Tenta-se, também, implementar o modelo de aprendizagem dual alemão,
com a participação da GTZ e do Serviço Nacional de Capacitação e Emprego do
Chile – SENCE. A partir da aprendizagem dual criou-se o programa Chile Jovem
– para jovens desempregados, com qualificação insuficiente, desertores do sistema
educativo – em organismos privados, sob a regulamentação do SENCE.
Barone conclui buscando refletir sobre a inserção do Brasil nesse debate,
dessa reflexão destacamos alguns aspectos: naquele momento,3 a crítica ao

2
Nos anos 50, a Universidade Técnica do Estado, depois Universidade de Santiago; no início dos anos 60,
o Serviço de Cooperação Técnica e, a partir de 1966, o Instituto Nacional de Capacitação Profissional
– INCAP (Barone,1998: 22).
3
O Decreto n. 2.208 e a Portaria MEC, ambos de 14 de maio de 1997, que trouxeram sérias mudanças ao
ensino médio técnico e à formação profissional no Brasil, não são mencionados.

121
A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico

Sistema S em face do descompasso entre a modernização produtiva e a oferta


de cursos; o ritmo veloz das mudanças na produção; a discussão sobre a demanda
de formação geral em face das mesmas mudanças e a rede formal de formação
profissional – médio técnico federal, estadual e privado; a necessidade de uma
política pública de trabalho e de emprego; a necessidade da formação distribuída
em outros níveis educacionais; 4 formas flexíveis de aprendizagem incluindo
materiais multimídia e ensino a distância combinados às lições tradicionais.
O artigo de Luiz Antonio Cunha (2000), que tem uma particularidade no
trabalho comparativo, procura examinar, historicamente, as políticas educacionais
no Brasil, Chile e Argentina, a partir de uma questão, o dualismo estrutural. As
mudanças levadas a cabo na América Latina nas décadas de 1980 e 1990 seriam
no sentido de aumentar a cobertura educativa para além do período obrigatório
e a transferência entre cursos, no sentido da democratização da educação. Dois
determinantes sociais estariam na base dessas mudanças: a pressão das camadas
sociais de mais baixa renda e a ampliação da escolarização das mulheres. Quanto
aos determinantes econômicos, o autor aponta as novas tecnologias, de modo
especial, a informática, na produção de bens e serviços, nas organizações públicas
e privadas; a abertura dos mercados, a globalização e a pressão para aumentar a
produtividade dos trabalhadores no sentido de enfrentar a competição
internacional.
Registra, ainda, a tendência identificada na América Latina, por Ramon
Casanova (1998), de “homogeneização das referências intelectuais e técnicas
trazidas pela difusão dos modelos dos organismos internacionais”, de modo especial
o Banco Mundial – BIRD e o Banco Interamericano de Desenvolvimento –
BID. Cunha confirma as recomendações do BIRD sobre a educação técnica e
profissional desde o início da década de 1990, no sentido de mudança na estrutura
educacional, de separação da educação e da capacitação, para vincular mais
estreitamente a capacitação com a economia. Chega a recomendar a retirada
das escolas técnico-profissionais do âmbito do Ministério da Educação. Manifesta
sua preferência pelo “modelo latino-americano de formação profissional”,
originário do Brasil, nos anos de 1940, e tem como estratégia privilegiar o setor
privado (BIRD, 1992, apud Cunha, op. cit.: 48-51).
David Wilson destaca a orientação do BIRD como parte de uma
concepção “etnocêntrica” das agências financeiras internacionais, baseadas

4
Naquele momento, pelo Decreto n. 2.208, já estavam em curso os níveis básico, técnico e tecnológico
nas escolas técnicas, além do Plano Nacional de Qualificação – PLANFOR, levado adiante pelo
Ministério do Trabalho e Emprego desde 1995-1996 e atendendo a analfabetos e a alunos dos
diversos níveis de escolarização.

122
PARTE I | AS DÉCADAS DE 1980 E 1990

em três vetores: descentralização (diminuição da gestão das instâncias públicas);


setorização (ou fragmentação da educação técnico-profissional segundo os
setores da economia); e privatização (transferência da adiministração das
instituições públicas para os empresários e “diversificação das fontes de
financiamento” do público para o privado). Outras tendências registradas por
Wilson são a “diferenciação para cima”, passando do secundário ao pós-
secundário para técnicos e para tecnólogos e a substituição da formação
monovalente pela polivalente. O Chile teria sido o laboratório dessas mudanças
(Wilson, s.d., apud Cunha, op. cit.: 51-52).
Sobre o Brasil, Cunha faz um retrospecto histórico-legal da formação
profissional desde os anos 1940, detendo-se, principalmente, nas reformas a
partir de 1995 que, mediante leis e decretos, determinaram mudanças quanto
ao financiamento, à gestão, ao acesso, à avaliação, ao currículo e à carreira
docente e, sobretudo, à separação compulsória entre o ensino médio e o ensino
técnico (impedindo a educação integrada com formação geral e profissional,
por meio de um mesmo currículo). Instituem-se três níveis de ensino profissional:
o básico (incluindo a aprendizagem e cursos breves para adultos, sem requisitos
de escolaridade), o técnico (de nível médio, organizado por módulos) e o
tecnológico (de nível superior). Previram-se, também, os cursos concomitantes
(com duas matrículas na mesma escola ou em escolas diferentes), os cursos
seqüenciais (visando ao retorno à escola para a formação técnica) e um sistema
nacional de certificação profissional baseado em competências
Na Argentina, a recuperação histórica das transformações do sistema
de formação profissional mostra a criação da Universidad Obrera Nacional –
UON, em 1948, como um segmento paralelo aos ensinos secundário e superior
“tradicionais”, com a meta de formar técnicos e engenheiros industriais a fim
de atender às demandas de formação da força de trabalho para o projeto de
desenvolvimento econômico do país e às demandas dos trabalhadores no sentido
de acesso aos cursos de nível médio e superior. Nos anos 80, a formação de
técnicos compreendia dois ciclos, após a escola primária, com a duração de
três anos cada um: o ciclo básico, com matérias de formação geral, e o ciclo
superior, com complementação teórica e científica e formação técnica específica.
Começa nesse período a articulação entre as escolas e as empresas para a
formação de auxiliares técnicos (Cunha, 2000: 59).
A reforma educacional de 1992 estruturou o sistema educacional em
cinco níveis progressivos: (i) educação inicial; (ii) educação geral básica; (iii)
educação polimodal; (iv) educação superior; e (v) educação quaternária. O
ensino profissional só consta do ensino superior. A educação técnico-profissional

123
A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico

consta de um dos regimes especiais, mediante ofertas específicas, por “necessidades


do educando ou do meio”. Por princípio legal “impõe-se a implantação de um
mesmo núcleo de competências fundamentais para todos os alunos, expresso em
parâmetros curriculares básicos” (id. ibid.: 60, grifo do autor).
A educação polimodal tem um mesmo núcleo formativo e social para
todos os estudantes e abrange as seguintes funções: “função ética e de
cidadania; função propedêutica; e função de preparação para a vida produtiva”.
Essas funções são desenvolvidas mediante a formação geral e a formação
orientada, que deve atender aos diversos campos do conhecimento e da vida
produtiva. Podendo ser desenvolvidos nas mesmas escolas que oferecem a
educação polimodal, mas em turnos diferentes, os “trajetos técnico-profissionais”
– TTPs, compostos por um conjunto de módulos que propicia um certificado
técnico, desde que concluído o nível polimodal, e oferecem uma formação
especializada em uma ocupação social e produtiva (id. ibid.: 61-62).
O Chile também é tratado por Cunha que, diferente de Barone, como
em relação aos demais países, faz um cuidadoso resgate histórico da educação
a partir da breve experiência socialista do início dos anos 1970, quando nasce
a Escola Nacional Unificada. Essa escola pretendia superar o dualismo entre a
formação geral e a formação profissional por meio das concepções marxiana,
de politecnia, e gramsciana de escola unitária, unindo teoria e prática, trabalho
manual e trabalho intelectual, mas encontrou forte resistência política.
O golpe militar de 1973 não empreendeu mudanças estruturais na
educação, mas abriu caminho para as profundas reformas econômicas e
educacionais que se iniciaram na década de 1980. A redemocratização do país
a partir de 1990 não alterou a estrutura educacional, mas procurou intervir
nos processos educativos em termos da qualidade da educação e da eqüidade
na distribuição social dos resultados. O segundo governo civil a partir de 1994,
por meio do Relatório Brunner, recomenda eliminar o dualismo entre o “ensino
acadêmico” e o ensino técnico, estabelecendo dois anos de formação geral
para todos os alunos e dois anos seguintes para formação diferenciada, o que
significou “a introdução de conteúdos profissionalizantes nas alternativas
propedêuticas da educação média” (id. ibid.: 66).
Pedro Daniel Weinberg (1999) fala como diretor do CINTERFOT/OIT
em outro contexto histórico-social, buscando traçar as linhas gerais da formação
profissional na América Latina e no Caribe. O momento é o final dos anos 1999,
15 anos depois do texto de Gomes, e as questões são outras. Ele destaca, em
primeiro lugar, um momento anterior, em que as relações de trabalho tratavam
de processos de negociação ou de conflitos sobre salários, estabilidade, força de

124
PARTE I | AS DÉCADAS DE 1980 E 1990

trabalho, benefícios sociais. Os estados tinham o papel de protagonistas nessas


relações; as empresas desenvolviam-se amparadas pelo protecionismo; os
trabalhadores e suas organizações lutavam pelo aprofundamento de seus direitos;
e, pelo modelo de desenvolvimento “para dentro”, era restrita a necessidade de
inovação e de desenvolvimento tecnológico. O desafio em relação à formação
profissional era quantitativo, formar a quantidade: de pessoas qualificadas ou
semiqualificadas requeridas pela indústria (Weinberg, op. cit.: 3-4).
O cenário mudou com as políticas de abertura comercial, o aumento da
importância do conhecimento, a constatação da impossibilidade de um
crescimento produtivo sustentável e indefinido gerando empregos. A formação
profissional passa então a assumir um papel central e estratégico nas relações
de trabalho. E passa a citar os acordos de produtividade e de emprego nos
diversos países: Argentina, Chile, Colômbia, México, Panamá, Paraguai, Peru,
Uruguai. Em linhas gerais, com nomes semelhantes, os distintos acordos visam
à “participação ativa dos atores sociais para aumentar a eficiência e o
direcionamento dos gastos e das políticas” de formação profissional (Argentina);
à participação dos trabalhadores nos comitês bipartidos de capacitação (Chile);
a programas conjuntos de incremento à produtividade (Colômbia); à
modernização educativa e melhoria da capacitação e da produtividade (México).
Em todos os acordos, incluindo-se ainda o Paraguai, o Peru e o Uruguai, a formação
aparece como um dos temas de maior relevância, até nos convênios coletivos
nos diversos setores de atividades. No Brasil, acrescentaram-se algumas regulações
relativas à tecnologia, qualidade e produtividade (id. ibid.: 4-6).
Outro fato assinalado é o protagonismo dos ministérios do Trabalho no
campo da formação, “com a criação e desenvolvimento de secretarias, direções
ou serviços dedicados especialmente ao tema da formação profissional”. No
Chile, desde os anos 70, mas também na maioria dos países da região,
desenvolvem-se programas no campo da geração de políticas de emprego, e,
em muitos casos, impulsionam-se mudanças na institucionalidade da formação,
a fim de tornar as instituições mais flexíveis e adaptadas às necessidades do
mercado de trabalho, com mecanismos de financiamento e de supervisão,
monitoramento e avaliação, enquanto as ações de execução são delegadas a
outras instituições públicas e privadas – a exemplo do Brasil, Chile, México e
Uruguai (id. ibid.: 6-7).
Aspecto também tratado é “a relação existente entre a formação e os
processos de inovação, desenvolvimento e transferência tecnológica”. O autor
considera a “transferência tecnológica” do ponto de vista do indivíduo e também
das empresas, entendida na forma restrita, a nosso ver, de “maior nível de

125
A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico

atualização tecnológica em máquinas, equipamentos e materiais, assim como


em conhecimentos e técnicas aplicadas à produção” (id. ibid.: 7).5
Também mudou o sujeito alvo da atenção das agências de formação
profissional, cuja ênfase deixou de ser colocada no trabalhador individual,
jovem “ao qual se procurava transmitir um conjunto sistematizado de
conhecimentos, habilidades e destrezas vinculadas a uma ocupação”. As novas
experiências formativas preocupam-se também com as empresas (tamanho,
características, cadeias produtiva e organizacional). São citados como exemplos,
no Brasil, o SENAI, os CEFETs,6 assim como o SENAC, particularmente na
educação a distância (id. ibid.: 7-9). Instituições semelhantes foram criadas
no Chile, o CINCATEL do INACAP; na Colômbia, o SENA; na Costa Rica, o
INA; no Peru, o SENSICO e o SENATI; na Venezuela, o INCE.
O último tópico abordado pelo autor é a formação como fato educativo,
no sentido da vinculação com o sistema educativo formal, com a formação
profissional e como se expressa o caráter formativo da educação naquele
momento. Considera que o maior desafio seria a adequação e a atualização
dos conteúdos curriculares e as certificações oferecidas aos novos perfis laborais
que surgiram com as transformações do mundo produtivo e do emprego. São
novas exigências em termos de conhecimentos, competências e habilidades, o
que significa a necessidade de formação continuada, flexiva e dinâmica, durante
toda a vida, e não só “durante quanto tempo se aprende, mas também ao que
e ao como se aprende” (id. ibid.: 12).7
Com caráter ilustrativo, cita diversas experiências de articulação da
educação regular com a formação profissional nos países da região. Na
Argentina, “Trajetos técnico-profissionais (TTP)”, que são ofertas opcionais a

5
Essa noção de transferência tecnológica parece-nos um pouco simplificada. “No caso dos grandes projetos,
aqueles que precisam do aval do governo, como as empresas estatais de energia elétrica, o que se
aproxima da transferência tecnológica consiste em dominar o conhecimento para operar, fazer manutenção,
poder alterar os parâmetros do sistema ou do equipamento e, dependendo do caso, aprender a fabricar.
Processo que difere do caso das montadoras automotrizes cujos projetos vêm prontos das matrizes do
exterior” (Depoimento do engenheiro A C. Pantoja Franco, Rio de Janeiro, set. 2004).
6
Mais especificamente, os Centros Nacionais de Tecnologia – CENATECs, o Centro Internacional para
a Educação, Traballho e Educação Tecnológica – CIET e os Centros Modelo de Educação Profissional
– CEMEP, do SENAI, os Centros Federais de Educação Tecnológica – CEFETs e o SENAC.
7
Enumera as competências já conhecidas: iniciativa, criatividade, capacidade de empreendimento,
pautas de relacionamento e de cooperação; e ainda as de ordem técnica: informática, idiomas, raciocínio
lógico, capacidade de análise e interpretação de códigos diversos (Weinberg, 1999). Em nosso
entendimento, não é nada que uma escola de qualidade não possa atender, oferecendo ainda os
fundamentos científico-tecnológicos histórico-sociais e do trabalho e da produção.

126
PARTE I | AS DÉCADAS DE 1980 E 1990

todos os egressos do sistema polimodal. No Brasil, as experiências da SEFOR/


MTE, da SEMTEC/MEC, das centrais sindicais CUT, Força Sindical e CGT, e
do SENAI e da CNI.8 No Uruguai, com apoio do BID, a Direção Nacional de
Emprego concebeu e implementou um sistema de normatização, formação e
certificação de competências em torno de quatro eixos principais: estudo
comparativo dos sistemas de outros países, experiências piloto em diferentes
setores da economia e proposta de possíveis estratégias para um Sistema Nacional
de Capacitação. Ocorreu também uma reforma educativa relativa à formação
técnica e tecnológica para articulá-la ao sistema regular e oferecer educação
básica e média integral.
No Brasil, é citado também o caso do SENAC, que comprovaria ser, no
atual contexto da organização do trabalho, a polivalência a melhor proposta. Busca-
se atender às competências técnico-operativas, privilegiando as competências
cognitivas e sociocomunicativas. O novo modelo curricular tem por objetivo a
realização de três interesses básicos: o técnico, o consensual e o emancipatório.
Quanto à institucionalidade da formação profissional na região, havia,
até algumas décadas atrás, a formação planificada e oferecida pelo Estado, a
formação gerenciada pelas organizações empresariais e a formação dentro do
sistema educativo regular. Tentando estabelecer uma nova tipologia,
apresentam-se em quatro arranjos organizativos: (i) em instituições nacionais
ou setoriais; (ii) em uma instituição complementada por esquemas de gestão
compartilhada e por centros colaboradores; (iii) arranjos de lógicas diferentes,
como apenas definir políticas sem as executar (caso da SEFOR); (iv) definição
exclusiva pelo Ministério do Trabalho e execução por diversos atores.9 Conclui
destacando: a heterogeneidade maior hoje do que anteriormente, a pluralidade
de agentes que atuam no campo formativo; a diversidade de instituições; a
discussão sobre o papel subsidiário do Estado.

2. A formação profissional e técnica em países desenvolvidos


Nos países desenvolvidos, assim como nos países latino-americanos, as
políticas que buscam aumentar a formação profissional se devem, em primeiro
lugar, à busca do aumento da competitividade em escala mundial; em segundo,

8
Sobre os programas de educação profissional da SEFOR e de programas sindicais, é abundante a crítica
no Brasil. Entre outros, ver Cêa, 2003, Ventura, 2001, Molina, 2004, Ciavatta, 2001.
9
Alguns países do Caribe não se inserem nessa lógica: Cuba, Belize, Granada, Guiana, Santa Lucia,
Trinidad e Tobago.

127
A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico

às mudanças provocadas pelo intenso desenvolvimento científico-tecnológico


na estrutura produtiva. Nos países desenvolvidos há estreito vínculo entre a
formação profissional e o sistema educacional, o que não ocorre nos países
latino-americanos. Os debates mostram que o trabalho não pode prescindir do
sistema de educação formal.
Entre os autores selecionados para esse tema, está Barone (1998) que
destaca os países europeus, Alemanha, Reino Unido e França; e Estados Unidos,
Japão e Chile – este último, apresentado na seção anterior.
Na Alemanha, o modelo principal da formação profissional é a
“aprendizagem dual que, inserida no âmbito da educação formal, conta com a
participação marcante das empresas (...) instrução prática na empresa e
formação teórica nas escolas de tempo parcial, atendendo às regras estabelecidas
pelo governo federal” (Barone, op. cit.: 14).10 Há um “contrato de formação”
entre a empresa e o aprendiz. A empresa tem influência na definição dos
conteúdos, de sua organização; o Estado desonera-se dos custos da formação,
que são repassados às empresas. Aproximadamente, 500 mil empresas dos
diversos setores da economia participam do modelo, que conta com baixa taxa
de repetência e/ou abandono e com a “empregabilidade” dos titulados.
Concomitantemente, favorece-se a descompressão do sistema universitário.
Baseada em estudo da CEPAL, a autora afirma que o modelo dual já estaria
sendo discutido em países latino-americanos (Uruguai, Paraguai, Chile, Brasil,
Argentina, República Dominicana, Colômbia, Guatemala e Peru).
No Reino Unido, a preocupação com a formação profissional é resultante
da passagem de uma sociedade de base industrial para outro modelo, alicerçado
em serviços. Destacam-se dois tipos de formação profissional: a educação
tecnológica das escolas, a educação formal, de base científica e tecnológica,
métodos tradicionais e conteúdos modernos, que privilegiam a observação de
produtos tecnológicos e sua remontagem; e a formação modular voltada para
ocupações tecnicamente afins. Como os conjuntos de módulos, há os “itinerários
de formação profissional” para cada ocupação.
Na França, o sistema escolar regular e a formação profissional são afetados
pelas mudanças em curso na sociedade: aposentadorias antecipadas,
feminização do emprego, altas taxas de desemprego e novas demandas postas

10
Outros modelos são “o curso de formação profissional básica (abarca um ofício), as escolas profissionais
especiais (um a três anos de curso), escolas profissionais de tempo completo em diferentes modalidades,
o curso complementar de educação técnica, a escola superior de ensino profissional, o ginásio
profissional e as escolas especializadas e, ainda, formação contínua (formação de adultos)” (Barone,
1998: 15) (grifo da autora).

128
PARTE I | AS DÉCADAS DE 1980 E 1990

pela produção.11 A formação profissional é responsabilidade do Ministério da


Educação, na fase inicial, e do Ministério do Trabalho, Emprego e Formação
Profissional para a formação contínua. Nos anos 1980, houve uma atualização
do modelo incluindo a formação em alternância para os jovens, como primeira
qualificação reconhecida, e ações para inserção no emprego para os adultos.
Outras mudanças referem-se à inserção de jovens, tais como os contratos de
orientação; reconhecimento do balanço de competências pessoais e profissionais
e regulamentação das cláusulas do crédito de formação e da formação fora do
tempo de trabalho.
A partir de 1990, gerou-se uma legislação de controle de qualidade da
formação, vinculada aos direitos dos usuários. Desde 1993, o sistema passou
a recolher de 1,5% a 0,15% sobre a massa salarial para um fundo de seguro
de formação. O fundo público assegura dois terços das verbas destinadas à
formação contínua.
O sistema de formação profissional estrutura-se em três ramos: (i) ensino
profissional que proporciona a qualificação profissional em um ofício e permite
obter em dois anos um CAP (certificado de atitude profissional) em uma das
250 especialidades, ou um BEP (diploma de estudos profissionais) em uma das
50 especialidades ou, em quatro anos, um baccalauréat profissional, que
responde diretamente às necessidades das empresas de mão -de- obra
qualificada; (ii) o segundo ramo é o ensino tecnológico presente no baccalauréat
tecnológico e nos diplomas universitários tecnológicos (DUT) e certificados
técnicos superiores, com cursos de curta duração; (iii) o terceiro ramo é o
ensino superior, com vários segmentos profissionais (id. ibid.: 17, grifo da autora).
O acesso aos diferentes ramos de formação profissional pode ser feito
pela formação em alternância e, em particular, pela aprendizagem que confere
ao jovem o estatuto de trabalhador, e não de estudante e conta com a
participação direta da empresa, com duração, em geral, de dois anos, podendo
ser modulada. Um fator importante do êxito dessa modalidade é a criação de
um curso com a comprovação da existência da demanda. Para todas as

11
Obrigatório dos seis aos 16 anos e gratuito, a estrutura organizativa do sistema francês apresenta três
níveis: a académie, unidade regional que implanta as determinações do Ministério da Educação; a
commune, que cuida da construção, manutenção e serviços não pedagógicos; e a unidade escolar, que
implementa as determinações e responde pelo orçamento da escola. O sistema francês está estruturado
em três graus: o primeiro grau, que compreende o pré-escolar e o ensino elementar; o segundo grau,
com um primeiro ciclo de dois anos de formação geral e o segundo ciclo, em que os alunos podem optar
por dois anos com perfil humanístico ou tecnológico; e o superior, integrado pelas grandes écoles com
formação profissional para ocupações específicas. (Barone, 1998: 17).

129
A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico

modalidades de formação em alternância designa-se um tutor entre os


trabalhadores qualificados das empresas para, no máximo, três jovens.
Nos países da Comunidade Européia – o estudo cita, particularmente,
Bélgica, França e Itália – há um esforço no sentido da melhoria das habilidades
da formação da força de trabalho e a busca de qualificações equivalentes nos
diversos estados membros.
Os Estados Unidos ressentiram-se nos anos 1980, da perda de
competitividade econômica frente aos países asiáticos, debitando ao sistema
educacional a relação negativa entre a formação e as necessidades das empresas.
Avaliações escolares em Matemática, Ciências e Comunicação mostraram um
desempenho insuficiente dos estudantes, elevados índices de analfabetismo
funcional entre os trabalhadores norte-americanos, mesmo com diploma de
nível médio (high school). Dois vetores orientaram as ações voltadas para a
formação de trabalhadores, o desenvolvimento de habilidades básicas e o ensino
técnico a partir da utilização de modernas tecnologias.
Para suprir as habilidades básicas (ler e escrever, e noções de matemática)
criaram-se programas de caráter paliativo, envolvendo sindicatos, instituições
educacionais e governos. Na estrutura de ensino, “o governo tem conseguido
homogeneizar livros-texto, material didático, equipamentos e treinamento de
professores”.12 O ensino técnico tem como eixo um treinamento baseado em
programas de capacitação, a partir de tecnologias instrucionais, em que
diferentes sistemas de informação buscam substituir as situações reais, o que
se tem mostrado eficaz para a inserção de trabalhadores nos contextos de
mudanças no trabalho. É um sistema descentralizado no qual o governo federal
sugere planos de ação e os estados têm autonomia na implementação. O sistema
garante rapidez frente ao mercado mas dificulta a aquisição de habilidades
básicas e de um padrão de formação geral (id. ibid.: 19).
Ainda no sistema formal, há os cursos de iniciação (Junior Colleges,
Technical Institutes, Community Colleges), pós-secundários que realizam a
formação prática durante o dia e a formação complementar no período noturno,

12
O sistema está estruturado em 12 anos de estudo obrigatório com três níveis de ensino: a
escola elementar (seis anos), a escola média (três anos) e a escola secundária (três anos) –
com diferente modalidades: Junior e Senior High School, Vocational High School (para jovens dos
15 aos 18 anos) e a área Vocational High School (a partir dos 18 anos, para ocupar postos no
mercado de trabalho). Uma mesma escola secundária, dependendo das instalações, pode
oferecer tanto matérias acadêmicas quanto formação profissional, e os alunos podem montar
seus próprios programas de estudo. Esse modelo acaba criando “muitas escolas dentro de
uma escola” (Barone, 1998: 19).

130
PARTE I | AS DÉCADAS DE 1980 E 1990

além do ensino politécnico oferecido por algumas universidades e institutos


tecnológicos. Os trabalhadores, porém podem qualificar-se também em escolas
privadas, em programas de treinamento oferecido pelas empresas (sobre
processos e produtos, para o trabalho em equipes ou treinamento técnico
específico) e por aprendizado durante o processo de trabalho (on the job training).
Como problema, a autora aponta a ausência de certificação com validade em
todo o país e “a requalificação dos trabalhadores, empregados ou não, em um
ritmo adequado” (id. ibid.: 20).
No Japão, o sistema de ensino é descentralizado e tem o apoio
administrativo e a coordenação do Ministério da Educação Federal. É gratuito
em todos os níveis. Os conselhos locais de educação são responsáveis pelo
orçamento das escolas, pelos programas educacionais, pela seleção escolar e
pela a supervisão das escolas primárias e secundárias inferiores.13
A formação profissional está estruturada a partir da formação profissional
não-formal e da pré-ocupacional. A primeira ocorre em três modalidades: sistema
público (planificado, operacionalizado e financiado pelos governos central e
locais); sistema semipúblico, administrado e operacionalizado por organismos
não governamentais e empresas autorizadas com subsídios públicos; e escolas
vocacionais não-formais dependentes do Ministério da Educação. Os dois
primeiros são sistemas supervisionados pelo Ministério do Trabalho e se realizam
como cursos gerais de formação (de um a dois anos ou de seis a 12 meses); ou
cursos de formação avançada (de um a dois anos ou de dois a três anos)
(id. ibid., grifos da autora).
A formação pré-ocupacional ocorre em diferentes instituições, com gestão
e financiamento realizados pelas empresas, a partir de uma sólida formação
básica. É uma formação profissional marcada não pela “cultura da profissão”,
mas pela “cultura da empresa”, em que a identidade profissional é substituída
pela fidelidade à empresa. Entretanto a certificação da formação profissional é
de competência do Ministério do Trabalho.
Entre os problemas, apontam-se “saturação educacional” e processos
extremamente competitivos de seleção para a universidade. Em contraposição,
observam-se queda no desempenho escolar, evasão escolar e grande número

13
É gratuito em todos os níveis “(...) desde o jardim de infância até a formação superior, representada
pelos estudos de mestrado e doutorado (...)”. “A educação obrigatória compreende nove anos de escola
primária e secundária média, período em que não é oferecido nenhum tipo de ensino vocacional ou
técnico”.A iniciativa privada atua nos níveis anteriores e posteriores à educação obrigatória (SENAI.
DT. CIET, 1996, apud Barone, 1998, p. 20). A autora registra que 100% da população tem educação de
nove anos, 94% tem o ensino de segundo grau (médio), e 40% tem o superior completo.

131
A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico

de desistentes, em meio a uma relação meritocrática que associa êxito escolar


e carreira profissional.
Para Marc Maurice (2001), ao lado da pesquisa e do desenvolvimento,
a formação geral e profissional constitui “um dos principais determinantes de
competitividade” internacional. Trata-se do desenvolvimento das competências
em todos os níveis e da qualidade de sua coordenação. Sua pesquisa compara
três países: França, Alemanha (ex-Alemanha Ocidental) e Japão.14
Um legado geral de última década, segundo o autor, é que “se esteve
mais atento às novas formas de organização e de gestão das empresas do que
aos modos de aquisição e transmissão de conhecimento e savoir-faire”, o que
indica novos modelos de relação entre a escola e a empresa e entre as
comunidades locais. Do ponto de vista das empresas, “as diferentes formas de
produzir e de inovar são também associadas às formas particulares de aquisição
e de utilização das competências” (id. ibid.: 91-92).
O sistema educacional da França evidencia o empenho em reforçar a
importância atribuída à formação geral dos operários e dos técnicos, “inspirando-
se no sistema dual alemão de formação por ‘alternância’ (escola/empresa)”.
Mas a “via nobre” continua sendo a universidade e as Grandes Écoles de
engenharia. Apesar do reconhecimento da via profissional-técnica, mantém-
se a hierarquia do sistema.
Na Alemanha, o sistema “valoriza particularmente a formação
profissional, sem que esta seja hierarquizada em relação à formação geral”.
Trata-se de outra lógica de formação. A diferença entre engenheiros mais
“práticos” e mais “teóricos” demarca um “espaço de qualificação” que repousa
mais “na especialidade de sua competência do que no seu estatuto hierárquico”.
Esse “espaço de qualificação” funda-se na formação profissional inicial (de
aprendiz) e na formação continuada (id. ibid.: 95-96).
Na Alemanha há interdependência entre o sistema de formação e o
sistema produtivo das empresas. Formação e organização reforçam-se
mutuamente para o desenvolvimento da capacidade produtiva da empresa e
para a profissionalização dos trabalhadores. Na França, o acesso aos empregos
é menos diretamente ligado ao diploma. O reconhecimento da qualificação
prioriza uma certa antigüidade na empresa em detrimento do diploma, até
mesmo para a mobilidade interna.

14
Como esses países já foram tratados por outros autores no presente trabalho, apenas nos deteremos em
algumas questões mais gerais.

132
PARTE I | AS DÉCADAS DE 1980 E 1990

No Japão, o sistema assemelha-se ao francês na ênfase atribuída à


formação geral e desvalorização do ensino profissional de base e intermediário.
A reforma educacional de 1947 abriu mais espaço para a formação geral e, ao
integrar o ensino técnico ao segundo ciclo do ensino secundário, trouxe-lhe
certa desvalorização. Contribuiu, assim, para reforçar a tendência de as empresas
assumirem a formação profissional de seus profissionais desde os operários até
os engenheiros e gerentes, havendo acordos de liceus e universidades com os
empregadores. Os melhores alunos são oferecidos às empresas. São relações
institucionalizadas, controladas por uma “agência nacional de emprego”.
Tende-se, porém, a valorizar mais a capacidade de aprender do que as
competências já adquiridas, de alargar as competências ou savoir-faire a partir
de um fundamento profissional que corresponda ao domínio de uma tecnologia
ou de um produto. Formam-se mais “generalistas” do que “especialistas”. O
autor observou ainda uma tendência a “socializar’ os saberes, coletivizando-
os. Com base na formação continuada cada um deve estar pronto para aprender
muitas vezes ao longo da vida e também a ser um formador. Os princípios
complementares são a antigüidade e o engajamento na vida da empresa. (id.
ibid.: 103-04).

3. Destacando algumas conclusões


A principal característica que se destaca na comparação entre os países
latino-americanos e os países desenvolvidos é que a formação profissional e
técnica é implementada, nestes últimos, tendo a educação regular, fundamental
e média universalizada. Significa que a formação profissional ocorre a partir
de uma base de cultura científica e humanista, diferente do que acontece nos
países latino-americanos, em desenvolvimento, em que essa base ainda não foi
alcançada por todos e, principalmente, pelas populações desfavorecidas
socioeconomicamente, para as quais se destinam muitos dos programas de
formação fomentadas pelas agências internacionais e acolhidos
entusiasticamente pelos governantes desses países.
Barone abstém-se de uma crítica à ideologia neoliberal com base na
internacionalização da economia, na privatização dos serviços, na ideologia do
Estado mínimo, apregoada como a solução para os problema dos países em
desenvolvimento.
Cunha, em suas conclusões, destaca os aspectos de política educacional.
Desde os anos 70, houve projetos de eliminação da segmentação do ensino
médio, seja para conter a demanda ao ensino superior, no caso da

133
A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico

profissionalização compulsória no Brasil, seja pela tentativa de implantar a


escola politécnica ou unitária, no caso do Chile. Ambos os projetos fracassaram,
e retorna-se à dualidade entre a educação geral propedêutica e educação
técnico-profissional.
Nos anos 1990, destacam-se três medidas: adiamento do momento em
que os alunos optam pelo ensino propedêutico ou pelo profissional; inclusão de
conteúdos profissionalizantes no ensino propedêutico; e outorga de certificados
técnicos em cursos modulares, servindo para o prosseguimento dos estudos.
Essas medidas correspondem às orientações das agências financeiras
internacionais, com adaptações particulares a cada país. Em comparação com
as situações do Chile e da Argentina, “essa orientação tem se revelado mais
marcante no Brasil” (Cunha, op. cit.: 67-68).
No Brasil, a descentralização levou à transferência de escolas técnicas
do âmbito da educação para a ciência e a tecnologia (no caso dos estados do
Rio de Janeiro e de São Paulo), ao financiamento preferencial do Programa de
Reforma da Educação Profissional – PROEP para o “segmento comunitário”; à
“diferenciação para cima”, transformando as escolas técnicas federais em centros
de educação tecnológica para formação em nível superior, de tecnólogos. Com
a volta à democracia, o Chile retorna ao objetivo de integrar os estudos
acadêmicos aos profissionais, enquanto o Brasil e a Argentina “assumem o
lugar de laboratórios daquelas medidas” (id. ibid.: 68).
Weinberg aponta algumas virtudes e alguns defeitos dos sistemas: em
primeiro lugar, à persistência de um enfoque baseado na oferta das instituições
nacionais, contrapõem-se a aproximação com as demandas do mercado e da
sociedade, o aumento da oferta privada de capacitação e a cultura da avaliação
dos resultados. Em segundo, o mercado atua com uma visão de curto prazo,
que não pode substituir políticas de longo prazo. Tenta-se um consenso na
região sobre as condições de eqüidade dessas políticas, sabendo-se que a
expansão e a diversificação da oferta formativa não implicam maiores níveis de
eqüidade; as políticas de formação e de desenvolvimento econômico sinalizam
a elevação dos níveis de produtividade e de competitividade; a crítica ao tipo
de financiamento concentrado no modelo de instituição nacional em favor da
ampliação com empresários, trabalhadores e outros âmbitos institucionais e a
multiplicação de alternativas de financiamento.
E apresenta algumas conclusões: (i) a formação profissional passou a
ocupar um lugar estratégico nos sistemas laborais da região; (ii) converteu-se
em matéria de negociação nos acordos coletivos; (iii) os maiores esforços sobre
inovação, desenvolvimento e transferência tecnológica ocorrem nos espaços

134
PARTE I | AS DÉCADAS DE 1980 E 1990

formativos, em que a unidade de atenção não é apenas o trabalhador, mas as


unidades produtivas, os setores e cadeias produtivas e de serviços; (iv) o caráter
educativo da formação profissional vincula-se ao conceito de “educação
permanente”, como, por exemplo, na educação de adultos.
Nos países desenvolvidos, além da articulação entre os sistemas regulares
de formação e os programas de formação profissional entre ministérios e outras
instâncias da vida do país, observa-se que o dualismo social e educacional
(inerente ao mundo capitalista) é atenuado pelas conquistas sociais que
garantem melhor educação e melhores condições de trabalho ou de suporte
do Estado na situação de desemprego. São também menores e parecem
socialmente irrelevantes, no caso da Alemanha, os preconceitos advindos da
divisão trabalho manual/trabalho intelectual.
Metodologicamente, os estudos comparados apresentados
avançaram na direção de sua contextualização na história social e econômica
da cada país, levando à compreensão da formação profissional em sua
particularidade histórica. Todavia ainda é débil a crítica à forma perversa como
as necessidades capitalistas se traduzem em processos de formação profissional
enviesados ideologicamente, em países dependentes como os da América
Latina, impondo soluções paliativas ou criando consenso para sua aceitação,
em lugar da necessária universalização de uma educação fundamental e média
de qualidade para todas a população.

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136
PARTE II | A DÉCADA DE 1980

PARTE II | A DÉCADA DE 1980

137
A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico

138
PARTE II | A DÉCADA DE 1980

CAPÍTULO 1 | PROGRAMA DE MELHORIA E EXPANSÃO


DO ENSINO TÉCNICO: EXPRESSÃO DE UM CONFLITO
DE CONCEPÇÕES DE EDUCAÇÃO TECNOLÓGICA1

GAUDÊNCIO FRIGOTTO
MARIA CIAVATTA FRANCO
ANA LUCIA MAGALHÃES

Introdução
A discussão que levantamos neste texto resulta de um trabalho de
pesquisa mais amplo sobre “Melhoria e Expansão do Ensino Técnico Industrial
no Brasil”.2 A expansão previa a construção de 200 Escolas Técnicas Industriais
e Agrotécnicas. No âmbito das Escolas Técnicas Industriais, foram de fato
construídas até 1990, não mais do que meia dúzia de escolas. Neste artigo
preocupamo-nos, sobretudo, em demarcar sob que concepção se estrutura esse
programa e mostrar que ele reedita as velhas concepções de “capital humano”.
O exame dos parcos e sucintos documentos que tratam do programa de
Expansão do Ensino Técnico (exposições de motivos e relatórios técnicos) e os
dados empíricos que analisamos nos indicam que esse programa revela, ao
mesmo tempo:
a) uma nítida visão produtivista da educação, uma visão dual e
fragmentária, reduzindo o papel das escolas técnicas a uma adaptabilidade ao
“mercado de trabalho” e ao sistema produtivo. Como adesivo, aparece colado
a um discurso humanista genérico do valor do trabalho;
b) que o programa de expansão e melhoria inscreve-se numa perspectiva
neoliberal de organização econômica, política e social e, enquanto tal, funda-
se em pressupostos falsos e de conseqüências profundas para a sociedade, no

1
Publicado originalmente em Contexto & Educação, Revista de Educación en América Latina y Caribe,
7 (27), Ijuí: Editora Unijuí, jul./set. 1992: 38-48.
2
Acompanhamento, documentação e análise dos programas de melhoria e expansão do ensino técnico
industrial, 1984-1990. Niterói: INEP/UFF, 1990. Sob a coordenação dos autores supra citados.

139
A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico

plano interno e em sua relação com o mundo desenvolvido. Na mesma óptica


situa-se hoje em termos de concepção e proposta de “Educação Tecnológica”;
c) que o programa se desenvolve numa conjuntura, em que o golpe
militar e seu projeto econômico-social encontram-se em crise, e instaura-se
um processo de redemocratização da sociedade. No seio do próprio aparelho
de Estado, o horizonte das concepções educacionais e das políticas públicas
indicavam diferenças profundas.
O primeiro aspecto, visão produtivista centrada na idéia de mercado,
reflete a forma dominante ainda hoje de se conceber a educação. Resulta de
um sistema de valores mais amplo que permeia todo o tecido da sociedade.
Trata-se de uma sociedade cindida em grupos ou classe sociais, em que a
“classe trabalhadora” é concebida e produzida como mercadoria; uma sociedade
cujo fim fundamental é a maximização do lucro e não a satisfação coletiva das
necessidades humanas. Nesse sentido, o grande e fundamental educador é o
capital, disfarçado sob a categoria “mercado de trabalho”. A dualidade e
fragmentação do projeto educativo é decorrência necessária do plano material
dessa organização social, bem como da própria organização e da própria
organização e da visão social do trabalho (Enguita, 1991).
A grande questão não é organizar o sistema econômico e político que
maximize a satisfação das necessidades humanas coletivas, mas adaptar a
educação, a qualificação técnica, ao “mercado”, ao sistema produtivo. É nesse
sentido que, para Istvan Mèszáros, a questão central do debate educacional
hoje é: as instituições, incluídas as educacionais, foram feitas para os homens
ou os homens devem continuar a servir as relações sociais de produção
alienadas? (Mészáros, 1981).
A visão produtivista da escola falseia vários problemas. Além do
reducionismo da concepção de sociedade, trabalho, homem, educação (Frigotto,
1984), assenta-se sobre uma categoria – “mercado de trabalho” – que, na
realidade brasileira, é despida, não saturada de conteúdo histórico. O que é o
“mercado de trabalho” numa sociedade em que 50% ou mais da PEA (população
economicamente ativa) está no setor informal da economia? De outra parte,
como veremos adiante, a retomada do desenvolvimento deu-se sobretudo por
uma crescente incorporação de tecnologia e tecnologia na base da
microeletrônica, informatização, robótica, biotecnologia, engenharia genética.
Não há setor da economia que não seja atingido. A própria divisão entre os
setores primário, secundário e terciário fica borrada. Apenas para exemplificar,
sinalizo a entrevista com um engenheiro de solda da White Martins. Ele afirmava
que estava encomendando 14 máquinas que produziam, a custos bem mais

140
PARTE II | A DÉCADA DE 1980

baixos e processando matéria-prima, em 45 segundos, peças que demandariam


de um trabalhador qualificado aproximadamente 45 minutos. Notícias como a
que descrevemos abaixo tendem a se multiplicar:
O empresário Luciano Setogni, proprietário da fábrica paulista Novo Rumo,
decidiu aplicar US$ 6,5 milhões de dólares na construção de uma nova unidade
em Sorocaba, São Paulo. Essa será a primeira fábrica de móveis da América
Latina a usar robôs e equipamentos computadorizados de terceira geração.
“Importamos tudo da Itália e com isto vamos empregar apenas 50 pessoas ao
invés das 800 que seriam necessárias se utilizássemos os equipamentos
convencionais”, conta o presidente da empresa prevendo um faturamento de
US$ 13 milhões para este ano. Com este investimento, as cadeiras da fábrica
vão ficar 50% mais baratas (Jornal do Brasil, 25/10/90).

No caso das Escolas Técnicas Federais, o falseamento é mais grave, pois


supõe-se que os egressos de escolas profundamente seletivas e elitizantes –
que dispõem de vestibulares com uma relação candidato/vaga que pode atingir
20 ou mais candidatos por vaga – se incorporem ao mercado no nível de
técnicos. Uma pesquisa da Coordenadoria de Orientação Educacional da Escola
Técnica Federal de Pernambuco mostra que aquela escola, até anos atrás
freqüentada por filhos de operários, é hoje um “colégio de ricos” (JB, 20/06/89,
Caderno 1, p. 6). Para não mascarar a questão, é preciso insistir que não se
trata de acabar com as escolas técnicas de segundo grau, mas de romper com
a visão dualista e fragmentária de educação e mudar-lhe a função social.
Talvez o falseamento mais grave seja o de uma organização adaptativa
do conteúdo escolar e da própria concepção fragmentária de conhecimento,
cujo resultado reforça, de forma irreversível, a divisão internacional, hoje não
mais manual, mas intelectual do trabalho. Trata-se de uma política (orientada
por organismos internacionais) cujo resultado é formar decodificadores,
consumidores de produção de ciência e tecnologia. A idéia de adaptação ao
mercado, salvo poucas exceções, é dominante na organização educativa dessas
escolas. É importante registrar, todavia, que a intensa participação de professores
das escolas técnicas nos debates educacionais efetuados na década de 1980
propiciou em muitas dessas escolas o surgimento de análises que apontam, na
prática, para mudanças tanto da concepção educativa, quanto da função social
das escolas.
A Lei n. 5692/71, que previa a terminalidade de acordo com as
necessidades do trabalho e que expressa o último instrumento (perverso) de
política educacional na perspectiva da adaptabilidade ao projeto econômico e
político dos governos militares, prolongado na transição e até hoje, tem um

141
A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico

significado mais crucial do que o aparente. Somos hoje, um país com 31 milhões
de analfabetos absolutos. E quantos semi-alfabetizados?
O Programa de Expansão e Melhoria do Ensino Técnico filia-se a esse
horizonte produtivista, fragmentário e adaptativo de conhecimento. A ciência
e o conhecimento aparecem como um dado e não como um processo.
Esse sistema de valorização que perpassa a concepção da realidade em
seu conjunto, sob uma óptica racionalista a-histórica, produz uma forma inversa
de apreender o processo de desenvolvimento econômico-social capitalista e
nivela realidades profundamente diversas no plano das relações de poder
internacionais. Quando indicamos que o Programa de Expansão e Melhoria
das Escolas Técnicas se inscreve numa visão neoliberal conservadora, indicamos
ao mesmo tempo a apreensão dessa inversão que postula que o progresso técnico
– base fundamental para o desenvolvimento hoje – ao mesmo tempo amplia a
oferta de emprego, e essa ampliação exige, generalizadamente, a ampliação
das qualificações.
A filosofia que embasa a melhoria e a expansão do ensino técnico, em
sua justificativa básica, alinha-se ao Programa de Empreendimentos Conjuntos
para a Expansão e Desenvolvimento da Educação Tecnológica – PROENCO,
cuja perspectiva assenta-se na concepção já referida.
É inegável que o estágio industrial em que se situa o país está a exigir a
formação de recursos humanos para o mercado de trabalho, hoje já bastante
exigente, e é evidente que o volume e a qualidade da oferta presentes não
atendem às necessidades da estrutura produtiva, mormente naqueles setores
em que se pode prever rápidos avanços tecnológicos. É de todo pertinente
registrar, ainda, que a esperada retomada do crescimento deverá imprimir maior
sofisticação ao processo de produção do setor econômico, aumentando, ainda
mais, a demanda do ensino profissional.
Teórica e tecnicamente, as pesquisas que examinam a relação entre
processo produtivo, processo de trabalho e formação técnica profissional desde
a Primeira Revolução Industrial consolidam cada vez mais a análise que indica
a tendência do processo produtivo de transformar o trabalho complexo (o que
exige ampla qualificação do trabalhador) em trabalho simples (o que exige um
mínimo de qualificação). Esse processo dá-se mediante a crescente incorporação
da ciência e da técnica (capital morto) no processo produtivo. Nele, o que
importa é um corpo coletivo de trabalhadores, permutável e disponível,
gerenciado e administrado pelo capital (Braverman, 1977; Gorz, 1980 e 1981).
No âmbito mais específico da relação trabalho, processo produtivo e
educação, as análises de Zicardi (1979), Salm (1980), Frigotto (1983), Salgado

142
PARTE II | A DÉCADA DE 1980

(1984) e Kuenzer (1985), no fundamental, concordam na apreensão da lógica


apontada. Decorre dessas análises a contestação de dois mitos já lembrados e,
no caso da expansão das escolas técnicas, enfatizados: o de que o progresso
técnico exige crescente qualificação de mão-de-obra, de forma generalizada,
e o de que esse progresso amplia a oferta de trabalho, tendendo ao pleno
emprego. As análises anteriores indicam que essa é uma visão que apreende a
realidade por seu contrário, ou seja, nem o progresso técnico demanda de
forma generalizada crescente qualificação do trabalhador, nem amplia a oferta
de emprego. Ao contrário, elimina algumas ocupações, cinde outras, transforma
e simplifica, ainda que crie meios. No caso da empresa de móveis robotizada,
passou, como vimos, de 800 para 50 trabalhadores.
Analisando dados censitários (1940-1947) e tentando apreender a relação
entre educação e estrutura ocupacional, Zicardi chega à seguinte conclusão:
Os dados que foram trabalhados nesta pesquisa permitiram comprovar que é
falso supor que o avanço do capitalismo trará necessariamente uma elevação
(ou uma demanda à elevação) do nível educacional para o conjunto da
população. Verificou-se, fundamentalmente no caso dos trabalhadores manuais
que a elevação do seu nível educacional não constitui requisito para o acesso
a essas posições ocupacionais. Mais, ainda, afirmou-se que com a posse de
conhecimentos – tais como o saber ler, escrever e contar (alfabetização
funcional) acham-se aptos para integrar-se ao mercado de trabalho. Quer
dizer, para essa fração da força de trabalho, o processo de socialização
ocupacional realiza-se especialmente na unidade de produção. E se se considera
que estes trabalhadores constituem a fração majoritária da força de trabalho
ocupada, percebe-se a falsidade das argumentações no sentido de que são
“objetivos” do sistema produtivo que requerem uma elevação do nível
educacional do conjunto da população (Zicardi, 1979).

O acompanhamento da história do SENAI elucida, no caso brasileiro, o


que essas análises afirmam. Se em 1942 o grande esforço humano e financeiro
(90%) era em cursos de aprendizagem, que envolviam ensino de linguagem,
ciência, desenho, além das séries metodológicas, práticas, já no início da década
de 1980 invertia-se a ênfase do investimento, sendo a mesma proporção em
treinamento rápido, feito dentro da própria empresa (Lei n. 6.297/75). O debate
ocorrido na Constituinte pleiteava que SENAI e SENAC passassem para o
Ministério do Trabalho com alocação de recursos à Previdência Social. O mero
ressurgimento dessa questão, já levantada no início da década, aponta a mudança
do padrão tecnológico do desenvolvimento industrial brasileiro. O que era vital
em 1940 é “desnecessário” hoje. Novas e mais completas qualificações são exigidas
hoje a um pequeno contingente de trabalhadores estáveis.
143
A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico

Análises mais recentes (Schaff, 1990; Ramon Peña 1989; Markert, 1990;
Frigotto, 1990; Segre e Lianza, 1990; Teixeira e Martins, 1990, entre outras)
apontam que a “nova” revolução científico-tecnológica, comandada pela
microeletrônica e seus desdobramentos no âmbito da informatização,
robotização etc., pela biotecnologia, engenharia genética etc. e pela energia
nuclear, põe em crise o paradigma “tecnicista-produtivista”, põe limites ao
processo de transformação do trabalho complexo em trabalho simples e estabelece
mudanças profundas na organização do processo de trabalho e de produção,
na relação do trabalho com o produto a realizar, na natureza da atividade e nas
capacidades humanas exigidas pelo trabalho (Castro, 1989).
Essa nova base científico-tecnológica, como nos aponta Schaff, tem um
impacto sobre o “processo civilizatório”, com mudanças profundas no âmbito
econômico-social, político, sistema de valores e atitude perante o sentido da
própria existência.
A perspectiva tecnicista-produtivista, cujo grande sujeito é o “mercado
de trabalho”, na qual se embasa o programa de melhoria e expansão do ensino
técnico, tem como paradigma o sistema taylorista-fordista de organização do
trabalho e de qualificação técnica. Esse paradigma não dá conta da atual
realidade produtiva, cuja base tecnológica desmaterializa cada vez mais o
processo produtivo, distancia o sujeito produtor, trabalhador do produto,
enquanto se flexibiliza a organização do processo produtivo e se estabelecem
crescentes áreas de integração das diversas fases da produção.
Essa nova realidade de formação técnica – a idéia de que o mercado exige
crescentes contingentes de trabalhadores qualificados ou que, do ponto de vista
econômico, a qualificação garante ao qualificado a criação “do seu posto ou mercado
profissional” –, ao contrário do que aponta a visão tecnicista-produtivista, indica,
como expõe Gorz (1988), que, na realidade do Primeiro Mundo, a população
economicamente ativa na próxima década estará assim dividida: 25% subempregada
e 50% desempregada, semidesempregada ou excluída.
Note-se que essa nova base técnica do processo produtivo expõe uma
realidade na qual a maioria da força de trabalho se torna mão-de-obra
excedente, isto é, uma mercadoria que tem, no mercado, cada dia menos
valor e, do ponto de vista educacional, para o mercado, nenhuma preocupação.
Schaff (1990) indica que perante esse quadro, para o Primeiro Mundo (o que
se dirá do Terceiro Mundo), haverá duas saídas: a socialização crescente do
produto social dessa nova base produtiva, isto é, uma democrática distribuição
da produção mediante políticas sociais, ou a manutenção de uma minoria que
se apropria dessa riqueza e a mantém pela força e violência.

144
PARTE II | A DÉCADA DE 1980

Essa nova realidade tem, ao mesmo tempo, implicações mais amplas no


sentido de organização econômico-política, cultural e educacional para fazer
face à crise do paradigma tecnicista-produtivista. No âmbito da organização
social capitalista – ao contrário do que no Brasil se vem postulando, numa
perspectiva neoliberal conservadora – aponta-se para um revigoramento da
socialdemocracia. Essa foi pelo menos a conclusão a que chegaram os
participantes da 11a Conferência do Atlântico, realizada no Brasil em novembro
de 1990. Tomaram parte dessa conferência intelectuais, políticos, empresários,
que, há 20 anos, de dois em dois anos, se reúnem para, na óptica dos interesses
do Primeiro Mundo, analisar as perspectivas da economia internacional (Jornal
do Brasil, 11/11/90).
O vesgo neoliberal desenvolvido hoje, preponderante no Brasil, situa o
mercado, um tipo de deus escondido, como regulador do conjunto das relações
sociais. Postula o desmonte do Estado – Estado pequeno – e substitui políticas
públicas por campanhas beneficientes, pelo assistencialismo etc.
No âmbito educacional e de formação, essa nova realidade, ainda sob a
óptica da organização social capitalista do trabalho, em face da nova base
técnica da produção, necessita superar o especialismo e o mero adestramento,
e fornecer uma formação mais complexa, abstrata, “polivalente” para um
contingente reduzido de trabalhadores incorporados ao sistema produtivo.
Sob a óptica do sistema produtivo, a questão de qualificação técnica, de
acordo com Peña Castro, é “deslocada (desterritorializada) da esfera produtiva
e do processo de trabalho”. Tal “desterritorialização” permite concluir que se
produz uma espécie de inversão na ordem dos termos da relação: “nos processos
baseados em tecnologias tradicionais a formação da força de trabalho era como
um subproduto do trabalho, nos processos de produção modernos o trabalho
parece ser um subproduto da formação” (Castro, 1989).
Paiva (1990), em rico balanço da literatura internacional e nacional, na
mesma direção acima referida, aponta que o padrão tecnológico e a conseqüente
mutação da base técnica do trabalho implica a necessidade de desenvolvimento
de capacidades “abstratas”. Ainda nesse sentido, Beluzzo (1991) conclui:
O novo paradigma dos processos de produção está apoiado no treinamento
mais generalista da força de trabalho em uma maior capacidade para a
apreensão de linguagens, inclusive matemática. O relatório Made in América,
que avalia a posição relativa à indústria norte-americana no conceito
mundial, atribui um peso importante à especialização prematura do operário,
no conjunto dos fatores que levaram à perda de competitividade do parque
manufatureiro do país.

145
A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico

Se a questão da educação básica, incluindo a de segundo grau, tiver no


mercado seu fiador, não haverá esperança de constituir-se, em quantidade e
qualidade, uma massa crítica de formação para produzir, criar e apropriar
conhecimento.
No período em que se deflagra o Programa de Expansão e Melhoria das
Escolas Técnicas, a década de 1980, como indica a pesquisa que origina este
artigo, a questão das políticas educacionais desenvolve-se no tecido de uma
“transição” (que não ocorreu) do golpe militar para a democratização do país.
Nesse contexto afloram – e a LDB que tramita atualmente no Congresso é
expressão disso – diferentes perspectivas e concepções educacionais e de
políticas educacionais.
O Executivo, representado pelo ministro da Educação e sua assessoria
imediata, mantém até hoje não só no Programa de Expansão do Ensino Técnico,
mas no conjunto da política educacional, uma concepção tecnicista-
produtivista, com as mistificações acima apontadas. No Ministério da Ciência
e Tecnologia e no CNPq, os estudos indicam o esgotamento do modelo
taylorista-fordista de processo produtivo e apontam implicações para a questão
da formação técnica. Dentro de setores do MEC, especificamente no INEP, no
período de instalação do EDUTEC e PROTEC, 1985-86 e posteriormente,
desenvolvem-se estudos que incorporaram uma perspectiva crítica de educação,
que desde o final da década de 1970 se contrapõe ao projeto tecnicista-
produtivista solidificado durante a ditadura militar e mantido como política
oficial na “transição”.
Essa perspectiva contrapõe-se, ao mesmo tempo, à visão dualista de ensino,
postulando uma escola unitária e o primeiro e segundo graus concebidos como
educação básica ou fundamental (Anais, 1988). Contrapõe-se à visão privatista,
empresarial da educação e regionalista, defendendo a dimensão universal e
gratuita da educação. Do ponto de vista teórico-científico, contrapõe-se à
visão unidimensional de formação para o mercado de trabalho, uma visão
científica básica, tanto no plano das ciências humano-sociais, quanto no plano
das ciências físicas, biológicas etc. Trata-se de uma formação que em sua
proposição mais avançada, se articula com a perspectiva de superação, no plano
das relações materiais (econômicas) e das relações políticas alienadoras, para
se inscrever numa óptica de organização da sociedade dentro de um socialismo
com democracia. Nesse sentido é que se desenvolve, a partir do final da década
de 1980, uma reflexão sobre limites e possibilidades de uma formação politécnica
de educação que postula a articulação de todas as dimensões da vida humana
(biológica, material, intelectual e lúdica) em seu conteúdo. Essa perspectiva

146
PARTE II | A DÉCADA DE 1980

vem sendo discutida por Saviani (1988 e 1989), Machado (1989), Warde (1988),
Frigotto (1988 e 1990), Franco (1988), Arroyo (1990). Nesse âmbito,
contrapondo-se à visão pragmática e utilitarista de trabalho, são desenvolvidos
vários estudos que discutem o trabalho como princípio educativo. Esses estudos
têm como base as análises de Marx e Engels, e, sobretudo, de Gramsci: Nosella,
1989; Manacorda, 1990; Kuenzer, 1985 e 1988; Nogueira, 1990; Enguita, 1989
e Franco, 1990.
Esse debate, cujo ponto crítico é a “travessia”, no plano prático, em
face da materialidade das relações capitalistas dominantes, desenvolve-se
no tecido das contradições e na perspectiva de que as novas relações, em
todos os âmbitos, são expressão de um embate que se dá num processo em
que velho e novo coexistem.
O que, finalmente, importa registrar é que as políticas educacionais –
no Brasil historicamente balizadas pela visão utilitarista e produtivista, cujo
Programa de Expansão e Melhoria do Ensino Técnico é exemplificação singular
– amarram o sistema educacional a uma óptica imediatista e fragmentária,
que nos condena, mesmo no ponto de vista da organização capitalista de
sociedade, a sermos consumidores de ciência e tecnologia. O novo plano do
governo atual radicaliza essa perspectiva até no plano de alfabetização. O
“fetiche do mercado”, como ordenador social e do sistema educacional, nos
levará a uma situação sem saídas.
A advertência de Werneck Vianna, em face da política econômico-
social do atual governo, parece-nos elucidativa do que estamos apontando.
Se a abertura de fronteiras econômicas não favorece uma inscrição do
capitalismo brasileiro nas relações econômicas internacionais, que lhe garante
capitais e mercado, frusta-se o projeto de completar o longo ciclo da modernização,
iniciado em 1930 via a afirmação da pura modernidade burguesa. Sem a retomada
do desenvolvimento econômico a partir de um sistema produtivo competitivo,
não há como ter um mercado como instância de ordenação social e, menos
ainda, a possibilidade de hegemonia burguesa que se afirme preferencialmente
pela pauta de valores que têm seu curso nas relações econômicas. No Terceiro
Mundo, se não se conta com conjuntura favorável ao aporte de capitais e
transferência de tecnologia, a estratégia neoliberal não pode apresentar-se como
viável para os fins da modernização e de incorporação das massas a uma situação
moderna de mercado. Pode, assim, constituir-se na via perversa, primeiro para o
apartheid social e, depois, para sua confirmação no plano da política.
O Programa de Melhoria e Expansão do Ensino Técnico tem na concepção
utilitarista, tecnicista e produtivista seu principal viés, mas não o único. Ao

147
A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico

lado dessa “etiqueta”, cunhada no tecido de valores mais gerais da sociedade,


que personifica as mercadorias e torna mercadoria as pessoas, há interesses
conjunturais, de caráter político mais geral e/ou de clientelismo e fisiologismo
que parecem bastante patentes.
Não é casual, sem dúvida, o fato de que o Ministério da Educação, já há
mais de uma década, se tenha tornado uma espécie de “condomínio” ou um
espaço de troca política do partido sucedâneo do PDS, que serviu de sustentação
de aparência democrática no período da duração do golpe militar de 64, o
PFL. Também não é casual a circunstância de que a maioria dos políticos que
o compõem tenha sua origem naquele partido, e de que o PFL seja o sustentáculo
da “transição” que não se completou. Há, nos depoimentos relacionados à
conjuntura da época, sinais claros de que o Programa de Expansão constitui
uma espécie de “contra-ataque” ao projeto dos Centros Integrados de Educação
– CIEPs, desenvolvido no Rio de Janeiro pelo Governo Brizola, governador de
oposição e, à época, forte concorrente à Presidência da República. Na atual
conjuntura, contraditoriamente, o Governo Brizola, em matéria de educação,
está em aberta aliança com o Governo Collor em torno do duvidoso programa
dos CIEPs/CIACs.
Duas outras dimensões compõem, pelo que os dados indicam, os
elementos constitutivos do conjunto de interesses em jogo nesse programa:
o clientelismo político, presente em todos os programas educacionais ao
longo de nossa história, e uma clara intenção de esmaecer o caráter federal
e público do ensino técnico industrial. Os princípios que norteiam o
Programa de Melhoria e Expansão do Ensino Técnico são: descentralização,
integração, regionalização, interiorização, racionalização e gratuidade.
Embora apareça o princípio da gratuidade, o projeto de expansão vem
marcado pelo interesse privado. Sintomática é, como já assinalamos, a
composição do Comitê de Implantação da Expansão, com forte presença da
iniciativa privada. Essa, sem dúvida, só entra no “negócio” para investir e
investir para multiplicar o investimento. No caso das escolas agrícolas, essa
vinculação é, nas propostas, mais explícita. A idéia de escola-produção é
bastante forte e questionável. c Mais sintomático ainda é o descaso para
com as organizações científicas dos educadores e a ausência de uma
discussão democrática dessa política.
Os dados da pesquisa, especialmente as avaliações qualitativas, reforçam
o indício da mentalidade clientelista e “obreirista” da expansão e melhoria do
ensino técnico. A melhoria e expansão ativeram-se, sobretudo, aos prédios, a
parte mais fácil (ainda que necessária). O que falta, e para isso não se sente

148
PARTE II | A DÉCADA DE 1980

no projeto vontade política, é construir a materialidade de um projeto educativo


que rompa com a visão imediatista, mercadológica de educação, pois esla já
não serve ao plano da competitividade intercapitalista. Mais do que isso, é
preciso investir na concreção de um projeto unitário, denso e democrático de
escola básica, nela incluindo a escola de segundo grau – projeto que busque
construir uma nova função social para as escolas técnicas existentes.

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150
PARTE II | A DÉCADA DE 1980

CAPÍTULO 2 | FORMAÇÃO PROFISSIONAL E MERCADO


DE TRABALHO: O ENSINO DE SEGUNDO GRAU
E A PROFISSIONALIZAÇÃO EM QUESTÃO
NA DÉCADA DE 1980

RAMON DE OLIVEIRA

Introdução
Desde há muito o ensino médio e a educação profissional são temas
polêmicos. Embora uma recente reforma educacional tenha estabelecido a
desarticulação entre esses dois sistemas de ensino, no momento atual, retomam-
se as discussões sobre a viabilidade da persistência dessa separação ou a busca
de sistemas alternativos que reintegrem a formação geral e a formação técnica.
Mediante a leitura de trabalhos produzidos ao longo das últimas três
décadas é possível perceber a inquietação da comunidade acadêmica sobre a
necessidade de se constituir uma identidade para o ensino médio. Tal discussão
pauta-se, entre outros fatores, pela clareza da diferença de qualidade entre as
escolas privadas e públicas. Dada a segregação social persistente na sociedade
brasileira, o ensino médio ao qual os setores desprivilegiados têm acesso nem
lhes permite seguirem para ensino superior, nem lhes garante uma formação
profissional adequada às necessidades do mercado de trabalho.
Tal estado de coisas, se por um lado demanda uma elaboração mais precisa
do que se deseja do ensino médio, não permite que tal deliberação seja
desenvolvida sem participação dos setores da sociedade que cotidianamente
vivenciam esse nível de ensino. O levar em consideração o que gestores,
docentes, alunos, pais e a comunidade acadêmica desejam é necessário para
que as políticas educacionais sejam respaldadas e possam efetivamente
materializar-se no cotidiano escolar.
A implementação de reformas sem a consulta e sem um amplo debate
com aqueles interessados pela questão tem sido algo costumeiro na sociedade
brasileira. A profissionalização compulsória imposta pela Lei n. 5.692/71 (tornada
opcional pela Lei n.7.044/82), tal como a separação entre o ensino médio e a

151
A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico

educação profissional estabelecida pelo Decreto n. 2.208/97, é expressão de


ações autoritárias que, por terem essa característica, não conseguiram encontrar
respaldo entre aqueles que lidam com a problemática da formação profissional.
O estar atento ao que é pensado pela comunidade educacional com o objetivo
de estabelecer diretrizes para o ensino médio tem ficado, por parte do governo
central, restrito nestes últimos anos, ao que é proposto e almejado pelos setores
ligados à economia. Nunca é demais destacar o quão forte foi a intervenção na
última reforma do ensino médio e da educação profissional por parte das agências
multilaterais e do empresariado brasileiro, sujeitos esses cujas proposições
educacionais, puramente economicistas, estabelecem um reducionismo pedagógico
objetivando atender exclusivamente aos interesses do setor produtivo. Tal
reducionismo, pautado nos pressupostos da Teoria do Capital Humano, compreende
a relação entre educação e trabalho como a relação entre escola e mercado de
trabalho, não considerando que a qualificação do trabalhador deve ter objetivos
mais complexos do que o desenvolvimento de competências e habilidades
especificamente direcionadas à execução de uma atividade profissional.
Passados então mais de 30 anos da Lei n. 5.692, período no qual se
avolumaram os estudos e pesquisas a respeito da relação entre trabalho e
educação, alguns questionamentos e limitações ainda estão postos para melhor
se definir uma política coerente para o ensino médio e para a educação
profissional. Deles podem ser destacados: o que de fato queremos do ensino
médio? Qual o papel que a formação profissional específica deve ter no âmbito
da educação básica? O que os estudantes e egressos dos cursos de nível médio
pensam sobre sua formação? Como deve ser estruturado o currículo do ensino
médio de forma a atender aos estudantes das escolas públicas que já estão
inseridos no mercado de trabalho e estão matriculados no curso noturno?
Embora não estejamos totalmente às escuras sobre o ensino médio e a
educação profissional, temos a ampla necessidade de nos debruçar sobre essa
problemática e definir propostas coerentes com as novas demandas da
sociedade, considerando o conjunto de mudanças sociais, políticas e econômicas
que determinam um novo perfil de exercício e de conquista da cidadania.
Nesse sentido, voltar no tempo como forma de nos “realimentarmos” das
contribuições que diversos autores que já deram para essa discussão é condição
importante para avançarmos nessa caminhada. Com esse objetivo, buscaremos
trazer para o interior deste texto essas contribuições, considerando período de
análise a década de 1980.
Apesar de este texto não conseguir contemplar tudo o que então foi
produzido, as discussões a seguir representam contribuições imprescindíveis

152
PARTE II | A DÉCADA DE 1980

para se compreender o que a comunidade acadêmica pensava e propunha para


uma problemática que parece insolúvel.

1. Trabalho e educação nos anos 80


O material analisado é composto por 20 textos produzidos entre os anos
de 1980 e 1987. Podemos agrupá-los, no mínimo, em 10 temáticas principais:
educação e mobilidade social (dois); o currículo dos cursos técnicos (um); o
papel do Sistema S na educação profissional (oito); educação profissional x
formação geral (um); educação e desenvolvimento econômico (um); educação
e reprodução social (um); planejamento das ações de educação profissional
(um); pesquisa com egressos de cursos técnicos (dois); o emprego no setor
terciário (dois); educação profissional e cidadania (um).
Essa divisão que, é uma tentativa de agrupamento dos textos em torno
de uma temática principal, não consegue dar conta da amplitude de muitas
discussões que estão presentes no interior de cada texto. Poderíamos também
fazer outra caracterização, considerando elemento identificador a relação entre
educação e um setor específico da economia, haja vista que nos anos 90 os
textos ligados à temática trabalho e educação tomaram como parâmetro para a
elaboração de suas proposições as mudanças ocorridas no interior do processo
fabril, ou seja, há o pensar da educação profissional a partir de transformação
existente no setor secundário.
Embora haja uma predominância de textos que discutem o papel do
SENAC no processo de formação profissional, a maioria dos trabalhos (15) não
se relaciona diretamente a nenhum setor da economia, havendo apenas três
textos relacionados como o setor terciário, um com o setor primário, e outro
com os setores secundário e terciário.
A divisão por temáticas espelha um pouco a direção para qual os textos
se voltavam; contudo, não consegue dar conta do teor das discussões por eles
propostas. Nesse sentido, cabe fazer mais um detalhamento, buscando explicitar
as preocupações ou questões para as quais os autores voltaram suas atenções.
É possível observar que a preocupação com o quadro instaurado pela Lei n.
5.692 esteve presente em, pelo menos, oito textos. Não que em todos eles essa lei
tenha ocupado a maior parte da discussão, mas é destacável o quanto os autores,
ao discutirem o ensino médio e a educação profissional, sentiram a necessidade de
fazer objeções ou apontar as causas de seu insucesso e de sua revogação.
Antes de prosseguirmos com as discussões referentes à Lei n. 5.692, é
importante destacar, de acordo com os textos, os motivos de sua implementação.

153
A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico

Prevaleceu nas discussões a idéia segundo a qual com a ascensão dos militares
ao poder, em 1964, estabeleceu-se no interior da sociedade brasileira um
movimento de subordinação dos aparelhos de Estado ao movimento de
soerguimento da economia nacional. O sistema educacional, como outras
instâncias societárias, sofreu diretamente a influência do poder instituído,
visando tornar-se uma alavanca do processo de desenvolvimento econômico.
Disposto a discutir o momento social e político no Brasil e suas implicações
no cenário educativo, o texto de Neidson Rodrigues (1981) é um dos mais
completos. O autor, ao apontar o caráter centralizador do Estado brasileiro,
destaca o quanto o mesmo direcionou a escola a assumir o papel de formadora
de capital humano, haja vista a reorientação da industrialização brasileira no
sentido de requisitar um maior número de trabalhadores qualificados.
Para Rodrigues, o Estado brasileiro assumiu a responsabilidade pela
implementação de medidas concretas que viabilizassem a expansão do processo de
reprodução do capital e esvaziou o papel de reprodução ideológica exercida por
diversos aparelhos de Estado. O pensamento único e a impossibilidade de divergência
em relação ao modelo de desenvolvimento adotado terminaram não só por
secundarizar/obstacularizar o papel de intervenção social e política que poderia
ter a sociedade civil organizada (sindicatos, imprensa etc.), como, ao mesmo tempo,
redirecionaram o papel dos aparelhos que tradicionalmente trabalhavam na
formação da consciência (campo da ideologia) para comprometerem-se,
preferencialmente, com o papel de reprodução econômica. Nesse caso, a escola
passou a ser valorizada não tanto por seu papel tradicional de reprodutora ideológica,
como destacava Althusser, mas, fundamentalmente, como instância responsável
pela preparação de trabalhadores no nível de formação profissional de forma a
viabilizar o processo de reprodução do capital em escala ampliada.
Segundo esse autor, para as classes dirigentes brasileiras, a educação
assumiria um duplo papel a serviço do novo projeto social e político imposto à
sociedade brasileira. Por um lado, sendo uma instância formadora de quadros
que viabilizassem o aumento da produtividade econômica e, por outro, enquanto
elemento incremental do processo de distribuição de renda, haja vista os
trabalhadores passarem a dispor também de um capital a ser investido/trocado
no mercado, o que lhes possibilitaria aumento de seus rendimentos e,
conseqüentemente, ascensão social.
Abordagem semelhante à de Neidson Rodrigues encontramos em Silva
(1983), que destaca em sua crítica, além do reducionismo da educação ao
aspecto econômico, a influência de agências internacionais na definição das
políticas educacionais brasileiras.

154
PARTE II | A DÉCADA DE 1980

Entre os textos que se prontificaram a fazer algum comentário sobre a Lei n.


5692, observamos que há certa unanimidade no que se refere às críticas sobre seu
objetivo de reestruturar o sistema educacional. O trabalho de Silva (1983) é uma
boa síntese das críticas sobre os objetivos dessa lei. Em primeiro plano, a autora
critica o pragmatismo e o imediatismo de currículos voltados para uma formação
de trabalhadores especializados. A Lei n. 5.692, segundo sua opinião, representou
não só um empobrecimento do processo educativo, como também uma incoerência
em relação ao que o empresariado requeria do sistema educacional.
Em sua compreensão, a alta rotatividade no mercado de trabalho dispensa,
cada vez mais, a necessidade de trabalhadores com formação apenas específica.
A obrigatoriedade de adequação contínua às novas exigências do mercado de
trabalho aponta a necessidade de formação de caráter geral, que permita aos
trabalhadores terem uma visão mais complexa da realidade, em contínua
transformação, e assim poderem até adaptar-se melhor a essas mudanças. Essa
sim, para a autora, é a afirmação da relação entre e educação e trabalho, algo
muito mais amplo do que a relação entre educação e mercado de trabalho.
Destacando os limites existentes na elaboração da Lei n. 5.692
responsáveis por seu insucesso, Leite e Savi (1980), ao analisarem a procura
pelos cursos de formação profissional de nível técnico, concluem que ela não
era definida em virtude do setor econômico ao qual estava vinculado o curso,
mas, principalmente, pela possibilidade de, a partir de sua estrutura curricular,
de contribuir para uma futura inserção no ensino superior. Essa seria então
uma das principais causas do fracasso da Lei n. 5.692, ou seja, não ter levado
em consideração as aspirações da clientela atendida no ensino de segundo
grau (ensino médio). Para essas autoras, além da ausência de pesquisas que
apontassem os reais interesses dessa clientela, não havia levantamento sobre o
que, de fato, o mercado de trabalho necessitava, ocasionando a inexistência
do planejamento da oferta de cursos profissionalizantes.
Por outro lado, a forma precipitada e autoritária de adequação das escolas
à nova legislação confrontava-se com a inadequação dos recursos humanos e
dos materiais disponíveis nas escolas que garantissem um ensino de qualidade.1
Tais lacunas terminaram por fazer com que os cursos das áreas ligadas ao setor
secundário da economia tivessem uma maior procura, em virtude da presença,
em suas grades curriculares, de disciplinas como física, química e matemática,
as quais contribuíam para melhor preparação com vistas ao vestibular.

1
Críticas semelhantes são desenvolvidas por Rocha (1980) segundo quem, por essa razão, em breve
espaço de tempo a educação profissional foi secundarizada.

155
A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico

Outro ponto abordado pelas autoras refere-se à incapacidade de


financiamento dos sistemas estaduais de ensino para adequar-se à Lei n. 5692.
Para elas, caso as escolas realmente buscassem estruturar-se técnica e
materialmente para atender à legislação, haveria aumento substancial em seus
gastos. Tal fato teria contribuído para a iniciativa privada ter aumentado
substancialmente o número de cursos no setor terciário da economia, uma vez
que esses requeriam menor investimento.
Gomes (1982), também fazendo referência à Lei n. 5.692 e apontando
sua intenção de ajustamento da escola à economia, destaca três objetivos que
não estavam sendo alcançados: estender a educação fundamental a todos os
estudantes; eliminar o dualismo entre escola acadêmica e profissionalizante; e
oferecer preparação profissional como alternativa ao ensino superior. Como
outros textos da época, ressalta a cultura discriminatória na sociedade brasileira,
a qual valoriza a formação acadêmica em detrimento da formação profissional.
O texto de Franco e Durigan (1984), embora faça algumas críticas à Lei
n. 5.692, destaca que essa lei representou uma ruptura brusca com o modelo
até então vigente. Para essas autoras, as reformas anteriores à Lei n. 5692
foram conciliatórias e reformistas, mantendo-se dentro da ordem, ou seja, ela
visou quebrar a dualidade histórica no sistema educacional brasileiro. As autoras,
mesmo reconhecendo essas características, apontam a insensibilidade dos
formuladores da lei, que não levaram em consideração a cultura da sociedade
brasileira e não se mostraram atentos ao que pais, alunos e professores
desejavam. O resultado, para elas, foi o fracasso, a desqualificação e a
falsificação grosseira de suas finalidades.

2. A preparação para o mercado de trabalho


Conforme dissemos, além da expressiva presença de textos que fazem
referência à Lei n. 5.692, encontramos também grande quantidade de trabalhos
que discutem as instituições paralelas de formação profissional (SENAC e
SENAI), particularmente a primeira. Os autores, em sua maioria, estavam
ligados ao SENAC e procuravam sempre destacar a importância dessa
instituição no sistema nacional de formação profissional.
As abordagens presentes nos textos referentes ao SENAC são variadas.
Observamos que há alguns preocupados em fazer um histórico da instituição,2
passando pela análise da questão do emprego no setor terciário, discutindo o

2
Esse resgate também é feito no trabalho de Grossmann (1984).

156
PARTE II | A DÉCADA DE 1980

perfil da clientela ali atendida até chegar à reestruturação processada pelo


SENAC para adequar-se às novas demandas do mercado de trabalho, como é
o caso do texto de Mehedeff (1981). Como também observamos a presença de
trabalhos ocupados diretamente com esta última discussão, ou seja, analisar o
Plano Plurianual estabelecido pelo SENAC para atender aos novos
requerimentos postos pela sociedade, cujo exemplo é o texto de Régnier (1982).
Há também dois trabalhos que apontam a necessidade de o SENAC
dedicar maior atenção ao desenvolvimento de novas metodologias de forma a
atender às peculiaridades de sua clientela. O trabalho de Villas Boas (1982),
por exemplo, chamou atenção para a clientela adulta, destacando como
importante opção metodológica a formação profissional por módulos. Já o
trabalho de Paiva Muniz (1986) ocupou-se com a orientação a ser dada à
clientela juvenil.
Identificamos também certa apologia ao SENAC enquanto instituição
responsável pela formação profissional. Dannemann (1980), por exemplo, ao
discutir os melhores locais para o desenvolvimento da educação profissional,
destaca, entre outros fatores, a vantagem do SENAC de ser instituição com
autonomia política, maior flexibilidade no processo operativo, facilidade na
adoção de novas metodologias, quadros profissionais capacitados nas próprias
empresas, organização programática e curricular adequada às necessidades do
processo de produção e planificação descentralizada. Reconhece, porém, como
desvantagem, o fato de o SENC não atender quantitativamente à demanda
existente e ter que responder às demandas do mercado.
Observamos a presença de trabalhos críticos em relação ao sistema
paralelo de ensino. Particularmente, essas críticas, quando surgem, vêm de
pessoas que não estavam profissionalmente ligadas ao SENAC e ao SENAI,
como no caso do texto (projeto de Pesquisa) elaborado por Grossmann (1994).
Nesse trabalho, a autora assume postura nitidamente reprodutivista ao afirmar
que esse sistema paralelo de ensino, semelhante ao sistema formal de
profissionalização, tem a função de reprodução dos interesses da classe
dominante.
Comum a quase todos os textos que discute a importância do SENAC
no processo de formação profissional (Ribeiro, 1986; Régnier, 1982; Paiva Muniz,
1986) é a defesa da articulação entre a formação geral e a formação profissional.
Já entre os textos que foge dessas temáticas mais expressivas, o de Pedro
Demo (1985) é o que melhor se confronta com a lógica de redução da educação
à formação de mão-de-obra para o mercado de trabalho. Segundo Demo, a
radicalização instituída nesse período, materializada com a Lei n. 5.692, no

157
A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico

sentido de voltar a educação basicamente para um processo de formação de


profissionais para o processo produtivo, esvazia o entendimento de que o acesso
à educação escolar é direito constituinte da cidadania e não mediação para a
aquisição de um bem a ser trocado no mercado.
Para ele, embora a formação profissional seja algo importante a ser levado
em consideração quando se discute a política educacional, não é e nem poderia
ser considerada o principal objetivo da prática escolar. A educação e a sua
relação com o mundo do trabalho deveriam ser vistas num aspecto muito mais
amplo do que o de apenas uma preparação específica. O local de trabalho
deveria ser um dos espaços de intervenção/realização do ser humano, mas não
o único. Nesse sentido, destaca que a escola deveria objetivar formar indivíduos
capazes de atuar politicamente na sociedade e, por conseguinte, eles não
deveriam apropriar-se de conhecimentos apenas para a efetivação de uma ação
profissional específica.
Sobre a relação entre educação, economia e participação política, Demo
fez a seguinte distinção. Crescimento econômico é mera acumulação, é apenas
o acúmulo de recursos. O objetivado deve ser o desenvolvimento compreendido
como a articulação entre crescimento e participação. Dessa forma, ressalta
que, para a efetivação da participação política, a escola é algo indispensável.
Não uma escola que vise domesticar os estudantes, mas uma escola estruturada
para o desenvolvimento das múltiplas dimensões da realização humana.
Em lógica semelhante à de Pedro Demo, Sidney da Silva Cunha destaca
em dois trabalhos que discutem o emprego no setor terciário (1984 e 1987) que
a melhor contribuição da educação profissional à economia ocorreria na medida
em que estivesse desvinculada dos interesses do mercado. Para ele, a educação
contribuiria no processo econômico na medida em que garantisse uma sólida
formação geral e desenvolvesse nos educandos a capacidade de aprender a
aprender. Por outro lado, assumindo postura contrária à apregoada pela Teoria
do Capital Humano, discorda da idéia segundo a qual a oferta de qualificação
profissional seria um instrumento capaz de garantir o aumento da oferta de
empregos.
Segundo Sidney Cunha, deveria ser posto em discussão o modelo de
desenvolvimento econômico adotado, uma vez que ele é o principal responsável
pelo crescimento ou pela diminuição dos postos de trabalho. Além do mais,
segundo esse autor, é incoerente atribuir-se à educação profissional a
capacidade de propiciar o aumento de salários, pois há outros fatores definidores
da relação entre capital e trabalho, como, por exemplo, o nível de organização
dos trabalhadores. Ao mesmo tempo, deve-se destacar o fato de que a ocupação

158
PARTE II | A DÉCADA DE 1980

dos postos de trabalho com status social mais elevado é feita por pessoas cujas
trajetórias de vida lhes possibilitaram alcançar níveis mais altos de estudos.
Não à toa, dificilmente, pais com baixos níveis de escolaridade têm filhos
ocupando posições mais altas na hierarquia salarial. Ou seja, a educação
profissional não consegue reverter algo que já estava socialmente edificado.
Abordando a contribuição da educação técnica à mobilidade social,
Franco e Castro (1981) destacam, a partir de pesquisas com egressos dos cursos
técnicos em três países da América Latina (Colômbia, Paraguai e México)
que, embora existam peculiaridades para cada um dos países analisados,
constata-se o fato de que nos anos iniciais os egressos dos cursos técnicos têm
salários mais altos do que os daqueles oriundos de curso médio não
profissionalizante. Entretanto, com o passar do tempo, essa situação é invertida.
Tal fato evidencia que a mobilidade social não estaria sendo determinada pela
passagem por um processo de formação técnico-profissional ou por um curso
estritamente acadêmico. A raiz da questão estaria na própria estrutura social
que determinava ou reproduzia as posições sociais no interior da sociedade
capitalista.
Embora, segundo os autores, haja a propagação de discursos segundo os
quais a possibilidade de ascensão social está posta para todos, a própria
possibilidade de ascensão na hierarquia do sistema educacional é definida
pela origem social. Para os setores com menor poder aquisitivo a educação
profissional poderia propiciar acréscimo na renda, mas não seria um fator de
equalização social. Aqueles estudantes que conseguem chegar ao fim do ensino
secundário, seja na versão profissional ou na acadêmica, já representam um
grupo minoritário no referente ao grau de escolarização alcançado.
Conseqüentemente, teriam valorização distinta daqueles que já abandonaram
o sistema educacional há mais tempo.
Segundo os autores, enquanto persistir a dicotomia entre o trabalho
intelectual e manual na sociedade capitalista, os egressos dos cursos
profissionalizantes serão contemplados com salários mais baixos do que aqueles
que tenham formação propedêutica, pois a eles são reservados os cargos de
maior importância. Não por acaso, os estudantes que chegam ao final do
secundário percebem que a única possibilidade de atingir maior status social é
seu ingresso no curso superior. Entretanto, a própria estrutura social e econômica
determina que apenas um grupo minoritário consiga tal intento, reproduzindo,
portanto as relações sociais existentes.
A temática mobilidade social também está presente no trabalho de Gomes
(1982). Esse autor, ao analisar a relação entre mobilidade social e

159
A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico

democratização da educação no Brasil, observa o estabelecimento de um modelo


de mobilidade social competitiva em substituição ao modelo de mobilidade
social patrocinada. A diferença está em que o primeiro permite aos estudantes
avançarem no sistema educacional e decidirem o momento de ingresso no
mercado de trabalho, enquanto a segunda determina, já nos anos iniciais de
crescimento, a função social a ser desempenhada pelo indivíduo.
Para ele, a mobilidade competitiva, aparentemente, é mais democrática.
De acordo com sua argumentação, em sociedades marcadas pela desigual
distribuição de riqueza, a origem social termina por ser o determinante do
desempenho e da escolha por uma formação acadêmica ou profissional. Mesmo
assim, reconhece que, aos poucos, o sistema educacional mostra-se mais
democrático, na medida em que foram ampliadas as possibilidades de ingresso
e de permanência dos estudantes mais pobres no sistema educacional.
A existência de pesquisas com egressos também foi uma característica
das produções desse período. Além do texto de Franco e Castro (1981) já
citado, dois outros trabalhos buscam levantar o que pensam os egressos do
sistema de formação profissional regular. Franco e Durigan (1984), ao
trabalharem com alunos de escolas profissionalizantes do Estado de São Paulo,
constatam o predomínio da iniciativa privada na oferta de cursos técnicos de
segundo grau, em sua maioria, no setor terciário.
No referente ao desejado pelos alunos, concluem que a maioria buscava
a terminalidade dos estudos no nível de segundo grau, haja vista reconhecerem
a grande dificuldade de ingressar numa universidade pública. Para aquela
parte da clientela do ensino de segundo grau, a formação profissional seria,
portanto, quase pré-condição para inserção e/ou manutenção no mercado de
trabalho. Por outro lado, as autoras destacam, a partir da opinião dos alunos,
que a qualidade dessa formação fica muito a desejar e apontam a necessidade
de maior cuidado do poder público com a qualidade das escolas
profissionalizantes.
Em outro trabalho produzido em 1985, Maria Laura Franco apontava
que os resultados negativos da Lei n. 5692 impõe uma falta de identidade para
o ensino de segundo grau. A autora constaa, mediante pesquisa com egressos
de escolas agrotécnicas, que os estudantes mais pobres demandam formação
profissionalizante no nível de segundo grau e, semelhante à pesquisa
anteriormente citada, destaca a pouca possibilidade de os alunos oriundos de
cursos técnicos ingressarem no ensino superior. Dificuldades não só pela
qualidade do ensino de segundo grau, mas também em razão de as
universidades públicas não oferecerem condições de permanência para os

160
PARTE II | A DÉCADA DE 1980

alunos trabalhadores. A autora destaca também que um expressivo contingente


de alunos requer um ensino de segundo grau de caráter mais propedêutico
como forma de viabilização de sua entrada no ensino superior. Tais
“contradições” apontavam, então, para a necessária melhoria do ensino técnico
de forma a satisfazer essa duplicidade de interesses.
Essa pesquisa ressalta o fato de a educação profissional de nível técnico,
voltada para o setor agrícola, apresentar resultados significativos no referente
à inserção de seus egressos no mercado de trabalho em uma atividade
diretamente vinculada a sua formação técnica. Tal constatação, segundo Franco
(1985), indica ter a educação técnica papel importante na formação de recursos
humanos. Dessa forma, há a necessidade de ela ter uma melhora substancial
em sua qualidade, tanto no referente à formação geral quanto na formação
especificamente profissional.

3. Considerações finais
A análise dos textos produzidos nos anos 80 evidencia que muitas questões
referentes à relação entre educação básica e formação profissional ainda
permanecem em aberto. Embora tenhamos acumulado uma discussão
substantiva nas últimas duas décadas, em que pôde ser evidenciada a defesa
de uma escola voltada para a formação mais integral dos estudantes, persiste
na sociedade brasileira uma visão discriminatória sobre a educação profissional.
Ao mesmo tempo, ainda constatamos a ausência de uma visão consolidada
sobre a finalidade do ensino médio.
Tal imprecisão ou indefinição não decorre da ausência do acúmulo de
discussões, mas talvez tenha seu determinante maior na postura pouco
democrática na definição das políticas educacionais. Aqueles que coletivamente
procuram contribuir para solidificar um projeto de educação média, capaz de
articular a formação tecnológica com a formação política na perspectiva da
constituição de sujeitos interventores na arena política e nos espaços de
trabalho, estão sempre em um “nadar contra a corrente”, haja vista que são os
setores ligados ao capital, sejam esses vinculados ao setor produtivo ou ao
capital financeiro, os definidores dos rumos e do perfil da educação brasileira.
Explicitamente a questão da educação está no âmbito da contradição
entre as classes e na disputa pela hegemonia política. A escola pública,
democrática e de qualidade na perspectiva dos anseios e necessidades dos
setores majoritários da população, só se poderá efetivar na medida em que os
diversos sujeitos sociais, comprometidos com a as classes populares/subalternas,

161
A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico

estabeleçam práticas políticas que coloquem a educação escolar como tema


central de suas bandeiras de lutas.
Mais do que apenas o atendimento universal de crianças e jovens em
idade de escolarização, está posto para a educação escolar a responsabilidade de
contribuir na formação de práticas sociais voltadas para a construção de uma
sociedade cujo objetivo central seja o desenvolvimento solidário e o respeito
pela natureza. Nesse sentido, as contribuições de vários autores aqui analisadas,
devem ajudar-nos a avançar na defesa da escola não só como locus da formação
da juventude e de futuros trabalhadores, mas principalmente na constituição de
sujeitos comprometidos com a democracia, com o fim das discriminações raciais,
sexuais e de gênero, como também explicitamente envolvidos com a luta pela
justiça social e pela construção de uma sociedade calcada em valores solidários.

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163
A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico

164
PARTE II | A DÉCADA DE 1980

CAPÍTULO 3 | TEMPO DA CONSTITUINTE: A EDUCAÇÃO


DOS TRABALHADORES FRENTE ÀS MUDANÇAS
E INOVAÇÕES TECNOLÓGICAS

FRANCISCO JOSÉ DA SILVEIRA LOBO NETO

Introdução
O presente trabalho tem como objetivo, no quadro mais amplo da pesquisa
sobre a formação do cidadão trabalhador, resgatar os debates sobre esse tema
em um período bastante peculiar: o tempo constituinte.
O objeto deste recorte concretizou-se e materializou-se em um conjunto
de 21 textos, levantados nas publicações periódicas da época.1
Em primeiro lugar, cabe mencionar que o tempo da constituinte, no caso
da educação, começa antes de 1985 – quando o presidente José Sarney propõe
e o Congresso Nacional aprova, em 28 de novembro de 1985, a Emenda
Constitucional n. 26. O Manifesto aos Participantes da III Conferência Brasileira
de Educação (outubro de 1984), apresentado pela Associação Nacional de
Educação – ANDE, Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em
Educação – ANPEd e o Centro de Estudos de Educação e Sociedade – CEDES,
reflete um tempo de maturação de análises, que precede mesmo a I CEB (de
31 de março a 03 de abril de 1980).2
Da mesma forma, esse tempo da constituinte ultrapassa a data da
promulgação da Carta Magna (05 de outubro de 1988), pois o debate continua
para a elaboração da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional que,
mesmo concluída e sancionada em 20 de dezembro de 1996, em razão de seus

1
Boletim Técnico SENAC 10 textos, Cadernos Cedes (UNICAMP) cinco textos, Cadernos de Pesquisa
(Fund.Carlos Chagas) um texto, Educação & Sociedade dois textos, Em Aberto (INEP) dois textos,
Proposta (FASE) um texto.
2
Cfr. CBE – Anais da 1ª Conferência Nacional de Educação, São Paulo: Cortez, 1982. A título de exemplo
de manifestação reveladora de um evidente e precedente esforço analítico e propositivo, citamos o
painel “Falência da profissionalização: e agora, o que fazer?”, que reuniu em debate, sob a coordenação
de Miriam Jorge Warde, Cláudio Salm, Luiz Antonio Cunha, Paulo Guaracy Silveira e Wagner
Gonçalves Rossi. (ibidem: 173-187).

165
A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico

silêncios, ainda hoje nos exige atenta vigília para garantir os princípios
constitucionais que o movimento social conquistou. Assim, não há inconveniência
em cotejar idéias expressas em manifestações redigidas até 1997.
Em uma tentativa de sistematização de textos, podemos dividir o
conjunto, quanto ao conteúdo, em:
1. textos que privilegiam uma análise de contexto, referida ao segundo
grau;3
2. textos que privilegiam uma análise do segundo grau, referida ao
contexto;4
3. textos que abordam questões específicas complementando tanto 1
quanto 2.5
Entretanto, algumas questões se impõem como norteadoras na leitura
desse conjunto de textos e podem ajudar-nos a resgatá-los de uma forma mais
sistematizada, evidenciando sua contribuição na construção de soluções para
a formação do cidadão trabalhador. São elas:
• a tecnologia na redefinição do modo de produzir,
• a busca de uma nova concepção do ensino de segundo grau
• a formação do sujeito da prática social: o cidadão trabalhador.
Essas três questões norteadoras servirão de núcleo temático para
estabelecer uma ordem de apresentação e análise dos textos que serão referidos
em suas idéias principais.

1. A relevância do contexto e qual contexto é relevante: a tecnologia


na redefinição do modo de produzir
Todos os textos – até mesmo aqueles que, por elegerem um aspecto
específico, caracterizam-se como complementares – reconhecem que a
educação e, particularmente, o ensino de segundo grau só podem ser entendidos
a partir de uma visão aprofundada da realidade social, política e econômica.
Este último aspecto, aliás, ganha foro de prevalente fulcro de análise, porque a
temática do segundo grau tem imanente a questão da qualificação e/ou
qualificação profissional, como afirmava, em 1986, Theotônio dos Santos em

3
Os textos de Baethge (1989); Carleial (1997); Fartes (1994); Salgado (1988); Santos (1988).
4
Os textos de Ciavatta Franco (1988), Franco (1988), Kuenzer (1988), Machado (1985).
5
Os textos de Acselrad (1995), Barato (1985), Castro (1986); Cunha (1985); Depresbiteris (1989);
Franco (1988); Feitosa (1987); Garcia (1987); Muniz (1986); Muniz e Moreira (1986); Posthuma
(1993); Tomei (1989).

166
PARTE II | A DÉCADA DE 1980

comunicação na IV Conferência Brasileira de Educação: “Por não estar fora


do mundo, o Brasil não pode propor-se a qualquer tipo de política educacional
e modelo de desenvolvimento econômico sem analisar as tendências globais e
gerais do desenvolvimento contemporâneo” (Santos, 1988: 56).
Na análise desse contexto de desenvolvimento, os autores referem-se à
revolução técnico-científica ocorrida após a Segunda Guerra Mundial, provocando
não apenas mudanças nos processos produtivos, mas gerando, também, novos ramos
de produção, como a aviação e a energia nuclear. A informática, sobretudo, “aparece
como aplicação direta da evolução da ciência contemporânea”, transformando-se
“em força produtiva, numa parte do processo de produção” (Santos, 1988: 57). E,
porque a mudança tecnológica é acelerada, redefinem-se as características da
produção industrial: os parâmetros quantitativos dos processos massivos, antes
tratados como centrais, são substituídos pelos parâmetros qualitativos.
Ocorrem, então, “efeitos definitivos no processo de trabalho” (Santos,
1988: 59): o trabalhador passa a ter uma função mais controladora do que
executora de tarefas, surgindo equipes de trabalhadores para o exercício desse
controle da produção. Daí decorrem o crescimento dos setores terciários e o
surgimento de um “novo proletariado semi-industrial” exercendo as atividades
de controle, de manutenção das máquinas, de limpeza... Essas transformações
têm grandes “implicações do ponto de vista de política de desenvolvimento e
política de emprego” (Santos, 1988: 60).
Esse quadro de contexto, tendo – em alguns (Salgado, 1988) – referência
explícita na obra O capitalismo tardio, de Ernest Mandel,6 entende o capitalismo
contemporâneo como marcado pela incorporação maciça de tecnologia ao modo de
produção, gerando um padrão de desenvolvimento com as seguintes características:
a) internacionalização do capital e das forças produtivas; b) contradição entre os
Estados nacionais e a economia transnacional; c) primado da racionalidade técnica
sobre o laissez-faire no controle do ambiente; c) terceirização da economia.
Por outro lado, a organização do processo de trabalho – cuja marca de
mecanização e automação se refere à escala de produção e às condições da
força de trabalho – passa a fazer uma nítida distinção entre a transformação
(com alto investimento de capital constante e pouca força de trabalho, em
parte qualificada) e a montagem (com grande quantidade de mão-de-obra,
mas sem qualificação). Principalmente nesta última manifesta-se ainda
compatibilidade dos princípios tayloristas e fordistas.

6
O capitalismo tardio, de Ernest Mandel.(1923-1995), publicado no Brasil em 1982, em São Paulo, pela
Abril Cultural.

167
A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico

Nesse sentido, no caso específico do Brasil, a peculiaridade da organização


do trabalho – em que a rotinização evita a formação de grupos e separa o
planejamento da execução das tarefas – promove a coexistência de setores mais
modernos na organização do trabalho e outros em que permanecem ou prevalecem
formas antiquadas convivendo com as modernas (Salgado, 1988: 78-79).
As características da divisão internacional do trabalho reforçam uma
“subordinação crescente”. Antes, os países capitalistas avançados dedicavam-se à
manufatura e sua exportação, deixando aos periféricos a agricultura e exportação
de matéria-prima. A partir da década de 1960, um grupo de países periféricos passou
a dedicar-se à exportação de produtos industrializados (new industrial countries).
Esse fato, porém, em vez de sinalizar um avanço, foi uma ilusão. Na verdade, atendia
aos interesses dos avançados que, reorganizando o sistema de produção mundial,
atribuíram, ao grupo de periféricos emergentes os setores que estavam perdendo
capacidade de geração de empregos. Os países avançados dedicaram-se, então, à
pesquisa e desenvolvimento, buscando a capacidade de gerir a economia.
Paralelamente, e de maneira correlata, outras implicações surgiram, como
a diminuição da jornada de trabalho e o conseqüente aumento do tempo não
dedicado ao trabalho. Surge, então, e se desenvolve aceleradamente uma
indústria de lazer. Cultura e educação passam a ser também componentes desse
lazer. Por isso as atividades de conhecimento, ciência e educação tornam-se
grande fonte de empregos (cfr. Santos, 1988: 59-61).
Esta análise de contexto, tendo como eixo a questão tecnológica no
quadro do sistema produtivo e as tendências gerais do desenvolvimento
contemporâneo – fortemente presente também em Baethge (1989), Fartes (1994)
e Carleial (1997) – traz implicações sérias para a educação.
Esta última autora – apesar de seu texto ser posterior ao momento
constituinte propriamente dito, coincide com o tempo do desdobramento dos
dispositivos constitucionais sobre a educação (LDB e decretos subseqüentes) –
traz uma relevante contribuição de sistematização. Segundo Carleial (1997), o
comportamento da economia mundial apresenta um movimento de ajuste como
“resposta à quebra das condições econômicas, políticas e sociais estabelecidas
após a Segunda Guerra Mundial” (Carleial, 1997: 15), gerando um novo cenário
com os seguintes elementos fundamentais: a) a redução do ritmo de crescimento
da produtividade e lucratividade das atividades industriais; b) o rompimento
das regras institucionais; c) a globalização;7 d) mudança nos padrões de demanda

7
“a intensificação do movimento sobre as fronteiras nacionais de bens, serviços e capital, ou seja, a
globalização” (Carleial, 1997: 15).

168
PARTE II | A DÉCADA DE 1980

mais exigente e diferenciada; e, principalmente, combinando com os todos


esses, e) “uma profunda revolução tecnológica – ancorada na incorporação da
microeletrônica – nos processos produtivos” (Carleial, 1997).
A atual fase do capitalismo é de acumulação flexível, inspirada no modelo
Toyota de produção enxuta ou flexível, cujas características centrais são: a)
conjunto integrado de mudanças nos equipamentos, na organização, nas relações
com fornecedores, na gestão da força de trabalho; b) relativo afrouxamento da
gestão centralizada em favor de unidades produtivas mais ágeis; c) um novo
paradigma “capaz de permear toda a estrutura produtiva” (Carleial, 1997: 16).
Assim é que se modificam, também, as exigências de qualificação. As empresas
traçam um “novo perfil educacional para o trabalhador que também contemple
uma boa formação básica” (Carleial, 1997). Entretanto, como as modificações
concretas nos processos de trabalho estão em curso, “não existe então um modelo
único”, podendo ocorrer freqüentemente mudanças organizacionais sem que
necessariamente tenham ocorrido ou venham a ocorrer significativas mudanças
técnicas. É um momento de muitas indeterminações. “O que há de comum é
a busca por agilidade, flexibilidade, rapidez de resposta” (Carleial, 1997: 17).
Tanto a exigência de domínio tecnológico, a ser enfrentada com formação
científica básica, quanto a aceleração da geração e renovação do conhecimento
(científico e não científico) “não permitem mais pensar a educação
independente da pesquisa” (Santos, 1988: 61-62). Por outro lado, mesmo
afirmando o papel fundamental da tecnologia, há uma necessidade de desarmar
algumas abordagens espetaculares das inovações tecnológicas, como
responsáveis por um “futurismo (a)histórico, que desloca o foco das atenções
para elementos secundários” (Santos, 1988: 64), explicando o surgimento de
políticas equivocadas. Muito dos desacertos da educação (e mais
especificamente da educação profissional) se devem a análises e propostas “que
têm passado ao largo das questões econômicas, políticas e sociais”, contribuindo
“para descaracterizar as funções específicas da educação e do ensino, além de
não resolver os problemas dos alunos concretos, interessados em uma nova
ordem social, mais eqüitativa” (Salgado, 1988: 64-65). A tecnologia é portadora
de uma grande perspectiva, desde que se domine o seu desenvolvimento em
favor da humanidade.
Assim é que Santos (1988) considera uma loucura a multiplicação de
escolas técnicas de formação demasiadamente específica. Nem o
desenvolvimento tecnológico e nem a automação geram desemprego. A mão-
de-obra sobrante pode ser ocupada em uma sociedade que se organize de
outra forma. Na sociedade capitalista, porém, tudo se organiza para ter

169
A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico

desempregados e baixar os salários. Por isso, “é necessário pensar uma escola


técnica para um Brasil diferente: livre, emancipado e justo. Moderno e
adequado à época da revolução técnico-científica” (Santos, 1988: 62-63). A
formação profissional precisa direcionar-se para os interesses dos trabalhadores,
e o ensino técnico precisa centrar-se no domínio de princípios que permitam
entender o capitalismo contemporâneo, o papel a ser desempenhado pela
ciência e tecnologia em seu desenvolvimento e as relações sociais geradas pelo
contexto histórico. “Mas esse é também o conhecimento necessário a qualquer
cidadão que pretenda compreender sua época” (cfr. Salgado, 1988: 87).

2. A busca de uma nova concepçao do ensino de segundo grau:8


a formação do cidadão trabalhador, sujeito da prática social
Para empreender a busca de uma nova concepção do ensino de segundo
grau que contemple a educação profissional, não se pode fugir de “uma
interpretação do desenvolvimento social futuro, a cuja configuração a política
educacional tem que estar referida” (Baethge, 1989: 12).
Uma primeira dificuldade é demarcar, nas propostas e implementações
das medidas político-educacionais concretas, se sua inspiração é um projeto
de reforma ou de modernização. A diferença entre essas posições pode ser
assim expressa: enquanto “os modernistas orientam a política educacional
preferencialmente pelo objetivo da otimização da economia (...), os
reformadores colocam a política educacional principalmente a serviço da
redução da desigualdade social (igualdade de oportunidades) e da injustiça
social” (Baethge, 1989: 20).
Tratando dessa questão preliminar, Salgado (1988) identifica duas linhas
de interpretação para as repercussões da incorporação de tecnologias e das novas
formas de organização do trabalho sobre a qualificação profissional: os adeptos da
teoria do capital humano e os defensores do capitalismo monopolista do Estado
consideram que as novas condições de produção exigem maior grau de
qualificação profissional; os autores de orientação marxista rejeitam a ênfase no
caráter técnico do trabalho, já que os trabalhadores estão insatisfeitos com suas
atividades laborativas, ainda marcadas por operações mínimas. Assim “a formação
profissional específica para uma ocupação, segundo as propostas tradicionais,
não leva o trabalhador muito longe” (Salgado, 1988: 82). Na verdade, essas

8
Apesar de a Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996, ter denominado ensino “médio” o “ensino de
segundo grau” previsto na Lei n. 5.692 / 71, manteremos no texto a terminologia dos autores e da época
de seus artigos.

170
PARTE II | A DÉCADA DE 1980

propostas vinham da visão (a)histórica que celebrava “a ciência e a tecnologia


como redentoras da humanidade” (Salgado, 1988), renunciando-se a articular
a base econômica à superestrutura da sociedade.
A questão, portanto, é muito mais profunda. Ela toca em “uma
compreensão da técnica que não inverta a relação sujeito-objeto, que não
faça da técnica um pólo oposto autônomo, mas que a mantenha sob
responsabilidade e controle do homem” (Baethge, 1989: 8). A “tecnologia de
computadores” reforça e de forma alguma desmente tal concepção, na medida
em que “atua como técnica de elaboração da informação e como técnica de
direção e organização”, desenvolvendo uma nunca vista flexibilidade de uso.
Ao contrário do que é muito proclamado, há uma “interdependência dinâmica
entre as possibilidades técnicas e a capacidade humana de agir” (Baethge,
1989). Por isso, é falsa a discussão a respeito de “se as novas tecnologias devem
ser incorporadas à formação escolar ou não”. As tecnologias de informação e
comunicação fazem, cada vez mais, parte da cultura cotidiana, e os componentes
da cultura cotidiana não podem ser excluídos das instituições de formação. O
que importa “é a questão como e quando as novas tecnologias devem ser
incorporadas nas escolas, e que peso elas devem ter juntamente com suas formas
sociais de aplicação e seus modos sociais de atuação no interior de um novo
conceito de educação universal” (Baethge, 1989: 8-9).
Explicitada a referência de contexto, quatro autoras privilegiam a
discussão sobre o segundo grau como nível de ensino a ser reformulado,
convergindo substancialmente no encaminhamento propositivo de um segundo
grau de ensino a) que permita “ao aluno, o conhecimento do quadro atual da
sociedade brasileira nas suas múltiplas relações (Machado, 1995:38); b) que
propicie o “acesso à ciência, à história e ao saber organizado e sistematizado
que (...) além de instrumentalizar o aluno para o mundo do trabalho, vai
possibilitar-lhe uma visão crítica das relações de poder na sociedade capitalista,
passando pelas questões de ideologia e hegemonia na realidade brasileira
concreta” (Franco, 1988: 34); c) que supere “essa dicotomia, desqualificadora
na raiz, na medida em que não se reconhece que todo saber geral é saber sobre
o trabalho e vice-versa” (Kuenzer, 1988: 54); d) que “a formação para o trabalho,
na escola, deve situar-se em outra esfera de necessidades: as do trabalhador e
a da conquista da cidadania” (...) “trata-se de pensar um tipo de educação
geral ou profissionalizante na escola pública de segundo grau que não sirva
apenas de instrumento do capital ou de mecanismo de legitimação do Estado,
mas que sirva, principalmente, de instrumento de emancipação política e
cultural daqueles que trabalham” (Ciavatta Franco, 1988: 45).

171
A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico

Um primeiro aspecto a ressaltar, no movimento propositivo detectado


nos textos, é a crítica ao que está posto ou proposto.
Nesse sentido, Machado (1985) parte da constatação de que as práticas
diferenciadas, nas escolas de segundo grau, expressam uma concepção das
relações entre educação e instrução, e entre cidadania e trabalho, responsável
pela dualidade escola clássica (para as “classes minoritárias e dominantes”)
versus escola profissional (para “instrumentalizar os trabalhadores para as
atividades produtivas”) – ambas “anacrônicas face a tendência histórica em
desenvolvimento”, já que é o “avanço do desenvolvimento das forças produtivas,
que tem exigido maior aprimoramento técnico das atividades práticas e uma
maior articulação entre os problemas gerados pela vida social e o
desenvolvimento das ciências”.
Franco (1988: 26-33) indica como pontos críticos desse nível de ensino:
a) A indefinição política, decorrente de considerá-lo como um todo
homogêneo, desprezando especificidades e uma diversidade que lhe é inerente
tanto por razões teóricas (não explicitação da contradição capital-trabalho;
a redução da relação educação–trabalho para uma relação educação/mercado
de trabalho; a concepção abstrata do conceito de trabalho; o tratamento
segmentado, em que escola e trabalho são realidades estanques; a
desvalorização do saber técnico) quanto por razões práticas (diante das
contradições na ordem social concreta, essa indefinição se expressa a partir
do conflito das demandas seja por profissionalização de nível médio, seja por
cursos propedêuticos). Torna-se então inelutável o enfrentamento de um
duplo desafio: lutar pela democratização do ensino médio e repensar a
formação profissional, tanto como opção mais realista para os jovens, quanto
como espaço de exercício da função social de desenvolvimento da cidadania.
b) O segundo ponto crítico – ausência de pesquisas e dados consistentes
que subsidiem políticas educacionais para o ensino médio – evidencia-se na
forte concentração dos estudos na questão da profissionalização, com um
certo desprezo pelos dados empíricos, esquecendo que eles são elementos
fundamentais, juntamente com a recuperação do concreto, “para fazer
pesquisas numa perspectiva dialética”. c) O ensino de segundo grau admite
“todo tipo de improvisações (...) soluções de todo tipo, sem que se efetue
uma reflexão mais sólida sobre esse nível de ensino, sem que se defina sua
função social, sem levar em conta os interesses do contingente de alunos
trabalhadores que necessitam do segundo grau, e sem que se explicite
qualquer direção ou compromisso político para a educação da população
jovem do país”.

172
PARTE II | A DÉCADA DE 1980

Kuenzer (1988: 48-52) articula seu olhar a partir da realidade da Região


Metropolitana de Curitiba,9 denunciando a “falta de clareza sobre a relação
entre educação e trabalho neste grau de ensino”, responsável pelos desencontros
das propostas vigentes que acolhem ou rejeitam a profissionalização, que
defendem uma escola única ou a diferenciação. Traz-nos os dados: a)
evidenciando uma alteração qualitativa pela abertura concreta aos filhos da
classe trabalhadora, sobretudo nas escolas da periferia e nos cursos noturnos;
b) apontando como razões de matrícula dos alunos: ingresso na universidade;
ingresso no mercado de trabalho e melhoria salarial; melhoria das condições
de vida pela aquisição de conhecimentos e o prazer de estudar; c) criticando
as propostas vigentes, mostrando que não consideram as especificidades do
aluno trabalhador (reprodução da escola de classe média, sem levar em conta
a jornada de trabalho, as condições físicas e as condições de aprendizagem); o
currículo não considera a concepção de mundo, nem o saber produzido e
apropriado no trabalho, nem a experiência cultural (uma teoria sem prática);
a prática docente pouco competente, desinteressada e descomprometida,
(atribuindo aos alunos as razões de fracasso); d) revelando a reivindicação de
“qualidade”, entendida, no mínimo, como o devido “respeito à sua condição
de trabalhadores” (Kuenzer, 1988: 52).
Ciavatta Franco (1988), analisando a proposta de criação de 200 escolas
técnicas, apresentada pelo Governo José Sarney, levanta as questões que
precisam ser discutidas sobre o tema da formação técnica/profissional e explicita
“um Estado voltado ‘de costas’ para a sociedade brasileira” (Ciavatta Franco,
1988: 37) – evidenciado na “carência de visibilidade dos critérios políticos da
ação governamental”. Desenvolve, então, a crítica às medidas que o Boletim
da ANDE (Associação Nacional de Educação) n. 12, de 1986, qualificara
como “Um desvio dos reais problemas da escola pública brasileira”, configurando
o “quadro de iniciativas diversas, umas superpostas, outras desencontradas”
de uma não-política. Sua argumentação parte da crítica à dupla alegação, não
acompanhadas de critérios coerentes de implementação, de que as 200 novas
escolas fariam a “interiorização” e de que atenderiam à necessidade do
“desenvolvimento tecnológico”. Trazendo as informações de estudos recentes
da época, demonstra que as escolas têm seus locais definidos por razões de
influência política ou de disponibilidade de instalações ociosas e que têm como
proposta pedagógica a transmissão de conhecimento e treinamento de mão de
obra (cfr. Ciavatta Franco, 1988: 42-43). E aponta o “desvio” de uma concepção

9
Lembremos que sua pesquisa abrange nove estados.

173
A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico

fragmentária, incapaz de “superar o tradicional dualismo da educação brasileira,


de uma escola de boa qualidade para as elites e de falta de escolas, de escolas de
baixa qualidade ou de apenas treinamento profissional para a maioria da população”.
Um segundo aspecto é a especificação de propostas que sejam respostas
à análise crítica e que se constituam em pauta de ação..
Uma lista de sete pontos de “intervenção consciente” para alterar a
tradicional dicotomia é apresentada por Machado (1985): a) “neutralizar o
poder discriminador dos interesses elitistas dos grupos minoritários”; b)
“organizar uma vontade coletiva em torno de um projeto de escola de segundo
grau”, compatível com as exigências colocadas pelo desenvolvimento das
forças produtivas e da ciência; c) “conseguir a mais significativa unificação
do primeiro grau”, caso contrário a diferenciação antidemocrática no segundo
grau persistirá como expressão de uma política educacional antidemocrática
em seu conjunto; d) “estabelecer uma política democrática de ensino
supletivo de segundo grau”, aumentando o investimento público e exigindo-
lhe qualidade; e) “entender que a possibilidade de unificação educacional
(...) já significa a busca de condições (...) para sua realização”, mesmo
reconhecendo que a dualidade tem sua base nas desigualdades sociais; f)
“considerar criticamente a reivindicação por repartições mais justas de saber”,
tomando em conjunto a forma da distribuição social e as condições de
produção da vida material, consideradas as suas relações dialéticas; g) “tomar
o ensino de segundo grau como um conceito em plena evolução, susceptível
de ser transformado pelo desenvolvimento das contradições sociais”, o que
dá importância maior à ação das forças progressistas. Tudo isso implica a
máxima aproximação possível do cotidiano escolar às práticas sociais dos
brasileiros no enfrentamento dos problemas de sobrevivência, para que “as
necessidades objetivas da sociedade” sejam “ponto de partida e de chegada
do processo pedagógico”.
Entretanto, para realizar essa proposta, são necessárias as seguintes
condições: a) democratização do acesso e das condições de permanência na
escola; b) democratização do saber, entendida como assimilação crítica de
uma herança transmitida e como um processo de relações sociais em contexto
historicamente determinado; c) atividade escolar em ambiente de ampla
liberdade de pensamento e de expressão; d)renovação metodológica superando
soluções de improviso, conteúdos desarticulados e mecanicismo teórico; e)
melhorias concretas de infra-estrutura, relacionadas ao trabalho escolar.
Buscando explicitar uma proposta, Franco (1988) indica “elementos
básicos que (...) devem estar presentes quando se discute política de segundo

174
PARTE II | A DÉCADA DE 1980

grau”. Preliminarmente, reafirma a complexidade desse nível de ensino e


estabelece como pressuposto que, nele, se “deve oferecer um aprendizado que
permita tanto a continuidade dos estudos quanto o ingresso no mundo do
trabalho”. São, portanto, requisitos fundamentais: a) “integrar (...) os conteúdos
voltados ao ‘saber técnico’ com aqueles direcionados ao desenvolvimento de
uma sólida educação geral e à formação do adolescente crítico que sabe
ultrapassar a opacidade do ‘aparecer social’ para buscar, no concreto, as reais
explicações históricas “que desvelam os processos geradores das contradições
sociais”; b) “proporcionar ao aluno o desenvolvimento dos conteúdos,
habilidades e atitudes, previstas no mundo do trabalho para que possa nele
ingressar e permanecer e, na prática social, enquanto cidadão trabalhador,
encontrar (junto à organização dos trabalhadores), formas de luta em prol das
transformações” (Franco, 1988: 34).
Com base nos dados de sua pesquisa, Kuenzer (1988: 53-55) afirma a
necessidade de construção de uma proposta que tenha presente a aparente
contradição dos alunos da classe trabalhadora. Eles reivindicam uma escola
que ofereça a preparação para o trabalho e para o ingresso na universidade.
Mas têm a percepção clara de que “a continuidade dos estudos só será possível
através da terminalidade do segundo grau, como forma de facilitar o ingresso
no mercado de trabalho”. Uma indicação nítida portanto de encaminhamento
de um ensino de segundo grau que torne possível o atingimento de ambos os
objetivos. Assim, uma proposta “de qualidade” significa: a) assumir o trabalho
como categoria explicativa mais ampla, contribuindo para a superação das
desigualdades de classe; b) constituir a escola como espaço de apropriação
dos princípios teórico-metodológicos em que, a partir do saber adquirido na
prática do trabalho, se promove o acesso ao saber científico e tecnológico
sistematizado.
Ciavatta Franco (1988), trazendo referência a estudos, reafirma que o
interesse das empresas pelo nível de escolarização do trabalhador está focalizado
principalmente naquilo “que lhe permite preparar técnicos, supervisores ou
operários qualificados em menor tempo e com menor custo”. Diferentemente
das empresas, “a formação para o trabalho, na escola, deve situar-se em outra
esfera de necessidades: as do trabalhador e da conquista da cidadania (...)
trata-se de pensar um tipo de educação geral ou profissionalizante na escola
pública de segundo grau que não sirva apenas de instrumento do capital ou de
mecanismo de legitimação do Estado, mas que sirva, principalmente, de
instrumento de emancipação política, econômica e cultural daqueles que
trabalham” (Ciavatta Franco, 1988: 45).

175
A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico

3. Alguns temas específicos e complementares


O critério que nos levou a trabalhar alguns textos como relacionados a
temas específicos e complementares foi o de optar pela centralidade da
discussão de política educacional referida ao Ensino de 2º Grau e Formação
Profissional, por estarmos mergulhados nos tempos em que a sociedade
brasileira empreende sua re-constituição em um Estado democrático de
direito, onde a educação e, nela, a formação do trabalhador-cidadão aflora
como referência básica.

3.1 Formação profissional rural


Tanto Maria Laura P. B Franco (1985), quanto Luiz Felipe M. de Castro
(1986), por caminhos diferentes, procuram analisar criticamente a formação
profissional rural e propor encaminhamentos.
Franco apresenta uma investigação sobre a função social do ensino técnico
agrícola no nível de segundo grau, a partir de um breve histórico da trajetória
do ensino agrícola e analisa a política do ensino agrícola na década de 1980,
desde as formulações do MEC/SEPS/COAGRI (Franco, 1985: 7 e 8). Trazendo
as formulações oficiais, a autora vai contrapondo dados da realidade rural e
das escolas rurais, como o descompasso entre propostas educacionais e políticas
de produção agrícola, a situação concreta dos trabalhadores sem terra e as
condições de distribuição da produção. Considera que o primeiro passo para
uma proposta de ensino agrícola é o “efetivo conhecimento e a capacidade de
compreender, interpretar e analisar criticamente a realidade social e, em
especial, a realidade agrícola brasileira” (Franco, 1985: 9). Para tanto, a
articulação com a comunidade é imprescindível, não havendo possibilidade
de uma escola voltada para si mesma.
Referenciando-se em Habermas, Castro (1986: 145) identifica, na
formação profissional rural, a inculcação de “novos padrões de comportamento
que visem inserir (o assalariado rural) num sistema agrícola capitalista
moderno e, portanto, racional”. E identifica também o surgimento das
“condições para a formação e a tomada de consciência de uma nova
identidade racional” com “outras possibilidades de práticas, outros tipos de
objetivos, outro tipo de aspiração, enfim, um novo tipo de sociedade, diferente
dessa, que pode também ser construída” (Castro, 1986: 149). Para isso, porém,
é preciso que se reconheça a comunidade como educadora, sendo necessário
implementar estratégias de aprimoramento de seus canais de comunicação
(Castro, 1986: 150).

176
PARTE II | A DÉCADA DE 1980

3.2. Propostas inovadoras e sua realização concreta


Mesmo considerando que nos itens anteriores a questão da mudança e
da inovação esteve presente, é importante retomá-la aqui, mediante as
considerações de três autores que trazem uma preocupação grande com o
discurso (e até projetos) de propostas de inovação e sua implementação.
Nesse sentido, o texto de Barato (1985) explicita – e procura explicar –
a muito freqüente defasagem entre a aceitação ideal da inovação e/ou da
mudança e sua concretização. A partir do estudo da implantação da técnica
de auto-instrução no SENAC/SP, sua análise toma como referência
interpretativa o trabalho de Daft e Becker.10 Após o estudo do caso, o autor
aponta para a possibilidade de “traçar um quadro prescritivo para qualquer
inovação técnica em organizações educacionais” (Barato, 1985: 31) e que
consiste nos seguintes pontos: corresponder a metas e objetivos organizacionais;
responder a demandas ambientais; ser conduzida de maneira descentralizada;
contar com a adesão voluntária dos agentes; envolver agentes com grau elevado
de profissionalismo; contar com a coordenação de equipes de apoio técnico.
O texto de Posthuma (1993), por sua vez, concentra-se no processo de
mudança e inovação dentro das empresas como resposta às transformações do
processo produtivo e voltado para a qualificação de um trabalhador mais flexível
e polivalente. Também a partir de um estudo de caso (empresa de autopeças),
a autora11 explicita o quadro contraditório de valorização dos trabalhadores –
seja pela qualificação, seja pela proposição de programas participativos –
convivendo com a demissão de pessoal, em busca de uma empresa “mais enxuta”
(Posthuma, 1993: 253), observando que vários estudos estão demonstrando
que “a busca da polivalência e qualificação do trabalho está caminhando de
mãos dadas com a redução da força de trabalho” (Posthuma, 1993: 255).
Entretanto, para além dos limites do caso estudado, embora se constate
a tendência qualificadora, o que se torna claro é que os investimentos e o
tempo de treinamento se comportam como subsídio apenas para que o
trabalhador produza com mais qualidade. Portanto, “não representam uma

10
Daft, R & Becker, S. Innovation in organization. New York, Elsevier, 1980. Uma abordagem que, segundo
Barato (1985: 19), foi “especificamente elaborada para explicar o processo de inovação e mudança no
âmbito da instituição educacional”. Interessante notar a ausência de referência a Huberman, A. M.
Como se realizam as mudanças em educação: subsídios para o estudo da inovação. S. Paulo, Cultrix,
tradução de obra publicada em 1973 pela UNESCO.
11
Anne Posthuma à época se qualificava como Pesquisadora Labor do Instituto Eder Sader e Consultora
na área de reestruturação produtiva.

177
A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico

qualificação dos trabalhadores no sentido de dotar-lhes de novas habilidades


ou capacidades que lhes permitam dominar novas operações, nem a
polivalência” (Posthuma, 1993: 266).
No sentido de inovações mais amplas, no âmbito das políticas, Acselrad
(1995)12 se propõe “evidenciar os riscos de uma associação pouco crítica entre
os imperativos da competitividade e as estratégias de ‘enxugamento’ da
produção baseadas, em grande parte, na compressão dos custos salariais e na
busca de economias que se dão, com freqüência, ao custo da desarticulação
dos coletivos de trabalho” (Acselrad, 1995: 50). O que, de sua análise, mais
contribui para um entendimento crítico da qualificação dos trabalhadores, é a
reposição que faz do conceito de competitividade, evidenciando a falácia
corrente de sua vinculação à produtividade. Para ele, “ganhos de produtividade
não se transformam automaticamente em ganhos no mercado internacional”,
tendo presente “as relações desiguais de poder e de controle sobre fluxos de
tecnologias e canais de comercialização”.
Da mesma forma aponta os riscos de políticas propostas (ou impostas)
pela “retórica imperativa e indiferenciada da competitividade”, pois, se é
verdade que algumas poderão resultar em incremento da renda real e do bem-
estar da população, outras poderão produzir desemprego e queda da renda real
per capita (Acselrad, 1995: 51).
Nesse sentido, as políticas de qualificação do trabalho tendem a voltar-
se para aumento de produtividade para fortalecimento da competitividade,
baseando-se em uma qualificação como estoque e não como fluxo de
conhecimentos e habilidades (desconsiderando o saber cumulativo, constitutivo
da qualificação efetiva), em uma qualificação que não mais é considerada
uma relação social (correndo o risco, portanto, de captar realidades meramente
circunstanciais).
Assim é que o autor chega a uma profunda crítica à construção da noção
de tarefa e de sua aplicação à representação de processos produtivos e,
conseqüentemente, aos programas de qualificação. Nesse aspecto, suas
observações oferecem elementos importantes para discutir as técnicas de análise
ocupacional como base de processos de formação profissional (cfr. Feitosa, 1987).
Na conclusão de seu texto, Acselrad (1995) vai apontar que “A busca de
competitividade tem, no Brasil, combinado uma retórica favorável ao envolvimento

12
Henri Acselrad, economista e professor do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional
IPPUR/UFRJ.

178
PARTE II | A DÉCADA DE 1980

dos trabalhadores em novos modos de organização do trabalho, com práticas


gerenciais tradicionais de controle sobre o trabalho”(Acselrad, 1995: 61).

3.3. Avaliação
A temática da avaliação dos programas de formação profissional e a
análise avaliativo-comparativa de programas de treinamento estão presentes
nos textos de Léa Depresbiteris (1989) e de Patrícia Amélia Tomei (1989),13
ambos publicados no mesmo Boletim Técnico do SENAC.
O primeiro se caracteriza como uma aplicação da teoria de avaliação
baseada em sistemas para a formação profissional, enquanto o segundo empreende
uma análise avaliativa de programas de treinamento em empresas no Brasil,
estabelecendo comparações com essas práticas nos Estados Unidos e Japão.
Enquanto Depresbiteris, ao aplicar o modelo sistêmico, consolida os
momentos avaliativos em torno das variáveis de contexto (aspectos políticos e
filosóficos, de currículo, de estrutura institucional, relativos aos docentes,
relativos aos alunos), de processo (comportamento docente/discente e mediação
de material didático) e de produto (mudanças educativas na comunidade,
mudanças de comportamento – efeitos imediatos e a longo prazo), Tomei
desenvolve sua análise a partir de uma classificação de ênfases nas tarefas
(recuperando variáveis enfatizadas na teoria da administração científica como
eficiência/produtividade, racionalidade, padronização), nos indivíduos
(recuperando variáveis enfatizadas nas teorias de relações humanas, de
comportamento organizacional, de desenvolvimento organizacional), no
ambiente e na tecnologia (recuperando as variáveis ambientais, enfatizadas
na teoria contingencial e tecnológica).
A diferença entre as abordagens – além do objeto – está no fato de que
o objetivo da primeira é desenvolver uma proposta de avaliação programática
a ser aplicada institucionalmente, enquanto a segunda aponta – por meio da
análise – o perfil da prática de treinamento e recomenda encaminhamentos
norteadores para políticas de desenvolvimento de recursos humanos nas
empresas. Em ambos os textos, porém, podem ser captados os entendimentos e
as perplexidades da época em relação à qualificação do trabalhador.
Assim, Depresbiteris (1985: 178-179), embora ressaltando que a questão
avaliativa continua aberta a discussões, entende que “se as concepções sobre

13
À época, Lea de Presbiteris estava vinculada ao SENAI/SP como Técnica de Ensino, e Patrícia Amélia
Tomei, dirigia o Departamento de Administração e Gerência da PUC-Rio.

179
A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico

trabalho, Formação Profissional, docente, aluno, currículos, diretrizes de


planejamento de ensino e avaliação da aprendizagem forem amplos, visando
não somente à formação técnica, mas também à social, a instituição buscará
formas de avaliar sua atuação na sociedade”, buscando as informações “não só
para atender às exigências do mercado, mas também para tentar formar a
consciência de seus alunos no tocante a seus deveres e direitos como profissional
e como pessoa”.
Por seu lado Tomei (1985: 204-205) conclui, sobre os programas de
treinamento no Brasil, que se confunde treinamento, desenvolvimento e
educação; que, embora discursivamente se “acredite” no treinamento como
investimento, a prática desmoraliza o discurso tomando a função treinamento
como “despesa para as organizações”, gerando descrédito e empobrecimento
da área; que se avaliam os resultados “de forma desvinculada do planejamento
estratégico das organizações”.

3.4. Orientação para o trabalho


Os dois textos de Maria José de Paiva Muniz (o primeiro em co-autoria
com Maria Thereza Moreira),14 ambos de 1986, trazem reflexões e indicações
operacionais sobre a função de orientação para o trabalho. Ambos se voltam
muito especificamente para as necessidades de mudança das bases teóricas e
da prática de orientação no Sistema SENAC.
A partir de uma análise histórico-crítica da Orientação Educacional e
Profissional, a proposta de uma Orientação para o Trabalho consolida os
princípios de desenvolvimento profissional e de formação integral do indivíduo
(presentes na OP e na OE), assim como os elementos de Informação Profissional.
Entretanto não é um somatório desses aspectos, mas seu desenvolvimento
ressaltando os seguintes pontos básicos: a orientação enfatiza a relação
indivíduo/trabalho; o trabalho (extrapolando o emprego) é vivência do exercício
de uma atividade produtiva e consciência de um papel social; a decisão
profissional é processo dinâmico, contínuo e passível de reformulação; é
necessário ter presentes os aspectos psico-sócio-econômicos, políticos e
culturais; maior preocupação com o “saber discernir” do que com a “escolha
profissional”; “acompanhamento ligado aos aspectos práticos, visando ao
engajamento imediato na força de trabalho”.

14
As duas autoras, à época estavam vinculadas ao SENAC – Departamento Nacional, tendo a primeira
coordenado o Setor de Orientação para o Trabalho.

180
PARTE II | A DÉCADA DE 1980

3.5. Meios de ensino na formação profissional


Sidney da Silva Cunha (1985) apresenta algumas notas para diretrizes
de uma “política de informática na formação profissional” apresentando um
breve histórico e indicações iniciais.
Maria Apparecida de M. Garcia (1987) trata da problemática de “textos
instrucionais e formação profissional” constatando a insuficiência de materiais
disponíveis e a qualidade deficiente dos que são improvisados localmente.
Propõe uma reflexão sobre o objetivo dos textos para a instrução e oferece um
roteiro de elaboração.
O terceiro texto, de autoria de John F. Arce e de M.Cristina D’Arce
(1987), à época atualíssimo, trata das potencialidades do videodisco como vídeo
interativo e a alternativa do videoteipe. Cabe reconhecer, entretanto, a percepção
dos autores ao concluírem que “Como qualquer tecnologia – seja na área
instrucional ou em outra área do conhecimento – o videodisco pode ser visto
como ‘arauto do futuro’ ou como ‘meio em processo de morte’. Ele pode durar tão
somente até que sejam anunciados outros avanços tecnológicos para o
armazenamento de informações. Neste meio tempo, no entanto, os tecnólogos
instrucionais que pretendam utilizá-lo devem começar a entender as ‘regras
básicas’ de sua aplicação, especialmente as que se referem a seu imenso potencial
para a viabilização de processos de aprendizagem mais confortáveis e eficazes”.

4. Considerações finais
A produção analisada nesses textos (21) não esgota a riqueza dos debates
dos anos 80, anos constituintes. Mas, certamente, aponta com muita clareza
para as idéias-força que teceram os debates que fizeram a luta pela
democratização do país.
Se é verdade que o estado de direito, restaurado na Constituição de 1988,
é um compromisso mais de conservação do que de transformação, não é menos
verdade que a busca de democratização da educação avançou mais do que recuou.
Os autores de 80 – ativos no Fórum que se veio instituindo desde as reuniões da
SBPC, consolidando-se nas Conferências Brasileiras de Educação, para se tornar
uma força viva nos debates constituintes e nos encaminhamentos tergiversados da
LDB – são autores do hoje, leitores do mundo, mas na dimensão do humano.
O debate continua, incorporando novos debatedores, desdobrando novos
desafios, descobrindo novas pistas de solução, identificando novos desvãos em
que se sacrificam as necessidades da maioria em favor dos privilégios da minoria.
O resgate desse debate dos anos 80, porque em tempos constituintes, sem

181
A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico

dúvida, nos serve de lição. Mesmo as vozes mais fracas, que parecem apagar-se
diante do volume dos que vocalizam os grandes temas, sinalizam para o fato de
que nem o mais mínimo detalhe deixa de ser importante no propor o fazer da
educação. Lição que também nos é dada nessa trabalhosa busca em referenciar
as análises, em argumentar as propostas, em desvendar os discursos, em avaliar
os feitos, em ler os textos em seus contextos.
No momento em que se torna aguda a discussão da relação da educação
média com a educação profissional, da educação superior com a educação
profissional, da educação do homem cidadão e trabalhador, revisitar textos de
tempos constituintes é fazê-los presentes em nossos argumentos, em nossas propostas.

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CAPÍTULO 1 | INÍCIO DOS ANOS 1990: REESTRUTURAÇÃO


PRODUTIVA, REFORMA DO ESTADO
E DO SISTEMA EDUCACIONAL

JAILSON DOS SANTOS

Introdução
Na literatura a que tivemos acesso, constatamos que pesquisadores
filiados às mais diferentes áreas do conhecimento e com vínculos institucionais
junto às universidades, ao Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial –
SENAI, e ao Ministério do Trabalho, procuraram, de um lado, relacionar a
reestruturação produtiva às mudanças que deveriam ser efetivadas no sistema
educacional brasileiro, com vistas à melhoria da qualidade do ensino e, em
decorrência, aumentar os níveis de escolaridade e o desenvolvimento cognitivo
do cidadão produtivo.
Por outro lado, verificamos que grande parte da produção bibliográfica
em torno do tema mostrou os impactos da reestruturação produtiva sobre a
força de trabalho, centrando-os nas questões referentes ao desemprego. De
acordo com as análises expressas nessa mesma literatura, detectamos que,
basicamente, os autores atribuem ao desemprego dois problemas: o primeiro,
que se passa no âmbito do espaço interno das empresas, se refere às dificuldades
nas relações interpessoais que atravessam o mundo do trabalho quando da
redução do quadro de empregados; o segundo, que ultrapassa aos limites das
empresas, está vinculado às questões sociais que surgem com o desemprego.
Alguns autores procuram mostrar a importância do papel do Estado no
sentido de, ao mesmo tempo, contribuir para o êxito do processo da
reestruturação produtiva e ter uma intervenção ativa para neutralizar seus
efeitos perversos sobre a sociedade.
No primeiro caso caberia ao Estado a reformulação de seu sistema
educativo, de modo a adequar a educação aos pressupostos da reestruturação
produtiva. No segundo aspecto, o papel do Estado seria o de solucionar os
problemas causados pelo desemprego, a partir de formulação e execução de

187
A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico

políticas públicas, as quais deveriam ser construídas e implementadas segundo


uma articulação entre Estado e segmentos da sociedade civil, com o objetivo de
reverter os altos indicadores de desemprego causados pela reestruturação produtiva.

1. A reestruturação produtiva e os impactos na força de trabalho


A falência do milagre brasileiro, traduzida pela instabilidade econômica
que se iniciou em 1973 e só se manifestou de modo mais contundente durante
a década de 1980, associada à recessão econômica, e a abertura dos mercados,
efetivada pelo Governo Fernando Collor no início dos anos 90, constituem um
conjunto de fatores combinados que determinou a crise do capitalismo brasileiro
ao final do século XX.
Os efeitos dessa crise causaram fortes impactos na acumulação de capital,
tendo em vista a quase total impossibilidade das empresas instaladas no território
nacional de participarem da competição no mercado internacional. Segundo
vários analistas, uma das principais causas dessa impossibilidade estava localizada
no esgotamento do padrão tecnológico, fundado no modelo clássico taylorista-
fordista, que vinha sendo utilizado até então por essas mesmas empresas.
É dentro deste quadro que ao final dos anos 80 começam a se evidenciar
as profundas transformações nos processos de trabalho, fenômeno a literatura
convencionou chamar de reestruturação produtiva,1 sendo que as mudanças
passaram a ser feitas, inicialmente, nas empresas de ponta e, posteriormente,
se propagaram por toda a cadeia produtiva, chegando a atingir também o
conjunto das firmas terceirizadas.2
Com base nas reflexões feitas por Githay e Rabelo (1993) e Posthuma
(1993), a partir das pesquisas que realizaram junto às empresas do ramo
automobilístico, a reestruturação produtiva pode ser entendida por mudanças
que se operam a partir de um novo paradigma técnico-econômico, que emerge
no sentido de promover a superação da crise do capital, implicando, dessa forma,
a introdução, por parte das empresas, de novas tecnologias – transformações na
base técnica do sistema produtivo – e a implantação de novas formas de gestão
da força de trabalho – transformações na organização do sistema produtivo –,
componentes que, no mundo do trabalho, se articulam entre si.

1
Na literatura, expressões como inovação tecnológica, novas tecnologias, inovações técnico-científicas e
modernização tecnológica têm sido usadas para se referir à reestruturação produtiva.
2
Bello (apud Abramo, 2001: 53) identificou que a difusão das novas tecnologias é mais intensa nas
empresas cuja parte significativa da produção se destina ao mercado externo.

188
PARTE III | A DÉCADA DE 1990

Cabe aqui ressaltar que encontramos, entre os estudiosos do tema


reestruturação produtiva, uma variedade de posições e, dentro delas, detectamos,
de um lado, aqueles que no plano teórico procuram mostrar que os efeitos da
modernização tecnológica são genéricos, isto é, ocorrem da mesma forma nas
mais diferentes realidades. Por outro lado, há pesquisadores que constataram,
a partir dos resultados obtidos em pesquisas empíricas, feitas por meio de estudos
de caso junto às empresas, a contradição dessa visão determinista.
Os trabalhos aos quais tivemos acesso nos permitem afirmar que existe
pelo menos uma posição, que é consenso entre os diferentes autores: a de que
a reestruturação produtiva se expressa pela adoção das novas tecnologias, que
se articulam com as novas formas de organização e de gestão da produção, e se
baseia fundamentalmente no modelo japonês – o toyotismo.
Entretanto, podemos localizar entre os autores as seguintes divergências:
a primeira se situa na forma pela qual se estabeleceu a relação entre os “velhos”
e os “novos” paradigmas no momento em que se processa a reestruturação
produtiva; a segunda está centrada na relação que se estabelece entre o grau de
transformações do componente técnico e a intensidade das mudanças nas formas
de organização e de gerência da produção, no processo de inovação tecnológica.
Com relação ao primeiro aspecto, Leite (1995: 11) localiza três correntes
do pensamento que discutem a relação entre o esgotamento do “velho”
paradigma técnico-econômico, fundado nos princípios do taylorismo-fordismo,
e o surgimento de um “novo” modelo, fundado no toyotismo. Tomando por
base relação que se estabeleceu entre esses dois paradigmas a partir da
reestruturação produtiva, verifica-se que essas correntes se definem a partir
de três posições: a ruptura do toyotismo com taylorismo-fordismo; a
continuidade do taylorismo-fordismo; e a convivência desses dois modelos no
processo de reestruturação produtiva.
Entretanto, considerando alguns autores brasileiros que elaboraram
estudos empíricos sobre o referido tema, constata-se que no Brasil a
reestruturação produtiva não foi capaz de eliminar totalmente o “velho”
paradigma, pois ainda existem empresas que, mesmo introduzindo em seus
sistemas produtivos a reformulação de seus padrões tecnológicos, ainda
continuaram utilizando o modelo clássico fundado no taylorismo-fordismo.
Como afirma Leite,
Novas e velhas práticas produtivas coexistem, tanto no plano técnico-operacional,
como na gestão do trabalho e de qualificação e que mesmo no âmbito das empresas
mais inovadoras, a estratégia é gradual e sincronizada voltada à superação progressiva
de gargalos não implicando reviravolta total da organização (1995, p. 11, grifo nosso).

189
A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico

No que se refere ao segundo ponto de divergência, verifica-se que alguns


analistas não definem claramente o que foi preponderante no processo de
reestruturação produtiva: se as mudanças na base técnica ou as inovações nas
formas de organização da produção.
Tomemos por base algumas das seguintes afirmações que foram feitas
por alguns autores:
Embora as inovações ainda se apresentem pouco difundidas, as empresas tratam
de associar modernização física, de máquinas e equipamentos, com novas formas
de gestão dos recursos produtivos – materiais, máquinas, informações – e dos
agentes produtivos (Leite, 1995: 9; grifo nosso).

No setor industrial, essa “modernização tecnológica” identifica-se com o processo


atualmente em andamento de transformações na organização e nas relações de
trabalho, determinado principalmente pelas inovações tecnológicas, consideradas
como conjunto integrado de conhecimentos, técnicas, ferramentas e
procedimentos de trabalho (Rodrigues e Achcar, 1995: 12; grifo nosso).

A discussão internacional a respeito do processo de tecnologia produtivo, que


vem ocorrendo nos países industrializados, tem elegido como um dos seus
temas principais “a questão dos possíveis modelos de organização do trabalho” que
a nova tecnologia está propiciando (Gonçalves, 1995: 136; grifo nosso).

As teses sustentadas pelos autores, já citadas, trazem em seu conteúdo


uma visão mecanicista, na medida em que procuram estabelecer uma relação
direta entre as mudanças que se operam na base técnica e as transformações
nos processos gerenciais e de organização da produção, não permitindo sequer
detectar, na referida relação, o componente que na realidade foi introduzido
com maior intensidade no processo de reestruturação produtiva: se o técnico
ou o gerencial. Evidentemente, essa visão não é a predominante entre os
estudiosos do tema, principalmente entre aqueles que se ocuparam na produção
de pesquisas empíricas.3
As pesquisas têm mostrado que o processo de reestruturação produtiva
vem provocando alguns impactos sobre o conjunto dos trabalhadores, e, entre
eles, dois têm merecido mais destaque por parte dos analistas: o de natureza

3
Bello (2001: 92), em pesquisa realizada junto à Xerox do Brasil Ltda., constatou a baixa intensidade de
utilização de inovações tecnológicas na referida empresa. Em contrapartida, relativamente à introdução
de inovações tecnológicas, os maiores esforços ali empreendidos concentraram-se muito mais nas
mudanças da organização do trabalho. Esse fato, segundo o próprio autor, confirma “as tendências
notadas em âmbito nacional por diversas outras investigações empíricas”.

190
PARTE III | A DÉCADA DE 1990

social, que se explicita na questão do desemprego; o outro, que se relaciona


com o aspecto anterior, se localiza no novo perfil da força de trabalho, que é
imposto pelas inovações tecnológicas. Esse novo perfil se traduz pelas novas
exigências em termos de qualificação do trabalhador e, em decorrência, pelo
aumento dos seus níveis de escolaridade.
Antes de entrarmos nos impactos que a reestruturação produtiva provocou
no conjunto dos trabalhadores, vamos procurar descrever, com base nos estudos
a que tivemos acesso, de que forma a reestruturação produtiva se efetivou na
prática e quais foram os elementos que passaram a ser incorporados à produção.
Gitahy e Rabelo (1993) e Posthuma (1993) mostraram que, do ponto de
vista das transformações que se operam na base técnica das empresas, se verifica,
fundamentalmente, a utilização da microeletrônica e de sistemas
computadorizados (CAD-CAM-CAE), tendo sido, que em alguns casos,
introduzida a robótica. Tais inovações, de natureza técnica, demandaram uma
reorientação nas formas de organização e de gestão da força de trabalho,
configurando-se a partir daí a introdução de novos conceitos organizacionais,
dentre os quais se destacaram aqueles que estavam fundamentados na Gerência
da Qualidade Total (TQM). Outros elementos que compõem a gestão dos
processos de trabalho também foram inseridos no contexto da reestruturação
produtiva, como foi o caso das novas técnicas de participação; dos Círculos de
Controle de Qualidade (CCQ); dos grupos semi-autônomos: o Kanban e o just
in time; e o Controle Estatístico do Processo.
Retomando os impactos que o fenômeno da reestruturação produtiva
causou sobre a força de trabalho e centrando o problema na questão inicial,
que é o desemprego, constatamos que a implementação do processo de
reestruturação produtiva implicou a redução drástica do quadro de empregados,
atingindo não só os operários, como também os ocupantes de postos mais altos
da hierarquia das empresas.
Segundo os dados mostrados por Posthuma (1993), só no setor de
autopeças no período compreendido entre o final da década de 1980 e o início
dos anos 90, o emprego caiu em 25%, na medida em que os 309.700 empregados
no setor em 1989 passaram para 233.000 em 1992, sendo que, no início da
década de 1990, várias empresas do ramo passaram a efetuar cortes nos níveis
gerenciais e de direção. Nesse sentido, algumas empresas reduziram seus níveis
de hierarquia, que, antes situados na faixa de 10 a sete postos, passaram a
oscilar entre cinco e seis níveis, mostrando, portanto, que as demissões no
período sobre o qual nos referimos atingiram não só os operários, como era
hábito em épocas de crise, mas também os ocupantes de cargos executivos.

191
A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico

Se não ficarmos restritos a apenas um setor do ramo industrial, como é o


caso da indústria automobilística, verificaremos que no contexto da inovação
tecnológica a questão do enxugamento no quadro de trabalhadores se propagou
no Brasil e no mundo,4 por toda a cadeia produtiva.
Como afirma Leite (1995), com base nos dados do Departamento
Intersindical de Estatística e Estudos Sócio-Econômicos – DIEESE, para o
primeiro trimestre de 1994, no período situado entre 1990 e 1993 registrou-se
uma redução de 150.000 postos de trabalho na indústria paulista, sendo que a
redução dos níveis de emprego ultrapassa os limites do setor industrial, tendo
em vista que, nesse mesmo período, estima-se que só na Grande São Paulo
havia um contingente de mais de um milhão de desempregados ou
subempregados.
A título de ilustração, é importante ressaltar que existem posições
conflitantes no que se refere aos resultados dos estudos que procuram
estabelecer uma relação direta entre os processos de modernização tecnológica
e o aumento do desemprego: de um lado, há autores que centram na
reestruturação produtiva a causa do desemprego; por outro, há uma corrente
que contraria essa tese.
Leite (1995) admite que “é difícil culpar apenas a modernização das
empresas” pelos altos níveis de desemprego no país. Para a autora, a variável
tecnológica não é o único algoz na geração do desemprego, tendo em vista que
outros fatores, como a forte recessão e a queda do investimento, desde o início
dos anos 80, somados à falta de mecanismos que possibilitem a efetiva proteção
dos trabalhadores, são também responsáveis pelos efeitos desastrosos que recaem
sobre a população economicamente ativa.5

4
Os dados do Ministério do Trabalho mostram que na primeira metade dos anos 90 o Brasil perdeu cerca
de 2.060.000 empregos formais, na medida em que o número de trabalhadores demitidos no período
(54.568.000) foi maior do que a quantidade de admitidos (52.508.000). (Folha de S. Paulo, 15/09/1996:
A8). As estimativas apresentadas no Fórum Econômico de Davos, Suíça, em janeiro de 1996, mostraram
que em 1995, portanto em pleno contexto no qual a globalização e a reestruturação produtiva se
encontravam em franco andamento no mundo capitalista, havia no planeta em torno de 800 milhões de
pessoas desempregadas ou subempregadas, quantidade que equivalia a mais de 13 vezes a população
brasileira economicamente ativa, em 1995, calculada, em torno de 60 milhões de pessoas. (Folha de S.
Paulo, Mais!, 03.03.1996: 8).
5
Dentro dessa mesma linha de raciocínio está Olivier Blanchard, professor de Economia e pesquisador
do Massachusetts Institute of Technology – MIT, nos EUA, que discorda da tese segundo a qual a
tecnologia gera desemprego. Esse pesquisador mostrou, por seus estudos em países da Europa Ocidental,
que “não há uma relação direta, muito menos causal, entre o desemprego e o avanço tecnológico”. O
autor sustenta que as altas taxas de desemprego naqueles países são causadas por políticas econômicas
incorretas dos governos, incapazes de se antecipar aos fatos. (Folha de S. Paulo, Mais!, 03.03.1996).

192
PARTE III | A DÉCADA DE 1990

A despeito da controvérsia já apontada, verifica-se que o desemprego


tornou-se uma realidade na sociedade brasileira no início dos anos 90, estando
as causas desse fenômeno tanto no salto que foi dado pelas diversas empresas,
explicitado pelo processo de reestruturação produtiva, quanto na recessão
econômica imposta pelo governo de Fernando Collor.
É dentro dessa conjuntura que alguns autores passam a localizar as
conseqüências dos altos níveis de desemprego nas relações sociais, das quais
podemos destacar duas: a primeira se configura no efeito endógeno das
demissões, se efetiva no chão da fábrica e é explicitada a partir dos problemas
de ordem psicossocial e nas formas de atuação do trabalhador no interior
das empresas; a segunda se constitui no efeito exógeno do desemprego, na
medida em que a problemática causada por este último ultrapassa os limites
dos muros das empresas, para se tornar uma questão que abrange toda a
sociedade.
No primeiro aspecto acerca das conseqüências do desemprego – seu
efeito endógeno –, verifica-se que os altos índices de demissões passaram a
afetar as relações interpessoais que se processavam no cotidiano das empresas,
bem como criaram certos ressentimentos naqueles trabalhadores que ainda
permaneciam no emprego, devido à insegurança quanto a seu futuro. Estes
fatores fizeram com que os trabalhadores resistissem à implantação das
mudanças que estavam se operando nas empresas.
Posthuma (1993: 255) mostrou que os fatores de natureza psicossocial
impediram o avanço da implementação de determinados métodos de gestão
da força de trabalho, como foi o caso da implantação do Programa de
Gerência da Qualidade Total, considerado a peça- chave da política
estratégica da empresa por ela pesquisada. De acordo com a autora, o
progresso do Programa de Qualidade Total ficou enormemente prejudicado,
posto que o grande número de demissões de trabalhadores promovido pela
empresa no período 1987-1993, nos diversos níveis hierárquicos, afetou as
relações no interior da empresa.
No que concerne ao efeito exógeno do desemprego, verifica-se que
os problemas sociais que daí decorrem passam a ser partilhados entre o
poder público e as instituições da sociedade civil. Esses atores sociais
emergem nessa conjuntura com o objetivo de contribuir com mecanismos
capazes de fazer com que os trabalhadores dispensados possam retornar ao
emprego formal.
Segundo Rodrigues e Achcar, os mecanismos acima referidos articulam-
se ao processo de reconversão profissional, que os autores definem como

193
A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico

(...) todo o processo estratégico e negocial de enfretamento das mudanças


tecnológicas e organizacionais e seus impactos sobre o trabalho, que considera
e gerencia as inúmeras necessidades de capacitação profissional dos
trabalhadores e as necessidades técnicas da empresa (...) (1995: 127).

Concretamente, na reconversão profissional, segundo esses autores, o Estado


assume papel de vital importância, tendo em vista que sua função nesse caso, em
articulação com a sociedade civil, passa a ser a de construir estratégias de negociação
e de gerenciamento capazes de reconverter o contingente de trabalhadores
desempregados em mão-de-obra empregada, evidenciando dessa forma os conflitos
decorrentes da redução de pessoal, que além de dificultar os programas de capacitação
nas empresas, como vimos, causam graves problemas de ordem social.
É dentro dessa perspectiva que Rodrigues e Achcar (1995: 128) propõem
que as políticas de reconversão profissional devem efetivar-se pela participação
do poder público e do Sistema Nacional de Aprendizagem Industrial – SENAI,
a partir de duas vertentes: a primeira no âmbito da gestão, a qual tem como
atores sociais envolvidos as entidades representativas de trabalhadores, dos
empresários, do governo e da própria comunidade, com o intuito de estabelecer
uma política de requalificação cuja gestão estaria centrada nos governos
municipais, como unidades físicas, políticas, sociais e culturais, e no SENAI,
na medida em que, segundo os autores, essa instituição naquela conjuntura já
abrangia cerca de 3.000 municípios, sendo, portanto, parte integrante daquelas
comunidades como agente de formação profissional, “especialmente para
atender à demanda das empresas industriais”.
A segunda vertente processa-se na direção da capacitação profissional, a
qual deveria estar sob a responsabilidade direta das agências de formação
profissional, que atuariam de forma integrada com as comunidades no
enfrentamento dos desafios de sua realidade política, econômica e social concreta
em termos de educação profissional, no sentido de superar a questão do desemprego.
No que se refere ao novo perfil da força de trabalho, imposto pelo processo
de reestruturação produtiva, verifica-se que, ao contrário daquilo a que
assistimos quando da utilização do padrão tecnológico fundado no modelo
taylorista-fordista, os pressupostos do novo paradigma exigem um trabalhador
mais qualificado e com nível mais alto de escolaridade.
Se nos anos 70, conforme afirmam Gitahy e Rabelo (1993, p. 227), o
Brasil experimentou um período de grande expansão industrial e de nível de
emprego, registrando um aumento do contingente de trabalhadores considerados
semiqualificados e com baixa escolaridade, no contexto da inovação tecnológica
a admissão ou a presença de mão-de-obra com este perfil torna-se impossível,

194
PARTE III | A DÉCADA DE 1990

tendo em vista que qualidade, eficiência e produtividade constituem a tríade


que se deve incorporar ao ideário das empresas, a fim de que possam ocupar
um lugar no mercado competitivo.
Nessa tríade, verificamos que autores como Posthuma (1993: 258) e
Gitahy e Rabelo (1993: 227) caracterizam a qualidade como elemento de vital
importância, principalmente, para as empresas que têm como objetivo entrar
na competição do mercado internacional. Tais autores mostraram que, ao
contrário do que ocorreu na década de 1970, período no qual a quantidade
constituiu o elemento fundamental da produção, no final dos anos 80 a
qualidade passou a ser a palavra-chave.
Cabe ressaltar que a qualidade atingiu tal nível de destaque dentro dos
marcos do processo de reestruturação produtiva, que o capital passou a
estabelecer, por maio da ISO 9000,6 padrões rígidos para aferição da qualidade,
na medida em que essa passou a ser o parâmetro definidos das condições de
competitividade das empresas que compõem a cadeia produtiva.
A despeito de grande parte das pesquisas apontarem o fator qualidade
como essencial no contexto no qual a reestruturação produtiva foi implantada
no conjunto das empresas brasileiras, tivemos casos em que a mesma não assumiu
esse grau de relevância.
Leite e Shiroma, com base nos trabalhos de H. Kern e M. Schumann,7
produzido no final da década de 1980, afirmam que:
(...) há no quadro da reestruturação setores para os quais a melhoria da
qualidade não se coloca de maneira central, e a continuidade da utilização
intensiva de trabalho manual pouco qualificado pode ser mais vantajosa do
que a introdução de novos equipamentos ou de novas formas de gestão da
produção e do trabalho (1995: 94; grifo nosso).

Feita essa digressão, necessária para reafirmar mais uma vez a


heterogeneidade nas diferentes realidades nas quais se processam as inovações

6
A ISO 9000 – International Organization for Standardization é composta por um conjunto de certificações
distribuídas em quatro séries: a ISO 9001, a mais completa, que envolve as dimensões de projeto, de
instalação e assistência técnica dos produtos; a ISO 9002, que certifica a produção e as instalações; a
ISO 9003, que considera apenas a inspeção final do produto, a embalagem e a entrega; e, por fim, a ISO
9004, sem emprego comercial, que é utilizada internamente na empresa (Bello, 2001: 55). O Brasil,
durante a primeira metade da década de 1990, viu saltar de zero para 1.341 as empresas que obtiveram
o certificado ISO 9000, atingindo, dessa forma, a melhor marca entre os países capitalistas em
desenvolvimento (Veja, out. 1996).
7
O trabalho produzido por H. Kern e M. Schumann foi El fin de la division del trabajo?, publicado na
Espanha pelo Ministerio del Trabajo y Seguridad Social, em 1988.

195
A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico

tecnológicas, vamos retomar o debate que estava sendo travado no início dos
anos 90, em torno dos impactos da reestruturação produtiva sobre a força de
trabalho, no âmbito da relação que passou a se estabelecer entre as mudanças
que se operaram na base técnica e os requisitos em termos de qualificação e
dos níveis de escolaridade.
Conforme já vimos, qualidade, produtividade e eficiência formam uma
tríade na qual o primeiro aspecto é altamente relevante para o capital. Vimos
também que os processos de reestruturação produtiva suscitaram novas formas
de organização da produção em termos gerenciais, provocando, até mesmo
mudanças internas por parte das empresas a fim de se conformarem às inovações
tecnológicas.
A esse respeito, Posthuma (1993: 257-258) constatou, a partir de dados
empíricos, que a empresa por ela pesquisada, no início da década de 1990, ao
implantar o programa de Gerência de Qualidade Total (TQM – Total Quality
Mangement) transformou o então Departamento de Recursos Humanos numa
Divisão de TQM e numa Divisão de Treinamento, esta última com a função
de organizar e desenvolver cursos para os trabalhadores, os quais deveriam ser
definidos em função dos requisitos que estavam sendo propostos para a obtenção
de certificação ISO 9000.
É nesse quadro que se inserem as demandas em torno de um novo perfil
para a força de trabalho, que se fundamenta nos novos requisitos para a
qualificação e no aumento dos níveis de escolaridade da força de trabalho.
Segundo Leite (1995, p. 11),

(...) o novo perfil e o novo conceito de qualificação, vai além do simples


domínio de habilidades motoras e disposição para cumprir ordens, incluindo
também ampla formação geral e sólida base tecnológica. Não basta mais que
o trabalhador saiba fazer; é preciso também conhecer e, acima de tudo, saber
aprender.

É nessa perspectiva que Posthuma (1993: 258-265), Githay e Rabelo (1993:


247), Gonçalves (1995: 135-136), Leite (1995: 12-14) e Leite e Shiroma (1995:
118), com base em pesquisas realizadas, entre o final da década de 1980 e o
início da seguinte, junto às empresas que implementaram o processo de
reestruturação produtiva, foram unânimes em apontar a qualificação e a educação
escolar no nível básico como relevantes no contexto das transformações que se
efetivaram no mundo do trabalho e que atravessaram os mais diferentes setores
da cadeia produtiva que introduziram as inovações tecnológicas.

196
PARTE III | A DÉCADA DE 1990

De acordo com alguns analistas, as questões relacionadas às demandas da


reestruturação produtiva, em termos de qualificação e de escolaridade básica do
trabalhador, deveriam envolver dois atores sociais: o setor empresarial e o Estado.
Nesse sentido, constatamos que as empresas passaram a empreender
esforços no sentido de qualificar a força de trabalho e a exigir do Estado que
equipasse seu sistema educacional, com o objetivo de elevar o nível de
escolaridade dos trabalhadores.
No que concerne à qualificação, Posthuma (1993: 259-261) constatou
que uma empresa do ramo de autopeças, no período 1990-1993, triplicou seus
investimentos na qualificação de seus empregados ao oferecer diversos cursos
de capacitação nas áreas operacionais e administrativas. Segundo os dados
levantados pela autora, os gastos por empregados na referida empresa saltaram
de US$ 12,48, em 1992, para US$ 34,51, em 1993, significando, portanto, que
os custos em treinamento quase triplicaram.
Nessa mesma linha de raciocínio, Leite e Shiroma (1995: 99), mostraram
que uma empresa metalúrgica do Estado de São Paulo, no período de janeiro a
novembro de 1992, investiu em torno de US$ 30.000 na capacitação de seus
empregados, tendo, segundo as autoras, investido pesado nos cursos de
treinamento de natureza mais comportamental e menos técnico, tendo em
vista que o eixo básico dos referidos cursos se fundamentava no pressuposto
teórico cujo preocupação era mostrar ao trabalhador a importância de
desenvolver seu espírito de cooperação, com base no princípio de que “ele
necessita tanto da empresa como a empresa dele e que o crescimento de um
significava também o crescimento do outro”. Dessa forma, verifica-se que, no
caso específico dessa empresa, os cursos tinham caráter muito mais ideológico
do que técnico.
Quanto à educação formal, verifica-se que entre os analistas ela se
constitui no requisito básico para a qualificação do trabalhador. Dessa maneira,
o papel do Estado passou a ser relevante nesse processo, na medida em que
várias empresas constataram que um dos entraves para a qualificação, nos moldes
do processo de reestruturação produtiva, estava nos baixos níveis de escolaridade
do trabalhador e que essa deficiência relacionava-se diretamente ao sistema
educacional brasileiro. Tal fato mostra a necessidade que estava sendo apontada,
por vários pesquisadores e representantes do setor empresarial, no sentido de
reformular a educação com vistas a elevar seus padrões de qualidade.
Gitahy e Rabelo (1993: 247), ao estabelecerem a relação entre educação
e desenvolvimento tecnológico, concluíram que um dos problemas colocados
na ordem do dia da reestruturação produtiva estava na vulnerabilidade de

197
A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico

nosso sistema educacional, na medida em que, ao lado de uma expansão


quantitativa da rede de ensino básico, que naquele momento era definido
pelo então ensino de primeiro grau, houve um processo de deterioração do
sistema educacional brasileiro, incluindo desde a baixa qualidade do ensino e
as elevadas taxas de evasão e de repetência até a formação deficiente dos
professores.
Em outra linha de análise, Gonçalves (1995: 135), aponta as deficiências
de nosso sistema educacional a partir do distanciamento entre a educação e o
sistema produtivo. Segundo esse autor havia a necessidade de “buscar a
elevação do nível cultural e técnico dos alunos e abrir o ensino à diversidade
brasileira”. Em outras palavras, a escola brasileira deveria oferecer a
possibilidade de o aluno desenvolver capacidade de reflexão crítica, criatividade
e auto-aperfeiçoamento, além de maior monitoramento na organização dos
cursos profissionais com o apoio da educação geral.
Na verdade, a preocupação com a educação frente ao processo de
reestruturação produtiva não ficou apenas no âmbito do empresariado, tendo
em vista que as agências multilaterais, que contaram, aliás, com o aval de
educadores brasileiros, também passam a sugerir, no início da década de 1990,
a reformulação de nosso sistema educacional fundado na perspectiva de atender
às necessidades do sistema produtivo.
Sobre esse aspecto, Zibas (1992: 496), ao analisar o relatório do Banco
Mundial “Brazil: issues in secondary education”, constatou que um dos
pressupostos básicos que perpassava todo o relatório era estabelecer uma
“relação direta entre produtividade industrial, nível educacional da mão-de-
obra e salário”, revigorando dessa forma um dos princípios básicos da teoria do
capital humano.
Verifica-se, portanto, que apesar de reconhecerem a importância da
reformulação de nosso sistema educativo e do papel que deveria ser
desempenhado pelo Estado nesse processo, os autores nos quais nos baseamos
para levantar a forma pela qual estavam sendo feitas as análises acerca da
reestruturação produtiva, talvez pela conjuntura em que os trabalhos foram
produzidos – início da década de 1990 –, não colocaram claramente as suas
posições de como deveria ser (re)estruturado o ensino técnico de nível médio
no país, principalmente o que era oferecido pelos CEFETs, embora o debate
estivesse se dando no âmbito da tramitação da Lei de Diretrizes e Bases no
Congresso Nacional pelo Fórum Nacional em Defesa da Escola Pública e demais
setores da sociedade civil, como foi o caso das instituições vinculadas ao
empresariado industrial.

198
PARTE III | A DÉCADA DE 1990

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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um estudo de caso comparado em uma empresa do complexo eletrônico
atuante nos mercados internacional e local. 2001. Tese (Doutorado) –
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FOLHA DE S. PAULO. Trabalho sem futuro, futuro sem trabalho. São Paulo,
03.03. 1996: 8. Mais!
_________. Brasil perdeu dois milhões de emprego. São Paulo,
15.09.1996: 8. Caderno A.
GITHAY, Leda; RABELO, Flavio. Educação e desenvolvimento tecnológico:
o caso da indústria de autopeças. Educação & Sociedade, Campinas:
Papirus/CEDES, n. 45, p. 225-251, ago. 1993.
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LEITE, Elenice M. Reestruturação produtiva, cadeias produtivas e qualificação.
In: CARLEIAL, Liana; VALLE, Rogério (org.). Reestruturação produtiva e
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Em Aberto. Brasília, ano 15, n. 65, jan./mar. 1995: 5-17.
LEITE, Márcia de Paula; SHIROMA, Eneida. Novas tecnologias, qualificação
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POSTHUMA, Anne. Reestruturação e qualificação numa empresa de
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VEJA. A febre da ISO. São Paulo: Editora Abril, ano 29, n. 40, out. 1996: 88.
RODRIGUES, José Luiz Pieroni; ACHCAR, Inês. Reconversão profissional: conceitos
e propostas. Em Aberto. Brasília, ano 5, n. 65, jan./mar. 1995: 119-132.
ZIBAS, Dagmar. Quem tem medo das novas propostas para o ensino médio?
Algumas notas sobre o relatório do Banco Mundial. Educação & Sociedade.
Campinas: Papirus/CEDES, ano XII, n. 43, dez. 1992: 495-503.

199
A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico

200
PARTE III | A DÉCADA DE 1990

CAPÍTULO 2 | REESTRUTURAÇÃO PRODUTIVA,


REFORMA DO ESTADO E FORMAÇÃO
PROFISSIONAL NO INÍCIO DOS ANOS 1990

LAURA SOUZA FONSECA

Introdução
Este texto situa-se num conjunto mais amplo de análises sobre o estado-
da-arte da educação profissional nas décadas de 1980 e 1990. A síntese analítica
empreendida tem como base 14 artigos publicados no Boletim Técnico do SENAC
na década de 1990. Quatro foram escritos no ano de 90, cinco em 91, dois em 93,
dois em 94, e um em 96. Para situar o leitor e a leitora, na primeira referência a
cada artigo, explicito a autoria e seu objeto, à época de publicação.
Trata-se de buscar apreender e compreender os conceitos e as relações
no que diz respeito à reestruturação produtiva, à reforma do Estado, ao sistema
educacional e à formação profissional, presentes ou ausentes nos textos. Como
os conceitos acima referidos perpassam o conjunto da coletânea, a título
introdutório, mesmo que reiterativo, sinalizo alguns aspectos, por estarem direta
ou indiretamente presentes nos referidos textos.
A década de 1990 foi marcada pelo esgotamento do modelo soviético no
Leste Europeu e pelo Consenso de Washington1 , arranjo do capital internacional
para a relação entre o capital e o mundo do trabalho. Contexto, portanto, em
que se reestrutura o modo de produção e tem início o processo denominado
reforma do Estado, tendo em vista a subalternização das classes que vivem da
venda de sua força de trabalho às agências internacionais com perdas
sistemáticas e continuadas de direitos trabalhistas e sociais.

1
Agenda formulada pelo Fundo Monetário Internacional – FMI, o Banco Mundial – BIRD, o Banco
Inter-americano de Desenvolvimento – BID e o Departamento de Tesouro dos Estados Unidos que
instituiu uma lista de reformas necessárias para a América Latina tendo como base o artigo do
economista John Williamson What Washington Means by Policy Reform, apresentado em Conferência do
Institute for International Economics – IIE em novembro de 1989 e publicado em abril de 1990.

201
A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico

A agenda montada em Washington para os países de periferia do


capitalismo, aceita por esses, propõe um rigoroso ajuste fiscal – reformas
administrativa, previdenciária e fiscal – e corte nos gastos públicos. Indica,
também, desonerar fiscalmente o capital. Os estados latino-americanos
deveriam passar por profundas reformas estruturais incluindo a
desregulamentação de alguns setores, sobretudo o financeiro e o do trabalho;
as privatizações; a abertura comercial; e a garantia do direito de propriedade,
sobretudo nos serviços, na propriedade intelectual (Cremonese, s/d).
Estrutura-se, assim, o Estado neoliberal, garantindo a supremacia do
mercado, redirecionando as prioridades nas despesas públicas, favorecendo
áreas com alto retorno econômico em detrimento das áreas sociais, como saúde,
educação, infra-estrutura, segurança e previdência.
No Brasil, esse período começa no Governo Collor, com a
desregulamentação econômica, a abertura do mercado e a planificação da
economia, buscando reduzir a inflação. Iniciam-se, também, as conversas para
os futuros acordos com o FMI. A reforma do Estado não deslancha em função
das denúncias de corrupção que levam ao impedimento do mandato.
O Governo Itamar retoma as condições para o Estado neoliberal; tendo
FHC à frente do Ministério da Fazenda, implanta o Plano Real como parte de
uma política mais abrangente - uma concepção de planejamento econômico,
criado pelas instituições financeiras dos países de centro do capital, em acordo
com os países de periferia a que se destinava, buscando conter a elevada inflação
das nomeadas economias emergentes, caso do Chile, México, Argentina, Brasil
e outros mais (Cremose, s/d). Eleito presidente, FHC aprofunda a ‘modernização’
do Estado – desregulamentação econômica, abertura de mercado e
privatizações – sob a batuta ideológica da globalização e do neoliberalismo e
regida pelos interesses do capital financeiro.
A reforma do Estado vem, no bojo das políticas neoliberais, cumprindo a
meta de estabelecer o Estado mínimo para o trabalho e máximo para o capital;
a um só tempo avançando em privatizações e terceirizações, reduzindo as
políticas públicas e os direitos sociais. Como processo e, nos marcos da luta de
classes, o projeto de reforma do Estado brasileiro não se vem dando de forma
orgânica, como desejariam os donos do capital.
No entanto, não podemos deixar de perceber ações estratégicas de
precarização do trabalho no serviço público e apropriação privada da esfera
pública. À época, são indícios claros: a desindexação do salário do funcionalismo
público nas três esferas de governo, a privatização dos serviços de limpeza urbana
na esfera municipal, a terceirização dos serviços de limpeza e segurança nas

202
PARTE III | A DÉCADA DE 1990

IFES (Instituições Federais de Ensino Superior), os PDVs (Planos de Demissão


Voluntária) em nível estadual, a privatização da malha rodoviária, etc. Inconteste
é que iniciou uma reorganização do Estado brasileiro em acordo com as exigências
do capital internacional; na forma de uma submissão consentida.
Outra evidência da reforma do Estado brasileiro pode ser conferida à
medida em que o Estado deixa de ser o indutor de políticas públicas,
estabelecendo vazios em que a esfera privada produz políticas utilizando o
fundo público e cobrando de quem as recebe, além de introduzir o voluntariado
– o modelo de assistencialismo neoliberal.
A luta política, entretanto, tem dificultado uma completa
desregulamentação do Estado, como foi o caso da alteração de regime de
trabalho dos funcionários públicos federais – de Regime Jurídico Único para o
emprego público/CLT (Consolidação das Leis Trabalhistas) – no governo FHC.
Com a desregulamentação do Estado e a reestruturação produtiva, impõe-
se a correlata exigência de um trabalhador flexível e, nesse contexto se dão os
embates da nova política para o ensino técnico e profissional.
Em uma sistematização introdutória, compreendo que boa parte dos
artigos resume a reestruturação produtiva aos aspectos da inovação tecnológica,
tanto no setor secundário quanto no terciário, e aponta uma inexorável
necessidade de capacitação de recursos humanos, para o uso de máquinas de
avançada geração, bem como para a utilização adequada de recursos
informacionais, a fim de fazer frente aos novos tempos. O que indica, como
ênfase no diálogo com a pesquisa, a política de fragmentação da educação
profissional nos anos 1990.
Do ponto de vista de fundamentação teórica, os artigos apóiam-se, entre
os autores e autoras brasileiros, em: Acácia Kuenzer2 ; Gaudêncio Frigotto3 ;
Lucília Machado4 ; Miguel Arroyo5 e Vanilda Paiva6 ; dentre os estrangeiros,

2
A pedagogia da fábrica (1986); Ensino de 2º Grau: o trabalho como princípio educativo (1988).
3
A produtividade da escola improdutiva (1984); Educação e Tecnologia: treinamento polivalente ou formação
politécnica? Educação e Realidade, 14(1) (1989); Trabalho: prática alienante ou realização? Realização
Pra valer (1989); Trabalho, educação e tecnologia: treinamento polivalente ou formação politécnica.
ANDE, v.8, n.4, (1989).
4
Educação e divisão social do trabalho: contribuição para o estudo do ensino técnico industrial brasileiro
(1989); Politecnia, escola unitária e trabalho (1989).
5
‘Operários e educadores se identificam: que rumo tomará a educação brasileira’. Educação & Sociedade,
2(5) (1980).
6
Produção e qualificação para o trabalho: uma revisão da bibliografia internacional (1989).

203
A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico

destacam-se Harold Bloom7 ; Claus Offe8 e Mariano Enguita9 . Para efeito de


registro, há artigos sem nenhuma referência a autores e um cuja referência é o
dicionário Aurélio, um e outro podem suscitar uma análise fortemente balizada
pela empiria. Ainda subsidiam os artigos programas do Serviço Nacional de
Aprendizagem Industrial – SENAI, Serviço Nacional de Aprendizagem
Comercial – SENAC e a legislação governamental.
Após a introdução, que situou alguns aspectos conjunturais à época,
para melhor inserir a análise, apresentamos três blocos de temas presentes nos
artigos publicados pelos autores no Boletim Técnico do SENAC: o primeiro, o
mais breve, trata da ‘Reestruturação Produtiva e a Reforma do Estado’; o
segundo aborda o tema ‘Trabalho e Educação’ e referencia o contexto próximo
na área acadêmica em que se insere o debate sobre a formação profissional; o
terceiro, ‘Formação Profissional’, trata mais diretamente do tema. Finalmente,
à guisa de conclusão, dialogo com outros(as) autores(as) que ajudam a decifrar
os silêncios encontrados na análise e permitem avançar pelo distanciamento
do tempo em relação à década de 1990.
No conjunto dos textos, o debate sobre o Estado encontra-se tangenciado
na abordagem do sistema educacional, já que os dispositivos legais do ensino
médio e profissional, bem como o fomento para que a iniciativa privada
desenvolva o processo de formação profissional, são produzidos pelo público –
a legislação e o fundo público. Da mesma forma, o sistema educacional não
tem centralidade, estando o foco na formação profissional realizada pela esfera
privada. O diálogo com o sistema educacional explicita-se para indicar a
superação de algumas dicotomias: formação profissional e educação formal,
conhecimento técnico e conhecimento social, trabalho manual e trabalho
intelectual, mundo da escola e mundo do trabalho, teoria e prática constituem
alguns dos exemplos arrolados.
Se, nas políticas públicas houve rebatimento da reestruturação produtiva
e da reforma do Estado, não seria diferente na Educação: o sistema educacional
brasileiro vem se ajustando às imposições do mercado – reduzindo cursos, para
minimizar custos e maximizar lucros; ampliando formas privadas de educação
em detrimento da universalização do ensino público e gratuito de qualidade;

7
Taxionomia dos objetivos educacionais: 1 domínio cognitivo (1972).
8
‘Trabalho & Sociedade: problemas estruturais e perspectivas para o futuro da sociedade do trabalho’.
Tempo Brasileiro (1989).
9
‘Tecnologia e sociedade: a ideologia da racionalidade técnica, a organização do trabalho e a educação’.
Educação e Realidade, 13(1), 1988.

204
PARTE III | A DÉCADA DE 1990

investindo na qualificação e capacitação como forma de adequar a mão-de-


obra em detrimento de uma formação humana que agregue qualidade de vida
à força de trabalho.
A formação profissional estará destacada, uma vez que constitui o objeto
de análise dos artigos estudados e é lapidar como exemplo do fortalecimento
do setor privado na fragilidade de uma política pública. A perspectiva da política
de formação profissional na década de 1990 consistiu em atenuar as
conseqüências da reestruturação produtiva e do desemprego, que acompanhou
a nova gestão da força de trabalho.
O anunciado novo modo do trabalho, fundado em inovações
tecnológicas, com novas formas de organização dos processos de trabalho e
de gestão, e no crescimento do setor de serviços, impõe um(a) novo(a)
trabalhador(a) – flexível, polivalente e dotado(a) de habilidades e
competências para superar outros(as) trabalhadores(as) e acelerar a
competitividade no mercado em nome do lugar em que trabalha, convidado
a vestir a camiseta de ‘sua’ empresa; exigências que rebaterão na formação
profissional e no sistema educacional.
Concluindo a apresentação, reafirmamos que a riqueza de análise possível
nos artigos estudados restringe-se ao tema da formação profissional e às
perspectivas teórico-metodológicas que a orientam, sendo, portanto, o sistema
educacional, a reforma do Estado e a reestruturação produtiva apenas
localizadores na reflexão.

1. Reestruturação produtiva e reforma do Estado


Do conjunto de autores aqui analisados, apenas três situam suas
discussões no que tange à reestruturação produtiva e à reforma do Estado.
Masson 10 afirma que o capitalismo está marcado por inovações
tecnológicas, dada sua intrínseca tendência a alterar, em seu favor, a relação
do capital constante com o capital variável. Opção produtora das crises
traduzidas numa grande instabilidade do mercado consumidor, tensionando a
eficácia do modelo taylorista-fordista de produção, que apresentava sinais de
esgotamento frente aos processos de concorrência internacional, o que levou a
impulsionar novas tecnologias.

10
Mestre em Sociologia e professor da UNIRIO, aborda a relação educação e formação profissional em
tempos de novas tecnologias.

205
A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico

Já Weinberg11 , que analisa a construção de uma ‘nova institucionalidade’


para a formação de recursos humanos a partir do esgotamento do modelo de
substituição de importações, focando como exemplos Brasil, México, Colômbia
e Chile, afirma que
Foram grandes e profundas as transformações ocorridas nas esferas econômica,
social e trabalhista nos países americanos: (1) o processo de globalização
econômica e o seu correlato, que foram as políticas de abertura em nível
nacional; (2) a transformação tecnológica e a sua repercussão sobre os processos
produtivos; (3) o papel regulador atribuído ao Estado; a ampliação da cobertura
dos sistemas educacionais; e (4) a nova organização do trabalho (Weinberg,
1996: 3).

Ainda o mesmo autor, analisando o cenário decorrente do esgotamento do


modelo de substituição de importações, afirma que os atores envolvidos são
pressionados a repensar sua forma de organização. Em especial, observa sobre o Estado:
Os Estados enfrentam o desafio da sua redefinição funcional e administrativa,
inclinando-se, de um lado, para formas mais eficientes, flexíveis e adequadas
às demandas produtivas, sociais setoriais e locais, emergentes do interior da
nova estratégia de desenvolvimento, e, de outro, para funções de regulação e
planificação estratégia em termos de política social e econômica, melhorando
a sua capacidade de articulação e interlocução com os diversos atores e grupos
da sociedade. (Weinberg, 1996: 7)

Formula, portanto, a idéia da reforma do Estado à luz das necessidades


da reestruturação produtiva.
Já Deluiz12 aborda a questão do Estado, quando afirma que a colaboração
de classes é vital na fase de acumulação do capital, e que o Estado redefine
suas relações com as classes sociais com função de mediação e de poder
moderador. Pois bem, em tempos de reestruturação produtiva, o papel do Estado,
exigido pelas classes dominantes, consiste na mediação de seu enxugamento
com vistas à privatização, ainda que paulatinamente.

11
Diretor do CINTERFOR/OIT, aborda a nova institucionalidade da formação profissional promovida a
partir de outubro de 1995, na 32ª Reunião da Comissão Técnica do CINTERFOR, na Jamaica, quando
representantes de governos, organizações de empresários e de trabalhadores travaram o primeiro
debate sobre a questão analisando o documento “Horizontes da Formação: uma carta de navegação
para os países da América Latina e Caribe”. O artigo, segundo seu autor, constitui numa releitura
desse documento.
12
Doutoranda em Educação, professora-assistente do curso de mestrado da Escola de Educação Física e
Desporto EEFD/UFRJ, cujo artigo aborda a formação profissional no Brasil em uma perspectiva sócio-histórica.

206
PARTE III | A DÉCADA DE 1990

Um olhar acurado nas datas de publicação e, por suposto, na época em


que foram produzidos os artigos revela que apenas três se situam no governo
FHC. Isso poderia justificar a ausência do debate sobre a reforma do Estado
nos textos referidos, somando-se à idéia de que os(as) autores(as), em sua
maioria, eram diretores(as) no Sistema S – três do SENAI e cinco do SENAC
– falando, portanto, do lugar da esfera privada.
No entanto, reconhecendo com Leher (2003), entre outros(as)
autores(as), que a reforma do Estado brasileiro foi disparada em 1989, com
Bresser Pereira, na reunião que cunha o Consenso de Washington, ainda que
só em 1995 tenha encontrado condições econômicas e políticas para sua
implantação e aprofundamento, cabe tensionar o tema nos artigos estudados e
pensar possibilidades para o mesmo, o que já iniciei e retomo nas conclusões.

2. Trabalho e Educação
Os artigos historiam a relação trabalho e educação para situar a formação
profissional, remontando a um Brasil agrário-exportador, caracterizado pela
hegemonia do setor agrário e a dependência externa quando o aprendizado
prático se encarregava da habilitação técnica do trabalhador.
Para Deluiz, a consolidação do modo de produção capitalista após o
Estado Novo vai expandir o ensino técnico-profissional com a criação do SENAI
(1942) e do SENAC (1946), precedida por um período de transformações
econômicas, políticas e sociais – como a regulamentação da jornada de trabalho,
do trabalho da mulher e do menor13 .
Plantamura 14 refere-se ao mesmo período afirmando que as primeiras
escolas profissionais eram obras de caridade para pobres e órfãos, desvinculadas
de uma concepção de trabalho enquanto força motora e produto de relações
sociais. Segundo o autor, à medida que surgem as escolas técnicas e os sistemas
SENAI e SENAC novos parâmetros são estabelecidos para a formação

13
Expressão usada para referir crianças e adolescentes até a promulgação da Lei 8.069/90, o Estatuto da
Criança e do Adolescente – ECA, que, ao estabelecer um novo paradigma para a infância e adolescência,
supõe a supressão do termo menor, até hoje utilizado pela mídia e mesmo pela academia para referir
criança e adolescente em situação de exclusão.
14
Especialista em Educação e Trabalho, diretor de formação do SENAC - Departamento Regional do
Amazonas, aborda a natureza do trabalho técnico-pedagógico na formação profissional, origem do
curso de Pós-Graduação Latu Sensu em Educação e Trabalho, realizado pelo SENAC - Amazonas em
convênio com a Universidade do Amazonas, tendo adesões das Escolas Técnica-Industrial e Agrotécnica
Federais, das Secretarias Estadual e Municipal de Educação.

207
A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico

profissional, ainda que permaneça a raiz excludente e dualista do sistema


educacional brasileiro.
Nas décadas de 1940 a 1960, apoiadas nos pressupostos da administração
científica (taylorismo), as instituições patronais de formação de mão-de-obra
passam a enfatizar aspectos como respeito à hierarquia, ajustamento aos cargos
e obediência às regras. O importante era saber como fazer e não por que fazer.
A partir dos anos 1960, a formação profissional sofre alterações por meio
de um processo de expansão física e quantitativa relacionado às mudanças no
contexto histórico- social. Modificações na legislação educacional
profissionalizante buscaram aproximar a educação formal das necessidades do
modelo de desenvolvimento econômico implantado, ganhando significação
como indispensáveis ao desenvolvimento do país a partir de 1968, com as idéias
dos teóricos do capital humano.15
O sentido da educação passa a ser o de investimento, atendimento às
necessidades do desenvolvimento econômico, integração empresa/escola,
necessidade de qualificar recursos humanos para atender às demandas do
mercado de trabalho, no sentido da valorização do trabalhador e de promoção
social, pela via de qualificação profissional, evidenciando a educação como
um apêndice da aceleração do desenvolvimento econômico.
Para Tavares,16 quando o chamado milagre brasileiro na década de 1970
amplia e diversifica o processo produtivo no país, em decorrência, fomenta as
reformas educacionais com a marca profissionalizante para a educação formal,
tanto em nível fundamental como superior, quando surgem e proliferam os
cursos de terceiro grau voltados para a mão-de-obra operacional.
Nesse período algumas correntes acadêmicas opuseram-se à teoria do
capital humano na formação profissional: a divergência centrava-se na relação
trabalho/educação, ainda que convergissem nos pressupostos básicos de que a
educação, no capitalismo, serve ao capital.
Para verificar a discussão sobre o tema ‘educação e trabalho’, Deluiz
remete a Althusser,17 para quem a estrutura das relações de produção define
os objetivos e o modo de funcionar das instituições, e a Baudelot e Establet,18

15
Ver sobre o tema em Frigotto, Gaudêncio. A produtividade da escola improdutiva (1984).
16
Mestre em Educação, professor titular Planejamento e Organização do Turismo - FACHA, reflete sobre
as questões do ensino técnico no Brasil, a partir da experiência no ensino formal de terceiro grau para
a formação de técnicos em Turismo.
17
Althusser, Louis. Ideologia e aparelhos ideológicos do estado. Lisboa, Presença, 1974.
18
Baudelot, C. & Eestablet, T. L’ école capitaliste en France, Paris, Maspero, 1971.

208
PARTE III | A DÉCADA DE 1990

que aplicaram o conceito althusseriano de educação à análise do sistema


educacional francês. Dialogando com a concepção dos teóricos franceses, Deluiz
reporta-se aos teóricos norte-americanos Bowles e Gintis, citados por Carnoy e
Levin,19 para quem o melhor modo de compreender o desenvolvimento da escola
nos Estados Unidos era vê-lo como uma preparação de jovens para as relações
sociais de produção. Afirmam ainda os pesquisadores americanos que a escola
busca o atendimento das necessidades dos empregadores de uma força de trabalho
disciplinada e habilitada, e o fornecimento de controle social para a estabilidade
do sistema. A função ideológica trabalharia para moldar o comportamento da
força de trabalho, sendo, portanto, funcional à acumulação do capital.
Ainda referenciada em Carnoy e Levin, a autora comenta a reação ao
determinismo econômico de Bowles e Gintis, expresso por Apple e Giroux.
Para esses autores, a escola possui dinâmica própria contra a ideologia
dominante. Dialogando com Apple, identifica-se com a análise gramsciana de
aparelhos ideológicos relativamente autônomos, definindo a cultura e a ideologia
produzidas na escola e no local de trabalho, mas cheias de contradições, por
um processo que se baseia na oposição e na luta. Essa noção gramsciana torna
não só a hegemonia como também as contradições dentro dela fundamentais
para a reprodução das relações sociais.
Para Carnoy e Levin, sinaliza-nos Deluiz, a escola é moldada pelas
estruturas de classe e pela produção capitalista, antidemocrática e, também,
pelo conflito social que ocorre a respeito dessa injustiça e das possibilidades
políticas de, no capitalismo, expandir a democracia. A predominância de um
ou outro desses movimentos é determinada pelo conflito social mais amplo e
pela relação de forças políticas dos grupos envolvidos. Ressalte-se que há
consenso entre os teóricos americanos e franceses quanto à ênfase dada ao
papel da escola como instituição fundamental do capital quanto à formação
de mão-de-obra.
Em nível local, traz Deluiz uma das linhas críticas da relação trabalho e
educação representada por Salm e Sorj – busca demonstrar que, embora
necessário à manutenção da ordem, o sistema educacional cresce e incha,
endógena, improdutiva e marginalmente ao capital. Para essa corrente, o capital
encontra mecanismos disciplinadores da força de trabalho no interior da própria
unidade produtiva e não na escola - muito lenta para adaptar-se às mudanças
requeridas pelo aparato produtivo, além de ser uma instituição situada à

19
Carnoy, M. & Levin, H. Escola e trabalho no estado capitalista. São Paulo: Cortez, 1987.

209
A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico

margem do sistema produtivo capitalista, com o qual o único vínculo que


mantém é ideológico.
Para Salm,20 apud Deluiz, a empresa é a verdadeira escola capitalista
porque o trabalhador, por observação e treinamento, realiza, a custo zero, sua
capacitação. Sobre Sorj, 21 a autora diz que agrega a essa argumentação a
existência de condições externas ao processo de produção que disciplinam a
força de trabalho no interior da unidade produtiva, tais como o exército
industrial de reserva e as instituições repressivas e/ou ideológicas que mantêm
a subordinação do trabalhador ao processo de trabalho capitalista. Partindo
das estratégias empresariais para formação na empresa, aponta a contradição
representada pelas formas de resistência dos trabalhadores e pela inclusão na
formação do Sistema S como resposta do setor empresarial.
Para Salm e Sorj, a acumulação, com exploração econômica e dominação
política, manipula e torna o trabalhador dócil e convencido do valor da ideologia
do capital. A empresa não precisa da escola para formar a força de trabalho; ao
assumir a tarefa, garante também mecanismos de atenuar as contradições no processo.
Nas décadas de 1970 e 1980 ocorrem mudanças na orientação da formação
profissional: a escola pública assume a idéia da profissionalização com a Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei 5.692/71). E o setor privado, na
esteira de pesquisas que revelavam a eficiência do treinamento em serviço,
baseado na Lei 6.297/7522 mantém os serviços de instituições especializadas em
formação profissional, dando início à concepção de uma pedagogia da empresa.
Os autores que se referem ao sistema educacional quando discorrem
sobre a formação profissional apresentam consenso a respeito da dualidade
existente na educação brasileira que aparta a escola básica da formação
profissional.
Criticando as posições da Salm e Sorj, Deluiz traz as contribuições da
Frigotto (1984) e Arroyo (1980). De acordo com a autora, para Frigotto a escola,
ao explorar as contradições da sociedade, é ou pode ser um instrumento para
mediar a negação dessas relações sociais de produção, constituindo, também,
um instrumento eficaz na formulação das condições concretas que visam superar

20
Salm, Cláudio. Escola e trabalho. São Paulo: Brasiliense, 1980.
21
Sorj, Bila. O processo de trabalho como dominação: um estudo de caso. Dados – Revista de Ciências
Sociais, 24(3), 1981.
22
A Lei 6297/75 permitia incentivar, mediante dedução no imposto sobre a renda das pessoas jurídicas,
as iniciativas de treinamento e desenvolvimento. Depois, a lei 8248/91 permite incentivar fiscalmente
programas de qualidade em empresas do setor de informática.

210
PARTE III | A DÉCADA DE 1990

as relações sociais determinantes entre capital e trabalho, trabalho manual e


trabalho intelectual, mundo do trabalho e mundo da escola.
Já na concepção de Arroyo, apud Deluiz, a escola coopera para reforçar
a unidade das técnicas de produção, de dominação e expropriação do processo
produtivo, e a estrutura de ensino constitui um dos mecanismos para separar
os trabalhadores das forças produtivas.

3. Formação Profissional
A chave a que está associada a formação profissional é ‘capacitação ou
formação de recursos humanos’, incluindo os conceitos de formação técnica,
ensino técnico, ensino técnico-profissional, qualificação da mão-de-obra,
profissionalização, polivalência, politecnia, entre outros.
Ficam evidentes numa primeira contextualização dois pressupostos
distintos em relação aos conceitos mencionados: um, da lógica do mercado
que precisa de mão-de-obra com destrezas, habilidades e atitudes facilitadoras
da produção; outro, da lógica da cidadania e da autonomia, em que se insere
o debate sobre a politecnia.
Tal capacitação, entendida como inexorável no âmbito das inovações
tecnológicas, faz fronteira com aspectos referentes aos processos de ensino-
aprendizagem: currículos, objetivos, métodos, conteúdos e avaliação. A opção
teórico-metodológica desses aspectos não é isenta; ela pode privilegiar o
tecnicismo ou estar centrada em uma formação humana integral.
Pode ainda enfatizar o dualismo, na medida em que, historicamente, propõe
uma educação centrada no saber para as classes dominantes e tendo como
fundamento o fazer quando se trata das classes dominadas. Representa-se por
um ensino técnico descolado de uma formação humana, seja no chão da fábrica,
ou em espaços públicos ou privados específicos da formação para o trabalho. Na
contraposição alicerçam-se os conceitos de politecnia e polivalência.
Freitas e Oliveira,23 relacionando a presença da informática no cotidiano,
defendem a implantação da informática educacional à prática didática do
Sistema SENAI na capacitação de recursos humanos. Têm como objetivo a
implementação de um sistema de comunicação que veicula ensino a distância
e informações de cunho empresarial e tecnológico sob forma didática.

23
Diretoras técnicas do SENAI, avaliam os desafios da prática educacional da instituição frente às novas
tecnologias, tendo como objeto o Programa de Autonomização em Informática na Educação, cujo
objetivo consiste na identificação e no desenvolvimento de aplicações práticas de informática no
processo educacional de formação profissional do Sistema SENAI.

211
A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico

Feitosa 24 aborda o Círculo de Controle de Qualidade como aspecto


motivacional para o trabalhador porque “desenvolve autoconfiança, criatividade
e prazer de cooperar na solução de problemas da empresa, com grandes benefícios
para o binômio empresa-empregado”. Percebendo que o poder de criatividade
está ligado à motivação, a empresa passou a adotar meios motivacionais
intrínsecos ao cargo: delegação de responsabilidade, uso da autonomia,
aplicação do saber, capacidade de decidir e o uso prévio das habilidades.
Régnier25 questiona o caminho da educação e da profissionalização do
indivíduo no final do século XX, afirmando que a maior parte da literatura
privilegia o debate político, econômico e social da educação, e, também, o
viés tecnológico, para enfrentar o impacto das grandes transformações sociais
geradas pelo desenvolvimento tecnológico do mundo moderno. O aporte teórico
que subsidia a autora para refletir sobre a educação e a formação profissional é
o holismo, porque o considera uma visão de totalidade na perspectiva de
compreender melhor a profunda crise de valores por que vem passando a
humanidade desde o final do século XX.
Garcia26 reflete sobre a supervisão na formação profissional fazendo uma
revisão das principais dificuldades cotidianas da supervisão pedagógica.
Sumariando as formas vigentes de equacionar as dificuldades, pretendeu oferecer
alternativa técnica para o aprofundamento de aspectos da formação profissional
que, segundo a autora, estariam excluídos das faculdades de Educação.
Avaliando as descrições ocupacionais e os objetivos da aprendizagem
descritos pela taxionomia de Bloom, Garcia afirma a necessidade de uma
aproximação entre os três domínios – cognitivo, afetivo e psicomotor – para
operacionalizar objetivos e montar uma tabela de especificações descritoras
das diferentes ocupações; e conclui ser esse o eixo norteador dos processos de
formação pedagógica da supervisão.
Para Alves,27 a formação profissional pode ser considerada uma tentativa
de otimizar processos relacionados à aquisição e/ou ao desenvolvimento das
capacidades físicas e/ou mentais, aprendizagens relacionadas a conhecimentos,

24
Técnica do SENAC, Departamento Regional do Ceará.
25
Assessora do Departamento Nacional do SENAC.
26
Mestre em Educação pela UFMG e Técnica do SENAC, Departamento Regional de Minas Gerais,
aborda a utilização da taxionomia de objetivos educacionais mediada pelas descrições ocupacionais
como instrumento de avaliação na formação profissional.
27
Do Divisão de Recursos Humanos do Departamento Nacional do SENAI escreve sobre o uso dos
recursos computacionais na formação profissional.

212
PARTE III | A DÉCADA DE 1990

habilidades e atitudes específicas. Já Garcia, sugerindo procedimentos técnicos


que dêem prioridade à qualificação, afirma que o processo de formação
profissional capacita o indivíduo para o exercício de uma ocupação, definida
no mercado de trabalho, mediante o domínio das operações e/ou das tarefas
pertinentes. E, respaldado por seu grupo de trabalho, sugere a utilização da
taxionomia dos objetivos educacionais como forma de evitar que a formação
seja adestramento ou que os técnicos caiam no subjetivismo para organizar e
avaliar o trabalho.
É possível perceber o contraponto na abordagem de Plantamura, quando
afirma que a formação profissional é uma tipologia educacional bastante
controvertida e com pouca fundamentação teórica. Em sentido distinto, refere
a politecnia para uma formação teórica e tecnológica combinadas num mesmo
processo educativo, objetivando o ser omnilateral. Superando o dualismo que
domina a escola e situa a formação profissional em extremo bem afastado da
educação em geral. Um projeto histórico de emancipação do homem pelo
trabalho exigiria uma redefinição de formação profissional, bem como a
construção de uma nova prática, afirma o autor.
Em perspectiva semelhante, lemos a análise de Deluiz, para quem as
novas qualificações exigidas pela formação profissional deveriam ir além da
compreensão tecnicista da formação. Permanece central uma compreensão da
técnica que não inverta a relação sujeito-objeto, não faça da técnica um pólo
oposto autônomo, que a mantenha sob responsabilidade e controle do homem.
Portanto, uma formação complexa, geral, abrangente e abstrata na qual aspectos
profissionais, políticos e culturais estariam integrados, podendo fazer face aos
desafios colocados pelas novas tecnologias à formação profissional.
Gitahy, 28 citado por Depresbiteres, 29 destaca como uma das
conseqüências da produção flexível a necessária mão-de-obra polivalente que
responda à complexidade do mercado internacional.
Para Depresbiteres as novas exigências colocariam em xeque concepções
como trabalho, qualificação, formação, aprendizagem, entre outras: (1) trabalho,
na visão da politecnia, implicando um princípio educativo, em busca de uma
base sólida e profunda de processos científicos e técnicos, tanto das ciências

28
Gitahy, L. Educação e desenvolvimento tecnológico: o caso da informatização da indústria no Brasil.
Campinas, NPCT/UNICAMP/IIPE, 1989.
29
Doutora em Psicologia Escolar/USP, técnica de ensino do SENAI no Departamento Regional de SP,
escreveu sobre objetivos e a avaliação na formação profissional.

213
A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico

da natureza quanto das ciências humanas e sociais; (2) qualificação polivalente,


maior versatilidade na execução das tarefas, capacidade para resolver
problemas; (3) formação como sinônimo de educação; (4) aprendizagem,
entendida como aquela que envolveria um processo de cognição e não somente
de aquisição de conhecimentos, desenvolveria raciocínios de resolução de
problemas e promoveria a participação dos alunos; sem fragmentação dos
conhecimentos, captando relações com uma visão de totalidade do trabalho.
Estabelecendo relações entre a formação profissional na Alemanha e no
Brasil, Markert30 referiu a necessidade de redefinir o currículo no conteúdo
da formação profissional, para fortalecer o aperfeiçoamento profissional realizado
nas empresas, bem como pelo envolvimento da política educacional do Estado
no apoio aos processos de inovação técnica e de qualificação e pela assistência
e apoio especial aos grupos em desvantagem no mercado de trabalho,
especialmente os desempregados. Conforme os objetivos de desenvolvimento
de qualificações-chave transferíveis, a nova regulamentação da formação
profissional criou mais espaço para que se realizassem novas competências
centrais que definiriam as metas de formação profissional no futuro:
competências técnicas, metodológicas e sociais.
O pesquisador alemão analisou a dualidade do sistema, que difere
radicalmente da dualidade presente na crítica dos pesquisadores e das
pesquisadoras brasileiros(as) estudados(as). No processo alemão, o ‘sistema
dual’ traduz-se pela cooperação entre as empresas e as escolas profissionalizantes
públicas, em que as empresas assumem a parte prática do currículo, enquanto
as escolas públicas profissionalizantes se encarregam da transmissão dos
conhecimentos teóricos, ou seja, é uma dualidade que provoca aproximações,
enquanto, no caso brasileiro, falamos em rupturas.
Discutindo aspectos relacionados aos objetivos e à avaliação nas
instituições de formação profissional, Depresbiteres sublinhou o desafio de
imprimir ao currículo princípios e ações de aprendizagem dentro de uma
concepção educacional mais ampla. O docente de uma instituição de formação
profissional deveria ter um papel ativo nas definições curriculares e ser
capacitado para assumir essa responsabilidade. É necessário considerar que
somente um docente estimulado e capacitado a usar raciocínios mais elaborados

30
Doutor em Educação, pesquisador do IFFP/Alemanha, professor visitante na UFRJ, cujo artigo estabelece
relações entre o sistema educacional da Alemanha e no Brasil, trazendo para ambos a necessidade de
discutir a temática do currículo na perspectiva das novas tecnologias.

214
PARTE III | A DÉCADA DE 1990

pode contribuir para que o aluno construa seu próprio conhecimento. A avaliação
assumiria uma função de ligação entre os níveis educacional, curricular e de
aprendizagem, uma vez que, para a autora, tanto o contexto pedagógico nos
cursos de formação profissional quanto o esforço de sua aproximação a uma
dimensão educativa mais ampla e polivalente demonstraram fragilidades.
Cunha,31 analisando os desafios para a formação no SENAC, vai referir-
se a uma nova pedagogia que deverá possibilitar ao aluno um permanente
esforço de reflexão e de prática sobre as condições do mundo do trabalho nas
atividades de comércio e serviços. As alunos são considerados sujeitos do
processo de ensino, tendo o diálogo como marca da relação com instrutores e
supervisores na prática de uma pedagogia profissionalizante cada vez mais
humanizadora. Para o autor, isto significará a busca da polivalência nos
programas de formação profissional.
Fartes,32 investigando a formação dos trabalhadores e sua relação com o processo
de modernização tecnológica do ensino técnico-industrial desde os anos 1970, afirma
que as modificações na base técnica da produção, decorrentes do processo de
acumulação e expansão capitalistas, possuem forte significado para a qualificação e
formação de técnicos industriais, aqui entendidos como coletivos fabris, cuja
preparação envolve, além do aspecto técnico, o político, o ideológico e o cultural.
Fartes reconhece que o ensino técnico-profissional vai tendo sua
importância aumentada à medida que o país atinge a internacionalização do
mercado interno e remete ao debate sobre as relações entre produção e
qualificação contextualizando três momentos históricos: (1) artesanato,
demorada aprendizagem e qualificação profissional adquirida ao longo de
diversos anos, abrangendo todas as etapas de produção; (2) manufatura, o
decompor do trabalho, mutila o trabalhador conduzindo a sua desqualificação;
e (3) revolução industrial, com a produção em massa exigindo versatilidade
de funções e mobilidade do trabalhador em todos os sentidos.
Com esse esquema de três fases combinam-se quatro possibilidades
explicativas para a qualificação média do trabalhador no capitalismo
contemporâneo, como destaca a autora, subsidiada por Paiva (1989):

31
Diretor de formação profissional do Departamento Nacional do SENAC escreve sobre os desafios para
a formação profissional diante do novo paradigma tecnológico.
32
Síntese de sua dissertação de mestrado apresentada na Faculdade de Educação da UFBA, onde é
professora, tendo como objeto os coletivos fabris e sua formação a partir da ETFBA onde se deu a
qualificação de técnicos para as empresas do Pólo Petroquímico de Camaçari, a partir da segunda
metade da década de 70, no bojo da Lei 5692/71.

215
A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico

desqualificação do trabalhador, requalificação, polarização das qualificações,


qualificação absoluta/desqualificação relativa.
Para Weinberg, o desafio nas instituições de formação consistiu em
responder ao estrangulamento causado pela falta de mão-de-obra qualificada
e semiqualificada para a incipiente indústria nacional. Outro desafio foi ser
agente democratizador das oportunidades de educação, formação e emprego.
Dessa missão decorreu o estigma da formação profissional como ‘educação dos
pobres’, trazendo à tona preconceitos sociais como a subvalorização do trabalho
manual em relação ao intelectual, que constitui um dos componentes crônicos
do problema até hoje: a separação entre a educação formal e a formação
profissional.
Abordando a competência dos processos formativos escolares,
empresariais e/ou de instituições externas de treinamento, Deluiz afirma que,
se no fordismo importava saber fazer e no taylorismo o importante era saber
como fazer e não por que fazer, agora, em tempos denominados pós-fordistas,
de reestruturação produtiva, importa saber fazer, como fazer e o porquê,
demandando, em decorrência, aportes diferenciados na educação escolar e
profissional.
Para Deluiz, o debate no âmbito da formação do trabalhador no limiar
do século XXI, precisa envolver o tipo de formação a ser proposta para que se
superem as dicotomias: formação geral x específica; formação técnica x
científica; teoria x prática. Também é necessário que seja questionado a serviço
de quem estão os conteúdos da nova qualificação, bem como o papel que têm
a escola, as empresas, as instituições de formação profissional em um contexto
de mudanças científicas e tecnológicas.

4. A título de conclusão
A reestruturação produtiva na nomeada ‘terceira revolução industrial’
consiste nas mudanças havidas nos meios de produção pela introdução da
microeletrônica com o rebatimento na informatização, automação e robotização
do sistema produtivo; da microbiologia, incidindo sobre a engenharia genética,
biotecnologia etc; e de novas fontes de energia, impactando o mundo econômico
(relações sociais e técnicas de produção), mundo político (relações de poder)
e mundo cultural (âmbito dos valores e da ética) (Frigotto, 1992).
Modificações que agregam valor ao capital constante, porque conduzem
a intensificação do trabalho morto, ampliando a mais-valia relativa; e, do ponto
de vista dos trabalhadores, difunde práticas de rodízio e flexibilidade de

216
PARTE III | A DÉCADA DE 1990

funções, exigindo de alguns alta qualificação profissional e jogando a imensa


maioria no quantitativo de desempregados. Uma situação de desemprego que
é estrutural, porque gerada pelo processo produtivo na substituição de homens
e mulheres por máquinas, promovendo uma crise de superprodução da
mercadoria força de trabalho (Del Pino, 2000).
Esse tempo no modo de produção capitalista de existência está
acompanhado da desregulamentação do Estado, que se desobriga das políticas
públicas terceirizando serviços e privatizando empresas públicas; paulatinamente
o Estado brasileiro vem deixando de servir ao trabalho e tornando-se mais uma
rentável fonte para o capital. As políticas públicas de Educação estão referenciadas
no ‘mercado como sujeito’; na educação básica, a Lei 5.692/71 estabelece a
profissionalização como eixo no segundo grau. No campo da formação profissional,
as escolas técnicas e agrotécnicas de nível médio estão orientadas pelas
concepções do capital humano, de investimento no indivíduo, executadas de
forma produtivista, dualista e fragmentária (Frigotto e Ciavatta, 1992).
A esfera privada de formação profissional, como fica evidenciado pela
análise exposta neste artigo, situou marginalmente as questões da relação
trabalho/educação no capitalismo tardio. Ainda que exista a crítica ao dualismo
entre a educação básica e a formação profissional, a base para a formação da
classe trabalhadora não é a própria classe, mas a imposição do capital fantasiado
de mercado de trabalho marcado por novas tecnologias.
Mantém-se, portanto, o alerta de Frigotto e Ciavatta (op.cit.) de que a
concepção em voga (no ensino técnico e na formação profissional) reforça de
forma irreversível a divisão internacional do trabalho intelectual, uma política
orientada por organismos internacionais para a formação de decodificadores e
consumidores de produção de ciência e tecnologia. Aqui a ciência e o
conhecimento aparecem como um dado e não como um processo.
O trabalhador e a trabalhadora no contexto da acumulação flexível
devem ter sua capacidade de trabalho também flexibilizada em multi-
habilidades para fazer frente à rápida destruição dos postos de trabalho e às
novas habilidades requeridas. Posto dessa maneira, nos sobrará crer que a
formação para o trabalho deverá ter como veio a habilidade para o emprego –
a empregabilidade (Frigotto, 2000) torna-se o eixo. Embora, não esteja
explicitada a expressão nos artigos lidos, a análise realizada para justificar a
capacitação de recursos humanos frente às inovações tecnológicas aponta
claramente nessa direção.
No limite, à escola básica, à formação básica, ao empresariado e às
instituições formadoras no campo empresarial resta ter como mote, grosso modo,

217
A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico

a descrição das ocupações de maneira a constituir os objetivos da formação


escolar e profissional.
A diferença aparece na perspectiva de superação dos dualismos: trabalho
manual e trabalho intelectual; mundo do trabalho e mundo da escola,
conhecimento técnico e conhecimento científico; educação básica e formação
profissional; a formação politécnica e o treinamento polivalente.
No entanto, não fica explicitada a formação polivalente como expressão
das demandas do capital; ainda que aponte a necessidade de mais ampla
educação geral, não rompe com a visão fragmentária, utilitarista, porque não a
inscreve num projeto de mudança da função social de escola e, mais amplamente,
de mudança nas relações sociais vigentes (Neves apud Frigotto, 1992).
Sem a radicalidade do debate, sem que a ênfase seja a qualidade de
vida, educação e trabalho para a classe trabalhadora, as incursões sobre a
politecnia perdem sua essência. Deixa de inscrever-se
na perspectiva da continuidade e da ruptura com relação à polivalência e se
apresenta como o novíssimo. Implica na superação da fragmentação,
utilitarismo e na unidade da teoria e prática. Exige uma nova função social da
escola, isso porque o saber politécnico se situa na perspectiva do
desenvolvimento de todas as qualidades humanas no processo de superação
das relações sociais de alienação e exclusão. (Frigotto, op. cit.: 48-49)

O conceito de politecnia constitui-se na base que orienta a qualificação


profissional para a reduzir o contraste entre a educação intelectual e a formação
profissional. Os autores e as autoras que fazem esse debate recorrem a Frigotto,
para quem essa formação significa uma prática educativa visando à omnilateralidade.
Em uma síntese conclusiva para o trabalho, compreendo que os artigos
aqui analisados acenam com a necessária superação de algumas rupturas que
envolvem a relação trabalho/educação; porém o fazem desconectando-se da
crítica à relação capital/trabalho. Subsumindo a necessidade do capital em
manter demarcada a dicotomia trabalho/educação, como forma de assegurar,
entre outros quesitos da acumulação, a chamada superpopulação relativa ou
exército industrial de reserva, necessária para manietar a classe trabalhadora,
mantendo-a sob o medo do desemprego e o fetiche da qualificação profissional
como superação de ‘seu’ problema.
Dito de outra forma: produzindo processos de educação e formação
profissional fragmentados, efêmeros e com fortes marcas de superficialidade,
como convém à ‘estrutura de sentimento’ cultural (Jameson, 2002) de tempos
de um capitalismo tardio.

218
PARTE III | A DÉCADA DE 1990

TEXTOS ANALISADOS

ALVES, Danny J. Recursos computacionais e formação profissional. Boletim


Técnico do SENAC, Rio de Janeiro, v. 16, n. 1, jan./abril. 1990: 35-45.
CUNHA, Sidney. Novos desafios para a formação profissional. Boletim Técnico
do SENAC, Rio de Janeiro, v. 19, n. 3, set./dez. 1993: 2-8.
DELUIZ, Neise. Formação profissional no Brasil: enfoques e perspectivas. Boletim
Técnico do SENAC, Rio de Janeiro, v. 16, n. 3, set./dez. 1990: 225-242.
DEPRESBITERES, Lea. Elaboração de objetivos e avaliação na formação
profissional. Boletim Técnico do SENAC, Rio de Janeiro, v. 17, n. 3, set./
dez. 1991: 197-214.
FARTES, Vera Bueno. Modernização tecnológica e formação para o trabalho.
Boletim Técnico do SENAC, Rio de Janeiro, v. 20, n. 2, mai./ago. 1994: 2-11.
FEITOSA, Maria Luna Alencar. Círculo de controle de qualidade na formação
profissional. Boletim Técnico do SENAC, Rio de Janeiro, v. 17, n. 2, mai./
ago. 1991: 173-187.
FREITAS, Elizabeth Saar de e OLIVEIRA, Maria Theresa Cavalcanti de.
Capacitação de técnicos do SENAI em informática educacional. Boletim
Técnico do SENAC, Rio de Janeiro, v. 16, n. 1, jan /abr. 1990: 93-107.
GARCIA, Maria Aparecida de Mattos. Taxionomia de objetivos educacionais,
descrições ocupacionais e avaliação na formação profissional. Boletim
Técnico do SENAC, Rio de Janeiro, v. 17, n. 3, set./dez. 1991: 227-254.
MARKERT, Werner. Novas tecnologias como desafio do currículo do futuro. Boletim
Técnico do SENAC, Rio de Janeiro, v. 17, n. 1, jan./abr. 1991: 61-71.
MASSON, Maximo Augusto. Educação, Formação Profissional e
Transformações no Processo de Produção Capitalista. Boletim Técnico do
SENAC, Rio de Janeiro, v. 20, n. 3, set./dez. 1994: 39-45.
PLANTAMURA, Vitangelo. A relação educação-trabalho e a organização da
formação profissional. Boletim Técnico do SENAC, Rio de Janeiro, v. 19,
n 2, mai./ago. 1993: 22-33.
RÉGNIER, Erna Martha. Desafios da educação para o terceiro milênio: breves
considerações. Boletim Técnico do SENAC, Rio de Janeiro, v. 17, n.1,
jan./abr. 1991: 23-43.

219
A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico

TAVARES, Fernando Maia. Ensino técnico no Brasil: reflexões sobre seu


contexto. Boletim Técnico do SENAC, Rio de Janeiro, v. 16, n. 3, set./
dez. 1990: 211-224.
WEINBERG, Pedro. A construção de uma nova institucionalidade para a
formação. Boletim Técnico do SENAC, Rio de Janeiro, v. 22, n. 1, jan./
abr. 1996: 3-17.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFIA

CREMONESE, Dejalma. Reforma do Estado: implicações sociais e econômicas


das políticas neoliberiais no Brasil. http://biblioteca.bib.unrc.edu.ar (s/d).
DEL PINO, Mauro. Reestruturação produtiva e política de educação profissional.
Tese de Doutorado, PPG EDU/ UFRGS. Porto Alegre, 2000.
FRIGOTTO, Gaudêncio. As mudanças tecnológicas e educação da classe
trabalhadora: politecnia, polivalência ou qualificação profissional?
(Síntese do simpósio) In: Trabalho e Educação. Coletânea CBE. Campinas:
Papirus: CEDES, ANPEd; ANDE. 1992.
_________. As relações trabalho-educação e o labirinto do Minotauro. In:
AZEVEDO, José Clóvis; GENTILI, Pablo; KRUG, Andréia; SIMON,
Cátia. Utopia e Democracia na Educação Cidadã. Porto Alegre: Editora
da Universidade/UFRGS; Prefeitura Municipal de Porto Alegre, 2000.
FRIGOTTO, Gaudêncio; FRANCO, Maria Ciavatta e MAGALHÃES, Ana
Lúcia. Programa de melhoria e expansão do ensino técnico: expressão
de um conflito de concepções de educação tecnológica. In: Contexto &
Educação. Revista de Educación em América Latina y el Caribe. Ijuí:
Ed. UNIJUÍ, v. 27, jul./set. 1992.
JAMESON, Frederic. Pós-Modernismo. A lógica cultural do capitalismo tardio.
São Paulo: Ática, 2002.
LEHER, Roberto. Qualificação do trabalho e tecnologia: um estudo em
biotecnologia. In: Contexto & Educação. Revista de Educación en
América Latina Y el Caribe. Ijuí: Ed. UNIJUÍ, n. 27, jul./set. 1992.
_________. Reforma do Estado: o privado contra o público. In: Trabalho, Saúde
e Educação. Rio de Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz, Escola Politécnica
de Saúde Joaquim Venâncio, 2003: 203-228.

220
PARTE III | A DÉCADA DE 1990

CAPÍTULO 3 | DÉCADA DE 1990: A REESTRUTURAÇÃO


PRODUTIVA E A EDUCAÇÃO DO TRABALHADOR

ANITA HANDFAS

Introdução
Durante a década de 1990, o Brasil enfrentou mudanças substanciais na
condução de suas políticas econômica e social caracterizadas, sobretudo, pelo
enxugamento das funções do Estado, por meio de medidas visando eliminar ou
restringir o protecionismo do mercado interno, a participação do Estado na
produção de bens e prestação de serviços, a regulamentação do mercado de
trabalho, assim como a supressão e a redução dos direitos sociais e trabalhistas.
Num quadro de submissão do Brasil ao capital financeiro internacional, essas
mudanças visavam garantir a remuneração do capital imperialista diante da
crise estrutural em que passou a viver a economia mundial desde o início da
década de 1970, levando a seguidas reestruturações da economia mundial.
Diversos mecanismos serviram para legitimar as reformas estruturais
necessárias à atual fase do capitalismo. Assim, em nome de um anunciado
cenário mundial em que as fronteiras entre as nações estariam se estreitando e
o acesso aos bens materiais e culturais tornaria-se cada vez mais viável, o
postulado da globalização espalhou-se pelos mais diversos campos da vida social.
Na esteira das transformações ocorridas nos processos de produção,
predominou um discurso sobre a urgência na formação de um “novo” tipo de
trabalhador, autônomo e coletivo. Esse discurso apresentava como um de seus
pressupostos a idéia de que a introdução de novas tecnologias nos processos de
produção, assim como suas novas formas de organização, trariam a necessidade
de incorporar novos requisitos à formação do trabalhador, promovendo maior
qualificação da força de trabalho.
Nesse contexto, a reestruturação produtiva foi objeto de estudo de
diversas áreas do conhecimento, merecendo destaque a pesquisa educacional
que presenciou em toda a década de 1990 uma demanda considerável de
estudos sobre os impactos das mudanças nas condições de produção sobre a
formação do trabalhador. A pergunta que se colocava, então, girava em torno

221
A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico

de saber quais seriam as conseqüências para a formação do trabalhador, em virtude


das mudanças que vinham ocorrendo nas condições de produção. Como
decorrência desta, várias questões se colocaram na pauta de discussões, tais
como, politecnia, polivalência, qualificação, competências, todas elas enfrentadas
a partir de diferentes pontos de vista e de diferentes enfoques de estudo.
Traçando o percurso teórico do GT Trabalho e Educação da Anped, Franco
e Trein (2002) destacaram como um dos temas de estudo a educação do
trabalhador nas relações sociais de produção. Para as autoras, “os temas em foco
no GT contemplam a apropriação do conhecimento nos processos produtivos; a
organização da produção e suas propostas pedagógicas; a escola, o trabalho e a
sociedade e a construção da hegemonia” (Franco e Trein, 2002: 20).
Além de enriquecer o debate no campo educacional, essa produção
indica também a necessidade em dar prosseguimento aos estudos que tratam
dessa temática, uma vez que a própria realidade vem adicionando novos
elementos para a reflexão e a análise, comprovando que o debate ainda está
muito longe de ser concluído. Daí a importância de apropriar-se de seu
conteúdo, trazendo subsídios para a apreensão de novas questões a serem
estudadas e de questões que ainda apresentem lacunas a serem preenchidas.
Nessa perspectiva, o objetivo deste artigo é apreender o núcleo teórico
central que permeou as discussões sobre a reestruturação produtiva e a formação
do trabalhador que, no Brasil, tiveram forte ênfase na década de 1990, não
sendo sua intenção, portanto, fazer um inventário de toda a produção da área,
mas apenas apontar, por meio da seleção de uma coletânea de textos, as
principais questões colocadas pelos pesquisadores.
Dessa forma, não obstante a variedade de pontos de vista apresentados
nos artigos analisados, o que me interessa é detectar as perguntas ou os
pressupostos sobre as quais esses estudos se assentaram. Em outras palavras,
este artigo pretende apreender os pressupostos a partir dos quais os estudos
concernentes às mudanças nas condições de produção e suas conseqüências
para a formação do trabalhador se apoiaram para conduzir a investigação e a
análise realizadas.
A problemática da reestruturação produtiva e da educação do
trabalhador tem sido examinada a partir de diferentes ângulos e não encontra
unanimidade, nem mesmo entre os estudos críticos, vale dizer, aqueles cujo
instrumental de análise é a teoria marxista.
A constatação dessa falta de unanimidade foi possível graças à adoção
de um procedimento teórico e metodológico que deve ser explicitado. Trata-
se do conceito de problemática, que representa o conjunto de questões ou as

222
PARTE III | A DÉCADA DE 1990

perguntas pelos quais a reflexão teórica vai encontrar o caminho para se


desenvolver. Sendo anterior à teoria, a problemática refere-se ao lugar de onde
as perguntas são formuladas, conduzindo, assim, o processo de reflexão teórica.
Com base nessa distinção entre teoria e problemática é possível justificar a
presença de tal controvérsia, na medida em que podemos afirmar que teorias
distintas podem pertencer a uma mesma problemática.1
Foram analisados 18 artigos, cuja elaboração foi o resultado de pesquisas
realizadas ao longo da década de 1990. A seleção desses textos analisados se
deu-se a partir de um levantamento feito em 11 revistas especializadas, de
modo a contemplar o universo de artigos sobre o tema. Não obstante a
diversidade de enfoques adotados pelos pesquisadores, é possível agrupá-los
em dois eixos de discussão, a saber: (1) globalização e formação profissional,
incluindo aí os artigos que analisaram programas governamentais com o intuito
de promover a formação profissional; e (2) mudanças nos processos de trabalho
e educação, abordando sob diferentes aspectos a questão da educação
profissional. No próximo item apresentarei uma breve sistematização dos textos
analisados, agrupando-os a partir desses dois eixos assinalados.

1. Globalização e formação profissional


Nesse grupo de artigos, encontramos aqueles que procuraram compreender
a política de formação profissional implementada no Brasil a partir da análise do
capitalismo e de seus pressupostos políticos e ideológicos. É o caso do artigo de
Leher (1998), que parte da análise da crise do capitalismo para justificar a
necessidade das reformas estruturais. Para esse autor, do ponto de vista da
acumulação do capital em escala mundial, nos países periféricos a expansão se
daria pela troca e pela circulação do capital, excluindo a força de trabalho.
Nesse contexto, o autor assinala que as reformas na educação profissional
estariam limitadas a formar trabalhadores com baixa qualificação, excluindo
todo o suporte para a educação de caráter tecnológico e para a produção de
conhecimento novo nas universidades, e acrescenta que “o conjunto dessas
normatizações promove rude empobrecimento científico e humanístico do
currículo, em nome de uma abstrata e populista valorização da experiência, da
competência e da habilidade” (Leher, 1998: 131).
Dessa forma, a educação profissional estaria pautada na concepção do
mercado e dos homens de negócio, em que a qualificação passaria a ser vista

1
Sobre essa questão, ver Althusser, 1967.

223
A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico

como condição para que o indivíduo possa adaptar-se ao mercado. O autor


destaca que a globalização não é um conceito científico, na medida em que
ela estaria servindo para legitimar as reformas estruturais necessárias à atual
fase do capitalismo.
O aspecto ideológico levantado por Leher pode ser confirmado no artigo
de Deluiz (1997), que faz um histórico do debate e da formulação de propostas
acerca das mudanças nos processos produtivos e da formação do trabalhador a
partir de duas centrais sindicais – CUT e Força Sindical – e da Confederação
Nacional das Indústrias -CNI. A autora identifica que, do ponto de vista dos
empresários, suas propostas vêm retomar a teoria do capital humano, agora
mais “humanizada”, o que nos leva a compreender que esse caráter mais
humanizador no discurso do empresariado exerce uma função ideológica
importante para a nova lógica de subordinação do trabalhador ao capital.
Essa visão empresarial é evidenciada nas palavras de Pastore (1995: 36-
37), que a partir de um pronunciamento feito em 1994 procurou antever o futuro
do trabalho e do trabalhador. Para ele, “está claro que o mundo do futuro exigirá
muita educação e profissionais polivalentes, multifuncionais, alertas, curiosos –
pessoas que se comportam como o aluno interessado o tempo todo”.
Esse discurso apologético é desmascarado por Souza (1996), ao mostrar
que, se por um lado, a política neoliberal teria logrado êxito com relação à
contenção do surto inflacionário da década de 1970 e da valorização do capital,
por outro, teria acarretado o desemprego estrutural, a debilitação do movimento
sindical e a redução dos salários. Analisando as conseqüências da globalização
nos processos produtivos, afirma que, no caso do Brasil, a reestruturação
produtiva marcou “uma forte queda do emprego industrial acompanhado de
um elevado incremento na produtividade, havendo, como contraponto, o
crescimento da participação do setor terciário, a informalização das atividades
ocupacionais e, em paralelo, a queda real de salários” (Souza, 1996: 8).
Diante desse quadro, o autor indaga que tipo de formação profissional seria
necessário para o “trabalhador coletivo global” e aponta para a contradição que faz
com que a mesma política neoliberal que acarretou um desemprego massivo
proclame a urgência de ações pedagógicas com o objetivo de favorecer o reingresso
no mercado da mão-de-obra expulsa dos processos produtivos. Nesse sentido,
conclui que “de determinada pelas necessidades do mercado, a formação profissional
seria promovida a determinante destas mesmas exigências” (Souza, 1996:10).
Essa contradição é apontada por Aranha (1996), que analisa as propostas
de diferentes setores da sociedade no tocante à formação profissional e à
educação básica, questionando se, de fato, tais propostas são consensuais, ainda

224
PARTE III | A DÉCADA DE 1990

que os respectivos discursos se apresentem com aparência de consenso. A autora


parte da seguinte questão: “Seria possível, no contexto de um país dirigido por
um governo com orientação neoliberalizante explícita, 2 um tratamento
diferenciado para a formação do trabalhador, que fosse verdadeiramente
democrático, voltado para a construção de um ser humano livre e crítico?”
(Aranha, 1996: 112). Para tanto, discute, em particular, o projeto desenvolvido
pela FINEP, ligada ao Ministério da Ciência e Tecnologia, cujo objetivo é
fornecer recursos para que as empresas qualifiquem os trabalhadores.
Apresentando os pressupostos em que se baseiam tal projeto, salienta a
urgência enfatizada por essa instituição, no sentido de implementar iniciativas
no âmbito das empresas, visando à educação dos trabalhadores, sob pena de o
Brasil perder a oportunidade de se integrar à “Sociedade do Saber”. A autora
mostra, também, que a contrapartida oferecida é bastante vantajosa para as
empresas que decidirem engajar-se no projeto, podendo até contar, com o
financiamento de 90% do projeto a ser realizado por três vias: sistema de ensino
próprio, sistema de ensino terceirizado e sistema de ensino público.
Reforçando o argumento de que a concepção educacional definida pelo
governo vai ao encontro dos interesses mercadológicos, a autora cita o
documento “Educação Profissional: um projeto para o desenvolvimento
sustentado”, do Ministério do Trabalho, que condiciona a competitividade
das empresas à formação de ‘cidadãos competentes’. Nesse sentido, a visão
que se passa é a de que as relações sociais existentes na atualidade são
desprovidas de qualquer contradição. A autora conclui que por detrás do
“consenso fictício” há o “dissenso real”, na medida em que o projeto analisado
“subordina a formação dos trabalhadores, mantida com recursos públicos ... à
gestão das empresas, reforçando a privatização do público em adiantado processo
no país” (Aranha, 1996: 117).
Na mesma linha de argumentação, Del Pino (1995) analisa as implicações
do neoliberalismo sobre a economia dos países latino-americanos, mencionando os
casos do México, Argentina e Brasil, que desenvolvem políticas de submissão ao
FMI. Para o autor, “o modelo neoliberal tem como premissa a entrega da condução
real da economia e a concentração dos benefícios para um pequeno grupo
tecnocrático e os proprietários do capital financeiro” (Del Pino, 1995: 126).
Analisando as conseqüências da reestruturação produtiva, o autor afirma
que a informatização e a microeletrônica promoveram um aumento da mais-

2
Trata-se do governo de Fernando Henrique Cardoso.

225
A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico

valia, mediante a intensificação do ritmo do trabalho, provocando maior


desgaste físico ao trabalhador. Por outro lado, do ponto de vista do
gerenciamento, a introdução do conceito de qualidade implicaria não só o
controle do físico do trabalhador, como também, o de sua própria subjetividade.
Para o autor, qualificação e certificação seriam as novas exigências para
a formação do trabalhador. Entretanto, apontando para a ocorrência de um
elevado índice de desemprego, conclui que “não há necessidade de
democratizar a escola, mas de obter uma determinada qualidade necessária ao
modelo” (Del Pino, 1995: 132).
Ainda no plano de análise de projetos governamentais, o projeto de
educação profissional do Ministério do Trabalho é também objeto de estudo de
Fidalgo e Machado (2000). Nesse artigo são apresentados os principais
pressupostos e analisados os resultados da implementação do Plano de Formação
Profissional – PLANFOR, cujo objetivo era o de proporcionar educação
profissional aos segmentos da população economicamente ativa que se
encontram vulneráveis econômica e socialmente, dificultando, assim, sua
inserção no mercado de trabalho.
Segundo os autores, os documentos do PLANFOR anunciam a
necessidade de substituir o modelo de “formação” profissional adequado a um
contexto de forte presença do Estado, implementador de uma política de
industrialização baseada na substituição de importações que, no nível da
organização e gestão da produção, se pautava nos princípios do taylorismo e do
fordismo. Nesse quadro, a força de trabalho apresentava baixos níveis de
escolarização e qualificação, e a formação profissional se apresentava descolada
da educação básica. Para mudar esse quadro e se inserir no novo contexto
capitalista, dominado pela globalização, o PLANFOR propõe uma “educação”
profissional baseada em nova dinâmica de acumulação capitalista, em que o
Estado deixa de ter papel regulador, e as instituições da sociedade civil passam
a exercer papel importante na condução direta das atividades educacionais.
Analisando as dificuldades de implementação do PLANFOR, os autores
destacam quatro itens: “a) dificuldades para promover a superação da dicotomia
entre a educação básica e a formação profissional” (Fidalgo e Machado, 2000:
99), decorrente, principalmente, da falta de articulação entre o Ministério do
Trabalho e o Ministério da Educação, atribuindo-se a cada um desses órgãos
funções distintas, sem qualquer articulação; “b) dificuldades para organizar a
educação profissional em bases contínuas e flexíveis” (Fidalgo e Machado,
2000: 101), em função de a maioria dos cursos oferecidos restringir-se às
atividades precárias e do setor informal da economia; “c) dificuldades em

226
PARTE III | A DÉCADA DE 1990

promover a superação do caráter assistencialista ou contencionista da educação


profissional”, uma vez que, como decorrência do item anterior, de caráter
emergencial, “a educação profissional se transforma em instrumento de redução
da pressão social sobre o Estado pelo desenvolvimento de políticas ativas e
efetivas de emprego” (Fidalgo e Machado, 2000: 103); “d) dificuldades na
construção da Rede Nacional de Educação Profissional”, na medida em que a
intenção de promover a articulação de esforços entre o Estado e as instituições
da sociedade civil representa o risco de transferir política e financeiramente a
responsabilidades do Estado para a iniciativa privada, fortalecendo, com isso,
a lógica do mercado.
Os autores concluem afirmando que “a oferta de educação profissional
deve estar adequada às necessidades sociais, entretanto, esta adequação não
pode significar restringir os projetos educativos às demandas imediatas do
sistema produtivo e do mercado de trabalho” (Fidalgo e Machado, 2000: 105).
A urgência em criar mecanismos para a formação do trabalhador é
desenvolvida por Tauile (1997), que faz uma análise econômica do atual estágio
de acumulação capitalista, sustentando que, “apesar de uma eventual
inevitabilidade da globalização, a forma com que, no caso, o país, nele se inserir
poderá provocar efeitos bastante diversos e particularmente antagônicos no
curto e no longo prazo” (Tauile, 1997: 23). Do ponto de vista geral, destaca a
revolução tecnológica, baseada nas novas tecnologias de informação e a
mudança no aparato produtivo.
Analisando o caso do Brasil, ressalta que a partir da década de 1980 o
país passou a vivenciar o descontrole inflacionário e, como conseqüência, a
estagnação da demanda, situação essa que teria sido superada a partir da
década de 1990, por meio da abertura dos mercados. O autor conclui que mais
do que ter um Estado “enxuto”, “é preciso recriar um aparato estatal que seja
ágil, flexível e democrático, e que, por isso mesmo, seja forte” (Tauile, 1997:
29), num contexto em que o trabalho passa a ser visto como um valioso recurso
de produção, em condições totalmente diversas das condições dadas pelo
fordismo, mas por meio do “trabalho criativo, instruído, engajado e com poder
de decisão” (idem). Daí a urgência em formar esse tipo de cidadão.
Analisando dados estatísticos reveladores, Segnini (2000) discute a
relação entre educação, trabalho e desenvolvimento, indagando se essa relação
se daria em função das novas exigências dos processos produtivos em uma
economia globalizada, ou, ao contrário, se constituiria num processo social de
legitimação das mudanças no mercado de trabalho, via desemprego e
precarização social. Partindo do princípio de que “alguma coisa significativa

227
A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico

se alterou nos últimos trinta anos nas sociedades capitalistas que se reorganizam,
se reestruturam no sentido de implementarem novas formas de racionalização
do trabalho e da vida social” (Segnini, 2000: 15), a autora afirma que, nesse
contexto, a educação assume funções instrumentais, de modo a garantir a
competitividade e intensificar a concorrência.
Apoiando-se em estatísticas que revelam dados sobre desigualdade
social, evolução do salário mínimo, evolução da população economicamente
ativa, entre outros, conclui que desenvolvimento econômico não representa
desenvolvimento social e, apresentando dados sobre a relação entre grau de
escolaridade e emprego, demonstra que, em 1996, o crescimento do desemprego
se deu justamente entre os trabalhadores mais escolarizados.

2. Mudanças nos processos de trabalho e educação


Numa perspectiva propositiva e pensando nas possibilidades abertas
para um novo tipo de formação humana diante das mudanças nos processos
de produção, Desaulniers (1997) assinala que as mudanças que vêm
ocorrendo no capitalismo contemporâneo provocaram o deslocamento da
noção de qualificação para a de competência, tanto na esfera educativa
quanto na esfera do trabalho. Identificando contradições nesse quadro,
sustenta que esse sistema dispõe também “de espaços para a construção da
cidadania ao se instaurar a competência, mesmo se é uma demanda produzida
principalmente pelo capital para atender às necessidades do mundo do
trabalho” (Desaulniers, 1997: 57).
Esse eixo de análise é compartilhado por Jorge (1998), que referindo-se
ao contexto do capitalismo atual como um fenômeno repleto de contradições,
discute as diversas formas de manifestação desse fenômeno, apresentando uma
alternativa de ensino, cujos fundamentos sejam deslocados do mundo do
trabalho “para o ideal da formação do homem emancipado” (Jorge, 1998: 172).
Destaca que as formas de produção em vigor fazem emergir o ideal de “homem-
consumo”, e que, nesse sentido, os meios de comunicação cumprem um papel
fundamental na universalização dos valores, transformando as necessidades
do mercado em aspirações de toda a sociedade.
Apontando os paradoxos de uma sociedade que já desenvolveu suas forças
produtivas de forma a promover mudanças em diversos aspectos de sociabilidade,
a autora alerta que esse contexto tende a tornar o homem cada vez mais solitário
e acrescenta a importância de uma educação humanista voltada para a formação
de valores como a solidariedade, a democracia e a emancipação.

228
PARTE III | A DÉCADA DE 1990

Partindo também da constatação de que a reestruturação produtiva é


parte de um processo em desenvolvimento, o artigo de Lacerda (1997) introduz
o conceito de “alfabetização científica” a fim de refletir sobre as novas exigências
para a formação do trabalhador. Segundo este autor, “alfabetização científica”
deve ser entendida como “uma série de conhecimentos gerais relacionados à
natureza, aos resultados e à relevância do empreendimento científico” (Lacerda,
1997: 97). Para ele, a alfabetização científica está relacionada ao conceito de
“saber funcional”, entendido como um tipo de saber próprio ao saber técnico,
direcionado à resolução de problemas concretos e à intervenção profissional
enquanto detentor de saberes úteis e significativos.
O artigo é resultado de uma pesquisa sobre a alfabetização científica de
jovens que escolheram o percurso do ensino técnico. Nesse sentido, identifica
na formação profissional dos jovens a ausência de currículos voltados para a
apreensão dos princípios científicos essenciais para que o indivíduo possa
compreender, interpretar e interferir adequadamente em discussões processos
e situações de natureza técnico-científica.
O autor faz uma breve revisão bibliográfica sobre as mudanças
tecnológicas e suas conseqüências, destacando autores como Toffler, para quem
“a revolução tecnológica seria uma espécie de ponto de partida para uma nova
sociedade, supostamente, melhor e mais democrática, menos excludente e
mais igualitária” (Lacerda, 1997: 93); Hobsbawm, para quem “os novos e
sucessivos avanços tecnológicos foram se traduzindo (...) em tecnologias que
não exigem qualquer compreensão por parte dos usuários finais” (Lacerda,
1997: 94); Touraine, para quem “a nova sociedade teria como base o fim do
indivíduo, como ator cultural, como portador de uma identidade cultural”
(Lacerda, 1997: 95) e Apple que, contrapondo-se à tese da especialização
máxima, argumenta que “a tecnologia existe para facilitar os processos
industriais, mas sobretudo e unicamente para eliminar postos de trabalho nestes
tempos de crise de capital” (Lacerda, 1997: 96). Não obstante as diferentes
interpretações, o autor afirma ser inevitável “dotar o cidadão de conhecimentos
de base indispensáveis a uma percepção adequada desta intrusão tecnológica,
de seus impactos, causas, conseqüências e repercussões: a detenção de uma
alfabetização científica de qualidade” (Lacerda, 1997: 97).
A análise feita por Laudares (1999) é otimista no que diz respeito à
qualificação profissional do trabalhador pensada a partir da relação escola/
empresa. O autor parte do pressuposto que estão em curso novos processos de
organização e gestão do trabalho da qualidade total e reengenharia, em função
do progresso técnico. Para ele, “o trabalho abstrato, extensão do cérebro

229
A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico

humano, sobrepõe-se ao trabalho concreto, extensão dos braços do trabalhador”,


exigindo “capacidade de abstração, decisão e comunicação além de
responsabilidade e interesse pela atividade laboral” (Laudares, 1999: 37).
Em outro artigo, Deluiz (1996) discute os desafios postos à formação
profissional diante da globalização econômica, analisando essa questão sob a ótica
das empresas e das instituições formadoras. A autora parte do pressuposto de que
o modelo da especialização flexível e dos novos conceitos de produção acarretaram
uma “divisão técnica do trabalho (...) menos evidenciada, com a integração do
trabalho direto e indireto, e a integração entre produção e controle de qualidade,
onde o trabalho em equipe passou a substituir o trabalho individualizado e as
tarefas do posto de trabalho foram eclipsadas pelas funções polivalentes em ‘ilhas
de produção’, ou grupos semi-autônomos [em que] “o conteúdo e a qualidade do
trabalho humano modificaram-se” (Deluiz, 1996: 16).
Nesse sentido, entende que não se trata mais de uma qualificação formal,
mas de uma “qualificação real do trabalhador”, na medida em que engloba as
competências necessárias para o ‘saber-ser’ e não mais o ‘saber-fazer’.
Nesse novo contexto, a autora analisa a maneira pela qual tanto as
empresas quanto o sistema formador vêm enfrentando essas novas exigências.
Entre os riscos apontados nas abordagens das competências, cita a visão de
adequar a formação exclusivamente às necessidades da reestruturação
produtiva, portanto, das exigências empresariais, numa avaliação de
competência estritamente individual, o que seria uma contradição, já que um
dos aspectos das mudanças nas condições de produção, segundo a autora, é
justamente, o trabalho em equipe.
Essa lógica empresarial é enfatizada e criticada por Machado (2000),
que faz um breve histórico da formação profissional no Brasil, dando destaque
à criação do SENAI, e enfatiza a questão da dualidade do ensino, no que diz
respeito à formação profissional e técnica destinada à entrada no mercado de
trabalho, assim como voltada para a lógica empresarial e atendendo à lógica
do capitalismo. Nesse sentido, a autora mostra que, ao longo dos anos, os
pressupostos que embasaram a legislação da formação profissional estiveram
subordinados “ao interesse econômico, ao funcionar como qualificadora de
mão-de-obra e de força de trabalho”, reforçando as relações de exploração
capitalista.
Admite que existam mudanças significativas nos processo de produção,
a partir do esgotamento do modelo taylorista/fordista e de sua substituição
pelo modelo “flexível”, em que, diante desse quadro, “pensar em formação
profissional deve ir além de pensar em treinamento, adestramento técnico

230
PARTE III | A DÉCADA DE 1990

(...) Deve-se agora se ater muito mais ao ‘saber-ser’, ‘saber-aprender’ do que


‘saber-fazer’” (Machado, 2000: 147). A parir dessa constatação, apresenta
alguns resultados de sua pesquisa sobre a representação dos formadores do
SENAI a respeito de suas práticas de formação profissional, enfatizando a
questão da subjetividade, uma vez que fala-se hoje na necessidade de criar
novas formas de ver, sentir e agir dos homens, e constatando que os formadores
do SENAI estariam concebendo as questões do trabalho e atuando como
formadores a partir da lógica empresarial, isto porque, entende a autora as
percepções dos formadores estariam revelando uma idéia articulada ao mundo
da produção.
Partindo dos mesmos pressupostos, Ribeiro (1996) faz uma breve análise
sobre as mudanças nos processos produtivos a partir da crise do fordismo, na
década de 1960, apontando as principais características do modelo flexível, no
que diz respeito tanto ao processo de produção quanto ao trabalho.
A autora apóia-se nas diferentes visões dos estudiosos dessa área, que
discutem questões como qualificação do trabalhador, polivalência,
especialização, intensificação do trabalho, desemprego, etc; redundando na
polêmica entre aqueles que consideram as mudanças estratégia para maior
produtividade e eficiência do capital e outros que atribuem as mudanças a
uma forma de atendimento das reivindicações dos trabalhadores.
Referindo-se especificamente ao caso brasileiro, afirma que “apesar do
processo de industrialização aqui ter se dado com velocidade e vigor notáveis,
sua marca é o baixo dinamismo tecnológico, fragilidade crucial no momento
da reestruturação com base na aceleração da mudança tecnológica pela qual
passamos” (Ribeiro, 1996: 22). Sendo assim, com exceção da chamada indústria
de ponta, existiria ainda uma força de trabalho com baixo nível de qualificação
e baixo grau de escolaridade. A autora aponta como barreiras a serem
enfrentadas a “cultura empresarial” caracterizada pelo autoritarismo e
centralização da administração, traduzindo-se numa relação de desconfiança
entre empregadores e empregados, e, em vista disso, sugere que o aumento de
competitividade por meio da modernização das unidades de produção deva
incluir os aspectos tecnológico, estratégico e cultural.
Miranda (1995), sob o ponto de vista da psicologia da aprendizagem,
analisa os pressupostos teóricos do construtivismo de Piaget e, remetendo-se a
seu conceito de inteligência, sustenta a hipótese de que, diante das mudanças
ocorridas nas condições de produção, “a concepção de inteligência que se
torna predominante na configuração de uma nova fase do capitalismo está
sugerida na concepção de inteligência que ganha o senso comum a partir da

231
A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico

formulação original de Jean Piaget e passa a orientar a pedagogia: o


construtivismo”. Para a autora, a concepção de inteligência formulada por
Piaget está consonante com as exigências de uma nova capacitação intelectual
e moral para o trabalho tecnificado na sociedade global.
Finalmente, o artigo de Souza (1997) desenvolve uma discussão teórica
e metodológica sobre os estudos que tratam da relação entre trabalho e
educação. O autor critica as análises sobre as transformações nas condições de
produção em que o fator tecnológico é determinante, demonstrando que elas
comprometem a compreensão das contradições entre capital e trabalho, na
medida em que não apreendem a dinâmica da superestrutura da e infraestrutura
e, por conseguinte, não levam em conta que as formas de organização do
trabalho, dos sistemas de qualificações ou dos níveis de promoção são
inteiramente dependentes das relações de força e dos compromissos que podem
ser estabelecidos.
Nesse sentido, vai buscar em Gramsci seu referencial de análise,
especialmente no que diz respeito à concepção desse autor para a relação
entre infra-estrutura e superestrutura e adverte que “o desenvolvimento dos
processos de produção não gera, por si mesmo, descontinuidades no modo de
produção e nas relações capitalistas de produção” (Souza, 1997: 18).

3. Uma leitura dos artigos


No item anterior procurei apresentar um breve resumo dos artigos
que foram objeto de análise. Conforme dito na introdução, o objetivo
deste artigo é tentar apreender as questões a partir das quais os autores
desenvolveram seus estudos e que serviram de fio condutor para a
realização de seus estudos. Esse tipo de leitura indica que me importou
também a maneira pela qual os autores realizaram suas próprias leituras
de seus objetos de estudo, já que cada leitura implica, necessariamente,
a visibilidade ou a invisibilidade de determinados problemas no percurso
da investigação. Assim, a análise dos artigos procurou apreender a
problemática que os unificou, não obstante a diversidade de enfoques e
de conclusões verificados.
Nesse sentido, a partir da análise dos textos foi possível verificar que a
coletânea de artigos é desigual, pois apresenta duas problemáticas. É
importante destacar que, à exceção do texto de Pastore (1995), todos os estudos
partem de uma visão crítica. Mas isso não é suficiente, pelo que apontei no
início deste artigo. No próximo item discutirei essa questão.

232
PARTE III | A DÉCADA DE 1990

4. As duas problemáticas
Para fazer a distinção das duas problemáticas encontradas é importante
ressaltar que cada uma delas ocupa um determinado terreno, tanto no plano
teórico como no plano metodológico. Isso significa que, a depender do terreno
ocupado, que corresponde a uma determinada problemática, será ocultada ou
revelada as determinações em que se assenta o objeto de estudo.
Assim, identifiquei alguns artigos que supõem que, se as contradições
existentes no interior do modo de produção capitalista acarretam, no que diz
respeito à temática aqui tratada, o desenvolvimento das forças produtivas, essas
contradições não representam por si só qualquer mudança estrutural do modo de
produção, mas, pelo contrário, apenas reproduzem o capitalismo numa outra escala.
Essa problemática rejeita pensar o modo de produção capitalista de forma
estática e linear e obriga a pensá-lo em sua dinâmica. Obriga, por isso, a pensar
também nas diversas instâncias – econômica, política, ideológica – presentes
em todo modo de produção e na maneira como se relacionam. Enfim, essa
problemática implica trabalhar as contradições existentes no interior do modo
de produção capitalista, de modo a apreender as determinações presentes em
seu estágio atual.
É o que fazem Leher (1998), Souza (1996, 1996a) e Segnini (2000).
Nesses artigos os autores apresentam uma análise acurada do atual estágio
de desenvolvimento do capitalismo no plano internacional, buscando compreender
de que maneira seus determinantes atuam no caso específico do Brasil,
particularmente no tocante às políticas educacionais. Por outro lado, deixam claro
o terreno do qual estão partindo ao procurar desmitificar a aparência “progressista”
do discurso dominante e operam com uma gama de dados de modo a tornar visível
o que o discurso dominante tenta tornar invisível. Apesar de desenvolverem suas
análises sob enfoques específicos, é possível apontar pelo menos uma decorrência:
todos eles tornam inviável qualquer compatibilidade entre o discurso dominante e
a análise científica que buscaram empreender em seus estudos.
Mas, se estamos falando a respeito de discursos “críticos”, por que não
incluir o conjunto dos artigos analisados, já que eles são, em sua maioria,
“críticos” ao discurso dominante? São “críticos” sim, porém alguns deles, para
fazer suas análises partem do mesmo pressuposto do discurso dominante, segundo
o qual as transformações nos processos produtivos fazem parte de um fenômeno
universal e que é necessário pensar a formação de um “novo” tipo de
trabalhador. Dessa forma, a “crítica” se limita a reivindicar um tipo de formação
mais humanizada, num discurso bastante identificado com o discurso

233
A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico

dominante. Afinal, são vários os exemplos, a nossa disposição, de um otimismo


exacerbado no que diz respeito às perspectivas do trabalho e do trabalhador,3
muito semelhantes, vale dizer, a muitos discursos “críticos” que encontramos.
Essa tendência pode ser verificada em vários textos de autores como
Ribeiro (1996), Desaulniers (1997) e Laudares (1999).
Nesses artigos, as reflexões que tratam das novas exigências para a
qualificação do trabalhador frente à reestruturação produtiva ficam reduzidas
às questões que envolvem essa relação num contexto organizacional que necessita
ser renovado; ou aqueles artigos que identificam no contexto do capitalismo
atual um fenômeno repleto de contradições sem, contudo, identificar tais
contradições, mas somente afirmar que elas abrem perspectiva “para o ideal da
formação do homem emancipado” ou para a “construção da cidadania”.
Em seu conjunto esses artigos articulam uma certa tendência humanista
que faz com que os autores partam do “impetuoso desenvolvimento das ciências
e das técnicas” e conduz alguns deles a enunciar teses que tendem a afirmar o
primado do “homem” sobre os meios de produção, teses essas que se convertem
em afirmações tais como o papel cada vez mais determinante do trabalhador
intelectual ou a ciência e a tecnologia como uma força produtiva direta.

5. Considerações finais
Este artigo teve como objetivo apresentar uma sistematização das
principais questões em pauta, durante a década de 1990 na pesquisa
educacional, sobre as mudanças nas condições de produção e a formação do
trabalhador.
Mediante a leitura de 18 textos, procurei identificar algumas questões
teóricas fundamentais que dizem respeito aos problemas que se colocam ao
investigador quando se trata de refletir a relação entre trabalho e educação.
Nesse sentido, procurei destacar os riscos de proceder a análises mecanicistas do
processo de mudanças que vem ocorrendo nos sistemas produtivos, assim como
de relacionar essas mudanças com a educação do trabalhador sem levar em
conta que pode existir uma diversidade de aspectos que intervêm nessa dinâmica.
É importante ressaltar que foi possível verificar que a produção teórica
crescente de estudos sobre as mudanças nas condições de produção e a formação
do trabalhador, na década de 1990, indica a necessidade de refletir sobre essa
temática, e, nesse sentido, os artigos, não obstante as limitações apontadas,

3
Por exemplo, as palavras de José Pastore, num dos artigos aqui analisados.

234
PARTE III | A DÉCADA DE 1990

ofereceram a oportunidade para tornar esse debate mais rico, contribuindo


para apontar as questões em aberto no campo de pesquisa de trabalho e
educação.

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A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico

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236
PARTE III | A DÉCADA DE 1990

CAPÍTULO 4 | A NOVA CULTURA DO TRABALHO:


SUBJETIVIDADES E NOVAS IDENTIDADES
DOS TRABALHADORES

VERA CORRÊA

Introdução
A informalidade tem sido uma das questões surgidas no centro do debate
contemporâneo, como sendo decorrente da reestruturação produtiva, da
flexibilização e da precarização das relações de trabalho, contribuindo para o
surgimento dos serviços, das transformações nos conteúdos e na cultura do
trabalho, da emergência de novos padrões de consumo e estilos de vida.
Desde o final dos anos 1970 tem-se registrado no Brasil o fim do crescimento
do emprego assalariado, e, junto com o desemprego, temos observado as ocupações
precárias. Nesse contexto caracterizado pela fragmentação social, algumas formas
alternativas de subsistência passaram a ser vistas como universais e inevitáveis,
ainda que indesejáveis; ampliaram-se para os mais diversos segmentos sociais
em conseqüência da falta do emprego formal, ou concomitante a ele, deixando
de ser um fenômeno restrito aos pobres e aos pouco qualificados. Isso ocorreu
principalmente nas últimas décadas, como uma das conseqüências da tendência
ao fim da divisão do trabalho, pela reintegração de tarefas que passaram a exigir,
simultaneamente, trabalho intelectual e trabalho manual.
Retomar as pesquisas produzidas ao longo da última década é um
importante passo para a compreensão de questões dessa natureza. Nesse sentido,
o presente trabalho tem como objetivo analisar as contribuições de pesquisadores
sobre o surgimento de novas formas de organização do trabalho formal/informal
como uma nova cultura do trabalho, no contexto do desemprego estrutural na
década de 1990, e seus impactos na produção das subjetividades e das novas
identidades dos trabalhadores.
O material analisado é composto por 12 artigos produzidos entre os anos
de 1990 e 2001, publicados nas revistas selecionadas.1 Não se trata da totalidade

1
De acordo com a metodologia adotada no Projeto Integrado, do qual participei como pesquisadora associada.

237
A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico

da produção no período, mas de uma amostra significativa que pode nos permitir
uma visualização a respeito das questões levantadas, das principais tendências
das pesquisas e dos enfoques priorizados pelos autores em suas análises.
A leitura dos textos evidenciou uma grande diversidade de abordagem
dessas temáticas. Procuraremos, a seguir, explicitar as preocupações ou questões
selecionadas por esses autores a partir de dois eixos: as abordagens da nova
cultura do trabalho; as subjetividades e identidades dos trabalhadores.

1. As abordagens da nova cultura do trabalho


De um modo geral, os autores que tratam mais diretamente das questões
da cultura do trabalho apontam, explicitamente ou não, a reestruturação
produtiva como responsável pela fragmentação e heterogeneidade dos mercados
de trabalho. Entre outras questões, reconhecem o grave problema de absorção
de mão-de-obra no contexto da contração ocupacional do mercado, como
resultante não só do aumento do setor informal, gerado pela crise da sociedade
assalariada, mas do aumento dos desempregados e inativos em idade produtiva.
Destacamos os estudos de Chinelli e Durão (1999); Chinelli e Paiva, E. (1999);
Dedecca (1997); Coraggio (1997); Linhares e Lavinas (1997); Abreu, Jorge e
Sorj (1997); Paiva, V. et al. (2001).
Optamos por agrupar as questões e preocupações desses autores em
algumas temáticas: a nova cultura do trabalho; o mercado de trabalho de
transição; a regulação pública ativa; a economia popular; as mulheres e o
trabalho: projetos de geração de renda; campos profissionais da “nova era
capitalista”. Essa divisão pode nos indicar que direção os textos tomaram, mas
não consegue, certamente, dar conta do conteúdo das discussões propostas
pelos autores. Nesse sentido, procuraremos, a seguir, explicitar as abordagens
que foram priorizadas.
A emergência de uma nova cultura do trabalho foi analisada por Chinelli
e Durão (1999) como uma reconfiguração no conteúdo, na forma e na cultura
do trabalho influenciada, em grande medida, pelo surgimento de um novo
paradigma tecno-econômico, fundado na conjugação da tecnologia do
computador com a das telecomunicações para o trabalho. A “sociedade pós-
industrial”, a “sociedade de serviços” são os novos conceitos usados para definir
essas mudanças estruturais em escala mundial, ocorridas nas últimas décadas.
Dentre outras implicações, as autoras destacam o surgimento de novas
relações entre as esferas pública e privada contribuindo para a conformação
dos espaços contemporâneos de trabalho. Apontam, também, as modificações

238
PARTE III | A DÉCADA DE 1990

nos conteúdos e na cultura do trabalho, tanto no que se refere à organização


empresarial quanto no que concerne aos novos modelos de emprego e ao
cotidiano dos trabalhadores. Como mais representativo dessas mudanças, indicam
os serviços como o espaço social que melhor caracteriza esses novos contextos
culturais, atividades e estilos de vida.
Qual a nova configuração do trabalho? Para as autoras, houve uma
“redução da distância entre a esfera pública e a privada” devido ao
deslocamento crescente do espaço cultural e profissional para o espaço físico
privado e, dessa maneira, para a esfera privada. Nessa direção, salientam que:
a) o espaço tornou-se virtualizado e se contraiu, permitindo vivências
simultâneas em espaço/tempos diferentes, com a crescente internacionalização
de serviços; b) a flexibilidade e fragmentação subvertem o emprego de horário
integral, com a desregulação do tempo e do espaço de trabalho, que passa a
invadir as esferas privadas; c) a fluidez e imaterialidade do trabalho, com os
“escritórios virtuais”, permitem o trabalho a distância; e d) o crescimento de
estratégias alternativas de emprego/ocupação pode ser constatado, como o
trabalho autônomo e diversas alternativas de inserção informal.
Essa nova situação também pode ser analisada sob dois pontos de vista.
De um lado, pelo aspecto libertador do descentramento do trabalho, permitindo
ao indivíduo ajustá-lo a seu ritmo de vida. Por outro lado, pelo aspecto da
penalização do trabalhador diante da crise do emprego: o aumento da
informalidade e da precarização das relações de trabalho; a redução dos salários
e benefícios sociais devido à flexibilização de empregos; as dificuldades de
acesso ao mercado de trabalho, especialmente para os jovens e os menos
qualificados. Essas são algumas das conseqüências para as subjetividades dos
trabalhadores.
Qual a nova divisão social do tempo? Para as autoras, as condições
temporais nas quais o trabalho se realiza modificaram-se não só com a nova
configuração do trabalho, acima descrita, mas com a ampliação do não-emprego
e do desemprego. Essas mudanças apontam para o fim da separação entre “tempo
de trabalho” e “tempo de viver”, uma tendência que acompanhava o processo
de racionalização, que transformou o trabalho concreto em abstrato. Há uma
tendência para o fim da divisão do trabalho, com o trabalho intelectual
acoplando-se ao trabalho manual, de maneira cada vez mais visível. As novas
e complexas tarefas remetem a um trabalho que se desmaterializa rapidamente,
cujos conteúdos se restringem à produção e gestão das comunicações, uma
passagem do mercado de tecnologia e produtos hardware para tecnologia e
produtos software.

239
A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico

Qual a nova cultura do trabalho? Para as autoras, essas mudanças


promoveram profundas transformações na esfera cultural, como a redefinição
de valores relacionados ao trabalho, às mudanças de status e de estilos de vida
dos indivíduos. No âmbito das empresas, houve mudança na organização do
trabalho e nas estruturas gerenciais, com flexibilidade em todos os níveis, tais
como nos salários, relações de trabalho, modelos de emprego, horário,
organização do trabalho e na aprendizagem de competências por parte dos
trabalhadores. Estas competências, denominadas “cultura empresarial flexível”,
se traduzem no nível de instrução geral, noções de gestão, elaboração e
transmissão de informações. Nas empresas, há uma tendência de diminuir a
complexidade estrutural, correspondendo à passagem de uma “cultura
disciplinar-analítica” para uma “cultura interdisciplinar sistêmica”, centrada
no desenvolvimento polifuncional.
Em outro texto, Chinelli e Paiva desenvolveram estudos relacionados com
o mercado de trabalho de transição, a partir do surgimento da informalidade
como uma das conseqüências postas pelas novas condições criadas pela
reestruturação produtiva, flexibilização e precarização das relações de trabalho.
Para as autoras, na visão clássica dos economicistas, a informalidade é uma questão
que se subtrai à fiscalidade, uma atividade ilegal cuja tendência seria a
formalização. Contrapondo-se a essa, outra abordagem seria considerá-la a partir
do surgimento das novas formas de inserção, quando passou a ser tratada com o
conceito de “mercado de trabalho de transição”, usado por Nashold (s/d), como
os serviços, as mudanças nos conteúdos e na cultura do trabalho, contribuindo
para o surgimento de novos padrões de consumo e estilos de vida.
Para Chinelli e Paiva, a redescoberta desse mundo do trabalho externo
ao mercado e mais complexo do que no modelo do assalariamento contribuiu
para a descrença nas análises monocausais, funcionalistas ou economicistas e,
desse modo, a-históricas. Outras matrizes interpretativas surgiram no final da
década de 1980 e na década seguinte, especialmente nos enfoques, considerados
exemplares, de Offe (1989), Mingione (1991) e Lautier (1994), que redefinem
a informalidade de espaço alternativo ao assalariamento como um processo
que se dá na dinâmica da reprodução social, com seus conflitos de legitimidade
na constituição da cidadania. Consideram que esses enfoques podem nos ajudar
a compreender que as diferenças nas formas de mobilização para o trabalho
estão baseadas em padrões distintos, mas sempre combinados, de interação
social, que Mingione denominou mixes singulares de “reciprocidade” e
“associação”, porque também há formas de coexistência conflitante de diferentes
mixes de sociabilidade.

240
PARTE III | A DÉCADA DE 1990

As novas formas de inserção podem ter caráter permanente, intencional


ou não. De um modo geral, quando são intencionais, tendem a formalizar-se,
como é o caso de jovens, aposentados precoces ou desempregados que não
conseguiram ingressar no mercado formal. Em outros casos, a informalidade
tem o objetivo de auferir renda complementar, não havendo tendência à
formalização.
Outra modalidade de análise da informalidade na década de 1990, é o
conceito de “mercados de trabalho de transição” , que são vistos, nos países
centrais, como mercados provisórios, incluindo iniciativas oficiais de geração
de emprego de curta duração. Essa perspectiva sustenta-se em um novo
paradigma da “política cooperativa do mercado de trabalho”, que se contrapõe
ao conceito de “política ativa do mercado de trabalho”, característica do pleno
emprego. O chamado “terceiro setor” também se inclui nesse modelo, como
uma estratégia para ativar o mercado secundário de trabalho, mal pago e sem
proteção social devido à perda dos direitos sociais.
A regulação pública ativa foi a saída encontrada por Dedecca (1997)
em suas análises a respeito do desemprego, da heterogeneidade e da regulação
no Brasil nos anos de 1990. Embora reconheça a necessidade de mudar o sistema
nacional de relações de trabalho, o autor acentua que essa mudança não
ampliará a dimensão ocupacional, que depende de outras variáveis, tais como
a recuperação da taxa de investimento e redução da desigualdade da
distribuição de renda. Essa mudança, no entanto, não deve priorizar a
flexibilidade do mercado de trabalho virtual, em sua relação com a
competitividade externa, caracterizada pela desregulamentação e pelo incentivo
da negociação coletiva por empresa. Deve fundar-se na “regulação pública
ativa”, que possa proteger o empregado da rotatividade e estimular as
negociações coletivas dentro de uma perspectiva de reverter o quadro de
desigualdade da relação entre capital e trabalho.
Como deve ser essa “regulação pública ativa”? De acordo com o autor,
trata-se de incluir um sistema público de emprego que possa articular o seguro
desemprego a programas de intermediação e qualificação de mão-de-obra.
Esse programa deve pautar-se no reconhecimento da heterogeneidade das
situações ocupacionais e do desemprego, refutando uma visão reducionista do
desemprego aberto, para uma real configuração do mercado de trabalho nacional
que possa orientar a implementação e a gestão de políticas públicas de proteção
e de estímulo ao emprego. Discorda, também, das análises existentes sobre
taxa de desemprego aberto, porque elas não conseguem captar o contingente
real de desocupação existente.

241
A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico

Coraggio (1997) se dedicou-se às questões relacionadas com a economia


popular, vendo-a na perspectiva de um projeto político-cultural, uma das
alternativas possíveis para o desenvolvimento humano nas últimas décadas.
Propõe considerar o desenvolvimento “humano”, contrapondo-o ao crescimento
econômico. Isso implica perceber como fundamentais as ações promovidas pelo
Estado, ou outras, de ação coletivo, que visam à melhoria das condições sociais
de vida, principalmente dos que não alcançaram os índices mínimos. Como
indicadores desse desenvolvimento “humano” devem ser considerados os
indicadores de eqüidade social e de qualidade de vida.
Para a viabilização dessa proposta, o autor aponta três vias como
estratégias de investimentos para uma sociedade que permanece sendo
capitalista. Essas vias devem ser desenvolvidas pelo Estado como formas de
“investir nas pessoas”, em capital humano, como melhorias na saúde, educação,
seguridade social e qualidade de vida. São elas: a) pela via fiscal para aplicação
em setores de bens e serviços de primeira necessidade, gratuitos ou subsidiados;
aplicação em obras de infra-estrutura, produtiva ou social, incorporando
desempregados; aplicação em seguro desemprego; b) investindo as rendas
recuperadas para subsidiar empresas públicas e associações sem fins lucrativos
nas áreas de educação, saúde etc., pensões e aposentadorias incluídas; c) usando
esse excedente captado como um fundo (parcialmente rotativo) de investimento
social, de forma subsidiada, para pequenas e médias empresas, trabalhador
individual ou cooperativados.
O autor indica, ainda, outra via, que pode ser integrada às anteriores e
de forma a superá-las: a economia popular. Essa quarta via é descrita como um
subsistema socioeconômico e cultural de produção e distribuição, fomentado
pelo excedente captado e redirigido a partir do Estado e das organizações da
sociedade, relativamente autônomo e autárquico, orientado estrategicamente
pela reprodução ampliada da vida de seus membros. Essa reprodução resultaria,
em parte, pelo consumo de sua própria produção, bem como pela captação de
maiores rendas em seu intercâmbio com o setor capitalista, e também por meio
de relações comunitárias e sociais e estilos de vida de outra qualidade. Sua
concepção baseia-se na visão da economia formada por três subsistemas
econômicos com suas lógicas próprias.
Será que essa alternativa de economia popular é viável? Para o autor,
mesmo sem substituir o sistema capitalista, vale investir como forma de
resistência e de aproveitamento das tendências à dualização. Aponta, também,
as dificuldades para sustentar sua legitimidade e viabilidade face do capital,
porque essa iniciativa requer tempo; deve ser acompanhada ideologicamente

242
PARTE III | A DÉCADA DE 1990

por seus próprios intelectuais, profissionais e técnicos; implica investir recursos


e consolidar redes que articulem tais empreendimentos; requer reformas
jurídicas e econômicas que possibilitem essas novas instituições econômicas.
Cabe ressaltar as dificuldades resultantes de uma cultura individualista
e consumista, da criação de necessidades pela manipulação simbólica da
propaganda, dos monopólios que controlam os meios de comunicação de massas,
que podem influir até nas disputas eleitorais, resultando na perda política da
soberania das maiorias. Nem o consumismo, nem a caridade são a via para um
cabal desenvolvimento humano.
As questões relacionadas mais diretamente com mulheres e o trabalho –
projetos de geração de renda foram a preocupação principal de Linhares e
Lavinas (1997), que tratam da situação das mulheres no mercado de trabalho
a partir das desigualdades existentes entre elas e o que as caracteriza como
um grupo cada vez mais heterogêneo, questões que geralmente não são
consideradas e que podem contribuir para tornar ineficazes as políticas de
emprego para as “mulheres em geral”.
A “mixidade” e a segmentação ocupacional por sexo ainda permanecem
como um desafio para as mulheres. Embora haja avanços, ainda se trata de um
processo muito lento, que necessita ser estimulado por meio de políticas ativas
de mercado de trabalho. As autoras ressaltam que algumas mulheres, com
nível universitário e mais experiência, têm desenvolvido atividades autônomas,
conseguindo um melhor posicionamento, tal como os indivíduos do sexo
masculino. O desassalariamento varia, assim, de acordo com o nível de instrução
das mulheres, penalizando mais aquelas com menor grau de instrução.
Para as autoras há necessidade de uma atuação junto ao mercado de
trabalho no sentido de garantir a mixidade; evitar o aumento do desemprego
feminino; usar a escolaridade das mulheres a seu favor. Fora do mercado de
trabalho stricto sensu outras iniciativas mais relacionadas com a regulação da
divisão sexual do trabalho podem ser empreendidas, como o trabalho das mulheres
um seus domicílios, em espaços não empresariais ou dentro deles. Apontam as
creches, escolas de tempo integral, serviços de atendimento à terceira idade,
entre outras alternativas inovadoras de emprego e de geração de renda para
mulheres, no sentido de eliminar as desigualdades de condições no mercado de
trabalho, que atualmente só é permitido para um grupo reduzido de mulheres.
Alguns projetos de geração de renda para mulheres de baixa renda no
Rio de Janeiro foram analisados por Abreu, Jorge e Sorj (1997) no sentido de
identificar a efetividade e os obstáculos encontrados para sua realização. Foram
observadas três experiências, no período 1993-1994, que explicitaremos, a seguir.

243
A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico

A primeira delas é o Banco da Mulher (Associação Para o


Desenvolvimento da Mulher), uma sociedade sem fins lucrativos para atender
pequenas produtoras, que já estejam em atividade como microempresárias, ou
não, com abrangência nacional. Foi traçado o perfil das mulheres, que é bastante
diversificado quanto à idade, nível de instrução, atividade desenvolvida,
moradia. O tipo de atendimento oferecido restringe-se às pessoas físicas, com
empréstimos a baixas taxas de juros, convênios para cursos de capacitação com
o SEBRAE, SESI, SENAI e universidades.
A segunda experiência é a Associação de Grupos de Produção
Comunitária – AGP, criada como uma ONG com atuação em nível nacional,
nos moldes das experiências realizadas nas décadas de 1970 e 1980, de um
projeto de geração de renda para a melhoria das condições de vida da
população. Visa capacitar e subsidiar os movimentos sociais urbanos na
perspectiva do associativismo crítico, do trabalho coletivo, do fortalecimento
de práticas democráticas para a construção de uma sociedade mais justa e
solidária.
A terceira, é a Cooperativa de Trabalho Artesanal e de Costura da
Rocinha Ltda. – COOPAROCA, uma cooperativa de artesãs da favela da
Rocinha considerada a experiência mais bem sucedida das três analisadas. O
perfil das participantes e a trajetória da experiência diferem muito das acima
relacionadas: tendo surgido com o apoio da CAMPO – Centro de Assessoria
ao Movimento Popular, obteve empréstimo do BNCC – Banco de Crédito
Cooperativo para a construção de sua sede, e se desligou da CAMPO em 1993.
Divulgou seus produtos em vários desfiles, nos meios de comunicação de massas
e se expandiu mais do que as outras experiências analisadas.
Para Abreu, Jorge e Sorj todos esses programas são formas alternativas
de trabalho e de geração de renda para pequenos produtores, com características
bem diferenciadas. O Banco da Mulher atende mulheres com melhor nível de
escolaridade do que os dos beneficiados pelos outros programas estudados e
possui uma visão empresarial não paternalista e individual da produção. Na
COOPAROCA, as mulheres de baixa renda são mais despreparadas para a
gestão do trabalho e, como uma cooperativa, se caracteriza por uma visão que
enfatiza o trabalho comunitário e empreendedor. Na AGP, são também mulheres
de baixa renda, que porém, conseguiram melhor nível de formalização do
trabalho e sucesso do empreendimento, porque articularam essa atividade
geradora de renda com conscientização e organização das comunidades. O
tipo de trabalho que oferecem, sem qualificação formal, concentra-se na
confecção e na alimentação, com tempo de trabalho parcial por causa das

244
PARTE III | A DÉCADA DE 1990

responsabilidades domésticas. Como entraves, apontaram a comercialização,


matéria-prima, recursos para equipamentos, qualificação e gerenciamento.
Qual deveria ser a política pública para setor informal, que tem poucas
possibilidades de atuar no mercado de trabalho formal? Sua efetividade pode
situar-se no diálogo com programas dessa natureza e pesquisas realizadas, para
identificar possíveis áreas de atuação que possam garantir as características
das atividades que essas mulheres já desenvolvem.
Enquanto Linhares, Lavinas, Abreu, Jorge e Sorj pesquisaram sobre as
mulheres de baixa renda, Paiva, V. et al (2001) desenvolveram seus estudos
sobre a classe média, como veremos, a seguir.
Como campos profissionais da “nova era capitalista”, Paiva, V. et al. (2001)
referem-se a algumas formas criadas pela classe média diante do desemprego,
como novos campos profissionais. Pauperizada e excluída do consumismo,
procura inovar e atualizar suas formas de relações com o mundo do trabalho,
de modo a conviver com as novas condições do mercado. Combinam seus estilos
de vida com criatividade, em formas de trabalho alternativo, criativo ou
prazeroso, de acordo com as opções pessoais possíveis.
Essas práticas surgem como uma saída para setores da classe média, em
sua nova condição de prestadora de serviços relacionados com os referenciais
de seu universo cultural, de seu estilo de vida. O auto-empresariamento é
uma forma de enfrentamento da precarização, do empobrecimento, da perda
de proteção social.
De acordo com as autoras, esse processo acelerou-se na década de 1990,
marcado pela assimilação de visões “alternativas” do mundo contemporâneo,
especialmente uma integração seletiva do Oriente pelo Ocidente, como uma
espécie de “orientalização do Ocidente”. São as terapias corporais, a
alimentação natural e as mancias, como a astrologia e o tarô – práticas que
eram realizadas como parte de um movimento reconhecido de contestação
cultural à sociedade industrial.
Foi nesse período que deixaram de ser uma forma de trabalho voluntário,
ou com remuneração simbólica, para se tornar práticas funcionais ao sistema,
oferecidas como prestação de serviços. Tornaram-se uma forma de
profissionalização de caráter público ou, como dizem as autoras, são os novos
percursos formativos que emergem nessa fase do capitalismo caracterizada pela
tendência do alternativo pela busca da legitimidade profissional. Destacamos,
a seguir, algumas dessas idéias e práticas que podem ter, ou não, uma “aura
místico-esotérica”, nas quais pode ser identificada a associação de uma proposta
de vida a uma proposta mercadológica, vinculada à visão da “ecologização” da

245
A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico

vida social: a) o alternativo e as terapias corporais: como a medicina tradicional


chinesa; b) o alternativo divinatório e as mancias (artes divinatórias); como a
astrologia e o tarô na terapia e no aconselhamento; os astrólogos como
profissionais da Nova Era; c) o alternativo alimentar, do produto natural à
sofisticação slow como uma alimentação natural curativa e preventiva: uma
perspectiva que articula alimentação e militância (macrobiótica, conversão e
iluminação); o slow food na contramão da padronização alimentar; a
alimentação natural como uma profissão da “nova era capitalista” etc.
Essas novas profissões aparecem como revalorização de práticas já
existentes, mas que não eram prestigiadas, e, agora nesta atual fase do
capitalismo, adquirem importância social. Portanto, a novidade reside na ênfase
e na amplitude dessas práticas alternativas, coletâneas da revolução da genética
e da biotecnologia.

2. As subjetividades e identidades dos trabalhadores


Dentre a totalidade dos artigos analisados, selecionamos aqueles que
mais diretamente tratam das questões relacionadas com a produção de
identidades e de subjetividades, como os estudos de Castro (1993), Vaitsman
(1995), Freitas (1999), Sainsaulieu (2001), Potengy, Paiva, V. e Castro (1999).
Refutando modelos abrangentes e universais como alternativa para
solução dos problemas dos homens na sociedade, os textos enfatizam a
necessidade de se considerar que as relações sociais passaram a ser marcadas
pela pluralidade e multiplicidade de modelos de agir. Apontam, assim, para a
existência de sujeitos coletivos e individuais, com diferenças que não devem
ser hierarquizadas, mas reconhecidas em uma sociedade democrática, na qual
possam ter oportunidades de realizar seu potencial de diferença.
Procuramos identificar as questões que esses autores priorizam em suas
análises e em suas abordagens das temáticas que selecionaram. Nesse sentido,
identificamos algumas concepções sobre o processo de produção de identidades
e de subjetividades: qualificação, diferença, “trabalhador flexível”, socialização
pelo trabalho e socialização alternativa.
Para Castro (1993), a questão da construção de identidades e de interesses
em grupos sociais específicos deve ser analisada a partir da qualificação como
uma dimensão fundamental na definição desses coletivos. Com essa visão, a
autora parte da hipótese de que a qualificação pode ser relevante na construção
de barreiras que delimitam o campo de reconhecimento, individual e coletivo,
de sujeitos com identidades pessoal e grupal, por fixar parâmetros para essas

246
PARTE III | A DÉCADA DE 1990

formas de identidades. Nessa direção, representa uma possibilidade de produção


de desigualdades sociais e de outras modalidades de diferenças, exploração ou
exclusão social, sem descartar a importância da análise de classes.
Embora a tradição dominante na Sociologia do Trabalho no Brasil tenha
privilegiado as classes e as lutas de classes, a autora aponta a importância de
se considerarem outros coletivos atuantes, a partir dos estudos surgidos sobre
as relações sociais de gênero e as relações raciais, que indicam a formação de
novos coletivos atuantes, com suas formas discursivas, práticas sociais e
identidades. Ressalta que essa percepção significa o reconhecimento de sua
relevância para a criação de interesses e identidades coletiva, para além da
análise das lutas de classes.
O mundo do trabalho representa um dos lugares da produção e regulação
política de relações sociais, que são sustentadas pelas representações subjetivas
coetâneas com a produção de bens. Nele, as esferas da economia, da política e
da cultura são produtoras de significados e de ações historicamente
interdependentes e com valor heurístico equivalente. Castro repensa a categoria
sujeito e o estatuto da subjetividade na explicação das relações sociais na
produção, apoiando-se em duas questões: a) a ressignificação da noção de
“objetividade” para além do âmbito econômico (da natureza das forças
produtiva), passando a ser vista como todas as relações sociais, espaços de
possibilidades e de escolhas, por meio das quais os atores (individuais ou
coletivos) determinam objetivos, identificam alternativas e selecionam
percursos para a ação; b) a falência das formulações essencialistas sobre a
natureza dos sujeitos, comprovada pela pesquisa empírica e experiência histórica
de que algumas instâncias podem atuar como precedentes na determinação
das identidades (como, por exemplo, a condição de classe ou a percepção da
exploração, no caso dos trabalhadores fabris).
Dentre as várias concepções de qualificação, a autora destaca três:
conjunto de características que se expressam nas rotinas de trabalho; grau de
autonomia do trabalhador e grau de controle gerencial; base para assumir
posições em hierarquias de status. Dessas, a primeira tem sido a mais usada
pelas organizações que utilizam representações sistemáticas e formalizadas das
tarefas e as habilidades por elas requeridas. Cabe ressaltar, porém, que essa
concepção contribui para considerar “requerimento da tecnologia” o que é
resultado de uma construção sociocultural complexa. A concepção de
qualificação deve ser vista como socialmente construída, descartando outras
com viés objetivista e reificador, que a circunscreve na tecnologia como
qualificação de “um posto de trabalho”.

247
A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico

Os sistemas de classificação usados para o acesso e permanência nos


postos de trabalho também se fundamentam em outros critérios, que incluem
marcas de identidades que acompanham os indivíduos (como o sexo, a cor ou
a idade), promovendo sua inclusão ou exclusão, como afirma a autora. Destaca
a diferença entre “qualificação do posto de trabalho” e “qualificação do
trabalhador”, uma vez que os padrões de qualificação são resultado e processo,
ao mesmo tempo. Resultado, porque são qualidades ou credenciais dos
trabalhadores. Processo, porque a qualificação é socialmente construída nos
processos artificiais de delimitação e classificação de campos; depende tanto
dos costumes e da tradição, como da organização coletiva que a sustenta,
como corporações ou outros coletivos.
Questões dessa natureza contribuem para evidenciar a necessidade de
se politizar a discussão das lutas e dos conflitos entre classes, no campo político-
institucional da luta sindical, a respeito de como a representação das
qualificações está presente nos discursos e nas práticas entre gerências,
trabalhadores e sindicatos. Castro salienta que uma dimensão dessa politização
reside nas tensas relações intraclasses, nas barreiras de exclusão social tecidas
entre os próprios trabalhadores, a partir das credenciais que definem os
qualificados, com as quais defendem as suas posições. Essas estratégias coletivas
dos trabalhadores são complexas, competitivas, multidirecionadas e não
necessariamente classistas. Trata-se de identidades construídas na produção e
reprodução das barreiras de acesso a mundos, cujas definições são social e
culturalmente construídas, mas politicamente praticadas.
Outra dimensão de análise desenvolvida por Vaitsman (1995) destaca a
questão da diferença, da emergência do “outro” na produção de identidades e
de subjetividades. Retoma a subjetividade não só como elemento constituinte
do conhecimento, mas como indicativo do surgimento de novas modalidades
de expressão das relações sociais. Situa a discussão a respeito da valorização
da subjetividade na sociedade pós-moderna como eixo de um novo paradigma
de conhecimento, em oposição ao paradigma tecno-econômico cuja ênfase
recai na produtividade. Apoiada em Lyotard (1979), questiona a legitimidade
dos discursos totalizantes e universalistas por se restringirem à racionalidade
das categorias sociais dominantes no mundo ocidental, contrapondo os conceitos
de unidade, geral e universal às idéias de pluralidade, particular e local, próprios
do pós-modernismo.
No que se refere ao conhecimento, a autora destaca a emergência de
uma pluralidade de discursos e teorias no sentido de dar conta da complexidade
da sociedade atual. Na ciência, o conhecimento científico deixou de ser tratado

248
PARTE III | A DÉCADA DE 1990

como “representação exata” da realidade, como um “espelho” da natureza,


passando a ser visto como uma forma de representação da realidade, entre
outras possíveis. Nas relações sociais, aponta os movimentos de afirmação de
identidades raciais, sexuais, locais etc. para denunciar a dominação de uma
razão branca, masculina, burguesa e ocidental, que contribui para a
discriminação e exclusão de indivíduos e de grupos sociais. Promove, sob a
neutralidade, o silenciamento de distintas categorias de “outros”, excluindo
as diferenças entre os sujeitos.
Além disso, a autora nos lembra que nas últimas décadas, as
transformações decorrentes da globalização da economia e da unificação do
mercado mundial, entre outros fatores, podem ter contribuído para um processo
de homogeneização. Por outro lado, essas novas condições também podem ter
propiciado um processo de heterogeneização, com o surgimento de um novo
modo de expressão das subjetividades baseada na idéia da “diferença”.
Dialeticamente, essa tendência de “homogeneização” universalizante e
reducionista da subjetividade, ao lado de uma tendência de “heterogeneização”,
reforçou a heterogeneidade e a diferença.
Esse quadro, na visão da autora, permite antever pelo menos dois efeitos
políticos para os novos movimentos sociais. Um deles reside na impossibilidade
de um projeto mais amplo, global, do individuo universal que homogeneiza os
diferentes sujeitos, excluindo as diferenças entre eles. O outro, nas novas formas
de atuação no mundo, fundadas na idéia e prática da afirmação das diferenças
como condição na conquista e na institucionalização da igualdade. As diferentes
categorias sociais tornaram-se sujeitos políticos, que não podem mais ser vistos
a partir de um projeto global universalizante.
Outra perspectiva na produção de identidades e de subjetividades pode
ser encontrada em Freitas (1999), que analisa o redimensionamento da ciência
e da tecnologia e os impactos produzidos não apenas nas políticas de educação
profissional do Governo FHC, mas em todas as esferas da vida humana, nos
níveis individual e social.
Discute aspectos decorrentes da concepção do chamado “trabalhador
flexível”: o novo perfil de trabalhador adotado no contexto do capitalismo das
últimas décadas, que transfere a questão social da formação educacional e
habilitação profissional para o plano individual, priorizando interesses do capital
especulativo. Ressalta que o Estado não interfere apenas nos mercados
econômicos, mas, por haver um capitalismo de Estado, há, também, o controle
e a manipulação de todo o social, incluindo-se aí a formação cultural dos
homens, que se dá no plano das subjetividades.

249
A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico

Freitas critica as propostas de formação profissional do Governo FHC,


centradas no paradigma técnico-científico, como resultantes de processos
reguladores em níveis macrossociais visando ao “disciplinamento” dos indivíduos,
no processo de reestruturação do Estado. Essa política educacional fundamenta-
se no tripé ciência, tecnologia e educação para a formação profissional, e reedita
enfoques e práticas ultrapassadas e conservadoras.
O autor considera importante o que chamou de “renovação” da questão
do sujeito na contemporaneidade, bem como suas conseqüências, para repensar
o papel das Ciências Sociais e Humanas. Nessa direção, aponta a necessidade
de questionar a “pedagogia científica” (de natureza dogmática, positivista e
de cunho “instrumental”) presente nos discursos oficiais sobre formação
educacional, que supervaloriza os meios e as metodologias em detrimento dos
fins da prática pedagógica. Dessa forma, contribui para reificar o papel do
conhecimento técnico-científico nas sociedades modernas.
A saída apontada por Freitas, diante do processo de mundialização da
economia, com o advento dos “supermercados da informação e do consumo”
reais e virtuais, implica pensar de forma complexa e multidisciplinar a ética e
a política, radicalizando o sentido da autonomia e do direito à subjetividade
nos processos instituintes que se dão na escola e no espaço social mais amplo,
no horizonte de consolidação da democracia.
Para o autor, uma política de formação profissional deve ser orientada
para fazer emergir uma formação cultural para a autonomia e liberdade dos
sujeitos. Os sentidos e significados da educação e da escola na sociedade devem
incorporar as categorias analíticas do imaginário social (Castoriadis, 1982) como
possibilidade de identificar os significados e os sentidos sociais presentes em
uma determinada cultura, os quais podem informar os processos de escolarização
e de qualificação profissional. Não há lugar para um “novo” paradigma
totalizante para os projetos de formação profissional, porque os padrões técnico-
cientificos não são transparentes e não podem ser fixados, a priori, em legislação
educacional ou em estratégias de planificação com o intuito de promover o
equilíbrio do funcionamento do processo histórico de uma sociedade.
Outro autor, Sainsaulieu (2001), aborda a concepção da socialização
pelo trabalho analisando a produção da identidade no trabalho ao longo do
processo de crescimento econômico, destacando sua importância como forma
de acesso ao reconhecimento dos indivíduos como atores sociais no e pelo
trabalho. Situa o fracasso da socialização pelo trabalho no interior da crise
instalada desde o início da sociedade pós-industrial, agravada com a crise
atual. Nesse contexto, estes processos de socialização se modificaram devido à

250
PARTE III | A DÉCADA DE 1990

articulação com outras experiências resultantes de atividades realizadas fora


da empresa.
Resumindo as várias modalidades de reconhecimento dos indivíduos na
experiência identitária da modernização, que remonta à década de 1930, o
autor destaca que foram orientadas por duas finalidades: a recomposição das
profissões e a gestão dos recursos humanos. Os percursos profissionais e
implicações na empresa foram mais priorizados do que a ação coletiva de
oposição, que se tornou defensiva em face das ameaças do desemprego.
Na década de 1990, reduz-se essa experiência identitária com o
descrédito em relação à empresa, aos empregos precários, desemprego etc. De
acordo com os estudos de Dubar (1991), as jovens categorias de diplomados
passaram a vivenciar uma experiência de autonomia e de independência apoiada
nas capacidades profissionais que podem ser transferidas de uma empresa para
outra. Uma nova experiência de socialização foi construída nessa mobilidade
profissional. Esse conceito de identidade fundamenta-se no processo de
permanentes “transações” entre as imagens do passado e as do futuro, que os
outros indivíduos apontam. A trajetória profissional emerge como um fator de
socialização pelo trabalho e também de pertencimento à empresa.
Estaríamos vivenciando uma sociedade em busca de sujeito? Para o autor,
na sociedade atual há uma fratura social devido à crise do emprego, porque a
empresa perdeu a função de socialização pelo trabalho que vinha desenvolvendo
ao longo da história, de contribuir para a definição social dos indivíduos. As
novas condições resultantes da privatização generalizada da economia, da
mundialização da concorrência e da redução do tempo de trabalho assalariado
contribuíram para uma mudança dos parâmetros identitários do trabalho para
outro parâmetro, o de simples atividades voluntárias.
Para Sainsaulieu, uma leitura organizacional da produção das identidades
pressupõe a existência de quatro “princípios identitários”, como sendo as vias
privilegiadas de afirmação da identidade pelo trabalho: a obra, o pertencimento,
a trajetória e a resistência. Esses “princípios identitários”, porém, se modificaram
na sociedade contemporânea.
A “obra” passou a ser a busca de competências múltiplas que possam ser
transferidas da esfera do trabalho para o espaço das atividades paralelas associativas
e voluntárias. Nessa nova situação, a gestão das competências passou a substituir
a gestão do emprego e do futuro profissional. A “trajetória”, identificada na gestão
de projetos, dentro e fora do trabalho, para a formação de adultos visando a sua
orientação e à redefinição de projetos de vida; no outro extremo, os problemas da
inserção pessoal e de outros indivíduos. O “pertencimento” não se refere mais à

251
A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico

empresa vinculada ao mercado, mas a um tipo de economia solidária que


possibilita um hibridismo de recursos mercantis, estatais e voluntários, em
empresas e em outros ambientes locais e institucionais. A “resistência” pode
advir da revolta de setores dentro da empresa sobre questões relativas à defesa
de uma elaboração coletiva das políticas da empresa.
Desse modo, o autor conclui que o mundo do trabalho não tem mais a
centralidade na produção da identidade do trabalhador, porque não consegue
impedir a exclusão de assalariados qualificados, ainda que algumas empresas
se tenham reestruturado modernizado e melhorado seu desempenho.
Em decorrência da crise social e dos processos de modernização, aponta
para outra conceituação identitária pelo trabalho, como resultado da ampliação
dos fenômenos de mobilidade e de transição entre um passado e um futuro,
que se dão nas interações e relações sociais de produção. Há uma mudança na
perspectiva do trabalhador, de ator estratégico em um sistema organizado para
a dimensão atual, na qual se acrescenta a capacidade transacional baseada na
experiência da trajetória profissionalizante. A empresa participa, assim, de uma
dupla socialização, organizacional e profissional.
Ressalta, porém, que, com o desemprego crescente, a produção das
identidades pelo trabalho deve considerar outras dimensões, tais como os
múltiplos investimentos em atividades profissionais e pessoais, em suas atividades
exteriores ao trabalho.
Finalmente, a concepção da socialização alternativa no processo de
produção de identidades e de subjetividades foi desenvolvida por Potengy,
Paiva V. e Castro (1999).
Como analisamos, o trabalho assalariado vem perdendo sua capacidade
como definidor de identidades, pela terceirização, pela precarização das relações
de produção e pelo crescimento do setor terciário. Para Offe, a crise da
socialização no trabalho promoveu a perda da sua centralidade na vida dos
indivíduos. Nessa direção, Potengy, Paiva e Castro investigaram as
conseqüências da fragmentação do espaço social na organização de identidades
coletivas, e do surgimento de novas outras modalidades de socialização
alternativas, tais como o engajamento associativo, as solidariedades familiares,
religiosas e de vizinhança, os grupos de interesse, as “tribos urbanas” etc.
Gorz (1988) cunhou a noção “nova domesticidade” para indicar os empregos
em atividades de serviços das sociedades pós-industriais, como em restaurantes,
fast foods, segurança, cuidados pessoais, portarias, hotelarias etc., nos Estados Unidos
e na Inglaterra. Essa concepção evidenciou a necessidade de considerar a dignidade
do trabalho e a socialização pelo emprego, no contexto social em que se realizam.

252
PARTE III | A DÉCADA DE 1990

No Brasil, com o crescimento do setor terciário, ou “nova


domesticidade”, há uma mudança no papel do Estado e de setores organizados
do empresariado que influi na “construção/reconstrução da categoria
trabalho”, bem como na valorização das atividades manuais. Trata-se do
“trabalho por conta própria” e do “pequeno empresário”: o trabalhador não
vende sua força de trabalho diretamente ao capital, mas, como indivíduo
empreendedor, por meio de uma empresa, vende serviços a outras empresas
ou presta serviços variados. A novidade não reside na originalidade dessas
alternativas, mas na legitimidade conferida pelo apoio governamental e
empresarial a essas formas de inserção no mercado de trabalho, que não
atendem aos direitos previstos na legislação trabalhista.
Se o trabalho assalariado não é mais definidor de identidades, quais os
novos elementos estruturantes na conformação de identidades? Para as autoras,
o consumo vem-se tornando um elemento importante na conformação de novos
estilos de vida, identidades e hierarquias sociais. As novas demandas são
responsáveis pelo consumo, simbólico e de produtos, cada vez mais
personalizados e diversificados. Além disso, há que considerar o papel da mídia
na definição do consumo, dos valores, do uso do tempo livre. Essas formulações
retomam o conceito de Weber (1987), de que os estilos de vida são responsáveis
pela definição de status. A essa concepção foi introduzido um elemento que
antes não havia sido considerado, o consumo.
O consumo não é um simples reflexo da produção, mas transcende a
esfera das relações econômicas para atingir as relações sociais, atuando na
definição de hierarquias sociais e na estruturação de novas identidades, de
acordo com a teoria de Featherstone (1995). O consumo vai além da concepção
restrita de suprir as necessidades imediatas, devido ao aspecto “duplamente”
simbólico das mercadorias nesta sociedade, o que nos permite falar em “fetiche
da mercadoria”. A mercadoria pode ser usada para marcar diferenças de estilo
de vida, status social, assim como no sentido de diluir essas barreiras.
Há uma relação entre o consumo e a existência de múltiplas cidadanias
na constituição de novas identidades, a partir da idéia da “cidadania cultural”,
que é a cidadania racial, de gênero, ecológica, e assim por diante, como
resultado dos movimentos das minorias em prol da igualdade de direitos e de
respeito às diferenças, segundo Canclini (1995). As nações se tornaram cenários
multideterminados pela interpenetração de sistemas culturais que se cruzam.
O multiculturalismo não representa apenas as diferenças locais; vai além das
fronteiras nacionais. O consumo expressa formas de pensar, de escolher e de
reelaborar o sentido social. Desse modo, o ato de consumir representa um dos

253
A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico

caminhos que define uma nova maneira de ser cidadão. Representa um dos
elementos estruturantes dos grupos sociais, sua forma de demarcar um lugar
na sociedade no leque de escolhas que o mercado oferece, criando seus novos
estilos de vida.
Como então definir a identidade nesta passagem de século? Para as autoras,
as identidades estruturam-se a partir de uma gama variada de inserções do indivíduo
na sociedade. Pertencer não decorre somente do exercício de uma profissão ou do
saber fazer, mas pode estar relacionado com diferentes visões de mundo e até com
o imaginário do mundo pós-moderno, marcado pela individualidade e por um forte
apelo da imagem. Pode, ao contrário, não ter nenhuma relação com essas visões e
ser, apenas, uma entre as múltiplas possibilidades de escolha pelas quais optaram
os novos grupos, com suas práticas culturais.
Além do consumo, há uma relação entre estilos de vida e formação de
identidades. Bourdieu (1984) abordou essa questão a partir do gosto, como
matriz e conseqüência de identidades e estilos de vida: as diferenças entre as
classes sociais não se restringem à esfera econômica, mas também derivam das
formas culturais que se manifestam no comportamento e nos padrões de gosto,
havendo relações sistemáticas entre elas.
Os estilos de vida são resultantes de muitos fatores. A educação fornece
o capital cultural como distinção social. Temos, ainda, a moradia e o estilo de
morar, de vestir, de comer, de se comportar em diferentes situações etc. As
possibilidades de escolhas de consumo dependem também do estilo de vida,
do fluxo etário (como o aumento do número de idosos e de aposentados), que
variam de acordo com os diferentes países.

3. Considerações finais
A leitura dos textos evidenciou as diversas perspectivas de análise
adotadas pelos diferentes autores a respeito da nova cultura do trabalho, no
que se refere às subjetividades e novas identidades dos trabalhadores na
sociedade contemporânea. Devido aos limites da natureza deste tipo deste
trabalho, a densidade dessas contribuições não foi contemplada em sua
totalidade, embora seja um indicativo de sua relevância.
Há um importante elo entre os trabalhos analisados: a idéia de que essa
fase de transformação histórica na organização técnica, social e política do
capitalismo, especialmente nas duas últimas décadas, com a globalização,
contribuiu para as transformações do mercado de trabalho e do emprego,
acentuando o contingente de excluídos. Houve crescimento econômico, mas

254
PARTE III | A DÉCADA DE 1990

não houve o desenvolvimento humano concomitante, tal como prometia um


dos paradigmas da modernidade.
Outra idéia que permeia as pesquisas diz respeito ao fato de que a
reestruturação produtiva produziu fragmentação e heterogeneidade dos
mercados de trabalho, o que pode, ao lado de outras questões, ter influenciado
o processo de produção de identidades e de subjetividades, com implicações
importantes para a educação.
Nessa direção, são apontadas as novas formas de organização do trabalho
formal/informal surgidas na década de 1990, como uma reconfiguração no
conteúdo, na forma e na cultura do trabalho – uma nova cultura do trabalho –
no contexto da chamada “sociedade pós-industrial”. Trata-se da “sociedade
de serviços”, denominação que melhor caracteriza esse espaço social, esses
novos contextos culturais, atividades e estilos de vida.
Uma nova conformação dos espaços contemporâneos de trabalho ocorreu
tanto na organização empresarial como nos novos modelos de emprego. Em
decorrência das mudanças nas formas de organização do trabalho, houve profunda
modificação na natureza das relações de trabalho tornando-a menos personalizada,
com o aumento dos níveis de precarização e exploração do trabalho baixa
remuneração, degradação da qualidade das tarefas executadas, enfim, a
qualidade social do emprego e a dignidade do trabalho já não garantem mais a
integração social pelo trabalho. Para o enfrentamento do desemprego crescente,
foram criadas formas alternativas no contexto da globalização, tais como as
experiências relatadas de economia informal para geração de renda para mulheres
de baixo estrato social e para setores da classe média urbana precarizada.
As transformações do mercado de trabalho e do emprego nas últimas
décadas contribuíram para a crise e a produção de identidades e de
subjetividades. Antes, o emprego assalariado era o principal elemento de
integração profissional, contribuindo para a produção de identidades sociais e
de status . Atualmente, devido a essas novas configurações de inserção no
trabalho, o emprego não pode mais ser assim considerado; a tendência para
uma sociedade de serviços dificulta que identidades sistematicamente
estruturadas possam ser construídas no trabalho. A fragmentação do espaço
social trouxe implicações para a produção de identidades coletivas e para o
surgimento de novas formas de sociabilidade. Contrapondo-se à forma que era
construída pelo trabalho assalariado, surgiram outras modalidades de
socialização alternativas já descritas.
Nesse quadro, mesmo que os contextos sociais se tenham modificado,
ainda permanece o papel da empresa no reconhecimento social dos indivíduos,

255
A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico

concorrendo para a socialização secundária das mulheres e dos homens. Por


outro lado, todo processo de produção da identidade significa a constituição
social do sujeito da ação. A falta de uma clara definição dos parâmetros sociais
pode dificultar ao indivíduo ter o sentimento de sua permanência, enfim, de
sua identidade como ator na sociedade.
Os desempregados não possuem mais uma referência pelo qual se possam
identificar com uma posição social, que não é mais o emprego. Os sindicatos
perderam o poder de interferir nas demissões, as trajetórias ficaram inviabilizadas.
Os indivíduos ficaram reféns de mobilidades erráticas que emergem,
principalmente, das políticas de flexibilidade no contexto da mundialização
financeira.
Entre outros desafios que essa realidade rebelde nos coloca, talvez seja
importante desenvolver pesquisas no sentido de apreender a emergência de novas
modalidades sociais de produção da identidade nessa sociedade de excluídos
pelo desemprego, diante do enfraquecimento das instituições primárias – a escola,
a família, a religião – como modalidades de socialização primária.

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PARTE III | A DÉCADA DE 1990

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257
A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico

258
PARTE III | A DÉCADA DE 1990

CAPÍTULO 5 | A REFORMA DO ENSINO MÉDIO TÉCNICO:


CONCEPÇÕES, POLÍTICAS E LEGISLAÇÃO

ANTONIO FERNANDO VIEIRA NEY

Introdução
Este texto focaliza a reforma do ensino técnico de nível médio do final
da década de 1991, tendo por objeto investigativo a materialização da política
educacional do Governo FHC para a educação profissional.
A concepção dual da reforma do Ensino Médio e Técnico, o embate
entre a perspectiva humanista e a visão mercantil das competências, a reformar
curricular, a educação tecnológica e a nova legislação são os principais temas
desse período.
O estudo desenvolveu-se em três fases: a) leitura e análise dos 36 artigos
selecionados e citados na bibliografia; b) estruturação da pesquisa em função
de um modelo didático que facilitasse o entendimento das reformas
educacionais do período; e c) o enriquecimento da pesquisa com obras
complementares específicas para o esclarecimento do ocorrido no período, de
modo a não excluir ou limitar o estudo realizado.
Os artigos, embora envolvendo o período, abordam a reforma educacional
de acordo com eixos temáticos diversificados, ou seja, procuraram analisa-la sob
aspectos diferenciados. Assim, temos 14 artigos envolvendo a reforma educacional
com relação à educação profissional e à educação tecnológica/politécnica; oito
artigos relacionados à política, desenvolvimento, ciência e tecnologia e seus
impactos sobre a formação do trabalhador no geral; cinco artigos sobre o Sistema
Nacional de Educação e a reforma educacional realizada na rede CEFET; quatro
artigos sobre o cenário e a situação do Ensino Técnico de nível médio na área de
Saúde; três artigos sobre o Ensino Médio e Técnico na América Latina e,
finalmente, três artigos sobre a reforma educacional no SENAC.
Estes eixos temáticos não dão conta de toda a amplitude da reforma, não se
encontrando, por exemplo discussões que envolvessem aprofundamentos sobre os
Referenciais Curriculares elaborados pelo MEC, bem como a questão das
certificações profissionais e acadêmicas previstas no Decreto Federal n. 2.208/97,

259
A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico

nos pareceres CNE/CEB n. 17/97 e n. 16/99, e na Resolução CNE/CEB n. 04/


99, assuntos de observação obrigatória pelos que pretendem pesquisar as reformas
do período. Pressupõe-se que essa omissão nos artigos pesquisados seja fruto
do fato de os Referenciais Curriculares só terem sido divulgados em 2000, bem
como que a regulamentação dos sistemas de certificações esteve em estudos
durante todo o período.

1. Justificativas para a reforma educacional


A reforma do Ensino Médio e Técnico do final de 1990 surge
fundamentada nos seguintes argumentos: a) a necessidade de expansão da
oferta de vagas no Ensino Médio; b) a adequação da formação profissional aos
novos perfis profissionais exigidos pelo mercado de trabalho; c) a idéia de que
o processo de formação profissional deve deixar de ser estático (obtido de uma
única vez com a qualificação profissional) e passar a ser contínuo (a questão
da educação continuada); d) a crescente demanda do nível de escolaridade
do trabalhador em função das novas tecnologias e dos novos processos
produtivos; e) o desaparecimento de uma série de ocupações profissionais sem
que o trabalhador tenha condições de ser re-profissionalizado; f) a transformação
das escolas técnicas de qualidade, os CEFETs, por exemplo, em preparatórios
para vestibulares de alunos oriundos das elites, deixando de cumprir sua missão;1
e g) o alto custo de uma escola técnica para oferecer basicamente a parte
acadêmica do Curso Técnico de segundo grau, ou seja, em razão da preparação
para o vestibular dos alunos citados na letra f, os laboratórios e oficinas das
escolas acabam ficando subutilizados. (Castro, 1995). A influência de Cláudio
de Moura Castro nas proposições do Ministério da Educação com relação à
educação profissional e nas atribuições a serem desempenhadas pelas escolas
técnicas e CEFETs são destacadas por Ferreti (1997) e Cunha (1998).
Carneiro e Maia (2000: 93) complementam a idéia, afirmando que:
(...) a diretriz da educação tecnológica básica extrapola o conhecimento da
natureza dos processos produtivos endogenamente considerados e avança sobre
as próprias formas de organização da produção contemporânea, envolvendo:
os novos contextos e possibilidades para o planejamento, o desenho, a produção,
o “marketing” e a distribuição de produtos e serviços.

1
A missão primordial de uma escola técnica é formar técnicos de nível médio, mas não a preparação de
alunos para o vestibular, segundo a visão de Castro (Cunha, 1997).

260
PARTE III | A DÉCADA DE 1990

Esses autores explicam, em função dessa necessidade, que a base para a


construção de um perfil multifuncional de um cidadão produtivo está no
princípio do aprender a aprender, e que o processo produtivo taylorista-fordista
está ultrapassado e em vias de extinção. O homem formado para as “profissões
ensinadas” (expressão de Cláudio Moura Castro), como ocorre no taylorismo,
deve ser substituído, pois fatalmente não terá mercado de trabalho em futuro
próximo. O trabalhador contemporâneo deve ser polivalente e flexível, capaz
de transitar e de “navegar” nas várias atividades do “novo processo produtivo”,
que vai desde o planejamento até a distribuição, como descrito por Carneiro e
Maia. Do exposto e da reflexão sobre o contexto socioeconômico e a crise da
educação, eles apontam para a importância da reforma da educação do Ensino
Médio e Profissional empreendida pelo Governo FHC. Entretanto, como afirma
Kuenzer (1999: 1); “quanto mais se simplificam as tarefas, mais se exige
conhecimento do trabalhador, e não mais relativo ao saber fazer, cada vez menos
necessário”, o que ela aponta como contraditório. Nossa análise tem como
propósito essencial verificar tal contradição e apontar questões a serem
discutidas a respeito desse embate.

2. O dualismo da reforma do Ensino Médio e Técnico


A educação no Brasil sempre foi marcada pelo dualismo entre a educação
propedêutica (acadêmica) para as elites e o ensino profissional para os
trabalhadores (Moraes, 1994; Ignácio, 1999; Ferreti e Silva Junior, 2000).
Logicamente, tal dualismo é fruto da própria formação histórica e social do
país, pois, até o início de nossa República, o trabalho era visto como atividade
de escravo, sendo vergonhoso para um homem livre exercê-lo. Trabalho manual
era sinônimo de trabalho não intelectual.
A industrialização do país muda esse cenário devido à necessidade de
mão-de-obra qualificada para atender à “complexificação da maquinaria”.2
Assim nasce a valorização do trabalho do homem brasileiro, e o ensino
profissional deixa de ser para delinqüentes, abandonados, miseráveis e órfãos
passando para os jovens em condições de atender aos requisitos da produção
taylorista (Cunha, 2000a).3

2
Expressão utilizada por Cunha.
3
A mudança do sentido da formação profissional de assistencialista a desvalidos para a efetiva formação
de um trabalhador para a indústria só ocorre após o fracasso da política de importação de mão-de-obra
estrangeira, que não tinha interesse em ensinar seus ofícios aos jovens, além de ter o “hábito” de
realizar movimentos reivindicatórios, o que não interessava ao governo brasileiro e aos empresários.

261
A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico

Lima e Santos (1998: 46) destacam, em “Considerações gerais sobre o


Projeto de Lei n. 1.603/96” que:
A concepção norteadora do PL 1603 denuncia, também, a retomada da visão
dicotômica entre trabalho intelectual e trabalho manual, ao reforçar historicamente
a dualidade de ensino, instituída no Brasil desde a ditadura de Vargas, a partir da
qual se procura diferenciar ensino para trabalhador e ensino para elite.

A estrutura do sistema de ensino, instituída na década de 1940, irá


permanecer com a marca desse dualismo (propedêutico e profissional) até a
LDB-1961,4 quando é constituído o efetivo reconhecimento de igualdade entre
os cursos de nível de segundo grau, passando todos a ter o direito de ingressar
em qualquer curso superior, e não apenas naqueles ligados a sua área de
conhecimento. Trata-se de uma completa equivalência entre cursos de nível
de segundo grau.
A LDB-1971, embora constituindo o “maior fracasso em termos de
educação no Brasil” (Cunha, 2000a), que foi a profissionalização compulsória
em todo o segundo grau 5 , apresentou a integração entre o nível médio e a
formação profissional (atual Educação Profissional). Assim, essa integração
entre o Ensino Médio e a Educação Profissional permanecerá até a reforma do
final da década de 1990 quando o Governo FHC promove a reforma atual.
A nova LDB n. 9.394/96 e o Decreto Federal n. 2.208/97 romperam essa
integração sob as justificativas apresentadas inicialmente. Assim, o aluno fica
com duas opções de se profissionalizar no Ensino Médio. A primeira é, após o
Ensino Médio, cursar a Educação Profissional (tipo pós-médio); a segunda é
cursa-los concomitantemente a partir do segundo ano do Ensino Médio. Esta
última opção obriga o aluno a matricular-se em duas escolas: a de Ensino Médio
e a de Educação Profissional, já que as escolas que ministram o Ensino Médio
não podem oferecer a Educação Profissional.
Cunha (2000b) faz um estudo sobre as reformas educacionais no Brasil,
Argentina e Chile, em que destaca a tendência apontada por Ramón Casanova

4
Os cursos do segundo ciclo (Ensino Médio) eram divididos em: Curso Colegial Secundário, Curso
Normal, Curso Técnico Industrial, Curso Técnico Comercial e Curso Técnico Agrícola. Só o primeiro,
porém, dava direito ao aluno de prosseguir seus estudos em qualquer curso de nível superior; aos
demais só eram permitidos os cursos vinculados a sua área de conhecimento. Exemplo, o término do
Curso Técnico Agrícola só credenciava a cursos superiores na área da Agricultura.
5
A Lei n. 7.044/82 alterou a Lei n. 5.692/71 retirando a obrigatoriedade da habilitação profissional
compulsória no segundo grau.

262
PARTE III | A DÉCADA DE 1990

de “homogeneização das referências intelectuais e técnicas em toda América


Latina”, produzida pelo Banco Internacional de Reconstrução e
Desenvolvimento – BIRD ou Banco Interamericano de Desenvolvimento –
BID. Na realidade, Cunha apresenta, do documento “Educação técnica e
formação profissional” (BIRD, 1992), um importante item denominado
“separação da educação e da capacitação”. Tal separação, segundo o BIRD,
deve ser realizada em virtude de educação e capacitação possuírem demandas
diferenciadas.
Ele conclui que as maiores reformas nos três países analisados foram na
educação intermediária, com uma tendência de modularização de cursos técnico-
profissionais, “como um imperativo da flexibilização, entendida como solução
para a articulação dos currículos com o mundo do trabalho e a adaptação do
currículo às características individuais do aluno” (Cunha, 2000b: 67).
Em resumo, a separação imposta pela reforma educacional nos três países e
desejada pelo Banco Mundial reforça o dualismo histórico. No Brasil recriou
praticamente um sistema de educação profissional paralelo ao sistema propedêutico
de formação para o ensino superior capaz de operacionalizar esse dualismo.

3. A nova visão

3.1. Aspectos fundamentais da reforma


O primeiro aspecto a ser comentado refere-se à separação do Ensino
Médio da Educação Profissional. Não há dúvidas de que a educação média
brasileira deveria sofrer reformas; as escolas e outras instituições já discutiam
em diversos congressos e seminários alternativas de solução; a tendência para
a Educação Politécnica (Tecnológica) era, aliás, muito forte na década de
1980. Entretanto, a reforma surge como um ato de imposição do governo no
sentido de colocar a Educação Profissional subordinada ao mercado de trabalho
e obedecer aos ditames do neoliberalismo (Del Pino, 1995).
Moraes (1994: 580) afirma:
O entendimento de que as mudanças na educação são determinadas pelas
necessidades do mercado supõe o vínculo direto, imediato, entre a escola e a
produção, ignorando as lógicas distintas às quais estão submetidas, assim como
objetivos divergentes e as dinâmicas de dois processos.

A autora destaca ainda que:


O reducionismo no conceituar a educação é acompanhado pela compreensão
limitada do conhecimento científico e de sua aplicabilidade. Embora o discurso

263
A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico

do empresariado e seus técnicos sobre as novas relações de trabalho e as


exigências de ampliação da educação do novo trabalhador polivalente tenha
influenciada a proposta educacional do Projeto em questão, retoma-se a
dicotomia entre a ciência pura e a ciência aplicada, a qual, por sua vez,
reproduz no interior da organização escolar a separação entre atividades de
concepção e de execução (...).

O artigo apresenta a existência, em decorrência da reforma, de dois


sistemas de formação de profissionais, um pelo CEFET e outro pelas
universidades. No primeiro busca-se atender às aplicações do conhecimento e
à execução das atividades tecnológicas; no segundo, à ciência pura e às
atividades de concepção.6
Outro aspecto é apontado por Del Pino (1995: 132) quando afirma: “Não
há necessidade de democratizar a escola, mas de obter uma determinada
qualidade necessária ao modelo”. E ele acrescenta que a “criação do Sistema
Nacional de Educação Tecnológica facilitará a implementação de programas
de qualidade total na educação”.
Kuenzer (2000) destaca que a formação técnica passa a ser um
complemento da Educação Básica e que o aluno tem que fazer os dois cursos
para receber o diploma. E afirma: “(...) a partir de agora o Ensino Médio é para
a vida, em contraposição à proposta anterior, que supostamente, ao preparar
para o trabalho, não preparava para a vida”.
Em função do destaque e da afirmativa, o discurso oficial estruturado7
pelo governo está se desenvolvendo em busca de estabelecer a ideologia
construída pelo neoliberalismo, que afirma superar a dualidade (escola
propedêutica e escola para o trabalho), a partir de três pressupostos básicos: 1.
para o mundo globalizado, é fundamental que o homem possua no mínimo o
Ensino Básico e que esse esteja voltado para a vida, ou seja, deve ter uma
sólida base de educação geral, que é imprescindível ao exercício da cidadania8
e do trabalho; 2. para o ensino profissional é importante que as escolas de
formação profissional estejam direcionadas para a realidade do mercado,
formando e qualificando para a “empregabilidade”.9 Duas razões levam a esse

6
Moraes faz uma análise envolvendo o Sistema Nacional de Educação Tecnológica e a Cefetização, que
na realidade foi o primeiro passo neoliberal para a reforma educacional do final da década de 1990.
7
O dito é uma referência ao título do artigo de Kuenzer: O Ensino Médio agora é para a vida: entre o
pretendido, o dito e o feito.
8
A questão principal refere-se ao significado da cidadania. O que se entende por cidadania?
9
A empregabilidade é a capacidade de a pessoa estar preparada para a obtenção do emprego.

264
PARTE III | A DÉCADA DE 1990

pressuposto: “que os beneficiários da educação profissional são os empresários, (...)


que devem arcar com os custos dessa modalidade de educação”,10 e “que os cursos
estejam com foco na possibilidade de empregos, de acordo com a realidade, e não
padronizados ao Parecer do CFE n. 45/72 com mais de trinta anos de vigência” e,
portanto, ultrapassados; e 3. para a escola é necessária uma nova pedagogia que
não seja baseada nos princípios de Taylor e de Ford (Mendes, 1995).

3.2. A visão mercantil das competências


Ferreti e Silva Junior (2000: 62) colocam a seguinte questão:
Por outro lado, na esfera educacional, essa mudança de paradigmas nas
políticas públicas provoca uma reforma sob essa mesma orientação, isto é, as
recentes mudanças ocorridas na educação brasileira inauguram, por isso, um
novo paradigma educacional, que se orienta predominantemente pela
racionalidade do capital (do “mundo dos negócios”) e conduz a inequívoca
subsunção da esfera educacional à esfera econômica, em processo que aqui se
denomina mercantilização da educação, orientado no plano simbólico-cultural,
pela lógica da competência e pela ideologia da empregabilidade ou laboralidade,
nos casos do ensino médio e da Educação Profissional”.

Interessante do trabalho de Ferreti e Silva Junior (2000: 57) é a citação: “Busca-


se por vários meios transformar a educação em um bem privado, em uma mercadoria,11
que por alguma via se adquire e se torna propriedade privada”. E, complementam
afirmando que: “o modelo de Competências tem o propósito de transferir os direitos
sociais do trabalho, de responsabilidade do Estado, para o trabalhador”.12

10
A ideologia de se levar a especialização da empresa para a escola e, com isso, canalizar recursos para a
escola, proporcionando melhor formação técnica e alunos empregados, é uma questão muito delicada,
porque apresenta as seguintes variáveis de objetivos não transparentes: a) caracterização da intenção
do Estado Mínimo, no qual o MEC não continuaria responsável pela Educação Profissional; b)
transferência da responsabilidade do desemprego para a escola, sob a alegação de que essa não
qualifica bem por não ouvir o mercado; c) transferência de recursos do Estado para a iniciativa privada
manter as escolas de acordo com a necessidade empresarial, eliminando o gasto com treinamento nas
empresas; e d) privatizar as escolas públicas de educação profissional, sendo a separação do ensino
médio da formação profissional o primeiro passo, nesse sentido, pois “enxuga” a “instituição escolar”.
Em suma, o objetivo real da política não é transparente (Ney, 2003: 74; Moraes, 1994: 582; Del Pino,
1995: 136; Ferreti e Silva Junior, 2000: 57).
11
A Educação como mercadoria já é trabalhada a nível da Organização Mundial do Comércio (OMC) em
termos de “fronteiras livres” para a oferta internacional. (Barral, 2002).
12
Estas afirmações de Ferreti e Silva Junior estabelecem as dúvidas com relação às reformas e a utilização
de recursos privados na educação profissional, pois o que foi postulado caracteriza uma intenção do
Estado Mínimo e da responsabilidade da educação individualizada sem clareza de quem financia.

265
A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico

Ferreti (1997: 229) destaca que o “modelo de competência” surge no


meio empresarial para orientar a formação dos recursos humanos compatível
com a organização do trabalho, e que competência é contraposta ao conceito
de qualificação profissional. E complementa:
O “modelo de competência” põe em lugar da relação definida pela
qualificação, uma outra que é marcada pela imprecisão, pela fluidez, pela
instabilidade, em que o saber, a posse do conhecimento do ofício, tende a ser
colocado em segundo plano, elevando-se ao primeiro conjunto de capacidades
gerais e mal definidas que tendem a crescer com a aceleração das valorizações
das organizações e das atribuições (de cargos). Quanto menos empregos são
estáveis e mais caracterizados por objetivos gerais, mais as qualificações são
substituídas por “saber ser” (Ferreti, 1997: 259).

Ainda no texto de Ferreti é desenvolvido um argumento a respeito da


relação entre educação, qualificação e crescimento econômico recolocando
em discussão a Teoria do Capital Humano, que renasce alicerçada em uma
série de termos modernizados, como empregabilidade, empreendedorismo
(capacidade do cidadão produtivo de “empresariar” suas atividades),
qualidade total, desregulamentação, polivalência 13 e outros, cujo papel é
colocar uma ideologia voltada para criar “uma falsa expectativa de que à
maior escolaridade e à maior capacitação profissional corresponde
necessariamente, maiores e melhores oportunidades no mercado de
trabalho”(Ferreti, 1997: 248).
Lima (1998:190-191), em análise bastante profícua da Teoria do Capital
Humano, coloca a necessidade de ser ultrapassada e vencida a disputa de
“valorização” das dimensões técnica ou tecnicista e propedêutica ou acadêmica,
que têm marcado a educação brasileira, e aponta para a denúncia que Frigotto
(1996) faz da falácia de uma relação direta e imediata entre a qualificação dos
trabalhadores e o ingresso no mercado de trabalho (Mendes, 1995: 27)
Ramos (1999: 2) destaca que:

13
A conceituação do polivalência é trabalhada com vários significados, de acordo com a necessidade do
momento. Assim, ora se refere ao trabalhador assumir várias funções dentro do processo produtivo e
de seu cargo, e ora se refere à assunção de atividades de outras ocupações profissionais. Este segundo
sentido está ligado à idéia da flexibilização profissional e itinerário profissional, mas se torna complexo
em função da necessidade de alterar as leis trabalhistas, essencialmente no que se refere aos direitos.
Segundo Plantamura (1995), a polivalência pode ser encarada sob dois aspectos: a) mobilidade
ocupacional (múltiplos ofícios) e b) conhecimento de bases técnico-científicas que fundamentam sua
prática. Ele afirma que a polivalência é confundida com a politecnia, mas que o SENAC trabalha
atualmente com a primeira, mas que a politecnia é um horizonte a ser alcançado.

266
PARTE III | A DÉCADA DE 1990

O horizonte de uma formação geral e básica universais está na perspectiva de


uma população que não necessita ingressar no mercado de trabalho
precocemente. Assim, a formação básica para o trabalho seria o princípio
educação da tecnologia e da produção e não o seu contrário, qual seja, educação
com foco no mercado e como preparação de recursos humanos (...).

Assim, pelo exposto por Ramos e por seu pensamento (ver também
Mendes, 1995), coloca-se a escola em sintonia para a formação de cidadãos e
trabalhadores intelectual e psicofisicamente14 em consonância com o momento
contemporâneo, ou seja, aposta-se no avanço tecnológico e no foco do mercado.
O modelo das competências atende a esse intuito pelo favorecimento de uma
formação individualizada e por afastar as concepções coletivas e emancipadoras,
bem como facilitar a flexibilidade das relações trabalhistas.15
Ávila (1995: 52) afirma:
Entretanto, para que o governo possa instituir sistemas de formação profissional
é necessário um longo tempo para a compra de equipamentos, preparação do
professor, e organização das escolas. Poderia ocorrer que, no momento em que
tudo estivesse pronto, o mercado já não precisasse mais desse tipo de profissional.
E como não existe possibilidade de flexibilidade da forma como ocorre nas
instituições acima citadas, o governo teria de criar o interesse para poder
manter todo o esquema montado.

Essa citação é fundamental para a análise de uma formação diretamente


voltada para o mercado de trabalho, pois indica que o tempo entre a escola
assimilar e preparar a formação direta para o mercado e o efetivo emprego do
homem no mercado pode implicar a inutilidade de esforços e de recursos para
atingir o objetivo traçado. O mercado pode estar precisando de outro
profissional, que não tenha mais aquele perfil.16
A alternativa apresentada por vários autores como Plantamura, Mendes,
Régnier e outros, é a de que a Educação Profissional tenha caráter humanista
e não mercantil, como está posta.

14
A cidadania e o trabalhador aqui citado nada têm a ver com o cidadão que se conhece e é capaz de agir
na sociedade que conhece. A formação dada ao cidadão e trabalhador mencionados é aquela fragmentada
e voltada exclusivamente para o negócio e a tecnologia utilizada no emprego de sua ocupação profissional.
15
O livro A pedagogia das competências: autonomia ou adaptação, de Marise Nogueira Ramos, desenvolve
e discute em detalhes todo este contexto.
16
Ver Mendes, 1995.

267
A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico

3.3. A Educação Tecnológica


A concepção da escola unitária de Gramsci, a Educação Tecnológica ou
Politécnica, nos indica um viés alternativo para a política educacional neoliberal.
A Educação Tecnológica torna-se a contraposição à visão interesseira e imediatista
dos homens de negócio (Frigotto, 1996).
Flávio Cunha (1996) afirma que a Educação Tecnológica deve estar voltada
para a formação do homem com visão crítica, crescimento individual e preocupado
com a evolução da sociedade coletivamente. E destaca que esse modelo de
educação vai muito além da abordagem técnica específica que o senso comum e
a reforma têm apresentado, pois existe a ausência de uma visão ética, social,
existencial e tecnológica que deve estar inserida na verdadeira Educação
Tecnológica. A Educação Tecnológica contrapõe-se a àquela que não desenvolve
um homem com uma visão do todo, conhecedor de si e da sociedade em que vive.
Ele declara:
O ponto desafiante, no entanto, ao trabalhar a idéia de formação integral do
homem no contexto da educação tecnológica, é não cair na tentação de
simplesmente com mais disciplinas que contemplem diversas áreas, correndo
o risco de ficar com o barco a deriva em um imenso oceano sem fronteiras
(Cunha, 1996: 19).

Em outro trecho é dito: “Pois quem projeta e constrói, cria e decide,


deve ser o homem íntegro, não apenas uma parte dele denominado engenheiro,
advogado, médico, economista...” (Idem).
Lima e Santos (1998) destacam que o governo, ao relegar a Educação
Tecnológica à condição de ensino profissional, condena os profissionais ao papel
de simples manipuladores treinados/adestrados operando pacotes tecnológicos
importados e ultrapassados, que aprofunda a subserviência do Brasil às nações
desenvolvidas.

4. A nova legislação

4.1. Concepção
A nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei n. 9.394/96)
tem a característica “minimalista” 17 e foi promulgada sem vetos porque

17
A expressão “LDB minimalista”, segundo Savianni (1997: 199), foi definida por Luiz Antonio Cunha
para significar a regulamentação por pontos por meio de decretos, medidas provisórias, portarias e
resoluções em detrimento a lei complementar (ordinária) que deveria ser votada no Congresso Nacional.

268
PARTE III | A DÉCADA DE 1990

representava a vontade do Governo FHC. Essa característica permite ao


Executivo ampla liberdade na definição da política que deseja implantar, na
regulamentação dos diversos artigos da LDB e nas alterações operacionais a
serem executadas, tendo em vista não haver necessidade de leis
complementares, pois os decretos presidenciais, portarias ministeriais e
resoluções do Conselho Nacional de Educação são suficientes para regulamentar
e implantar as ações definidas pelo Poder Executivo, sem a obrigatoriedade da
discussão e aprovação por parte do Poder Legislativo. Em resumo, o governo
legisla e executa a ação pretendida para sua política sem intervenção do
Congresso Nacional, a quem caberia a responsabilidade de legislar. Esse
procedimento, aliás, é característica bem marcante na história do Brasil.
Logicamente, o Capítulo III da Educação Profissional recebeu esse
tratamento, ficando com o arcabouço legal constante do anexo para a educação
profissional de nível técnico e tecnológico. Entretanto, para ficarmos no escopo
deste artigo, é fundamental a análise do Decreto Federal n. 2.208/97, da
Resolução do CNE/CEB n. 04/99 e dos Referenciais Curriculares Nacionais da
Educação Profissional de Nível Técnico expedidos em 2000, que compõem a
estrutura básica para a implantação da reforma e de cursos pela nova política
educacional.

4.2. O Decreto n. 2208/97


Analisando-se o decreto sob o enfoque de seus quatro objetivos, tem-se:
1. A promoção da transição entre a escola e o mundo do trabalho foi interpretado
como subordinação da escola ao mercado de trabalho. Assim, quando a escola
procura definir o perfil profissional, recorrendo aos empresários e à iniciativa
privada, ela corre o risco de uma qualificação profissional fragmentada e tecnicista,
que não garante a possibilidade de educação continuada, mas sim a satisfação
do interesse privado imediato. 2. A formação de profissionais aptos a exercer
atividades específicas no trabalho está pensada de modo semelhante ao oferecido
pelo Sistema S,18 ou seja, preparação direta para exercício profissional. Trata-se
aqui do processo de “senaização” das escolas técnicas apontado por Cunha (2000:
255). O Ensino Médio prepara para a vida, enquanto a Educação Profissional
para o trabalho, concentrando a essência ideológica do discurso da política
implementada (Kuenzer, 2000). 3. A especialização, o aperfeiçoamento e a

18
O assim chamado Sistema S refere-se ao que é composto por SENAI, SENAC, SESI, SENAR, SENAT
e SEBRAE.

269
A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico

atualização do trabalho em seus conhecimentos tecnológicos estão colocados


pela idéia de educação continuada, que só pode ser alcançada pelo
deslocamento do regime de qualificação para o de competências, pois o regime
de qualificação profissional 19 é estático, enquanto o de competências é
dinâmico. Neste último, a cada dia o profissional agrega novas competências
que irá registrar em seu portfólio.
A idéia aqui pensada é a de que cada trabalhador, em função de sua força
de vontade, de seus méritos e de sua capacidade, se desenvolverá profissionalmente,
independente de categoria profissional. É interessante notar que nesse pensamento
ideológico há um princípio voltado para atribuir ao trabalhador a culpa por seu
desemprego, que é por ele partilhado, ao assumir que não se preparou
adequadamente, que é menos inteligente do que aquele que se encontra
empregado, já que todas as oportunidades para o sucesso dessa caminhada foram
disponibilizadas. 4. A qualificação, reprofissionalização e a atualização de jovens e
adultos trabalhadores. O sistema de ensino profissional existente no Brasil antes
da reforma não tinha esse objetivo atrelado à missão das escolas técnicas. Esse
atendimento era realizado hegemonicamente por SENAI, SESI e SENAC, ou seja,
por todo o Sistema S, enquanto as escolas técnicas concentravam seus esforços na
qualificação de técnicos do segundo grau. Agora, as escolas técnicas são obrigadas
a oferecer cursos básicos para otimizar suas instalações, embora sem ter a tradição
e a capacidade dessa formação profissional.
O Decreto destaca, em seu artigo 3º, que a educação profissional terá
três níveis: Básico, Técnico e Tecnológico. O primeiro nível – Básico – destina-
se à qualificação e à reprofissionalização de trabalhadores, independente da
escolaridade; o segundo – Técnico – tem como objeto a habilitação profissional
de alunos matriculados ou egressos do ensino médio; e, finalmente, o terceiro
– Tecnológico – corresponde aos cursos superiores voltados para o trabalho.
É interessante observar que a educação profissional é colocada no decreto
sem nenhuma referência à graduação de nível superior (acadêmica), aquela
promovida pelas universidades e faculdades, ou seja, deixa-se claro e remarca-
se a concepção dual comentada no início deste artigo: formação acadêmica de
um lado, e formação para o trabalho de outro (Moraes, 1984).20

19
O regime de qualificação é aquele na qual no aluno estuda e, ao completar todas as disciplinas do curso,
recebe um título, que atribui responsabilidades e estabelece todos os direitos do exercício de uma profissão.
20 Em defesa da não-existência desse dualismo na Nova Política Educacional Brasileira, pode ser dito
que a criação dos cursos seqüenciais (politécnicos) e a consolidação dos cursos tecnológicos como
formações de nível superior está “valorizando” o trabalho e o trabalhador. Esse argumento é utilizado
pelos defensores da reforma.

270
PARTE III | A DÉCADA DE 1990

A formação do técnico de nível médio (a educação profissional) é


separada no artigo seguinte do Ensino Médio, podendo ser realizada
concomitante ou seqüencialmente a este. Aqui, retoma-se ao processo existente
antes da Lei n. 5.692/71, ou seja, a possibilidade do ensino integrado entre
educação profissional e média é vedada (Ramos, 2003). Ao Ensino Médio só é
permitido colocar disciplinas profissionalizantes em seu currículo na parte
diversificada e com o máximo de 25% do total da carga horária previsto. Cordão
(2002: 114) afirma essa possibilidade de aproveitamento e destaca que os
Pareceres CNE/CEB n. 17/97 e n. 15/98 reafirmam tal dispositivo.
A escola de educação profissional deve definir o perfil profissional esperado
de cada curso (Plantamura, 1995; Régnier, 1995) para elaborar seu currículo
em função do mercado de trabalho. Esse perfil será composto por competências
básicas (obtidas no Ensino Fundamental e no Ensino Médio), competências
gerais e por competências específicas (obtidas na Educação Profissional). Essa
determinação gerou muitas dúvidas das escolas com relação às ocupações
profissionais regulamentadas, tendo em vista que a definição do perfil profissional
necessariamente altera a formação e os currículos dos cursos, com isso gerando
problemas de reconhecimentos nos conselhos de classes. Cordão (2002, p. 19)
recomenda que as escolas atentem para a lei do exercício profissional e as
atribuições do profissional.
As competências gerais são obrigatórias e foram estabelecidas pelo
Conselho Nacional de Educação por meio da Resolução CNE/CEB n. 04/99. E
não poderão ultrapassar setenta por cento da carga horária mínima obrigatória,
ficando reservado um percentual mínimo de trinta por cento para que os
estabelecimentos de ensino, independente de autorização prévia, elejam
disciplinas, conteúdos, habilidades e competências específicas da sua
organização curricular (Decreto n. 2.208/97, art. 6º, inc. II).

Os currículos poderão ser estruturados por módulos, e, caso o módulo


seja terminal (quando promove uma qualificação profissional), o aluno receberá
um certificado. Assim, um curso pode ter vários módulos com certificações
próprias. A diplomação de técnico de nível médio só ocorrerá com a obtenção
de todos os certificados dos módulos daquele curso e da comprovação da
conclusão do Ensino Médio.
O decreto determina a implementação de um sistema de certificação
de competências por meio de exames para fins de dispensa de disciplinas ou
módulos em cursos de habilitação do ensino técnico pelos sistemas (federal e
estaduais) de educação (Art. 11).

271
A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico

4.3. A Resolução CNE/CEB n. 04/99


A Resolução CNE/CEB n. 04/99 surge em função da necessidade do
estabelecimento das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação
Profissional (Cunha, 2000: 57; Cordão, 2002: 20).
Inicialmente, a Resolução define diretriz como:
(...) o conjunto articulado de princípios, critérios, definição das competências
profissionais gerais do técnico por área profissional e procedimentos a serem
observados pelos sistemas de ensino e pelas escolas na organização e no
planejamento dos cursos de nível técnico (Art. 2º).

Logicamente, essa resolução é obrigatória e fundamental para a construção


dos currículos por competências pelas diversas escolas, tendo em vista que
estabelece todas as diretrizes para sua concepção. Cabe comentar que a resolução
foi homologada em 26 de novembro de 1999 pelo ministro de Estado da Educação
Paulo Renato de Souza, e determinava sua obrigatoriedade a partir de 2001,
ficando fixado um período de transição - entre a data da publicação da resolução
e o final de 2000 – que serviria, também, para as escolas oferecerem opções de
cursos organizados de acordo com a resolução aos alunos matriculados (Art. 18).
A revogação do Parecer n. 45/72 (regulamentador dos cursos técnicos
em vigor na época da homologação da resolução) e as regulamentações
subseqüentes, incluídas as referentes à instituição de habilitações profissionais
pelos Conselhos de Educação constam do artigo 19.
É importante esclarecer que o prazo fixado para se proceder à reforma
era inviável, porque todas as escolas teriam não só que refazer seus currículos
após definir novos perfis profissionais de conclusão, como pesquisar sua
“empregabilidade”.21 É interessante notar o conteúdo do artigo 7º da resolução:
Os perfis profissionais de conclusão de qualificação, de habilitação e de
especialização profissional de nível técnico serão estabelecidos pela escola,
considerando as competências indicadas no artigo anterior.22

21
O termo “empregabilidade” está sendo utilizado como a capacidade de se empregar do trabalhador.
Nessa linha de pensamento a escola tem a obrigação de preparar o homem para o emprego, e o homem
deve preparar-se adequadamente. Obviamente, o governo se exime da responsabilidade de gerar
empregos, delegando-a à escola e ao trabalhador (Ferreti, 1997; Militão, 1996).
22
A referência ao artigo anterior justifica-se pelo fato de ele apresentar os três tipos de competências
profissionais que já citamos: básicas, gerais e específicas. As básicas oriundas do Ensino Fundamental
e Médio, as gerais, da Educação Profissional e definidas na Resolução CNE/CEB n. 04/99 (obrigatórias)
e as específicas sob responsabilidade das escolas. Os Referenciais Curriculares, embora facultativos,
ajudariam as escolas no estabelecimento destas últimas competências.

272
PARTE III | A DÉCADA DE 1990

§ 1º - Para subsidiar as escolas na elaboração dos perfis profissionais de conclusão


e na organização e planejamento dos cursos, o MEC divulgará referenciais por
área profissional.
§ 2º - Poderão ser organizados cursos de especialização de nível técnico,
vinculados a determinada qualificação ou habilitação profissional, para o
atendimento de demandas específicas.
§ 3º - Demandas de atualização e de aperfeiçoamento de profissionais poderão
ser atendidas por meio de cursos ou programas de livre oferta.

Os citados Referenciais Curriculares Nacionais da Educação Profissional


de Nível Técnico só foram publicados em pleno ano 2000, e, por isso, o Parecer
CNE/CEB n. 33/2000, de 7 de novembro, alterou para o final de 2001 o prazo
final de implantação da reforma. Teoricamente, os referenciais são úteis para
ajudar as escolas no estabelecimento das competências específicas.
A complexidade das mudanças levou as escolas à contratação de consultorias
de estudos de mercado e outras pelos seguintes fatos: 1. término dos cursos
integrados (Ensino Médio-Educação Profissional); 2. criação de perfis profissionais
para cada curso mediante a consulta da escola a empresários, sindicatos e
comunidades; 3. pesquisa de ofertas/demandas de profissionais; 4. criação de
currículos por competências modularizados para todos os cursos técnicos;
5. alterações de regimentos internos e projetos políticos pedagógicos das
instituições de ensino; 6. necessidade de divulgação das reformas, de
conceituações sobre o Sistema de Competências para todo o corpo docente,
discente e administrativo da escola; 7. necessidade de utilizar a pedagogia de
projetos ou situações-problema; 8. necessidade de estabelecer o modelo de
Gestão da Qualidade Total; e 9. implantação.
A resolução estabeleceu cerca de 20 áreas profissionais com carga horária
mínima para cursos na área: Agropecuária (1.200), Artes (800), Comércio (800),
Comunicação (800), Construção Civil (1.200), Design (800), Geomática (1.000),
Gestão (800), Imagem Pessoal (800), Indústria (1.200), Informática (1.000),
Lazer e Desenvolvimento Social (800), Meio Ambiente (800), Mineração
(1.200), Química (1.200), Recursos Pesqueiros (1.000), Saúde (1.200),
Telecomunicações (1.200), Transportes (800) e Turismo e Hospitalidade (800).
No anexo da resolução são descritas as competências gerais para cada uma
dessas área profissionais.
A resolução apresenta a maneira como devem ser elaborados os planos
de cursos, estabelece diretrizes para a criação pelo MEC do Cadastro Nacional
de Cursos e dos Sistemas de Certificação de Competências.

273
A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico

5. Referenciais Curriculares Nacionais da Educação Profissional de


Nível Técnico23
Os Referenciais Curriculares Nacionais foram editados em 2000 e
distribuídos para as diversas escolas técnicas. De uso facultativo, tem o propósito
de “oferecer informações e indicações para a concepção de currículos nas
diversas áreas profissionais distinguidas pelas Diretrizes Curriculares Nacionais
para a Educação Profissional de Nível Técnico” (RCN, Introdução, 2000: 7).
O documento é constituído de 21 volumes, sendo o primeiro de Introdução e
os demais dedicados a cada uma das 20 áreas profissionais.

6. Conclusões
O pressuposto que orientou nosso texto tem foco no caráter contraditório
entre o que é dito no discurso oficial e o que realmente está estabelecido com
relação à reforma da educação profissional no Brasil concernente à formação
do técnico de nível médio. Assim, partiu-se da discussão da reforma do final
da década de 1990, observando a questão dualista do Ensino Médio - a formação
propedêutica com vistas a permitir à elite alcançar o ensino superior e a
educação profissional direcionada à formação do trabalhador. Dessa abordagem
inicial pode-se apreender que a separação do Ensino Médio da Educação
Profissional tem o propósito de transferir a responsabilidade do Estado para a
iniciativa privada dentro do pensamento neoliberal do Estado Mínimo. Para
oferecerem a educação profissional, as escolas devem ir ao mercado de trabalho
e a ele adequar seus cursos, de modo a obter recursos para a sua viabilização.
Entretanto, em função da análise do texto, não é transparente a natureza dos
recursos que financiarão a educação profissional. Outro ponto observado refere-
se à questão da fragmentação e da modularização dos cursos, que aponta para
uma formação aligeirada com modelo no Sistema S (“senaização” das escolas
técnicas), e centrada essencialmente no “fazer”, para cuja construção o modelo
das competências contribui da melhor forma. Esse ponto marca um aspecto
contraditório correspondendo ao discurso da necessidade de um homem
polivalente, com boa formação básica, capaz de agir pensando e trabalhar em
grupo contra uma formação mecanicista proposta pela própria reforma, ou seja,

23
Os Referenciais Curriculares Nacionais da Educação Profissional de Nível Técnico não foram citados em
nenhum dos artigos pesquisados, fato possivelmente decorrente do ano de edição dos referenciais
curriculares (2000), embora eles tenham sido discutidos e trabalhados desde o início da implantação da
reforma. A elaboração desses referenciais foi realizada por equipes do MEC e profissionais de cada uma
das áreas de conhecimento abordada.

274
PARTE III | A DÉCADA DE 1990

pode-se afirmar que poucos realmente precisarão dessa qualificação ou formação


de qualidade, enquanto a grande maioria deve receber um mínimo de formação,
já que terá poucas oportunidades de trabalho em função da exigência de
qualificação. As exigências das escolas técnicas de oferecerem cursos com
empreendedorismo para todos os alunos, já é um indicativo que poucos terão o
emprego prometido pela formação para o mercado de trabalho.
A visão mercantil das competências esbarra na formação humanista, ou
seja, estamos diante de dois caminhos, que na realidade levam a uma disputa
hegemônica: de um lado, os defensores da política, em vigor, do mercado e do
Estado Mínimo, alegando que a escola atual é a culpada pelo desemprego e
que qualquer um pode vencer por seus méritos; de outro, aqueles que acreditam
na educação politécnica e na unitariedade do ensino médio propondo uma
alternativa à política educacional em vigor.
A educação não pode ser uma mercadoria e apenas para a formação
profissional, como se o homem não tivesse outras dimensões. Assim, a opção
por uma escola criativa e viva é fundamental.

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279
A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico

ANEXO 1 – INSTRUMENTOS LEGAIS DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL

Instrumento Número Discriminação

8.948, de 08 de Dispõe sobre a instituição do Sistema Nacional de


dezembro de 1994 Educação Tecnológica e dá outras providências
Lei Federal
9.394, de 20 de Estabelece as Diretrizes e Bases da Educação
dezembro de 1996 Nacional

Regulamenta o § 2o do art. 36 e os arts. 39 a 42


2.208, de 17 de
da Lei Federal n. 9.394/96, que estabelece as
abril de 1997
Diretrizes e Bases da Educação Nacional

2.406, de 27 de Regulamenta a Lei Federal n. 9.948/94 (trata de


Decreto novembro de 1997 Centros de Educação Tecnológica)
Federal
Dá nova redação ao art. 8o do Decreto Federal n.
3.462, de 17 de
2.406/97 (trata da autonomia dos Centros
maio de 2000
Federais de Educação Tecnológica)

Altera a redação do art. 5º do Decreto Federal


3.741, de 31 de n. 2.406/97, que regulamenta a Lei Federal
janeiro de 2001 n. 8.948/94 (trata da autonomia dos Centros de
Educação Tecnológica Privados)

Regulamenta a implantação do disposto


nos artigos 39 a 42 da Lei Federal n. 9.394/96
646, de 14 de
e no Decreto Federal n. 2.208/97 e dá outras
maio de 1997
providências (trata da rede federal de
educação tecnológica)

1.005, de 10 de Implementa o Programa de Reforma da


setembro de 1997 Educação Profissional – PROEP

Portaria MEC Estabelece diretrizes para a elaboração do


2.267, de 19 de projeto institucional para a implantação de
dezembro de 1997 novos CEFETs

Dispõe sobre o credenciamento de centros de


1.647, de 25 de educação tecnológica e a autorização de cursos
novembro de 1999 de nível tecnológico da educação profissional

Define os procedimentos para o


064, de 12 de
reconhecimento de cursos/habilitações de
janeiro de 2001
nível tecnológico da educação profissional

Portaria
1.018, de 11 de Cria o Conselho Diretor do Programa de
Interministerial setembro de 1997 Reforma da Educação Profissional
MEC/MTb

280
PARTE III | A DÉCADA DE 1990

Instrumento Número Discriminação

Orienta para as diretrizes curriculares dos cursos


Parecer CNE 776/97 de graduação

17/97 Estabelece as diretrizes operacionais para a


educação nacional

Parecer Trata das Diretrizes Curriculares Nacionais para


16/99
CNE/CEB a Educação Profissional de Nível Técnico

Estabalece o novo prazo final para o período de


transição para a implantação das Diretrizes
33/2000
Curriculares Nacionais para a Educação
Profissional de Nível Técnico

Dispõe sobre os programas especiais de


formação pedagógica de docentes para as
02/97
Resolução discilinas do currículo do ensino fundamental,
do ensino médio e da educação profissional
CNE/CEB
Institui as Diretrizes Curriculares Nacionais para
04/99
a Educação Profissional de Nível Técnico

281
A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico

282
PARTE III | A DÉCADA DE 1990

CAPÍTULO 6 | A REFORMA DO ENSINO MÉDIO TÉCNICO


NAS INSTITUIÇÕES FEDERAIS DE EDUCAÇÃO
TECNOLÓGICA: DA LEGISLAÇÃO AOS FATOS

MARISE N. RAMOS

Introdução
Este texto integra o estado-da-arte sobre políticas educacionais nos anos
1980 e 1990. Temos por objetivo fazer uma revisão histórica da legislação
educacional sobre o ensino médio e a educação profissional no período.
Pretendemos identificar as implicações promovidas pelas reformas educacionais
na realidade concreta das escolas técnicas federais e CEFETs, identificando
como suas recomendações foram assimiladas e quais as estratégias utilizadas
pelas instituições na sua implementação.
Além de artigos e textos específicos sobre o tema, temos como base uma
comparação entre a Lei n. 5.692/71, os Pareceres do Conselho Federal de
Educação n. 45/72 e n. 75/76, e a Lei n. 9.394/96 com suas regulamentações –
Decreto n. 2.208/97, Portaria SEMTEC/MEC n. 646/97, Pareceres CEB/CNE
n. 15/98 e n. 16/99, e Resoluções CEB/CNE n. 03/98 e n. 04/99. Procuramos
identificar e analisar as principais mudanças relativas à função institucional e
social das escolas técnicas e CEFETs; aos objetivos do Ensino Médio Técnico;
às disposições sobre carga horária, duração e articulação dos cursos; e, por fim,
às alterações de ordem curricular, especialmente pelas substituições e/ou
introdução de conceitos e estruturas no ordenamento do currículo dos cursos
de Ensino Médio e Técnico, como é o caso das áreas e habilitações profissionais,
módulos e competências.
Considerando que as legislações, mais do que documentos jurídicos são
expressão da luta política em torno da função da educação, percebemos que as
instituições promovem uma recontextualização das normas em suas realidades
específicas e, assim, as reconstroem no âmbito de outras disputas travadas em
seu próprio interior. Devido a um movimento dinâmico e contraditório que
ocorre na relação entre Estado e sociedade civil, estruturas burocráticas e
estruturas pedagógicas, dirigentes institucionais e comunidade escolar,

283
A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico

nenhuma reforma se implanta tal como foi concebida, ainda que se desenvolva
sob a hegemonia de um ideário político-pedagógico. São alguns fatos e
contradições desse movimento vivenciado especialmente a partir da década
de 1980 que este texto pretende apontar.

1. As implicações das reformas do Ensino Médio Técnico sobre a


função institucional e social das escolas técnicas federais e CEFETs:
da Lei n. 5.692/71 à Lei n. 9.394/96
A reforma do Ensino Médio Técnico ocorrida a partir de 1996 incidiu
sobre uma organização educacional baseada na Lei n. 5.692/71, modificada
pela Lei n. 7.044/82. O Parecer n. 45/72 do então Conselho Federal de Educação,
que dispunha sobre os mínimos exigidos para as habilitações profissionais, era
também vigente.
Cunha (1976), analisando as motivações que levaram à inflexão da
profissionalização universal e compulsória empreendida pela Lei n. 5.692/71,
para uma flexibilização promovida pelo Parecer n. 75/76 e consolidada pela Lei
n. 7.044/82, identifica, entre outros sujeitos, a burocracia do Ensino Industrial1
como um dos responsáveis pelas alterações feitas posteriormente por estes dois
últimos instrumentos legais, como reação à sobrecarga que a reforma impôs
sobre as escolas técnicas, especialmente as da rede federal.
Com a obrigatoriedade da profissionalização no segundo grau, o fato de
as escolas técnicas federais serem referência na oferta do ensino
profissionalizante fez com que essas fossem procuradas para estabelecer
convênios com outras instituições, visando à oferta da parte especial do
currículo das habilitações técnicas. Com isso, além do aumento de sua clientela,
vários descontentamentos advieram das relações com outros sistemas de ensino
impostas por essa política, que restringiam a autonomia dessas escolas e lhes
colocavam novas responsabilidades que poderiam comprometer a qualidade
de seus serviços.
Preocupavam-se, ainda, com a possível “desvalorização” da profissão de
técnico, à medida em que escolas sem tradição no ensino profissional passaram
a diplomar pessoas com menor qualificação do que a dos concluintes das escolas
técnicas; e, por fim, com o fato de as normas relativas à formação desse tipo de

1
Burocracia aqui é entendida não sob o aspecto negativo, que sugere lentidão e ineficiência, mas como
grupos gestores de um processo. Além desses sujeitos, cumpriram um importante papel nessa distensão
as pressões da burocracia do Ensino Secundário e dos empresários do ensino. Críticas pedagógicas à
profissionalização compulsória também tiveram lugar.

284
PARTE III | A DÉCADA DE 1990

profissional estarem sendo estabelecidas por pessoas que não reconheciam a


realidade do trabalho, suas necessidades e seus problemas.
O autor conclui que a inflexão da política educacional de
profissionalização universal e compulsória no ensino médio para uma distensão
consistiu na substituição das habilitações profissionais pelas habilitações básicas
e pelo entendimento da educação geral como preparação para a formação
profissional. Essa inflexão decorreu da tentativa de eliminar tensões geradas
pela própria política educacional, mas de modo tal, que ela mesma não fosse
posta em questão.
Analisando a Lei n. 7.044/82, Warde (1983) destaca as seguintes
alterações em relação à Lei n. 5.692/71: a) substituição de “qualificação para o
trabalho” por “preparação para o trabalho” (caput do art. 1o); b) absorção de
“preparação para o trabalho” como elemento da “formação integral do aluno”
em caráter obrigatório no ensino de primeiro e segundo graus (art. 4o, parágrafo
1o); e c) conversão da habilitação profissional em opção dos estabelecimentos
de ensino (art. 4o, parágrafo 2o).
Essa autora considera que as regulamentações nascidas no CFE permitem
melhor captar a concepção da relação educação (escola) e trabalho que os
órgãos governamentais queriam fazer vigorar nos meios escolares àquela época.2
A análise por ela empreendida de diversos textos normativos levou à constatação
de que estava presente entre os titulares dos Conselhos de Educação o espírito
escola-novista, através do qual a escola é entendida como lugar de preparação
para a vida. “O trabalho para o qual a escola deve preparar é uma abstração;
ele aparece como uma atividade que nas sociedades urbano-industriais equaliza
os homens porque é fruto da ciência e da tecnologia” (Warde, 1983: 16).
No caso das escolas técnicas federais, a inflexão ocorrida voltou a valorizar
a formação por elas desenvolvida, consolidando-as como as instituições mais
adequadas para conferir ao então segundo grau o caráter profissionalizante
voltado para a formação em habilitações profissionais específicas. Pode-se dizer
que a partir da Lei n. 7.044/82 até o final da década de 80, as escolas técnicas
federais desempenharam sua função de formar técnicos de segundo grau com
reconhecida qualidade, merecendo o respeito das burocracias estatais e da
sociedade civil, que as isentavam de qualquer questionamento sobre seu papel
econômico e social relativamente às respectivas obrigações educacionais.

2
Os documentos citados pela autora são: CFE, Parecer n. 618/82, Documento 265: 5; CFE, Parecer
n. 170/83: 4 (mimeo).

285
A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico

É nesse período que se desenvolve o Programa de Melhoria e Expansão


do Ensino Técnico – PROTEC, com o objetivo de implantar 200 novas escolas
técnicas industriais e agrotécnicas de primeiro e segundo graus, justificado
por dados estatísticos que apontavam para a precariedade do atendimento
nesse nível de ensino.3 A suposta retomada do desenvolvimento econômico
aparece como outra justificativa, no sentido de aumentar a demanda pela
educação do segundo grau técnico, ajustado às exigências do mercado de
trabalho. A interiorização do ensino profissionalizante foi também exaltada
como objetivo.4
O quadro resultante do PROTEC em 1993 demonstrava a inauguração
de 11 Unidades de Ensino Descentralizadas e 36 dessas em construção.5 Houve
uma tentativa de tornar as UnEDs autarquias , por meio do mesmo projeto que
veio a propor a transformação de todas as ETFs em CEFETs e a instituição do
Sistema Nacional de Educação Tecnológica.6 No entanto, em suas versões finais,
a questão foi retirada do projeto, permanecendo o mesmo quadro já citado.
Ao final da década de 1980, o processo de redemocratização das relações
institucionais, somado às mudanças no mundo do trabalho, começou a pautar
na sociedade e no interior dessas instituições o debate sobre uma formação de
novo tipo que incorporasse dimensões políticas comprometidas com a cidadania.
Os docentes e os servidores técnico-administrativos das escolas federais
reuniram-se em corporações nacionais (Associação Nacional de Docentes das
Escolas Federais – ANDEF e Sindicato Nacional dos Servidores das Escolas
Federais – SINASEF).

3
As estatísticas naquele momento indicavam que, do total de estabelecimentos de primeiro e segundo
graus, apenas 4,3% era de segundo grau; da matrícula geral de primeiro e segundo graus, apenas 10%
referia-se ao segundo grau; do total da matrícula de segundo grau, 41,4% incide em estabelecimentos
particulares (Brasil, MEC, 1986).
4
Essa proposta recebeu sérias críticas dos educadores, primeiramente, pela forma de decisão das políticas,
por comissões, excluindo as entidades representativas dos educadores. Em segundo lugar, os educadores
questionavam o privilegiamento do Ensino Técnico, quando a necessidade reconhecida como a mais
premente era a ampliação e a melhoria da rede de ensino de segundo grau (Ciavatta, 1988). Em termos
conceituais, essa proposta baseava-se numa visão produtivista, fragmentária e adaptativa do
conhecimento, num momento em que as mudanças científico-tecnológicas estabeleciam alterações no
âmbito econômico-social e político, exigindo formação mais complexa (Ciavatta, 1992).
5
Dados apresentados em Brasil, MEC (1993). Acrescenta-se que a criação de dois CEFETs após a Lei n.
6545/78 foi realizada pela transformação em CEFETs da ETF-BA, fundida ao CEMTEC-BA, e da ETF-
MA. A primeira medida foi feita pela Lei n. 8.711, de 28 de setembro de 1993, e a segunda, pela Lei n.
7.863, de 31 de outubro de 1989.
6
Nagib L. Kalil, em pronunciamento no III CONET – Congresso Nacional de Educação Tecnológica,
1993. A transformação das UnEDs em ETFs consta da minuta de projeto de lei recebido pelas ETFs em
23 de março de 1993.

286
PARTE III | A DÉCADA DE 1990

Apesar de essa articulação, que ocorreu no auge da discussão sobre uma


nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, não ter sido suficiente
para incorporar plenamente as comunidades dessas escolas nesse debate,
docentes e servidores organizados politicamente e/ou qualificados em programas
de pós-graduação em educação, levaram para seu interior o debate sobre a
politecnia, cerne da discussão sobre o Ensino Médio naquele momento.
No início da década de 1990, quando o projeto de um governo
democrático-popular foi derrotado nas urnas, a Secretaria de Educação Média
e Tecnológica do Ministério da Educação, preocupada em alinhar a formação
de técnicos à reestruturação produtiva e, ao mesmo tempo, fortalecer essas
instituições diante do novo cenário político do país,7 mobilizou-se politicamente
em dois sentidos, a saber: a) implementar um novo “modelo pedagógico” nas
escolas técnicas e CEFETs; b) instituir o Sistema Nacional de Educação
Tecnológica e transformar todas as Escolas Técnicas Federais em Centros
Federais de Educação Tecnológica - CEFETs.8 Esta última medida realizou-se
por meio da aprovação da Lei n. 8948/94. 9 Os segmentos progressistas
posicionavam-se criticamente, compreendendo que isso institucionalizava a
dualidade da estrutura educacional brasileira.
Apesar de não manifestas, outras motivações comprometiam as
comunidades das escolas técnicas à cefetização. Na verdade, com o intuito de
preservarem essas instituições na esfera federal, os gestores buscavam justificá-
las adequando a formação às necessidades do mercado. A criação do Sistema

7
A redemocratização do país colocou o tema da finalidade das Escolas Técnicas e CEFETs em pauta para
os segmentos conservadores e progressistas. Quanto aos primeiros, a crítica centrava-se em seu alto
custo e no distanciamento do mercado de trabalho, demonstrado pelo elevado número de alunos que
se dirigiam ao Ensino Superior. Com relação aos progressistas, questionava-se a concentração de
recursos públicos em instituições que serviam predominantemente ao capital, com atendimento seletivo
e restrito à população. Sob a hegemonia dos segmentos conservadores, o caráter público dessas
instituições foi, diversas vezes, ameaçado por medidas designadas, por exemplo, como “estadualização”
– transferência para os sistemas estaduais de ensino – e “senaização” – incorporação pelo Sistema S;
e, ainda, “privatização” – transferência total ou parcial para os setores privados.
8
Esse assunto já se gestava desde 1989 envolvendo a então Secretaria Nacional de Educação Tecnológica
– SENETE. Algumas Escolas Técnicas Federais, como a de Pelotas, Campos, Pará, Pernambuco, Rio
Grande do Norte, Mato Grosso, São Paulo, Maranhão e Bahia, já reivindicavam sua transformação em
CEFETs ao final da década de 1980, encaminhando processos ao Ministério da Educação. Em 1992,
uma comissão de avaliação das Escolas Técnicas foi criada com o objetivo de verificar as condições
estruturais das escolas de modo a classificar temporalmente sua transformação, emitindo relatórios ao
Ministério da Educação e do Desporto (Brasil, MEC, 1992).
9
A instituição do Sistema Nacional de Educação Tecnológica foi suprimida da lei, como condição para
aprová-la, devido à pressão do segmento privado, que não concordava em ter suas instituições sob a
regulação total do Estado.

287
A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico

Nacional de Educação Tecnológica tendia a unificar e fortalecer essa rede de


ensino, enquanto a transformação das Escolas Técnicas Federais em CEFETs
pretendia evitar seu sucateamento, por dificultar tentativas de “estadualização”,
“senaização” ou “privatização”. Isso se vinculava, especialmente, à implantação do
Ensino Superior, que condicionaria sua permanência no sistema federal de ensino.
O quadro demonstrado explica a mobilização que existiu também em
torno da reformulação curricular no interior das instituições, mediante a
implantação de um currículo comum da educação tecnológica.10 A discussão
travada entre representantes das escolas – especialmente os diretores de ensino
– trouxe o conflito entre diferentes concepções de educação tecnológica. Uma
delas centrava-se na formação humana, incluindo a construção sistematizada
do conhecimento articulada com o mundo do trabalho em suas múltiplas
dimensões; a outra possuía viés tecnicista e economicista na ótica do capital
humano. Num contexto econômico-político neoliberal, as políticas relativas a
essa rede de ensino na primeira metade da década de 1990 foram permeadas
por esse conflito e hegemonizadas pela segunda visão.
O modelo pedagógico apresentado pela SEMTEC em 1994 pode ser assim
resumido: os cursos técnicos de nível médio teriam a duração de quatro anos,
sem a expedição de certificado de conclusão do segundo grau ao final do terceiro
ano, sendo estruturados em áreas de conhecimento durante os três primeiros
anos, derivando-se habilitações no último ano. Cada área deveria conter
disciplinas de base científica e de base tecnológica, devidamente equilibradas,
juntamente com aquelas voltadas para a cidadania. O estágio curricular deveria
iniciar-se a partir do terceiro ano, com duração mínima de 360 horas. A educação
tecnológica era definida como “a vertente da educação que se caracteriza por
formar profissionais em todos os níveis de ensino e para todos os setores da
economia, aptos ao ingresso imediato ao mercado de trabalho” (SEMTEC, 1994).
Os diretores de ensino, ainda que concordassem com a estrutura básica
da proposta, avançavam conceitualmente em relação à concepção de educação
tecnológica. Procurava-se discutir a concepção de trabalho e de tecnologia
que embasaria as ações no interior das instituições, tendo como horizonte a

10
A SEMTEC formalizou a proposta de um modelo pedagógico para as instituições federais de educação
tecnológica mediante um documento enviado às Direções-Gerais em 27/04/1994. Os diretores de
ensino o discutiram em encontro realizado em Barbacena no período de 12 a 16/09/1994. No Seminário
sobre Reestruturação do Modelo Pedagógico e Estruturação do Modelo de Formação de Professores
para o Ensino Técnico Industrial Brasileiro, realizado em Belo Horizonte, no período de 11 a 13/10/
1994, a SEMTEC e o CONDITEC (Conselho de Diretores das Escolas Técnicas) assumiram o
compromisso de conduzir essa discussão com a máxima participação das comunidades institucionais.

288
PARTE III | A DÉCADA DE 1990

formação integral dos estudantes. Sob essa perspectiva, a educação tecnológica


deveria referir-se à conexão entre ensino e trabalho como base para o trabalho
produtivo que exclui a oposição entre cultura e profissão.
Quando Fernando Henrique Cardoso assumiu a Presidência da
República, tendo Paulo Renato de Souza como ministro da Educação, Átila
Lira como secretário de Educação Média e Tecnológica e Ruy Leite Berger
Filho11 como diretor de Ensino dessa secretaria, os primeiros sinais da reforma
realizada a partir de 1996 foram dados. O debate sobre as finalidades e o projeto
político-pedagógico das instituições federais de educação tecnológica travou-
se com o confronto entre o documento de Alagoas, construído pelos diretores
de ensino com as equipes pedagógicas das escolas técnicas federais12 e as
proposições da SEMTEC, que postulavam o ensino técnico modular e separado
do ensino médio.
O Projeto de Lei n. 1603, de 1996, foi a primeira tentativa do governo
para fazer valer seu ideário. De tantas reações causadas nas comunidades
escolares, acadêmicas e políticas, não foi possível sustentá-lo no Congresso.
A aprovação da LDB em dezembro desse mesmo ano tornou-o prescindível,
realizando-se a reforma mediante o Decreto n. 2.208/199713 e a Portaria n. 646/97,
esta especialmente voltada para o sistema federal.
Nesse momento, a cefetização de todas as escolas técnicas, aprovada pela
Lei n. 8.948/94, ainda não saíra do papel devido à ausência de regulamentação.
O apoio à reforma da educação profissional por parte dos diretores-gerais foi
conseguido, total ou parcialmente, mediante a efetivação dessa medida pelo
Decreto n. 2.406/1997. Esse decreto reconfigurou a identidade dos novos
CEFETs14 com base no Decreto n. 2.208/97, mas não conferiu autonomia para

11
Berger Filho tornou-se o secretário de Educação Média e Tecnológica dois anos depois e foi o verdadeiro
responsável pela implementação da reforma.
12
Como na época as ETFs ainda não haviam sido transformadas em CEFETs e estes últimos eram em
número de cinco, o debate envolveu muito mais as primeiras, em número de 27, sob a lideranças dos
diretores de ensino e respaldo dos respectivos diretores-gerais, organizados no âmbito do CONDITEC.
13
No âmbito do Congresso Nacional a resistência levou à apresentação de três novos objetos legislativos:
o PLS 236/96, de autoria do senador José Eduardo Dutra; o PL 2933/97, do deputado federal João
Faustino; e o PDL 402/97, dos deputados federais Miguel Rosseto e Luciano Zica. Ainda que com
formatos diferentes, os dois primeiros projetos apresentavam a mesma intenção: recuperar a missão
educativa regular das escolas técnicas e, portanto, preservá-las, caracterizando a educação profissional
como um processo educativo mais amplo e democrático. O PDL, por sua vez, buscou sustar os efeitos
do Decreto n. 2.208/97 a fim de devolver à sociedade civil o direito à discussão e à elaboração de um
projeto representativo de seus anseios. Nenhuma dessas tentativas, porém, surtiu qualquer efeito.
14
Lei n. 6.545, de 30/06/1978, regulamentada pelo Decreto n. 87.310, de 21/06/1982.

289
A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico

ministrar cursos superiores, salvo os de formação de tecnólogos e de professores


para disciplinas de educação científica e tecnológica. A efetiva transformação
das escolas técnicas em CEFETs deu-se mediante decreto para cada uma delas,
após aprovação de um projeto apresentado pela instituição, elaborado segundo
as diretrizes estabelecidas pela Portaria n. 2.267/1997.
No ano de 1998, dada a tendência à cefetização, um novo estatuto foi
elaborado para as escolas técnicas federais.15 O objetivo foi configurar uma gestão
sistêmica das unidades-sede com as respectivas unidades descentralizadas
(UnEDs). Por esse estatuto, além da Direção-Geral, foram criadas as diretorias
de Ensino; Planejamento e Gestão; e Relações Empresariais e Comunitárias,
responsáveis por todas as unidades. As unidades-sede e as descentralizadas
passaram a ser geridas localmente por um diretor de Unidade e por Gerências.
Esta última denominação foi adotada sob o argumento de se alinhar a gestão
dessas instituições aos novos conceitos de produção caracterizados pela
flexibilidade, integração de equipes e horizontalidade administrativa.
Uma questão interessante a observar nesse longo processo de reformas são
as variações semânticas pelas quais foram passando as designações referentes à
formação dos trabalhadores. Cunha (1976) explica que a expressão “ensino
profissionalizante” foi introduzida pela Lei n. 5.692/71 buscando trazer o ensino
profissional para o segundo grau sem os aspectos negativos que o caracterizavam
até então e que consistiam, principalmente, na destinação do ensino profissional
aos filhos dos trabalhadores, fazendo-os permanecerem na classe social em que
nasceram; e, conseqüentemente, na menor duração da carga horária e menor
qualidade das disciplinas de cultura geral, justamente as que eram exigidas nos
exames vestibulares às escolas superiores. Esses estereótipos negativos, incidentes
sobre o ensino das escolas técnicas de nível médio, embora começassem a diluir-
se na década de 1960, tinham, ainda na de 1970, vigência em amplos setores das
camadas médias. A mudança do nome do ensino profissional para profissionalizante
destinava-se, então, a intensificar a diluição desses estereótipos.
Na rede federal, especialmente após a implantação dos primeiros Centros
Federais de Educação Tecnológica em 1978, a expressão “educação tecnológica”
foi sendo usada para definir a função dessas instituições, sendo o ensino
profissionalizante no segundo grau apenas uma de suas dimensões. A análise
da legislação existente sobre os CEFETs, porém, demonstra que as terminologias
utilizadas para se referir aos níveis e modalidades de ensino ministrados nessas

15
Esse novo estatuto não abrangeu os cinco antigos CEFETs.

290
PARTE III | A DÉCADA DE 1990

instituições eram Ensino Superior, Ensino Técnico, educação profissional. O


adjetivo tecnológico aparece quando referido aos Cursos Superiores de
Tecnologia ou caracterizando a área ou atividade que tem a tecnologia como
base. Seu uso, visando a designar o tipo de educação realizada pelas instituições
da rede federal, é uma construção dos grupos envolvidos com a
institucionalização desses centros ao final da década de 1970 juntamente como
as próprias comunidades, e não uma denominação forjada pelos textos legais.
O processo de transformação de todas as escolas técnicas federais em CEFETs,
iniciado ao final da década de 1980, contribuiu para que essa terminologia
fosse incorporada por todas as instituições da rede, sendo seu significado, como
vimos, disputado por visões progressistas e conservadoras.
Como demonstra Ciavatta (1998), o SENAI também passou a utilizar
denominações como “educação tecnológica” e “educação profissional” (SENAI,
1995 e 1996a, apud Ciavatta, 1998, p. 72), definindo uma nova concepção de
educação para o trabalho “centrada no conceito do porquê e do como fazer,
valorizando a criatividade, o trabalho em equipe e a visão de conjunto dos
processos na nova organização do trabalho” (id., ibid., p. 72).
A mesma autora demonstra que o Ministério do Trabalho passou a utilizar
no Plano Nacional de Educação Profissional - PLANFOR, implantado em 1995,
a expressão “educação profissional”. Uma formação que “exige foco no mercado,
foco na empregabilidade, entendida não apenas como capacidade de obter um
emprego mas, sobretudo, de se manter em um mercado de trabalho em constante
mutação” (Ministério do Trabalho, 1995: 8-9, apud Ciavatta, 1998: 73).
O texto de LDB aprovado na Comissão de Educação, Cultura e Desporto
da Câmara dos Deputados também utilizou a expressão “educação profissional”
para se referir aos objetivos adicionais do ensino médio, definindo as
modalidades Normal e Técnica como áreas que poderiam ser oferecidas pelas
instituições de Ensino Médio em todo o país (art. 53). Esse texto previa, além
da educação básica comum e da oferta de educação profissional no ensino
médio regular, a “formação técnico-profissional”, visando a contribuir para o
desenvolvimento do trabalhador como cidadão produtivo (art. 56).
A Lei n. 9.394/96 excluiu a referência à educação profissional no capítulo
do Ensino Médio e abriu um capítulo com esse título. O Decreto n. 2.208/97
definiu os objetivos, os níveis e as formas de oferta da educação profissional. A
partir de então, essa expressão passou a ser utilizada oficialmente e de forma
ampla, promovendo os seguintes fenômenos: a) supressão da expressão “ensino
profissionalizante” e valorização de “educação profissional”. O estereótipo desta
última expressão não mais incomodaria as classes médias, devido a sua

291
A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico

desvinculação do Ensino Médio imposta pelo Decreto n. 2.208/97; b) aglutinação


de todos os tipos de formação do trabalhador, relacionadas ou não com algum nível
de escolaridade, sob a mesma expressão, substituindo a “formação profissional” e a
“técnico-profissional”; c) enfraquecimento do significado e da utilização da
expressão “educação tecnológica” pelas escolas técnicas federais e CEFETs.

2. As mudanças dos objetivos do Ensino Médio Técnico nas reformas


dos anos 1980 e 1990
Sob a égide da Lei n. 5.692/71, o objetivo do então segundo grau era
proporcionar ao educando a formação necessária à qualificação para o trabalho.
A Lei n. 7.044/82 substituiu o objetivo de qualificar para o trabalho pelo da
preparação para o trabalho, com base no que definiu o Parecer CFE n. 75/76:
“tornar o jovem consciente do domínio que deve ter das bases científicas que
orientam uma profissão e levá-lo à aplicação tecnológica dos conhecimentos
meramente abstratos transmitidos até então pela escola” (apud Cunha, 1976:9).
As normas para o tratamento atribuído à preparação para o trabalho nos sistemas
de ensino eram definidas, para cada grau, pelo respectivo Conselho de
Educação. Para a oferta de habilitação profissional continuavam sendo exigidos
os mínimos de conteúdo e duração fixados pelo Conselho Federal de Educação.
A Lei n. 9.394/96 incorporou a educação profissional como processo
educacional específico, não vinculado necessariamente a etapas de escolaridade,
voltado para o permanente desenvolvimento de aptidões para a vida produtiva.
Admitindo-se seu desenvolvimento por diferentes estratégias de educação
continuada, em instituições especializadas ou no ambiente de trabalho, a relação
da educação profissional com o ensino regular poderia ocorrer por articulação
(art. 39 a 42). Com respeito ao Ensino Médio, definido como etapa da educação
básica, a preparação básica para o trabalho seria uma de suas finalidades (art.
35, inciso II). A habilitação específica, resultado da preparação para o exercício
de profissões técnicas, foi considerada como uma possibilidade, desde que
assegurada a formação básica do educando (art. 36, par. 2o).
O Decreto n. 2.208/97, que regulamentou os artigos 39 a 42 e o
parágrafo 2o do artigo 36 da lei, estabeleceu níveis para a educação profissional,
a saber: básico, técnico e tecnológico. O nível técnico destina- se a
proporcionar habilitação profissional a alunos matriculados ou egressos de
ensino médio, devendo ter organização curricular própria e independente
do primeiro, podendo ser oferecida de forma a ele concomitante ou seqüencial
(art. 5o). Com isso instituiu-se a separação curricular entre o Ensino Médio e
a educação profissional.

292
PARTE III | A DÉCADA DE 1990

Buscando a (re)integração ou, pelo menos, a articulação dos cursos, as


escolas técnicas federais e CEFETs apoiaram-se na possibilidade da chamada
concomitância interna – quando os alunos cursavam o Ensino Médio ao mesmo
tempo que o curso técnico. Usou-se a chamada “parte diversificada” do Ensino
Médio como eixo de articulação entre os dois cursos.
Sabe-se que três estratégias foram utilizadas por essas instituições. Uma
delas tomou a carga horária destinada à parte diversificada para incluir
disciplinas instrumentais à profissionalização, tais como Informática, Gestão,
Relações Interpessoais, entre outras. Uma segunda foi a utilização dessa carga
horária para a inclusão de disciplinas introdutórias a determinada habilitação
ou grupo de habilitações. A última consistiu na ampliação da carga horária de
disciplinas da base nacional comum que apresentavam os fundamentos
científicos de habilitações.
Todas essas estratégias apontavam, em certa medida, para uma
organização próxima ao objetivo da preparação para o trabalho instituída
anteriormente pela Lei n. 7.044/82.16 A segunda estratégia, especialmente,
reproduzia a idéia das habilitações básicas, ainda que isso não fosse manifesto.
Elas se confrontavam como o princípio da preparação básica para o trabalho
instituída pela Lei n. 9.394/96 na perspectiva apontada pelo Parecer CEB/CNE
n. 15/98 e pela Resolução n. 03/98.17 Por esses documentos, a preparação básica
para o trabalho não estaria vinculada a nenhum componente curricular em
particular nem à parte diversificada do currículo.
Percebemos que a implementação da reforma dos anos 1990 referente à
separação/articulação dos ensinos Médio e Técnico nas escolas técnicas federais
e CEFETs se deu por uma aproximação aos princípios da Lei n. 7.044/82 que,
paradoxalmente, quando foi exarada, se voltava para as escolas dos demais
sistemas de ensino e não para as escolas técnicas. Deve-se dizer que a
manutenção do ensino médio nessas instituições foi uma negociação complexa.
A princípio, a reforma pretendia que as escolas técnicas federais e CEFETs não
o ofertassem, o que foi revisto posteriormente, admitindo-se sua oferta desde
que o número de vagas oferecidas a partir de 1997 correspondesse a apenas
50% das oferecidas para os cursos técnicos de segundo grau em 1996 (Portaria
MEC/SEMTEC n. 646/97).

16
Lembremos aqui a conclusão de Warde (1983), já referenciada neste texto, quanto ao caráter abstrato
do trabalho para o qual a escola deveria preparar, conferido pelas regulamentações posteriores à lei, do
Conselho Federal de Educação.
17
Dispõem sobre as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio.

293
A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico

A extinção do Ensino Médio foi imposta por lei, o que representou


uma conquista dos segmentos progressistas das instituições federais durante
o embate sobre o PL n. 1.603/96. Entretanto, a redução das vagas em 50%
“asfixiou” o Ensino Médio nessas instituições, de tal forma que sua oferta,
com o tempo, tornar-se-ia irrelevante. O caráter inconstitucional dessa
medida, por contrariar o artigo 208 da Constituição Federal ao reduzir a
oferta de ensino Médio na rede pública, gerou uma Ação Direta de
Inconstitucionalidade apresentada à Câmara pelo deputado federal Inácio
Arruda, que foi derrotada.
Outra estratégia utilizada pelo governo com esse fim foi a instituição do
Programa de Expansão da Educação Profissional – PROEP, voltado para o
financiamento de obras e equipamentos. Um dos critérios de elegibilidade de
projetos era a extinção do Ensino Médio ao longo de cinco anos a contar da
data a aprovação do projeto.
A tentativa de (re)integrar os ensinos Médio e Técnico pela chamada
“concomitâncias interna”18 gerou um outro conjunto de problemas, entre os
quais a dupla jornada escolar dos estudantes e a sobrecarga de estudos, devido
ao paralelismo dos cursos, que se mantiveram muito mais isolados do que
articulados entre si. Cursando o Ensino Médio e o Técnico concomitantemente,
o aluno teve que se submeter à dupla jornada escolar em condições precárias
(alimentação imprópria, permanência desconfortável na mesma escola, aumento
das despesas financeiras etc.).
Para alunos que cursavam o Ensino Médio em outras instituições (a
chamada concomitância externa), a situação foi ainda mais difícil devido à
independência dos projetos pedagógicos, à baixa qualidade do Ensino Médio
na escola de origem, aos traslados cansativos de uma escola para outra, entre
outros fatores. Na impossibilidade de enfrentar essas condições, os alunos
acabavam abandonando os cursos técnicos. Igualmente, a procura pelos cursos
técnicos esvaziou-se sobremaneira, provocando o efeito contrário à suposta
democratização prenunciada pela reforma. Na verdade, sendo a educação básica
a prioridade, o fato de a formação técnica dela se desvincular gerou uma
exclusão das classes populares, para as quais restou, na melhor das hipóteses,
os cursos curtos de qualificação profissional.

18
A concomitância interna ocorria quando os alunos cursavam os ensinos Médio e Técnico na mesma
instituição, com matrículas e cursos independentes. Pela concomitância externa, esses cursos eram
freqüentados em instituições distintas.

294
PARTE III | A DÉCADA DE 1990

3. As alterações relativas à carga horária dos estudos gerais e


profissionais nas reformas do Ensino Médio Técnico dos anos
1980 e 1990
A Lei n. 5.692/71 determinava que a formação geral e a formação especial
voltada para uma habilitação profissional ocorressem em um mesmo currículo,
na totalidade da carga horária prevista para o ensino de segundo grau. A
duração dos cursos era de três ou quatro séries anuais, conforme previsto para
cada habilitação, compreendendo, pelo menos, 2.200 ou 2.900 horas. A parte
especial do currículo devia predominar em relação à geral. O Parecer n. 45/72,
que estabeleceu os mínimos para 130 habilitações (posteriormente ampliadas
para 158), delimitava claramente a distinção das partes de formação geral e
especial do currículo.
O Parecer n. 75/76, já no movimento de flexibilizar a profissionalização
compulsória, considerou a possibilidade de se aumentar a carga horária das
disciplinas de educação geral e também de as computar na parte especial.
Com isso reconheceu-se que disciplinas de formação geral podiam ser
instrumentais para a habilitação, vindo a compor a parte da formação especial.
Posteriormente, a Lei n. 7.044/82 acabou determinando somente a carga horária
destinada ao segundo grau em pelo menos 2.200 horas em três séries anuais.
Quando se tratasse também da formação para habilitações, esse mínimo poderia
ser ampliado pelo Conselho Federal de Educação, de acordo com a natureza e
o nível dos estudos pretendidos.
Essa lei, portanto, já antecipava o que seria determinado, 14 anos depois,
pela Lei n. 9.394/96, quando a carga horária foi definida somente para o Ensino
Médio em 2.400 horas no mínimo, distribuídas por três anos, cada um com a duração
de 800 horas. Em relação à possibilidade de o Ensino Médio preparar o educando
para o exercício de profissões técnicas, não houve menção à carga horária.
O projeto de LDB original da Câmara dos Deputados (PLC n. 101/93)
exigia que, nesse caso, a duração do curso fosse de, pelo menos, 3.200 horas
em quatro anos, isto é, haveria um acréscimo à carga horária do Ensino Médio
de, no mínimo, 800 horas. Como esse dispositivo foi excluído, o Parecer n. 16 e
a Resolução n. 4, de 1999 (CEB/CNE), que substituíram o Parecer n. 45/72,
regulamentaram as cargas horárias mínimas para 22 áreas profissionais nos
patamares de 800, 1.000 ou 1.200 horas.
As escolas técnicas federais e CEFETs passaram a oferecer Ensino Médio
e cursos técnicos com carga horária em torno de 1.200 a 1.600 horas, com duração
de dois anos (predominavam cursos na área industrial). A concomitância entre
Ensino Médio e curso técnico iniciava-se no segundo ano do Ensino Médio,

295
A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico

visando-se a sua conclusão simultânea. Em cursos de menor duração a


concomitância iniciava-se ainda mais tarde.
O fato de o aluno começar o curso técnico no segundo ano do Ensino
Médio apontava para uma deficiência de pré-requisitos, o que antes não ocorria
porque a transição para a formação específica se dava gradativamente ao longo
do curso. Esse problema atingia os alunos que cursavam o Ensino Médio na
própria instituição e, mais ainda, aqueles que cursavam ou haviam concluído
o Ensino Médio em outros sistemas de ensino, e foi enfrentado por diferentes
alternativas. Uma delas foi adiar o início da concomitância. Nesse caso, em
cursos cujo mínimo era de 1.200 horas, a conclusão do curso técnico dar-se-ia
após o Ensino Médio. Aumentavam-se, com relação ao aluno, o tempo para
diplomação no curso técnico e, para a escola, o risco de evasão, pois, muitas
vezes, concluído o Ensino Médio, o aluno abandonava o curso técnico.
A outra alternativa foi o contrário dessa. Em vez de a concomitância
começar a partir do segundo ano, o aluno ingressava na instituição já cumprindo
atividades no âmbito do curso técnico, algumas vezes denominadas iniciação
tecnológica ou profissional. Acreditava-se que o aluno desenvolveria de imediato
uma identidade com a educação profissional, preparando-se melhor para essa
etapa. Tal alternativa, por outro lado, ampliava o tempo de permanência do
aluno na escola durante o curso, restringindo a possibilidade de aumento de
vagas nos cursos básicos, conforme determinado pela Portaria n. 646/97.
Problemas como esses foram levando as instituições a não insistirem na
(re)integração dos ensinos Médio e Técnico. Muitas delas se voltaram para a
oferta de Ensino Médio independentemente dos cursos técnicos, bem como
para a oferta dos cursos técnicos de forma restrita e com frágil base científica.
Não há dúvidas de que a Lei n. 5.692/91 pecava fortemente em relação
à formação geral, tanto quantitativa quanto qualitativamente. O projeto de
lei original da Câmara, porque formulado com base nas críticas à lei anterior,
buscava assegurar a plena formação geral, associada à formação específica.
A reforma dos anos 1990 também garantiu à formação geral a totalidade de
2.400 horas, ainda que admitisse o aproveitamento da parte diversificada,
no limite de 600 horas, nos cursos profissionalizantes.
Note-se que, em relação às áreas profissionais, as diretrizes curriculares
vão além do previsto pelo projeto original de LDB, ao chegar a exigir até 1.200
horas para determinadas áreas. Como explicar, então, sob a perspectiva do
primeiro projeto, que os cursos técnicos integrados ao Ensino Médio pudessem
proporcionar formação específica sem comprometimento da formação geral em
3.200 horas (correspondente a quatro anos), se, pela reforma, algumas áreas

296
PARTE III | A DÉCADA DE 1990

exigiriam o total de 3.600 horas (2.400 horas no ensino médio mais 1.200 horas
na educação profissional de nível técnico)? Compreendendo que no currículo
integrado o todo não é igual à soma das partes devido à síntese possível entre
conhecimento geral e específico. Em sua pertinência histórica, esse conhecimento
possibilita a compreensão do significado da ciência, das letras e das artes, e do
processo histórico de transformação da sociedade e da cultura, como apregoa o
inciso I do artigo 36 da LDB, e, simultaneamente, as condições para o exercício
de profissões técnicas, como está no parágrafo 2º desse mesmo artigo.

4. A reformulação curricular promovida pela reforma dos anos 1990:


áreas, módulos e competências
A finalidade do segundo grau definida pela Lei n. 5.692/71 como a
“qualificação para o trabalho” cumpria-se por meio das “habilitações específicas”,
definidas pelo Parecer n. 45/72 como
o resultado de um processo por meio do qual uma pessoa se capacita para o
exercício de uma profissão ou para o desempenho das tarefas típicas de uma
ocupação (...). As habilitações profissionais que são obtidas mediante o
cumprimento de currículos oficialmente aprovados e os respectivos diplomas e
certificados, devidamente registrados, conferem aos portadores direitos
específicos de exercício das profissões (itens 7.1.1. e 7.1.2.).

O Parecer n. 75/76 redefiniu a noção de habilitações no segundo grau,


partindo do princípio de que não seria viável, nem desejável, que todas as
escolas se transformassem em escolas técnicas (Cunha, 1976). Assim, em vez
de habilitações profissionais específicas, instituíram-se as habilitações básicas,
entendidas como “o preparo básico para iniciação a uma área específica de
atividade, em ocupação que, em alguns casos, só se definiria após o emprego”
(id., ibid.). É com esse espírito, como vimos, que a Lei n. 7.044/82 substituirá a
finalidade de “qualificar para o trabalho” pela de “preparar para o trabalho”.
Esta última finalidade foi reiterada pela Lei n. 9.394/96, fazendo-se
também referência à “habilitação profissional” como uma possibilidade a ser
desenvolvida no Ensino Médio, quando esse preparar o educando para o
exercício de profissões técnicas. A preparação geral para o trabalho e,
facultativamente, a habilitação profissional – diz o parágrafo 2o do artigo 36 –
poderão ser desenvolvidas nos próprios estabelecimentos de ensino médio ou
em cooperação com instituições especializadas em educação profissional. Note-
se que a nova lei preserva, em certa medida, o espírito da Lei n. 7.044/82
quanto à generalidade da preparação para o trabalho e à especificidade das

297
A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico

habilitações técnicas como possibilidade e não obrigatoriedade. O que há de


distinção fundamental na nova lei é o asseguramento da formação geral do
educando, não se podendo substituí-la pela habilitação profissional.
Enquanto em relação às Leis n. 5.692/71 e n. 7.044/82 foram os Pareceres
do Conselho de Federal de Educação que regulamentaram o significado do
termo “habilitação profissional”, sob vigência da Lei n. 9.394/96, o Decreto n.
2.208/97 antecedeu a regulamentação feita pelo Conselho Nacional de
Educação, que posteriormente elaborou as Diretrizes Curriculares Nacionais
para a Educação Profissional de Nível Técnico.
Diferentemente das legislações anteriores, os mínimos não foram
estabelecidos para as habilitações e sim para as áreas profissionais. Essas foram
definidas pelo Ministério da Educação como agrupamentos de atividades
semelhantes em seus propósitos, objetos e/ou processos de produção, cada qual
configurada por um perfil de competências profissionais gerais. As habilitações
técnicas passaram a ser recortes específicos dessas áreas, por inclusão de
competências profissionais específicas. As instituições formadoras adquiriram
autonomia para propor habilitações com diferentes currículos e títulos, desde
que vinculadas às respectivas áreas profissionais.
Sem regulamentação prévia por habilitações, a única exigência para
que o diploma do curso tivesse validade nacional passou a ser seu registro no
Cadastro Nacional de Cursos do Ministério da Educação. O órgão colegiado
máximo das escolas técnicas federais e CEFETs – o Conselho Diretor – aprovava
os planos de curso e os incluía diretamente no cadastro. Houve o cadastramento
de uma enorme quantidade de títulos profissionais com currículos distintos.
Também currículos equivalentes foram cadastrados conferindo títulos
diferentes. O pressuposto era de que, uma vez que a formação se dava no
âmbito de uma área profissional, o próprio mercado de trabalho responsabilizar-
se-ia por classificar os títulos e as pessoas de acordo com suas demandas.
Quanto à organização curricular, enquanto no Parecer n. 45/72 os
mínimos constavam de matérias e carga horária por habilitação, o Parecer n.
16/99 listou um conjunto de competências profissionais gerais19 para cada uma
das 20 áreas profissionais (posteriormente ampliadas para 22), bem como a

19
Essas competências seriam a base para uma formação polivalente, definida pelo parecer como o atributo
de um profissional possuidor de competências que lhe permitam superar os limites de uma ocupação ou
campo circunscrito de trabalho, para transitar para outros campos ou ocupações da mesma área
profissional ou de áreas afins. Supõe que tenha adquirido competências transferíveis, ancoradas em
bases científicas e tecnológicas, e que tenha uma perspectiva evolutiva de sua formação, seja pela
ampliação, seja pelo enriquecimento e transformação de seu trabalho (Parecer n.16/99: 37-38).

298
PARTE III | A DÉCADA DE 1990

carga horária mínima (800, 1.000 ou 1.200 horas). Os currículos poderiam ser
organizados em módulos, inicialmente definidos como o agrupamento de
disciplinas (Decreto n. 2.208/97, art. 8o) e, posteriormente como “um conjunto
de ações didático-pedagógicas sistematizadas para o desenvolvimento de
competências significativas que permitam ao aluno a aquisição de algum tipo
de formação”. Os módulos poderiam ter caráter de terminalidade para efeito
de qualificação profissional, dando direito, nesse caso, a certificado de
qualificação profissional.
A modularização foi compreendida como estratégia de flexibilidade
curricular, permitindo aos alunos a construção de itinerários diversificados,
segundo seus interesses e possibilidades. Ao conferir uma qualificação, a
conclusão modular, por suposto, permitiria ao indivíduo algum tipo de exercício
profissional antes ou a despeito da conclusão da habilitação. Sob a legislação
anterior, o currículo, por basear-se em matérias e disciplinas organizadas segundo
uma determinada seqüência didática, fazia com que a formação ocorresse ao
longo do curso e a obtenção do título na habilitação profissional só fosse possível
cumprindo-se tal seqüência. Sob a nova lógica, o somatório de unidades
modulares poderia levar à habilitação, admitindo-se diversas seqüências ou
trajetórias formativas definidas pelo próprio aluno, de acordo com a
regulamentação estabelecida pela escola.
Pela resistência a esse modelo, em muitas escolas a organização modular
predominante foi aquela de agrupamento de disciplinas, havendo
interdependência entre os módulos, ou seja, a seqüência típica de um curso
integrado foi modificada sem, entretanto, se perder a referência disciplinar
que caracterizava a primeira. Em outros casos, buscaram-se referências distintas
das ocupações restritas, para referências mais integralizadoras que permitissem
a construção do conhecimento de forma mais aprofundada.20 Em ambos os
casos, entretanto, esbarrou-se na dificuldade de o módulo ter uma terminalidade
e conferir uma qualificação e titulação.
O Ensino Médio também adquiriu regulamentação própria. A Lei
n. 5.692/71 determinava que o Conselho Federal de Educação regulamentasse
o ensino de segundo grau profissionalizante estabelecendo as matérias do núcleo
comum, além dos mínimos por habilitação. Das matérias fixadas, os conselhos
estaduais e as escolas deveriam definir áreas de estudos, atividades e disciplinas,

20
Exemplos desse caso podem ser encontrados no CEFET-Química e da Escola Politécnica de Saúde
Joaquim Venâncio, da Fundação Oswaldo Cruz.

299
A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico

com os respectivos conteúdos mínimos. A partir da nova LDB, o Conselho


Nacional de Educação estabeleceu as Diretrizes Curriculares Nacionais para o
Ensino Médio, por meio do Parecer e da Resolução n. 16/98 e n. 03/98, com
base em áreas de conhecimento (Ciências da Natureza e Matemática;
Linguagens e Códigos; Ciências Humanas).
A proposta baseada em áreas de conhecimento pretendia superar o
isolamento das disciplinas e destacar as múltiplas interações entre elas, supondo
um eixo integrador do currículo que poderia ser um objeto de conhecimento,
um projeto de investigação, um plano de intervenção, entre outros. A
contextualização 21 foi definida como o recurso para conseguir ampliar as
possibilidades de interação entre as disciplinas nucleadas em uma área e entre
as áreas de nucleação do conhecimento.
O fato de o segundo grau profissionalizante dar ênfase às disciplinas
da formação específica em detrimento da formação geral fez com que
professores das disciplinas do antigo “núcleo comum” vissem nessa
regulamentação um sinal de fortalecimento de seus saberes e da aquisição
de tempos e espaços para suas disciplinas. Nas escolas da rede federal,
paradoxalmente, esse sentimento confundia-se com a insegurança gerada
pela ameaça de extinção do Ensino Médio. Assim, a regulamentação com
base em áreas de conhecimento constituiu-se, em muitas escolas, num mote
para a organização das equipes de professores de determinadas áreas,
fortalecendo a relação corporativa entre eles em torno da distribuição de
horários, das condições de trabalho e questões afins. Outras vezes, essa
organização incidiu positivamente sobre o currículo, especialmente quando
os professores possuíam tempo para o planejamento conjunto e para
compartilhar sua prática uns com os outros. Não obstante, o mais comum foi
reorganizar formalmente as grades curriculares substituindo-se matérias por
áreas, muitas vezes mantendo-se o isolamento disciplinar e o trabalho
autônomo e independente de cada um dos professores no âmbito de sua
própria disciplina.

21
Contexto nesse caso foi interpretado como o universo de vivências dos alunos, o que fez várias propostas
curriculares resvalarem para o localismo e para abordagens limitadas aos saberes cotidianos. Essa
interpretação é coerente com a noção de competência, a qual sugere que o conhecimento válido é
aquele construído a partir das próprias experiências dos sujeitos e útil para o enfrentamento de
situações diversas. Essa interpretação suprime o conceito de conhecimento como compreensão da
realidade que se sistematiza como “Ciência” e questiona o papel da escola como transmissora de saber,
dando lugar ao desenvolvimento de competências.

300
PARTE III | A DÉCADA DE 1990

O elemento mais provocador de mudanças e/ou instabilidades nas escolas


foi a noção de competências – definidas para cada uma das áreas de
conhecimento – contrapondo-se aos conteúdos de ensino. A afirmação corrente
era a de que os conteúdos curriculares deveriam ser compreendidos como
meios para constituição de competências e não como objetivos do ensino em si
mesmos. Por essa perspectiva o foco do processo de ensino/aprendizagem foi
retirado dos conteúdos de ensino para ser colocado sobre as competências. A
organização do currículo não passaria mais pela definição de um conjunto de
conhecimentos sistematizados a que o aluno deveria ter acesso. Antes, dever-
se-iam definir as competências e, então, selecionar os conhecimentos necessários
para o seu desenvolvimento.
Essa abordagem instigava a que conteúdos de diferentes disciplinas fossem
mobilizados simultaneamente, o que levou a recorrer-se ao desenvolvimento
de projetos como meio de integração das disciplinas. A pouca propriedade
teórico-metodológica sobre essa estratégia por parte de professores e gestores
escolares; a inexistência de condições de estudo e debate sobre o assunto; a
ausência de condições materiais concretas na escola; a especificidade dos
tempos e espaços escolares, tradicionalmente organizados com base em
disciplinas, levaram a organizações curriculares ecléticas, muitas vezes
superficiais na abordagem dos conteúdos.
Arriscamos dizer, entretanto, que o fato de se ter consolidado na rede
federal um ensino voltado para a compreensão dos fundamentos científico-
tecnológicos dos processos produtivos e, assim, de se valorizarem o ensino das
ciências básicas e seus desdobramentos tecnológicos tenha levado essas escolas
a organizarem seus currículos sem comprometimento dessa “tradição”. Algo
importante a destacar, por outro lado, é o espaço adquirido pela área das
Ciências Humanas, historicamente negligenciada na formação técnica.
Portanto, há elementos interessantemente contraditórios que deveriam ser
investigados mais detidamente nesse âmbito.
Em relação aos cursos técnicos, entretanto, o mesmo talvez não possa ser
dito. As escolas foram induzidas a implementar o ensino modular, baseado em
competências definidas pela Resolução n. 04/99 na forma de atividades e tarefas
de trabalho. Ainda que os Referenciais Curriculares Nacionais posteriormente
exarados pelo Ministério da Educação como orientação às escolas tenham
destacado as bases científicas, tecnológicas e instrumentais necessárias ao
desenvolvimento das competências profissionais, a desvinculação do ensino
médio não deixou outra opção às escolas senão conferir aos cursos técnicos a
finalidade de preparar para o trabalho de forma restrita, diminuindo-se a

301
A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico

exigência de conhecimentos científico-tecnológicos que estruturam os processos


produtivos e as atividades profissionais.
Em síntese, essas foram as substituições promovida pela reforma dos anos
1990: no lugar de habilitações, áreas profissionais; no lugar de matérias e
disciplinas científicas, bases científicas, tecnológicas e instrumentais
desagregadas e isoladas de seus campos originais da ciência; no lugar de
conteúdos de ensino, competências gerais para a vida e competências
específicas para o trabalho. A perda de importância das habilitações baseadas
no corpo de conhecimentos que as definem, aliada à ênfase no trabalho
polivalente e na competência dos sujeitos, tornou a regulamentação do exercício
profissional sob princípio das corporações um preceito em superação.

5. Considerações finais
No segundo grau profissionalizante, a formação centrava-se em
conhecimentos científico-tecnológicos que definiam uma habilitação técnica. Os
currículos eram organizados em matérias e disciplinas de formação geral e de
formação específica, partindo-se daquelas para se chegar a estas. Em muitos casos,
não era simples definir uma disciplina como geral ou específica, principalmente
aquelas relacionadas às ciências que embasavam a profissão. A articulação entre
teoria e prática era feita reservando-se tempos e espaços curriculares para próprios.
Desvinculado de uma formação específica, o Ensino Médio voltou-se
para o desenvolvimento de competências básicas para a vida. Ainda que o
trabalho e a cidadania sejam considerados os contextos que dão sentido à
genérica categoria “vida”, tal como é tratada pelas diretrizes, o fato de perderem
a materialidade outrora conferida pelo horizonte da profissionalização esvaziou
essas categorias de conteúdos tanto simbólicos quanto científicos. Por isso a
generalidade das áreas de conhecimento, a superficialidade dos projetos e o
enfraquecimento do sentido das disciplinas escolares. Do lado específico da
formação profissional, a ênfase na polivalência e na flexibilidade configurada
pelas áreas profissionais abrangentes, associada à perda da importância dos
conhecimentos científicos da profissão em favor das competências, colocou em
crise o sentido das habilitações e das especialidades.
Institucionalmente, a reforma ocorrida nos anos 1980 fortaleceu a rede
federal, posto que a distensão relativa à profissionalização universal e
compulsória antes imposta pela Lei n. 5.692/71 destacou as escolas técnicas
federais e os então poucos CEFETs como as instituições mais apropriadas para
realizar a educação profissional no segundo grau. Em relação à reforma dos anos

302
PARTE III | A DÉCADA DE 1990

1990, porém, a relação política com o Ministério da Educação foi marcada por
jogos de interesses, entre eles o de mantê-las na esfera federal e ter sua identidade
diferenciada e valorizada frente às instituições dos demais sistemas de ensino,
incluindo as de Ensino Superior. Isto fez com que negociações relacionadas ao
processo de cefetização das escolas técnicas federais e as induções promovidas
pelo PROEP fossem cruciais para conquistar o consentimento ativo dos grupos
dirigentes dessas instituições à reforma dos anos 1990. A conclusão a que
chegamos é que, atualmente, essas instituições são outras, cuja identidade ainda
não está muito clara e cujo futuro também se disputa novamente numa correlação
de forças que, apesar de aparentemente favoráveis aos segmentos progressistas,
ainda não se provou forte o suficiente para superar as décadas de conservadorismo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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de docentes para o ensino técnico de nível médio. Brasília, SEMTEC, 1994.
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_________. Exposição de motivos n. 56, de 24 de fevereiro de 1986 que criou o
Programa de Melhoria e Expansão do Ensino Técnico. Brasília, 1986.
CIAVATTA, Maria. Qualificação, formação ou educação profissional. Contexto
e Educação, Ijuí, ano 13, n. 51, jul./set. 1998: 67-86.
_________. Fábula da Nova República: criação de duzentas escolas técnicas.
Caderno CEDES, Campinas, n. 20, 1988: 36-47.
CIAVATTA, Maria; FRIGOTTO, Gaudêncio; MAGALHÃES, Ana Lucia.
Programa de melhoria e expansão do ensino técnico: expressão de um
conflito de concepções de educação tecnológica. Contexto e Educação,
Ijuí, ano 27, n. 27, jul./set. 1992: 38-48.
CUNHA, Luiz Antonio. Ensino médio: reforma da reforma? 1976 (mimeo.).
RAMOS, Marise N. A pedagogia das competências: autonomia ou adaptação.
São Paulo: Cortez, 2001.
_________. Do ensino técnico à educação tecnológica: (a)-historicidade das
políticas públicas dos anos 90. 1995. Dissertação (Mestrado em
Educação), Universidade Federal Fluminense, Niterói, 1995.
WARDE, Miriam J. Algumas reflexões em torno da Lei n. 7.044. Cadernos de
Pesquisa, São Paulo, n. 47, nov. 1983: 14-17.

303
A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico

LEGISLAÇÃO CITADA

Leis
BRASIL. Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases
da educação nacional. Diário Oficial, Poder Executivo, Brasília, 23 dez. 1996.
_________. Lei n. 8.948, de 08 de dezembro de 1994. Dispõe sobre a instituição
do Sistema Nacional de Educação Tecnológica e dá outras providências.
Diário Oficial, Poder Executivo, Brasília, 9 set. 1994: 18.882.
_________. Lei n. 8.711, de 28 de setembro de 1993. Dispõe sobre a
transformação da Escola Técnica Federal da Bahia em Centro Federal
de Educação Tecnológica e dá outras providências. Diário Oficial, Poder
Executivo, Brasília, 29 set. 1993: 14.533.
_________. Lei n. 7.863, de 31 de outubro de 1989. Dispõe sobre a transformação
da Escola Técnica Federal do Maranhão em Centro Federal de Educação
Tecnológica. Diário Oficial, Poder Executivo, Brasília, 1o nov. 1989: 19.777.
_________. Lei n. 7.044, de 18 de outubro de 1982. Altera dispositivos da Lei no
5.692, de 11 de agosto de 1971, referentes à profissionalização do ensino
de 2o Grau. Diário Oficial, Poder Executivo, Brasília, 19 out. 1982: 19.539.
_________. Lei n. 6.545, de 30 de junho de 1978. Dispõe sobre a transformação
das Escolas Técnicas Federais de Minas Gerais, do Paraná e Celso Suckow
da Fonseca em Centros Federais de Educação Tecnológica e dá outras
providências. Diário Oficial, Poder Executivo, Brasília, 4 jul. 1978: 10.233.
_________. Lei n. 5.692, de 11 de agosto de 1971. Fixa as diretrizes e bases
para o ensino de 1o e 2o graus. Diário Oficial, Poder Executivo, Brasília,
12 ago. 1971: 6.377. Retificado em 18 ago. 1971.

Decretos
BRASIL. Decreto n. 2.406, de 17 de novembro de 1997. Regulamenta a Lei n.
8.948, de 8 de dezembro de 1994, e dá outras providências. Diário Oficial,
Poder Executivo, Brasília, 28 nov. 1997: 27.937.
_________. Decreto n. 2.208, de 17 de abril de 1997. Regulamenta o parágrafo
2o do art. 36 e os art. 39 a 42 da Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996,
que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Diário Oficial,
Poder Executivo, Brasília, 18 abr. 1997: 7.760.

304
PARTE III | A DÉCADA DE 1990

_________. Decreto n. 87.310, de 21 de junho de 1982. Regulamenta a Lei n.


6.545, de 30 de junho de 1978, que transformou Escolas Técnicas Federais
em Centros Federais de Educação Tecnológica e dá outras providências.
Revogado pelo Decreto n. 5.224, de 1 de outubro de 2004. Diário Oficial,
Poder Executivo, Brasília, 23 jun. 1982: 11.496.

Portarias
BRASIL. Ministério da Educação e do Desporto. Portaria n. 2.267, de 19 de
dezembro de 1997. Estabelece diretrizes para elaboração do projeto
institucional de que trará o Art. 6o do Decreto n. 2.406 de 27 de novembro
de 1997, que regulamenta a Lei n. 8.948, de 8 de dezembro de 1994.
Diário Oficial, Poder Executivo, Brasília, 23 dez. 1997.
_________. Portaria n. 646, de 17 de abril de 1997. Regulamenta a implantação do
disposto nos artigos 39 a 42 da Lei n. 9.394/96 e no Decreto n. 2.208/97 e dá
outras providências. Diário Oficial, Poder Executivo, Brasília, 26 maio 1997.
_________. Portaria n. 1753, de 25 de novembro de 1992. Constitui, junto à
Secretaria da Educação Média e Tecnológica, Comissão de Avaliação das
Escolas Técnicas Federais, integrada por representantes da Secretaria de
Educação Média e Tecnológica, Secretaria de Ensino Superior, Centro Federal
de Educação Tecnológica e Conselho dos Diretores das Escolas Técnicas, e
dá outras providências. Diário Oficial, Poder Executivo, Brasília, 27 nov. 1992.

Pareceres
BRASIL. Ministério da Educação e do Desporto. Parecer n. 16, de 5 de outubro
de 1999. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Profissional
de Nível Técnico.
_________. Parecer n. 15, de 1o de junho de 1998, do Conselho Nacional de
Educação. Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio.
BRASIL. Ministério da Educação e Cultura. Conselho Federal de Educação.
Parecer n. 75, de 1976.
_________. Parecer n. 45, de 14 de janeiro de 1972.
BRASIL. Ministério da Educação e Cultura. Conselho Federal de Educação.
Parecer n. 618, de 1982.
_________. Parecer n. 170, de 1983.

305
A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico

Resoluções
BRASIL. Ministério da Educação e do Desporto. Conselho Nacional de
Educação. Resolução n. 4, de 4 de outubro de 1999. Institui as diretrizes
curriculares nacionais para a educação profissional de nível técnico.
Diário Oficial, Poder Executivo, Brasília, 22 dez. 1999: 229.
_________. Resolução n. 3, de 26 de junho de 1998. Institui as diretrizes
curriculares nacionais para o ensino médio. Diário Oficial , Poder
Executivo, Brasília, 5 ago. 1998.

Projetos de lei
BRASIL. Congresso. Senado. Projeto de Lei n. 236, de 22 de outubro de 1996.
Dispõe sobre a educação profissional em nível nacional e dá outras
providências. Senador José Eduardo Dutra.
BRASIL. Congresso. Câmara dos Deputados. Projeto de lei n. 2933, de 2 de
abril de 1997. Fixa normas de organização e funcionamento dos cursos
de nível médio que habilitam ao exercício de profissões técnicas – poder
conclusivo das comissões – artigo 24, inciso II. Deputado João Faustino.
_________. Projeto de lei n. 1.603, de 7 de março de 1996. Dispõe sobre a
educação profissional, a organização da rede federal de educação
profissional e dá outras providências – poder conclusivo das comissões –
artigo 24, inciso II.
_________. Projeto de Lei n. 101, de 27 de maio de 1993. Fixa as diretrizes e
bases da educação nacional. Substitutivo do deputado federal Jorge
Haage, relator do Projeto de Lei n. 1258/88.
BRASIL. Congresso. Projeto de decreto legislativo n. 402, de 24 de abril de
1997. Susta os efeitos do Decreto n. 2.208, de 17 de abril de 1997, que
Regulamenta o § 2o do art. 36 e os arts. 39 a 42 da Lei n. 9.394, de 20 de
dezembro de 1996, que estabelece diretrizes e bases da educação nacional.
Deputado Luciano Zica.
Adins. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação direta de inconstitucionalidade
n. 1670, de 1997. Deputado Inácio Arruda.

306
Anexo – Quadro comparativo das legislações relativas ao Ensino Médio e à Educação Profissional (décadas de 80 e 90)

Lei n. 9.394/96;
Legislação Decreto n. 2.208/97;
Lei n. 5.692/71 Parecer n. 45/72 Parecer n. 75/76 Lei n. 7.044/82 Parecer n. 16/99 e
Parâmetros Resolução n. 4/99
(CEB/CNE)

2o grau com carga


o o horária definida,
Relação 2 grau/ 2 grau e EP em
Ensino Médio um mesmo podendo EM e EP em currículos
currículo na incorporar a EP no e matrículas distintas
(EM) e Educação
totalidade da mesmo currículo e independentes
Profissional (EP) por aumento da
PARTE III

carga horária
|

carga horária

Relação Preparação básica


Educação- Qualificação e Preparação para para o trabalho no
Trabalho/ para o trabalho o trabalho EM; Qualificação e
Finalidade da Habilitação para o
Formação Trabalho na EP
A DÉCADA DE 1990

Ensino Médio e
Denominações 2o grau 2o grau e 2o grau
Educação Profissional
profissionalizante profissionalizante de Nível Técnico

Habilitações
Habilitações Habilitações Habilitações profissionais
Resultado da Habilitações Técnicas
profissionais profissionais profissionais específicas a por áreas profissionais
Formação específicas específicas básicas e critério dos somente EP
obrigatórias obrigatórias especiais estabelecimentos

307
de ensino
Anexo – Quadro comparativo das legislações relativas ao Ensino Médio e à Educação Profissional (décadas de 80 e 90)

308
Lei n. 9.394/96;
Legislação Decreto n. 2.208/97;
Lei n. 5.692/71 Parecer n. 45/72 Parecer n. 75/76 Lei n. 7.044/82 Parecer n. 16/99 e
Parâmetros Resolução n. 4/99
(CEB/CNE)

Conceituação Definição dada pelo Habilitação Habilitação básica: Habilitação técnicas:


da Habilitação Parecer n. 45/72 profissional: preparo básico idem à definição do
e Área resultado de um para iniciação a Parecer n. 45/72
Profissional processo por meio uma área (Parecer 16/99).
do qual uma específica de
pessoa se capacita atividade, em Áreas profissionais:
para o exercício ocupação que, em agrupamentos
de uma profissão alguns casos, só de atividades
ou para o se definiria após o semelhantes em
desempenho das emprego. seus propósitos,
tarefas típicas de objetos e/ou
uma ocupação. processos
Obtidas com o de produção
cumprimento de (Parecer n. 16/99).
currículos
oficialmente
aprovados. Os
diplomas
conferem aos
portadores
direitos
específicos de
exercício das
A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico
Anexo – Quadro comparativo das legislações relativas ao Ensino Médio e à Educação Profissional (décadas de 80 e 90)

Lei n. 9.394/96;
Legislação Decreto n. 2.208/97;
Lei n. 5.692/71 Parecer n. 45/72 Parecer n. 75/76 Lei n. 7.044/82 Parecer n. 16/99 e
Parâmetros Resolução n. 4/99
(CEB/CNE)

Diretrizes CFE: CFE: CFE: CNE: regulamentação de


regulamentação de regulamentação regulamentação competências
Curriculares
matérias do núcleo de mínimos por de áreas de profissionais gerais por
Nacionais:
comum; mínimos habilitações ou estudos, áreas profissionais (EP) e
conteúdos e por habilitações. grupos de atividades ou de competências básicas
PARTE III

instâncias CEE: habilitações disciplinas. (EM).


|

reguladoras regulamentação de constando de CEE: definição CCE: regulamentação de


matérias da parte matérias fixadas e de normas para competências específicas
diversificada. a carga horária o tratamento por habilitações.
Escolas: definição conjunta da parte a ser dado à Escolas: definição de
de disciplinas e profissional preparação para competências específicas
áreas de estudo. específica. o trabalho. e de módulos.
A DÉCADA DE 1990

Diretrizes Predominância da Divisão bem Aumento da carga Duração mínima EM: duração mínima
parte especial definida entre a horária das de 2.200 horas de 3 anos e 800 horas,
Curriculares
do currículo em parte geral e a disciplinas de em pelo menos 3 completando
Nacionais: séries anuais.
relação à especial. parte especial do educação geral e 2.400 horas.
carga horárias currículo. possibilidade de Ampliação da EP: mínimos de 800,
Duração de 3 ou 4
séries anuais, computá-la na carga horária 1.000 e 1.200 horas,
conforme previsto parte especial. quando se tratar dependendo da
para cada de habilitação, de área profissional.
habilitação: 2.200 acordo com o
ou 2.900 horas definido pelo
no mínimo). Parecer 45/72.

309
A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico

310
PARTE III | A DÉCADA DE 1990

CAPÍTULO 7 | DO DISCURSO À IMAGEM – FRAGMENTOS


DA HISTÓRIA FOTOGRÁFICA DA REFORMA DO
ENSINO MÉDIO TÉCNICO NO CEFET QUÍMICA*

MARIA CIAVATTA
ANA MARGARIDA CAMPELLO

É preciso que a lente mágica


enriqueça a visão humana
e do real de cada coisa
um mais seco real extraia
para que penetremos fundo
no puro enigma das imagens.
(Carlos Drummond de Andrade)1

Introdução
A produção do conhecimento tem a mesma complexidade que a produção
da vida. Significa que tanto a interpretação da inteligibilidade dos fatos, quanto
sua elaboração no nível oral ou escrito exigem que se vá além do imediato, do
visível em suas formas anunciadas pelo fenômeno, que não se dão a revelar
senão procedendo a um certo détour, à busca das relações ocultas sob sua
aparência fenomênica. Em outros termos, significa compreender a história como
processo social que ocorre em tempos e espaços determinados, e como método
– não como um conjunto de etapas definidas, mas como uma reconstrução do
objeto em suas múltiplas relações sociais, como concreto pensado (Kosik, 1976;
Labastida, 1983).
Neste projeto sobre as políticas de expansão do Ensino Técnico na década
de 1980 e as políticas de fragmentação da educação profissional na década de
1990, significa pensar os objetos singulares, no caso uma escola técnica, o CEFET
de Química-RJ, em sua particularidade histórica, como parte da totalidade

*
Agradecemos ao Centro de Memória do CEFET da Química-RJ a cessão das fotos.
1
Poema “Diante das fotos de Evandro Teixeira”

311
A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico

social da estrutura socioeconômica e política do país e das diversas conjunturas


das décadas focalizadas.2
A década de 1980 começa sob o signo da “transição para a democracia”,
depois de quase duas décadas de ditadura civil-militar. O autoritarismo, porém,
é um processo inerente à história da sociedade brasileira, e a figura do Estado
autoritário e intervencionista está associada ao próprio desenvolvimento do
Estado no país. Sob a ideologia do liberalismo, o Estado sempre interveio a fim
de afastar qualquer obstáculo ao funcionamento “cultural” e “automático” do
mercado. São os grupos de poder que, em diferentes conjunturas históricas,
cobram maior ou menor intervenção do Estado (Franco e Simon, 1987).
Tanto do ponto de vista econômico como do político e do social, esse
processo vem sofrendo direcionamentos particulares em cada conjuntura
histórica.3 Com a opção desenvolvimentista nos anos 50 e a intensificação da
associação ao capital estrangeiro a partir de 1964, ocorre o aprofundamento da
internacionalização da economia e a implantação dos grandes projetos
transnacionais sob a chancela do autoritarismo. Nos anos 1980 e 1990, com o
retorno à democracia representativa, amplia-se a abertura da economia à
inserção no mercado do grande capital internacional. É nesse contexto,
delineado aqui em linhas muito gerais, que, nos anos de 1980, o MEC lança o
Programa de Expansão do Ensino Técnico –PROTEC, em que as Escolas
Técnicas Federais foram chamadas a criar as unidades de ensino
descentralizadas, UNEDs.4
A compreensão do aprofundamento desse processo, tanto político e
econômico como educacional, a partir, primeiro, do Governo F. Collor e, depois,
do Governo F. H. Cardoso, apresenta algumas particularidades. O projeto
neoliberal prevê o Estado mínimo, o “ajuste fiscal” para garantir o superávit para
o pagamento das dívidas externa e interna, altos níveis de acumulação; privatização
e exploração das riquezas nacionais por grupos econômicos de interesse
transnacional; a terceirização de serviços públicos ou o repasse para as instâncias
estaduais e municipais, sem a transferência do montante necessário de recursos,
o que tem nos conduzido à falência das estruturas de serviços sociais (saúde,
saneamento, habitação, educação). A privatização e a descentralização em curso
operam com a ideologia da participação da sociedade para resolver os problemas

2
Para maior detalhamento da questão, ver Frigotto, 2005, neste Relatório.
3
Essa breve reflexão sobre o contexto do período tem por base Ciavatta, 2002.
4
Sobre o tema, ver Franco, 1988 e Frigotto, Franco e Magalhães, 1992.

312
PARTE III | A DÉCADA DE 1990

locais, aliviando-se o Estado de despesas próprias ao setor público, como são os


serviços básicos, direitos a serem assegurados a todos os cidadãos.
No plano do trabalho, a reestruturação produtiva e a nova organização
do trabalho estavam em curso desde os anos 1970 nos países desenvolvidos e,
notadamente, nos anos 1990 em países periféricos, em desenvolvimento, como
o Brasil. A “flexibilização” ou a desregulamentação progressiva das relações
de trabalho, a terceirização, a precarização das ocupações, o subemprego e o
desemprego passam a ser lugar-comum de angústia e privação de milhões de
brasileiros e suas famílias.
Criam-se sucedâneos ideológicos como o mito da “empregabilidade”,
repassando aos indivíduos a responsabilidade de serem mal formados, não
capacitados profissionalmente, sem escolaridade suficiente para atender aos
requisitos do avanço das forças produtivas. Nos anos 1990, com a aprovação da
LDB (Lei n. 9.394/96) e a reforma do Ensino Técnico Médio por meio do
Decreto n. 2.208/97, da Portaria MEC n. 646/97 e de outros instrumentos legais,
as Escolas Técnicas Federais – ETFs são transformadas em Centros Federais de
Educação Tecnológicas – CEFETs.
A oferta generosa de recursos do Programa de Reforma da Educação
Profissional – PROEP para construção, reformas, equipamentos e formação de
recursos humanos (Portaria Interministerial MEC/MTb n. 1.018/97) condiciona essas
instituições públicas à reforma prevista pelo Decreto n. 2.208/97.5 Seus artigos mais
polêmicos são a separação do Ensino Médio integrado ao Técnico em favor do
Ensino Técnico concomitante ao Ensino Médio (interno ou externo) e os cursos
pós-médios; a extinção progressiva das vagas para o Ensino Médio nas ETFs e nos
CEFETs; e os cursos básicos, oferecidos também pelo Plano Nacional de Qualificação
do Trabalhador – PLANFOR-MTb com apoio financeiro do Fundo de Amparo ao
Trabalhador – FAT. Estes últimos são oferecidos por diversas instituições públicas
(como os CEFETs, as universidades) e privadas (o Sistema S, sindicatos, ONGs),
que se abrem a trabalhadores sem exigência de escolaridade anterior, mas que
atendem à atenuação dos efeitos sociais perversos do desemprego crescente no país.
Neste trabalho, partimos desse contexto recém-esboçado, buscando
utilizar uma fonte alternativa de pesquisa, a fotografia. Para sua realização, foi
pesquisado o acervo fotográfico da Escola Técnica Federal de Química, em
que buscamos apreender, pelas imagens, as transformações ocorridas no interior da

5
Além de determinar a separação do Ensino Médio do Ensino Técnico, por meio de duas matrículas,
instituindo o ensino concomitante interno ou externo e o incentivo ao Ensino Técnico Pós-Médio, o
Decreto n. 2.208/97 estabeleceu três níveis de educação profissional: o nível básico, o técnico e o tecnológico.

313
A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico

escola, nas décadas de 1980 e 1990, anos de implantação, pelo governo federal, de
duas políticas aparentemente contraditórias: como vimos, na primeira década
propõe-se e estimula-se a expansão do Ensino Médio Técnico; no final da segunda,
proíbe-se o desenvolvimento do Ensino Médio Técnico e impõe-se a ruptura entre
a formação básica e a educação profissional. As imagens disponíveis retratam essas
mudanças? De que forma? Como captar o movimento da realidade por meio do
objeto fotográfico e da opacidade da qual se reveste? Foi o desafio desta pesquisa.
Trata-se de um estudo de caso. “O que pode ser aprendido desse único
caso?” é sua pergunta epistemológica motriz (Stake, 1994). A impossibilidade de
generalização não invalida o resultado indicativo da existência de certos fatos
captados também em outros estudos.6 Esse tem um papel encorajador e facilitador
da compreensão, a partir da fotografia e de outras fontes escritas e orais, das
mudanças ocorridas no interior das escolas técnicas federais no período.
Tendo como pano de fundo o substrato macropolítico das reformas
educacionais então ocorridas, a reestruturação produtiva e a reconstrução do
Estado, evidenciou- se, para além dos objetivos desta investigação, a
necessidade do desenvolvimento de uma metodologia de pesquisa que
permitisse a percepção da singularidade da escola estudada, de sua cultura,
da forma como se apropriou e redefiniu as leis e regras de implantação da
reforma da educação profissional.
Por isso, primeiro, trazemos alguns elementos metodológicos sobre a escola
como um lugar de memória (Nora, 1984; Ciavatta, 2004), o objeto fotográfico,
a fotografia como mediação (Ciavatta, 2002) e a importância do contexto e da
intertextualidade para a compreensão dos significados inerentes, mas ocultos,
na fotografia; em seguida, apresentamos os passos da pesquisa no CEFET
Química; por último, a partir das imagens existentes sobre a história da
instituição e, particularmente, a Semana de Química, analisamos algumas
particularidades do período e desse importante evento científico-pedagógico.

1. Questões conceituais e metodológicas7


Qual a memória que o CEFET Química preserva sobre si próprio? Como a
instituição se reconhece no torvelinho das transformações aceleradas em curso?

6
Como é o caso de outro estudo do mesmo projeto, em que são analisados os depoimentos de dirigentes
e professores desta e de outras escolas técnicas federais que sofreram a reforma de acordo com o
Decreto n. 2.208/97 (ver Frigotto e Ciavatta, 2005).
7
Essa seção tem por base Ciavatta, 2004 e 2002.

314
PARTE III | A DÉCADA DE 1990

Como interpreta as transformações do mundo do trabalho e, de modo especial,


a educação profissional e o ensino técnico considerando a mudança legal e
suas determinações? Como professores e alunos se reconhecem em meio às
contradições entre o que esperam, o que desejam e o que conseguem fazer no
contexto dessa mudanças? Queremos nos deter sobre esse rio do tempo que é
a memória e o lugar que ocupa na escola, permitindo aflorar lembranças e
formas de ser que constituem sua identidade.
A escola como lugar de memória8 – O historiador francês Pierre Nora
(1984) desenvolveu uma importante reflexão sobre “os lugares de memória”
que são os arquivos, as bibliotecas, os dicionários, os museus, os cemitérios e as
coleções, assim como as comemorações, as solenidades, as festas, os
monumentos, os santuários, as associações, os testemunhos de um outro tempo,
“sinais de reconhecimento e de pertencimento a um grupo” em uma sociedade
em que se tende a perder os rituais, a dessacralizar as fidelidades particulares,
que nivela por princípio, tendendo a reconhecer apenas indivíduos iguais e
idênticos (Nora, 1984: xxiv).
O autor inicia sua reflexão pela aceleração da história no mundo atual.
Descarta-se o passado cada vez mais rapidamente, perde-se a visão da totalidade,
há uma ruptura do equilíbrio. Com isso cresce a curiosidade pelos lugares em que
a memória se cristaliza e se refugia neste momento particular da história. É uma
memória dilacerada que se confunde com a ruptura com o passado. “O sentimento
de continuidade torna-se residual aos lugares de memória” (Nora, 1984: 1).
Por ser um espaço ocupado pela infância e a juventude, cujo sentimento
do passado é quase inexistente, a escola (que não é citada pelo historiador)
parece ser um lugar de memória ainda mais esmaecido. No entanto, esse
sentimento aflora com o passar do tempo e até os colegas de infância e de
juventude tornam-se, mais tarde, densos “lugares de memória”, contribuindo
para a construção de uma identidade singular e, ao mesmo tempo coletiva,
como pertencimento a um tempo, a um grupo com as marcas desse tempo.
“Segurar traços e vestígios é a forma de contrapor-se ao efeito desagregador da
rapidez contemporânea”, “em que o passado vai perdendo seu lugar para um
presente eterno com a ameaça da perda da identidade” (D’Alessio, 1993: 97).
Michel Pollack (1989) trata com propriedade o tema da memória e do
esquecimento na construção da identidade dos grupos.9 O autor analisa diversos

8
O tema “a escola como lugar de memória” consta originalmente de Ciavatta, 2004.
9
Essas reflexões são parte, originalmente, de Ciavatta, 2002: 32-34.

315
A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico

grupos sociais e as “memórias subterrâneas” ou marginalizadas, e como essas


memórias competem na consolidação de uma história, de uma versão, do papel de
um determinado grupo social, na preservação ou no esquecimento de certos fatos
e de seus significados. Pollack destaca o que ele chama de trabalho de
“enquadramento” da memória, que reinterpreta continuamente o passado em função
dos embates travados no presente, em função da identidade dos grupos detentores
dessa memória. Em um segundo texto (Pollak, 1992), trata, especialmente, dos
processos e dos atores que intervêm na formalização e consolidação da memória.
O autor destaca a importância da história oral para o afloramento das “memórias
subterrâneas” represadas pelas imposições da ordem social.
Velho (1988) busca articular memória e projeto: a primeira dá uma visão
retrospectiva, do passado; o segundo permite uma visão prospectiva, projetando
o futuro, ambos contribuindo para situar o indivíduo, suas motivações e o
significado de suas ações, dentro das conjunturas de vida, na sucessão das
etapas de sua trajetória.
Para Velho, a memória é fragmentada, e o sentido de identidade do
indivíduo depende, em parte, da organização desses fragmentos. O projeto,
expresso por meio de conceitos, palavras, categorias, seria um instrumento
básico de organização desses fragmentos e de negociação da realidade com
outros atores sociais, individuais ou coletivos.
A sociedade fomenta uma multiplicidade de motivações, produzindo a
necessidade de projetos, mesmo que contraditórios ou conflitantes. O projeto
seria um meio de comunicação, expressão, articulação de interesses, objetivos,
sentimentos, aspirações. Ele é dinâmico e permanentemente em elaboração
reorganizando a memória do indivíduo, dando-lhe novos sentidos e significados,
o que repercute na construção das identidades, que mantêm o passado em
permanente reconstrução.
Com isso queremos dizer que a identidade que cada escola e seus
professores, gestores, funcionários e alunos constroem é um processo dinâmico,
sujeito permanentemente à reformulação relativa às novas vivências. De outra
parte, esse processo está fortemente enraizado na cultura do tempo e lugar em
que os sujeitos sociais se inserem e na história que se produziu a partir da
realidade vivenciada, que constituiu ela mesma “um lugar de memória”.
A reforma do ensino médio e profissional dos últimos anos certamente
trouxe implicações para a identidade do CEFET Química. Por ter sido um
processo no qual esse e os demais CEFETs tiveram que se inserir, sem a opção
do contrário, suas identidades foram afrontadas por um projeto não construído
por eles próprios, mas por sujeitos externos. A contradição vivida esteve na

316
PARTE III | A DÉCADA DE 1990

obrigação de apropriarem-se desse projeto como seu. Como a nova identidade foi-
se tecendo? Até que ponto a comunidade escolar tem consciência disso? Qual a
memória que preserva e qual a história que está sendo construída sobre si própria?
Assim, para que a escola seja capaz de construir organicamente seu
próprio projeto político-pedagógico e assumir o desafio de uma formação
integrada, reafirmando sua identidade, é preciso que ela conheça e compreenda
sua história. Que reconstitua e preserve sua memória, compreenda o que ocorreu
consigo ao longo dos últimos oito anos de reforma e, então, a partir disso, possa
decidir coletivamente para onde quer ir, como um movimento permanente de
auto-reconhecimento social e institucional. E, então, reconhecer-se como
sujeito social coletivo com uma história e uma identidade próprias a serem
respeitadas em qualquer processo de mudança.
O objeto fotográfico10 – A fotografia pertence a um conjunto de processos
em que ciência, técnica e arte estão imbricados na criação de um mundo de
possibilidades no domínio da imagem. A fotografia, diferente do cinema, paralisa,
detém uma fração mínima do continuum do tempo e altera a percepção do
movimento no ato de sua produção (Oliveira Júnior, 1994).
Ainda está por ser compreendido, em toda sua extensão e poder, o alcance
educativo dos processos ligados à imagem. Por ora, conhecemos alguns de seus
efeitos por meio dos estudos de comunicação e de crítica de arte, principalmente.
A comunicação, a velocidade, a produção de signos e imagens
multiplicáveis, indefinidamente, a ênfase no fragmento e na aparência, a recusa
ao “fetiche da totalidade” são alguns dos símbolos mais expressivos desta época
que se convencionou chamar de pós-moderna (Lyotard, 1979). Harvey (1992:
19) admite algum tipo de relação necessária entre a ascensão das formas
culturais pós-modernas e a emergência de modos mais flexíveis de acumulação
do capital e de um novo ciclo de “compressão espaço-tempo” na organização
do capitalismo, o que o leva a conceber o Pós-Modernismo como uma condição
histórica. A fotografia emerge no mundo ocidental sob o signo do Modernismo,
sob a racionalidade iluminista e a ótica renascentista. Mediante as sucessivas
mutações técnicas, que a aperfeiçoaram, a fotografia atravessa os dois mundos,
do Modernismo ao Pós-Modernismo, partilhando diversas temporalidades.
Buscamos nas imagens a verdade dos fatos e nos encontramos com meras
imagens da verdade, a aparência dos fatos. Metodologicamente, trata-se de
fazer a arqueologia da imagem, a crítica interna das ideologias de legitimação

10
Essa seção consta originalmente de Ciavatta, 2004a.

317
A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico

da realidade ou das formas de apresentação da realidade pelas fotografias; a


função da produção e do consumo das imagens na construção da modernidade
e da condição pós-moderna.
A busca da compreensão pela totalidade, implícita, mas oculta, na
fotografia, supõe o esforço de articular as partes em um todo com seus
significados. Significa, como já escreveu Drummond sobre as fotos de Evandro
Teixeira, buscar “extrair do real de cada coisa, um mais seco real”. Isso supõe
investigar o contexto da produção, da apropriação e do uso da fotografia.
Assim nos encontramos no âmago de uma discussão aberta, que é o conceito
de fotografia como fonte histórica e toda a discussão teórica que a acompanha:
a crença na fotografia como imagem fidedigna, o realismo na fotografia, a sedução
do prazer da visão, a informação e a desinformação trazidas pela ambigüidade de
sentidos que envolvem o objeto fotográfico, a subjetividade e a objetividade que
ela carrega, o problema do olhar, da interpretação, que é buscar desvendar a
natureza do documento fotográfico. Como arte, como documento ou fonte
histórica, a fotografia é sempre produto do encontro entre o olhar humano e o
aparato técnico gerado a partir da perspectiva renascentista.11
Em outros termos, poderíamos dizer que vemos o mundo conforme a
ideologia burguesa o representa. Mas isso seria desconhecer que o aparato
técnico está submetido ao olhar do fotógrafo e à leitura de quem contempla a
fotografia. Ambos, fotógrafo e leitor, trazem para o ato fotográfico e para a
visão da imagem também sua subjetividade, seus valores, seus interesses, sua
forma de representar, de ler e de compreender o mundo.
Ao trazer como epígrafe para este texto o poema de Drummond “Diante das
fotos de Evandro Teixeira”, estamos também querendo enfatizar a importância do
olhar do fotógrafo. As fotos que examinamos do cotidiano do CEFET Química
foram realizadas por fotógrafos amadores, em muitos casos, os próprios professores
registrando atividades realizadas sob sua orientação. Nesse caso, o olhar do fotógrafo
está comprometido com a própria realidade fotografada, sua escolha dos fragmentos
a serem preservados, em geral, não remetem a uma visão mais ampla e crítica da
realidade retratada. Ela tende a ser descritiva, a exemplo dos jornais internos das
instituições. Cabe ao pesquisador buscar outras fontes para interpretá-la e tentar
se aproximar da totalidade oculta na forma fenomênica captada pela fotografia.

11
Em termos ópticos, o aparato dirigido pelo olhar, carregado da subjetividade do fotógrafo, trabalha o
espaço conforme a perspectiva renascentista (ou perspectiva artificialis, geométrica, central, exata,
clássica, linear, unilocular e albertiana), que tem por base a geometria euclidiana, obtendo “uma
sugestão ilusionista de profundidade com base nas leis ‘objetivas’ do espaço” (Machado, 1984: 63).

318
PARTE III | A DÉCADA DE 1990

No nosso caso, enquanto leitores desse acervo, temos nossa subjetividade


orientada, pelos referenciais teórico-metodológicos da pesquisa e, ao construir
nosso objeto de estudo a partir das imagens disponíveis, utilizando a fotografia
e outras fontes documentais, talvez, consigamos evidenciar alguns aspectos
mais críticos ou contraditórios que os sujeitos sociais diretamente envolvidos
nas atividades institucionais não logrem apreender.
A fotografia como mediação12 – O termo mediação é de uso freqüente
nas análises da área de comunicação e também na educação. Entretanto, seu
tratamento teórico ou conceitual é escasso na literatura disponível. Muitas
vezes, quando é corretamente utilizado, ele pode permanecer mais no nível da
intuição do que no da teoria. Outras vezes, é utilizado como entendimento de
variáveis da pesquisa. Mas a mediação não se confunde com variável. Diferente
da variável, ela não é um instrumento analítico de medição quantitativa do
comportamento de um fenômeno, nem a busca da relação de causa e efeito,
mas, sim, a especificidade histórica do fenômeno.
A mediação situa-se no campo dos objetos problematizados em suas múltiplas
relações no tempo e no espaço, sob a ação de sujeitos sociais. Para a interpretação
das fotografias como mediações, recorremos a outras fontes (historiográficas,
literárias) a fim de situar as imagens em seu contexto. Por meio de um processo de
leitura intertextual, buscamos ir além da imagem visual, do fenômeno aparente, e
poder reconstruir um pouco da história que lhe dá significado.
Tratar a fotografia como uma mediação significa entendê-la como um
processo social denso, produzido historicamente. Para tanto, resgatamos os
conceitos de essência e aparência que permitem fazer a distinção entre o objeto,
seu conhecimento imediato e a concepção do conhecimento mediado pelos
processos que o constituem (Franco, 1990; Ciavatta, 2001). Nosso contato imediato
com a realidade é com sua aparência, com o que se mostra à vista, as qualidades
exteriores ou o que constitui a representação de um objeto. Para se chegar à
“coisa em si”, é necessário fazer um certo détour (Kosik, 1976). Por isso o
pensamento dialético distingue entre os conceitos da coisa e de sua representação.
A questão teórica das mediações estabelecidas pelas práticas sociais,
como outras questões semelhantes, não mereceu tratamento formal, específico
em Marx.13 Ela se situa no contexto metodológico com que Marx construiu

12
Essa seção consta originalmente de Ciavatta, 2002 e 2004a.
13
Encontramos elementos explícitos do método de investigação do materialismo histórico na Crítica à Economia
Política e em O Capital. Toda a obra de O Capital é um exercício metodológico partindo do conceito mais
simples de mercadoria e chegando aos elementos mais concretos, a suas mediações, como o trabalho assalariado,
o capital, a troca, a divisão do trabalho etc., até alcançar a totalidade das relações capitalistas de produção.

319
A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico

sua obra. Lukács (1967) vai desenvolver o conceito tratando as mediações não
como simples pontos de vista, mas como aspectos da realidade objetiva, suas
relações e vinculações, que constituem modos e formas da existência social. É
no campo da particularidade histórica que se situam as mediações.14
A fotografia é o mundo “claro-escuro de verdade e de engano”, cujo
elemento principal é a ambigüidade, o duplo sentido, porque, como em outras
linguagens, o fenômeno indica a essência (sua produção e destinação, sua
apropriação e seu uso), mas também a esconde. A essência não é imediata à
compreensão, mas mediata ao fenômeno. Embora a realidade seja a unidade
da essência e da aparência, a essência manifesta-se em algo diferente do que
é (Lukács, 1967: 11-23). Nesse sentido, conhecer um objeto é revelar sua
estrutura social. Assim também é o caminho do conhecimento da fotografia
como fonte histórica.
Contexto, significado e intertextualidade na análise das fotografias – Nos
últimos anos, temos trabalhado com as idéias de Marx buscando suas interfaces
com outros autores, principalmente, os que se situam no materialismo histórico,
mas trouxeram acréscimos à compreensão da realidade e dos novos desafios
postos à investigação social. Os conceitos de contexto e de significado estão
entre essas idéias. Não que estivessem ausentes do pensamento de Marx, mas,
como outras, não foram suficientemente explicitadas.
No Método da Economia Política, Marx (1977) dá o exemplo da população
mostrando como a idéia, abstraída das condições de sua produção, é genérica. É
necessário remetê-la às condições de vida e de trabalho dos sujeitos que a compõem
(o trabalho assalariado, o capital, o que supõe a troca, a divisão do trabalho, os
preços etc.) para se ter a população em sua concretude, na sua humanidade,
“como rica totalidade de determinações e de relações numerosas” (Marx, 1977:
229). Em outros termos, Marx remete a idéia de população à totalidade social e
às múltiplas mediações que a constituem. É esse também o sentido de contexto,
que não é a mesma coisa que falar do que está “em torno” do objeto, como
admitem alguns enfoques teóricos. Contexto é o conjunto de relações que dão
conteúdo e forma a um objeto, que o constituem ontologicamente. Se defendemos
que a fotografia não se esgota na imagem visual, na aparência fenomênica do
objeto, mas implica as condições de sua produção, estamos nos referindo à sua
totalidade social e, metodologicamente, fazemos um apelo ao contexto do qual
ela é parte, como mediação, processo social complexo.

14
Ver a exposição detalhada sobre o tema em Ciavatta, 2001.

320
PARTE III | A DÉCADA DE 1990

Borón (2001: 70), tratando do “marxismo e da filosofia política”, alerta para


a onipotência teórica que termina no dogmatismo, no sectarismo e na esterilidade
prática da teoria como instrumento de transformação social: “Sem o marxismo ou
de costas para o marxismo, não podemos adequadamente interpretar e, muito
menos, mudar o mundo. O problema é que só o marxismo não basta. Ele é necessário,
mas não suficiente”, afirmação que demanda alguma explicitação neste trabalho.
Como filosofia, como história da produção da vida e do conhecimento,
como crítica à economia política, Marx oferece instrumentos críticos fundamentais
para a análise social e as lutas políticas. Muitos autores, porém, destacam alguns
conceitos que foram utilizados e não suficientemente desenvolvidos por Marx, a
exemplo de classe social, mediação, contradição etc. Em um trabalho teórico
complementar e, às vezes, polêmico, outros autores desenvolveram o pensamento
marxiano a partir do que consideram insuficiências no desenvolvimento do
conceito ou necessidade a partir dos novos problemas postos pela vida social, a
exemplo de Kosik (1976) e a dialética do concreto; Mészáros (1981 e 2002) e a
teoria da alienação, os limites do capital; Gramsci (1981) e o conceito de práxis;
Lukács (1981) e a ontologia do ser social, a questão das mediações. É nesse
sentido que o uso da imagem como fonte histórica nos coloca o difícil problema
de ir além do fenômeno visual, da apreensão imediata, de seu uso como ilustração
e buscar elementos teóricos para apreendê-la como produção social, processo
complexo, mediação histórica que deve ser compreendida em sua articulação
com a totalidade social de que faz parte.
Quando buscamos extrair da fotografia seu significado, nos deparamos com
uma dificuldade teórica quanto ao conceito de significado.15 Sua interpretação é
fruto do encontro da objetividade complexa do objeto fotográfico, moldada pela
subjetividade do olhar do fotógrafo que a recortou da realidade, com a subjetividade
do olhar que a interpreta. Marx não negou a subjetividade presente em todo agir
humano, pelo contrário, enfatizou o sujeito humano agindo sobre a natureza, gerando
conhecimento, cultura, relação com os outros homens. Mas não teorizou
especialmente sobre subjetividade e sobre o conceito de significado. Dar sentido
ao signo, ao sinal, extrair dele uma compreensão é lidar com a conjugação da
objetividade do contexto e a visão subjetiva do sujeito. Para fins deste trabalho,
importa-nos considerar que o significado é fruto do conjunto de relações que se
estabelecem no ato de ver, como um ato de inteligibilidade do mundo.

15
Não nos propomos examinar como a filosofia da linguagem e a semântica, em particular, e a psicanálise
se ocupam do significado. O antropólogo Clifford Geertz (1978: 207) coloca o termo no âmbito da
cultura – não seriam “cultos e costumes, mas as estruturas de significado através das quais os homens
dão forma à sua experiência (...)”.

321
A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico

Na análise das fotografias temos um outro problema metodológico: como


fazer as fotos “falarem” em seu mutismo de beleza e sedução? Em nossos estudos
(Ciavatta, 2002), nos deparamos com a necessidade de recorrer a outros tipos
de textos referentes ao mesmo tema para a interpretação da imagem fotográfica.
Nesse sentido, a exemplo de Mauad (2004), apoiamo-nos na historiografia
produzida sobre os temas e mesmo em crônicas e material da imprensa da
época. Segundo a autora, o princípio de intertextualidade é uma exigência da
fotografia que, “para ser interpretada como texto (suporte de relações sociais),
demanda o conhecimento de outros textos que a precedem ou que com ela
concorrem para a produção da textualidade de uma época. Sendo assim, o uso
de fotografias como fonte histórica obriga tanto as instituições de guarda quanto
os historiadores ao levantamento da cultura histórica, que institui os códigos
de representação que homologam as imagens fotográficas no processo
continuado de produção de sentido social (Mauad: 2004: 20).

2. O processo de pesquisa no acervo fotográfico do CEFET Química


Na maioria das escolas, os acervos documentais preservados com rigor
arquivístico são os que se referem aos dados funcionais e burocráticos da vida
institucional (atas, documentos legais), dos alunos (fichas de matrícula e de
aproveitamento escolar) e dos professores e funcionários (relações trabalhistas).
Excepcionalmente, os documentos relativos aos projetos e aos processos político-
pedagógicos estão registrados e disponíveis. E ainda mais raramente existe
uma memória fotográfica, que em geral está nas mãos dos professores e
funcionários antigos, que as preservam como parte de suas vidas, quase como
bens familiares.
No caso do CEFET Química, ficamos agradavelmente surpresos com os
álbuns, caixas e envelopes contendo fotografias de diferentes períodos. Embora
não organizadas, estavam bem conservadas e dentro da instituição. A solícita
recepção da direção e do Setor de Divulgação e Informação levou-nos a um
processo progressivo de conhecimento e de envolvimento com o acervo, na
forma de um trabalho conjunto de selecionar as fotos e organizá-las de modo a
constituir o Centro de Memória do CEFET Química. Foram os seguintes os
principais passos ou momentos da pesquisa.
a) Contato com o acervo fotográfico – A manipulação das fotografias
disponíveis foi acompanhada pela responsável pela área de comunicação da
escola, que nos forneceu informações complementares de modo a permitir a
identificação das fotos.

322
PARTE III | A DÉCADA DE 1990

As diversas caixas de fotografias foram sendo abertas gradativamente,


procurando-se, na sua manipulação, ir percebendo quais eram os temas ou
conteúdos retratados. Foram muitas as visitas feitas à escola. O contato com as
fotografias, em decorrência da maneira como elas estavam armazenadas, foi
progressivo e acompanhado por relatos de alguns professores e consulta a
documentos escritos, que permitiram a crescente familiarização com a história
da escola, com sua cultura e sua ação educativa.16
b) Identificação dos temas e elaboração dos códigos de identificação –
Durante a manipulação do acervo foram sendo registradas as fotografias
existentes, descrevendo-as de forma resumida, em termos do conteúdo
retratado, assim como o local de seu armazenamento. A partir dessas
informações, estabelecemos uma categorização preliminar de forma a permitir
uma visão geral do acervo disponível e a atribuição futura de códigos de
identificação das fotos a partir dos temas retratados. Assim, foram constituídos
os temas ou séries e os subtemas ou subséries fotográficas.
c) Elaboração do mapeamento do acervo – A partir dos temas identificados
na etapa anterior, elaboramos um grande mapa de dupla entrada: ano e tema,
de forma a possibilitar a percepção da maior ou menor incidência de um
determinado tema, ao longo do período estudado.
d) Consulta a materiais informativos sobre a historia do CEFET Química –
Nesse momento, nosso objetivo foi complementar as informações de forma a
enriquecer a percepção da dinâmica da escola. As fotografias ganharam
significado com o recurso permanente a outras fontes: o relato oral, os
documentos escritos, as entrevistas, as visitas à escola em momentos especiais
como, por exemplo, durante a realização da Semana de Química, na unidade
do Maracanã, ou da Semana de Tecnologia na sede em Nilópolis.
e) Caracterização geral do acervo – Pudemos observar a ausência de
uma política de registro e tratamento da imagem fotográfica da escola, ficando
essa memória dependente de iniciativas e interesses individuais, 17 o que

16
Participaram desse processo inicial de identificação e organização das fotos, juntamente com as autoras
deste texto, do primeiro semestre de 2003 até o final de 2004, as profas. Rosangela Aquino da Rosa e
Maria Célia Freire de Carvalho, e as bolsistas e Iniciação Científica Aline Ribeiro da Silva e Rossana
Duarte Emmerich.
17
É importante assinalar que o desenvolvimento da pesquisa serviu como incentivo à elaboração e implantação
pelo CEFET Química do Centro de Memória para recuperação de documentos antigos e de seu acervo
fotográfico. O Centro será desenvolvido no CEFETQ como objeto de pesquisa do Projeto de Dissertação
de Mestrado da profa. Rosângela Aquino da Rosa, sob o título “Resgate da memória do ensino técnico no
Cefet de Química de Nilópolis/RJ através da fotografia”, no Instituto Oswaldo Cruz da FIOCRUZ.

323
A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico

provavelmente traz como conseqüência a superrepresentação de determinados


temas em detrimento de outros.
Ao que parece, em nenhum momento de sua história, o CEFET Química
teve em seus quadros um profissional diretamente responsável por documentar
oficialmente por meio de fotografias suas diversas fases e a evolução de sua
ação educativa. A ausência de um “fotógrafo oficial” foi suprida pela existência
de vários “fotógrafos amadores”, envolvidos, na maioria das vezes, com a
atividade fotografada: é o caso dos professores Ivonilton Alves Fontan, Balduíno
da Silva Melo e Fernando Pádua Azevedo (Silva, 2004).
Não fazem parte do acervo manipulado, por exemplo, aquelas fotos oficiais
de formandos, tão comuns nas escolas e que poderiam, se colocadas em série
histórica, dar idéia das mudanças ocorridas, ano a ano, tanto em termos do
tipo de festividade realizada (mais ou menos formal: em que momento passa-se
a usar beca?) como de algumas características dos alunos atendidos (proporção
de meninos e meninas, adultos e jovens, negros e brancos, entre outras).
A participação da escola em eventos externos – por exemplo, a ECO 92
– trouxe para a pesquisa algumas informações de contexto, que com certeza
não seriam lembradas em uma pesquisa sobre escolas que não tivesse a fotografia
como fonte histórica.
Alguns aspectos da história da escola ganharam relevo a partir da
manipulação do acervo fotográfico: a importância da sede – sair das
dependências do CEFET/RJ e ganhar sede própria e, principalmente, a
percepção de sua cultura própria,18 sua especificidade enquanto uma escola
técnica de química, com seus cursos próprios, diferente das demais escolas
técnicas federais ligadas à área da engenharia. A ciência de base, no primeiro
caso, a química e, no segundo, a física, faz grande diferença no visual interno
da escola – os laboratórios com suas retortas, balões, ácidos e solventes, no
lugar de canteiros de obras ou laboratórios de eletrônica ou eletrotécnica. O
“Espírito da Química”19 é expressão recorrente nos textos escritos e na fala dos

18
Para uma discussão do conceito de cultura, ver, entre outros, Bosi, 1992 e Cardoso, 2003.
19
A expressão “Espírito da Química” é explicada em documentos oficiais como resultante da necessidade de
afirmação de uma escola que nasce, em 1942, como curso técnico da Escola de Química da Universidade
do Brasil e que só em 1959, com sua transferência para a Escola Técnica Nacional (hoje, CEFET/RJ),
passa a integrar a rede de Escolas Técnicas Federais. Essa mudança que deveria representar a transição
para uma sede própria, representou uma estadia de quase quatro décadas na sede da ETN. A briga pela
preservação da autonomia e por sua constituição, de pleno direito, como uma Escola Técnica Federal,
assim como a afirmação da Química enquanto ciência de base em uma rede de escolas em que a Física
constituía a principal base cientifica dos cursos realizados parece explicar a cultura própria dessa escola.

324
PARTE III | A DÉCADA DE 1990

professores. Percebemos a especificidade dessa escola, em um processo que foi


deslanchado pelo contato com o acervo fotográfico, mas que também passou
pela consulta a outras fontes, tanto orais quanto escritas.

3. Fragmentos da memória do CEFET Química: imagens e relatos


das décadas de 1980 e 1990
“A natureza que fala à câmara não é a mesma que fala ao olhar; é outra,
especialmente porque substitui a um espaço trabalhado conscientemente pelo
homem, um espaço que ele percorre inconscientemente” (Benjamin, 1994:
94). No texto citado, Benjamin chama atenção para a circunstância de a
fotografia revelar os passos dados pelo homem em seu caminhar, desvelando
um “inconsciente ótico” encoberto pelo fato de que percebemos o movimento
do homem que caminha sem nos dar conta de sua atitude no exato momento
em que ele dá um passo.
A ausência de uma política oficial de registro (o que, em si, não é um
mal) faz com que as imagens disponíveis nem sempre cubram a totalidade
das atividades desenvolvidas. É importante enfatizar que o mapeamento
realizado indica apenas a disponibilidade atual, no acervo da escola, de
imagens que foram preservadas. E a ausência de imagens não significa,
portanto, que a atividade não tenha sido desenvolvida neste ou naquele
ano, mas tão-somente que não foram encontradas fotografias sobre esse tema,
nesse ano.
O que nos revelam sobre o caminho trilhado, nos anos 1980 e 1990, pelo
CEFETQ os fragmentos colhidos pelo olhar de seus fotógrafos? Que sentido
dar a esses fragmentos? Somos capazes de perceber as mudanças que vão
acontecendo no interior dessa escola, nesse espaço por ela percorrido em direção
à “formação do cidadão produtivo”?
Nossa opção teórico-metodológica pelo entendimento da fotografia
como uma mediação e da intertextualidade como uma necessidade para a
leitura da fotografia, já explicitada na primeira parte deste texto, guiou-nos
na escolha das fotografias que selecionamos e que vão aos poucos revelando,
no interior da escola, a tensão entre duas lógicas opostas – a lógica da
educação, que é de desenvolver valores e comportamentos eticamente aceitos
pela sociedade que educa, e a lógica da produção, da preparação para as
necessidades do mercado de trabalho das quais o ensino técnico participa –
e a progressiva submissão da escola a uma delas, o que vem a ser uma das
características das reformas educacionais dos anos 1990 (Tanguy, s. d).

325
A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico

A Semana da Química – Entre as imagens disponíveis no acervo


fotográfico do CEFET Química sobressaem aquelas relativas à realização da
Semana de Química. Essas imagens constituem uma série histórica, desde 197820
até os dias de hoje e são de grande valor para o desenvolvimento desta pesquisa,
na medida em que constituem o coroamento de atividades e projetos
desenvolvidos ao longo de todo o ano pelos alunos e professores da escola.

CEFETEQ, Rio de Janeiro, autor desconhecido, 1982.


V Semana de Química. “Apresentação de projetos”

As Semanas são organizadas de forma a expor-se para um público externo,


como uma estratégia de afirmação da identidade pedagógica da escola. Por
meio dessas atividades, portanto, a escola se apresenta, destaca os principais
aspectos de seu projeto pedagógico, aqueles pelos quais quer se fazer conhecer.
São várias as atividades que integram as Semanas de Química: palestras,
debates, minicursos, competições esportivas, atividades artísticas, apresentação
de projetos e de experimentos, visitações, homenagens e premiações. O professor
Ivonilton Alves Fontan, ao relatar o início, em 1978, das Semanas de Química,
destaca a necessidade de realização de um evento que tivesse repercussão nos

20
Desde a origem, em 1978, apenas por três anos a Semana de Química não se realizou: em 1993 e 1994,
em razão de uma obra emergencial, e em 2000, em virtude da alteração de calendário provocada por
uma greve prolongada. (CEFETEQ, 2001).

326
PARTE III | A DÉCADA DE 1990

meios acadêmicos, políticos e profissionais como forma de afirmação de uma


escola – a menor de todas as escolas técnicas federais – que, na época, não
tinha sede própria, funcionando há 30 anos nas dependências do CEFET/RJ
(Fontan, 2001).
A aberturas da Semana de Química inclui sempre uma solenidade com
a mesa das autoridades internas e, em alguns casos, externas, como a presença
do prefeito César Maia, que participou da abertura em 2001. Há também o
corte de fita para a entrada nos laboratórios ou espaços abertos com os projetos
que serão apresentados. Em 1983, esse ato foi definido pelo professor e fotógrafo
Ivonilton Alves Fontan como de “popularização científica” (CEFETq, 2001).
Apresentação de minicursos, palestras e debates – “Foi a partir da terceira
Semana em 1980, que os alunos passaram a reivindicar maior participação nos
eventos. Nas duas primeiras edições, eles foram espectadores. A partir daí
começaram a virar protagonistas” (CEFETQ, 2001: 4). Os projetos são
apresentados por meio de cartazes, gráficos, textos escritos, maquetes ou de
experimentos e demonstrações com equipamentos.

CEFETEQ-RJ, autor desconhecido, 1982. V Semana de Química.


“Palestra ministrada para alunos da escola e funcionários da indústria”

327
A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico

A partir da década de 1990, foram definidas duas categorias de projetos: “os


INOVADORES, abrigando os trabalhos de pesquisa científico-tecnológica, e os
DIDÁTICOS, voltados para a popularização da ciência” (CEFETEQ, 2001: 4,
grifos do autor).
Inicialmente, eles estavam localizados nos laboratórios. A partir de 1999,
muitos saem dos laboratórios e passam a ocupar espaço no pátio de entrada da
escola. Além das fotografias da apresentação dos projetos didáticos e dos
experimentos, estão registradas muitas atividades preparatórias dos locais e
dos monitores.
O uso da informática trouxe mais vivacidade e cor aos painéis de
apresentação, além da introdução de computadores nas demonstrações.
Em relação às temáticas, os projetos revelam as novas relações do CEFETQ
com a sociedade. No caso da unidade de Nilópolis, a partir das políticas de
inclusão social estimuladas pelo governo federal nos anos 1990, registra-se “a
preocupação em desenvolver trabalhos de integração social e prática da
cidadania, entre as escolas e os moradores das comunidades que as cercam”.
São estabelecidos convênios e parcerias com organizações não-governamentais
(ONGs), empresas privadas e órgãos públicos (universidades, prefeituras,
secretarias) visando oferecer cursos básicos de capacitação profissional. Nos finais
de semana, “o CEFET Química disponibiliza o uso de quadra de esportes para o
treino de equipes da comunidade” (CEFET Química, 2003: 6).
As Semanas também registram intensa atividade intelectual, tanto pela
apresentação dos projetos, que demanda, em regra, um semestre de preparação,
quanto pela realização dos minicursos, palestras e debates com a participação
de professores da própria escola, convidados e egressos, versando sobre temas
das ciências da natureza, história, literatura e outros. As fotografias disponíveis
revelam a existência dessa prática desde as primeiras semanas
Nos últimos anos, registram-se workshops de primeiros socorros, de
sensibilidade, oficinas etc. e, acompanhando a criação dos cursos de pós-
graduação pelos CEFETs, lançamento de livros.
Nova sede, nova unidade, muito mais alunos – As fotografias de
inauguração da nova sede ganham peso e significado no contexto da história
da escola contada em seus documentos escritos em tom que não deixa dúvidas
quanto a sua importância: “1986 entra para a história da ETFQ como um
marco, um divisor de águas, um começo de nova era”. Nessa frase, está a
síntese de dois momentos marcantes no discurso corrente no CEFET, o antes e
o depois. O “antes” é o nascimento como Curso Técnico de Química na
Universidade do Brasil, nos idos de 1942, durante o Governo Getúlio Vargas,

328
PARTE III | A DÉCADA DE 1990

no ano de promulgação da Lei Orgânica do Ensino Industrial,21 e a transferência


para a Escola Técnica Nacional, em 1959.22
Estava presente a necessidade de afirmação da identidade dessa que
“era a mais nova e diferente das escolas pertencentes à rede federal de escolas
técnicas, a menor de todas, a única que oferecia apenas um curso e que não
dispunha de sede própria”, como registram frases correntes na escola. E o “depois”,
há pouco menos de 15 anos do início desse processo de expansão, 23 é a
participação no programa de
Expansão do Ensino Técnico
– PROTEC por meio das
Unidades Descentralizadas –
UnEDs, ampliando sua
atuação para o município de
Nilópolis, na Baixada
Fluminense. A escola passa
a atender, ainda no governo
do presidente Itamar Franco,
a um contingente de 2.500
alunos em quatro cursos
técnicos integrados (Quí-
mica, Alimentos, Biotecno-
logia e Saneamento) e um
especial – pós-segundo grau
(Química).

CEFETEQ-RJ, autor desconhecido, 2000.


“Nova sede, inaugurada em 1986”

21
Decreto-lei n. 4.073, de 30 de janeiro de 1942.
22
Ressaltamos que no mesmo ano, 1959, foram promulgados a Lei n. 3.552, que dispõe sobre a nova
organização escolar e administrativa dos estabelecimentos de Ensino Industrial do Ministério da
Educação e Cultura, e o Decreto n. 47.038, que aprova o Regulamento do Ensino Industrial.
23
Lembramos que tomamos como marco do início do processo de expansão da Escola Técnica Federal de
Química o ano de 1981, quando passa a ser oferecido o Curso Técnico de Alimentos, além do Curso
Técnico de Química Industrial, único curso oferecido por essa escola desde sua fundação, em 1942.

329
A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico

No manuseio do acervo fotográfico do CEFET Química tomam corpo e


surpreendem a dimensão e a força desse movimento de expansão do ensino
técnico, que parece explodir a partir do início dos anos 1980, conseqüências
da política educacional e das mudanças na base produtiva. Além disso, a
paridade formal entre o Ensino Técnico e o Ensino Secundário reconhecida
pela Lei n. 4.024/61 e a profissionalização compulsória no ensino de segundo
grau estabelecida pela Lei n. 5.692/71, redefinida pela Lei 7.044/82 ao que
parece, provoca um movimento de revalorização do ensino técnico e,
principalmente das escolas técnicas federais (Cunha, 1998). Nos documentos
oficiais da escola, esse movimento mais amplo e social, é lido como
conseqüência da força e garra de “uma pequena grande escola”.
Novos cursos técnicos – No início dos anos 1980, quando a Escola Técnica
Federal de Química funcionava nas dependências da Escola Técnica Nacional,
oferecia apenas o Curso Técnico de Química Industrial. Em 1981, acrescenta
o Curso Técnico de Alimentos, o que marca o início do processo de expansão
da Escola Técnica Federal de Química.

CEFETQ-RJ, autor desconhecido, 1995. “XVI Semana de Química.


Nos laboratórios reproduzem-se as práticas para exibição aos visitantes
– um momento para degustar a produção dos alunos do Curso de Alimentos”

330
PARTE III | A DÉCADA DE 1990

Em 1988, começa o processo de desenvolvimento do Curso Técnico


em Biotecnologia. As discussões pedagógicas, no interior da escola, para a
definição de novas habilitações a serem oferecidas na área da Química estão
registradas de forma bastante significativa em uma fotografia de professores
reunidos. Lê-se no quadro: “(1) Quais as especializações de Química que
caberia transformar em novas habilitações de segundo grau? (2) Haverá
mercado de trabalho para maior número de habilitações na área de Química?
(3) A que entidade cabe o registro dos técnicos em alimentos? E dos técnicos
a serem formados em novas especializações da Química, se criadas as
respectivas habilitações? (4) Como as empresas encaram o estágio dos técnicos
de segundo grau?”
Merece destaque, na análise dessa fotografia, a preocupação dos
professores com a dupla lógica a que está submetido o ensino técnico: a da
escola e a da produção, que ficam bem explicitadas no roteiro de discussões
registrado no quadro. Por um lado, refletem a partir da ciência de base que dá
sustentação e identidade aos cursos desenvolvidos – quais as habilitações da
Química24 que caberia transformar em novas habilitações de segundo grau? –
por outro lado, preocupam-se com a produção e mais especificamente com o
emprego – haverá mercado de trabalho para um maior número de habilitações
na área de Química?
Da ciência para a tecnologia – O ano de 1995, coincidentemente, marca
a mudança de denominação de Semana “de” Química (semana da ciência – a
Química) para Semana “da” Química – semana da Escola e de suas diferentes
habilitações (Química, Alimentos, Biotecnologia e Saneamento) – e o início
da realização da I Semana de Tecnologia (SEMATEC), na Unidade de Nilópolis.
Nessa passagem estão presentes elementos de uma discussão muito mais ampla
e que diz respeito não apenas à concepção dos cursos técnicos desenvolvidos
como também à relação entre ciência, técnica e tecnologia.25
A ênfase progressiva na tecnologia – um saber teórico que se aplica
praticamente – longe de significar um distanciamento da ciência, traz
implicações pedagógicas e ideológicas claras para uma educação e uma formação

24
Chamou também nossa atenção a ausência de menção à Biologia que, a partir de 1981, com o
desenvolvimento do Curso Técnico de Alimentos, passa a dividir com a Química o papel de ciência de
base dos cursos técnicos oferecidos.
25
Chauí (2003: 222) assim distingue técnica de tecnologia: “a técnica é um conhecimento empírico, que
graças à observação, elabora um conjunto de receitas e práticas para agir sobre as coisas. A tecnologia
(...) é um saber teórico que se aplica praticamente”.

331
A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico

científica baseadas em práticas cotidianas26 que possibilitem a percepção dos


efeitos tecnológicos do conhecimento científico, assim como do poderio
econômico das ciências (Chauí, 2003).

CEFETQ-RJ, Rosangela da Rosa, 2003, “XXIII Semana de Química.


Apresentação de projeto para alunos de escolas públicas”

As visitas realizadas em 2003, durante o desenvolvimento desta pesquisa,


à Semana da Química e à Semana de Tecnologia, e a conversa com alguns
alunos que apresentavam seus trabalhos e projetos, tanto inovadores como
didáticos, ampliou nossa percepção do potencial pedagógico e ideológico do
ensino técnico27 que, nas escolas da rede federal de educação tecnológica, ao
que nos parece, tem andado mais perto de uma concepção de ensino técnico-
científico do que de ensino técnico-profissional tout-court.

26
Exemplos de projetos apresentados na XVIII Semana de Química (1997): (1) determinação do sexo: análise
da cromatina sexual; (2) enriquecimento de alimentos a partir da semente de abóbora; (3) construção de
eletrodos íon-seletivos; (4) potencial alcogênico da saccharomyces cerevisiae em vinho de maçã; (5) produção
de chocolate; (6) ensinando a desenvolver projetos na área de síntese orgânica; (7) caracterização dos
trechos d’água do Rio Sarapuí; (8) lodo ativado; (9) chiclete; (10) pigmentos e corantes.
27
Tanguy (s/d: 60), ao discutir a arbitrariedade da divisão entre ensino científico e ensino profissional,
afirma que em ultima instância essa arbitrariedade encontra sua fundamentação na divisão social do
trabalho e cita o físico Lévy-Leblond, que muito pertinentemente o demonstrou: “On aboutit donc à
cette situation paradoxale: plus une science est impliquée dans la production ou plus simplement dans

332
PARTE III | A DÉCADA DE 1990

A presença de empresas e indústrias – do ensino técnico à educação profissional


– As primeiras semanas foram organizadas com recursos da própria escola e alguma
participação de empresas. A presença das empresas no interior das escolas técnicas
federais está documentada desde os anos 1970, por exemplo, no registro fotográfico
da visitação a projetos na I Semana da Química (1978), em que se percebe, junto
à exposição de instrumentos de laboratório, o estande de uma empresa, a Micronal.

CEFETQ-RJ, autor desconhecido, 1978. “Visitação de Projetos durante a


I Semana de Química, quando já estão presentes as empresas
– ao fundo, estande da Micronal”

A partir de 1995, o acervo registra o patrocínio e o logotipo de algumas


empresas na divulgação, e a presença de outras escolas, como as agro-técnicas.
Notam-se mais recursos materiais na apresentação dos estandes e a inclusão
de painéis para exposição de trabalhos.

la vie sociale, plus elle perd son caractère scientifique. Combien songeraient, en discutant la physique
‘contemporaine’, à y inclure non seulement l’électromécanique des circuits domestiques et du téléphone
et la mécanique automobile, mais aussi l’électronique élémentaire de la radio et de la télevision, la
dynamique des fluides de la plomberie, la physicochimie de la photographie d’amateur. On conçoit
pourtant toutes les implications pédagogiques d’abord, idéologiques ensuite, qu’auraient un
enseignement et une formation scientifique basés sur ces pratiques quotidiennes”.

333
A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico

As escolas técnicas, pelas características da formação que oferecem, a


preparação para o mundo da produção, sempre estiveram próximas às empresas,
enfatizando em graus menores ou maiores essa ligação intrínseca, dependendo
das conjunturas políticas e educacionais do país. Nos anos 1980, com a “transição
para a democracia, há uma retomada do discurso educativo em defesa do ensino
integrado entre o preparo operacional e os fundamentos científico-tecnológicos
e históricos sociais da produção, ou entre a formação geral e a formação específica.
Como vimos em outros trabalhos desta pesquisa, a discussão tomou forma nas
propostas da LDB como a polêmica sobre o Ensino Politécnico, que teve no
Sistema S e nos gestores das escolas técnicas federais seus mais fortes opositores.

CEFETQ-RJ, Rosangela da Rosa, 2003. “Faixa com logomarcas indicando o número


ampliado de participação de empresas e instituições como patrocinadoras do evento”

Nos anos 1990, além da permanência dessa disputa de políticas e de


concepção curricular para o Ensino Médio Técnico e a necessidade de estágios
curriculares para os egressos desse nível de ensino, surgiu uma nova vertente
de relação com o mundo produtivo, o empreendedorismo para os jovens. No
caso do CEFET Química, instalou-se uma estrutura de apoio com relação e
custos, serviços especializados, consultoria em gestão empresarial, marketing
e tecnologia por meio dos “Hotéis de projetos” e de um Projeto de Implantação

334
PARTE III | A DÉCADA DE 1990

de Incubadora de Empresas na Unidade de Nilópolis (Pesquisas, 2003). As


Semanas de Química passaram a ter o patrocínio ou o apoio de várias empresas
(PEPSI, PETROBRAS, UNILEVER e outras) e de instituições (a exemplo
da FAPERJ).
Nessa década registra-se também uma abertura do CEFET Química a
outras instituições. A presença de alunos de outras escolas parece ter sido
estimulada a partir de 1995, seja como visitantes ou como expositores, com
estandes próprios. A abertura da escola a outras instituições, a partir do mesmo
período, revela-se pela presença de alunos das escolas públicas de ensino
fundamental, identificáveis por seus uniformes.
Artes – As atividades artísticas são, ao longo dos anos, um ponto forte das
Semanas de Química pela variedade das apresentações e por sua articulação com
outras disciplinas. Da I à IX Semana (1978 a 1986), as fotos documentam atividades
de música coral e instrumental, com alguma incidência de dança e teatro.

CEFETQ-RJ, autor desconhecido, 1981. “IV Semana de Química.


Apresentação do coral na abertura da Semana, regência do
Prof. Sérgio Freitas (já falecido e homenageado
pelo coral, que adotou seu nome)”

A partir de 1995, há uma diversificação das modalidades registradas:


coral, música, dança, teatro, exposições de artes de alunos e de professores, e
shows musicais. Um aspecto importante é a apresentação teatral dos projetos

335
A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico

científico-tecnológicos, a exemplo da evolução da alquimia à química. No


entanto, segundo o depoimento da professora de Artes, Rosângela Aquino da
Rosa (Rosa, 2004), a Reforma que trouxe os cursos concomitantes, os pós-
médios e os cursos modulares, trouxe a fragmentação dos horários e das
atividades. Os alunos podem ter três turnos de atividades divididas entre o
CEFETQ e outras escolas, e não terem os mesmos horários em semestres
subseqüentes. Isso faz com que não tenham tempo livre para outras atividades,
as de artes incluídas, e não consigam organizar-se em grupos estáveis para
desenvolver a prática de teatro, música etc. No entanto, as Artes chamam
“atenção por revelar uma educação que não se caracteriza pelo aprendizado
profissionalizante, mas por um sentido mais geral da educação, em que se pode
desenvolver a sociabilidade e a criação” (Silva, 2004: 52).

CEFETQ-RJ, Rosangela da Rosa, 2004, XXIV Semana de Química.


“Projeto discente de ciência e arte”

Homenagens e premiações – Não encontramos nas fotos sinais de culto à


personalidade. As fotos de dirigentes existentes no acervo, retratam-nos em
atividades, juntos a professores, funcionários e alunos, sem destaques especiais.
No entanto, a escola tem uma tradição de homenagear personalidades
que se destacaram por sua contribuição profissional. Da mesma forma, os
alunos são reconhecidos pelo mérito de seus trabalhos, por meio das
premiações aos melhores projetos e nas competições esportivas registradas
em algumas Semanas.

336
PARTE III | A DÉCADA DE 1990

CEFETQ-RJ, XXIII Semana de Química, Rosangela da Rosa, 2003.


“Jogos da OLIMQUI, evento esportivo interinstitucional,
paralelo, modalidade xadrez”

4. Considerações finais
A realização deste trabalho dependeu, em grande parte, da organização
mínima do acervo em termos cronológicos e temáticos. Por isso, esta análise
ainda se ressente de outros elementos analíticos, que esperamos poder completar
com a releitura das fotos dentro das séries históricas que o Centro de Memória
do CEFET Química deve propiciar e à luz de outras fontes documentais.
Mais do que algumas fotos específicas, tivemos, como mediação, o próprio
acervo fotográfico, o olhar dos autores das fotos, que foram nos dando pequenas
pistas e guiando nossa percepção, ajudando a ressignificar informações
disponíveis em depoimentos, entrevistas e documentos escritos, de modo a
que começássemos não apenas a reconstruir a particularidade do CEFET
Química, com suas características e cultura próprias, mas também a totalidade
social na qual estão inseridas essa e as outras instituições da rede de ensino
técnico e tecnológico.
Os limites da expressão da reforma na memória iconográfica institucional
parecem estar no fato de que, no plano macroeconômico e político, não há
uma ruptura propriamente entre os governos que se instalam depois da ditadura.
Há continuidades em curso do Governo José Sarney para o de Itamar Franco

337
A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico

nos anos 1980 e de Fernando Collor para Fernando Henrique Cardoso nos anos
1990. Há, antes, conjunturas de poder diferenciado dentro de um mesmo marco
estrutural do capitalismo e das políticas neoliberais.
Com esses limites, realizamos a análise preliminar das fotos e pudemos
chegar a algumas breves conclusões. Primeiro, sobre a qualidade acadêmica
do trabalho desenvolvido no CEFETEQ e a riqueza de sua proposta político-
pedagógica, que passa ao largo de uma mera visão tecnicista de educação
profissional. Trata-se de uma educação escolar que abrange os diversos aspectos
formativos: científicos, tecnológicos, profissionais, artísticos, culturais, esportivos,
de convivência e de organização coletiva para a apresentação dos projetos.
Segundo, as fotografias examinadas não revelam mudança brusca de projeto
político-pedagógico em função da implantação da reforma determinada pelo Decreto
n. 2.208/97. O que se nota é uma mudança progressiva de acordo com as transformações
da base produtiva e da cultura sinalizada pelo marketing e pelo mercantilismo, e até
pela influência das transformações econômicas em curso no país.
Intui-se isso por meio da imagem, observando os elementos de marketing
na ênfase do visual, na presença de logotipos empresariais, nos estandes de
empresas demonstrando produtos. Outras fontes orais indicam um movimento
de captação de recursos pela cobrança de exames de seleção e da busca de um
número crescente de candidatos ao ensino médio e técnico, pari passu com a
ameaça de redução de recursos públicos e com as diretrizes do PROEP de
auto-sustentação das escolas.
Como a palavra, a imagem fotográfica, em si, não expressa as contradições
do percurso. É a leitura enriquecida por outras informações, pelas sutilezas e
disfarces históricos da realidade, que conduz aos acontecimentos e a seus
significados. Sem a imagem, a reconstrução da realidade no nível do concreto
pensado depende da razão e da imaginação; com ela, novas formas de ser se
revelam, enriquecendo a interpretação.

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A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico

342
PARTE III | A DÉCADA DE 1990

CAPÍTULO 8 | OS EMBATES DA REFORMA DO ENSINO


TÉCNICO: RESISTÊNCIA, ADESÃO E CONSENTIMENTO

GAUDÊNCIO FRIGOTTO
MARIA CIAVATTA

Nos capítulos anteriores efetivamos uma análise do estado-da-arte da


produção acadêmica que teve como objeto de pesquisa o tema A formação do
“cidadão produtivo”. Da política de expansão do ensino médio técnico nos
anos 80 à política de fragmentação da educação profissional nos anos 90: entre
discursos e imagens. As duas décadas selecionadas de 1980 e de 1990, como
vimos no Capítulo I, tiveram embates que configuraram arranjos de forças
sociais muito diversos. Realçamos a reiteração da modernização conservadora
e a subordinação, cada vez mais profunda, associada ao capital mundial como
a forma estrutural de a burguesia nacional manter seu poder e seus privilégios
e resistir às mudanças estruturais. Um país que, no campo econômico, se agiganta
para poucos e, no campo educacional, se “expande para menos”.1 O sentido
das reformas educativas dos anos 1990 foi regressivo. E isso se revela, sobretudo,
na reforma da educação profissional.
Neste capítulo final, baseados em nove entrevistas estruturadas ou semi-
abertas com dirigentes de Centros Federais de Educação - CEFETs e uma
Escola Técnica da Marinha, buscamos apreender uma primeira aproximação
de como a reforma se realizou no interior das instituições. Que negociações se
efetivaram? Que mudanças ocorreram na estrutura organizacional, no perfil
dos alunos e na vida cotidiana dos docentes? Qual a percepção do sentido e
significado do decreto 2.208/97 e de sua revogação? Qual o peso da adesão,
resistência, acomodação passiva e de consentimento como estratégias de
resistência ao longo da implantação da reforma e como as escolas se encontram
atualmente?

1
Referimo-nos ao fato de que a escola pública para os pobres, como analisa Algebaile (2004) tem-se
expandido incorporando funções que não dizem respeito a sua especificidade.

343
A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico

As entrevistas têm temporalidades diferenciadas no decurso do ano de


sua realização, do último semestre do governo FHC (julho de 2002) ao primeiro
ano do governo Lula da Silva (setembro de 2003). Seu material fornece um
mapa indicativo para perceber as tendências de adesão orgânica à reforma,
isto é, dos que compartilham ideologicamente dos princípios e sentido da
reforma; de acomodação passiva, expressa na atitude de não-envolvimento
com os debates e aderindo mais ou menos passivamente à reforma; e, finalmente,
com a reforma imposta, de posturas de consentimento estratégico, mantendo a
luta por dentro de alguns CEFETs ou de segmentos dentro deles.
Foram entrevistados diretores-gerais dos CEFETS, Diretores de Ensino
e professores que se referem, de modo geral, à maneira como vivenciaram e
perceberam a implantação da reforma nas próprias instituições. Alguns
deles, todavia, por terem atuado nos embates em nível nacional em função
de seu conhecimento da Rede CEFET, e participado dos fóruns que
debateram a reforma, fornecem uma visão, em alguns aspectos, da rede em
seu conjunto.
A reforma implantou-se sob o autoritarismo de fato e “o discurso da
autonomia, da liberdade das escolas (...) sob a tecnocracia do MEC”. Grande
parte dos recursos do PROEP foram destinados a encontros, seminários,
deslocamentos de servidores, preenchimento de papéis, pré-requisitos,
documentação.
O deslocamento é quase semanal. Documentação, auditorias, estabelecimento
de regras, portarias, decretos, modificações, resoluções do Conselho (...) Essa
[dependência] construída por via de seminários é interessante de um ponto
de vista porque mostra o atrelamento, hoje, burocrático com o Ministério, é
uma coisa que chama a atenção (Simões, 2002).

1. Notas metodológicas sobre as entrevistas


Nossa interpretação das informações contidas nas entrevistas são
cuidadosas porque, em geral, os procedimentos adotados não são claros, os
entrevistados apenas sinalizam os conflitos, as disputas, as escolhas. O cuidado
maior se deve ao campo teórico da história oral em que se situam as entrevistas
para a história do presente que corresponde, em parte, a nossa atividade de
pesquisa neste projeto.
A história oral conta hoje com razoável literatura e ampla discussão
sobre seu estatuto científico. Ferreira e Amado (1996) consideram alguns
aspectos que se aplicam a nossa situação:

344
PARTE III | A DÉCADA DE 1990

– na história oral, existe a geração de documentos (entrevistas) que possuem


uma característica singular: são resultado do diálogo entre entrevistador e
entrevistado, entre sujeito e objeto de estudo; isto leva o historiador a afastar-
se de interpretações fundadas em uma rígida separação entre sujeito/objeto
de pesquisa, e a buscar caminhos alternativos de interpretação;
– a pesquisa com fontes orais apóia-se em pontos de vista individuais, expressos
nas entrevistas; essas são legitimadas como fontes (seja por seu valor informativo,
seja por seu valor simbólico) incorporando assim elementos e perspectivas às
vezes ausentes de outras práticas históricas – porque tradicionalmente relacionadas
apenas a indivíduos –, como a subjetividade, as emoções ou o cotidiano (...).

A história oral teve larga difusão entre os movimentos sociais, nas classes
populares onde a escrita é escassa, entre analfabetos, rebeldes, crianças,
miseráveis, prisioneiros, loucos etc., constituindo-se na vertente da história
dos setores chamados excluídos; não apenas eles, porém, se têm beneficiado
dos procedimentos de história oral, mas também a preservação da memória. O
que, entretanto, tem trazido tensões diz respeito às formas de trabalhos
acadêmicos e não acadêmicos, que podem diferir muito na construção do
conhecimento (Ferreira e Amado, 1996: XIV-XV).
Sobre seu uso acadêmico, Feres (1996: 92-93) considera que
o uso paralelo que, em geral, se faz de entrevistas gravadas não implica que
elas estejam exercendo o papel de fonte privilegiada de estudo, mas, antes, de
elemento ilustrativo que vai de encontro ao que a fala de outras fontes já
contou ou, ainda, ao que a análise do conjunto documental privilegiado sugeriu.

Em nosso caso, embora estivéssemos trabalhando com outras fontes


documentais sobre o tema (a exemplo dos trabalhos sobre o estado-da-arte da
temática em revistas especializadas na área de educação, conforme consta do
Relatório Final deste projeto; ou dos relatos de experiência nas escolas por
parte de alguns dos participantes da pesquisa; e do estudo de fotografias das
atividades desenvolvidas nas escolas), as entrevistas foram mais do que elemento
ilustrativo; elas serviram de fonte alternativa de informação sobre processos
polêmicos em curso nas escolas.
Alguns autores advertem que o primeiro trabalho é a preparação da
entrevista por meio do conhecimento do objeto de pesquisa.2 No caso, a equipe
era composta de professores associados, doutorandos, mestrandos e bolsistas do

2
Thompson, Paul. A voz do passado. História oral. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992; Alberti, Verena.
História oral. A experiência do CPDoc. Rio de Janeiro: FGV/CPDoc, 1990.

345
A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico

projeto, todos desenvolvendo estudos no campo trabalho e educação,


particularmente, na temática educação profissional, Ensino Médio e Técnico.
Utilizamos a entrevista em situação interativa com os entrevistados que
foram consultados e se puseram de acordo sobre o uso do gravador para registrar
a conversa. A partir de um Roteiro de Entrevista aberta (Anexo I do volume das
entrevistas transcritas), conduzido por um dos coordenadores, a equipe de pesquisa
intervinha para apresentar novas questões ou pedir esclarecimentos. As
entrevistas foram gravadas na sala do Núcleo de Estudos, Documentação e Dados
em Trabalho e Educação - Neddate da UFF, em Niterói, ou, em poucos casos,
nas instituições de origem dos entrevistados (Recife e Pelotas), acompanhadas
de um formulário de Cessão de Direitos de Depoimento Oral (Anexo II do volume
das entrevistas transcritas) assinado pelo entrevistado, que assim, permitia torná-
las accessíveis ao público interessado (na forma oral ou escrita).

2. O processo de implantação da reforma nas instituições: resistência,


adesão, acomodação e consentimento
No Capítulo I mostramos que há em nossa cultura histórica uma estratégia
constante das elites políticas e econômicas de modernização do arcaico. As
mudanças anunciadas pelos embates do processo de democratização na década
de 1980 no processo constituinte tiveram, foram barradas ou, abortadas na
década seguinte. Neste sentido, no plano estrutural observamos um capitalismo
que se robustece e uma expansão da educação escolar, mas dentro de uma
continuidade de modernização conservadora.
No âmbito da educação técnica de nível médio e educação profissional
mais específica, talvez o elo de continuidade tenha sido maior do que os embates
da década de 1980 e início de 1990 sinalizaram. No Sistema S, a tese da gestão
tripartite foi derrotada, e a pressão para que o mesmo assumisse maior ênfase em
sua função social caminhou em sentido inverso. Na rede de escolas técnicas federais
e CEFETs , o projeto de expansão e de melhoria - PROTEC, que se processou
dentro “de um conflito de concepções”, por um lado pautou-se, pela tradição de
clientelismo político e de desonerar o Estado em sua manutenção, e, por outro, no
plano pedagógico filiou-se ao “horizonte produtivista, fragmentário e adaptativo
de conhecimento” (Frigotto, Ciavatta Franco e Magalhães, 1992: 41).3

3
Para uma análise mais detalhada do Programa de Expansão e Melhoria do Ensino Técnico, ver o
relatório final da pesquisa Acompanhamento, documentação e análise do Programa de Melhoria e
Expansão do ensino técnico industrial, 1984-1990, INEP/UFF - coordenada por Gaudêncio Frigotto,
Maria Ciavatta Franco e Ana Lúcia Magalhães. Niterói, NEDDATE/UFF. 1992.

346
PARTE III | A DÉCADA DE 1990

Aprovada a LDB minimalista, o governo, como vimos, pelo Decreto 2.208/


97, começa impor de forma vertical as mudanças que retrocedem ao dualismo
dos anos 1940. A pressão de cima para baixo foi no sentido de rapidamente
aplicar na Rede a reforma.
Quatro entrevistas nos dão elementos claros para perceber que a rede,
de modo diferenciado, tinha sido mobilizada pelos debates da democratização
e pela crítica ao economicismo, tecnicismo, dualismo e fragmentação.
Com efeito, como mostra a entrevistada Marise Ramos (2002), em 1994
havia um movimento, no âmbito da Rede, para a elaboração de “um projeto político
pedagógico construído a partir de suas bases”. Krueguer (2003), presidente do
CONDITEC durante o primeiro mandato de FHC (1995-1998), registra a oposição
à reforma naquele momento. Marise Ramos sinaliza, por outro lado, outras tensões
internas quando aponta que a Secretaria de Ensino Médio e Tecnológico – SEMTEC
queria transformar a proposta pedagógica da Escola Técnica Federal do Rio Grande
do Norte em modelo para a rede. A reação não foi em relação ao conteúdo, pois
esse incorporava os debates da escola pública democrática da época, mas à forma
autoritária. Essa mobilização da rede efetivou-se especialmente pelos diretores de
Ensino que se articularam em fóruns nacionais e reuniões.
Nesse momento, começaram
a entender que o médio não podia ser o médio preparatório para o vestibular,
não podia, tinha que ser um médio inserido numa proposta clara também de
inserção para o cidadão e foi ali que surgiu a coisa do médio tecnológico (...).
Nesse momento eles, seguindo o CEFET-RN, já haviam abandonado o
[Parecer] 45/72 e trabalhavam com as áreas de eletro-eletrônica, de construção
civil (...) (Pereira, 2003).

A reforma foi proposta num momento em que já havia insatisfações nas


escolas técnicas. No CEFET-RN,
a insatisfação se dava, principalmente, pelo perfil de saída dos alunos. E na
época, a direção foi um pouco mais além, a questão era: formação para que,
para quem, por que? E já eram os primeiros ensaios da proposta pedagógica (...)
de uma política voltada para o social (Pimentel, 2003).

Havia na época um movimento nas escolas,


com um meta de reformulação curricular sob a coordenação do CEFET-MG. A
escola que avança mais nesse processo é o CEFET-RN que obtém uma autorização
especial, inclusive ferindo o Parecer n. 45/72 para que pudessem organizar seus
cursos sob parâmetros diferentes e, eu diria, que ele foi uma referência, inclusive
para a rede como um todo repensar o seu papel (...) (Pereira, 2003).

347
A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico

No CEFET-RN já havia sido percebida a necessidade de uma reforma,


principalmente no sentido da prática pedagógica e no que se refere aos planos
de cursos. O que era apoiado pelo Secretário de Educação Média e Tecnológica,
Prof. Átila Lira. No entanto, quando venho para Recife (CEFET-PE), já na
gestão do Prof. Rui Berger, a discussão sobre a Reforma centra-se
exclusivamente do ponto de vista do planejamento de curso (Pimentel, 2003).

Havia a expectativa de obter “um espaço de discussão ampla no governo


FHC”. O PL n. 1.603 e, depois, o Decreto n. 2.208/97 vão ser cortes e vão
sofrer forte oposição,
ainda na fase das audiências públicas, não só o CEFET-Campos, mas acho que
a rede como um todo, colocou-se muito fortemente, muito bravamente contra
alguns aspectos do Projeto [de Lei n.] 1.603, e aquela separação do técnico, da
formação técnica da formação geral (...). Quando vem o Decreto n. 2.208/97,
um decreto difícil, complicado, complexo, contestado dentro das instituições,
o CEFET-Campos já havia começado a construir uma trajetória onde a
instituição se antecipa e começa a construir no debate (...) uma das versões é
exatamente da reforma que a gente implanta lá em 1997 (Pereira, 2003).

É neste contexto que surge o PL 1.603/96. Mas, como afirma a entrevistada


Maria Célia Freire Carvalho (2002), não se acreditava que aquilo fosse para
valer. Lembra a afirmativa de um diretor: “Isso é bobagem, isso não vai dar em
nada. Isso aí é mais uma daquelas maluquices do MEC que depois a gente faz
do jeito que a gente sempre fez”. O diretor do CEFET-Pelotas dá um depoimento
no mesmo sentido. Os professores resistiam a discutir a reforma em pauta antes
da aprovação da LDB. O momento não era propício. O governo “começou a
bate duro em relação ao servidor público (...) havia toda uma política salarial,
uma política de reformas, um congelamento salarial, um desmanche da máquina
pública”. Além disso, não acreditavam que a reforma passasse. Ele considera
“que a reforma não tenha vindo de cima pra baixo, não. Acho que ela foi
exaustivamente construída dentro de nossas bases” (Krueger, 2003).
O que na verdade se deu a partir da existência do PL 1.603/96 foi uma
disputa renhida, agora para influenciar os deputados no sentido de reverter seu
conteúdo. Nesse processo, assinala Ramos, além da mobilização interna de direções
de ensino, especialmente, professores e alunos, contou com forte mobilização da
União Brasileira dos Estudantes Secundaristas – UBES, Confederação Nacional
dos Trabalhadores da Educação – CNTE e ampla articulação no Congresso Nacional.
Nesse movimento de disputa, “palmo a palmo, acho que palavra por palavra”,
e havendo unanimidade contra o PL, como enfatiza a entrevistada, o próprio relator,

348
PARTE III | A DÉCADA DE 1990

deputado Severiano Alves, passou a defender as mudanças vindas desse


movimento interno e externo à rede. Essa unanimidade, como destaca na
entrevista Domingos Leite Filho (2003), contou, de início, até mesmo com a
Direção-Geral de um dos CEFETs mais importantes do país, que estava muito
integrada com o MEC.
Com a aprovação da LDB, o governo retirou o PL 1.603/96. Nesse momento
a rede pressionou o Conselho de Diretores das Escolas Técnicas Federais –
CONDITEC para pedir uma audiência ao ministro, na expectativa de retomar
as propostas da rede de manutenção do Ensino Médio integrado. Aceita a
audiência, o ministro expôs aos diretores (entre eles nossa entrevistada) as
razões e a necessidade da reforma nos moldes do PL retirado. Em face das
objeções ele concordou em criar uma comissão com representantes do
CONDITEC e técnicos do MEC. O desfecho exposto pela entrevistada sintetiza
o que já estava posto e que a comissão não era para valer.
“Isso era dia 14 de abril de 1997. No dia 17 de abril, a comissão ainda
não tinha se reunido e o Decreto 2.208/97 estava no Diário oficial. Essa relação
democrática é emocionante, não é?” O decreto manteve quase que na íntegra
o PL 1.603/96. O que vinha para valer era a voz dos que haviam concebido a
forma, o método e o conteúdo da Reforma da Educação Profissional e
Tecnológica. Como nos indicam primeiro Ramos e Carvalho, o que prevaleceu
foi “um espírito bastante imperialista mesmo, principalmente um certo conforto
do poder” (Ramos). O que dominou foi uma a postura “imperial” e “uma
pseudodiscussão democrática” (Carvalho). Tratava-se não de ouvir a sociedade,
mas de induzi-la a fazer aquilo que os planejadores haviam formulado, em
consonância com as reformas mais amplas em curso no plano político e
econômico. Isso fica explícito na exposição de Lima Filho, ao comparar o PL
com o Decreto 2.2008/97.
Eu fiz uma análise comparativa entre o decreto (2.208/97) e a segunda versão
do PL, já é inédito. O Decreto, na verdade, reproduz o PL. Eu quero evidenciar
o seguinte: já em 1995, naquele planejamento político e estratégico que foi,
digamos assim, o primeiro documento de política do Governo Fernando lançou
em termos de políticas educacionais, estavam formulados dois ou três eixos
básicos que vão estar no Decreto. Ou seja, a separação da educação profissional
com a educação geral, a questão da aproximação ao modelo empresaria, as
parcerias como instrumento de sustentação interna financeira, e a questão da
modularização .

Daí por diante o que as entrevistas sinalizam nos permite perceber que a
resistência cedeu lugar, por parte da maioria dos dirigentes, à adesão, à

349
A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico

acomodação ou a um consentimento forçado, mas buscando formas internas


de preservar a luta. No plano das direções, apenas algumas vozes continuaram
resistindo. Na síntese que apresentam sobre esse item as entrevistas até aqui
assinaladas, o que prevaleceu foi a adesão dos dirigentes ou a acomodação
passiva interna. O MEC, por seu turno, como mostra Ramos “buscou processos
de consentimento por um lado, mas por outro, também trabalhou com
mecanismos coercitivos.”
Vai-se explicitar aquilo que já se esboçava, como mostra Lima Filho, na
negociação do PL 1.6003. As direções, articuladas com o setor empresarial,
tendiam a “um acatamento do modelo.” Por isso foi-se estabelecendo um
processo de “adesão negociada”. Uma das “moedas de troca”, na expressão da
entrevistada Costa (2003), foi a proposta de cefetização. “Se não fosse a
cefetização seria outra coisa, mas o que estava em pauta, naquele momento,
era a cefetização. E muitas escolas queriam ser cefetizadas.”
O processo de cefetização – como se pode depreender de outras análises,
mormente do capítulo seis da parte III, que trata da Reforma do Ensino Médio
Técnico nas Instituições Federais de Educação Tecnológica: da Legislação
aos fatos – teve peso significativo de sedução mais ampla.
A outra moeda de troca configurou-se nos recursos do PROEP, essa com
ênfase coercitiva. Com efeito, o PROEP indica o vínculo orgânico da reforma do
Ensino Médio Técnico com os organismos internacionais e constitui-se num
mecanismo de constrangimento ativo por parte do MEC. Antônio Ney (2003),
único entrevistado que não pertence à rede CEFET e que atua numa Escola Técnica
da Marinha, evidencia como era esse mecanismo de constrangimento. Ao referir-
se ao processo de habilitar-se para os recursos do PROEP, indica que um documento
básico – documento um que seria o “plano de implantação da reforma.”
Ou seja, é um plano até relativamente simples. São 11 formulários onde a
escola diz se está aderindo ao estabelecido no Decreto (2.208/96) e já começa
a descrever o que ela fez para cumprir o decreto. Como a separação do Ensino
Médio e Profissional, como irá proceder com os docentes já que há docentes
no Ensino Médio, os regimes destes docentes e perspectivas de como ela
pretende se organizar para o futuro.

O PROEP se impõe visto a escassez de recursos (...) a partir daí, o trânsito foi
livre, pelo próprio contexto da escola que, na época, era uma direção autoritária
em todos os sentidos. E juntaram-se algumas pessoas e fizeram os projetos. Foi
aí que ocorreu um dos piores momentos: fizeram os projetos para o PROEP,
ampliaram as vagas, fizeram outras coisas e comprometeram a escola sem, ao
menos, os professores ficarem sabendo em termos de propostas. Como os

350
PARTE III | A DÉCADA DE 1990

professores não dominavam algumas questões em relação ao trabalho


pedagógico, a escola chegou a um patamar muito sério de desorganização.
Então, quando eu cheguei aqui, eu cheguei no momento em que estava se
iniciando um processo de reforma imposto pela SEMTEC e articulado com a
direção da escola (Pimentel, 2003).

A adesão à reforma pela maioria dos CEFETs, mormente por parte do


corpo dirigente, além da moeda de troca da cefetização e do PROEP, como
indica Ramos no capítulo acima referido, tem um elo mais estrutural vinculado
à mudança de foco dos processos formativos subordinados ao ideário da
reestruturação produtiva. Isso reforça a idéia de que a adesão à reforma se dá
no plano político, ideológico e cultural e explicita, por sua vez, como mostramos
no Capítulo I, a matriz conservadora ou que reitera a modernização do arcaico,
como marca das elites dirigentes em diferentes esferas da sociedade. A
resistência contemporânea à revogação do Decreto 2208/97 e a não-retomada
do Ensino Médio integrado na rede CEFET certamente têm suas raízes nesse
plano mais estrutural.
Por outro lado, os grupos ligados à luta sindical, que teve significativo
crescimento no interior da rede, como de um modo geral a luta sindical da
área, procederam a um debate mais ideológico do que de natureza teórica.
Fato que pode ser relacionado com a constatação do abandono do debate
sobre a educação politécnica na década de 1990, até no âmbito acadêmico,
bem como de que o debate da década de 1980 não teve força material suficiente
para influenciar os rumos da política ou construir hegemonia nessas instituições,
apesar das tentativas de 1994, derrotadas, aliás, pela reforma.
A resistência interna na rede vai expressar-se pela luta de alguns
coordenadores e docentes, pressionados por um lado pela forma coercitiva do
MEC, pela adesão do corpo dirigente , na maior parte dos casos e pela
acomodação docente até perceberem, como indica Costa (id. ibid.), o grau de
mudanças que sofreriam as escolas. As entrevistas indicam que esse movimento
de resistência se expressou de várias formas. Algumas delas serão mencionadas
nos itens abaixo.

3. Mudanças na estrutura organizacional, no projeto político-


pedagógico e implicações para os alunos e os docentes
A expansão e “melhoria” do ensino técnico e agrotécnico efetivadas na
segunda metade da década de 1980 já vinham com uma perspectiva
privatizante e produtivista. Todavia, não havia força hegemônica para uma

351
A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico

imposição vertical. Agora, com as moedas de troca e de coerção, e com a


cobertura da LDB, que pelo minimalismo era ajustada à desregulamentação,
paradoxalmente, o governo e o MEC ficam livres para uma “regulamentação”
que efetiva uma mudança de 180º.
A reforma, como indicam os entrevistados, tem forte impacto sobre a
estrutura organizacional e a concepção curricular e pedagógica, com
conseqüências para o perfil e vida dos alunos e para os docentes.

3.1. O impacto na estrutura organizacional


O projeto político pedagógico foi alterado em vários aspectos. No CEFET-PE
criaram-se o Conselho das Competências, o Conselho de Avaliação, mas isso,
contraditoriamente, em meio a uma “flexibilização” de conceitos e de
procedimentos.
Colocavam-se competências e habilidades numa mesma categoria, distorcendo
um conceito posto na Resolução n. 044 (...) tinha cursos modulares e cursos
periódicos, uns com 20 semanas letivas, outros com 40. Então, cada um
procurava sua prática nesta incerteza que chegava às escolas (...) Não havia
coerência, uma linha de trabalho (Pimentel, 2003).

Na ETAM-RJ, o professor entrevistado relata os problemas de classificação


dos alunos, criados pela introdução de conceitos apto ou não apto em sua
avaliação (Ney, 2003). Fatos semelhantes são relatados por Pimentel. Assumindo
a direção do CEFET-PE, onde permaneceu um ano e meio, (de 1999 a 2001), a
entrevistada encontrou alunos que não faziam matrícula além da inicial.
Como no início estava todo mundo em sala de aula, houve na época uma
supervalorização do curso, salas diferentes, carteiras diferentes, o aluno fazia o
que queria, não tinha avaliação. Como não tinha exame, não havia registro do
caminhar deste aluno do ponto de vista acadêmico. E, no final, havia uma lista
de competência, que o professor colocava apto ou não apto, ou alguma coisa
assim. Foi desta forma (Pimentel, 2003).

A separação do Ensino Médio e Técnico profissional, como enfatiza


Ramos é o que mais impactou, pois alterou profundamente a estrutura
organizacional da rede. Ao referir-se a essa separação, ela mostra que a escola
já tinha “esse modelito descolado (...) os chamados cursos especiais.” Esses

4
Resolução CNE/CBE n. 04/99.

352
PARTE III | A DÉCADA DE 1990

cursos, salienta, já se mostravam problemáticos, pois os alunos “não tinham a


formação básica concretamente”. A escola buscou formas de minimizar isso,
incluindo disciplinas ou mediante o curso de nivelamento. No primeiro caso, a
crítica era de que acabaria sendo um curso igual ao integrado e, nos segundo,
como o nivelamento só era formação geral e o aluno “estava doido para fazer o
curso técnico e aí começava a desanimar e ia embora”.
Pela Portaria MEC n. 646/97, as escolas só não poderiam ter só a
concomitância interna do Ensino Médio e o Ensino Técnico, pois as vagas do
Ensino Médio integrado só poderiam ser a metade das que existiam em 1997.
Com isso, enfatiza a entrevistada, fomos tendo dois, três, quatro, cinco perfis de
alunos – concomitância interna, externa, só técnico, alunos recém formados e
outros formados no fundamental há anos, etc. Para a gestão e administração
da escola, 1998, ano da implantação, foi, para a entrevistada, “caótico (...) um
equacionamento louco (...) tinha vários modelos dentro da escola”.
Ao detalhar esses vários modelos, ela sinaliza: “Na verdade é isto, nós
estávamos colocando um modelo que não é escolar, dentro de estruturas
escolares. O modelo é um modelo empresarial” Também para Carvalho, a
reforma atingiu profundamente a estrutura organizacional e a concepção
curricular.
É interessante perceber que alguns CEFETs, entre eles o do Paraná, que
simplesmente acabou com o Ensino Médio Técnico integrado, como mostra
Lima Filho, já vinham construindo uma mudança estrutural na direção de
formação de tecnólogos, tanto por opção de deslocar-se para o ensino superior
quanto como forma de atender a uma demanda do mundo empresarial e de
uma gestão também empresarial. Os dados que traz indicam que de 1995 a
2000 houve queda de 30% de ofertas de vagas públicas gratuitas, somando-se
“nível médio integrado, técnico, superior e cursos de mestrado e doutorado”.
Pelo que indica a entrevistada Rita de Cássia Almeida Costa (2003), ao
longo de 1998 os CEFETs foram tendo uma “reestruturação organizacional,
uma reforma estrutural para preparar as instituições para a reforma curricular.”
Houve, nessa reestruturação, diminuição das coordenações com função
gratificadas e aumento de cargos de direção. Essa mudança, no plano político,
sinalizava que os cargos diretivos exigiam – nem sempre sem conflito – maior
comprometimento direto com a política governamental.
Na realidade, essa reforma estrutural está ligada a algo anterior e mais
profundo, como destaca Ramos no capítulo já mencionado. Trata-se de uma
mudança com vistas, por um lado, à cefetização e, por outra, à tendência
dominante da SEMTEC e do CONCEFET, de ligar as propostas da rede às

353
A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico

teses da reestruturação produtiva e reengenharia. Um duplo movimento de


privatização institucional e privatização do pensamento. A questão curricular
é decorrência disso e se constituirá em importante mediação.

3.2. As mudanças curriculares


O duplo processo de privatização - vínculo crescente com a venda de
serviços ao mercado e ótica pedagógica empresarial - tem sido um movimento
mais amplo da educação na década de 1990, como já abordamos no capitulo
que discute o ideário do Cidadão produtivo. A Reforma do Ensino Médio
Técnico nas Instituições Federais de Educação Tecnológica tem sua razão
fundamental na radicalização dessa dupla privatização.
Nesse sentido, a introdução das “gerências” na estrutura organizacional e a
concepção da pedagogia das competências e da adoção do ensino por módulos na
rede são traços que afirmam esse duplo movimento privatista Os processos de ensino
deveriam ser conduzidos, como defende Boclin, citado no Capítulo I, no sentido de
que “a polivalência na escola deve aproximar-se da polivalência do mercado.”
Para Costa, a reforma impunha obrigatoriamente a existência de três
gerências: de administração e manutenção, desenvolvimento de recursos
humanos e de apoio ao ensino. Esta última tinha, paradoxalmente, a função de
integrar a fragmentação que atingia frontalmente a perspectiva de um ensino
técnico integrado, como enfatizam Ramos, Carvalho, e Lima Filho. A questão
do sentido da introdução dos gerentes como algo articulado à nova função da
rede preconizada pela reforma passou, de acordo com Costa, despercebida,
porque o foco do debate era a questão das mudanças do Ensino Médio integrado.
Sinaliza, porém, que no caso do CEFET em que atua foram criadas duas outras
gerências, uma de educação básica e outra de educação tecnológica. “Isso foi
caótico, porque isso reforçou a separação. Então nós tínhamos um gerente que
pensava o Ensino Médio e outro gerente que pensava os cursos técnicos. Então
nós praticamente legitimamos na estrutura esta divisão.”
A integração também fica inviabilizada pela desigualdade de situações
pregressas dos alunos. Juntar alunos que fazem separadamente os níveis médio
e técnico, mas que são da mesma escola, e juntar alunos que fazem o técnico,
mas vindos de escolas diversas da rede pública ou privada, são coisas bem
distintas. No caso do CEFET de Pelotas, a saída encontrada foi exigir de todos,
para o ensino técnico (concomitante ou não concomitante, ou pós-médio –
denominações que o CEFET rejeita), “o requisito mínimo, o primeiro ano de
Ensino Médio” (Krueger, 2003).

354
PARTE III | A DÉCADA DE 1990

A introdução dos módulos, dentro da concepção da reforma, só veio agravar


a fragmentação. Ramos, mostra que antes da reforma já se introduziam módulos,
mas dentro de uma concepção de organização disciplinar e, portanto, com articulação
de conhecimentos básicos etc. O que vai ocorrer na reforma é a fragmentação dos
módulos. “Acho que exatamente isso, perdeu-se a noção de integralidade do técnico.”
No caso dos CEFETs que trabalham mais como o Tecnológico, como o do
Paraná, Lima Filho sinaliza que vários cursos do Tecnológico foram estruturados a
“toque de caixa”, não havendo uma discussão mais profunda sobre o sentido
específico do curso superior tecnológico. “Então houve um processo de atropelamento
e uma boa parte do que foi feito, foi uma transformação do currículo do curso
técnico no currículo do curso tecnológico, com redução substancial de carga
horária”. O entrevistado exemplifica para a disciplina que ele mesmo administra:
Eu sou professor de um curso de tecnologia em eletrotécnica. Eu necessito, por
exemplo, tratar de um conteúdo de curto-circuito que exige a matemática
vetorial e com determinado nível de aprofundamento. O currículo não
contempla de modo satisfatória para eu desenvolver aquele conteúdo específico
em nível necessário de aprofundamento.

Outro aspecto que mudou substantivamente foco do currículo, que


permeia as Diretrizes Curriculares Nacionais e, com mais ênfase, a proposta
curricular da Rede CEFET, foi a pedagogia das competências. Como indica
Costa, na reestruturação dos cursos “foram definidas 20 áreas profissionais e
para cada área profissional foi elaborado um documento chamado Referências
Curriculares para aquela área profissional, porque havia uma linguagem nova
(...) A linguagem nova era a linguagem das competências.”
A entrevistada sinaliza que a incorporação dessa linguagem não se deu
linearmente, quer por resistência ideológica e teórica que por passividade ou
dificuldade de assimilação. Mas de uma forma ou de outra, por pressão, por
acomodação ou mediante um consentimento estratégico, a questão das
competências balizou a reforma curricular na rede.5

5
Um trabalho que elucida como a concepção de competências balizou a reforma curricular da Rede é o
de Araújo, 2004. Trata-se de uma dissertação de mestrado que analisa o contraponto de uma
organização curricular na perspectiva da “formação humana integral ou omnilateral e a concepção
curricular modular sob a ótica da noção de competências” . Na análise do CEFET Campos, a autora
sinaliza qual foi a orientação básica da SEMTEC, para a aplicação da pedagogia das competências na
rede: a)análise do processo de trabalho;b) construção de uma matriz referencial de competências; c)
elaboração de um projeto pedagógico e dos respectivos planos de curso, mediante a transposição
didática de matriz referencial de competência, adotando-se a organização curricular modular, em
uma abordagem metodológica baseada em projetos ou resolução de problemas” (Araújo, 2004: 82).

355
A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico

Como indica Ney, cuja análise está relacionada à escola Técnica Federal
da Marinha, na hora de negociar os recurso do PROEP, a estrutura curricular
modular e por competências e a carga horária mais reduzida eram pontos cruciais.
Numa primeira análise, nós levamos um não satisfatório. Por que? Porque nós
tínhamos o que eles (MEC) classificam hoje de nível básico. Por exemplo, um
soldador especializado você não qualifica em 200 horas. Então o curso era de
800 horas. Aí diziam assim: não pode, tem que ficar em torno de 200.

O que denominamos aqui consentimento estratégico refere-se ao que


as entrevistas indicam que, não havendo como a rede contrapor- se
frontalmente, quer pela adesão de grande parte dos dirigentes dos CEFETs,
quer por acomodação, quer por forte pressão do MEC, o espaço que se tinha
em alguns setores ou mesmo em alguns CEFETs era o de tentar trabalhar a
reforma por dentro das instituições. Várias entrevistas sinalizam um esforço
hercúleo de alguns diretores e coordenações na tentativa de minimizar o
desmantelamento, a fragmentação e o aligeiramento dos cursos. Entre os CEFETs
que explicitam essa estratégia com mais ênfase estão o CEFET de Química no
Rio de Janeiro, CEFET Celso Sukow, Rio, em parte os CEFET de Campos/RJ,
Rio Grande do Norte, Santa Catarina. Ao longo do processo foram-se efetivando
adaptações, subordinando os módulos a uma concepção mais integrada. Mas a
síntese é de que esses mecanismos não sanam o desmantelamento que a reforma
trouxe na rede, conforme alguns depoimentos. A reforma, associada à oferta
de recursos para projetos a serem financiados pelo PROEP,6 trouxe imposições
de “enxugamento” da carga horária e “transtorno” na organização curricular,
conforme os depoimentos de alguns entrevistados (Krueger e Ney).

3.3. Impactos nos professores, alunos e na comunidade (sociedade)


As mudanças organizacionais e curriculares da reforma têm efeitos
diversos sobre os professores, os alunos e a própria comunidade mais diretamente
envolvida e/ou a própria sociedade.

6
Ainda não temos disponível uma análise do conjunto das ações do Programa de Reforma da Educação
Profissional - PROEP com alavanca da reforma nas redes pública e privada de educação profissional.
Há apenas algumas indicações esparsas. Seus recursos eram da ordem de US$ 500 milhões, sendo US$
250 milhões do Banco Interamericano de Desenvolvimento – BID, US$ 125 milhões do Fundo de
Amparo ao Trabalhador - FAT e US$ 125 milhões provenientes de recursos orçamentários do governo
federal, destinados ao financiamento de infra-estrutura, construção e reforma de prédios, montagem
de laboratórios, capacitação de profissionais de educação profissional e consultorias (Brasil, 2003: 31).

356
PARTE III | A DÉCADA DE 1990

Pelos depoimentos de algumas entrevistas, os professores, a não ser os


que militavam em outros espaços, ficaram, de inicio, bastante alheios à reforma,
até pelo “desconhecimento dos professores em termos de legislação. Então, a
Direção dizia que tinha que ser daquele jeito, pois estava na lei” (Pimentel,
2003). No caso de Costa, que na época era professora, ao ser indagada sobre
esses embates destaca: “Vivenciei mais como docente, mais como professora
em sala de aula (...), mas o debate mesmo como direção, essa interlocução
com o MEC eu não vivenciei”. Na mesma direção sinaliza Carvalho, À medida
que a reforma foi sendo implantada, os decentes começaram sentir seus efeitos.
Alguns deles, especialmente os das disciplinas ligadas às ciências humanas,
eram ameaçados pela redução de carga horária ou mesmo pelo desaparecimento
de algumas das disciplinas. Outros docentes da área mais técnica ou das áreas
da química, física, biologia e matemática, percebiam a falta de base dos alunos
que vinham das escolas publicas ou as dificuldades de o aluno fazer a
concomitância. No CEFET de Pelotas, o primeiro impacto e a resistência entre
os professores à desvinculação do Ensino Médio do Ensino Técnico, “pois
funcionava bem o regime integrado” (Krueger, 2003).
Diferentes razões foram criando, em alguns CEFETS, na maioria dos docentes
uma visão crítica à reforma, que, todavia, foi sendo acomodada, em muitos casos
por razões de cultura histórica das instituições da rede. Para Lima Filho, a tradição
da rede é de um poder verticalizado e hierárquico que acaba forjando um certo
ambiente de medo. “Majoritariamente os professores foram contra, no entanto, as
suas decisões foram atropeladas por uma gestão antidemocrática que tem um forte
apelo simbólico e cai ainda no conjunto da comunidade.”
Na mesma direção, como já se assinalou acima no depoimento de outras
entrevistas, salienta o peso da perspectiva da cefetização no imaginário dos professores.
Existe toda uma espécie de valoração, que é histórica na sociedade brasileira, em
relação à questão do professor de ensino superior, comparativamente com o professor
do nível médio e do ensino fundamental. Então, eu acredito que esta valoração
imapctou os professores no sentido que passariam a ser professores do ensino superior.

Neste caso, a moeda de troca, é de outra natureza. Trata-se de uma


cultura do “bacharel” e de um certo desprezo pela atividade técnica. O curso
tecnológico superior, como mostram vários entrevistados, não tem uma
compreensão mais profunda no corpo docente e nos dirigentes. O que
transparece é, de um modo geral, aquilo que afirma Saviani (2003), ao mostrar
que o termo tecnológico foi apropriado “pela concepção dominante” de cunho
tecnicista e economicista. Lima Filho, que atua no CEFET que mais investiu

357
A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico

na perspectiva dos cursos tecnológicos, indica que os mesmos vêm demarcados


por uma “orientação claramente profissionalizante” no sentido reducionista e
tecnicista.
Para Pereira (2003), quanto à formação de tecnólogos,
tem que ter um espaço para a formação técnica que tem que ser posterior a
uma base maior, e [ser] uma estrutura mais elaborada, mais consolidada de
formação gera (...) por que se justifica o profissional de nível superior. Porque
esta base, inclusive, ela precisa ser um pouco mais elevada para se conseguir
formar para determinadas tecnologias.

As entrevistas coincidem em evidenciar de que a “identidade do


tecnólogo” não está construída. Para Carvalho
O tecnólogo ele e uma situação meio complicada. Primeiro porque o tecnólogo
não existe na hierarquia da empresa. Você tem um técnico de nível médio e o
engenheiro. Essa questão do tecnólogo, o mercado vai responder, sei lá,
contratando um tecnólogo como um técnico mais elaborado ou como um
engenheiro menos aprofundado. Essa experiência do tecnólogo é uma
experiência ainda capenga no Brasil

A idéia dominante não é a do debate que busca apreender a existência


ou não da especificidade do saber tecnológico, mas a idéia de “um grau mais
elevado do técnico”. Uma espécie de up grade do curso técnico. Isso fica
evidenciado que assinalou Lima Filho tanto quando mostra que o currículo do
tecnológico é o mesmo do técnico, quanto pela definição da resolução que
estipula a carga horária do tecnológico em dobro da carga horária do técnico.
Krueger (2003) relata como os cursos para formar tecnólogos, a exemplo
da antiga Engenharia de Operação (Decreto n. 57.057/1965), nasceram de um
“desvio” técnico-político da demanda de engenharia como os cursos plenos
tradicionais. O CEFET-Pelotas montou uma estrutura de Engenharia de
Controle e Automação, aprovada com conceito A por comissões de especialistas,
“e o projeto não foi aceito pelo ministro. Ele foi parado porque o ministro
entendia que as engenharias não deveriam ser o início dos CEFETs. Então isso
criou uma frustração, um impasse bastante sério”. O derivativo foi a criação de
um programa de formação de docentes e de dois cursos de tecnólogos, um na
área de Telecomunicações e outro de Tecnologia Ambiental com duas saídas,
Meio Ambiente e Saneamento Básico. “Agora está saindo o tecnólogo de
Controle e Automação.” Mas o CEFET já vinha “investindo pesado na formação
de mestres, doutores e especialistas, o que foi um salto muito grande de 1990
para 2000”. Até o momento da entrevista (maio de 2003), porém, a instituição

358
PARTE III | A DÉCADA DE 1990

não tinha carreira de terceiro grau, e os professores tiveram que se adaptar


como “voluntários”.
Os alunos, sem dúvida, são os mais atingidos pela reforma. Primeiro porque
têm grau de informação bem menor e poder de ação para mudar mais restrito.
Em segundo lugar, porque se construiu, por diferentes mecanismos, a idéia que o
curso técnico profissionalizante dá uma espécie de “passaporte” para o emprego
ou, nos termos da ideologia dominante, permite a empregabilidade.
As entrevistas sinalizam vários aspectos que atingem a vida e dos alunos,
particularmente daqueles que fazem concomitantemente o Ensino Médio e Técnico.
Um primeiro aspecto que penaliza os alunos é de ordem da construção
do conhecimento. A dualidade do Ensino Médio e Técnico embasa-se numa
concepção epistemológica e ontológica em que se supõe a possibilidade de
separarem-se as dimensões gerais e específicas do conhecimento e os aspectos
técnicos dos ideológicos e políticos.
Aquilo que já era problemático, no interior da rede, por uma cultura de
formação positivista de grande parte do corpo docente, agora se agrava profundamente.
Referindo-se aos efeitos da reforma sobre os esforços internos de articulação na
construção do conhecimento, Ramos nos dá uma indicação clara: “Agora foi cada
um vai cuidar do seu pedaço. Está tendo prova de matemática amanhã, o problema
é seu. Aqui em que estudar eletrônica e aqui nem era eletrônica. Tem que estudar
aquilo porque isso é que importa para esse curso, o outro é o outro”.
Na mesma direção, Costa indica que, para atender aos requisitos da
reforma, por mais esforço interno que se fizesse para articulação, a separação
acabava inviabilizando e prejudicando o aluno na construção do conhecimento.
“Havia componentes curriculares que existiram numa mesma etapa onde seria
pré-requisito para outra. Desrespeitou-se, à luz disso, a própria questão do
nível de maturidade do aluno e a construção do conhecimento.”
Problemas similares são relatados por Pimentel (2003):
No EnsinoMédio a gente tem o ensino ainda por período, o Ensino Médio
transitório – que era uma estrutura periódica, por crédito e sem necessidade
de pré-requisitos. Imagine o aluno fazendo Português 5 devendo 1, 2 e 3 (...)
era uma estrutura periódica, por créditos e sem pré-requisitos (...)

A questão da interdisciplinaridade
era confundida com o número de professores em sala de aula. Os professores
iam todos para a mesma sala de aula. Um dava aula e os outros ficavam
ouvindo. Terminava a aula e todos iam embora sem discutir nada. Não havia
nenhum tipo de organização, de sistematização (Pimentel, 2003).

359
A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico

O aluno que opta pela forma concomitante pode chegar a um número


absurdo de 18 disciplinas por semana. “Então, eles realmente não agüentavam.”
Carvalho, ao mostrar a diferença do Ensino Médio integrado da realidade
atual da separação, enfatiza
a diferença que eu vejo é essa. Quando ele está no integrado, ele está na escola,
em um turno, os tempos todos preenchidos de segunda a sábado, mas ele está ali
e ia caminhando junto. Quando você separa, você cria, você faz uma cisão no
processo e o aluno fica com dezessete disciplinas para dar conta. Não tem jeito.

A dupla jornada, na concomitância, para os alunos da mesma escola já


é problemática. Para os de concomitância externa, os problemas se multiplicam.
Um dos problemas cruciais é a falta de base de conhecimento decorrente da
precariedade da escolaridade anterior. Mas as entrevistas revelam que ficar o
dia todo na escola, sem infra-estrutura de alimentação e com muitos residindo
muito longe, tornava a dupla jornada um pesadelo para os alunos e para a
família.7 Em cidades como o Rio de Janeiro, mas não só, há uma tensão maior
ligada aos riscos da violência e o problema de chegar à noite em casa.
O preço desse conjunto de problemas, especialmente os de ordem
pedagógica, indica que a tendência para a evasão do curso técnico, na
concomitância, é muito elevada. Quando o aluno percebe que não vai dar
conta, ele opta, normalmente, por continuar o nível médio. O mesmo fenômeno
é sinalizado por Krueger (2003). Os entrevistados não dispunham de dados
estatísticos mais gerais, mas a entrevistada Carvalho mostra que em sua escola
a evasão é elevadíssima. “Eu não tenho os dados mais recentes, mas tenho
conhecimento de turmas que começaram com 36, 37 alunos e se reduziram a
seis ou sete na formatura do técnico, porque o nível médio ele garante”.
No CEFET-PE, foi alto o índice de evasão que veio a ocorrer a partir da
reforma. O Curso de Construção Civil, por exemplo, que foi o projeto piloto da
reforma na escola,
começou com 90 e terminou com 11 alunos.O Curso de Design e Multimídia,
de tecnólogos, começou com 40 alunos e terminou com 11. Como uma turma
de graduação tem tamanha evasão? Alguma coisa está errada. A conseqüência

7
No CEFET-Pelotas, a grande concentração do aluno de ensino médio está entre três e 10 salários
mínimos, ou entre três e cinco e entre cinco a 10. O aluno de faixa etária baixa tem nível socioeconômico
mais alto. Já nos cursos técnicos, a grande concentração está entre um e dois salários mínimos, seguido
de entre dois e três e entre três e cinco. Significa que a escola tem mais de 74% dos alunos concentrados
na faixa até cinco salários mínimos. Para democratizar o acesso, o CEFET discute a mudança do
ingresso pelo processo seletivo para o sorteio (Krueger, 2003).

360
PARTE III | A DÉCADA DE 1990

é o descrédito (...) Cada módulo começava com 30 alunos, teve um módulo


que terminou com sete alunos. O resto evadiu-se (Pimentel, 2003).

A evasão no CEFET-RJ chegava a 15% porque o aluno passava em três


ou quatro cursos e ia desistindo, prendendo as vagas. Os que ficavam se
formavam em quatro anos. Depois da reforma, quem entra no Ensino Médio
sai, por exemplo, 600 alunos na primeira turma. Já o técnico teve evasão de até
50%. Do ponto da sociabilidade dos grupos e da cultura escolar, a fragmentação
dos alunos fez com as formaturas perdessem o sentido. Formam-se em cursos
isolados “porque o vínculo do aluno ficava mais no médio do que no técnico.
Então, ele não conseguia construir relações sociais necessárias para conseguir
uma formatura” (Simões, 2002).
Em face da imposição da redução de vagas no ensino médio, usando a
autonomia da instituição e diante do receio dos professores de que o ensino
médio acabasse,
fizeram uma justificativa ao MEC de que em Pelotas não faríamos essa
diminuição porque Pelotas carecia de ensino médio (...) adotamos uma posição
política, interna, administrativa. Nós não reduzimos o número de vagas de
ensino médio para a sociedade. Nós mantivemos a oferta embora a
recomendação do MEC era de que tivéssemos que reduzir (Krueger, 2003).

Tentaram contornar o autoritarismo da Reforma com outras medidas.


Houve mudança do perfil dos alunos. Antes da reforma o aluno ingressava
com 14 anos, “se formava com 17 anos e não conseguia entrar no mercado de
trabalho pois era muito jovem (...) hoje a grande maioria está na faixa de 19 a
25 anos”. O CEFET criou o “Ensino Médio adulto” e abriu concurso para maiores
de 25 anos, em que predominaram aqueles entre 31 e 45 anos. Organizaram
turmas no noturno, constituídas por sorteio, apesar do protesto dos professores,
que viam no sorteio a queda de qualidade. Muitos eram pessoas extremamente
humildes. Mudaram a metodologia, passaram a trabalhar com os conhecimentos
tácitos, usando “a experiência de vida deles para transformar em um
conhecimento científico.”8 Hoje surge outra dificuldade, o noturno começa a
ser freqüentado por jovens de 12, 13 anos que não trabalham e estudam à
noite e começam a atrapalhar os adultos.
“Um problema sério”, nas palavras do diretor, foi o fato de que “Na época
o Ensino Médio integrado era de 1.512 horas, hoje passou a 2.400 horas. E o

8
Vera Damé, da equipe do CEFET-Pelotas, que participou da entrevista (apud Krueger, 2003).

361
A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico

que aconteceu com a carga horária dos professores? Aumentou, mas o número
de professores continuou o mesmo”. Hoje, em um regime de 40 horas, cada
professor dá, em média, 25 a 26 horas de aula por semana. Além disso, o diretor
questiona a competência da escola para formar um técnico de nível médio
com o mínimo de 4.000 horas, ou formar um técnico de fato que saiba ampliar
seus conhecimentos, ou qual o mínimo de horas para se formar um técnico, um
engenheiro ou um tecnólogo (id. ibid.).
O problema do curso técnico seqüencial (ensino médio em uma escola e
ensino técnico no CEFET) é o mesmo apontado por outros entrevistados: “o aluno
vem desprovido de conhecimentos do ensino médio (...) sem um conhecimento
básico de Química, de Física.” A escola já estava pensando em criar um semestre
básico de formação geral – Física, Matemática, Desenho (id. ibid.).
Também no CEFET-RJ, a faixa etária aumentou porque aumentou “a
oferta do Ensino Técnico noturno, que é o seqüencial,9 até porque ele já tinha
os cursos pós-médios funcionando, anteriores à reforma. Aumentaram as vagas,
novos cursos, novas opções para os alunos, o que tornou a clientela
extremamente heterogênea no nível socioeconômico e no nível de diversidade
local”, porque, segundo levantamento feito pela direção, o CEFET acolhe alunos
de todos os bairros da cidade (Simões, 2002).
Por fim, as entrevistas sinalizam aspectos de como a comunidade ou a
sociedade foi envolvida no processo da reforma, bem como os impactos que
recebeu. Transparece de imediato, porém, que o caráter autoritário e imperial
da reforma, referido por algumas entrevistas, explicita aquilo que esses
depoimentos apontam como a concepção da relação governo e sociedade.
Trata-se de uma concepção segundo a qual um corpo de técnicos e
assessores planeja a reforma em consonância com as reformas estruturais para
o ajuste à denominada nova ordem mundial. Trata-se das políticas neoliberais
reiteradamente referidas e criticadas em capítulos anteriores. O instrumento
que o governo utilizou foi o da persuasão insistente por meio da mídia. Um dos
argumentos de forte apelo para as classes populares foi de que essa reforma
garantiria melhores condições de “empregabilidade” àqueles que mais precisam
do emprego. Mesmo com índices absurdos de desemprego aberto, entre 10% e
12% pelas estatísticas do IBGE e entre 18% e 20% pelas estatísticas do SEAD,
o próprio presidente da república, Fernando Henrique Cardoso, usava sua dupla
condição de autoridade – presidente e sociólogo – para afirmar, de forma cínica,
que no Brasil não falta empregos, mas pessoas “empregáveis”.

9
Seqüencial é outro termo para designar o curso pós-médio.

362
PARTE III | A DÉCADA DE 1990

A mobilização deu-se, como mostram algumas entrevistas, em especial a


de Ramos pelo movimento da União dos Estudantes Secundaristas. Os
estudantes – e, por certo, suas famílias, grande parte de frações da classe média
– que freqüentavam o Ensino Médio integrado, que na realidade do Ensino
Médio no Brasil estava muito acima da média em termos de qualidade, foram
percebendo o significado negativo da reforma.
No caso dos pais e mesmo dos alunos, isso foi ocorrendo ao longo do
processo, e com a sensação de que tinham sido enganados, como enfatiza Ramos,
que acrescenta a opinião de que na época a sociedade não vivenciava o que
vinha sendo feito porque não era informada sobre efetivamente o que iria
acontecer. Não passava na cabeça dos pais, com a visão que tinham da tradição
das Escolas Técnicas, agora CEFETs, que seus filhos fossem cursar só o Ensino
Médio ou só o Técnico. Houve o caso do Estado do Espírito Santo, mencionado
pela entrevistada, em que a comunidade entrou com um mandado judicial, e
a escola teve que oferecer o Ensino Médio integrado para todos.
Carvalho salienta também que os pais se sentiram enganados e relata a
sua decepção contrastando a imagem que tinham do Ensino Médio integrado
que a Escola Técnica oferecia e a confusão que se estabeleceu com a reforma.
“Então a Escola Técnica para a família era tudo o que eles queriam. Aí veio
esse coisa que não é nem escola técnica, é o que?”
Quanto aos pais, no CEFET-RJ, a concomitância externa teve duas
conseqüências: de um lado, “exigiu do CEFET abrir um pouco seus muros,
obrigado pela legislação. De outra parte, como chamar os pais (tiveram reunião
de até 500 pais) e levá-los a entender que, agora, o filho dele está em outra
escola fazendo o Ensino Médio. Isto é uma coisa. Ele passava, tinha um curso
médio a fazer, mas ele tinha que cursar uma outra escola”.
Outra iniciativa do CEFET-RJ, impulsionada por esse problema,
foi buscar também as outras escolas de Ensino Médio e conseguir algumas parcerias
importantes como o [Colégio] Pedro II (...) Logo depois, fez um grande convênio
com o Estado (...) montou uma escola nova com o Estado, só que dentro do
CEFET (...) nós fazemos o curso técnico eles certificam o Ensino Médio, para
não sair do ponto de vista da integração. Os professores do ensino médio são do
Estado, trabalham com a gente (...) Isto também se deu porque existia no CEFET
uma política de democratização do acesso (Simões, 2002).

No CEFET-Campos, também foi introduzida a concomitância externa


“fortemente vinculada ao segmento que é matriculado na escola pública, nas
instituições públicas”, por meio de convênios com o município e com o estado
(que mantêm, o primeiro, três grandes escolas, e o segundo, mais de 20
363
A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico

instituições de ensino médio), o que levou o CEFET a ter dois ingressos: um


pelo processo seletivo, e outro pela rede pública, no segundo semestre – a
relação candidato vaga era de 13 candidatos por vaga no Ensino Médio e de
20 candidatos por vaga no ensino industrial, com o total de 18 mil candidatos
(Pereira, 2003).
Tanto no plano científico de uma formação de efetiva qualidade quanto
pelos argumentos mais fortes de justificativa da reforma – custos elevados do
Ensino Médio integrado e para um alunado que não buscava a inserção imediata
no mercado de trabalho - a realidade mostra um rotundo fracasso da reforma.
Esse fracasso penaliza milhares de jovens e a própria sociedade, fechando ainda
mais o precaríssimo acesso ao Ensino Médio público, no caso da rede pública
federal, um dos espaços em que ele podia ser oferecido nos maiores níveis de
qualidade dentro da realidade brasileira.
No contexto de um país em que a qualidade das escolas públicas é
exceção, esse fato concorreu para um reiterado ataque do governo, impulsionado
pelos organismos financiadores internacionais10 e veiculado na mídia, de que
seria inaceitável o alto custo das escolas técnicas para formar as classes médias
para o ingresso na universidade. Há nessa análise uma inversão de valores que
implica a aceitação do baixo custo do ensino público, ao não debitar ao Estado
o nível insuficiente de investimentos para um ensino de qualidade para toda a
população. A preocupação com o significado político da qualidade de sua escola
e do destino de seus egressos, que não era, necessariamente, o mercado de
trabalho, está bastante presente, pelo menos na entrevista do diretor do CEFET-
Pelotas (Krueguer, 2003).
No caso do CEFET-PE, cuja maioria dos alunos seria oriunda dos setores
populares, Pimentel (2003) entende que “a graduação vai ser sempre o alvo
dos alunos. Eles querem mesmo é fazer uma graduação. Agora, eles vêm nos
procurar pois [o Ensino Técnico] é um acesso mais rápido ao mercado de
trabalho. E pensam que vão ser mais bem remunerados.”
Em termos de política pública, os fins não justificam os meios e nos parece
que não teria sido necessário desestabilizar o sistema e a tradição do Ensino
Técnico, ancorados na própria qualidade das instalações, do corpo docente e
da formação ali oferecida, para que as instituições fossem buscar abrir novos
caminhos, realizar aspirações latentes ou em processo. O CEFET-Campos,
impulsionado pelos recursos do PROEP, conseguiu ter melhor infra-estrutura e

10
A exemplo do pensamento reiterado por um de seus consultores para o Brasil (Castro, 2003: 140 e ss.).

364
PARTE III | A DÉCADA DE 1990

está investindo nas licenciaturas, visando à formação de professores de Física,


Geografia, Geoprocessamento, Química, Biologia. Para o diretor entrevistado,
“é muito interessante para uma instituição marcada pela tecnologia construir o
seu espaço e, de repente, pensar em formar o formador”, abrindo espaços para os
professores da rede pública, de onde, ressalta, “o aluno da concomitância externa
chega desqualificado”. Outros caminhos surgiram com a articulação com outras
instituições, como o Mestrado em Educação com a UFF, a volta para o
desenvolvimento local, porque “é preciso que se revele um pouco melhor quais
são as atividades econômicas daquela região e de que forma se pode agregar
conhecimento, agregar tecnologia, assumir o desafio que é integrar as atividades
econômicas à economia capitalista, esse é o grande desafio”. No momento da
entrevista, além disso, o CEFET estava desenvolvendo um novo equipamento
para o Município de Pádua, um projeto de pesquisa financiado pela FAPERJ,
desenvolvido com a UFF, a UERJ e a UENF, formando tecnólogos em produção
agrícola com a UFRRJ, formação para empresas como a PETROBRÁS, cursos
de elevação de escolaridade para trabalhadores, aproximação com as
comunidades por meio de cinco unidades móveis. “Então o CEFET é, hoje, um
borbulhar de possibilidades de alternativas” (Pereira, 2003).

4. Considerações finais. A reforma em discussão e a revogação do


Decreto n. 2208/97
Embora o universo de entrevistados seja pequeno para conclusões mais
gerais sobre a leitura que eles fazem da reforma, sua composição engendra,
sem dúvida, indicações que nos permitem um balanço mais amplo. Na
composição dos entrevistados estão presentes as posições acima destacadas de
adesão à reforma, acomodação e “consentimento ativo” como estratégia de
luta numa correlação de forças adversas. Trata-se, em termos gramscianos, da
estratégia de “formar trincheiras” numa “guerra de posição” no terreno interno
das instituições. Por outro lado, essas diversas posições estavam presentes ao
longo de 2003 e 2004, como vimos, eu e a professora Maria Ciavatta que
participamos, no MEC e em outros espaços, de praticamente todos os eventos
que discutiram a revogação do Decreto n. 2.208/97 e os longos debates, como
as instituições da sociedade civil, na formulação de um novo instrumento legal
de orientação à política de Ensino Médio e de educação profissional.11

11
A síntese das posições sobre a revogação do decreto 2.208/96 e elaboração de um novo instrumento
legal estão por nós analisadas num documento específico sobre o tema. (Frigotto e Ciavatta, 2004).

365
A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico

Pimentel (2003) considera que, diferente do Sistema S, que consolidou


sua forma de trabalhar com cursos pós-médios e cursos básicos, a escola técnica,
se não fizer uma avaliação de tudo isso, um estudo sério, criterioso de como
hoje está a escola, a gente vai fazer um remendo. Não podemos hoje, pelo
contexto em que vivemos, dizer se ela está bem ou está ruim, se ele [o decreto]
fica ou se ele sai. Primeiramente, temos que avaliar como ele está para ver se,
realmente, não vão ser piores as conseqüências (...).

Dentro da especificidade de cada escola, repete- se o pouco


conhecimento do que estava acontecendo durante a reforma, e as dificuldades
que se seguiram.
A maior parte dos professores do CEFET-RJ, na formação profissional faz,
basicamente, o mesmo trabalho na sua disciplina; o problema é o que houve
entre as disciplinas, porque aí ele não teve força de reorganizar o currículo;
é diferente, eu, isoladamente, eu, tive dificuldade com minha turma, a
maior parte de meus alunos teve dificuldade de receber gente de fora, e
receber gente com outras dificuldades, por isso que ele... se você fizer uma
pesquisa com o professorado, voltamos ao integrado. (...) olhando o horizonte
utópico e aquilo em que eu acredito na educação também, o grande problema
do Ensino Técnico foi o deslocamento de significado do técnico na
sociedade, e esse significado, se não recuperarmos, não adianta ser integrado
ou escolar (Simões, 2002).

Ramos dá duas indicações importantes em relação à reforma. Uma que


mostra como o MEC foi dobrando a resistência que existia ao PL 1.603. Com a
publicação do Decreto 2.2008/97 e depois o PROEP, observa que não houve
“nem resistência, nem exclusivamente responsabilidade institucional, mas
adesão”. Mostra, todavia, que nesse processo havia dimensões contraditórias
que permitiam estratégias de resistência. Em alguns casos, como na escola em
que atuava a entrevistada, mesmo depois da Portaria MEC n. 646/97, que
condicionava o apoio dos recursos do PROEP ao término progressivo do ensino
médio, a escola “não diminuiu uma vaga sequer”.
(...) o CEFET-Campos, o CEFET-Química e mais quatro outras instituições
foram as últimas instituições do sistema de escolas federais que conseguiram
a aprovação naquele momento da primeira etapa do PROEP. Por que? Porque
a gente não quis se submeter a algumas exigências que estavam sendo
colocadas, meio que isoladamente, outras explicitamente. Mas não reduzimos
a 50% o nosso número, e nós não, desde 1998, a gente não recuou um
milímetro sequer do que a escola oferece em se tratando de Ensino Médio
(Pereira, 2003)

366
PARTE III | A DÉCADA DE 1990

O depoimento do diretor do CEFET-Pelotas mostra que, vencida a


resistência inicial, a escola começou a implementar a reforma por meio de uma
“autocapacitação”, como proposta interna, com professores da casa,
capacitando-se “módulo por módulo, série por série” até o terceiro ano do
Ensino Médio e o último módulo de educação profissional, fazendo avaliação
da reforma e reformulando projetos.
Porque o que nós sabemos a nível de Pelotas é que boa parte das escolas não
está se adaptando a reforma nenhuma. Isso é um problema. Porque, ao
mesmo tempo que uma escola como a nossa se adapta e procurar fazer, e está
chamando o seu pessoal à razão, enfim, pessoas que tinham grande resistência,
como eu tive e como, talvez, todos nós tivemos, hoje somos grandes defensores
da reforma. E aprendemos a trabalhar com a questão; começa-se a obter um
outro perfil.

Mais adiante ele explica que isso significa fazer uma adaptação, “incluir
disciplinas, fazer um semestre básico, um ano de complementação” para adaptar-
se ao padrão heterogêneo de alunos que chegam à escola.
Quanto ao decreto, ele considera que “a questão do [Decreto n.] 2.208 é
muito pequena em relação à discussão mais macro do contexto da reforma (...)
a questão é que tipo de educação profissional nós vamos dar”. E complementa
seu pensamento dizendo que a escola estava estruturada “com uma mesma
metodologia, formando um bom profissional, se adaptando raramente”. As
mudanças tinham começado a ser feitas com muitas dificuldades.
Mas eles já haviam começado
com as primeiras experiências de educação profissional no chão da fábrica.
Hoje, nós temos no CEFET cursos de extensão feitos dentro de empresas,
construindo seu currículo CEFET Empresa-Professor, para atender à demanda
daquele segmento (...) para atender trabalhadores – e se não fossem feitos
esses cursos, eles seriam despedidos, estariam fora do mercado.

Muitos divergiram da iniciativa, considerando que era o início da


privatização. E houve um grupo de pessoas que “aceitaram o desafio ” . E
começaram a conhecer tecnologias de ponta que nunca tinham visto na escola,
nem nos livros. “A equipe de profissionais que começaram a trabalhar dentro
da empresa, hoje são grandes defensores da Reforma aqui dentro.” Perguntados
uma vez mais sobre a revogação do Decreto n. 2.208, o diretor e a equipe
presente opinam que “cair ou não cair o Decreto é o de menos.” A volta ao
integrado está assegurada pela LDB. Haveria lá “posições a favor e contra...”
(Kruger, 2003).

367
A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico

Em relação ao Decreto n. 2.208,


minha posição é muito clara e professada sobre isso; ele tem que ser revogado.
Ele tem que ser revogado como ato político, para tirar os resquícios de um
autoritarismo sufocante e tem que ser revogado como possibilidade ou como
necessidade de uma construção socioeducativa de um projeto de educação
profissional para o país. E não tem lugar para ele.

No mesmo sentido posiciona-se Carvalho: “O processo da reforma não


foi nada democrático. Eles sabiam todas as respostas, porque eles sabiam o que
eles queriam, que não era o que nós queríamos. Então eles tinham que ser
impositivos, foram impositivos o tempo inteiro. Por isso, conclui que não dá
para remendar ou apenas modificar. Tem que revogar pois não há como fazer
ajuste da reforma”.
Para Lima Filho todo o processo de implantação da reforma veio sob a
égide do autoritarismo. Entende que a revogação do Decreto 2.208/97, embora
não possa ser tomada “como tábua de salvação, a panacéia final se coloca
como um princípio para a gente começar a trabalhar um novo ordenamento da
educação profissional”.
Sobre esse aspecto, Costa não é tão explicita, embora sinalize que seria
interessante voltar ao modelo integrado. Na avaliação de Ney, a reforma foi
autoritária, como demonstra em sua dissertação de mestrado.
Tanto Ramos, como Carvalho, apontam a importância de haver outro
instrumento legal, discutido com a sociedade e as escolas, para reorientar a
política de Ensino Médio e educação profissional. Ramos traz um dado analítico
importante para entender tanto o grau de adesão ou de acomodação dominante
na Rede CEFET em face do decreto 2.2008 quanto o fraco movimento de
mudança facultado pelo atual Decreto 1554/2004. Lembra a entrevistada, de
um lado, a heterogeneidade da rede, mas, sobretudo, que se trata “de
instituições ainda clássicas do autoritarismo mesmo, desde sua origem”.
Essa análise reforça o que discutimos na seção I deste texto, sobre a
também fraca adesão prática da rede na mobilização para estruturar um projeto
vinculado à perspectiva da escola unitária e politécnica. Pereira considera
que o CEFET-Campos era naquele momento “uma escola muito mais forte do
que era antes. Apesar da reforma, com certeza, é uma instituição que tem uma
incursão na sociedade (...)”. Com relação à rede dos CEFETs, “essa é uma
característica histórica pela forma como essas instituições foram criadas. Mas
a rede já não era rede no sentido mais apropriado do termo”. Com a Reforma,
elas tiveram muita dificuldade de se posicionar como rede.

368
PARTE III | A DÉCADA DE 1990

Houve uma quebra desse pacto na busca de determinados caminhos que são
absolutamente singulares e particulares (...) seja por conta dos critérios adotados
para distribuição dos recursos, seja pela ingerência no encaminhamento dos
processos eleitorais (...) ela precisa buscar uma reconfiguração, uma redefinição,
até do que significa rede no cenário que está colocado (...) um dos caminhos
pode ser mesmo esse olhar para a comunidade, de uma definição de suas ações
no sentido de comprometê-la mais com as demandas que lhes são postas (...).

Para Pereira (2003), não se trata de discutir o Decreto 2.208; necessário


é discutir o sistema de educação profissional, qual o significado de uma rede
que tem 139 instituições incluindo o segmento agrícola. A questão principal
está no fato de que não se discute como tornar o espaço dessas instituições
mais substantivo na construção de alternativas de desenvolvimento, na geração
de trabalho e renda para suas comunidades, para seus locais.
Apesar de ter sido contra o Decreto n. 2.208/97, o caminho que o CEFET-
Campos tomou “e, tenho certeza, outras instituições percorreram apesar do
Decreto n. 2.208, nos espaços que esse Decreto não percebeu, é uma construção
muito interessante” (Pereira, 2003).
Sobre o que fazer além de revogar o 2.208, Lima Filho entende também
que não dá para pura e simplesmente revogar “sem colocar nada no lugar”.
Para Costa, a volta do “modelo integrado” permitiria a superação da dualidade.
Mas, para ela, as escolas foram criando uma demanda, que agora não podem
simplesmente abandonar, com aqueles que acabaram o ensino médio e querem
uma formação profissional mais específica.
Para Ney, o grande problema vai ser o que colocar no lugar do Decreto
n. 2.208 Para ele há fortes interesses em jogo. Recorre á idéia de Jânio Quadros
sobre “forças ocultas” e bem fortes que se contrapõem ao fim do Decreto. Lembra
que já há sites que mostram reação organizada nesse sentido. Esses fatos ficaram
evidenciados nas discussões polêmicas ocorridas durante o Seminário Nacional
de Educação Profissional promovido pelo MEC em junho de 2003 (Brasil, 2003).
Da análise que efetivamos neste capítulo, na interface com o conjunto
das discussões do volume I do Relatório Final do Projeto Integrado, podemos
destacar alguns aspectos em forma de síntese.
As lutas que se travaram ao longo da década de 1980 para transitar da
ditadura civil-militar à redemocratização da sociedade brasileira e,
especialmente, os embates no processo constituinte permitiram uma ampla
organização dos educadores em associações científicas e sindicais. Isso fica
evidenciado pela presença de 34 instituições científicas e sindicais no Fórum
em Defesa da Educação Pública ao longo da Constituinte. Essa organização foi

369
A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico

fundamental no combate às reformas neoliberais no campo educativo na década


de 1990, especialmente no combate à reforma do Ensino Médio Técnico e
Profissional. Com efeito, percebe-se que a resistência ativa à reforma deu-se
no embate contra o Projeto de Lei n. 1.6003/96 e no início da implantação do
Decreto n. 2.208/97. Na vigência deste último e de outras medidas legais para
de caráter autoritário e coercitivo, aliadas ao enfraquecimento das organizações
científicas e sindicais nos anos 1990, a resistência deu-se mediante o que
denominamos consentimento estratégico. Tratava-se, como algumas entrevistas
assinalam, de “lutar por dentro”, buscando salvar concepções educativas na
ótica da educação omnilateral, mesmo com grandes limitações.
A adesão aberta e orgânica ou o consentimento passivo na Rede CEFET
da reforma ganha melhor compreensão quando relacionamos ao que discutimos
no Capítulo 1 da Parte I. O ideário da reforma penetrou mais do que se poderia
imaginar a Rede CEFET não apenas e, sobretudo, por razão conjuntural, mas
pelo traço de uma cultura histórica na sociedade brasileira de “modernização
conservadora” e de cunho autoritário. Traço esse impregnado, de forma maior
ou menor, na antiga rede de escolas técnicas federais e atual rede CEFET,
mesmo considerando os significativos avanços, também diferenciados, que
ocorreram na democratização interna dessas instituições. Uma evidência de
que a reforma penetrou mais profundamente do que parece à primeira vista, é
o fato de a rede CEFET não ter articulado, salvo em casos isolados, alterações
em sua política institucional após a revogação do Decreto 2.208/97 e a aprovação
do Decreto n. 5.154/04. Nem mesmo o governo que fez essa mudança cobrou à
rede um envolvimento ativo na proposta do Ensino Médio integrado.
As duas considerações acima nos condizem, finalmente, à percepção de
que não se operaram e não se estão operando, na sociedade brasileira, mudanças
de natureza estrutural que permitam uma travessia para a democracia política,
econômico-social e educacional. Também fica patente que, apesar do caráter
autoritário e coercitivo da reforma do Ensino Médio Técnico e Profissional, o
Governo Fernando H. Cardoso e a equipe de seu ministro da Educação, Paulo
Renato de Souza, não alcançaram, integralmente, o que queriam. Houve
sociedade organizada na resistência e na ação ativa. Essas forças estão hoje
mais dispersas, como já assinalamos, mas, se o atual governo, que foi eleito
dominantemente por elas, quiser avançar na travessia para a democracia efetiva
da sociedade e na educação, é nelas que pode encontrar sustentação política
e de ação. Se isto não ocorrer, a delegação popular para mudanças estruturais
na sociedade brasileira redundará na continuidade trágica da “modernização
conservadora” e na reiteração de uma sociedade desigual e injusta.

370
PARTE III | A DÉCADA DE 1990

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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371
A formação do cidadão produtivo – a cultura de mercado no ensino médio técnico

PEREIRA, Luís Augusto. Entrevista com o Diretor Geral do Centro Federal


de Educação Tecnológica de Química de Campos, RJ (CEFET-Campos),
em 28/01/2003.
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Centro Federal de Educação Tecnológica de Pernambuco (CEFET-PE),
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