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1.Parte:
Em direção à Diferença e Repetição
Professor:
Vladimir Safatle
Introdução á experiência intelectual de Gilles Deleuze
Aula 1
Duas imagens
Creio que todos vocês conhecem este quadro. Trata-se de Las meninas, de Velásquez. Este
quadro teve uma grande importância nos debates próprios à filosofia francesa
contemporânea, já que é através de um comentário a seu respeito que Michel Foucault abre
esta que é uma das obras mais conhecidas do pensamento francês do pós-guerra: As
palavras e as coisas.
A escolha de Foucault em começar com este quadro não deixava de ter uma certa
ironia. Basta lembrarmos que ele foi pintado em 1656. Aqueles que leram A história da
loucura sabem muito bem o que esta data representa. 1656 é também a data do edito de
criação do Hospital Geral e, conseqüentemente, data do início desta experiência de
internamento da loucura que irá marcar, de maneira, definitiva o modo de partilha entre a
razão e seu Outro. Assim, através do comentário do quadro de Velásquez, Foucault irá
descrever a figuração de um processo semelhante ao “grande internamento” analisado em A
história da loucura. Trata-se do início deste processo de constituição do sujeito através da
exclusão do que não se submete mais a um regime de saber marcado pela disponibilização
do objeto através da representação.
No caso do quadro de Velásquez, o que chama a atenção de Foucault é
fundamentalmente o fato dele ser a figuração estética de um corte epistemológico, dele ser
a “representação da representação clássica”1, já que seu motivo central é o próprio ato de
representar, o próprio processo de ordenação do campo de visibilidade. Neste sentido, ele
marca o advento da episteme clássica, toda ela fundada na noção de representação, e a
obsolescência da episteme em voga da Renascença. Mas, tal como em A história da
loucura, tal corte implica exclusão daquilo que, para o regime de saber próprio à razão
moderna, é desprovido de verdade. O objeto desta exclusão será a crença na capacidade
cognitiva da semelhança. É isto que Foucault tem em mente ao dizer que o espaço aberto
pelo quadro de Velásquez é solidário de um vazio essencial:
Ou seja, o sujeito pode enfim nascer como sujeito da representação, como aquele
que está no interior do campo de visibilidade do saber. Mas este “estar” não deixa de ter sua
peculiaridade. O sujeito moderno traz uma estrutura peculiar do estar no mundo.
Analisando os motivos internos ao quadro, Foucault lembra que um de seus eixos é a
constituição de um lugar, lugar fundado na intercambialidade absoluta dos objetos que
porventura irão ocupá-lo. O assunto central do quadro não está apenas ausente. Ele será
encarnado a todo momento que o quadro for visto. Mas encarnado sempre no interior de
uma relação de representação, já que uma imagem está lá: a imagem dos soberanos Felipe
IV e sua mulher que aparece ao fundo, em um espelho. Espelho que: “restitui a visibilidade
àquilo que permanece fora de todo olhar”3. Mas esta restituição expõe a verdade de toda
imagem especular: a verdade de ser uma imagem formadora e conformadora, ao invés de
simples dispositivo de descrição de semelhanças. Este espelho não é o espelho que apenas
reproduz o objeto que a pintura já apresenta. Ele é espelho que se coloca como única
condição de possibilidade do objeto a ser apresentado.
A identificação entre o olhar de quem contempla o quadro e a imagem do espelho é,
por um lado, abolição de toda relação de semelhança; por outro, constituição de uma nova
relação de representação. Relação na qual o sujeito não aparece apenas como fundamento
soberano de toda visualidade, mas como fundamento apenas à condição de submeter-se a
1
FOUCAULT, Les mots et les choses, p. 31
2
idem, p. 31
3
idem, p. 23
um regime amplo de visibilidade, a uma ordem da representação que lhe ultrapassa.
Submeter-se a esta ordem, ser capaz de reconhecer processos de relação e de ordenamento,
é condição para que o olhar possa ser constituído com tal e desempenhar sua função no
interior do quadro.
No entanto, não esqueçamos como este fundamento é um estranho fundamento
negativo. Ele não está lá, posto diretamente no campo de visibilidade. Ele está pressuposto,
sem nunca poder estar totalmente posto. O sujeito moderno se manifesta assim como o que
um dia Hegel chamará de “negatividade” (ele é o que não pode ser integralmente posto, ele
é o que não se confunde completamente com suas próprias representações) e o que Deleuze
chamará de transcendência (ele nunca é integralmente fenômeno). Uma negatividade e uma
transcendência que, ao menos aos olhos de Deleuze, seriam astúcias supremas da
representação. Seriam a maneira do pensar representativo pôr um limite, pôr um para além
da representação, mas apenas para absorvê-lo e calá-lo. Apenas para dizer que o fora da
representação é caracterizado exatamente por isto, por não poder ser representado, por ser
um limite da representação, por não ter, em si, nenhum princípio positivo, nenhum
princípio outro de organização. É a representação que fornece a ordem própria ao pensar
com suas regras e seus processos de recognição. O pensar não saberia se mover em uma
ordem outra. Tudo se passa como nestas sonatas onde a dissonância é aceita, mas à
condição de permitir a reiteração, o retorno à uma ordem que aceita o que lhe nega apenas
para finalmente poder triunfar.
Este, por sua vez, é um quadro menos conhecido. Trata-se de Tríptico: estudos do corpo
humano, pintado por Francis Bacon em 1970. Ele é um dos principais quadros analisados
por Gilles Deleuze em um livro dedicado à obra de Bacon: Lógica da sensação. Não creio
estar incorrendo em erro se afirmar que, para Deleuze, este quadro tem, para a
contemporaneidade, a mesma função que Las meninas teve para aquilo que Foucault chama
de Idade Clássica. Ele descreve uma operação que diz respeito aos modos de posição do
que serve de fundamento à visualidade. Ele diz respeito, tal como em Las meninas, à
encenação de um modo de funcionamento do saber que servirá de vetor de
desenvolvimento para a os padrões de racionalidade de toda uma época.
Tais colocações nos forçam a perguntar: quais os vetores de caracterizam, ao menos
segundo Deleuze, a época de Estudos do corpo humano? Notemos inicialmente que, se no
quadro de Velásquez, a estrutura pictural visa apresentar o lugar do sujeito como
fundamento transcendente, no caso de Bacon trata-se de apresentar este fundamento que só
pode aparecer lá onde a “dissolução do Eu” toma a cena. Esta não é apenas dissolução de
um Eu determinado em sua identidade e individualidade. Ela é a dissolução de todo um
padrão de ordenamento dependente da aceitação tácita do princípio de identidade e dos
modos tradicionais de determinação de individualidades. Deleuze partilha um grande
diagnóstico de época que podemos encontrar em autores tais distintos entre si como
Adorno, Foucault, Lacan, Derrida, Lyotard. Diagnóstico é aqui a palavra mais correta
porque se trata de identificar as causas de um sofrimento social. Nossa época sofre, mas ela
não sofre, por exemplo, da indeterminação advinda da perda de relações substanciais e
seguras que nos permitiam saber claramente nossos papéis sociais. Se quiséssemos utilizar
uma metáfora ilustrativa de Deleuze, diríamos: ela não sofre de desterritorialização. Ela
sofre por não suportar mais as amarras da identidade, da individualidade, do Eu. É deste
sofrimento que, ao menos segundo Deleuze, os quadros de Bacon seriam feitos.
Vejamos, por exemplo, como Deleuze pensa os quadros de Bacon. Há sempre um
processo de isolamento, de extração que permite construir um lugar no qual a figura pode
ser exposta em sua nudez. Não há estruturas de relações (fundo/forma, claro/obscuro,
profundidade de cores que permitiram variações e gradações, motivos subordinados). O que
ocupa o resto do quadro são cores imóveis e absolutamente uniformes. Por isto, Deleuze
pode afirmar não haver “modelo a representar, nem história a contar”4. Aqui, o isolamento
aparece como garantia de ruptura com a narrativa e a representação. Pois estas figuras não
estabelecem relações de figuração (embora não possamos dizer que elas são exatamente
abstrações).
Sabemos que tais figuras são corpos, mas corpos que fazem um grande: “esforço
sobre si mesmos para advir Figura”5, como um corpo que tenta escapar de si mesmo através
de um de seus órgãos. Deleuze é sensível, por exemplo, ao fato dos corpos das pinturas de
Bacon não terem exatamente rostos, mas cabeças, como se seu projeto de retratista fossa o
de: “desfazer o rosto, reencontrar ou fazer surgir a cabeça sob o rosto” 6. Em Mil Platôs,
quando dedicar um capítulo ao rosto, Deleuze e Guattari dirão: “O rosto tem um grande
futuro, à condição de ser destruído, desfeito. Em direção ao a-significante, ao a-subjetivo” 7.
Se pensarmos como nossa ideia de individualidade está visualmente vinculada ao rosto e a
seus traços, podemos imaginar o que significa tal processo de dissolução. Ele é, no fundo,
procura da imagem em apreender uma zona objetiva de indiscernibilidade, zona de
indecidibilidade que nos remete a um estranho “fator comum” anterior a constituição de
individualidades. Fator comum entre o homem e o animal, entre o corpo e a carne (viande).
Esta zona objetiva de indiscernibilidade anterior a toda constituição de
individidualidades, fator comum que indica uma unicidade anterior a toda diferença
ordenada pela representação é, no fundo, o verdadeiro objeto da filosofia de Gilles Deleuze.
Que toda a experiência intelectual do filósofo da diferença, do nomadismo, da
desterritorialização seja animada pela procura das condições para pensar a unicidade, esta
unicidade que está em nós e cuja potência nos atravessa: eis algo que, como veremos no
decorrer deste curso, não deve mais nos surpreender. Veremos como, neste sentido,
devemos seguir uma indicação preciosa de Alain Badiou: “O problema fundamental de
Deleuze não é certamente liberar o múltiplo, é dobrar o pensamento a um conceito
renovado do Uno”8.
Mas se nós voltarmos a Bacon, veremos que as condições para pensar tal zona de
indiscernibilidade estão vinculadas a um certo resgate do que Deleuze chama de
“sensação”, ou seja, isto que: “age imediatamente sobre o sistema nervoso, que é a carne” 9.
Ele chega mesmo a falar da “violência” de uma sensação que não passa pela estruturação
do diverso da experiência pela forma do conceito, que não passa pela espontaneidade de
uma subjetividade constitutiva com suas formas a priori, que, por isto, pode se manifestar
como “agente de deformação dos corpos”.
4
DELEUZE, Logique de la sensation, Paris, Seuil, 2002, p. 12
5
idem, p. 23
6
idem, p. 27
7
DELEUZE e GUATARRI, Mille plateaux, Paris: Seuil, 1980, p. 270
8
BADIOU, Deleuze: o clamor do ser, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1997, p. 18
9
DELEUZE, Logique de la sensation, p. 39
Não seria difícil enxergar, neste recurso ao imediato da sensação que parece
descartar o trabalho de um conceito que sempre será confundido com a representação,
alguma evidente forma de irracionalismo? Ou não seria melhor dizer que o sensível impõe
sua “lógica”, que há uma “lógica da sensação” que exigiria uma “remodelação da estética
transcendental, que libera o sensível de sua domesticação ou unificação conceitual” 10? Uma
remodelação que exigiria nos despedirmos de um conceito de sujeito que Francis Bacon
parece nos dizer que ele já não nos diz mais respeito. Uma remodelação que seria condição
sine qua non para apreendermos o “ser do sensível”11 (notemos esta construção, pois
ninguém, em filosofia, fala impunemente do ser).
Sugiro levarmos a segunda hipótese a sério e descartarmos a primeira. Devemos
descartá-la com a tranqüilidade de um leitor atento de Deleuze, Bento Prado Júnior. O
mesmo Bento Prado que respondeu, nos seguintes termos, a uma pergunta sobre o pretenso
irracionalismo do filósofo francês: “Irracionalismo é um pseudoconceito. Pertence mais à
linguagem da injúria do que da análise. Que conteúdo poderia ter, sem uma prévia
definição de Razão? Como há tantos conceitos de Razão quantas filosofias há, dir-se-ia que
irracionalismo é a filosofia do Outro. Ou pastichando uma frase de Émile Bréhier que, na
ocasião, ponderava as acusações de ´libertinagem’, poderíamos dizer: “on est toujours l
´irrationaliste de quelqu´un”12.
Dito isto, devemos nos perguntar sobre uma questão de método de leitura: qual a
melhor maneira de abordar a experiência intelectual de Gilles Deleuze? De fato, esta não é
uma questão simples, já que uma análise de sobrevôo parece nos apresentar uma obra
fragmentada e dispersiva. Grosso modo, conseguimos enxergar três grandes fases.
A primeira começa com seu primeiro livro, publicado em 1953, quando o autor
tinha então 28 anos. Trata-se de uma tese de mestrado, dirigida por Jean Hyppolite, sobre
David Hume intitulada Empirismo e subjetividade. Durante oito anos, Deleuze não publica
nada. Segue-se então uma seqüência de monografias que parecem firmá-lo como um
historiador atípico da filosofia. São textos sobre Nietzsche, Kant, Bergson e Spinoza, isto
além de dois livros sobre escritores: Marcel Proust e Sacher-Masoch. “Historiador atípico”
porque, a primeira vista, é difícil identificar o que vincularia autores aparentemente tão
distantes entre si como Hume, Nietzsche, Spinoza, Kant e Bergson. Mas se colocarmos um
pouco de lado Kant, já que, segundo o próprio Deleuze, tratava-se de fazer um livro sobre
“um inimigo sobre quem procuro mostrar como ele funciona, quais são seus
mecanismos”13, veremos uma certa ligação patrocinada pela possibilidade recuperação de
uma filosofia da imanência capaz de ser “a elaboração escrita de uma forma singular de
intuição”14. Como ele mesmo dirá: “Desenhar um plano de imanência, traçar um campo de
imanência, todos os autores dos quais me ocupei fizeram isto (mesmo Kant quando ele
denuncia o uso transcendental das sínteses, mas ele se limita à experiência possível e não à
experimentação real)”15.
10
PRADO JR., Erro, ilusão, loucura, São Paulo, Editora 34, 2004, p. 247
11
DELEUZE, Différence et répétition, p. 182
12
PRADO JR., idem, p. 256
13
DELEUZE, Pourparlers, Paris, Minuit, p. 14
14
BADIOU, idem, p. 47
15
DELEUZE, idem, p. 199
Mas por que afinal a contemporaneidade precisaria reconstruir as condições para
pensar a imanência? A resposta só será dada de maneira articulada através de dois livros
que marcam a sistematização daquilo que estava em gestação durante todo este longo
trajeto na história da filosofia. São eles: Lógica do sentido e, principalmente, Diferença e
repetição, sua tese de Doutorado de Estado orientada por Maurice de Gandillac e publicada
em 1969 (a tese suplementar era Spinoza e o problema da expressão, orientada pelo
cartesiano Ferdinand Alquié).
Estes são, do ponto de vista da elaboração filosófica, os dois livros mais importantes
de Deleuze e aqueles que determinam o que poderíamos chamar de um “programa
filosófico” marcado sobretudo por aquilo que o filósofo francês entende por um “anti-
hegelianismo” generalizado. A crítica ao hegelianismo é, no fundo, a crítica a uma tradição
filosófica (cujas raízes se encontrariam em Platão, mas que englobaria ainda Descartes)
incapaz de escapar das amarras de um pensamento da representação e de alcançar a
identidade imediata. Impossibilidade, que no caso de Hegel, consistiria em criticar a
representação, em insistir em seus limites, contradições e antinomias, insistir na
negatividade que tais limites e contradições acarretam, mas sem ser capaz de pôr uma outra
ordem positiva em seu lugar, sem ser capaz de realmente ultrapassar as dicotomias e os
lugares que o pensamento articula (essência/aparência, necessidade/contingência,
objetividade/subjetividade, forma/conteúdo). Uma impossibilidade de ultrapassar lugares
que Deleuze chama de nomos sedentário. Platão, Descartes e Hegel: filósofos do nomos
sedentário.
No entanto, esquecemos muitas vezes como esta crítica é sobretudo moral, até
porque, um pouco como em Nietzsche, a crítica do conhecimento e a critica das categorias
lógicas do pensar (identidade, diferença, unidade, repetição) têm sempre um fundamento
moral, isto no sentido delas visarem um certo ethos por trás dos modos de operação da
razão. De onde vem o medo por aquilo que não se submete ao conceito? De onde vem o
medo do caos? Por que compreendemos a diferença como negatividade que pode ser
superada pelo auto-movimento do conceito? De onde vem esta paixão pelo sistema e pela
totalidade? Por que continuamos a falar em alienação quando estamos em uma posição na
qual não mais nos reconhecemos, já que se alienar significa perder uma identidade, exilar-
se de uma essência, ou seja, insistir na necessidade de não abandonarmos a noção mesma
de essência? Por que compreendemos as individuações como produção de identidades
estáveis e fixas? Por que ainda estamos aferrados ao sujeito quando vemos se abrir diante
de nós uma zona de indiscernibilidade anterior à formação mesma da dicotomia sujeito-
objeto? Todas estas perguntas receberão respostas ligadas, á sua maneira ao campo da
moral. Trata-se de um ethos que deve se afirmar através das operações da razão, trata-se de,
no fundo, validar uma forma de vida.
Por exemplo, uma das operações filosóficas maiores de Lógica do sentido e
Diferença e repetição é a recuperação da noção de simulacro, ou seja, desta imagem que
não é representação de um modelo, não é cópia de um modelo, mas cópia da cópia e que,
por isto, contesta a relação de subordinação entre cópia e modelo. Mas o questionamento da
relação ao modelo é, no fundo, questionamento da essência do fundamento, já que não
posso mais garantir uma partilha das imagens, quais imagens têm relação ao fundamento e
quais não o tem, quais são boas imagens e quais são imagens ruins. Até porque fundar é
aqui estabelecer o existente através da sua relação a um padrão que me permite orientar-me
no pensamento. Daí porque a essência do mal não é a posição de uma nova ordem, mas a
confusão, o embaralhamento, a impossibilidade de julgar, a profusão dos simulacros. Ou
seja, através da crítica ao simulacro, Platão procuraria afirmar uma visão moral do mundo.
Nós havíamos partido de uma questão: por que afinal a contemporaneidade
precisaria reconstruir as condições para pensar o imediato e a imanência? A resposta de
Diferença e repetição e Lógica do sentido será: para escapar do hegelianismo e de sua
maneira de desqualificar o imediato através de um pensamento da negatividade. Veremos
tudo isto com calma no interior do nosso curso. No entanto, não deve ter escapado a vocês
o caráter circular e desonesto da minha resposta. Por que a contemporaneidade precisa
reconstruir as condições para pensar o imediato? Para escapar de uma forma de pensar que
nos impede de pensar o imediato. No entanto, Deleuze tem uma resposta melhor do que
esta.
Podemos mesmo dizer que tal resposta é a essência do que devemos chamar de
segunda fase do pensamento deleuzeano, esta que começa em 1972 e que é marcada pela
sua colaboração com Felix Guatarri. A obra central desta fase é Capitalismo e esquizofrenia
com seus dois grandes volumes: O anti-Édipo, de 1972, e Mil platôs, de 1980. Para além de
seu caráter militante e polemista, o que devemos guardar destes livros é a maneira peculiar
com que eles tentam articular a reflexão filosófica anterior de Deleuze a um diagnóstico
social de larga escala a respeito do capitalismo e de suas formações sócio-culturais. À sua
maneira, Deleuze quer dizer que o hegelianismo, suas formações e sua maneira de insistir
na identidade, no conflito que deve ser superado, na negatividade reativa são, no fundo, a
ideologia do último estágio do capitalismo avançado. Este capitalismo marcado pela
territorialização e pela produção regulada de identidades que na mesma época leva Theodor
Adorno a afirmar: “a identidade é a forma originária da ideologia”.. A crítica da razão se
transforma, a partir de então, em crítica social.
É desta forma que devemos compreender o sentido maior de O anti-Édipo. O título
não poderia ser mais claro: trata-se partir da crítica deste dispositivo de socialização do
desejo que a psicanálise chama de complexo de Édipo. Mas trata-se de partir dele a fim de
lembrar como o modo de socialização no primeiro núcleo de interação social, ou seja, na
família, determinará os modos de interação em esferas mais amplas da vida social (as
instituições, o Estado, o Capital). Ao colocar a reflexão sobre o desejo e seu destino no
cerne de uma reflexão sobre o social, Deleuze não fazia outra coisa que realizar aquilo que
ele havia afirmado em seu primeiro livro, sobre David Hume: “só uma psicologia dos
afetos pode constituir a verdadeira ciência do homem” 16. O que mostraria a coerência
profunda entre o passional e o social. A riqueza de O anti-Édipo está exatamente aqui, no
fato de ter realizado o projeto de pensar a natureza dos vínculos entre o pathos e o socius a
partir de uma perspectiva de tentativa de renovação da crítica ao capitalismo animada pelos
movimentos de maio de 68. Vínculos estes que permitirão uma das operações centrais dos
últimos quarenta anos: a elevação do corpo à condição de dispositivo central da política.
Transformar seu corpo em espaço de manifestação da liberdade, espaço de afirmação de um
projeto de estetização de si, de construção plástica e performativa da multiplicidade.
Conjugar a “plasticidade” do corpo. Todas estas colocações aparecem para nossa
sensibilidade contemporânea como dotadas de forte potencial disruptivo. Como se
tivéssemos deslocado nossas aspirações de reforma social para dentro do corpo, como se
tivéssemos transformado o impulso de reforma social em reforma do corpo e de suas
potencialidades. Tais processos seriam impossíveis sem O anti-Édipo.
16
DELEUZE, Empirisme et subjectivité, p. 1
Mas voltemos à psicanálise. Durante anos, Deleuze fora um leitor atento da Freud,
Melanie Klein, Lacan, Winnicott, entre outros. Basta ver a precisão de um trabalho sobre o
masoquismo como Apresentação de Sacher-Masoch, assim como páginas brilhantes
dedicadas à reflexão sobre a pulsão de morte em Diferença e repetição e sobre os objetos
parciais em Lógica do sentido. Deleuze seguira de perto a produção de Jacques Lacan, que
chegou mesmo a convidá-lo a fazer parte de sua Escola Freudiana de Psicanálise. No
entanto, a partir de O anti-Édipo esta posição de acolhimento da psicanálise se inverte
radicalmente. Um trajeto extremamente semelhante acontecerá com Michel Foucault a
partir de História da sexualidade. Nos dois casos uma relação inicial de aproximação dará
lugar a uma compreensão da psicanálise como fundamento dos processos de reprodução
social e de miséria afetiva no capitalismo. No caso de Deleuze, a crítica era clara: a maneira
com que a psicanálise procura socializar o desejo produz um desejo marcado pela
negatividade, pela perda, pelo conflito, desejo como falta que nos remete, afinal de contas,
a Hegel. Toda a moral hegeliana da negatividade estaria presente na clínica psicanalítica
graças, principalmente, a Jacques Lacan. Contra isto, uma verdadeira crítica social deveria
começar como clínica capaz de produzir um curto-circuito nesta forma de socialização..
Esta seria a função de conceitos como: corpo sem órgão, máquina desejante, inconsciente
como fluxo, e tantos outros. Uma clínica que Deleuze e Guatarri chamarão de esquizo-
análise É sempre bom lembrar como, nesta tentativa de constituir uma clínica a partir de
uma reflexão filosófico sobre o modo de ser do desejo, Deleuze acabava por dar seqüência
a uma certa tradição francesa que podemos encontrar em Sartre com sua psicanálise
existencial.
Por fim, haveria uma última fase do pensamento deleuzeano a partir de Mil Platôs.
Ela estaria marcada por um certo retorno à história da filosofia (através de monografias
sobre Spinoza e Leibniz) e, principalmente, por grandes trabalhos sobre estética visual,
como: Imagem-tempo, Imagem-movimento (sobre o cinema) e Lógica da sensação (sobre
Francis Bacon). Deleuze sempre escrevera sobre a literatura (Proust, Sacher-Masoch,
Kafka), mas estes estudos demorados sobre a imagem não deixavam de ser surpreendentes,
sobretudo se lembrarmos como Deleuze havia, em Diferença e Repetição, proposto uma
filosofia capaz de ser a “crítica radical da Imagem e dos ‘postulados’ que ela implica” ou
ainda, ser capaz de operar uma “luta rigorosa contra a Imagem, denunciada como não-
filosofia”17. Esta crítica da Imagem com suas ramificações profundas na tradição filosófica
francesa do século XX, será revista por Deleuze nos anos 80, isto graças à identificação de
um novo regime de imagens vindo do cinema e, principalmente, da pintura pós-abstrata,
esta que, como a pintura de Francis Bacon, resgata a figura em sua potencia de não-
figuração, em sua forma de disposição do que não se reconhece mais na sua própria forma.
Alguns anos antes de morrer, Deleuze escreverá uma última contribuição com Félix
Guatarri, uma espécie de obra póstuma em vida na qual eles se propõem a responder esta
questão “que enfrentamos numa agitação discreta, à meia-noite, quando nada mais resta a
perguntar”, uma questão própria àqueles que “desfrutam de um momento de graça entre a
vida e a morte”18, a saber, O que é a filosofia?
Teoria e prática
17
DELEUZE, Différence et répétition, p. 173
18
DELEUZE, O que é a filosofia? , p. 9
Mas estas passagens entre história da filosofia, clínica, crítica social e estética no
interior de uma experiência intelectual como a de Gilles Deleuze: o que elas podem querer
significar? O que pode querer significar este movimento que parece exigir uma indistinção
entre campos autônomos de saber, entre reflexão e empiricidades? No fundo, esta questão,
ao menos segundo Deleuze, nos leva diretamente a um dos problemas maiores da filosofia
contemporânea: os modos de relação entre teoria e prática.
A este respeito gostaria de lembrá-los de uma entrevista de Deleuze feita por Michel
Foucault na qual Foucault começa colocando a questão: “Um maoísta me dizia : ‘ Sartre, eu
compreendo bem porque ele está conosco, porque ele faz política e de que forma ele faz;
você, em última instância, eu compreendo um pouco, você sempre colocou o problema do
encarceramento. Mas Deleuze, este aí eu realmente não compreendo nada”19.
A resposta de Deleuze não deixa de ser surpreendente. Ele afirma estarmos vivendo
de uma outra maneira as relações entre teoria e prática. Até então, ou concebíamos a prática
como uma aplicação da teoria, como a exposição de um processo que já havia sido descrito
e conceitualizado pela teoria, ou fazíamos a operação inversa e concebíamos a prática como
a força criadora de uma forma de teoria a vir, ou seja, uma prática soberana que despediria
a teoria ou, no máximo, que a obrigaria a se curvar diante de seu peso. Nos dois casos,
concebemos as relações entre teoria e prática como a subsunção de um pólo pelo outro.
Pensamos a aplicação como uma operação guiada por relações de semelhança ou analogia.
Onde a prática é análoga à teoria? Onde a teoria se assemelha ao que vemos na prática?
Mas, e se ao invés de pensarmos relações hierárquicas e verticais, começássemos a pensar
relações horizontais? Poderíamos pensar que, quando a teoria se concentra em seu próprio
domínio, ela começa a se confrontar com obstáculos, com muros que a impedem de
avançar, que nos obrigam a substituí-la por um outro tipo de discurso, uma prática que nos
permita passar a um domínio diferente. Graças a esta passagem, poderemos resolver um
problema na teoria, retornar a teoria em outro ponto, a partir de outro lugar. Assim: “a
prática é um conjunto de passagens (relais) de um ponto teórico a um outro, e a teoria, uma
passagem de uma prática a outro. Nenhuma teoria pode se desenvolver sem encontrar uma
espécie de muro e é necessário a prática para perfurar este muro”20.
Deleuze não poderia ser mais claro: para continuar a fazer esta teoria por excelência
que é a filosofia, faz-se necessário saber abandonar a filosofia, passar a um outro domínio,
a uma prática como a clínica, a estética, a crítica social. Mas este abandono é o que nos
permite continuar a fazer filosofia. Parafraseando Nietzsche, a verdadeira filosofia é capaz
de se perder para poder se realizar. É indiferente dizer que a prática é uma maneira de
permitir a teoria avançar, de resolver um problema teórico que nos bloqueia ou que a teoria
é uma maneira de permitir a prática avançar, de resolver um problema prático que nos
bloqueia. É indiferente porque o movimento de passagem de um pólo a outro é constante (o
que todos os grandes filósofos do século XX compreenderam: Foucault com suas passagens
à análise das instituições, Adorno com suas passagens em direção à sociologia e à crítica da
cultura, Wittgenstein com seus abandonos da filosofia em direção à análise da linguagem
ordinária). Em última instância, era isto que o maoista de Foucault tinha dificuldade em
compreender. Compreender que o político, enquanto campo de forças que visam
implementar modificações estruturais em nossas formas de vida, enquanto campo de forças
que visam impedir o bloqueio e a mutilação de uma vida que pode ser maior do que
atualmente é, está presente na recuperação da duração em Bergson e nas experiência clínica
19
DELEUZE, L´île deserte, p. 289
20
idem, p. 289
de La Borde, ou melhor, está presente na passagem de um campo de problemas a outro.
Maneira de afirmar que toda crítica social vigorosa é uma crítica da razão, e toda crítica da
razão que vai às últimas conseqüências é uma crítica social. Veremos isto no interior de
nosso curso.
Antes então de terminar a aula de hoje, eu gostaria de dizer duas ou três palavras
mais pessoais a respeito do que me levou a apresentar para vocês, mais uma vez, um curso
sobre Gilles Deleuze. Creio ser obrigado a dizer tais palavras porque aqueles que conhecem
o que faço sabem que alguém que escreveu um livro chamado A paixão do negativo não
parece ser a pessoa mais indicada para falar sobre a filosofia de Deleuze. Todos meus
interesses maiores são por autores que Deleuze claramente afirma detestar (Hegel), dever
criticar (Lacan) ou simplesmente ignorar (Adorno). Por isto, se decidi oferecer este curso
sobre Deleuze é porque tive um professor que um dia me ensinou que só começamos
realmente a pensar quando perdemos o medo de nos confrontar com autores que parecem
nossos antípodas. Este professor era um profundo leitor de Sartre que, devido exatamente a
esta crença, decidiu escrever uma tese sobre o aparente antípoda de seu autor: o mesmo
Henri Bergson que irá influenciar profundamente Deleuze. Foi ele quem me mostrou, pela
primeira vez, o interesse que pode existir na filosofia de Deleuze e, a cada dia que passa,
tenho certeza de que sua própria filosofia em muitos pontos se encontrava, graças a
caminhos absolutamente próprios, com dispositivos maiores do pensamento de Deleuze.
Por isto, que este curso seja uma certa maneira de prestar uma pequena homenagem não
apenas a ele, mas à forma de fazer filosofia que ele próprio representou. Um fazer filosofia
que é, acima de tudo, o ato de pensar contra si mesmo. Se vocês me permitem, é isto que
gostaria de fazer durante este semestre, é isto que gostaria de fazer junto com vocês.
Introdução à experiência intelectual de Gilles Deleuze
Aula 2: Empirismo e subjetividade
O sujeito e o dado
Não devemos perder este problema de vista. Mas antes de tentar responder algo
sobre os critérios de julgamento do filósofo Deleuze, vamos tentar compreender como o
historiador da filosofia Deleuze trabalha. Qual é pois a questão que sintetiza a filosofia de
David Hume, isto ao menos segundo Deleuze, já que durante toda a aula de hoje não será
exatamente questão da filosofia de Hume, mas da maneira com que Deleuze lê Hume e
transforma tal leitura em momento fundamental para a constituição do seu próprio
programa filosófico? Podemos colocar tal problema de outra forma: o que realmente
interessa Deleuze em Hume? O que ele procura ao ler Hume?
Notemos que uma resposta esquemática já está presente no próprio título do livro,
nesta conjunção inesperada entre empirismo e subjetividade ou, para ser mais preciso, na
crença de que o verdadeiro problema do empirismo diz respeito à determinação da natureza
da subjetividade. De fato, esta crença não deixa de nos causar surpresas já que aceitamos
comumente que, grosso modo, não há um problema da subjetividade no empirismo.
Tendemos a admitir que, no empirismo, o sujeito seria apenas um feixe de representações
desprovido de qualquer substancialidade ou capacidades inatas, uma forma de tabula rasa
que simplesmente recebe e associa o que vem da sensação. O que nos levaria à fórmula do
sujeito como nada mais que: “o lugar de uma sucessão de sensações, de desejos e de
imagens”23, frase de Jacques Lacan que sintetizava bem o espírito francês dominante na
psicologia, na psiquiatria e na tradição fenomenológica da época contra o empirismo.
Assim, ao escrever seu livro, Deleuze sabe que está entrando em uma polêmica que toca
tanto a filosofia quanto às chamadas ciências humanas (psicologia à frente). É uma
polêmica desta natureza que continuará a alimentar sua experiência intelectual,
23
LACAN, De la psychose paranoîaque dans ses relations avec la personnalité, p. 35
principalmente com O anti-Édipo; o que talvez nos permita expor um dos eixos centrais e
invariáveis do pensamento de Deleuze: a problematização do que a tradição moderna
compreendeu como o lugar do sujeito e suas conseqüências para a estruturação das ciências
do homem.
Deleuze quer assim mostrar como esta forma então hegemônica de compreender o
problema do significado do empirismo e da filosofia de Hume em particular estava
equivocada. Ele quer mostrar que, se formos capazes de apreender de maneira correta a
natureza do problema da subjetividade no empirismo poderemos, ao mesmo tempo: a)
ultrapassar a filosofia da consciência, b) dar um novo encaminhamento para o problema da
constituição das individualidades, c) constituir uma teoria social não mais fundada no
paradigma jurídico da lei, mas no problema da relação entre interesses práticos e
instituições, d) abrir espaço para uma verdadeira filosofia da práxis. Todos estes pontos
servem de horizonte para o livro de Deleuze.
Mas se há um problema da subjetividade no empirismo, em especial no empirismo
de Hume, então devemos nos perguntar porque ele não foi visto de maneira correta. A
resposta de Deleuze consiste em dizer que aceitamos sem reservas a definição do
empirismo proposta pela tradição kantiana: teoria segundo a qual o conhecimento não
apenas começa com a experiência, mas deriva dela. Fórmula amplamente insuficiente.
Primeiro, porque o conhecimento não é a atividade mais importante do empirismo, mas
apenas o meio para a ação prática. O empirismo não é uma filosofia do conhecimento, mas
uma filosofia da práxis, reflexão sobre o modo com que o sujeito age em situações da vida
ordinária.
Segundo, porque para os empiristas e para Hume, a experiência tem dois sentidos e
em nenhum deles ela é constituinte. Em um sentido, chamamos de experiência as diversas
conjunções de objetos no passado. Este é o sentido que uso quando afirmo, na linguagem
ordinária: “A experiência me mostrou que...”. No entanto, tais conjunções não são dadas
pela experiência, mas postas por princípios de associação próprios à natureza humana e que
permitem ao sujeito, inclusive, ultrapassar a experiência (dizer que o sol se levantará
amanhã, que César existiu ...). Em um segundo sentido, mais importante, chamamos de
experiência a coleção de impressões e percepções distintas que, por sua vez, também são
relacionadas por princípios de associação. Nos dois casos é claro que o conhecimento não
deriva da experiência, mas é organizado por princípios. Daí porque Deleuze não cansará de
insistir que o empirismo nos mostra como o conhecimento não deriva da experiência, mas
do dado. Em última instância, o empirismo afirmaria que o conhecimento provém do dado
e, para ser mais preciso, da ultrapassagem, pela transcendência do dado. Mas o que é o
dado?
Podemos afirmar que duas características estruturas definem o dado. Por um lado, o
dado: “nos diz Hume, é o fluxo do sensível, uma coleção de impressões e de imagens, um
conjunto de percepções. É o conjunto do que aparece, o ser igual à aparência, é o
movimento, a mudança, sem identidade nem lei”24. Ou seja, o dado é um conjunto formado
por impressões e imagens elementares (lembremos da noção da Idéia como cópia das
nossas impressões) dispostas como um fluxo; o que significa, sem princípio interno de
estruturação e, por isto, atomizado. Este gênero de campo caótico, embrião do que vimos na
aula passada sob o nome de “zona de indiscernibilidade”, é o que, no caso de Hume, valida
sua perspectiva atomista.
24
DELEUZE, Empirisme et subjectivité, p. 93
Por outro lado, o dado precisa de um princípio que o estruture, que distribua estas
impressões e imagens elementares em uma estrutura. Eis a perspectiva associacionista de
Hume. Quando Hume afirma: “todo o poder criador da mente nada mais vem a ser do que a
faculdade de compor, transpor, aumentar ou diminuir os materiais que nos são fornecidos
pelos sentidos e pela experiência”25 devemos entender o verdadeiro sentido de tal
afirmação. Pois ela nos indica que o princípio de relação que fornece a forma do pensável é
exterior aos termos que ele relaciona. O que me permite relacionar idéias é exterior à idéia.
Daí porque Deleuze poderá afirmar que o empirismo só se definirá de maneira correta
como um dualismo:
Assim, aparece um outro critério para o empirismo: não exatamente a teoria que afirma que
o conhecimento deriva da experiência, mas a teoria que afirma que as relações que
estruturam a experiência não derivam da natureza das coisas. Deleuze chega mesmo a
afirmar que Hume elabora o ceticismo moderno ao não insistir mais na variação das
aparências sensíveis e dos erros do sentido, mas na exterioridade entre a relação e seus
termos. Como vemos, trata-se de uma leitura, digamos, “transcendental” do empirismo e do
ceticismo de Hume; o que obriga a Deleuze fazer um verdadeiro malabarismo para afirmar
que o pensamento de Kant era não-empirista por excelência, já que: em Kant, as relações
dependem da natureza das coisas no sentido de que, como fenômenos, as coisas supõem
uma síntese cuja fonte é a mesma que a das relações. “É por isto que o criticismo não é um
empirismo”27. Ou seja, Deleuze precisa secundarizar o problema da distância entre as
estruturas categorias e as coisas em-si.
Por mais que esta leitura de Kant seja discutível, é importante compreendermos sua
função no interior da economia do texto de Deleuze. Pois ela vai permitir o
encaminhamento para a fundamentação daquilo que seria a verdadeira questão posta pela
filosofia de Hume. Lembremos destas colocações centrais do nosso texto:
25
HUME, Investigações acerca do entendimento humano, p.24
26
idem, p. 122
27
DELEUZE, idem, p. 125
28
idem, p. 92
Quer dizer, a questão posta por Hume e que será desenvolvida em todas suas implicações
é: “como o sujeito se constitui no dado?”. Questão distinta da pergunta transcendental por
excelência: “como o sujeito constitui o dado?”. Pois se a segunda parte do reconhecimento
do caráter constituinte de uma subjetividade assegurada a priori, a primeira afirma não ser
exatamente o sujeito quem constitui o campo da experiência, mas é aquilo que, de uma
certa forma, é constituído no interior do que chamamos de experiência. Poderíamos mesmo
dizer que “experiência” é o nome que damos para um processo de constituição ou, como
Deleuze dirá mais tarde, de produção da subjetividade. Daí porque ele pode afirmar que o
empirismo coloca essencialmente o problema da constituição do sujeito, o problema de
como o espírito advém sujeito, não como o produto de uma gênese, mas como efeito de
princípios transcendentes.
A imaginação e as paixões
Para entender melhor este ponto, devemos analisar o lugar central da imaginação na
filosofia de Hume; o que leva Deleuze a afirmar que o empirismo não é uma filosofia dos
sentidos, mas uma filosofia da imaginação, já que tudo ocorre na imaginação, o que não
quer dizer que tudo ocorra através da imaginação.
Deleuze insiste que, em Hume, a imaginação não é inicialmente uma faculdade do
conhecimento. No interior, da experiência, ela advém uma faculdade. Inicialmente, ela é
apenas um conjunto de percepções e imagens que formam uma espécie de fundo do
espírito. Quando submetida às paixões, a imaginação pode produzir associações de maneira
fantasiosa, delirante e inconstante. "Nada é mais livre que a imaginação", dirá Hume. Tal
como um pintor que mistura cores, a imaginação associa livremente idéias elementares e
produz dragões de fogo, quimeras, tucanos honestos.
Faz-se necessário pois princípios gerais de associação (como a semelhança, a
causalidade, a contigüidade no tempo e no espaço) que não sejam produtos da imaginação
mas que, de uma certa forma, afetem a imaginação. Por isto, Deleuze poderá dizer que, para
Hume: “O que é universal ou constante no espírito humano nunca é tal ou tal idéia como
termo, mais apenas as formas de passar de uma idéia particular a uma outra” 29. A natureza
humana será assim imaginação que se fixou através de outros princípios. È a partir deste
momento que ela pode advir faculdade do conhecimento. Assim: “quando nos falamos do
sujeito, o que queremos dizer? Queremos dizer que a imaginação, de simples coleção
transformou-se em uma faculdade; a coleção distribuída transformou-se em sistema”30.
Mas vocês poderiam perguntar: e estes princípios de associação enquanto sistema de
regras que organizam os dados caóticos da imaginação? Não seriam eles o embrião da
noção de transcendental enquanto estrutura de regras que fornecem a condição para a
experiência, assim como da submissão da imaginação ao entendimento? Neste ponto, é de
suma importância lembrarmos da maneira com que Deleuze afirma existir em Hume duas
modalidades de princípios na natureza humana: os princípios de associação e os princípios
das paixões. Pois isto complexificará o problema da relação entre relações e idéias.
Deleuze lembra como: “os princípios de associação explicam a rigor a forma do
pensamento em geral, não seus conteúdos singulares”31. Ou seja, enquanto regras gerais
eles apenas dizem, por exemplo, que um determinado sujeito foi capaz de estabelecer
29
DELEUZE, Hume In; L´île déserte, p. 228
30
DELEUZE, Empirisme et subjectivité, p. 100
31
DELEUZE, Empirisme et subjectivité, p. 114
relações de semelhança entre dois termos. No entanto, sabemos como, de um certo ponto de
vista, tudo pode ter algum grau semelhança com tudo. Como já disse John Searle: “a
semelhança é um predicado vazio : duas coisas quaisquer são semelhantes sob algum
aspecto”32. Vocês devem inclusive conhecer estes jogos surrealistas onde dois termos
quaisquer eram postos em relação de contigüidade ou semelhança, criando situações
humorísticas. Assim, quando Hume afirma, por exemplo: “Na realidade, todos os
argumentos da experiência se baseiam na semelhança que descobrimos entre os objetos
naturais e pela qual somos induzidos a esperar efeitos similares àqueles que vimos
seguirem-se de tais objetos”33, devemos dizer que tal explicação explica pouco, já que não
sabemos sob qual padrão de semelhança estruturamos relações. O uso da probabilidade e da
inferência ainda não resolve a questão, já que a inferência e a probabilidade pressupõem a
decisão a respeito de princípios de semelhança entre dois casos não contíguos. Ou seja, o
raciocínio aqui é circular.
É tendo questões similares em mente que Deleuze insiste: “o encaminhamento
particular de um espírito deve ser estudado, a toda uma casuística a fazer: por que em uma
consciência particular, em tal momento, esta percepção vai evocar tal idéia ao invés de
outra?”34. A resposta exige o recurso a um outro princípio, no caso a afetividade. Hume a
introduz afirmando que a explicação que fornecerá a razão suficiente da relação será
fornecida pela circunstância. Neste contexto, circunstância significa que apenas as
situações singulares, marcadas por modos de investimentos afetivos podem explicar a
tendência que guia os processos de associação. Aqui, Deleuze convoca Freud para lembrar
que a explicação para o fato, por exemplo, de um determinado sujeito pensar na liberdade
todas as vezes que vê uma bandeira vermelha ou de associar medo de cavalos e medo pelo
pai só pode ser fornecida através da compreensão de uma certa história da afetividade. A
associação liga as idéias na imaginação, as paixões fornecem um sentido a tais relações ou,
para ser mais preciso, uma finalidade. Se as idéias se associam, é em função de uma
intenção que só a paixão pode fornecer. O que significa não apenas colocar uma psicologia
das afecções do espírito na base de uma verdadeira ciência do homem, mas significa algo
mais profundo e decisivo. Trata-se de afirmar que todas as expectativas de conhecimento
estão necessariamente submetidas ao interesse, que o conhecimento é uma questão de
satisfação de interesses práticos.
Deleuze insiste nesta via ao afirmar que Hume critica o primado do sujeito do
conhecimento em prol de um certo utilitarismo: “A associação de idéias não define um
sujeito cognoscente, mas ao contrário um conjunto de meios possíveis para um sujeito
prático cujos fins reais são de ordem passional, moral, política, econômica” 35. Assim, por
um lado o sujeito não aparece como sujeito ativo, mas como sujeito afetado pelas paixões
que, através do cálculo do prazer e do desprazer, produz um princípio de utilidade. Ele é
espírito ativado por princípios que seguem uma finalidade ditada, em última instância, pelas
paixões. Os princípios da paixão são absolutamente primeiros e selecionam as impressões
de sensação. A subjetividade, por sua vez, aparece definida como regra geral de associação
enquanto operada na imaginação e afetada pelas paixões. Desta forma, a questão “como o
sujeito se constitui no dado?” pode receber uma resposta como: ele se constitui através de
operações regionais de síntese afetadas por paixões que fornecem à ação uma finalidade.
32
SEARLE, Expressão e significado, p. 150
33
HUME, Investigações, p. 40
34
DELEUZE, idem, p. 115
35
idem, p. 138
“O sujeito do conhecimento, da teoria, é o efeito da imaginação, da crença, do hábito, dos
sentimentos e das paixões. Ele não é mais um princípio de explicação, mas o que deve ser
explicado”36.
No entanto, esta resposta parece trazer mais problemas do que solução. Pois esta
submissão do conhecimento aos móbiles do interesse está longe de ser uma operação
simples. Estaria Hume, ao menos segundo Deleuze, colocando em marcha alguma forma de
psicologismo selvagem que submete as expectativas cognitivas a interesses prático-
finalistas? Ou estaria ele insistindo, e aí na melhor tradição que encontramos também em
Nietzsche e Freud, que a razão configura seus procedimentos (ou seja, ela define o que é
racional e legítimo) através dos interesses postos na realização de fins práticos? Mas, se
este for o caso, fica ainda um problema espinhoso: como podemos distinguir a simples
fantasia da percepção, o delírio que produz associações ao bel prazer e o conhecimento que
me permite agir no mundo?
A este respeito, Deleuze provavelmente diria: vejam como já a pergunta opera um
deslocamento do problema em direção a uma questão de ordem eminentemente prática. Há
dois modos de associação: um é a fantasia privada, o outro é um modo que me permite
operar no mundo. Nada escapa mais a nosso conhecimento do que os poderes da natureza e,
como o ceticismo mitigado de Hume não cansará de lembrar: operar no mundo não
pressupõe conhecer aquilo que a natureza é em-si. Pressupõe, antes de mais nada, o que
sujeitos organizados socialmente, ou seja, relacionando-se através de instituições, querem
fazer no mundo.
Mas para melhor compreender este ponto, ponto fundamental por nos explicar
porque Deleuze começa seu livro afirmando que Hume precisou ser um moralista, um
sociólogo, um historiador antes de ser psicólogo para ser um psicólogo, devemos dar um
pequeno passo para trás. Ele nos levará a colocar a pergunta central: quais são os modos do
operar no mundo, quais são os móbiles fundamentais da práxis? Hume fornece
principalmente dois: a crença e a invenção. A crença é a base do sujeito cognoscente já que
todo ato de conhecer (enquanto ultrapassagem do dado) é a projeção de uma probabilidade,
de uma crença. Por sua vez, a invenção, como veremos, é a base do sujeito da moral e da
política. Todos estes dois móbiles têm com fundamento o hábito.
Deleuze dedicará longos trechos de seu Diferença e repetição a uma discussão sobre
o problema do hábito. Em Empirismo e subjetividade¸ tal discussão aparece de maneira
lateral. No entanto, ela ganhará importância a partir do desdobramento do pensamento de
Deleuze.
Lembremos inicialmente da maneira com que Hume introduz a questão do hábito.
Ao se perguntar sobre o verdadeiro princípio que guia nossas operações de inferência, ele
afirma: "Este princípio é o costume ou hábito, pois, onde quer que a repetição de qualquer
ato ou operação particular manifeste uma propensão para renovar o mesmo ato ou
operação, sem ser impulsionado por raciocínio ou processo algum do entendimento,
dizemos sempre que essa propensão é o efeito do costume"37.
Nesta afirmação encontram-se elementos fundamentais para a interpretação de
Deleuze. Primeiro, o hábito, enquanto princípio de repetição, é uma forma de síntese do
36
ANTONIOLI, Deleuze et l´histoire de la philosophie, p. 30
37
HUME, idem, p. 47
tempo, já que ele é modo de projeção de um futuro a partir de modos de síntese do passado
e do presente ou antes, maneira de organizar o tempo: “como um presente perpétuo a
respeito do qual devemos e podemos nos adaptar”38. Deleuze chegará mesmo a dizer que a
estrutura da duração própria ao problema da memória em Bergson estaria presente já nas
reflexões de Hume sobre o hábito, mesmo que "o hábito não precise da memória" 39. O que
implica uma reconsideração sobre o que Bergson afinal entende por memória.
Por ser modo de síntese do tempo, o hábito pode dar conta do problema da crença,
problema maior para Hume já que o conhecimento é, no fundo, uma forma de crença. Mas
o que é a crença? "Toda a crença acerca de uma questão de fato ou de uma existência real é
derivada unicamente de algum objeto presente à memória ou aos sentidos e de uma
conjunção habitual entre ele e algum outro objeto"40. Quer dizer, a crença é um sentimento
dependente das conjunções produzidas pelo hábito. Daí porque ela nada mais é do que a
concepção de um objeto mais viva, estável e intensa do que aquilo que a imaginação pode
ser capaz de obter. Ela é dependente das regularidades que sou capaz de perceber
[problemas nas distinções entre alucinação e percepção].
Há duas questões que gostaria de abordar a respeito desta forma de definir o hábito.
Primeiro, por ser estrutura de síntese do tempo, o hábito pode aparece como a “raiz
constitutiva do sujeito”41. De fato, esta pode ser uma definição mais precisa do que Deleuze
entende neste momento por subjetividade. Subjetividade é aquilo que permite a síntese do
tempo. Mas devemos estar atento para um ponto: a síntese através do hábito não é
exatamente uma síntese ativa feita por um Eu enquanto operador de sínteses que se dão na
transparência da consciência. Daí porque Hume insiste que a repetição de atos e operações
não é, quando submetida ao hábito, impulsionada pelo raciocínio ou por processos do
entendimento.
Partindo deste ponto, Deleuze pode afirmar que Eu sou muito mais um paciente do
que agente das sínteses do tempo feitas pelo hábito. Eu sou muito mais alguém que
contempla a formação silenciosa do hábito, do que alguém que age para produzir unidades.
No fundo, esta unidade do hábito permite à subjetividade liberar-se de um determinismo
estrito para encontrar uma certa regularidade. Mas, acima de tudo, o hábito não é a função
de um Eu, mas algo que permite a produção de um Eu. Não há hábito porque há um Eu.
Mais correto seria dizer: há um Eu porque o hábito aparece como “princípio ativo que fixa
e desdobra as sínteses passivas da associação” 42. Isto talvez nos explique porque Deleuze
poderá dizer que, através de Hume, podemos aprender que: “nós somos hábitos, nada mais
que hábitos, o hábito de dizer Eu ... Talvez não exista resposta mais surpreendente para o
problema do Eu”43.
Ou seja, desta forma, Deleuze pode estabelecer uma estratégia para a crítica da
filosofia da consciência e da sua ilusão de uma subjetividade constitutiva, de uma
subjetividade capaz de constituir o campo da experiência e de apropriar de maneira reflexão
os procedimentos gerais de constituição de tal campo. No empirismo, ele encontrará uma
filosofia na qual a subjetividade é produto de afecções que atuam em princípios de
38
DELEUZE, idem, p. 105
39
idem, p. 104
40
HUME, idem, p. 50
41
DELEUZE, idem, p. 101
42
PRADO JR., Hume, Freud, Skinner, p. 44
43
DELEUZE, Deux regimes de fous, p. 342
associação e que produzem uma disposição que chamamos de hábito. Disposição esta que
me desaloja da condição de agente, mas que me assujeita.
O mundo social
Esta inventividade própria ao social que fornece aos nossos corpos um gênero de
modelo, assim como fornece à inteligência um saber, uma possibilidade previsão permite
ao homem sair do domínio do instinto. "O homem não tem instinto, ele faz instituições".
Sendo assim, são estas paixões socializadas que fornecem o princípio para a associação,
que são internalizadas como hábito. Assim, quando Deleuze afirma: "ao crer e inventar, nós
fazemos do próprio dado uma natureza" 48. Nós fazemos através de paixões
"instituticionalizadas". Porque, a respeito da natureza tal como ela é (o que, no fundo, é
uma maneira de colocar a questão do Ser), até agora não podemos dizer nada.
47
DELEUZE, Instincts et institutitions, p. 25
48
DELEUZE, Empirisme et subjectivité, p. 152
Introdução à experiência intelectual de Gilles Deleuze
Aula 3 : Le bergsonisme
49
DELEUZE, Empirisme et subjectivité, p. 93
como cópia das nossas impressões) dispostas como um fluxo; o que significa, sem princípio
interno de estruturação e, por isto, atomizado. Por outro, o dado precisa de um princípio
que o estruture, que distribua estas impressões e imagens elementares em uma estrutura.
Isto demonstra que o princípio de relação que fornece a forma do pensável é exterior aos
termos que ele relaciona. O que me permite relacionar idéias é exterior à idéia. Daí porque
Deleuze poderá afirmar que o empirismo só se definirá de maneira correta como um
dualismo.
Estes princípios de relação, ou princípios de associação, são inatos à natureza
humana. No entanto, só eles não bastam para fornecer as condições para a estruturação do
campo da experiência e da ação. Vimos Deleuze insistir como: “os princípios de associação
explicam a rigor a forma do pensamento em geral, não seus conteúdos singulares”50. Ou
seja, os princípios de associação são regras gerais que apenas dizem, por exemplo, que um
determinado sujeito foi capaz de estabelecer relações de semelhança entre dois termos.
Como sabemos que “semelhança” é um predicado vazio que pede outro princípio capaz de
dar conta do modo específico de determinação da relação entre termos, vimos estes outro
princípio ser encontrado na afetividade. Hume a teria introduzido ao afirmar que a
explicação que fornecerá a razão suficiente da relação será fornecida pela circunstância.
Neste contexto, circunstância significa que apenas as situações singulares, marcadas por
modos de investimentos afetivos podem explicar a tendência que guia os processos de
associação. Assim a associação liga as idéias na imaginação, enquanto as paixões fornecem
um sentido a tais relações ou, para ser mais preciso, uma finalidade.
A partir desta noção, vimos Deleuze dar um novo encaminhamento para o problema
da constituição das individualidades. Pois para além da noção da subjetividade constitutiva,
transcendental e imediatamente auto-idêntica, Deleuze podia falar da subjetividade como
no modo com que uma regra geral era afetada pelas paixões no interior da imaginação,
construindo assim uma ordem a partir de um conjunto de imagens e percepções. A este
modo de afecção de uma regra geral de associação no interior da imaginação, Hume dava
comumente o nome de “hábito”. Insistindo que a associação é a base dos processos
subjetivos de síntese do tempo (já que ela é o que permite a experiência da repetição e da
diferenciação de experiências), Deleuze podia ainda falar que o hábito era, no fundo, o
dispositivo subjetivo de síntese do tempo. Proposição que, nas mãos de Deleuze,
transforma-se em peça central de uma crítica da filosofia da consciência e da noção
moderna de sujeito. Pois Eu sou muito mais um paciente do que agente das sínteses do
tempo feitas pelo hábito. Eu sou muito mais alguém que contempla a formação silenciosa
do hábito, do que alguém que age para produzir unidades. O hábito não é a função de um
Eu, mas algo que permite a produção de um Eu. Não há hábito porque há um Eu. Mais
correto seria dizer: há um Eu porque o hábito aparece como “princípio ativo que fixa e
desdobra as sínteses passivas da associação”51. Isto talvez nos explique porque Deleuze
poderá dizer que, através de Hume, podemos aprender que: “nós somos hábitos, nada mais
que hábitos, o hábito de dizer Eu ... Talvez não exista resposta mais surpreendente para o
problema do Eu”52.
Por fim, esta maneira de insistir nas paixões como princípio estruturador do campo
a experiência permitia a Deleuze mostrar que a verdadeira contribuição do empirismo
50
DELEUZE, Empirisme et subjectivité, p. 114
51
PRADO JR., Hume, Freud, Skinner, p. 44
52
DELEUZE, Deux regimes de fous, p. 342
estaria no deslocamento do problema do sujeito, da teoria do conhecimento para uma teoria
da práxis. Daí porque: “A associação de idéias não define um sujeito cognoscente, mas ao
contrário um conjunto de meios possíveis para um sujeito prático cujos fins reais são de
ordem passional, moral, política, econômica”53. Assim, o sujeito aparece aquilo que, ao se
deixar afetar pelas paixões, produz um princípio de utilidade através do cálculo do prazer e
do desprazer. Ele é espírito ativado por princípios que seguem uma finalidade ditada, em
última instância, pelas paixões. Maneira de lembrar que a razão configura seus
procedimentos (ou seja, ela define o que é racional e legítimo) através dos interesses postos
na realização de fins práticos. Maneira ainda de problematizar profundamente a relação
entre conhecimento e interesse.
A fim de não resvalar em um certo relativismo que submete todas as exigências de
verdade ao particularismo dos interesses, Deleuze precisava, de uma certa forma, fornecer
um certo universalismo para as paixões como princípio. O próprio termo “paixões” é ruim
por ressoar um certo psicologismo e um certo personalismo, o que levará Deleuze a
restringir cada vez mais seu uso a fim de usar, em seu lugar a impessoalidade do “afeto” e,
principalmente, da “intensidade”.
De qualquer forma, Deleuze insistia que, em Hume, não havia conflito ontológico
entre paixões individuais e vínculos sociais. Pois o homem não é naturalmente egoísta, ele é
naturalmente parcial, homem que coloca acima de tudo o interesse da sua família, do seu
clã. A ação é animada por uma simpatia, mas parcial. Não se faz necessário negar e
restringir os interesses através da Lei, mas estender a simpatia. Isto permite a Deleuze
afimar: "a justiça é a extensão da paixão, do interesse a respeito do qual é negado apenas
seu movimento parcial"54. O social não é assim espaço da restrição do interesse
particularista de cada um, mas o espaço da invenção de modelos de associação fornecidos
pela imaginação, espaço de invenção de ilusões capazes de anular a parcialidade das
paixões. São pois estas paixões socializadas que fornecem o princípio para a associação,
que são internalizadas como hábito. Assim, quando Deleuze afirma: "ao crer e inventar, nós
fazemos do próprio dado uma natureza"55, nós o fazemos através de paixões
"instituticionalizadas". Porque, a respeito da natureza tal como ela é (o que, no fundo, é
uma maneira de colocar a questão do Ser) nada poderia ser dito, como Hume nos ensinara.
De Hume a Bergson
Mas o ensinamento de Hume não era exatamente algo que Deleuze estava disposto a ouvir.
Por isto, ele continuará sua procura em ultrapassar a filosofia da consciência, em pensar
outros modos de constituição de individualidades e em se orientar em uma filosofia da
práxis através de um outro autor. Um autor capaz de fornecer aquilo que Hume não era
capaz de fornecer: uma ontologia, um discurso do ser enquanto ser ou, o que é o mesmo,
uma tematização filosófica possível a respeito do conceito de natureza. Esta ontologia,
Deleuze encontrará em Henri Bergson. Desta forma, Bergson permite passar desta
tendência em colocar uma teoria da subjetividade e uma sociologia na base da teoria do
conhecimento, isto a fim de fornecer uma ontologia renovada à filosofia: o que, no fundo,
era o verdadeiro projeto intelectual de Deleuze.
53
idem, p. 138
54
idem, p. 32
55
DELEUZE, Empirisme et subjectivité, p. 152
O livro sobre Bergson não é escrito logo após Empirismo e subjetividade. Na
verdade, 13 anos se passam entre os dois. Durante este tempo, Deleuze passa oito anos sem
nada escrever, “um buraco de oito anos” no qual Deleuze se descreve como alguém que
procurava “perfurar o muro, para cessar de bater a cabeça” 56. Após este tempo, Deleuze
começa a escrever um livro por ano. Primeiro, Nietzsche e a filosofia, depois A filosofia
crítica de Kant, Proust e os signos e enfim O bergsonismo. Deleuze vê este pequeno livro
como o fim de um ciclo. Tanto que, em 1989, ao procurar classificar o conjunto de seu
trabalho a partir de séries temáticas, ele construirá onze séries cuja primeira terá como
título: De Hume a Bergson. Mas, afinal de contas, como se vai de Hume a Bergson?
Primeiro, vale a pena lembrar da peculiaridade da escolha de Deleuze. Se havia algo
que unia tanto a fenomenologia francesa de Sartre e Merleau-Ponty quanto o estruturalismo
em plena hegemonia em 1966 (ano da publicação de dois livros maiores do estruturalismo:
Escritos, de Lacan e As palavras e as coisas, de Foucault) era a recusa a Bergson. A
filosofia bergsoniana era vista como subjetivista, espiritualista, intuicionista e tributária de
um vitalismo evolucionista que parecia flertar com o irracionalismo. Foucault, por
exemplo, lembra como havia, em sua época de estudante, uma espécie de bergsonismo
latente dominando a filosofia universitária francesa. Ele chega a relatar uma anedota
significativa do espírito de época: “Eu me lembro de ter feito uma conferência em uma
escola de arquitetura e de ter falado das formas de diferenciação dos espaços em uma
sociedade como a nossa. Ao final, alguém tomou a palavra em um tom muito violento
dizendo que falar do espaço era ser um agente do capitalismo, que tudo mundo sabe que o
espaço é o morto, o fixo, a imobilidade que a sociedade burguesa quer impor a si mesma,
que isto significa desconhecer o movimento da história (...) Via-se claramente como,
através uma certa valorização bergsoniana do tempo, ele desenvolvia uma concepção
marxista muito vulgar”57. A anedota serve para medir o tamanho da inversão que Deleuze
procurava fazer ao apresentar um Bergson anti-humanista, próximo de preocupações
maiores do empirismo inglês e portador de um conceito de tempo que, em última instância,
abria as portas para uma crítica radical do primado da consciência.
Deleuze procura realizar seu objetivo através da análise de três conceitos centrais
em Bergson: duração (Ensaio sobre os dados imediatos da consciência), memória (Matéria
e memória) e élan vital (A evolução criadora). Tal análise visa mostrar as relações
profundas entre os três conceitos, assim como a progressão que a passagem de um para
outro implica.
Antes de entrar na análise direta de tais conceitos, Deleuze precisa fornecer o
verdadeiro alcance do chamado “intuicionismo” bergsoniano. Este é um ponto central que
não teria sido apreendido pelos leitores de Bergson. O conceito bergsoniano de intuição
nada tem a ver com uma noção clássica de intuição como a apreensão mental imediata do
que é imediatamente claro e distinto ao espírito. Noção dependente de uma metáfora
naturalizada: a metáfora ocular do golpe de vista, tão presente em Descartes, para quem
ressoa o sentido de intueri no latim clássico : olhar ou inspecionar.
De fato, em Bergson, a intuição é um método que permite construir uma outra
relação com as coisas distinta da relação de representação própria ao discurso da ciência.
Há em Bergson uma espécie de crítica à reificação produzida pelo discurso científico que
leva Deleuze a simplesmente dizer: “Nós estamos separados das coisas, o dado imediato
56
DELEUZE, Pourparlers, p. 189
57
FOUCAULT, Dits et écrits, p. 576
não é pois o imediatamente dado”58. Para recuperar o dado imediato, a intuição deve operar
por divisão. Na dimensão da experiência, estamos sempre às voltas com mistos que devem
ser distinguidos e divididos. Mistos compostos de percepção e lembranças, de matéria e
memória, de tempo e espaço. O trabalho da intuição consiste em dividir estes mistos,
mostrando que há uma profunda diferença de natureza entre aquilo que misturamos por, no
fundo, ver entre eles apenas diferenças de grau. Por exemplo, ao pensar o tempo como uma
linha reta composta de diversos pontos que seriam os instantes (metáfora kantiana para o
tempo) acabamos por pôs apenas uma diferença de grau entre tempo e espaço. O mesmo
acontece quando compreendemos a lembrança como puros traços mnésicos de antigas
percepções. A intuição permite assim a apreensão da verdadeira diferença, para além das
puras diferenças de grau. Neste sentido, ela é método por permitir a passagem da
experiência às condições de constituição da experiência, por mostrar como a aparência
imediata do dado se constitui através de uma ilusão a respeito das diferenças de natureza.
Deleuze chega mesmo a afirmar, apoiando em Bergson, que os falsos problemas vêm da
nossa incapacidade em ultrapassar a experiência em direção ás condições da experiência,
em direção às “articulações do real”, mostrando o que se distingue no interior dos mistos
mal analisados no meio dos quais vivemos. Os falsos problemas são manifestações da
impossibilidade de se colocar a pergunta: “como se constitui o dado?” e, com isto, alcançar
um “empirismo superior”; até porque, essa passagem em direção às condições de
experiência não consiste em ultrapassar o dado em direção ao conceito, mas em direção a
perceptos puros que só podem ser apreendidos pela intuição.
A ilusão do negativo
Eu havia dito anteriormente que o conceito bergsoniano de intuição nada tem a ver com
uma noção clássica de intuição como a apreensão mental imediata do que é imediatamente
claro e distinto ao espírito. Ao contrário, ao fazer a crítica do negativo, Bergson procura
vincular a intuição à apreensão daquilo que traz em si mesmo sua própria diferença. Esta é
uma definição possível de duração: “trata-se de uma ‘passagem’, de uma ‘mudança’, de um
devir, mas de um devir que dura, de uma mudança que é a própria substância” 64. De onde se
segue as duas características fundamentais da duração como temporalidade: a continuidade
e a heterogeneidade. Pois a duração é temporalidade não mais pensada a partir do instante
descontínuo (como no caso de Descartes), mas através de uma particular coexistência de
estruturas temporais heterogêneas (como o passado e o presente).
61
SARTRE, L´être et le néant,p. 41
62
HEGEL, Wissenschaft der Logik I, p.18
63
PRADO Jr. , idem, p. 45
64
DELEUZE, Le bergsonisme, p. 29
Notemos inicialmente que a duração não é exatamente uma experiência psicológica,
embora ela ainda apareça como fato da consciência em Ensaios sobre os dados imediatos
da consciência. Ela progressivamente será compreendida como a essência variável das
coisas que fornece as bases para uma ontologia complexa. Esta noção de duração como o
que se caracteriza como continuidade e heterogeneidade permitirá Deleuze constituir,
através de sua leitura de Bergson, um dos seus conceitos filosóficos centrais: o Ser como
multiplicidade.
Antes de analisarmos o conceito de multiplicidade, notemos uma estratégia
fundamental. A intuição é um método de divisão que visa insistir na diferença de natureza
presente em entes que misturam duração e matéria, reificando com isto a duração. Mas,
através desta distinção trata-se de apreender a pura duração e mostrar que o Ser é
fundamentalmente duração, que os outros modos de ser (como o espaço, a matéria) não têm
realidade própria, mas são momentos reificados da duração. Ou seja, retornamos a um
‘novo monismo”, para usar um termo de Deleuze. Como se no interior da crítica
bergsoniana houvesse um movimento do dualismo em direção ao monismo. Alain Badiou
viu, neste modo deleuzeano de pensar Bergson, a exposição da essência do próprio método
de Deleuze: “em Deleuze, o além de uma oposição estática (quantitativa), acaba sempre
sendo a assunção qualitativa de um dos seus termos” 65. Proposição decisiva por lembrar
como trata-se, no fundo, de recuperar as condição para tematizar a univocidade do Ser
através da intuição, já que também o método de Deleuze seria a elaboração escrita de uma
forma singular de intuição.
Mas há aqui uma questão maior: como pensar a univocidade do Ser através de uma
duração que é, ao mesmo tempo, continuidade mas também heterogeneidade? Ou seja,
como pensar a univocidade de um Ser que é multiplicidade? Lembremos, inicialmente que
o conceito de “multiplicidade” não corresponde à noção filosófica do múltiplo em geral, já
que não se trata de opor Um e múltiplo. Na verdade, a noção de multiplicidade nos evitaria
pensar em termos de Um e múltiplo.
A noção de multiplicidade será paulatinamente desenvolvida por Deleuze até
Diferença e repetição. Lá ela aparecerá como estrutura na qual os elementos não têm
função subordinada, mas são determinados por relações recíprocas que não podem ser
compreendidas como relações de oposição. Em O bergsonismo, a multiplicidade aparece
como o que conhece dois tipos: a multiplicidade discreta ou numérica e a multiplicidade
contínua..
Esta distinção vinha do matemático alemão Bernhard Riemann que definia uma
multiplicidade discreta como aquela cujo princípio métrico estava em si mesma, já que a
medida de suas partes era dada pelo número de elementos que ela possuía. Por isto,
multiplicidades discretas são quantitativas e numeráveis. Já multiplicidades continuas
seriam aquelas cujo princípio métrico estaria fora delas, por exemplo, nas forças que
agiriam sobre ela de fora. Por isto, elas não são numeráveis. Deleuze baseia-se nesta
distinção a fim de afirmar que multiplicidades discretas não modificam sua natureza ao se
dividir, enquanto multiplicidades contínuas mudariam de natureza ao se dividir e se
deixariam medir apenas ao modificar seu princípio métrico em cada estágio da divisão.
A duração forneceria o exemplo mais bem acabado de uma multiplicidade contínua
por mudar continuamente de natureza ao se dividir (o espaço, por sua vez, seria uma
multiplicidade discreta). Pensar a duração como multiplicidade discreta nos levaria a
65
BADIOU, Deleuze, p. 18
paradoxos como aqueles que Zenão, para quem a seta nunca alcançará o alvo porque para
chegar até lá ela deve passar por cada ponto de uma multiplicidade discreta inumerável. O
que apenas demonstra que o movimento temporal não pode ser constituído a partir da
distinção discreta dos instantes.
Da mesma forma, contrariamente à duração, o objeto seria aquilo que não muda de
natureza ao se dividir: “O que caracteriza o objeto é a adequação recíproca do dividido e
das divisões, do número e da unidade”66, Ou seja, o objeto é um ente partes extra partes.
Daí porque podemos identificar o objeto, assim como a matéria, à imagem, à estaticidade
de um dispositivo de descrição que apresenta e determina tudo o que mostra.
Esta idéia de um processo que muda continuamente de natureza leva Deleuze a
afirmar que: “ao conceito platônico de alteridade, Bergson substitui um conceito
aristotélico, este de alteração, isto para transformá-lo na própria substância. O Ser é
alteração, a alteração é substância” 67. É desta noção do ser como alteração que nasce o
conceito de “multiplicidade”. No entanto, talvez este ponto só possa ser claramente
compreendido se lembrarmos de um outro conceito decisivo para Deleuze que começa a ser
construído através da leitura da filosofia de Bergson: o virtual. Ao falar de um processo de
muda continuamente de natureza ao se realizar, poderíamos pensar estar diante de uma
idéia maior da dialética: a temporalidade como o que porta em si mesmo sua própria
negação, ou seja, o tempo como aquilo que, não sendo, é, já que o tempo é a negação da
configuração de todo instante, ele é o que aparece negando todo instante. À sua maneira,
Deleuze quer evitar esta estratégia dialética fazendo apelo à noção de virtual.
Podemos inicialmente afirmar que o virtual é, para Deleuze, o principal nome do
ser, já que ele é o fundamento do dado, daquilo que aparece. Mas o virtual estabelece uma
relação peculiar de fundamentação. Devemos sempre lembrar que, em última instância,
fundar é estabelecer o existente através da sua relação a um padrão que me permite
orientar-me no pensamento. A partir do recurso ao fundamento posso garantir o critério do
verdadeiro e do falso, do bom e do mal, do justo e do injusto. Mas qual a natureza da
relação entre o fundamento e o existente? Deleuze conhece dois tipos de relação: aquela
que se deixa compreender como ‘potência” e “real” (uma figura possível do par clássico
entre potência e ato), assim como aquela que se deixa compreender como “virtual” e
“atual”.
No caso, do par potência/real, o real aparece como sendo a imagem do possível que
ele realiza. Esta realização implica uma certa seleção. De todos os possíveis, de todas as
figurações possíveis, uma realiza-se como real, uma “passa” no real. Assim, esta passagem
desqualifica o que não se apresenta na realidade, já que os possíveis aparecem como meras
possibilidades. Isto leva Deleuze a afirmar que se trata, no fundo, de constituir o
fundamento a partir da imagem do que nos aparece como real. Na verdade, não é o real que
se assemelha ao possível, mas o possível que se assemelha e se constrói a partir do real. O
modo de relação entre fundamento e existente figurada nas categorias de potência e real é,
no fundo, maneira de determinar o fundamento a partir das limitações do real, criando entre
os dois uma relação de semelhança onde o verdadeiro modelo é a imagem estática do
existente.
Já no caso do par virtual/atual, a realidade é, de uma certa forma, dada ao
fundamento. Há uma realidade do virtual, até porque o virtual é inseparável do seu
movimento de atualização. No entanto, esta atualização do virtual implica reconstruir os
66
DELEUZE, idem, p. 34
67
DELEUZE, l´île deserte, p. 34
modos próprios à presença, já que aquilo que é virtual nunca está totalmente realizado. Mas
nunca estar totalmente realizado significa aqui simplesmente que a realidade deixa de ser o
espaço da seleção de um possível para ser a coexistência de séries múltiplas de
virtualidades. Ou seja, é a própria realidade que, de certa forma, nunca deve estar
totalmente realizada, já que ela é atravessada por múltiplas séries virtuais, pela infinitude de
produções dissemelhantes. A noção de virtual exige uma outra forma de compreender o que
entendemos por “determinação” e por “presença” (ou simplesmente por ente). Neste
sentido, podemos seguir a afirmação de Badiou, para quem: “Á medida em que Deleuze
tenta arrancá-lo [o virtual] da irrealidade, da indeterminação, da inobjetividade, é o atual,
ou o ente, que se irrealiza, se indetermina, e finalmente se inobjetiva, pois se desdobra
fantasisticamente”68. Talvez este ponto só ficará realmente claro quando Deleuze fornecer o
nome deste outro modo de determinação, de presença exigido pela noção de virtual: o
simulacro.
Mas em nosso livro, onde não há ainda espaço para o conceito de simulacro,
Deleuze procura explicar esta relação entre virtualidade e atualidade que define a estrutura
da duração através das reflexões bergsonianas sobre a memória. Pois a dualidade
virtualidade/atualidade pode ser compreendida a partir da distinção entre passado/presente.
De fato, há uma passagem da duração à memória que é passagem da vida à
consciência-de-si (mas uma consciência-de-si que nada mais tem a ver com a noção de
consciência-de-si enquanto fundamento auto-idêntico para a estruturação dos processos
categoriais do entendimento). Passagem que leva a Deleuze se perguntar: “Como, através
de quais mecanismos a duração advém de fato memória?” 69. Esta passagem da duração à
memória é, no fundo, uma inflexão do problema deleuzeano a respeito do modo de
constituição de individualidades. Da mesma maneira que, em Empirismo e subjetividade,
tratava-se de expor como uma determinada síntese do tempo operada pelo hábito permitia
previamente a constituição da subjetividade, trata-se aqui de mostrar como a duração é um
campo pré-subjetivo que será subjetivado através desta outra forma de síntese do tempo: a
memória. O que faz com que a subjetividade seja compreendida sobretudo como modo de
se reportar a um campo impessoal através da constituição de modos de sínteses do tempo,
embora, no caso da memória, estejamos diante de uma síntese ativa distinta da síntese
passiva do hábito. Estas questões serão retomadas em Diferença e repetição quando
Deleuze articular as três formas de síntese do tempo: o hábito, a memória e a repetição.
Esquematicamente, podemos dizer que o problema da memória em Bergson visa
dissolver a confusão entre o Ser e o estar-presente. A lembrança nos mostra que, da mesma
forma que não percebemos as coisas em nós, mas lá onde elas estão, apreendemos o
passado lá onde ele está, em si mesmo, e não em nós, em nosso presente. Na verdade, há
uma espécie de passado puro, de ser em si do passado que acaba por invadir o presente.
Temos normalmente uma concepção estática, instantaneista e pontilhista do presente. O
presente aparece normalmente como este instante que se dá no agora. No entanto, se há
algum fenômeno que determina o instante é o fato dele sempre estar passando, sempre estar
profundamente imergido no passado. Como dirá Deleuze: “Como um presente qualquer
passaria se não fosse passado ao mesmo tempo que presente? Jamais o passado se
68
BADIOU, Deleuze, p. 68
69
DELEUZE, idem, p. 46
constituiria se não fosse inicialmente constituído ao mesmo tempo que ele foi presente” 70.
Passado e presente não são assim momentos sucessivos, mas dois elementos que coexistem,
o primeiro como o presente que não cessa de passar, o outro como o presente que não cessa
de ser. Desta forma, o presente aparece apenas como o nível mais contraído, menos
distendido do passado. Novamente, vemos o método de reenviar um dualismo de natureza a
um monismo fundamental onde os dois termos anteriores (passado e presente) são, na
verdade, o desdobramento de um termo original (o passado).
Notemos como, através desta reflexão sobre a memória, Deleuze procura não mais
definir o tempo através da sucessão. Trata-se de encontrar para o tempo determinações
totalmente novas, como se fosse questão de reformar a estética transcendental. Pensando
em questões desta natureza, Deleuze pode afirmar que a duração será, na verdade, a
coexistência virtual de todos os planos de contração e distensão do tempo. Mas a idéia de
uma coexistência virtual de todos os níveis do passado não é apenas condição da minha
psicologia ou da minha relação ao Ser. Ela é modo de atualização da relação de todas as
coisas com o Ser enquanto multiplicidade. Pois as coisas duram não em relação a si
mesmas, mas em relação ao Todo do universal ao qual elas participam na medida em que
suas distinções são artificiais, são produções do artifício. Assim, Deleuze pode dizer:
“Haveria apenas um tempo, uma única duração a qual tudo participaria, incluindo nossas
consciências, incluindo os viventes, incluindo o todo do mundo material (...) Em suma, um
monismo do Tempo”71.
Como veremos, este conceito de totalidade próprio ao um Tempo uno, este conceito
de uma infinitude de fluxos temporais que participam do mesmo Todo virtual será o
elemento fundamental para a recuperação deleuzeana da ontologia que encontrará sua
forma mais bem acabada na constituição tardia do conceito de “plano de imanência”. Mas a
função do plano de imanência já está presente em afirmações decisivas como: “O Ser, ou o
Tempo, é uma multiplicidade, mas precisamente ele não é ‘múltiplo’, ele é Um, conforme a
seu tipo de multiplicidade”72. É neste sentido que devemos compreender outra fórmula
maior de Deleuze: “Tudo o que se move e se modifica está no tempo, mas o tempo não
muda, não se move, sem no entanto ser eterno. Ele é a forma de tudo o que muda e se
move, mas é uma forma imutável que não muda”73. Liberar o Uno da potência do idêntico e
do semelhante, insistir que o Uno é aquilo que se desdobra como alteração apreendida
apenas pela intuição exige uma ampla reforma da gramática filosófica naquilo que ela tem
de mais essencial, ou seja, na ossatura lógica de seus conceitos de diferença, de identidade,
de unidade, de síntese. Esta será a verdadeira tarefa filosófica que Deleuze se verá
encarregado.
Por fim, lembremos apenas como Deleuze encontra esta univocidade do ser que se
desdobra em multiplicidade através do conceito bergsoniano de élan vital. Segundo
Deleuze, o élan vital permite pensarmos a noção de uma substância uma que se desenvolve
através da produção da diferença. Deleuze chega a ver neste vitalismo a noção de uma
natureza, ou de um “plano de natureza” que se desdobra em natureza naturante (a duração)
e a natureza naturada (a matéria). Esta procura da unicidade da substância talvez nos
explique a profusão de metáforas biológicas (rizoma, fluxo, sistema) e de comentários
sobre a biologia que aparecem nos textos de Deleuze.
70
idem, p. 54
71
DELEUZE, idem, p. 78
72
idem, p. 87
73
DELEUZE, Critique et clinique, p. 42
De fato, através do conceito de élan vital, Bergson teria sido capaz de fornecer a
inteligibilidade de uma virtualidade se atualizando, uma simplicidade se diferenciando, e
um totalidade se dividindo. Desta forma, a diferença vital aparece como diferença interna,
pois é reposição de séries distintas no fluxo do Uno e desarticulação de diferenças
conceitualmente organizadas em prol de um outro regime de diferença. Através do conceito
de élan vital que se atualiza as diferenças encontrariam sua causa interior. As ilusões da
fixidez da matéria, do espaço, do objeto seriam apenas momentos de uma fluidez universal
diferenciadora, o que leva Deleuze a descrever a ilusão como uma forma de “alienação”:
“A vida como movimento se aliena na forma material que ela suscita, em se atualizando,
em se diferenciando, ela perde ‘contato com o resto de si mesmo’. Toda espécie [toda
figuração] é pois um bloqueio do movimento”74.
74
idem, p. 108
Introdução à experiência intelectual de Deleuze
Aula 4: Nietzsche et la philosophie
Dois eixos
Raízes do anti-hegelianismo
90
Idem, p.104
91
Idem, p.87
92
NIETZSCHE, Para além do bem e do mal, # 11
93
DELEUZE, idem, p.88
94
[idem nota 7]
95
[Idem nota 8]
96
[idem nota 9]
descrever (ou talvez, neste caso, seja melhor falar em produzir) estados do mundo. Deve
haver um plano de valoração da multiplicidade dos processos de produção de metáforas.
Sem dúvida, ele existe e Nietzsche nunca teve dúvidas disto. É ele que o leva a
afirmar que: “a falsidade de um juízo não chega a constituir, para nós, uma objeção contra
ele; é talvez nesse ponto que a nossa nova linguagem mais espanta. A questão é em que
medida ele promova ou conserva a vida, conserva ou até mesmo cultiva a espécie” 97. Essa
nova linguagem, liberada do peso metafísico das distinções morais e ontológicas entre
essência e aparência, porta uma perspectiva de valoração imanente à vida pensada como
multiplicidade inconsistente de jogos de forças, como vontade de potência. Assim, o
perspectivismo se submete a um plano de do qual uma filosofia da natureza assentada na
noção de vida fornece o fundamento. Vida que aparece como valor que não pode ser
avaliado e campo primeiro de produção de significações.
Neste ponto, encontramos também Deleuze. O mesmo Deleuze cujo construtivismo
filosófico o levou a definir a tarefa filosófica como sendo, sobretudo, a produção plástica e
metafórica de conceitos. Produção que, para não abrir as portas ao puro e simples
relativismo, precisa admitir a posição de um plano de imanência pré-conceitual. De onde se
segue uma afirmação capital como: “A filosofia é um construtivismo, e o construtivismo
tem dois aspectos qualitativamente diferentes e complementares: a criação de conceitos e o
esboço de um plano. Conceitos são como múltiplas ondas, subindo e caindo, mas o plano
de imanência é a onda que permite às outras subir e descer” 98. Novamente, a redução do
conceito à metáfora pede garantia de um plano99.
Mas a questão central aqui é: como a criação metafórica de conceitos deve
relacionar-se à pressuposição de um plano de imanência? Qual regime de discurso
adequado à revelação deste construtivismo de dupla camada e capaz de impedir a
naturalização das construções metafóricas? Esta é uma questão que toca o modo de
organização do discurso filosófico após o estabelecimento de uma nova linguagem
supostamente desinflacionada do ponto de vista metafísico.
Nós podemos dizer que uma das repostas de Nietzsche se dá através do parágrafo
294 de Além do bem e do mal. Nele, Nietzsche sugere uma hierarquia dos filósofos
conforme a qualidade de seu riso, colocando no topo aqueles capazes de uma risada de
ouro. Ela indica aqueles que sabem rir: “de maneira nova e sobre-humana – e à custa de
todas as coisas sérias”100 (como as distinções ontológicas entre essência e aparência, Um e
múltiplo etc.). Ou seja, o filósofo superior é capaz de adotar uma escrita necessariamente
irônica. Pois só uma escrita irônica é capaz de afirmar sem, com isto, petrificar as
afirmações em explicações sobre a positividade do estado do mundo. Só a ironia coloca o
mundo como uma ficção que se afirma como ficção criadora. O riso aparece assim como
nova aliança estética com um mundo liberado das dicotomias ontológicas de um
pensamento da representação. O riso reconcilia o pensamento filosófico ao plano de
imanência da vida como jogo de forças, já que ele indica a distância que o enunciador toma
em relação ao enunciado, mostrando assim que a enunciação não aspira naturalização
alguma. “Tudo o que é profundo ama a máscara” dirá Nietzsche. Mas é o riso irônico que
melhor expressa esse amor pelo jogo de máscaras; único jogo capaz de desvelar a força
97
[idem nota 10]
98
[idem nota 11]
99
[idem nota 12]
100
[idem nota 13]
plástica da vida e de afirmar a temporalidade radical de um mundo onde nenhuma
configuração deve subsistir de maneira perene.
Curso Deleuze
Aula 5: Présentation de Sacher-Masoch
Na aula de hoje, analisaremos um pequeno texto de Deleuze, publicado em 1967, sob título
de Apresentação de Sacher-Masoch. Trata-se de uma grande introdução à tradução francesa
de uma das obras mais conhecidas de Masoch: A Vênus das peles. Este comentário que
gostaria de desenvolver aqui tem uma função bastante específica. Vimos como através do
comentário de Hume, Deleuze desenvolvia uma teoria das constituição de individualidades
que deveria entrar no lugar de uma psicologia. Com Bergson, Deleuze passou do domínio
restrito da individualidade para a constituição de uma verdadeira ontologia baseada em uma
reflexão sobre o tempo como duração. Com Nietzsche, Deleuze podia desdobrar tal
ontologia em uma ética e uma metodologia renovada de crítica da filosofia. Agora, a
reflexão sobre a obra literária de Sacher-Masoch lhe permitirá constituir as condições gerais
para uma teoria da ação de forte conteúdo político. Podemos mesmo dizer que interessa a
Deleuze sobretudo a maneira como a experiência literária de Masoch produzia processos
capazes de responder a uma ação que seja conforme ao regime de crítica que nasce nos
textos do filósofo francês. Tais processos, ao menos segundo Deleuze, animariam uma
outra experiência literária que será objeto de uma reflexão sistemática: esta sintetizada por
Franz Kafka (Kafka: por uma literatura menor). Por articular, á sua maneira, ontologia e
literatura, Apresentação de sacher-Masoch é, antes de mais nada, uma reflexão filosófica
sobre uma obra literária.
Mas, por outro lado, o livro é também a primeira ocasião para Deleuze entrar de
maneira sistemática em uma discussão a respeito da constituição de dispositivos clínicos,
em especial através de Freud. Isto a ponto de Deleuze afirmar: “O que gostaria de estudar
(este livro seria apenas um primeiro exemplo) é uma relação enunciável entre literatura e
clínica psiquiátrica”101.
Este recurso à clínica é um campo novo que ganhará papel hegemônico com O anti-
Édipo. Seu peso não deve ser negligenciado. Vimos na aula passada como Deleuze
compreende a crítica da razão como análise de patologias sociais, ou seja, crítica feita em
nome da identificação de como formas de pensar produzem experiências de sofrimento
social. Neste contexto, a crítica da razão tende a virar uma clínica das formas patológicas
de vida, o que Nietzsche com sua “fisiologia da razão moderna” não teria dificuldade
alguma em aceitar. Através da literatura, Deleuze procura a sintomatologia desta clínica, já
que: “A obra de arte porta sintomas, tanto quanto o corpo ou a alma, ainda que de maneira
muito diferente. Neste sentido, o artista, o escritor podem ser grandes sintomatologistas,
tanto quanto o melhor médico: assim é Sade ou Masoch”102.
Introdução
103
BOGUE, Ronald ; Deleuze and Guatarri, Routledge, 1989, p. 46
operação no masoquismo. Basta estarmos atento para a função do contrato na elaboração
dos cenários masoquistas.
A ironia de Sade
104
DELEUZE, Présentation de Sacher-Masoch, p. 75
105
Ver, a este respeito, DE MAN, Blindness and insight, Londres, Routledge, 1983, p. 209
Mas lembremos que a ironia não procura esconder tal inadequação. Para funcionar,
a ironia deve mostrar que o sujeito nunca está lá onde o seu dizer aponta. Desta forma, ela
pode se afirmar não exatamente como uma operação de mascaramento, mas como uma
sutil operação de revelação da inadequação entre enunciado e enunciação. Sem esta
possibilidade de revelação da inadequação para o Outro, a ironia seria um mero mal-
entendido. Ou seja, a ironia é um modo muito particular de abertura ao reconhecimento
intersubjetivo. Pois, para além do vínculo social que dá corpo à ordem jurídica, o riso
irônico funda e fornece as coordenadas do espaço comum destes que partilham olhares
simétricos. Daí a idéia deleuzeana segundo a qual a ironia deve ser vista como o
movimento de ultrapassar a lei em direção a um princípio mais alto, isto a fim de
reconhecer à lei apenas um poder segundo
À sua maneira, Deleuze compõe um grande e heteróclito quadro de relações de
família que começa na ironia socrático-platônica com suas estratégias de autentificação da
Idéia. Ironia que Deleuze lembra ao dizer: "Platão ria destes que se contentavam em
fornecer exemplos, de mostrar, de designar, ao invés de apreender as essências: Eu não te
pergunto (dizia ele) o que é justo, mas o que é o justo etc" 106. Para Deleuze, algo deste riso
que zomba das expectativas de determinações empíricas em fundamentar o advento do
sentido poderá ser ouvido em um autor que nada teria de platônico: Sade. O mesmo Sade
cuja ironia consiste em regionalizar as aspirações universalizantes da Lei moral a fim de
insistir na imanência de uma Lei mais alta fundada na natureza com suas injunções de
gozo:
Partindo da idéia de que a lei não pode ser fundada pelo Bem, mas deve repousar
em sua forma, o herói sádico inventa uma nova maneira de ascender da lei a um
princípio superior; mas tal princípio é o elemento informal de uma natureza
primeira destrutora de leis107.
Deleuze tem em vista o fato dos personagens de Sade serem impulsionados pela
obediência cega a uma Lei moral estruturalmente idêntica ao imperativo categórico
kantiano. Como dirá Adorno: ""Juliette não encarna nem a libido não sublimada, nem a
libido regredida, mas o gosto intelectual pela regressão, amor intellectualis diaboli, o
prazer de derrotar a civilização com suas próprias armas. Ela ama o sistema e a coerência e
maneja excelentemente o órgão do pensamento racional" 108. Juliette não está acorrentada ao
particularismo da patologia de seus interesses; ela age por amor estrito à Lei.
De fato, Sade está à procura de uma purificação da vontade que a libere de todo
conteúdo empírico e patológico. De onde se segue, por exemplo, o conselho do carrasco
Dolmancé à vítima Eugénie, na Filosofia na alcova: "todos os homens, todas as mulheres
se assemelham: não há em absoluto amor que resista aos efeitos de uma reflexão sã” 109.
Uma indiferença em relação ao objeto que pressupõe a despersonalização e o abandono do
princípio de prazer. Este é o sentido de um outro conselho de Dolmancé à Eugénie: "que ela
chegue a fazer, se isto é exigido, o sacrifício de seus gostos e de suas afeições"110.
106
DELEUZE, Logique du sens, p. 160
107
DELEUZE, Présentation de Sacher-Masoch, p. 79
108
ADORNO ET HORKHEIMER, Dialética do esclarecimento, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, pp. 92-93
109
SADE, La philosophie dans le boudoir, Paris: Gallimard, 1975, p, 172
110
SADE, ibidem, p. 83
Isto nos explica porque Sade, tal como Kant, eleva a apatia a pressuposto
indispensável da virtude. Os carrascos de Sade executam de maneira apática a Lei, sem
deixar-se guiar por prazeres sensíveis. Como se fosse sempre questão de negar a
efervescência do prazer sensível ligado ao eu, a fim de dar lugar ao calor do poder
demonstrativo da Lei. A apatia (assim como a compaixão) aparece como negação radical do
desejo ainda ligado às escolhas patológicas de objeto. Deleuze fala com propriedade da
apatia sadiana como : “o prazer de negar a natureza em mim e fora de mim, e de negar o
próprio Eu [empírico]”111.
Por fim, tal incondicionalidade e indiferenciação do desejo sadeano em relação ao
objeto empírico nos leva a uma máxima moral que tem pretensões universais análogas ao
imperativo categórico kantiano. Trata-se do direito ao gozo do corpo do outro. Sade dirá
que: "todos os homens têm um direito de gozo igual sobre todas as mulheres", isto sem
esquecer de completar afirmando que, naquilo que concerne às mulheres: "quero que o
gozo de todos os sexos e de todas as partes de seus corpos lhes seja permitido, tal como aos
homens”112. Este gozo não é ligado ao sensível, já que desconhece fixação de objeto, mas à
Lei. Ele é um gozo pela pura forma da Lei, uma Lei "escrita no coração de todos os
homens"113. Neste sentido, a única diferença em relação a Kant é que, em Sade, é a
Natureza que impõe a Lei. Mas se trata de uma natureza que esconde, para-além do
conceito de movimento vital onde se articulam conjuntamente criação e destruição, uma
natureza primeira concebida como poder absoluto do negativo, como pura forma que
sacrifica todo objeto.
Ou seja, da ironia socrática à ironia moderna (Sade), passa-se da regionalização da
Lei pela substancialidade do Bem supremo à regionalização da Lei por um princípio que é
apenas a posição da pura forma, mesmo que esta pura forma ganhe a figura de uma
natureza primeira caracterizada pelo impulso de destruição de todo e qualquer conteúdo
sensível. Por trás destas aproximações inusitadas, Deleuze procura insistir nos impasses de
uma estratégia de constituição da experiência do sentido a partir de motivos da
transcendência. Por outro lado, ele enxerga em Sade a realização mais bem acabada de uma
estratégia que insiste na inadequação radical do desejo aos objetos empíricos: o resultado só
poderá ser o impulso de destruição serial de tudo o que se colocar como objeto do desejo
para que o vazio da pura forma possa ser posto114.
O humor de Sacher-Masoch
O outro modo de subverter a Lei é o humor. "Nós chamaremos humor, não mais o
movimento que ascende da lei a um princípio mais alto, mais este que desce da lei em
direção às conseqüências"115. Ou seja, não se trata de regionalizar o ordenamento produzido
pela Lei através da posição de um princípio que a transcende, mas se trata de "torcer" a lei
pelo aprofundamento de suas conseqüências. Seguiremos a Lei ao pé da letra,
111
DELEUZE, Présentation de Sacher-Masoch, op.cit, p. 27
112
SADE, idem, p. 227.
113
SADE, La philosophie dans le boudoir, p. 199
114
É claro, Deleuze ao falar de Sade tem em mente também Lacan e sua estratégia de pensar o falo como
significante puro, pura forma do desejo. Um leitura atenta de Kant com Sade, de Lacan, pode mostrar como o
próprio Lacan reconhece tal aproximação no interior de um movimento de auto-crítica. Ver SAFATLE, A
paixão do negativo, São Paulo, Unesp, 2006.
115
DELEUZE, Présentation de Sacher-Masoch, p. 77
respeitaremos os critérios normativos que aspiram fundamentar a orientação no julgamento,
mas faremos de maneira tal que eles justifiquem conseqüências que pareciam inicialmente
contraditórias em relação à Lei. O humor é assim esta capacidade de fazer a Lei justificar
disposições performativas que lhes pareceriam contraditórias. Se Deleuze pode afirmar que
o humor é a co-extensividade entre o sentido e o não-sentido, é porque ele quer demonstrar
que a significação da Lei pode ser consistente com uma pragmática que normalmente lhe
seria estranha. Encontramos aqui um modo de agir que é problematização das estratégias de
indexação entre a significação da Lei e a designação ostensiva do caso 116. O que leva
Deleuze a dizer que o humor é a transformação da questão: "o que significa para algo
responder a seu nome?"117 em paradoxo. Este humor traria:
um puro devir sem medidas, verdadeiro devir-louco que nunca pára (...) O paradoxo
deste devir puro é a identidade infinita: identidade entre os dois sentidos ao mesmo
tempo, do futuro e do passado, do amanhecer e do entardecer, do mais e do menos,
do muito e do insuficiente, do ativo e do passivo, da causa e do efeito118.
116
Lembremos de que, para Deleuze, a significação é uma questão de relação da palavra a conceitos
universais ou gerais : « A significação se define através desta ordem de implicação conceitual na qual a
proposição considerada só intervém como elemento de uma ´demonstração´ no sentido mais geral da palavra,
seja como premissa, seja como conclusão » (DELEUZE, Logique du sens, p. 24)
117
DELEUZE, Logique du sens, p. 28
118
DELEUZE, Logique du sens, p. 16
119
DELEUZE, Critique et clinique, p. 72
120
DELEUZE, Logique du sens, p. 298
121
DELEUZE, Logique du sens, p. 297
122
DELEUZE, Logique du sens, p. 303
parafraseando Nietzsche. Uma certa realização da Idéia que inverte suas expectativas
performativas.
Assim como Deleuze vê, em Sade, um exemplo privilegiado da transcendentalidade
da ironia em ação no campo da organização da sexualidade, ele verá em Sacher-Masoch o
exemplo de uma sexuação pensada a partir da teoria do humor. Há um largo movimento em
Deleuze que consiste em recorrer ao masoquismo e à perversão a fim de tentar transformá-
los em exemplos deste humor capaz de instaurar uma relação de imanência com um plano
de simulacros. É através destes exemplos que Deleuze procura mostrar como o dizer da
verdade do sexo deve necessariamente obedecer à dinâmica do humor.
Vimos como Deleuze instaurava uma dicotomia entre ironia e humor a fim de dizer
que, se a ironia consiste em ultrapassar a Lei ‘pelo alto’, o humor visaria torcer a Lei
através do aprofundamento de suas conseqüências. Não colocamos nenhum princípio de
significação para além da Lei moral. Esta é seguida através de uma aplicação escrupulosa:
“Toma-se a lei ao pé da letra, não se contesta seu caráter último ou primeiro” 123. Mas os
efeitos da Lei são invertidos devido à possibilidade de designações múltiplas que
demonstram como a tentativa de fundar o sentido através de designações nos leva
necessariamente a um impasse. Assim, vimos que, se Deleuze pode afirmar que o humor é a
co-extensividade entre o sentido e o não-sentido124, é porque ele quer demonstrar que a
significação da Lei é consistente com uma pragmática que normalmente lhe seria estranha:
“a mais estrita aplicação da lei tem o efeito oposto a este que normalmente esperávamos
(por exemplo, os golpes de chicote, longe de punir ou prevenir uma ereção, a provocam, a
asseguram)"125. Ou seja, exemplo maior vem de Sacher-Masoch, este mesmo Sacher-
Masoch em quem Deleuze vê uma insolência por obsequiosidade, uma revolta por
submissão. Assim, ele dirá:
Nós estamos diante de uma vítima que procura um carrasco e que necessita formá-
lo, persuadí-lo e fazer uma aliança com ele para a empresa a mais estranha (...) é o
masoquista que a forma [a dominadora], a traveste e lhe sussurra as palavras duras
que ela lhe endereça127.
Esta figura da vítima que forma um carrasco nos lembra que se transformar em puro objeto
do gozo do outro por contrato, ser Senhor e escravo por contrato é uma forma
absolutamente paródica de reconhecer a autonomia dos sujeitos. Pois a figura do contrato
pressupõe previamente o reconhecimento da dignidade dos sujeitos que deixam de lado sua
dignidade a fim de sustentar uma encenação limitada no tempo e no espaço. Podemos dizer
que a realização suprema do ideal de autonomia presente na Lei moral consistiria em poder
gozar de maneira paródica do papel da heteronomia e da submissão128.
O contrato masoquista aparece então como ato supremo de humor. Através deste
humor, o cenário de submissão masoquista aparece como construção de um espaço de
simulacros, jogo de simulação que é absolutamente consistente com os imperativos de
dignidade e de autonomia própria à Lei moral. Não se trata de uma simples encenação, mas
de um simulacro no sentido de ser um caso que, ao mesmo tempo, realiza e nega a Lei em
suas expectativas iniciais de performance. Assim, o masoquismo mostra como o
reconhecimento da transcendentalidade da Lei pode permitir o advento de um espaço de
simulacros. Este é o ponto fundamental posto pelo masoquismo ao insistir que a
significação da autonomia pode comportar a simulação da servidão: é possível inverter as
designações da Lei sem, com isto, entrarmos em contradição a respeito de sua significação.
Por isto, podemos dizer: há um modo de realização do reconhecimento da Lei através da
articulação de simulacros. Tal modificação no cerne do funcionamento da linguagem é o
que Deleuze tem em vista ao afirmar que Sacher-Masoch faz a língua balbuciar, como toda
literatura de minoria é capaz de fazer balbuciar, tirar do seu eixo a língua maior.
Esta questão do contrato masoquista nos leva a um ponto central da estratégia
deleuzeana. Lembremos do motivo freudiano da subordinação da “autonomia” da Lei
moral à experiência de culpabilidade vinda da pressão sádica do supereu contra o eu. Para
127
DELEUZE, Présentation de Sacher Masoch, op.cit, p. 22
128
De onde se segue, por exemplo, a afirmação de Lacan, que em larga medida concorda com Deleuze a
respeito do problema do masoquismo: “enquanto [Sacher-Masoch] desempenha o papel do servo que corre
através de sua dama, ele tem todas as dificuldades do mundo em não explodir de rir, ainda que ele tenha o ar
mais triste possível, Ele só retém o riso com muita dificuldade" (LACAN, S XIV, sessão de 14/06/67).
Freud, tudo se passa como se a faticidade da Lei moral fosse indissociável de uma
experiência de culpabilidade objetiva que apareceria, inclusive, como saldo de processos de
socialização do desejo sexual nas sociedades modernas dependentes de mecanismos de
repressão.
No entanto, é possível atualmente falar em uma obsolescência da culpabilidade
enquanto saldo das experiências de socialização e de internalização da Lei moral, isto em
prol de uma certa “flexibilização” da Lei que pode ser compreendida a partir da lógica da
paródia. Este é o contexto adequado para a compreensão da leitura deleuzeana do
masoquismo. Pois devemos lembrar que, para Deleuze, o masoquismo não seria
simplesmente a encenação da indissolubilidade entre a afirmação do primado da Lei e a
experiência de culpabilidade e humilhação do eu. Na verdade, ele seria um surpreendente
movimento de anulação da culpabilidade através da “parodização” da Lei. Movimento de
subversão da Lei com sua experiência subjetiva de culpabilidade, o masoquismo
conservaria os motivos da Lei apenas para destruir sua força performativa. Para tanto,
Deleuze insiste que, no masoquismo, a culpabilidade vinda da pressão sádica do supereu
repressivo seria encenada de maneira paródica através da externalização do supereu na
figura da dominadora. Através do masoquismo, há a liberação do vínculo neurótico entre lei
e culpabilidade através da construção de uma versão paródica da culpa.
Nesta chave interpretativa, o que é humilhado no masoquismo pela figura feminina
é aquilo que, no sujeito, moldou-se à semelhança da identificação paterna, é aquilo que no
sujeito assemelha-se à imagem do pai. Ou seja, ao invés da repressão do supereu paterno
como resultado da internalização da identificação paterna, teríamos, no masoquismo, a sua
destruição e, com isto, uma forma de liberação do sujeito. Ao insistir na recorrência do
tema “Você não é um homem, eu te transformo em um” que sai da boca das dominadoras
dos romances de Sacher-Masoch, Deleuze lembra que, aqui, “ser um homem”: “não
significa em absoluto fazer como o pai, nem ocupar seu lugar. É, ao contrário, suprimir seu
lugar e a semelhança a ele a fim de permitir o nascimento de um homem novo”129.
Este declínio da figura paterna, tema maior de O anti-Édipo, permite que fantasias
primitivas dominem o desenvolvimento subseqüente do supereu. Neste caso, estas fantasias
primitivas masoquistas (e aqui podemos seguir Deleuze) dizem respeito principalmente à
mãe oral e a um certo supereu constituído a partir de figuras femininas. Desta forma,
através do masoquismo, Deleuze parece nos fornecer uma lógica da ação organizada a
partir de uma certa possibilidade de “interversão paródica” da Lei capaz de desativar a Lei.
Um método de desmontagem da maquinaria da Lei que não passa pela crítica, mas pela
repetição humorística. O mesmo método de desmontagem que Deleuze e Guatarri
encontrarão posteriormente em Kafka. Lembremos, por exemplo, da maneira que os dois
interpretam o suposto conflito edípico que seria o motor de Cartas ao pai:
131
DELEUZE, Deux regimes de fous, p. 281
são afetados pelas paixões no interior da imaginação, sintetizando assim um conjunto
caótico de imagens e impressões dispostas como um fluxo. Desta forma, o empirismo de
Hume permitia a ultrapassagem da filosofia do sujeito por trazer uma crítica à noção de
subjetividade constitutiva própria às filosofias que colocam a consciência como
fundamento do saber. Como a subjetividade aparece como o que é constituído, não como o
que constitui o campo da experiência, o esforço filosófico se volta para análise dos
princípios “pré-individuais” que permitem a constituição do que nos aparece como “o
dado”.
Bergson, por sua vez, teria nos mostrado como é possível dar forma de sujeito (ou
seja, sintetizar) aquilo que é multiplicidade pura, puro fluxo de duração que se oferece no
tempo. O problema é estruturalmente semelhante àquele apresente à ocasião da dissertação
sobre Hume, a saber, como a subjetividade é uma produção sintética que se constitui
através da confrontação com aquilo que tem estatuto de “pré-individual”. Novamente, a
estratégia consiste em partir da questão: “como se constitui o dado?” e passar às condições
de constituição do campo da experiência. No entanto, Bergson nos mostraria como essa
passagem em direção às condições de experiência não consiste em ultrapassar o dado em
direção ao conceito, mas em direção a perceptos puros que só podem ser apreendidos pela
intuição. No entanto, vimos como Deleuze insistia como a intuição bergsoniana não era a
apreensão mental imediata do que é imediatamente claro e distinto ao espírito. Ela era
apreensão de uma duração que nos coloca diante do Ser como multiplicidade. Através de
uma reflexão sobre a duração bergsoniana em sua relação com a noção de élan vital,
Deleuze poderá dizer: “O Ser é alteração, a alteração é substância” 132. Desta forma, a
recuperação de uma ontologia podia enfim aparecer como base para a experiência
intelectual de Gilles Deleuze.
Com Nietzsche, Deleuze colocava novamente uma pergunta similar: “algo estando
dado, qual estado de forças exteriores e interiores ele supõe?”133. Neste caso, tratava-se de
mostrar como os fenômenos eram, no fundo, sintomas que reenviavam a estados de forças
que se organizavam a partir da vontade de potência como finalidade. Novamente, tal como
em Hume, tínhamos a figura de um princípio impessoal (a vontade de potência) que
organizava um conjunto caótico de elementos (força). Mas, no caso de Nietzsche, tratava-se
de mostrar como era possível construir uma ética e um método crítico que visava denunciar
tipos, formas de vida que se constituem como modos de defesa contra esta ontologia
renovada da diferença. Tipos fundados em disposições de condutas e patologias sociais
marcadas pelo ressentimento e pela culpabilidade, pela interiorização e pela memória..
Com Sacher-Masoch, Deleuze começa a esboçar uma forma de ação que seria capaz
de livrar as individualidades e o desejo de sua submissão a um princípio de organização e
síntese que lhe é estranho. Todo o pequeno livro é uma reflexão sobre a anatomia de ações
capazes de subverter a Lei moral, esta mesma lei que me constitui na minha dignidade de
sujeito no momento em que a reconheço. Lei que unifica a conduta a partir de um princípio
universalizante, que hierarquiza os impulsos através da divisão entre vontade pura e desejo
patológico, que instaura uma relação de si a si marcada pelo conflito, pelo recalcamento e
pelo antagonismo.
Por fim, com Spinoza, Deleuze continua na via de pensar como individualidades
como produções sintéticas podem se constituir através da confrontação com aquilo que tem
o estatuto de pré-individual. Daí a razão pela qual a porta de entrada de Deleuze no interior
132
DELEUZE, l´île deserte, p. 34
133
DELEUZE, Deux régimes de fous, p. 188
do pensamento de Spinoza é o problema da expressão, ou seja, do regime através do qual a
substância una expressa-se na multiplicidade de seus modos e atributos, como uma teoria
da univocidade do ser é capaz de dar conta da existência de multiplicidades e
individualidades. Tal problema implica um projeto global de reconstrução da lógica, já que
implica abandonar noções lógicas maiores como atribuição, aplicação, indexação,
subordinação, distinções categoriais entre substância e atributos, entre outros, isto em prol
de uma: “Lógica da afirmação pura, da qualidade ilimitada e, por isso, da totalidade
incondicional que possui todas as qualidades, ou seja, lógica do absoluto.” 134. Este projeto
global de reconstrução da lógica, de uma lógica do absoluto e da imanência será o objeto
de outro livro que sai praticamente ao mesmo tempo que Spinoza e o problema da
expressão, a saber, Lógica do sentido.
Por outro lado, a articulação expressiva e imanente entre substância, atributos e
modos, articulação que não é nem participação, nem emanação, aparece como maneira
mais segura de criticar a consciência em suas ilusões morais de autonomia, ilusões
cognitivas de determinação e ilusões práticas de finalidade. Lembremos, por exemplo, da
maneira com que Deleuze insiste na centralidade do corpo na filosofia de Spinoza. Uma das
teses teóricas mais conhecidas de Spinoza diz respeito ao paralelismo entre mente e corpo.
Mente e corpo têm regimes causais próprios e incomunicáveis. No entanto, como em todo
dualismo deleuzeano, um dos pólos tem o primado e reconfigura o outro. No caso, ao corpo
e suas conexões causais é dado o primado, já que o corpo estaria mais próximo da relação
expressiva com a substância do que a consciência, isto enquanto a consciência (enquanto
cerne do conceito de sujeito) só tem idéias inadequadas a respeito do que é a causa. O corpo
tem este primado por ser, como já dissera tanto Nietzsche quanto Freud, uma multiplicidade
desprovida de unidade e coerência resultante da submissão a um princípio global de
organização. Daí porque Deleuze afirma:
O esplendor do impessoal
Dizer algo em seu próprio nome é muito curioso; pois não é em absoluto no
momento em que se toma por um eu, uma pessoa ou um sujeito que se fala em seu
nome. Ao contrário, um indivíduo adquire um verdadeiro nome próprio após o mais
severo exercício de despersonalização, quando ele se abre às multiplicidades que o
atravessam por todos os lados, ás intensidades que o percorrem137.
No entanto, este “nós” engloba ainda mais vozes. Lembremos do que Deleuze diz, a
respeito de seu livro: “Cada filosofia deve conquistar sua maneira de falar das ciências e
das artes, assim como de estabelecer alianças com elas. É muito difícil, pois a filosofia não
pode pretender a menor superioridade, mas só cria e expõe seus próprios conceitos em
relação com o que eles podem apreender das funções científicas e das construções
artísticas”138. Esta é uma afirmação maior. Trata-se de insistir que o acontecimento que
produz o conceito filosófico vem do exterior da filosofia, vem do choque que a filosofia
sente ao se deparar com o que está em jogo nas funções científicas e nas construções
estéticas. Levando isto em conta, e levando ainda em conta o problema geral que Deleuze
procura instaurar na ultrapassagem da filosofia do sujeito e de suas conseqüências nos
campos das ciências humanas, devemos nos perguntar: qual conceito Diferença e repetição
cria e quais são as funções científicas e construções artísticas a que ele responde?
A resposta já é dada no próprio título do livro. O conceito criado é a articulação
insuspeita entre repetição e diferença, é esta maneira de pensar a repetição a fim de alcançar
um conceito renovado de diferença.
No momento em que Deleuze escreve seu livro, vários são aqueles que determinam,
como tarefa filosófica maior, pensar a diferença. Por exemplo, Derrida, à mesma época,
afirmava que o pensamento conceitual era modo de síntese que visava impedir a
experiência da disseminação do sentido, assim como impedir o desvelamento da ausência
de origem que ainda amedrontaria aquilo que o filósofo chamava de “metafísica da
presença”. Por isto, à filosofia caberia pensar a différance pura (termo-valise que articula
“diferença” e “diferir”) anterior a todo conceito, a toda diferença conceitualmente
estruturada (como as oposições entre ser/não-ser, eu/não-eu, etc.). Do outro lado da
fronteira e à mesma época, Adorno procurava reposicionar a filosofia no interior da crítica
da ideologia afirmando que: “A identidade é a forma originária da ideologia”. O que
significava dizer que a ilusão da identidade era o verdadeiro bloqueio para uma filosofia
que queira afirmar sua potência crítica. “A aparência da identidade habita o próprio pensar
através de sua forma pura. Pensar significa identificar. A ordem conceitual auto-satisfeita
descarta (vorschieben) o que pensamento queria conceituar”139. Se ela descarta é porque o
conceito ainda deve aprender como formalizar aquilo que Adorno chama de não-identidade,
ou seja, a experiência da diferença. Poderíamos aumentar indefinidamente o séqüito dos
filósofos do século XX que compreenderam a filosofia como esforço para pensar a
137
DELEUZE, Pourparlers, p. 16
138
DELEUZE, Deux regimes de fous, p. 282
139
ADORNO, Negative Dialektik, p. 17
diferença: Foucault e a história da razão moderno como processo de dominação do que é da
ordem do sem-palavra, do que só aparece como desarticulação da potência ordenadora da
palavra (a loucura, a literatura de vanguarda, a transgressão). Lyotard e a defesa da
irredutibilidade do sensível ao conceituar, Heidegger e a tarefa de pensar a diferença
ontológica entre ser e ente.
No entanto, se Deleuze parece apenas recuperar um motivo maior do pensamento do
século XX ao centrar seu projeto na recuperação da centralidade filosófica da noção de
diferença, ele inova ao propor sua estratégia para realizar tal exigência. Pois trata-se de
compreender que o único modo de apreender a diferença é através da repetição. Proposição
inaudita já que aceitamos normalmente que a repetição é um fenômeno ligado à
semelhança, à igualdade. Algo se repete porque o mesmo, o semelhante, o igual ocorreu em
ao menos duas situações. Algo se repete porque duas situações intercambiáveis ocorreram,
porque há uma regularidade. No entanto, Deleuze afirma, de maneira claramente contra-
intuitiva: “a diferença é de natureza entre a repetição e a semelhança” 140. Ou seja,
igualdade, intercambialidade, semelhança, regularidade não são conceitos capazes de
apreender a natureza da repetição. Isto a ponto de dizer: “Se a repetição existe, ela exprime
ao mesmo tempo uma singularidade contra o geral, uma universalidade contra o particular,
um surpreendente (remarquable) contra o ordinário, uma instantaneidade contra a variação,
uma eternidade contra a permanência”141. Mas o que permite Deleuze fazer tais
afirmações?’ “A descoberta em todas as formas de dimensões de uma potência própria à
repetição que seria esta do inconsciente, da linguagem, da arte”142. Esta colocação que
aparece logo no início do nosso livro traz indicações preciosas. Se é verdade que conceitos
filosóficos sempre são respostas a funções científicas e construções artísticas, então
devemos encontrar primeiramente nas ciências e nas artes este conceito de repetição como
modo de apreensão da diferença.
De fato, se voltarmos os olhos ao campo das artes, veremos que a reflexão sobre o
estatuto da repetição era um problema maior. Deleuze conhecia bem os esforços de
constituir uma estética da repetição no interior da qual a repetição poderia vincular-se a
dispositivos de dissolução da presença e da significação dos objetos repetidos. A repetição
não aparecia como modo de organização funcional das obras, mas como modo de
destruição daquilo que a obra dá a ver. Em uma situação histórica de aparente esgotamento
da capacidade de abstração e de afastamento crítico da aparência reificada, dispostivos
próprios ao modernismo, o recurso estético à repetição aparece como estratégia maior de
constituição das obras. Daí porque os anos sessenta verão o retorno de procedimentos e
materiais que pareciam ultrapassados pela crítica modernista, como a figuração (através da
Pop-art e do nouveau réalisme), o sistema tonal (através do minimalismo). Deleuze pensa
este esgotamento afirmando que:
Não há outro problema estético que esta da inserção da arte na vida cotidiana.
Quanto mais nossa vida cotidiana aparece estandardizada, estereotipada, submetida
a uma reprodução acelerada de objetos de consumo, mais a arte deve a isto se
vincular e daí arrancar esta pequena diferença que se jogo simultaneamente entre
140
DELEUZE, Différence et répétition, p. 7
141
idem, p. 9
142
idem, p. 1
outros níveis de repetição, e mesmo fazer ressoar os dois extremos das séries
habituais de consumo com as séries instintuais de destruição e morte143.
143
idem, p. 375
144
idem, p. 376
145
WARHOL, Interwiews by G. R. Swenson in ARTnews, New York, vol 62, n, 7, novembre 1963
Vemos aqui uma técnica de repetição como saturação que visa, por um lado, a
dissolução do poder traumático de uma catástrofe, ou seja, de um acontecimento
desprovido de conceito. Aqui, a constituição de uma série não preenche, como no
modernismo, a função de produzir a organicidade funcional da obra. Ela visa dissolver o
acontecimento em seu estranhamento traumático e anular seu quadro de significação. Em
Death in América resta assim a fascinação de catástrofes sem tragédia, de acontecimentos
sem estrutura de simbolização, de acontecimentos sem história; resta a fascinação da morte
como ponto de indiferença, como imagem desensibilizada, esta maneira bruta de morrer
como um cão, tal qual a morte de Joseph K em O processo. Uma morte que é o verdadeiro
nome da catástrofe.
Por outro lado, se nos perguntarmos sobre quais funções científicas que animam a
reflexão deleuzeana sobre o estatuto da repetição, poderíamos fazer apelo ás reflexões
sobre a imitação na sociologia de Gabriel Tarde (a imitação como princípio constitutivo do
vínculo social) ou ainda sobre os problemas relativos à individuação e à diferenciação de
individualidades biológicas. No entanto, o recurso estruturante á reflexão sobre a repetição
vindo de um domínio empírico do saber é o problema da pulsão de morte em Freud em sua
ligação com a compulsão de repetição.
De fato, é certo afirmar que havia alguém que, anos antes de Deleuze, tentara
mostrar como um novo pensamento da repetição era condição para a reflexão sobre
singularidades. Trata-se de Jacques Lacan, autor que Deleuze conhecia bem. Cinco anos
antes da publicação de Diferença e repetição, Lacan havia insistido que um dos quatro
conceitos fundamentais da psicanálise era exatamente o conceito de repetição e que uma
das tarefas da reflexão psicanalítica consistia em reconstruir a noção de repetição ligada à
vida psíquica. Pois tratava-se de abandonar a noção clássica segundo a qual a repetição era
o cerne do sofrimento psíquico, cerne da impossibilidade de nos livrar de situações e
esquemas que nos aprisionam, isto devido ao fato da repetição psíquica aparecer como
bloqueio às exigências de rememoração. Freud afirmava que o sofrimento psíquico estaria
ligado ao fato do o sujeito repetir na ação aquilo que ele deveria apreender de maneira auto-
reflexiva através da rememoração e de suas estratégias de síntese. Por trás desta idéia de
Freud, encontramos a crença filosófica de que a consciência é indissociável da memória,
que a incapacidade do ato da rememorar implica modalidades maiores de divisão subjetiva
Lacan, no entanto, procura pensar a repetição psíquica de outra maneira, como uma
forma de síntese que não passa pelos processos de conceitualização próprios a um conceito
clássico (emobra não o único) de rememoração. Talvez isto nos explique porque ele procura
definir a repetição como: “o que une em matéria de cópula o idêntico e o diferente” 146, ou
seja, como uma forma de reconsiderar as distinções habituais entre identidade e diferença.
Maneira de dizer que há uma maneira de sentir a repetição que equivale a uma
desestabilização do mesmo. Como se a psicanálise devesse nos levar a reconhecer: “a
diversidade mais radical que constitui a repetição em si mesma” 147. Esta diversidade mais
radical é exatamente aquilo que Deleuze procura pensar através da noção de “diferença”. É
ela que o leva a afirmar que: “Se a repetição nos adoece, é ela também que nos cura, se ela
nos acorrenta e nos destrói, é ela ainda que nos libera”148.
146
LACAN, Séminaire XIV, séance du 15/02/67
147
LACAN, Séminaire XI, p. 60
148
DELEUZE, Différence et répétition, p. 30
Voltaremos ao problema da repetição em psicanálise quando for questão de
comentar o capítulo “A repetição por ela mesma”. Mas vale a pena expor agora ao menos a
problemática que envolve a noção de repetição no interior da psicanálise, já que
Veremos melhor este anti-hegelianismo na aula que vem. Por enquanto, podemos
insistir como a repetição deveria ocupar as funções que Hegel determinou para a negação e
a contradição, ou seja, estruturar relações entre termos, determinar modos de causalidade
(já que a negação determinada, em Hegel, é modo de estabelecer relações de causalidade
entre objetos) e impedir a constituição de sínteses totalizantes que entifiquem o princípio de
identidade. No fundo, para Deleuze, o verdadeiro problema de Hegel consiste em nos
impedir de pensar “um conceito de diferença sem negação”, uma diferença que não seja
apenas o negativo, o oposto de um termo posto. Daí porque seu livro tem que repetir
insistentemente que há uma “ilusão do negativo”. Ilusão perigosa já que, desde o pequeno
livro sobre Nietzsche, Deleuze insistia que a dialética seria uma escolha moral que se
levanta contra a diferença.
Já vimos, em O bergsonismo e Nietzsche e a filosofia alguns dos aspectos da crítica
deleuzeana ao negativo. Hegel pensaria a diferença como não-ser, ou ainda, não-eu. Isto
permite que a diferença em relação à idéia de ser transforme-se em uma diferença exterior,
em uma limitação do ser que se deixa pensar no interior de uma relação de oposição. Tudo
o que é diferença se caracteriza exatamente por ser o negativo do ser, como se a diferença
não tivesse nenhuma realidade própria. Isto nos impediria de pensar a diferença como
estrutura interna do ser. Daí porque a tarefa filosófica consistiria em pensar uma diferença
sem negação. Mas como o ser é aquilo que permite todo conceitualizar, o ser é aquilo a
respeito do qual tenho um conceito, então a diferença deleuzeana deverá ser uma diferença
desprovida de conceito, diferença anterior ao trabalho do conceito com suas oposições e
dicotomias.
Esta diferença desprovida de conceito só poderá ser fornecida pela repetição, já que
Deleuze confunde a todo momento conceito e representação e já que a repetição seria
exatamente aquilo que anula, que dissolve o poder organizador da representação.
Demoremo-nos um pouco neste ponto. Se perguntarmos neste momento a Deleuze
“o que é um conceito?”, ele dirá: o conceito é uma generalidade que se relaciona à sua
149
idem, p. 1
referência através da representação. Por sua vez, a representação é uma unidade, um
princípio de unificação que pode ser objeto de rememoração e de recognição. Desde Kant,
sabemos que uma representação de objeto é dependente da unidade do sujeito no tempo e
da sua capacidade em individualizar coisas no espaço. É porque o espírito tem uma
memória e consciência de si que ele é capaz de formar conceitos em geral. Notemos ainda
que, por ser definido como generalidade, o conceito é solidário de uma forma de repetição.
Esta é a repetição por identidade do conceito: repetição do mesmo, de casos idênticos entre
si por serem todos semelhantes a um conceito e, por isto, equivalentes entre si.
Ou seja, se perguntarmos sobre como o conceito estabelece relações entre
representação e referência, a resposta será: através de semelhanças e equivalências. Pois a
generalidade estaria vinculada à ordem qualitativa das semelhanças e à ordem quantitativa
das equivalências. Na verdade, toda generalidade seria baseada na aplicação de princípios
de semelhança e equivalência. O que explica porque Deleuze deve afirmar: “A diferença é
de natureza entre a repetição e a semelhança”. Assim, por exemplo, ao afirmar que a
repetição se diferencia da generalidade a partir de três pontos de vista (das condutas, da Lei
– moral e da natureza - que determina a semelhança dos sujeitos a ela submetidos e do
conceito ou representação), Deleuze lembra que em todos estes casos a repetição se afirma
como algo único, singular que excede e transgride o conceito-representação. Como ele dirá:
“o teatro da representação se opõe ao teatro da repetição” 150. A fim de explicar tal oposição,
Deleuze indicará quatro proposições que marcarão o pensamento da repetição:
A idéia da razão
150
Idem, p. 19
Mas haveria ainda uma outra forma de bloquear o trabalho do conceito, descrita por
Deleuze como “bloqueio natural”. Este bloqueio está ligado a situações nas quais um
conceito pode prosseguir indefinidamente sua compreensão ao mesmo tempo em que
subsume sempre uma pluralidade de objetos ela mesmo indefinida e, sobretudo, indefinível.
No fundo, Deleuze parece animado aqui pela noção kantiana de Idéia da razão, em
contraposição ao conceito do entendimento.
Sendo o conceito uma representação, um objeto fora do campo do pensar
representativo só pode ser pensado sob uma forma problemática (através de antinomias,
paralogismos ou paradoxos): “o que não significa que a Idéia não tenha objeto real, mas
que o problema enquanto problema é o objeto real da Idéia”151.
Este é um ponto importante pois, para Kant, a dialética transcendental era uma
lógica da aparência que visava denunciar a: “influência desapercebida da sensibilidade
sobre o entendimento, através do qual os princípios subjetivos do juízo se confundem com
os princípios objetivos e os desviam de seu sentido” 152. Kant chega a distinguir dois modos
de aparência: a empírica (por exemplo, as ilusões de ótica) e a transcendental (por exemplo,
“o mundo deve ter um começo no tempo”), resultante da crença em princípios efetivos que
nos convidam a transpor os limites da experiência possível, ou seja, desta experiência
categorizada pelo entendimento. Esta aparência transcendental é baseada na ilusão de uma
necessidade objetiva de determinação das coisas em si. No entanto, as coisas em si são
indeterminadas do ponto de vista do entendimento, por isto a tentativa de determiná-las só
pode produzir paradoxos.
Deleuze insiste que o valor indeterminado das Idéias da razão não é nem uma
imperfeição do nosso conhecimento nem uma falta no objeto, mas uma estrutura objetiva,
perfeitamente positiva. O que é visto como falha por um é elevado à condição de
manifestação do sentido por outro. Daí porque, ao invés de definir a dialética como lógica
da aparência, Deleuze dirá: “Por dialética não entendemos em absoluto algum circulação de
representações opostas que as faria coincidir na identidade de um conceito, mas o elemento
do problema enquanto ele se distingue do elemento propriamente matemática das
soluções”153.
No fundo, a Idéia me mostraria como um objeto fora do campo representativo só
pode ser representado sob uma forma problemática (no caso, de Kant, através de
paralogismos ou antinomias). Daí uma afirmação como: “Quando falta a consciência do
saber ou a elaboração da lembrança, o saber tal como é em si é apenas a repetição de seu
objeto: ele é encenado (joué), ou seja, repetido, colocado em ação ao invés de ser
conhecido”154. O que se repete não é compreendido, não é rememorado, não é objeto de um
saber ou objeto da consciência. Por isto, Deleuze pode afirmar que o problema enquanto
problema é o objeto real da Idéia. A Idéia como problema tem, ao mesmo tempo, um valor
objetivo e indeterminado. Na verdade, as Idéias são multiplicidades: “uma organização
própria ao múltiplo enquanto tal, que não tem necessidade alguma da unidade para formar
um sistema”155.
151
DELEUZE, Différence et répétition, p. 219
152
KANT, Crítica da razão pura, A 296
153
DELEUZE, idem, p. 231
154
Idem, p. 24
155
DELEUZE, Différence et répétition, p. 236
Este modo de estruturação próprio à Idéia nos abre o espaço para uma outra forma
de repetição, ou seja, para aquilo que Deleuze chama de repetição por diferença interior à
Idéia, repetição que revela a alteridade interna à Idéia em sua apresentação. Os casos não
ultrapassam a extensão da Idéia. No entanto, eles nem por isto constituem uma unidade.
Hegel chamaria isto simplesmente de contradição como forma de apreensão de objetos
(ainda mais que a Idéia kantiana é exatamente o espaço de apresentação das contradições
sobre o mundo, Deus e o sujeito). Mas Deleuze não quer seguir este caminho. Por isto, ele
irá recorrer a um conceito renovado de repetição e diferença.
Introdução à experiência intelectual de Gilles Deleuze
Aula 8: Diferença e Repetição (segunda parte)
Na aula passada, vimos algumas características maiores do projeto deleuzeano que animava
Diferença e repetição. Procurei fornecer um quadro de época lembrando como, no
momento em que Deleuze escreve seu livro, vários são aqueles que determinam, como
tarefa filosófica maior, pensar a diferença. Por exemplo, Derrida, à mesma época, afirmava
que o pensamento conceitual era modo de síntese que visava impedir a experiência da
disseminação do sentido, assim como impedir o desvelamento da ausência de origem que
ainda amedrontaria aquilo que o filósofo chamava de “metafísica da presença”. Por isto, à
filosofia caberia pensar a différance pura (termo-valise que articula “diferença” e “diferir”)
anterior a todo conceito, a toda diferença conceitualmente estruturada (como as oposições
entre ser/não-ser, eu/não-eu, etc.). Do outro lado da fronteira e à mesma época, Adorno
procurava reposicionar a filosofia no interior da crítica da ideologia afirmando que: “A
identidade é a forma originária da ideologia”. O que significava dizer que a ilusão da
identidade era o verdadeiro bloqueio para uma filosofia que queira afirmar sua potência
crítica. “A aparência da identidade habita o próprio pensar através de sua forma pura.
Pensar significa identificar. A ordem conceitual auto-satisfeita descarta (vorschieben) o que
pensamento queria conceituar”156. Se ela descarta é porque o conceito ainda deve aprender
como formalizar aquilo que Adorno chama de não-identidade, ou seja, a experiência da
diferença. Poderíamos aumentar indefinidamente o séqüito dos filósofos do século XX que
compreenderam a filosofia como esforço para pensar a diferença: Foucault e a história da
razão moderno como processo de dominação do que é da ordem do sem-palavra, do que só
aparece como desarticulação da potência ordenadora da palavra (a loucura, a literatura de
vanguarda, a transgressão). Lyotard e a defesa da irredutibilidade do sensível ao conceituar,
Heidegger e a tarefa de pensar a diferença ontológica entre ser e ente.
No entanto, se Deleuze parece apenas recuperar um motivo maior do pensamento do
século XX ao centrar seu projeto na recuperação da centralidade filosófica da noção de
diferença, ele inova ao propor sua estratégia para realizar tal exigência. Pois trata-se de
compreender que o único modo de apreender a diferença é através da repetição. Proposição
inaudita já que aceitamos normalmente que a repetição é um fenômeno ligado à
semelhança, à igualdade. Algo se repete porque o mesmo, o semelhante, o igual ocorreu em
ao menos duas situações. Algo se repete porque duas situações intercambiáveis ocorreram,
porque há uma regularidade. No entanto, Deleuze afirma, de maneira claramente contra-
intuitiva: “a diferença é de natureza entre a repetição e a semelhança” 157. Ou seja,
igualdade, intercambialidade, semelhança, regularidade não são conceitos capazes de
apreender a natureza da repetição. Isto a ponto de dizer: “Se a repetição existe, ela exprime
ao mesmo tempo uma singularidade contra o geral, uma universalidade contra o particular,
um surpreendente (remarquable) contra o ordinário, uma instantaneidade contra a variação,
uma eternidade contra a permanência”158. Mas o que permite Deleuze fazer tais
afirmações?’ “A descoberta em todas as formas de dimensões de uma potência própria à
156
ADORNO, Negative Dialektik, p. 17
157
DELEUZE, Différence et répétition, p. 7
158
idem, p. 9
repetição que seria esta do inconsciente, da linguagem, da arte”159. Esta colocação que
aparece logo no início do nosso livro traz indicações preciosas. Se é verdade que conceitos
filosóficos sempre são respostas a funções científicas e construções artísticas, então
devemos encontrar primeiramente nas ciências e nas artes este conceito de repetição como
modo de apreensão da diferença.
Estrutura do livro
161
DELEUZE, Deux regimes des fous, p. 283
domesticação ou unificação conceitual”162. Pois sendo a diferença não aquilo que se deixa
organizar sob a forma do conceito através de um sistema de representações, mas aquilo que
nos leva ao que está aquém da representação, nada mais consequente do que mostrar a
possibilidade de uma nova estética transcendental que forneça o ser bruto do sensível.
Desta forma, os dois últimos capítulos acabam por ser duas reformulações de momentos da
Crítica da razão pura. O primeiro, procurando levantar os interditos postos na dialética
transcendental. Já o segundo liberando a estética transcendental de uma imagem não
tematizada do pensamento.
Diferença e representação
Esta afirmação abre o primeiro capítulo de Diferença e repetição. Ela é fundamental para a
reconstrução do conceito de diferença. Pois se trata de dizer que a reflexão sobre a natureza
da indeterminação é condição primeira para a constituição de um pensamento da diferença.
Podemos falar de indeterminação de duas maneiras: como um abismo no qual tudo se
dissolve ou como uma superfície na qual determinações não se organizam como um
sistema de partes integradas e claramente diferenciadas. Este segundo conceito de
indeterminação será posteriormente recuperado sob a forma da noção de “plano de
imanência”.
Esta é a maneira deleuzeana de afirmar que o verdadeiro pensamento da diferença a
compreende não como modo de distinção entre elementos fortemente determinados, mas
como uma potência interna de indiferenciação que habita toda determinação. Isto talvez nos
explique porque Deleuze precisa lembrar que:
Esta metáfora do fundo que sobe à superfície, como um informe que assombra a definição
de toda forma recebe a figura de um rosto humano que se decompõe. Um pouco como os
rostos nas pinturas de Francis Bacon. Em Mil platôs, Deleuze e Guattari lembravam que o
rosto é a definição mais bem acabada da identidade, do que diferencia uma individualidade
de outra. Neste sentido, Deleuze avança aqui a proposição paradoxal de que a diferença é
aquilo que, de certa forma, decompõe a individualidade, que bloqueia a realização acabada
e definida dos processos de individualização. Expor a diferença em si mesma passa então
por reconstruir completamente o que significa “determinar algo”.
162
PRADO JR., Erro, ilusão, loucura, São Paulo, Editora 34, 2004, p. 247
163
Idem, p. 43
164
DELEUZE, Différence et répétition, p. 44
Se compreender “determinar algo” como o ato de predicar ao máximo um elemento
a fim de que ele possa ser individualizado em relação aos demais termos que lhe são
contíguos, então, segundo Deleuze, não entenderemos aquilo que é a diferença. Teremos
uma concepção estática e finita do que pode ser uma individualização. Mas se entendermos
“determinar algo” como a produção de uma individualidade que tem dentro de si o processo
motor que a modifica, ou seja, que tem dentro de si aquilo que ainda não tem a figura de
uma individualidade acabada, então alcançaremos um conceito de diferença como modo de
relação a si mesmo. Neste sentido, a diferença em si mesma é, acima de tudo, a diferença
pensado nos limites do si mesmo. Ou seja, trata-se de pensar um modo de determinação no
qual o indeterminado não seja simplesmente excluído, mas seja peça constitutiva de uma
determinação não mais vinculada a hipóstase do princípio de identidade.
Deleuze inicia afirmando que a tendência hegemônica, desde Aristóteles, consiste
em pensar a determinação a partir de quatro princípios: a identidade em relação ao
conceito, a analogia entre julgamentos, a oposição entre os predicados de um mesmo
sujeito ou entre sujeitos exteriores e a semelhança entre os objetos percebidos. Estes quatro
princípios serão a base do que compreendemos por representação. Representar algo é
determiná-lo a partir de princípios de oposição, identidade, semelhança e analogia. No
interior deste modo de disposição que funda aquilo que Deleuze chama de “representação
orgânica”, a diferença distingue-se da diversidade e da alteridade, aparecendo submetida à
oposição, que é elevada à condição de diferença fundamental.
Sabemos que Aristóteles distingue quatro tipos de oposição: contrariedade,
contradição, relação e privação. É na contrariedade que Aristóteles verá a “diferença
perfeita”, já que a contrariedade representa a diferença máxima no interior do gênero
(“branco” e “preto”, “pedestre” e “alado”, etc,). Por “gênero” entendamos o que constitui a
unidade e a identidade de dois seres e que diferencia estes seres de uma maneira que não é
simplesmente acidental. “Animal” define minha unidade com um cão, ao mesmo tempo que
“animal” diferencia-se em mim e no cão de forma não acidental, pois nos distingue em
espécies. Ou seja, esta diferença no interior do gênero divide-o, produzindo espécies que
tem, entre si, relações de contrariedade (como “mamíferos pedestres” e “mamíferos
alados”). Desta forma, percebemos como a diferença aparece como especificidade que
divide o que permanece comum, a saber, o gênero. Ela é um operador que permite a
conservação da identidade conceitual do gênero, inscrevendo-se no conceito indeterminado
do gênero.
Esta “diferença específica” é compreendida por Deleuze como modo de não
apresentar um conceito de diferença, mas de submeter a experiência da diferença às
limitações representacionais do conceito, transformando-a em predicado de uma espécie.
Daí porque ele precisa insistir que: ”confunde-se a determinação de um conceito próprio de
diferença com a inscrição da diferença no conceito em geral”165. Neste sentido, ao falar que
procura uma diferença desprovida de conceito, Deleuze insiste que há uma experiência
anterior ao modo de determinação de conceitos que deve ser recuperada a fim de nos
livrarmos de uma imagem do pensamento que para nos aparece com o peso do senso
comum.
Por outro lado, a relação dos gêneros entre si desconhece um terceiro termo comum,
por isto Aristóteles afirma que os seres de gêneros distintos são incomunicáveis. A
diferença não é aplicável à distinção entre gêneros, pois não há um termo comum entre
165
idem, p. 48
eles. Aristóteles dirá: “entre uma coisa e as coisas fora de seu gênero, não há diferença
concebível”166. O ‘único termo comum possível seria “ser”. No entanto, Aristóteles afirma
que, na dimensão da distinção entre gêneros, há uma equivocidade radical do ser, isto
enquanto as espécies são unívocas em relação ao gênero.
Mas esta maneira de recuperar diferenças pré-conceituais ou, para utilizar um termo
de Deleuze, sub-representativa, inscreve-se em um amplo projeto de reconstituição da
ontologia a partir da defesa da univocidade do ser. Sabemos como Deleuze insiste que há
apenas uma proposição ontológica: o Ser é unívoco. O essencial não é entretanto que o ser
se diga em um e mesmo sentido, mas que ele se diga, em um e mesmo sentido, de todas as
diferenças individuantes ou modalidades intrínsecas. Ou seja, a univocidade não implica
identidade, ela produz individuações, mas individuações cujo princípio é capaz de dissolver
e constituir temporariamente indivíduos. Lebrun compreendeu isto claramente ao afirmar
que, para Deleuze: “A presença de diferenciações é perfeitamente conciliável com um
estado que, representativamente falando, é de indiferenciação. È que então se conseguiu
achar um ponto de vista completamente diferente daquele no qual a representação nos
confinava”167.
Pensar um princípio capaz de produzir diferenciações, mas diferenciações que, do
ponto de vista da representação, desarticulam a noção de diferença conceitual: eis algo que
Deleuze compreende como resultado de uma nova maneira de definir o campo do
transcendental. Este é um ponto importante no interior do pensamento deleuzeano. Há um
esforço constante de pensar o transcendental sem a função do sujeito constituinte; o que
para Deleuze significa: um transcendental que não funda o dado a partir da semelhança
estrutural entre sujeito e objeto, que não constrói o campo da experiência a partir da
projeção de um princípio de unidade e ligação extraído da experiência de auto-identidade
do Eu. Deleuze chegará mesmo a afirmar que, em Kant, as sínteses transcendentais eram
decalcadas das sínteses psicológicas; isto a fim de lembrar que haveria uma gênese
psicológica da experiência de auto-identidade. De fato, Deleuze quer abandonar a crença de
que fora da pessoa, do indivíduo, não distinguiremos nada.
Mas, para além deste modo “orgânico” de representação marcado pela aplicação
estrita dos quatro princípios anteriormente mencionados, há ainda um modo da
representação tentar englobar o que lhe nega, englobar o “sentimento” da infinitude. Trata-
se daquilo que Deleuze chama de representação “orgiástica” e que conhecemos
simplesmente por dialética em sua matriz hegeliana.
Por representação orgiástica, Deleuze compreende o conceito enquanto operador de
internalização do que lhe aparece inicialmente como diferença exterior. Daí porque a noção
de limite se modifica: “Ela não designa mais os limites da representação finita, mas ao
contrário a matriz na qual a determinação finita não cessa de desaparecer e de nascer, de se
absorver e se desdobrar na representação orgiástica”168.
De fato, Hegel procura fazer a crítica do pensar representativo. As representações
organizam-se através de um sistema fixo de diferenças e oposições que deve ser
transparente a um Eu que, por sua vez, aparece como unidade sintética de representações,
166
ARISTOTELES, Metafísica, X, 4, linea 26
167
LEBRUN, O filósofo e sua história, p. 559
168
DELEUZE, idem, p. 62
como Eu penso que deve acompanhar todas as minhas representações. Desta forma, o
diverso da experiência deve conformar-se a um sistema fixo de diferenças e oposições e
deve se submeter a forma da intuição do Eu penso. É isto que Hegel tem em vista ao
afirmar que se faz necessário desvencilhar-se do: “Fixo do concreto puro, que é o próprio
Eu em oposição (Gegensatze) ao conteúdo distinto, quanto o fixo das diferenças, que postas
no elemento do puro pensar partilham dessa incondicionalidade do Eu” 169. A falsidade da
representação consiste em ver o representado como propriedade, como aquilo que se
submete à pura forma do Eu. Por isto que Hegel, insiste: hoje, o indivíduo encontra a pura
forma abstrata pronta.
Deleuze insiste que a maneira que Hegel dispõe de criticar a representação consiste
em salvá-la, ou seja, em conservá-la como fundamento a partir do qual o que não se
conforma à representação é posto como negativo. Daí porque a determinação finita (a
representação) não cessa de desaparecer (já que ele se confronta incessantemente com o
que lhe nega) e de nascer (já que ela permaneceria como fundamento dos modos de
orientação do pensamento). È isto que Deleuze tem em mente ao afirmar que a dialética só
pode descobrir o infinito deixando subsistir a determinação finita: “dizendo o infinito da
determinação finita, representando-a não como dissolvida ou desaparecida, mas como
dissolvendo-se e a ponto de desaparecer, ou seja, também como engendrando-se ao
infinito”170.
Deleuze deve pensar principalmente no fato de Hegel ter uma teoria peculiar do
infinito. Podemos dizer que, para Hegel, o infinito não está ligado a determinações
quantitativas. Infinito é aquilo que porta em si mesmo sua própria negação e que, ao invés
de se auto-destruir, conserva-se em uma determinidade. Daí porque Hegel pode afirmar, em
uma frase chave: “A infinitude, ou essa inquietação absoluta do puro mover-se-a-si-mesmo,
faz com que tudo o que é determinado de qualquer modo – por exemplo, como ser – seja
antes o contrário dessa determinidade”171. Ou seja, a infinitude é construída a partir da
experiência da contradição. No entanto, enquanto a contradição é impossibilidade de
constituir um objeto, a infinitude permite a constituição de um objeto da experiência a
partir da afirmação de duas proposições contrárias sobre o mesmo objeto. Isto faz com que
o infinito seja o ato contínuo de ultrapassagem do finito, de um finito que permanece, que
se conserva por precisar ser continuamente ultrapassado. Por isto, ele pode dizer que , em
Hegel, a representação infinita não se livra do princípio de identidade, mesmo que este
princípio da identidade agora seja mobilizado preferencialmente através daquilo que indica
seu limite, como as noções de oposição, antagonismo, contradição e conflito.
Mas para sustentar sua posição, Hegel precisa mostrar como é possível pensar algo
que é, ao mesmo tempo, infinito e determinado. Colocação aparentemente contraditória, já
que tudo o que é determinado é limitado no tempo e no espaço, o que equivaleria pois a
afirmar que podemos pensar algo, ao mesmo tempo, infinito e limitado. A não ser que
mostremos como tudo o que é limitado é sempre obrigado a ultrapassar (Ubergehen) a si
mesmo e que pensar o regime desta ultrapassagem é a peça fundamental de uma reflexão
sobre o infinito. Como se houvesse um impulso interno ao finito que o leva,
necessariamente, a uma forma de auto-ultrapassagem. O que Hegel tematiza ao afirmar:
169
HEGEL, Fenomenologia I, p. 39
170
DELEUZE, idem, p. 63
171
idem, par. 163
“encontra-se no conceito do Dasein alterar-se (sich zu verändern), e a alteração é apenas a
manifestação daquilo que o Dasein é em si”172.
Conhecemos as críticas de Deleuze a este uso hegeliano da noção de contradição.
No fundo, Deleuze afirma que a contradição hegeliana não deve ser realmente levada a
sério já que sua função é simplesmente “resolver a diferença reportando-a a um
fundamento”173. Como se a contradição fosse uma maneira de impedir a disseminação da
diferença como multiplicidade, organizando a diferença através de uma dialética entre
finito e infinito no interior da qual tais termos funcionam como dois pólos que se reportam
um ao outro em seu processo de significação (tal qual se reportam um ao outro a
significação do Um e do Múltiplo, do ser e do não-ser, da noite e do dia). Daí a afirmação
central: “Hegel, como Aristóteles, determina a diferença por oposição dos extremos ou dos
contrários”174, como se toda diferença essencial pudesse ser submetida a relações de
oposição.
No entanto, tal interpretação é dificilmente sustentável. Ela parece desconsiderar
que Hegel constrói a noção de negação determinada (noção central para a organização do
conceito dialético de contradição) exatamente como dispositivo de crítica à idéia de que as
oposições dão conta da estruturação integral das relações. Pois a oposição pode admitir que
só é possível pôr um termo através da pressuposição da realidade do seu oposto, que
aparece aqui como limite de significação. Mas a oposição não pode admitir que a
identidade de um termo é a passagem no seu oposto, que o limite de um termo, por seu seu-
limite, faz parte da extensão do próprio termo.
Admitir isto significaria desarticular a própria noção de identidade em sua força de
distinção entre elementos, o que desarticularia a noção de “finito”. Pois perdida a
capacidade de distinção entre elementos, o que resta da identidade? Certamente, nada
referente a seu significado habitual. Ela deixa de ter a função organizadora que
normalmente esperamos da representação. Por isto, para Hegel, a identidade do conceito
nada tem a ver com a identidade da representação. Pensar o conceito (e isto Deleuze
parecer ter dificuldade em compreender, dificuldade que Schelling já havia demonstrado
em seu tempo, em carta a Hegel175) significa pensar para além da representação. Daí a
dificuldade em aceitar uma afirmação de Deleuze como: “pois a diferença só implica o
negativo e só se deixa levar até a contradição na medida em que continuamos a subordiná-
la ao idêntico”176. Ela cria a ilusão de sabermos o que falamos ao denunciar a “subordinação
ao idêntico”. Mas não seria esta a verdadeira questão de Hegel: levaremos a identidade até
sua auto-exaustão, até este ponto onde não temos mais certeza do que estamos falando,
onde continuar a falar seu nome será a maneira mais astuta de trair suas ilusões iniciais?
A vantagem da perspectiva hegeliana talvez se encontre no fato dela fornecer um
princípio explanatório para o seguinte problema que fica em aberto no pensamento
deleuzeano: sendo a multiplicidade e a diferença aquilo que permite a intelecção da
univocidade do ser177, então como explicar a recorrência perpétua das ilusões do finito e da
172
Idem
173
Idem, p. 64
174
Idem, p. 64
175
“Reconheço não apreender até aqui o sentido da oposição que você estabelece entre conceito e
representação”(Carta de Schelling a Hegel, 02 de novembro de 1807)
176
DELEUZE, idem, p. 1
177
Isto se admitirmos a leitura de Alain Badiou, para quem: “o problema fundamental de Deleuze não é
certamente liberar o múltiplo, é dobrar o pensamento a um conceito renovado do Uno. O que deve ser o Uno
para que o múltiplo nele seja integralmente pensável como produção de simulacros?” (BADIOU, Alain;
identidade? Tais “ilusões” devem ser ou momentos da univocidade ou entidades com
dignidade ontológica próprias (pois se elas fossem entidades simplesmente “inexistentes”,
isto produziria a situação cômica de ter de explicar porque montamos verdadeiras máquinas
filosóficas de guerra contra aquilo que, no final das contas, do ponto de vista ontológico, é
inexistente). Se elas forem entidades com dignidade ontológica próprias, então a
univocidade do ser estará quebrada e a multiplicidade se mostrará mais frágil do que a
identidade, já que a identidade seria uma “ilusão” com a força de exilar a experiência da
multiplicidade, isolá-la em territórios e momentos regionais.
Por isto, a identidade deve ser um momento da diferença, o finito deve ser um
momento da estratégia de atualização do infinito. O fracasso do finito em determinar-se
deve ser momento de atualização de um infinito que, inicialmente, deve aparecer como
força de indeterminação, para só depois poder aparecer como força produtiva através da
resignificação dos limites do finito178. Não parece que Hegel tenha dito algo diferente disto
ao insistir na centralidade da contradição como modo de pensar os regimes de determinação
do finito.
181
NIETZSCHE, A gaia ciência, par. 340
182
DELEUZE, idem, p. 80
183
idem, p. 87
pelo pintor”184. Se Deus é o artífice da cama real (ideal), o marceneiro o artífice da cópia,
como chamar a aquele que está “três pontos afastado da realidade” : um imitador da
aparência, um produtor de simulacros.
184
PLATÂO, A república, 596e
Introdução à experiência intelectual de Gilles Deleuze
Aula 9: Diferença e Repetição (terceira parte)
“A repetição não muda nada no objeto que repete, mas muda algo no espírito que a
contempla”. Deleuze parte desta frase de Hume para começar o segundo capítulo de
Diferença e repetição, “A repetição por ela mesma”. Esta maneira de vincular o fenômeno
da repetição a uma “transformação do espírito” é maneira de insistir que um pensamento
renovado da repetição nos abre para a redefinição da estrutura das individualidades. Ou
seja, neste capítulo, a discussão a respeito da repetição se coloca mais claramente no
interior do estabelecimento das estratégias de crítica do sujeito moderno e às suas ilusões de
identidade. Mostrar como a repetição é o operador de transformação do sujeito, operador de
liberação do sujeito das amarras da identidade e de abertura para a experiência da diferença
é o que Deleuze procura.
Mas, para tanto, o capítulo parte de um pressuposto kantiano: a crença de que a
determinação da minha existência só pode se fazer em conformidade com a forma do
sentido interno, ou seja, com o tempo. Desta forma, uma recompreensão da estrutura da
subjetividade exige uma reconstrução da forma do tempo. Para Deleuze não há maneira
mais adequada de produzir tal reconstrução do que repensar os modos de síntese subjetiva
do tempo. Ele quer, desta forma, nos mostrar como temos três modelos de síntese do tempo
que dão forma à individualidade. No entanto, em todos estes três modelos não encontramos
um modo de síntese derivado do Eu como princípio ativo de produção de unidade. O que
encontramos são processos que precisam, cada vez menos, de recorrer à forma do Eu. O
primeiro deles é o hábito, o segundo a memória e o terceiro a repetição: três modos de
síntese do tempo encadeados por Deleuze em uma certa sucessão.
Hábito e presente
A base de sua descrição sobre o hábito como síntese do tempo vem de David Hume.
Ao fazer sua afirmação de que a repetição não muda nada no objeto que repete, mas muda
algo no espírito que a contempla, Hume pensa nesta modificação de expectativa que ocorre
quando vi muitas vezes uma sequência de acontecimentos do tipo AB. Assim que A aparece
novamente B associa-se ao meu espírito. Hume não compreende tal associação que se
imprime na imaginação como um ato da memória. Para ele, trata-se de uma síntese passiva
da imaginação, pois: “ela não é feita pelo espírito, mas se faz no espírito que contempla,
precedendo toda memória e toda reflexão” 185. A memória produziria uma síntese ativa e
reflexiva que individualiza os casos repetidos contextualizando-os no tempo descontínuo.
Hume, como sabemos, compreende tais sínteses passivas a partir da estrutura do
hábito. Lembremos da afirmação de Hume sobre o hábito: "Onde quer que a repetição de
qualquer ato ou operação particular manifeste uma propensão para renovar o mesmo ato ou
operação, sem ser impulsionado por raciocínio ou processo algum do entendimento,
dizemos sempre que essa propensão é o efeito do costume" 186. Vemos como o hábito,
enquanto princípio de repetição, é uma forma de síntese do tempo, já que ele é modo de
projeção de um futuro a partir de modos de síntese do passado e do presente ou antes,
maneira de organizar o tempo: “como um presente perpétuo a respeito do qual devemos e
185
P. 97
186
HUME, idem, p. 47
podemos nos adaptar”187. Esta ideia do hábito como construção da experiência do presente
é fundamental na leitura de Deleuze.
Por outro lado, Hume insiste que a repetição de atos e operações não é, quando
submetida ao hábito, impulsionada pelo raciocínio ou por processos do entendimento.
Partindo deste ponto, Deleuze pode afirmar que Eu sou muito mais um paciente do que
agente das sínteses do tempo feitas pelo hábito. Eu sou muito mais alguém que contempla a
formação silenciosa do hábito, do que alguém que age para produzir unidades. No fundo,
esta unidade do hábito permite à subjetividade liberar-se de um determinismo estrito para
encontrar uma certa regularidade. Mas, acima de tudo, o hábito não é a função de um Eu,
mas algo que permite a produção de um Eu. Não há hábito porque há um Eu. Mais correto
seria dizer: há um Eu porque o hábito aparece como “princípio ativo que fixa e desdobra as
sínteses passivas da associação”188. Isto talvez nos explique porque Deleuze poderá dizer
que, através de Hume, podemos aprender que: “nós somos hábitos, nada mais que hábitos,
o hábito de dizer Eu ... Talvez não exista resposta mais surpreendente para o problema do
Eu”189.
Partindo disto, Deleuze lembra que Hume nos permite quebrar uma certa “ilusão da
psicologia” que consistira em transformar a atividade em uma espécie de fetiche que
precisaria estar presente em toda função psicológica. Não é agindo que formamos hábitos,
mas contemplando. Em sua essência, o hábito é uma contração do tempo que permite a
fusão na repetição no espirito que contempla.
Desta forma, ao colocar o hábito na base da estruturação das sínteses do Eu, ao
seguir a afirmação de Condillac, para quem, o hábito é o fundamento de todos os outros
fenômenos psíquicos, Deleuze procura retirar tais sínteses do fundamento de uma síntese
geral formada pela unidade do Eu. Por isto, ele poderá dizer: “sob o Eu que age, há
pequenos Eus que contemplam e que tornam possíveis a ação é o sujeito ativo. Nós só
dizemos “Eu” através dessas milhares de testemunhas que contemplam em nós; e sempre é
um terceiro que diz eu”.190 Este Eu passivo que se encontra na base de todo fenômeno
psíquico, este “sujeito larvar” não se define simplesmente pela receptividade, ou seja, pela
capacidade de ter sensações, mas por contemplações que contraem o tempo e constituem o
organismo anteriormente à constituição das sensações.
O cogito fendido
No entanto, antes de passar à tal temática, Deleuze introduz uma espécie de epílogo
em seu capítulo, isto a fim de falar da diferença entre o cogito cartesiano e o cogito
kantiano. Este epílogo é fundamental pois visa localizar o lugar no qual um pensamento
renovado do tempo se vincula à crítica das ilusões identitárias do sujeito moderno. Kant
lembra que o “eu penso” é um modo de determinação de uma existência indeterminada
(“eu sou”). Eu sou uma coisa que pensa. No entanto, este pensamento não pode determinar
a existência em sua qualificação. Que algo seja pensável, isto não me fornecer a
determinação do que há a pensar. Por isto, Kant lembra que a forma através da qual a
existência indeterminada é determinável pelo “eu penso” é a pura forma do tempo. Minha
existência indeterminada só pode ser determinada como existência de um sujeito fenomenal
no tempo. O tempo é forma que me permite representar-me como objeto que aparece à meu
sentido interno.
No entanto, esta pura forma do tempo não é atributo de uma consciência empírica.
Minha existência como sujeito fenomenal não se confunde com a pura forma vazia do
tempo que me permite me pensar. Para eu pensar esta pura forma vazia do tempo, tenho que
me confrontar com algo que, por sua vez, não se submete às formas gerais da determinação.
Por exemplo, a consciência empírica só é capaz de pensar o que pode ser intuído no tempo
e no espaço. Intuição no tempo que obedece a leis de movimento, mudança e
simultaneidade. Mas a forma do tempo não muda e não se movimento. Apreendê-la implica
intuir o que não é representável. O que nos explica porque Deleuze afirma, sobre a forma
do tempo: “A formalidade extrema está aí apenas para um informal excessivo (o
195
Idem, p. 115
196
DELEUZE, Proust e os signos, p. 76
Unförmliche de Hölderlin). Foi assim que o fundamento foi ultrapassado em direção a um
sem-fundo, universal afundamento (effondement) que gira em torno de si mesmo e que só
faz retornar o futuro”197.
Descartes só resolveria este problema através de uma afirmação instantaneista do
cogito (“quanto tempo dura a certeza do cogito? A certeza do instante de minha
enunciação”). Tal instantaneismo só pode ser superado através do recurso a Deus. Assim, a
unidade suposta do Eu no tempo só tem como garantia a própria unidade de Deus. Por isto,
Deleuze pode afirmar: “Deus continuar a viver enquanto o Eu dispor da subsistência, da
simplicidade e da identidade que exprimem sua semelhança com Deus”198. Neste sentido, o
questionamento transcendental, se levado ao extremo, permite a quebra da estrutura
teológica que sustenta os atributos do Eu moderno.
É desta forma que Deleuze compreende a posição do Eu transcendental. Para ele, o
corte entre o Eu transcendental e o Eu empírico é de tal ordem que, do ponto de vista do Eu
empírico, o Eu transcendental é um outro. Pois não há continuidade entre os modos de
determinação do Eu empírico e a apreensão da forma pura e vazia do tempo. Deleuze chega
a afirmar que tal pura forma produz uma fenda, um Eu fendido (Je fêlé). “De um lado a
outro, o eu é como que atravessado por uma fenda: ele é fendido pela forma pura e vazia do
tempo”199. Desta forma, Deleuze pode afirmar que a descoberta do transcendental implica
clivagem insuperável do Eu. “Assim, o je, o eu transcendental, é distinto do moi, do eu
fenomenal, porque o tempo os distingue no interior do sujeito”200.
Na verdade, esta é uma maneira deleuziana de recuperar uma temática geral do
estruturalismo. Ela consiste em aproximar transcendental e inconsciente. Tal colocação vem
do fato da estrutura não ser dada de maneira imanente no campo fenomenal. Ao contrário,
ela determina de maneira transcendente este campo e seus atores, que agem de forma
inconsciente. Ao falar, os sujeitos não têm consciência da estrutura fonemática que
determina seus usos da língua, da mesma maneira que, ao operar escolhas matrimoniais, os
sujeitos não têm consciência dos sistemas de parentesco que determinam tais escolhas. Na
verdade, eles reificam um objeto cujo valor viria simplesmente do lugar por ele ocupado no
interior de uma estrutura articulada. Ou seja, eles acreditam que o valor vem do objeto,
enquanto ele vem da estrutura. Tudo se passa assim como se as relações com o outro, como
se as ações ordinárias escondessem as mediações das estruturas sócio-lingüísticas que
determinam a conduta e os processos de produção de sentido.
Esta é uma temática que encontramos também no Foucault de As palavras e as
coisas. Ao examinar as características fundamentais da episteme moderna, Foucault dirá
que, para os modernos, trabalho, vida e linguagem são como transcendentais que
constituem a coerência a priori das multiplicidades empíricas nos campos da economia, da
biologia e da filologia. No entanto, eles também representam um limite à representação de
objetos, um limite à consciência cognitiva. Pois haverá aqui uma duplicação. Por exemplo,
a linguagem em seu funcionamento é o que se dá a conhecer no interior de uma
empiricidade como a filologia. Mas ela será também o que determinará previamente o
modo de conhecimento dos sujeitos que procuram conhecer a linguagem. O trabalho em
seu processo de produção do valor é o que se dá a conhecer na economia política. Mas é o
trabalho que determinará previamente as formas da práxis dos sujeitos que procuram
197
Idem, p. 123
198
Idem, p. 117
199
Idem, p. 117
200
MACHADO, Roberto. Deleuze, a arte e a filosofia, p. 112
desvelar a origem do valor. Há um movimento duplo no interior do qual os objetos a
conhecer são determinados pelos sujeitos e os sujeitos são determinados pelos objetos a
conhecer. Assim, reencontramos este vínculo entre transcendental e inconsciente, ou seja,
procurar compreender as condições de um pensamento transcendental para além dos limites
da filosofia da consciência201.
Inconsciente e repetição
Isto talvez nos explique porque Deleuze precisa caminhar em direção ao conceito
freudiano de inconsciente para dar conta de sua discussão sobre a diferença. No entanto, ele
pensa o inconsciente como uma dimensão temporal que quebra a temporalidade própria à
consciência. Para tanto, são as discussões freudianas sobre a compulsão de repetição que
interessam Deleuze, assim como a estrutura recorrente da fantasia. É neste ponto que
encontramos a guinada em direção às estruturas da consciência desejante.
Deleuze começa lembrando como o prazer baseia-se em uma forma de repetição, já
que ele pressupõe a ligação e o investimento de situações distintas a partir de um principio
de repetição de situações de satisfação pulsional. Tenho prazer, dirá Freud, quando
reencontro situações que se assemelham a situações prazeirosas que tive. A própria noção
de fantasia aparece na teoria psicanalítica para explicar como submeto situações distintas à
repetição de experiência primeiras de satisfação. É através da fantasia que o desejo opera
sínteses do tempo.
No entanto, Deleuze insiste que há dois modos de síntese própria ao desejo: uma
ativa e outra passiva. A síntese ativa constitui objetos reais, a síntese passiva constitui
objetos virtuais. Ao falar de “objetos reais” Deleuze pensa na ideia freudiana de que o
sujeito aprende a distinguir uma percepção de uma alucinação através do reconhecimento
de uma prova de realidade. Esta prova de realidade permite ao Eu se orientar na ação
realizando, assim, exigências de auto-conservação e de realização ativa de interesses.
No entanto, há um modelo de constituição de objetos que devem ser chamados de
“virtuais” por nos colocar diante de objetos que nunca estão completamente determinados
no presente, objetos que “faltam à sua própria identidade”, que “faltam a si mesmo”. Tais
objetos são aqueles que animam nossas fantasias. Para Deleuze, eles são compostos de
“passado puro” porque não são a repetição de um objeto originário que esteve em algum
momento no interior da experiência vivida da consciência.
Lembremos a este respeito como, para Freud, fantasias são processos ligados à
filogênese da espécie. O fato de as fantasias se repetirem com os mesmos conteúdos em
uma multiplicidade de indivíduos, ou seja, o fato de as fantasias não serem a dimensão da
singularidade insubstituível, mas da repetição constante, do “esquema”, demonstra, para
Freud, que elas são marcas de acontecimentos transmitidos através de gerações. Por isso,
podemos mesmo dizer que não existem fantasias individuais ou, se quisermos, não existem
indivíduos no interior das fantasias. Há apenas “fantasias sociais”, processos
transindividuais e supratemporais que insistem no interior de indivíduos. Por meio das
fantasias, o sujeito se confronta com camadas temporais que não se esgotam na dimensão
201
O que não poderia ser diferente, já que para Foucault se trata: “de refaire une philosophie transcendantale
en inscrivant le transcendantal ailleurs que dans la subjectivité, c’est-à-dire de dissocier le problème des
conditions du savoir et de l’expérience du problème des formes a priori de la synthèse subjective”.
( GUCHET, Xavier; Pensée technique et philosophie transcendantale, Archives de Philosophie 2003/1,
Volume 66, pp. 119-144).
da simples experiência individual. Fantasias são uma dimensão fundamental da experiência
da historicidade, pois elas são os espaços de atualização das promessas de felicidade que
mobilizaram aqueles que me antecederam, que mobilizaram a história dos desejos
desejados. Por isso, fantasias são camadas temporais que sempre serão relativamente
opacas por nos colocar diante do problema referente à significação do desejo de outros que
nos precederam, e que nos constituíram153. Como dirá Deleuze, “e mesmo nosso amor de
criança pela mãe repete outros amores de adultos diante de outras mulheres, um pouco
como o herói de Em busca do tempo perdido reencena, com sua mãe, a paixão de Swann
por Odette”
Isto permite a Deleuze afirmar a existência de um princípio de repetição como
“diferença sem conceito que escapa à diferença conceitual indefinidamente continuada”
(1969, p.23). Lembremos como Deleuze recusa a idéia de que “repete-se tanto mais seu
passado quanto menos dele se lembra, quanto menos se tem consciência de dele se lembrar
— lembrem-se, elaborem a lembrança, para não repetir” (1969, p.25). Todo o desafio consiste em
compreender que, para além da repetição de objetos e situações recalcadas que não
encontram lugar no universo simbólico dos sujeitos, há uma “paixão da repetição” (DELEUZE,2000,
p.128) que não pode ser eliminada através da atualização dos objetos que estariam a ela
submetidos. O princípio de repetição está para além dos objetos repetidos, ou seja, a nudez
da repetição é anterior à determinação do repetido. Como bem lembra Bento Prado:
“Com princípio, ele transcende os estímulos ou as impressões e, como instância diferente
delas, empresta-lhes, retrospectivamente, sua coesão” (PRADO JR., 2000, p.44). Princípio
transcendente de repe-tição (puro habitus) que não se submete mais à síntese ativa
comandada pelas apropriações reflexivas do conceito.
Todo o esforço de Deleuze consistirá, pois, em insistir que esta paixão da repetição
como síntese passiva é exatamente aquilo que Freud trouxe sob o nome de ‘pulsão de
morte’, uma vez que “ o tempo vazio enfurecido, com sua ordem formal e estática rigorosa,
seu conjunto esmagador, sua série irreversível, é exatamente o instinto de morte” (DELEUZE,
1969, p.147). É a partir deste ponto que podemos compreender a afirmação fundamental de
Deleuze: “O instinto de morte é descoberto não em sua relação com as tendências
destrutivas, não em sua relação com a agressividade, mas em função de uma consideração
direta dos fenômenos de repetição. De maneira bizarra, o instinto de morte vale como
princípio positivo originário para a repetição, ai está seu domínio e sentido. Ele
desempenha o papel de um princípio transcendental, enquanto que o princípio do prazer é
apenas psicológico” (DELEUZE, 2000,p.27).
Mas é claro que, neste caso, a morte deve ser compreendida não mais como este
retorno ao inorgânico, não mais a partir do modelo objetivo de uma matéria indiferente
inanimada. A morte: “não responde a um estado da matéria, ela corresponde ao contrário a
uma pura forma que abjurou toda matéria — a forma vazia do tempo” (DELEUZE,1969, p.147). E aqui
chegamos em um ponto-chave. A confrontação com esta pura forma vazia do tempo não se dá
através da apropriação reflexiva de uma c o n s c i ê n c i a - d e - s i que
f u n d a m e n t a s e u c a m p o a p a r t i r d e o p e r a ç õ e s e rememoração.
Confrontar-se com a pura forma vazia do tempo que se apresenta através da repetição
elevada a princípio transcendente — e isto nós sabemos ao menos desde Hegel — só pode
significar uma dissolução do eu como operador de sínteses ativas. Daí porque a
confrontação com a paixão de repetição só pode ser pensada como morte simbólica através
da qual eu me deparo com “um estado de diferenças livres que não são mais submetidas à
forma que lhes era dada por um Eu, que se desenvolve em uma figura que exclui minha própria
coerência ao mesmo tempo em que a coerência de uma identidade qualquer. Há sempre um
‘morre-se’ mais profundo do que um ‘eu morro’” (DELEUZE, 1969, p.148).
Introdução à experiência intelectual de Gilles Deleuze
Aula 10: Diferença e Repetição (quarta parte)
Os postulados em filosofia não são proposições a respeito das quais o filósofo nos
pede que aceitemos, mais ao contrário temas de proposições que continuam
implícitas e que são ouvidas de maneira pré-filosófica. Neste sentido, o pensamento
conceitual filosófico tem por pressuposto implícito uma Imagem do pensamento,
pré-filosófica e natural, tomada do elemento puro do senso comum203.
No fundo, Deleuze quer insistir que o bom senso e o senso comum são imagens
ortodoxas do pensamento e, neste sentido, carregadas de implicações metafísicas e morais.
Mas não se trataria de procurar produzir uma outra imagem para além desta partilhada pelo
filosofia. Pois a filosofia encontraria seu verdadeiro começo:
não em um acordo com a imagem pré-filosófica, mas em uma luta rigorsa contra a
imagem, denunciada como não-filosófica. Por isto mesmo, ela encontraria sua
repetição autëncia em um pensamento sem imagem, seja ao preço das maiores
destruições, desmoralizações e de um elemento da filosofia que só teria como
202
DELEUZE, Deux regimes des fous, p. 283
203
DELEUZE, Différence et répétition, p. 172
aliado o paradoxo e que deveria renunciar tanto ao elemento da representação
quanto à forma do senso comum. Como se o pensamento só pudesse começar a
pensar, e sempre recomeçar, liberado das imagens e postulados204..
Imagem
Deleuze fornece, então, oito postulados fundamentais da imagem do pensamento que guia,
de maneira hegemônica, a história da filosofia. São eles:
O princípio da cogitatio natura universalis, o ideal do senso comum, o modelo da
recognição, o elemento da representação, o caráter “negativo” do erro, o privilégio da
designação, o modalidade das soluções e o resultado do saber.
Antes de entrarmos na discussão de tais postulados, sublinhemos como a própria
escolha do termo “imagem” neste contexto e a elevação da filosofia como “crítica radical
da Imagem e dos postulados que ela implica” é prenhe de conseqüências. Sabemos como a
filosofia moderna é marcada por uma certa metáfora ocular do conhecimento. Heidegger
foi quem melhor desenvolveu esta temática e, sem dúvida, é ele que anima Deleuze em sua
crítica da imagem do pensamento.
Lembremos de alguns elementos maiores da crítica heideggeriana. Em uma
passagem célebre, Heidegger insiste que a estrutura da reflexão que nasce com o princípio
moderno de subjetividade, este que aparece com o cogito cartesiano, é fundamentalmente
posicional. Refletir é por diante de si no interior da representação, como se colocássemos
algo diante de um “olho da mente”.
Seguindo os rastros do texto cartesiano, ele nos lembra que, em várias passagens,
Descartes usa cogitare e percipere como termos correlatos. Percipere raramente é utilizado
para designar processos sensoriais, como visão e audição (nestes casos, Descartes prefere
utilizar o termo sentire). Ele designa, normalmente, a apreensão puramente mental do
intelecto, já que, em Descartes, é a inspeção intelectual que apreende os objetos, e não as
sensações. Assim, por exemplo, na meditação terceira, ao falar daquilo que aparece ao
pensamento de maneira clara e distinta, Descartes afirma: “todas as vezes que volto para as
coisas que penso conceber mui claramente sou de tal modo persuadido delas ...” 205. Mas, de
fato, “penso conceber” é a tradução não muito fiel de percipere206. Heidegger é sensível a
este uso peculiar de percipere por Descartes pois a reconstrução etimológica do termo nos
mostra que ele significa: ‘tomar posse de algo, apoderar-se (bemächtigen) de uma coisa, e
aqui no sentido de dispor-para-si (Sich-zu-stellen) [lembremos que Sicherstellen é
confiscar] na maneira de um dispor-diante-de-si (Vor-sich-stellen), de um re-presentar (Vor-
stellen)”207. Desta forma, a compreensão de cogitare por Vor-stellen (re-presentar/por diante
de si) estaria mais próxima do verdadeiro sentido deste fundamento que Descarte traz como
terra firma da filosofia moderna.
Tais aproximações permitem a Heidegger interpretar o cogitare cartesiano como
uma representação que compreende o ente como aquilo que pode ser essencialmente
disposto no espaço da representação. Assim, cogitare não seria apenas um processo geral de
representação, mas seria um ato de determinação da essência do todo ente como aquilo que
acede a representação. Isto indicaria como todo ato de pensar é um ato de dominar através
204
Idem, p. 173
205
DESCARTES, Meditações, p. 108
206
Conforme o texto em latin: “Quoties vero ad ipsas res, que valde clare percipere arbitror ...”
207
HEIDEGGER, Nietzsche II
da submissão da coisa à representação. O diagnóstico de Heidegger seria claro: “algo só é
para o homem na medida em que é estabelecido e assegurado como aquilo que ele pode por
si mesmo, na ambiência (Umkreis) de seu dispor, a todo instante e sem equívoco ou dúvida,
reinar como mestre”208. Pois a compreensão do pensamento como capacidade de articular
representações, como competência representacional impõe um modo específico de
manifestação dos entes ao pensamento. O ente será, a partir de agora, aquilo que aparece,
para um sujeito cognoscente, como objeto adequado de uma representação categorizada em
coordenadas espaço-temporais extremamente precisas. Neste sentido: “o homem se coloca
si mesmo como a cena (Szene) sobre a qual o ente deve a partir de agora se apresentar (vor-
stellen, präsetieren)”209. Daí porque Heidegger pode afirmar que o cogito traz uma nova
maneira da essência da verdade.
Embora Deleuze não cite Heidegger, é esta relação entre sujeito como fundamento e
modo de constituição de objetos que ele tem em vista ao afirmar que o verdadeiro problema
da imagem do pensamento está no seu caráter projetivo, nesta redução do pensar a uma
recognição, a uma projeção da estrutura unificadora do Eu no objeto da experiência. No
entanto, contrariamente a Heidegger, não é o cogito cartesiano o alvo maior de Deleuze,
mas o cogito kantiano. Este é um ponto de suma importância por nos permitir avançar na
determinação do “empirismo transcendental” do filósofo francês.
Mas antes de entrarmos em tal discussão, notemos como Deleuze parte insistindo
contrariamente ao postulado da cogitatio natura universalis, que, se há algo que todo
mundo sabe, é como raramente se pensa. Só se pensa sob estado de choque. Maneira
deleuzeana de afirmar que não há pensamento quando seguimos o ideal do senso comum
como gramática naturalizada das formas de pensar.
Nesta orientação ideal do pensar, a recognição aparece como operação fundamental
do pensamento. Deleuze define a recognição como: “o exercício concordante de todas as
faculdades sobre um objeto supostamente o mesmo”. Ou seja, a recognicao ocorre quando
todas as faculdades (sensibilidade, imaginação, entendimento) se reportam à forma da
identidade de um objeto refletindo, com isto, a identidade do sujeito. Em Kant, assim como
em Descartes, é a identidade do Eu no cogito que funda a possibilidade de concordância de
todas as faculdades.
Deleuze não quer negar que boa parte de nossas operações do pensamento são
recogniçòes. São elas que nos guiam nas operações ordinárias de reconhecimento de
objetos, identificações de pessoas e situações. No entanto, por que acreditar que não
devamos extrapolar fatos vinculados à “banalidade ordinária da pessoa”? É tal argumento
que, à sua maneira, Deleuze mobiliza contra Kant.
Deleuze afirma que Kant encontrou o “prodigioso domínio do transcendental”
enquanto campo de reflexão sobre as condições de toda experiência possível. No entanto,
ele teria decalcado as estruturas transcendentais de atos empíricos de uma consciência
psicológica, e com isto perdido a possibilidade de pensar o transcendental como campo
impessoal, não colonizado pela imagem de um Eu transcendental. Para defender sua
afirmação, Deleuze baseia-se principalmente na primeira edição da Crítica da razão pura.
Lá, Kant afirma que todos os fenômenos possíveis pertencem, como representações, à
consciência-de-si. Na constituição das representações, a consciência opera através de três
modalidades de sínteses: a síntese da apreensão na imaginação, da reprodução na
imaginação e da recognicao no conceito. Por sua vez, a consciência-de-si é inseparável da
208
idem
209
HEIDEGGER, Holzwege, p. 119
identidade numérica. Uma identidade que deve intervir na síntese de todo fenômeno,
fornecendo o princípio de ligação que unifica o diverso da intuição em representações de
objeto.Daí nasceria a afinidade transcendental entre sujeito e objeto.Mas em que Kant
fundamenta a relação necessário entre consciência-de-si e identidade numérica? Deleuze
insiste que tal fundamentação deriva de fenômenos empíricos como a impossibilidade do eu
ser multicolor e diverso para que todas as representações serem “minhas”, a necessidade de
distinguir sonho e vigília, ou seja, experiências empíricas.
Por outro lado, Deleuze afirma que esta dependência do Eu na determinação do
fenômeno é prova do vínculo entre filosofia transcendental e metafísica:
210
DELEUZE, Logique du sens, p. 129
211
DELEUZE, Proust et les signes, p. 117
212
Prado Jr, idem: 247.
213
KANT, Crítica da faculdade de julgar, par. 25
Mas para dar consistência à defesa de um pensamento não dependente mais da
aceitação tácita dos pressupostos naturalizados pela linguagem ordinária, Deleuze precisa
desenvolver uma teoria renovada do sentido.
A Idéia e o sentido
217
DELEUZE, Logique du sens, p. 9
218
idem, p. 30
219
FITZGERAKD, The crack up
220
DELEUZE, Logique du sens, p. 188
221
DELEUZE, Logique du sens, p. 68
permanente do Uno”222. Isto explica porque Deleuze dirá que o verdadeiro problema
próprio ao seu programa filosófico consiste em: “saber como o indivíduo poderia
ultrapassar sua forma e seu vínculo sintático com um mundo para alcançar a universal
comunicação dos acontecimentos”223.
Vemos assim, uma junção inusitada entre ontologia e teoria da linguagem. Deleuze
pode dizer que a linguagem produz significação a todo momento em que ela é usada para
fins de comunicação, mas ela produz sentido apenas em uma pulsação rarefeita. Pois o
sentido se manifesta exatamente nestes momentos em que a linguagem parece atravessada
por algo provoca um curto-circuito em suas expectativas de comunicação próprias ao senso
comum. Quando ela nos leva a este terreno onde o sentido é não-sentido não podem mais
tecer relações análogas às distinções entre o verdadeiro e o falso. O que não significa
generalização da dúvida e da indeterminação (como se tratasse de um signo de alguma
forma de ceticismo moderno), mas, na verdade: “confrontar a imagem clássica do
pensamento a uma outra imagem, esta que sugere um renascimento da ontologia”224.
Em torno do estruturalismo
Mas se o Ser é acontecimento uno que se manifesta na dispersão das singularidades que não
tecem entre si relações de semelhança e identidade, se ele é o que se deixa pensar como
Idéia em seu caráter problemático e paradoxal, então como pensar a síntese própria a toda
operação do pensar? Neste ponto, Deleuze introduz a noção fundamental de “síntese
disjuntiva”.
Para compreendê-la talvez a melhor coisa a fazer é dar um passo atrás a fim de
entender melhor uma das operações mais audaciosas de um livro que não é econômico em
movimentos desta natureza. Ao falar do caráter paradoxal da Idéia da razão, Deleuze afirma
que as Ideais são multiplicidades, ou seja: “uma organização própria ao múltiplo enquanto
tal que não tem necessidade alguma da unidade para formar um sistema” 225. Ou seja,
mesmo sendo formada por paradoxos, a Idéia é um princípio de organização, de
diferenciação capaz de formar um sistema sem recorrer à subordinação entre partes,
unidade hierárquica etc. O que não deve nos surpreender já que vimos que: “A presença de
diferenciações é perfeitamente conciliável com um estado que, representativamente
falando, é de indiferenciação. É que então se conseguiu achar um ponto de vista
completamente diferente daquele no qual a representação nos confinava” 226. Para dar conta
deste princípio completamente diferente de organização e diferenciação, Deleuze apela à
noção de estrutura vinda diretamente do estruturalismo, já que, para ele: “toda estrutura é
uma multiplicidade”227..
Grosso modo, podemos dizer que o estruturalismo foi uma tentativa singular de
procurar redefinir por completo o parâmetro de racionalidade e os métodos das chamadas
ciências humanas. Tentativa com conseqüências filosóficas absolutamente evidentes. Tal
redefinição partiu da defesa da lingüística como “ciência ideal” que deveria guiar a
reconfiguração do campo das ciências humanas. Tal recompreensão do objeto das ciências
222
BADIOU, Deleuze: o clamor do ser, p. 81
223
DELEUZE, Logique du sens, p. 209
224
DELEUZE, Différence et répétiton, p. 253
225
idem, p.; 236
226
LEBRUN, O filósofo e sua história, p. 559
227
DELEUZE, L´île déserte, p. 247
humanas implicava, necessariamente em uma teoria da sociedade que transformava a
linguagem no fato social central, já que todos os fatos sociais : trocas matrimoniais,
processos de determinação de valor de mercadorias, articulação do ordenamento jurídico,
seriam todos estruturados como uma linguagem.
Este primado da lingüística implicava em um duplo efeito. Primeiro, tratava-se de
uma questão de método. A lingüística estrutural inspirada por Saussure, e implementada por
nomes como Jakobson (sem esquecermos de todo o Círculo lingüístico de Praga:
Troubetzkoy, Vachek entre outros), Greimas e Hjelmslev havia realizado um amplo
processo de formalização de seu objeto, o fato lingüístico, através da compreensão da
linguagem como sistema diferencial-opositivo de unidades elementares (fonemas). Não se
tratava de uma matematização no sentido próprio àquela implementada no campo das
ciências físicas, ou seja, redução dos objetos a uma unidade comum de medida que permite
a implementação de processos de quantificação e comparação. Tratava-se de uma
formalização estrutural, ou seja, sistematização de “elementos que se especificam
reciprocamente em relações”228 e que não tem nenhuma realidade intrínseca para além deste
campo de relações. Lembremos, por exemplo, da relação estabelecida por Saussure entre a
linguagem e o jogo de xadrez. Tratava-se de demonstrar como o valor de cada elemento era
determinado através do estabelecimento de um conjunto de regras e de sistemas de
permutação : “O valor respectivo das peças depende da sua posição no tabuleiro, do mesmo
modo que na língua cada termo tem seu valor pela oposição aos outros termos” 229. Fato que
levava Saussure a afirmar, de maneira canônica, que, na ciência da linguagem: “os objetos
que ela têm diante dela são desprovidos de realidade em si, ou a parte dos outros objetos a
considerar. Eles não tem absolutamente nenhum substratum de existência fora de suas
diferenças ou das diferenças de toda forma que o espírito encontra um meio de atribuir à
diferença fundamental”230.
Por outro lado, a estrutura não é dada de maneira imanente no campo fenomenal. Ao
contrário, ela determina de maneira transcendente este campo e seus atores, que agem de
maneira inconsciente. Ao falar, os sujeito não têm consciência da estrutura fonemática que
determina seus usos da língua, da mesma maneira que, ao operar escolhas matrimoniais, os
sujeitos não têm consciência dos sistemas de parentesco que determinam tais escolhas. Este
caráter inconsciente da estrutura será um dado fundamental para a objetividade do
pensamento estruturalista, assim como para o seu anti-humanismo. Para um pensamento
estruturalista estrito os sujeito não falam, eles são falados pela linguagem. De onde se segue
a afirmação clássica de Lévi-Strauss: “Não pretendemos mostrar como os homens pensam
nos mitos, mas como os mitos se pensam nos homens, e à sua revelia. E. como sugerimos,
talvez convenha ir ainda mais longe, abstraindo todo sujeito para considerar que, de um
certo modo, os mitos se pensam entre si”231. Para Deleuze, este caráter inconsciente da
estrutura não vem apenas da posição de exterioridade na relação entre aquilo que é
determinado e aquilo que determina, mas vem também da impossibilidade de pensar a
estrutura através dos modos de organização que encontra seu fundamento no Eu, já que a
estrutura é sobredeterminada.
Mas como Deleuze compreende a estrutura própria ao estruturalismo. A primeira
característica maior é sua recusa em definir a estrutura como um sistema de oposições. Na
228
DELEUZE, Em que se pode reconhecer o estruturalismo?, p. 280
229
SAUSSURE, Curso de lingüística geral, p. 104
230
idem, Essais de linguistique générale, p. 65
231
LÉVI-STRAUSS, o cru e co cozido, p. 31
verdade, o estruturalismo teria trazido uma noção mais complexa de estrutura, já que toda
estrutura seria constituída de ao menos duas séries divergentes: “A determinação de uma
estrutura não se faz apenas através da escolha de elementos simbólicos de base e de
relações diferenciais nas quais eles entram; nem apenas através da repartição de pontos
singulares que lhes correspondem; mas pela constituição de ao menos uma segunda série
que entretém relações complexas com a primeira” 232. Deleuze insiste neste ponto para
poder afirmar que o sentido não é resultado de uma relação de oposição entre elementos de
uma série, mas o resultado de uma relação complexa entre duas séries autônomas (por
exemplo, significado e significante) que estabelecem entre si relações através de uma
“instância paradoxal”, um elemento que apenas dá forma à inadequação entre as duas
séries. Esta instância paradoxal (os significantes flutuantes de Lévi-Strauss ou o falo de
Lacan) é necessária porque, no interior das séries, cada termo só tem sentido através da
posição relativa aos outros termos. Mas esta posição relativa depende da posição absoluta
em relação a uma instância que não pode fazer parte, ela mesma, da série. Tomada em si
mesma, esta instância é desprovida de significado, ela é o ponto em que sentido e não-
sentido se tocam. Como se o fundamento do processo de significação dependesse de uma
instância que, em si mesma, é a-significante.
A este respeito lembremos do que Lévi-Strauss dizia sobre os significantes
flutuantes. O caráter sistêmico do universo humano é estruturado de tal forma que tudo se
dá como se, em um primeiro momento, os significantes aparecessem de uma vez só
desenhando as juntas da ossatura do mundo. Afinal, a linguagem só pode aparecer de um só
golpe. Já os significados teriam de ser progressivamente polidos e articulados com os
significantes. Ou seja, é como se houvesse sempre um excesso de significantes em relação
aos significados. Isto significa que existem sempre significantes a mais, significantes que
não representam nenhum significado. Antes, eles manifestam a inadequação mesma entre
significante e significado. Por esta razão, sua apreensão não representa um saber mas,
digamos, a presentificação de um desconhecimento. Daí porque ele pode dizer que: “o
homem tem à sua disposição, desde a origem, uma integralidade de significante [grifo
meu] do qual ele encontra-se fortemente embaraçado em alocá-lo a um significado, dado
como tal sem ser no entanto conhecido”233. Lévi-Strauss utiliza como exemplos noções
como: mana, hau, truc (as quais poderíamos juntar o nosso troço). Eles são significantes
flutuantes ou antes signos de valor simbólico zero.
Estes significantes flutuantes que formalizam o ponto de excesso entre duas séries
divergentes produziriam o que Deleuze chama de “sínteses disjuntivas” ou ainda “disjunção
sintética afirmativa”. Uma síntese disjuntiva é: “uma ligação de elementos que são
aproximados e colocas juntamente de uma maneira que inaugura um pensamento ou uma
nova forma de existência, graças ao fato destes elementos não serem homogêneos: eles não
podem ser conduzidos à identidade de uma medida comum (...) uma tal aproximação, que
não tem modelo ou esquema a priori, não é puramente momentânea: esta ligação produz
efeitos relativamente duráveis porque um espaço de vida ou um trajeto de pensamento aí se
desenha de maneira inédita”234.
Deleuze pode insistir no caráter produtivo destas sínteses disjuntivas porque ele
opera uma inusitada articulação entre estruturalismo e ontologia. A maneira com que o
estruturalismo pensa a produção do sentido através do recurso a uma instância paradoxal é
232
DELEUZE, L´île deserte, p. 257
233
LÉVI-STRAUSS, Claude; Introduction á lòeuvbre de Marcel Mauss, pag. XLIX
234
DAVID-MÉNARD, Deleuze et la psychanalyse, p. 92
apenas a manifestação de um não-ente ou de um não-ser que não é ser do negativo, mas que
é a-representativo [sobre o falo em Lacan].
Intensidades
Se a Idéia é multiplicidade, devemos ainda dar conta da maneira com que as Idéias se
relacionam ao sensível. Para tanto, Deleuze apresenta o conceito de intensidade: “a forma
da diferença como razão do sensível” ou ainda a “razão suficiente do fenômeno” 235. A
intensidade permite a Deleuze pensar a dimensão do sensível para além de uma estética
transcendental que dispõe o diverso a partir de um espaço e tempo solidário das formas de
síntese que dependem do Eu.
De fato, a intensidade tem relações com a noção de energia em geral: um princípio
transcendental que serve de teatro para toda metamorfose, espaço intensivo sem outra
qualificação. Neste sentido, ela é anterior a toda determinação qualitativa. No entanto, a
noção de energia foi re-introduzida no século XIX para dar conta de exigências de
mensuração de fenômenos através de um padrão geral de cálculo capaz de reduzir
processos à medida comum. Como podemos imaginar, isto não anima o uso deleuzeana da
noção de intensidade.
Deleuze afirma que três características determinam a noção de intensidade.
Primeiro, a quantidade intensiva compreende o desigual a si mesmo, o que há de irredutível
na diferença de quantidade. Deleuze chega a falar da qualidade própria à quantidade. Ou
seja, não se trata de entificar a irredutibilidade do qualitativo, já que, e isto sabemos desde
Hegel, a qualidade é uma determinação comparativa e opositiva. A brancura da neve nada
significa sem a oposição à escuridão. Mas há uma qualidade própria à quantidade: “Quando
uma variação quantitativa ocorre, isso aparece inicialmente como algo de todo inocente;
mas há algo diverso por trás dela, e essa variação – na aparência inocente – do quantitativo
é por assim dizer um ardil, graças ao qual se atinge o qualitativo”236.
A segunda característica da identidade é sua força em fazer da diferença o objeto de
uma afirmação. Como a diferença não está mais ligada ao diverso do dado, mas exatamente
àquilo que suspende paradoxalmente a maneira com que a imagem do pensamento organiza
o dado, a pura presença da intensidade, desta intensidade que: “designa a existência
paradoxal de algo que, ao mesmo tempo, não pode ser sentido (do ponto de vista do
exercício empírico) e que só pode ser sentido (do ponto de vista do exercício
transcendental”237, é capaz de ser posição da diferença.
Por fim, a terceira característica da intensidade é ser quantidade implicada que
dirige o curso de atualização da Idéia . Ou seja, ela descreve o que é o objeto de uma
intuição submetida agora a uma outra estética enquanto modo de determinação do diverso
da intuição sensível: “a estética das intensidades”, uma estética que para o ponto de vista da
representação, é puro caos. No entanto, ela alimentará uma individualidade que: “não é o
caráter do Eu, mas ao contrário [o que] forma e alimenta o sistema do Eu dissolvido”. Há
uma “franja de indeterminação da qual goza todo indivíduo” e é para lá que os próximos
livros de Deleuze procurarão nos levar. Um local que só aparecerá quando aceitarmos:
“uma só e mesma voz para todo o múltiplo de mil vozes, um só e mesmo Oceano para
todas as gotas, um só clamor do Ser para todos os entes. À condição de ter alcançado para
235
DELEUZE, Différence et répétition, p. 287
236
HEGEL, Enciclopédia , par. 108
237
DELEUZE, Différence et répétition, p. 304
cada ente, para cada gota e em cada via, o estado de excesso, ou seja, a diferença que os
desloca e os mascara e os faz retornar, girando em torno de seu ponto móvel”238.
238
idem, p. 389
Introdução à experiência intelectual de Gilles Deleuze
Aula Final
Hoje, terminamos nosso curso. Infelizmente, não foi possível realizar a integralidade do
que eu havia planejado. Vários aspectos relativos ao projeto do O anti-Édipo, assim como
alguns de seus desdobramentos principal no interior da experiência intelectual de Deleuze,
não puderam ser abordados. No entanto, um curso de introdução à filosofia de um autor,
ainda mais de um autor multifacetado como Deleuze, não deve ter como objetivo a glosa da
integralidade dos momentos de seu trajeto intelectual com seus inumeráveis meandros. A
verdadeira função deste curso sempre foi de fornecer as habilidades necessárias para que
vocês pudessem, por conta própria e risco, entrarem nos textos de Deleuze sem perpetuar
erros de interpretação e sem terem clareza das linhas de força que orientam seu
pensamento.
Esta me parece a questão central porque creio que todos vocês, ao escolherem fazer
este curso, tinham ao menos uma visão geral do que era a filosofia de Gilles Deleuze.
Todos vocês devem ter ouvido algumas frases sobre Deleuze filósofo da diferença, da
positividade produtiva do desejo e da vida, da plasticidade infinita e irredutível de
multiplicidades puras, da crítica à metafísica, do horror à síntese, à totalização e à dialética.
Na maneira com que se constituiu o sentido da experiência intelectual deleuzeana
está em jogo, na verdade, a forma com que nosso tempo procura se auto-compreender,
como ele procura estabelecer os vetores de seu movimento ou, por que não utilizar velhas
palavras, como ele define seus horizontes utópicos. Nenhum outro filósofo foi tão
aproveitado por aqueles que procuram afirmar as potencialidades revolucionárias dos
processos sócio-culturais do capitalismo contemporâneo do que Gilles Deleuze.
Neste sentido, procurei, desde o início, mostrar como vários aspectos desta imagem
não se sustentavam. Para tanto, era necessário compreender claramente quais eram os eixos
do pensamento deleuzeano, as questões que sempre retornavam e que forneciam unidade a
sua experiência intelectual. Afinal, como dizia o próprio Deleuze, sempre é possível reduzir
a dispersão de um pensamento a um conjunto limitado de questões centrais. Cada filosofia
é animada por uma forma de questão capaz de gerar tanto uma série determinada de
problemas quanto uma dimensão de pressupostos tacitamente implícitos e não-
problematizados que fornece o campo de enunciação de uma questão filosófica. Neste
sentido, devemos agora perguntar de maneira clara: qual a questão de Deleuze?
A este respeito, lembremos de algo que enunciara na primeira aula de nosso curso.
Lá, eu insistira com vocês que Deleuze partilha um grande diagnóstico de época que
podemos encontrar em autores tais distintos entre si como Adorno, Foucault, Lacan,
Derrida, Lyotard. Diagnóstico é aqui a palavra mais correta porque se trata de identificar as
causas de um sofrimento social. Nossa época sofre, mas ela não sofre, por exemplo, da
indeterminação advinda da perda de relações substanciais e seguras que nos permitiam
saber claramente nossos papéis sociais. Se quiséssemos utilizar uma metáfora ilustrativa de
Deleuze, diríamos: ela não sofre de desterritorialização. Ela sofre por não suportar mais as
amarras da identidade, da individualidade, do Eu.
Durante todo nosso curso, vimos como a crítica ao conceito moderno de sujeito, este
conceito cuja determinação depende de seu vínculo à figura do Eu, era o que dava unidade
à filosofia de Deleuze. Hume, Bergson, Nietzsche, Spinoza: todos estes filósofos, à sua
maneira, forneciam estratégias de críticas ao sujeito moderno que ainda guardavam
atualidade inaudita. Vimos como a crítica ao Eu era uma peça maior porque o Eu não era
simplesmente uma entidade psicológica dotada de atributos intencionais, físicos; centro
funcional das condutas e crenças. O Eu trazido pela filosofia moderna era
fundamentalmente uma função lógica, um princípio geral de determinação de objetos da
experiência a partir de postulados de identidade e unidade. Além disto, ele é um princípio
de síntese do tempo, síntese do que se apresente no interior da dispersão temporal. Assim, a
crítica ao Eu não era apenas crítica a um conceito regional, mas dissolução do fundamento
de um pensar, de uma “imagem do pensamento” vinculada à entificação da representação,
imagem do pensamento que se organiza sobretudo através de princípios como: a
semelhança, a analogia, a identidade e a oposição. De uma certa forma, ainda estaríamos
presos a esta forma de pensar. É ela que limitaria o campo da experiência e que seria a fonte
do que nos faz sofrer. : Sofrimento advindo do esquecimento de que “somos hábitos, nada
mais que hábitos, o hábito de dizer Eu ... Talvez não exista resposta mais surpreendente
para o problema do Eu”239.
No entanto, a estratégia crítica de Deleuze não era feita simplesmente em nome da
redução do Eu à condição de ideologia privada (como queria Althusser) ou como prática
discursiva sedimentada (como queria Foucault). A peculiaridade de Deleuze vinha de sua
insistência em afirmar que contra esta figura do sujeito entificada no Eu deveríamos afirmar
um regime muito peculiar de primado do ser. Como vimos, esta filosofia que aparece
atualmente como posto avançado de constituição de esquemas conceituais para se pensar o
presente, era no fundo uma ontologia: um projeto filosófico que fazia constantemente
recurso ao discurso do ser enquanto ser.
Sabemos como a ontologia sempre teve como função fornecer um fundamento
positivo e claramente identificável às exigências normativas da filosofia em seus múltiplos
campos de reflexão como: a teoria do conhecimento, a reflexão moral, a política, a estética,
a análise das formas de vida, entre outros. No entanto, o recurso deleuzeano ao ser era, no
fundo, recurso a uma zona objetiva de indiscernibilidade, zona de indecidibilidade que nos
remete a um estranho “fator comum” anterior a constituição de individualidades. Esta zona
objetiva de indiscernibilidade anterior a toda constituição de individualidades, fator comum
que indica uma univocidade anterior a toda diferença ordenada pela representação é, no
fundo, o verdadeiro objeto da filosofia de Gilles Deleuze. Que toda a experiência
intelectual do filósofo da diferença, do nomadismo, da desterritorialização seja animada
pela procura das condições para pensar a univocidade, esta univocidade que está em nós e
cuja potência nos atravessa: eis algo procurei mostrar em vários momentos do nosso curso
Deleuze, filósofo da univocidade do ser. Esta proposição nos remete para um dos
conceitos centrais da filosofia deleuzeana que ganhará forma acabada apenas em seus
últimos escritos: o conceito de plano de imanência. Mas antes de abordá-lo, relembremos
quais problemas uma ontologia da univocidade do ser precisa resolver. Primeiro, afirmar
que o ser é Uno significa anular a dignidade ontológica das diferenças que constituem e
determinam os objetos da experiência. Pois todo o campo da experiência é apenas o
desdobramento de um ser Uno. Neste sentido, como pensar a diferença? O que significa de
fato a diferença?
Antes de voltarmos à maneira com que Deleuze resolve este problema, lembremos o
sentido da sua própria definição a respeito de seu programa filosófico: empirismo
transcendental ou ainda empirismo superior. Vimos no início do nosso curso o que isto
significava. Todo verdadeiro empirismo é transcendental. Pois o empirismo não é uma
239
DELEUZE, Deux regimes de fous, p. 342
teoria segundo a qual o conhecimento não apenas começa com a experiência, mas deriva
dela. Antes, ele é uma teoria que afirma que todo conhecimento deriva do dado. Já o dado:
“nos diz Hume, é o fluxo do sensível, uma coleção de impressões e de imagens, um
conjunto de percepções. É o conjunto do que aparece, o ser igual à aparência, é o
movimento, a mudança, sem identidade nem lei”240. Ou seja, o dado é um conjunto formado
por impressões e imagens elementares (lembremos da noção da Idéia como cópia das
nossas impressões) dispostas como um fluxo; o que significa, sem princípio interno de
estruturação e, por isto, atomizado. Este gênero de campo caótico, precisa de um princípio
que o estruture, que distribua estas impressões e imagens elementares em uma estrutura.
Quando Hume afirma: “todo o poder criador da mente nada mais vem a ser do que a
faculdade de compor, transpor, aumentar ou diminuir os materiais que nos são fornecidos
pelos sentidos e pela experiência”241 devemos entender o verdadeiro sentido de tal
afirmação. Pois ela nos indica que o princípio de relação que fornece a forma do pensável é
exterior aos termos que ele relaciona. Assim, aparece um outro critério para o empirismo:
não exatamente a teoria que afirma que o conhecimento deriva da experiência, mas a teoria
que afirma que as relações que estruturam a experiência não derivam da natureza das
coisas.
O ser e o transcendental
Mas aqui aparece um outro problema: o que é esta estrutura “transcendental” que organiza
o campo da experiência? Meras relações de associação como imaginava Hume?
Determinações categoriais como pensava Kant? Estrutura linear de significantes que
guardam entre si relações de oposição, como pensava Lévi-Strauss? Podemos mesmo dizer
que a renovação das estratégias de pensar o transcendental será outro grande eixo do
pensamento deleuzeano. Ela irá se vincular de maneira peculiar com as considerações
ontológicas a respeito da univocidade do ser.
Quando lemos o texto de Deleuze sobre Bergson, vimos como tratava-se de pensar
o ser a partir do esquema bergsoniano da duração. Duração esta que não aparecia como
experiência psicológica, mas modo de manifestação de um ser pensado como: “‘passagem’,
‘mudança’, devir, mas um devir que dura, uma mudança que é a própria substância” 242. Esta
idéia de um processo que muda continuamente de natureza leva Deleuze a afirmar que: “ao
conceito platônico de alteridade, Bergson substitui um conceito aristotélico, este de
alteração, isto para transformá-lo na própria substância. O Ser é alteração, a alteração é
substância”243. É desta noção do ser como alteração que nasce o conceito central de
“multiplicidade”.
Podemos dizer que uma articulação maior de Deleuze consistiu em aproximar esta
substância compreendida como multiplicidade e o campo do transcendental como espaço
de determinação das condições para toda experiência possível. Esta articulação foi possível
através do conceito de virtual. O virtual define tanto o ser quanto a estrutura
Vimos como o virtual era, para Deleuze, maneira de explicar como uma filosofia da
univocidade do ser, como um empirismo transcendental compreende as relações de
fundamentação. Fundar é estabelecer o existente através da sua relação a um padrão que me
240
DELEUZE, Empirisme et subjectivité, p. 93
241
HUME, Investigações acerca do entendimento humano, p.24
242
DELEUZE, Le bergsonisme, p. 29
243
DELEUZE, l´île deserte, p. 34
permite orientar-me no pensamento. A partir do recurso ao fundamento posso garantir o
critério do verdadeiro e do falso, do bom e do mal, do justo e do injusto. Mas qual a
natureza da relação entre o fundamento e o existente? Deleuze conhece dois tipos de
relação: aquela que se deixa compreender como ‘potência” e “real” (uma figura possível do
par clássico entre potência e ato), assim como aquela que se deixa compreender como
“virtual” e “atual”.
No caso, do par potência/real, o real aparece como sendo a imagem do possível que
ele realiza. Esta realização implica em uma certa seleção. De todos os possíveis, de todas as
figurações possíveis, uma realiza-se como real, uma “passa” no real. Assim, esta passagem
desqualifica o que não se apresenta na realidade, já que os possíveis aparecem como meras
possibilidades. Isto leva Deleuze a afirmar que se trata, no fundo, de constituir o
fundamento a partir da imagem e semelhança do que nos aparece como real. Na verdade,
não é o real que se assemelha ao possível, mas o possível que se assemelha e se constrói a
partir do real. O modo de relação entre fundamento e existente figurada nas categorias de
potência e real é, no fundo, maneira de determinar o fundamento a partir das limitações do
real, criando entre os dois uma relação de semelhança onde o verdadeiro modelo é a
imagem estática do existente.
Já no caso do par virtual/atual, a realidade é, de uma certa forma, dada ao
fundamento. Há uma realidade do virtual, até porque o virtual é inseparável do seu
movimento de atualização. No entanto, esta atualização do virtual implica em reconstruir os
modos próprios à presença, já que aquilo que é virtual nunca está totalmente realizado. Mas
nunca estar totalmente realizado significa simplesmente que a realidade deixa de ser o
espaço da seleção de um possível para ser a coexistência de séries múltiplas de
virtualidades. Ou seja, é a própria realidade que, de uma certa forma, deve nunca estar
totalmente realizada, já que ela é atravessada por múltiplas séries virtuais, pela infinitude de
produções dessemelhantes. A noção de virtual exige uma outra forma de compreender o que
entendemos por “determinação” e por “presença” (ou simplesmente por ente). Como dizia:
“Á medida em que Deleuze tenta arrancá-lo [o virtual] da irrealidade, da indeterminação,
da inobjetividade, é o atual, ou o ente, que se irrealiza, se indetermina, e finalmente se
inobjetiva, pois se desdobra fantasisticamente”244. Daí porque o virutal só pode produzir
determinações como simulacros.
No entanto, esta articulação entre multiplicidade e virtualidade no interior do
conceito de transcendental exigia uma operação filosófica maior que nos remete novamente
à crítica ao Eu. Pois se tratava de afirmar a possibilidade de pensar um transcendental
desprovido de subjetividade constitutiva. Purgar o campo do transcendental de toda
semelhança, impedindo assim que ele seja concebido á imagem daquilo que deveria fundar.
O que para Deleuze significa: um transcendental que não funda o dado a partir da
semelhança estrutural entre sujeito e objeto, que não constrói o campo da experiência a
partir da projeção de um princípio de unidade e ligação extraído da experiência de auto-
identidade do Eu e de suas estruturas de identidade, oposição, semelhança e analogia.
Vimos como Deleuze chegava mesmo a afirmar que, em Kant, as sínteses transcendentais
eram decalcadas das sínteses psicológicas; isto a fim de lembrar que haveria uma gênese
psicológica da experiência de auto-identidade. De fato, Deleuze quer abandonar a crença de
que fora da pessoa, do indivíduo, não distinguiremos nada.
244
BADIOU, Deleuze, p. 68
Mas, se assim for, como este campo transcendental constitui o espaço da
experiência? Ou, sendo mais claro e direto, o que é um objeto quando abandonamos os
modos de organização de um conceito assegurado em suas operações? O que pode ser esta
individuação descrita por Deleuze da seguinte forma: “Dizer algo em seu próprio nome é
muito curioso; pois não é em absoluto no momento em que se toma por um eu, uma pessoa
ou um sujeito que se fala em seu nome. Ao contrário, um indivíduo adquire um verdadeiro
nome próprio após o mais severo exercício de despersonalização, quando ele se abre às
multiplicidades que o atravessam por todos os lados, ás intensidades que o percorrem”245?
Sugeri a vocês pensarem esta questão através da tentativa deleuzeana de recuperar o
que seria o “ser mesmo do sensível”. Bento Prado compreendeu esta tentativa de Deleuze
como uma espécie de: “remodelação da estética transcendental [já que implica em deixar de
pensar tempo e espaço a partir da oposição dos instantes e dos lugares], que libere o
sensível de sua domesticação ou unificação conceitual ou intuitivo-formal, desligando-a da
analítica transcendental, para ligá-la diretamente à crítica da faculdade de julgar e à
analítica do sublime”246. De fato, Deleuze baseia-se na analítica do sublime para expor
experiências que levam cada faculdade ao ponto extremo de seu desregramento, ponto no
qual cada faculdade é forçada a apreender objetos que, do ponto de vista do entendimento,
são paradoxais. Deleuze é sensível ao fato de Kant pensar o sublime a partir do ilimitado
que violenta a capacidade de apreensão da imaginação, o sublime como formalização da
inadequação entre a capacidade de apreensão da imaginação e as Idéias da razão. “É
sublime o que, do simples fato que podemos pensá-lo, demonstra um poder do espírito que
ultrapassa toda medida de sentido” 247. Ou seja, no projeto de uma empirismo transcedental,
a transformação do transcendental em campo purgado de todo princípio de semelhança abre
o espaço para a temtaização de objetos que, do ponto de vista do entendimento, são
paradoxais, indeterminados e caóticos. Mas, insistirá Deleuze, é da essência de todo
acontecimento aparecer como paradoxal, para além de nossas estruturas de determinação,
disruptivo e caótico. Paradoxo que necessariamente aparece quando aceitamos: “uma só e
mesma voz para todo o múltiplo de mil vozes, um só e mesmo Oceano para todas as gotas,
um só clamor do Ser para todos os entes. À condição de ter alcançado para cada ente, para
cada gota e em cada via, o estado de excesso, ou seja, a diferença que os desloca e os
mascara e os faz retornar, girando em torno de seu ponto móvel”248.
Neste ponto, podemos voltar uma última vez para a ontologia deleuzeana. Pois a
maneira com o ser unívoco se expressa na multiplicidade de suas determinações é
fragilizando-as todas, levando-as a confrontar-se com uma potencial do impessoal e do
indeterminado que nos permite de recompreender o que vem a ser a diferença. A diferença
não é aquilo que determina a distinção entre entidades conceitualmente articuladas. A
diferença é esta potência interna da in-diferença que corrói toda determinação. Ela é esta
expressão do ser que nos leva a afirmar, com Scott Fitzgerald, que: “toda vida é um
processo de demolição”. Demolição que ocorre quando desvelamos esta “franja de
indeterminação da qual goza todo indivíduo”. Pensar a diferença, isto no sentido de
constituir um processo de síntese com aquilo que não se submete à semelhança, só é
possível através de uma profunda reconstrução da noção de repetição. Desta repetição que,
245
DELEUZE, Pourparlers, p. 16
246
Prado Jr, Erro, ilusão, loucura: p. 247.
247
KANT, Crítica da faculdade de julgar, par. 25
248
DELEUZE, O que é a filosofia?, p. 389
como demonstrara Nietzsche, impõe ao sujeito uma temporalidade, ao mesmo tempo, não
linear e não vinculada à insistência reiterada de uma origem.
Vida e imanência
É neste contexto que devemos enfim compreender este que talvez seja o conceito
central da filosofia deleuzeana: a noção de plano de imanência. A este respeito, Deleuze
afirma: “A filosofia é um construtivismo, e o construtivismo tem dois aspectos
complementares, que diferem em natureza: criar conceitos e traçar um plano. Os conceitos
são como as vagas múltiplas que se erguem e se abaixam, mas o plano de imanência é a
vaga única que os enrola e os desenrola. O plano envolve movimentos infinitos que o
percorrem e retornam, mas os conceitos são velocidades infinitas de movimentos finitos,
que percorrem cada vez somente seus próprios componentes”249.
Esta afirmação é central. Deleuze e Guattari insistem que, para aquém dos
conceitos, há uma dimensão de pressuposições não problematizadas, imanentes, de
postulados implícitos que são ouvidos de maneira pré-filosófica, compreendidos de maniera
pré-conceitual e que permite a produção posterior de conceitos. A esta dimensão, devemos
dar o nome de plano de imanência, já que anterior a todo processo de reflexão. Na verdade,
é o plano de imanência que permite o estabelecimento da estrutura dos processos
reflexivos.
Percebamos que esta noção de plano de imanência é simétrica àquilo que Deleuze
chamava, em Diferença e repetição, de imagem do pensamento: “a imagem que ele [o
pensamento] se dá do que significa pensar, fazer uso do pensamento, se orientar no
pensamento”250. No entanto, se lá, a imagem do pensamento era apresentada como esta
entificação dos princípios do senso comum, como uma imagem do mundo (Weltbild) que
impedia o pensar alcançar a tematização da multiplicidade do ser, isto a ponto de Deleuze
colocar como tarefa filosófica a obrigação de “pensar sem imagens”; agora a imagem do
pensamento pode ser figura dos “movimentos infinitos” ou “movimentos do infinito”. Ou
seja, o plano de imanência não será pensado como: “um conjunto de proposições que se
referem a objetos ou estados-de-coisas transcendentes”251, mas como posição de uma
infinitude que não fornece nenhuma arkhé. Deste infinito que tem duas faces: “como
Pensamento e como Natureza, como Physis e como Noûs”252. A união desta duas faces nos
abre espaço para um Logos maior do que a simples razão. De fato, a filosofia conhece
várias tentativas de insistir na necessidade de confrontação com um campo anterior às
distinções entre sujeito e objeto, pensamento e natureza enquanto condição para ultrapassar
as dicotomias e clivagem de um pensamento da representação (Schelling, Fichte, Merleau-
Ponty). Creio não ser um erro afirmar que há algo destas estratégias também em Deleuze e
sua zona objetiva de indistinção produzida pela recuperação filosófica de mais uma
categoria maior da filosofia moderna: a infinitude.. Daí porque, Deleuze deve afirmar: “ A
imanência não se reporta a um Algo enquanto unidade superior toda coisa, nem a um
Sujeito enquanto ato que opera a síntese das coisas (...) Assim como o campo
249
DELEUZE e GUATTARI, O que é a filosofia?, p. 51
250
idem, p. 53
251
PRADO JR., Erro, ilusão, loucura, p. 158
252
idem, p. 54
transcendental não se define pela consciência, o plano de imanência não se define por um
Sujeito ou Objeto capaz de contê-lo”253.
Esta tematização da infinitude guiará as reflexões finais de Deleuze. Isto a ponto de
levá-lo a afirmar: “O problema da filosofia é de adquirir uma consistência, sem perder o
infinito no qual o pensamento mergulha (o caos, deste ponto de vista, tem uma existência
tanto mental como física). Dar consistência sem nada perder do infinito (...)”254. Tal tarefa
maior da filosofia, segundo Deleuze, exige sobretudo o deslocamento do campo de ação
para uma reflexão sobre os processos de reconstituição de formas de vida ou, se quisermos,
para uma clínica das formas de vida constituídas a partir de uma imagem do pensamento.
Talvez isto nos explique porque Deleuze afirmará, em seu último texto escrito em vida:
“Diremos da pura imanência que ela é UMA VIDA e nada mais”255.
Vimos, desde o livro de Deleuze sobre Nietzsche, sua estratégia em transformar a
crítica da razão em descrição de patologias tipificas em formas mutiladas de vida. Foi assim
com a maneira através da qual Deleuze demonstrava que o conceito nietzscheano de
“ressentimento” era apenas a tipifica de uma forma de racionalização social assentada em
um moral e em uma ontologia. Em uma moral marcada pela culpa, peal reatividade, pela
finitude. Em uma ontologia marcada pela metafísica da negatividade. Neste sentido, O
anti-Édipo aparece como peça essencial do projeto deleuzeano por permitir a transformação
da crítica de uma razão centrada no princípio de subjetividade e nas estratégias de síntese
própria ao Eu como unidade sintética de apercepções em crítica das formas de vida no
capitalismo contemporâneo. Mas retornemos a esta crítica a fim de indicar algumas de suas
dificuldades a fim de ver em até que ponto elas seriam superadas pelas últimas elaborações
de Deleuze.
258
DAVID-MÈNARD, Deleuze et la psychnalyse, p. 77
259
DELEUZE e GUATTARI, L´anti-OEdipe, p. 266
260
LYOTARD, Des dispositifs pulsionnles, p. 31
afirmação da multiplicidade. O que não poderia ser diferente, já que: “ o capitalismo atual
ultrapassa a lógica da totalização normalizadora e adota a lógica do excesso errático”261.
Inicialmente, Deleuze e Guattari procuram afirmar que o processo de decodificação
próprio ao capitalismo é por ele mesmo bloqueado: “Do capitalismo, diremos ao mesmo
tempo que ele não tem limite exterior e que ele tem um; ele tem um que é a esquizofrenia,
ou seja, a decodificação absoluta de fluxos, mas ele só funciona ao repelir e conjurar este
limite. E também ele tem limites interiores e não tem um; ele tem nas condições específicas
de produção e circulação capitalistas, ou seja, no próprio capital, mas o capitalismo só
funciona reproduzindo e alargando tais limites para uma escala cada vez mais vasta”262. Ou
seja, o capitalismo é o espaço de uma contradição entre processo de circulação do capital e
mecanismos de controle e disciplina normalmente vinculados ao Estado, a família, às
instituições etc.
Uma leitura desta natureza traz dois riscos maiores. Primeiro, ela retira toda
possibilidade de estabelecer um outro princípio para a crítica social, já que a crítica tende a
ser apenas a afirmação de que as condições atuais do capitalismo pós-industrial são
providas de forte potencial emancipador. Isto pode explicar afirmações como: “Nunca
houve luta contra a sociedade de consumo, esta noção imbecil. Nós dizemos, ao contrário,
que ainda não temos consumo o suficiente, o artifício, nós ainda não o temos o suficiente.
Nunca os interesses passarão para o lado da revolução se as linhas do desejo não
alcançarem o ponto em que desejo e máquina se fundem, desejo e artifício, isto a ponto dele
se voltar contra os dados ditos naturais da sociedade capitalista”263. No entanto, e se desejo
e artifício, desejo e máquina se fundirem sem que, com isto, os dados ditos naturais da
sociedade capitalista sejam abalados? Não poderíamos dizer que Deleuze e Guattari
acreditam neste potencial revolucionário da afirmação do desejo por serem dependentes de
uma metafísica da diferença que pode ter potencial disruptivo em sociedades disciplinares
marcadas por uma forma de ideologia ligada à entificação do princípio de identidade, mas
que pedem toda a força quando confrontadas com sociedades cuja reprodução material
depende da produção da diferença? Teria mesmo a diferença um forte potencial disruptivo?
A este respeito, Slavoj Zizek lembra de um cena onde um simpatizante de Deleuze
encontra um yuppie no metrô lendo O que é a filosofia? Ele então pensa na surpresa que o
yuppie sentir quando compreender que não se trata de um ABC da filosofia, mas um livro
que colocaria em cheque o próprio modo de vida do leitor. No entanto, Zizek, imagina uma
seqüência na qual, ao invés da surpresa, aparecesse o entusiasmo: “quando o yuppie ler
sobre a imitação impessoal dos afetos, sobre a comunicação de intensidades afetivas para
além do nível do sentido (“Sim, é assim que faço minhas publicidades”), ou sobre a
necessidade de reinventar si mesmo de maneira permanente, abrindo-se para uma multitude
de desejo que nos leva ao limite (“Não é este o objetivo do vídeo game de sexo virtual no
qual estou trabalhando? Não se trata mais de uma questão de reproduzir contatos sexuais,
mas explodir os confins da realidade estabelecida e imaginar novos e impensados modos
intensivos de prazer sexual”)”264. Esta historieta tem ao menos o mérito de nos lembrar que
as forças repressoras contra as quais Deleuze e Guattari se levantaram talvez não existam
mais.
261
ZIZEK, Organs without bodies, p. 184
262
DELEUZE e GUATTARI, idem, p. 297
263
GUATTARI in DELEUZE, Pourparlers, p. 32
264
ZIZEK, idem, p. 183
Isto foi compreendido posteriormente pelo próprio Deleuze ao reconhecer que a
verdadeira dinâmica do capitalismo levava à dissolução de estruturas disciplinares (como O
estado, e família, etc.). Por isto, ele deverá insistir que passamos, de uma sociedade
disciplinar a uma sociedade de controle: “os controles são uma modulação, como um molde
auto-deformante que muda continuamente de um instante a outro [como a noção de
multiplicidade, de devir e outras mais], ou como uma peneira cujas malhas mudam de um
ponto a outro”265. Ou seja, não mais instituições normativas próprias a uma sociedade
disciplinar, mas dispositivos de controle que absorvem, no interior de sua própria dinâmica,
a multiplicidade, a flexibilização e a diferença. Mas isto não implicaria ter de rever boa
parte das expectativas críticas depositadas no conceito de diferença?
Gostaria de terminar este curso levantando uma hipótese. Talvez seja isto que
Deleuze tentou fazer a final de sua vida. Lembremos mais uma vez deste pequeno texto
terminal: Imanência: uma vida... Lá, ao tentar mostrar como haveria uma forma de vida
capaz de aproximar-se do infinitude própria ao plano de imanência, Deleuze nos traz uma
pequena narrativa de Charles Dickens: “Um canalha, um mau sujeito desprezado por todos
é trazido agonizante e eis que todos que dele cuidam manifestam uma espécie de zelo, de
respeito, de amor pelo menor signo de vida do moribundo. Todos se empenham em salvá-
lo, a ponto de, no mais profundo coma, o mau homem sente, ele próprio, algo de doce
penetrá-lo. Mas, à medida que retorna à vida, seus salvadores tornam-se mais frios e ele
reencontra toda sua grosseria, sua maldade. Entre sua vida e sua morte, há um momento
que é apenas o de ‘uma’ vida lutando contra a morte. A vida individual dá lugar a uma vida
impessoal, todavia singular, que libera um puro acontecimento, despido dos acidentes da
vida interior e exterior, isto é, da subjetividade e da objetividade do que ocorre ao Homo
Tantum, para o qual todos manifestam compaixão e que atinge uma espécie de beatitude.
Trata-se de uma haecceitas que não mais é de individuação, mas de singularização: vida de
pura imanência, neutra, para além do bem e do mal, já que apenas o sujeito que a encarna
no meio das coisas a tornava boa ou má. A vida de tal individualidade anula-se em
benefício da vida singular imanente a um homem que não mais tem nome, embora não se
confunda com nenhum outro, Essência singular , uma vida”266.
Será possível não perceber como este exemplo deleuzeano aproxima-se da maneira
como seu antípoda, Hegel lê Antígona, de Sófocles? Tanto em um caso quanto no outro,
trata-se de cuidar de uma vida para além das predicações e atributos que ela possa sustentar.
Boa ou má, a vida do irmão de Antígona é uma vida impessoal, porém singular, que libera
um puro acontecimento. Vida que está para além do bem e do mal por ter sua singularidade
impossível de ser pensada nos limites particularistas dos vínculos institucionais. Mas uma
singularidade que pode ser afirmada por ser a expressão de exigências incondicionais de
universalidade e igualdade. “A tua lei não é a lei dos deuses; apenas o capricho ocasional
de um homem. Não acredito que tua proclamação tenha tal força que possa substituir as leis
não escritas dos costumes e os estatutos infalíveis dos deuses. Porque essas não são leis de
hoje, nem de ontem, mas de todos os tempos; ninguém sabe quando apareceram. Não, eu
não iria arriscar o castigo dos deuses para satisfazer o orgulho de um pobre rei. Eu sei que
vou morrer, não vou? Mesmo sem teu decreto (...) Morrer mais cedo não é uma amargura,
amargura seria deixar abandonado o corpo de um irmão”267. E não seria esta a melhor
maneira de expor o que é da ordem do poder disruptivo do impessoal e do incondicional:
265
DELEUZE, Pourparlers, p. 242
266
DELEUZE e GUATTARI, O que é filosofia? , p. 166
267
SÒFOCLES, Antígona, p. 22
mostrar como ele funda um novo conceito de universalidade e de igualdade , não uma
universalidade ligada à expressão de determinações essenciais positivas e normativas, não
uma igualdade ligada ao mesmo. Mas o universal do puro acontecimento impessoal, a
igualdade fundada naquilo que não tem lugar no interior de vínculos sociais arruinados.
Não seria em direção a estes postulados hegelianos que Deleuze estaria involuntariamente
caminhando? Postulado que nos permitiram ultrapassar as políticas da diferença em direção
a um novo regime de política do universal e da igualdade?
Se assim for, a experiência intelectual de Deleuze nos ensinará um princípio maior
em filosofia: que só começamos realmente a pensar quando perdemos o medo de nos
confrontar com autores que parecem nossos antípodas. Pois as imagens em filosofia têm o
estranho dom de normalmente se inverterem em seu contrário.