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1. O ADIVINHO E SEU CESTO

1.1-Adivinhação e Sociedade

Os Cokwe distinguem três categorias de especialistas que podem intervir em seus


problemas. Antes de entrar na análise mais detalhada do papel desempenhado por cada
um deles, consideremos as forças que eles manipulam. Os três agentes classificados
dentro da sociedade cokwe são o adivinho (tahi), o curandeiro (mbuki) e o feiticeiro
(nganga). O primeiro interpreta os fatos principalmente em função das forças positivas
(mahamba), às quais é preciso estimar e às quais se devotam variados cultos sobretudo do
domínio da seção clânica. Ao contrário, o feiticeiro (nganga) se serve de forças negativas
(wanga) que manipula pra detrimento de suas vítimas. Além desses dois agentes do
sobrenatural, há o curandeiro (mbuki) considerado antes de tudo como um “prático”,
conhecedor dos poderes curativos de uma infinidade de plantas e de produtos e o quadro
ritual no qual suas aplicações devem ser feitas.
O adivinho utiliza portanto as forças positivas mahamba1 , mundo no qual ele
próprio fora introduzido no momento em que a hamba Ngombo se apoderou dele. As
mahamba são essencialmente forças positivas, uma vez que representam as exigências
dos ancestrais, principalmente dos grandes chefes fundadores dos grupos. Se elas às vezes
incomodam (no caso das doenças, por exemplo), é como forma de advertência aos vivos
menos atentos a seus deveres para com os ancestrais. Essas forças são veneradas das mais
diversas maneiras. A forma mais característica do culto das mahamba é uma atividade
profissional: um indivíduo consagrado à uma hamba determinada entrega-se à atividade
outrora exercida por uma pessoa possuída pela mesma hamba. Além dos atos periódicos
concretos do culto, o simples exercício dessa tarefa profissional será aceito pela hamba
como a forma mais importante do culto. O estudo que desenvolvemos aqui sobre a
atividade do adivinho é precisamente um exemplo da atividade exercida em honra da
hamba Ngombo que o adivinho venera pelo exercício dessa atividade. Em compensação,
as forças negativas - wanga - são manipuladas pelas artes secretas do feiticeiro e são
consideradas não somente como uma causa das desgraças que se abatem sobre a
população, como também uma ameaça permanente da qual toda a gente tenta se defender.

1.1.1- Tahi, o adivinho

J. Redinha, um dos etnógrafos que estudou por um longo tempo a arte e as


tradições dos Cokwe, afirma que o tahi é um agente legal e por assim dizer oficial nas
sociedades tradicionais do nordeste de Angola2. De acordo com esse autor, a atividade do
adivinho é comparável à do detetive psicológico sobretudo no que concerne à pesquisa
dos feiticeiros, que constitui, aliás, sua tarefa mais importante. Atualmente, se diz que o

1
Hamba (pl. mahamba), noção fundamental da cultura cokwe, que será aprofundada na conclusão desta
pesquisa (ver p. 417).
2
Redinha, 1966, p. 54.

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adivinho deve procurar recuperá-los, o que parece uma adaptação bastante recente, dado
que antigamente o feiticeiro, uma vez reconhecido, devia ser excluído da sociedade1.
O status do adivinho, já bastante favorecido na região, é ainda mais reforçado, nos
Cokwe, pelo fato de que, frequentemente, ele é o chefe da aldeia que, ao mesmo tempo,
exerce as funções do adivinho2. De acordo com J. Redinha, o adivinho é, regra geral, um
homem inteligente e hábil, astucioso, muito bom observador da sociedade e sempre bem
intencionado; sua ação seja favorável ao equilíbrio e ao bem-estar social3: para E. Santos,
em compensação, a intervenção do adivinho na sociedade pode ser útil ou nula, conforme
seu caráter e sua vontade4.
O adivinho e o curandeiro estão freqüentemente juntos; essas duas profissões,
distintas e independentes, podem ser exercidas pela mesma pessoa, mas é preciso não
confundir nem o adivinho nem o curandeiro com o feiticeiro. De acordo com J. Redinha,
seria um erro e uma injustiça ao mesmo tempo: “Nada mais falso. Tomar o adivinho pelo
feiticeiro corresponde a tomar operadores benéficos por operadores maléficos”5. “Nada
também mais injusto, porque o adivinho é um grande ajudante da ordem”6.
O adivinho exerce uma profissão lucrativa7, mas não temos outras informações
que confirmem o ponto de vista de Ribeiro da Cruz, segundo o qual os adivinhos e
curandeiros tiravam proveito de pagamentos exagerados8. Cada adivinho exerce uma
especialidade dentre os diferentes tipos de instrumentos adivinhatórios - ngombo -
utilizados. Devido ao fato que todo tahi deve descobrir os feiticeiros, alguns se
especializam nesse aspecto de sua atividade; estes são os kabuma; mas nada impede que
um kabuma possa igualmente ser um tahi9.
O resultado do adivinho no exercício de sua profissão é devido sobretudo ao
perfeito conhecimento da situação dos então clientes de suas consultas. Para obter esses
esclarecimentos detalhados, ele tem para seu uso toda uma rede de informações diversas;
o que explica que na hora de sacudir seu cesto adivinhatório, ele saiba fazer saltar para
cima e avante, dentre os numerosos objetos mnemotécnicos que manipula, os que convêm
para formular uma resposta em relação à situação do cliente10,
A coragem do tahi para denunciar o feiticeiro (nganga) demanda, por um lado,
muito prestígio, mas também um conhecimento exato da soma de forças presentes. Com
efeito, uma acusação de feitiçaria significa para o acusado, no mínimo, pagar uma forte
indenização aos parentes da vítima presumida, esteja ela doente ou morta11. Pode
acontecer que o acusado de nganga conteste o veredito do adivinho e, num caso extremo,
um erro do adivinho pode muito bem lhe custar a vida12.

1
McCulloch, 1951, p. 32.
2
Bastin, 1961, p.40; Santos, 1960, p. 156.
3
Redinha, 1966, p. 56.
4
Santos, 1960, p. 153.
5
Redinha, 1966, p. 56.
6
Idem.
7
Bastin, 1961, p. 40.
8
Ribeiro da Cruz, 1940, p. 53.
9
Bastin, 1961, p. 40.
10
Santos, 1960, p. 154.
11
Santos, 1960, p. 155.
12
Redinha, 1966, p. 155.

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A iniciação é muito importante; é necessário não apenas aprender o conteúdo


simbólico dos diferentes objetos do ngombo como também testar as aptidões do futuro
adivinho a exercer as funções de médium: “é só através de uma severa iniciação que o
tahi é reconhecido apto para seu papel de médium, e investido do poder necessário à
utilização dos instrumentos ngombo cujos métodos de emprego são conhecidos todavia
por todos”1.
O ritual de iniciação começa por um sacrifício aos ancestrais realisado na
encruzilhada dos caminhos que levam à aldeia; em seguida, o candidato tahi reberá por
um longo tempo (alguns meses) lições do adivinho-iniciador e progressivamente ele o
introduzirá na prática da arte adivinhatória. Nós retornaremos neste assunto2.

1.1.2-Mbuki, o curandeiro

A atividade do mbuki consiste sobretudo em prepara remédios (yitumbo), em


curar e exorcizar, nas nesno nesse domínio, seu prestígio não é jamais igual ao do tahi; de
acordo com Elias Mwasefo, a relação entre o mbuki e o tahi é da ordem da que existe
entre nós entre o enfermeiro e o médico3; enfim, o adivinho é o único que tem o poder de
descobrir as causas da doença, que é muito mais prestigioso que o poder dos curandeiros4.
A comunidade requer do mbuki a aplicação dos conhecimentos da medicina
tradicional; no que diz respeito a esse domínio, ele beneficia um estatuto favorável; as
mulheres podem exercer essa atividade, ao passo que a profissão de adivinho parece estar
reservada exclusivamente aos homens5.
De acordo com a opinião de E. Santos, o mbuki é verdadeiramente o médico
cokwe, o que nos parece exagerado; não se pode dizer senão que “o autêntico mbuki
opera de fora da magia”6, a não ser que não se exclua da atividade do mbuki a magia
negra. Com efeito, é importante levar em conta o fato de que o conceito de doença é
completamente específico, e que determina uma noção tipicamente africana do
curandeiro: “Ela (a doença) não é uma simples desordem pessoal, fisiológica ou psíquica,
ela põe em questão toda a condição humana.. Ela faz parte do domínio mágico-religioso e
é por esse viés que o homem deve abordá-la, de suportá-la ou de vencê-la”7.
Os efeitos que o mbuki atribui aos medicamentos são devidos não somente às
propriedades reais dos elementos naturais (plantas, por exemplo) mas também e
sobretudo à força simbólica desses mesmos elementos. Turner evidenciou muito bem a

1
Bastin, 1961, p. 40.
2
Ver p. 80.
3
Bastin, 1961, p.46.
4
Hauenstein, 1961, p. 117.
5
Redinha afirma que há possibilidade de uma mulher exercer a profissão de adivinho: “Ainda que
raramente se encontre mulheres adivinhas” (Redinha, 1966, p. 53); de acordo com M. L. Bastin isto não é
possível nunca: “entre os Tshokwe jamais uma mulher é adivinha” (Bastin, 1961, p. 40).
6
Santos, 1960, p. 154.
7
Monfouga-Nicolas, 1972, p. 62.

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relação entre as propriedades fisiológica dos remédios e seu valor simbólico quando
estudou o comportamento dos Ndembu diante das doenças1.
Não se pode definir nem o adivinho nem o curandeiro fora do conjunto mágico-
religioso sobre o qual suas práticas se apóiam.
A doença é freqüentemente interpretada em termos de possessão maléfica ou não-
autêntica; contrariamente ao que se passa com o adivinho, que é possuído por um espírito
benéfico, aqui a palavra possessão toma o sentido de uma doença geral e “exprime tanto
bem quanto mal uma agrassão qualquer do mundo espiritual que se traduz por uma
doença qualquer, sem distinção entre as perturbações orgânicas e as perturbações
mentais”2. A hamba de uma ancestral descontente pode penetrar no corpo de um parente
próximo e provocar a doença; o mbuki, tendo recorrido a uma espécie de exorcismo
psíquico procurará recolher essa hamba ao fazê-la sair do corpo do doente sob a forma do
dente de um ancestral que quando vivo era um grande caçador3. Nesse caso, a extração do
objeto maléfico, a concretização material da doença, será ritualizada, por exemplo, pela
aplicação de ventosas. No interior de uma das ventosas, se encontrará o dente referido. O
mbuki conhece ainda outros procedimentos: uma pancada numa árvore provoca uma
“ferida” que pode recolher uma hamba que é preciso exorcisar do corpo de um doente;
neste caso, todo o esforço do mbuki será de convencer a hamba de sair por uma incisão
feita no corpo e de penetrar na árvore escolhida cuja “ferida”é um abrigo ou uma porta
para a hamba4. O mbuki pode ainda recorrer a outros estratagemas mais imediatos pelos
quais ele tenta muito simplesmente “espantar as mahamba” sem se preocupar em
procurar onde lhes alojar5.
Entre os Ndembu, o mbuki é o especialista de uma doença da qual ele próprio já
foi vítima; pensa-se que essa forma de possessão (doença) cria, após a cura e portanto
após o apaziguamento do espírito possessor, relações particulares entre o paciente e a
hamba, que faz com que o ancião doente adquira uma atitude especial para curar as
vítimas da mesma doença. Nesse caso, diz L. de Heusch, “a folia dos deuses... se extingue
por uma iniciação ao culto do espírito inicialmente patogênico com o qual nenhuma
ligação positiva existia antes da doença”6.
O mbuki recebe sua aprendizagem por freqüentar um mestre cuja competência é
reconhecida; com efeito, se há medicamentos mais ou menos conhecidos de todo mundo,
há da mesma forma outros dos quais o mbuki tem o segredo e que não transmitirá senão a
um de seus familiares ou a um candidato que pague bem7.
1
“It is sufficient to state here that whatever may be the empirical benefits of certain treatments, the herbal
medicine employed derive their efficacy from mystical notions and their therapy is an intrinsic part of a
whole magico-religious system” (Turner, 1967, p. 361).
2
L. de Heusch, 1971, p. 258.
3
Ver yanga, p. 304. Essa ritualização remete às tensões sociais: “O dente resiste... ao se deslocar no corpo
do paciente. Ele representa a “ferida”, a tensão social, o ponto de fricção do grupo”... (Turner, 1972, pp.
132-133).
4
Ver Redinha, 1966, p. 58. A técnica das incisões rituais como meio de cura é muito freqüente até hoje. O
caso mais conhecido é o do adivinho Cikanga, do Malawi, consultado por milhares de pessoas, nacionais e
estrangeiras. Os dois elementos fundamentais de sua terapêutica consistiam em reconhecer as faltas e em
fazer as incisões (ver A. Redmayne, 1970, pp. 103-128).
5
Santos, 1960, p. 154.
6
L. de Heusc, 1971, p. 258.
7
Santos, 1960, p. 156.

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1.1.3-Nganga, o feiticeiro

Do ponto de vista lingüístico nganga constitui uma novidade que, ao menos pela
origem, parece limitada ao grupo étnico mais importante dessa zona: os Cokwe. É uma
inovação lingüística que se encontra mais ou menos generalizada em toda a zona R1. É
curioso notar que em todo o domínio bantu, foi possível reconstruir a forma proto-bantu
donde deriva nganga e outros termos paralelos que designam o operador benéfico a
serviço do grupo e que viemos a descrever sob o nome de tahi. Como explicar que entre o
Cokwe e em toda a zona R, onde a irradiação cultural dos Cokwe foi muito importante, a
palavra nganga, signifique pelo contrário o operador maléfico e perigoso, o feiticeiro?
Os especialistas de lingüística africana têm consciência do fenômeno e ainda
esperam pelos dados etnográficos que explicarão o “escorrego” do termo nganga, que foi
empurrado, num dado instante (também ainda não determinado), e deslizou ao longo de
seu eixo semântico e se fixou na significação contrária. O efeito desse deslize foi a
substituição do termo mulogi (mudogi ou ndoki: feiticeiro, operador maléfico), que
desapareceu, pela palavra nganga; a emergência do termo tahi (adivinho) ao se opor a
nganga, leva este último a tomar a significação de operador maléfico (feiticeiro).Houve
duas fases diferentes de significação para essas palavras:

1a fase mulogi nganga


(maléfico) (benéfico)

2a fase ______ nganga tahi


(maléfico) (benéfico)

De acordo com A. E. Meusen2 deve haver na origem desse fenômeno lingüístico a


descoberta de uma técnica, certamente uma técnica adivinhatória, cujo sucesso foi tal que
introduziu uma novidade lingüística. Todavia, é preciso levar em consideração que a
novidade semântica nganga se limita à sua forma simples, no sentido preciso de
feiticeiro, enquanto que nas formas compostas o termo nganga conserva o sentido
primitivo de operador benéfico; é assim, por exemplo, que nganga-mukanda significa o
operador da circuncisão; nganga-buka, o médico, etc.3
Nessa zona, o feiticeiro, elemento negativo e responsável por todas as desgraças,
está também na base do mecanismo que permite eliminar a incoerência e o acaso nos
eventos negativos que afligem o grupo4. O poder misterioso do feiticeiro é resultado de
uma transgressão bem conhecida: ele eliminou um parente próximo e subjugou seu
espírito, pondo-o a seus serviços, a fim de executar suas ordens; isto se passa no nível

1
Ver Rodrigues de Areia, 1974.
2
Communication orale (1974).
3
Ver p. ex. Redinha, 1966, p. 56.
4
Aquina, 1968, p. 47.

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mítico. Na prática, o feiticeiro não é de todo um profissional; não é nem mesmo algo de
determinado; ele vive no grupo, anônimo e desconhecido1. É de novo o mesmo
mecanismo do bode expiatório que funciona para descobrir um feiticeiro. À esse
propósito, Ribeiro da Cruz diz que o adivinho, mais freqüentemente, apontava como
culpada uma pessoa idosa ou um inimigo2. De acordo com esse mesmo autor, uma vez
feita a acusação, todo o grupo se punha em ação para fazer desaparecer o culpado acusado
de ser feiticeiro, e as vítimas eram geralmente enforcadas ou atiradas ao rio3 . Acredita-se
também que os chefes têm sempre um certo contato com a feitiçaria, dado que o poder
não é concebível sem a idéia de uma transgressão inicial; o poder do feiticeiro (temível e
perigoso) vêm de um homicídio cometido contra a pessoa de um parente. De onde viria o
dos chefes?
Um amplo contexto etnográfico comum à toda Africa Central mostra que o poder
do chefe é obtido não apenas por um casamento incestuoso4 como também por ligações
mais ou menos avizinhadas com a feitiçaria: seja porque tivesse vítimas sacrificadas por
ocasião de sua entronização (como as "jovens filhas da noite" entre os Yombe)5, seja
porque o jovem chefe iniciado no poder devesse exercer um certo controle sobre os
espíritos assegurados ao grupo do qual ele tornou-se chefe, o que significa que ele toma
para si a responsabilidade dos crimes de feitiçaria cometidos pelos chefes anteriores6, ou,
finalmente, porque se admitisse muito simplesmente que na origem do poder havia uma
transgressão que o explica e o justifica7.
J. Redinha constatou entre os Cokwe uma espécie de fachada institucional da
feitiçaria na medida em que favorecia o prestígio dos chefes e a submissão dos
subordinados8. É também por essa mesma razão que se acredita que os adivinhos não
podiam fazer nada contra certos feiticeiros (os chefes, certamente)9. O temor de ser vítima
de feitiçaria é tão grande que os Cokwe procuram se prevenir do perigo mesmo no Além;
eles querem estar certos de que seu espírito não se tornará um cipupu, isto é, um espírito
maléfico a serviço dos feiticeiros. Parece que este seja ainda um dos objetivos da
iniciação mungonge: para que após a morte os espíritos não se tornem yipupu nem
incomodem seus familiares deste mundo10.
E. Santos tem razão ao dizer que não se pode falar em iniciação para os nganga11.
A iniciação é em si a integração em uma ordem determinada; ora, o feiticeiro representa
precisamente a supressão da ordem.
A recusa da parte da administração colonial de aceitar o crime de feitiçaria diz
respeito ao fato de que o crime determinou a adoção de outros termos, aceitáveis aos
olhos dos novos detentores do poder, para denunciar a feitiçaria e conseguir a condenação

1
Redinha, 1966, p. 65.
2
Ribeiro da Cruz, 1940, p. 54.
3
Idem.
4
L. de Heusch, 1962, pp. 147-148.
5
Doutreloux, 1967, p. 169.
6
Rey, 1971, pp. 204-206.
7
Balandier, 1965, p. 23.
8
Redinha, 1966, p. 64.
9
Kuntz, 1932, p. 135.
10
Santos, 1966, p. 149.
11
Santos, 1966, p. 156.

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dos feiticeiros. O mal era sempre o mesmo, porém apresentado de outro modo: se alguém
que se supunha ser vítima de feitiçaria morria, dizia-se que tinha sido envenenado (um
crime de verdade para as autoridades coloniais). Mas a realidade era totalmente outra:
quando uma pessoa não era mais aceita pelo grupo, devia desaparecer. Sabe-se o que
todos dizem mas não se sabe o que se passa. Estermann (zona R) se deu conta dessa
dicotomia; por isso é que ele insistiu sobre a inutilidade de se praticar autópsia nas
vítimas ditas de feitiçaria por poção (veneno). Todos os casos observados demonstraram
que ele tinha razão1.
Se ainda hoje a explicação desses fenômenos nos escapa, é em função da enorme
distância cultural que nos separa destes povos, e daí afora, porque quase nada se
progrediu no conhecimento deste gênero de comportamento "em que a natureza social
reúne muito diretamente a natureza biológica do homem"2.
Se a força wanga, manipulada pelo feiticeiro, exerce sua influência por sugestão3
ou por um outro mecanismo, não se sabe, mas de fato o feiticeiro assim como a vítima
não podem resistir muito tempo à essa espécie de carisma negativo4: o feiticeiro é
eliminado, o enfeitiçado desaparece.
Para contrariar as forças wanga a serviço dos feiticeiros, há a sabedoria dos
ancestrais que se manifesta nas mahamba que o adivinho acolhe e interpreta. Entre os
vivos e os mortos, uma dupla linha de força se estabelece, determinando a existência
ocasional do feiticeiro (nganga) e a atividade permanente do adivinho(tahi) que deve
neutralizá-lo para restaurar o equilíbrio social no nível do homem e do grupo.
Essas duas forças contrárias marcam os pólos do universo mágico-religioso dos
Cokwe que se poderia explicitar de modo por demais esquemático como segue"

Nzambi

______________________________

Ancestrais Espírito da Natureza Yipupu

força hamba força wanga

tahi nganga

1
Estermann, 1957, p. 261.
2
Lévi-Strauss, 1950, p. XV.
3
Santos, 1960, p. 153.
4
Ver P. Turner, 1970, pp. 366-372.

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Homens

ESQUEMA 3

1.2-As Técnicas Ngombo

1.2.0-Introdução

O cesto de adivinhação de que me ocupo neste trabalho representa uma técnica


largamente divulgada na África Central, sobretudo entre as seguintes etnias: Cokwe,
Lwena, Lucazi, Lunda, Ndembu, Ovimbundu, Ngangela, Lwimbi, Nyemba e Rotse1.
Este método está em relação a um conjunto de outros métodos adivinhatórios que
a designação ngombo também cobre. Digamos que esta técnica ngombo é a mais
freqüente e também a mais divulgada na África Central, enquanto que na África Austral
se encontra de preferência a técnica hakata - adivinhação através de ossinhos. Grosso
modo, diria-se que a técnica ngombo é, antes, característica do norte do Zambeze, e a
técnica hakata característica da regiaão situada ao sul do mesmo rio. O método pelos
ossinhos hakata foi conhecido por muito tempo entre os Sotho, Venda e Tonga; e se
espandiria para o norte. Reynolds assinala sua existência entre os Rotse e os Ila2.
Hoje, quando se fala de ngombo, toma-se a palavra no sentido de cesto de
adivinhação - ngombo ya cisuka - mas, em sua origem, a palavra ngombotem um
sentido bem mais vasto.
Ngombo é um termo genérico que se relaciona à arte e à prática adivinhatória, bem
como aos instrumentos de que elas se utilizam3. Mesquitela Lima toma as raízes mbo e
mba em relação a tudo o que é forte, tudo o que se afirma, para resgatar a relação entre as
práticas adivinhatórias designadas ngombo e os ancestrais que estão na base de todas

1
Ver mapa étnico, p. 233.
2
Reynolds, 1963, p. 104.
3
Turner, 1961, pp. 23-24.

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essas práticas; para o mesmo autor, a palavra ngombo significaria ao mesmo tempo
adivinhação e "o espírito do ancestral que preside a todos os atos de adivinhação, que
ajuda o adivinho a adivinhar bem"1.
Antes de abordar a questão do ngombo no sentido estrito (cesto ngombo ya
cisuka) devemos levar em conta os diferentes métodos de adivinhação que se relacionam
com essa palavra em seu sentido amplo, quer dizer, é preciso falar dos diferentes tipos de
ngombo.

1.2.1-Ngombo ya mwishi

Designação: -ngombo ya mwishi (White, Turner, Reynolds)


-muixi (Milheiros)
-muhinyi wa temo (Lima)
-muhinyi wa kasau (Lima)
-mufinyani (Reynolds)

É um instrumento muito simples: o bastão com o qual se bate as sementes ou a


mandioca no almofariz, ou o cabo do machado ou da enxada, ou não importa qual pedaço
de pau; o adivinho imprime um movimento de oscilação (ou de rotação, se colocar o
instrumento no chão). Ao mesmo tempo em que o bastão vai para frente e para trás, o
adivinho pronuncia os nomes das pessoas ou dos ancestrais concernidos ao caso
apresentado; o bastão pára no exato momento em que o nome do responsável foi
pronunciado. É o que se pode chamar de ponto de adivinhação2.
De acordo com Milheiros, o adivinho coloca o bastão no chão e começa a sessão
com uma pergunta à propósito de sua própria competência:
"Espíritos, digam-me: eu sou um bom adivinho"? O movimento de vai-e-vem
pára; então ele prossegue:"Nzambi nos fez, sim ou não"? O bastão pára.
As perguntas se seguem e finalmente vem a questão que se refere ao assunto da
consulta3.
Vê-se que a diligência de uma sessão pode se prolongar indefinidamente. A
sabedoria adivinhatória jamais tem um tempo limite. Entretanto Cameron conta que
encontrou um dia um adivinho questionado por tantos clientes ao mesmo tempo que, para
achar um meio de responder a todos, trapaceou de verdade em cima da técnica, não
escolhendo nada além de algumas estatuetas (sem dúvida do mgombo ya cisuka) para
cada caso4; de fato tal comportamento em um adivinho é completamente exótico; com
efeito o adivinho ficará o tempo que for necessário para achar a solução mais conveniente
ou para esclarecer um caso difícil.

1
Lima, 1971, p. 153.
2
Ponto de adivinhação significa na prática uma decisão parcial em relação ao conjunto do problema em
questão.
3
Milheiros, 1949, p. 33.
4
Cameron, 1885, pp. 450-451.

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De acordo com V. Turner, entre os Ndembu, o ngomgo ya mwishi é o mais antigo


dos instrumentos de adivinhação1; seria até mesmo anterior ao cesto adivinhatório; este
último foi sem dúvida tirado dos Lovale2. Turner fala também da iniciação a esse tipo de
adivinhação; aqui ele não apelará à indicação dos sonhos ou à doença como seria o caso
para ser iniciado ao espírito Kayong'u do cesto; a única coisa importante nesse caso são
os medicamentos (jipêlu) que o adivinho deve utilizar3.
Independentemente de toda propriedade fisiológica das substâncias propostas
como remédios, existe um valor simbólico, o único que vale para os clientes. Turner
encontrou alguns esclarecimentos à propósito das substâncias que prepara o especialista
do ngombo ya mwishi:
- o sal (ibanda) significando que o adivinho deve estar preocupado porque tem o
sentido das coisas;
- um pedaço de sanguessuga - porque, assim como a sanguessuga adere a
alguém, o ngombo adere à terra quando se toca o ponto de adivinhação: impossível fazê-
lo mexer-se;
- algumas folhas da árvore kapwipu (Swartzia madagascariensis) porque essa
árvore muio dura resiste aos cupins e porque é procurada por vários animais selvagens
como será o adivinho por vários clientes;
- e ainda algumas folhas de lweng'i (Dracena reflexa, var. nitens?) porque essa
árvore é julgada muito forte; conseqüentemente o adivinho será procurado por todo
mundo4.
Os medicamentos conferem ao instrumento um grande poderio, a tal ponto que
torna-se completamente irremovível, como o nome da pessoa ou do ancestral concernido
pela adivinhação é pronunciado. O adivinho tenta em vão fazê-lo se mexer...5
Utiliza-se muito raramente esse método para procurar um feiticeiro, mas é
habitualmente utilizado para encontrar o nome de uma criança que virá a nascer, ou mais
exatamente qual é o espírito do ancestral que quer sobreviver nessa criança6, ou ainda
para identificar os espíritos responsáveis pelas doenças7.
V. Turner observa ainda que há muitos adivinhos que praticam o mwishi e muito
poucos adivinhos ku-sekula (os praticantes do cesto). Este fato deve se relacionar à
repressão anti-adivinho muito virulenta, sobretudo nas antigas colônias inglesas da África
Central8.
É também a esse tipo mwishi que pertence a adivinhação pelo machado e pelo
cabo da enxada, tal como Delachaux encontrara em um nômade cokwe às margens do rio
Kunene (Angola). De acordo com esse autor o machado apresentava as mesmas
características que as assinaladas por Cappelo e Ivens (1879) no norte de Angola e por

1
Turner, 1961, p. 72.
2
Lovale, Luvale ou os correspondentes Balovale ou Baluvale é a designação genérica de quatro etnias:
Lunda, Cokwe, Lwena e Lucazi, juntas (White, 1948).
3
Turner, 1961, p. 73: upêlu (pl. jipêlu) - mistura de substâncias orgânicas e também elementos de pessoas
vivas que se acredita terem sido sacrificadas.
4
Turner, 1961, p. 73.
5
White, 1948, p. 88.
6
White, 1948, p. 88.
7
Turner, 1961, p. 71; White, 1948, p. 88.
8
O caso de Cikanga é o exemplo mais evidente. Ver Redmayne, 1970.

33
34

Ed. Berger na Zâmbia. O procedimento seria, apesar de tudo, diferente do que se


descreveu:
"...o método consiste em plantar o cabo do machado na areia, de pé e em
equilíbrio. AO som da música, os adivinhos dançam ao redor do machado que, ao cabo de
um certo tempo tomba deixando sobre a areia diversas impressões das quais se tiram
conlcusões, igualmente com a direção da queda"1.
Convém adicionar ainda o fato relatado por Ed. Berger, em que três adivinhos que
com esse uso se ocupavam de procurar um feiticeiro (comedor de alma)2; esse detalhe nos
afsta ainda mais da técnica ngombo ya mwishi que é utilizada para outros fins sobretudo.
Segundo a opinião de Mesquita Lima, essas técnicas ditas abstratas não seriam
mais empregadas hoje; elas subsistiam dentro do cesto cisuka como réplicas-miniaturas3.
A priori não há nenhuma razão para atribuir uma origem especial a cada um dos símbolos
do cesto. É antes o prestígio das técnicas que explica porquê certas práticas são
abandonadas enquanto que outras são cada vez mais procuradas. É verdade também que
se encontram essas miniaturas dentro do cesto de adivinhação, mas de acordo com
testemunhos de outros autores, elas seriam ainda atuais em nossos dias. E. Santos
observou entre os Cokwe do norte da Angola, perto da fronteira, um cantoneiro-adivinho
que procurava realizar uma sessão adivinhatória perto da estrada com o cabo de sua
enxada. O caso é tipicamente uma adivinhação mwishi e é interessante de reproduzir a
citação completa, pois o autor nos dá uma descrição rica em detalhes e que se trata mais
de um ponto de vista de um administrador4 em face às praticas tradicionais:
"Em regra geral, no norte de Angola, o adivinho se serve do ngombo para exercer
sua profissão; é uma pequena bandeja com objetos os mais variados e os mais excêntricos
tais como o pensamento africano se apraz em imaginar. O bom adivinho, na África, não
se interroga sobre a qualidade das peças adivinhatórias. É por essa razão e talvez porque
as autoridades os controlavam, que nos temos deparado com alguns tahi cokwe que
procuravam no cabo da enxada a resposta para a causa das doenças e da morte. Um
desses adivinhos era um cantoneiro."
"Durante o tempo de lazer, que era também o tempo do trabalho quando não
estava mais sob o olhar do contra-mestre, ele praticava a adivinhação. Na aldeia, ele tinha
seu ngombo, religiosamente escondido sob o leito. Levava o ancinho, a pá e a enxada
para o trabalho. Na realidade ele os levava não para trabalhar mas para responder a
qualquer consultante desgraçado que não quisesse esperar sua vez na aldeia. E nós
dizemos isto porque o autóctone não gosta de ferramentas com o cabo curto demais como
é o caso das enxadas indígenas. Era à margem da estrada que ele recebia os consultantes.
Ele pedia a enxada, punha-se de joelhos, apoiando as nádegas sobre os calcanhares,
alisava a areia usando sua mão como uma faca, dispunha o cabo no chão, segurando-o
pelo meio, e lhe impulsionava jeitosamente com dois dedos, o indicador e o polegar, um
movimento de vai-e-vem num raio de alguns centímetros. Com sua voz baixa e bem
cadenciada colocava suas questões ao cabo: --"diga-me quem trouxe a doença de meu
consultante? Foi a hamba de Mwatianvwa? A de Cinguri? A da grande mãe?".

1
Delachaux, 1946, p. 46.
2
Idem.
3
Lima, 1971, p. 153.
4
Ver também Santos, p. 137.

34
35

"Questão após questão, o cabo mexe sempre sem colar ao solo. Muitas questões.
Muitos nomes. De tempos em tempos ele observa seu consultante para estudar suas
reações e sua eventual concordância com a resposta do cabo. De novo mais questões,
mais nomes novos, como se o cabo dissesse - "está frio, está quente..." - como fazem as
crianças quando se divertem. Mas o adivinho deve adivinhar. A sessão deve acabar.
Então o cabo pára e a causa da doença é precisamente a que foi dita neste instante. Segue-
se o processo bem conhecido: é preciso pagar, o consultante está contente e o adivinho
ainda mais. E o cabo, a alma do ato adivinhatório, retorna à enxada sem outro
agradecimento senão o de alguns golpes vigorosos sobre uma pedra para calçá-lo melhor.
É preciso adicionar que os movimentos e os músculos do braço do tahi dão ao
consultante a impressão de um esforço basto para o adivinho fazer o cabo se mexer, que
está imobilizado, como que colado na areia"1.
É muito provável que a vigilância e a repressão exercidas contra o cesto tenham
ocasionado uma intensificação dos métodos mais simples e que passavam mais
facilmente imperceptíveis às autoridades. Santos também admite essa hipótese, mas de
acordo com a maior parte das informações, ela deve ser entendida no sentido, que já
assinalei, de freqüência ou intensificação e não no sentido da origem; isto quer dizer que
o ngombo ya mwishi sendo um método já muito antigo tornou-se cada vez mais freqüente
em conseqüência da repressão da administração colonial.

1.2.2-Ngombo ya kalombo

Designação: -ngombo yakakunkundu (White)


-ngombo ya kalombo ou yitalika (Bastin, Lima)
-ngombo ya musengu wandala (Turner)
-ngombo musengu ya tengu (Turner)
-chilola (Melland)2
-sikunkula (Reynolds)3

Um método de preferência muito raro segundo a opinião de White4. É um grande


chifre de antílope-cavalo (Hippotragus equinus) tido por um, dois ou quatro homens que
se deslocam com ele (Fotos 22-23).
De acordo com os esclarecimentos de Melland repetidos por White, deve-se
concluir que os portadores do chifre adivinhatório se deixam conduzir até à direita de
onde se acha a pessoa ou o espírito procurado; quando isto acontece, o chifre se agita
violentamente denunciando o responsável. Tudo se passa como se houvesse uma espécie
de magnetismo que se atribui aos ingredientes e aos remédios que estõ no interior do
chifre. Turner observa que há vários remédios, mas o mais importante é um pedaço de
serpente - mbona, (Python sebae) - misturado com nkula e pemba, assinalado por
Bastin como o elemento que dá o "poderio" (ya yitalika = ter a força) ao ngombo. O

1
Santos, 1969, pp. 233-234.
2
Melland, 1923.
3
Reynolds, 1963.
4
White, 1948, p. 88.

35
36

chifre torna-se pesado por causa desse poderio1; de acordo com o informador Hamumona
o ngombo ya kalombo se prepara com um chifre do antílope thengo2, no interior do qual
se põe o nzambo, que é uma mistura de vários produtos (dos quais o principal é uma
relíquia de um feiticeiro - seja uma unha ou um pedaço de osso ou um coração)
escondidos na casca de uma árvore.
De acordo com os informadores de V. Turner, o ngombo gosta muito de se mexer.
Ele procura os espíritos e as pessoas. É tido por alguns homens (White) ou pelo próprio
adivinho (Bastin) ou ainda, de acordo com vários informadores, pelos consultantes que
estivessem possuídos pelo chifre em um determinado sentido. Antes da tentativa final,
isto é, antes de se pôr em movimento para a direita de onde se encontra o espírito ou a
pessoa concernida, é preciso esclarecer muitos elementos preliminares. Os
esclarecimentos estão duplamente codificados:

- em função das cores: branco/ vermelho;


- em função do deslocamento ou da orientação no espaço: direita/esquerda,
alto/baixo;

Essa orientação se refere a dois elementos suplementares assinalados por


M. L. Bastin: dois saquinhos contendo mukundu (argila vermelha) e pemba (caolim
branco); o mukundu fica à direita do cliente3.
Exteriormente o chifre também era rajado de vermelho e branco; sobre o peito do
adivinho haviam as mesmas marcas4.
Por um jogo de oposições binárias (a chave dicotômica da adivinhação), o
adivinho avança as perguntas sucessivas que serão tratadas ao atravessar esta grade
extremamente simples:

movimento / imobilidade
branco / vermelho
alto / baixo
direita / esquerda

Eis a própria base do sistema, em que há algumas variações sobre pontos de


detalhes: se a doença ou a desgraça vêm do lado masculino, o chifre se mexe; se, pelo
contrário, vêm do lado feminino, o chifre não se mexe5.
No nível prático leva-se em consideração que esse universo operacional do
movimento ou do não-movimento (imobilidade) nos remete a um outro universo que é
determinado pela própria estrutura da sociedade:

movimento / imobilidade = patrilinhagem / matrilinhagem

1
Bastin, 1959, p. 105.
2
O antílope-cavalo (Hippotragus equinus).
3
Bastin, 1959, p.105. De acordo com Lima, seriam antes duas bolas de pemba e de mukundu. As respostas
seriam negativas ou positivas, conforme o movimento tocasse o vermelho ou o branco (Lima, 1971, p. 145).
4
Turner, 1961, p. 77.
5
Idem.

36
37

Se na tentativa adivinhatória é preciso fazer alusão a um chefe, o chifre se eleva


bem alto, enquanto que se a questão concerne a uma mulher, o chifre martela o solo
evocando o gesto do pilão de mandioca1.
Para designar uma criança, o chifre aponta para o vermelho (nkula) enquanto que
para um ancestral é o branco (pemba) que será indicado2.

vermelho / branco = criança / ancestral

Vê-se se desligar dessa codificação muito simples as oposições estruturais da


sociedade desarmônica:

patrilinhagem / matrilinhagem
tio maternal / sobrinho
homem / mulher
ancestral / criança

A análise de cada uma dessas duplas de oposições demandaria um


desenvolvimento que ultrapassa em muito nossas ambições; digamos de passagem que a
maioria dos parâmetros que encadeiam a vida social e econômica só se tornam
compreensíveis a partir dessa análise.
Mesquitela Lima assinala ainda o acompanhamento musical dos acólitos do
adivinho - ana a tahi - que tocam o lusango. Este mesmo autor apresenta também um
outro instrumento com a mesma designação, mas completamente diferente daquele que
vim a citar. Retornaremos a este ponto3.
O método do chifre e antílope é supostamente originário dos Cokwe e pode-se
obsrvar que está em declínio nessa etnia, seja porque foi substituída pelo método do
ngombo ya maliya4, seja porque caiu em desuso por outras razões5.
Os informadores Cokwe insistem no fato de que, contrariamente à outras técnicas
que els têm recebido de etnias vizinhas, o ngombo ya kalombo ou yitalika são
verdadeiramente cokwe: "É uma técnica nossa, e não dos Luanda ou dos Pende".
Reynolds assinala a grande expansão que esse método conheceu sob a forma do
grande chifre do antílope-cavalo; nota também sua existência entre os Mbunda; de acordo
com ele, a sikunkula dos Rotse seria uma variante desse mesmo método onde o grande
chifre foi substituído por um menor, talvez particular aos Rotse6

1
Bastin, 1959, p. 105. De acordo com as observações de Turner, o eixo semântico seria antes o sexo: "To
designate something masculine, the horn will turn round and reach the deviner's penis; to represente
something feminine it will point towards a woman's private parts - for example, to show that women's
ritual (Yidika yawambanda) should be performed" (Turner, 1961, p. 77).
2
Turner, 1961, p. 77.
3
Ver p. 62.
4
Bastin, 1961, p. 46.
5
White, 1948, p. 88.
6
Reynolds, 1963, p. 110.

37
38

V. Turner também encontrou um outro método - museng'u yantengu - baseado


também na utilização de um chifre de antílope com o mukundu e a pemba, mas não
encontrou informações concernentes à prática desse instrumento.
Uma curiosa variante dessa técnica é o kalombo ka mutakanga: um chifre com
uma pluma de ave, que dirige o movimento (que aliás seria provocado pelos remédios
escondidos no interior). O informador que nos falou não a havia mais visto por muito
tempo.; segundo ele, o instrumento era tido pelo adivinho, mas não se tem mais nada
sobre o conteúdo ou a natureza da pluma de ave.
Uma outra variante é o ngombo ya samukana, "como o precedente, um chifre de
antílope thengo, mas com a diferença de que tem cravado na ponta um chifre menor, do
antílope de Grimm, o khai"1 da savana que os caçadores cokwe conhecem bem.

1.2.3-Ngombo ya mbaci

Designação: -ngombo ya kapesa (White, Reynolds)


-ngombo ya mbaci (Turner)

Uma carapaça de tartaruga cheia de remédios (foto 24) à qual se prende uma
pluma seja de galinha-d´angola (White) ou de abutre (Reynolds). O adivinho coloca o
vermelho (mukundu) de um lado (à sua direita) e o branco (pemba) do outro; à meia-
distância entre o branco e o vermelho, ele coloca o instrumento de adivinhação - a
carapaça de tartaruga, que tem sempre a pluma.
A tartaruga se “desloca” para a direita ou para a esquerda e ao mesmo tempo o
adivinho pronuncia alguns nomes de pessoas. Se a tartaruga toma a direção da direita
(mukundu) a pessoa dita é culpada, se vai para a esquerda, as pessoas são inocentes.
Turner assinala como “indício pertinente” dessa técnica o fato de que a tartaruga
tem uma carapaça bastante espessa, e que ela caça muitos pequenos animais aos quais
segue pacientemente; é o mesmo o que deve fazer o ngombo2. Os pequenos animais
tomam aqui a conotação das coisas ocultas que passam facilmente despercebidas. Tal é o
ofício fundamental do adivinho: trazer à luz as coisas ocultas.
Contrariamente à carapaça, a pluma então que é frágil, acentua o aspecto precário,
até mesmo perigoso, da atividade do adivinho3. A fragilidade da pluma é reforçada
também pela etmologia da palavra: nkang´a, de ku-kang´anya (falhar)4; ela põe em
guarda o adivinho para que ele realize com sabedoria o trabalho delicado que consiste em
descobrir as pessoas mal intencionadas. O fato de que a pluma seja de abutre poderia
acentuar ainda o aspecto negativo da técnica, mas não se sabe se se trata exatamente de
uma pluma de galinha-d´angola, de abutre ou de uma outra ave.
A bipolaridade cultural branco/vermelho que em toda essa região da África conota
a oposição inocência/culpabilidade desce ao nível pragmático onde a oposição

1
Bastin, 1961, p. 46.
2
Turner, 1961, p. 82.
3
Em alguns casos, aliás muito raros entre os Cokwe, o veredito do adivinho pode desencadear a oposição
de todo o grupo ao qual pertence o membro surpreendido pela sentença.
4
Turner, 1961, p. 82.

38
39

carapaça/pluma, do modelo funcional, se transforma na oposição qualificativa


solidariedade/fragilidade. Temos sucessivamente:

carapaça/pluma;
solidariedade/fragilidade
bem/mal.

A carapaça da tartaruga aparece no cesto do ngombo ya cisuka seja como


elemento anexo, suspenso sobre a bandeja de adivinhação, ou seja como elemento
simbólico no interior da bandeja1.

1.2.4-Ngombo ya cisalo

Designação: -ngombo ya cisalo ou cisese (Bastin, Lima)


-kasbasha (Reynolds)
-ingere (Gelfand)

Uma espécie de haste de madeira à qual se prende uma faixa contituída de


lamínulas de bambu unidas por cordinhas (fotos 25-27). Bastin vê nessa pequena faixa a
miniaturização da trança utilizada para secar a mandioca; com efeito, essa trança também
se chama cisalo ou cisese2.
Para dar peso à faixa de bambu é utilizado um fruto globuloso, acionado por um
movimento pendular que faz com a faixa bata dos dois lados. O fruto e a trança são
pintados metade de vermelho, metade de branco (a parte esquerda: branco; a parte
esquerda: vermelho).
A haste toma freqüentemente a forma de uma pequena estatueta em sua parte
superior, enquanto que a parte inferior serve de cabo3. Mesquitela Lima observa ainda
que a madeira do cabo vem da mesma árvore com que os Cokwe fazem os caixões4. As
respostas, positivas ou negativas, são obtidas segundo a batida do fruto: do lado branco
(“sim”) ou do lado vermelho (“não”).
O kashasha estudado por Reynolds é em essência o mesmo objeto, se bem que a
interpretação adivinhatória seja diferente. De acordo com esse autor, a trança, que estaria
envergada na posição de repouso, estabelece o ponto de adivinhação quando, após ter
sido estendida e tremulando livremente no ar, pára e suas extremidades tornam-se
rígidas5. Para Gelfand, entre os Shona, essa técnica é acompanhada de um chifre que o

1
Ver p. 313.
2
Bastin, 1959, p. 105.
3
Bastin, 1959; Lima, 1971, p. 148.
4
Lima, 1971, p. 148. Na verdade, os Cokwe preparam os caixões com a madeira da árvore muhanga
(muhanga wa mufu); a rarudade do objeto impede de sabermos se a observação de Lima é realmente exata.
O cisese observado nas coleções do Museu de Dundo foram fabricados por meio da kajika mutunda, e não
de muhanga.
5
Reynolds, 1963, p. 108.

39
40

adivinho tem na mão esquerda e a parada da trança é uma resposta favorável: o cliente
doente se recuperará; se a trança se curva, é a morte que virá1.
Os Cokwe dizem que a kaponya (estatueta) está lá só por aparência; o importante
é o fruto, porque ele contém os remédios que lhe imprimem seu movimento; com os
remédios (que não se conhece) há também os grãos metade vermelhos metade pretos de
kenyenge que servem para denunciar o feiticeiro.
De acordo com o adivinho Hamumona, essa técnica vêm dos Kongo (Congo
oriental); ele explica assim: “Se entre nós há praticantes do ngombo ya cisalo, é porque
eles são originários do Congo. Os Cokwe iam buscar escravos Kongo com freqüência;
eles voltavam jovens; mais tarde, quando os escravos se tornavam adultos, eles se
consideravam Cokwe, mas naverdade são Kongo. Ora, suponhamos que um desses
homens fique doente; ele consulta um adivinho que lhe explica: ‘Você tem a doença do
ngombo de seu ancestral”; era o ngombo cisese; então ele vai procurar entre os Kongo um
cisese e se torna adivinho. Essa técnica não pertence nem aos Cokwe nem aos Lunda”.

1.2.5-Ngombo ya mbinga

Designação: -ngombo ya mbinga (White, Reynolds)


-kamengeni (Melland)
-ombambi (Hauenstein)
-”o pêndulo” (Delachaux)

Esse instrumento de adivinhação parece ter tido uma expansão enorme. Com
efeito Delachaux. que dá esclarecimentos detalhados sobre esse objeto adivinhatório, o
relaciona à antiga Rodésia do Norte (Zâmbia) enquanto que Hauenstein o achou entre os
Ngangela de Angola. White diz que ele pertence aos Lovale.
Delachaux descreve um exemplar encontrado pelo pastor Ed. Berger na Zâmbia:
“Ele se compõe de um cabo, simples baguete de 27cm, prolongado por uma cordinha de
fibras vegetais de 35cm, na ponta da qual é pendurado uma espécie de chifre cônico em
madeira, de 10cm. O chifre é preso na ponta mais grossa, sendo que a outra permanece
livre. A ponta grossa é provida de um círio negro ornado com pérolas brancas e quatro
pequenos frutos vermelhos. Nos dizeres de seu proprietário, o interior do chifre contém
os encantos, e entre eles os restos de sua sogra2.
O círio negro, neste caso, alarga a oposição do branco/vermelho da África Central
até à trilogia das cores fundamentais. Infelizmente no contexto do simbolismo da
adivinhação, não se sabe quase nada da cor preta, que parece prefencialmente negativa.
Todavia entre os Ndembu, sabe-se que o preto está relacionado com “a feitiçaria, a morte
, a desordem”, etc.3; mas como já vimos em várias ocasiões nas técnicas adivinhatórias, o
vermelho intervém para retomar à carga o preto.
De acordo com White o adivinho põe o pequeno chifre no chão e ao mesmo
tempo tremula um pedaço de pau; então o chifre se anima e avança docemente; no

1
Gelfand, 1956, p. 73; in: Reynolds, 1963, p. 110.
2
Delachaux, 1946, p. 46.
3
Ver: “La classification des couleurs dans le rituel Ndembu”, Turner, 1972, pp. 55-88.

40
41

instante em que o nome exato é pronunciado, o movimento ganha uma grande


velocidade. A passagem do desconhecido ao conhecido se realiza pelo viés dessa
descontinuidade no movimento. É este detalhe que fez Delachaux dizer que o adivinho se
serve desse instrumento à maneira dos radiestesistas europeus1. Este autor até coloca a
hipótese de uma iniciação do pêndulo europeu, porém na nossa opinião, isto não passa de
uma analogia totalmente fortuita.
Hauenstein explica que se constrói o “pêndulo” com um chifre de antílope
ombambi (Cephalopus Grimmi) e que o barbante é uma fibra vegetal - olunduvi (pl.
olondovi) - a corda por excelência dos angoleses do alto-platô (planalto), que se acha
entre a casca e a madeira de algumas árvores de Angola2.
Parece que o chifre pode ser substituído por certos objetos. Reynolds fala de uma
variante dessa técnica onde o chifre é substituído por uma pequena carapaça de
tartaruga,também repleta de medicamentos mágicos. O movimento circular, neste caso, é
determinado por um pedaço de pau inserido em um orifício da carapaça3.

1.2.6-Ngombo ya kakuka

Técnica originária dos Lunda. É um método muito antigo e provavelmente o


primeiro que os Cokwe conheceram4. Hoje não se vê mais, a menos que esteja associada
ao ngombo ya cisuka, como é o caso do adivinho Mwafima. De acordo com esse
adivinho, o pequeno ngombo kakuka pode ajudar a bandeja cisuka porque é o mesmo
espírito que as faz mexer. Na verdade, Mwafima é um praticante do ngombo ya cisuka,
que ele faz acompanhar de uma estatueta do ngombo kakuka utilizada unicamente como
testemunha.
A sessão com um ngombo kakuka é muito simples: em princípio, a resposta
positiva vem após algumas questões introdutórias pelas quais o adivinho situa o problema
por reportar a alguns parâmetros fundamentais da sociedade. Visto a impossibilidade de
observar uma sessão realizada com um objeto que só se utiliza raramente, tomo como
exemplo o texto de M. L. Bastin recolhido na mesma região em 1956:
"O adivinho: o primeiro ngombo é kakuka. Nós perguntamos a nosso amigo por
que ele veio. É por uma doença ou por um outro aborrecimento? Não, uma doença; ele
viu um espírito maléfico. Que espírito maléfico ele viu? Ele viu um turbilhão.
O consultante: é verdade, eu vi um turbilhão que me bateu. Esse aborrecimento
me prendeu e, por isso, eu vim até vós, adivinho.
O adivinho: dá-me uma gratificação.
O consultante lhe faz uma doação.
O adivinho: os males são benévolos. Morrerá ou não morrerá? Não, não morrerá.
que deve ele fazer? Vai pagar (reembolsar o bem de outrem) para que tu cures"5.

1
Delachaux, 1946, p. 46.
2
Hauenstein, 1961, p. 121.
3
Reynolds, 1963, p. 114.
4
Bastin, 1961, p. 100.
5
Bastin, 1961, p. 101.

41
42

O ngombo ya kakuka é composto de duas partes separáveis, uma superior outra


inferior, a primeira deslizando sobre a segunda (fotos 28-30).
Tem-se dado por vezes uma interpretação sexual a esse mecanismo divinatório.
Nenhum dos adivinhos consultados nos confirmou essa hipótese. Apoiando-se sobre o
texto de M. L. Bastin1 que observou em um caso concreto que a parte superior era um
busto feminino, Retel-Laurentin concluiu essa interpretação sexual2; se isto foi talvez
verdade no passado, os adivinhos atuais não fazem nenhuma idéia. Eles estão até
convencidos do contrário. Para eles uma parte esculpida (normalmente a parte superior)
não tem outro sentido senão o do efeito de um ornamento.
Normalmente portanto é a parte superior que é esculpida (kaponya) por oposição à
parte inferior que tem uma aparência muito simples; esta seria a principal transformação
operada nesta técnica pelos Cokwe quando a emprestaram dos Lunda, o que corresponde
não somente ao temperamento artístico dos Cokwe mas também às informações
etnográficas segundo as quais as formas tendo a parte superior esculpidas são mais
recentes que as outras3.
Além da divisão segundo o eixo horizontal em duas partes (kaponya / cula), a
primeira deslizante, a segunda imobilizada, o ngombo kakuka é estruturado conforme
uma segunda divisão, esta realizada ao longo de um eixo vertical e cujo valor simbólico é
determinado pelas duas cores fundamentais: branco / vermelho, que correspondem
respectivamente à mão direita e à mão esquerda do consultante.
A aplicação das cores tradicionalmente representativas da oposição bem / mal
parece ter aqui uma função unicamente alusiva sabendo-se que a parte superior do
ngombo kakuka, deslizando no eixo do aparelho, cobre necessariamente uma região onde
as duas cores estão representadas; não há pois nenhuma disjunção ao nível das cores que
pudesse dar a chave para a resposta. Apesar disso, os Cokwe não esquecem jamais de
colocar as cores simbólicas nesse pequeno instrumento. Para eles, toda técnica divinatória
deve dar em uma classificação de dois mundos que se misturam constantemente, o do
bem e o do mal, que as cores branco / vermelho traduzem e separam de modo simbólico.
Antes da sessão, o adivinho pode se servir do chocalho (lusango)4 para estimular
o ngombo kakuka, mas essa precaução não é obrigatória.
Hauenstein, que descobriu entre os Ovimbunbu esse mesmo instrumento de
adivinhação sob a designação de olumeta, diz que o nome olumeta significa árvore ou
antes casca de árvore e o nome da técnica provém do fato de que a parte inferior é um
pedaço de casca ou então um pedaço de madeira escavado em forma de casca5. O
adivinho Hamumona me confirmou este mesmo ponto de vista ao dizer que normalmente
o ngombo ya kakuka é uma pequena estatueta que desliza em um pedaço de casca. Basta
ao adivinho encontrar um escultor que fabrique para ele a pequena estatueta a partir da

1
Idem.
2
..."esfregalho escorregadio macho no qual desliza um busto de mulher", Rentel-Laurentin, 1968, p. 168.
3
Lima:, 1971, p. 144. Admitindo-se que esse ngombo é o mais antigo utilizado pelos Cokwe, nada autoriza
concluir que é o mais antigo na cultura cokwe; na verdade os Cokwe distinguem claramente quais são os
ngombo que receberam dos Lunda e os outros que pertencem aos próprios Cokwe, mesmo que outras etnias
os conheçam e os utilizem também. O ngombo ya kakuka, agora completamente inusitado, é sempre
considerado como uma técnica que vem dos Lunda
4
Ver os anexos do ngombo, pp. 119-120.
5
Hauenstein, 1961, p. 118.

42
43

madeira de mutete (Swartzia madagascariensis Desv.); ele lhe faz um buraco no peito
para colocar os remédios extraídos de várias plantas. Por sua vez, Mesquitela Lima parece
ter indicado o caso de uma estatueta kakuka em madeira de musole (Bombax reflexum,
Sprague)1. Parece que pelo menos para os Ovimbundu, a árvore de onde provém a
madeira não tem muita importância, mas o pedaço de madeira deve ter tido um uso bem
determinado:
“...ele (o pedaço de madeira) deve provir em princípio de uma vara que serviu
para carregar um cadáver quando da cerimônia de consultação do morto”2.
É uma técnica fora de moda que perdeu o prestígio de antigamente, pelo menos
entre os Cokwe, em favor de outras técnicas mais modernas:
“Kakuka era o ngombo que eu conhecia antigamente. Meu tio Samaika me havia
lhe apresentado. Para adivinhar com o ngombo kakuka, não é necessário primeiro estar
doente (isto é, possuído por um espírito); basta ser iniciado.
Eu abandonei o kakuka porque está muito fora de moda, é verdadeiramente
d’antanho e além do mais não é muito preciso. Depois, eu comecei com o ngombo ya
malyia. Com o malyia, vê-se mais claramente; foi um adivinho de Kakolo que
apresentou-lhe; mas eu jamais o utilizei para descobrir um nganga (feiticeiro), mas foi
sempre para os doentes” (João Manoel).
João Manoel explicou ainda como, mais tarde, ele foi possuído por um espírito;
era um convite para praticar a adivinhação pelo ngombo ya cisuka que inclusive é o único
a exigir a possessão pelo espírito Ngombo.
A técnica ngombo ya kakuka foi atestada em um vasto contexto etnográfico,
sobretudo na África Central; as diferentes variações geográficas foram classificadas por
Retel-Laurentin como técnica de adivinhação por fricção3.
Por sua antigüidade, essa técnica, mais que todas as outras, “põe assim o problema
dos legados culturais em função da importância dos fluxos migratórios e dos modos de
relacionamento entre as sociedades”4.
Em relação às técnicas por fricção, e talvez ao protótipo de todo o grupo, existe
um procedimento ainda mais simples onde “o adivinho fricciona uma contra a outra as
palmas das duas mãos após ter feito primeiramente um símbolo de cruz sobre o dorso da
mão com a cinza”5. É uma técnica sempre praticada pelos Bochimans de Angola bem
como pelos Ovimbundu que a designaram por okulilombula. Não se estabeleceu ainda os
pontos de descobertas eventuais.

1.2.7.-Ngombo ya lusango

-Ngombo ya lusango (White, Reynolds)


1
Lima, 1971, p. 142.
2
É uma coloração local que os Ovimbundu introduziram. Entre os Cokwe, não se tem notícia de recurso a
esse tipo de cerimônia. Em compensação, no centro e no sul de Angola era freqüente questionar-se o
defunto a propósito da causa do óbito; para cada questão, acredita-se ver movimentos do cadáver que se
interpreta como resposta do morto (Ver Estermann, 1939, p. 81)
3
Retel-Laurentin, 1968, pp. 138-172.
4
Retel-Laurentin, 1968, p. 138.
5
Hauenstein, 1961, p. 118.

43
44

-Ng'ombu yanzenzu (Turner)


-Tymba tya mukusi (Delachaux)

Não se observa mais esta prática entre os Cokwe de Angola; os mais antigos que
nos falaram dizem que é uma técnica abandonada há muito tempo. Em compensação,
Turner a descreve como sendo ainda atual entre os Ndembu e os de origem Lunda1
enquanto que para White, ela teria antes sido emprestada dos Lwena2.
O suporte material desta técnica é o chocalho (lusango) (foto 31) que se prende a
uma cordinha ao longo da qual ele pode deslizar. Delachaux descreve um destes
instrumentos que ele encontrou em um país nyemba:
"O instrumento do qual se servem os adivinhos ngangela e nyemba consiste em
uma casca de fruta dura, com a qual confeccionam seus chocalhos que acompanham as
cestas para adivinhar"3.
As frutas são bem presas à cordinha fixada em baixo no dedão do pé esquerdo e
em cima na mão esquerda; algumas variações se apresentam, mas encontra-se sempre o
movimento vertical de baixo acima; a parada em cima é indício de culpabilidade, ao
passo que o retorno do chocalho é uma prova de inocência.
De acordo com Delachaux, a parada em cima ou o retorno do lusango para baixo
seria determinado pelos movimentos inconscientes da mão ou do pé aos quais estão
presas as extremidades da cordinha.
É uma técnica extremamente simples e de grande flexibilidade. Reynolds
observou que os Rotse substituem facilmente o lusango por não importa qual objeto
cilindriforme ou mesmo por uma pequena varinha, ou ainda por uma pequena cabaça4.

1.2.8-Ngombo ya maliya

-ngombo ya maliya (Bastin, Lima)


-licalaxe (Milheiros)
-"mirror" (Reynolds)

Este método divinatório, como aliás todos os outros que mencionei até o presente,
não exige nenhuma iniciação especial, isto é, uma intervenção dos deuses que
determinaram a vocação do adivinho; a única coisa a fazer, é encontrar um praticante
experiente que aceite aprender o método mediante um preço bastante elevado.
Contrariamente a todas as técnicas relacionadas até aqui, o ngombo ya maliya está muito
disseminado, e é atualmente o único concorrente do ngombo ya cisuka. Apesar de sua
freqüência entre as populações cokwe, os praticantes desta técnicas perdem terreno cada
vez mais em favor do ngombo ya cisuka sempre honrado.

1-Origem e difusão

1
Turner, 1961, p. 82.
2
White, 1948, p. 88.
3
Delachaux, 1946, p. 47.
4
Reynolds, 1963, p. 116.

44
45

Os Cokwe consideram o ngombo ya maliya como seu legado próprio; constata-se


ser uma técnica bastante disseminada na África Central, mesmo se às vezes as formas
observadas são um pouco diferentes das dos Cokwe. O espelho, em princípio incrustado
numa estatueta, pode se apresentar como o único elemento constitutivo do ngombo. Neste
caso, ele será protegido por uma moldura metálica ou um quadro de cera que toma
freqüentemente o aspecto de uma cruz; veêm alguns uma referência ao sol que é um
elemento relativamente freqüente na arte decorativa1; às vezes essa proteção em metal ou
de cera tome a forma de um círculo com dois diâmetros perpendiculares (foto 32). Os
Cokwe hoje em dia não dão nenhuma significação especial a esses elementos que para
eles são puramente decorativos. Vê-se também exemplares de ngombo ya maliya onde o
espelho é protegido por uma construção em palha que se assemelha a um pequeno prato;
neste caso, o quadro será metade vermelho, metade branco.
A maior parte dos autores2 estimam que na origem desta técnica, o adivinho
procurava a imagem no espelho d'água; foi somente após a chegada dos europeus que se
utilizou o objeto espelho para obter a imagem-resposta. Entretanto, os Cokwe não
partilham deste ponto de vista. Para eles, houve sempre adivinhos especialistas do
ngombo ya maliya que utilizavam a água e outros que utilizavam o espelho; antes de
utilizar o espelho de fabricação européia, eles utilizavam a superfície polida das pedras ou
a transparência dos cristais. Pode-se admitir a diversidade de métodos desde a origem,
porque nos dias de hoje ainda se serve-se da imagem na água ao passo que o espelho foi
conhecido após muito tempo e utilizado em toda parte.
O adivinho João Manuel, especialista também do ngombo ya maliya e aspirando
igualmente ao ngombo ya cisuka exerce sua profissão utilizando uma garrafa cheia
d'água, que substitui o espelho depois que este foi quebrado (foto 33). Um pedaço de
redinha bem fechada é o único elemento adicionado à garrafa de limonada; ele explica a
razão desta organização:
"O mukishi (redinha)3 é bem fechado; é semelhante a uma casca de ovo; assim a
pessoa não pode saber se lá dentro há a imagem de alguém. O ngombo é assim porque
evita que a presença de um feiceiro atrapalhe a adivinhação; o ngombo fica protegido
contra ele; é um cijimbikilo4 ".
João Manuel vê na água a imagem-resposta, do mesmo modo que uma adivinha
olhava o espelho colado no chifre ou incrustado no ventre de uma estatueta. Na água,
estão os remédios cuja composição não é conhecida. A imagem que ele vê serve
unicamente de chamada porque na realidade é o coração que dita a resposta. O acordo
entre o instrumento e o especialista não pode deixar de se fazer; com efeito, o mestre lhe
deu para beber os mesmos remédios que misturara na água que faz aparecer a imagem-
resposta.
Uma variante provável desta mesma técnica foi assinalada por Delachaux em
angola, numa região assaz longínqua do país cokwe; este autor observou entre os
Nyaneka do sudoeste de Angola uma espécie de adivinhos, os ova-puli que "adivinham

1
Bastin, 1969, p. 103.
2
White, 1948, p. 88.
3
A redinha utilizada como vestuário do dançarino de máscara (mukishi) também se chama mukishi.
4
Cijimbikilo - coisa oculta e que deve continuar oculta.

45
46

atirando um punhado de cinzas numa cabaça cheia d'água". A técnica olumilo dos
Ovimbundu fazia igualmente apelo à água e às cinzas1.

2 - O ponto de vista de Madalena Augusta

Madalena Augusta, uma adivinha lwena, explica como teve a idéia de exercer a
profissão:
"Uma mulher morreu; conduziram-na ao cemitério. Mas antes de ser colocada na
sepultura, ela começa a falar. Ela virou kavumbu, isto é, alguém que está morto e
ressuscitado. Reotnando à aldeia, ala começa a adivinhar, profissão que havia aprendido
no país dos mortos". Madalena Augusta, uma filha lwena, pôde constatr o prestígio desta
mulher que se dizia kavumbu e as vantagens que estavam associadas. Ela pediu-lhe para
aprender a técnica. A aprendizagem lhe custou um boi, mas kavumbu, a mulher
ressuscitada, não lhe ensinou todos os detalhes. Madalena Augusta reconhece que a idéia
de se tornar adivinha lhe veio quando ela viu os negócios florescentes de kavumbu. Esta
possuía um remédio misterioso que ela punha sobre seus olhos antes de pegar o espelho
divinatório; ela colocou nos olhos de Madalena Augusta também, mas o verdadeiro
conteúdo do remédio ela não conhece.
É preciso observar que jamais uma mulher será adivinho entre os Cokwe, e muito
menos adivinho iniciado, isto é, adivinho possuído pelo espírito Ngombo; mas os Lwena
têm um regime excepcional; o regime do poder entre os Lwena é um verdadeiro
matriarcado; aliás a chefe atual, a irmã de Madalena Augusta, Cisengo, é a verdadeira
Nakatolo, chefe tradicional de todos os Lwena.
Como se viu, para o ngombo ya cisuka a técnica vem do além. A mulher kavumbu
tinha, no momento de sair do sono mortal, um pedaço de pemba na mão; tinha também
um livro que ela sabia decifrar para adivinhar.
Tomando consciência de seu saber, kavumbu encomendou a um escultor uma
estatueta, no interior da qual colocou os remédios; ela comprou também um chifre de
khai, encomendado a um caçador. Nossa informadora não tem condições de nos dizer
qual é a composição dos remédios, mas sabe que todos os ingredientes provêm do mato.
Na verdadem para se tornar adivinho do ngombo ya maliya, basta pagar; Madalena
Augusta pagou um boi, outros pagam dois mil Escudos. Mas vale a pena, explica
Madalena Augusta, porque os clientes trazem sempre muitos presentes e, além disso, eles
pagam pelas consultas de doenças cinqüenta Escudos. Para as consultas em caso de
falecimento, que aliás tornam-se cada vez mais raras, ela cobra mil Escudos; o mesmo
preço é pago quando se reclama seus serviços para fazer desaparecer a feitiçaria de um
nganga (feiticeiro).
Na verdade, como tomar a decisão a partir de uma imagem que se vê num
pequeno espelho? Madalena Augusta responde que é preciso saber olhar e que a pessoa
não pode dar uma resposta a uma questão sem olhar a imagem que é preciso ver. Na
verdade, é tudo o que é preciso aprender. Os remédios sobre os olhos ajudam a ver mais
claro mas não bastam para encontrar a solução, porque esta não vem dos olhos mas do
coração:
1
Delachaux, 1946, p. 45.

46
47

"O adivinho vê com seus olhos mas adivinha com seu coração", esplica Madalena
Augusta.
Para ilustrar sua atividade, nossa informadora explica como ela chegou no país
dos Cokwe, onde os adivinhos são muito numerosos:
"Eu comecei a adivinhar quando minha mãe, Nakatolo (mulher-chefe dos Lwena)
vivia ainda; tudo ia bem naquele tempo; após a morte de Nakatolo, minha irmã Cisengo,
que tem o poder, e eu fomos disputadas; eu não queria mais viver em sua casa. E além
disso, o povo é pobre no país lwena; aqui, há muitos trabalhadores que não ganham
pouco dinheiro; aqui há dinheiro; é por isso que os adivinhos são bem pagos".
E entretanto não se encontra mulheres adivinhas entre os Cokwe. O que não
impede o sucesso de Madalena Augusta:
"Apesar dos adivinhos serem bem numerosos aqui, muita gente vem solicitar
meus serviços por estarem convencidos que sou eu quem fala com mais certeza; houve
até um europeu que me consultou para lhe dizer onde se encontravam algumas manadas
de elefantes que lhe pertenciam e que haviam desaparecido após um certo tempo".
Madalena Augusta termina seu testemunho contando sua última intervenção; era
um caso de feitiçaria; a intervenção de Madalena Augusta foi solicitada pela autoridade
colonial:
"Um dia, uma pessoa morreu na aldeia Kaika. O chefe da aldeia não sabia quem
era o responsável pelo falecimento; mas a família da falecida havia consultado o adivinho
durante a doença; havia grandes suspeitas a respeito de uma velha viúva de nome
Namutondo. O chefe da aldeia não pôde conter sua raiva com relação a todo o parentesco
de Nama, a mulher enfeitiçada, que veio a morrer; os golpes de bastão começaram a
chover e Namutondo foi a vítima. O filho de Namutondo, impotente diante da agressão,
parte para advertir a autoridade, o 'chefe de posto' (autoridade colonial). Este pediu a
intervenção de Madalena Augusta. Pegando sua trouxa de praticante, Madalena Augusta
parte para a aldeia Kaika para fazer seu trabalho:
"Eu olho seja no mbinga (o chifre) seja na kaponya (a estatueta) porque a imagem
pode aparecer em um ou em outro; depois de alguns minutos, vi no mbinga (o chifre) a
imagem de Namutondo; então eu perguntei: onde está Namutondo? O chefe tinha
colocado Namutondo na prisão; ela permaneceu lá um certo tempo porque eu fiquei
doente; quando me restabeleci, o chefe me pediu para retirar a feitiçaria de Namutondo.
Esta inicialmente protestou inocência mas depois de ter bebido os yitumbo (remédios) que
lhe dei para beber, ala confessou sua feitiçaria e eu a retirei de seu coração".
Encontrar a resposta durante uma consulta, como desenfeitiçar um presumido
nganga, é para o praticante do ngombo ya maliya uma diligência interior, uma questão de
coração; por este aspecto, esta técnica favorece os praticantes inteligentes e plenos de
boas intenções, mas a maioria dos Cokwe prefere seguir o processo passo a passo, a
diligência do adivinho se concretizando diante de seus olhos pela mediação dos objetos
(tuphele) do ngombo ya cisuka.

3 - A sessão

O adivinho começa a sessão divinatória preparando seus olhos para ver melhor a
imagem-chave da resposta. Ele unta seus olhos com remédios contidos em dois pequenos

47
48

sacos que acompanham o ngombo; o mananyi e o maka; os ingredientes dão ao adivinho


um olhar mais penetrante e uma capacidade mais forte para discernir o bem e o mal1 . Ao
mesmo tempo, o adivinho utiliza como estimulante, o movimento de um lusango
(chocalho) para induzir o ritmo conveniente ou ainda, ele tem, a seu lado, uma estatueta
que se considera como uma hamba favorável à adivinhação. Antes de abordar as questões
concernindo a adivinhação propriamente dita e o problema exposto pelo consultante, o
adivinho evoca também, em algumas palavrasd mais ou menos estereotipadas, as grandes
linhas históricas de seu povo, de sua origem e a ocupação da terra; são igualmente citados
os grandes rios considerados como ponto de referência das mais importantes etapas do
passado.
O adivinho manipula habilidosamente o espelho, ou melhor, a garrafa d'água de
modo a determinar a posição exata que lhe permita de se aperceber de uma imgem que
lhe revelará a verdadeira identidade do culpado, que deve responder em caso de doença
ou óbito. Normalmente, é um caso de feitiçaria. Não se trata de uma diligência de
pequenos passos explorando as diferentes possibilidades. Após algumas questões
prováveis, o adivinho "parte" em busca do culpado desvelado em breve pela imgem
formada no espelho ou na água transparente.
O ponto de vista do adivinho concorda com a imagem do espelho ou da garrafa
d'água porque o praticante e seu instrumento participam do mesmo poder; com efeito,
eles absorveram os mesmo remédios; como dizem os Cokwe: "o que está lá dentro (no
espelho ou na água) é o mesmo que fala em seu coração".

1.2.9-Outras técnicas ngombo

É impossível descovrir todas as modalidades apresentadas sob o nome de técnica


ngombo; várias desapareceram, outras estão em via de extinção. Citamos abaixo algumas
quase que completamente desparecidas:

a) -Ngombo katwa
Ngombo katwa (Turner)
"Magnetic gourd" (Reynolds)

Trata-se de uma cabaça levada ao pescoço e que contém medicamentos favoráveis


à adivinhação; na frente, o adivinho põe o pemba, de um lado, e o mukunda, do outro. Ele
segura a cabaça e à medida que coloca as questões, ela avança para a direita ou a
esquerda. De acordo com Turner, esta disjunção direita / esquerda determinada pela outra
disjunção branco / vermelho estabelecia o domínio no qual o adivinho devia buscar a
resposta:

o branco - que se chama "raiz de cassava" é a doença;


o vermelho - a caça ou uma purificação anti-feitiçaria.

1
Bastin, 1959, p. 103.

48
49

Esta mesma conotação precede o ato divinatório propriamente dito. Com efeito, o
adivinho põe apenas o pemba sobre seus olhos se ele deve determinar a causa de um
doença; o pemba e o mukunda, se ele deve descobrir um feiticeiro. Adicionemos que os
Cokwe utilizam ainda hoje esta técnica, mas eles substituíram a cabaça por um prato
europeu.

b) - Ngombo kapyekete
Ngombo kapyekete (Lima)
Ngombo ya mzele (Turner)
Mangaba ou masepo (Maes)

Trata-se de uma técnica de origem lunda, de acordo com Turner1, mas que não se
encontra mais; para Mesquitela Lima ela vem de preferência de um pequeno grupo étnico
do norte da Lunda que é designado correntemente por Fwiya2. É um conjunto de
pequenos pedaços de madeira articulados que se afastam ou se engancham segundo o
movimento dado elo adivinho (foto 34). O afastamento máxima dos elementos
corresponde a uma resposta negativa, enquanto que os pedaços bem unidos determinam
uma resposta positiva (fotos 35-36).
Este instrumento já foi descrito por Maes em 1925 sob o nome de mangabaga ou
masepo:
"... formado por um feixe de pequenos bastonetes aos quais se prendem outros
bastonetes ligados por cordas entrecruzadas e formando uma série de losangos móveis em
torno do eixo central"3.
De acordo com as informações da época, este instrumento havia sido encontrado
entre os Pende, mas se ignorava a maneira de utilizá-lo.

1.3 - O Ngombo ya Cisuka

1.3.1-Origem e difusão

Bastin: ngombo ya cisuka (Cokwe)


Lima: ngombo wa tshisuka (Cokwe)
White: ngombo ya kusekula (Lovale)
Turner: ngombo ya kusekula (Ndembu)
Reynolds: ngombo ya kusekula (Rotse)
Delachaux: Tyimpa tya zimpelo (Ngangela)
Delachaux: Tyimpa tya ngombo (Nyemba)
Santos: gombo (Cokwe)

1
Turner, 1961, p.82.
2
Lima, 1971, p. 148.
3
Maes, 1925, p. 745.

49
50

Milheiros: gombo (Lwena)

A opinião dos Cokwe é que o ngombo ya cisuka é deles, que lhes pertence
propositalmente; foi inventado por eles e tem sua preferência em relação aos outros meios
de adivinhação. Elias Mwasefu, nosso informador-intérprete explica o por quê dessa
preferência: "Nós amamos mais aquele (ngombo ya cisuka) porque no frasco (ngombo ya
maliya) é apenas o adivinho quem vê; ele adivinha em seu coração e fala. Neste (ngombo
ya cisuka) eu também vejo o que ele diz. Algumas pessoas, quando vão consultar o
adivinho, sabem imediatamenteo resultado mesmo antes que o adivinho lhes explique,
porque eles próprios veêm a resposta do cesto, ao olhar como os tuphele (símbolos de
adivinhação) mexem e se misturam uns aos outros para dar a resposta".
Resta delimitar claramente as fronteiras de difusão desta técnica de adivinhação.
Assinalada em diversas etnias da zona lingüística K e ainda em algumas etnias vizinhas,
sua extensão parece de fato limitada às zonas por onde os Cokwe passaram e se fizaram
ou ao menos exerceram sua influência. À leste se conhece sobretudo os Ndembu. Turner
interpreta essa herança cultural por via ritual (pelo rito kayong'u) que os Ndembu
receberam dos Cokwe e dos Lwena:

Cokwe

Lwena Ndembu

Este seria pois um aspecto particular de uma difusão muito mais ampla e mais
constante que se explicava não somente pela mobilidade permanente das populações
cokwe mas também pelas modalidades próprias da colonização.
Os Ndembu chamavam com freqüência adivinhos de Angola para lhes submeter
suas questões; nós sabemos até mesmo que um dos informadores de V. Turner era um
adivinho angolano. Ele pode ter razões de prestígio (a distância em geral favorece o
prestígio do adivinho), mas há certamente também o fato de que a repressão das
autoridades coloniais exercidas contra o adivinho, ainda que ela fôra mais ou menos
generalizada nos dois territórios, seja exercida de maneira diferente em Angola; a
hostilidade dos missionários para com os adivinhos se traduzia apenas em tomadas de
posições ocasionais mais ou menos freqüentes, segundo o zelo maior ou menor dos
administradores "chefes de posto". Jamais o adivinho foi considerado oficialmente como
um "fora-da-lei", porque a legislação colonial portuguesa não atingiu nunca um grau de
sofisticação que lhe permitisse distinguir com rigor o adivinho do feiticeiro ou do
curandeiro. A lei inglesa ao contrário prescrevia em termos absolutos1 a atividade do
adivinho e, em conseqüência, o simples fato de se transportar um cesto divinatório
bastava para ser considerado um criminoso. Esta parece ser também a razão principal de
uma certa evolução das técnicas de adivinhação durante a época colonial, sobretudo com
a proliferação de novos métodos, mais práticos e mais imediatos e sobretudo menos
1
Ver África, 1935, principalmente Orde Browne, pp. 481-487 e Melland, pp. 495-503.

50
51

fáceis de detectar, tais como o cabo do machado, a cabaça com água, o espelho, etc.,
assim como os processos que passavam mais facilmente desapercebidos que o genioso e
complicado cesto divinatório.
Mais ao sul, o ngombo ya cisuka chega aos Rotse (Barotse) também através da
influência cokwe e sobretudo pela dos Lwena que marcaram profundamente todo o
sistema mágico-religioso dos Rotse, bem como sua cultura material:
"In Barotseland... immigrant Lunda-Lovale have a considerable influence on
almost all aspects of indigenous material culture, notably inthe field of magic"1.
Mas o maior campo de expansão desta técnica foi precisamente em direção sul e
sudoeste, quando os Cokwe penetraram profundamente no interior de Angola, pequenos
grupos tendo penetrado até mesmo além da fronteira sul. Desta presença resulta a
expansão da técnica entre as etnias atravessadas pelo movimento migratório,
principalmente os Lwimbi, Ovimbundu, Lwena, Ngangela e Nyemba. Há informações
concernentes ao cesto divinatório dos Ovimbundu que não deixam dúvidas quanto à
influência cokwe, bem como se pode notar nestas amostras uma franca redução na
proporção das figuras antropomorfas; a partir dos Ovimbundu esta técnica pode ter
seguido para os vizinhos Ngangela e Nyemba:

Ngangela
Cokwe Ovimbundu
Nyemba

Esta hipótese foi formulada por Delachaux, que parece ter levado em conta as
relações e os contatos sucessivos entre estes povos:
"Nós temos a impressão que os Ngangela importaram este método dos
Ovimbundu, assim como os Nyemba, que, além disso, são seus parentes próximos. Os
próprios Ovimbundu, que são vizinhos diretos dos Tyivokwe, o puseram a estes últimos,
já mais antigamente"2.
Segundo A. Hauenstein, conhecedor igualmente do cesto divinatório dos
Ovimbundu, as coisas teriam se passado um pouco diferentemente:
"Nós estamos enclinados a crer que se trata de uma importação dos Tchokwe ou
dos Ngangela". E ele avança os argumentos em favor da primeira hipótese, a origem
cokwe: "Primeiramente porque as principais estatuetas são semelhantes às da cesta dos
Tchokwe, e depois, as estatuetas são quase todas esculpidas por estes últimos". E
sobretudo, o argumento da observação de todos os dias, cujo valor é incontestável: o fato
que os adivinhos do cesto, entre os Ovimbundu, são preparados em etnias estrangeiras: ...
"contrariamente ao que vimos entre os Tchokwe, a arte de adivinhação por meio da cesta
de ossinhos entre os Ovimbundu não é herdada de um ancestral, mas adquirida ao curso
de uma iniciação recebida em um país estrangeiro, sinal assaz revelador de que se trata de
um empréstimo de uma outra tribo"3.

1
Reynolds, 1963, p. 102. "Na terra Barotse... imigrante Lunda-Lovale tem uma influência considerável em
quase todos os aspectos da cultura material indígena, notoriamente no campo da magia".
2
Delachaux, 1946, p. 144.
3
Hauenstein, 1961, p. 120.

51
52

Teremos também, e talvez com mais probabilidade, a difusão imediata a partir dos
Cokwe para as populações vizinhas e apenas acidentalmente a passagem da técnica de
uma população a outra sem intervenção dos imigrantes cokwe:

Cokwe

Ovimbundu

Ngangela

Além da consciência imediata e generalizada de que o ngombo ya cisuka é


particular aos Cokwe, alguns especialistas mais idosos se estendem até o domínio da
mitologia cokwe e descobrem o aspecto ideal desta técnica-mensagem que remonta,
segundo esses especialistas, ao célebre chefe Mwana Cibundu, que teria morrido de uma
doença específica - a doença Ngombo - que se manifesta principalmente por tremores
do paciente acompanhados de respiração profunda e ritmada:
"O chefe Mwana Cibundu morreu e seu corpo ficou quatro dias sem ser enterrado
para celebrar os funerais. O quarto dia das celebrações e quando o corpo se achava na
casa do morto, se ouviu subitamente um barulho: era Mwana Cibundu que revivia
possuído por uma força especial que se manifestava por uma respiração compassada:

Hô... Hô...Hô...
Hô... Hô...Hô...

Ele tinha um cesto (ngombo) nas mãos e também um pedaço de pemba (caolim
branco); ele se dirigiu às pessoas que do lado de fora celebravam sua morte e lhes disse:
"Eu morri da doença ngombo; por essa razão fui enviado de novo para viver por Nzambi;
venho para adivinhar porque não se pode morrer de Ngombo" (Sakungu).
De acordo com a opinião de Sakungu, a doença ou possessão pela hamba Ngombo
não pode ser mortal; a descoberta dessa forma de possessão remonta ao fundador da
chefia Mwana Cimbundu, às margens do rio Cipaka.
Esta ligação do adivinho com o fundador da chefia é muito freqüente, mas nem
sempre evidente; a análise da atividade do adivinho torna evidente o lugar que ele ocupa
na estrutura do poder. Sua atividade condiciona e determina em grande parte a atividade
dos chefes de aldeias.
O acesso de um homem à função de adivinho nos parece mais importante em
nosso estudo que a ligação ao poder tradicional. É o que se produz, como assinalamos,
por via de possessão. Daí a necessidade de analisar em detalhes as circunstâncias
concretas que acompanham e exprimem essa possessão que toma forma através do rito de
iniciação.

1.3.2-O rito de iniciação

52
53

Com o fim de ir tão londe quanto os dados nos permitam nesta análise do
complexo ritual de iniciação, nós achamos necessário apelar às descrições feitas por
diferentes informadores, adivinhos ou não, pois pela força das coisas, estes homens de
idade muito avançada (adivinhos) esquecem elementos importantes. Por meio do
conjunto das descrições, nós podemos, parece-nos, melhor resgatar todos os elementos
significativos que intervêm no rito.
A análise destes elementos é de importância fundamental pois condicionam a
própria sessão de adivinhação, porque tanto para o tahi quanto para seus clientes eles
formam o contexto imediato no qual se insere a "leitura" dos tuphele realizado pelo tahi.

1.3.2.1-A iniciação entre os Cokwe

A) - As diferentes versões dos informadores

a) - Versão de Mwasefu

A festa é feita à noite na Kayanda1. O mestre é o tata ya ngombo2. É ele que


arruma o pote com os remédios e o põe sobre o kata preparado ao lado do doente.
O doente é sentado sobre uma esteira, pintado com pemba e mukunda e deixa o
torso nu.
A festa é anunciada para tal dia. Naquele dia o povo diz: "hoje tem ngombo". As
mulheres voltam dos campos mais cedo para preparar a refeição.
O ngombo não sai muito cedo. Os tambores já estão prontos e começam a tocar. O
mestre-adivinho (tata ya ngombo) entoa uma canção. O ngombo ya cisuka fica no chão
sobre a esteira. O mulondo (pote de remédios) está no chão também ao lado do ngombo.
O tata ya ngombo canta, o povo responde cantando também; todos "dão movimento"
(animação) batendo as mãos. Só o doente está calmo, tranqüilo e silencioso, ao lado do
ngombo sobre a esteira; há também o cinu (barrete); o cinu e o mulondo estão pintados3 .
O tata ya ngombo dança e canta e agita o musambo para "dar movimento" ao espírito. O
mestre aspira a água no mulondo e a cospe tomando fôlego.
Isto para fazer subir o espírito à cabeça do doente. Em seguida ele pega o hissope
que está no cinu e asperge a doença; se o espírito não sai, o tata ya ngombo coloca uma
outra pessoa ao lado do doente (o irmão ou o tio); essa pessoa não é pintada. Se o espírito
não quer se manifestar no doente, ele pode "sair" em uma outra pessoa da família, mas é o
doente que se tornará adivinho. Lá pelas três ou quatro horas da manhã o espírito

1
Kayanda significa "o lugar do sofrimento". É a fórmula de juramento para os que freqüentaram o
mungonge. Aqui, significa o lugar onde se desenrola um "ritual de aflição".
2
Tata ya ngombo significa "pai do ngombo"; por sua vez, o mestre de iniciação designará o novo tahi como
seu mwana (filho, criança).
3
Com as mesma cores rituais: pemba e mukundu.

53
54

(Ngombo) começa a sair; o doente treme muito e começa a falar. Fala primeiro com uma
voz baixa, de maneira imperceptível, em seguida diz em voz alta:
"Eu sou ... hoje, vós vos lembarareis de mim, é para isso que me faço conhecer. Se
vós não vos estais lembrados de mim, eu matei muita gente. Sou eu quem impede de se
ter sorte na caça; sou eu quem não deixa cultivar os campos; sou eu quem vos impede de
ter filhos. Tudo isso porque vós haveis me esquecido. Hoje eu saio; tudo o que vós não
tendes até o presente, agora vós podeis obter".
E Mwasefu continua sua descrição: o espírito estava triste porque o haviam
abandonado por tempo demais e tinham-no esquecido na mata, e é por isso que estava
furioso, cheio de rancor e ciumento. Agora é o doente que vai descobrir e explicar tudo o
que se passou até então.
Cheio de força, o doente se aproxima do fogo e todo mundo se afasta de medo
quando o vê tocar o fogo. Mas ele não se queima; ele até mesmo esmaga os carvões
inflamados diante dos outros, que se afastam. Então o doente não quer mais voltar à
esteira. O tata ya ngombo lhe dá água para acalmá-lo, mas ele salta e quer fugir para a
mata.
O tata ya ngombo lhe dá também a água do pote de remédios. Isto durante um
longo momento e o doente continua a gritar e a se agitar.
Ao nascer do dia, quando a manhã se aproxima, o doente se senta de novo sobre a
esteira; o tata ya ngombo o acompanha para se repor. Ao nascer do sol ele o conduz ao
rio para lavar suas pinturas (de pemba e mukundu). Ao sair da água, o doente diz ao tata
ya ngombo:
"Hoje posso ainda arrumar o ngombo; pelo momento, espera, e quando eu tiver
preparado todas a scoisas, eu te chamarei".
O tata ya ngombo responde:
"Está bem, mas você ainda estará doente por algum tempo".
Então ele lhe dá uma casca de lupashi, põe um remédio dentro, faz um furo para
passar um fio de ráfia e o pendura ao pescoço do doente.
Então o tata ya ngombo se vai. O doente volta a si e procura um praticante que
saiba fazer o cesto para guardar os tuphele; pede também a um escultor para lhe fazer
estatuetas. Com muita freqüência o tata ya ngombo não sabe fazer essas coisas, mas
quando sabe trabalhar os cestos, então, ele o leva vazio para a festa de saída do ngombo.
Quando o doente já tem suas coisas preparadas, que são: upite (dinheiro ou
equivalente), galinhas e objetos do cesto (tuphele), então ele chama de novo o tata ya
ngombo e ele terá de novo a festa. Naquele dia, à noite, se o tata ya ngombo carrega o
cesto (vazio), o doente carrega com ele os tuphele para adivinhar e também o pequeno
saku1 para o lembrar dos mortos. À noite o doente se põe sobre a esteira. Ao pôr do sol o
tata ya ngombo corta dois bastões - minenge ya ngombo - que são dois bastões da mata
em lembrança da pessoa que queria ngombo; planta-os ao lado da casa do doente. Mais
uma vez rufam os tambores. O espírito fala como da primeira vez. De manhã cedo o tata
ya ngombo vai cortar a cabeça do galo e a põe no munenge.
Então o doente e seu "pai" (tata ya ngombo) comem juntos; e procedem da mesma
maneira de quando uma pessoa põe o lukanu.
1
Saku - pequeno pacote contendo os remédios preparados pelo curandeiro; neste caso é uma pequena bolsa
contendo as flechas que trazem os nomes dos mortos.

54
55

À noite o doente come com sua mulher1 e com o tata ya ngombo. e em seguida
"se diverte" com ela (tem relações sexuais) e recupera a santidade2. O contato (relações)
com a mulher só é permitido ao doente; o tata ya ngombo não pode fazer o mesmo pois
só está lá de visita; e mesmo se vem com sua mulher, esta não pode comer da galinha
(ritual). Ao nascer do dia, o tata ya ngombo conduz o doente ao rio para lavá-lo. Qiando
retornam à aldeia, o tata ya ngombo diz.
"Eis o ngombo".
E esconde alguma coisa sem que o outro veja. É um objeto qualquer da casa,
como por exemplo uma faca ou uma enxada ou dinheiro. O doente canta e dança com o
ngombo nas mãos:
"Cingue yenga mboia" (eu não sei, é o ngombo que me obriga...).
Em seguida ele se aproxima do tata ya ngombo e diz:
"Sim, é verdade, vós escondestes uma faca".
Todos, homens e mulheres, aplaudem, pois ele adivinhou. O que o tata ya ngombo
escondeu é a cisweka3.
Então o doente pega a cisweka do tata ya ngombo. Em seguida apresenta as coisas
que são necessárias para pagar o tata ya ngombo: uma galinha, um cabrito, um fuzil,
alguns tecidos.
O novo adivinho deve sempre pagar bem. Agora alguns pagam em dinheiro mil
escudos ou duas peças de fazenda (tecido). Ao pagar, torna-se adivinho completo e a
partir do dia seguinte terá clientes, pois desde que descobriu a cisweka é porque sabe
adivinhar.

b) - Versão de Mwafima

Um homem adoeceu. Sua família foi ver o adivinho. Este disse: "Essa pessoa tem
Ngombo". Então a família oferece o mwivi ao tahi. Os parentes estavam de acordo com a
adivinhação e então convidaram o tahi para ser o tata ya ngombo. Acertaram o dia da
festa, onde se faria sair o Ngombo. Procuraram os remédios, o bastonete e compraram
também um pedaço de tecido branco.
Quando a noite caiu, as pessoas se reuniram, homens e mulheres, meninos e
meninas.
Os tambores batiam. O tata ya ngombo também batia no doente com uma pele (do
ngombo)4; batia para tirar o Ngombo que estava prestes a sair. O doente gritava:
Hô... Hô... Hô... Hô... Hô... Hô...
e tremia muito forte.
O tata ya ngombo pegou um remédio que ele colocou num prato e deu de beber ao
doente para acalmá-lo.

1
Somente a primeira mulher (namwari) do homem polígamo participa do ritual, que geralmente acaba com
uma refeição preparada pela mulher daquele que sofre o ritual.
2
A recuperação da santidade não significa o fim da possessão, mas, antes, que o deus possessor (hamba)
mudou: o estado de violência e agitação é substituído por uma possessão calma e favorável.
3
Cisweka - objeto escondido por alguém para ser encontrado por outro.
4
Uma das peles de animais selvagens que protegem o ngombo.

55
56

Ele ainda se agita: Hô... Hô... Hô... e assim por diante até a manhã.
Lá pelas cinco horas da manhã, o tata ya ngombo pegou um torrão na mata e
escondeu os tuphele kuku e o mwana1 e a cisweka que também era uma estatueta.
Em seguida ele chamou o doente. Levou-o consigo até a mata e lhe disse: "A
cisweka está aqui". O doente descobriu o que estava escondido. Depois eles retornaram à
aldeia, lá onde o tata ya ngombo havia deixado escondido o upite (o dinheiro) perto dos
homens e uma faca perto das mulheres. Então ele repôs o ngombo no filho (candidato)
para que ele procurasse. No fim o ngombo foi para o filho (mwana ya ngombo); quando o
tata ya ngombo é de uma outra aldeia, então o mwana manda fazer um cesto cisuka e o
tata ya ngombo só lhe dá uma parte dos objetos (tuphele). O "filho" começa a trabalhar
para encontrar os outros.
Quando o ngombo está completo com todos os tuphele e tudo o que é preciso para
a festa, então o mwana pega um galo grande, uma cabra e o dinheiro (upite). Manda
chamar o adivinho-mestre. Toda a aldeia se reúne; os tambores ressoam ao redor do fogo
e quando vem a manhã o Ngombo sai do doente. Assim que o Ngombo sai, o doente
corre ao poleiro e corta o pescoço do galo com os dentes. Pòe a cabeça (do galo) no
munenge que o tata ya ngombo encontrou (que ele cortou na mata durante o dia). De
manhã ele manda preparar o coração do galo com os remédios e mandioca, e engole tudo.
É então que se mata a cabra para a festa que se desenrolará com as pessoas que estiveram
presentes e que sofreram com ele toda a noite.
Em seguida ele tira o upite (dinheiro) e o dá ao tata ya ngombo que se vai.
Do galo morto ele guarda uma pata (osso) e da cabra ele guarda também uma pata
(casco) que ficam no ngombo.
Durante o dia o tata ya ngombo fôra buscar na floresta uma árvore para fazer o
munenge. Encontra uma árvore boa, arranca a folhagem (da mata) que prende ao redor do
tronco e não a deixa cair quando a corta. Em seguida ele corta os ramos e afina a ponta do
tronco; volta com tudo isso para a aldeia e a planta no solo; é para enfiar a cabeça do
galo.
Ao terminar sua narração, o velho Mwafima adiciona que ele já fez muitas
iniciações de tahi. Nào sabe muito bem quantas, mas se lembra dos nomes dos adivinhos
iniciados: e encontra pelo menos seis. A última iniciação foi a de Mwacimbau, o adivinho
que criou há anos perto de Karimbula, do outro lado da fronteira e que evoca nestes
termos:
"Mwacimbau caiu doente. Morreu (foi ao reino da morte) por quatro vezes, e
quatro vezes ressuscitou.
Ele não comia, caiu por terra".
A família chamou Mwafima que diagnosticou: "Esta pessoa não tem uma doença
normal. Tem Ngombo. Prepareis o pau para bater os tambores". Mwafima se foi para a
mata buscar folhas de mukhumbi. Ele as esmagou no barrete e esfregou-nas no corpo do
doente. À noite, ele preparou tudo: a esteira, os tambores, mulondo, ngombo e o cinu.
É ele, Mwafima, quem prepara tudo. De noite ele tirou o hissope do cinu e
aspergiu o doente para fazer subir o espírito à cabeça, e com a água e os remédios irrigou

1
Ver as estatuetas antropomorfas.

56
57

o doente. Então ele fez sair (se apresentar na dança) o Samukishi e o Tusando1 e as outras
mahamba da aldeia. Finalmente o Ngombo saiu.
Então ele fez um montículo na mata e escondeu o kuku e o mwana e a cisweka. O
filho (estatueta mwana) representa o filho do ngombo. Então o doente (Mwacimbau) veio
e encontrou tudo o que estava escondido. O tata ya ngombo (Mwafima) recebeu de
Mwacimbau como preço da iniciação: duas caixas de pó (djaja), um cabrito, um cobertor.
Mwafima não recebeu dinheiro porque o dinheiro do Congo (Zaire) não vale nada
aqui (Angola).

c) - Versão de Sakungu

O tio de Sakungu tinha o ngombo. Ele se chamava Mwacimika. Mas Mwacimika


morreu e Sakungu não deu importância ao ngombo. Um dia, Sakungu foi à caça e matou
um javali; mas quando comeu da carne, ficou doente. Sakungu pensava que era uma
doença qualquer2 , mas em seguida se apercebeu que era Ngombo. Sakungu foi então
procurar um outro tio: "prepare o pau e os tambores, e eu te preparo o remédio para ver se
Ngombo se manifesta ou não". À noite Sakungu ficou sobre a esteira; o mestre
(Citapande) preparou o pequeno barrete com os remédios. Os tambores começaram a
tocar. Lá pelas duas horas da manhã, Ngombo se manifestou pela primeira vez; em
seguida, se acalmou. De novo se manifestou com força pelas cinco horas da manhã, com
gritos e a agitação:

Hô... Hô... Hô......... Hô... Hô... Hô...

Quando Ngombo lhe subiu à cabeça, ele esganou o galo com os dentes e o matou.
O tata ya ngombo retitou o coração e os testículos do galo para dá-los de comer ao
mwana ya ngombo. O resto, ele deu à mulher do candidato para que ela preparasse, mas o
coração e os testículos pertenciam ao hungu3 para que o mwana os coma. Ele os come
primeiro sem os cozinhar, com sal e pemba.
Quando ele come, Ngombo volta ainda outra vez: Hô... Hô... Hô...
De manhã, ao nascer do sol, o tata ya ngombo foi de novo ao hungu prepara o
montículo de terra. Ele (Sakungu) ficou na aldeia. É o tata ya ngombo que foi ao hungu e
enterrou um chifre (mbunga) muito bem escondido no montículo. Os tambores
começaram a bater e o mwana (Sakungu) saiu com o ngombonas mãos e começou a
adivinhar:
"Aqui está escondido o mbinga;
mbinga de khai;
mbinga, mbinga, mbinga!".
Ele adivinhou!

1
Dançarinos de máscaras presentes na circuncisão.
2
Na expressão cokwe: doença moko-moko, que significa doença vulgar, que aparece freqüentemente, que
nossa intérprete traduziu por "doença de Deus" em oposição à doença advinda da feitiçaria.
3
Hungu - o lugar onde se prepara a hanga (pequeno torrão organizado por um ato importante de um
ritual).

57
58

Em seguida, ele comeu inteiramente o galo que havia sido preparado.


Tudo isto se passou na mata. Depois eles foram, todos, perto da cota e Sakungu
procurou a cisweka escondida. Uma de suas mulheres, que era a namwari tinha escondido
um ferro dobrado (lukhoka). Então ele adivinhou: "Minha mulher escondeu aqui
lukhoka". E foi tudo.

B) - Exegese dos textos

Nas três descrições apresentadas, há elementos comuns e elementos particulares a


cada narração. Escolhemos de propósito uma narração de um informador que não é
adivinho para confrontá-la com as dos próprios. Mwasefu descreve a iniciação vista por
um espectador, enquanto que Sakungu e Mwafima foram iniciados e por sua vez eles
próprios mestres de iniciação. Nos parece que as perspectivas complementares
facilitariam a tarefa de determinar os elementos essenciais da estrutura do rito de
iniciação do adivinho entre os Cokwe.
Mwafima distingue expressamente os três momentos fisicamente distintos da
iniciação, a saber:
-manifestação da hamba Ngombo na aldeia;
-a prova do monte de terra, na mata;
-uma nova prova (cisweka) na aldeia.
A descrição de Mwasefu distingue duas fases, separadas no tempo, que se passam
normalmente na iniciação do adivinho. Em princípio, há primeiro a identificação da
hamba e seu apaziguamento consecutivo. Só mais tarde é que o candidato adivinho está
realmente iniciado, após ter (com muito esforço) acumulado os bens necessários às
despesas que uma tal festa implica. Na verdade, é assim que procedem a maioria dos
candidatos. EM certos casos de iniciação, isto é feito de uma só vez; principalmente no
caso em que o mestre adivinho inicia o filho de sua irmã.
A descrição de Sakungu, menos rica em detalhes, distingue igualmente o que se
passa na aldeia (fase inicial e final) e a prova ou descoberta da cisweka no hungu (mata).
Do conjunto de informações compete que o rito de iniciação se desenvolve em
três fases distintas que se pode designar assim:

1. fase preparatória: indução da hamba Ngombo;


2. a prova na mata;
3. a prova na aldeia.

1. Indução da hamba Ngombo. Nesta primeira fase, o objetivo é unicamente de


fazer o doente entrar em transe para que o espírito Ngombo se manifeste e que se possa
identificar o ancestral de qual o doente herdou o Ngombo. Essa indução é provocada pela
dança e por todos os preparativos que a encadeiam, incluindo os remédios (bebidas), mas
o mestre procura controlar essa "subida" do espírito à cabeça do doente para poupar o
doente e as pessoas presentes de um eventual acidente. O climax de exaltação é atingido
quando a violência do Ngombo é apaziguada com o sangue do galo sacrificado

58
59

violentamente pelo doente com seus próprios dentes. A cabeça do animal sacrificado é
enfiada em um espeto (munenge ya ngombo). É então o grande momento do sacrifício
que a partir daí deve apresentar em todo o desenrolar do rito e que o novo adivinho vai
reavivar de tempos em tempos enfiando nessa forquilha uma nova cabeça de galo para
reanimar a força de seu ngombo (foto 37).

2. A prova (cisweka) na mata. A segunda fase se passa fora da aldeia e entram


unicamente o mestre iniciador e o candidato. O primeiro faz o montículo de terra, que
parece não ter forma definida, na qual ele esconde qualquer coisa (normalmente um ou
vários objetos do ngombo) que o novo adivinho vai descobrir dizendo seus nomes.
Sakungu associa esta segunda afse, de uma maneira muito direta, ao sacrifício do galo.
Com efeito, segundo este mestre, o candidato antes de adivinhar o que há no hungu, devia
engolir (sem mastigar) uma parte do pescoço e testículos da ave sacrificada (munanyi).

3. Enfim a competência do novo prostrado deve se tornar pública e, por isso, o


candidato vai adivinhar qual é o objeto escondido do lado das mulheres e do lado dos
homens. Não somente ele deve dizer o que é, mas ele próprio deve ir procurar os objetos
escondidos em meio aos aplausos dos espectadores; para esta descoberta ele se serve do
ngombo de seu mestre, que demonstra assim ao público a competência do novo adivinho.
Diz-se que para o público esta competência se entende exclusivamente em termos de ter
ou não Ngombo, isto é, de saber se o adivinho está ou não possuído por essa força; se ele
teve ou não um tempo de aprendizagem com o mestre não é determinante para a
confiança do cliente na aptidão do adivinho.

1.3.2.2-A iniciação em outras etnias

O fato de o ngombo ter se expandido dos Cokwe para outros povos coloca o
problema de saber quais são as transformações locais que esta prática divinatória pode ter
sofrido à medida em que ganhava novos adeptos de etnias diferentes. Este aspecto sempre
esteve presente na pesquisa de valores ou conteúdos simbólicos atribuídos aos objetos do
cesto divinatório. Seria judicioso de se perguntar se o próprio rito de iniciação não sofreu
adaptações ao se inserir em contextos diversos. A este respeito, as informações de L.
Tucker e de V. Turner relativas respectivamente aos Ovimbundu e Ndembu, são
particularmente importantes. Os diferentes aspectos do rito de iniciação nessas duas
etnias podem ser adaptações locais. Contudo, se considerarmos que o ritual é, apesar de
seus aspectos "congelados", uma realidade dinâmica, nada nos impede de ver nas
diferenças encontradas nessas etnias os aspectos do mesmo ritual cokwe em uma fase
anterior à atual. É sobretudo esta perspectiva que nos leva a reaproximar do ritual dos
Cokwe o dos Ndembu e dos Ovimbundu. Uma estrutura bem definida do rito de iniciação
do adivinho parece resultar de modo evidente do conjunto das observações.

A) -A iniciação entre os Ovimbundu: iniciação de Kasehwa.


(Versão de L. Tucker, 1940)

59
60

A iniciação do adivinho Kasehwa é descrita com bastante detalhes por L. Tucker1


. É importante retomar as grandes linhas desta descrição ao levar em conta o que se passa
com os Cokwe. Para facilitar a compreensão e por razões de síntese, destacamos os
principais pontos:

1) -Antecedentes: um dia, Kasehwa atravessou uma ponte rudimentar levando


uma carga sobre as costas; uma prancha da ponte se rompeu e ele caiu no ribeirão; foi
gravemente ferido porque caiu sobre seu peito. Mais tarde, enquanto roçava um campo
com sua mulher, foi atingido pela queda de uma árvore. Quando se restabeleceu,
empreendeu uma longa viagem durante a qual adoeceu. Ele consultou imediatamente o
adivinho para saber o que lhe perseguia. A resposta foi a seguinte:

"Teu tio-avô (o irmão da mãe da mãe) quer carne e Sanduku (irmão da mãe) quer
um cesto divinatório".

Tão logo Kasehwa partiu à caça, matou uma cabra selvagem. Ele secou um terço
do animal, que guardou com os chifres e levou para a aldeia de Ondulu. Assim que
contou à sua família o que tinha acontecido durante a viagem, esta decidiu chamar o
adivinho, enviando-lhe ao mesmo tempo duas galinhas para o "persuadir" a vir e
prepararam a cerveja para sua chegada.

2) -Primeiro dia: Kasehwa dá ao adivinho um chifre da cabra selvagem, que este


destinou a ser a primeira peça do ngombo, no caso dele se tornar adivinho.
O povo se reuniu e os tambores começaram a tocar.
O adivinho desenhou no chão uma enorme cruz com argila branca (omemba) e
estendeu por cima uma esteira. Fez isto a fim de que o espírito pudesse ver rapidamente o
lugar porque: "The omemba represents the eyes of the spirits"2 .
Kasehwa pagou então ao adivinho, como primeiro depósito, uma bola de
borracha. Depois o mestre conduziu Kasehwa levando-o pelo dedo mínimo e lhe fez dar
quatro voltas ao redor do tapete enquanto o povo cantava:

"waya waya koshisangu;


kuka ndogisa olondunge;
ame muele nda tela ale":

(Tu que falas nos campos de milho; não venhas tu ensinar-me a sabedoria; eu já
conheço tudo)3.
Em seguida houve cânticos e batimentos de tambores até que Kasehwa foi
possuído pelo espírito de Sanduku. Seu corpo sacudia e sua voz se transformou na do
espírito que estava em sua cabeça.

1
Tucker, 1940, pp. 775-778.
2
Nota do T.: "A omemba representa os olhos dos espíritos".
3
Tucker, 1940, p. 176.

60
61

3) -Segundo dia: Purificação. Mas com o espírito de Sanduku vieram outros, e era
preciso separá-los. Por isso, no segundo dia, eles foram até um pequeno ribeirão e lá
construíram uma pequena barragem. Sobre a borda, abriram um pequeno fosso em forma
de crocodilo, com a cebeça, o corpo, as patas e a cauda e o marcaram com argila branca
(omemba). Kasehwa foi despido (devendo suas vestimentas exteriores ficar em posse do
mestre-adivinho). Eles miraram sobre sua cabeça o capacete do adivinho (osala) e
untaram-no com lodo negro. Kasehwa sentou-se sobre o pequeno fosso em forma de
crocodilo que tinha sido enchido d'água e as danças e os cantos continuaram. Kasehwa foi
de novo atacado pelo espírito, se lançou no ribeirão e deu tantos sobressaltos que
intimidou os assistentes.
Então, o adivinho cortou a cintura de Kasehwa sob a água, deizando as
vestimentas seguirem a corrente de água. O corpo de Kasehwa foi lavado e após ser tirado
da água, eles o untaram de novo, desta vez com um óleo é um pó vermelho (elukundu) e
ao mesmo tempo esfregaram-no com o conteúdo do estômago de um bode sacrificado no
mesmo dia. Agora só o espírito de Sanduku o possuía, todos os outros foram retirados
pela águas. Eles cobriram Kasehwa com vestimentas novas1 , mataram cinco galinhas e
uma cabra, que foram preparadas e comidas na margem do ribeirão, pois nessa ocasião é
proibido comer na aldeia, como são igualmente proibidas as relações sexuais2.

4) -Cisweka: na saída da aldeia, eles prepararam um montículo de terra e


esconderam uma enxada. Kasehwa, que não tinha visto os preparativos, foi chamado e
sentou-se sobre um banco colocado ao lado do montículo. Recebeu então o capacete do
adivinho, o silvou para chamar os espíritos e o chocalho duplo. O mestre balançou o cesto
perguntando o que estava escondido.
Quando apareceu acima do cesto uma peça metálica, o mestre pediu: "Alguma
coisa de metal...". Kasehwa respondeu enumerando os diferentes objetos metálicos até
que disse a enxada, o que provocou os aplausos de todos. Após uma nova mexida no
cesto apareceu um chifre de antílope que representa a boca. O mestre pediu: "diga-nos
agora onde está escondido o objeto de metal!" Kasehwa disse: "Pode estar na aldeia, pode
estar na mata...".
-- Encontre-o! - disse o mestre.
Kasehwa se levantou e desenterrou a enxada, mostrando assim sua capacidade de
adivinhar. Às vezes é um outro objeto, faca ou outrem. Mas se o cnadidato não diz o que
está escondido e onde o objeto está escondido, ele não pode continuar o rito.

5) Retorno à aldeia: Kasehwa tem seu Ngombo à mão. Foi o mestre iniciador
quem o preparou, bem como a todos os objetos que ele contém; este lhe explica agora em
particular, um a um, o ato que Kasehwa pagará à medida que progredir em seus
conhecimentos. Ele aliás já efetuou vários pagamentos ao mestre:
-dez galinhas para formular o convite;
-quatro peças de tecido para que o tahi deixe a aldeia;
-um porco para apressá-lo (para não retardar o ritual);

1
Formalidade que marca o novo estatuto daquele que sofre um ritual.
2
A interdição do fogo e das relações sexuais reaproxima o rito de iniciação do adivinho do rito de
intronização do chefe da aldeia.

61
62

-o cesto custa um boi;


-as peças do cesto (tuphele) custam uma cabra;
-a aplicação dos remédios (unções do ngombo) que dá força ao cesto custa oito
medidas de tecido.

6) -Esposa do ngombo. A aprendizagem da preparação e do uso das plantas leva


dois anos. Passado este tempo, o especialista envia uma menina para passar a noite com
ele; na manhã seguinte ele lhe dá um vestido envenenado que causará sua morte; o
espírito dessa mulher continua a colaborar com ele; ela se tornou assim a esposa do
ngombo.

7) -Crítica -Sobre os pontos fundamentais, esta iniciação do adivinho entre os


Ovimbundu coincide com a dos Cokwe, sendo até mesmo mais detalhada sob vários
aspectos que os Cokwe parecem ter simplificado com o tempo.
O elemento novo é a purificação que pretende clarear a possessão inicialmente
ambígua e confusa por causa da multiplicidade de espíritos presentes. Este tipo de
possessão múltipla é normal nas populações do centro e do sul de Angola e parece
exprimir uma grande interpenetração de etnias1, o que não se verifica nos Cokwe.
Um outro elemento relativamente novo é o valor exagerado das prestações
devidas ao mestre e a multiplicação destas ao curso do ritual. Este exagero deve remontar
à época em que o adivinho era iniciado por um estrangeiro à etnia (um mestre cokwe, sem
dúvida); os Cokwe exigem preços elevados por uma iniciação, mas o que se pratica entre
os Ovibundu vai além de tudo o que os velhos mestres consideram como aceitável.
Um outro elemento estranho e certamente a repulsar, é o que se refere à "esposa
do ngombo" que é, na verdade, um ato de pura feitiçaria. Isto é categoricamente rejeitado
por todos os adivinhos, e deve se entender como uma justificação da rejeição, pelos
informadores convertidos ao Cristianismo, das práticas de adivinhação2.

B) -A iniciação entre os Ndembu: iniciação de Muchona.


(Versão de V. Turner, 1961)

1) -Antecedentes: "Meu Kayong'u, diz Muchona, me advém de três espíritos, dois


dos irmãos de minha mãe e um de meu pai. Quando eu adoeci, todo mundo dizia que eu
ia morrer. Alguns estavam convencidos de que eu tinha sido vítima de um ataque da wuta
wawufuku (semelhante ao fuzil do feiticeiro, uta wa mbomba). Alguns diziam: deves
encontrar uma cabra e uma galinha para celebrar a kaneng'a (ritual para cuidar de uma
doença causada por feitiçaria). Outros foram ver o adivinho que diagnosticou: Muchona
tem kayong'u. Eu estava de acordo com os últimos porque eu tinha sonhado com o irmão
de minha mãe ecom seu ngombo ya katwa. Meu tio me dizia para tremer (submeter-se ao
1
Ver Estermann, 1970.
2
É preciso levar em conta o fato de que os cestos de adivinhação estudados por L. Tucker pertenciam aos
convertidos:
"... the divining baskets... were sold to Europeans by diviners who had given up their practice when they
made profession of Christianism" (Tucker, 1940, p. 183) Subnota do T.: "... os cestos divinatórios... foram
vendidos aos europeus por adivinhos que desistiram de sua prática quando converteram-se ao
Cristianismo".

62
63

ritual kayong'u); antes ainda, ele havia me enviado para "movimentar" o ngomb'u ya
mwishi (adivinhar com esse ngombo); eu tremi, em sonho. quando acordei, me perguntei
por quê tinha sonhado isso, e pouco depois fui ver minhas armadilhas: havia um kakuyu1 ;
e assim começou meu kayong'u. Mais tarde a doença veio, uma doença terrível. Meus
familiares foram ver o adivinho, que adivinhou o kayong'u. Disse que eu tinha três
tuyong'u. Então meus parentes me pentearam com mpeza e eu lhes dei dinheiro para
pagar o adivinho".

2) -Preparativos: "Dei também dinheiro para comprar um galo e um bode. Então,


eu mandei trazer minha "mãe de caça" (mama da wuyang'a)2 Sanyiwangu Chingungu
para fazer o kanyong'u; eu tinha então trinta anos. Kayoung'u é um espírito forte porque
conhece tudo, dá força para adivinhar. Preparou-se muitas cabaças de cerveja. Quando
Sanyiangu Chingungu chegou, pediu a meus parentes para levar o fogo. Ele foi com sua
mulher e seus curandeiros (ayimbuki) procurar os remédios; ao sair, eles deram a volta em
minha palhoça cantando. Com os remédios, eles trouxeram uma semente de muyombo,
que se chama muneng'a; tinham também no ngombo folhas esmagadas. O muneng'a foi
decorado com linhas de argila branca (pemba ou mpeza) e de argila vermelha (mukundu
ou ng'ula). Isto se passou ao pôr do sol".

3) -Possessão: "Ao cair da noite, eles trouxeram os tambores. A 'mãe de caça'


cortou os remédios vegetais e os colocou em uma vasilha (izawo). Acenderam o fogo.
Sanyiwangu pegou a lama negra (malowa) e a colocou na base do muneng'a. A lama, por
ser fria, significa a paz.
Muneng'a substituiu o espírito kayong'u com o fim de apaziguar o espírito. Ele
cobriu o muneng'a com uma esteira. quando veio a noite, Sanyiwangu colocou as plantas
medicinais no barrete e sua mulher as moeu. Os diferentes mbuki os envolviam como
testemunhas.
Sanyiwangu me fez tirar todas as vestimentas, salvo o que eu tinha à cintura. Eu
tinha também um cinto ao redor do peito. Ele me disse para sentar sobre um banco perto
do fogo. começou a me lavar com a água e os remédios. Pegou os remédios esmagados e
pôs na minha boca; eu cuspi o remédio à direita e à esquerda para afugentar os espíritos
perturbadores, os feiticeiros e as pessoas más. Em seguida eu bebi duas ou três vezes. Ele
pôs seu remédio sobre a minha cabeça, sobre meu peito, sobre meus braços, enfim sobre
todo meu corpo. Deu-me o musambo. Transportou-me do banco e me depositou sobre a
esteira, no chão. Eu estava tomada de violentas tremedeiras (kazakuka). Tive acessos de
tremedeiras várias vezes. Na terceira vez, deram-me um kalema (mpashi, a concha do
caurim) que prenderam em meu pescoço. Traziam uma cabaça de cerveja e todos
trabalhavam sem cessar.

1
Kakuyu - a lebre africana: "Spring hare" (Turner, 1961, p. 25).
2
Mama wa muyang'a is the title applied not only to a great hunter who instructs aprendice-hunters... but
also to the senior adept or practitioner at any performance on hunting rituel... (Turner, 1961, p. 26).
Subnota do T.: "Mama wa muyang'a é o título dado não apenas a um grande caçador que instrui caçadores
aprendizes... mas também aos adeptos ou praticantes mais velhos de alguma espécie de ritual de caça...".

63
64

Mais tarde, Sanyiwangu me deu um remédio em pó. Marcou-me nos olhos com
mukundu (nkung'u). Pôs-me em seguida um remédio sobre o fígado, acima do umbigo e
sobre a fronte.
De novo, eles tocaram os tambores. Eu recomecei a tremer, assim como
Sanyiwangu. Este me batia com o chocalho na minha cabeça para impedir que eu caísse
no fogo quando as tremedeiras eram mais fortes.
Sanyiwangu apresentou um galo vermelho sobre o qual eu me atirei para lhe
torcer o pescoço e separar-lhe a cabeça do resto do corpo com meus dentes. O sangue
jorrou e eu o suguei, o que me acalmou. Sanyiwangu ordenou que matassrm o bode, o
sangue escorreu pelo chão, e eu bebi um pouco.
A cabeça do galo foi espetada no alto do muneng'a e minha mulher foi preparar o
galo.
Sanyiwangu trouxe uma enxada e o sangue do bode que ele recolheu em um copo
e dividiu com os outros "doutores" ao longo do caminho da aldeia. No copo, havia
também os corações do galo e do bode.

4) -A prova fora da aldeia

a) -"Eles se aproximaram das árvores das saudações1 que encontraram perto de um


cruzamento (makenu); depois caminharam em linha reta até uma árvore kapwipu
(Swartzia madagascariensis)2. Lá, eles fizeram um monte de terra em forma de crocodilo,
com uma cauda e patas e puseram um bracelete e uma corrente com os grãos; esconderam
os objetos na cabeça e na cauda do crocodilo. Puseram também o coração do galo
plantado sobre um alfinete e o do bode fincado na ponta da faca. Esconderam ainda um
pouco de argila vermelha (nkung'u).
Os tambores ressoaram de novo.
Eles me chamaram e eu me sentei sobre o crocodilo virado para a cabeça. Então
eu comi o coração do galo e o do bode.
Sanyiwangu disse:
-- Por que você veio aqui?
-- Estou doente - respondi.
-- Está doente de quê?
-- É kanyong'u, que quase me matou.
-- Como matou?
-- Ele não me deixa dormir.
-- Você deve deixar kayong'u te ajudar.
-- Sim, kayong'u pode me ajudar.
Então os tambores do mugonge tocaram3.
-- Mostre que você é capaz de adivinhar o mal.
Eu dancei e encontrei a argila vermelha e mostrei às pessoas.
-- Onde nós escondemos os outros objetos?

1
Para os Cokwe mulemba e mukhumbi.
2
Mutete para os Cokwe.
3
Sobretudo o grande tambor cinguvu.

64
65

Eu dei tapas com as mãos, as pessoas responderam (também com tapas) e eu


disse: "um objeto está aqui perto da cabeça, o outro na cauda (do crocodilo) e o resto
pereto das mulheres.
Sanyiwangu continuou:
-- Diga-me o nome dessas coisas.
Os tambores continuaram. Eu comecei a tremer e a adivinhar:
-- Kayong'u está perto da cabeça.
-- O que tem na cauda?
-- Um bracelete.
Eu disse então às mulheres: vocês esconderam uma enxada.
-- Qual é a mulher que a tem?
-- A enxada está perto desta criança que está ao lado de minha mulher.
E houve grandes aclamações.

5) -Prova na aldeia. "Nós retornamos à aldeia e eles se colocaram perto do


muneng'a. Os tambores bateram de novo. Eu comecei a procurar em redor do muneng'a
alguma coisa que estava escondida.
-- Os chifres da cabra selvagem estão escondidos aqui - eu disse.
-- Tens razão.
E me fizeram grandes elogios. Eu disse assim:
-- Khai (que é a cabra selvagem), é o nome do morto1.

1.3.2.3-Exegese das diferentes versões

a) - Exegese da versão cokwe

As quatro versões do rito de iniciação do adivinho se apresentam muito


fragmentárias. Tem-se a impressão que houve através do tempo uma progressiva
simplificação do ritual.; da superposição das diferentes versões torna-se evidente que as
grandes linhas do ritual subsistem em todas a versões e que cada um dos informadores
exprime somente o que julga mais importante. É preciso verificar ainda que, apesar das
diferenças de detalhe, as quatro descrições mantêm a mesma estrutura ritual, a saber:
- a iniciação começa na aldeia, passa em seguida para a mata e acaba de novo na
aldeia;
- o novo adivinho deve sofrer uma prova (teste) de adivinhação na encruzilhada
dos caminhos que conduzem à aldeia;
- sua capacidade de adivinhar deve ser testada também no interior da aldeia.
A relação entre a "vocação" para adivinhar e para caçar é notada por Sakungu,
primeiramente caçador e depois adivinho.
Como detalhe de certa importância é preciso sublinhar a referência de Mwasefu ao
pote de remédios (mulondo) sobre o kata, objeto que significa mais que um simples apoio
se se levar em conta sua significação à entrada do acampamento da circuncisão1.
1
Sobre o khai na medida da personificação do morto.

65
66

Mwafima observa que um tecido de cor branca é utilizado como suporte do cesto,
substituindo a esteira tradicional; é um detalhe importante tanto mais que os Ovimbundu
também marcam o local de iniciação do adivinho com argila branca "para que o espírito
ache melhor o lugar do doente"2. Na iniciação de Mwacimbau (da qual Mwafima foi o
mestre-iniciador) há um detalhe de grande importância ritual: a manifestação do espírito
no momento do transe é facilitado pela presença das máscaras que protegem a aldeia; este
detalhe que parece ligado a uma prática local nem por isso era muito importante para
Mwafima.
A interrupção do rito (se limitando unicamente ao transe e identificação
consecutiva do espírito do ancestral possessor) e o fato de deixar para mais tarde a
iniciação propriamente dita são referidos por Mwasefu e Mwafima, mas somente o
primeiro assinala o recurso ao caurim (lupashi) no que diz respeito ao símbolo de um
compromisso do doente com o espírito ancestral.
Sakungu diz que, no momento de sua iniciação de adivinho, ele comeu os
testículos e o pescoço do galo sacrificado enquanto que todos os outros pensavam que era
o coração que fôra engolido pelo candidato-adivinho.
De acordo com Mwasefu as relações sexuais do novo tahi com sua mulher
principal (namwari) fazem parte do ritual com os mesmos direitos que no rito de
entronização do novo chefe da aldeia. Portanto, de acordo com os adivinhos, trata-se aqui
sobretudo de por um fim à proibição sexual que se estende sobre todos os participantes da
festa de iniciação do adivinho. Ao fazer amor com sua mulher o novo adivinho derruba
esta proibição.
Se compararmos a descrição da iniciação dos adivinhos cokwe com a dos
Ovimbundu e a dos Ndembu, teremos imediatamente a impressão que nestas etnias se
preserva ainda hoje uma forma mais antiga da iniciação cokwe. Dir-se-ia até que a
descrição da iniciação do adivinho apresentada por V. Turner (1961) e a de L. Tucker
(1940) correspondem a uma versão anterior (mas a mesma, no que concerne aos pontos
fundamentais) do ritual de iniciação do adivinho entre os Cokwe, à qual se adicionaram
alguns elementos de caráter local.

b) - Exegese da versão ovimbundu

Se admitirmos o ritual de iniciação do adivinho entre os Cokwe como um


protótipo que, a partir de uma certa época, passa para os Ovimbundu e os Ndembu, é
preciso então levar em consideração algumas observações importantes.
Antes de tudo, a introdução de uma seqüência de purificação pela água cuja
intenção é a de isolar o espírito favorável. Entre os Ovimbundu são freqüentes as
possessões múltiplas; o mesmo fenômeno se verifica em várias etnias do centro e do sul
de Angola. Estermann nota que muito raramente alguém é possuído por apenas um
espírito3. Isto seria pois normal entre os Ovimbundu, mas, dado que se trata de espíritos
não favoráveis à adivinhação, é preciso observar que é de novo por uma técnica

1
Ver a significação do símbolo kata-miniatura.
2
Tucker, 1940, p. 76.
3
Estermann, 1970.

66
67

importada do exterior. Na verdade, os Cokwe e também os Ndembu conhecem a


possessão múltipla, pelo mesmo tahi, mas com a condição que os diferentes espíritos
possessores provenham de antigos adivinhos. Dentre outros, é o caso de Muchona, que
recebeu os espíritos de adivinhação provenientes de dois irmãos de sua mãe e também de
seu pai. A impossibilidade, para o adivinho, de possuir outros espíritos que não
pertençam a adivinhos de outrora é bem sublinhado pelo fato de que o novo profissional
deve se submeter ao ritual de liberação dos espíritos não desejáveis. Os Ovimbundu
parecem ser ainda mais exigentes na identificação do ancestral possessor, dado que este
espírito deve se manifestar não apenas nos movimentos que acompanham o transe mas
também no detalhe da voz que o doente deve mimar; tudo isto supõe uma estreita relação
entre o antigo e o novo adivinho.
A significação espacial da encruzilhada também está presente desde a primeira
fase da cerimônia: os Ovimbundu colocam o candidato em um local arranjado em forma
de cruz1 para facilitar, segundo eles, a aproximação do espírito, principalmente porque o
ponto de referência é reforçado com caolim branco (pemba). O detalhe de conduzir o
candidato pelo dedo mínimo reaproxima de modo estranho o adivinho e o feiticeiro. Com
efeito, no ato divinatório acontece às vezes que o adivinho, tendo detectado o feiticeiro
dentre os assistentes, se levanta e vai ele próprio denunciá-lo puxando-lhe pelo dedo
mínimo. A presença do apito é também um elemento, aparentemente novo, que reforça a
ação do chocalho duplo.
A introdução de uma seqüência purificadora pela água, no conjunto do ritual de
iniciação, desloca para esse elemento a manifestação máxima do espírito que, no
paroxismo do transe, se manifesta por movimentos de grande violência; entre os Cokwe,
o doente em pleno acesso de transe pode jogar-se sobre o fogo; aqui ele volta para a água.
A retirada das roupas torna-se total com a introdução de novas vestimentas ao final da
cerimônia, o que reforça o caráter inicial do ritual; as unções com óleo e com o conteúdo
do estômago do animal sacrificado são outros elementos de caráter local que intervêm no
mesmo sentido que a purificação.
Note-se ainda o preço pago pelo novo adivinho a seu mestre; ele excede tudo o
que se conhece em relação às outras etnias, seja enquanto preço global, seja enquanto as
diferentes prestações que começam a se efetuar antes mesmo do ritual. Kasehwa pagou
uma bola de borracha; este elemento era um dos principais produto procurados pelo
comerciantes ovimbundu entre os Cokwe; é bem possível que uma certa quantidade de
borracha estivesse padronizada como preço de iniciação do adivinho.
No conjunto, e se se puser de lado a seqüência purificadora do ritual ovimbundu
que se explica aliás por uma certa evolução local, o rito de iniciação do adivinho é o
mesmo entre os Cokwe e os Ovimbundu.

c) - Exegese da versão ndembu

Os pontos de contato são bem numerosos no desenrolar dos rituais ndembu e


ovimbundu. Os Ovimbundu organizam o espaço desenhando uma enorme cruz no local
1
A cruz, enquanto manifestação da organização do espaço ritual, é freqüente sobretudo entre os
Ovimbundu. Ver Hauenstein, 1966-1967.

67
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arranjado para o ritual; em compensação, o mestre-iniciador ndembu cospe para o ar nas


direções privilegiadas da liturgia iniciática1. Nos dois casos prepara-se o torrão de terra
(hanga) para esconder os objetos que o novo adivinho deve encontrar, em forma de
crocodilo. Os Ndembu, igual aos Ovimbundu, procuram apaziguar o doente no momento
da grande excitação do transe, pondo-lhe terra úmida (malowa) sobre a cabeça.
A utilização do caurim, enquanto garantia de iniciação definitiva, e as relações
sexuais com a primeira mulher, enquanto elemento do ritual, estão presentes também na
versão cokwe de Mwasefu.

d) - Conclusão

Todo tipo de análise, mesmo sem entrar em detalhes, mostra com toda evidência o
parentesco dos rituais de iniciação do adivinho entre os Ndembu e os Ovimbundu; nos
dois casos os pontos fundamentais da iniciação cokwe estão mantidas.
Sem prolongar demais a análise dos detalhes de caráter local, já se pode tirar as
seguintes conclusões:
1. A estrutura do rito de iniciação do adivinho é a mesma nas três referidas etnias.
2. O desenrolar dos rituais ndembu e ovimbundu, muito semelhantes e quase que
coincidentes ponto por ponto, se afasta em alguns detalhes do ritual cokwe.
3. Se tirarmos como aprendizado (e neste aspecto todas as informações estão de
acordo) que o ngombo ya cisuka é uma invenção dos Cokwe, a existência dessa técnica
divinatória em outras etnias deve se explicar como um empréstimo.
4. A aproximação dos rituais ndembu e ovimbundu nos remete a uma fase anterior
do ritual cokwe tal como ele existiu antes de sua difusão.
5. Os detalhes que resultam de adaptações de caráter local são de importância
menor.

1.3.3 - A Sessão Divinatória

1.3.3.1-A preparação ritual

O adivinho pode ser consultado em qualquer ocasião. Contudo, antes de começar


a sessão, ele terá o cuidado de submeter o seu cesto divinatório a um conjunto de práticas
que tornam o instrumento apto a transmitir ao adivinho as respostas dadas pela hamba
Ngombo através dos objetos que se deslocam no cesto. Trata-se de um conjunto
importante de "passos" que preparam o ato de adivinhação propriamente dito.

1
Na mukunda, todas as manhãs, os jovens saúdam o sol que vem do leste, o lado da vida.

68
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A) - Saudação (Kumeneka)

Sentado, o adivinho recebe as saudações dos clientes. Quanto ao doente, se seu


estado não é muito grave, ele se encontra no grupo de consultantes, mas o mais freqüente
é o doente ficar em casa e são os seus familiares que vão ver o tahi. O adivinho está
sentado em uma esteira. Quando vê os clientes, ele já sabe do que se trata. Os clientes o
saúdam:
-- moyo!
-- ewa!
-- moyo!
-- ewa!
-- moyo!
-- ewa!
Se o adivinho é mais idoso que o chefe do grupo que vem pedir a consulta, então a
saudação é mais cerimoniosa; o consultante exclama: tunameneka e, de joelhos, fricciona
seu peito com terra. Esta é a forma tradicional e mais respeitosa de apresentar saudações
do chefe de uma aldeia1.
O gesto é repetido três vezes, entrecortado de aplausos aos quais a pessoa saudada
responde. Feitas as saudações, o adivinho vai buscar (ou manda buscar) o tabaco e o
cachimbo d'água (mutopa). Às vezes ele traz também um cachimbo seco, utilizado pelos
chefes, e do qual se serve, oferecendo a mutopa aos clientes. O chefe fuma e manda
buscar o ngombo sobre o qual lança algumas baforadas de fumaça, porque "os tuphele
também gostam da fumaça"; isto os coloca em boa posição para a adivinhação. Em
seguida, o adivinho cospe sobre os tuphele, o que os une a sua boca, ou, para retomar a
expressão do informador, "faz com que os tuphele falem pela boca do adivinho".
Um acolhimento deste tipo se verifica apenas quando os clientes vêm procurar o
especialista da aldeia, o que não acontece sempre. Com efeito, bastante freqüentemente, é
o adivinho que é chamado a intervir em uma aldeia distante.
Neste caso, o chefe da aldeia lhe reserva o acolhimento normal feito a um
visitante ilustre.

B) - O local da sessão

Hoje, a maioria das sessões divinatórias se desenrolam na aldeia do adivinho ou


na aldeia da família do cliente que o mandou procurar, mesmo nos casos mais graves (de
feitiçaria), contrariamente ao que se passava antigamente.
Na verdade, a aplicação da legislação colonial perturbou bastante a significação
das realidades cotidianas. Antigamente, a adivinhação por motivos graves, principalmente
por motivos de feitiçaria, se fazia sempre do lado de fora das aldeias; isto era via de regra
toda vez que houvesse morrido uma pessoa no negócio. Segundo Hauenstein, em tais

1
Mesmo se não é esta a situação notmal, pode acontecer que o chefe da aldeia exerça também as funções
do tahi

69
70

circunstâncias, os clientes vinham até mesmo armados de cacetes para fazer justiça assim
que o adivinho tivesse esclarecido a situação:
"Antigamente, quando se tratava de um óbito, os homens vinham armados à
consulta. E freqüentemente, quando o culpado havia sido designado, eles o matavam
arbitrariamente"1.
Parece que é constante na prática da adivinhação pelo ngombo ya cisuka que o
caso de doença (no sentido largo do termo) seja resolvido por uma consulta no interior da
aldeia, e os casos mortais do lado de fora da aldeia. Hoje, o princípio não se aplica mais, ,
porque os casos mortais (ligados aos atos de feitiçaria) não podem mais ter o desenlace
que tinham outrora. Além dos adivinhos que exercem sua atividade na aldeia, há outros
considerados como itinerantes, por se deslocarem de maneira permanente oferecendo seus
serviços a quem os aspira. Eles fazem algumas vezes trajetos enormes, visto que o fator
distância funciona quase sempre como elemento de prestígio.

C) - As "vestimentas" do cesto

O cesto divinatório é envolvido por um conjunto de três ou quatro peles de bestas


que (aparentemente) protegem os objetos, recobrindo-os quando o cesto não está em
função. As informações fornecidas pelos atuais adivinhos sobre esta proteção são bastante
imprecisas, mas a escolha das peles são bem determinadas, à exclusão de todas as outras
trai um valor simbólico da origem, se bem que ela esteja parcialmente esquecida nos dias
de hoje.
Trata-se de peles de pequenos animais selvagens, todos considerados como muito
"inteligentes" pelos adivinhos. O cesto de Sakungu apresenta três peles que pertencem
aos seguintes animais:
- cikanvu, uma espécie muito conhecida de rato gigante;
- shimba, a gineta vulgar conhecida em toda a África Central;
- muliji, pequeno animal semelhante ao cachorro selvagem.
Esta pele pode ser substituída pela do rato dos ribeirões (kairi).
De acordo com Sakungu, as peles embelezam os ngombo e ao mesmo tempo "lhe
dão a força". Na realidade, a convicção de Sakungu é que as peles impedem o ngombo de
perder a força de adivinhar; se ele não as tivesse, os tuphele se enfraqueceriam pouco a
pouco e se tornariam incapazes de adivinhar corretamente.
É interessante comparar os animais aos quais recorrem os diferentes adivinhos
para revestir seus cestos. A maior parte destes animais reaparece no estudo dos tuphele,
visto que fornecem alguns fragmentos de natureza animal incluídos no grupo significativo
dos tuphele. É por isso que o revestimento do ngombo não nos parece ser um acessório
puramente decorativo, e o estudo do comportamento dos animais escolhidos revela
elementos significativos para compreender o mecanismo da simbologia divinatória.
Comparando os elementos revelados quando da observação dos ngombo de nossos
informadores, constatamos que fazem uso das peles dos seguintes animais para a proteção
do ngombo:

Sakungu Riasendala Hamumona Mwafima


1
Hauensteian, 1961, p. 127.

70
71

cikanvu cikanvu kangamba kangamba


shimba shimba shimba shimba
muliji
(kairi) ngondo muswe muswe

A correspondência correta no recurso aos animais determinados para revestir o


ngombo poderia ser posta em evidência ainda melhor se os diferentes autores que fizeram
menção a este detalhe tivessem especificado melhor os nomes dos animais.
Mesmo assim, é interessante reaproximar as diferentes observações:

White Delachaux Turner Bastin Hauenstein Lima

"genet" carneiro shimba ngondo olusimba pele de


leopardo
"shunk" várias peles kangamba kavili
"bush-baby" animais da mata/ kakote tchiswe

Excetuada a informação de Mesquitela Lima1 , que nos parece bastante marginal


em relação ao que nos foi possível observar, seja próximo aos adivinhos, sejas nos trinta e
cinco exemplares de ngombo das coleções do museu de Dundo, todos os autores
designam uma certa categoria de pequenos animais da mata, conhecidos por suas
habilidades e sua resistência, com uma preferência pública pela gineta (shimba), animal
cuja pele raramente está ausente no invólucro protetor do cesto divinatório. A exploração
sistemática da literatura oral concernente a cada um desses animais constitui um aspecto
apaixonante que não podemos abordar aqui e que poderia contribuir fortemente para
esclarecer o que Leach considera como "the logical mystification of magic"2.
Na impossibilidade de aprofundar este domínio por enquanto3 nós nos limitamos a
algumas breves observações sobre os três animais escolhidos com mais freqüência para a
"vestimenta" do cesto, a saber, a gineta (shimba), o muswe (o gato selvagem) e
kangamba, uma espécie de doninha.

a) - Shimba (foto 38)

O adivinho Hamumona nos disse que shimba é o gato da mata, muito hábil, à
noite, para apanhar as galinhas na aldeia: "O shimba sai à noite para buscar sua
subsistência, mas quando ouve cantar o galo, ele vem e o apanha".
Este ponto de vista se situa em um amplo contexto mitológico: trata-se da famosa
querela entre o sol e a lua evocado por Baumann (1935) e analisada por L. de Heusch
(1972). Observou-se apenas que no contexto da iniciação do adivinho, esta oposição de
shimba ao galo sublinha com força a oposição tahi / nganga, dado que o galo sacrificado
dá ao tahi o poder de anunciar, de cantar, de fazer a luz nos casos obscuros da vida, em

1
Mesquitela Lima, 1971, p. 153.
2
Leach, 1976, p. 29.
3
Ver o texto 2.3 ("animais bons para pensar") e a aproximação etnozoológica desenvolvida.

71
72

particular nos que se referem à feitiçaria. A gineta, ao suprimir o galo, o impede de


anunciar o sol; e o feiticeiro, se consegue fazer calar o ngombo, mergulhará a aldeia na
noite da feitiçaria. No raciocínio de Hamumona, as oposições são evidentes:

aldeia / floresta;
dia / noite;
adivinho / feiticeiro;
galo / gineta.

A aproximação shimba-feiticeiro se justifica tanto mais por ser fato que a pele de
shimba serve para cobrir o ngombo de modo provisório, apenas por todo o tempo em que
o tahi não possuir um pedaço da tanga de um nganga1. Na realidade, há poucos adivinhos
que chegam à categoria de "descobridores de feiticeiros" (kabuma), e por essa razão a
maioria dos ngombo não chegam a substituir a pele de shimba pelo dito tecido do
feiticeiro.
Seja porque ela é um elemento indispensável ao cesto divinatório, seja porque o
shimba é um animal real2, o fato é que na prática, a pele de shimba é muito disputada
entre os caçadores, como se pode ver na anedota seguinte que designa a quem pertence a
pele do shimba abatido. Hamumona conta:
"Várias pessoas foram à caça e detectaram um shimba no mushitu. Os meninos
(que atraem a caça) fizeram barulho e o shimba saiu de seu esconderijo. Ao vê-la
escapulir, todos gritaram:
Ele está fugindo!
Nós o vimos!
Shimba, shimba!
Um caçador o abateu sem discussão (por indicação de um testemunha) e satisfeito,
gritou: a pele é minha!
Ao passo que um outro reclamou:

Shimba ci mona.
Wo numona mukwa lambu:

'A pele não é sua, é de quem a viu primeiro'.

Desde então, o animal se chama shimba ci mona e a pele pertence sempre ao


primeiro que vê o animal".
Além de sua nobreza, o shimba tem a reputação de ser muito inteligente. Mas o
shimba não é invencível. Se fosse, diz Hamumona, o nganga teria também mais força que

1
Atualmente o nganga, uma vez descoberto, deve se submeter a um ritual pelo qual ele é recuperado pela
sociedade. As vestimentas lhe são retiradas e tornam-se propriedade do mestre kabuma que preside o ritual.
Um pedaço das vestimentas sobre a borda do cesto é a prova da competência (e força) do adivinho.
2
Na tradição kuba, pelo menos, nshimbu pertence ao bestiário real e por conseqüência a captura de um
desses animais deve obrigatoriamente ser remetida ao soberano (L. de Heusch, 1972, p. 172, citando
Vansina, 1964, p. 109).

72
73

o Ngombo, e não seria possível viver. E ele explica seu ponto de vista por uma outra
anedota:
"Alguém havia um dia necessitado de animais da mata porque não tinha carne; e
preparou uma armadilha. O shimba observando aquilo quis tentar a sorte. Quando ele
passou, a armadilha funcionou e o shimba ficou preso:. Assim, os Cokwe dizem:
'Cilondele capidji a shimba mulondji', provérbio que nosso informador traduziu nestes
termos: "Talvez alguém, ladrão ou bêbado, passeando à noite, sem incidente triste, talvez
alguém fazendo viagens freqüentes, contraindo numerosas dívidas, semeando com
freqüência a discórdia, acabará por dizer para si mesmo: há muitos que vão à noite como
eu e que a nada chegam, a mim não mais chegará nada".
A sabedoria tradicional responde a essa tentação dizendo explicitamente: "o que
os outros fazem, você talvez não possa fazer". Notar-se-á que expressões tais como "ir à
noite" e "caminhar bastante" denotam claramente atos de feitiçaria.

b) - Muswe (foto 39)

O muswe também é um inimigo do galo. Também vem à noite buscar as galinhas


da aldeia. Pode-se tirar um bom partido de suas qualidades especiais, como um faro
excepcional e uma grande agilidade de movimentos.
É ainda o adivinho Hamumona que explica como utilizar o muswe:
"Quando alguém quer fazer um bom negócio, procura um muswe, corta-lhe o nariz
e o coração e constrói na floresta, com pontas de paus e palha, uma estatueta de muswe:
munida de pernas, de braços e com uma cabeça. Põe o focinho e o coração e em seguida
cospe em cima várias vezes. Esse animal-fantasma prestará grandes serviços a seu mestre:
irá à aldeia buscar as galinhas que trará para seu mestre, dissimulado perto do muswe-
fantasma".
Veremos mais adiante que o recurso ao leão-fantasma podia servir de pretexto
para transformar em escravo qualquer jovem descuidado que se aventurasse sozinha na
mata.
Estamos na presença aqui de procedimentos que se inspiram na feitiçaria. Ao
utilizar o faro do muswe e ao cobrir o ngombo com sua pele, pretende-se dar ao tahi e aos
tuphele do ngombo a mesma capacidade para detectar o feiticeiro. Não basta impedir que
o muswe mate o galo, procura-se colocar a serviço do tahi as próprias qualidades e
vantagens do muswe.
Este recurso à floresta tem sempre uma contrapartida.
Aliás, o muswe oferece ainda outras possibilidades: ele descobriu o segredo da
forja e sabe trabalhar o ferro O galo lhe envia os objetos cortantes que fabrica e que
gostaria tanto de usar para ficar mais bonito, ele e seus filhos. A vantagem de uma aliança
é evidente, mesmo se ela implica em alguns riscos: "O galo saiu da aldeia e foi na mata
falar com o muswe:
-- Você é meu amigo, dá-me uma faca para cortar os cabelos de meus filhos; em
pouco tempo, minha mulher terá outras crianças e então eu te darei uma.
-- Está bem, respondeu o muswe.
O galo recebeu a faca e voltou à aldeia. Cortou os cabelos de sua mulher e de seus
filhos; os outros animais quando foram visitá-los, invejaram de vê-los tão bonitos e

73
74

quiseram saber como o galo tinha conseguido a faca. O galo não disse nada, mas
esqueceu de sua dívida para com o muswe.
Mais tarde, o muswe veio reclamar sua dívida:
-- Então, você me tinha prometido um de seus filhos e agora você não paga?
Ele voltou várias vezes mas nunca recebeu. Desde então, o muswe decidiu agir por
conta própria: ele sai da floresta e agarra os galos. Essa dívida continua até hoje"
(Mwasefu)1 .
Esta pequena história revela um novo aspecto da oposição tahi/nganga. Com
efeito, além da luta entre estes dois personagens, existe também uma curiosa aliança.
A superioridade do galo em relação aos outros animais da aldeia é evidente. Ele
suplanta todos os outros por sua beleza, mas isto não seria possível sem o recurso ao
animal noturno. Trata-se de uma velha dívida que não foi quitada. O galo tem consciência
disso e por essa razão esconde o fato dos companheiros da aldeia. Revelar isto seria
duplamente perigoso: ele perderia a posição privilegiada que ocupa e incorreria na
condenação que atingem os feiticeiros.
A possibilidade de um ataque de surpresa da parte do feiticeiro existe sempre e
por isso o ngombo necessita ser protegido com as mesmas armas que o feiticeiro utiliza.
O projeto cultural do adivinho é constantemente ameaçado pela intervenção inoportuna
do feiticeiro. Nesses casos, igualmente, o projeto cultural pode progredir graças à
intervenção da armadilha:
"O muswe é um animal da mata. Lá, pessoa alguma pode incomodá-lo. Mas ele
vem à aldeia buscar as galinhas. Os homens da aldeia inventaram uma armadilha e
puseram nela uma galinha. O muswe logo veio e foi pego. As pessoas se aproximaram e
mataram-no" (Riasendala).

c) - Kangamba (foto 40)

Trata-se de uma espécie de doninha. É muito procurada, mas sua pele só serve
para cobrir o ngombo. Durante a estação seca (lushihô), ela se esconde em um buraco que
ela mesma cavou. Por isso, não é facilmente encontrada; dificilmente é morta, não apenas
porque é maliciosa e astuta, mas também porque é dotada de uma resistência pouco
comum:
"Quando alguém vê a kangamba, imediatamente precipita-se a matá-la e vender
sua pele ao adivinho; os homens batem-na com a enxada, mas o cabo quebra e o animal
foge. Outras vezes, dão-lhe um golpe violento e o animal morre. Quem a matou vai à
aldeia anunciar o feito, mas quando retorna, o animal desapareceu: parecia morto, mas na
verdade estava vivo. As pessoas ficam pasmas por um animal tão pequeno e contra o qual
se voltam todas as armas não morrer.
Outros a descobrem e dão-lhe um golpe de cajado, mas quando acham que está
morta, ela se levanta e foge. É um animal que não morre com uma paulada. Só com a
katana (facão) ou com o machado se consegue matá-la".

D) - Os tuphele fora da sessão

1
Para outros narradores o protagonista desta história é o mukhondo (o mangusto vermelho).

74
75

Além de uma proteção permanente ( só se tira as peles para as sessões de


adivinhação), o ngombo propriamente dito (bandeja com os tuphele) que é guardado
geralmente em um grande cesto (cikulimba ca ngombo) constituído de duas partes, uma
superior, outra inferior, que se ajustam como uma tampa em uma lata. O ngombo ya
cisuka também tem um lugar que lhe é reservado: uma casinha construída especialmente
para ele (etambo, para os Ovimbundu) ou em uma peça particular da casa do tahi que o
dispõe sobre um banco. Os Ovimbundu parecem ter estendido ainda mais o conforto e a
atenção dispensados ao espírito Ngombo que habita os tuphele. Vendo neles a atualização
deste espírito (hamba), acham que os tuphele têm necessidade de dormir e por essa causa
estendem todas as noites uma pele sobre a qual eles são dispostos, e os cobrem com a
bandeja que de dia os contêm, e com um lenço1. O respeito que rodeia os tuphele é ainda
sublinhado pelo fato de que as mulheres não podem vê-los nunca quando fora das
consultas; com a única exceção da esposa principal do adivinho (namwari) que pode se
ocupar deles, salvo durante o período de menstruação2.
Esta exclusão das mulheres do culto dedicado ao ngombo ya cisuka torna quase
inútil a discussão levantada por alguns autores sobre a possibilidade que uma mulher teria
de exercer as funções de adivinho. Se J. Redinha admita uma tal hipótese3, isto deve ser
entendido como relativo a outras técnicas, mas jamais em relação ao ngombo ya cisuka.
A barreira de proteção ritual é particularmente importante fora do ato de
adivinhação. White nos dá alguns detalhes. Assim, por exemplo, se um kaphele cai para
fora do cesto durante a sessão, o tahi o recoloca sem nenhuma outra formalidade. Mas se
a mesma coisa acontece durante o repouso do cesto, tudo se complica, visto que é preciso
um novo sacrifício para restituir ao cesto seu vigor primitivo:
"In such a case, it is left where it fell and no one at the village may eat or drink
that day: next morning a cock is brought, its throat cut and the blood spilled on the
divining apparatus. Certain roots are pouded and mixed with oil and rubbed on the neck
and arms of all presents and on the jipelu. After this, the basket may be put away again
and all may eat and drink"4.

E) - As unções

A sessão divinatória não pode começar nunca sem que o adivinho e seus tuphele
estejam convenientemente preparados para cumprir bem o seu papel: ver o que é
verdadeiro e o que é falso, marcar a linha que separa o que é bem e o que é mal, o que
está do lado mukundu e o que está do lado pemba (vermelho/branco). O primeiro passo
do adivinho consiste em ritualizar uma visão penetrante e seletiva que opera a separação

1
Tucker, 1940, p. 183.
2
Idem.
3
Na verdade, ainda de acordo com nossas observações, uma mulher jamais é adivinho (com ngombo ya
cisuka), mas o fato de que o espírito Ngombo poder se manifestar tanto num homem quanto numa mulher
justifica provavelmente uma certa confusão.
4
White, 1948, p. 89. N. do Tradutor: "Neste caso, ele (o kaphele) é deixado no lugar em que caiu e
ninguém na aldeia pode comer ou beber naquele dia: na manhã seguinte, um galo é trazido, sua garganta é
cortada e o sangue espirrado sobre o aparato divinatório. Algumas raízes são moídas e misturadas com óleo
e esfregadas no pescoço e braços de todos os presentes e no jipelu. Depois disso, o cesto é levado embora
de novo e todos podem comer e beber".

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76

desses dois espaços; esta ritualização toma a forma de uma unção primeiro do adivinho,
em seguida do cesto. Além do que, existem unções sazonais que o adivinho não pode
esquecer.

a) - Unção do adivinho

O adivinho fricciona em cima de seus braços o pemba (caolim branco) ou o


pemba e o mukundu.
No primeiro caso, é para procurar a causa de uma doença ou de outra coisa de
menor importância; quando ele junta também o mukundu (argila vermelha), sabe-se que o
negócio está ligado à feitiçaria e com freqüência até mesmo à morte.
Sakungu traçava sempre um grande risco de argila branca sobre o lado esquerdo
de seu peito; era um detalhe individual ao qual ele dava um grande valor. Hamumona
explica que quando o mestre iniciador (tata ya ngombo) fez sua iniciação, ele cavou a
terra e retirou uma raiz de mundoyo, que envolveu em uma folha; em seguida adicionou
água e com essa infusão lavou-lhes os olhos para que ele visse melhor "o que as pessoas
vêm perguntar". Agora, toda vez que ele põe pemba e mukundu no canto dos olhos, é essa
a força que ele suscita.
Segundo A. Hauenstein, o adivinho aplica os medicamentos misturados com óleo
de rícino (olomolo) sobre diversas partes de seu corpo, principalmente sobre a fronte, as
têmporas e o dorso das mãos1.
Além do mais, ainda hoje, a maioria dos tahi cokwe expulsam os espíritos
indesejáveis por meio de purificações e unções variadas, administrando-os cada um a sua
maneira.

b) - Unção do cesto

O adivinho coloca também pemba e mukundu sobre os "olhos" do cesto. A borda


do cesto apresenta em alguns lugares uma crosta que se acumulou ao longo de sucessivas
unções de mukundu e pemba; são os olhos do ngombo, em número de dois ou quatro,
segundo a distribuição espacial escolhida pelo adivinho. Conformemente aos ngombos
observados e às informações recebidas, podemos distinguir três tipos de distribuição do
espaço no ngombo ya cisuka. Considerando a orientação do ngombo em relação com o
adivinho, nós diríamos que a borda superior se divide em quatro partes: uma anterior (do
lado do adivinho), outra posterior (oposta ao adivinho) e ainda as partes direita e
esquerda. Levando em consideração estes quatro pontos de referência, podemos distinguir
três tipos de marcação do ngombo que correspondem igualmente às formas de
distribuição espacial:
Tipo A: marcação simples. O adivinho, tendo diante de si o cliente, marca dois
pontos na borda posterior do ngombo (lado do cliente), um com pemba e outro com
mukundu. Isto feito, ele põe a sua direita o lembu do mukundu2 e a sua esquerda o pedaço

1
A. Hauenstein, 1961, p. 127.
2
Mukundu (caolim vermelho) preparado com óleo em uma pequena cabaça (lembu).

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77

de pemba. O que reforça, em dobro, a primeira marcação. Trata-se de uma distribuição do


espaço feito unicamente em função do cliente (ver esquema 4a).

Adivinho
Lembu Pemba

Esquema 4a

Mukundu Pemba
Cliente

Pode-se concluir desta marcação que o ngombo é dividido em duas partes


observadas por dois "olhos": as marcas (vermelho/branco) figuram sobre o lado posterior.
O olho masculino (lisu ya ngombo kunji: olho macho) e o olho feminino (lisu ya ngombo
ciwho: olho fêmeo) marcados respectivamente com pemba e mukundu e correspondendo
ao lado direito e esquerdo do cliente. Assim, o cliente entra no espaço ngombo, que se
identifica com ele enquanto que o tahi permanece, pelo menos aparentemente, exterior a
este mesmo espaço (ver esquema 4b).
Tipo B: marcação dupla. O adivinho faz uma primeira marca sobre o cesto em
função do cliente: pemba à direita, mukundu à esquerda. Em seguida, faz uma segunda
marca em função dele mesmo: igualmente, pemba à direita e mukundu à esquerda. Ocorre
pois que de uma parte à outra da linha diametral que une o adivinho ao cliente estão
situados um pólo positivo e um pólo negativo, tanto do lado do cliente quanto do lado do
adivinho, mas em posição inversa. Tudo se passa como se uma linha imaginária, paralela
aos dois interventores, dividisse o campo de ação dos tuphele em duas metades, um meio-
campo para o adivinho e outro para o cliente.
Este tipo de distribuição espacial integra o cliente no espaço do ngombo ao passo
que mantém o tahi nesse mesmo espaço (ver esquema 4c).

Adivinho
Adivinho

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78

Cliente

Cliente

Esquema 4b Esquema 5b

Tipo C: marcação redobrada. Trata-se de uma marcação feita unicamente em


função do adivinho, mas que este assinala seja sobre a borda anterior ou seja na borda do
posterior do ngombo. Este tipo de marcação é menos freqüente. Sakungu, por exemplo,
optou por esta forma que seu tata ya ngombo havia lhe aconselhado e que ele sempre
conservou.
Nesta marcação, leva-se em consideração unicamente a posição do adivinho; em
função deste, o campo do ngombo se encontra dividido em duas partes, uma direita
positiva, e uma esquerda negativa. Ao contrário do que se observa no tipo A, é o cliente
aqui que parece exterior ao espaço do ngombo (ver esquema 4d).
Entre os Ovimbundu, parece que este tipo de marcação tinha prevalecido, se nos
referimos à descrição de L. Tucker. Havia um outro detalhe importante, que não é
observado nos Cokwe: no ato de adivinhação, o tahi estaria dirigido para oeste, os lados
marcados bom (branco) e mau (vermelho) coincidindo com os pontos cardeais norte e
sul1.

Adivinho

Esquema 4d

Cliente

1
Tucker, 1940, p. 159.

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79

Estas diferentes marcações podem corresponder a diferentes métodos para


determinar os pontos de adivinhação que se produzem quando da aproximação de um
kaphele do ponto branco ou vermelho. Hoje, todos os cestos de adivinhação, qualquer que
seja o tipo de marcação adotada, apresentam os dois pontos (olhos do cesto) de contato
com os tuphele sobre a borda posterior do ngombo e são estes pontos que determinam a
resposta (positiva ou negativa) à questão formulada pelo adivinho1.

F) - Renovação periódica da consagração do ngombo

A purificação do ngombo tem por fim preservar a força ou capacidade divinatória


dos tuphele ou eventualmente de a renovar. Por ocasião do óbito de uma pessoa da aldeia
onde habita o adivinho, é preciso renovar essa purificação; para a lua nova igualmente.
Por ocasião de um falecimento o adivinho deve verificar que os funerais terminaram (eles
se prolongam normalmente por dois ou três dias) e então ele renovará as forças de seus
tuphele para que eles estejam prontos quando um novo cliente chegar.
Para quitar essa tarefa adivinho deve primeiro buscar na floresta algumas folhas
de lwenyi e de muhonga2 que ele prepara no barrete e põe no seu ngombo; então ele entra
com o ngombo e as folhas no estábulo dos animais, onde se demora, no galinheiro; ele
esfrega seu corpo com as folhas escolhidas, primeiro com lwenyi, seguido de muhonga;
dá o mesmo tratamento a seu ngombo, pronunciando contra o espírito do morto os
protestos seguintes:
"Tu, homem que está morto, não fui eu quem o fez morrer; eu não sei quem é o
feiticeiro que te matou. É a ele que deves importunar, não a mim.; eu sou simplesmente
um adivinho Quando meus clientes vierem me consultar, tu não podes fazer com que eu
me engane; a mim eu vejo estar à altura de adivinhar e teu espírito não pode se pegar a
mim, nem impedir minha boa sorte".
Após esta oração o adivinho joga no chão o remédio (folhas moídas) que sobrou e
crê estar quite com o espírito do falecido. Hamumona explique assim os motivos dessa
invocação ao espírito do morto:
"O adivinho faz como o feiticeiro, porque este quando come a alma de alguém
também penetra no curral ou no galinheiro para que o espírito do morto se prenda aos
animais e não a quem o matou; assim o tahi tenta impedir que o espírito se apegue a seu
ngombo; isto atrapalharia a adivinhação e o adivinho seria confundido".
Além da purificação por ocasião de um óbito, White informa ainda uma
purificação especial após os funerais do próprio adivinho. Neste caso, o ngombo seria
1
Entre os Ovimbundu, o adivinho não somente organiza o espaço de seu ngombo, mas também com o
caolim branco (pemba) o percurso do sol: "he (the ochimbanda) then takes a pinch of the omemba, blows
upon it towards the east and then towards the west" (L. Tucker, 1940, p. 179). (N. do Tradutor: "ele (o
ochimbanda) pega então um punhado de omemba, e sopra-o para o leste e em seguida para o oeste"); nessa
mesma região o adivinho cokwe parece obter o mesmo resultado com um ligeiro movimento de seu
ngombo: "de um ligeiro movimento de balançar, ele (o adivinho) caça os naus espíritos que .... ------" (N. do
tradutor: incompreensível no original).
2
Lwenyi, uma planta aromática e medicinal; muhonga, ver anexo 2.

79
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purificado por um outro adivinho1. Para os Cokwe, a lua nova marca o tempo forte da
vida ritual. É o momento dos atos de culto para todas as categorias de pessoas que estão
em contato com as mahamba; o culto da hamba Ngombo toma neste instante um aspecto
particular de uma vida ritual de toda a comunidade:
"Quando a lua nova aparece, o adivinho rende seu culto à hamba Ngombo; mas
ele não lhe dará fuba (mandioca preparada) como se faz para as outras mahamba. Quando
as pessoas já fizeram isto (os sacrifícios), elas podem repousar tranqüilas (sem ter maus
sonhos). O adivinho não deve oferecer mandioca, mas , antes, preparar (no barrete) as
folhas de cilama, as quais ele próprio mastiga com pemba para cuspi-las em seguida nos
tuphele do cesto. É o modo de afastar a escuridão: assim o ngombo será capaz (de
adivinhar) porque ele possui a lua desde então" (Hamumona).

G) - A hanga de proteção

O tahi, antes de começar uma sessão de adivinhação que ele considere


particularmente importante, organiza um sistema especial de proteção que se chama
hanga. Um montículo de terra é preparado entre o ngombo e os consultantes; neste
montículo estão escondidos vários objetos que devem impedir a interferência sempre
possível de um nganga no desenrolar da sessão. No montículo de terra o adivinho
esconderá:
-Uma agulha: objeto que se acredita ser utilizado pelo nganga como garfo. Os
Cokwe dizem que o feiticeiro, quando mata alguém, utiliza uma agulha para comer a
carne sua vítima; vê-se com efeito que deste modo o próprio nganga se protege contra o
espírito de sua vítima; o tahi utilizaria o mesmo poder para impedir o acesso de um
feiticeiro ao ato divinatório.
-Um ovo - que o tahi usa por ser "completamente fechado", sem possibilidade de
entrada nem saída; deve fechar a entrada ao nganga.
-A tewla (faca) - Hoje substitui-se facilmente a tewla (faca utilizada na mukanda)
por uma lâmina de navalha ou outro objeto cortante; a tewla teria o mesmo papel que a
agulha.
-Tecido do mukishi: um pedaço qualquer da vestimenta de raphia usada pelos
dançarinos de máscaras (akishi), que designa-se igualmente por mukishi; o adivinho
explica por quê: o nganga, quando vai na casa de alguém para o enfeitiçar, não é possível
nunca vê-lo: ele vai disfarçado de dançarino (mukishi) com sua máscara" (Mwacimbau).
Todas essas coisas, explica ainda Mwacimbu, são objetos que o feiticeiro utiliza
em suas práticas de feitiçaria. O adivinho pode se servir também; é por isso que ele
constrói a hanga de proteção: o feiticeiro não poderá incomodá-lo escondendo-lhe o que é
preciso adivinhar. O tahi toma todas as precauções precisamente porque dentre seus
clientes pode estar um verdadeiro nganga, e assim é preciso preparar a hanga, que será
interposta entre os clientes que vêm para saber a adivinhação e o ngombo que adivinha. É
uma espécie de barreira anti-feitiçaria:
"De um lado fica o adivinho, do outro os consultantes; entre os dois se põe esses
objetos que resguardam a adivinhação" (Riasendala).

1
White, 1928, p. 89.

80
81

É preciso notar ainda que os Cokwe preparam sempre mecanismos defensivos


contra a feitiçaria antes de começar não importa qual atividade ritual. Quando celebram a
mukanda (circuncisão), por exemplo, a entrada do acampamento é sempre protegida pelo
kata, dois grandes anéis de erva (kaswano) destinados a "fechar a mukanda"1 . Este era
aliás exatamente o método utilizado antigamente para a adivinhação também e que os
Ndembu ainda mantêm:
"At dawn they clear a especial site (ibulu: airfield) in the bush. They make a
framework of threee poles (like a soccer goalpost) just like the one at the boy's
circoncision ceremony (mukanda)... three headpads (mbung'a) of the kind used by
womem when they carry calabashes or baskets on their heads are placed on the crossbar
of the mukoleku frame"2 .
A hanga organizada pelos Cokwe e o kata utilizado também pelos Ndembu estão
ambos em relação direta com a feitiçaria, e em conseqüência com a morte. Assim o
adivinho deve tomar as precauções defensivas quando praticar a adivinhação para
descobrir a causa de um óbito. De acordo com alguns adivinhos a proteção hanga é mais
recente que o kata; os Cokwe não preparam mais o kata, a não ser para proteger o
acampamento da circuncisão.

H) - O acordo prévio

Antes do começo da sessão propriamente dita os consultantes têm o hábito de


testar o tahi para verificar se ele está efetivamente possuído pela hamba Ngombo. É uma
espécie de adivinhação prévia que os clientes exigem por ocasião de uma consulta por
razões graves e principalmente quando querem saber a causa de um falecimento de uma
pessoa de seu parentesco. Essa adivinhação prévia é centrada no nome da pessoa falecida
que o tahi deve descobrir classificando o nome em uma das diferentes categorias de
nomes (nomes relacionados com animais aquáticos, com animais terrestres, com aves,
etc.). Essa introdução à sessão que os Cokwe designam pela circunlocução "dizer o nome
do morto" é importante porque somente o tahi que conseguiu classificar corretamente o
nome do defunto será convidado a continuar a sessão propriamente dita; se ele não passa
na prova, seus serviços serão dispensados.
Os consultantes seguem com uma enorme atenção o raciocínio do adivinho:

"Como vão vocês?


Eu sei que vão muito bem.
Todo mundo vai bem.
Mas então... por que vieram?
Eu o sei; alguém faleceu!
Sim, é verdade, alguém faleceu!
Mas morreu como?

1
Ver kata-miniatura em relação a símbolo divinatório (2.2.27).
2
N. do Tradutor: "Ao anoitecer, eles limpam um local especial (ibulu: campo aberto) no matagal. Fazem
uma armação de três pólos (como o poste do gol do futebol) igual ao construído na cerimônia de
circuncisão dos meninos... três suportes de cabeça (mbung'a) do tipo utilizado pelas mulheres quando
carregam cabaças ou cestas sobre a cabeça são colocados na barra perpendicular da armação do mukoleku".

81
82

O quê estava causando a doença?


Não aconteceu na aldeia.
Eu sei que tudo se passou numa viagem.
Vocês viram como morreu?
Vocês não viram nada.
Mas ngombo vai explicar tudo".

Então o tahi pronuncia um nome que classifica o nome do morto, por exemplo,
dentre as plantas, o mushitu (floresta) ou a cana (savana).
A relação entre o nome pronunciado e o nome do falecido não é sempre evidente,
pelo menos não para todo mundo; quando isso acontece, os clientes procedem a uma
troca de opiniões: os thewa (clientes e seus companheiros) se reúnem atrás da casa do
tahi, um pouco à parte do ngombo que fica só, com seu mestre.
Se a adivinhação prévia é aceita (há consonância entre o nome pronunciado pelo
tahi e o da pessoa falecida...) os clientes se aproximam do adivinho com uma primeira
prestação (peteko) de valor reduzido: antigamente, era uma ponta de flecha de madeira;
hoje é normalmente um prato de origem européia ou ainda uma nota de 50 escudos,
sempre acompanhados do assentimento dos clientes:

"Nós aceitamos as palavras pronunciadas,


tu adivinhaste bem;
podes continuar".

O adivinho pega o pequeno presente e o entrega a sua primeira mulher (namwari)


dizendo: "Eis o presente; a palavra que pronunciei foi bem acolhida". Durante esse tempo
o ngombo fica sobre a esteira rodeada de clientes que pronunciam elogios ao adivinho
que escolheram; felicitam-se a si próprios enquanto que o adivinho "encorajado a
continuar, pode se engajar com toda a confiança para esclarecer o negócio que motivou a
consulta; antes, ele não era considerado verdadeiro ou falso pelos clientes; os parentes (do
morto) podiam aceitar ou recusar a palavra do adivinho. Agora ele pode prosseguir para
explicar tudo o que é necessário" (Mwasefu). É muito curioso observar quanta
importância os Ndembu dispensam a essa espécie de teste do adivinho; dir-se-ia até que
após a aceitação, os clientes tentam enganar o adivinho como se não viessem para uma
consulta. Mas o adivinho que conhece bem essa espécie de provocação a seu saber
responde não em palavras, mas por um gesto estereotipado: vai procurar na estrada a
ponta de flecha em madeira que os clientes deixaram à entrada da aldeia; a análise da
madeira na qual é fabricada dará ao tahi a chave para encontrar o nome da pessoa
falecida. O tipo de raciocínio utilizado pelo adivinho para descobrir o nome se insere em
um mecanismo conhecido, ao qual se recorre também para descobrir o nome de um
recém-nascido:
"During the mourning cam (chibimbi) for the deceased, one of his relatives
brought an arrow and some read beads on a string. He said: 'these are for the birth-name
of the dead person'. This is the name which is divined for by a baby's father shortly after

82
83

birth, and comes from an ancestor-spirit (mukishi). Arrow and beads are taken to the
diviner to be discovered by him"1.
Em certos casos, sempre de acordo com Turner, o teste proposto ao adivinho
consistia em lhe apresentar vários tipos de flechas dentre as quais ele devia procurar a que
correspondia ao nome da pessoa falecida.
Os adivinhos cokwe atualmente ignoram completamente este pequeno detalhe.
Por outro lado, nossos informadores, mesmo se reconhecem que a oferenda da ponta de
flecha é devida à necessidade de encontrar o nome do morto, não são unânimes na
explicação da relação entre o objeto (flecha ou madeira) e o nome do falecido. A
introdução de outros objetos (sobretudo de proveniência européia) como gratificação
parece ter afastado a significação primeira da flecha-presente. Na verdade, e de acordo
vários informadores, a flecha de madeira seria uma espécie de primeira prestação pelo
fato do adivinho ter detectado o nome ("categorial name") do morto. Se a escolha de uma
planta determinada (da qual a flecha é fabricada) pode muito bem ser a chave que
permitiria ao adivinho encontrar o nome da pessoa falecida por referência a um sistema
classificatório que não oferece dificuldades para um perito, em compensação o
recebimento de um prato (europeu) ou de dinheiro não são suscetíveis, do nosso ponto de
vista, do mesmo jogo do espírito. É por isso que estamos convencidos que, pelos menos
entre os Cokwe, o "presente", ponto-de-partida, tornou-se, literalmente, um "presente",
sem mais nada a oferecer ao adivinho imediatamente após as primeiras intervenções
julgadas convincentes. Além do mais, para este aspecto particular da sessão, as
informações e as próprias explicações dos adivinhos são um pouco heterogêneas.
Entretanto Hamumona se alinha exatamente na tradição que os Ndembu guardam sempre,
quando explica:
"Quando uma pessoa falece, seus parentes devem procurar o adivinho e, ao chegar
em sua casa, dar-lhe imediatamente a flecha de madeira para explicar-lhe a causa da
morte; mas se se apresentam para o adivinho por causa de uma doença, não é preciso a
flecha".
Em compensação, Mwafima exige que seus clientes lhe ofereçam um prato ou
dinheiro assim que chegam, como prova de que aceitarão bem a adivinhação que ele vai
fazer; a flecha viria somente no final da sessão, como lembrança ou presente para o
ngombo:
"A flecha (cipumba) fica perto dos clientes; somente no final se a presenteia. Ela é
destinada a purificar os tuphele e impedir que o morto fique agarrado ao ngombo".
Essa explicação de Mwafima, que nos parece relativamente moderna, sublinha
igualmente a significação fundamental das flechas que os adivinhos gostam tanto de
exibir. (Foto 41). Elas são a prova de sua competência no ato mais fundamental da
adivinhação, a descoberta da causa de um óbito, isto é, a descoberta do feiticeiro, sobre o
qual cai a responsabilidade do desaparecimento de uma vida. O tahi põe sempre essas
flechas-testemunhas ao lado de seu ngombo e diante dos clientes; elas exercem o papel de
uma importante carta de recomendação. Sua relação com o feiticeiro é incontestável,

1
Turner, 1961, p. 37. N. do Tradutor: "Durante a reunião (chibimbi) para o sepultamento, um de seus
parentes trouxe uma seta (ponta de flecha) numa corda. Disse: 'isto é para o nome de nascimento da pessoa
morta'. Este é o nome adivinhado para um bebê logo após seu nascimento, e vem de um espírito-ancestral
(mukishi). A seta é dada ao adivinho para ser descoberta por ele."

83
84

apesar dos autores que observaram este detalhe tenham lhe atribuído significações
diferentes.. Se de acordo com Baumann o saco de flechas (ypumba) leva em si a função
de representação dos mortos - "saco no qual os mortos são 'enfiados' na forma de
pedaços de flecha"1 , para Mesquitela Lima essas flechas representam de preferência os
vivos (consultantes), apesar de que, curiosamente, essas flechas sejam feitas com madeira
dos "caixões"...:
"pedaços de flechas ou de madeira de caixões que eles (os adivinhos) recebem e
que são às vezes representantes dos indivíduos que o consultam e dos sinais para
identificar esses mesmos indivíduos"2 .
Também, de acordo com E. Santos, as flechas de madeira (ypumba) servem
unicamente como indicadores dos feiticeiros descobertos, isto é, denunciados pelo
adivinho3 .
Símbolo dos mortos e/ou dos feiticeiros que os mataram, lembranças dos clientes
ou elementos para testar a capacidade do adivinho, preço da adivinhação prévia ou
presente que se dá ao cesto para purificá-lo, as ypumba já atraem bastante as nuances da
densidade semântica que envolve cada um dos pequenos objetos divinatórios; ao mesmo
tempo elas nos mostram claramente e de modo muito concreto que "a riqueza armazenada
nos símbolos é produto das convenções culturais dos atores rituais"4.

I) - Os anexos do ngombo

Além do feixe ou saquinho de flechas-testemunhas, o cesto divinatório está


sempre acompanhado nas sessões por certos elementos que, mesmo se não estamos
propriamente falando de símbolos divinatórios, estão freqüentemente presentes e
encadeiam o contexto material do ritual. Esses elementos são diversos: antes de tudo os
dois elementos concernentes às cores rituais, o branco e o vermelho, preparados pelo
adivinho de modo diferente: o branco é um pedaço de caolim talhado pelo adivinho; o
mukundu pelo contrário pode se apresentar ou sob forma de caolim vermelho ou como
um patê feito com óleo de palmeira e que o adivinho guarda numa pequena cabaça. Estas
cores não faltam nunca; o adivinho se serve delas para organizar o espaço do ngombo.
O tahi utiliza ainda um instrumento musical com o qual ele acompanha sua
cantilena de introdução à sessão. Em princípio, esse instrumento consiste em um
chocalho simples - lusango (foto 42), feito de um fruto de munzenze perfurado no qual o
adivinho coloca sementes de mudoyo ou pequenos seixos; às vezes é um chocalho duplo
(musambo) (foto 43) fabricado em fibra vegetal (kajana) com as mesmas sementes ou
pequenos seixos no interior. Em casos excepcionais, o tahi se faz acompanhar de um ou
vários acólitos que executam eles próprios o acompanhamento musical e utilizam para

1
Baumann, 1935, p. 164.
2
Lima, 1971, p. 109.
3
Santos, 1960, p. 162.
4
Turner, 1972, p. 13.

84
85

esse fim um pequeno xilofone denominado luphembe (foto 44) de duas ou quatro teclas
de madeira tocadas com dois martelinhos de borracha. Antigamente, o ngonge (foto 45)
era utilizado também para marcar o acompanhamento musical da sessão.
O recurso a um pequeno tambor (semelhante aos que os feiticeiros utilizam) deve
ser mencionado igualmente (foto 46). Não se encontra mais, mas os adivinhos ainda
falam dele; esse objeto, fabricado propositalmente pelo adivinho, possuía sempre uma
estatueta antropomorfa que o adivinho venerava como hamba de adivinhação:
"Um tambor kishika, tambor com estatueta que preside a adivinhação. O adivinho
ou tahi se serve dessa estatueta como chocalho por ocasião das cerimônias de
adivinhação. Ela é então untada com vermelho e branco"1.
Esse pequeno tambor, que subsiste entre os adivinhos dos Hanya de Angola, é
considerado como "a voz do ancestral adivinho"; é um tambor de vibração denominado
epuita2.
Finalmente, como anexos secundários que os adivinhos cokwe não utilizam mais,
mas que ainda se pode encontrar em alguns lugares, é preciso citar:
-Nsala, uma espécie de capacete, com um revestimento exterior de plumas de aves
(foto 47);
-O apito do adivinho feito com um chifre de antílope que o adivinho utiliza para
chamar seu espírito favorável (foto 48);
-Msese, o pega-moscas (foto 49), símbolo do poder, que os adivinhos também
levavam antigamente.

1.3.3.2-Narrativa das sessões

A) - Narrativa de Sakungu:
adivinhação para uma mulher grávida
(Mukuloji, 23/06/ 1975)

a) - Texto

Pontos de
adivinhação3

Ku Lunda maha Mwaciawa kwa salie


Lukokese mwe Cibinda Katele awo kwasamba
twa mye biwu kutunda kwashi ulamba ngoma
mweza uhulu biji mwanangana nyi sona.

Lunda vem de Mwaciava e

1
Museu Real da África Central, R.G. 37/71,, Doss. 763.
2
Hauenstein, 1967, p. 334.
33
O adivinho considera um ponto de adivinhação toda vez que, após uma ou várias agitações do cesto, um
kaphele vindo à borda do cesto, é pego como ponto de partida para uma explicação.

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depois também de Lukokese1.


Cibinda Kateli saudou aplaudindo
com as mãos e rufando os tambores.

Bihé ngwamyé kwanga navulu kanga


mucekyenge Samaici cota cafú kusoloka
camanjia kasangula kandemba
sanya kasaamba sandala úalamba
kashikunya mucisambwe kunya yeny ylimo.

Ele (o ngombo) diz: o mato tapa o caminho


também, do mesmo jeito os arbustos;
eles (os arbustos) são rompidos pelo
uhulu2 e também pela água que corre,
mas o uhulu prepara um caminho
que é estranho para o galo.

Longeza, longeza cimbundji muúishi


mahangana Mwayacimika na muvulukanga
cipwe mbau na muvulukanga wa
yiza keshiuútela wafa keshikuteta
wa yiza mujimo hawangwanda wa
úuyiza muthu wafa keshicipeka,
cipeka cenyi ku mujimo.

Mwacimika3 já falou:
o doente não cometeu um crime,
se fosse um crime, seria mortal.

A cihula mbunge yami hamangwanda


hi naya amuzá malunga kabwiémo
wamanga sele yuma mwanji mukwó hi nafa
lume zombaka, zombaka!

Kuku Eu pergunto pois ao meu coração:


(o ancestral este homem não é justo?
masculino) Ele está morto e continua a correr, ele
caminha sempre, ele se desloca por toda parte4.

1
Lukokese, irmã de Mwaciava, chefe dos Lunda.
2
Ubulu, o porco; também termo pejorativo para significar tudo o que é mal-feito no sentido moral ou físico.
3
Mwacimika, adivinho mestre-iniciador de Sakungu.
4
Deslocar-se constantemente é um comportamento típico de nganga. Tal comportamento pode ser
observado também nos espíritos dos mortos. Se o espírito de uma pessoa morta não se acomodou no mundo
dos mortos, torna-se suspeota de feitiçaria; a prova: “ele faz chorar, morrer, e dizer mensagens”.

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Yéw mungwendanga wa kambakaki mwè


mukwá mayá hula civula awá mwena
kukambanga ashikya mavuhamutanda
tanda majiko cimbimbi mario kufa
cefuka kulyonga ce kuluonga.

Ele convida também para a caça aquele


que tem carne, ele quer que se lhe
prepare o fogo, ele faz chorar, morrer,
enganar. Mas ele morreu há tempos,
já se lhe puseram a terra por cima1.
Por que continua vagabundo pelos
caminhos? Eu pergunto à mãe: onde se encontra
seu pai2? Estou compelido a perguntar
à mãe: como começou tudo isto?

Njia yaka wenda nayo, nijá kuci


yápwa, cihula nayé jiunga kunima
kuri pwó riéni kuci wápwa táta
naye guna hula tambuka, tambuka.

Será que foi na estrada?


(Neste momento Sakungu interpela alguns jovens distraídos cujas sombras
cobriram o cesto: “não feche o sol às minhas costas”)3 (!) Ele (o ngombo) vai responder
imediatamente e o branco é quem vai lhe pagar4.
Todo mundo respondeu cantando!
—Sim, nós todos, vamos responder!
—Eu disse que todos respondem cantando porque todos juntos saíram na
foto (foto 50)5
—Sim! Sim!

Hico coko, mba hahi já kwana já


kwana ikola hi yako kwata
tambuka, zombokènu.

—Sim! É a mãe que está doente.


—Como ela ficou doente?
—Venha, vamos ver.

1
Literalmente, “terra sobre as costas” - expressão que significa que as formalidades do luto foram
cumpridas.
2
Nesta sessão, era o marido que representava sua mulher doente diante do adivinho, mas este punha
questões à mulher como se ela estivesse presente.
3
Alusão à orientação da sessão em relação à posição do sol; a sombra é nociva ao ato divinatório.
4
O adivinho faz um apelo à gratificação que virá após a sessão e que será de nossa responsabilidade.
5
A participação de todos os presentes nas aclamações sucessivas dos pontos de adivinhaç

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Hahi jeza, yayá yayá yami


ngwami ngwó kutunda kukwete
múthwe, kumwanda ku kwete jimo
yaya yaya.

Mukwete nyima, yaya, yaya.


Mukwete nyima, yaya, yaya.
Mujimo ria kupwa muri peleta,
yaya yaya jika ajimo, yaya,
yaya kakwuima muri peleta muri
sumana yaya, yaya.

—Sim! Sim!
—Ela está ruim do ventre ou da cabeça?
Tumbunda —Sim! Sim!
(mulher —Sim ela está doente? É bem no ventre!
grávida) —Sim! Sim!
—É como uma mordida lá dentro?
—Sim! Sim!

Wana muri fafumuka nwé rina


fafumuka, yaya, yaya yami
kwimba coco, yaya yaya.

—Eu digo que não há mordida, mas o ventre está inchado;


—Sim! Sim!

Ciciri nakujimbi, yaya yaya


yami kwimba coco yoyo ina
pinda nayo, yaya yaya.
Amuze waya munzwó wa lota ibi nyi
ipema, ipi na lota; yaya yaya.
Yew mungu lota, njia, yaya, yaya.

—Eu mesmo respondo cantando:


quando reentraste na casa
musau tiveste bons ou maus sonhos?
(travesseiro) Sim, tiveste sonhos ruins!
Sonhaste com a estrada da aldeia.
Como estava a estrada?

Njia ikwete pembe, yaya, yaya yé


njia mwiza kwiza ikola ngwe hamba wa
(cami- twamako hamba watwama nenyi, yaya
nho) yaya hamba wa kwyamba, yaya, yaya

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Na estrada havia um cabrito.


Sonhei com o caminho por onde passa a cabra
Lusende e também sonhei com a desgraça trazida pelo
(casco) feiticeiro. Era verdadeiramente o feiticeiro?
Não seria antes uma hamba?

Hamba wa kwyambo yew wa katukile


kuri tata nyi kuri mama,
yaya, yaya.

Ah! Sim! É verdadeiramente a hamba.


Será que ela vem (reclamar/pedir) as
coisas1 ou seria antes as palavras?
A hamba está na floresta!
Ela vem do pai ou da mãe?
Não, não é assim!
Será verdadeiro que vem do pai?
Não, absolutamente.

Hico coco, tweia kuw tata hico


coco, kaka yew kwasemene mama nyi
tweia kuw tata kwasemene mama wenda
nyi yanga, wa kolela citela cika
kuci kumulumba mumutele kesa uhinduke.

Eu tenho certeza:
a hamba vem da avó,
da avó que pôs no mundo
o pai ou a mãe?

É com certeza da mãe


kuku que ela (a mulher doente) recebeu
(o ancestral o caçador (hamba de caçador)
feminino) o qual sua mãe havia também
outrora possuído.

Ela (a mulher doente) contraiu yanga2


em suas carnes;
yanga é preciso curá-la para ter boa
saúde e pronunciar as palavras (oração)

1
As exigências cultuais das mahamba são normalmentes satisfeitas mediante a apresentação de certos
produtos (bebida, mandioca, sangue) acompanhadas de uma oração. Aqui Sakungu parece separar essas
duas modalidades de culto, ambas tradicionais entre os Cokwe.
2
Um dente de animal.

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para ficar em bom estado.

Yako uta muthuwyé kasa


wayé lume nyi ka coco anambe
ngwó éze amutunge hamba mwe ukwete
lemba, pembe arié, pembe hafa,
lemba te ngwari, lemba mamu
tawiza nyi keci kumu tawiza.

Quando oras, sentes-te bem ou mal?


Esta hamba é o primogênito1.
Você comeu um cabrito.
O primogênito também estava lá. É verdade ou
não é verdade?
Eu vou dizer.

Kumamu tawiza Putu! Walwa! Ngwa nenyi!

Está bem assim?


—Sim!
—Sim! Vinho! 2

b) Análise do texto

Esta sessão do adivinho Sakungu apresenta o esquema mais formalizado


(muito freqüente) de todas as consultas do adivinho pelas razões mais comuns. Nesta
narração, como em tantas outras do mesmo gênero, pode-se vislumbrar as seguintes
seqüências:

1. Evocação dos ancestrais. Em um tipo de linguagem que os próprios Cokwe


acham um pouco estranho (eles observam que é uma lingagem de antigamente), Sakungu
pronuncia algumas palavras que se mostram carregadas de significações para todas as
pessoas presentes: Mwaciava, Lukokese, Cibinda Kateli, Mwacimika.
A fórmula de introdução pode variar, os nomes também, mas a sessão do adivinho
começará sempre, sem exceção, por uma evocação dos ancestrais mais insignes. Neste
caso de Sakungu, estão bem evidentes os três níveis da evocação:
—os ancestrais fundadores que remontam ao reino dos Lunda (Mwaciava,
Lukokese; Cibinda Kateli);
—os ancestrais fundadores dos Cokwe;
—o ancestral mais próximo do qual o adivinho recebeu a hamba Ngombo, neste
caso, Mwacimika.

1
O quadro mais freqüente de transferência de uma hamba é de um homem para o filho da filha da irmã.
2
Walwa, bebida de milho que o adivinho apresenta como dom ao espírito Ngombo, ao mesmo tempo em
que se felicita pela adivinhação que efetuou.

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Através desta tripla evocação, Sakungu estabelece a continuidade étnica das


origens até o presente. Para os que estão presentes à sessão esta continuidade é importante
e, além disso, ela atrai a atenção dos participantes para a tarefa de que o adivinho deve se
ocupar em seguida.

2. Hipótese sobre o modo de abordar o problema. Em uma linguagem plena de


metáforas cujos detalhes escapam à maioria dos participantes, o adivinho tenta abordar o
problema a resolver pelo estudo ou aplicação de um dito, de autoria de um ancestral
(neste caso, Cibinda Kateli). Sakungu opõe o caminho do mal (uhulu é sobretudo o que é
mal-feito, falsificação, hipocrisia) à trilha deixada pela água na estrada da aldeia (o
caminho do galo). É uma espécie de chave taxonômica geral que vai lhe servir para reatar
as questões relativas ao problema em questão.

3. Jogo de oposições binárias. O desenvolvimento do discurso propriamente dito,


concernente ao problema levantado pelo consultante, é organizado em um conjunto de
questões simples que o tahi coloca a seu ngombo e às quais os presentes respondem
geralmente por aplausos. Essas questões são formuladas segundo o objetivo que vem à
superfície após uma ou várias agitações do ngombo. Esse modo de conduzir a enquete
sobre o problema colocado é feito nates de tudo no nível da generalidade sobre o
comportamento dos vivos e dos mortos:

crime / não-crime
morrer / viver
homem de bem / nganga
espírito favorável / espírito colérico
espírito calmo / espírito que se mexe

carne, lágrimas, mensagem

Em seguida passa-se à análise dos sintomas do doente (uma mulher grávida, neste
caso):

mal do coração / mal da cabeça / mal do ventre

mordida / inchaço

sonho

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O sintoma significativo tinha sido detectado, é preciso analisá-lo até nos detalhes;
o ponto de partida aqui é o próprio assunto do sonho, um cabrito na estrada:

feitiçaria / hamba

as coisas / as palavras
(dons) (orações)

na mata / na aldeia

4. Diagnóstico. Após análise detalhada de um único sintoma, o adivinho


descobriu que a doença é devida a uma hamba de que é preciso esclarecer a origem no
quadro de parentesco:

hamba do pai / hamba da mãe

mãe do pai / mãe da mãe

yanga

A mulher contraiu yanga da carne de um cabrito: a carne foi a “rota” para a


hamba.

5. Concatenação simbólica. Nesta sessão de adivinhação, a mais simples que


observamos, o apoio “objetivo” (no sentido literal da palavra) do discurso se limitou à
seguinte seqüência de objetos fornecidos pelo ngombo do adivinho:

Kuku (ancestral masculino) — tumbunda (mulher doente) — musau (travesseiro)


— njia (caminho) — lusende (casco de cabrito) — kuku (ancestral feminino) — yanga
(um dente).

B) - Narrativa de Riasendala

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adivinhação para uma mulher que não tinha filhos


(Satambwé, 14/05/1975)

a) Texto1

Pontos de
adivinhação

Ngombo jária matemo nyi mazembe


kufula koka kulumbiria kwiúka
tema kucaca bantu kwalula, tata
nyi mama Tumba nyi Samba hânjika
wambe-ngwé ku Lunda tuna
keza maha Mwaciava.
Cocen.

O ngombo comeu as enxadas e outras coisas.


A bigorna trabalha para ter sorte.
A primeira trilha é marcada com golpes
(feridas) nas árvores.
É preciso reatar tudo isso!
Meu pai, minha mãe, Tumba e Samba!
É verdade!

Lyakokeka! Una kakoka yinji a muze


twaiá hari Donji nyi Karimba
Oh! We! Cocen.
Hânjika wambe ngwe cocen
Nakashi mwaji mukwó kuri ma pwó
nyi kuri malunga ria zulula
una katwamako.

Lyakokeka2 foi ele mesmo


quem suscitou tantas coisas
quando estivemos em Donji
e Karimba3!
É verdade!
Falar e contar o que é verdade.
Com Nakashi4 isso também se suscedeu: tanto para
as mulheres quanto para os homens, havia

1
Este texto, retirado de um registro magnético, foi revisto por A Barbosa, que também corrigiu a tradução.
2
Lyakokeka - um nome tornado proverbial por causa da enorme riqueza que Lyakokeka teria ganho.
3
Antigos centros comerciais importantes.
4
Nome de mulher.

93
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um adivinho que falava (adivinhava) bastante.

Ngombo itangu kakuka. Pwo mutangu


dumbu. Hamba mutangu Kamwári.
Yaya, ngwó, yaya.
Pwénu ny kutawiza ubi wa noko
Ho! Ho! Ho!

O primeiro método para adivinhar


era kakuka,
e a primeira mulher, Ndumbu.
A primeira hamba kamwari1!
Sim, é verdade!
Sim, cante em coro conosco!
Sim, “coisa vilã de tua mãe”2!
Hô... Hô... Hô...3

Ánya, Ánya! Ánya! Thewa-mba hina mona


Musono mungu-hànjika nwo.
Cingunguca tangénu Cingungu
mutu-ri wana.
Yawa, yaya.

Eis-me! Eis-me! Eis-me!


Eu já vi os clientes,
Quero entreter-me com eles!
Sim! Sim!
Eu vou encontrar Cingungu (foto 51-52) 4!

Hária pwuila mwe múze mwaji mukwó


riambululê mama cengune katala,
cengana kamona, wa mukishi,
iva tata, iwa pwó, iva lunga,
yaya, yaya.

Agora, já é um outro!
Fala, minha mãe! É justo o que
observei. É isso o que vi!
1
Hamba kamwari: alusão ao homem; Riasendala explicou mais tarde: p hpmem impotente sonha que faz
amor, mas não passa de um sonho. Em compensação, se ele coloca a estatueta kamwari em sua cintura ou
sob o leito, chegará de fato a fazer amor. Kamwari é para os homens, kapikala para as mulheres.
2
Insulto que os informadores evitam o máximo possível e que traduzem normalmente por: “Tua mãe não
vale nada”.
3
Assim como no ritual de iniciação dos jovens (mukanda), essas explosões em riso são típicos dos akishi
(dançarinos de máscaras).
4
Nome de um jovem homem para quem Riasendala consultava seu ngombo.

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Escute mukishi1,
escute pai,
escute mãe,
escute, quem quer saber!
Sim! Sim!

Nganga kandá aswama. Cocen nyi mufu


kanda aswáma ngwamburie jina
yaya, yaya.
Cocen! Tuna kahanji kamwaji mukwó
kusémuka kwa hala kana walwa,
Hô, Hô, Hô...

Que o feiticeiro não se esconda!


É exatamente assim!
E que o morto não seja disfarçado!
Que ele pronuncie seu nome!
Sim! Sim!
É assim mesmo.
Falou-se depois do rio com todo mundo!
Ele nasceu dizendo:
vinho (maluvu)!
Hô... Hô... Hô...

Hânjika tukutale
Ah! Ye Ngombo yakulema tuhu
Yzuriè wa twana nayo! Eh!...
Yaya, ngwuó, yaya!
Mba mbia wenda nayo.
Mama yamiye iena hi-mwenda nyi mbila kwa inza kwa

Hi múbwa nyi kwenda nyi mbila iena


kwa-mbanga ngwé mangwié aka ngutahie
yo mwenda nyi mbila kwa inza kwa
hindukie yaya!
Hô! Hô! Hô!...

Fale para que nós vejamos!


Arre! O cesto está pesado demais!
Ele contém as mahamba (as sombras!)
Sim! Diga comigo!
mbila Tu, tu vens acompanhado de mbila2!
Tu disseste: eu vou ao adivinho,
1
Dançarino mascarado.
2
Mbila, sepultura.

95
96

e eis que tu vens com mbila,


tu pois estás doente
e não tens saúde!
Sim, é isso!
Hô... Hô... Hô...

Mala mba kuci muturinga já kanga


nyine-kulu mbila nwó ia iéna mwene
nyimbia kunzwo kuri mapwé
Cocen.
Mwe unehena mbila iya-yié mwene
coco antwana.
Ah! Ah! Yena mwene uri mutoma akuze
kunzwo kuri pw nyi ana. Cocen.
Hânjika tukutale cizurie ca twa
mako. Hânjika! Ewa! Kavundula wa
twana nenyi. Tala!

Mas espere! O que é que se vai fazer?


Isso é demais!
O mbila na verdade está em ti ou
em alguém dos teus
ou dos de tua mulher?
Fale para que o vejamos!
É isso mesmo!
Sim, é realmente ele que leva o mbila?
É ele mesmo que está sentado!
Rápido!
Ah! Ah! Tu, tu és limpo (branco),
e entre os teus as crianças e
as mulheres?
É isso mesmo!
Fale para que possamos ver claro
cikunza tendo a hamba!
(máscara) Fala! Sim, há descontentamento
entre os teus!

(O tahi põe na mão do cliente o


kaphele cikunza que veio à superfície; o
consultante coloca-o sobre seu peito em
sinal de reconhecimento e de concordância).

Wó ló! Pwó rie! Izúrie a twana


nayo yaku-mahiyó.
Mba, mucisemewa cenyi, cikuma ca

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97

twa mako, wó ló! Sango meza katambula


lumahyo! Usolo ku-unayé ka
hindukile. Cocen.
Mamé!...
Hânjika! Cocen! Eh! Há muyia wó!
Wa pwó! Tala! Njila ayi!
Sango meza keva. Njia ayé sango
mujiza kendako.
Mama yami eh!
Hanjeka twié! Kuma mwe mwanji mukwó,
meza kaiva yakufa nyi ya ikola.
Hânjika tukutale!
Cocen!
Sango meza katambulako, kate haya
ha mwaka hanene a mathwi kumeza kevako ku mahyo ya
pwó, cocen! Tala! Kukano jényi, já
pwó ku mwia wo kusemewa piá-me
kwahuwa a kamukosa kama nyi maka
hânjika mukánwa Hanjika!

sundji Oh! La! La! La! Tua mulher?


(vagina) Ela tem a sombra (hamba) que vem da aldeia,
da aldeia de sua família!
Houve um acontecimento!
Ela vai receber as notícias de sua aldeia!
Alguém de sua família estava doente.
É exatamente assim.
Infeliz de mim!
Fala! Conte exatamente! Sim, a ascendência
da mulher! Ela vai escutar as notícias.
njia Eis njia1.
A notícia vai estourar!
Oh! minha mãe!
Fala porque queremos ir embora!
Ele, o consultante, vai escutar
a notícia da morte ou da doença?
Fale para que vejamos!
Exatamente assim!
Tu vais ter notícias,
tu vais escutar de bom grado,
terás notícias da aldeia da mulher!
Notícias que como há
tempos não escutavas mais!
É verdade!
1
Njia, caminho.

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liji A “boca” anuncia a novidade


(palavra) que vem do lugar onde ela nasceu;
primeiro ela vai se purificar
e só depois ela falará!
Quando ela for lavada (purificada)
então falará!

Ayé! Aka hânjika kama


Aka hânjika kama mukánwa
Hi nuna sala yami hiunéza nyi coco
Ah! Ah!
Njié!... Yami akuno néjiè nyi kupita
Tangwa meza ka hânjika kapema
meza kaya kuihunda, mwiza kaièwane.
Tange coco meza kaya kuihunda.
Ewa! Nyi kano jenyi já pwó rié.
Hô! Hô! Hô!

Fala!
Fala e conta!
É você que ficou,
eu, eu retornei!
É isso mesmo!
Ah! Ah!
Entre!
Eu vienho aqui procurar fortuna
No dia em que eu falar corretamente,
eu volto na aldeia!
Quando tu fizeres isso,
tu retornas à aldeia.
lukanu É assim. Haverá braceletes
(bracelete) para sua mulher!
Fala! Rápido! Oh minha mãe, minha mãe!
Explique bem!
Hô... Hô... Hô...

Hânjika twiyé! Mama yami mama!


Swénu! Tala! Hê! Hê! Hê!...
Kale kwoka! Mama yamyê já
mutelela mwana kapindji mame!
Eh! Eh!
Hanjika! Ah! Pwó rie awé! Yaya
yamusema kamunenga naye cuma
amunenga, ngwenyi ngwari yé, ifô
wária, aku waí-ite ku Lunda, kushi

98
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kupa kama yami noko kamwé ka lumbolo,


yami nária, mba ika naku semenene
jina kamuluku kama ria nayé
ina ria mama nganji, mwenawo
whamunehene camba kuséka yaya, yaya
Hô! Hô! Hô!

citewa Há fogo no lar


(lar) O que vai acontecer com meu escravo?
Fala! É para sua mulher!
Aquele que nasceu do (mesmo) ventre
desconfia bastante,
se ele não quer dar presente
o que quer que seja,
ele come completamente só sua carne!
A ti, que estiveste entre os Lunda:
“tu, tu não dás nada a tua mãe,
pão, peixe, óleo,
nada para que eu coma?”
“Para que eu te pus no mundo?
Tu, tu não levas o nome de tua mãe,
o nome de tua mãe F. ...
que está saturada de má-sorte!”
É extamente assim!
Hô... Hô... Hô...

Hanjika twiè!
Mama yamié, kumuya kwa noko
Mba! Au! Citanga wa mutangiè naye!
Mba! Au! Citanga wa mutangiè naye!
Mwè pwó rié aweh! Ayé aka kombelele
nayé!
Hanjika nayé! Akatale kama kapema!
Ewa tate catwama carita eh! Mba cikateli.
Ha hânjika mba ya pema Cocen!
Hanjike-me kuri yé kuma carita
kapema-me carita kulueza Ewa!

Fala! Queremos ir embora!


Minha mãe é de teu parentesco,
do parentesco da mãe que
te pôs no mundo,
citanga a mãe de citanga1!
(o ancestral É a mulher, ela vai falar
1
Citanga, estatueta antropomorfa.

99
100

primordial) para sua mãe!


Fale para melhor comprender.
Sim, do lado do pai está tudo bem;
ele (o ngombo) já falou, com
ele vai tudo bem.
É assim mesmo, é verdade!1
...............................................
...............................................
...............................................

Katula ka sasambi kuma wejia


kuri naye hânjika! Kuma ce
makalinga hô!
Neye cize mwemuze maka mukosa
aka kombelele ringe coco yuke wa
yuka kama wa twahame mungoji-tange
me coco poko mukatemo mwanangana
um Kasamba twa yuka káme
haménè mwanami mukehe mu-kondo
Hânjika! Êwa!
Cocen!
Mba hi walurikaho, wasa poko ya
mulurika mba hi wa lurika, cawaha,
kapema lume. Ewa! Cocen!
Mba hi apema lutika hanjika tutale
ami ngwámi maka tala kwitamba
hindu kwiako aye kahinduka hindu
kwiako aye kaseme.
Mama yamié mama mba ye
anakamutahia irí-io.
Cemutu kamona, sonyi nyi kasemene
sonyi meva yami nyi yami he nakwanjia!

Levanta-te, é melhor!
Tua mÃe vai ser favorável.
Fala!
É assim que se vai proceder!
É assim que é preciso se
purificar (limpar/esvaziar)!
E terá uma chance!
ngoji Ela me deu ngoji2.
(cintura) Assim como a faca veio
e a enxada do reino de Kasamba,
1
Ver seqüência do texto no “Anexo I”.
2
Espécie de corda para transportar as crianças às costas.

100
101

tu também terás uma chance!


Amanhã (aproximação) uma criancinha
estará em teus braços!

Hânjika! Au wa hamwuiya ukamu selayo


ngwényi hi kwakwa hari asala!

Fala! É assim!
Ele falou! Vai colocar o ngoji!
Ele disse! E fim,
nada mais a dizer!

b) - Análise do texto

Esta sessão de adivinhação foi realizada por pedido de Ciwangasha, um viajante


que procurou Riasendala porque exigia de sua mulher, havia alguns anos, uma criança,
que não vinha. A consulta durou quase três horas. O texto reproduziu a primeira parte e a
conclusão. Relevemos apenas alguns pontos:

1. A evocação dos ancestrais é feita em termos bem diferentes da sessão de


Sakungu. A única repetição é a referência a Lunda Mwaciava. Na lista de
ancestrais renomados distinguem-se dois nomes: Tumba e Samba. A evocação
de Lyakokeka e os centros comerciais importantes de Donji e Karimba
relembra as grandes viagens para fazer a troca dos produtos. Foi assim que
Lyakokeka se tornou um homem poderoso.
Nakashi lembra certamente um caso famoso de adivinhação. A tendência do
adivinho a apelar atudo o que é primordial toma três formas concretas:

—o primeiro método de adivinhação: kakuka;


—a primeira mulher (de um chefe): Ndumbu;
—a primeira hamba: kamwari.

2. Interpelação aos participantes e ao ngombo. A expressão “pwénu ny kutawiza


ubi noko” (literalmente: “coisa vilã de tua mãe”) é um insulto grave mas
facilmente tolerável em um dançarino mascarado. Aqui o adivinho, possuído
por Ngombo, toma a liberdade da linguagem própria aos dançarinos; aliás, o
insulto é seguido da explosão em riso típico do dançarino mascarado.
Aliás, além dessa violenta interpelação aos participantes e em particular ao
cliente, o adivinho se dirige constantemente a seu cesto: “vamos”... “fala”... “rápido”...,
etc. Ao mesmo tempo, Riasendala protesta contra os mortos (sombras, espíritos) a quem
censura por impedir os movimentos de seu cesto, que ele acha “pesado” demais .

3. Concatenação simbólica. Sem se ater muito ao estilo habitual dos adivinhos


que apresentam seu raciocínio apoiados por uma dialética rica em oposições binárias,

101
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Riasendala explicita os esclarecimentos que ele tira dos tuphele que sucessivamente se
apresentam à borda do cesto, reportando-os sempre a dois dados fundamentais: o cliente
está em viagem, sua mulher ainda não deu à luz.
A seqüência de objetos que alimentou um discurso ininterrupto, de perto de três
horas, é a seguinte:

mbila (sepultura) — cikunza (máscara) — sundji (mulher) — njia (caminho) —


liji (palavra) — lukanu (bracelete) — citewa (fogo) — citanga (o ancestral primordial)...
— mphoko (faca) — cihungu (“coração” de milho) — toto (o rancor) — citanga —
musau (travesseiro) — cota (clube dos homens) — lukanu — musala e musese (plantas
medicinais)... — ngoji (cintura).

C) - Narração de Hamumona e Mwafima:


adivinhação para uma mulher doente
(Dundo, 27/09/1974)

a) - O texto1

1. Intervenção de Hamumona (fotos 53-55)

Mutwa-pwyié te imbari te um meya


tuli kuli caha cindji.
Kamane! Wo!
Twa vuluka mashima já ngombo
twa vuluka iéna Muhunga wali
hunga prenge nyi Kamwari.
Cocen!
Wafa hamba wasala munze Mwanangana
kalamba Sacombo kumane! Eh!
Kumane! Wo!

Antigamente os Brancos vieram pelo mar (pela água)


e com eles vieram muitas coisas
novas, é verdade ou não?
É preciso lembrar-se ainda dos
mestres de ngombo. Nós nos lembramos
de você, Muhunga2, que brincou3
na noite com kamwari4?
1
A pedido de Mwafima, nós ficamos distanciados da sessão; não observamos portanto os objetos-ponto de
adivinhação, apesar do texto ter sido registrado em fita magnética.
2
Muhunga, nome de um ancestral adivinho, de muito renome.
3
Jogo de palavras que explora a analogia semântica das palavras hunga (mexer, agitar, bascular) e wali
hunga (fazer amor), com alusão aos movimentos corporais que a menina aprende por ocasião da iniciação
feminina, ukule.
4
Hamba kamwari, a Vênus dos Cokwe.

102
103

É verdade!
Aquele que está morto foi que se tornou hamba
Aquele que continua vivo é a pessoa
que será triste1.
Eis aqui um chefe para escutar.
Eis aqui nosso mestre2.
É verdade! É isso mesmo!

Ngombo itango kakuka inaka


sulabo cipoza.
Ngwa-mbulwile kama mbunge
yami yakole?
Manyinga a sala ku mikula nyi
mikhumbi ia kole?
Hula cishika ca kole nyima
há pemba ngutale.
Tangu nyoka kapema tuku-tale,
kanda utwaha luhenge.

A primeira adivinhação (método) foi kakuka


e depois veio cipoza3.
Conta-me lá no coração:
Como vai você?
Com boa saúde?
O sangue está sobre mukula e mukhumbi.
Eu pergunto ao cesto divinatório
se você está bem e se ele
se manifesta com pemba para você ver!

Wana yeu mupa luhenge, luhenge,


wa hengela kunzwó nyi wa hengela
kuri yami mwene.
Lu-henge kwe kunzwó meza kakatuka.
Há lapwila ngwa-mbulwile kapema
muhunga nyi yuma yakupalika
yeswe Muhunga kumu ngwa-mbulwila Muhunga
tangu-nyoka kapema tutaleko
Malyia Hô! Hô! Hô!
Tukula!

Então (neste caso) você está bem

1
Analogia entre a morte e a impotência sexual.
2
Após o óbito de seu tio (em 19/09/1974), o adivinho Mwafima tomou seu lugar na aldeia de Sacombo
cujo nome ele leva a partir de então.
3
Antiga designação do ngombo ya cisuka.

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e não há desvio (do bom caminho)1.


Entretanto não está certo (está tortuoso);
O mal se manifesta na casa
ou bem no corpo?
Ele se manifestou em minha casa!
Agora conte-me, Muhunga,
o que te desagrada e tudo o resto que aconteceu,
tu vais contar tudo, Muhunga,
e também o bom caminho para ver tudo.
Malya2!
Hô... Hô... Hô...

Kanda tukapwa nyi kuri toka


tangwa nyi-kukombelela ngwami cocen.
Ya kwetwa kadji kana ymanyina
twa manawa ho we cocen.
Haria pwiyla nguna-kuhula nawa
kuze kucindongo nawcikanga
kalyamba hapwa iya ineza kukuno
nguna zange kukuhula, hapwila
nguna zange kuhula mbunge yami.
Ya kole?! Manyinga a sala
ku mukula nyi mukumbi.

Afirma-te!
E não deixe passar o momento!
e o preço de tua adivinhação!
Todo mundo exige (a resposta)
e isto depois de muito tempo.
É preciso também exigir, não é?
É verdade!
Agora eu te pergunto
mais uma vez:
Lá embaixo, na aldeia de kalyamba
O que foi que se passou?
É o que eu quero saber,
quero sabê-lo de coração.
Está bem?
Em Manyanga o sangue
foi espalhado sobre mukula e mukhumbi!

Wa na pemba kulutwe yeu mutu-tangunyoka


kapema, twa-mbulwile tutale lenga!
1
Analogia entre boa saúde e caminho certo.
2
Apelo ao ngombo malya, sempre present5e ao lado do cesto de Mwafima.

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A cimeneka tata mwanangana au!


Tahi nyi mukwetu auze-muka
twa-mbulwile kapema!
Tangunyoka ungulweze mwanangana
Sacombo wariá wanwe tukula
kapema ungulweze, tukula
kapema tuta-leko cocen.

Ele se manifestou diante da pemba!


Então, lá embaixo vai tudo bem,
Conte para nós irmos embora! Vamos!
Diga bom-dia a nosso pai,
O mestre-adivinho,
meu amigo que está presente aqui,
conte bem, e que tudo seja exato!
Adiante, fale para que eu diga, e você, mestre Sacombo,
você comeu bem, bebeu bem?
Diga-me: tudo vai bem?
Adiante como é preciso!
É verdade!

Ngombo nyiétu arize tangwa


hapwa Samahici.
Hymáia akatoke um Ngangela
Yaya! Yaya!
Ami ce nabula ngwami ngwo
tata wa tusanyika ngwo éze
a tutahile kama.
Cikuma cika ngwo ca muno,
mucihunga nyi camwiambo!
Yaya! Yaya!

O ngombo é responsável por nós!


Naquele dia em que você deixou Samaici
você estava indo para leste1.
—Sim! Sim!
—A mim mesmo eu pergunto,
e também ao pai (primogênito) que nos chamou
e que veio para adivinhar,
qual é razão de sua marcha,
o que é que o fez vir (para adivinhar),
se a causa (da consulta) vem
da aldeia ou, antes, da mata?
—Sim! Sim!
1
Ngangela/Lwanda: designação cokwe para leste/oeste.

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Ngwe mucimhunda ngwó, mucihunda


ngwó nahula ngwambe ngwami
mucihunda pembe watwa-mamo,
kasumbi watwa-mamo nyi kawa
watwa-mamo.
Wato ka kame, yaya, yaya.
Ngwo hi cocoko, yaya, yaya
Ngwi hi cocoko, yaya, yaya
Kunzwó rie tu manga kunzwó
rie tu twama a tata nyi a mama.
Ngwo mwanetu yaya, yaya.

—Parece-me que é da aldeia,


diz-se que é da aldeia,
na aldeia habitam a cabra,
a galinha e o cachorro,
é isso que se perdeu?
—Sim! Sim!
—Mas ele diz que não!
—Sim! Sim!
—É na casa,
na verdade é na casa
onde habitam pai e mãe
e também nosso filho!
—Sim! Sim!

Ngwé ipupu kuri a mama kunzwó


riétu male, kunzwo ria tata,
kwekuze mwanji um kwiza keza maka,
tata himeza nyi kuri thia,
yaya, yaya.
Yami mba cecize mungwiza kahula
kunzwó ria tata.
Ngwenyi ipupu mala ipupu yina
twama nyi ize mwienda ishimo
ngwo, yaya, yaya.
Ishimo ize mutwiza kahula ngwami.
Ishimo iskufa nyi yakumona
ngwenyi na mona nye meso
ngunahula cishimo ca lemena kuri a mama
nyi kuri yena mwene.
Na-monanga, yaya, yaya.
Ngwo yami mwene na cinomamga
nyi meso jami!

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Keshika wanbanga ngwé mangwié


ku ngombo akangutabie yaya, yaya.

—Há sombra (cipupu)1


entre as mães de nosso parentesco
no parentesco do pai,
é lá que há problemas!
O pai vem para adivinhar.
—Sim! Sim!
—É o seu pensamento que eu quero saber,
se ele concerne a uma pessoa
que está morta
ou, antes, se é alguma coisa de má.
Eu peço seu pensamento.
a propósito do que deve se manifestar (sair)
para saber se é do lado
das mães ou do seu próprio lado.
—Sim! Sim!
—É sobre mim mesmo, é o
que meus olhos verificaram.
Eu disse: vou buscar
ngombo para adivinhar.
—Sim! Sim!

Ipupu ku muhela mala


Ipupu ku muhela mala ye yakanga
ku muhela akwamba twimoneka,
twimoneka yitumbo ngwo.
Oh! isako yia Oh! isako nganga
nyi atu a pema nganga ana ambala
cikuma kuci cenda yitumbo ya
kusa muhela, muhela wa tata
keshika ca kushimanga ngwo
mangwuiyé akangu-tahie
Coco ana twama, coc ana twama
ayo ma zanga nyi kuiya kwikwo
kwikwo kulena kwo mutwiza
kwiza yitumbo ku mujimba ya tata.

—As sombras (ipupu) se manifestam na cama,


as coisas que eu vejo sobre a cama
sem que eu saiba por quê.
E isso acontece freqüentemente!
1
Cipupu, que se traduz freq:uentemente por “sombra” ou “milagre”, significa uma categoria particular de
maus espíritos que se introduzem na vida das pessoas provocando a ocorrência de fenômenos estranhos.

107
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Os remédios!
Oh! Hamba que está lá!
Quem pôs os remédios?
Foi um feiticeiro ou uma pessoa
bem intencionada?
O que há a censurar?
Como ela está (a pessoa suspeita)?
Um remédio mortal sobre a cama,
sobre a cama do pai!
É por isso que vocês estão abalados!
E vocês procuraram o adivinho imediatamente?
É exatamente assim.
Alguns querem ir além
para buscar os remédios
para cuidar do corpo do pai!

2. Intervenção de Mwafima (fotos 56-58; 59-67)1

Cecikumakco cina kamushima


mba ika nakatu-kawia yatwe
Cocen, yaya, yaya.
Oh! Hen! Yena halapwiya ika
mutu kutahia mujimba wami cishi
ku-wiva cipema yena kuci mutu
kutahia cikorió muneha.
Nyami na ymona twe yako kari,
tukutale, tukutale,
Zuza! —Zuza!
Kwa-mwenekwe —kwa-mwenekwe
Naikola kana kalyata
mumutenji wemba —wemba.

Foi isso que os abalou


e então ele se pôs a caminho!
É verdade!
—Sim! Sim!
—Oh! Veja! O que é que se pode
adivinhar para você?
O corpo não está bem;
Como adivinhar?
Você vai trazer uma gratificação2!

1
Uma parte da ilustração fotográfica (fotos 59-67) concernem a uma outra sessão de Mwafima.
2
Cikorio significa ‘alembamento’ (preço de fiança) ou qualquer espécie de gratificação, como por exemplo,
um bracelete ou outro objeto qualquer.

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Eu vi também!
Mais uma vez para que se veja1!
Mexe! Mexe2!
Tu não viste?
Naikola caminhou sobre o antigo locá3.
É verdade, é verdade!

Yami cishi mulonga uri nyi mulonga aujá


mumutenge wambala ana kalyata
—nyi mutenge uze wa uatwe twa
kusweka kwimbo
—Mundji mutenge wa imbari ana
gisangisa.
Nyi wenauo mwiza kamona cipupu!
Zuza! —Zuza!
Mutenge wa yami, kacokwe, mutenge
wambala, wa kupandu kulu
Hi-mau riata, a-pandu kièmo
Hi-mamonamo, a-pandu kièmo
cuma cambala a-pandu kièmo
cenaco a-pandu kièmo
ca mukola. Zuza zuza un-kutale.
Vula.
Hí! Hí... Hé... Hé... Hé... Hé...
Amo yami, iena naikola hi wa
ciata um mutunge
mutene wa kuta citumbo cipema,
cino ni vumbi mwemuze um
kalyata éna mama naikola
mwemuze wa kuciza unabu yoze
kacikmi tangwa ria kangoloshi,
Muri kunzunguzu-mwina, yoze kaciki,
mujimba kuta ita lume nyi molu
hi mu kabomba nenyi kaciki
ma tutu minya,lume nyi moko ma
tutuminya yena mutu umwika ce
cishika, ye nyima wemba-wemba.

Não é minha culpa,


Ela esteve no campo dos outros,

1
Referência ao trabalho duplo do ngombo. Mwafima pede a seu ngombo que moestre mais uma vez o que o
de Hamumona já manifestou.
2
Expressão utilizada sobretudo para os líquidos; cada vez que se agita o ngombo a informação “escorre”
para o adivinho.
3
Local onde se desenrola o ritual de iniciação dos jovens (mukanda) ou o dos homens (mungonge).

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110

O nosso está bem escondido na aldeia,


às vezes ela anda também
sobre o acampamento cokwe;
o de nossa aldeia
está claramente indicado!
Quando ela passou por lá
andou por cima,
por isso que tudo aconteceu
é verdadeiramente isso!
Mexe! Mexe!
Salta aos olhos de todos.
Hí... Hí... Hé... Hé... Hé... Hé...
É assim que eu penso.
Você, Naikola, você andou
sobre o acampamento,
o acampamento tinha remédios perigosos,
e é por isso que a mãe, Naikola,
está doente,
ao cair da noite ela começa a tremer,
fica deitada tremendo
e quando ela dormiu com ele
seu corpo tremia,
as mãos e os pés estavam frios.
Você é uma pessoa.
Você apanhou o frio.
É verdade! É verdade!

Coco a kwambulula
nyi we muthwe nyi ku muthwe,
kakulota nyi é akishi mukishi au atrie
mwenyi a wo hanafu, wemba-wemba.
Ha sala pinga, engwame unyingika coco,
unyingika zundula, unkutale
wa mbala zundula, unkutale
Zuza!
Engwame! Zuza!

É como eu disse.
É na cabeça,
na cabeça que ela tem os sonhos,
os sonhos com as máscaras,
as máscaras que ela mesma viu
mas cujo mestre (dançarino)
está morto! É verdade!
Ele (o mestre) foi substituído

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por um outro!
É verdade!
Agora você sabe que ela andou
sobre um acampamento estrangeiro.
Adiante para que se veja!
Mexa como é preciso!

Yena uri Naikola mba ikuci muturinga


hari yena Naikola wa ria
cié um mutenge yako uka tunge
mukishi citamba muka tamba
mukishi awo muka muzanga mabwa
mafu aye katwama acitamba wina wa
jimbó, wa wé de sanga kula wina
engwame kwe ku wina wa jimbo ako
kwe mukanda citumbo, citumbo há we
mwaji ce mukanda mwiza kakoka naco,
mwiza uka mukose naco wemba!

Você, Naikola! Vai ter que se arranjar


junto para saber como sair dessa!
Naikola andou sobre o acampamento!
Então ela vai encontrar uma máscara,
uma máscara que ela vai honorar
sobre o altar1;
a máscara que ela deve prepara
ficará no lugar
do morto sobre o altar;
e perto do tamanduá
ela vai preparar os remédios,
remédios da mukanda (circuncisão)
remédios com mwaji2,
remédios para lavar-se!
Adiante!

Nyi mwana kasumbi wa um rionda,


nyi mwe mukishi wa twala, nyi wina
wa jimbo mama Naikola kupume Naikola
hi yè gia hi meza kucihunda,
mama Naikola aci induka ukutale,
wemba waci kose ca tome mawtale,
cize hatoma mawtale cize hatoma

1
Citamba, que se traduz por altar, é na realidade uma pequena construção organizada perto da casa na qual
se venera as máscaras e outros objetos de culto.
2
Mwaji é a planta utilizada antigamente para a prova judicial.

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Vula! Lenga!
Kwa mwenekwe cishi kwamba kari
Putu! Walwa!
Hi! Hi! Hé... Hé... Hé... Hé.

Quando ela levar a máscara (sobre a outra)


e o pintinho perto do buraco (do tamanduá)1
a mãe Naikola vai se lavar também
e então Naikola retornará para a aldeia.
Vamos para que se veja! Adiante!
Canta! A purificação a fará desculpar-se.
Verá-se como ela é limpa!
Vamos! Mexa!
É verdade, eu vi. Eu não quero repeti-lo.
É isso mesmo! Vinho2!
Hi... Hi... Hé... Hé... Hé... Hé...

Ukaia há mwaka Eh! Mukanda


akaia um mutenji mwe mumu kandamo
kufio, kufio muka kolako
mutondo um fio, au mwaka au mutondo
akulamba njimbo wa fia shiri,
engwane comuna, mukishi.
Nangikelume, citamba wa tunga
hema-twama, mumu kupula nyé
mangundji nyi we wa rio
nye mwe mukishi, nti mwe mufu,
yena kuci kelume mwana kasumbi,
he ngiá kwenyi kuse kwina, mama
Naikola swa kuse kucihunda wa
hinduka kumeza kafa nawa, wemba
Tweia!

No próximo mês (estação) ela vai buscar


O remédios no fio3!
Vai jogar na árvore que está
no acampamento, e juntar
o fruto mwaka4 de muthongo;
é por causa desse pedaço de pau
que ela cortou com seu machado
que a doença veio; entretanto

1
O buraco (toca) do tamanduá pode eventualmente ser substituído pelo de um cupinzeiro.
2
Walwa, designação vulgar para qualquer tipo de bebida alcoólica.
3
Fio, o local onde os iniciados são operados, pelo menos o chefe dos iniciados, tumba-kambungu.
4
Mwaka, fruto que virou kaphele do cesto.

112
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ela ficará muito bem!


Ela fará a máscara e
também o altar para colocá-la;
só depois ela fará os outros
paus (remédios) e então levará
consigo o morto (máscara)
com o pintinho.
A mãe Naikola entrará
no buraco (do tamanduá)
e retornará em seguida à aldeia;
ela estará boa e não terá mais doenças.
É verdade! Vamos! Vamos!

Nkutale, mautale, cambièmo yami


mutu dumbwami Samba anabemo wemba
tala muthwe Samba kapema!
Zuza! Kwamwenekwe! Kwanwenekwe
te moko-moko a kusele manzano
a washi wemba!
Putu! Walwa!
—Hi... Hi... Hé... Hé... Hé... Hé...

Eu falei para saber mas é


minha irmã Samba que fala (por mim)1.
Sim! É verdade!
Olhe a cabeça de Samba!
Adiante! Bem!
Viu como eu disse certo?
Não foi por acaso que eles vieram a mim.
Sim! É exato! Vinho!
Hi... Hi... Hé... Hé... Hé... Hé...

b) - Análise do texto

1. A adivinhação (sessão) feita por dois adivinhos deve ser alguma coisa de
extremamente rara, e se isto acontece como neste caso, é antes em razão de circunstâncias
fortuitas que por um pedido explícito dos clientes. Neste caso, Rikenga (nosso
informador) havia pedido uma consulta a Hamumona devido a intermináveis doenças de
sua mulher. No dia da sessão, Mwafima também estava ocasionalmente em Dundo. A
iniciativa de Hamumona de pedir a colaboração de Mwafima nos parece antes um ato que
leva em consideração o prestígio de Mwafima. Na verdade, Hamumona toma a palavra,
mas a partir de um certo instante ele passa a palavra a Mwafima que, agitando seu próprio
1
Samba, irmã de Mwafima, porque é seu espírito que está no cesto. Com efeito Samba havia sido possuída
por Ngombo, mas foi Mwafima que se tornou adivinho.

113
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cesto, continua a sessão até o fim, tomando para si a responsabilidade do diagnóstico


final.
2. Ponto de partida: o adivinho descobre sobre o dueto hamba/pessoa a primeira
hipótese a experimentar; além do mais, ele opõe o que está bem ao que está tortuoso; o
que abre o caminho e o que o faz se tapar (referência à feitiçaria). O domínio do tortuoso
pode se observar seja em relação à família ou em relação ao “coração” (imaginação):

tortuoso_____

casa coração

3. Primeiro nível dos sintomas: o mal (do coração) pode ter como proveniência
tanto a aldeia quanto a mata; no primeiro caso se tem normalmente uma relação com a
vizinhança:

tortuoso

coração

mata aldeia

cabrito galinha

4. Segundo nível dos sintomas: há um fenômeno estranho (cipupu) na casa do pai.


É preciso determinar pelo menos alguns pontos de referência para o fenômenop estranho:

cipupu

mexe não mexe

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115

vivo morto

5. Retorno ao primeiro critério objetivo/subjetivo:

Fenômeno estranho (cipupu)

__________________________________________________
visto pelos olhos visto pelos coração

um remédio na cama

6. Retorno ao ponto de partida:

remédio estranho vindo de:

feiticeiro pessoa bem-intencionada.

“Isto faz pensar e eis por quê tu (o cliente), tu viste procurar o adivinho”.
7. Mwafima retoma a análise: e o faz exatamente no ponto em que Hamumona a
deixara. Alguma coisa foi colocada na cama de Rikenga. Este não consegue dormir.
8. A reflexão já está avançada. Na inquietude de Rikenga, Mwafima também vê o
estado de sua mulher Naikola. Ela desacatou gravemente uma proibição: andou pelo
acampamento da mukanda; é por causa disso que ela está doente. É a cólera de um antigo
dançarino mascarado que se manifesta; os sintomas mostram a evidência: estado febril,
frialdade, tremores do corpo, pesadelos em que aparece uma máscara!
9. Tratamento: para apaziguar o espírito, é preciso construir um altar e fabricar
uma máscara, que será colocada no altar, em favor do antigo dançarino cujo espírito está
descontente. Para se liberar da doença, Naikola deverá atirá-la no buraco aberto pelo
tamanduá. Se não houver buraco de njimbo (tamanduá), a construção similar de um
cupinzeiro pode substituí-lo. De qualquer modo, o pequeno santuário erigido em
homenagem do mukishi devera estar protegido como na mukanda.

1.4-Conclusão

Na sociedade cokwe todo adivinho que tenha se submetido a um ritual de


iniciação, tal como o praticante do ngombo ya cisuka, exerce um papel importante na
sociedade tradicional. Mesmo se durante a situação colonial certos aspectos da atividade
do adivinho (como aliás de toda a sociedade) foram “congelados”, as observações de
campo mostram claramente de um lado a atualidade da técnica divinatória ngombo ya
cisuka, e de outro, o prestígio do perito que manipula os objetos do cesto.

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Seu estatuto particular lhe é estabelecido a partir do ritual de iniciação, por meio
do qual retoma a atividade de um antigo adivinho. Ele torna-se também um agente
provolegiado do saber tradicional ao lado do chefe da aldeia, até mesmo existindo muitas
proibições comuns, sobretudo de ordem alimentar e sexual. Além disso, ainda no que
concerne aos funerais e à forma de enterro, o chefe e o adivinho se reaproximam. Todos
estes detalhes levantam o problema da organização do poder tradicional e do papel que o
adivinho deve ocupar; problema muito importante no contexto da sociedade tradicional,
mas que margeia o objetivo deste estudo.
Dos diferentes tipos de técnicas divinatórias conhecidas pelos Cokwe, ou pelas
etnias vizinhas, sob a designação comum de ngombo, pode-se deduzir a importância desta
categoria na tradição cokwe e ao mesmo tempo se verificar seu enorme dinamismo, dadas
as numerosas técnicas inventadas e descritas até o momento. O termo ngombo leva em si
toda uma tradição de saber mnemotécnico que no decorrer das circunstâncias tomou as
mais diversas formas, limitando-se hoje quase que exclusivamente à técnica da imagem
(espelho: ngombo ya malyia) ou à “leitura” dos símbolos divinatórios (ngombo ya
cisuka).
Não resta dúvidas, nem para os Cokwe nem para nós, que a técnica ngombo ya
cisuka, que abordaremos com mais detalhes no próximo capítulo, mesmo se afetada pela
situação colonial, continua a ser um recurso permanente que os Cokwe usam para
resolver seus problemas e para reduzir seus antagonismos. Hoje, terminadas as limitações
de ordem política, os adivinhos continuam a exercer um papel, agora mais claramente
ainda, não negligenciável na evolução das sociedades aldeãs.
Admitindo que o adivinho será ainda por um longo tempo um elemento
importante do dualismo que caracteriza as sociedades africanas atuais, o mais importante
é sem dúvida estudar em todos os detalhes sua atividade e suas técnicas.
A análise detalhada do conteúdo do cesto é sem dúvida o passo mais difícil mas
também o mais importante para comprender as grandes linhas de um saber que está
organizado em torno de um número limitado de objetos diversos que remetem aos
diferentes domínios do saber, e que concernem particularmente ao domínio do culto
(estatuetas-miniaturas das mahamba), ao domínio da medicina tradicional (frutos, folhas
e plantas presentes no cesto), e o estudo do comportamento dos animais enquanto
indicadores da vida dos homens em sociedade.

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