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1.1-Adivinhação e Sociedade
1
Hamba (pl. mahamba), noção fundamental da cultura cokwe, que será aprofundada na conclusão desta
pesquisa (ver p. 417).
2
Redinha, 1966, p. 54.
24
25
adivinho deve procurar recuperá-los, o que parece uma adaptação bastante recente, dado
que antigamente o feiticeiro, uma vez reconhecido, devia ser excluído da sociedade1.
O status do adivinho, já bastante favorecido na região, é ainda mais reforçado, nos
Cokwe, pelo fato de que, frequentemente, ele é o chefe da aldeia que, ao mesmo tempo,
exerce as funções do adivinho2. De acordo com J. Redinha, o adivinho é, regra geral, um
homem inteligente e hábil, astucioso, muito bom observador da sociedade e sempre bem
intencionado; sua ação seja favorável ao equilíbrio e ao bem-estar social3: para E. Santos,
em compensação, a intervenção do adivinho na sociedade pode ser útil ou nula, conforme
seu caráter e sua vontade4.
O adivinho e o curandeiro estão freqüentemente juntos; essas duas profissões,
distintas e independentes, podem ser exercidas pela mesma pessoa, mas é preciso não
confundir nem o adivinho nem o curandeiro com o feiticeiro. De acordo com J. Redinha,
seria um erro e uma injustiça ao mesmo tempo: “Nada mais falso. Tomar o adivinho pelo
feiticeiro corresponde a tomar operadores benéficos por operadores maléficos”5. “Nada
também mais injusto, porque o adivinho é um grande ajudante da ordem”6.
O adivinho exerce uma profissão lucrativa7, mas não temos outras informações
que confirmem o ponto de vista de Ribeiro da Cruz, segundo o qual os adivinhos e
curandeiros tiravam proveito de pagamentos exagerados8. Cada adivinho exerce uma
especialidade dentre os diferentes tipos de instrumentos adivinhatórios - ngombo -
utilizados. Devido ao fato que todo tahi deve descobrir os feiticeiros, alguns se
especializam nesse aspecto de sua atividade; estes são os kabuma; mas nada impede que
um kabuma possa igualmente ser um tahi9.
O resultado do adivinho no exercício de sua profissão é devido sobretudo ao
perfeito conhecimento da situação dos então clientes de suas consultas. Para obter esses
esclarecimentos detalhados, ele tem para seu uso toda uma rede de informações diversas;
o que explica que na hora de sacudir seu cesto adivinhatório, ele saiba fazer saltar para
cima e avante, dentre os numerosos objetos mnemotécnicos que manipula, os que convêm
para formular uma resposta em relação à situação do cliente10,
A coragem do tahi para denunciar o feiticeiro (nganga) demanda, por um lado,
muito prestígio, mas também um conhecimento exato da soma de forças presentes. Com
efeito, uma acusação de feitiçaria significa para o acusado, no mínimo, pagar uma forte
indenização aos parentes da vítima presumida, esteja ela doente ou morta11. Pode
acontecer que o acusado de nganga conteste o veredito do adivinho e, num caso extremo,
um erro do adivinho pode muito bem lhe custar a vida12.
1
McCulloch, 1951, p. 32.
2
Bastin, 1961, p.40; Santos, 1960, p. 156.
3
Redinha, 1966, p. 56.
4
Santos, 1960, p. 153.
5
Redinha, 1966, p. 56.
6
Idem.
7
Bastin, 1961, p. 40.
8
Ribeiro da Cruz, 1940, p. 53.
9
Bastin, 1961, p. 40.
10
Santos, 1960, p. 154.
11
Santos, 1960, p. 155.
12
Redinha, 1966, p. 155.
25
26
1.1.2-Mbuki, o curandeiro
1
Bastin, 1961, p. 40.
2
Ver p. 80.
3
Bastin, 1961, p.46.
4
Hauenstein, 1961, p. 117.
5
Redinha afirma que há possibilidade de uma mulher exercer a profissão de adivinho: “Ainda que
raramente se encontre mulheres adivinhas” (Redinha, 1966, p. 53); de acordo com M. L. Bastin isto não é
possível nunca: “entre os Tshokwe jamais uma mulher é adivinha” (Bastin, 1961, p. 40).
6
Santos, 1960, p. 154.
7
Monfouga-Nicolas, 1972, p. 62.
26
27
relação entre as propriedades fisiológica dos remédios e seu valor simbólico quando
estudou o comportamento dos Ndembu diante das doenças1.
Não se pode definir nem o adivinho nem o curandeiro fora do conjunto mágico-
religioso sobre o qual suas práticas se apóiam.
A doença é freqüentemente interpretada em termos de possessão maléfica ou não-
autêntica; contrariamente ao que se passa com o adivinho, que é possuído por um espírito
benéfico, aqui a palavra possessão toma o sentido de uma doença geral e “exprime tanto
bem quanto mal uma agrassão qualquer do mundo espiritual que se traduz por uma
doença qualquer, sem distinção entre as perturbações orgânicas e as perturbações
mentais”2. A hamba de uma ancestral descontente pode penetrar no corpo de um parente
próximo e provocar a doença; o mbuki, tendo recorrido a uma espécie de exorcismo
psíquico procurará recolher essa hamba ao fazê-la sair do corpo do doente sob a forma do
dente de um ancestral que quando vivo era um grande caçador3. Nesse caso, a extração do
objeto maléfico, a concretização material da doença, será ritualizada, por exemplo, pela
aplicação de ventosas. No interior de uma das ventosas, se encontrará o dente referido. O
mbuki conhece ainda outros procedimentos: uma pancada numa árvore provoca uma
“ferida” que pode recolher uma hamba que é preciso exorcisar do corpo de um doente;
neste caso, todo o esforço do mbuki será de convencer a hamba de sair por uma incisão
feita no corpo e de penetrar na árvore escolhida cuja “ferida”é um abrigo ou uma porta
para a hamba4. O mbuki pode ainda recorrer a outros estratagemas mais imediatos pelos
quais ele tenta muito simplesmente “espantar as mahamba” sem se preocupar em
procurar onde lhes alojar5.
Entre os Ndembu, o mbuki é o especialista de uma doença da qual ele próprio já
foi vítima; pensa-se que essa forma de possessão (doença) cria, após a cura e portanto
após o apaziguamento do espírito possessor, relações particulares entre o paciente e a
hamba, que faz com que o ancião doente adquira uma atitude especial para curar as
vítimas da mesma doença. Nesse caso, diz L. de Heusch, “a folia dos deuses... se extingue
por uma iniciação ao culto do espírito inicialmente patogênico com o qual nenhuma
ligação positiva existia antes da doença”6.
O mbuki recebe sua aprendizagem por freqüentar um mestre cuja competência é
reconhecida; com efeito, se há medicamentos mais ou menos conhecidos de todo mundo,
há da mesma forma outros dos quais o mbuki tem o segredo e que não transmitirá senão a
um de seus familiares ou a um candidato que pague bem7.
1
“It is sufficient to state here that whatever may be the empirical benefits of certain treatments, the herbal
medicine employed derive their efficacy from mystical notions and their therapy is an intrinsic part of a
whole magico-religious system” (Turner, 1967, p. 361).
2
L. de Heusch, 1971, p. 258.
3
Ver yanga, p. 304. Essa ritualização remete às tensões sociais: “O dente resiste... ao se deslocar no corpo
do paciente. Ele representa a “ferida”, a tensão social, o ponto de fricção do grupo”... (Turner, 1972, pp.
132-133).
4
Ver Redinha, 1966, p. 58. A técnica das incisões rituais como meio de cura é muito freqüente até hoje. O
caso mais conhecido é o do adivinho Cikanga, do Malawi, consultado por milhares de pessoas, nacionais e
estrangeiras. Os dois elementos fundamentais de sua terapêutica consistiam em reconhecer as faltas e em
fazer as incisões (ver A. Redmayne, 1970, pp. 103-128).
5
Santos, 1960, p. 154.
6
L. de Heusc, 1971, p. 258.
7
Santos, 1960, p. 156.
27
28
1.1.3-Nganga, o feiticeiro
Do ponto de vista lingüístico nganga constitui uma novidade que, ao menos pela
origem, parece limitada ao grupo étnico mais importante dessa zona: os Cokwe. É uma
inovação lingüística que se encontra mais ou menos generalizada em toda a zona R1. É
curioso notar que em todo o domínio bantu, foi possível reconstruir a forma proto-bantu
donde deriva nganga e outros termos paralelos que designam o operador benéfico a
serviço do grupo e que viemos a descrever sob o nome de tahi. Como explicar que entre o
Cokwe e em toda a zona R, onde a irradiação cultural dos Cokwe foi muito importante, a
palavra nganga, signifique pelo contrário o operador maléfico e perigoso, o feiticeiro?
Os especialistas de lingüística africana têm consciência do fenômeno e ainda
esperam pelos dados etnográficos que explicarão o “escorrego” do termo nganga, que foi
empurrado, num dado instante (também ainda não determinado), e deslizou ao longo de
seu eixo semântico e se fixou na significação contrária. O efeito desse deslize foi a
substituição do termo mulogi (mudogi ou ndoki: feiticeiro, operador maléfico), que
desapareceu, pela palavra nganga; a emergência do termo tahi (adivinho) ao se opor a
nganga, leva este último a tomar a significação de operador maléfico (feiticeiro).Houve
duas fases diferentes de significação para essas palavras:
1
Ver Rodrigues de Areia, 1974.
2
Communication orale (1974).
3
Ver p. ex. Redinha, 1966, p. 56.
4
Aquina, 1968, p. 47.
28
29
mítico. Na prática, o feiticeiro não é de todo um profissional; não é nem mesmo algo de
determinado; ele vive no grupo, anônimo e desconhecido1. É de novo o mesmo
mecanismo do bode expiatório que funciona para descobrir um feiticeiro. À esse
propósito, Ribeiro da Cruz diz que o adivinho, mais freqüentemente, apontava como
culpada uma pessoa idosa ou um inimigo2. De acordo com esse mesmo autor, uma vez
feita a acusação, todo o grupo se punha em ação para fazer desaparecer o culpado acusado
de ser feiticeiro, e as vítimas eram geralmente enforcadas ou atiradas ao rio3 . Acredita-se
também que os chefes têm sempre um certo contato com a feitiçaria, dado que o poder
não é concebível sem a idéia de uma transgressão inicial; o poder do feiticeiro (temível e
perigoso) vêm de um homicídio cometido contra a pessoa de um parente. De onde viria o
dos chefes?
Um amplo contexto etnográfico comum à toda Africa Central mostra que o poder
do chefe é obtido não apenas por um casamento incestuoso4 como também por ligações
mais ou menos avizinhadas com a feitiçaria: seja porque tivesse vítimas sacrificadas por
ocasião de sua entronização (como as "jovens filhas da noite" entre os Yombe)5, seja
porque o jovem chefe iniciado no poder devesse exercer um certo controle sobre os
espíritos assegurados ao grupo do qual ele tornou-se chefe, o que significa que ele toma
para si a responsabilidade dos crimes de feitiçaria cometidos pelos chefes anteriores6, ou,
finalmente, porque se admitisse muito simplesmente que na origem do poder havia uma
transgressão que o explica e o justifica7.
J. Redinha constatou entre os Cokwe uma espécie de fachada institucional da
feitiçaria na medida em que favorecia o prestígio dos chefes e a submissão dos
subordinados8. É também por essa mesma razão que se acredita que os adivinhos não
podiam fazer nada contra certos feiticeiros (os chefes, certamente)9. O temor de ser vítima
de feitiçaria é tão grande que os Cokwe procuram se prevenir do perigo mesmo no Além;
eles querem estar certos de que seu espírito não se tornará um cipupu, isto é, um espírito
maléfico a serviço dos feiticeiros. Parece que este seja ainda um dos objetivos da
iniciação mungonge: para que após a morte os espíritos não se tornem yipupu nem
incomodem seus familiares deste mundo10.
E. Santos tem razão ao dizer que não se pode falar em iniciação para os nganga11.
A iniciação é em si a integração em uma ordem determinada; ora, o feiticeiro representa
precisamente a supressão da ordem.
A recusa da parte da administração colonial de aceitar o crime de feitiçaria diz
respeito ao fato de que o crime determinou a adoção de outros termos, aceitáveis aos
olhos dos novos detentores do poder, para denunciar a feitiçaria e conseguir a condenação
1
Redinha, 1966, p. 65.
2
Ribeiro da Cruz, 1940, p. 54.
3
Idem.
4
L. de Heusch, 1962, pp. 147-148.
5
Doutreloux, 1967, p. 169.
6
Rey, 1971, pp. 204-206.
7
Balandier, 1965, p. 23.
8
Redinha, 1966, p. 64.
9
Kuntz, 1932, p. 135.
10
Santos, 1966, p. 149.
11
Santos, 1966, p. 156.
29
30
dos feiticeiros. O mal era sempre o mesmo, porém apresentado de outro modo: se alguém
que se supunha ser vítima de feitiçaria morria, dizia-se que tinha sido envenenado (um
crime de verdade para as autoridades coloniais). Mas a realidade era totalmente outra:
quando uma pessoa não era mais aceita pelo grupo, devia desaparecer. Sabe-se o que
todos dizem mas não se sabe o que se passa. Estermann (zona R) se deu conta dessa
dicotomia; por isso é que ele insistiu sobre a inutilidade de se praticar autópsia nas
vítimas ditas de feitiçaria por poção (veneno). Todos os casos observados demonstraram
que ele tinha razão1.
Se ainda hoje a explicação desses fenômenos nos escapa, é em função da enorme
distância cultural que nos separa destes povos, e daí afora, porque quase nada se
progrediu no conhecimento deste gênero de comportamento "em que a natureza social
reúne muito diretamente a natureza biológica do homem"2.
Se a força wanga, manipulada pelo feiticeiro, exerce sua influência por sugestão3
ou por um outro mecanismo, não se sabe, mas de fato o feiticeiro assim como a vítima
não podem resistir muito tempo à essa espécie de carisma negativo4: o feiticeiro é
eliminado, o enfeitiçado desaparece.
Para contrariar as forças wanga a serviço dos feiticeiros, há a sabedoria dos
ancestrais que se manifesta nas mahamba que o adivinho acolhe e interpreta. Entre os
vivos e os mortos, uma dupla linha de força se estabelece, determinando a existência
ocasional do feiticeiro (nganga) e a atividade permanente do adivinho(tahi) que deve
neutralizá-lo para restaurar o equilíbrio social no nível do homem e do grupo.
Essas duas forças contrárias marcam os pólos do universo mágico-religioso dos
Cokwe que se poderia explicitar de modo por demais esquemático como segue"
Nzambi
______________________________
tahi nganga
1
Estermann, 1957, p. 261.
2
Lévi-Strauss, 1950, p. XV.
3
Santos, 1960, p. 153.
4
Ver P. Turner, 1970, pp. 366-372.
30
31
Homens
ESQUEMA 3
1.2.0-Introdução
1
Ver mapa étnico, p. 233.
2
Reynolds, 1963, p. 104.
3
Turner, 1961, pp. 23-24.
31
32
essas práticas; para o mesmo autor, a palavra ngombo significaria ao mesmo tempo
adivinhação e "o espírito do ancestral que preside a todos os atos de adivinhação, que
ajuda o adivinho a adivinhar bem"1.
Antes de abordar a questão do ngombo no sentido estrito (cesto ngombo ya
cisuka) devemos levar em conta os diferentes métodos de adivinhação que se relacionam
com essa palavra em seu sentido amplo, quer dizer, é preciso falar dos diferentes tipos de
ngombo.
1.2.1-Ngombo ya mwishi
1
Lima, 1971, p. 153.
2
Ponto de adivinhação significa na prática uma decisão parcial em relação ao conjunto do problema em
questão.
3
Milheiros, 1949, p. 33.
4
Cameron, 1885, pp. 450-451.
32
33
1
Turner, 1961, p. 72.
2
Lovale, Luvale ou os correspondentes Balovale ou Baluvale é a designação genérica de quatro etnias:
Lunda, Cokwe, Lwena e Lucazi, juntas (White, 1948).
3
Turner, 1961, p. 73: upêlu (pl. jipêlu) - mistura de substâncias orgânicas e também elementos de pessoas
vivas que se acredita terem sido sacrificadas.
4
Turner, 1961, p. 73.
5
White, 1948, p. 88.
6
White, 1948, p. 88.
7
Turner, 1961, p. 71; White, 1948, p. 88.
8
O caso de Cikanga é o exemplo mais evidente. Ver Redmayne, 1970.
33
34
1
Delachaux, 1946, p. 46.
2
Idem.
3
Lima, 1971, p. 153.
4
Ver também Santos, p. 137.
34
35
"Questão após questão, o cabo mexe sempre sem colar ao solo. Muitas questões.
Muitos nomes. De tempos em tempos ele observa seu consultante para estudar suas
reações e sua eventual concordância com a resposta do cabo. De novo mais questões,
mais nomes novos, como se o cabo dissesse - "está frio, está quente..." - como fazem as
crianças quando se divertem. Mas o adivinho deve adivinhar. A sessão deve acabar.
Então o cabo pára e a causa da doença é precisamente a que foi dita neste instante. Segue-
se o processo bem conhecido: é preciso pagar, o consultante está contente e o adivinho
ainda mais. E o cabo, a alma do ato adivinhatório, retorna à enxada sem outro
agradecimento senão o de alguns golpes vigorosos sobre uma pedra para calçá-lo melhor.
É preciso adicionar que os movimentos e os músculos do braço do tahi dão ao
consultante a impressão de um esforço basto para o adivinho fazer o cabo se mexer, que
está imobilizado, como que colado na areia"1.
É muito provável que a vigilância e a repressão exercidas contra o cesto tenham
ocasionado uma intensificação dos métodos mais simples e que passavam mais
facilmente imperceptíveis às autoridades. Santos também admite essa hipótese, mas de
acordo com a maior parte das informações, ela deve ser entendida no sentido, que já
assinalei, de freqüência ou intensificação e não no sentido da origem; isto quer dizer que
o ngombo ya mwishi sendo um método já muito antigo tornou-se cada vez mais freqüente
em conseqüência da repressão da administração colonial.
1.2.2-Ngombo ya kalombo
1
Santos, 1969, pp. 233-234.
2
Melland, 1923.
3
Reynolds, 1963.
4
White, 1948, p. 88.
35
36
chifre torna-se pesado por causa desse poderio1; de acordo com o informador Hamumona
o ngombo ya kalombo se prepara com um chifre do antílope thengo2, no interior do qual
se põe o nzambo, que é uma mistura de vários produtos (dos quais o principal é uma
relíquia de um feiticeiro - seja uma unha ou um pedaço de osso ou um coração)
escondidos na casca de uma árvore.
De acordo com os informadores de V. Turner, o ngombo gosta muito de se mexer.
Ele procura os espíritos e as pessoas. É tido por alguns homens (White) ou pelo próprio
adivinho (Bastin) ou ainda, de acordo com vários informadores, pelos consultantes que
estivessem possuídos pelo chifre em um determinado sentido. Antes da tentativa final,
isto é, antes de se pôr em movimento para a direita de onde se encontra o espírito ou a
pessoa concernida, é preciso esclarecer muitos elementos preliminares. Os
esclarecimentos estão duplamente codificados:
movimento / imobilidade
branco / vermelho
alto / baixo
direita / esquerda
1
Bastin, 1959, p. 105.
2
O antílope-cavalo (Hippotragus equinus).
3
Bastin, 1959, p.105. De acordo com Lima, seriam antes duas bolas de pemba e de mukundu. As respostas
seriam negativas ou positivas, conforme o movimento tocasse o vermelho ou o branco (Lima, 1971, p. 145).
4
Turner, 1961, p. 77.
5
Idem.
36
37
patrilinhagem / matrilinhagem
tio maternal / sobrinho
homem / mulher
ancestral / criança
1
Bastin, 1959, p. 105. De acordo com as observações de Turner, o eixo semântico seria antes o sexo: "To
designate something masculine, the horn will turn round and reach the deviner's penis; to represente
something feminine it will point towards a woman's private parts - for example, to show that women's
ritual (Yidika yawambanda) should be performed" (Turner, 1961, p. 77).
2
Turner, 1961, p. 77.
3
Ver p. 62.
4
Bastin, 1961, p. 46.
5
White, 1948, p. 88.
6
Reynolds, 1963, p. 110.
37
38
1.2.3-Ngombo ya mbaci
Uma carapaça de tartaruga cheia de remédios (foto 24) à qual se prende uma
pluma seja de galinha-d´angola (White) ou de abutre (Reynolds). O adivinho coloca o
vermelho (mukundu) de um lado (à sua direita) e o branco (pemba) do outro; à meia-
distância entre o branco e o vermelho, ele coloca o instrumento de adivinhação - a
carapaça de tartaruga, que tem sempre a pluma.
A tartaruga se “desloca” para a direita ou para a esquerda e ao mesmo tempo o
adivinho pronuncia alguns nomes de pessoas. Se a tartaruga toma a direção da direita
(mukundu) a pessoa dita é culpada, se vai para a esquerda, as pessoas são inocentes.
Turner assinala como “indício pertinente” dessa técnica o fato de que a tartaruga
tem uma carapaça bastante espessa, e que ela caça muitos pequenos animais aos quais
segue pacientemente; é o mesmo o que deve fazer o ngombo2. Os pequenos animais
tomam aqui a conotação das coisas ocultas que passam facilmente despercebidas. Tal é o
ofício fundamental do adivinho: trazer à luz as coisas ocultas.
Contrariamente à carapaça, a pluma então que é frágil, acentua o aspecto precário,
até mesmo perigoso, da atividade do adivinho3. A fragilidade da pluma é reforçada
também pela etmologia da palavra: nkang´a, de ku-kang´anya (falhar)4; ela põe em
guarda o adivinho para que ele realize com sabedoria o trabalho delicado que consiste em
descobrir as pessoas mal intencionadas. O fato de que a pluma seja de abutre poderia
acentuar ainda o aspecto negativo da técnica, mas não se sabe se se trata exatamente de
uma pluma de galinha-d´angola, de abutre ou de uma outra ave.
A bipolaridade cultural branco/vermelho que em toda essa região da África conota
a oposição inocência/culpabilidade desce ao nível pragmático onde a oposição
1
Bastin, 1961, p. 46.
2
Turner, 1961, p. 82.
3
Em alguns casos, aliás muito raros entre os Cokwe, o veredito do adivinho pode desencadear a oposição
de todo o grupo ao qual pertence o membro surpreendido pela sentença.
4
Turner, 1961, p. 82.
38
39
carapaça/pluma;
solidariedade/fragilidade
bem/mal.
1.2.4-Ngombo ya cisalo
1
Ver p. 313.
2
Bastin, 1959, p. 105.
3
Bastin, 1959; Lima, 1971, p. 148.
4
Lima, 1971, p. 148. Na verdade, os Cokwe preparam os caixões com a madeira da árvore muhanga
(muhanga wa mufu); a rarudade do objeto impede de sabermos se a observação de Lima é realmente exata.
O cisese observado nas coleções do Museu de Dundo foram fabricados por meio da kajika mutunda, e não
de muhanga.
5
Reynolds, 1963, p. 108.
39
40
adivinho tem na mão esquerda e a parada da trança é uma resposta favorável: o cliente
doente se recuperará; se a trança se curva, é a morte que virá1.
Os Cokwe dizem que a kaponya (estatueta) está lá só por aparência; o importante
é o fruto, porque ele contém os remédios que lhe imprimem seu movimento; com os
remédios (que não se conhece) há também os grãos metade vermelhos metade pretos de
kenyenge que servem para denunciar o feiticeiro.
De acordo com o adivinho Hamumona, essa técnica vêm dos Kongo (Congo
oriental); ele explica assim: “Se entre nós há praticantes do ngombo ya cisalo, é porque
eles são originários do Congo. Os Cokwe iam buscar escravos Kongo com freqüência;
eles voltavam jovens; mais tarde, quando os escravos se tornavam adultos, eles se
consideravam Cokwe, mas naverdade são Kongo. Ora, suponhamos que um desses
homens fique doente; ele consulta um adivinho que lhe explica: ‘Você tem a doença do
ngombo de seu ancestral”; era o ngombo cisese; então ele vai procurar entre os Kongo um
cisese e se torna adivinho. Essa técnica não pertence nem aos Cokwe nem aos Lunda”.
1.2.5-Ngombo ya mbinga
Esse instrumento de adivinhação parece ter tido uma expansão enorme. Com
efeito Delachaux. que dá esclarecimentos detalhados sobre esse objeto adivinhatório, o
relaciona à antiga Rodésia do Norte (Zâmbia) enquanto que Hauenstein o achou entre os
Ngangela de Angola. White diz que ele pertence aos Lovale.
Delachaux descreve um exemplar encontrado pelo pastor Ed. Berger na Zâmbia:
“Ele se compõe de um cabo, simples baguete de 27cm, prolongado por uma cordinha de
fibras vegetais de 35cm, na ponta da qual é pendurado uma espécie de chifre cônico em
madeira, de 10cm. O chifre é preso na ponta mais grossa, sendo que a outra permanece
livre. A ponta grossa é provida de um círio negro ornado com pérolas brancas e quatro
pequenos frutos vermelhos. Nos dizeres de seu proprietário, o interior do chifre contém
os encantos, e entre eles os restos de sua sogra2.
O círio negro, neste caso, alarga a oposição do branco/vermelho da África Central
até à trilogia das cores fundamentais. Infelizmente no contexto do simbolismo da
adivinhação, não se sabe quase nada da cor preta, que parece prefencialmente negativa.
Todavia entre os Ndembu, sabe-se que o preto está relacionado com “a feitiçaria, a morte
, a desordem”, etc.3; mas como já vimos em várias ocasiões nas técnicas adivinhatórias, o
vermelho intervém para retomar à carga o preto.
De acordo com White o adivinho põe o pequeno chifre no chão e ao mesmo
tempo tremula um pedaço de pau; então o chifre se anima e avança docemente; no
1
Gelfand, 1956, p. 73; in: Reynolds, 1963, p. 110.
2
Delachaux, 1946, p. 46.
3
Ver: “La classification des couleurs dans le rituel Ndembu”, Turner, 1972, pp. 55-88.
40
41
1.2.6-Ngombo ya kakuka
1
Delachaux, 1946, p. 46.
2
Hauenstein, 1961, p. 121.
3
Reynolds, 1963, p. 114.
4
Bastin, 1961, p. 100.
5
Bastin, 1961, p. 101.
41
42
1
Idem.
2
..."esfregalho escorregadio macho no qual desliza um busto de mulher", Rentel-Laurentin, 1968, p. 168.
3
Lima:, 1971, p. 144. Admitindo-se que esse ngombo é o mais antigo utilizado pelos Cokwe, nada autoriza
concluir que é o mais antigo na cultura cokwe; na verdade os Cokwe distinguem claramente quais são os
ngombo que receberam dos Lunda e os outros que pertencem aos próprios Cokwe, mesmo que outras etnias
os conheçam e os utilizem também. O ngombo ya kakuka, agora completamente inusitado, é sempre
considerado como uma técnica que vem dos Lunda
4
Ver os anexos do ngombo, pp. 119-120.
5
Hauenstein, 1961, p. 118.
42
43
madeira de mutete (Swartzia madagascariensis Desv.); ele lhe faz um buraco no peito
para colocar os remédios extraídos de várias plantas. Por sua vez, Mesquitela Lima parece
ter indicado o caso de uma estatueta kakuka em madeira de musole (Bombax reflexum,
Sprague)1. Parece que pelo menos para os Ovimbundu, a árvore de onde provém a
madeira não tem muita importância, mas o pedaço de madeira deve ter tido um uso bem
determinado:
“...ele (o pedaço de madeira) deve provir em princípio de uma vara que serviu
para carregar um cadáver quando da cerimônia de consultação do morto”2.
É uma técnica fora de moda que perdeu o prestígio de antigamente, pelo menos
entre os Cokwe, em favor de outras técnicas mais modernas:
“Kakuka era o ngombo que eu conhecia antigamente. Meu tio Samaika me havia
lhe apresentado. Para adivinhar com o ngombo kakuka, não é necessário primeiro estar
doente (isto é, possuído por um espírito); basta ser iniciado.
Eu abandonei o kakuka porque está muito fora de moda, é verdadeiramente
d’antanho e além do mais não é muito preciso. Depois, eu comecei com o ngombo ya
malyia. Com o malyia, vê-se mais claramente; foi um adivinho de Kakolo que
apresentou-lhe; mas eu jamais o utilizei para descobrir um nganga (feiticeiro), mas foi
sempre para os doentes” (João Manoel).
João Manoel explicou ainda como, mais tarde, ele foi possuído por um espírito;
era um convite para praticar a adivinhação pelo ngombo ya cisuka que inclusive é o único
a exigir a possessão pelo espírito Ngombo.
A técnica ngombo ya kakuka foi atestada em um vasto contexto etnográfico,
sobretudo na África Central; as diferentes variações geográficas foram classificadas por
Retel-Laurentin como técnica de adivinhação por fricção3.
Por sua antigüidade, essa técnica, mais que todas as outras, “põe assim o problema
dos legados culturais em função da importância dos fluxos migratórios e dos modos de
relacionamento entre as sociedades”4.
Em relação às técnicas por fricção, e talvez ao protótipo de todo o grupo, existe
um procedimento ainda mais simples onde “o adivinho fricciona uma contra a outra as
palmas das duas mãos após ter feito primeiramente um símbolo de cruz sobre o dorso da
mão com a cinza”5. É uma técnica sempre praticada pelos Bochimans de Angola bem
como pelos Ovimbundu que a designaram por okulilombula. Não se estabeleceu ainda os
pontos de descobertas eventuais.
1.2.7.-Ngombo ya lusango
43
44
Não se observa mais esta prática entre os Cokwe de Angola; os mais antigos que
nos falaram dizem que é uma técnica abandonada há muito tempo. Em compensação,
Turner a descreve como sendo ainda atual entre os Ndembu e os de origem Lunda1
enquanto que para White, ela teria antes sido emprestada dos Lwena2.
O suporte material desta técnica é o chocalho (lusango) (foto 31) que se prende a
uma cordinha ao longo da qual ele pode deslizar. Delachaux descreve um destes
instrumentos que ele encontrou em um país nyemba:
"O instrumento do qual se servem os adivinhos ngangela e nyemba consiste em
uma casca de fruta dura, com a qual confeccionam seus chocalhos que acompanham as
cestas para adivinhar"3.
As frutas são bem presas à cordinha fixada em baixo no dedão do pé esquerdo e
em cima na mão esquerda; algumas variações se apresentam, mas encontra-se sempre o
movimento vertical de baixo acima; a parada em cima é indício de culpabilidade, ao
passo que o retorno do chocalho é uma prova de inocência.
De acordo com Delachaux, a parada em cima ou o retorno do lusango para baixo
seria determinado pelos movimentos inconscientes da mão ou do pé aos quais estão
presas as extremidades da cordinha.
É uma técnica extremamente simples e de grande flexibilidade. Reynolds
observou que os Rotse substituem facilmente o lusango por não importa qual objeto
cilindriforme ou mesmo por uma pequena varinha, ou ainda por uma pequena cabaça4.
1.2.8-Ngombo ya maliya
Este método divinatório, como aliás todos os outros que mencionei até o presente,
não exige nenhuma iniciação especial, isto é, uma intervenção dos deuses que
determinaram a vocação do adivinho; a única coisa a fazer, é encontrar um praticante
experiente que aceite aprender o método mediante um preço bastante elevado.
Contrariamente a todas as técnicas relacionadas até aqui, o ngombo ya maliya está muito
disseminado, e é atualmente o único concorrente do ngombo ya cisuka. Apesar de sua
freqüência entre as populações cokwe, os praticantes desta técnicas perdem terreno cada
vez mais em favor do ngombo ya cisuka sempre honrado.
1-Origem e difusão
1
Turner, 1961, p. 82.
2
White, 1948, p. 88.
3
Delachaux, 1946, p. 47.
4
Reynolds, 1963, p. 116.
44
45
1
Bastin, 1969, p. 103.
2
White, 1948, p. 88.
3
A redinha utilizada como vestuário do dançarino de máscara (mukishi) também se chama mukishi.
4
Cijimbikilo - coisa oculta e que deve continuar oculta.
45
46
atirando um punhado de cinzas numa cabaça cheia d'água". A técnica olumilo dos
Ovimbundu fazia igualmente apelo à água e às cinzas1.
Madalena Augusta, uma adivinha lwena, explica como teve a idéia de exercer a
profissão:
"Uma mulher morreu; conduziram-na ao cemitério. Mas antes de ser colocada na
sepultura, ela começa a falar. Ela virou kavumbu, isto é, alguém que está morto e
ressuscitado. Reotnando à aldeia, ala começa a adivinhar, profissão que havia aprendido
no país dos mortos". Madalena Augusta, uma filha lwena, pôde constatr o prestígio desta
mulher que se dizia kavumbu e as vantagens que estavam associadas. Ela pediu-lhe para
aprender a técnica. A aprendizagem lhe custou um boi, mas kavumbu, a mulher
ressuscitada, não lhe ensinou todos os detalhes. Madalena Augusta reconhece que a idéia
de se tornar adivinha lhe veio quando ela viu os negócios florescentes de kavumbu. Esta
possuía um remédio misterioso que ela punha sobre seus olhos antes de pegar o espelho
divinatório; ela colocou nos olhos de Madalena Augusta também, mas o verdadeiro
conteúdo do remédio ela não conhece.
É preciso observar que jamais uma mulher será adivinho entre os Cokwe, e muito
menos adivinho iniciado, isto é, adivinho possuído pelo espírito Ngombo; mas os Lwena
têm um regime excepcional; o regime do poder entre os Lwena é um verdadeiro
matriarcado; aliás a chefe atual, a irmã de Madalena Augusta, Cisengo, é a verdadeira
Nakatolo, chefe tradicional de todos os Lwena.
Como se viu, para o ngombo ya cisuka a técnica vem do além. A mulher kavumbu
tinha, no momento de sair do sono mortal, um pedaço de pemba na mão; tinha também
um livro que ela sabia decifrar para adivinhar.
Tomando consciência de seu saber, kavumbu encomendou a um escultor uma
estatueta, no interior da qual colocou os remédios; ela comprou também um chifre de
khai, encomendado a um caçador. Nossa informadora não tem condições de nos dizer
qual é a composição dos remédios, mas sabe que todos os ingredientes provêm do mato.
Na verdadem para se tornar adivinho do ngombo ya maliya, basta pagar; Madalena
Augusta pagou um boi, outros pagam dois mil Escudos. Mas vale a pena, explica
Madalena Augusta, porque os clientes trazem sempre muitos presentes e, além disso, eles
pagam pelas consultas de doenças cinqüenta Escudos. Para as consultas em caso de
falecimento, que aliás tornam-se cada vez mais raras, ela cobra mil Escudos; o mesmo
preço é pago quando se reclama seus serviços para fazer desaparecer a feitiçaria de um
nganga (feiticeiro).
Na verdade, como tomar a decisão a partir de uma imagem que se vê num
pequeno espelho? Madalena Augusta responde que é preciso saber olhar e que a pessoa
não pode dar uma resposta a uma questão sem olhar a imagem que é preciso ver. Na
verdade, é tudo o que é preciso aprender. Os remédios sobre os olhos ajudam a ver mais
claro mas não bastam para encontrar a solução, porque esta não vem dos olhos mas do
coração:
1
Delachaux, 1946, p. 45.
46
47
"O adivinho vê com seus olhos mas adivinha com seu coração", esplica Madalena
Augusta.
Para ilustrar sua atividade, nossa informadora explica como ela chegou no país
dos Cokwe, onde os adivinhos são muito numerosos:
"Eu comecei a adivinhar quando minha mãe, Nakatolo (mulher-chefe dos Lwena)
vivia ainda; tudo ia bem naquele tempo; após a morte de Nakatolo, minha irmã Cisengo,
que tem o poder, e eu fomos disputadas; eu não queria mais viver em sua casa. E além
disso, o povo é pobre no país lwena; aqui, há muitos trabalhadores que não ganham
pouco dinheiro; aqui há dinheiro; é por isso que os adivinhos são bem pagos".
E entretanto não se encontra mulheres adivinhas entre os Cokwe. O que não
impede o sucesso de Madalena Augusta:
"Apesar dos adivinhos serem bem numerosos aqui, muita gente vem solicitar
meus serviços por estarem convencidos que sou eu quem fala com mais certeza; houve
até um europeu que me consultou para lhe dizer onde se encontravam algumas manadas
de elefantes que lhe pertenciam e que haviam desaparecido após um certo tempo".
Madalena Augusta termina seu testemunho contando sua última intervenção; era
um caso de feitiçaria; a intervenção de Madalena Augusta foi solicitada pela autoridade
colonial:
"Um dia, uma pessoa morreu na aldeia Kaika. O chefe da aldeia não sabia quem
era o responsável pelo falecimento; mas a família da falecida havia consultado o adivinho
durante a doença; havia grandes suspeitas a respeito de uma velha viúva de nome
Namutondo. O chefe da aldeia não pôde conter sua raiva com relação a todo o parentesco
de Nama, a mulher enfeitiçada, que veio a morrer; os golpes de bastão começaram a
chover e Namutondo foi a vítima. O filho de Namutondo, impotente diante da agressão,
parte para advertir a autoridade, o 'chefe de posto' (autoridade colonial). Este pediu a
intervenção de Madalena Augusta. Pegando sua trouxa de praticante, Madalena Augusta
parte para a aldeia Kaika para fazer seu trabalho:
"Eu olho seja no mbinga (o chifre) seja na kaponya (a estatueta) porque a imagem
pode aparecer em um ou em outro; depois de alguns minutos, vi no mbinga (o chifre) a
imagem de Namutondo; então eu perguntei: onde está Namutondo? O chefe tinha
colocado Namutondo na prisão; ela permaneceu lá um certo tempo porque eu fiquei
doente; quando me restabeleci, o chefe me pediu para retirar a feitiçaria de Namutondo.
Esta inicialmente protestou inocência mas depois de ter bebido os yitumbo (remédios) que
lhe dei para beber, ala confessou sua feitiçaria e eu a retirei de seu coração".
Encontrar a resposta durante uma consulta, como desenfeitiçar um presumido
nganga, é para o praticante do ngombo ya maliya uma diligência interior, uma questão de
coração; por este aspecto, esta técnica favorece os praticantes inteligentes e plenos de
boas intenções, mas a maioria dos Cokwe prefere seguir o processo passo a passo, a
diligência do adivinho se concretizando diante de seus olhos pela mediação dos objetos
(tuphele) do ngombo ya cisuka.
3 - A sessão
O adivinho começa a sessão divinatória preparando seus olhos para ver melhor a
imagem-chave da resposta. Ele unta seus olhos com remédios contidos em dois pequenos
47
48
a) -Ngombo katwa
Ngombo katwa (Turner)
"Magnetic gourd" (Reynolds)
1
Bastin, 1959, p. 103.
48
49
Esta mesma conotação precede o ato divinatório propriamente dito. Com efeito, o
adivinho põe apenas o pemba sobre seus olhos se ele deve determinar a causa de um
doença; o pemba e o mukunda, se ele deve descobrir um feiticeiro. Adicionemos que os
Cokwe utilizam ainda hoje esta técnica, mas eles substituíram a cabaça por um prato
europeu.
b) - Ngombo kapyekete
Ngombo kapyekete (Lima)
Ngombo ya mzele (Turner)
Mangaba ou masepo (Maes)
Trata-se de uma técnica de origem lunda, de acordo com Turner1, mas que não se
encontra mais; para Mesquitela Lima ela vem de preferência de um pequeno grupo étnico
do norte da Lunda que é designado correntemente por Fwiya2. É um conjunto de
pequenos pedaços de madeira articulados que se afastam ou se engancham segundo o
movimento dado elo adivinho (foto 34). O afastamento máxima dos elementos
corresponde a uma resposta negativa, enquanto que os pedaços bem unidos determinam
uma resposta positiva (fotos 35-36).
Este instrumento já foi descrito por Maes em 1925 sob o nome de mangabaga ou
masepo:
"... formado por um feixe de pequenos bastonetes aos quais se prendem outros
bastonetes ligados por cordas entrecruzadas e formando uma série de losangos móveis em
torno do eixo central"3.
De acordo com as informações da época, este instrumento havia sido encontrado
entre os Pende, mas se ignorava a maneira de utilizá-lo.
1.3.1-Origem e difusão
1
Turner, 1961, p.82.
2
Lima, 1971, p. 148.
3
Maes, 1925, p. 745.
49
50
A opinião dos Cokwe é que o ngombo ya cisuka é deles, que lhes pertence
propositalmente; foi inventado por eles e tem sua preferência em relação aos outros meios
de adivinhação. Elias Mwasefu, nosso informador-intérprete explica o por quê dessa
preferência: "Nós amamos mais aquele (ngombo ya cisuka) porque no frasco (ngombo ya
maliya) é apenas o adivinho quem vê; ele adivinha em seu coração e fala. Neste (ngombo
ya cisuka) eu também vejo o que ele diz. Algumas pessoas, quando vão consultar o
adivinho, sabem imediatamenteo resultado mesmo antes que o adivinho lhes explique,
porque eles próprios veêm a resposta do cesto, ao olhar como os tuphele (símbolos de
adivinhação) mexem e se misturam uns aos outros para dar a resposta".
Resta delimitar claramente as fronteiras de difusão desta técnica de adivinhação.
Assinalada em diversas etnias da zona lingüística K e ainda em algumas etnias vizinhas,
sua extensão parece de fato limitada às zonas por onde os Cokwe passaram e se fizaram
ou ao menos exerceram sua influência. À leste se conhece sobretudo os Ndembu. Turner
interpreta essa herança cultural por via ritual (pelo rito kayong'u) que os Ndembu
receberam dos Cokwe e dos Lwena:
Cokwe
Lwena Ndembu
Este seria pois um aspecto particular de uma difusão muito mais ampla e mais
constante que se explicava não somente pela mobilidade permanente das populações
cokwe mas também pelas modalidades próprias da colonização.
Os Ndembu chamavam com freqüência adivinhos de Angola para lhes submeter
suas questões; nós sabemos até mesmo que um dos informadores de V. Turner era um
adivinho angolano. Ele pode ter razões de prestígio (a distância em geral favorece o
prestígio do adivinho), mas há certamente também o fato de que a repressão das
autoridades coloniais exercidas contra o adivinho, ainda que ela fôra mais ou menos
generalizada nos dois territórios, seja exercida de maneira diferente em Angola; a
hostilidade dos missionários para com os adivinhos se traduzia apenas em tomadas de
posições ocasionais mais ou menos freqüentes, segundo o zelo maior ou menor dos
administradores "chefes de posto". Jamais o adivinho foi considerado oficialmente como
um "fora-da-lei", porque a legislação colonial portuguesa não atingiu nunca um grau de
sofisticação que lhe permitisse distinguir com rigor o adivinho do feiticeiro ou do
curandeiro. A lei inglesa ao contrário prescrevia em termos absolutos1 a atividade do
adivinho e, em conseqüência, o simples fato de se transportar um cesto divinatório
bastava para ser considerado um criminoso. Esta parece ser também a razão principal de
uma certa evolução das técnicas de adivinhação durante a época colonial, sobretudo com
a proliferação de novos métodos, mais práticos e mais imediatos e sobretudo menos
1
Ver África, 1935, principalmente Orde Browne, pp. 481-487 e Melland, pp. 495-503.
50
51
fáceis de detectar, tais como o cabo do machado, a cabaça com água, o espelho, etc.,
assim como os processos que passavam mais facilmente desapercebidos que o genioso e
complicado cesto divinatório.
Mais ao sul, o ngombo ya cisuka chega aos Rotse (Barotse) também através da
influência cokwe e sobretudo pela dos Lwena que marcaram profundamente todo o
sistema mágico-religioso dos Rotse, bem como sua cultura material:
"In Barotseland... immigrant Lunda-Lovale have a considerable influence on
almost all aspects of indigenous material culture, notably inthe field of magic"1.
Mas o maior campo de expansão desta técnica foi precisamente em direção sul e
sudoeste, quando os Cokwe penetraram profundamente no interior de Angola, pequenos
grupos tendo penetrado até mesmo além da fronteira sul. Desta presença resulta a
expansão da técnica entre as etnias atravessadas pelo movimento migratório,
principalmente os Lwimbi, Ovimbundu, Lwena, Ngangela e Nyemba. Há informações
concernentes ao cesto divinatório dos Ovimbundu que não deixam dúvidas quanto à
influência cokwe, bem como se pode notar nestas amostras uma franca redução na
proporção das figuras antropomorfas; a partir dos Ovimbundu esta técnica pode ter
seguido para os vizinhos Ngangela e Nyemba:
Ngangela
Cokwe Ovimbundu
Nyemba
Esta hipótese foi formulada por Delachaux, que parece ter levado em conta as
relações e os contatos sucessivos entre estes povos:
"Nós temos a impressão que os Ngangela importaram este método dos
Ovimbundu, assim como os Nyemba, que, além disso, são seus parentes próximos. Os
próprios Ovimbundu, que são vizinhos diretos dos Tyivokwe, o puseram a estes últimos,
já mais antigamente"2.
Segundo A. Hauenstein, conhecedor igualmente do cesto divinatório dos
Ovimbundu, as coisas teriam se passado um pouco diferentemente:
"Nós estamos enclinados a crer que se trata de uma importação dos Tchokwe ou
dos Ngangela". E ele avança os argumentos em favor da primeira hipótese, a origem
cokwe: "Primeiramente porque as principais estatuetas são semelhantes às da cesta dos
Tchokwe, e depois, as estatuetas são quase todas esculpidas por estes últimos". E
sobretudo, o argumento da observação de todos os dias, cujo valor é incontestável: o fato
que os adivinhos do cesto, entre os Ovimbundu, são preparados em etnias estrangeiras: ...
"contrariamente ao que vimos entre os Tchokwe, a arte de adivinhação por meio da cesta
de ossinhos entre os Ovimbundu não é herdada de um ancestral, mas adquirida ao curso
de uma iniciação recebida em um país estrangeiro, sinal assaz revelador de que se trata de
um empréstimo de uma outra tribo"3.
1
Reynolds, 1963, p. 102. "Na terra Barotse... imigrante Lunda-Lovale tem uma influência considerável em
quase todos os aspectos da cultura material indígena, notoriamente no campo da magia".
2
Delachaux, 1946, p. 144.
3
Hauenstein, 1961, p. 120.
51
52
Teremos também, e talvez com mais probabilidade, a difusão imediata a partir dos
Cokwe para as populações vizinhas e apenas acidentalmente a passagem da técnica de
uma população a outra sem intervenção dos imigrantes cokwe:
Cokwe
Ovimbundu
Ngangela
Hô... Hô...Hô...
Hô... Hô...Hô...
Ele tinha um cesto (ngombo) nas mãos e também um pedaço de pemba (caolim
branco); ele se dirigiu às pessoas que do lado de fora celebravam sua morte e lhes disse:
"Eu morri da doença ngombo; por essa razão fui enviado de novo para viver por Nzambi;
venho para adivinhar porque não se pode morrer de Ngombo" (Sakungu).
De acordo com a opinião de Sakungu, a doença ou possessão pela hamba Ngombo
não pode ser mortal; a descoberta dessa forma de possessão remonta ao fundador da
chefia Mwana Cimbundu, às margens do rio Cipaka.
Esta ligação do adivinho com o fundador da chefia é muito freqüente, mas nem
sempre evidente; a análise da atividade do adivinho torna evidente o lugar que ele ocupa
na estrutura do poder. Sua atividade condiciona e determina em grande parte a atividade
dos chefes de aldeias.
O acesso de um homem à função de adivinho nos parece mais importante em
nosso estudo que a ligação ao poder tradicional. É o que se produz, como assinalamos,
por via de possessão. Daí a necessidade de analisar em detalhes as circunstâncias
concretas que acompanham e exprimem essa possessão que toma forma através do rito de
iniciação.
52
53
Com o fim de ir tão londe quanto os dados nos permitam nesta análise do
complexo ritual de iniciação, nós achamos necessário apelar às descrições feitas por
diferentes informadores, adivinhos ou não, pois pela força das coisas, estes homens de
idade muito avançada (adivinhos) esquecem elementos importantes. Por meio do
conjunto das descrições, nós podemos, parece-nos, melhor resgatar todos os elementos
significativos que intervêm no rito.
A análise destes elementos é de importância fundamental pois condicionam a
própria sessão de adivinhação, porque tanto para o tahi quanto para seus clientes eles
formam o contexto imediato no qual se insere a "leitura" dos tuphele realizado pelo tahi.
a) - Versão de Mwasefu
1
Kayanda significa "o lugar do sofrimento". É a fórmula de juramento para os que freqüentaram o
mungonge. Aqui, significa o lugar onde se desenrola um "ritual de aflição".
2
Tata ya ngombo significa "pai do ngombo"; por sua vez, o mestre de iniciação designará o novo tahi como
seu mwana (filho, criança).
3
Com as mesma cores rituais: pemba e mukundu.
53
54
(Ngombo) começa a sair; o doente treme muito e começa a falar. Fala primeiro com uma
voz baixa, de maneira imperceptível, em seguida diz em voz alta:
"Eu sou ... hoje, vós vos lembarareis de mim, é para isso que me faço conhecer. Se
vós não vos estais lembrados de mim, eu matei muita gente. Sou eu quem impede de se
ter sorte na caça; sou eu quem não deixa cultivar os campos; sou eu quem vos impede de
ter filhos. Tudo isso porque vós haveis me esquecido. Hoje eu saio; tudo o que vós não
tendes até o presente, agora vós podeis obter".
E Mwasefu continua sua descrição: o espírito estava triste porque o haviam
abandonado por tempo demais e tinham-no esquecido na mata, e é por isso que estava
furioso, cheio de rancor e ciumento. Agora é o doente que vai descobrir e explicar tudo o
que se passou até então.
Cheio de força, o doente se aproxima do fogo e todo mundo se afasta de medo
quando o vê tocar o fogo. Mas ele não se queima; ele até mesmo esmaga os carvões
inflamados diante dos outros, que se afastam. Então o doente não quer mais voltar à
esteira. O tata ya ngombo lhe dá água para acalmá-lo, mas ele salta e quer fugir para a
mata.
O tata ya ngombo lhe dá também a água do pote de remédios. Isto durante um
longo momento e o doente continua a gritar e a se agitar.
Ao nascer do dia, quando a manhã se aproxima, o doente se senta de novo sobre a
esteira; o tata ya ngombo o acompanha para se repor. Ao nascer do sol ele o conduz ao
rio para lavar suas pinturas (de pemba e mukundu). Ao sair da água, o doente diz ao tata
ya ngombo:
"Hoje posso ainda arrumar o ngombo; pelo momento, espera, e quando eu tiver
preparado todas a scoisas, eu te chamarei".
O tata ya ngombo responde:
"Está bem, mas você ainda estará doente por algum tempo".
Então ele lhe dá uma casca de lupashi, põe um remédio dentro, faz um furo para
passar um fio de ráfia e o pendura ao pescoço do doente.
Então o tata ya ngombo se vai. O doente volta a si e procura um praticante que
saiba fazer o cesto para guardar os tuphele; pede também a um escultor para lhe fazer
estatuetas. Com muita freqüência o tata ya ngombo não sabe fazer essas coisas, mas
quando sabe trabalhar os cestos, então, ele o leva vazio para a festa de saída do ngombo.
Quando o doente já tem suas coisas preparadas, que são: upite (dinheiro ou
equivalente), galinhas e objetos do cesto (tuphele), então ele chama de novo o tata ya
ngombo e ele terá de novo a festa. Naquele dia, à noite, se o tata ya ngombo carrega o
cesto (vazio), o doente carrega com ele os tuphele para adivinhar e também o pequeno
saku1 para o lembrar dos mortos. À noite o doente se põe sobre a esteira. Ao pôr do sol o
tata ya ngombo corta dois bastões - minenge ya ngombo - que são dois bastões da mata
em lembrança da pessoa que queria ngombo; planta-os ao lado da casa do doente. Mais
uma vez rufam os tambores. O espírito fala como da primeira vez. De manhã cedo o tata
ya ngombo vai cortar a cabeça do galo e a põe no munenge.
Então o doente e seu "pai" (tata ya ngombo) comem juntos; e procedem da mesma
maneira de quando uma pessoa põe o lukanu.
1
Saku - pequeno pacote contendo os remédios preparados pelo curandeiro; neste caso é uma pequena bolsa
contendo as flechas que trazem os nomes dos mortos.
54
55
À noite o doente come com sua mulher1 e com o tata ya ngombo. e em seguida
"se diverte" com ela (tem relações sexuais) e recupera a santidade2. O contato (relações)
com a mulher só é permitido ao doente; o tata ya ngombo não pode fazer o mesmo pois
só está lá de visita; e mesmo se vem com sua mulher, esta não pode comer da galinha
(ritual). Ao nascer do dia, o tata ya ngombo conduz o doente ao rio para lavá-lo. Qiando
retornam à aldeia, o tata ya ngombo diz.
"Eis o ngombo".
E esconde alguma coisa sem que o outro veja. É um objeto qualquer da casa,
como por exemplo uma faca ou uma enxada ou dinheiro. O doente canta e dança com o
ngombo nas mãos:
"Cingue yenga mboia" (eu não sei, é o ngombo que me obriga...).
Em seguida ele se aproxima do tata ya ngombo e diz:
"Sim, é verdade, vós escondestes uma faca".
Todos, homens e mulheres, aplaudem, pois ele adivinhou. O que o tata ya ngombo
escondeu é a cisweka3.
Então o doente pega a cisweka do tata ya ngombo. Em seguida apresenta as coisas
que são necessárias para pagar o tata ya ngombo: uma galinha, um cabrito, um fuzil,
alguns tecidos.
O novo adivinho deve sempre pagar bem. Agora alguns pagam em dinheiro mil
escudos ou duas peças de fazenda (tecido). Ao pagar, torna-se adivinho completo e a
partir do dia seguinte terá clientes, pois desde que descobriu a cisweka é porque sabe
adivinhar.
b) - Versão de Mwafima
Um homem adoeceu. Sua família foi ver o adivinho. Este disse: "Essa pessoa tem
Ngombo". Então a família oferece o mwivi ao tahi. Os parentes estavam de acordo com a
adivinhação e então convidaram o tahi para ser o tata ya ngombo. Acertaram o dia da
festa, onde se faria sair o Ngombo. Procuraram os remédios, o bastonete e compraram
também um pedaço de tecido branco.
Quando a noite caiu, as pessoas se reuniram, homens e mulheres, meninos e
meninas.
Os tambores batiam. O tata ya ngombo também batia no doente com uma pele (do
ngombo)4; batia para tirar o Ngombo que estava prestes a sair. O doente gritava:
Hô... Hô... Hô... Hô... Hô... Hô...
e tremia muito forte.
O tata ya ngombo pegou um remédio que ele colocou num prato e deu de beber ao
doente para acalmá-lo.
1
Somente a primeira mulher (namwari) do homem polígamo participa do ritual, que geralmente acaba com
uma refeição preparada pela mulher daquele que sofre o ritual.
2
A recuperação da santidade não significa o fim da possessão, mas, antes, que o deus possessor (hamba)
mudou: o estado de violência e agitação é substituído por uma possessão calma e favorável.
3
Cisweka - objeto escondido por alguém para ser encontrado por outro.
4
Uma das peles de animais selvagens que protegem o ngombo.
55
56
Ele ainda se agita: Hô... Hô... Hô... e assim por diante até a manhã.
Lá pelas cinco horas da manhã, o tata ya ngombo pegou um torrão na mata e
escondeu os tuphele kuku e o mwana1 e a cisweka que também era uma estatueta.
Em seguida ele chamou o doente. Levou-o consigo até a mata e lhe disse: "A
cisweka está aqui". O doente descobriu o que estava escondido. Depois eles retornaram à
aldeia, lá onde o tata ya ngombo havia deixado escondido o upite (o dinheiro) perto dos
homens e uma faca perto das mulheres. Então ele repôs o ngombo no filho (candidato)
para que ele procurasse. No fim o ngombo foi para o filho (mwana ya ngombo); quando o
tata ya ngombo é de uma outra aldeia, então o mwana manda fazer um cesto cisuka e o
tata ya ngombo só lhe dá uma parte dos objetos (tuphele). O "filho" começa a trabalhar
para encontrar os outros.
Quando o ngombo está completo com todos os tuphele e tudo o que é preciso para
a festa, então o mwana pega um galo grande, uma cabra e o dinheiro (upite). Manda
chamar o adivinho-mestre. Toda a aldeia se reúne; os tambores ressoam ao redor do fogo
e quando vem a manhã o Ngombo sai do doente. Assim que o Ngombo sai, o doente
corre ao poleiro e corta o pescoço do galo com os dentes. Pòe a cabeça (do galo) no
munenge que o tata ya ngombo encontrou (que ele cortou na mata durante o dia). De
manhã ele manda preparar o coração do galo com os remédios e mandioca, e engole tudo.
É então que se mata a cabra para a festa que se desenrolará com as pessoas que estiveram
presentes e que sofreram com ele toda a noite.
Em seguida ele tira o upite (dinheiro) e o dá ao tata ya ngombo que se vai.
Do galo morto ele guarda uma pata (osso) e da cabra ele guarda também uma pata
(casco) que ficam no ngombo.
Durante o dia o tata ya ngombo fôra buscar na floresta uma árvore para fazer o
munenge. Encontra uma árvore boa, arranca a folhagem (da mata) que prende ao redor do
tronco e não a deixa cair quando a corta. Em seguida ele corta os ramos e afina a ponta do
tronco; volta com tudo isso para a aldeia e a planta no solo; é para enfiar a cabeça do
galo.
Ao terminar sua narração, o velho Mwafima adiciona que ele já fez muitas
iniciações de tahi. Nào sabe muito bem quantas, mas se lembra dos nomes dos adivinhos
iniciados: e encontra pelo menos seis. A última iniciação foi a de Mwacimbau, o adivinho
que criou há anos perto de Karimbula, do outro lado da fronteira e que evoca nestes
termos:
"Mwacimbau caiu doente. Morreu (foi ao reino da morte) por quatro vezes, e
quatro vezes ressuscitou.
Ele não comia, caiu por terra".
A família chamou Mwafima que diagnosticou: "Esta pessoa não tem uma doença
normal. Tem Ngombo. Prepareis o pau para bater os tambores". Mwafima se foi para a
mata buscar folhas de mukhumbi. Ele as esmagou no barrete e esfregou-nas no corpo do
doente. À noite, ele preparou tudo: a esteira, os tambores, mulondo, ngombo e o cinu.
É ele, Mwafima, quem prepara tudo. De noite ele tirou o hissope do cinu e
aspergiu o doente para fazer subir o espírito à cabeça, e com a água e os remédios irrigou
1
Ver as estatuetas antropomorfas.
56
57
o doente. Então ele fez sair (se apresentar na dança) o Samukishi e o Tusando1 e as outras
mahamba da aldeia. Finalmente o Ngombo saiu.
Então ele fez um montículo na mata e escondeu o kuku e o mwana e a cisweka. O
filho (estatueta mwana) representa o filho do ngombo. Então o doente (Mwacimbau) veio
e encontrou tudo o que estava escondido. O tata ya ngombo (Mwafima) recebeu de
Mwacimbau como preço da iniciação: duas caixas de pó (djaja), um cabrito, um cobertor.
Mwafima não recebeu dinheiro porque o dinheiro do Congo (Zaire) não vale nada
aqui (Angola).
c) - Versão de Sakungu
Quando Ngombo lhe subiu à cabeça, ele esganou o galo com os dentes e o matou.
O tata ya ngombo retitou o coração e os testículos do galo para dá-los de comer ao
mwana ya ngombo. O resto, ele deu à mulher do candidato para que ela preparasse, mas o
coração e os testículos pertenciam ao hungu3 para que o mwana os coma. Ele os come
primeiro sem os cozinhar, com sal e pemba.
Quando ele come, Ngombo volta ainda outra vez: Hô... Hô... Hô...
De manhã, ao nascer do sol, o tata ya ngombo foi de novo ao hungu prepara o
montículo de terra. Ele (Sakungu) ficou na aldeia. É o tata ya ngombo que foi ao hungu e
enterrou um chifre (mbunga) muito bem escondido no montículo. Os tambores
começaram a bater e o mwana (Sakungu) saiu com o ngombonas mãos e começou a
adivinhar:
"Aqui está escondido o mbinga;
mbinga de khai;
mbinga, mbinga, mbinga!".
Ele adivinhou!
1
Dançarinos de máscaras presentes na circuncisão.
2
Na expressão cokwe: doença moko-moko, que significa doença vulgar, que aparece freqüentemente, que
nossa intérprete traduziu por "doença de Deus" em oposição à doença advinda da feitiçaria.
3
Hungu - o lugar onde se prepara a hanga (pequeno torrão organizado por um ato importante de um
ritual).
57
58
58
59
violentamente pelo doente com seus próprios dentes. A cabeça do animal sacrificado é
enfiada em um espeto (munenge ya ngombo). É então o grande momento do sacrifício
que a partir daí deve apresentar em todo o desenrolar do rito e que o novo adivinho vai
reavivar de tempos em tempos enfiando nessa forquilha uma nova cabeça de galo para
reanimar a força de seu ngombo (foto 37).
O fato de o ngombo ter se expandido dos Cokwe para outros povos coloca o
problema de saber quais são as transformações locais que esta prática divinatória pode ter
sofrido à medida em que ganhava novos adeptos de etnias diferentes. Este aspecto sempre
esteve presente na pesquisa de valores ou conteúdos simbólicos atribuídos aos objetos do
cesto divinatório. Seria judicioso de se perguntar se o próprio rito de iniciação não sofreu
adaptações ao se inserir em contextos diversos. A este respeito, as informações de L.
Tucker e de V. Turner relativas respectivamente aos Ovimbundu e Ndembu, são
particularmente importantes. Os diferentes aspectos do rito de iniciação nessas duas
etnias podem ser adaptações locais. Contudo, se considerarmos que o ritual é, apesar de
seus aspectos "congelados", uma realidade dinâmica, nada nos impede de ver nas
diferenças encontradas nessas etnias os aspectos do mesmo ritual cokwe em uma fase
anterior à atual. É sobretudo esta perspectiva que nos leva a reaproximar do ritual dos
Cokwe o dos Ndembu e dos Ovimbundu. Uma estrutura bem definida do rito de iniciação
do adivinho parece resultar de modo evidente do conjunto das observações.
59
60
"Teu tio-avô (o irmão da mãe da mãe) quer carne e Sanduku (irmão da mãe) quer
um cesto divinatório".
Tão logo Kasehwa partiu à caça, matou uma cabra selvagem. Ele secou um terço
do animal, que guardou com os chifres e levou para a aldeia de Ondulu. Assim que
contou à sua família o que tinha acontecido durante a viagem, esta decidiu chamar o
adivinho, enviando-lhe ao mesmo tempo duas galinhas para o "persuadir" a vir e
prepararam a cerveja para sua chegada.
(Tu que falas nos campos de milho; não venhas tu ensinar-me a sabedoria; eu já
conheço tudo)3.
Em seguida houve cânticos e batimentos de tambores até que Kasehwa foi
possuído pelo espírito de Sanduku. Seu corpo sacudia e sua voz se transformou na do
espírito que estava em sua cabeça.
1
Tucker, 1940, pp. 775-778.
2
Nota do T.: "A omemba representa os olhos dos espíritos".
3
Tucker, 1940, p. 176.
60
61
3) -Segundo dia: Purificação. Mas com o espírito de Sanduku vieram outros, e era
preciso separá-los. Por isso, no segundo dia, eles foram até um pequeno ribeirão e lá
construíram uma pequena barragem. Sobre a borda, abriram um pequeno fosso em forma
de crocodilo, com a cebeça, o corpo, as patas e a cauda e o marcaram com argila branca
(omemba). Kasehwa foi despido (devendo suas vestimentas exteriores ficar em posse do
mestre-adivinho). Eles miraram sobre sua cabeça o capacete do adivinho (osala) e
untaram-no com lodo negro. Kasehwa sentou-se sobre o pequeno fosso em forma de
crocodilo que tinha sido enchido d'água e as danças e os cantos continuaram. Kasehwa foi
de novo atacado pelo espírito, se lançou no ribeirão e deu tantos sobressaltos que
intimidou os assistentes.
Então, o adivinho cortou a cintura de Kasehwa sob a água, deizando as
vestimentas seguirem a corrente de água. O corpo de Kasehwa foi lavado e após ser tirado
da água, eles o untaram de novo, desta vez com um óleo é um pó vermelho (elukundu) e
ao mesmo tempo esfregaram-no com o conteúdo do estômago de um bode sacrificado no
mesmo dia. Agora só o espírito de Sanduku o possuía, todos os outros foram retirados
pela águas. Eles cobriram Kasehwa com vestimentas novas1 , mataram cinco galinhas e
uma cabra, que foram preparadas e comidas na margem do ribeirão, pois nessa ocasião é
proibido comer na aldeia, como são igualmente proibidas as relações sexuais2.
5) Retorno à aldeia: Kasehwa tem seu Ngombo à mão. Foi o mestre iniciador
quem o preparou, bem como a todos os objetos que ele contém; este lhe explica agora em
particular, um a um, o ato que Kasehwa pagará à medida que progredir em seus
conhecimentos. Ele aliás já efetuou vários pagamentos ao mestre:
-dez galinhas para formular o convite;
-quatro peças de tecido para que o tahi deixe a aldeia;
-um porco para apressá-lo (para não retardar o ritual);
1
Formalidade que marca o novo estatuto daquele que sofre um ritual.
2
A interdição do fogo e das relações sexuais reaproxima o rito de iniciação do adivinho do rito de
intronização do chefe da aldeia.
61
62
62
63
ritual kayong'u); antes ainda, ele havia me enviado para "movimentar" o ngomb'u ya
mwishi (adivinhar com esse ngombo); eu tremi, em sonho. quando acordei, me perguntei
por quê tinha sonhado isso, e pouco depois fui ver minhas armadilhas: havia um kakuyu1 ;
e assim começou meu kayong'u. Mais tarde a doença veio, uma doença terrível. Meus
familiares foram ver o adivinho, que adivinhou o kayong'u. Disse que eu tinha três
tuyong'u. Então meus parentes me pentearam com mpeza e eu lhes dei dinheiro para
pagar o adivinho".
1
Kakuyu - a lebre africana: "Spring hare" (Turner, 1961, p. 25).
2
Mama wa muyang'a is the title applied not only to a great hunter who instructs aprendice-hunters... but
also to the senior adept or practitioner at any performance on hunting rituel... (Turner, 1961, p. 26).
Subnota do T.: "Mama wa muyang'a é o título dado não apenas a um grande caçador que instrui caçadores
aprendizes... mas também aos adeptos ou praticantes mais velhos de alguma espécie de ritual de caça...".
63
64
Mais tarde, Sanyiwangu me deu um remédio em pó. Marcou-me nos olhos com
mukundu (nkung'u). Pôs-me em seguida um remédio sobre o fígado, acima do umbigo e
sobre a fronte.
De novo, eles tocaram os tambores. Eu recomecei a tremer, assim como
Sanyiwangu. Este me batia com o chocalho na minha cabeça para impedir que eu caísse
no fogo quando as tremedeiras eram mais fortes.
Sanyiwangu apresentou um galo vermelho sobre o qual eu me atirei para lhe
torcer o pescoço e separar-lhe a cabeça do resto do corpo com meus dentes. O sangue
jorrou e eu o suguei, o que me acalmou. Sanyiwangu ordenou que matassrm o bode, o
sangue escorreu pelo chão, e eu bebi um pouco.
A cabeça do galo foi espetada no alto do muneng'a e minha mulher foi preparar o
galo.
Sanyiwangu trouxe uma enxada e o sangue do bode que ele recolheu em um copo
e dividiu com os outros "doutores" ao longo do caminho da aldeia. No copo, havia
também os corações do galo e do bode.
1
Para os Cokwe mulemba e mukhumbi.
2
Mutete para os Cokwe.
3
Sobretudo o grande tambor cinguvu.
64
65
65
66
Mwafima observa que um tecido de cor branca é utilizado como suporte do cesto,
substituindo a esteira tradicional; é um detalhe importante tanto mais que os Ovimbundu
também marcam o local de iniciação do adivinho com argila branca "para que o espírito
ache melhor o lugar do doente"2. Na iniciação de Mwacimbau (da qual Mwafima foi o
mestre-iniciador) há um detalhe de grande importância ritual: a manifestação do espírito
no momento do transe é facilitado pela presença das máscaras que protegem a aldeia; este
detalhe que parece ligado a uma prática local nem por isso era muito importante para
Mwafima.
A interrupção do rito (se limitando unicamente ao transe e identificação
consecutiva do espírito do ancestral possessor) e o fato de deixar para mais tarde a
iniciação propriamente dita são referidos por Mwasefu e Mwafima, mas somente o
primeiro assinala o recurso ao caurim (lupashi) no que diz respeito ao símbolo de um
compromisso do doente com o espírito ancestral.
Sakungu diz que, no momento de sua iniciação de adivinho, ele comeu os
testículos e o pescoço do galo sacrificado enquanto que todos os outros pensavam que era
o coração que fôra engolido pelo candidato-adivinho.
De acordo com Mwasefu as relações sexuais do novo tahi com sua mulher
principal (namwari) fazem parte do ritual com os mesmos direitos que no rito de
entronização do novo chefe da aldeia. Portanto, de acordo com os adivinhos, trata-se aqui
sobretudo de por um fim à proibição sexual que se estende sobre todos os participantes da
festa de iniciação do adivinho. Ao fazer amor com sua mulher o novo adivinho derruba
esta proibição.
Se compararmos a descrição da iniciação dos adivinhos cokwe com a dos
Ovimbundu e a dos Ndembu, teremos imediatamente a impressão que nestas etnias se
preserva ainda hoje uma forma mais antiga da iniciação cokwe. Dir-se-ia até que a
descrição da iniciação do adivinho apresentada por V. Turner (1961) e a de L. Tucker
(1940) correspondem a uma versão anterior (mas a mesma, no que concerne aos pontos
fundamentais) do ritual de iniciação do adivinho entre os Cokwe, à qual se adicionaram
alguns elementos de caráter local.
1
Ver a significação do símbolo kata-miniatura.
2
Tucker, 1940, p. 76.
3
Estermann, 1970.
66
67
67
68
d) - Conclusão
Todo tipo de análise, mesmo sem entrar em detalhes, mostra com toda evidência o
parentesco dos rituais de iniciação do adivinho entre os Ndembu e os Ovimbundu; nos
dois casos os pontos fundamentais da iniciação cokwe estão mantidas.
Sem prolongar demais a análise dos detalhes de caráter local, já se pode tirar as
seguintes conclusões:
1. A estrutura do rito de iniciação do adivinho é a mesma nas três referidas etnias.
2. O desenrolar dos rituais ndembu e ovimbundu, muito semelhantes e quase que
coincidentes ponto por ponto, se afasta em alguns detalhes do ritual cokwe.
3. Se tirarmos como aprendizado (e neste aspecto todas as informações estão de
acordo) que o ngombo ya cisuka é uma invenção dos Cokwe, a existência dessa técnica
divinatória em outras etnias deve se explicar como um empréstimo.
4. A aproximação dos rituais ndembu e ovimbundu nos remete a uma fase anterior
do ritual cokwe tal como ele existiu antes de sua difusão.
5. Os detalhes que resultam de adaptações de caráter local são de importância
menor.
1
Na mukunda, todas as manhãs, os jovens saúdam o sol que vem do leste, o lado da vida.
68
69
A) - Saudação (Kumeneka)
B) - O local da sessão
1
Mesmo se não é esta a situação notmal, pode acontecer que o chefe da aldeia exerça também as funções
do tahi
69
70
circunstâncias, os clientes vinham até mesmo armados de cacetes para fazer justiça assim
que o adivinho tivesse esclarecido a situação:
"Antigamente, quando se tratava de um óbito, os homens vinham armados à
consulta. E freqüentemente, quando o culpado havia sido designado, eles o matavam
arbitrariamente"1.
Parece que é constante na prática da adivinhação pelo ngombo ya cisuka que o
caso de doença (no sentido largo do termo) seja resolvido por uma consulta no interior da
aldeia, e os casos mortais do lado de fora da aldeia. Hoje, o princípio não se aplica mais, ,
porque os casos mortais (ligados aos atos de feitiçaria) não podem mais ter o desenlace
que tinham outrora. Além dos adivinhos que exercem sua atividade na aldeia, há outros
considerados como itinerantes, por se deslocarem de maneira permanente oferecendo seus
serviços a quem os aspira. Eles fazem algumas vezes trajetos enormes, visto que o fator
distância funciona quase sempre como elemento de prestígio.
C) - As "vestimentas" do cesto
70
71
O adivinho Hamumona nos disse que shimba é o gato da mata, muito hábil, à
noite, para apanhar as galinhas na aldeia: "O shimba sai à noite para buscar sua
subsistência, mas quando ouve cantar o galo, ele vem e o apanha".
Este ponto de vista se situa em um amplo contexto mitológico: trata-se da famosa
querela entre o sol e a lua evocado por Baumann (1935) e analisada por L. de Heusch
(1972). Observou-se apenas que no contexto da iniciação do adivinho, esta oposição de
shimba ao galo sublinha com força a oposição tahi / nganga, dado que o galo sacrificado
dá ao tahi o poder de anunciar, de cantar, de fazer a luz nos casos obscuros da vida, em
1
Mesquitela Lima, 1971, p. 153.
2
Leach, 1976, p. 29.
3
Ver o texto 2.3 ("animais bons para pensar") e a aproximação etnozoológica desenvolvida.
71
72
aldeia / floresta;
dia / noite;
adivinho / feiticeiro;
galo / gineta.
A aproximação shimba-feiticeiro se justifica tanto mais por ser fato que a pele de
shimba serve para cobrir o ngombo de modo provisório, apenas por todo o tempo em que
o tahi não possuir um pedaço da tanga de um nganga1. Na realidade, há poucos adivinhos
que chegam à categoria de "descobridores de feiticeiros" (kabuma), e por essa razão a
maioria dos ngombo não chegam a substituir a pele de shimba pelo dito tecido do
feiticeiro.
Seja porque ela é um elemento indispensável ao cesto divinatório, seja porque o
shimba é um animal real2, o fato é que na prática, a pele de shimba é muito disputada
entre os caçadores, como se pode ver na anedota seguinte que designa a quem pertence a
pele do shimba abatido. Hamumona conta:
"Várias pessoas foram à caça e detectaram um shimba no mushitu. Os meninos
(que atraem a caça) fizeram barulho e o shimba saiu de seu esconderijo. Ao vê-la
escapulir, todos gritaram:
Ele está fugindo!
Nós o vimos!
Shimba, shimba!
Um caçador o abateu sem discussão (por indicação de um testemunha) e satisfeito,
gritou: a pele é minha!
Ao passo que um outro reclamou:
Shimba ci mona.
Wo numona mukwa lambu:
1
Atualmente o nganga, uma vez descoberto, deve se submeter a um ritual pelo qual ele é recuperado pela
sociedade. As vestimentas lhe são retiradas e tornam-se propriedade do mestre kabuma que preside o ritual.
Um pedaço das vestimentas sobre a borda do cesto é a prova da competência (e força) do adivinho.
2
Na tradição kuba, pelo menos, nshimbu pertence ao bestiário real e por conseqüência a captura de um
desses animais deve obrigatoriamente ser remetida ao soberano (L. de Heusch, 1972, p. 172, citando
Vansina, 1964, p. 109).
72
73
o Ngombo, e não seria possível viver. E ele explica seu ponto de vista por uma outra
anedota:
"Alguém havia um dia necessitado de animais da mata porque não tinha carne; e
preparou uma armadilha. O shimba observando aquilo quis tentar a sorte. Quando ele
passou, a armadilha funcionou e o shimba ficou preso:. Assim, os Cokwe dizem:
'Cilondele capidji a shimba mulondji', provérbio que nosso informador traduziu nestes
termos: "Talvez alguém, ladrão ou bêbado, passeando à noite, sem incidente triste, talvez
alguém fazendo viagens freqüentes, contraindo numerosas dívidas, semeando com
freqüência a discórdia, acabará por dizer para si mesmo: há muitos que vão à noite como
eu e que a nada chegam, a mim não mais chegará nada".
A sabedoria tradicional responde a essa tentação dizendo explicitamente: "o que
os outros fazem, você talvez não possa fazer". Notar-se-á que expressões tais como "ir à
noite" e "caminhar bastante" denotam claramente atos de feitiçaria.
73
74
quiseram saber como o galo tinha conseguido a faca. O galo não disse nada, mas
esqueceu de sua dívida para com o muswe.
Mais tarde, o muswe veio reclamar sua dívida:
-- Então, você me tinha prometido um de seus filhos e agora você não paga?
Ele voltou várias vezes mas nunca recebeu. Desde então, o muswe decidiu agir por
conta própria: ele sai da floresta e agarra os galos. Essa dívida continua até hoje"
(Mwasefu)1 .
Esta pequena história revela um novo aspecto da oposição tahi/nganga. Com
efeito, além da luta entre estes dois personagens, existe também uma curiosa aliança.
A superioridade do galo em relação aos outros animais da aldeia é evidente. Ele
suplanta todos os outros por sua beleza, mas isto não seria possível sem o recurso ao
animal noturno. Trata-se de uma velha dívida que não foi quitada. O galo tem consciência
disso e por essa razão esconde o fato dos companheiros da aldeia. Revelar isto seria
duplamente perigoso: ele perderia a posição privilegiada que ocupa e incorreria na
condenação que atingem os feiticeiros.
A possibilidade de um ataque de surpresa da parte do feiticeiro existe sempre e
por isso o ngombo necessita ser protegido com as mesmas armas que o feiticeiro utiliza.
O projeto cultural do adivinho é constantemente ameaçado pela intervenção inoportuna
do feiticeiro. Nesses casos, igualmente, o projeto cultural pode progredir graças à
intervenção da armadilha:
"O muswe é um animal da mata. Lá, pessoa alguma pode incomodá-lo. Mas ele
vem à aldeia buscar as galinhas. Os homens da aldeia inventaram uma armadilha e
puseram nela uma galinha. O muswe logo veio e foi pego. As pessoas se aproximaram e
mataram-no" (Riasendala).
Trata-se de uma espécie de doninha. É muito procurada, mas sua pele só serve
para cobrir o ngombo. Durante a estação seca (lushihô), ela se esconde em um buraco que
ela mesma cavou. Por isso, não é facilmente encontrada; dificilmente é morta, não apenas
porque é maliciosa e astuta, mas também porque é dotada de uma resistência pouco
comum:
"Quando alguém vê a kangamba, imediatamente precipita-se a matá-la e vender
sua pele ao adivinho; os homens batem-na com a enxada, mas o cabo quebra e o animal
foge. Outras vezes, dão-lhe um golpe violento e o animal morre. Quem a matou vai à
aldeia anunciar o feito, mas quando retorna, o animal desapareceu: parecia morto, mas na
verdade estava vivo. As pessoas ficam pasmas por um animal tão pequeno e contra o qual
se voltam todas as armas não morrer.
Outros a descobrem e dão-lhe um golpe de cajado, mas quando acham que está
morta, ela se levanta e foge. É um animal que não morre com uma paulada. Só com a
katana (facão) ou com o machado se consegue matá-la".
1
Para outros narradores o protagonista desta história é o mukhondo (o mangusto vermelho).
74
75
E) - As unções
A sessão divinatória não pode começar nunca sem que o adivinho e seus tuphele
estejam convenientemente preparados para cumprir bem o seu papel: ver o que é
verdadeiro e o que é falso, marcar a linha que separa o que é bem e o que é mal, o que
está do lado mukundu e o que está do lado pemba (vermelho/branco). O primeiro passo
do adivinho consiste em ritualizar uma visão penetrante e seletiva que opera a separação
1
Tucker, 1940, p. 183.
2
Idem.
3
Na verdade, ainda de acordo com nossas observações, uma mulher jamais é adivinho (com ngombo ya
cisuka), mas o fato de que o espírito Ngombo poder se manifestar tanto num homem quanto numa mulher
justifica provavelmente uma certa confusão.
4
White, 1948, p. 89. N. do Tradutor: "Neste caso, ele (o kaphele) é deixado no lugar em que caiu e
ninguém na aldeia pode comer ou beber naquele dia: na manhã seguinte, um galo é trazido, sua garganta é
cortada e o sangue espirrado sobre o aparato divinatório. Algumas raízes são moídas e misturadas com óleo
e esfregadas no pescoço e braços de todos os presentes e no jipelu. Depois disso, o cesto é levado embora
de novo e todos podem comer e beber".
75
76
desses dois espaços; esta ritualização toma a forma de uma unção primeiro do adivinho,
em seguida do cesto. Além do que, existem unções sazonais que o adivinho não pode
esquecer.
a) - Unção do adivinho
b) - Unção do cesto
1
A. Hauenstein, 1961, p. 127.
2
Mukundu (caolim vermelho) preparado com óleo em uma pequena cabaça (lembu).
76
77
Adivinho
Lembu Pemba
Esquema 4a
Mukundu Pemba
Cliente
Adivinho
Adivinho
77
78
Cliente
Cliente
Esquema 4b Esquema 5b
Adivinho
Esquema 4d
Cliente
1
Tucker, 1940, p. 159.
78
79
79
80
purificado por um outro adivinho1. Para os Cokwe, a lua nova marca o tempo forte da
vida ritual. É o momento dos atos de culto para todas as categorias de pessoas que estão
em contato com as mahamba; o culto da hamba Ngombo toma neste instante um aspecto
particular de uma vida ritual de toda a comunidade:
"Quando a lua nova aparece, o adivinho rende seu culto à hamba Ngombo; mas
ele não lhe dará fuba (mandioca preparada) como se faz para as outras mahamba. Quando
as pessoas já fizeram isto (os sacrifícios), elas podem repousar tranqüilas (sem ter maus
sonhos). O adivinho não deve oferecer mandioca, mas , antes, preparar (no barrete) as
folhas de cilama, as quais ele próprio mastiga com pemba para cuspi-las em seguida nos
tuphele do cesto. É o modo de afastar a escuridão: assim o ngombo será capaz (de
adivinhar) porque ele possui a lua desde então" (Hamumona).
G) - A hanga de proteção
1
White, 1928, p. 89.
80
81
H) - O acordo prévio
1
Ver kata-miniatura em relação a símbolo divinatório (2.2.27).
2
N. do Tradutor: "Ao anoitecer, eles limpam um local especial (ibulu: campo aberto) no matagal. Fazem
uma armação de três pólos (como o poste do gol do futebol) igual ao construído na cerimônia de
circuncisão dos meninos... três suportes de cabeça (mbung'a) do tipo utilizado pelas mulheres quando
carregam cabaças ou cestas sobre a cabeça são colocados na barra perpendicular da armação do mukoleku".
81
82
Então o tahi pronuncia um nome que classifica o nome do morto, por exemplo,
dentre as plantas, o mushitu (floresta) ou a cana (savana).
A relação entre o nome pronunciado e o nome do falecido não é sempre evidente,
pelo menos não para todo mundo; quando isso acontece, os clientes procedem a uma
troca de opiniões: os thewa (clientes e seus companheiros) se reúnem atrás da casa do
tahi, um pouco à parte do ngombo que fica só, com seu mestre.
Se a adivinhação prévia é aceita (há consonância entre o nome pronunciado pelo
tahi e o da pessoa falecida...) os clientes se aproximam do adivinho com uma primeira
prestação (peteko) de valor reduzido: antigamente, era uma ponta de flecha de madeira;
hoje é normalmente um prato de origem européia ou ainda uma nota de 50 escudos,
sempre acompanhados do assentimento dos clientes:
82
83
birth, and comes from an ancestor-spirit (mukishi). Arrow and beads are taken to the
diviner to be discovered by him"1.
Em certos casos, sempre de acordo com Turner, o teste proposto ao adivinho
consistia em lhe apresentar vários tipos de flechas dentre as quais ele devia procurar a que
correspondia ao nome da pessoa falecida.
Os adivinhos cokwe atualmente ignoram completamente este pequeno detalhe.
Por outro lado, nossos informadores, mesmo se reconhecem que a oferenda da ponta de
flecha é devida à necessidade de encontrar o nome do morto, não são unânimes na
explicação da relação entre o objeto (flecha ou madeira) e o nome do falecido. A
introdução de outros objetos (sobretudo de proveniência européia) como gratificação
parece ter afastado a significação primeira da flecha-presente. Na verdade, e de acordo
vários informadores, a flecha de madeira seria uma espécie de primeira prestação pelo
fato do adivinho ter detectado o nome ("categorial name") do morto. Se a escolha de uma
planta determinada (da qual a flecha é fabricada) pode muito bem ser a chave que
permitiria ao adivinho encontrar o nome da pessoa falecida por referência a um sistema
classificatório que não oferece dificuldades para um perito, em compensação o
recebimento de um prato (europeu) ou de dinheiro não são suscetíveis, do nosso ponto de
vista, do mesmo jogo do espírito. É por isso que estamos convencidos que, pelos menos
entre os Cokwe, o "presente", ponto-de-partida, tornou-se, literalmente, um "presente",
sem mais nada a oferecer ao adivinho imediatamente após as primeiras intervenções
julgadas convincentes. Além do mais, para este aspecto particular da sessão, as
informações e as próprias explicações dos adivinhos são um pouco heterogêneas.
Entretanto Hamumona se alinha exatamente na tradição que os Ndembu guardam sempre,
quando explica:
"Quando uma pessoa falece, seus parentes devem procurar o adivinho e, ao chegar
em sua casa, dar-lhe imediatamente a flecha de madeira para explicar-lhe a causa da
morte; mas se se apresentam para o adivinho por causa de uma doença, não é preciso a
flecha".
Em compensação, Mwafima exige que seus clientes lhe ofereçam um prato ou
dinheiro assim que chegam, como prova de que aceitarão bem a adivinhação que ele vai
fazer; a flecha viria somente no final da sessão, como lembrança ou presente para o
ngombo:
"A flecha (cipumba) fica perto dos clientes; somente no final se a presenteia. Ela é
destinada a purificar os tuphele e impedir que o morto fique agarrado ao ngombo".
Essa explicação de Mwafima, que nos parece relativamente moderna, sublinha
igualmente a significação fundamental das flechas que os adivinhos gostam tanto de
exibir. (Foto 41). Elas são a prova de sua competência no ato mais fundamental da
adivinhação, a descoberta da causa de um óbito, isto é, a descoberta do feiticeiro, sobre o
qual cai a responsabilidade do desaparecimento de uma vida. O tahi põe sempre essas
flechas-testemunhas ao lado de seu ngombo e diante dos clientes; elas exercem o papel de
uma importante carta de recomendação. Sua relação com o feiticeiro é incontestável,
1
Turner, 1961, p. 37. N. do Tradutor: "Durante a reunião (chibimbi) para o sepultamento, um de seus
parentes trouxe uma seta (ponta de flecha) numa corda. Disse: 'isto é para o nome de nascimento da pessoa
morta'. Este é o nome adivinhado para um bebê logo após seu nascimento, e vem de um espírito-ancestral
(mukishi). A seta é dada ao adivinho para ser descoberta por ele."
83
84
apesar dos autores que observaram este detalhe tenham lhe atribuído significações
diferentes.. Se de acordo com Baumann o saco de flechas (ypumba) leva em si a função
de representação dos mortos - "saco no qual os mortos são 'enfiados' na forma de
pedaços de flecha"1 , para Mesquitela Lima essas flechas representam de preferência os
vivos (consultantes), apesar de que, curiosamente, essas flechas sejam feitas com madeira
dos "caixões"...:
"pedaços de flechas ou de madeira de caixões que eles (os adivinhos) recebem e
que são às vezes representantes dos indivíduos que o consultam e dos sinais para
identificar esses mesmos indivíduos"2 .
Também, de acordo com E. Santos, as flechas de madeira (ypumba) servem
unicamente como indicadores dos feiticeiros descobertos, isto é, denunciados pelo
adivinho3 .
Símbolo dos mortos e/ou dos feiticeiros que os mataram, lembranças dos clientes
ou elementos para testar a capacidade do adivinho, preço da adivinhação prévia ou
presente que se dá ao cesto para purificá-lo, as ypumba já atraem bastante as nuances da
densidade semântica que envolve cada um dos pequenos objetos divinatórios; ao mesmo
tempo elas nos mostram claramente e de modo muito concreto que "a riqueza armazenada
nos símbolos é produto das convenções culturais dos atores rituais"4.
I) - Os anexos do ngombo
1
Baumann, 1935, p. 164.
2
Lima, 1971, p. 109.
3
Santos, 1960, p. 162.
4
Turner, 1972, p. 13.
84
85
esse fim um pequeno xilofone denominado luphembe (foto 44) de duas ou quatro teclas
de madeira tocadas com dois martelinhos de borracha. Antigamente, o ngonge (foto 45)
era utilizado também para marcar o acompanhamento musical da sessão.
O recurso a um pequeno tambor (semelhante aos que os feiticeiros utilizam) deve
ser mencionado igualmente (foto 46). Não se encontra mais, mas os adivinhos ainda
falam dele; esse objeto, fabricado propositalmente pelo adivinho, possuía sempre uma
estatueta antropomorfa que o adivinho venerava como hamba de adivinhação:
"Um tambor kishika, tambor com estatueta que preside a adivinhação. O adivinho
ou tahi se serve dessa estatueta como chocalho por ocasião das cerimônias de
adivinhação. Ela é então untada com vermelho e branco"1.
Esse pequeno tambor, que subsiste entre os adivinhos dos Hanya de Angola, é
considerado como "a voz do ancestral adivinho"; é um tambor de vibração denominado
epuita2.
Finalmente, como anexos secundários que os adivinhos cokwe não utilizam mais,
mas que ainda se pode encontrar em alguns lugares, é preciso citar:
-Nsala, uma espécie de capacete, com um revestimento exterior de plumas de aves
(foto 47);
-O apito do adivinho feito com um chifre de antílope que o adivinho utiliza para
chamar seu espírito favorável (foto 48);
-Msese, o pega-moscas (foto 49), símbolo do poder, que os adivinhos também
levavam antigamente.
A) - Narrativa de Sakungu:
adivinhação para uma mulher grávida
(Mukuloji, 23/06/ 1975)
a) - Texto
Pontos de
adivinhação3
1
Museu Real da África Central, R.G. 37/71,, Doss. 763.
2
Hauenstein, 1967, p. 334.
33
O adivinho considera um ponto de adivinhação toda vez que, após uma ou várias agitações do cesto, um
kaphele vindo à borda do cesto, é pego como ponto de partida para uma explicação.
85
86
Mwacimika3 já falou:
o doente não cometeu um crime,
se fosse um crime, seria mortal.
1
Lukokese, irmã de Mwaciava, chefe dos Lunda.
2
Ubulu, o porco; também termo pejorativo para significar tudo o que é mal-feito no sentido moral ou físico.
3
Mwacimika, adivinho mestre-iniciador de Sakungu.
4
Deslocar-se constantemente é um comportamento típico de nganga. Tal comportamento pode ser
observado também nos espíritos dos mortos. Se o espírito de uma pessoa morta não se acomodou no mundo
dos mortos, torna-se suspeota de feitiçaria; a prova: “ele faz chorar, morrer, e dizer mensagens”.
86
87
1
Literalmente, “terra sobre as costas” - expressão que significa que as formalidades do luto foram
cumpridas.
2
Nesta sessão, era o marido que representava sua mulher doente diante do adivinho, mas este punha
questões à mulher como se ela estivesse presente.
3
Alusão à orientação da sessão em relação à posição do sol; a sombra é nociva ao ato divinatório.
4
O adivinho faz um apelo à gratificação que virá após a sessão e que será de nossa responsabilidade.
5
A participação de todos os presentes nas aclamações sucessivas dos pontos de adivinhaç
87
88
—Sim! Sim!
—Ela está ruim do ventre ou da cabeça?
Tumbunda —Sim! Sim!
(mulher —Sim ela está doente? É bem no ventre!
grávida) —Sim! Sim!
—É como uma mordida lá dentro?
—Sim! Sim!
88
89
Eu tenho certeza:
a hamba vem da avó,
da avó que pôs no mundo
o pai ou a mãe?
1
As exigências cultuais das mahamba são normalmentes satisfeitas mediante a apresentação de certos
produtos (bebida, mandioca, sangue) acompanhadas de uma oração. Aqui Sakungu parece separar essas
duas modalidades de culto, ambas tradicionais entre os Cokwe.
2
Um dente de animal.
89
90
b) Análise do texto
1
O quadro mais freqüente de transferência de uma hamba é de um homem para o filho da filha da irmã.
2
Walwa, bebida de milho que o adivinho apresenta como dom ao espírito Ngombo, ao mesmo tempo em
que se felicita pela adivinhação que efetuou.
90
91
crime / não-crime
morrer / viver
homem de bem / nganga
espírito favorável / espírito colérico
espírito calmo / espírito que se mexe
Em seguida passa-se à análise dos sintomas do doente (uma mulher grávida, neste
caso):
mordida / inchaço
sonho
91
92
O sintoma significativo tinha sido detectado, é preciso analisá-lo até nos detalhes;
o ponto de partida aqui é o próprio assunto do sonho, um cabrito na estrada:
feitiçaria / hamba
as coisas / as palavras
(dons) (orações)
na mata / na aldeia
yanga
B) - Narrativa de Riasendala
92
93
a) Texto1
Pontos de
adivinhação
1
Este texto, retirado de um registro magnético, foi revisto por A Barbosa, que também corrigiu a tradução.
2
Lyakokeka - um nome tornado proverbial por causa da enorme riqueza que Lyakokeka teria ganho.
3
Antigos centros comerciais importantes.
4
Nome de mulher.
93
94
Agora, já é um outro!
Fala, minha mãe! É justo o que
observei. É isso o que vi!
1
Hamba kamwari: alusão ao homem; Riasendala explicou mais tarde: p hpmem impotente sonha que faz
amor, mas não passa de um sonho. Em compensação, se ele coloca a estatueta kamwari em sua cintura ou
sob o leito, chegará de fato a fazer amor. Kamwari é para os homens, kapikala para as mulheres.
2
Insulto que os informadores evitam o máximo possível e que traduzem normalmente por: “Tua mãe não
vale nada”.
3
Assim como no ritual de iniciação dos jovens (mukanda), essas explosões em riso são típicos dos akishi
(dançarinos de máscaras).
4
Nome de um jovem homem para quem Riasendala consultava seu ngombo.
94
95
Escute mukishi1,
escute pai,
escute mãe,
escute, quem quer saber!
Sim! Sim!
Hânjika tukutale
Ah! Ye Ngombo yakulema tuhu
Yzuriè wa twana nayo! Eh!...
Yaya, ngwuó, yaya!
Mba mbia wenda nayo.
Mama yamiye iena hi-mwenda nyi mbila kwa inza kwa
95
96
96
97
97
98
Fala!
Fala e conta!
É você que ficou,
eu, eu retornei!
É isso mesmo!
Ah! Ah!
Entre!
Eu vienho aqui procurar fortuna
No dia em que eu falar corretamente,
eu volto na aldeia!
Quando tu fizeres isso,
tu retornas à aldeia.
lukanu É assim. Haverá braceletes
(bracelete) para sua mulher!
Fala! Rápido! Oh minha mãe, minha mãe!
Explique bem!
Hô... Hô... Hô...
98
99
Hanjika twiè!
Mama yamié, kumuya kwa noko
Mba! Au! Citanga wa mutangiè naye!
Mba! Au! Citanga wa mutangiè naye!
Mwè pwó rié aweh! Ayé aka kombelele
nayé!
Hanjika nayé! Akatale kama kapema!
Ewa tate catwama carita eh! Mba cikateli.
Ha hânjika mba ya pema Cocen!
Hanjike-me kuri yé kuma carita
kapema-me carita kulueza Ewa!
99
100
Levanta-te, é melhor!
Tua mÃe vai ser favorável.
Fala!
É assim que se vai proceder!
É assim que é preciso se
purificar (limpar/esvaziar)!
E terá uma chance!
ngoji Ela me deu ngoji2.
(cintura) Assim como a faca veio
e a enxada do reino de Kasamba,
1
Ver seqüência do texto no “Anexo I”.
2
Espécie de corda para transportar as crianças às costas.
100
101
Fala! É assim!
Ele falou! Vai colocar o ngoji!
Ele disse! E fim,
nada mais a dizer!
b) - Análise do texto
101
102
Riasendala explicita os esclarecimentos que ele tira dos tuphele que sucessivamente se
apresentam à borda do cesto, reportando-os sempre a dois dados fundamentais: o cliente
está em viagem, sua mulher ainda não deu à luz.
A seqüência de objetos que alimentou um discurso ininterrupto, de perto de três
horas, é a seguinte:
a) - O texto1
102
103
É verdade!
Aquele que está morto foi que se tornou hamba
Aquele que continua vivo é a pessoa
que será triste1.
Eis aqui um chefe para escutar.
Eis aqui nosso mestre2.
É verdade! É isso mesmo!
1
Analogia entre a morte e a impotência sexual.
2
Após o óbito de seu tio (em 19/09/1974), o adivinho Mwafima tomou seu lugar na aldeia de Sacombo
cujo nome ele leva a partir de então.
3
Antiga designação do ngombo ya cisuka.
103
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Afirma-te!
E não deixe passar o momento!
e o preço de tua adivinhação!
Todo mundo exige (a resposta)
e isto depois de muito tempo.
É preciso também exigir, não é?
É verdade!
Agora eu te pergunto
mais uma vez:
Lá embaixo, na aldeia de kalyamba
O que foi que se passou?
É o que eu quero saber,
quero sabê-lo de coração.
Está bem?
Em Manyanga o sangue
foi espalhado sobre mukula e mukhumbi!
104
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Os remédios!
Oh! Hamba que está lá!
Quem pôs os remédios?
Foi um feiticeiro ou uma pessoa
bem intencionada?
O que há a censurar?
Como ela está (a pessoa suspeita)?
Um remédio mortal sobre a cama,
sobre a cama do pai!
É por isso que vocês estão abalados!
E vocês procuraram o adivinho imediatamente?
É exatamente assim.
Alguns querem ir além
para buscar os remédios
para cuidar do corpo do pai!
1
Uma parte da ilustração fotográfica (fotos 59-67) concernem a uma outra sessão de Mwafima.
2
Cikorio significa ‘alembamento’ (preço de fiança) ou qualquer espécie de gratificação, como por exemplo,
um bracelete ou outro objeto qualquer.
108
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Eu vi também!
Mais uma vez para que se veja1!
Mexe! Mexe2!
Tu não viste?
Naikola caminhou sobre o antigo locá3.
É verdade, é verdade!
1
Referência ao trabalho duplo do ngombo. Mwafima pede a seu ngombo que moestre mais uma vez o que o
de Hamumona já manifestou.
2
Expressão utilizada sobretudo para os líquidos; cada vez que se agita o ngombo a informação “escorre”
para o adivinho.
3
Local onde se desenrola o ritual de iniciação dos jovens (mukanda) ou o dos homens (mungonge).
109
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Coco a kwambulula
nyi we muthwe nyi ku muthwe,
kakulota nyi é akishi mukishi au atrie
mwenyi a wo hanafu, wemba-wemba.
Ha sala pinga, engwame unyingika coco,
unyingika zundula, unkutale
wa mbala zundula, unkutale
Zuza!
Engwame! Zuza!
É como eu disse.
É na cabeça,
na cabeça que ela tem os sonhos,
os sonhos com as máscaras,
as máscaras que ela mesma viu
mas cujo mestre (dançarino)
está morto! É verdade!
Ele (o mestre) foi substituído
110
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por um outro!
É verdade!
Agora você sabe que ela andou
sobre um acampamento estrangeiro.
Adiante para que se veja!
Mexa como é preciso!
1
Citamba, que se traduz por altar, é na realidade uma pequena construção organizada perto da casa na qual
se venera as máscaras e outros objetos de culto.
2
Mwaji é a planta utilizada antigamente para a prova judicial.
111
112
Vula! Lenga!
Kwa mwenekwe cishi kwamba kari
Putu! Walwa!
Hi! Hi! Hé... Hé... Hé... Hé.
1
O buraco (toca) do tamanduá pode eventualmente ser substituído pelo de um cupinzeiro.
2
Walwa, designação vulgar para qualquer tipo de bebida alcoólica.
3
Fio, o local onde os iniciados são operados, pelo menos o chefe dos iniciados, tumba-kambungu.
4
Mwaka, fruto que virou kaphele do cesto.
112
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b) - Análise do texto
1. A adivinhação (sessão) feita por dois adivinhos deve ser alguma coisa de
extremamente rara, e se isto acontece como neste caso, é antes em razão de circunstâncias
fortuitas que por um pedido explícito dos clientes. Neste caso, Rikenga (nosso
informador) havia pedido uma consulta a Hamumona devido a intermináveis doenças de
sua mulher. No dia da sessão, Mwafima também estava ocasionalmente em Dundo. A
iniciativa de Hamumona de pedir a colaboração de Mwafima nos parece antes um ato que
leva em consideração o prestígio de Mwafima. Na verdade, Hamumona toma a palavra,
mas a partir de um certo instante ele passa a palavra a Mwafima que, agitando seu próprio
1
Samba, irmã de Mwafima, porque é seu espírito que está no cesto. Com efeito Samba havia sido possuída
por Ngombo, mas foi Mwafima que se tornou adivinho.
113
114
tortuoso_____
casa coração
3. Primeiro nível dos sintomas: o mal (do coração) pode ter como proveniência
tanto a aldeia quanto a mata; no primeiro caso se tem normalmente uma relação com a
vizinhança:
tortuoso
coração
mata aldeia
cabrito galinha
cipupu
114
115
vivo morto
__________________________________________________
visto pelos olhos visto pelos coração
um remédio na cama
“Isto faz pensar e eis por quê tu (o cliente), tu viste procurar o adivinho”.
7. Mwafima retoma a análise: e o faz exatamente no ponto em que Hamumona a
deixara. Alguma coisa foi colocada na cama de Rikenga. Este não consegue dormir.
8. A reflexão já está avançada. Na inquietude de Rikenga, Mwafima também vê o
estado de sua mulher Naikola. Ela desacatou gravemente uma proibição: andou pelo
acampamento da mukanda; é por causa disso que ela está doente. É a cólera de um antigo
dançarino mascarado que se manifesta; os sintomas mostram a evidência: estado febril,
frialdade, tremores do corpo, pesadelos em que aparece uma máscara!
9. Tratamento: para apaziguar o espírito, é preciso construir um altar e fabricar
uma máscara, que será colocada no altar, em favor do antigo dançarino cujo espírito está
descontente. Para se liberar da doença, Naikola deverá atirá-la no buraco aberto pelo
tamanduá. Se não houver buraco de njimbo (tamanduá), a construção similar de um
cupinzeiro pode substituí-lo. De qualquer modo, o pequeno santuário erigido em
homenagem do mukishi devera estar protegido como na mukanda.
1.4-Conclusão
115
116
Seu estatuto particular lhe é estabelecido a partir do ritual de iniciação, por meio
do qual retoma a atividade de um antigo adivinho. Ele torna-se também um agente
provolegiado do saber tradicional ao lado do chefe da aldeia, até mesmo existindo muitas
proibições comuns, sobretudo de ordem alimentar e sexual. Além disso, ainda no que
concerne aos funerais e à forma de enterro, o chefe e o adivinho se reaproximam. Todos
estes detalhes levantam o problema da organização do poder tradicional e do papel que o
adivinho deve ocupar; problema muito importante no contexto da sociedade tradicional,
mas que margeia o objetivo deste estudo.
Dos diferentes tipos de técnicas divinatórias conhecidas pelos Cokwe, ou pelas
etnias vizinhas, sob a designação comum de ngombo, pode-se deduzir a importância desta
categoria na tradição cokwe e ao mesmo tempo se verificar seu enorme dinamismo, dadas
as numerosas técnicas inventadas e descritas até o momento. O termo ngombo leva em si
toda uma tradição de saber mnemotécnico que no decorrer das circunstâncias tomou as
mais diversas formas, limitando-se hoje quase que exclusivamente à técnica da imagem
(espelho: ngombo ya malyia) ou à “leitura” dos símbolos divinatórios (ngombo ya
cisuka).
Não resta dúvidas, nem para os Cokwe nem para nós, que a técnica ngombo ya
cisuka, que abordaremos com mais detalhes no próximo capítulo, mesmo se afetada pela
situação colonial, continua a ser um recurso permanente que os Cokwe usam para
resolver seus problemas e para reduzir seus antagonismos. Hoje, terminadas as limitações
de ordem política, os adivinhos continuam a exercer um papel, agora mais claramente
ainda, não negligenciável na evolução das sociedades aldeãs.
Admitindo que o adivinho será ainda por um longo tempo um elemento
importante do dualismo que caracteriza as sociedades africanas atuais, o mais importante
é sem dúvida estudar em todos os detalhes sua atividade e suas técnicas.
A análise detalhada do conteúdo do cesto é sem dúvida o passo mais difícil mas
também o mais importante para comprender as grandes linhas de um saber que está
organizado em torno de um número limitado de objetos diversos que remetem aos
diferentes domínios do saber, e que concernem particularmente ao domínio do culto
(estatuetas-miniaturas das mahamba), ao domínio da medicina tradicional (frutos, folhas
e plantas presentes no cesto), e o estudo do comportamento dos animais enquanto
indicadores da vida dos homens em sociedade.
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