Jumentinho Na Avenida PDF

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Agraphai!!!

UM
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MARCOS MONTEIRO
0 jumentinho caminha pela avenida
sonhando em provocara mesma comoção
que um companheiro seu causou dois mil
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meio ao barulho, ele vai ruminando suas
limitações pessoais e arrastando uma
carroça (chamada igreja) cheia de objetos
velhos e móveis usados.

O que ele carrega na carroça desperta


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atrapalha e é atrapalhado, provoca e é
provocado em meio à complexa realidade

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começa a descobrir que os trastes de sua
carroça, que muitos consideiam inúteis,
sao objetos preciosos para um enorme
contingente de pobies, que, para sua
surpresa, constituem a maioi parte da
populaçao de sua cidade

Ao andar por esses novos caminhos, ele


reafirma sua identidade e reencontra a
alegria e a dignidade de sei jumento No
entanto, a lembrança da avenida ainda o
incomoda e, apesai do novo sentido,
surgem algumas perguntas. O que fazei
com a avenida7 Deveriamos voltai ao
tempo em que os jumentos podiam
caminhar tranquilamente pelas ruas7 E a
carroça, deveriamos motorizá-la7 5 5
UM
JUM ENTINHO
NA A V EN ID A
[A MISSÃO DA IGREJA E AS C I DADES]
Marcos Monteiro

UM
JUM ENTINHO
NA A V EN ID A
[A MISSÃO DA IGREJA E AS CIDA DES ]

Editora Ultimato
Viçosa, MG
UM JUMENTINHO NA AVENIDA
Categoria'. Igreja / Liderança / Missões

Copyright © 2007, Marcos Adoniram Lemos Monteiro

Todos os direitos reservados

Primeira edição: Setembro de 2007


Coodernação editorial: Bernadete Ribeiro
Revisão: Heloisa Wey Neves Lima
Capa: Panorâmica Com & M kt

Ficha Catalográfica Preparada pela Seção de Catalogação


e Classificação da Biblioteca Central da UFV

Monteiro, Marcos Adoniram Lemos, 1951-


M775j Um Jumentinho na Avenida : a missão da igreja e as
2007 cidades / Marcos Monteiro. - Viçosa, M G : Ultimato,
2007.
184p. 21 cm.

Inclui bibliografia

IS B N 9 7 8 -8 5 -7 7 7 9 -0 1 4 -2
1. Missão da igreja. 2. Religião e cultura. I. Título.
C D D . 2 2.ed. 266

http://agraphai.blogspot.com.br/

Publicado no Brasil com autorização e com todos os direitos reservados


Editora Ultimato Ltda
Caixa Postal 43
36570-000 Viçosa, MG
T e le fo n e : 31 3891-3149
Fax: 31 3891-1557
www.ultimato.com.br
S u m á rio

Prefácio 7
1. Um jum entinho na avenida 11
2. A missão integral da Igreja e a cultura 29
3. A dúvida entre "o que fazer" e "como fazer" 57
4. A cidade de Deus na cidade do homem 75
5. De profetas e de cantadores 95
5. A Igreja Evangélica e o Nordeste brasileiro 137
Notas 173
Bibliografia 179
PREFÁCIO

C onheci Marcos Monteiro em 1983, por intermédio do pastor


Eliezer Lourenço. Desde então não foi difícil manter a grande
amizade que desfruto com Marcos até hoje. Trabalhamos juntos
na Visão Mundial Brasil na década de 80. N a mesma época,
participam os ativam ente do Primeiro Congresso Brasileiro
de Evangelização, em Belo Horizonte, M G , e do Congresso
Nordestino de Evangelização, em Recife, PE. Especialmente
nesses momentos evidencia-se a capacidade do Marcos de mobi­
lizar pessoas, acolher os diferentes, criar condições para o exercí­
cio da unidade na diversidade do povo de Deus. Quando ele
veio morar em Fortaleza, fui me apropriando de várias discipli­
nas espirituais praticadas por ele — algumas permanecem em
aprendizado contínuo. A radicalidade e o compromisso com
que Marcos assume a causa dos pobres têm sido anúncio do
evangelho e denúncia, aparentemente involuntária, das minhas
práticas ainda reticentes.
Depois Marcos mudou-se para Maceió, AL, e nossos encontros
passaram a ser mais fortuitos. Ainda assim, cada momento que
passávamos juntos se revestia de confissões, expressão de pensa­
mentos e idéias livres de preconceitos. Ao longo dos anos, nossa
8 UM JUMENTINHO NA AVENIDA

amizade tem se fortalecido. Marcos é para mim um “amigo mais


chegado do que um irmão” (Pv 18.24). Alguns dos nossos cole­
gas o chamavam de Marcos Queiroz e a mim de Carlos Monteiro.
Esse humor nordestino sempre me pareceu um elogio.
Com Marcos tenho aprendido a apreciar com reverência a
experiência de pessoas que moram nas ruas das grandes cidades e
a me aproximar delas. Ele se tornou pastor de várias dessas pes­
soas, nas avenidas de nossas metrópoles. Acredito que é a partir
dessa convivência com os estranhos na avenida que ele constrói
seus textos e reflexões. Portanto, o que escreve é a sua própria
história, formada pelos pedaços de várias outras histórias. Há
muitas Marias, Paulos, Benés, Pedros e Josés, há muitas crianças
sem nome — com apelido apenas — nos contos e “en-cantos”
desse nosso poeta e profeta.
Respeito muito a coerência de vida assumida pelo Marcos.
Ele consegue ser profundo na reflexão sem perder sua devoção
pessoal e sua prática sociopolítica. De maneira criativa exerce
seu pastoreio itinerante pelo Nordeste brasileiro. É um dos pas­
tores na Igreja Batista em Bultrins, Olinda, PE. O pastor Paulo
César, um dos membros do colegiadó de pastores em Bultrins,
afirma:
Para mim, Marcos representa a figura do caixeiro viajante;
não tem hora nem dia para chegar, e quando chega sem­
pre traz alguma novidade no seu caçuá. Marcos é poeta
armorial, a figura do brincante nordestino, que verseja nas
suas palavras a lembrança das cantadeiras, dos emboladores
e aboiadores, das toadas, loas e repentes cantados nos pá­
tios das feiras livres. Nas palavras de Marcos sempre en­
contraremos um Toinho, um Zezinho e outros ‘inhos’ que
só conhece quem sai por aí soletrando a vida e trazendo
sonoridade aos ouvidos dos que conheceram somente o
seu lado ruim, o da sua aspereza. A vida do Marcos me
traz à lembrança o livro Lunârio Perpétuo, o mais lido
PREFÁCIO | 9

nos sertões do Nordeste nos últimos 250 anos, segundo


Câmara Cascudo. Nele temos de tudo um pouco: astrolo­
gia, horóscopo, receitas médicas, mitologia, rudimentos
de física, calendários, biografias de santos e de papas, co­
nhecimentos agrícolas, generalidades, instruções para se
conhecer a hora pela posição das estrelas, para se construir
Um relógio de sol etc. Marcos é isto: de tudo tem um
pouco (ou muito). E, se certo for que não existe verdade,
mas versões, esta é a minha versão.

Prefiro não comentar aqui o que o leitor terá o privilégio de


ler nas próximas páginas. Primeiro, para evitar qualquer interfe­
rência na sua interação com as idéias do autor. Depois, porque
precisamos saber se quem escreve tem o mínimo de autoridade
para viver o que propõe. Posso garantir que Marcos é uma das
poucas pessoas que dizem muito menos do que aquilo que prati­
cam. Assumo o risco de não ter a aprovação do autor, pois, se o
conheço bem, ele espalhará a quantos puder que o Marcos apre­
sentado aqui é invenção minha. Não posso me sentir culpado,
pois neste livro ele também cria personagens como Hermenegildo
e Zé da Lua, para mim tão reais quanto ele.
Seja Marcos Monteiro, seja o mito que possivelmente tenha­
mos criado o autor desta obra, recomendo ao leitor que trilhe
por estas páginas, em que autor, com leveza e profundidade,
busca contextualizar o evangelho sem viseiras, semelhante a Um
Jumentinho na Avenida.

Carlos Queiroz
Pastor na Igreja de Cristo em Fortaleza
Diretor Nacional da Visão Mundial Brasil
Capítulo 1

UM JUMENTINHO
NA AVENIDA

-Diante das transformações psicológicas, sociológicas, tecnológicas


e culturais que têm ocorrido nas grandes cidades, qualquer
pastor, com sua teologia bíblica e sua experiência mística, se
sente tão anacrônico quanto um jumentinho puxando uma
carroça em plena avenida. Enquanto caminha placidamente em
meio à velocidade e ao barulho de motocicletas, automóveis,
ônibus e caminhões, ele vai ruminando suas limitações pessoais
e arrastando uma carroça (chamada igreja) cheia de objetos
velhos e móveis usados.
Fiel e preciso, ele repete as atividades dos jumentos de todos
os tempos. O que ele carrega na carroça desperta pouco interes­
se, mas o seu anúncio anacrônico é triunfalista. Ele expõe dados
estatísticos extraídos de pesquisas ultrapassadas para convencer
o homem da cidade que não há nada melhor no mundo do que
ser um jumento e nada mais moderno que uma carroça.
Sua visão da cidade e do século é propositadamente limitada
e pessimista. Com suas viseiras bem ajustadas, ele insiste em
UM JUMENTINHO NA AVENIDA

afirmar que o burburinho e a agitação da cidade o impedem de


trafegar e que os modernos automóveis à sua volta atrapalham o
trânsito na avenida. E assim ele vai seguindo seu caminho, criti­
cando as pessoas por se recusarem a voltar ao tempo das carroças.
Esta reflexão foi escrita por um “jumentinho” que tirou as
viseiras, mas manteve sua identidade. O jumentinho não pre­
tende embarcar na onda de pessimismo nostálgico, como mui­
tos dos seus companheiros, mas também não procura esconder,
com esforço visível, suas orelhas de asno. Deseja apenas encon­
trar o seu lugar em meio à complexidade do século em que vive.
Ao tirar a tala que limita a sua visão, o jumentinho passou a
observar o que acontecia à sua volta, e isso o deixou inquieto e
incomodado. Começou a fazer perguntas, e com isso passou tam­
bém a inquietar e a incomodar os outros. Aos poucos ele foi
percebendo que tinha mais perguntas que respostas, mais per­
plexidades que soluções. O jumentinho trafega dialeticamente.
Empurra e é empurrado, atrapalha e é atrapalhado, provoca e é
provocado em meio à complexa realidade da avenida.
De repente ele percebeu que a cidade não era feita só de ave­
nidas e que existiam outros jumentos, puxando outras carroças
não eclesiásticas. Então, ele deixou a avenida e passou a rumar
através de caminhos, ruelas, vias de chão batido apinhadas de
barracos, casebres e favelas. Seu interesse foi aumentando e ele
começou a descobrir que os trastes de sua carroça, que muitos
consideravam inúteis, eram objetos preciosos para um enorme
contingente de pobres que, para sua surpresa, constituíam a maior
parte da população de sua cidade.
Ao andar por esses novos caminhos, ele reafirmou sua identi­
dade e reencontrou a alegria e a dignidade de ser jumento. N o
entanto, a lembrança da avenida ainda o incomodava e, apesar
do novo sentido, surgiram algumas perguntas. O que fazer com
a avenida? Como resolver os problemas de tráfego? O que fazer
UM JUMENTINHO NA AVENIDA

com o século 21? Deveriamos voltar ao tempo em que os jumentos


podiam cam inhar tranquilam ente pelas ruas? E a carroça?
Deveriamos motorizá-la? Será que ele precisaria deixar de ser
jumento e se transformar em um daqueles carros da Fórmula
Um para chamar a atenção na avenida?
As respostas a essas perguntas não são tão óbvias assim e nos
convidam a uma humilde reflexão. Esperamos com isso contri­
buir com aqueles que desejam repensar a Igreja para então refazê-
la dentro da realidade das nossas cidades.

Maceió, parábola do planeta

— Você precisa ir embora. Não pode ficar aqui. Não tem


chance nenhuma. Quer se casar, engordar, ficar batendo
papo nos cafés e nas esquinas? Esta cidade mata. É uma
areia movediça. Você tem que ir embora.1

Maceió, uma cidade do Terceiro Mundo, capital de um dos Es­


tados do Nordeste brasileiro, nos permite visualizar o que está
acontecendo hoje em nosso planeta. Os bairros de elite remetem
aos países do Primeiro Mundo, e estão minados pela invasão de
barracos e casebres. Por outro lado, os imensos bairros popula­
res, que representam os países do Leste Europeu, estão cercados
pela constante ameaça das favelas (o Terceiro Mundo), e ponti­
lhados, aqui e ali, por algumas casas luxuosas, marcando a pre­
sença das elites dominantes nesta cidade de 700 mil habitantes.
Nela encontramos todos os problemas do nosso século, da
prostituição à ameaça ambiental, da criança de rua à violência
institucional. E também todas as vantagens do mundo atual: do
shopping center ao microcomputador, da antena parabólica ao
carro do último tipo.
As mudanças e convulsões que atingem toda a humanidade
também são captadas por esta cidade-síntese. A paralisia e a
14 UM JUMENTINHO NA AVENIDA

indefinição ideológica que imobilizaram o m undo com a


implosão do Leste Europeu, o rápido e conflituoso processo
de urbanização mundial, provocando a favelização e a anomia,
estão ali representados, com a vantagem de se apresentarem
em proporções observáveis.
Esta bonita cidade praieira, com suas belíssimas lagoas que
tornam qualquer pôr-do-sol um espetáculo único, nos faz lem­
brar que a graça e a misericórdia de Deus se renovam na brisa,
no brilho, no calor e na beleza de cada manhã. Ser pastor e ser
igreja numa cidade como essa é um privilégio, mas é também
um desafio, além de oferecer uma oportunidade inestimável de
crescimento. Por isso, não podemos adotar uma postura pessi­
mista diante das mudanças que presenciamos.
O fenômeno da urbanização tem demonstrado que é um pro­
cesso irreversível. Cada vez mais as pessoas filtram a sua experi­
ência de mundo pela vivência nas cidades. Isso não só é inevitá­
vel como determinante da nossa experiência. O teólogo Harvey
Cox disse, algumas décadas atrás:
Em nossos dias a metrópole continua sendo modelo de
nossa vida em comum, tanto como símbolo de nossa con­
cepção de mundo. Se os gregos percebiam o cosmos como
uma polis extensa, e o homem medieval como uma área
feudal ampliada ao Infinito, experimentamos o universo
como a cidade do homem.2

N o entanto, apesar de irreversível, esse não é um fenômeno


neutro, pois traz em seu rastro as patologias do século, que ge­
ram lesões irreparáveis tanto no tecido emocional como no social
dos homens e das cidades. Entre essas patologias encontram-se,
conforme Konrad Lorenz, a solidão, a ausência de relacionamen­
tos profundos entre as pessoas e até mesmo a violência:
O ajuntamento humano nas cidades modernas é, em gran­
de parte, o responsável pelo fato de que não somos mais
UM JUMENTINHO NA AVENIDA | 15

capazes de descobrir o semblante do próxim o na


fantasm agoria das figuras humanas que mudam, se
superpõem e se apagam continuamente...3
A superpopulação não só leva indiretamente a fenômenos
de desumanização pelo esgotamento das relações, como
também desencadeia comportamentos agressivos imediatos.4

Nesta cidade, igual a tantas outras do nosso país, o mundo


religioso também se estabelece de forma parabólica. O misti­
cismo oriental, as crenças esotéricas, as religiões animistas, as
diversas seitas e o cristianismo em suas versões católica e protes­
tante ocupam o imaginário simbólico e devocional da população
local, como acontece em todo o mundo.
A Igreja, de igual forma, repete aqui a história e a geografia
do desenvolvimento tenso e crítico dessa comunidade universal
que se move em torno de um mesmo Jesus, de um mesmo Pai e
de um mesmo Espírito. Igrejas carismáticas disputam espaço (e
fiéis) com as igrejas tradicionais. Os movimentos jovens, os mu­
sicais com ritmos modernos, os movimentos evangelísticos, teo­
lógicos, políticos e ecumênicos ajudam a compor o mosaico da
Igreja atual. Cruzadas evangelísticas, reuniões nos lares, grupos
de estudo bíblico, programas de rádio e T V constituem os mé­
todos dessa mesma Igreja. As Comunidades Eclesiais de Base e o
Movimento Católico Carismático são as pontas entre as quais se
move o pedaço ainda maior representado pela Igreja Católica
Romana. Por tudo isso, Maceió é como um pequeno e potente
telescópio que nos permite observar o mundo inteiro.
A questão que se coloca é o que significa ser pastor e ser Igreja
nesta cidade tão parecida com tantas outras cidades do Terceiro
Mundo. Encontrar os instrumentos adequados para responder a
essa pergunta talvez signifique preparar-se para mudar sem
perder a identidade ou, para ser mais preciso, mudar para
manter a identidade.
16 UM JUMENTINHO NA AVENIDA

“O Deus do rico não é o Deus do pobre”

O primeiro e principal instrumento que a Igreja tem nas mãos é


o teológico. E no silêncio da voz teológica que a ansiedade e a
perplexidade da Igreja extravasam em gritos e gemidos. A teolo­
gia fornece alguns aspectos indispensáveis ao pastor e à Igreja
que desejam se posicionar na cidade e oferece respostas para as
dúvidas e inquietações que acompanham aqueles que se movi­
mentam.
A teologia bíblica apresenta três momentos que muitas vezes
se confundem e se sobrepõem: a rejeição da realidade, a revolu­
ção da realidade e a revelação da realidade.
O primeiro momento é a rejeição imediata da realidade tal
como a percebemos. Essa é uma característica de toda reflexão,
mas de forma especial da reflexão teológica. Para o teólogo (que
também é um pensador) as coisas não são o que aparentam ser e
as realidades não são fechadas em si mesmas — são enigmas e
proposições que revelam e escondem, ao mesmo tempo, o objeto
dado. O teólogo não rejeita a realidade em seu próprio nome ou
em nome de alguma ciência, propósito ou causa — ele a rejeita
em nome de Deus.
Mas a teologia é também um incessante e incansável revolver
da realidade. Além de rejeitar, ela procura descobrir a verdade
escondida atrás das aparências. Para tanto, utiliza, junto com a
Bíblia, os recursos oferecidos pelas ciências humanas. A teologia
se faz através de um trabalho paciente e contínuo sobre o mate­
rial bruto fornecido pela vida. É a difícil tarefa de sobrepor-se ao
engano das falsas evidências.
Por último, a teologia não só rejeita e revolve, mas também
desmascara o mistério escondido por trás das aparências e conti­
do na essência das coisas. Rejeita a aparência, busca o auxílio das
ciências, mas continua sua caminhada em busca das realidades
UM JUMENTINHO NA AVENIDA 17

últimas, procurando identificar e demonstrar a misteriosa ação


de Deus em meio à história dos homens e à proposição das
coisas. Esse mistério, revelado plenamente na pessoa de Jesus,
faz com que a teologia seja, acima de tudo, uma reflexão bíblica.
A Bíblia inteira está intimamente relacionada à pessoa de Je­
sus, revelação máxima de Deus, evento supremo da história. Por
isso, nossa porta de entrada das Escrituras é o próprio Jesus. Isso
nos impede de cometer erros, tanto de um liberalismo cético
quanto de um literalismo redutor.
A partir dessa ótica, o Antigo Testamento pode ser estudado
como a história e a teologia do povo de Jesus, em que a esperança
da vinda do Messias ocupa lugar fundamental, e também como
a Bíblia do próprio Jesus. O Novo Testamento por sua vez deve
ser entendido como o encontro da história e da teologia de Jesus
com a história e a teologia da comunidade de Jesus (a Igreja).
Assim, Jesus, a Palavra de Deus encarnada, ilumina toda a Bíblia
e a torna relevante para todos nós.
Isso faz da teologia uma atividade subversiva, ao propor mu­
danças fundamentais nos esquemas em que vivemos. Eternamente
insatisfeita, permanentemente crítica, a teologia é o terror dos
tiranos, o cansaço dos cientistas e uma ameaça para todos os
sistemas, inclusive os religiosos.
A teologia praticada no nosso século é inadequada e inconsis­
tente, tanto na forma como no conteúdo. Ela é insuficiente na
forma por não rejeitar a realidade tal como se apresenta, não
revolver essa mesma realidade com os instrumentos científicos
de análise e não demonstrar (ou demonstrar apenas parcialmen­
te) o mistério de Deus na história.
Um exemplo disso é o modo como a Igreja aborda a si mesma
e à cidade. A Igreja percebe a cidade como fruto de um processo
histórico contínuo e como uma extensão geográfica do campo,
ou seja, algo perfeitamente natural e harmônico. Isso significa
18 UM JUMENTINHO NA AVENIDA

que a Igreja não sabe observá-la. A cidade atual representa uma


descontinuidade, fruto de uma ruptura histórica e geográfica. A
urbanização nos países do Terceiro Mundo acontece tão rapida­
mente que as cidades se transformam num câncer histórico não
planejado, chegando mesmo a se assemelhar visualmente a um
tumor cancerígeno:
A imagem histológica das células tumorais, completamente
uniformes e pobres em estruturas, tem semelhança
desesperadora com a fotografia aérea de um subúrbio mo­
derno, com suas casas padronizadas projetadas por arqui­
tetos desprovidos de uma real cultura, fruto da concor­
rência apressada.5

O discurso da Igreja, exposto em suas liturgias, sermões e


hinos, transmite uma falsa idéia de convivência fraterna entre a
cidade e o campo. Há entre o mundo rural e o urbano um fosso
geográfico que se traduz num abismo cultural cada vez maior.
Esse abismo, não captado pela Igreja, impede-a de perceber as
suas próprias contradições e inadequações.
A reflexão teológica da Igreja acerca de si mesma reflete a sua
própria situação formal e interfere na percepção da realidade
circundante. N a verdade, a Igreja elabora sua auto-imagem a
partir de suas estruturas e imagina o mundo a partir de sua auto-
imagem. Assim como sua estrutura é fracionada, sua teologia é
denominacional e fragmentária. Por não experimentar uma uni­
dade formal, ela não se vê como uma única Igreja, nem trata a
cidade como um todo complexo, mas como uma série de peda­
ços separados e estanques.
Torna-se cada vez mais evidente o fato de que uma teologia
denominacionalista, e, portanto fragmentária, não resolve defi­
nitivamente as questões do cristão que vive nas cidades. Uma das
características principais da cidade é a facilidade de acesso e uma
das características da igreja é a sua diversidade de formas e modelos.
UM JUMENTINHO NA AVENIDA 19

O cristão urbano está em contato perm anente com várias


expressões da igreja e com irmãos de diferentes igrejas. Desse
modo, ele tem experimentado na prática a realidade de uma
única Igreja, porém na igreja local procuram ensiná-lo a celebrar
as divisões. É preciso muito discurso para fazer o recém-conver-
tido entender que ele é diferente dos irmãos de outras igrejas. O
discipulado da fragmentação tem tomado o lugar do discipulado
da unidade.
A unidade é a forma da Igreja dada pela revelação bíblica; a
fragmentação é a forma que a realidade dá a Igreja. Uma teologia
que aceita essa realidade sem revolvê-la e sem descobrir o misté­
rio da unidade que está além de toda aparência é impotente para
servir à igreja e falha em sua reflexão, por fazê-la parcial e
fracionadamente. Conseqüentemente, a estrutura divisionista da
Igreja se mantém contra toda a realidade teológica, resultando
em permanente tensão.
O conteúdo de nossa reflexão teológica se relaciona muito
mais a uma teologia de classe média do que a uma teologia
bíblica. O Deus que apresentamos nos púlpitos de nossas
igrejas é um Deus que não se posiciona e um Cristo que não
toma partido. Esse tipo de pregação mantém as igrejas omissas e
passa ao largo das questões que afligem a cidade.
Num a visita a um irmão, recém-convertido, morador de uma
das favelas próximas a nossa igreja, ouvimos esta história exemplar:
Ao entregar um quilo de carne na casa de um deputado, um
açougueiro avistou a mesa posta para o café da manhã, com tudo
que podia imaginar.
— Mesa farta, doutor! — disse o açougueiro.
— Graças a Deus! — exclamou o deputado.
— É, doutor — replicou o açougueiro — , o Deus do rico
não é o mesmo Deus do pobre. N a minha casa, quando tem pão
20 UM JUMENTINHO NA AVENIDA

falta manteiga e quando tem manteiga, falta pão. Por isso,


doutor, o Deus do rico não pode ser o mesmo Deus do pobre.
A teologia bíblica nos apresenta um Deus que toma partido e
um Jesus Cristo que se envolve ativamente com a realidade que o
cerca. A face distintiva de Javé, no Antigo Testamento, é a sua
justiça, que o faz tomar o partido do pobre, do oprimido e do
marginalizado. Muitas vezes esse Deus bíblico faz ressoar a sua
voz na cidade e age claramente ali, apesar da Igreja e de sua
teologia. Sempre que surge uma reivindicação, um clamor ou
uma luta na cidade, Deus está presente, não para apaziguar os
ânimos ou acomodar as coisas, mas para tomar o partido dos
injustiçados, dos empobrecidos e espoliados. Por isso a partici­
pação da Igreja em clamar por justiça é uma tarefa essencial;
quando isso não acontece a Igreja peca por omissão.
De modo semelhante, o Jesus da Bíblia é diferente do Cristo
dos púlpitos. O Novo Testamento nos apresenta um Jesus que se
compadece e se envolve com as pessoas, que enfrenta e confron­
ta. Sua posição é claramente favorável ao pobre, ao oprimido e ao
marginalizado, contra o rico e o opressor. Qualquer leitura clara
dos evangelhos nos apresenta a figura de Jesus tomando o parti­
do dos pequeninos e sendo visto com desconfiança pelos pode­
rosos e dominadores, muitas vezes confrontados por ele dura­
mente.
Sem dúvida alguma, nós refletimos no púlpito a cisão artificial
entre o Cristo da fé e o Jesus da história, provocando assim um
abismo entre fé e vida, fé e história. Nada é mais evidente na
cidade do que uma igreja que não se envolve com ela, e nada é
mais evidente na Bíblia do que um Jesus envolvido, participando
ativamente de sua época e história.
A Igreja precisa assumir imediatamente o Deus e o Jesus
dos pobres, a fim de servir mais claramente à cidade. É bom
lembrar que, ao tomar o partido dos pobres, Jesus não os
UM JUMENTINHO NA AVENIDA 21

santifica automaticamente, só por serem pobres. Eles também


precisam de redenção. Jesus se coloca como médico, o agente
transformador de suas vidas. Tanto o rico como o pobre são pe­
cadores; mas este último, além de pecador, é carente e vítima de
injustiça, opressão e discriminação. Apresentar o Deus bíblico e
o Jesus histórico como Deus dos pobres e Messias dos pobres
não significa que eles estão excluídos da evangelização. Pelo con­
trário, os pobres devem ser os primeiros a receber a boa notícia
da transformação radical das pessoas e da história através do evan­
gelho do Reino de Deus.

Tirando o paletó e a gravata

Uma das questões que tanto o pastor como a Igreja que servem à
cidade precisam considerar é quanto ao estilo de vida. Se adotar­
mos como postura teologicamente verdadeira que o Deus que
pregamos é o Deus dos pobres e que Jesus é o Messias dos po­
bres, então a Igreja e, por conseguinte, seus pastores, devem existir
em função dos pobres. Constitui um escândalo o fato de a Igreja
não ser a festa dos pobres na celebração da salvação em Jesus
Cristo e na superação da pobreza, fruto de injustiça e opressão.
A imagem do pastor é representada pelo uso de paletó e gra­
vata, vestes que indicam uma série de identificações e uma alie­
nação teológica. Ao vestir o paletó (numa cidade quente como
Maceió), o pastor está adotando um estilo de roupa estrangeira,
que o identifica com uma cultura estranha. Trata-se também de
uma roupa cara, o que o identifica com a classe dominante, e
uma roupa distintiva, o que o identifica com uma teologia
clerical.
Esse costume é tão arraigado em nossas igrejas que muitas
são duramente criticadas por seus pastores deixarem de usar
paletó e gravata. Porém a quebra desse símbolo constitui uma
UM JUMENTINHO NA AVENIDA

verdadeira libertação para muitos pastores, principalmente nas


cidades quentes do Nordeste.
O ato de tirar o paletó e a gravata é uma tarefa que conduz a
uma progressiva identificação da Igreja com a cidade e com seu
povo, especialmente com os mais pobres. Esse processo, que te­
ologicamente chamamos de encarnação, processa-se primeiro
interiormente, mas deve ser exteriorizado para se tornar cada vez
mais eficaz. Em outras palavras, a identificação deve ocorrer
prioritariamente no ser, mas com desdobramentos inevitáveis no
agir e no ter.
Nessa linha de reflexão, é bom lembrar que a pobreza não é
um bem. Ao contrário, ela é um mal, e ao tomar o partido do
pobre, Deus está lutando contra a pobreza, suas causas e conse-
qüências. A fartura, a opulência, o luxo e o excesso, só constitu­
em escândalo diante da pobreza, da miséria e da escassez. Isso
coloca além da questão do ter, as questões do tenho para que ou
para quem.
A identificação com os pobres através da adoção de um estilo
de vida mais simples não significa a busca pela pobreza, mas a
busca da missão e da solidariedade. Sobre isto, vejamos as pala­
vras de Júlio de Santa Ana, aplicadas a determinados cristãos:
Não foram pessoas que buscaram a pobreza material por­
que nela houvesse características de virtude, mas também
não se sentiram grandes ou elevados espiritualmente. Fo­
ram, antes, pobres dispostos a partilhar com outros o pouco
que tinham (e, portanto, estavam prontos ao exercício da
caridade fraterna), não tornando motivo de orgulho sua
condição humilde, mas também não sendo ávidos de ri­
quezas. Na realidade, sua pobreza era correlativa a uma
esperança total e absoluta em Deus e se manifestava numa
disponibilidade sem limites diante do Senhor.6

Ao buscar uma identificação com os pobres colocando-se


a favor deles, a Igreja inicia um diálogo inevitável com os
UM JUMENTINHO NA AVENIDA j 23

movimentos populares. Ali, onde se busca a justiça de forma


organizada e insistente, se faz necessária a presença cristã como
sal e luz. Como pastor, estivemos em contato com alguns desses
movimentos: o Movimento dos Sem-Terra, o Movimento dos
Sem-Teto e o Movimento dos Meninos de Rua. Em algumas
ocasiões, estivemos na iminência de conflitos, chegando a pôr
em risco nossa integridade física ao tomar parte no cordão hu­
mano de isolamento, cercado pela polícia fortemente armada.
Graças a Deus, o conflito foi superado.
Nossa igreja mantém um projeto com meninos de rua, o Pro­
jeto Caminhar, abrigando em suas dependências pelo menos vinte
crianças retiradas das ruas. Esse trabalho tem dado sentido e
significado às nossas vidas, como indivíduos e como igreja, ape­
sar das dificuldades e tensões da caminhada.

A roda grande girando dentro da roda pequena

Certa vez um homem simples, do campo, contou-me que


quando era pequeno sempre ouvia seu pai repetindo uma fra­
se: “Vai vir um dia em que a roda grande vai girar dentro da
roda pequena” . N a época ele não entendia o que aquilo que­
ria dizer, mas depois de adulto, compreendeu o significado
daquelas palavras. A roda grande era o custo de vida e a roda
pequena o salário!
Tomemos emprestada essa frase da sabedoria popular para
refletir sobre o momento atual, no qual a gigantesca roda do
Espírito de Deus está girando dentro da pequenina roda de nos­
sos conceitos, vidas e estruturas limitadas.
A Palavra de Deus nos diz que o Espírito Santo está soprando
em nossas vidas, na vida da Igreja e na história. Somos o templo
do Espírito. Nosso corpo é a pequenina roda onde gira a grande
roda do Espírito; a Igreja é o santuário de Deus e corpo de
Cristo, mais uma roda pequena onde o Espírito de Deus gira;
UM JUMENTINHO NA AVENIDA

a última roda é a própria história, com suas contradições e


limitações.
Uma das primeiras implicações dessa verdade é o fato de que
o Espírito de Deus tem agido intensamente na cidade-síntese de
Maceió. A Igreja como um todo e individualmente, em cada um
de seus membros, tem sido ao mesmo tempo instrumento e
limite dessa ação. Isso é visível na própria estrutura da Igreja
atual, nitidamente litúrgica, literária e fragmentária, que impõe
barreiras à ação do Espírito. O templo, além de ter uma estrutu­
ra rígida e localizável, santifica o lugar onde está situado, exau­
rindo a ênfase neotestamentária da santidade pessoal. Ao deixar
de lado o templo, a Igreja transfere a ênfase dada aos lugares e
edifícios para pessoas e vidas. As pessoas é que são santas, e não
os edifícios ou lugares. Lugares santos criam uma desconti-
nuidade na estrutura da cidade, além de tornarem a experiência
e a igreja cristã localizáveis. Para perder esse conceito de sagrado,
o templo precisaria ser abolido ou usado de forma mais eclética.
Talvez com isso a santificação voltasse a ser um processo total
e pessoal, em vez de parcial e geográfico. Além disso, sem um
lugar fixo para se reunir, a Igreja se tornaria mais enérgica e
movimentada.
A liturgia é a celebração da vida da Igreja. Porém, em muitas
igrejas ela é a própria vida da igreja, existindo em formas crista­
lizadas e vazias de conteúdo. A presença de símbolos nos cultos
nos estimula a um encontro restaurador com Deus e com os
irmãos. Porém, se esse encontro só acontece nos momentos
litúrgicos e os símbolos estão separados da realidade, o culto
passa a ser apenas um ritual vazio e inútil, perdendo seu verda­
deiro significado. Quando “Deus”, “comunhão”, “missão” e “amor”
perdem seu verdadeiro sentido e se tornam meras palavras, sím­
bolos ou canções, o culto deixa de existir de fato e se transforma
numa peça teatral, de boa ou má qualidade.
UM JUMENTINHO NA AVENIDA 25

Um outro fator que limita a ação do Espírito é a estrutura


literária do ensino nas igrejas. Somos cada vez mais uma geração
que não lê, marcada pela influência do vídeo e do computador.
A situação é ainda mais grave na cidade de Maceió, onde a mai­
oria da população é analfabeta. Uma Igreja que deseja fazer dis­
cípulos de Jesus em todos os segmentos da sociedade precisa
reformular urgentemente o seu sistema de ensino. Poderia co­
meçar pesquisando os métodos de ensino mais adequados para
as camadas mais pobres e quais os meios de comunicação dispo­
níveis, do vídeo ao teatro de fantoches.
Mas a maior limitação para a ação do Espírito é, sem dúvida,
de natureza teológica. Para que o Espírito possa agir livremente
nas cidades, a Igreja precisa adotar uma teologia integral (holística)
que integre oração e ação, evangelização e reflexão teológica, missão
e cultura, fé e justiça, amor e verdade. Uma teologia fragmentá­
ria produz uma Igreja anêmica diante de uma cidade enferma,
uma Igreja incapaz de curar as feridas e de promover saúde. De
acordo com Harvey Cox: “Seja qual for o caso, a tarefa da Igreja
na cidade secular é a de ser diácono da cidade, a serva que se
submete à luta pela sua integridade e saúde”.7
Por tudo isso, a Igreja é a roda pequena dentro da qual a roda
grande do Espírito procura girar com a maior liberdade possível.
Um fato ocorrido com um jovem universitário é um bom exem­
plo dessa barreira à ação de Deus.
Certa ocasião, um jovem estudante universitário me procurou
para estudarmos a Bíblia juntos. Começamos a estudar o Novo
Testamento, mas depois de certo tempo, as circunstâncias impe­
diram que continuássemos a nos encontrar. Porém, o rapaz con­
tinuou a estudar sozinho o Novo Testamento. Passados alguns
meses, nós nos encontramos, e ele me contou que estava fascina­
do pela leitura. Já havia lido os quatro Evangelhos, de forma
pausada e meditativa, e repetido três vezes a leitura de Mateus
UM JUMENTINHO NA AVENIDA

para entender melhor seu conteúdo. Falou também do seu


interesse pelas Escrituras e de como havia quebrado seus
preconceitos em relação a Jesus. Porém, ele me confessou
claram ente que não se sentia atraído pela igreja, tal como
a conhecia. Isso me fez pensar que a roda grande do Espírito
tem girado na cidade de Maceió, mas a roda pequena da igre­
ja tem lhe tolhido a eficácia!

A hora e a vez do jumento

O jumentinho caminha pela avenida, sonhando em provocar a


mesma comoção que um companheiro seu havia causado dois
mil anos atrás, na cidade de Jerusalém. Seu desejo é oferecer o
lombo e as rédeas ao mesmo Jesus da Palestina, para que ele
entre de maneira triunfante na cidade-síntese de Maceió. Para
isso, pretende desenvolver algumas estratégias:
3 Reunir todos os jumentos da cidade, com suas carroças,
para juntos refletirem sobre a cidade. E preciso deixar
claro que a reflexão é tarefa de todos e não somente da
Igreja.

O Organizar juntamente com os outros jumentos,


eclesiásticos e não-eclesiásticos (os movimentos
populares), uma grande passeata pela principal avenida
da cidade. É através da participação e do serviço que o
pastor e a Igreja encontram o seu lugar na cidade.
3 Fazer um balanço do que está dentro da carroça e jogar
fora tudo que não tem utilidade. Livrar-se do paletó, da
gravata e do púlpito, substituindo-os por aparelhos de
vídeo e computador. Não é fácil decidir o que comprar e
o que jogar fora, no entanto, sabemos que a Igreja tem
sido beneficiada ao se desfazer de todos os seus símbolos
de dominação e alienação. Paralelamente, a utilização
UM JUMENTINHO NA AVENIDA 27

adequada de instrumentos técnicos pode ajudar a Igreja


a cumprir sua missão.

Usar instrumentos musicais mais modernos, como


batería e guitarra elétrica, mas sem deixar de lado o
pandeiro, a viola e o acordeão. A música na igreja deve
refletir tanto o universal e contemporâneo quanto o
regional e tradicional.

O Trafegar mais pelas favelas e menos pelas avenidas. A


Igreja deve dar prioridade aos pobres, por razões
estratégicas e por razões teológicas.

O Proclamar sempre, dia e noite e em todo lugar, a


mensagem do evangelho, para que todos ouçam a voz de
Deus. A palavra da Igreja — palavra evangelizadora,
disciplinadora e profética — precisa ser difundida de
forma constante e ininterrupta.
Capítulo 2

A MISSÃO INTEGRAL
DA IGREJA E A CULTURA

O encontro entre evangelho e cultura pode ser entendido como


o encontro da eternidade e do tempo à luz da pessoa de Jesus
Cristo. Ao se tornar judeu e mortal, Jesus Cristo, verbo eterno e
homem universal, inseriu-se no tempo e numa cultura particu­
lar. Esse encontro cultural é o evangelho propriamente dito: não
há evangelho à parte da experiência humana, fora de uma cultu­
ra concreta. A contextualização não é uma mera particularização
da mensagem eterna e universal, é a própria plenitude dessa men­
sagem para um homem definido, participante de um grupo com
características bem distintas.
A Igreja, dentro de determinada cultura, deve encontrar o
seu modo de ser entre o cuidado em manter a sua identidade e
em expressar plenamente o seu significado. Precisa aliar ao co­
nhecimento de sua missão, tradição e essência, o conhecimento
da cultura que a circunda, a história do povo que a rodeia e os
desafios da sua época, adequando-se sabiamente a tudo isso.
Para que isso aconteça, precisa acertar o seu ritmo de modo a
não se colocar nem numa vanguarda destruidora nem numa
UM JUMENTINHO NA AVENIDA

retaguarda inofensiva, mas permanecer onde sempre deveria


estar: no centro de sua época, no ritmo da própria vida.1
Espera-se, portanto, do cristão, duas atitudes igualmente
prudentes: em primeiro lugar, uma atitude de celebração e de
alegre participação nas atividades culturais que facilitem a plena
expressão do evangelho; em segundo, a rejeição enfática de tudo
aquilo que venha a ameaçar a sua identidade como discípulo de
Jesus Cristo. A prudência será a virtude que lhe permitirá distin­
guir uma coisa da outra e deverá estar bem fundamentada numa
experiência permanente com Jesus Cristo e sua Palavra, critério
último de toda contextualização.
Nos anos 80, estávamos todos imbuídos da idéia do novo,
mas de certo modo perplexos quanto aos ritmos que deveriamos
empregar na busca da missão integral. Hoje creio que algumas
vezes temos sido prudentes demais. Além disso, o símbolo mai­
or do evangelho, a cruz, não parece ser destinado aos “pruden­
tes”. A prudência pode, muitas vezes, ser excelente desculpa para
não assumirmos a plenitude do discipulado.

O que é cultura?

A palavra cultura conheceu um grande número de significados.


Entendida como “culto religioso” e “cultivo da terra”, na Idade
Média, “cultivo das artes, letras e ciências”, no século 17, ganha
significado coletivo com os historiadores germânicos na metade
do século 19, até adquirir com os antropólogos e etnólogos um
caráter meramente descritivo. Malinowski define cultura como
“essa totalidade em que entram os utensílios e bens de consumo,
os estatutos orgânicos que regulam os diversos agrupamentos
sociais, as idéias e artes, as crenças e os costumes”.2
Cultura, portanto, não deve ser entendida como atividade
meramente “beletrista”, ou restrita a uma elite social, mas como
A MISSÁO INTEGRAL DA IGREJA E A CULTURA 31

a totalidade das atividades, idéias e símbolos de determinado


povo, em determinado tempo e lugar. Como esses parâmetros
— “povo”, “tempo” e “lugar” — não são homogêneos, percebe-
se a existência, numa mesma cultura, de formas e manifestações
variadas, consistindo estas, algumas vezes, em verdadeiras
subculturas.3
Se o artífice da cultura é o homem, o fundamento da cultura
é o próprio Deus, criador tanto do artífice quanto da matéria-
prima, e ordenador do domínio e sujeição da terra pelo homem
(Gn 1.27-28). A criação é o estabelecimento de uma autonomia
(relativa) para o homem e para a natureza, e o mandato de do­
mínio e sujeição é a manifestação da vontade de Deus em uma
cultura humana. Porém, vale ressaltar aqui que a reflexão atual
sobre o Gênesis privilegia o cuidado do homem com a terra em
vez do domínio e sujeição, evitando uma interpretação demasia­
damente androcêntrica e patriarcal, cujos resultados desastrosos
estamos colhendo hoje cada vez mais rapidamente. O homem e
a terra se pertencem por vontade de Deus, conseqüentemente, a
cultura, como manifestação humana, tem a sua legitimação na
vontade de Deus. Isso não é nada menos do que a afirmação da
bondade do homem e da sua criação (cultura), por si só.
Como, porém, a realidade do homem (e também a realidade
da terra) é a Queda, a cultura — o encontro do homem e da
terra — está manchada pelo pecado. A autonomia cultural, por­
tanto, é relativa, tanto em relação à soberania de Deus quanto ao
poder destrutivo do pecado. A cultura carrega, inevitavelmente,
as marcas da ambigüidade do próprio homem: homem-para-
Deus e homem-em-pecado.
Uma vez que o homem é criatura de Deus, parte de sua
cultura é rica em beleza e bondade. Pelo fato de o homem ter
caído, toda a sua cultura (usos e costumes) está manchada pelo
pecado e parte dela é de inspiração demoníaca.4
UM JUMENTINHO NA AVENIDA

A alienação e a inconsciência social são fenômenos culturais


que exemplificam o poder corrosivo do pecado sobre a civilização
hum ana.
A cultura humana está atravessada pela divisão de classes.
Embora todos participem da produção cultural, somente uma
pequena parcela da população, que detém o controle sobre os
meios de produção, usufrui integralmente do produto cultural
gerado. A divisão de bens, portanto, beneficia um grupo menor
em detrimento da maioria, criando uma cultura dominante, que
impõe seus valores, usos e costumes sobre a cultura silenciosa da
maioria.
A esse fenômeno de dominação cultural corresponde o fenô­
meno paralelo de inconsciência social. Para que a cultura da mi­
noria seja disseminada é preciso que haja a inconsciência da
maioria. O próprio significado que a maioria atribui à palavra
“cultura” reflete a sua situação de inconsciência. D o ponto de
vista da maioria, cultura é a atividade (às vezes somente artística)
de uma elite que tem acesso aos misteriosos “meios cultu­
rais” . É interessante mencionar que o trabalho integrado de
alfabetização e conscientização desenvolvido por Paulo Freire
só começa efetivamente quando o alfabetizando percebe-se a
si mesmo como sujeito (não objeto) da cultura. N ão é por
acaso que seus grupos de alfabetização são chamados de “círculos
de cultura” .5
De acordo com Darcy Ribeiro, a cultura se organiza através
de três sistemas integrados: sistema adaptativo, que é o conjunto
das formas de ação do homem sobre a natureza; sistema associativo,
que é o conjunto dos m odos de organização das relações
interpessoais e das normas de convívio social; e sistema ideológi­
co", que compreende as idéias e os sentimentos gerados no
esforço em compreender a experiência coletiva e justificar ou
questionar a ordem social.6
A MISSÃO INTEGRAL DA IGREJA E A CULTURA [ 33

Esses sistem as se estabelecem de form a mais ou menos


padronizada tanto nas pequenas como nas grandes associações,
dentro de um m esm o povo, tendo sua unidade garantida
pelo acesso à m esm a linguagem e aos m eios de com unica­
ção com uns. O avanço tecnológico possibilita a difusão
dos meios de com unicação de massa, e com isso a padro­
nização tende a se reforçar ainda m ais.7
Cada grupo social, embora tenha características próprias, está
inserido em um agrupamento maior que, por sua vez, faz parte
de outro ainda maior, até chegar ao grupo total, que chamamos
“mundo”. O encolhimento do planeta numa aldeia, com o en­
curtamento das distâncias e as facilidades de comunicação, é um
fenômeno do século 20 propiciado pela ciência, que influi deci­
sivamente na história de cada povo e lugar. De repente, a afirma­
ção de que o que eu faço no meu lugarejo tem conseqüências
para toda a humanidade deixou de ser mera retórica ou princí­
pio filosófico. O homem social emerge no século 21 não por
escolha própria ou pelo progresso filosófico da humanidade, mas
por não conseguir simplesmente fabricar a sua privacidade, ex­
posto como está pela era da eletrônica.
Assim, para se compreender a cultura de um determinado
lugar não basta conhecer os sistemas locais, é preciso também
observar as características dos círculos superpostos de influência
a que está exposta. Se observarmos um bairro da cidade do Reci­
fe, por exemplo, encontraremos ali, sucessivamente, característi­
cas da cidade, do Estado de Pernambuco, do Nordeste, do Bra­
sil, da América Latina, do Terceiro Mundo, da Civilização Oci­
dental (cujo sistema capitalista estabelece os limites culturais de
todo o seu universo) e finalmente do mundo.
Essa interdependência cada vez maior dá à cultura uma
dim ensão fluida, dinâm ica, perante a qual as instituições,
inclusive a Igreja, precisam se adaptar. O grande desafio da
34 UM JUMENTINHO NA AVENIDA

Igreja é sobrepor-se aos esquemas rígidos e às teologias estáticas


e preparar-se para ser sal e luz num mundo constantemente em
mudança, mantendo sua ligação com Cristo e a fidelidade à
Palavra de D eus.8

Costumes e costumes

— Que abominável terra é Bassorá — exclamava ele. —


Recusam-me mil onças de ouro sobre o melhor penhor
do mundo.
— Mas sobre qual penhor lhe recusaram essa importân­
cia? — perguntou.
— O corpo de minha tia — respondeu o egípcio. — Era
a mais destemida mulher do Egito. Acompanhava-me a
toda parte e morreu no caminho. E agora uma das mais
belas múmias que possuímos, e na minha terra obterei
tudo quanto quiser, empenhando-a. É espantoso que aqui
me recusem mil onças de ouro sobre tão valioso penhor.9

O episódio acima, extraído da obra de Voltaire Zadig ou O


Destino, além de ilustrar a existência de diferentes costumes
em diferentes lugares, demonstra a tendência do cidadão em
desvalorizar as culturas que rejeitem os seus valores ou que
apresentem costumes diferentes dos seus.
Algumas vezes, os m issionários envolvidos em missões
transculturais se deparam com costumes bem diferentes dos seus
e precisam tomar decisões sérias e de longo alcance sobre normas
doutrinárias, organização de igrejas e postulados éticos. Isso
exige deles sabedoria cristã e discernimento do Espírito. As
situações a seguir são alguns exemplos de costumes diferentes de
outros povos:
N o Zaire, entre a tribo dos ngbaka, os presbíteros da igreja
se recusaram a atender ao apelo dos m issionários para que
suas esposas usassem blusas. Posteriormente, os missionários
A MISSÃO INTEGRAL DA IGREJA E A CULTURA

descobriram que apenas as prostitutas se vestiam dessa forma,


pois tinham dinheiro para comprar roupas melhores.
Num a tribo do México, duas missionárias recém-chegadas à
região tiveram sua reputação abalada por tomarem, no café ma­
tinal diário, um copo de limonada, bebida considerada por aquele
povo como um poderoso anticoncepcional.
N a África do Sul, as mulheres costumam se cumprimentar
com um beijo na boca; na Rússia, são os homens que se cumpri­
mentam assim. N a África, as pessoas costumam dançar durante
os cultos cristãos. (Graças a Deus, hoje se dança cada vez mais
nas igrejas evangélicas brasileiras).
Os esquimós têm alguns costumes bem estranhos aos nossos
olhos. Eles oferecem suas esposas aos visitantes como demons­
tração de hospitalidade; os seus velhos se suicidam quando já
não podem trabalhar e se um filho de determinada família é
assassinado, os pais do morto adotam o assassino, que toma o
lugar do filho e assume todos os seus direitos e deveres.
O etnocentrismo cultural — tendência a considerar as carac­
terísticas de sua própria cultura como parâmetro para todas as
dem ais — tornou o m ission ário transcultural m ais um
transplantador cultural do que um proclamador das boas novas.
O protestantismo brasileiro inclui vários ritos, símbolos, organi­
zações e costumes decorrentes da fase de implantação missionária,
què carregam fortes marcas de uma cultura estrangeira. Só re­
centemente é que a questão cultural começou a receber a devida
atenção por parte das instituições missionárias.
N a consulta sobre evangelho e cultura promovida em 1978
pelo grupo de teologia e educação da Comissão de Lausanne, há
a seguinte afirmação: “Salientamos que é preciso deixar a igreja
se naturalizar, e celebrar, cantar e dançar o evangelho em seu
próprio meio cultural” . 10 Logo a seguir, porém , há um a
UM JUMENTINHO NA AVENIDA

advertência sobre os riscos do sincretismo e do provincianismo,


existentes em toda tarefa de contextualização do evangelho.
Saber como e a que se adequar, ou, em outras palavras, descobrir
os limites do processo de contextualizaçao, é tarefa que exige
certo discernimento e o estabelecimento de alguns critérios.
Distinguir o essencial do acidental, o eterno do temporal, o prin­
cípio ético da norma legal, não são tarefas aleatórias, norteadas
pelos caprichos de um grupo qualquer. São funções de uma Igre­
ja que quer continuar sendo Igreja de Jesus Cristo, submissa ao
Espírito.11
O homem em sua dignidade última deve ser o critério máxi­
mo para a verificação dos valores, crenças e costumes de um de­
terminado povo. Tudo que promove e constrói o homem deve
ser conservado, celebrado e assimilado pelo evangelho; tudo que
destrói o homem deve ser denunciado e abandonado. Isso re­
quer um a d efinição de hom em fora dos h um anism os
reducionistas, que não limite a tarefa da Igreja a uma dimensão
meramente social. O homem a ser promovido é aquele criado à
imagem de Deus, à semelhança de Jesus Cristo, sob a direção do
Espírito.

A Igreja

A Igreja como propósito de D eus carrega uma dimensão


transcendental e transcultural, mas, como comunidade de ho­
mens, só existe efetivamente numa situação histórica e cultural.
Por ter nascido da vontade de Deus, a Igreja é santa, mas como
comunidade dos homens, é pecadora. A Igreja traz em si mesma
as marcas da ambiguidade humana e as manchas resultantes do
pecado. Por isso, toda a sua proclamação se resume na graça,
dentro de uma postura de humildade. Eis porque a sua primeira
A MISSÃO INTEGRAL DA IGREJA E A CULTURA

tarefa é para consigo mesma: a Igreja deve reconhecer a sua


ambigiiidade e viver em constante autocrítica e conseqüente
arrependimento.
Perante o fato cultural, a Igreja deve reconhecer antes de tudo
a exigên cia de D eu s no sentido de estabelecer um a
contracultura.12 O primeiro e único propósito da Igreja é a dife­
rença (santidade) e não a semelhança (sincretismo). Sua confis­
são de fé (credo) e seus valores devem oferecer uma alternativa
definitiva às crenças e valores ambivalentes de sua cultura. A
santidade da Igreja, portanto, é o limite absoluto de toda e qual­
quer contextualização.
A santidade (separação) da Igreja, entretanto, não é um fim
— é o meio para a redenção do mundo. Para ser relevante, a
Igreja precisa estar vinculada culturalmente. Como sal, deve não
só preservar o sabor, mas também difúndi-lo. Para isso, precisa
participar da realidade à sua volta, misturar-se a ela para redimi-
la. Em sua busca de santidade, sua e do mundo, deve identificar
permanentemente as convergências e as divergências entre seus
valores e os valores do mundo.
O que precisa ficar claro é que a busca pela contextualização
não significa uma redução ou identificação cultural, mas a ple­
nitude do evangelho pela pertinácia de sua experiência de santi­
dade. O que fazer com uma Igreja que sacrificou a pertinácia por
causa do zelo pela santidade, ou que ao “defender” o evangelho
sacrificou a plenitude? Para trilhar o caminho de volta ela precisa
antes de tudo confessar sua culpa e admitir seu estado. Essa é
uma caminhada que deve ser empreendida cuidadosamente, passo
a passo. Não se pode reverter de um momento para outro um
processo histórico consolidado há séculos, que defende uma
missiologia etnocêntrica, individualista e intimista. Novamente, a
invocação da senhora prudência de quem, talvez, não queria
assustar demais as estruturas.
UM JUMENTINHO NA AVENIDA

Há três dimensões principais da Igreja que devem encontrar


sua expressão máxima na cultura onde está inserida: a proclamação
da redenção total do homem e sua história (kerigma); o serviço
ao homem e à comunidade (diakonia) e a celebração da vida e do
amor em Cristo (koinonia). Essas dimensões são interligadas e
interdependentes, de modo que uma não pode existir sem a outra.
A proclamação do evangelho (kerigma) é o anúncio de que o
substrato demoníaco, determinista e corrosivo da cultura dos
homens foi derrotado pela cruz no calvário.
O deslocamento do centro de poder da cultura, consumado
pelo sacrifício redentor de Jesus Cristo, é o sentido pleno da
palavra exorcista, pronunciada em alta voz pela Igreja perante os
poderes e potestades deste mundo.13 De fato, a substituição dos
poderes do mundo pelo poder de Jesus Cristo é a tarefa primor­
dial da Igreja, à qual deve se adequar em todas as suas dimen­
sões. A Igreja deve dirigir todas as suas baterias na luta contra o
mal em sua essência diabólica, voltando-se mais para a questão
das causas do que das conseqüências (Ef 6.12).
A proclamação no âmbito cultural é a oposição declarada e
sistemática a todo e qualquer determinismo, seja social, político,
econômico, psicológico ou religioso. O evangelho é o anúncio
da graça de Deus em Jesus Cristo, que liberta o homem de todo
e qualquer “poder”.
O serviço ao homem e à sua comunidade (diakonia) e a cele­
bração da vida e do amor em Cristo (koinonia) são as duas di­
mensões concretas que dão corpo à sua proclamação (kerigma).
Ambas são demonstrações visíveis da existência da graça na vida
e no serviço da Igreja. Sem isso qualquer proclamação carece de
autoridade. As boas novas da mensagem de libertação são trans­
mitidas pela novidade de vida e pela disposição em servir, ou
seja, pelo novo poder que emana da Igreja: o poder de viver e de
amar em sua plenitude.
A MISSÃO INTEGRAL DA IGREJA E A CULTURA | 39

Se o kerigma considera as causas, a diakonia trata das


conseqüências. Restaurar o homem e a cultura, atingidos pelo
pecado, em sua dignidade última, é a tarefa da Igreja. Isso
implica a identificação de carências e necessidades, a escolha de
prioridades, o estabelecimento de critérios para as suas ativida­
des e o planejamento e execução de um programa de ação eficaz.
A koinonia é a experiência do encontro (com Deus e com os
homens, através de Jesus Cristo) e da antecipação do Reino de
Deus, encerrando assim um elemento de alegria e festividade. O
homem é um animal lúdico, festivo, o que está explícito tanto
em sua atividade cultural como em sua experiência religiosa. O
lúdico é o ponto de encontro por excelência entre Igreja e cultu­
ra. A koinonia se torna plena ao assumir a forma legítima de
expressão da alegria humana e ao oferecer alternativas às formas
que diminuem e desvalorizam o homem. O Reino de Deus é a
alternativa absoluta a toda alegria humana.14
A im ersão no m undo para com preendê-lo m elhor e
contextualizar a mensagem, pode ser processada em pelo menos
três níveis de participação, que podem ou não coexistir.
N o primeiro nível — a pesquisa de gabinete — busca-se o
auxílio das ciências humanas para uma melhor compreensão dos
mecanismos históricos, dos macrossistemas e da tipologia hu­
mana. N o segundo nível — a observação de campo — busca-se
de maneira formal ou informal a apreensão da realidade menor
através da aplicação sistemática de técnicas (formulários, dinâ­
micas participativas, etc.) ou dos contatos informais. Por fim, no
nível que podemos chamar de participação dialógica, a partici­
pação não acontece apenas através de contatos esporádi­
cos nas atividades com uns de trabalho ou lazer, mas no
cotidiano comum, em um projeto partilhado de transformação
de m icro-estruturas próxim as e das m acro-estruturas que
as determ inam .
UM JUMENTINHO NA AVENIDA

Base bíblico-teológica

Jesus Cristo
O modelo de contexrualização da Igreja é a encarnação de Jesus
Cristo (Jo 1.1-14). “Ele habitou entre nós” (Jo 1.14; literalmen­
te, ele “tabernaculou” ou “montou sua tenda”): essa expressão
bíblica aponta ao mesmo tempo para a transcendência de Jesus
Cristo e para a sua plena participação na história dos homens.
Esse “encontro cultural” é a plena revelação de Deus e a plena
revelação do homem em sua dimensão histórico-social.
Examinaremos a seguir rapidamente alguns aspectos do
comportamento de Jesus Cristo relevantes para a Igreja de
nosso tempo.

O aprendiz da Palavra e da cultura


Jesus era um leigo, no sentido de que não teve formação aca­
dêmica ou teológica, mas desde cedo (Lc 2.41-52) demonstrou
profundo interesse pela Palavra de Deus. Seu conhecimento das
Escrituras levou-o a enfrentar os perplexos doutores da lei, os
escribas (Mt 15.1-6; Lc 10.25-37; 20.39-44). Ao mesmo tem­
po, era um atencioso observador da natureza e da história dos
homens, de modo a extrair a mensagem do Reino de aconteci­
mentos corriqueiros, das flores e das aves, do trabalho do agri­
cultor (Mc 4.1-9), da dona de casa (Mt 13.33) e da fuga do
filho do fazendeiro (Lc 15.11-32).15
Assim como Jesus Cristo, a Igreja deve viver o permanente
aprendizado da Palavra e da cultura.

O rabino itinerante contador de histórias


Para realizar o seu ministério, Jesus escolheu o modelo co­
mum, na época, de rabino itinerante. Seu estilo de pregação,
lírico e poético, era reforçado por imagens tiradas da vida
cotidiana. Raram ente assum ia uma postura catedrática,
A MISSÃO INTEGRAL DA IGREJA E A CULTURA j 41

preferindo ensinar através do diálogo e das parábolas, pequenas


histórias carregadas de cor e significado. Era mais um contador
de histórias do que um orador.
Como itinerante, ao mesmo tempo em que afirmava a sua
liberdade, aumentava a sua mobilidade, participando de forma
mais efetiva de uma cultura variada e multiforme.
Ao contar histórias, Jesus valorizava a vida do povo como
portador de mensagens e lições do Reino, e criava uma identida­
de e uma base comum para o diálogo, abrindo espaço para que o
novo — a presença do Reino de Deus — se estabelecesse concre­
tamente no antigo — a existência cotidiana do povo.
Atualmente, uma Igreja itinerante seria aquela sem estruturas
rígidas, capaz de mobilizar-se em várias direções em função do
seu ministério e em obediência ao Espírito.
Uma Igreja contadora de histórias seria aquela que participa
da história, que cumpre sua missão e procura despertar o povo
para a possibilidade da inscrição do Reino de Deus em seu
dia-a-dia.

O participante da festa e do sofrimento humano


O comportamento lúdico de Jesus é um aspecto de sua vida
pouco enfatizado pelos teólogos. A primeira aparição pública de
Jesus foi num casamento, onde o encontramos não como ofici-
ante da cerimônia, mas como provedor do vinho (Jo 2.1-12).
Seus adversários costumavam acusá-lo de participar de festas de
pecadores (Mt 11.19; Lc 5.30) e seus discípulos formavam um
grupo irrequieto e barulhento, a ponto de incomodar a piedade
ascética dos escribas e fariseus (Lc 5.33-39).
A valorização das festividades cotidianas é demonstrada
através da utilização de imagens das celebrações do povo para
caracterizar o Reino de Deus (Lc 15.6, 9, 22-24; M t 8.11; 22.2;
25.10). A multiplicação dos pães, uma antecipação do Reino, é
UM JUMENTINHO NA AVENIDA

descrita de maneira viva e colorida, deixando perceber todo o


regozijo e comemoração daquele momento simbólico.
Jesus certamente participou das alegrias do seu povo, mas
participou muito mais dos seus sofrimentos. Nos dois casos, ele
foi movido por sua empatia — a capacidade de participar dos
sentimentos de outra pessoa. Ele foi o “homem de dores”(Is 53.3)
que foi tentado “em todas as coisas” (Hb 4.15). A cruz foi o
resultado final de sua missão, a consumação do seu sofrimento.
Na alegria ou na dor, Jesus Cristo é o que dá significado e
sentido à vida. Ele é o noivo, o motivo de toda alegria (Lc 5.34;
Jo 3.29), e também o médico, que cura as feridas do povo
(Mc 2.17). A cruz, colocada no centro de sua mensagem, é a
própria redenção do sofrimento, enquanto meio de redenção do
outro, e a ante-sala da ressurreição.16
A participação de Jesus Cristo na cultura nunca teve o signi­
ficado de conformismo; ao contrário, possibilitou o aperfeiçoa­
mento e a libertação da cultura. Quando a Igreja participa da
cultura ela cresce e ao mesmo tempo isso contribui para libertá-
la de seus determinismos redutores, abrindo-lhe a possibilidade
de sair de si m esm a ao acrescentar-lhe um a dim ensão
transcendental.

Teologia e cultura
Para compreender a revelação, a teologia precisa recorrer aos
elementos (símbolos e sinais) culturais carregados de significado
próprio, que entram num processo de interação com o dado
revelado. Como não há revelação fora da cultura, o que ocorre
de fato é o intercâmbio cultural no sentido de significado, que
contribui para o enriquecimento da própria revelação. Tendo em
vista que nenhuma cultura em particular esgota o conteúdo da
revelação, a teologia permanece sempre aberta a novas épocas e
culturas.
A MISSÃO INTEGRAL DA IGREJA E A CULTURA

Um exemplo desse encontro intercultural em nível de


significado ocorre logo no início do Evangelho de João, quando
a palavra logos, de riquíssimo significado na filosofia grega, é
usada para o “Messias” judaico, trazendo conotações helenistas,
mas acrescentando-lhes um novo sentido. (Lembramos aqui os
estudos cada vez mais freqüentes que mostram essa palavra em
uma perspectiva muito mais judaica do que grega.) Sempre que
a revelação entra em contato com uma nova época ou cultura,
adquire uma nova ênfase ou dimensão.

A questão da linguagem

A mensagem cristã inclui algumas palavras que carecem de sig­


nificado para as pessoas que não fazem parte do seu círculo de
influência (às vezes até mesmo para aqueles que fazem parte).
Como resolver essa questão?
Em primeiro lugar, precisamos verificar se as palavras e expres­
sões usadas pelos cristãos encontram correspondência dentro do
universo significativo dos ouvintes de determinada cultura.17
Em segundo lugar, precisamos identificar as palavras e ex­
pressões pertencentes à nossa herança histórico-teológica, e que
provavelmente são insubstituíveis. Se tais palavras realmente não
fazem sentido para os interlocutores, a solução não está em
abandoná-las ou substituí-las, mas procurar explicá-las de forma
minuciosa, usando todos os recursos existentes.
H á inúmeras palavras (algumas de difícil compreensão para
os leigos) que identificam e caracterizam a Igreja. Sem elas, a
Igreja perde suas características distintivas. De certa forma, essas
palavras estão incorporadas à própria caminhada da Igreja, e não
podemos dispor delas sem que haja perdas irreparáveis.
Em terceiro lugar, o mais importante é a transmissão do
significado. H á palavras e expressões que não encontram
44 UM JUMENTINHO NA AVENIDA

correspondência real em determ inadas culturas. Em casos


assim, a questão é transportar a nova palavra e seu significado
para outras culturas, tom ando cuidado para evitar que na
busca por clareza (desejável), o conteúdo se perca.18
Uma das tarefas da Igreja é facilitar o acesso de todas as
pessoas às suas palavras. O evangelho é o anúncio de novas
palavras, plenas de significado e de alegria, à velha ordem
social.

0 quê, quando e como

3 Só existe evangelho, no sentido pleno, dentro de uma


cultura específica, ou seja, contextualizado.
3 A contextualização é tarefa da Igreja como um todo e de
cada congregação local, sob a direção do Espírito.
3 Toda cultura é fluida, portanto o risco de sincretismo
não deve levar a Igreja ao imobilismo ou ao retrocesso.
3 A santidade é a condição de existência da Igreja. A Igreja
só pode mudar até o limite da sua santidade ou para
vivê-la de forma mais plena. A Igreja só deve mudar para
ser ou permanecer como é.
O Contextualizar o evangelho significa também abrir
espaços na Igreja (organização e liturgia) para os
culturalmente marginalizados (ou dominados).
3 A imersão da Igreja no mundo em que está inserida e no
seu século é um requisito para toda contextualização.
3 A Igreja deve se informar sobre as atividades do povo: o
que o povo está lendo, ouvindo, vendo, brincando,
comprando, etc. e descobrir o que está sendo proposto
por trás disso.
3 A Igreja deve exorcizar a cultura de todo o seu substrato
demoníaco.
A MISSÁO INTEGRAL DA IGREJA E A CULTURA | 4 5

O A Igreja deve concretizar de forma sábia a sua missão de


serva.
O A Igreja deve viver a alegria do Reino (koinonia) como
alternativa ou significado pleno da alegria humana.
3 As ciências humanas podem servir de auxílio para a
compreensão do homem e do mundo, mas somente a
Palavra de Deus é capaz de responder às necessidades do
homem.
3 A encarnação de Jesus Cristo é o modelo de toda
contextualização.
3 Como Jesus Cristo, a Igreja deve viver um permanente
aprendizado da Palavra e da cultura.
3 Como Jesus Cristo, a Igreja deve ser livre para mover-se
em várias direções, em obediência ao Espírito.
3 Como Jesus Cristo, a Igreja deve participar das alegrias e
dos sofrimentos dos homens.
3 Não há revelação fora do âmbito cultural; sempre que a
revelação entra em contato com uma nova cultura ou
uma nova época, ganha um novo significado e uma nova
dimensão.
3 A linguagem deve servir para transmitir significado, não
para escondê-lo, mas em momento algum devemos
sacrificar o conteúdo da mensagem na busca por clareza.
O O evangelho é o anúncio de novas palavras à velha
ordem social.
ANEXO

Cultura e contextualização

“Tudo que nós faz pra ser o que nós é”

H erm enegildo Sales Santos é um personagem criado para


veicular ou debater algumas idéias. Trata-se de um sertanejo
de quarenta e poucos anos, que migrou para a cidade há mais de
vinte anos. Logo que chegou, converteu-se ao evangelho, por
influência de uma tia. E inteligente, alfabetizado (aprendeu a
ler e a escrever), mais ou menos politizado e um crente fervoroso
da Assembléia de Deus. Ainda carrega um jeito de gente da roça,
embora já tenha assimilado parcialmente a cultura da cidade.
Sua linguagem revela um pouco desse processo de aculturação:
seu português é mais urbano do que o de seu primo, Zé da Lua,
agricultor de Catolé da Rocha, PB, porém sua fala apresenta
vários modos diferentes de linguagem e algumas construções e
imagens típicas do sertão.
Solteirão convicto durante muitos anos, Hermenegildo ca­
sou-se recentemente com dona Maria da Penha, uma professora
carioca, com quem vive um amor não isento de conflitos, ocasi­
onados pela diversidade de experiência cultural.
Outros dois personagens fazem parte do seu mundo: o dou­
tor Teles, um jovem engenheiro, ateu convicto, chefe de
Hermenegildo na repartição, e seu primo Zé da Lua, um autên­
tico sertanejo (daqueles que não dispensam uma boa prosa), dono
de uma linguagem colorida e agradável.
Eu também faço parte desse grupo. Meu personagem é o
pastor de uma pequena igreja tradicional, um homem aberto,
A MISSÃO INTEGRAL DA IGREJA E A CULTURA j 47

que procura conhecer e respeitar o ponto de vista de outras


pessoas. Por isso, seus diálogos nunca são conclusivos. As idéias
são apresentadas e defendidas pelos personagens de maneira limpa
e honesta, cada um dentro do seu próprio universo. O pastor é
questionado e desafiado seriamente por Hermenegildo, o que o
leva a repensar e refazer alguns dos seus conceitos.
A seguir, relatamos duas situações que ilustram os temas abor­
dados neste trabalho. A primeira está relacionada às diferenças
culturais e a segunda à questão da linguagem, um dos tópicos
abordados levemente neste trabalho.

Hermenegildo e o desafio da cultura


E stavam todos lá, no Engenho do M eio, na casa de
Hermenegildo: Penha, a professora com quem ele havia se
casado, Teles, seu chefe na repartição, um ateu convicto, Honório
e mais dois membros da igreja de Mené, que saíram antes de
iniciarmos a conversa, e Zé da Lua, seu primo agricultor, que
mora em Catolé do Rocha, no Estado da Paraíba.
Aproveitei para puxar conversa com eles sobre cultura, como
gosto de fazer todas as vezes que tenho de apresentar alguma
palestra que considero difícil.
Zé da Lua logo me interpelou, naquele seu jeito de falar:
— Seu “pastô”, deixe eu “preguntá” torto pra “mode” o se­
nhor “aprumá” ... “Cume” que um “pastô curto e adeplomado”
como “vosmicê” pede “prum” matuto que nem eu “falá” de
“curtura” (coisa que eu num tenho)? “Home”, deixa a dona Pe­
nha, o doutor Teles e até o Herme (é assim que ele se refere a
Hermenegildo) “falá” que eu vou ficando “queto” no meu canto,
só “obseivando”...
Expliquei com cuidado que cultura, fora da definição
popular, inclui o produto da atividade, ou mesmo a própria
48 UM JUMENTINHO NA AVENIDA

atividade, em sua variedade e complexidade; é o conjunto de


símbolos, crenças, valores e costumes que dá identidade a um
povo, em determinado tempo e lugar. A seguir perguntei se ele
havia entendido.
— Acho que “intendi” , seu “pastô”! É tudo que nós faz pra
ser o que nós é... “Oxen”, desse jeito “inté” eu sou “curto”!
Em seguida, pedi que contassem alguma experiência boa
que havia acontecido com eles fora da Igreja e do evangelho.
Hermenegildo foi o primeiro a responder, com ar desconfia­
do:
— “Pastô”, o senhor “tá” querendo demais. Fora da igreja e
do evangelho num tem nada que preste!
— Calma, amorzinho! — interveio Penha. — Deixe o pesso­
al falar!
— Deixa disso, Herme — falou Zé da Lua. — Tem coisa boa
fora da lei! Nós “mermo”, num “entramo” na lei, mas “temo”
muita fé!
— Sim — replicou Hermenegildo — vocês têm fé... fé no
“Padim Ciço”!
— Fé em Jesus “tomem”... E nós tem fé no “Padim Ciço”
pruque ele teve fé em nós...
O Teles também quis dar a sua opinião, comentando que há
muita amizade fora da igreja (de vez em quando ele menciona
esse assunto).
— Toda sexta-feira à noite nós saímos com um grupo de
amigos.
— Pra beber cachaça... — condenou Hermenegildo.
— Tem muito mais do que cachaça nos nossos grupos. Tem
boa conversa, altos papos, muita camaradagem, muita música,
pouca besteira!
— Herme — provocou Zé da Lua, — quando tu “tava” com
nós, tu “tomem” tomava da “marvada” ... Se num “sesse” a
A MISSÃO INTEGRAL DA IGREJA E A CULTURA 49

“marvada”, o “pessoar” da roça não “guentava” o pesado da vida...


Teles e Zé mencionaram mais algumas coisas boas do seu
mundo (às vezes sob a condenação impulsiva de Mené): os pas­
seios com a família, o jogo de futebol no domingo, a praia, o
cinema, a T V (a “janela do diabo” , interrompeu Hermenegildo),
as rodas de “causos”, as festas, as novenas, os mutirões, os violi­
nos do Zé. Resolvi lançar outra pergunta:
— O que o pastor deve fazer para conhecer melhor as pessoas
(não-crentes) que moram nas proximidades da igreja?
— Ver novela — respondeu Teles imediatamente, olhando
de forma provocativa para Hermenegildo, que quase pulou da
cadeira.
— Se o senhor quiser perder o seu tempo ouvindo todo dia
os conselhos de Satanás, pode assistir... Só tem uma coisa: a gen­
te ganha o pecador orando e jejuando, não se ajoelhando todo
dia diante dos ídolos da televisão! “Num” chamam eles de ídolo?
Pois gostar de ídolo é idolatria...
Foi só mexer na novela para Penha se remexer na cadeira:
— Amor, também não é assim! A novela, muitas vezes, retra­
ta a vida real e até ajuda a criticar algumas coisas erradas...
— Só sei, pastor, — continuou Teles — que todo o mundo
está assistindo novela. Se alguém quer saber o que o povo pensa,
deve ver o povo vê. Se o que o “ irm ão” (referindo-se a
Hermenegildo) falou é verdade, se o senhor tem que falar todo
domingo contra Satanás — ajuntou ironicamente — é bom ou­
vir o que ele anda dizendo durante a semana pra responder di­
reito no domingo. Eu acho que o senhor precisa tirar um tempo
pra ver essa novela das oito... Tem uma vantagem: novela é tudo
igual, basta assistir um capítulo de vez em quando para saber
tudo o que está acontecendo.
Zé da Lua, a essa altura, estava doido para falar, e falou:
—■ Pra conhecer nós da roça tem de se “acocorá” no nosso
50 UM JUMENTINHO NA AVENIDA

chão e “prová” do nosso pirão... Sei não, seu “pastô”, eu num sou
de dizer essas coisa, não... Mas com esse seu jeito “manero”, o
senhor “botava” muita gente lá da roça nas “lei”...
As outras sugestões seguiram o mesmo esquema: para enten­
der o povo ele devia descobrir o que o povo assiste, o que o povo
faz, como se diverte, e participar (dentro do possível) de suas
atividades para perceber o seu mundo e multiplicar os contatos
pessoais, através de um diálogo franco e honesto.
Por fim, perguntei o que eles achavam que deveria mudar na
Igreja para que ela se tornasse mais significativa para o povo do
bairro. Hermenegildo foi o primeiro a responder:
— É, pastor, eu acho que a Igreja tem que mudar... Mas com
cuidado... Com muito cuidado! Tem igreja por aí que mudou
tanto que Jesus nem entra mais nela, e tem outras tão severas
que nem Jesus eles deixam entrar... Aliás, pastor, eu acho que
não é a igreja que muda, quem muda é o Espírito; se ele quiser.
A igreja só tem é de obedecer...
Teles, radical como sempre, falou em seguida:
— Tem que mudar tudo! Melhor ainda: acabar com tudo —
provocou mais uma vez — , se é pra continuar tem que mudar. A
começar pelo sermão (Teles vai à igreja de vez em quando). O
pastor fica lá, todo domingo, respondendo a perguntas que nin­
guém faz e gritando coisas que não interessam a ninguém. M a­
tando mosquito (perdoem a comparação) com tiro de canhão e
pescando piaba com arpão... Precisa mudar também a organiza­
ção... Por que ninguém pode discordar de quem está falando lá
na frente, ou mesmo pedir algum esclarecimento? Pastor, com
todo o respeito, o senhor parece aquele sujeito que alugou a
verdade e agora tem medo de perder a concessão... Pra mim,
tem que mudar tudo!
— “Num” precisa “mudá” nada, não— falou diplomaticamente
Zé da Lua — , “tá” tudo muito “bão” do jeito que “tá”. Só tem umas
A MISSÃO INTEGRAL DA IGREJA E A CULTURA 51

“coisa” que eu queria ver nas “igreja” de crente lá de Catolé: viola


e sanfona... Se botasse sanfona e viola nas igreja de Catolé, meu
“Padim Ciço” que me “adisculpe”, mas eu ia “vivê” lá, só pra dar
uma espiadinha!
Penha não abriu a boca. Ela até se preparou pra dizer alguma
coisa, mas Hermenegildo fez um sinal quase imperceptível (creio
que somente eu vi) para que ela se calasse.
Bem, pelo menos na casa de Mené as coisas estavam mudando...

Hermenegildo e a questão da linguagem


Certa vez, o pastor de uma pequena congregação encravada numa
comunidade de agricultores, no sertão do Ceará, convidou-me
para pregar durante quatro dias em sua igreja. Depois de esco­
lher os textos e selecionar algumas ilustrações, estava preparando
o esboço quando lembrei que o pastor havia me alertado que as
pessoas daquela comunidade eram praticamente analfabetas.
Assim, fui até à casa de Hermenegildo pedir-lhe ajuda. Depois
de ouvir com atenção a leitura do texto que eu havia escolhido,
ele coçou a cabeça e comentou, com ar de dúvida:
— Pastor, “num” sei se posso lhe ajudar, não. Faz muito tem­
po que saí do sertão e “num” sei se me “alembro” da “falação” de
matuto. Mas, Zé da Lua, meu primo de Catolé, “tá” aqui e pode
lhe ser de ajuda.
Mené levantou-se, foi lá para dentro e voltou trazendo pelo
braço um sertanejo parecido com ele e mais ou menos da mesma
idade. A diferença é que o sertanejo era mais alto, bem mais
magro e andava meio encurvado (carregando a seca nas costas).
Ele entrou na sala e ficou parado, encostado na parede, rodando
um chapéu de palha nas mãos e olhando desconfiado de um
lado para o outro. Depois que o primo lhe explicou quem eu era
e por que precisava de sua ajuda, Zé da Lua concordou em ser
52 | UM JUMENTINHO NA AVENIDA

meu “assessor lingüístico”, ou “ajudante de palavrório”, como


diria Hermenegildo, ou ainda meu “professor de matutice”, como
diría o próprio Zé. Assim que comecei a leitura ele me interrom­
peu dizendo:
— “Vosmicê” me “adisculpe”, mas eu vou “preguntá” torto
pro senhor me “arrespondê” “dereito”: “Vosmicê” vai lê esse “papé”
lá?... N um sei não... Acho “m ió” o “sinhô” num “levá” nada
pra lê...
— Por que não? — perguntei surpreso.
— Pru nada não, mas é que nos comício lá de Catolé o
“pessoar” da roça “arresolveu” que num vai “votá” em candidato
que fica lendo “papé” no palanque.
Achei melhor acatar a sua sugestão. Deixei o texto de lado e
passei a contar a Parábola do Rico Insensato, mas Zé da Lua me
interrompeu novamente:
— Seu “pastô”, me “adisculpe” a “inguinorança”, mas o que é
“parábla”?
Tentei explicar a ele da melhor maneira possível.
— “T á” muito certo, seu “pastô”, mas acho “mió” “vosmicê”
“entrá” direto no assunto. Comece chamando logo de história,
que essa “tar” de “parábla” nós “num” assunta o que é não. E me
“adisculpe” de novo, seu “pastô”. Eu sou mais “veio” e vou lhe dá
um “conseio”: não vá cheio de “pabulage” e palavreado difícil
que “vosmicê” num arruma muita coisa. Nos “comiço” de Catolé
nós “tomem” “arresolvemo” num “votá” em candidato que fala
difícil. Sabe por quê? Nós “discubrimo” que candidato que nós
num “intende” é candidato que num “intende” nós.
Diante desse comentário, resolvi substituir “parábola” por
“história” e continuei a “tradução” do meu sermão e da Bíblia
para o idioma roceiro de Catolé, esperando que o pessoal de
Macambira, que havia me convidado para pregar, falasse o
mesmo “idioma” de Zé da Lua. Passamos então a discutir o
A MISSÃO INTEGRAL DA IGREJA E A CULTURA | 53

significado da palavra insensato. Fiquei surpreso ao descobrir


que nem mesmo Mené sabia direito o que isso queria dizer. Para
resumir a história, a Parábola do Rico Insensato acabou se transfor­
mando na História do Fazendeiro “Alesado”. Zé da Lua achou
que assim o pessoal entendería melhor, mas Hermenegildo ficou
meio encabulado:
— Não sei não, pastor. Eu conheço o senhor, sei que é um
servo de Deus, mas o senhor não acha que tá exagerando?
Tentei explicar a Hermenegildo que se tratava de uma tradu­
ção dinâmica, mas fui interrompido por Zé da Lua:
— “Vosmicê” me “adisculpe” “outra” vez, seu “pastô”, mas o
“sinhô” não sabe “fazê” rima?
— Sei não... Por quê?
— Por nada não ... É que “sumana” passada apareceu por lá
um “home” “arrecitando” uns “velso” tão bonito que todo mun­
do ficou assim “oiando” ... E sanfona, o “sinhô” toca?
—-Toco não...
— E viola?
-— Também não. Por quê?
— Por nada não, mas se tocasse ... De vez em quando aparece
uns “cantado” por aquelas banda... Cada “velso”! Cada “musga”!...
“Vige”! Não tem quem “assossegue”! Se “vosmecê” botasse os
“velso” que “vosmicê” num sabe “fazê” na sanfona que “vosmicê”
num sabe “tocá”, garanto que todo mundo lá entrava nas lei.
Gradativamente, com o auxílio das “pinceladas” de Zé da Lua,
meu texto foi adquirindo novas formas e mudando de lugar.
Deixou as linhas frias e simétricas da cidade e foi tomando
form as arredondadas, mais prim itivas e cam pestres. Um a
espécie de escultura às avessas.
Aos poucos, fui adaptando todo o meu material ilustrativo ao
universo de Zé da Lua, dando-lhe um aspecto campesino, de
cidade pequena do interior. Um interessante conto de Alphonse
UM JUMENTINHO NA AVENIDA

Daudet, A Morte do Delfim, passou a se chamar A Morte do Filho


do Coronel. Os personagens burgueses de Tchecov se transfor­
maram em “Coronel Tonho”, “Mané da Bodega”, “Doutor Inácio”
e mais alguns fazendeiros, comerciantes e médicos conhecidos
na região. Transformei reis em prefeitos e generais em delegados.
As histórias de guerras, cheias de heroísmos, se transformaram
em histórias de cangaço, e os cangaceiros em heróis ou bandi­
dos, de acordo com a vontade de Zé da Lua.
O trabalho de exegese, porém, foi o mais difícil. Como expli­
car ao povo de Macambira o significado da frase: “O amor de
Cristo nos constrange”(2 Co 5.14)? Curiosamente, Hermenegildo
achou que poderia ajudar.
— É fácil, pastor. O amor de Cristo me “alumia” a alma,
enche o meu coração.
Expliquei a Hermenegildo que não era bem esse o sentido da
frase. Depois de alguma discussão, chegamos a duas traduções.
Descartei a primeira, “O amor de Cristo me avexa”, por achar
que a urgência não fazia parte da expressão, e fiquei com a se­
gunda: “O amor de Cristo me aperreia”, na tradução completa
de Zé da Lua.
Depois de passar um bom tempo traduzindo versículos, textos
e ilustrações, restava ainda a Parábola do Fariseu e do Publicano.
— Valha-me Nossa Senhora! — exclamou Zé da Lua. — Que
diacho é isso seu “pastô”?
Expliquei que fariseu era aquele sujeito que vivia o tempo
todo na igreja, rezando.
— Ao pé do padre? — perguntou Zé da Lua.
— Ao pé do padre — confirmei — O fariseu se considerava
um santo — continuei — e achava que não fazia nada errado.
Estava sempre apontando os defeitos dos outros, querendo
endireitá-los.
A MISSÃO INTEGRAL DA IGREJA E A CULTURA | 55

— E esse “tar” de publicano? — perguntou Zé da Lua.


— Você não sabe o que é? — perguntei um tanto desnecessa­
riamente.
— Nunca ouvi falar... Só se for o capiroto, o demo.
Sorri da idéia de Zé da Lua e expliquei que o publicano era
um homem comum, igual a todo mundo, mas que as pessoas
viam como traidor...
«np /J a» a *}
— Iraido porque?
— Porque ele cobrava dinheiro do povo para dar aos estran­
geiros e ainda recebia suborno... gorjeta...bola... Acho que você
sabe o que é isso, não?
Sim, Zé da Lua sabia.
Eu já estava quase desistindo de encontrar uma “tradução”
para essa parábola quando Zé da Lua exclamou, visivelmente
feliz:
— Seu “pasto”, parece que já assuntei.
E sob os olhares enviesados de Hermenegildo, a Parábola do
Publicano e do Fariseu se transformou em A História do “Fiscá”
e do “Sãocristão”.
Capítulo 3

A DÚVIDA ENTRE “O QUE


FAZER” E “COMO FAZER” 1

O ponto crítico de toda reflexão teológica relacionada à


pobreza é a prática. Temos acumulado estudos e conhecimentos
sobre o tema, mas não temos dado passos convincentes em dire­
ção à prática. A questão relacionada ao que fazer e como fazer
continua sendo um problema para a Igreja, no que diz respeito
aos mecanismos de transformação social para promoção do
pobre e erradicação da pobreza.
Aliás, a extinção absoluta da pobreza deve fazer parte da
missão total da Igreja. Se a Igreja vai alcançar ou não esse alvo e
como vai alcançá-lo, é outra questão. A Igreja precisa encarar a
pobreza como uma indignidade presente na sociedade humana,
que deve ser extirpada de modo radical e absoluto. Essa visão é
que deve nortear sua estratégia, mapear suas atitudes e orientar
sua reflexão.
A consciência de missão leva a Igreja a caminhar em duas
direções: de um lado, em direção à sociedade como um todo,
com suas diversas estratificações e organizações, de outro,
em direção ao pobre concreto. Afinal, a superação da pobreza
UM JUMENTINHO NA AVENIDA

interessa imediatamente ao pobre concreto e compõe a retórica


de toda sociedade, embora muitas vezes se coloque a serviço do
continuísmo e da manutenção da ordem vigente. Ou seja, o
discurso de erradicação da pobreza, na prática, serve para man­
ter as estruturas produtoras da própria pobreza, numa contradi­
ção por si só insustentável.
N a relação com o pobre concreto, a Igreja exerce uma fun­
ção pastoral que não deve se limitar ao anúncio de uma salva­
ção transcendental, depois desta vida. A Igreja deve também
se esforçar para que haja uma transformação total na vida do
pobre, em todas as suas dimensões, inclusive religiosa. Mas,
isso ainda não é suficiente. D e fato, o pobre só será totalmen­
te transformado quando se tornar o agente de sua própria
transformação, quando finalmente estiver inserido na histó­
ria que procura aliená-lo.

Justificativas para a missão da Igreja


Duas razões apenas são suficientes para justificar a missão da
Igreja em relação aos pobres: a própria realidade da pobreza
na estrutura do nosso planeta e a revelação bíblica.
O fato de existirem pobres nesse mundo criado por Deus
é um escândalo insuportável para qualquer cristão e coloca
em dúvida o poder da Igreja como agente de transformação
da história. Esse argumento por si só é suficiente para justifi­
car nossa missão, ou até mesmo para priorizá-la. Entre os
grandes escândalos que sacodem o nosso planeta, o maior deles
é a existência de pelo menos dois bilhões de pobres, sendo
que a metade vive em situação de pobreza absoluta.2 Mas é
na revelação bíblica que encontramos a maior justificativa para
a ação missionária.
A Bíblia nos apresenta um Deus justo e misericordioso,
criador de uma terra pródiga em recursos suficientes para
A DÚVIDA ENTRE " 0 QUE FAZER" E "COMO FAZER" 59

prover o sustento de toda a hum anidade. U m D eus que


tom a o partido do pobre, contra toda injustiça produtora
de m iséria (G n 1.27-31; Êx 2.23-25; Is 58; Am 4.1).
Esse Deus justo escolheu um povo escravizado para servir
como modelo de uma sociedade justa, onde não havería pobres
(Dt 15.4); uma teocracia organizada de modo tribal, sem classes
sociais privilegiadas, com líderes carismáticos consensuais e pe­
riódicos e leis que visavam a igualdade social, privilegiando os
pobres (Lv 25.23-38). O ano de remissão, que acontecia a cada
sete anos, quando as dívidas eram perdoadas, e o ano do jubileu,
quando a terra voltava ao seu proprietário anterior, são alguns
exemplos dessas leis. Porém, houve uma falha no modelo social
de Israel a partir da instalação da monarquia, com seus exércitos
profissionais, e o surgimento da corte que irá formar a estrutura
das classes dominantes.
Foi nesse Israel que não alcançou o propósito de Deus como
sociedade-modelo que Jesus surgiu como Messias restaurador.
Desde o início, ele demonstrou um interesse especial pelos mar­
ginalizados, pelos enfermos e pelos possessos, em particular. Ele
mesmo nasceu em uma família pobre e o seu anúncio do Reino
de Deus incluía a promessa de uma sociedade justa, onde a po­
breza seria extirpada e os pobres restaurados. Ele afirmou que os
ricos estavam distantes do Reino e conclamou-os a dividirem
suas riquezas com os pobres (Mt 19.16-22). Em seu Reino, os
pobres haveríam de sorrir e os ricos teriam o seu momento de
juízo, dor e tristeza.
Logo depois que Jesus ressuscitou e subiu aos céus, seus
ensinamentos estavam bem vividos na memória dos seus segui­
dores. A primeira experiência concreta da Igreja nascente acon­
tece em torno de Jesus e de seus ensinos. A Igreja levou a sério o
desafio dos pobres, e o problema da pobreza foi superado pela
partilha voluntária dos bens. Lucas, quando descreve o início da
UM JUMENTINHO NA AVENIDA

Igreja, menciona, em tom visivelmente ufanista, que “nenhum


necessitado havia entre eles” (At 4.34). Havia pobres em toda a
Palestina, em todo o Império Romano e em todo o mundo, menos
na comunidade formada pelos seguidores de Jesus, que já conta­
va com cerca de cinco mil pessoas.3
Com o crescimento e a expansão da Igreja, cada comunidade
teve que aprender a lidar de forma concreta com a questão da
pobreza, principalmente porque havia alguns ricos entre os cris­
tãos. Apesar das diferenças de enfoque sobre o assunto, as Cartas
de Paulo e João e a Epístola de Tiago4 apresentam alguns pontos
comuns, como o apelo ao compromisso com os necessitados
(pobres) e a convocação à generosidade no partilhar dos re­
cursos (E f 4.28; 1 Jo 3.17-18; T g 2.14-17).
Partiremos dessa dupla justificativa para tratar, nos próximos
capítulos, de uma questão mais imediata, que tem nos causado
muita preocupação: a questão da pobreza no Nordeste do Brasil
e a situação de miséria do nordestino.

Meta missiológica: erradicação da pobreza

Se a meta missiológica, no que concerne à pobreza, é a sua


erradicação, para alcançar esse alvo a Igreja precisa lançar mão de
ferramentas científicas que poderão ajudá-la a analisar a realida­
de (especialmente as ferramentas sociológicas). Ao mesmo tem­
po, deve também dispor do conteúdo da revelação bíblica de
forma holística, estudando a história da Igreja em relação aos
aspectos da justiça social e do desafio da pobreza (principalmen­
te no Nordeste), desenvolvendo estratégias adequadas de ação.
Qualquer análise séria da situação do Nordeste constata que
o problema não está na pobreza em si, mas no empobrecimento
da população. Em outras palavras, a miséria no Nordeste é muito
mais o subproduto de um processo histórico e de decisões
A DÚVIDA ENTRE " 0 QUE FAZER" E "COMO FAZER" | 61

políticas desfavoráveis, do que da escassez de recursos naturais.


O processo progressivo de empobrecimento e favelização do
Nordeste é um componente estrutural inevitável do sistema ca­
pitalista internacional e seu parceiro nacional. Aos interesses de
ambos ajustam-se a estrutura agrária da região, a urbanização
galopante, a morosidade do processo de industrialização e os
conseqüentes problemas sociais.
Para fazer frente a essa realidade, o modo como abordamos a
Bíblia é extremamente importante. Uma leitura fundamentalista,
que ignore o caráter sociopolítico da revelação, ou abordagens
parciais, influenciadas ideologicamente pela teologia da prospe­
ridade ou pelo escapismo embutido na corrente dispensacionalista
pré-milenista, não contribuem para que a Igreja elabore uma
ação afetiva de combate à pobreza.
Ainda no campo conceituai, a questão da pobreza nos desafia
a uma tarefa de resgate histórico. A história da Igreja diante da
pobreza e a história dos pobres diante da Igreja não têm ainda
veiculação suficiente na formação da consciência evangélica.
Wesley e Luther King Jr., por exemplo, estão ausentes das nossas
bibliotecas e os movimentos avivalistas são totalmente ignorados
em sua dimensão político-social. Precisamos resgatar a história
da participação dos evangélicos nos movimentos sociais do Nor­
deste, principalmente no período anterior a 1964, e recuperar a
percepção que a Igreja nordestina tinha, no passado, dos temas
de cunho político-social que enfocavam a questão da pobreza.
Munidos da ciência, da Bíblia e da história, a Igreja nordestina
precisa desenvolver estratégias missionárias de combate à pobre­
za. É exatamente nesse ponto que se localizam as maiores difi­
culdades.
O referencial teológico no qual está incluída a questão da
pobreza é o Reino de Deus. Nesse Reino, todas as limitações,
discriminações e alienações humanas serão superadas. A relação
UM JUMENTINHO NA AVENIDA

da Igreja com o Reino de Deus é dupla: ela existe para ser, ao


mesmo tempo, modelo e agente do Reino. É bom lembrar que
não se trata de um modelo único ou perfeito nem de um agente
único ou perfeito.5 N o entanto, na relação com o Reino, a Igreja
ocupa um lugar especial. Ela foi chamada por Deus, em Jesus
Cristo, para ser o modelo mais explícito e o agente mais lúcido
do Reino de Deus. Assim, a Igreja deve ser o modelo de todos os
modelos e agentes do Reino.
Chamada para ser modelo e também comunidade político-
social alternativa, a primeira estratégia a ser elaborada pela Igreja
é de natureza interna. Pelo menos três itens se impõem a partir
dessa perspectiva: a questão da unidade, do estilo de vida e da
estrutura dos seus grandes sistemas (litúrgico, educativo, missi­
onário, comunitário e administrativo).
A cisão do cristianismo histórico em três blocos — católico,
ortodoxo e reformado — colocou uma fenda no caráter modelar
da Igreja, deixando-a numa situação delicada quanto à busca
concreta pela unidade. A situação ficou ainda mais grave pelo
fato de que essa unidade deveria existir em função da maquete
teológica de Gálatas 3.28: “Não pode haver judeu nem grego;
nem escravo nem liberto; nem homem nem mulher; porque to­
dos vós sois um em Cristo Jesus”.
Enquanto houver dentro de uma mesma igreja, ricos e pobres,
comandantes e comandados; enquanto as mulheres e as minorias
étnicas forem discriminadas dentro da Igreja, a questão da uni­
dade persistirá.
A questão da identidade é uma questão de caráter universal,
porém no Nordeste ela assume uma dimensão premente. A
Igreja atual deve servir de modelo do Reino de Deus. Ou ela
acolhe os pecadores, os marginalizados e os pobres, e leva-os a
uma experiência completa com a graça transformadora de Deus,
ou adota uma estrutura sectária e elitista, um instrumento de
A DÚVIDA ENTRE " 0 QUE FAZER" E "COMO FAZER" 63

manutenção do status quo, justificando a ordem vigente,


discriminatória e opressora. Uma análise imparcial provavelmente
diria que, apesar de ainda conservar alguns sinais da graça de
Deus e do seu Reino, a igreja está contaminada pelos valores
injustos e obscenos desse mundo. É preciso retomar o caminho
de volta.
Uma análise das estruturas da Igreja revelaria, ao mesmo tem­
po, a presença de sinais da graça e dos valores do Reino, mas
com predominância da secularização e da “mundanização”. A
Igreja atual, com seu sistema administrativo fortemente hierár­
quico, seus projetos missionários alienados e alienantes, seu in­
dividualismo sectário, sua liturgia intimista, espiritualizada e
alheia à realidade e seu sistema educacional elitista, reflete muito
mais a ideologia dominante do que a herança bíblico-teológica.
Por tudo isso, antes de tratar da pobreza e dos valores da
sociedade na qual está inserida, a Igreja precisa traçar estratégias
que lhe permitam superar suas contradições internas. Em outras
palavras, a Igreja precisa tratar da questão da pobreza existente
em seu próprio meio e da discriminação do pobre dentro de suas
próprias estruturas.
A Igreja, no entanto, não é apenas o modelo, ela é também
agente do Reino de Deus e, como tal, sua estratégia missionária
deve ser traçada em relação à sociedade da qual faz parte. Cons­
ciente de não ser o único agente do Reino de Deus, a Igreja deve
localizar os instrumentos de combate à injustiça político-social
geradora de pobreza, e identificar aqueles que têm a posse desses
instrumentos dentro da sociedade e aqueles que estão lutando
pelas transformações sociais.
A ação missionária da Igreja é divergente e ao mesmo tempo
convergente em relação à outros agentes sociais. É divergente
principalmente por sua ação evangelizadora ao anunciar a
salvação em Jesus C risto e pela sua postura ética. M as é
UM JUMENTINHO NA AVENIDA

convergente por sua busca pela justiça e pela transformação das


estruturas promotoras de iniquidade. Se a divergência faz parte
de sua identidade e proporciona esperança para muitos outros
agentes sociais, a convergência a exorta para uma estratégia de
participação (fermentação e salinização do Reino, para usar figu­
ras bíblicas). Ao participar do combate à pobreza, a Igreja assu­
me sua condição de serva de Jesus. Mesmo não se calando diante
das opções que excluem a ética, a Igreja admite que é a menos
equipada, nos aspectos político, instrumental e histórico, para
realizar determinadas transformações. Isso pode levá-la a se tor­
nar uma coadjuvante de outros agentes, mantendo, entretanto,
sua postura crítica e sua identidade evangélica.

Meta pastoral: promover o pobre concreto


Ao mesmo tempo em que a Igreja se aplica à sua missão de
erradicação da pobreza, ela se envolve com a questão do pobre.
O que fazer com o pobre enquanto a estrutura de pobreza e
miséria que o produz ainda persiste? Em outras palavras, o que
fazer enquanto o Reino não vem?
A atividade pastoral da Igreja responde a essa pergunta. Faz
parte da missão da Igreja, na luta pela erradicação da pobreza,
promover o pobre concreto, considerado em sua realidade histó­
rica, política, social, emocional e religiosa. Esta é uma das tarefas
primordiais da estratégia da Igreja. Análises cientificamente com­
provadas revelam que o pobre, por si só, não é capaz de iniciar
sua promoção social. Todo processo de transformação social é
desencadeado por um agente externo. Porém, em determinado
momento do processo o pobre passa a assumir a sua própria
promoção. Só a partir daí é que pode ocorrer uma transformação
completa. Assim, uma pastoral adequada não somente promove
o pobre como cria condições para que ele se torne agente de
transformação da sua própria história.
A DÚVIDA ENTRE " 0 QUE FAZER" E "COMO FAZER"

Mas, quem é esse pobre concreto da realidade nordestina?


Essa é uma questão levantada por muitos estudos. Afinal, quem
é o pobre nordestino? Santo ou pecador? Sábio ou ignorante?
Crédulo ou desconfiado? Místico ou secularizado?
Precisamos ter cuidado para evitar os extremos. Para os que
enxergam o pobre como modelo de santidade e sabedoria, só
resta dizer que o pobre nordestino é um modelo de “santidade
pecadora” (não se pode defender o mito do “São Pobre”), de
sabedoria e ignorância. O pobre confia desconfiando, é místico e
secularizado ao mesmo tempo. Pede orações, mas pede também
mezinhas e remédios. Crê em Deus e na Bíblia, mas crê também
no Padre Cícero, na benzedeira e nas crendices populares.
Quando usamos critérios econômicos para definir quem é o
pobre do Nordeste brasileiro a questão se agrava. Tomando por
base o salário mínimo pago a um trabalhador nos Estados Uni­
dos, constatamos que 98% dos nordestinos ganham menos que
isso, o que os coloca na condição de pobres naquele país. Já aqueles
65% que recebem um salário mínimo brasileiro ou menos, esta­
riam numa situação de miséria insuportável (pelo padrão dos
EUA). Mas a situação é ainda pior para aqueles 30% desse imenso
grupo que vivem numa miséria ainda maior, morando em favelas
situadas na periferia das periferias das grandes cidades, nos guetos
e ruas miseráveis, em total desamparo. Ninguém vai até eles.
Nem os políticos, nem as organizações de caráter social, nem os
movimentos populares, nem a Igreja. Subnutridos, doentes, anal­
fabetos, muitos se afogam na cachaça e morrem antes do tempo,
abandonados e esquecidos.
Diante dessa situação, a Igreja precisa tomar duas atitudes: ir ao
encontro do pobre que vive no Nordeste (são mais de vinte
milhões de nordestinos que vivem em situação de extrema
pobreza) e abrir espaço para que o pobre venha até ela. E bom
lembrar que os pobres moram em lugares distantes e de difícil
acesso, e precisam se esforçar para ir até a igreja.
66 UM JUMENTINHO NA AVENIDA

Para se aproximar do pobre, a Igreja precisa abandonar toda


atitude autoritária, triunfalista e paternalista. É junto ao pobre
que a Igreja reencontra sua missão. Se a Igreja se afastar do po­
bre, como afirma Júlio de Santa Ana, entrará num processo de
auto-alienação.6
Portanto, no encontro com o pobre e na busca em promovê-
lo a Igreja reencontra, antes de tudo, sua identidade e função. A
única postura possível diante do pobre é de abertura, de dispo­
nibilidade e humildade.
A humanidade da Igreja também é fruto da sua consciência
de culpa pelo seu fracasso histórico. A Igreja não soube respon­
der ao desafio da pobreza. Sua atuação frente aos marginalizados
pela vida e pela história raramente ultrapassou os limites de um
mero assistencialismo ou paternalismo. As palavras de Gregório
de Nissa, em seu Sermão Contra os Usuários refletem o compor­
tamento de parte dessa Igreja “generosa”:

Talvez dês esmolas. Mas, de onde as tiras, senão de tuas


rapinas cruéis, do sofrimento, das lágrimas, dos suspiros?
Se o pobre soubesse de onde vem o teu óbolo, ele o recu­
saria porque teria a impressão de morder a carne de seus
irmãos e de sugar o sangue de seu próximo. Ele te diria
estas palavras corajosas: Não sacies a minha sede com as
lágrimas de meus irmãos. Não dês ao pobre o pão endure­
cido com os soluços de meus companheiros de miséria.
Devolve a teu semelhante aquilo que reclamaste e eu te
serei muito grato. De que vale consolar um pobre, se tu
fazes outros cem?7

Ao se aproximar dos pobres, a Igreja deve estar consciente de


que talvez tenha frustrado suas esperanças ou oferecido respostas
limitadas aos seus sonhos, dentro de sua dura realidade.
Mas, se a Igreja deve se esforçar para ir até o pobre, ela precisa
de esforço redobrado para permitir que o pobre venha até ela.
A DÚVIDA ENTRE " 0 QUE FAZER" E "COMO FAZER" 67

Esse esforço é necessário, pois apesar de complicar, em todos os


sentidos, a vida da Igreja, a presença do pobre é um desafio
permanente, um sinal profético, uma voz silenciosa que tira
todas as máscaras.
A presença dos pobres na igreja desmascara o sistema de
classes ali reproduzido e questiona a sua estrutura elitista. O
pobre não costuma prestar atenção à pregação, somente às ilus­
trações e testemunhos; seu estilo de música preferido é conside­
rado “brega”; ele geralmente não consegue ler a Bíblia, nem o
hinário nem o boletim dominical. Sentado no banco da igreja,
em seu silêncio e desconforto, o pobre muitas vezes sente que
não sobra espaço para ele nas igrejas.

Momentos concretos da história da Igreja

Para desafiar a prática, recolhemos alguns episódios da história


da Igreja. O primeiro diz respeito à comunidade de Jerusalém,
no início da Igreja. O segundo se relaciona ao movimento
franciscano e às três ordens subseqüentes. Os dois últimos estão
relacionados a duas experiências atuais: a Missão Servos entre os
Pobres, fruto da experiência de Viv Grigg e as Comunidades
Eclesiais de Base. Embora esta abordagem seja inevitavelmente
superficial, é possível perceber em cada experiência tanto seus
pontos positivos como suas limitações, que certamente irão con­
tribuir para nos indicar quais os passos concretos que devemos
tomar.

A comunidade de Jerusalém
A comunidade que vemos surgir na cidade de Jerusalém, capital
da Judéia, situada na região da Palestina dominada pelo Império
Romano, é diferente de todas as outras. Surge a partir da
UM JUMENT1NH0 NA AVENIDA

pregação de um pescador, Pedro, que anuncia a ressurreição de


uma pessoa recém-crucificada a uma multidão que procura ouvi-
lo atraída pelos estranhos fenômenos ocorridos com um grupo
de 120 pessoas reunidas em um cenáculo. Ao terminar sua pre­
gação, cerca de três mil pessoas juntam-se imediatamente ao gru­
po. Logo depois, Pedro e João realizam uma cura na porta do
Templo, e o número de seguidores sobe para mais de cinco mil
pessoas. Quais as características distintivas desse grupo?
A primeira é que eles não saíram de suas casas para formar
uma comunidade à parte, nem construíram edifícios para suas
reuniões de oração, adoração ou ensino. Eles se reuniam no
pátio do Templo ou em suas próprias casas, usando os recursos
já existentes na comunidade. O grupo dos Doze, como eram
chamados aqueles que acompanharam Jesus desde o início de
seu ministério, era responsável pelo ensino e pregação. Aos pou­
cos foram surgindo outros líderes, fruto do discipulado desses
Doze. A estrutura do grupo era fortemente comunitária, com
cultos diários, assembléias periódicas, refeições conjuntas e par­
tilha dos bens. Freqüentemente, havia doações voluntárias de
quantias resultantes da venda de propriedades. Esse dinheiro
era entregue inicialmente aos apóstolos, e usado para suprir
as necessidades do grupo. Posteriormente foram eleitos sete
homens para cuidar da distribuição do dinheiro.
Através do relato bíblico podemos perceber que as questões e
tensões existentes entre eles eram resolvidas pelo bom senso, com
largo espaço para o diálogo esclarecedor.
A principal limitação dessa experiência pode ser sentida na
ausência de uma proposta clara de transformação para a socieda­
de à sua volta. Talvez por um ufanismo messiânico ou uma visão
escatológica imediatista, eles não esboçaram nenhuma outra ação
• além de anunciar o ministério de Jesus e assim incorporar mais
pessoas ao grupo.
A DÚVIDA ENTRE " 0 QUE FAZER" E "COMO FAZER"

O movimento franciscano
O movimento franciscano surgiu no início do século 13, marcado
pelo declínio do sistem a feudal, a partir da progressiva
radicalização do jovem Bernardone, filho de um rico comercian­
te da cidade de Assis, na Itália. Esse jovem decidiu se tornar um
seguidor e imitador de Jesus Cristo, passando a viver na pobreza
e abrindo mão de seus bens em favor dos homens.
Logo outros começaram a imitá-lo, juntando-se a ele em um
casebre na Porciúncula. Francisco e seus seguidores renunciaram
a todo e qualquer bem; praticavam a humildade e o serviço em
solidariedade aos leprosos e aos mais pobres.
A opinião da cidade, no início, era unânime em apontá-los
como doidos, pois não entendia como seres humanos consegui­
am viver em cabana tão pobre como era a deles na Porciúncula.
Aos poucos, porém, novas opiniões começaram a formar-se, es­
pecialmente entre a gente mais humilde. Observaram com mui­
ta atenção o trabalho daqueles estranhos homens, sempre ale­
gres e pacíficos, desenvolvido em favor dos necessitados. Essa
atitude começou a ser encarada com simpatia pelo povo, direta­
mente beneficiado por Francisco e seus companheiros nas mais
diversas tarefas, quer fosse cortar lenha, lavrar o campo, puxar
uma carroça ou podar uma árvore. N o momento preciso mãos
amigas e sinceras vinham em seu auxílio. E os frades nada faziam
por dinheiro. N o máximo aceitavam um pedaço de pão ou um
pouco de água.8
Em uma viagem a Roma, Francisco e seus companheiros con­
seguiram obter o reconhecimento do papa para a sua ordem e
voltaram prestigiados. Logo surgiu uma segunda ordem, femi­
nina, que recebeu o nome de Ordem das Irmãs Clarissas. Sua
fundadora foi Santa Clara que, impressionada com a atitude
de São Francisco, fez também votos de pobreza, castidade e
obediência.
70 UM JUMENTINHO NA AVENIDA

Mas foi com o surgimento da Ordem Terceira que o movimento


se alastrou por toda Europa, revolucionando suas estruturas. Os
membros da Ordem Terceira não precisavam abandonar suas ca­
sas, seus trabalhos ou suas funções. Identificavam-se como se­
guidores de São Francisco e praticavam obras de caridade, sem
procurar por honras pessoais.
Das obrigações dos Terceiros constava a comunhão, ao menos
três vezes por ano: Natal, Páscoa e Pentecoste; a visita a enfermos
e o pagamento de uma cota mensal, proporcional às posses de
cada um, para atender aos pobres e feridos. Não estando obriga­
dos à pobreza, a ela se deviam ligar de coração, e utilizavam-se
de bens materiais com a finalidade exclusiva de meios, jamais
visando à fortuna.9
Uma regra, porém, causou verdadeira convulsão social e aju­
dou a desestabilizar o sistema feudal. Essa regra recomendava
que os membros da ordem não tomassem de outros nem levas­
sem consigo armas ofensivas e se abstivessem de fazer juramen­
tos. Com o decreto do papa Honório III, em 1121, desobrigan­
do os membros dessa Ordem do juramento de vassalagem, cerca
de metade da Itália passou a fazer parte da Ordem Terceira, com
conseqüências catastróficas para o sistema político vigente.
Como elementos positivos do movimento franciscano, podemos
citar a ênfase ou até mesmo a prioridade concedida à pregação e
à formação de comunidades, e a identificação radical de seus
membros com os pobres (as núpcias com a “Senhora Pobreza”).
Por outro lado, a ausência de uma visão crítica das causas
estruturais da pobreza e o possível ascetismo ético, aliado à mor­
tificação da vontade e aos votos de humildade e pobreza, talvez
sejam suas principais limitações.
A bem da verdade, o tão propalado ascetismo de São Francisco
não fica muito claro em suas declarações. De acordo com algu­
mas de suas afirmações, a pobreza seria mais um instrumento de
A DÚVIDA ENTRE " 0 QUE FAZER" E "COMO FAZER" 71

identificação com Jesus do que um alvo desejável em si mesmo.


A pobreza para ele era um instrumento de participação na graça
de Deus. Despojando-se dos bens materiais, ele acreditava po­
der desfrutar melhor dos bens naturais, das dádivas de Deus,
irmanando-se com elas e permitindo que Deus o alimentasse
como aos passarinhos. Além disso, era também uma forma de se
identificar com os pobres e demonstrar seu amor a Deus e aos
homens. Nas palavras de Agostinho:
Senhor bispo, se possuíssemos bens, seríamos obrigados a
possuir também armas para defendê-los e protegê-los. De
toda propriedade resultariam fatalmente discussões com
o vizinho, que prejudicariam o amor a Deus e aos ho­
mens; portanto, para conservarmos esse amor inato e puro,
estamos absolutamente decididos a nada querer possuir
neste mundo.10

A Missão servos entre os pobres


Em seu livro, Servos entre os Pobres, Viv Grigg narra sua busca
paciente e incessante para cumprir uma vocação específica. Foi
com esse propósito que ele deixou seu país, a Nova Zelândia, em
outubro de 1978, e passou a morar na favela de Tatalou, em
Manila, capital das Filipinas.
Viv nasceu na Nova Zelândia, em 1950. Sua sólida formação
cristã, aliada a uma prática missionária baseada no discipulado e
experiência no treinamento de líderes contribuíram para que ele
começasse o seu ministério sozinho, passando, a partir da neces­
sidade de companhia na missão, a engajar outros pastores em
seu ministério.
A Missão Servos entre os Pobres surgiu depois de alguns anos,
com o objetivo de treinar e enviar missionários às populações
carentes da Ásia. Atualmente, há um bom gmpo de missionários
comprometidos com os favelados na Ásia.
72 UM JUMENTINHO NA AVENIDA

O trabalho de Viv Grigg apresenta vários pontos positivos:


forte identificação com os pobres, dentro de uma experiência
transcultural e intersocial; ênfase bíblica, com prioridade para a
evangelização; estrutura comunitária e percepção de um minis­
tério integral. As limitações talvez estejam na ausência de uma
estratégia capaz de provocar mudanças estruturais para a supera­
ção da pobreza, na leitura pessimista e fatalista da realidade (“é
impossível resolver a questão da pobreza”) e em não fornecer ao
pobre os instrumentos necessários para torná-lo agente de sua
própria história.

As Comunidades Eclesiais de Base


N a década de 60 assistimos ao surgimento de um fenômeno
social de repercussão mundial: as Comunidades Eclesiais de Base,
ou simplesmente C E B s. São grupos que reúnem de 15 a 20
pessoas, em sua maioria católicas, em torno da fé cristã e da
realidade circundante. O surgimento das C E B s pode ser expli­
cado, segundo Leonardo Boff, a partir da emergência de três
movimentos eclesiásticos de caráter popular: o Movimento dos
Catequistas Populares de Barra de Piraí, RJ, organizado nos
anos 60 para suprir a carência de sacerdotes na diocese; o
Movimento de Educação de Base (M EB) de Natal, R N , que
uniu evangelização e promoção humana através das escolas
radiofônicas, e os planos pastorais da Conferência Nacional
dos Bispos.11
A tônica das C E B s é a ênfase na participação comunitária e
na ação, em vários níveis, sob a orientação da Palavra de Deus. O
método de trabalho das reuniões se apóia no conhecido tripé
“ver-julgar-agir”, e na tentativa de estabelecer contato entre a
Bíblia e a realidade social. Os círculos bíblicos orientados por
Carlos Mesters são alguns exemplos dessa prática.
A DÚVIDA ENTRE " 0 QUE FAZER" E "COMO FAZER" I 73

Para Leonardo Boff, não se trata de um fenômeno dentro da


Igreja — as C E B ’s são a própria Igreja em sua realidade popu­
lar. Trata-se na verdade de um novo modo de ser Igreja, a partir
da transform ação da m assa em povo — uma verdadeira
“eclesiogênese”.
O ponto positivo das CEB s é a tentativa de trabalhar o po­
bre em todas as dimensões, dentro da comunidade e em torno
da Palavra de Deus. Nas palavras de Leonardo Boíf:
Geralmente o povo parte de uma perspectiva religiosa: a
pobreza que sofre é opressão, que significa pecado e con­
tradição do desígnio de Deus. Depois, passa para uma
visão moral: trata-se de injustiça social, de ganância, de
desejo desordenado de lucro. Em seguida, chega a uma
expressão política: há interesses de classe, exploração, vio­
lação de direitos básicos; e desemboca, finalmente numa
interpretação econômica: dominação de uma classe sobre
a outra, desigualdade de condições e opressão.12

As limitações podem ser encontradas em sua soteriologia


insuficiente, ignorando a questão da salvação pessoal, e em sua
forte estrutura sacramental. Apesar de não usar os sacramentos
oficiais, aparentemente a mentalidade sacramental permanece
como parte integrante e inexpugnável de sua experiência. Pode­
mos citar como exemplo a transformação do pobre numa espécie
de sacramento (“São Pobre”), e a criação de um determinado
modelo de. sociedade, que alguns chamam de “fundamentalismo
de esquerda”.13

O que, quando e como


O A meta máxima da missão, no que concerne à pobreza, é
a sua total erradicação.
O As ciências sociais, uma teologia bíblica adequada e o
conhecimento da história da igreja fornecem
UM JUMENTINHO NA AVENIDA

ferramentas teóricas indispensáveis na elaboração de


uma estratégia prática.
O A Igreja deve ir ao encontro do pobre para reaprender a
ser Igreja.
O A meta pastoral da Igreja é a promoção do pobre em sua
realidade total. O assistencialismo é uma resposta
insuficiente, muitas vezes alienante, que só deve ser
aplicada provisoriamente e em situações muitos
especiais.
O A Igreja deve estar pronta a abrir sua estrutura para
acolher o pobre.
O Para poder acolher o pobre, a Igreja precisa rever sua
liturgia, sua comunhão, seu sistema de educação, sua
estrutura administrativa e sua missão.
O Para cumprir sua missão, a Igreja precisa dar passos
concretos na busca da unidade e da modificação do seu
estilo de vida.
O O anúncio e a vivência da Palavra de Deus devem
constituir o centro em torno do qual gravitam todos os
elementos da missão.
3 A organização de comunidades em torno da Palavra de
Deus e da realidade circundante é um modelo de Igreja
a ser avaliado e aplicado de acordo com a realidade de
cada lugar.
3 A participação da Igreja nos movimentos populares é
fundamental para a ampliação da atividade missionária
na luta por justiça social.
3 Só há inserção na vida dos pobres quando há uma
identificação com os pobres a partir da adoção de um
estilo de vida simples, ou nas palavras de Viv Grigg, a
partir de um “arrependimento econômico”.14
Capítulo 4

A CIDADE DE DEUS
/
NA CIDADE DO HOMEM
Os desafios de uma pastoral urbana

O processo mundial de urbanização

Atualmente, quase metade da população mundial, cerca de três


bilhões de pessoas, vive nas cidades, e esse percentual cresce a
cada ano, com o aumento da população urbana na Ásia e na
África, que hoje corresponde a menos de 40% da população.
Nos demais continentes, a população das cidades se situa em
torno de 75%. No Brasil, cerca de 80% da população é de natu­
reza urbana.
Esse processo acelerado de urbanização não foi praticamente
percebido pela teologia nem pela eclesiologia, e constitui, pro­
vavelmente, o maior desafio evangélico, eclesiástico e pastoral
dos nossos dias. Pastores e líderes de igrejas urbanas, situadas em
cidades com características próprias e visões particulares, trazem
ainda em sua mente uma realidade rural e uma visão eclesiástica
UM JUMENTINHO NA AVENIDA

estreita, herança de uma teologia adequada a outro tipo de


mundo. Pensar a fé evangélica a partir da realidade das cidades é
o grande desafio a ser lançado no momento histórico atual.
Por outro lado, o processo histórico de urbanização tem sido
acompanhado pelo processo sociológico de favelização. A histó­
ria da urbanização é a história da favelização. As cidades regis­
tram geograficamente as contradições históricas e sociológicas
de um sistema social excludente, discriminador e concentrador
de renda. As favelas se erguem não só na periferia das grandes
cidades, mas se espalham praticamente por toda a cidade. Nas
pequenas e médias cidades também encontramos algumas fave­
las, ou pelo menos algumas habitações inadequadas situadas nas
periferias dessas cidades.

Passos para uma pastoral urbana

Concretamente, alguns passos têm sido dados em busca de uma


filosofia voltada para o ministério urbano, resultante de algumas
experiências práticas e reflexões teóricas que estudaram modelos
ou propuseram modelos de ministério adequados a essa nova
realidade mundial. Alguns pontos comuns têm sido levantados
e podemos acrescentar outros como novas possibilidades a serem
exploradas e examinadas. O ponto de partida é a necessidade de
se examinar o fenômeno da urbanização do ponto de vista posi­
tivo (ou no mínimo neutro), ou seja, a necessidade de amar e
celebrar a cidade, vendo-a através da perspectiva do próprio Deus.
Sem deixar de lado a exegese bíblica, ou procurando a ci­
dade bíblica para entender a cidade concreta de hoje, preci­
samos aprender a colocar em prática uma exegese urbana, para
poder conhecer de forma verdadeira e alegre a realidade da
nossa cidade. Essa realidade apresenta pelo m enos quatro
características principais: físico-geográfica, histórico-cultural,
A CIDADE DE DEUS NA CIDADE DO HOMEM

antropológico-sociológica e teológico-eclesiástica. Cada uma


delas exige um tipo de abordagem e apresenta algumas facetas
bem peculiares.
Quando examinamos a cidade nas Escrituras precisamos to­
mar cuidado para não identificá-la exageradamente com as cida­
des modernas, desrespeitando a enorme distância que separa a
cidade bíblica da cidade contemporânea. Cidades como Jerusa­
lém, capital de Israel, com cerca de trinta mil habitantes, Éfeso,
uma cidade portuária com cerca de trezentos mil, ou mesmo a
capital do Império, Roma, com um milhão, apesar de guarda­
rem algumas semelhanças, não podem ser comparadas às
megacidades de hoje, com mais de dez milhões de habitantes.
Além disso, as mudanças estruturais ocorridas nesse período de
dois mil anos colocam novas questões e novos desafios, que não
podem ser explicados apenas por uma comparação superficial
entre a cidade bíblica e a cidade contemporânea.
Por outro lado, não podemos esquecer os pontos comuns en­
tre as cidades contemporâneas e as cidades de todos os tempos.
Respeitar as distâncias e descobrir as semelhanças são duas ati­
tudes igualmente necessárias na abordagem bíblica das cidades.
Com esse cuidado, a relação de Jesus com as cidades concretas,
incluindo Jerusalém, e a visão de Paulo em relação aos cristãos de
Éfeso são subsídios bíblico-teológicos extremamente ricos em
suas definições e sugestivos em suas aplicações práticas.
Entretanto, o estudo da Bíblia voltado para o ministério ur­
bano não pode se limitar ao exame dos significados da cidade
bíblica. A Bíblia, como Palavra de Deus, é uma totalidade
complexa, portanto sua mensagem, em algumas circunstân­
cias, precisa ser adaptada à realidade urbana, mesmo que para
isso seja necessário efetuar uma verdadeira transposição do rural
para o urbano. Tomando como exemplo o Sermão do Monte,
com sua mensagem decisiva para o comportamento cristão,
78 UM JUMENTINHO NA AVENIDA

podemos observar os traços de um ambiente tipicamente rural,


que para ser plenamente compreendido hoje teria de ser trans­
posto para a complexa realidade urbana contemporânea.

Os lugares estratégicos de contemplação


da cidade

O s processos de aproximação da cidade passam pela simples


estratégia de se percorrer suas ruas e avenidas. Para isso precisamos
mudar a velocidade e incorporar uma atitude de contemplação,
andando pelas ruas e avenidas da cidade grande com os olhos e a
mente bem abertos, de modo a perceber a riqueza e a beleza que
afloram de seus tão propalados e aclamados contrastes. Através
desse exercício aprendemos a conhecer e amar a cidade, em sua
realidade complexa, e procuramos enxergá-la com os olhos e com
o coração do próprio Deus.
A expressão “exegese urbana”, muito usada pelos técnicos,
pode mascarar esse processo de envolvimento afetivo/inteligente
com a própria cidade. O aspecto físico-geográfico da cidade não
chega até nós como uma realidade fria e alheia, mas como uma
proposta e um convite de coração para coração. Antes de qual­
quer outra coisa, a cidade é um convite ao deslumbramento, ou
numa alusão a Manoel Bandeira, a um grande “alumbramento”.
O espaço físico da cidade chega aos nossos olhos como a pró­
pria visão da mulher amada em sua deslumbrante e amorosa
beleza.
Descobrir a beleza da cidade não significa andar pelo ambiente
típico dos shopping centers. A cidade não é somente um conjunto de
lojas comerciais, nem tampouco um conjunto de praças, jardins,
avenidas que compõem a beleza evidente e esperada de um
projeto artificial de urbanização. A cidade real também tem suas
favelas, e descobrir a beleza em meio à feiura da favela faz parte
A CIDADE DE DEUS NA CIDADE DO HOMEM 79

do aprendizado de celebração da cidade. Caminhar do shopping


para a favela significa encarar a cidade em sua dura realidade e
aprender a encontrar beleza na favela é um meio de evitar uma
atitude paternalista diante dos excluídos. O processo de ex­
clusão, obviamente perverso e maligno, não consegue destruir
a beleza de uma humanidade que, mesmo sofrida, ainda produz
soluções criativas e desenvolve atitudes solidárias. Se olharmos
com atenção, veremos que há árvores e flores também nas
favelas.
Nosso sistema político-social (isso talvez seja mais evidente
na megacidade) assemelha-se a uma grande máquina de moer
cana. A máquina mói a cana diversas vezes, até retirar dela todo
o caldo. Surpreendentemente, o bagaço que sobra ainda é doce.
A favela é o bagaço da megacidade. Descobrir e provar a doçura
que resiste em meio à situação de miséria e opressão vivenciada
pelos seus moradores deve ser a atitude de quem pretende de­
senvolver um projeto missionário que não vê o excluído como
alguém incapaz ou um simples objeto de nossos cuidados e
soluções pretensamente superiores.
O shopping center e a favela são dois grandes lugares estratégi­
cos para contemplarmos a grande cidade. O shopping representa
um dos grandes templos do sistema capitalista dedicado ao deus
Mamom. Nele está instalada a grande máquina que transforma
gradativamente toda a humanidade em bagaço, sugando-lhe todo
o caldo, a fim de obter o maior lucro possível para benefício de
uma pequena parcela da população, em detrimento da maioria.
A favela representa o próprio bagaço, aquilo que a máquina não
conseguiu moer, e revela a resistência de um povo que luta para
sobreviver a essa tentativa de genocídio sociológico, mas que
apesar de tudo continua doce.
O estádio de futebol é outro lugar estratégico de celebração
da grande cidade, uma espécie de síntese ou encontro do shopping
80 UM JUMENTINHO NA AVENIDA

com a favela em tomo da paixão despertada pelo esporte nas


pessoas de todas as classes sociais. Apesar de separadas fisica­
mente pelo poder aquisitivo — geral, arquibancada, cadeiras —
as pessoas se unem em torno de um mesmo clube, estabelecen­
do algumas estranhas e até então insuspeitas alianças. De vez em
quando, até mesmo a barreira física se rompe, e todos se unem,
antecipando possíveis e impossíveis acordos em torno de futuras
possíveis e impossíveis revoluções. N o estádio as diferenças polí­
ticas, econômicas e sociais são superadas momentaneamente,
dando lugar a novos meios de inclusão social e apontando para
novos canais de comunicação entre os seres humanos.

A cidade de Deus e a cidade do homem

Em seu livro A Cidade de Deus, Santo Agostinho defende o


cristianismo da acusação de que os cristãos seriam os culpados
pela queda de Roma. Esse livro é considerado o primeiro tratado
de filosofia da história. Agostinho procura explicar a história da
humanidade através da metáfora das duas cidades. Toda a histó­
ria seria resultado da tensão entre a cidade de Deus e a cidade do
homem. Quando a primeira prevalece, o amor, a justiça e a ver­
dade se estabelecem, porém, quando a segunda faz prevalecer os
seus princípios, o sofrimento, a fome e a miséria tendem a
destruir a humanidade.
Dois amores fundaram, pois, duas cidades, a saber: o amor
próprio, levado ao desprezo a Deus, a terrena; o amor a Deus,
levado ao desprezo de si próprio, a celestial. Gloria-se a primeira
em si mesma e a segunda em Deus, porque aquela busca a glória
dos homens e tem esta por máxima glória a Deus, testemunha
de sua consciência. Aquela se ensoberbece em sua glória e esta
diz a seu Deus: “Sois minha glória e quem me exalta a cabeça” .
A CIDADE DE DEUS NA CIDADE DO HOMEM

N aquela, seus príncipes e as nações avassaladas vêem-se sob


o jugo da concupiscência de dom ínio; nesta, servem em
mútua caridade, os governantes, aconselhando, e os súditos,
obedecendo.1
Mesmo entendendo essa distinção, é preciso admitir que essa
dualidade levada a termos absolutos acarretou graves prejuízos à
Igreja e à história. Essa filosofia da história, ou teologia da histó­
ria, forneceu o modelo de cristandade para a Idade Média, perí­
odo em que a Igreja deixou sua condição original de serva para se
tornar régia. Contrapor o humano ao divino é estabelecer uma
dicotomia insuperável entre a atividade divina e a criatividade
humana e instaurar suspeita sobre toda cultura popular. Nossa
proposta aqui é afirmar dialeticamente que a cidade de Deus é a
cidade do homem e a cidade do homem é a cidade de Deus,
superando esse fosso histórico entre o sagrado e o profano.
De certo modo, precisamos atualizar a passagem do Antigo
para o Novo Testamento. N a religião judaica o sagrado se definia
geográfica e culturalmente. Havia lugares sagrados, alimentos
sagrados e atividades sagradas. No Novo Testamento as pessoas é
que são sagradas. A pessoa, ou a comunidade de pessoas, é o
templo; todas as comidas são puras e não existe nenhum ritual
com finalidade de santificação ou purificação. Se não nos liber­
tarmos do dualismo sagrado/profano que infesta nossa eclesiologia
e influencia nossa maneira de agir e de pensar, não poderemos
compreender e celebrar a cidade e, conseqüentemente, não po­
deremos responder aos seus apelos.
Quando estudamos a história das cidades, suas origens e
modificações sofridas ao longo do tempo, descobrimos uma re­
lação íntima com a dimensão religiosa. Conform e Lewis
Mumford, o cemitério e o santuário são os antecedentes naturais
da cidade, e estão presentes até hoje em sua estrutura. O santuário
geralmente ficava próximo ao cemitério, já que os mortos eram
UM JUMENTINHO NA AVENIDA

considerados sagrados, e muitas vezes transformados em deuses


ou semideuses que protegiam os familiares.
O primeiro germe da cidade é, pois, o ponto de encontro
cerimonial, que serve de meta para a peregrinação. Sítio ao qual
a família ou os grupos de clã são atraídos, a intervalos determi­
nados e regulares, por concentrar, além de quaisquer vantagens
naturais que possa ter, certas faculdades “espirituais” ou sobre­
naturais, faculdades de potência mais elevada e maior duração,
de significado cósmico mais amplo do que os processos ordinári­
os da vida. E, embora possam ser ocasionais e temporários os
desempenhos humanos, a estrutura que os suporta, quer seja
uma gruta paleolítica, quer seja um centro cerimonial maia, com
sua altiva pirâmide, será dotada de uma imagem cósmica mais
duradoura.2
De acordo com o pensamento de Fustel de Coulange, antes
da fundação da urbe a organização da cidade era de natureza
fundamentalmente religiosa. O sagrado aqui não seria apenas o
antecedente natural da cidade, mas o próprio fundamento da
cidade. A religião doméstica passou por uma ampliação até se
tornar uma religião pública. Famílias, fratrias, tribos e posterior­
mente cidades surgiram em torno de cerimônias religiosas carac­
terísticas, identificando os que faziam parte de determinado gru­
po. Assim como a mudança de família implicava a troca de deu­
ses e o cumprimento de um ritual de natureza doméstica, a
mudança de cidade também exigia um ritual. O estrangeiro,
por conseguinte, não podia participar do culto público nem dos
negócios públicos da cidade. Por ser estrangeiro na cidade, era
considerado também estrangeiro pelos deuses da cidade.
A idéia de que Deus e a cidade partilham da mesma urbe, de
modo que a identificação com a cidade seria uma identificação
com o Deus da cidade, pode servir como proposta para a superação
A CIDADE DE DEUS NA CIDADE DO HOMEM 83

da dicotomia sagrado/profano sem que haja necessidade de


negar essa distinção. Deus é anterior à cidade; quando o homem
chega à cidade, ele pisa o solo sagrado da cidade de Deus. Mas,
como o homem é o fundador da cidade, Deus também pisa nas
ruas da cidade do homem e passeia por elas. Talvez isso seja uma
extensão do mistério da encarnação. N a criação, o homem rece­
beu o jardim como dádiva de Deus; na encarnação de Jesus,
considerada como recriação do homem, Deus passou a habitar a
cidade construída pelas mãos dos homens, transformando-a nesse
grande lugar teológico do encontro entre Deus e o homem.

Aldeias e tribos das cidades

As divergências entre Fustel de Coulange, escritor do século 19,


e Lewis Mumford, do século 20, sobre a origem da cidade, refle­
tem apenas dois tipos de abordagens diferentes. A cidade, consi­
derada por Mumford uma das maiores invenções da humanida­
de, resultaria do desenvolvimento natural da aldeia, enquanto
que para Coulange a cidade seria conseqüência do desenvolvi­
mento da tribo, entendida como ampliação histórica da família.
Usaremos aqui um conceito de tribo bem diferente da tribo gre­
ga descrita por Coulange ou de outra tribo histórica. O conceito
empregado por nós está mais relacionado a um grupo de guer­
reiros indígenas do que à complexa organização tribal de qual­
quer época.
A aldeia pode ser entendida como uma invenção feminina do
período neolítico. Durante esse período matriarcal teve início a
agricultura e a domesticação de animais e foram criados de­
pósitos, silos e vasilhas, que continuam admiravelmente úteis
até os dias de hoje. Esse pode ser considerado o período mais
próspero e pacífico da humanidade. As atividades relacionadas à
UM JUMENTINHO NA AVENIDA

alim entação, provisão e armazenamento e as atitudes de


afetividade e aconchego, tipicamente femininas, tomam o lugar
das atividades competitivas e das atitudes belicosas, permitindo
que os seres humanos se dediquem a projetos construtivos e
pacíficos.
A cidade, por outro lado, apresenta-se inicialmente como ati­
vidade feminina, mas logo depois passa a ser ocupada e dirigida
pelo homem. Em certo sentido, a cidade desenvolve e ao mesmo
tempo abriga a aldeia, porém, adquire cada vez mais característi­
cas nitidamente masculinas. O espírito competitivo e belicoso,
somado à atitude exibicionista do macho, transformou a cidade
em um local onde o homem expressa sua megalomania, desen­
volvendo a arte da guerra e promovendo construções inúteis e
dispendiosas, erguidas pelo esforço de milhares de seres huma­
nos. A administração, a centralização, a burocracia e a opressão
são algumas invenções masculinas desse período que permane­
cem até hoje e fazem parte da estrutura das nossas grandes cidades.
Se o masculino e o feminino se encontram ainda na cidade
atual, o feminino se expressa principalmente na aldeia enquanto
que o masculino se afirma na tribo. Para Fustel de Coulange, as
tribos antecedem a organização da cidade, ou seja, a cidade re­
presenta o desenvolvimento e a organização das tribos. Somente
depois de alcançar certo estágio de desenvolvimento e organiza­
ção é que a cidade se instaura solenemente na urbe. Estamos nos
reportando à cidade grega, naturalmente, mas o que realmente
nos interessa é a cidade de hoje. Pensar nas tribos da cidade
grande não significa apenas lembrar dos grupos de jovens e
adolescentes e suas investidas contra alguns setores prósperos
da cidade, mas observar a tendência à organização tribal ou
semitribal de grupos específicos.
Descrever a cidade em termos de aldeias e tribos significa estar
atento às particularidades da organização e dos relacionamentos
A CIDADE DE DEUS NA CIDADE DO HOMEM j 85

sociais de alguns grupos característicos. A aldeia pode ser definida


em termos geográficos e estabelece relações sociais primárias e
acolhedoras entre diversos tipos de pessoas. Um condomínio
fechado, um bairro popular ou uma favela apresentam muitas
semelhanças com uma aldeia e se organizam como tal. Seus líde­
res atuam de modo pouco formal e as decisões são tomadas de
forma consensual. Todos ali têm as mesmas preocupações: em­
prego, saúde e educação. Muitas vezes organizam associações de
moradores, sindicatos ou cooperativas, buscando suprir as ne­
cessidades básicas. Formam rodas onde todos conversam, bebem
e participam de jogos de mesa. Nas festas, todos se envolvem e
compartilham da mesma alegria, independentemente de suas
diferenças pessoais, sexuais ou raciais. São festas de natureza
integradora.
Diferentemente, as tribos são grupos mais ou menos homo­
gêneos, que reúnem as pessoas em torno de interesses comuns
bem específicos. Surfistas, motoqueiros, motoristas de táxi, jo­
gadores de futebol, camelôs, policiais, meninos de rua, prostitu­
tas e homossexuais são alguns exemplos de tribos urbanas. As
tribos costumam apresentar relações de comando bem nítidas,
mesmo quando não oficializadas, ou seja, cada tribo geralmente
tem seu cacique ou líder, formal ou informal. A tribo não se
organiza geograficamente, mas submete os espaços a seus inte­
resses específicos; seus vínculos sociais são secundários e muitas
vezes temporários. Tipicamente masculina, a tribo privilegia a
competição, a mobilidade e a aventura, em detrimento da
afetividade e do aconchego. Cada tribo tem seus costumes, suas
leis e até mesmo sua própria linguagem; suas festas são exclusivas e
seus participantes não demonstram interesse em promover
maior integração, como acontece na aldeia.
Viver a partir da aldeia ou a partir da tribo é experimentar de
modo absolutamente diferente as noções de tempo e de espaço.
86 | UM JUMENTINHO NA AVENIDA

O espaço na aldeia é circunscrito e contínuo, na tribo é amplo,


infinito e descontínuo. O tempo na aldeia escoa mais lentamen­
te e é vivido como presente e passado. N a tribo, o tempo se
desenrola velozmente e é, antes de qualquer coisa, um frenético
futuro. Pessoas que compartilham as duas situações, aldeia e
tribo, tendem a privilegiar uma delas — geralmente a tribo,
por ser mais exigente por definição. Nesse contexto, a Igreja
tem um perfil híbrido: apresenta claramente as características de
uma tribo, porém se organiza permanentemente como uma
aldeia. Desse modo, a Igreja consegue ser, bem ou mal, uma
extensão (às vezes uma substituta) da aldeia, apesar de sua
inadequação para conviver ou atender as tribos, quase sempre
olhadas com extrema desconfiança pelos aldeões evangélicos.
Para poder ser aldeia e tribo ao mesmo tempo a Igreja precisa
aprender a atender às tribos e às aldeias, em uma radical
reestruturação.

Construir uma montanha no centro da cidade

A melhor imagem para descrever a difícil tarefa da Igreja atual


diante dos desafios da cidade seria compará-la ao ato de transfe­
rir uma montanha para o centro de uma grande cidade. A per­
gunta pastoral seria: Como relacionar o Sermão da Montanha
— cerne e coração do evangelho — , com sua paisagem rural e
antiquada, às igrejas contemporâneas e urbanas? Apesar de ser­
mos urbanos, nossa mensagem é antiga e rural, nossa teologia é
antiga e rural, nossos cânticos são rurais e nossa estrutura ainda
reflete um mundo rural. Afirmamos que a fé capaz de remover
montanhas é do tamanho de um grão de mostarda, mas a maio­
ria de nós nunca viu um grão de mostarda nem imagina que
mostarda é uma planta. A única mostarda que conhecemos é a
que usamos no molho de hot-dog.
A CIDADE DE DEUS NA CIDADE DO HOMEM j

N o Sermão da Montanha Jesus colocou os pontos principais


de seu ensino de forma conjunta e organizada, esclarecendo para
os seus seguidores qual era o cerne da sua vontade. A imagem da
montanha traz inúmeras evocações de cunho histórico e teológi­
co (vide o pacto firmado com Israel no monte Sinai) e por si só já
apresenta uma mensagem. Simbolicamente, a montanha é o lu­
gar onde Jesus contempla a história de Israel e da humanidade;
é de lá que suas palavras caem no chão e brotam como sementes
de uma nova história. O shopping, a favela e o estádio de futebol
são semelhantes às montanhas — são lugares de onde se con­
templa a cidade, lugares que desafiam a Igreja a uma compreen­
são e a uma resposta prática. Por serem espaços de compreensão
sociológica e teológica, podem ser transformados em espaços
reais de meditação e de ação da Igreja urbana contemporânea.
Levantaremos a seguir algumas questões que poderão ajudar
a transpor a mensagem rural do Sermão do Monte para o ambi­
ente atual das cidades. N o Sermão do Monte, que se encontra
nos capítulos 5, 6 e 7 do Evangelho de Mateus, aparecem algu­
mas palavras-chave interessantes: “Reino”, “Pai”, “felizes”, “sal” e
«1 »
luz .
Com o transferir o conceito de “Reino de Deus” , ponto
central do Sermão do Monte, para o ambiente da grande cida­
de? Temos uma chave que pode nos ajudar. A cidade foi a pri­
meira representação histórica do “reino”. Os reinos inicialmente
eram do tamanho de uma cidade (e eram realmente cidades), o
que nos permite pensar o Reino de Deus a partir da Cidade de
Deus. O Reino, que no Sermão do M onte pertence imediata­
mente aos pobres de espírito (Mt 5.3) e aos perseguidos por
causa da justiça (Mt 5.10), pode significar a promessa de que
a cidade será tomada por aqueles que arriscam suas vidas em
favor dos pobres, dos oprimidos, dos explorados, dos excluídos e
dos marginalizados. A cidade de Deus (Reino de Deus) será
88 | UM JUMENTINHO NA AVENIDA

cidade de justiça (M t 6.33), o lugar onde aqueles que estão


famintos e sedentos de justiça serão fartos (M t 5-6). A justiça
da cidade será maior do que a justiça oficial — a justiça hipó­
crita dos escribas e fariseus (veja M t 5.19-20). Ali haverá es­
paço não para discursos bonitos, mas para as ações concretas
de solidariedade, justiça e amor (o verdadeiro cidadão de
Deus não é aquele que diz “Senhor”, mas aquele que faz a
vontade do Pai; veja M t 7.21).
A cidade é de Deus (o Reino é de Deus) e Jesus é o Filho de
Deus, que se dirige ao Pai como Abba. Era assim que uma criança
aramaica se dirigia ao pai, revelando uma dimensão de intimidade
da parte do filho e afetividade da parte do pai que causava estranhe­
za aos ouvidos dos judeus. Quem é o Pai da grande cidade? É o Pai
de misericórdia, que sofre com a dor dos excluídos, enxuga as lágri­
mas dos meninos de rua e trata com misericórdia aquele que usa de
misericórdia para com os seus pequeninos (Mt 5.7). É também o
Pai de um grande projeto de extinção da violência urbana e de suas
causas, que exorta seus filhos a serem pacificadores (Mt 5.9). Um
Pai que se alegra quando seus filhos se envolvem com as necessida­
des da cidade (Mt 5.16). Um Pai que cuida das flores e dos passari­
nhos, e supre as necessidades básicas de seus filhos, para que estes
possam lutar para que haja justiça na cidade, sem ansiedades neuró­
ticas pelo dia de amanhã (Mt 6.25-34). Um Pai que se preocupa
com o aspecto ecológico e que gostaria que a miséria fosse banida da
vida dos seus filhos. Um Pai que inclui a todos em seu grande
projeto de cidadania, e não discrimina nem mesmo o injusto e o
opressor (Mt 5.45).
Felizes são aqueles que se envolvem com os projetos do Pai na
grande cidade e ao mesmo tempo desfrutam de sua intimidade.
O convite é para que os discípulos — e a Igreja urbana — desen­
volvam um estilo de espiritualidade que busque o Pai sem ser
verticalista, e procure a intimidade afetiva do Pai sem ser intimista.
A CIDADE DE DEUS NA CIDADE DO HOMEM 89

Trata-se de um duplo investimento: desenvolver o afeto pelo Pai,


através de uma comunhão constante e verdadeira, e se compro­
meter com os projetos do Pai para a cidade, buscando a paz e a
justiça para todos os cidadãos. Esse envolvimento começa com
uma entrega total de vida, em solidariedade aos mais pobres
(Mt 5.3), mesmo que isso inclua perseguição e sofrimento pes­
soal (Mt 5.10-11). É um envolvimento afetivo e não-violento
(Mt 5. 4, 5, 9), que parte de um absoluto compromisso com a
justiça (Mt 5.6), evidente na expressão “fome e sede” de justiça,
duas necessidades vitais. Esse anseio por justiça não pode esque­
cer a misericórdia (Mt 5.7) nem a transparência de vida (pureza
de coração; veja M t 5.8) expressa na linguagem (Mt 5.37) e no
olhar (Mt 5.28; 6. 22).
As duas idéias do Sermão da Montanha a serem transpostas
para o nosso ambiente urbano contemporâneo são exatamente
as metáforas relacionadas a sal e luz. O que significa exatamente
ser sal e luz na cidade grande? Responderemos essa questão a
partir dos conceitos de centro e periferia. Apesar de se tratar de
noções geográficas, vamos tomá-las mais no sentido sociológico
e teológico. As cidades se organizam geograficamente como cen­
tro e periferia, mas cada vez mais essas noções deixam de ser
claras e bem definidas, e já não conseguem acompanhar o vio­
lento processo de urbanização e favelização que tem se instaura­
do nas grandes cidades: Os centros se caracterizam como lugares
privilegiados de decisão, organização e produção ou circulação
de mercadorias, enquanto que as periferias seriam lugares de­
pendentes, com moradias melhores ou piores, salubres ou insa­
lubres. As favelas geralmente se situam nas distantes periferias
das cidades. Porém, atualmente, as favelas têm ocupado todos os
espaços disponíveis, inclusive aqueles situados nos centros ge­
ográficos, tornando a noção de centro e periferia apenas uma
categoria sociológica e teológica. O s sistemas relacionados à
90 UM JUMENTINHO NA AVENIDA

educação, saúde, comércio, produção, comunicação e religião


podem ser examinados em suas efetivas estruturas através do
binômio centro-periferia, que ainda mantém certa organização
geográfica.
Enquanto sal, a Igreja tem nas periferias o seu lugar privilegiado
de ação. Nos tempos antigos, o sal era usado como remédio ou
para conservar os alimentos. Curar as feridas da cidade, abun­
dantes nas periferias, deve ser a principal tarefa da Igreja, como
sal. Projetos sociais de diversos níveis e pastorais com ênfases
específicas poderiam ser organizados para tratar as mazelas das
periferias das aldeias e tribos da cidade. Nesse sentido, as favelas
são lugares privilegiados de ação e os pobres representam o por­
tal de compreensão e entendimento do lugar e da tarefa da Igre­
ja. Todas as feridas produzidas pela perversidade do sistema ca­
pitalista atual são encontradas em abundância na favela. Proble­
mas como desemprego, subemprego, violência doméstica, con­
sumo e tráfico de drogas, marginalidade, prostituição, doenças e
analfabetismo fazem parte do cotidiano das favelas.
A ação desenvolvida pela Igreja nas favelas deve ser uma ação
nitidamente diaconal. Para isso, alguns cuidados devem ser to­
mados. Para agir como serva, a Igreja deve evitar uma atitude
assistencialista ou paternalista. Colocar-se como parte dos recur­
sos e parte da resposta de Deus é reconhecer os recursos e as
respostas fornecidas pelos próprios moradores e considerá-los
parceiros de construção. Ao exercer seu trabalho de evangelização
e diaconia entre os pobres a Igreja não está fazendo nenhum
favor a eles. Essa atitude caracterizou a própria ação de Jesus
e deve conduzir a ação da Igreja de Jesus Cristo. Em última
análise, nesses tem pos confusos em que vivem os essa ação
talvez colabore para a busca de sua identidade, através da
redescoberta da experiência de ser igreja em seu pleno significado.
Paradoxalmente, ao evangelizar e servir entre os pobres estamos
A CIDADE DE DEUS NA CIDADE DO HOMEM 91

na verdade evangelizando a nós mesmos. Por isso, um coração


aberto para sentir, um ouvido atento para escutar e uma mente
aberta para perceber tudo que acontece de bom na favela, como
resultado da ação da própria graça de Deus, deve ser a atitude
adequada por parte da Igreja em sua função como sal.
Alguns entendem que a luz colocada em lugar alto represen­
ta a responsabilidade da Igreja em iluminar os centros de deci­
são e de poder da sociedade e da história. A tarefa de iluminar os
centros urbanos completaria a função de salinização das periferi­
as, e pode ser entendida claramente quando examinamos alguns
dos sistemas das grandes cidades. Assim, na área de saúde, en­
quanto sal, a Igreja deve trabalhar, por exemplo, na recuperação
de drogados, e em sua função de luz, deve lutar por leis e medi­
das mais eficazes de combate à produção e distribuição de dro­
gas. Em relação à educação, como sal, a Igreja deve combater o
analfabetismo e se envolver no trabalho de reforço escolar nas
escolas da periferia e, enquanto luz, deve abrir espaço nas uni­
versidades e lutar pela melhora da qualidade do ensino público.
Nas questões sociais, como sal, deve se envolver na luta dos sem-
teto e participar das associações de moradores e, enquanto luz,
participar da política ou da administração pública.
Porém, é preciso tomar alguns cuidados. A Igreja não pode se
deixar seduzir pela sua função como luz. O fato de ocupar sua
função nos centros não pode servir de pretexto para o abandono
das periferias. Em seu anseio por ser luz a Igreja não pode deixar
de ser sal. O projeto de ocupar espaços políticos, deixando de
lado o compromisso com os pobres e com as feridas da cidade,
tem gerado muita decepção e frustração entre os cristãos de
diversas igrejas. Seduzidos pelo poder, muitos políticos cristãos
se mostraram tão oportunistas, corruptos e arbitrários quanto
quaisquer outros, e por terem perdido o sabor, foram pisados
e rejeitados pelos homens, expondo o evangelho de Jesus ao
92 UM JUMENTINHO NA AVENIDA

escárnio e à ignomínia. A Igreja deve ocupar o seu lugar central


como luz, mas deve começar o seu trabalho como sal nas perife­
rias; ela não pode deixar de ser sal em momento algum.
Em um interessante estudo sobre pastoral “urbana, Jorge H.
Barro menciona algumas coisas que a igreja poderia fazer e
conclui perguntando se com isso ela não seria vista de modo
diferente pelo povo da cidade:
A igreja deve participar na vida da cidade não como
espectadora, mas como protagonista e vanguardista.
Podemos e devemos promover ações concretas que
irão repercutir e demonstrar os valores do reino de Deus.
Podemos iniciar movimentos, processos e transformações
que irão revelar à sociedade uma nova maneira de ser igreja.
Por exemplo, podemos promover a restauração e limpeza
de praças públicas, parques, bosques, lutando pela ecolo­
gia, como mordomos da natureza. Podemos promover
eventos culturais, através das artes, da música, do teatro,
que resgatem os valores de Deus para uma sociedade em
crise. Podemos nos envolver na vida dos bairros, partici­
pando dos comitês dos moradores, lutando pela melhoria
e dignidade de vida nos bairros. Podemos participar de
passeatas que são a favor da vida e da dignidade humana.
Podemos participar de projetos da cidade para combater
a pobreza, lutar por habitação, educação e saúde. Se par­
ticiparmos ativamente, como igreja, dos movimentos e
lutas das cidades, talvez as pessoas consigam olhar para
nós de forma diferente e enxergar a nova face da igreja.
Será que entendemos que essa também é a missão da igreja
com a cidade?3

Cremos que há um visível movimento, talvez ainda incipiente,


em direção a ações concretas para melhorar a vida nas cidades, o
que nos dá esperança de que dias melhores virão. Sabemos que a
Igreja ainda não aprendeu a agir como Igreja única que é, apesar
A CIDADE DE DEUS NA CIDADE DO HOMEM

de suas múltiplas faces. Mas podemos perceber o Espírito de


Deus agindo na cidade, tentando levar a Igreja a viver uma uni­
dade que respeita a sua diversidade e transformando essa unida­
de visível em ação pastoral para a cidade. É bom lembrar que a
ação pastoral deve ultrapassar a análise funcional e estar atenta às
estruturas que definem a sociedade como um todo. A estrutura
capitalista pós-moderna, com a sua ideologia neoliberal, é fun­
damentalmente injusta. H á uma luta entre Deus e os deuses do
sistema capitalista, que não termina com medidas paliativas.
Precisamos aprender a lição do Titanic. Não adianta melhorar as
condições internas do navio se ele navega em direção ao iceberg.
O desastre vai interromper a música, o passeio, a aventura e a
diversão de todos os passageiros, independente de sua classe so­
cial. A tarefa da Igreja inclui a transformação das estruturas capi­
talistas vigentes, fúndamentalmente injustas. Para evitar o nau­
frágio precisamos mudar o navio ou mudar de navio. Não sabe­
mos ainda a face do novo, mas conhecemos a velha e desumana
face das estruturas que dirigem a humanidade e sabemos que a
tarefa da Igreja é a mesma tarefa de Deus: a transformação com­
pleta de toda sociedade humana. Na vitória sobre todo tipo de
injustiça e opressão, na superação das estruturas arbitrárias e
espoliadoras, na libertação de todas as pessoas do pecado, da
injustiça e da opressão, acontecerá o pleno encontro entre a
cidade do homem e a cidade de Deus.
Capítulo 5

DE PROFETAS E
DE CANTADORES
Uma pastoral para o Nordeste
pós-moderno, urbano e globalizado

Q u a n d o pensam os em um a pastoral para o N ordeste,


propomo-nos a refletir sobre o Nordeste de hoje. Ele atravessa
um momento histórico denominado pós-m odernidade, parte
de um amplo processo de urbanização, imerso, como todo o
planeta, em uma dinâmica chamada globalização. Falamos, por­
tanto, de uma pastoral de uma Igreja para um Nordeste pós-
moderno, urbano e globalizado.
Entretanto, ele não é apenas uma região geográfica, mas uma
experiência vivida, consciente e inconscientemente, em torno de
símbolos, lendas e mitos. Estes são difundidos menos pelos
modernos meios de comunicação (mas também por eles) e mais
pelos tradicionais veículos de uma sabedoria popular: ditos, his­
tórias contadas, poesias, versos e cantigas — muitas cantigas. O
Nordeste, portanto, é muito menos um conceito a ser decifrado
e muito mais uma canção para entoar e, especialmente, dançar.
- 96 j UM JUMENTINHO NA AVENIDA

Dentro desse prisma, não podemos fazer teologia somente


com uma Bíblia na mão e um jornal na outra, porque isso não
tem a cara do Nordeste; também não se parece com a nossa
propalada pós-modernidade. Nesta, outras dimensões do hu­
mano, além da razão, também encontram espaço; como, por
exemplo, a emoção, trazida pela canção e pela dança. N o Nor­
deste e nesses novos tempos, em que a razão não é tudo, precisa­
mos, como Igreja, fazer teologia com a Bíblia e o jornal nas mãos,
e ainda com uma canção no pensamento. Nesse Nordeste can­
tante e cantado, a nossa teologia deve ser igualmente assim: sen­
tida, pensada, cantada e dançada.
Para a nossa reflexão, trazemos do passado bíblico o profeta-
agricultor Amós. Ele era extremamente atento aos acontecimen­
tos de seu tempo. Ele iniciará o diálogo com o nosso presente,
em que as notícias do jornal não nos são transmitidas direta­
mente. Elas são traduzidas pela canção de Petrúcio Amorim,
compositor, forrozeiro, poeta popular, que “vê a vida com os olhos
para o céu”, mas para quem o “diário deste mundo está na cara”.
Ambos, em suas semelhanças e diferenças, fazem a migração do
rural para o urbano e, nesse deslocamento, através deles, o sagra­
do e o profano se encontram em denúncia, esperança e beleza
poética. O projeto de urbanização, antigo e atual, se desenrolará
diante desses olhos, separados no tempo e no espaço, e será o seu
olhar que desafiará o nosso próprio olhar, além da nossa consci­
ência pessoal e da consciência de nossas igrejas.

A vez e a voz de um boiadeiro na capital

O que faz um agricultor e boiadeiro, um “boieiro e colhedor de


sicômoros”, ir do Sul para o Norte? O que o leva a sair de uma
pequena aldeia, Tecoa, para a grande capital, Samaria, em um
período de apregoada prosperidade, e despejar claras ameaças
DE PROFETAS E DE CANTADORES 97

sobre os líderes da cidade? Tecoa, é bem verdade, seria pequena,


mas, não, sem importância. E Amós, o agricultor boiadeiro,
também se apresenta como um homem bem-informado, atento
inclusive aos acontecimentos mundiais. Alguns chegam a dizer
que ele seria um rico proprietário de terras, com empregados sob
o seu comando. Outros duvidam disso e propõem que ele faria
parte da população camponesa pobre e sem-terra, a serviço de
grandes proprietários. De todo modo, curiosa seria essa migra­
ção, em que o migrante não vai à cidade para buscar espaço, mas
para anunciar desgraça; não vai em busca de novas oportunida­
des, mas para denunciar exploração. Quando confrontado, o
profeta se explica e se apresenta como emissário de Deus, do
mesmo Deus, Javé, que os líderes denunciados dizem adorar:
“Eu não sou profeta, nem discípulo de profeta, mas boieiro e
colhedor de sicômoros. M as o Senhor me tirou de após o
gado e o Senhor me disse: Vai e profetiza ao meu povo de
Israel” (Am 7.14b, 15).
O profeta boiadeiro, Amós, diz que não faz parte dos círculos
conhecidos dos profetas, de nenhuma das escolas de profetas
conhecidas ou oficiais. De certo modo, rejeita as instituições re­
ligiosas estabelecidas. Entretanto, ele mesmo seria a voz audível
da divindade. Rejeita a religião e fala em nome do Deus da reli­
gião, arvorando-se a discutir, na procura pela verdade, com qual­
quer espécie de religioso. Vai profetizar na capital. Deslum­
bra-se com seus palácios, mas decepciona-se com o imenso
sistema de exploração ali constituído. A injustiça se institui a
partir da dominação de uma classe privilegiada, cujo mono­
pólio religioso transforma o discurso ideológico em sagrado e
legitim a a contínua exploração. Critica as assembléias, os
cânticos, as melodias ao som da lira, os sacrifícios e todos os
rituais religiosos, e propõe que, em vez disso, corra “a justiça
como ribeiro perene” (Am 5.24).
98 UM JUMENTINHO NA AVENIDA

O profeta é um migrante do mundo rural para o urbano,


como muitos migrantes de todas as épocas. N o entanto, o que o
leva a migrar não é a fascinação produzida pela metrópole.
Tampouco é a possibilidade de desfrutar das vantagens de uma
cidade murada que, aparentemente, oferece proteção aos seus
habitantes diante de diversos tipos de violência, e que apresenta­
ria uma qualidade de vida melhor do que a encontrada no cam­
po. Amós migra em plena revolta e denúncia. Em seu falar, a
cidade seria a responsável direta pelo que acontece no campo.
Seus palácios e suas “casas de pedras lavradas” são construídas
com a exploração do pobre camponês, com o dinheiro do tribu­
to arbitrado sobre a sua colheita de trigo. Mas, finalmente, al­
guém rompe o silêncio, denuncia a estrutura injusta e confronta
os responsáveis pela espiral de injustiça. Talvez o próprio Amós
tenha sido atingido por esse lado oculto da urbanização. Talvez
também tenha perdido terras e gados, pela contínua e abusiva
opressão do mundo urbano sobre o rural. Nem rico nem pobre,
pertencería à nova categoria de “empobrecido”. Entretanto, o
profeta não fala apenas em seu nome ou em nome dos empobre­
cidos do campo, mas a partir de um nome bem maior.
O camponês-profeta, Amós, assume a voz do campo contra a
cidade — ou critica e denuncia o processo de urbanizaçãtí de sua
época — em nome do mesmo Deus celebrado pela cidade. Para
o profeta, esse Deus, Javé, está do lado do explorado camponês,
e não do lado do opressor urbano, mesmo que seja este último
quem detenha oficialmente o poder de decidir o que é religião e
de estabelecer e organizar o grupo legítimo de “profetas”. O pro­
feta ilegal, Amós, reivindica como legítima a sua experiência,
por ser direta e incontrolável. Representa uma religiosidade
popular que desconhece e até desrespeita mediações oficiais.
Existem outros canais de comunicação com Javé, fora da religião
oficial, e essa experiência, de cunho popular, vem com a força
DE PROFETAS E DE CANTADORES 99

de um poder irresistível: “Rugiu o leão, quem não temerá?”


(Am 3.8a.) Dessa religiosidade não-oficial, vem o profeta ilegal,
desautorizado pelos círculos de poder, mas irresistivelmente
autorizado pelo próprio Javé: “ Falou o Senhor, quem não
profetizará?” (Am 3.8b.)

Religião e injustiça social


Diante dos santuários sagrados, durante os cultos que se organizam
em continuada celebração, o importuno profeta boiadeiro traz
uma inoportuna mensagem. Depois de um grande período de
crise nacional, durante o reinado de Jeroboão II, tudo recomeça
a melhorar. A economia volta a florescer, as principais cidades se
embelezam cada vez mais, as fronteiras nacionais estão novamente
se alargando e o país volta a experimentar um grande período de
prosperidade. Até mesmo na política externa não existe uma gran­
de figura ameaçadora, um importante império ou um estrondo­
so projeto de expansão que volte a ameaçar o pequeno estado de
Israel. Igualmente, as relações com o reino do Sul são estáveis.
Então, por que essa palavra sobre fogo e juízo, que coloca um
gosto de fumaça nos manjares da euforia nacional, nessa religião
da prosperidade, de bem com Deus e de bem com a vida? Não
têm eles demonstrado sua gratidão a Javé? Não têm aperfeiçoado
os rituais religiosos e cumprido com todas as prescrições dos
sacrifícios?
A estranha mensagem do estranho profeta é de que Deus,
Javé, não é religioso; não faz questão de culto nem de melodiosas
canções ao som da virtuosidade de um tocador de lira; nem mes­
mo dá valor à abundância de sacrifícios. Javé requer justiça e
honestidade. O que parecia harmonioso para o povo, parecia
desafinado para Javé. Entoar bem as canções religiosas, mas de­
safinar nas práticas político-econômicas e nos relacionamentos
humanos, especialmente no que concerne ao direito e à dignidade
100 UM JUMENTINHO NA AVENIDA

do pobre, incomodava os ouvidos e ofendia o senso estético de


Javé. Não havia por que se fazer culto sobre um processo de
urbanização injusto. Mais justiça e seriedade — muito mais
justiça e seriedade — e menos culto, era exatamente a palavra
que Javé mandara o profeta boiadeiro proferir.
Aborreço, desprezo as vossas festas e com as vossas
assembléias solenes não tenho nenhum prazer. Afasta de
mim o estrépito dos teus cânticos, porque não ouvirei as
melodias das tuas liras. Antes, corra o juízo como as águas;
e a justiça como ribeiro perene. (Am 5.21, 23-24.)

N a interpretação de Bonora,
o povo que se apinhava nos santuários procurava em Deus
a proteção para a nação, a prosperidade econômica, o bem-
estar material, a saúde. Deus tornava-se para eles um “meio”
para obter o que mais lhes aprazia. Mas Amós se insurge:
Deus não é um meio, mas o fim! O culto verdadeiro não é
instrumentalização de Deus.1

Para Milton Schwantes, os profetas do século oitavo, dentre


os quais, Amós é o primeiro, “são uma espécie de porta-vozes das
mulheres e dos homens do campo. E aí articulam as dores dos
mais sofridos, daqueles cuja face está sendo moída”. Amós e Oséias
representam o outro lado do expansionismo dos estados nacio­
nais, entre os quais Israel e Judá se encontravam, antes de serem
atingidos pelo imperialismo assírio. A expansão se fazia através
de um processo de acumulação, de financiamento de exércitos,
profissionais historicamente não-produtivos, e de exportação de
bens e mercadorias. Ao mesmo tempo, uma pequena elite se
instaurava e se enriquecia. Tudo isso só podería ser realizado atra­
vés do aumento dos tributos sobre os pequenos camponeses, os
trabalhadores e os pequenos proprietários rurais. Todo o en­
riquecimento da cidade era injusto porque se fazia a partir do
empobrecimento do campo.
DE PROFETAS E DE CANTADORES 101

A globalização da injustiça e da violência


A denúncia de Amós atinge tanto a cidade de Samaria quanto a
cidade de Jerusalém, ou seja, tanto o Reino do Norte quanto o
Reino do Sul. Mas alveja primeiro as nações vizinhas. O proble­
ma é que não havia diferença nenhuma entre Judá, Israel e as
outras nações ao seu redor. Nenhuma diferença entre as nações
de Javé e as dos outros deuses. Isso equivale a igualar Javé aos
ídolos vizinhos. O processo de urbanização se desenrolava da
mesma maneira, com fases idênticas de um único sistema inter­
nacional: expansão geográfica, acumulação pelo mecanismo de
exploração econômica, opressão política interna e externa através
de sistemas de injustiça, de violência e de exclusão. O processo
de urbanização, poderiamos dizer em linguagem atual, era um
sistema de globalização e contra este se levantava Javé, derruban­
do e incendiando muros e palácios, que eram os símbolos dessa
mesma estrutura disseminada internacionalmente. Javé quebra­
rá o “ferrolho de Damasco” e incendiará os muros e os palácios
de Bene-Hadade, Gaza, Tiro, Tema, Rabá, Moabe e, finalmente,
Jerusalém e Samaria (Am 1.2).
Nos palácios de Samaria são entesouradas “a violência e a
devastação” (Am 3.10). Como em todo o mundo da época, os
grandes e belos prédios que abrigavam os poderosos tornaram-se
emblema de um processo de acumulação e de luxo ostensivo,
indiferente à miséria circundante. Mais ainda, esse processo,
estruturalmente violento em si mesmo, alimentava-se de diver­
sas formas de violência. Violência política, violência bélica, vio­
lência econômica e ainda a violência física cotidiana. Como sem­
pre, as maiores vítimas eram sempre as pessoas mais desampara­
das da sociedade, as mulheres e as crianças. Reduzida a obje­
to sexual, uma jovem pobre da cidade de Sam aria pode ser
violentada impunemente por um homem rico e o seu jovem
filho (Am 2.7). Estes fazem parte dessa elite de pessoas que
10 2 UM JUMENTINHO NA AVENIDA

“vendem o justo” e “condenam o necessitado” e “suspiram pelo


pó da terra sobre a cabeça dos pobres” (Am 1.7). O oráculo
contra Amom é um bom exemplo de como essa violência inter­
nacional atingia em especial mulheres e crianças: Assim diz o
Senhor: Por três transgressões dos filhos de Amom e por quatro,
não sustarei o castigo, porque rasgaram o ventre às grávidas de
Gileade, para dilatarem os seus próprios limites. (Am 1.13).
As grávidas de Gileade juntam, em uma única imagem,
mulheres e crianças. São as protegidas especiais de Javé, víti­
mas primeiras desse brutal sistema que se baseia em uma ide­
ologia imperialista, hierárquica e patriarcal. O alargamento das
fronteiras, o processo de expansão, se faz às custas da mulher e
da criança. Dessa violência internacional, também participam
Judá e Israel. O ventre rasgado das mulheres grávidas de Gileade
são, ao mesmo tempo, a imagem crua de uma guerra que des-
trói, antes de tudo, pessoas indefesas e a realista imagem do pró­
prio sistema expansionista. O poder político opressor, a incursão
bélica em busca de domínios e de mercados a serem ambiciosa­
mente submetidos e explorados é igual ao rasgar do útero cria­
dor e gestador. O poder não apenas destrói a vida atual, mas
impede, pela violência sem limites, o surgimento e o crescimen­
to natural da vida futura, em todas as suas possibilidades.

Os sistemas opressores da cidade


Podemos perceber, pelo profeta Amós, que a injustiça habita na
cidade, não de modo casual, mas intencional. Existem grupos e
pessoas que podem e devem ser responsabilizados diretamente
pela violência estabelecida contra o estado de direito e de
legalidade. Três grupos, principalmente, seriam os responsáveis
diretos pela ruína da casa de José. O s nobres, principais
responsáveis pelas decisões políticas que eram tomadas; os
com erciantes e os latifundiários, cujo poder econôm ico
DE PROFETAS E DE CANTADORES 103

fora construído às custas do empobrecimento causado pela


exploração econômica; e os juizes, responsáveis pela aplicação do
direito e pelo estabelecimento da justiça, estavam a serviço era
do suborno, oferecido pelos grandes, para sufocar o pobre e tor-
cer-lhe o direito. O sofrimento do pobre camponês acontece sob
os olhares indiferentes desses grupos. Em meio à pobreza
estabelecida no campo, os nobres da cidade ostentam uma vida
de luxo, prazeres e conforto. As suas habitações são grandes, de
marfim, e possuem residências de inverno, ainda por cima. A
palavra profética, o oráculo de Javé, vem duramente contra essa
situação de injustiça: “Derribarei a casa de inverno com a casa de
verão; as casas de marfim perecerão, e as grandes casas serão
destruídas, diz o Senhor” (Am 3.15). E deste modo que o profe­
ta descreve a indiferença dos dirigentes diante do sofrimento dos
oprimidos:
Ai dos que andam à vontade em Sião e dos vivem sem
receio no monte de Samaria, homens notáveis da princi­
pal das nações, aos quais vem a casa de Israel! “Vós... que
dormis em camas de marfim, e vos espreguiçais sobre o
vosso leito, e comeis os cordeiros do rebanho e os bezerros
do cevadouro; que cantais à toa ao som da lira e inventais,
como Davi, instrumentos músicos para vós mesmos; que
bebeis vinho em taças e vos ungis com o mais excelente
óleo, mas não vos afligis com a ruína de José. (Am 6.1,
3-6.)

A vida sossegada e ociosa dos nobres de Samaria contrasta


com a aflição daqueles que estão sendo prejudicados pela pros­
peridade da nação. Comer e dormir bem, e organizar festas,
ostensivamente luxuosas, constitui a única atividade dos ricos.
O sistema cria cumplicidade entre os diversos grupos. Os co­
merciantes, latifundiários e “banqueiros”, com sua política de
exploração econômica, recebem o apoio ostensivo dos dirigentes.
104 UM JUMENTINHO NA AVENIDA

As assembléias, à porta da cidade, onde os tributos sobre os


camponeses e os preços dos produtos do campo são acertados
de comum acordo, constituem-se em verdadeira farsa. Ali o su­
borno corre solto, e os defensores dos pobres, sob forte irritação
dos poderosos, são impedidos de falar, ou simplesmente não
são ouvidos em seus argumentos (Am 5.10, 12, 15).
O poder econômico se organiza em torno do lucro. Os
comerciantes praticam toda sorte de medidas desonestas para
aumentar o seu ganho, “diminuindo o efa (medida), e aumen­
tando o siclo (preço), e procedendo dolosamente com balanças
enganadoras” (Am 8.5). Não somente roubam no peso, mas ven­
dem mercadoria da pior qualidade possível, “o refugo do trigo”
(Am 8.6). N a sua ganância egoísta e insensível, pisam os neces­
sitados e destroem os miseráveis do campo (Am 8.4). Os pobres
agricultores são “comprados”, através de empréstimos com juros
exorbitantes, e transformados literalmente em escravos, por não
terem como fazer frente ao sistema de exploração organizado pela
cidade. Os agricultores pagam tributos do trigo (Am 5.11), têm
preços fixados para os seus produtos agrícolas e são obrigados
a comprar da cidade alguns manufaturados. Segundo Bonora,
“dos pequenos agricultores exige-se um imposto in n atura:
um a parte do trigo. A ssim , para o pão, deverão depender
dos com erciantes!” 2 N esse sistem a, os pobres tornam -se
verdadeiramente mercadoria, mão-de-obra escrava ao dispor
da exploração dos ricos.
Ao poder político e ao econômico, junta-se o “judiciário”,
numa ampla conspiração para a instituição da violência. “Ju s­
tiça” e “direito” são duas palavras extremamente caras para
Javé. N o entanto, os administradores delas, o grupo de juizes
da cidade, haviam pervertido todo o sistema. A justiça estava
sendo deitada por terra e o direito fora convertido em alosna
(Am 5.7), que era uma espécie de planta venenosa. Essa é a
DE PROFETAS E DE CANTADORES 105

justiça que aceita suborno, que oprime e mata o mais fraco, e


diante dela o pobre sempre sai prejudicado. O justo é vendido
por dinheiro e o miserável condenado por um par de sandálias
(Am 2.6). O pequeno e o médio agricultor saíam totalmente
destruídos desse embate desigual com a elite da cidade. E o re­
sultado inevitável era o empobrecimento do campo, com todas
as suas conseqüências. A mensagem do profeta era pesada e ame­
açadora. Do mesmo modo que eles haviam causado a devastação
do campo, sofreriam com igual intensidade a devastação da ci­
dade. A justiça retributiva de Javé faria com que não desfrutas­
sem das casas edificadas com pedras lavradas, e não bebessem do
vinho adquirido com o exercício da injustiça (Am 5.11). Para o
profeta, a justiça de Javé se tornaria em vingança do campo
contra a opressão da cidade.

O nome próprio da opressão

A metade posterior do capítulo 7 do pequeno livro de Amós nos


traz inestimáveis lições. As palavras do profeta incomodam e
provocam a reação de pessoas concretas. Aparecem os nomes
próprios, aliás, dois nomes, Amazias e Jeroboão. A profecia sai
da denúncia abstrata de sistemas e grupos e alcança pessoas
definidas, localizadas e localizáveis, responsáveis diretas pelo
estabelecimento e pela administração dos sistemas. O sistema
não é impessoal. Pessoas concretas o administram e são respon­
sáveis pelas suas distorções. A imbricação entre sistema e pesso­
as, entre grupos e indivíduos, fica assim claramente estabelecida.
Jeroboão é o rei, autoridade maior, atingido pela acre denúncia e
pela ameaçadora palavra do profeta boiadeiro. Amazias é o seu
sacerdote, o seu aliado religioso. Um decide e o outro influencia
e abençoa. Ambos se encontram tão envolvidos em todo o
processo que a dor de um se torna a dor do outro, e a ameaça
106 UM JUMENTINHO NA AVENIDA

para um é realmente ameaça para o outro. O sacerdote se


contrapõe fortemente à palavra de Amós e o proíbe de profetizar,
porque “a terra não pode sofrer todas as suas palavras” (Am 7.10).
Para Bonora, a mensagem de Amós, num momento em que o
reino estava em pleno esplendor político e econômico, era a pa­
lavra de um desmancha-prazeres:
Amós apregoava: “Jeroboão morrerá pela espada e Israel
será deportado para longe de sua terra” (Am 7.11). Era
um anúncio inquietante e perturbador: morte do rei,
exílio do povo! Israel acabou”. O sacerdote Amazias,
percebendo toda a força explosiva da proclamação do
profeta, o denuncia às autoridades. E para que a sua
acusação se torne mais eficaz, chama-o de conspirador: O
choque entre Amós e Amazias é notável. Eles representam
a instituição e o carisma, o trono e o púlpito profético, o
sacerdócio e o profetismo.3

Mesmo concordando com Bonora, que profecia e conspiração


são duas coisas diferentes, precisamos convir que os efeitos são
semelhantes, e Amazias percebe isso claramente. Se é neces­
sário parar o conspirador, também é preciso calar o profeta, a
bem das instituições. Mas o profeta não se cala, e a voz dele se
volta como oráculo mais violento ainda contra quem ousou
desafiá-lo: “Ora, pois, ouve a palavra do Senhor. Tu dizes: Não
profetizarás contra Israel, nem falarás contra a casa de Isaque.
Portanto, assim diz o Senhor: Tua mulher se prostituirá na cida­
de, e teus filhos e tuas filhas cairão à espada, e a tua terra será
repartida a cordel, e tu morrerás na terra imunda, e Israel, certa­
mente, será levado cativo para fora da sua terra” (Am 7.16,17).
Todo o sistema religioso oficial, representado pelo sacerdote
Amazias, estaria, para Amós, a serviço da injustiça e da opressão
perpetradas pelos grupos dominantes da cidade. A religião tor­
nara-se legitimadora de discriminação e de exploração político-
econômica, naquilo que poderiamos chamar de violência sagrada,
DE PROFETAS E DE CANTADORES

tomado carona no conceito atual de violência simbólica. Portanto,


se a violência simbólica, o conjunto ideológico de símbolos e
idéias a serviço da dominação e da repressão, acrescenta uma
carga própria e típica de violência ao sistema, a violência sagrada
propõe uma sobrecarga mais violenta ainda. Isso se dá exata­
mente por ser sagrada, por ser exercida em nome de valores últi­
mos, valores que estariam teoricamente acima de qualquer con­
trole e verificação. N a palavra do profeta, os violentos seriam
atingidos pela mesma violência e Amazias recebería a paga de
sua participação pessoal como abençoador do sistema. A sua
religião não era do agrado de Javé.
Como profeta, Amós anuncia a extraordinária e inquietante
novidade de que Javé está fora do circuito religioso oficial. Javé
não seria “religioso” e o seu profeta seria o anunciador da “não-
religião” . Ou, se quisermos dizer de outro modo: religião verda­
deira vigia o direito e distribui a justiça, em nome de Javé.
Posicionando-se contra a urbanização efetuada como violência
sobre o pobre camponês, Amós anuncia que Javé tem posições
políticas bem definidas, pronunciando-se contra uma adminis­
tração injusta e insensível, e preparando o juízo contra os seus
atores principais. Nas palavras de Bonora,
Este profeta, rude e áspero como sua terra, não tem
sim patia alguma pela vida urbana. A dureza de suas
palavras parece-se com a das pedras abundantes no deser­
to. A cidade se lhe torna, na fantasia, a imagem sombria
do pecado, contra o qual se lança o juízo divino.4

Quando um cantador se parece com um profeta

O profeta bíblico não anuncia em prosa a palavra de Javé, mas


faz poesia — porque somente a poesia pode garantir a força
da profecia, do oráculo de Javé. Sempre que Deus fala acontece
108 UM JUMENTINHO NA AVENIDA

poesia. Não é poesia parecida com a nossa, mas é legítima em


sua beleza, típica poesia hebraica com todas as suas nuances e
com todos os seus recursos. O cantador nordestino não é um
profeta, mas, em sua poesia bela e crítica, aproxima-se mais do
sentido da profecia do que a nossa teologia descritiva, monoto­
namente propositiva.
O compositor e cantor Petrúcio Amorim compõe forró e forró
de pé-de-serra. O seu verso e a sua cantiga trazem a beleza intui­
tiva do cantador do sertão que traduz a vida, com todas as suas
contradições, em toada crítica e melancólica. Mais do que um
cantador da subjetividade, daqueles que rimam amor e dor, é um
poeta do cotidiano, crítico da existência, atento aos desníveis
sociais, “viajante na boléia do destino” e “mais um fio da tesoura
e da navalha”. O poeta é uma espécie diferente de barbeiro. A sua
tesoura e a sua navalha fazem barba e bigode desse Nordeste pós-
moderno, urbanizado e globalizado, através de uma multiplica­
ção de imagens, trazidas por versos rimados e musicalizados, de
modo bem nordestino: espécie de barbearia popular e sociológica.
Com uma Bíblia na mão, trazendo o profeta poeta e boiadeiro
Amós, o jornal na outra, e a música de Petrúcio ressoando na
consciência, é que pretendemos construir essa reflexão. Começa­
mos com a auto-apresentação do poeta, na música Filho do Dono:
“Eu não sou profeta nem tampouco visionário, mas o diário des­
te mundo está na cara. Um viajante na boléia do destino, eu sou
mais um fio da tesoura e da navalha”.
Surpreendentemente, o cantador Petrúcio se apresenta com
palavras parecidas com as do profeta Amós. O poeta cantador
não se vê como alguém que faz parte de círculos religiosos ofici­
ais, não é profeta, nem com o alguém que tem poderes
paranormais, não é visionário. Mesmo assim, tem algo a dizer, e
o que diz se parece com profecia, inclusive com a do Antigo
Testamento. Mais do que predição de acontecimentos futuros, a
DE PROFETAS E DE CANTADORES

profecia bíblica é crítica da sociedade e denúncia de opressão e


exploração. O cântico do poeta atual difere da palavra do profeta
de então, talvez, apenas porque a sua mensagem não é a revela­
ção de um mistério, mas está visível, evidente: o diário deste mun­
do está na cara. O poeta é apenas um viajante, mas um viajante
privilegiado, que, não precisando dirigir o caminhão do destino,
ou não detendo poder de decisão, viaja na boleia, de olhos bem
abertos, atento à paisagem que, em sua beleza, não consegue
ocultar as suas contradições.
O cantador poeta, então, seria um profeta da evidência,
anunciador do óbvio que, em sua obviedade, ninguém quer real­
mente ver. O seu cântico, cortante como tesoura e navalha afia­
das, é a sua arma de crítica e de denúncia, de conclamação indi­
reta, mas também de lamento impotente. Afinal, o poeta que
canta não pode fazer nada mais do que isso: cantar e poetar, fazer
arte da realidade decadente. Não pode nem mesmo cultivar a
esperança de que essa arte popular tenha qualquer poder de trans­
formação. Como o profeta Amós, o cantador também é um
migrante do campo para a cidade. E o seu olhar para esta é igual­
mente um contundente olhar de desaprovação, cheio de sauda­
des do mundo rural. Em um certo sentido, podemos identificar
pelo menos quatro aspectos críticos presentes em sua música: a
idéia ambígua da cidade como uma atraente e sedutora mulher;
a cidade como uma desestruturação da natureza, uma agressão
ecológica; a cidade como poesia, mas um verso de pé-quebrado;
e, por último, a cidade como uma estranha prisão, um calabou-
ço para as suas crianças.

A cidade como mulher sedutora


O feminino na música de Petrúcio é tratado de modo ambíguo.
A cidade é feminina, é mulher, mas não é nem a mulher amiga,
nem a amante apaixonada, nem a mãe sábia e acolhedora, a
110 UM JUMENTINHO NA AVENIDA

matrona que dirige com sua silenciosa capacidade os destinos de


todo um clã. A cidade também não é a prostituta vulgar e atre­
vida, em seu modo de se apresentar ou de atrair uma clientela
sexual. A cidade grande se assemelha mais à misteriosa e distante
moça que não sai da janela de sua casa, observadora da paisagem
e do movimento. N a verdade, ela não se envolve com o cotidiano
que passa à sua frente. Parece descrever a moça da cidade do
interior, filha do prefeito, do juiz, ou de alguém das elites
dominantes, distante e inacessível em sua beleza, sedutora e
perigosa em sua insensibilidade. Pobre do morador comum
que se apaixonar por sua beleza e for aprisionado por seu porte e
silhueta. A beleza da janela está reservada apenas a um grupo
seleto de moradores, é a própria janela da discriminação e da
exclusão social.
A música Cidade Grande descreve a cidade, a partir dessa
imagem: “Cidade grande, moça bela, tu tens o cheiro da ilusão.
Quem passou na tua janela já conheceu a solidão”.
O encontro entre o migrante do mundo rural e a cidade grande
é o encontro de duas semelhantes e diferentes janelas. O cantador
migrante vê o mundo pela janela da boléia de um caminhão, e a
cidade grande é a própria janela da exclusão. Ambos são observa­
dores dos destinos dos homens e das mulheres, da vida em sua
totalidade. Mas, enquanto o poeta seria a expressão apaixonada e
crítica da esperança de um mundo melhor, a moça bela, a cidade
grande, só pode oferecer a ilusão de uma beleza fria e excludente.
O fim do envolvimento com essa beleza distante e ilusória só
pode ser mesmo a impressão de uma inamovível solidão. Nessa
perspectiva, os versos do poeta-viajante cheiram a uma me­
lancólica confissão. Quando ele diz que “foi minha sina em
teus braços vir parar” , parece fazer o relatório de um processo
de sedutora atração, envolvimento apaixonado e inevitável
desilusão.
DE PROFETAS E DE CANTADORES 111

O processo de irresistível sedução que a cidade exerce sobre o


habitante do mundo rural, e a conseqüente desilusão, é tema
recorrente da análise sociológica ou da literatura. Assim atestam
as obras de João Cabral de Melo e Neto, através da figura do
Severino Retirante que segue o Rio Capibaribe em busca da cida­
de do Recife, no poema Morte e Vida Severina. O mesmo se dá na
peça de Dias Gomes, O Pagador de Promessas, em que a sedução
urbana torna-se para a esposa do Z é do Burro sedução verdadeira,
e não mera simbolização. De todo o modo, a imagem da mulher
sedutora aplicada à cidade grande nos leva à reflexão sobre a
relação da cidade com o feminino, a partir de algumas ênfases
diversificadas. O tema, fascinante em si mesmo, presta-se a mui­
to mais aplicações do que iremos sugerir aqui. Nesse nosso espa­
ço, queremos.apenas apontar o estudo de Lewis Mumford sobre
a relação feminino-masculino no âmbito da formação histórica
da cidade, e descrever um pouco da situação da mulher concre­
ta, especialmente nas periferias da cidade grande.
Para Mumford, a cidade foi “a mais preciosa invenção coletiva
da civilização” .5 Como veículo de transmissão de cultura, teria
sido superada somente pela linguagem. Do mesmo modo que a
aldeia, a cidade, esse fruto do engenho e da criatividade do ser
humano, teria sido uma invenção da mulher e o feminino carac­
terizaria, desde o início, o seu propósito e estruturação. A cida­
de se tornaria o desenvolvimento natural da aldeia neolítica,
centro de sedimentação, organização e prolongamento da vida.
E o lugar em que a afetividade e os vínculos primários, as rela­
ções familiares e as relações fraternas, deveríam continuar a ser
aperfeiçoados. Entretanto, devido às novas necessidades de defe­
sa, e às novas invenções que requeriam maior investimento de
força muscular, a cidade se tornou cada vez mais masculina, um
lugar de domínio e de afirmação do macho, do caçador que
dominara o período paleolítico.
11 2 UM JUMENTINHO NA AVENIDA

Esse encontro entre o neolítico e o paleolítico, entre a matriarca


sedimentária da aldeia e o caçador nômade, propiciado pela in­
venção da cidade, fez com que as forças e atitudes de cooperação
e de desenvolvimento humano passassem a coexistir com forças
de competição e desagregamento, e, ainda mais, que fossem
superadas pelas últimas. A cidade, então, “passou a ser, desde o
princípio, o recipiente de forças internas demolidoras, dirigidas
no sentido da destruição e do extermínio incessante”.6 Até mes­
mo as formas estruturais arredondadas, de natureza feminina,
foram superadas pelas formas retas e angulares, tipicamente
masculinas. Podemos dizer que, simbolicamente, na aldeia
prevalecia o útero nutritivo, vitalizador e acolhedor; na cidade, o
falo, exibicionista, narcisista e dominador. Para Munford,
O poder do homem revelava-se agora em façanhas de
agressão e força física, no mostrar sua capacidade de
matar e em seu próprio desdém pela morte: em vencer
obstáculos e impor sua vontade a outros homens, pela
força, destruindo-os, caso resistissem.7

A cidade grande, a linda moça da janela do nosso cantador


quase profeta, refletiría talvez esse encontro entre o feminino e o
masculino que acontece no espaço urbano. Pode ser que mais
apropriadas seriam as imagens psicanalíticas ambíguas da m u­
lher, como a madrasta, bela, sedutora, insensível e até cruel. Ou
quem sabe seria a mãe fálica, da imaginação infantil, capaz de
ternura e aconchego, mas pronta igualmente para o castigo, em
que afirmava o seu poder contra a desamparada criança. N a
cidade permanecia o silo, inventado pela mulher na aldeia,
mas aparecia a máquina, inventada pela homem, típica da
cidade. O silo era voltado para o armazenamento de grãos, o
que garantia o prolongamento da vida. A máquina servia apenas
a si mesma, ou ao narcisismo do macho humano, usada para
a construção de monumentos sem nenhuma utilidade coletiva.
DE PROFETAS E DE CANTADORES 113

A invenção da máquina na pré-história passou muito tempo


despercebida porque não deixara vestígios nas escavações
arqueológicas, já que suas engrenagens eram compostas de
seres humanos. D e acordo com Mumford,
Dezenas de milhares de homens a se mover para a ação
como uma máquina sob comando centralizado, constru­
indo valas de irrigação, canais, montes urbanos, zigurates,
templos, palácios, pirâmides, numa escala até então in­
concebível.8

Nessa cidade, em que o feminino é sufocado pelo masculino,


nesse processo de urbanização glo balizad a, caótica e
pauperizadora, cujo resultado prático é uma imensa “favelização”,
as mulheres e as crianças podem ser consideradas as suas maiores
vítimas. Aqui a imagem-denúncia do profeta-boiadeiro, Amós,
pode também ser evocada. Do mesmo modo que o expansionismo
urbano abrira o ventre das grávidas de Gileade, ou seja, destruira
mulheres e crianças, também a atual urbanização globalizada
acrescenta violência principalmente sobre mulheres e crianças.
Perpetua, assim, a tendência histórica de esmagamento e opres­
são sobre elas. As inegáveis conquistas da mulher, acesso a postos
de trabalho, participação maciça na educação superior (superan­
do o homem), ainda não lhe rendem uma igualdade de fato.
Reflexo disso é que a sua média salarial equivale a 60% da média
do salário do homem.
Nas periferias da cidade grande, onde se localizam as favelas,
a mulher ocupa uma posição dúbia. Por um lado, diante das
crises econômicas e perante a opressão política, geralmente apre­
senta um poder de resistência superior ào do homem. Quem
trabalha ou trabalhou com as periferias conhece o fato de que as
mulheres são mais disponíveis para as mobilizações sociais e
para a organização coletiva de ações comunitárias. Diante do
desemprego crônico no país, possuem uma maior amplidão de
114 UM JUMENTINHO NA AVENIDA

capacitação profissional, formal ou informal. Atualmente, elas


são capazes de desempenhar os mesmos trabalhos profissionais
que os homens, e nas crises, as mulheres, muitas delas com
formação colegial, aceitam ser arrumadeiras, lavadeiras, cozinhei­
ras ou faxineiras — trabalhos que a maioria dos homens rejeita.
Quando se trata de se empregar em residências, em trabalhos
dom ésticos, as mulheres gozam de m aior confiança do que
os homens (quando estes aceitam esse serviço que julgam
humilhante). Apesar disso, são sempre os homens que em
casa mantêm o poder de decisão, não sendo raros os casos em
que as mulheres são submetidas, pelo marido desempregado,
a humilhações e até a agressões físicas.
Nas periferias, segundo Ivone Gebara, as mulheres vivem um
novo tipo de senzala. Senzala sociológica, mas introjetada psico­
logicamente, onde vivem não somente como cidadãs de segunda
categoria, mas como excluídas pelos excluídos, discriminadas
pelos discriminados e marginalizadas pelos marginalizados, exa­
tamente por aqueles que deveriam ser os seus parceiros na cons­
trução de uma nova história — os homens. Para fugir da senzala,
essas mulheres criam às vezes um novo tipo de migração. Fazem
uma migração doméstica, muitas vezes dentro da mesma cida­
de, mas que não consegue romper o círculo de dominação patri­
arcal em que se encontram. Fogem de um homem para um ou­
tro, seja parente, ou novo companheiro, para encontrarem em
todo lugar a mesma situação. N a verdade, levam a senzala con­
sigo, sem com preender plenam ente os m ecanism os de
dom inação a que estão sujeitas. N a sua m igração, nunca
abandonam suas crianças, m antendo a histórica e vulne­
rável parceria de oprim idos.
Cuidando das suas crianças, as mulheres reafirmam suas
características históricas de acolhedoras e integradoras. Nas
periferias, elas exercem de forma natural esse papel, a maioria
DE PROFETAS E DE CANTADORES 115

das vezes sem ter consciência de sua importância. Nas favelas,


geralmente encontramos famílias grandes, em que o pai é
omisso, ou já morreu, ou abandonou o lar. Isso chegou a tal
ponto que sociologicamente se define hoje a família mínima como
uma mãe e um filho, nunca um pai e um filho. As mulheres
estabelecem redes informais de solidariedade. Plantam árvores e
flores nas favelas. Criam pequenos animais, como galinha e coe­
lho. Cuidam o máximo possível da limpeza do seu lugar, ou seja,
cuidam da vida, estabelecendo uma microecologia, garantindo
o mínimo de condições de dignidade humana que ajude a
ultrapassar o limite de mera luta por sobrevivência.

A cidade como agressão ecológica


O cantador quase-profeta aproxima-se atraído e deslumbrado
pela cidade, mas não se esquece das imagens campestres que
povoam a sua m em ória, tanto como contraponto ao seu
alumbramento quanto como antídoto. Ajudam-no a não sucum­
bir ao avassalador processo da sedução urbana. N a música Cida­
de Grande, confessa que a “tua grandeza me levou a um delírio” ,
e esse delírio funcionava como uma espécie de colírio que o aju­
dava a enxergar belezas e mais belezas no perímetro urbano. N o
entanto, o poeta não se permite enganar, percebe que a moça
bela tem “o cheiro da ilusão”. Nota que o seu perfume é passageiro
e artificial, fabricado com os recursos atuais da tecnologia, mas
sem conseguir disfarçar o odor real por detrás de toda a
aparência. A cidade grande, na verdade, é uma “chaminé de
gasolina”, e a água do seu rio tem a cor preta, em evidente
contra-senso ecológico. Essa agressão ecológica é cantada na
música Filho do Dono, quando constata o imenso prejuízo
ecológico causado, pelo processo industrial irresponsável,
dentro dos limites urbanos: “A natureza na fumaça se mistura,
morre a criatura e o planeta sofre a dor”.
116 UM JUMENTINHO NA AVENIDA

A imagem de um planeta sofredor atende a recentes apelos


para perceber a Terra como um ser vivo, restaurando antiqüíssimas
e belíssimas tradições. Podemos nos lembrar do índio, recusan­
do-se a vender a terra, por ela ser a “nossa mãe”. Recordamos
inclusive o capítulo oito da carta de Paulo aos romanos, em que
todo o cosmos geme aguardando a transformação plena dessa
criação agredida e manchada. Nesse imenso ser vivo, o planeta
Terra, o sofrimento de cada uma de suas criaturas é o seu próprio
sofrimento. Essa agressão ecológica atinge, na visão do poeta, as
águas: “Quando eu olhei a água preta do teu rio...”; os animais:
“Boi com sede bebe lama...”; e os próprios seres humanos: “...
barriga seca não dá sono”. Todos estamos naturalmente imbrica-
dos no processamento da vida. E tanto rios, animais ou seres
humanos, quando desrespeitados em seus direitos e em sua
própria maneira de ser, destroem pouco a pouco a própria
sobrevivência do planeta.
Além de sistema vivo, o planeta Terra, sendo um gigantesco
ecossistema, aparece como uma estrutura autocentrada imbuída
de intencionalidade. Em recentes estudos da biologia, a vida se
apresenta como uma estrutura de relações autocontrolada, agin­
do com uma espécie de sabedoria própria, promovendo e crian­
do mecanismos de aceleração ou de redução que mantenham o
equilíbrio desejado. Isso pode ser refletido nas imagens desse
poeta atento a todas as contradições da grande cidade.

Quando eu olhei a água preta do teu rio,


um calafrio me subiu ao coração,
fiquei com medo de algum dia o oceano
achar um plano e se vingar na traição.

D e certo modo, não se pode agredir impunemente o meio


ambiente. As secas, as devastações e as inundações, que vêm
DE PROFETAS E DE CANTADORES 117

periodicamente sobre o meio geográfico e que atingem de vez


em quando as grandes cidades, podem ser consideradas uma
espécie de vingança da natureza, como um grande plano de
retaliação das forças ofendidas do oceano. Por via de regra,
uma administração urbana, despreocupada com os aspectos
ecológicos, chama transtornos futuros para a sua população
que vai sofrer as conseqüências de ações e atitudes que não
exerceu e nem desejou. Respeitar e temer a traição do oceano,
simbolicamente, da natureza, pode ajudar a priorizar políti­
cas públicas em defesa do meio ambiente. A questão ecológi­
ca é includente e profilática. Trata não apenas de rios, plantas
e animais, mas de seres humanos, especialmente dos mais
pobres. Trata não apenas da saúde do presente, mas especial e
urgentemente da saúde e da qualidade de vida das futuras
gerações.

A cidade como verso de p é-quebrado


A sensibilidade poética sofre ao perceber beleza e encantamento
misturados com fome, miséria e poluição. Mesmo com o olhar
de poeta, tendente a extrair e a celebrar o belo circunscrito em
toda existência, o cantador só enxerga na realidade urbana verso
de pé-quebrado. Ainda é poesia, mas não é a que causa encanto
permanente e que desafia a vida a sínteses mais profundas e a
atitudes mais humanas. As inusitadas rimas dessa realidade
contraditória ferem qualquer sensibilidade, levando o sofrimento,
mesmo do poeta, a uma radical exaustão.

Levando a vida, tiro verso da cartola,


chora viola neste mundo sem amor.
Desigualdade rima com hipocrisia,
não tem verso nem poesia
que console o cantador.
11 8 UM JUMENTINHO NA AVENIDA

Quando, neste mundo sem amor, a desigualdade rima com


a hipocrisia, não pode haver música nenhuma que consiga
trazer consolação ao ouvido do compositor. Por causa disso,
sua poesia é chorosa, reflexo de uma realidade cuja beleza é
caótica e cuja musicalidade é dissonante. Aqui o forrozeiro
lembra a agonia de Javé com os cânticos nos santuários urba­
nos. Também ali a desigualdade tentava coexistir no espaço
litúrgico com a hipocrisia de rituais que, mais do que qual­
q u er c o isa, m ascarav am a in ju stiç a p e rp e trad a pelo s
dominadores da cidade. Se a música da celebração hipócrita
ofendia os ouvidos e acendia a ira de Javé, o verso de pé-
quebrado da realidade nordestina arranca lágrimas e suspiros
da viola do cantador que nunca pode ser consolado de seu
choro.
Os versos de pé-quebrado são exatamente essa estranha e
desafinada mistura de beleza e opressão. O seu invólucro é a
nossa tão falada pós-modernidade que, dentre todas as suas ên­
fases, aparece como uma hiper-realidade. N a verdade, como uma
realidade virtual trazida pela tecnologia, cujo símbolo maior, sem
dúvida nenhuma, é o microcomputador com todas as suas
possibilidades de interconexões cibernéticas. N a maioria das
vezes essas interconexões disfarçam, ou mesmo reforçam, a nossa
incapacidade de realizar interconexões humanas, de promo­
ver relações íntimas e pessoais. Novamente, com as imagens do
mundo rural, o cantador coloca em versos os limites do espaço
cibernético e as contradições da pós-modernidade. N a música
M inha Home-Page, lembra de sons de cancela, cheiros de panela,
músicas de sanfona, zabumba e viola, conversas e amor com
meninas, a bela lua nova do Engenho e diz que tudo isso, felici­
dade e esperança, “se perdeu na capital” . Exatamente esse mun­
do, intenso e humano, não pode ser reproduzido pela frieza e
insensibilidade da realidade virtual.
DE PROFETAS E DE CANTADORES 119

Como é que eu vou dizer no meu computador


se a home page não tem cheiro e nem chora
Da alegria, da saudade e do amor
que o tempo nunca leva embora?

Incapaz de reproduzir as emoções e as apreensões efetivadas


pelos sentidos, o mundo virtual do computador só pode nos
trazer um mundo de aparências, onde o parecer é muito mais
importante do que o ser. Mas essa reprodução insensível da rea­
lidade, apresentada como a própria realidade, ou ainda mais real
do que esta, não seria neutra nem inocente. Serve a interesses e
alimenta o circuito de desigualdade-exploração-opressão que ali­
menta todo o processo de urbanização. Provocada e acelerada
para atender a interesses de grupos políticos e econômicos naci­
onais e internacionais, essa urbanização serve-se de todos os mei­
os de comunicação para difundir os seus valores. O poeta
cantador, profeta da evidência, denuncia um sistema de comu­
nicação que vende violência, crime e poder na embalagem da
fantasia. A “televisão de fantasia e violência aumenta o crime e
cresce a fome do poder.” Ou seja, os meios de comunicação não
veiculam mensagens neutras, mas informações cujo objetivo é
criar o ambiente propício para o lucro e para a manutenção do
sistema. Para isso estimulam o desejo, apelando à fantasia, em
uma erotização acrítica e consumista da realidade. O seu verso
repete com outras palavras a opinião do sociólogo Jair Ferreira
dos Santos sobre o processo de comunicação: “O circuito infor-
mação-estetização-erotização-personalização do cotidiano não é
inocente. Com modelos e imagens nos mass-media, ele é o
sangue dos sistemas pós-industriais. Cria a própria ambiência
pós-moderna”.
O pessimismo do poeta cantador é o pessimismo cotidiano
que não usa conceitos sociológicos, mas expressões da vivência
comum de todos nós. O mundo urbano é um “mundo sem
120 UM JUMENTINHO NA AVENIDA

amor”, onde se percebe “o desespero no olhar de uma criança”,


mas que, insensível e egoísta, “a humanidade fecha os olhos pra
não ver”. O mundo rural, sempre, é o mundo idealizado e serve
de modelo de comparação para a realidade urbana observada. A
cidade grande é o paraíso da loucura e o movimento de pessoas é
comparado, pelo poeta, a um formigueiro. Apinhada de gente, a
grande cidade não tem moradia adequada para todas as pessoas.
Surpreso pelo ritmo de vida e pela superpopulação, o poeta se
pergunta: “Meu Deus do céu, como é que a felicidade nesta
cidade achou um espaço pra morar?” A exclamação deve ser en­
tendida de modo crítico: a falta de habitação, a escassez do espa­
ço urbano, expulsa o projeto de felicidade, ou a deixa a vagar
desolada pela urbe, como um dos sem-teto da cidade.
A moça bela, a cidade grande, apresenta-se como esfuziante,
vivaz e constante festa e, em um primeiro momento, o poeta se
encanta com tudo isso. O jogo incessante de luzes, a oferta
diversificada de prazeres, a possibilidade multiplicada de diver­
sões, tudo isso parece produzir uma interminável e contagiante
alegria. Mas o poeta subitamente percebe um descompasso em
toda essa alegria e um problema básico em toda essa estrutura de
prazer. Nesse momento, o poeta passa do encanto ao desencan­
to, do deslumbramento à decepção, da alegria à desilusão.

Minha tristeza rejeitou tua alegria,


um belo dia quando pude perceber
que o progresso é que faz o teu dinheiro,
um cativeiro onde se mata pra viver.

A conjunção entre o processo de urbanização, o mecanismo


de industrialização e o sistema capitalista, em sua contradição
fundamental, é colocada nestes dois últimos versos: “O progresso é
que faz o teu dinheiro, um cativeiro onde se mata pra viver”. O
progresso industrial gera lucro, mas este é conquistado às custas
DE PROFETAS E DE CANTADORES

de vidas humanas. A aparente liberdade oferecida pela cidade,


na verdade, é uma prisão, um cativeiro que estimula a competi­
ção e a desumanização, cujo resultado inevitável é a morte. Todo
o sistema se alimenta e se nutre do sangue de pessoas que se
matam de diversas maneiras. Às vezes, o sistema manda matar,
literalmente, produzindo uma violência com variadas reper­
cussões. A violência cotidiana, pública e doméstica, seria apenas
um reflexo de um sistema fundamentalmente violento. O me­
canismo de aparente prazer é apenas um dos aspectos de um
aparato ideológico que serve à perpetuação da contradição do
sistema.
A última estrofe de Cidade Grande pode ser entendida como
um pungente grito de impotência ou como um dolente lamento
de teimosa esperança. Mais uma vez é o mundo rural que se
contrapõe ao urbano. A cidade precisaria aprender com o campo
uma nova maneira de viver, através de uma nova estrutura de
organização.

Cidade grande, se tu fosses minha um dia,


eu te mostraria como a abelha faz o mel.
Mas, quem sou eu? apenas um simples poeta
que vê a vida com os olhos para o céu.

O suspiro do poeta é o suspiro do operário pelo amor da


moça rica da janela. “Se tu fosses minha um dia...” A esperança
para a cidade é a mesma: ser devolvida a quem tem direitos sobre
ela. Quando a cidade voltar a ser do cidadão, poderá se tornar
mais humana e mais acolhedora. O trabalho não precisará ser
essa azáfama incessante e escravizante, sem poesia e sem realiza­
ção pessoal, e o seu produto poderá ter a doçura do mel. O
modo de produção urbano, como está estabelecido atualmente,
não é a única maneira de ser. Há alternativas a serem descobertas
ou redescobertas, quem sabe, com as abelhas. Entretanto, o
12 2 UM JUMENTINHO NA AVENIDA

poeta percebe os limites da sua esperança e da sua crítica. “Mas,


quem sou eu? apenas um simples poeta...” Não será a viola de
um cantador ou o suspiro de um poeta que efetuará as transfor­
mações desejadas. Ainda mais quando esse mesmo poeta “vê a
vida com os olhos para o céu”. Ou seja, ele é muito mais um
crítico da realidade, interessado em poesia e beleza, do que um
empreendedor ou um agente político ativo e realizador.

A cidade como calabouço infantil


Talvez a música mais bela de Petrúcio Amorim seja Meninos do
Sertão. Feita em parceria com outro “forrozeiro”, Maciel Melo,
descreve de modo idílico a vivência infantil sertaneja, cheia de
imagens líricas, traduzindo um cotidiano puro, vivo e ingênuo,
cheio de sonhos e de esperanças. Esse quadro serve de denúncia
da vivência dos meninos na cidade grande, os quais vivem uma
situação radicalmente diferente, em que os sonhos são substitu­
ídos por uma realidade cruel, e a esperança dá lugar ao desespe­
ro. Se a descrição rural, de novo, é puramente idealizada, repre­
sentada sem nenhuma mancha de contradição, a pessimista des­
crição urbana pode ser considerada muito próxima de uma rea­
lidade singularmente caótica. As crianças e adolescentes da grande
cidade são, sem dúvida, as maiores vítimas dessa urbanização
desumana.
Os meninos do sertão são uma lembrança da própria infância
vivida pelo cantador, de um passado que certamente não mais
existe, se é que alguma vez existiu fora dessa narrativa ideal. Como
criança, vivia “entre os pardais, catando estrelas, desenhando a
solidão” ou então no jardim, a beijar as flores, “qual borboletas,
bailarinas de quintais”. O seu destino se passava “bebendo so­
nhos”, onde a visão do arco-íris era a própria imagem da espe­
rança e onde “a liberdade, feito um pássaro de seda, voava alto
DE PROFETAS E DE CANTADORES

nos meus planos de menino”. Como criança, ouvia “estórias de


fuzis e generais”, aprendia rezas e escutava canções de violeiros.
Em suas traquinagens e travessuras de criança imitava os seus
heróis, típicos heróis nordestinos: “Luiz Gonzaga, Lampião e
Vitalino”.
Esses heróis merecem um comentário. Se Luiz Gonzaga
representa a música e a dança popular tipicamente nordestina,
com seu imenso e diversificado repertório e seus inúmeros e
diversos agentes, Mestre Vitalino, artesão artista de Caruaru,
representa a criatividade e engenhosidade do trabalhador do Nor­
deste, tanto nos tipos modelados pelo mestre, quanto na própria
atividade intuitiva do artista artesão. Lampião, entretanto, é uma
figura diferente e ambivalente. Se, por um lado, representa a
resistência sertaneja e nordestina ao sistema opressor, a pon­
to de poder ser classificado por Hobsbawm como bandido
social, sim boliza, por outro lado, a violência gratuita e
injustificada que ultrapassa qualquer limite imaginável, mas igual­
mente presente no imaginário nordestino: “Causar terror e ser
impiedoso é um atributo mais importante para esse bandido do
que ser amigo dos pobres”.9 Essa violência, para sermos since­
ros, também faz parte da cultura nordestina e constitui um
dos motivos reais pelos quais Lampião figura entre nossos he­
róis típicos.
A passagem do idílico passado rural para o presente urbano é
feita através de imagens de extrema força. Poeticamente constitui
um clímax preparado de modo perfeito. A contrastante situação
dos meninos urbanos surge como a imagem de uma violenta
explosão: historicamente, a própria imagem da explosão atômica
em Hiroshima que apressou o fim da Segunda Grande Guerra.
Quando me lembro dos meninos do sertão,
vejo Hiroshima nos olhares infantis.
124 UM JUMENTINHO NA AVENIDA

Vejo a essência da desigualdade humana


no verdadeiro calabouço dos guris.

O significado de uma Hiroshima, visível nos olhares infantis,


pode ser o da perplexidade e do desespero de crianças diante
de uma inimaginável explosão de violência urbana, de caráter
estrutural, mas refletida através de atos concretos — violên­
cia pública, doméstica, hierárquica ou delinqüente. Crianças
e adolescentes são as suas principais vítimas. Políticas inade­
quadas ou insuficientes na área de saúde, saneamento básico,
educação, habitação, salário, emprego, prejudicam e matam
especialmente as crianças. A frustração existencial de adul­
tos, decorrente de exclusão econômica ou de outras causas,
normalmente acompanhada de drogas ou bebidas alcoólicas,
transforma-se, na maioria das vezes, em violência doméstica
que recai especialmente sobre as crianças. Interesses ligados
ao capital transformam crianças em mão-de-obra explorável e
em objeto sexual de incentivo ao turismo. O crime organiza­
do, incluindo o tráfico de drogas, usa as crianças para peque­
nos serviços e mata parte delas por qualquer motivo. As cri­
anças e adolescentes de rua são vítimas de violência policial
ou de violência gratuita d &pseudo-justiceiros. Portanto, a ima­
gem de Hiroshima é perfeitamente adequada ao processo de
sistemático extermínio a que são submetidas as crianças das
cidades grandes.
Sendo o recipiente desse processo de extermínio, em vez do
pátio da liberdade aparente que atrai cada vez mais meninos
para a rua, a cidade grande; esta, verdadeiramente, é o calabouço
dos guris. É a grande masmorra onde são amontoados centenas
de crianças e adolescentes condenados ou à morte real ou a uma
subvida, tipo de morte lenta e dolorosa a que será submetida
boa parte deles. A cidade grande, a urbanização caótica e desu­
mana, é o espaço da “essência da desigualdade humana”. Diante
DE PROFETAS E DE CANTADORES

desse quadro, o coração do poeta bate calado, enquanto ele


próprio chora e implora a Deus “mais carinho e atenção: Tirai a
canga do pescoço dessa gente que só precisa de amor, trabalho e
pão”. Traduzir em palavras simples as necessidades complexas de
um povo ou de uma situação talvez seja função obrigatória de
qualquer poeta. “Amor, trabalho e pão” lembra inclusive o teor
das reivindicações dos camponeses russos, transformado em lema
por Lênin: “Paz, terra e pão” .
O final da canção admite que a realidade rural caminha
cada vez mais para o passado e coloca em dúvida esse presen­
te e futuro que se aproximam enigmaticamente. Lembra a
moeda norte-americana, tornada símbolo dessa globalização
desumanizadora, e a associa sutilmente a episódios concretos
de nossa história de violência:
Adeus meu carro de boi,
adeus pau-de-arara.
No ano dois mil e o que mal virá.
Dólar, Carandiru, Candelária...
Quando isso vai parar?
Será que será que será sempre assim,
será que assim sempre será?

A lembrança do massacre dos presos do Carandiru, e do


extermínio das crianças de rua na Candelária, são apenas o
símbolo de todos os outros massacres diretos ou indiretos
que acontecem cotidianamente na vida do país. Em vista disso,
os últimos versos são, mais uma vez, um grito de impotência,
uma exclamação de puro desespero: “Será que será que será sem­
pre assim, será que assim sempre será?” N o Nordeste urbano,
pós-moderno e globalizado, a cidade grande, moça aparente­
mente bela que faz versos de pé-quebrado, na realidade, é a imensa
sela de uma prisão, calabouço onde crianças e adolescentes
aguardam a execução de sua sentença de morte.
126 UM JUMENTINHO NA AVENIDA

A outra face da cidade

Tanto na visão do profeta Am ós quanto na do cantador


quase-profeta Petrúcio Amorim, a cidade grande, símbolo da
urbanização, é espaço de sofrimento, contradições, exploração
e opressão. Em contrapartida, o campo é o lugar da natureza
harmônica, da beleza verdadeira, dos relacionamentos perfeitos
e dos sonhos cor-de-rosa. Essas duas imagens contrastantes
podem ter as suas vantagens. Mas podem refletir somente aspec­
tos parciais de realidades complexas, mascarando, no mundo
rural, sistemas esquecidos de dominação e de humilhação e, na
realidade urbana, possibilidades de construção, de criatividade e
de liberdade, impossíveis na vivência campestre. Nesse último
caso, tentaremos mostrar a viabilidade de uma urbanização mais
humana, mais adequada à vida e mais plena de possibilidades de
histórias de realização pessoal e comunitária.
Aquele ambiente rural, excessivamente idealizado, espécie de
paraíso perdido, inocência violada pela urbanização, lugar onde
homens, mulheres e crianças desfrutavam de uma situação de
bem-estar, não seria, em hipótese nenhuma, o ambiente concre­
to. Neste, a criança de cinco anos de idade se levantava para
trabalhar de sol a sol (ainda acontece); o trabalhador sem-
terra era (e ainda é) obrigado a se sujeitar a regimes de trabalho
mais aviltantes do que a própria escravidão; e ainda o pequeno
proprietário era sistematicamente expulso da terra pela concor­
rência desleal do latifúndio e pelo descompasso contínuo causa­
do por juros exorbitantes sobre empréstimos e financiamentos
que não conseguia saldar (tudo isso ainda acontece).
Não é o campo das vidas tão secas como a própria seca, como
descreve Graciliano Ramos, nem de personagens tão escaldadas
quanto o grande deserto do Sussuarão de Guimarães Rosa. Nes­
sa dicotomia entre o utópico e o real, o campo tem unicamente
a função de traçar o contraponto necessário, cosmos rural
DE PROFETAS E DE CANTADORES 127

contrastante com o caos urbano, memória e esperança de outro


mundo e de outra vida. A nostalgia do rural é uma característica
presente na nossa experiência urbana contemporânea, e isso se
deve, entre outras coisas, à própria velocidade do processo de
urbanização. Muitos de nós conhecemos em nossa infância ou
juventude uma roça de verdade, antes que estas praticamente
desaparecessem sob a influência inevitável da globalização. Se
isso não aconteceu, nossos pais ou avós nos legaram histórias
campestres, tão ardorosas e românticas, que nos incitaram a ima­
ginação e nos acenderam o desejo.
Do mesmo modo que não podemos idealizar demasiadamente
o campo, não podemos estigmatizar em demasia a cidade. Além
do mais, o fenômeno da urbanização é irreversível e, de acordo
com Harvey Cox, “o Evangelho não chama o homem a regressar
a um estágio prévio do seu desenvolvimento”.10 Pelo contrário,
somos chamados a viver e a celebrar a nossa realidade concreta, a
aceitar e a amar a cidade, descobrindo beleza, vida e possibilida­
des nela, mesmo admitindo todas as suas contradições. O exer­
cício de olhar a cidade, percebendo beleza e bondade, é pleno
momento de espiritualidade, de profunda imersão no mistério
do olhar de Deus e de profunda descoberta dos mistérios da
cidade. Novamente, para Cox, o chamado de Deus para nós “é
um chamado a ser um homem desta era técnica, com todas as
suas implicações, procurando transformá-la numa residência hu­
mana para todos os que vivem dentro dela”.11 Proporemos um
olhar celebrativo sobre a cidade a partir de três ênfases, entre as
muitas que José Comblin propôs em seu livro Viver na Cidade:
pistas para a pastoral urbana.

A cidade como festa e espetáculo


O que caracteriza o campo são os ritmos regulares e repetitivos.
O tempo é um eterno retorno das mesmas coisas, um presente
128 UM JUMENTINHO NA AVENIDA

que se estende de modo totalmente previsível. As festas, que


rompem esse ciclo, são de pequena monta e de pouca variedade.
Não podem ser comparadas à exuberância e à variação de ofertas
de festividades expostas na cidade. Nesta, o tempo é o desfile
veloz de constantes novidades, futuro que se tece de modo
imprevisível. Teatros, cinemas, shows de toda espécie e competi­
ções esportivas compõem o cardápio de lazer e oferecem possibi­
lidades de diversões não experimentadas no âmbito rural. O pró­
prio espaço urbano torna-se em espetáculo que mesmo quem
não tem dinheiro pode desfrutar. No Nordeste, capitais praiei-
ras oferecem a democrática orla marítima a toda a população.
Com uma pequena peça para banho, a classe social de cada um
pode ficar perfeitamente disfarçada e esquecida. Vitrines de lojas
e de shopping centers demonstram uma variedade de produtos
de consumo, que estão pelo menos ao alcance do olhar de
cada um. Por tudo isso, a cidade pode ser chamada o lugar da
festa e do espetáculo.
Olhada com desconfiança pela ótica rural, essa festividade
apresenta aspectos positivos que desafiam a nossa criatividade, a
nossa teologia e a nossa espiritualidade. Afinal, a festa é símbolo
do reino de Deus, antecipação da inversão escatológica, quando
celebraremos uma comunhão nunca desfrutada antes. Herdeiros
de uma teologia neoplatônica e agostiniana que desconfia do
prazer, somos convidados pela cidade a redescobrir a humanização
da festa, a reintegrar a alegria e a emoção em nossa teologia, a
encontrar caminhos de aproximação celebrativa com a imensa
celebração da cidade grande. Comblin afirma que a cidade “é
novidade, diversidade, mobilidade, movimento”.12 Sendo assim,
pode desafiar as nossas igrejas à criatividade e à agilidade, a
partir de um compromisso e de um engajamento com a agenda
do Espírito que age na história concreta dos homens e das
mulheres.
DE PROFETAS E DE CANTADORES 12 9

N a busca de um a espiritualidade celebrativa, de um


aprendizado de amor pela cidade, Robert Linthicum propõe
a .contemplação desta, a partir de sete lugares escolhidos, com
uma atitude de oração, tendo na mão a Bíblia e um caderninho
de anotações para escrever impressões obtidas a partir desse
exercício.13 Se não quiser escolher pessoalmente sete lugares,
propomos pelo menos a peregrinação contemplativa por três
locais estratégicos: o shopping center, a favela e o estádio. São três
símbolos diferentes da urbanização. Cada um possui a sua pró­
pria beleza e o seu próprio encanto em meio às suas evidentes
contradições. O exercício do encantamento ou do reencantamento
pela cidade nos ajuda a não nos perdermos e a não nos exaurir­
mos na nossa luta cotidiana pela construção de uma cidade me­
lhor, e a nos reabastecermos de graça e de leveza, sem as quais a
missão se torna penosa e frustrante.
Em vista disso, ser cristão nordestino, urbanizado, globalizado
e pós-moderno, não precisa necessariamente ser uma limitação,
porém, um caminho de possibilidades ainda não totalmente ex­
ploradas. Sem ingenuidade, mas também sem um sentimento
de mutilação, o espaço e o tempo urbanos atuais nos desafiam
a novas e inusitadas imersões. Crer no Senhor como Senhor
da história é crer na história com o lugar de vocação e de
compromisso ao mesmo tempo que lugar de encontro com a
graça, afeto e ternura do Pai. A partir daí, o shopping center, com
toda a sua carga de símbolo de sedução e de exploração, pode ser
transformado em lugar de compreensão da complexidade do
desejo humano. O estádio, figura de competição e de alienação,
pode se tornar lugar de manifestação da alegria coletiva e trans­
formar-se em símbolo de inclusão e do potencial gerado pela
paixão. A favela, figura de exclusão causada pela opressão, pode
se tornar em símbolo de resistência e de criatividade huma­
na. É impressionante perceber em uma favela as inúmeras
130 UM JUMENTINHO NA AVENIDA

soluções encontradas para os pequenos problemas estruturais e


existenciais vividos no dia-a-dia. Uma árvore plantada, uma lona
adaptada, um objeto usado com finalidade totalmente diversa
da projetada, um prato de feijão repartido, atestam dignidade,
criatividade, solidariedade e engenhosidade humanas, não
destruídas pela força da opressão.

A cidade como convite à liberdade


Em sua imobilidade e regularidade, o campo se coloca como
símbolo de uma vida de paz e de plena felicidade. Ainda mais,
essa paz e felicidade estariam sendo desfrutadas de modo natural
como plena expressão da realização pessoal de cada um. Quando
estudamos e observamos o campo em sua estrutura concreta,
somos forçados a admitir que essa paz e felicidade aparentes se
constroem sob o preço do sacrifício da individualidade e da li­
berdade. Os mecanismos de opressão e de conformação são mais
fortes no campo do que na cidade, e as sanções sociais que sem­
pre atingem o desviante são bem mais eficazes nesse mundo ru­
ral de relações mais simples. Comblin afirma:

A emigração para a cidade aparece desde há séculos como


um grande ato de emancipação. Quem vai para a cidade
sacode a dominação da família, dos costumes, dos chefes
tradicionais — até dos chefes da Igreja tradicional — , e
da voz pública, que é um juiz onipresente.14

Contrastando com o campo, portanto, a cidade surge como


um convite à tolerância diante da pluralidade de opiniões e op­
ções que se vão estabelecendo naturalmente, a partir dessa
complexificação de relações que vai caracterizar o mundo urba­
no. Quando os vínculos sociais primários são substituídos por
vínculos secundários, perde-se às vezes em segurança e afetividade,
mas se ganha também em liberdade e diversidade. Com todas
DE PROFETAS E DE CANTADORES 131

as limitações, a cidade oferece aos seus moradores bem mais


liberdade moral, econômica, política e religiosa do que o campo.
Por isso, a cidade é o espaço das mudanças de comportamento e
de opinião pessoal em todas as áreas e o migrante está pronto a
enfrentar novas experiências e a assumir novos desafios de vida.
De certo modo, a passagem da sociedade rural para a urbana
pode ser considerada o trânsito de uma consciência coletiva
intransitiva e ingênua para uma consciência individual. Resistir,
rebelar-se e não se conformar passam a ser as novas atitudes pos­
síveis no novo espaço com a sua nova exigência de organização.
No mundo rural, o indivíduo se acha naturalmente submetido
às pressões coletivas do costume e da tradição, continuamente
manipulados pelos interesses de grupos dominantes rurais ou
urbanos. Raramente acontece ali a dissidência e a rebelião. Os
sujeitos se encontram submetidos não apenas como moradores
ou trabalhadores, mas como consciências. Aceitam as regras
estabelecidas sem questionamento e repetem os ditos que as
acompanham como se fossem da própria ordem da natureza.
A consciência deles faz parte da paisagem de tal maneira que
experimentam qualquer rebelião como violação ecológica, como
contradição fundamental de natureza cósmica.
Como espaço possível para a rebeldia e a dissidência, a cidade
cumpre um papel positivo no sentido de levar o homem a uma
maior consciência de si mesmo. N o campo tudo já está ordena­
do e pré-determinado; na cidade tudo se encontra ainda por
fazer. Nesse sentido, o indivíduo experimenta a cidade como sua
cidade e se percebe como alguém que é chamado a dar a sua
contribuição de modo próprio, sem precisar repetir receitas an­
tigas. O espaço da liberdade é igualm ente o espaço da
inventividade e da criatividade. Em nome de si mesmo e das
suas possibilidades é que se rebela contra o antigo e contra o
atual. Nem mesmo a lei escapa aos seus questionamentos e à sua
13 2 UM JUMENTINHO NA AVENIDA

rebeldia. Por isso, muitas vezes, assume a delinqüência, como


forma de afirmação de sua nova liberdade.
Q uando a consciência individual assum e a form a da
delinqüência para se expressar, mostra claramente a sua insu­
ficiência. Como rompimento com uma consciência coletiva
acrítica e inclusa, representa um avanço; como mera consciência
individual, não produz vida nem cria história. A consciência in­
dividual precisa se transformar em consciência solidária para poder
transformar a cidade. Diferente da consciência coletiva, a cons­
ciência solidária mantém os ganhos da individualidade, mas sub-
mete-se conscientemente a um projeto de construção coletiva.
Não abdica da própria vida, mas também não se isola nem busca
formas destrutivas de afirmação pessoal. Com o consciência
solidária se propõe, ao mesmo tempo, como ser político e ser
histórico, e busca a associação e a organização com outras
consciências, igualmente solidárias, políticas e históricas.

A cidade como motor da história


A partir dessas últimas afirmações, podemos dizer que a cidade é
o verdadeiro motor da história. Par a Comblin, “o campo quase
não tem história. Também não tem memória. As cidades geram
uma história e transmitem a memória da sua história, mesmo
que seja pelos monumentos ou pelos nomes das ruas ou praças”.15
Toda a esperança das grandes cidades reside exatamente nisto:
elas são instrumentos da história e, portanto, a possibilidade
real de transformações. Ser cidadão, por conseguinte, não é se
colocar numa atitude passiva diante dos acontecimentos, como
se habitássemos ainda o mundo rural, como se fôssemos pedras,
plantas ou animais, sujeitos às leis da natureza. Ser cidadão é
assumir a cidade como seu espaço e apostar conjunta, consciente
e eficientemente, em um projeto histórico de cidadania. E crer
DE PROFETAS E DE CANTADORES

que cidade e história se pertencem como dois componentes de


um mesmo conjunto de intenções.
Aliás, a cidade serviu como modelo para a primeira filosofia
de história que nós conhecemos. O livro A Cidade de Deus, de
Santo Agostinho, que pretende responder a acusações pagãs so­
bre uma pretensa culpa dos cristãos na derrocada de Roma, in­
terpreta toda a história universal. Ele faz isso a partir do conflito
entre duas cidades: a Cidade de Deus e a Cidade do Homem:

Dois amores fundaram, pois, duas cidades, a saber: o amor


próprio, levado ao desprezo a Deus, a terrena; o amor a
Deus, levado ao desprezo de si próprio, a celestial. Gloria-
se a primeira em si mesma e a segunda, em Deus, porque
aquela busca a glória dos homens e tem esta por máxima
glória a Deus, testemunha de sua consciência. Aquela
ensoberbece-se em sua glória e esta diz a seu Deus: sois
minha glória e quem me exalta a cabeça. Naquela, seus
príncipes e as nações avassaladas vêem-se sob o jugo da
concupiscência de domínio; nesta, servem em mútua
caridade, os governantes, aconselhando, e os súditos,
obedecendo.16

O modelo de cristandade medieval aplicado na Idade Média


teria tido sua justificativa nesse livro de Santo Agostinho sobre
as duas cidades. A primeira, a Cidade do Homem, voltada para
si mesma, teria sido o germe de toda injustiça social e de todo
sofrimento humano. A segunda, a Cidade de Deus, seria res­
ponsável por toda a bondade, beleza e verdade da história da
humanidade. Para Agostinho, a história seria o palco de encon­
tro e de luta dessas duas cidades. Quando a cidade de Deus
prevalece, há um período de paz e de justiça se estabelecendo na
história. Quando quem prevalece é a cidade do homem, guerras,
violências, conflitos e injustiças acontecem constantemente. O
único problema do modelo, além da hierarquia excessivamente
134 UM JUMENTINHO NA AVENIDA

legitimada, é estabelecer essa radical dicotomia entre Deus e o


homem. Por isso, talvez fosse mais legítimo restaurarmos as anti­
gas idéias da cidade como lugar de encontro entre Deus e o
homem. Juntos, eles podem fazer história. Separados, ou em
conflito, a cidade se transforma na simbólica Babilônia, a cidade
que caminha para a destruição, sem futuro e, por conseguinte,
sem história.
Realizar história é fazer política. Quando Deus e o homem se
encontram para fazer história, encontram-se para fazer política.
A participação política da Igreja na cidade é o que está em jogo,
então. Aliás, o termo política vem da palavra cidade, pólis, em
grego, e os gregos consideravam a atividade política como a ati­
vidade moral mais nobre existente. Assim entende Aristóteles:
O todo existe necessariamente antes da parte. As sociedades
domésticas e os indivíduos não são senão as partes inte­
grantes da Cidade, todas subordinadas ao corpo inteiro,
todas distintas por seus poderes e suas funções, e todas
inúteis quando desarticuladas, semelhantes às mãos e aos
pés que, uma vez separados do corpo, só conservam o nome
e a aparência, sem a realidade, como uma mão de pedra.
O mesmo com os membros da Cidade: nenhum pode
bastar-se a si mesmo. Aquele que não precisa dos outros
homens, ou não pode resolver-se a ficar com eles, ou é um
deus, ou um bruto.17

Nem deuses, nem brutos, nem animais; como seres humanos


e como cristãos, precisamos ser políticos. E isso só o fazemos
como parte de um todo e nos organizando para agir com outras
partes. Somos, como Igreja no Nordeste e vivendo basicamente
uma realidade urbana, membros da sociedade civil e, por conse­
guinte, participantes políticos da cidade. Isso significa que, quei­
ramos ou não, fazemos política - ou conformista e alienada ou
transformadora. Precisamos assumir consciente e evangelicamente
DE PROFETAS E DE CANTADORES

o nosso papel na cidade e, como servos, não podemos fazê-lo


sozinhos. Participar de manifestações organizadas, assum ir
posições públicas claras, entre outras atividades visivelmente
políticas, é um direito e um dever de quem pretende agir
consciente e evangelicamente. Opressão, exploração, discrimi­
nação, atingem prioritariamente o pobre e desagrada profunda­
mente a Deus. Encontrar-se com Deus na cidade, histórica e
politicamente, é agir de modo legítimo contra toda forma de
ilegítimas opressão, exploração e discriminação.
Nas grandes cidades do Nordeste, como parte de um projeto
de espiritualidade e de ação concreta da Igreja, a questão política
está associada inevitavelmente à questão ecológica. Clóvis Pinto
de Castro propõe como prioridade da Igreja uma ação “eco-soli-
dária”. À agressão ao meio ambiente inclui a agressão ao pobre,
exposto como um conjunto de corpos em decomposição aos olhos
de uma sociedade excludente.
São homens, mulheres, crianças e idosos semi-mortos, com
seus corpos expostos nas ruas, viadutos, praças, favelas e
periferias das cidades, na esperança de encontrar pessoas
que possam ajudá-los (as) na recuperação de sua dignida­
de e cidadania.18

A agressão que atinge o meio-ambiente na cidade, e ameaça a


vida de todo o planeta, amplia a responsabilidade política da
Igreja. A proposta eco-solidária de transform ação da cidade
inclui problemas antigos e novos na mesma agenda. Leva-nos a
repensar a nossa espiritualidade, a nossa teologia e a nossa
ação política e histórica.
Capítulo 6

A IGREJA EVANGÉLICA E O
NORDESTE BRASILEIRO

N o s s a proposta aqui é fazer uma análise lúcida e lúdica da


realidade nordestina a partir de nossa experiência pessoal e
das informações obtidas através de textos e documentos. N ossa
intenção é analisar seriamente a situação do Nordeste, embora
não tenhamos a pretensão de fazer uma análise neutra, afinal,
somos nordestinos, o que nos torna inevitavelmente comprome­
tidos com a cultura nordestina — e completamente apaixona­
dos por ela. Mesmo tentando manter um espírito crítico, não
podemos esconder que nos sentimos privilegiados ao ver esse
povo que luta pela sobrevivência, tanto no sentido físico como
cultural, em ergir diante de um processo excludente e
massificante, de natureza avassaladora.
Da mesma forma, temos visto emergir em meio ao povo uma
Igreja Evangélica com reais características nordestinas. N a
verdade, essa Igreja é como o sopro de uma prom essa ou
uma pequena faísca, mas já podemos perceber alguns sinais de
crescimento, que nos levam a esperar que o sopro se transforme
138 UM JUMENTINHO NA AVENIDA

em furacão e a faísca em um grande incêndio. Uma Igreja


Evangélica assim poderá reencontrar a sua missão ou diaconia e
servir de apoio para a plena vitória do Nordeste sobre todas as
suas contradições. Enquanto isso não acontece, o Nordeste bra­
sileiro continua à espera de uma diaconia da Igreja Evangélica.
Devemos deixar claro que quando nos referimos à Igreja
Evangélica, o fazemos de forma meramente descritiva, tentando
encontrar um conceito que possa incluir todas as expressões ecle­
siásticas decorrentes da Reforma Protestante ou das diversas re­
formas ocorridas no século 16. A expressão em si não carrega
nenhum juízo de valor. É usada aqui em oposição à outra expres­
são da igreja no Nordeste, a Igreja Católica, sem nenhuma
conotação discriminatória. Descritivamente, reconhecemos as
diferenças das duas expressões, de modo que uma análise da igreja
no Nordeste sem esse recorte inicial torna-se inadequada. Reco­
nhecemos que em relação às questões de responsabilidade social,
envolvendo p ro p o stas p astorais e ativid ad es sociais
transformadoras e libertadoras, a Igreja Católica tem uma histó­
ria recente muito mais rica e abrangente do que a Igreja Evangé­
lica, e de certa form a, todos nós temos sido desafiados e
impactados por essa postura. Esse impacto produzido na teolo­
gia pela Igreja Católica e na prática pela Igreja Evangélica, espe­
cialmente no Nordeste, merece uma investigação mais acurada,
que não cabe nesse espaço.

Mendigos que falam alemão e artistas de rua


que fazem shows beneficentes

Para fazer uma análise de conjuntura do Nordeste brasileiro, nos


reportaremos a duas situações exemplares. A primeira delas é
a que chamaremos de O Caso do Mendigo Negro que Falava
Alemão.
A IGREJA EVANGÉLICA E 0 NORDESTE BRASILEIRO [ 139

Certo pastor de uma igreja evangélica localizada numa das


capitais do Nordeste resolveu desenvolver um trabalho pastoral
com os moradores de rua da cidade, especialmente os mendigos
e sem-teto. Enquanto caminhava pela cidade, encontrou um casal
de negros maltrapilhos, que dormia nas calçadas da cidade e
batia nas casas para pedir comida. O pastor procurou conhecer
um pouco mais sobre esse casal, e descobriu que ambos tinham
formação superior. O mendigo, além de ter um bom currículo
profissional, também falava alemão. Circunstâncias adversas fi­
zeram com que eles perdessem seus empregos, obrigando-os a
procurar trabalho em outros lugares. Depois de muitas andanças,
chegaram àquela cidade, em situação de absoluta miséria. Eles
não tinham nem a roupa nem a cor adequada para conseguir um
emprego.
A figura do “mendigo negro que falava alemão” é a própria
imagem do Nordeste brasileiro, que exibe uma situação atual de
miséria aliada a uma história de abundante participação na for­
mação intelectual do País. Baianos como Rui Barbosa, Castro
Alves e Jorge Amado, maranhenses como Gonçalves Dias e Josué
Montello, pernambucanos como Manuel Bandeira e João Cabral
de Melo Neto, são alguns exemplos de nordestinos que contri­
buíram para a formação de uma cultura literária brasileira.
Entretanto, gostaríamos de evocar neste momento a extraor­
dinária e curiosa figura de Tobias Barreto, um irrequieto e inte­
ligente mulato sergipano, que passou rapidamente por Salvador
e se fixou em Recife. Tobias Barreto era fascinado pela filosofia
alemã. Autodidata, estudou por esforço próprio e, em curto es­
paço de tempo, aprendeu a língua germânica, chegando a editar
um jornal totalmente escrito em alemão.
A busca de erudição por esforço próprio e o fascínio pelas
terras estrangeiras fez desse nordestino o nosso filósofo exem­
plar. Fruto da colonização européia, nossa cultura sofreu as
140 UM JUMENTINHO NA AVENIDA

conseqüências da ambigüidade de sua situação, procurando se


afirmar em função de valores externos, fossem eles da educação
francesa, da filosofia alemã ou da ideologia norte-americana. Mas
ao mesmo tempo, não conseguiu esconder suas próprias marcas
(nem deveria tentar escondê-las) de cultura oprimida e margi­
nalizada, porém capaz de produzir valor cultural próprio, varia­
do e apreciável.
A colonização nordestina persiste até hoje, apenas com uma
forma diferente. E em todos os nordestinos ainda perdura uma
certa ambigüidade: se por um lado permanece um sentimento
de valorização de sua própria cultura, por outro lado, persiste
uma sedução pela cultura estrangeira, veiculada agora por uma
mass media de interesse puramente comercial, inserida em um
mercado globalizado e massificante. Algumas expressões reve­
lam essa tendência à miscigenação, como axé music e mangue
Science., que unem termos regionais {axé, mangue) com palavras
estrangeiras. Essa curiosa tendência também se manifesta em
outras formas de afirmação cultural, veiculadas através de ex­
pressões como “catingueiros” e “forró de pé-de-serra” que, se ob­
servadas cuidadosamente, revelam ainda outras influências em
sua formação, diferentes das raízes culturais que pretendem
defender.
Essa complexa mistura de regionalismos, atração por coisas
estrangeiras e interesses comerciais tem produzido alguns episó­
dios interessantes. Recentemente, uma rede de supermercados
tipicamente nordestina teve parte de seu capital transferido para
uma empresa multinacional holandesa. Enquanto transcorria a
operação comercial de transferência do capital, as lojas da rede
de supermercados ostentavam amplamente o slogan: “orgulho
de ser nordestino”. O curioso é que mesmo depois de ter passa­
do totalmente para as mãos dos holandeses, o supermercado con­
tinuou mantendo esse mesmo slogan.
A IGREJA EVANGÉLICA E 0 NORDESTE BRASILEIRO I 141

Outro caso interessante é o de um artista ambulante, que já


nos serviu de motivo para uma breve reflexão teológica, e agora
poderá nos ajudar a entender melhor o Nordeste.1
Robert Jean, um artista ambulante muito popular no Nordeste,
costuma se apresentar nas praças, exibindo suas habilidades como
malabarista, contorcionista, engolidor de fogo e comedor de vi­
dro, em troca de um pouco de dinheiro para se sustentar. Certa
vez, ele se apresentou durante uma semana numa das praças
centrais da cidade do Recife. Todo o dinheiro apurado naquela
semana foi doado aos pobres que vivem na região do mangue,
nas proximidades do seu bairro. Ele fez isso para pagar uma pro­
messa que havia feito à sua santa protetora, por ter sido curado
de hepatite.
N a verdade, Robert Jean é um nome artístico, o verdadeiro é
Agenor, um nome muito comum para quem sonha em subir na
vida. Por isso achou melhor mudar de nome, de preferência um
nome estrangeiro. Intuitivamente, o nome escolhido é uma mis­
tura de inglês com francês, apontando para as duas principais
influências da cultura brasileira.
Agenor, um mulato subnutrido, semi-analfabeto, vinte anos
de idade e sete irmãos para sustentar é um representante típico
desse outro Nordeste. Rico em picardia e habilidades, pobre em
oportunidade, assistência médica e educação. Excluído, mas cri­
ativo; discriminado, mas devoto. Um verdadeiro “artista da vida
e equilibrista da fé”, parafraseando uma canção do falecido com­
positor Gonzaguinha.
Os personagens dessas duas histórias são pobres, assim como
pobre é o Nordeste de onde eles vêm. Entretanto, convém lem­
brar que eles não são apenas pobres — foram empobrecidos.
Porém, apesar de sua condição miserável, eles preservam sua
dignidade, e ninguém consegue lhes roubar isso. São pobres
e dignos, pobres e criativos, pobres e orgulhosos.
142 UM JUMENTINHO NA AVENIDA

A história do empobrecimento do Nordeste


brasileiro

Seja qual for o critério adotado pelas pesquisas — PIB, renda per
capita, número de famílias pobres ou indicadores sociais — o
Nordeste sempre aparece como a região mais pobre do Brasil.2
N a década de setenta, quando ainda se dividia o mundo em
três regiões econômicas, o economista Celso Furtado classificou
o Nordeste como pertencente ao Quarto Mundo, pela sua con­
dição de extrema pobreza. Desde então, a situação só tem se
agravado. Mesmo na década de noventa, quando o Nordeste
manifestou um crescimento maior do que o Brasil considerado
em sua totalidade, a pobreza da região ainda assim aumentou,
resultado de um sistema de distribuição de renda perverso, ba­
seado na exclusão.
Dez das cidades mais pobres do Brasil situam-se no Nordeste,
sendo sete delas no Estado de Alagoas. São José de Tapera, no
sertão das Alagoas, é considerado o município mais pobre do
país; sua mortalidade infantil é de 71,94 a cada mil nascimentos
e a taxa de analfabetismo de 36,28%. A título de comparação, a
taxa de mortalidade infantil do Brasil é de 35 por mil nascimen­
tos (considerada alta) e a taxa de analfabetismo é de 15%.
De acordo com dados da Unicef (1999) 150 das cidades com
maior índice de desnutrição se encontram no Nordeste, sendo
que 33,66% das crianças com menos de cinco anos apresentam
sinais claros de desnutrição. Cerca de 30% da população de todo
o país se encontra no Nordeste, e ali se concentram 62% dos
pobres do país. Metade de sua população possui uma renda
familiar de meio salário mínimo.
Entretanto, ao lado desses altos índices de miséria social, o
Nordeste possui uma grande reserva de recursos minerais, como
jazidas de granito, pedras preciosas e semipreciosas. O Estado
A IGREJA EVANGÉLICA E 0 NORDESTE BRASILEIRO

do Rio Grande do Norte produz 95% do sal consumido no país


e o Estado de Pernambuco 95% do gesso, além de produzirem
gás natural e petróleo. Aliás, o Estado do Rio Grande do Norte
é responsável por 11 % da produção de petróleo do Brasil, sendo
o segundo Estado produtor, atrás apenas do Rio de Janeiro.
Portanto, considerado isoladamente, o Nordeste não apre­
senta nenhum déficit energético. Apesar de sofrer as conseqüên-
cias da aplicação de uma política neoliberal caracterizada por
uma onda voraz de privatizações e pela omissão de investimen­
tos para ampliação e manutenção da rede, seu sistema hidrelé­
trico permanece eficiente, mesmo diante da escassez de chuva
em várias partes da região.
O povo nordestino tem sido vítima de preconceitos e consi­
derado um povo preguiçoso, característica atribuída à influência
da miscigenação com o negro e, principalmente, com o índio.
Como resultado dessa mistura de raças surgiu um povo apático e
modorrento. Essa imagem é totalmente falsa, pois não reconhe­
ce o esforço do trabalhador braçal, do campo ou da cidade, que
começa a trabalhar ainda criança, muitas vezes em condições
desumanas, sujeito à doenças, subnutrição e desemprego. Além
disso, essa visão revela um completo desconhecimento da histó­
ria das lutas travadas pelos negros e índios contra o colonizador
branco, interessado apenas em usá-los como mão-de-obra escrava.
A produção cultural erudita e popular do povo nordestino
também não permite que se atribua à pobreza sua falta de capa­
cidade criativa. Criativo na arte popular e erudita, na literatura e
na busca de soluções para os problemas políticos, econômicos
ou de outras áreas, o povo nordestino tem demonstrado
inquestionáveis realizações, apesar das condições adversas. O sis­
tema de alfabetização desenvolvido por Paulo Freire e celebrado
no mundo inteiro é um bom exemplo da capacidade do povo
nordestino.
UM JUMENTINHO NA AVENIDA

Portanto, a miséria do Nordeste não decorre da ausência de


recursos naturais, muito menos da má vontade ou incapacidade
do seu povo, como sugere o preconceito de alguns pensadores.
De acordo com a análise de Manoel Correia de Andrade, essa
situação seria fruto de um desenvolvimento histórico, político e
social desfavorável.3 O deslocamento do eixo de influência polí­
tica do Nordeste para o Sudeste, em um processo gradual e
inexorável, condenou o Nordeste a uma situação de dependên­
cia e definiu o seu progressivo empobrecimento. A exploração
do ouro nas Minas Gerais e a valorização do café no mercado
internacional foram os dois grandes acontecimentos históricos,
do ponto de vista econômico, responsáveis por esse deslocamen­
to. Do ponto de vista político, a instalação da família real no Rio
de Janeiro e a política oligárquica do café com leite, com Minas,
Rio de Janeiro e São Paulo se revezando harmonicamente no
poder, garantiram e consolidaram aquilo que os fatores econô­
micos já haviam sugerido. Acrescente-se a tudo isso a falência da
política agrária de monocultura, engolida pela multiplicação das
culturas de cana-de-açúcar pelas colônias do mundo todo, e te­
remos o quadro quase completo do processo devastador da
hegemonia nordestina na história do Brasil.
Um fato ocorrido na cidade de Recife revela o que isso signi­
ficou na prática. N o começo do século 19, antes que a cidade
tivesse qualquer tipo de iluminação nas ruas, seus moradores
pagavam uma taxa para a iluminação pública da cidade do Rio
de Janeiro. Desse modo, a corte imperial desfrutava de uma boa
iluminação nas ruas da cidade que havia se tornado a capital da
colônia transformada em Reino Unido, enquanto que os recifenses
permaneciam no escuro. Portanto, a vinda da família real para o
Rio de Janeiro consolidou a instalação do sistema colonial nas
relações políticas internas. O Nordeste, na prática um expor­
tador de matéria-prima e de mão-de-obra barata e repassador
A IGREJA EVANGÉLICA E 0 NORDESTE BRASILEIRO 145

de tributos arbitrados pela família real, firmava sua posição de


colônia interna do Sudeste do Brasil.

Quando Severino Retirante se tornou o Biu dos


Olhos Verdes

A peça Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto, é


um auto de Natal que narra de forma poética a saga de um
Severino como tantos outros, lavrador de terra seca, que migra
para a cidade grande para fugir da morte, definida como “morte
severina”. “Severino”, um nome comum na região, vive sua “vida
severina” em uma região rural ingrata e inclemente, que sempre
acaba de modo implacavelmente duro numa “morte severina”.
E se somos Severinos
iguais em tudo na vida,
morremos de morte igual,
mesma morte severina:
que é a morte de que se morre
de velhice antes dos trinta,
de emboscada antes dos vinte,
de fome um pouco por dia
(de fraqueza e de doença,
é que a morte severina
ataca em qualquer idade
E até gente não nascida).4

Severino Retirante, seguindo pelas margens do Capibaribe,


chega finalmente, depois de várias peripécias e de vários encon­
tros, à cidade do Recife, objetivo final e esperançoso de sua via­
gem. Ali fica surpreendido e chocado ao ouvir a conversa crua e
realista de dois coveiros sobre a morte de um retirante igual a ele
e pensa seriamente em se suicidar, convencido de que esta “vida
severina” não vale a pena. Mas ele não se suicida e a história tem
um final feliz, ou parcialmente feliz. O nascimento do filho de
146 UM JUMENTINHO NA AVENIDA

Seu José Mestre Carpina o faz desistir da idéia de suicídio e


surge como a própria resposta da vida. Ele sente que vale a pena
viver mesmo quando a vida é mirrada e franzina, mesmo quando
é “vida severina”. O nascimento de uma criança também é en­
tendido como uma mensagem de esperança para quem migra
para a cidade grande e não encontra o sonho tão acalentado do
emprego e de melhores condições de vida.
Hoje, poderiamos afirmar que a história mudou drasticamente.
O “Severino Retirante” de ontem transformou-se no Biu dos
Olhos Verdes de hoje. Se na zona rural todo mundo é “Severino”,
no Nordeste todo “Severino” é Biu. Biu dos Olhos Verdes, um
bandido que aterrorizou, por alguns anos, as populações subur­
banas do Recife tornou-se uma lenda por sua crueldade e pelas
atrocidades praticadas. O Severino da peça teatral trocou apenas
de pobreza: deixou de ser pobre rural para ser pobre urbano. O
Severino de verdade cansou de ser pobre, rural ou urbano, e
tornou-se o violento Biu-, seus olhos verdes não são mais
de esperança, mas de crueldade e malícia, mostrando a face
sinistra da urbanização.
O processo de em pobrecim ento do N ordeste brasileiro
caminhou lado a lado com o avassalador processo de urbaniza­
ção que acometeu todo o Brasil. A urbanização brasileira ocorreu
em menos de meio século, um processo que na Europa levou
séculos. Como conseqüência, esse processo foi extremamente de­
sorganizado, a ponto de a urbanização no Brasil merecer os se­
guintes comentários do historiador Eric Hobsbawm: “candidato
a campeão mundial de desigualdade econômica”, “monumento
de injustiça social” e “monumento à negligência social”.5 Essa
urbanização à brasileira agravou tanto a pobreza do campo
quanto da cidade. Desalojou o pequeno e o médio agricultor,
facilitando a expansão do latifúndio, e transform ou toda
megalópole em necrópole, se usarmos a classificação de Lewis
A IGREJA EVANGÉLICA E 0 NORDESTE BRASILEIRO

M umford.6 A urbanização acarretou ao mesmo tempo um


grande empobrecimento da população e um crescimento
incontrolável das favelas.
A aceleração do processo de urbanização brasileiro não
ocorreu de forma neutra ou aleatória, mas como conseqüência
de uma política industrial imprevidente e imoral. Vejamos o
que aconteceu durante o governo de Juscelino Kubitscheck, com
seu slogan “cinqüenta anos em cinco”. Os imensos investimentos
de capital e os incentivos para a construção de Brasília e a indus­
trialização ao redor das grandes cidades foram feitos lado a lado
com o incentivo à migração de mão-de-obra barata e temporá­
ria, a serviço do fluxo industrial. Passada a fase de implantação
da indústria, ou terminado o período de incentivos fiscais, a mão-
de-obra migrante, temporária e não especializada, engordava as
favelas das periferias das grandes cidades. Portanto, o processo
de empobrecimento e de favelização fora implementado tam ­
bém pela política dos “cinqüenta anos em cinco”. Em cinco
anos, produzimos mais miseráveis do que em toda a história
do Brasil.
Durante esse processo, entretanto, os grupos constituídos
pelos mais oprimidos da sociedade — negros, índios, crianças e
mulheres — , vítimas igualmente da violência do processo de
urbanização, deram-nos verdadeiras lições de cidadania e de re­
sistência organizada. Esses grupos conseguiram avançar no reco­
nhecimento de seus direitos mesmo diante da dupla opressão
imposta pela sociedade: opressão econômica, pelo fato de serem
em grande parte pobres, e opressão discriminatória, por ques­
tões de etnia ou de gênero. Para isso, redescobriram dentro de
suas próprias tradições, formas criativas e efetivas de solidarieda­
de, mobilização e organização. Nesse aspecto, o movimento dos
sem-terra é reconhecidamente o movimento político de cunho
popular de maior importância no Brasil atual.
148 UM JUMENTINHO NA AVENIDA

A história dos agricultores que se organizaram


para comprar caixão

O M ST, Movimento dos Sem-Terra, é reconhecidamente o


movimento social organizado que ocupa um espaço mais efetivo
na luta política pela Reforma Agrária no país, com atuação des­
tacada no Nordeste. Basta notar que das 160 ocupações efetuadas
no ano de 2000, 40 ocorreram no Estado de Pernambuco, local
onde ocorreu o maior número de conflitos pela terra. Em 2001
o número de ocupações no Estado de Pernambuco e no Nordes­
te do Brasil foi também bastante significativo. Porém, mais do
que lutar pela posse da terra, esse movimento de agricultores
traz uma proposta de mudança total da sociedade em sua visão
político-econômica. Nesse sentido, poderiamos considerá-los
herdeiros espirituais das chamadas ligas camponesas da década
de sessenta, movimento de agricultores que abalou o Nordeste
e ameaçou a estrutura político-econômica elitista, arcaica e
predatória do país.
O registro histórico do movimento das ligas camponesas traz
alguns depoimentos e narrativas que nos convidam a refletir so­
bre alguns temas. O maior deles, sem dúvida, diz respeito à
força da organização popular e o poder de mobilização social das
propostas que ofereçam alternativas ao sistema capitalista indivi­
dualista, excludente e pauperizador. E curioso observar que esse
movimento que tem estremecido a história do país começou sim­
plesmente como uma pequena associação beneficente de agri­
cultores de um pequeno engenho em Pernambuco, o Engenho
Galiléia. Essa organização surgiu para resolver a questão relacionada
ao custeio dos funerais dos agricultores, já que a pobreza do lavrador
era tanta que a maioria da população era enterrada sem caixão.
O tema da morte, com todo o seu simbolismo e em sua
perpétua crueza existencial, foi o ponto de partida de um
A IGREJA EVANGÉLICA E 0 NORDESTE BRASILEIRO

movimento de luta pela vida que assumiu proporções nunca


imaginadas por aquele pequeno grupo de pessoas reunidas para
resolver problemas concretos do dia-a-dia. A transformação da
“sociedade para comprar caixão” em movimento das ligas cam­
ponesas, com estratégias complexas e enfrentamentos criativos,
aponta para a lição das possibilidades sempre latentes em toda e
qualquer organização popular, mesmo as mais simples.
Alguns têm enfatizado a participação dos evangélicos nas
ligas camponesas, mas isso ainda requer um estudo mais pro­
fundo. Não há dúvida de que houve a participação de evangéli­
cos ou de egressos de igrejas evangélicas na liderança das ligas. O
que precisa ser estabelecido de maneira mais clara é a extensão
dessa participação e o relacionamento das igrejas, ou dos líderes
evangélicos, com as ligas. Tudo indica que esta teria sido uma
relação tensa ou claramente conflituosa. Mas de qualquer forma,
os evangélicos eram considerados líderes reais ou potenciais, e os
agricultores se orgulhavam de seus líderes que não fumavam,
não bebiam e sabiam articular bem as palavras. Um caso típico e
raro da microética protestante brasileira a serviço da macroética.
Curiosamente, a Bíblia fazia parte do material de doutrina­
ção usado no trabalho de conscientização política dos agriculto­
res. Francisco Julião, deputado e advogado, espécie de mentor
intelectual do movimento, afirma que a constituição brasileira, a
Bíblia e a cultura popular são os elementos usados para a
conscientização dos lavradores mobilizados ou em processo de
mobilização. A lei dos homens, a Lei de Deus e a criatividade do
povo formam essa mistura revolucionária que faz do advogado,
do pastor e do repentista seus tipos referenciais.
Um relato quase lírico, visivelmente pitoresco, encontrado
no livro de Elide Rugai Bastos, As Ligas Camponesas, exemplifica
o significado prático dessa mistura. Ele conta que João Evangelista,
líder das ligas camponesas em Jaboatão, Pernambuco, foi convidar o
15 0 UM JUMENTINHO NA AVENIDA

prefeito do município para participar de uma reunião da liga


que, apesar de ser considerada subversiva, buscava sempre o
caminho da legalidade. Quem relata o caso é Francisco Julião,
citado por Bastos:

Se a liga era legal queríamos dar esse caráter de absoluta


legalidade, pondo a placa, convidando as autoridades, mas
muitos se negavam a ir e não iam. O prefeito de Jaboatão
[...] disse a João Evangelista: “Não vou a esse negócio por­
que é comunismo”. João, que era protestante, disse: “Olha,
minha religião é de Jesus Cristo. Estou com Jesus”. “Não,
você pensa que está com Jesus Cristo, mas está servindo
ao comunismo” [...] “Me explica o que é comunismo,
porque vejo um negócio legal, tem placa, tem tudo
direitinho.” [...]
“Comunismo é tomar o que é dos outros, é fazer mal à
filha dos outros, é empatar a religião dos outros.” João
Evangelista pensou um pouco e disse: “Pois então já
estamos nele, homê. Cê sabe que tenho uma filha bonita
mas vem o dono da terra, ou o capataz, ou o gerente da
usina, ou o capanga e me infelicita a menina. E aí ela se
prostitui, porque ele não casa com ela. Vivo também na
propriedade de dona fulana de tal que é católica e ela não
permite que eu faça meu culto na minha casa. Então ela
está empatando minha religião. Outra coisa: a gente planta
pé de café, a bananeira, a manga, faz uma casa, um barreiro,
um dia vem o proprietário e diz que quer terra, nos expul­
sa de lá com 24 horas e não paga nada. Se a gente resiste
manda matar ou põe a polícia em cima da gente. Tá to­
mando o que é da gente, o que fiz com meu trabalho.
Então é o comunismo. A Liga vem pra acabar com essa lei
e fazer a lei da justiça.7

A mistura de Bíblia, lei e cultura popular cria situações desse


tipo, mas cria também conflitos. O próprio João Evangelista
mencionado nesse relato teve problemas com a sua congregação
A IGREJA EVANGÉLICA E 0 NORDESTE BRASILEIRO | 151

e foi afastado do convívio da Igreja por sua participação nas ligas


camponesas. Quando a ética protestante ultrapassava os limites
da ética individual, familiar ou eclesiástica e estabelecia pontes
de compromisso com as transformações sociais de âmbito maior,
esbarrava sempre na doutrina limitada e individualista de um
protestantismo que legitimava o sistema de exclusão social esta­
belecido pelas elites dominantes.
O mesmo tipo de conflito acontece atualmente com o movi­
mento dos sem-terra, que consideramos uma espécie de herdei­
ro político das ligas camponesas. Muitos agricultores evangéli­
cos, por partilharem da mesma situação de miséria e opressão
em que vivem os trabalhadores rurais de nosso país, participam
também de suas lutas organizadas. Alguns, inclusive, com a au­
torização expressa de suas congregações. Entretanto, segundo
alguns depoimentos de líderes do movimento, depois de assen­
tados, eles passam a atuar como intermediários na implantação
de congregações de suas respectivas igrejas e deixam de apoiar o
movimento, chegando a atrapalhar a continuidade da luta em
favor de outras comunidades que ainda não tiveram as suas rei­
vindicações atendidas. O que fica evidente é que para muitos
evangélicos o interesse pelos próprios problemas é muito maior
do que o interesse pelo problema dos outros, numa total inver­
são da mensagem evangélica.
Essas situações parecem refletir uma característica das igrejas
evangélicas de modo geral, que ainda não conseguiram desen­
volver uma teologia que sirva de apoio e iluminação para uma
prática transformadora. O que vemos é que quando a prática
evangelizadora da Igreja Evangélica se depara com desafios de
transformação social, ou de macro-transformações, ela é barrada
por sua fundamentação teológica incompleta e inadequada, que
tem servido de apoio para a manutenção de uma ordem injusta
e excludente. Essa tendência pode ser constatada, de forma
152 UM JUMENTINHO NA AVENIDA

diferente, na relação missionária entre a Igreja Evangélica e a


questão étnica, que envolve principalmente o negro e o índio.

O mito da democracia racial

A celebrada mistura de raças e etnias no Brasil deveria ter


construído, teoricamente, um país democrático em termos
raciais, com igualdade de acessos e oportunidades para todos e
sem nenhuma discriminação racial. Brancos, negros e índios vi­
veríam assim em irrestrita fraternidade, exportando um exemplo
de vida e de democracia para países estrangeiros que vivem
realidades discriminatórias. Porém, essa situação de verdadeira
democracia racial brasileira tem demonstrado, na prática, que é
totalmente irreal e paradisíaca, embora muitos estudiosos da
nossa brasilidade a aceitem irrefletidamente como verdadeira.
Muitos antropólogos e etnólogos têm contestado a nossa
pretensa fraternidade racial, afirmando que ela tem servido ape­
nas para criar uma espécie de mito e mascarar o conflito racial,
explícito ou implícito, presente em todos os âmbitos da nossa
sociedade. O mito da democracia racial está a serviço de reajus­
tes históricos e de maquiagens ideológicas que, ao invés de
potencializarem a justiça social, ajudam a manter e a perpetuar a
discriminação vigente. Esse mito interessa apenas a um grupo
restrito de pessoas, o mesmo que se beneficia com o sistema de
exclusão, e não traz nenhuma libertação para as vítimas cotidia­
nas de discriminação racial.
O caso do mendigo que falava alemão nos permite perceber
que a democracia racial é uma farsa. Certamente o fato de ser
negro contribuiu para que o mendigo, apesar de falar alemão,
não conseguisse um emprego. Esquálido, maltrapilho e negro,
ele não conseguia nem uma entrevista, quanto mais um emprego.
Foi preciso que um pastor, branco, interferisse no caso para que
A IGREJA EVANGÉLICA E 0 NORDESTE BRASILEIRO I 153

ele conseguisse um emprego de nível médio, muito aquém,


inclusive, de suas qualificações.
A discriminação racial no Nordeste pode ser visualizada de
várias maneiras. Setenta por cento da população é constituída de
negros (esse termo é usado aqui em sua definição mais ampla e
inclusiva, defendida pelos movimentos negros e pelo IN SPIR —
Instituto Sindical Interamericano pela Igualdade Racial), e
podemos perceber distorções até mesmo em sua distribuição
geográfica. A população negra, nas grandes cidades, concentra-
se especialmente nas periferias pobres, sendo grande o número
de negros nas favelas urbanas.
Os negros, de modo geral, não têm acesso aos centros de
poder. A participação de negros na política, na educação e até
mesmo nas igrejas é bem menor do que a esperada, merecendo
uma análise comparativa mais bem definida. É visível também a
ausência de negros nas universidades, nos colégios de elite, nos
meios de comunicação e nos cargos de liderança das igrejas.
Em relação ao mercado de trabalho, os dados do IN SPIR
demonstram algumas distorções significativas. Tomemos como
exemplo a cidade de Salvador, cuja população é 70% constituí­
da de negros. A proporção de negros desempregados em Salva­
dor é 45% maior do que a de brancos. Os rendimentos médios
mensais dos negros são 60% menores do que dos brancos, sendo
que 46% dos negros empregados trabalham sem carteira assina­
da ou se ocupam de serviços domésticos. As pesquisas revelam
que os negros são mais vítimas de violência policial e arbitrarie­
dades jurídicas; sofrem mais flagrantes policiais, respondem menos
processos em liberdade e são percentualmente mais punidos do
que os brancos.
Os negros também têm menos acesso à saúde, ao saneamen­
to básico e à educação, entre outras coisas. O índice de mortali­
dade infantil é duas vezes maior entre a população negra (67
154 UM JUMENTINHO NA AVENIDA

óbitos a cada mil nascimentos). Enquanto que 81% das famílias


brancas têm acesso a água tratada e 73,6% possuem rede de
esgoto, nas famílias constituídas por negros apenas 64,7%
recebem água tratada e 49,7% (menos da metade) possuem
rede de esgoto.
Ditos, provérbios, músicas, anedotas, histórias da cultura
popular explicitamente depreciativas, reforçam e difundem a
discriminação social em relação aos negros e nordestinos. Atitu­
des desse tipo causam efeitos devastadores em sua auto-estima e
reforçam a sua condição de excluídos e discriminados. A perver­
sidade e a violência do círculo da exclusão se agravam ainda mais
quando o excluído aceita a sua situação resignadamente, consi­
derando-a como conseqüência natural de sua própria condição.
Os movimentos negros têm se manifestado contra essa dis­
criminação e procurado resgatar a auto-estima e a dignidade da
raça negra. Para isso, personagens históricos como Zumbi e
Dandara, negros do quilombo dos Palmares, têm sido exaltados
pelo seu heroísmo na luta pelos direitos e pela liberdade dos
oprimidos. Além disso, os movimentos negros têm resgatado
antigos costumes e tradições dos negros e valorizado a beleza de
suas características raciais distintivas.
Uma questão específica, a ser tratada por todos aqueles que
buscam reparar a injustiça sofrida pelos negros em nosso país, é
a questão dos “quilombolas”. Existem atualmente mais de sete­
centos agrupamentos que surgiram dos quilombos históricos
organizados por negros que fugiam da escravidão. Esses rema­
nescentes, conhecidos como “quilombolas”, vivem em regiões
escarpadas ou cercadas por florestas, de difícil acesso. Procuram
manter hábitos e costumes da época dos quilombos e praticam
uma agricultura comunitária de subsistência. Ameaçados em seus
direitos por fazendeiros e “grileiros”, aos poucos eles têm con­
seguido regularizar a posse de suas terras, constitucionalmente
A IGREJA EVANGÉLICA E 0 NORDESTE BRASILEIRO ! 155

garantida. A maioria absoluta dos “quilombolas” concentra-se


nos Estados do Nordeste, especialmente Bahia e Maranhão.
A relação da Igreja Evangélica brasileira com os negros é
uma questão a ser estudada. Aparentemente, a Igreja Evangélica
não tem conseguido uma aproximação significativa com os
negros, que constituem uma minoria dentro da igreja. Esse qua­
dro tem apresentado algumas mudanças recentes, em parte pela
luta por maior participação do negro na sociedade e também
como conseqüência do crescimento das igrejas neopentecostais,
em geral situadas na periferia das cidades. Essas e outras ques­
tões precisam ser analisadas com seriedade. Quando compara­
mos o cristianismo com outras religiões e procuramos encontrar
pontos de contatos, respeitando suas formas de culto e suas dou­
trinas, percebemos que essa atitude não se aplica à religiosidade
negra brasileira, ou afro-brasileira. De modo geral, as igrejas evan­
gélicas brasileiras tendem a reduzir toda a experiência religiosa
afro-brasileira a uma apressada e generalizada demonização.8
Esse tipo de abordagem resulta numa evangelização baseada
em confrontação, quase sempre do tipo exorcista, onde não fal­
tam lances de desrespeito autoritário e até mesmo de agressão.
Desse modo, a Igreja Evangélica tende a legitimar o preconceito
racial e a estabelecer um permanente conflito, gerando ressenti­
mento e hostilidade e dificultando uma aproximação realmente
evangelizadora com a população negra.
Enquanto que os “quilombolas” se concentram, em sua imensa
maioria, na região Nordeste, os agrupamentos indígenas consti­
tuem uma pequena minoria, diante do total da população indí­
gena do Brasil. D e acordo com dados da FUNAI de 1999, ape­
nas 67 agrupamentos de um total de 561 encontram-se nessa
região, ocupando 2,2% da área total reservada aos indígenas.
Em seu livro Os índios e a Civilização, o antropólogo Darcy
Ribeiro descreve o processo de aproximação entre a população
15 6 UM JUMENTINHO NA AVENIDA

indígena e o restante da população brasileira, ao longo da


história, como um processo de transfiguração étnica. Não
ocorreu, na história brasileira, a preconizada assimilação da
cultura indígena, com o suposto desaparecimento dá identidade
do índio, absorvido plenamente no processo civilizatório.9
Um complexo e conflituoso processo produziu na verdade
um genocídio, uma dizimação gradativa de um povo e de sua
cultura. Um exemplo disso, é que das cerca de 1.200 línguas
faladas pelas populações indígenas históricas, menos de 200 per­
manecem até hoje. Os remanescentes desses grupos, entretanto,
ainda se autodenominam índios. Apesar de não conservarem suas
tradições, sua língua e sua cultura peculiar, ainda se percebem
como um grupo à parte, culturalmente discriminado e politica­
mente dominado. Essa identidade teimosamente mantida, re­
duzida quase a um rótulo, não deixa de ser um grito de resistên­
cia diante de um processo opressor aviltante e redutor.
Os grupos do Nordeste, de modo especial, foram os mais
afetados por esse processo de esquecimento de suas origens e
tradições. Até mesmo como tipos étnicos eles se assemelham
hoje às populações sertanejas, altamente miscigenadas. Apesar
disso, agrupam-se à parte, em terras reservadas ou nas periferias
das cidades. Muitas vezes entram em conflitos com os outros
moradores, quase sempre sob a ameaça de invasão de suas
terras, e sofrem com a desconfiança e o desprezo dos seus
vizinhos brancos.
A aproximação histórica entre brancos e índios na região
passou por várias fases, com suas diferenças e peculiaridades, mas
sempre com uma clara atitude discriminatória por parte do branco
dominador. Escravizados como mão-de-obra para a lavoura
de cana-de-açúcar, capturados às centenas pelos bandeirantes
caçadores de “bugres” , evangelizados com desconfiança pelas
m issões dom inicanas e jesuítas, vítim as de discrim inação,
A IGREJA EVANGÉLICA E 0 NORDESTE BRASILEIRO 157

massacres, perseguições, violação de direitos e submetidos a todo


tipo de violência, os índios foram rechaçados de suas próprias
terras.
N a verdade, os hábitos e costumes dos indígenas, sua
cosmovisão e organização político-social são tão diferentes que a
aproximação com os brancos não poderia se efetuar sem conflito.
Um cacique afirmou que só conheceu a palavra “pobre” na escola
do homem branco, pois não havia uma palavra ou conceito cor­
respondente em sua língua, o que aponta para algumas diferen­
ças essenciais. Algumas tribos consideradas ferozes pelos brancos
e pacificadas através do esforço paciente de indianistas relataram
posteriormente que, de acordo com a visão dos índios, havia acon­
tecido exatamente o contrário, ou seja, eles é que haviam final­
mente estabelecido um contato pacífico com o feroz homem
branco. Assim, feroz, para eles, é esse estranho e predador ho­
mem branco.
N o século 20, graças ao esforço de alguns indianistas, princi­
palmente dos irmãos Villas Bôas, os índios começaram a receber
um apoio mais consistente por parte da sociedade brasileira, e
passaram a ter alguns de seus direitos reconhecidos: direito ao
usufruto da terra (usufruto apenas, não a posse, pois as terras
pertencem à União, o que não deixa de ser uma situação ambí­
gua), direito à saúde e educação (em sua própria língua e respei­
tando seus costumes) e direito de manter a sua própria identida­
de cultural. Apesar de persistirem os conflitos, a situação tem
melhorado. Atualmente, a população indígena apresenta uma
taxa de crescimento de 1,5% ao ano, enquanto que no início da
década de 90 estava em decréscimo.
O contato dos índios com os evangélicos no Nordeste tem
sido ambíguo. Por um lado, alguns missionários têm procurado
promover a educação e o desenvolvimento das populações indí­
genas, dentro dos valores da sua própria cultura. Por outro lado,
15 8 UM JUMENTINHO NA AVENIDA

um evangelho que prega uma conversão individual coloca o


índio à parte da sociedade tribal, alijando-o culturalmen­
te do seu povo. Desenvolver uma atividade missionária e diaconal
a partir de uma teologia que valorize as diferentes culturas
indígenas continua sendo um desafio para a igreja evangélica
do Nordeste.

As novas faces das senzalas

A obra de Gilberto Freyre, Casa Grande e Senzala, consagrou


esses dois tipos de habitação do período colonial como símbolos
da história da escravidão no Brasil.10 O senhor que habitava a
“casa grande” tinha total domínio sobre os escravos das senzalas,
habitações bem menores e precárias, onde se amontoavam os
escravos. Partindo dessa imagem, Ivone Gebara, teóloga radicada
no Nordeste, escreveu um ensaio antropológico intitulado A
M obilidade da Senzala Feminina, onde defende a existência atual
de um novo tipo de senzala, habitada por mulheres e crianças
pobres e marcada pela mobilidade.
Nas conversas com mulheres da periferia que não participam
de movimentos sociais (às quais a autora se refere como “mulhe­
res desorganizadas”), ela percebeu a existência de uma senzala
psicológica, interior, que se projeta nos espaços geográficos e nas
habitações concretas, submetendo-as ao mesmo tipo de domi­
nação. A estrutura patriarcal da sociedade garante sempre e em
todos os lugares os direitos do homem, do macho, enquanto que
as mulheres, explícita ou implicitamente, são consideradas cida­
dãs de segunda classe. Esse padrão é tão forte que muitas vezes as
próprias mulheres se consideram assim, introjetando o padrão
social arbitrário legado pela sociedade.
A senzala que carregam dentro de si e que projetam
concretam ente nos novos espaços geográficos não apresenta
A IGREJA EVANGÉLICA E 0 NORDESTE BRASILEIRO 159

uma estrutura fixa permanente. Essas mulheres estão sempre


migrando, estabelecendo um círculo ambivalente de rompimento
e submissão. Elas relataram que essa migração quase sempre
começa como fuga de uma situação opressora no relacionamento
com pais, maridos ou irmãos violentos, insensíveis e omissos,
muitas vezes em conseqüência do abuso de bebidas alcoólicas.
No novo lugar, experimentam durante algum tempo uma
leve sensação de liberdade. Entretanto, logo surgem novos
conflitos, envolvendo primos, tios, ou um novo companheiro
que repete os hábitos e as atitudes dominadoras de todos os
outros homens, com o agravante da situação de miséria que
compartilham de modo desigual. Assim, elas decidem partir
para recomeçar a vida em outro lugar, repetindo um processo
que parece não ter fim, carregando a senzala para todos os
lugares.
Diferente da migração do homem em extensão e motivação,
a mulher se submete a uma migração doméstica, ao longo de
espaços conhecidos, nas casas de parentes ou amigos, estabele­
cendo um perímetro muito menor do que o estabelecido pelo
homem. O homem migra em busca de um emprego melhor,
de aventura ou de um sonho que quase sempre inclui um enri­
quecimento rápido. A mulher migra para fugir da dominação
masculina, em busca de uma vida melhor, porém não muito
diferente da atual.
Os sonhos dessas mulheres são pequenos e não ultrapassam
quase nunca a linha da sobrevivência. Conseguir subsistir,
escapar de um destino predeterminado parece ser a principal
motivação dessas mulheres em permanente mobilidade.
Para entender essa mulher, Ivone Gebara sugere a criação de
uma nova categoria antropológica: a “mistura”,11 pois ela age em
função de uma complexidade de fatores e concepções nunca uni­
formes nem fortemente definidos. Como mistura, essa mulher é
160 UM JUMENTINHO NA AVENIDA

ao mesmo tempo fraca e forte. Critica o governo, mas não


tem consciência política; crê em Deus, mas rejeita a religião
instituída. Sua visão de Deus é diferente do Deus oficial,
não aceita se subm eter aos seus preceitos nem às ameaças a
que foi submetida em sua história familiar. Porém, é nesse
Deus que ela encontra forças para sobreviver e continuar sua
caminhada.
Por não participarem de movimentos sociais e desconhecerem
seus direitos, essas mulheres educam os seus filhos, na maioria
das vezes, reproduzindo o sistema em que foram criadas. Os
meninos são preparados para exercer uma liderança patriarcal e
as meninas para o serviço doméstico. Entretanto, na prática co­
tidiana, o modelo patriarcal é claramente rejeitado por elas, em
visível contradição. Essa rejeição, segundo a autora, seria um re­
flexo indireto das conquistas do movimento feminista. As mu­
lheres não admiram a violência masculina, nem o abuso de bebi­
das alcoólicas, nem a omissão do homem diante das tarefas do­
mésticas, nem sua sexualidade egoísta. A rejeição dessas atitudes
é um avanço e reflete o surgimento de um novo padrão de relacio­
namento, fruto das lutas feministas pela conquista de seus direitos.
Essas conquistas podem ser percebidas claramente através dos
índices obtidos pelas pesquisas que avaliam a participação das
mulheres no mercado de trabalho. Segundo dados do IBGE, em
1999 as mulheres representavam 41,4% da PEA (população
econômica ativa) brasileira, contra 31,7% em 1979. N o perío­
do de 1989 a 1997, as mulheres ocuparam 67,9% das vagas
profissionais abertas, enquanto que os homens ocuparam apenas
32,1%. Um dado interessante é que entre 1979 e 1989, mais de
50% das vagas foram preenchidas por homens. A presença femi­
nina cresceu em termos quantitativos em relação aos serviços
básicos, e qualitativamente quanto aos cargos de direção ou que
exigem nível superior.
A IGREJA EVANGÉLICA E 0 NORDESTE BRASILEIRO 161

Esse crescim ento, portanto, acom panha o crescim ento


educacional da mulher que, segundo dados dessa m esma
pesquisa, apresentou um nível de instrução superior ao homem.
Em 1999, a proporção de mulheres que trabalhavam fora e que
tinham oito anos (ou mais) de estudo, era de 45,5%, enquanto
que a proporção de homens era de 36,4%. Todos esses dados
devem ser analisados com cuidado, tendo em vista que o índice
salarial das mulheres é em média 60% inferior ao dos homens.
De modo geral, a mulher continua desempenhando seu
papel de “outro” na história, como classificou Simone de Beauvoir.
Como o “outro” da história, a mulher se une aos muitos “outros”
que, segundo Emmanuel Lévinas, nos antecedem no plano éti­
co: o pobre, o negro, o índio, a criança, o idoso, os oprimidos de
modo geral. Quando se trata de mulheres da periferia, a alteridade
toma proporções ainda maiores. Oprimidas por serem pobres,
negras e mulheres, as vítimas dessa tríplice opressão apresentam
uma tríplice alteridade: são esquecidas e abandonadas entre os
esquecidos e abandonados da sociedade: esquecidas pelos esque­
cidos, abandonadas pelos abandonados.
Esse esquecimento da mulher existe como um mecanismo
ainda atual e de proporções inestimáveis. A história do “mendi­
go negro que falava alemão” menciona que ele estava acompa­
nhado de sua mulher, mas não sabemos nada sobre ela. Ela é
apenas a mulher do mendigo, uma figura anônima e esquecida,
um apêndice dentro de uma história masculina. Se o sistema
capitalista patriarcal está em ritmo alucinado de falência e sofre­
mos as conseqüências de um mundo governado por esse sistema
corrosivo e estressante, a libertação da mulher seria a própria
esperança da libertação do homem. Concordamos com Simone
de Beauvoir em seu livro O Segundo Sexo quando afirma que
“som ente quando for abolida a escravidão de metade da
humanidade e de todo o sistema de hipocrisia que implica, a
162 UM JUMENTINHO NA AVENIDA

‘seção’ da humanidade revelará sua significação autêntica e o


casal humano encontrará sua forma verdadeira” . 12
Junto com a senzala atual a mulher leva os filhos, que serão
os outros habitantes dessa nova senzala. Essas crianças vão
organizar suas próprias e específicas migrações e serão atraídas
pelas ruas das grandes cidades. Vítimas também dessa sociedade
patriarcal, capitalista e excludente, essas crianças serão os novos
homens e as novas mulheres de amanhã, fadadas a repetir e con­
solidar o sistema através das mesmas maneiras indignas a que
foram submetidas.
H á cerca de dez anos, a situação da criança e do adolescente
no Brasil despertou a atenção de todo o país e alavancou um
grande número de atitudes e ações políticas, que trouxeram be­
nefícios permanentes ao segmento infantil da sociedade. Entre­
tanto, podemos perceber evidências de que esse interesse vem
diminuindo gradativamente. Mesmo as organizações não gover­
namentais que trabalham com crianças e adolescentes diminuí­
ram em número e aquelas que conseguiram sobreviver sofreram
reduções sucessivas em suas receitas. Porém, é preciso reconhe­
cer que em relação à saúde os números apontam uma melhoria
na qualidade de vida das crianças, com significativas reduções
das taxas de mortalidade infantil a partir de 1990. O índice de
mortalidade infantil no Brasil caiu de 47,8 por mil em 1990
para 35,2 por mil em 2000, com maior redução exatamente no
Nordeste: de 74,3 para 53,1 por mil entre 1990 e 2000.
Entretanto, a situação dessas crianças de modo geral não tem
apresentado grandes mudanças. O número de crianças de rua
vem aumentando e elas ainda sofrem abuso sexual, exploração
de m ão-de-obra e violências diversas, inclusive m orte. O
cham ado turism o sexual ainda alicia suas vítim as entre
crianças e adolescentes de ambos os sexos enquanto o tráfico
de drogas continua sua ofensiva organizada para atrair os
A IGREJA EVANGÉLICA E 0 NORDESTE BRASILEIRO 163

adolescentes para a crim inalidade. Para essas crianças e


adolescentes a ma representa um horizonte mágico de liberdade,
onde os espaços conquistados, quase sem pre em bandos,
são sempre maiores do que os limitados espaços dos barracos
das favelas onde moram. Ao mesmo tempo, a rua representa
o perigo da violência e do extermínio. Nessa ambivalência, as
crianças e os adolescentes de rua aprendem a se situar entre
medos, fascínios e banalização da vida. É importante assina­
lar que a pressão exercida pela cultura marcada pela violência
não atinge apenas as crianças de rua, ela atinge também a
criança que vive nos bairros da periferia e nas favelas (princi­
palmente). M esmo aquelas que têm uma família mais bem
estruturada, com a presença do pai e da mãe, ou pelo menos
de um deles, são muitas vezes aliciadas nas escolas públicas,
especialmente aquelas situadas na periferia — algumas delas
verdadeiras escolas de criminalidade.
A crise econômica agrava ainda mais a situação. Uma pesquisa
sobre violência de adolescentes infratores realizada em São Paulo,
entre 1993 e 1996, pela NEV/U SP (Núcleos de Estudos sobre
a Violência da Universidade de São Paulo) demonstrou que mais
da metade das infrações cometidas por adolescentes (entre doze
e dezoito anos incompletos) na cidade de São Paulo foram con­
tra o patrimônio, 13,6% contra pessoas e apenas 1,4% contra a
vida. Talvez seja possível concluir que os adultos, de modo geral,
são mais violentos. Crianças e adolescentes ainda vivem em um
universo simbólico, uma espécie de campo preparatório, e ainda
não definiram plenamente a sua forma de atuação dentro da
sociedade.
D entro dessa linha de raciocínio, torna-se evidente a
responsabilidade educativa da sociedade como um todo e de
seus dirigentes oficiais em primeiro lugar. A questão do uso de
determinadas palavras pela mídia, levantada pelo Movimento
164 j UM JUMENTINHO NA AVENIDA

Nacional de Crianças e Adolescentes, também deixou de ser uma


questão meramente semântica. O movimento recomenda que a
expressão “menor”, de caráter discriminatório e depreciativo, seja
substituída por “criança” ou “adolescente”. D a mesma forma,
não devemos nos referir a uma pretensa “prostituição infantil”,
mas a uma “exploração sexual da criança e do adolescente”. A
expressão “trabalho infantil” também deve ser banida, pois se
trata de “exploração econômica de mão-de-obra de crianças e
adolescentes”. O cuidado com o uso de expressões pejorativas
talvez seja um bom exercício educativo para a formação de novos
hábitos que conduzam a ações concretas pela cidadania.
Se a migração da mulher ocorre sempre em torno do espaço
doméstico, a migração da criança e do adolescente ocorre do
espaço doméstico para o espaço público (a rua), e do espaço
público para o espaço ilegal (a criminalidade). Esse grupo tem
sido alvo da ação pastoral, tanto da igreja católica quanto da
evangélica, e atualmente vive um momento crítico, causado pela
dificuldade de atuação dos órgãos especializados e comprometidos
e por não ser visto como prioridade pela política neoliberal que
se estabeleceu fortemente no país.

Uma Igreja Evangélica nordestina


para o Nordeste

Em nossa peregrinação pelo Nordeste encontramos o homem


do campo e o da cidade, negros, índios, mulheres e crianças,
personagens não muito valorizados pela história concreta. Nosso
propósito com essa viagem foi encontrar respostas ou sinais que
nos indicassem como ser Igreja de Jesus Cristo nessa complexa,
explorada e oprimida região. Uma Igreja disposta a servir e a
exercer verdadeira diaconia em favor dos menos favorecidos da
sociedade — em favor do “outro”.
A IGREJA EVANGÉLICA E 0 NORDESTE BRASILEIRO 165

O que descobrim os, na verdade, é que não estam os


preparados para essa tarefa. Em nossa caminhada simbólica
nos deparamos muito mais com perguntas do que com respostas e
nos alimentamos muito mais de sonhos e esperanças do que de
fatos e acontecimentos. Encontramos, porém, alguns sinais que apon­
tam para essa Igreja Evangélica nordestina emergente. São sinais
tênues, recolhidos ao longo da caminhada, mas que têm valor.
Os sinais começam com esse pequeno espaço de reflexão. Esta
oportunidade de refletir sobre a Igreja e o Nordeste abre cami­
nho para que as pessoas se envolvam com a realidade nordestina.
O objetivo é despertar paixão, envolvimento, é aquecer o coração
durante esta simbólica e ligeira caminhada. Somente uma Igreja
Evangélica apaixonada pelo Nordeste pode servir a esse mesmo
Nordeste. Nesse sentido, podemos celebrar os sinais da presença
litúrgica da nossa cultura popular nos cultos de algumas de nos­
sas igrejas. Danças e canções alimentam nossos corações e quando
estão presentes no culto trazem a beleza de nossa própria cultura.
Poucos cânticos, porém, refletem uma teologia especificamente
nordestina ou colocam as questões do Nordeste em nossos cora­
ções, à espreita de um compromisso. A teologia evangélica nor­
destina ainda está à espera de ser elaborada. Mas há sinais de que
uma reflexão nesse sentido está começando. Líderes e pensado­
res cristãos evangélicos, comprometidos com a Igreja e com o
povo, principalmente com os excluídos, têm refletido sobre a fé
e o amor a Jesus Cristo, propondo caminhos e visões que muitas
vezes se afastam da visão tradicional, individualista e alienante,
claramente hegemônica na teologia brasileira.
A ausência de uma reflexão teológica pertinente se evidencia
quando nos deparamos com questões de justiça social, direitos
étnicos e a situação da mulher e da criança na sociedade. Con­
fundimos muitas vezes teologia com ideologia e refletimos ape­
nas os valores das classes dominantes, o que nos torna reprodutores
166 UM JUMENTINHO NA AVENIDA

e reforçadores do sistema de exclusão do qual somos, ao mesmo


tempo, vítimas e propagadores.
A presença dos evangélicos na história das ligas camponesas e
o uso da Bíblia como instrumento de conscientização política
popular nos convidam à reflexão. É estranho, e ao mesmo tempo
revelador, que pessoas “de fora dos nossos arraiais” encontrem
em nossas atitudes e em nosso Livro Sagrado os potenciais polí­
ticos que nós muitas vezes não estamos prontos a admitir, muito
menos viver. Talvez a verdadeira teologia evangélica nordestina
esteja começando fora da Igreja. Se isso realmente está aconte­
cendo, talvez tenham os de esperar que “os de fora” nos
evangelizem, ou nos re-evangelizem.
Nossa inadequação teológica fica ainda mais evidente quan­
do nos deparamos com o “outro” histórico. Os pobres e os exclu­
ídos, os negros e os índios, as mulheres e as crianças são esses
“outros”abandonados e esquecidos. Na verdade, nós também os
abandonamos e com isso, abandonamos nossas origens históri­
cas e teológicas. O evangelho alcançou primeiro os abandonados
e esquecidos. Quando fomos encontrados e resgatados por Jesus
Cristo vivíamos em abandono existencial, por isso não podemos
abandonar os menos favorecidos.
A imagem que fazemos do negro é baseada em preconceito,
desinformação e insuficiência teológica; não é evangélica, é uma
imagem ameaçadora e discriminatória. Não estudamos a sua
cultura, não compreendemos os seus cultos e não analisamos
os seus valores à procura de contatos ou pontes evangélicas.
Reduzimos toda a nossa evangelização a fórmulas exorcistas
generalizantes e desrespeitosas, organizando muitas vezes rituais
públicos arrogantes e autoritários. Essa situação se repete em
relação ao índio. Ao evangelizá-lo, destruímos a sua cultura e o
afastamos dela, tornando-nos aliados dos grupos responsáveis pelo
seu extermínio.
A IGREJA EVANGÉLICA E 0 NORDESTE BRASILEIRO 167

As crianças não são priorizadas em nossas igrejas nem no


espaço físico (o melhor espaço é para os adultos), nem no espaço
litúrgico (nossos cultos são voltados para os adultos), nem nos
espaços educacional, teológico e diaconal. As crianças que
moram nas proximidades da igreja ou nas favelas das cercanias,
não são alvos de uma ação planejada por parte da Igreja Evangé­
lica. Com isso, encontram também nas nossas igrejas, juntamente
com as mulheres, as senzalas de onde pretendem escapar.
As mulheres, apesar de constituírem a maioria nas igrejas
evangélicas, ainda precisam lutar para conquistar seu espaço.
Embora o número de mulheres no exercício do ministério pas­
toral tenha crescido nos últimos anos, muitas igrejas negam esse
espaço às mulheres. A visão teológica tradicional enxerga a mu­
lher como cristã de segunda classe, do mesmo modo que a soci­
edade, na prática, a considera uma cidadã de segunda classe. As
igrejas evangélicas, em sua imensa maioria, ainda defendem o
modelo de família tradicional, em que a mulher é responsável
pelas tarefas domésticas e o homem é o provedor do sustento
familiar. Dentro desse modelo, a subordinação da mulher é con­
siderada parte da lei divina, sendo o homem o chefe da família,
ordenado por Deus. Com uma teologia assim, a Igreja Evangéli­
ca tem se colocado como grande defensora ideológica do
machismo na sociedade ocidental.
Entretanto, novos modelos de liderança partilhada estão
começando a surgir, tanto na igreja quanto no ambiente domés­
tico, apoiados por uma reflexão bíblica e teológica que privilegia
a igualdade e a paridade em todos os âmbitos. Mesmo sendo
ainda muito incipiente, esperamos que essas experiências pos­
sam ajudar tanto homens como mulheres em sua caminhada
pela busca de igualdade. A Igreja Evangélica deveria também
participar da luta das mulheres em defesa de seus direitos e
contra o seu aviltamento social.
168 UM JUMENTINHO NA AVENIDA

Com o sinais concretos do surgimento de uma diaconia


evangélica nordestina, listaremos alguns grupos que podem
nos ajudar a refletir essa diaconia de form a mais efetiva.
O prim eiro grupo seriam as O N G ’s, algum as de caráter
evangélico, que trabalham com aidéticos, drogados, órfãos e ou­
tros setores carentes, que têm prestado sua contribuição de for­
ma diversa. Obviamente, a própria Diaconia pertence a esse grupo.
Arriscaríamos dizer que o movimento que pretende abrir “um
milhão de cisternas para o semi-árido” está cada vez mais se tor­
nando um símbolo do poder catalisador das O N G s. Convém
lembrar também que, se esse movimento tem ultrapassado o
âmbito da Diaconia, foi iniciado e possibilitado pela ação
mobilizadora inicial da própria Diaconia. A Diaconia mantém
hoje um interessante programa de apoio diaconal às igrejas evan­
gélicas e incentivado a reflexão sobre o papel da igreja diante das
questões sociais do Nordeste. Sabemos que outras instituições
têm atuado de forma semelhante, mas não conhecemos os deta­
lhes.
Na década de 80, a Visão Mundial promoveu a reflexão e a
ação social nas igrejas evangélicas do Nordeste, apoiando inú­
meros projetos sociais e mantendo todo um setor operante de
relações eclesiásticas. Foram realizados vários encontros para pas­
tores e líderes de igrejas evangélicas, enfatizando o tema da rela­
ção entre a Igreja e a realidade político-social do Nordeste. Atu­
almente, essa instituição mudou sua estratégia de ação no Nor­
deste, mas ainda mantém parcerias e atividades diversas, visando
os mesmos objetivos. De certa forma, um grande número de
iniciativas de caráter integral e libertador tomadas pelas igrejas
evangélicas, O N G s e atividades missionárias, seriam frutos
desse trabalho realizado pela Visão M undial que contava, na
épõca, com o apoio de uma organização estudantil denominada
ABU (Aliança Bíblica Universitária).
A IGREJA EVANGÉLICA E 0 NORDESTE BRASILEIRO

Para quem deseja conhecer a atuação das igrejas evangélicas


no Nordeste, seria interessante estudar e acompanhar a história
da Igreja Metodista, especialmente da comunidade situada no
Alto da Bondade, onde trabalhou o missionário norte-america­
no David Blackburn. Muitas idéias criativas e sugestivas surgi­
ram ali, alimentando a reflexão e a ação de outras igrejas. Entre
as igrejas batistas, destaca-se a Primeira Igreja Batista em Bultrins,
liderada pelo pastor Paulo César. Essa igreja realiza há dez anos
um trabalho com forte conotação político-social, com tendência
a crescer cada vez mais. A Igreja Episcopal Anglicana é tradicio­
nalmente conhecida por sua luta em favor dos excluídos e por se
envolver em atividades e movimentos em favor dos oprimidos e
excluídos do Nordeste. Destacamos aqui a surpreendente Mis­
são de Pentecostes que, sob a liderança do pastor Jardson Gregório,
tem pro p orcio n ad o m om entos belíssim os de atuação
transformadora/libertadora, mantendo fortemente a sua identi­
dade evangélica dentro de uma conciliadora postura ecumênica.
Dois fatos recentes representam dois momentos simbólicos des­
sa igreja evangélica em sua busca por caminhos de participação
popular: a inauguração da “universidade popular” dentro da fa­
vela, aberta a todos, sem levar em conta o nível de escolarização,
e a mobilização de cem famílias para ocupação de terra em busca
de moradia digna. Todas essas igrejas têm em comum o fato de
terem resultado da visão de pessoas individualmente compro­
metidas com o Reino de Deus e que desenvolveram trabalhos
voltados para os mais necessitados, muitas vezes com oposição e
desconfiança da igreja oficial. Todas essas igrejas estão localiza­
das na região da Grande Recife e servem como uma pequena
amostra de um movimento que acreditamos ser bem mais
amplo.
E interessante acompanhar também o trabalho desenvolvido
por uma igreja autóctone estabelecida principalmente no Rio
170 UM JUMENTINHO NA AVENIDA

Grande do Norte e no Ceará, atualmente liderada pelo pastor


Carlos Queiroz. Um dos seus pastores, Jeriel Santos, começou
um trabalho numa favela à beira-mar na cidade de Fortaleza,
junto com os Surfistas de Cristo, e tem impressionado muita
gente pelo potencial diaconal de seu envolvimento pessoal. A
Igreja Assembléia de Deus Betesda, também no Ceará, apresen­
ta alguns elementos interessantes em sua ação diaconal que me­
recem ser estudados.
Esses são apenas alguns exemplos de atuação diaconal. H á
muitas outras pessoas e igrejas espalhadas pelo Nordeste, en­
volvidas em atividades diaconais criativas. Atividades assim
nos trazem esperança. Não poderiamos deixar de mencionar
o nome de Robinson Cavalcanti, bispo da Igreja Episcopal
Anglicana. Num a época em que a palavra “progressista” era
quase uma heresia e filiar-se a um partido de esquerda era
comparável a fazer um pacto com o diabo, ele assumiu posições
polêmicas, iniciando no Nordeste o Movimento Evangélico
Progressista.
Poderiamos acrescentar mais alguns nomes, mas escolhe­
mos esses para manter acesas as luzes da nossa esperança em
ver surgir uma futura Igreja Evangélica nordestina capaz de
exercer genuína diaconia entre os nordestinos. Sabemos que o
crescimento da Igreja Evangélica na região tem colaborado para
aumentar os problemas internos dessa Igreja dividida e fragmen­
tada que, na maioria das vezes, luta pelo poder (poder autori­
tário, opressor e discriminador) e se afasta, em nome do evan­
gelho, do próprio centro do evangelho. A Igreja Católica tem
assumido posições combativas e atuantes (pelo menos os se­
tores mais progressistas), através de pastorais corajosas e efica­
zes. Porém, podemos perceber em alguns setores da Igreja
Evangélica um avanço para cumprir a sua responsabilidade
cristã diante da sociedade. O diálogo ecumênico entre essas
A IGREJA EVANGÉLICA E 0 NORDESTE BRASILEIRO 171

duas expressões de uma mesma Igreja (sem negar as diferenças entre


elas) pode assim ser incrementado a partir da responsabilidade
comum com a justiça. Desta forma, o testemunho do amor
de Deus Pai, em Jesus Cristo e na força do Espírito Santo, se
tornará cada vez mais visível e, sem dúvida nenhuma, mais
eficaz.
NOTAS

Capítulo 1
1. BRANDÃO, Ignácio de Loyola. D e n te s a o so l. 2.ed. Rio de Janeiro:
CODECRI, 1980. p. 17.
2. CO X, Harvey. A c id a d e d o h o m e m . Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1968 p
12 .
3. LORENZ, Konrad. O s o ito p e c a d o s d o h o m e m civ iliza d o . São Paulo:
Brasiliense, 1988. p. 21.
4. Ibid. p. 22.
5. Ibid. p. 30.
6. SANTA ANA, Júlio d e. A Igreja e o d e sa fio d o s p o b re s. Petrópolis, RJ:
Vozes, 1980. p. 50.
7. CO X, Harvey, A c id a d e d o h o m e m . Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1968. p.
153.

Capítulo 2
1. Para o teólogo dissidente católico Hans Kung, a igreja perde a sua
identidade quando não se renova, mesmo quando muda
aparentemente: " A Igreja pode perder a alma, quando progressiva em
toda mudança permanece o que é, ou conservadora em toda a
imobilidade não se torna como deve ser. Pode-se pôr em risco a vida
mediante estafa, mediante movimentação sem descanso ou por meio de
supersaturação e repouso sem movimento" (KUNG, Hans. S e r cristão.
Rio de Janeiro: Imago, 1976. p. 23).
2. Citado em GRITTI, Jules. E xp re ssã o d e fé n a s c u ltu ra s h u m a n a s. Coleção
Crer e Compreender. São Paulo: Paulinas, 1978. p. 15.
3. Vide Anexo 2 - Definições de cultura.
4. Pacto de Lausanne, parágrafo 10, citado de O e v a n g e lh o e a cultura. Série
Lausanne 3, São Paulo/Belo Horizonte: ABU EditoraA/isão Mundial, 1983.
174 UM JU M E N TIN H O N A A V E N ID A

5. Paulo Freire prefere não falar de inconsciência, já que o ser humano é


um sistema aberto, mas de niveis de consciência. No primeiro nível, o de
consciência intransitiva, o homem vive apenas no âmbito biológico-
vegetativo, consciente apenas de sua luta pela sobrevivência e de suas
necessidades imediatas. No segundo nível, consciência transitiva ingênua,
o indivíduo toma conhecimento de sua situação de pobreza e alienação,
mas procura explicações mágicas e emocionais para o fato. No nível de
consciência transitiva crítica, o indivíduo finalmente percebe-se como
sujeito da história, e procura descobrir as causas históricas e políticas de
sua alienação. (FREIRE, Paulo. E d u ca ç ã o c o m o p rá tica da lib e rd a d e . 10.
ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980).
6. RIBEIRO, Darcy. A teoria d o Brasil. Petrópolis: Vozes, 1980. p. I29.
7. Para McLuhan, a eletrônica está criando uma nova civilização, já que os
ambientes não são envoltórios passivos, mas processos ativos. Segundo
ele, o homem ocidental, perante os meios eletrônicos de comunicação,
encontra-se tão desprotegido quanto um beduíno no deserto diante de
um radinho de pilha. (MCLUFIAN, Marshall. O s m e io s d e c o m u n ic a ç ã o . 5.
ed. São Paulo: Cultrix, 1979).
8. Com o Harvey Cox bem percebe, as mudanças acontecem rapidamente e
em todos os níveis, constituindo uma verdadeira revolução social,
transformando também os interesses religiosos do povo (deuses):
"Quando o homem muda seus instrumentos e suas técnicas, seus modos
de produção e de distribuição dos bens da vida, também muda os seus
deuses" (COX, Flarvey. A c id a d e d o h o m e m . Rio de Janeiro: Paz e Terra,
p. 19).
9. VOLTAIRE. Z a d ig o u O D e stin o . Coleção Universidade. Rio de Janeiro:
Edições de Ouro. p. 79- 80.
10. Citado em O e v a n g e lh o e a cultura . Série Lausanne 3, São Paulo/Belo
Horizonte: ABU EditoraA/isão Mundial, 1983.
11. A submissão ao Espírito é a base de toda contextualização. Na questão
judaizante — circuncisão dos cristãos gentios, o grande problema
cultural da Igreja do Novo Testamento — o assim chamado Concilio de
Jerusalém, contra todo o etnocentrismo judaico, deu parecer favorável à
abolição da circuncisão, abrindo caminho para a rápida multiplicação de
igrejas entre os gentios. A oração "pareceu bem ao Espírito Santo e a
nós" (At 15.28) devolve a ênfase devida à ação do Espírito.
12. Vide STOTT, John. C o n tra cu ltu ra cristã. 2. ed. São Paulo: ABU Editora,
1982.
13. As ciências humanas e sociais proporcionaram uma dimensão científica à
revelação bíblica de que o homem é prisioneiro de forças e leis que
limitam suas ações e o impedem de atingir todo o seu potencial humano.
No Novo Testamento, este jogo de forças e leis que esmagam o homem
tem três dimensões: uma dimensão transcendental (o diabo), uma
dimensão social (o mundo) e uma dimensão individual (o pecado).
N O TAS 175

14. Sobre o poder destruidor do prazer vide um estudo a respeito da teoria


de Freud sobre cultura, feito por Marcuse. Para Freud toda cultura se
realiza pelo sacrifício do princípio do prazer, toda história é história da
repressão, já que prazer e civilização são realidades irreconciliáveis.
Marcuse se propõe a demonstrar a possibilidade de uma cultura
reconciliada com o princípio do prazer (M ARCUSE, Herbert. E ro s e
civiliza çã o . São Paulo: Círculo do Livro).
15. Muitos exegetas sugerem que algumas parábolas de Jesus eram
acontecimentos reais, conhecidos dos seus ouvintes.
1 6 .0 sofrimento em si não tem sentido; ganha significado apenas quando
resulta do testemunho ou da vocação (Mt 5.11-12; At 5.41), ou seja,
quando é sofrimento pelo outro.
17. Vide anexo 1: Hermenegildo e a Questão da Linguagem.
18. Uma das questões que mais têm fascinado os teólogos é a que diz
respeito ao significado da palavra "Deus". Com o o termo possui uma
conotação muito ampla e indefinida, alguns propõem substituí-lo, como
Paul Tillich, pelo uso da expressão "profundidade do ser" (entre outras)
ou mesmo eliminá-lo, como sugere o movimento teológico "Morte de
Deus", que defende o uso apenas da palavra "Cristo". Em ambos os
casos, o que está sendo proposto é um esvaziamento, parcial ou total,
do significado da palavra, já que o vocábulo "Deus" não se exaure na
"profundidade do ser" nem pode abdicar em benefício da palavra
"Cristo".

Capítulo 3
1. Este artigo foi extraído do Relatório da Consulta do Núcleo Nordeste da
FTL-B, realizada em Natal, RN nos dias 29 e 30 de maio de 1990. O tema
desta Consulta foi: "Teologia e Vida no Brasil - 0 Evangelho e a Questão
da Pobreza", sendo que esse artigo foi desenvolvido dentro do aspecto
missiológico-pastoral.
2. Um boletim informativo da entidade B re a d fo r th e W o rld (Pão para o
Mundo) relatava em agosto de 1982 que havia um bilhão de pessoas nos
países pobres com renda anual inferior a 50 dólares (SIDER, Ronald J.
C ristã o s rico s e m te m p o d e fo m e . São Leopoldo: Sinodal, 1984. p.20).
3. A primeira comunidade cristã em Jerusalém tentou resolver
concretamente a questão da pobreza dentro de suas estruturas. Por
isso, qualquer exegese que tente minimizar essa experiência, cheira a
defesa ideológica do capitalismo, além de ser flagrante desrespeito ao
tom de celebração de Lucas. No mínimo, a experiência de Jerusalém é
um convite para que cada comunidade cristã leve a sério o desafio da
pobreza e, dentro de sua realidade histórica, descubra formas de
superá-la (Cf. SIDER, Ronald J. C ristã o s ric o s e m te m p o d e fo m e . São
Leopoldo, RS: Sinodal, 1984. p. 102-103).
17 6 UM JU M E N TIN H O NA A V E N ID A

4. A Epístola de Tiago merece um estudo à parte. Ali, a questão da riqueza


e da pobreza é tratada de maneira peculiar à época mais próxima dos
evangelhos, com várias configurações sugestivas.
5. Karl Barth, estudando a relação Igreja x Estado na Alemanha de Hitler,
declara que o Estado também deve ser modelo do Reino de Deus. O
Estado deve ser parábola do Reino e a Igreja, dentro do Estado, deve ser
parábola do Estado, ou seja parábola da parábola do Reino de Deus.
(Cf. CONN, Daniel. K a rl Barth, T eó lo g o da Lib e rd a d e )
6. Portanto, dentro de nossa condição atual, a Igreja não se identifica com
os pobres. A Igreja reconhece os pobres como uma parte muito
importante do mundo, mas não reconhece a si mesma entre os pobres,
da mesma forma que os pobres não reconhecem a presença de Cristo
na Igreja. Assim, a Igreja vive uma situação em que não é totalmente
Igreja. E a Igreja que não é Igreja dos pobres coloca sérias dúvidas sobre
seu caráter eclesiástico. Isto constitui um critério de interpretação
eclesiástica (cf. SANTA ANA, Julio de. A Igreja e o d e sa fio d o s p o b re s:
te m p o e p re se n ça . Petrópolis, RJ: Vozes, 1980. p. 30).
7. Citado de FREIRE, Paulo. P e d a g o g ia d o o p rim id o . 13. ed. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1984. p. 31.
8. Biblioteca de História. V. 6 São Francisco. São Paulo: Ed. Três, 1973,
p. 48.
9. Ibid.p. 72.
10. Ibid. p. 52.
11. BOFF, Leonardo. E a Igreja s e f e z p o v o . 3.ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1986,
cap. VII.
12. Ibid.p. 95.
13. Temo que esse discurso, aparentemente legítimo e antecipador de
críticas atuais, hoje seja extremamente cômodo e acomodador. Quando
as CEB's eram desconhecidas, mas politicamente expressivas, havia certa
cautela em sua análise. "Soteriologia insuficiente" e "fundamentalismo
de esquerda" são hoje análises corriqueiras, mas talvez sejam expressões
que revelem o nosso preconceito e o nosso alívio, e certamente não nos
desafiam a compromissos mais amplos e mais corajosos.
14. S e rv o s e n tre o s p o b re s. COM IBAM E AURA.

Capítulo 4
1. AGOSTINHO. A cid a d e d e D eus. São Paulo: Edameris, 1964. v. 2. p. 285.
2. MUMFORD, Lewis. A c id a d e na h istó ria : suas origens, transformações e
perspectivas. 4.ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998. p. 16.
3. BARRO, Jorge H. A ç õ e s p a sto ra is da igreja c o m a cid a d e . Londrina:
Descoberta, 2000. p. 86.
NOTAS 177

Capítulo 5
1. BONORA, Antonio. A m ó s , o P ro fe ta da Ju stiça . São Paulo: Paulinas, 1983.
p. 41.
2. Ibid.
3. Ibid. p. 19.
4. Ibid. p. 8.
5. MUMFORD, Lewis. A c id a d e na histó ria: suas origens, transformações e
perspectivas. 4 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
6. Ibid. p. 63.
7. Ibid. p. 35.
8. Ibid. p. 43.
9. HOBSBAWM, EricJ. B a n d id o s. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1975.
p. 58.
10. CO X, Flarvey. A cid a d e d o h o m e m . Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1968.
p. 98.
11. Ibid. p. 99.
12. COMBLIN, José. V ive r na c id a d e : p ista s Para a p a sto ra l U rbana . São
Paulo: Paulus, 1996. p. 9.
13. LINTPIICUM, Robert C. C id a d e d e D e u s, C id a d e d e Sa ta n á s: Uma teologia
bíblica da igreja nos centros urbanos. Belo Horizonte, MG: Missão, 1993.
14. COMBLIN, José. Op cit. p. 11.
15. Ibid. p. 35.
16. AGOSTINHO. A c id a d e d e D e u s. V. II. São Paulo: Edameris, 1964. p. 285
17. ARISTÓTELES. A p o litica . São Paulo: Martins Fontes, 1998. p. 5.
18. CASTRO, Clóvis Pinto de. A c id a d e é m in h a p a ró q u ia . São Bernardo do
Campo, SP: Editeo, 1996. p. 81.

Capítulo 6

1. MONTEIRO, Marcos. A história de Agenor e a Igreja no Brasil. In: B o le tim


Teo ló g ico , São Leopoldo: Fraternidade Teológica Latino-Americana, v.2,
n . 4 , 1984.
2. Os dados a seguir foram extraídos do Almanaque Abril 2001.
3. "O desequilíbrio existente, porém, não é um produto das condições
naturais, como afirmam os autores comprometidos com as estruturas
dominantes, nem das condições étnicas, mas resultado de um processo
178 UM JU M E N TIN H O N A A V E N ID A

histórico que nos foi desfavorável". ANDRADE, Manuel Correia de. O


caso d o N o rd e ste brasileiro. Recife, PE: ASA, 1985 (Coleção Nordeste em
Evidência, n. 14).
4. MELO NETO, João Cabral de. M o rte e vida se ve rin a e o u tro s p o e m a s em
v o z alta. 18. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1983. p. 71.

5. Nas páginas 397 e 555 Hobsbawm distribui essas farpas ao abordar


diversos problemas mundiais. Parece que o que o impressiona é
exatamente a proximidade dos índices de pobreza e desigualdade aos
índices de países incomparavelmente menores como o Sri Lanka,
Honduras e Jamaica. Aliás, o Sri Lanka teria índices melhores do que o
do Brasil em mortalidade infantil e expectativa de vida. HOBSBAWM,
Eric. Era d o s e x tre m o s: o b re v e s é c u io X X : 1 9 1 4 - 1 9 9 1 . São Paulo:
Companhia das Letras, 1995.
6. MUMFORD, Lewis. A c id a d e na história: suas origens, transformações e
perspectivas. Trad. Neil R. da Silva. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes,
1998.
7. BASTOS, Elide Rugai. A s lig a s c a m p o n e sa s. Petrópolis, RJ: Vozes, 1984.
P- 71.
8. Os cultos difundidos pelos meios de comunicação atribuem características
de demônios às entidades de umbanda, rotulando de "possessão
demoníaca" um grande número de fenômenos psíquico-sociais e
atribuindo ao demônio-entidade um nome semelhante ao de entidades
ligadas à umbanda e ao candomblé.
9. RIBEIRO, Darcy. O s ín d io s e a civ iliza çã o : a integração das populações
indígenas no Brasil moderno [1970]. 5. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1986.
10. FREYRE, Gilberto. C a sa g ra n d e e se n za la [1933], 46. ed. Rio de Janeiro/
São Paulo: Record, 2002.
11. GEBARA, Ivone. A m o b ilid a d e d a se n za la fe m in in a : mulheres nordestinas,
vida melhor e feminismo. São Paulo: Paulinas, 2000.
12. BEAUVOIR, Simone de. O s e g u n d o se xo . São Paulo: Círculo do Livro,
1990, v. 2.
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6. BARRO, Jorge Henrique. Ações pastorais da igreja com a
cidade. Londrina, PR: Descoberta, 2000.
7. BELTRÃO, Luiz. Folkcomunicação. São Paulo: Cortez
Editora, 1980.
8. BONORA, Antonio. Amós, o Profeta da Justiça. São Paulo:
Paulinas, 1983.
9. CASTRO, Clóvis Pinto de. A cidade é minha paróquia. São
Bernardo do Campo, SP: Editeo, 1996.
10. CO M BLIN , José. Viver na cidade: pistas Para a pastoral
Urbana. São Paulo: Paulus, 1996.
11. CO U LA N G E, Fustel de. A cidade antiga. 2 ed. São Paulo:
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180 UM JU M E N TIN H O N A A V E N ID A

12. CO X, Harvey. A cidade do homem. Rio de Janeiro: Paz e


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1 3 . ___ . A festa dos foliões. Petrópolis, RJ: Vozes, 1974.
14. FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. 10.
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15. GEBARA, Ivone. A mobilidade da senzala fem inina:
Mulheres Nordestinas, Vida Melhor e Feminismo. São
Paulo: Paulinas, 2000.
16. GONÇALVES, Noé Stanley. Desafios da realidade
cultural à missão da igreja no contexto brasileiro,
(apostila).
17. G R ITT I, Jules. Expressão de fé nas culturas humanas. São
Paulo: Paulinas, 1978.
18. HOBSBAWM, Eric. J. Bandidos. Rio de Janeiro: Forense
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19. K U N G , Hans. Ser cristão. Rio de Janeiro: Imago, 1976.
20. LIN T H IC U M , Robert C. Cidade de Deus, Cidade de
Satanás’. Uma teologia bíblica da igreja nos centros
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21. M ARCUSE, Herbert. Eros e civilização. São Paulo: Círculo
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22. M CLU H A N , Marshall. Os meios de comunicação. 5 ed. São
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23. M EN D O N Ç A , Antonio Gouvêa. O celeste porvir. São
Paulo: Edições Paulinas, 1984.
24. M ESTERS, Carlos. Profeta: saudade e esperança. Série: A
Palavra na Vida, n° 17 e 18. Belo Horizonte: CEBI,
1989.
25. M U M FO RD , Lewis. A cidade na história: suas origens,
BIBLIOGRAFIA 181

transformações e perspectivas. 4 ed. São Paulo:


Martins Fontes, 1998.
26. NIDA, Eugene A. Costumes e culturas.
27. RIBEIRO, Darcy. A teoria do Brasil. Petrópolis, RJ: Vozes,
1980.
28. SANTO S, Jair Ferreira dos. O que épós-moderno. 4a ed.
São Paulo: Brasiliense, 1987.
29. STO TT, John. A mensagem do Sermão do Monte. 3a ed.
São Paulo: ABU Editora, 2005.
30. SCHW ANTES, Milton. “A profecia durante a
monarquia.” In: SCHW ANTES, Milton;
YAMAMORI, Tetsunao; RAKE, Gregório; Padilla,
C. René. Servindo com os pobres na América Latina:
modelos de ministério integral. Curitiba, PR:
Descoberta, 1998.
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A VISÃO MUNDIAL é uma organização não-governamental (ONG)


humanitária cristã que promove a justiça, o desenvolvimento
transformador sustentável e socorro em situações de emergência.
Está presente no Brasil desde 1975, beneficiando hoje mais de
2,7 milhões de brasileiros. São desenvolvidos e apoiados dezenas de
projetos sociais concentrados em regiões empobrecidas, como o
Nordeste do Brasil, Norte de Minas Gerais, Amazonas, Tocantins, e
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MARCOS ADONIRAM LEMOS MONTEIRO,
mestre em filosofia, é pastor na Primeira
Igreja Batista em Bultrins, Olinda, PE, e na
Comunidade de Jesus em Feira de Santana,
BA, e professor no Seminário Teológico
Batista do Nordeste, também em Feira de
Santana. É vice-presidente do Centro de
Ética Social Martin Lulher King Jr.
Diante das transformações nas grandes cidades, qualquer pastor se
sente tão anacrônico quanto um jumentinho puxando uma carroça
(a igreja) em plena avenida. 0 Deus que apresentamos é um Deus
que não toma partido. A pregação mantém as igrejas omissas e
passa ao largo das questões que afligem a cidade.

O que dizer das diferentes expressões urbanas de igreja, das suas


contradições, da hesitação entre "o que fazer"e"como fazer"? Como
alcançar aqueles que confiam desconfiando, pedem orações, mas
também soluções mágicas, crêem em Deus, mas também em
esoterismo e crendices populares?

São estas algumas das questões apresentadas em Um Jumentinho


na Avenida— a missão da igreja e as cidades.

^ Recomendo ao leitor uma trilha pelas páginas desta obra. Nelas


somos guiados com leveza e profundidade, em busca da
contextualização do evangelho sem viseiras, semelhante a um
jumentinho na avenida.

Carlos Queiroz
D ire to r n a c io n a l d a V isã o M u n d ia l B ra sil

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