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Potencial Retardado

Problema da Semana
Carlos Rodolfo B. Lopes Souza
crblsouza@gmail.com

11 de Novembro de 2019

O problema de duas semanas atrás foi do livro “Calor e Termodinâmica”, 5a ed., do Zemansky. O pro-
blema sorteado foi o 15 do capı́tulo 14.

Realmente não é um problema trivial! A termodinâmica de um paramagneto anisotróprico como o


nitrato de magnésio e cério (NMC) é tema de teses e rende artigos até hj. Vou deixar anexadas algumas
teses e artigos que li para entender esse problema. Em linhas gerais, a solução foi baseada na discussão
das seções 14.1 a 14.5 do Zemansky.

Problema 14.15 O NMC, inicialmente a 1,5o K, é magnetizado isotermicamente desde um campo nulo
até um campo de 5 kOe.
(a) Qual é o calor de magnetização por ı́on-grama?
(b) Qual é a temperatura final depois de desmagnetizado adiabaticamente até um campo de 1 kOe?

Solução.
A chave para resolver esse problema está no entendimento do efeito magnetocalórico. Sais para-
magnéticos têm aplicações na refrigeração devido a esse efeito, no qual ao submeter o sal a um magnético
externo há a diminuição da entropia de desordem magnética do sistema. Se o processo for realizado adia-
baticamente de tal forma que a entropia total do sistema se mantenha constante, então há a elevação da
temperatura devido ao aumento da entropia relacionada aos ı́ons da rede. Da mesma forma, se o campo
for reduzido adiabaticamente, há o aumento da entropia de desordem magnética e consequentemente, a
diminuição da temperatura, pois há a redução da entropia da rede.
A resolução desse problema envolve a construção de um modelo microscópico para o NMC. A rigor,
deverı́amos montar o hamiltoniano do cristal contabilizando todas as interações relevantes (as interações
entre os ı́ons da rede, a interação de troca, o campo cristalino e a interação com o campo externo),
encontrar o espectro de energia e então montar a função de partição desse sistema para derivação dos
potenciais termodinâmicos e daı́ as propriedades desejadas. É isso que rende teses e artigos: propor
modelos de magnetos e fazer termodinâmica para aplicações tecnológicas.

Deixando a conversa fiada de lado, o NMC tem fórmula quı́mica 2Ce(NO3 )3 ·3Mg(NO3 )2 ·24H2 O, com
a estrutura cristalina hcp (célula primitiva romboédrica), como descrita parcialmente na Fig. 1. Os únicos
átomos que apresentam momento angular total J não nulo são os ı́ons de cério, Ce+++ , os outros ı́ons
apresentam momento angular orbital L suprimido pelos átomos adjacentes e têm última camada fechada,
sem momento de spin “lı́quido” S, portanto J nulo. Além disso, os ı́ons de Ce+++ estão rodeados por
cerca de 60 átomos não magnéticos, encontram-se muito diluı́dos e bastante separados para interagirem
magneticamente entre si. Em outras palavras, os ı́ons se comportam quase como independentes uns dos
outros e o sistema todo como se fosse um gás no que diz respeito à debilidade da interação.
Nosso subsistema consiste num conjunto de N ı́ons magnéticos independentes e cujos outros átomos
da rede servem apenas como uma “caixa rı́gida” que mantém esses ı́ons em suas posições de equilı́brio.
Na faixa de temperatura de interesse (10-3 a 2 K) a entropia de desordem magnética é muito maior que
as entropias relacionadas aos outros átomos da rede ou elétrons de condução [1]. Desprezaremos toda
informação termodinâmica dos átomos não magnéticos e tomaremos como variáveis de estado relevantes
apenas a temperatura T do subsistema, a magnetização M e a intensidade do campo externo H.
Figura 1: Estrutura cristalina do NMC. Recorte do plano [1̄10] Figura extraı́da da referência [2]
Qualitativamente, o campo cristalino e o campo magnético externo quebram as degenerescências das
autoenergias dos ı́ons, levando a desdobramentos da forma

i = δj − g · µB · mJ · H (1)

onde δj é a parcela da energia advinda do campo cristalino e a segunda parcela é a energia de interação
do momento dipolar do ı́on com o campo externo, onde g é o fator de Landé, µB é o magneton de Bohr,
mJ é a projeção do momento angular, que varia de unidade em unidade de −J a J.
A forma como o campo cristalino separa os estados que antes eram todos pertencentes ao mesmo
autovalor de energia depende da simetria e dos átomos que circundam os ı́ons ligantes; por exemplo, o
que ocorre em cristais contendo metais de transição centrais cujos elétrons que participam da ligação são
de caráter d: o campo cristalino de simetria octaédrica ou tetraédrica quebra a degenerescência e separa
os estados d em dois subespaços, t2g e eg , como no caso do ZnO, Fig. 3. Na notação do Zemansky, os δj
correspondem aos autovalores desdobrados desses subespaços. Vale ressaltar que esses subespaços ainda
podem ser degenerados, sendo essa degenerescência quebrada por alguma outra interação que reduz a
simetria do potencial sentido pelos ı́ons, como um campo magnético externo ou o acoplamento spin-órbita.

Figura 2: Desdobramentos das autoenergias do ZnO. Figura 3: Coordenação tetraédrica do ZnO.


Observe que para os elétrons d do Zn, o campo cris-
talino tetraédrico separa os subespaços t2g e eg e o
acomplamento spin-órbita separa os estados multi-
pletos de t2g . Figura da referência [3].

2
A função de partição para nosso sistema é então
X X
Z= e−i /kB T = e−(δj −g·µB ·mJ ·H)/kB T =
i j,mJ
X X
= e−δj /kB T eg·µB ·mJ ·H/kB T
j mJ
| {z }| {z }
Zint ZH

ou seja,
Z = Zint ZH . (2)
O que a eq. 2 quer dizer é que a função de partição do nosso subsistema consiste em duas partes: uma
que vem do campo cristalino e outra magnética.

Desenvolvendo a parcela da função de partição devido ao campo cristalino,


X
Zint = e−δj /kB T = g0 e−δ0 /kB T + g1 e−δ1 /kB T + · · ·
j

onde gj corresponde a multiplicidade da degenerescência. Supondo que o campo cristalino desdobra


apenas dois subespaços de energias δ0 que tomaremos como referência e δ1 , essa parcela da função
partição se torna
Zint = g0 + g1 e−δ1 /kB T . (3)
Desenvolvendo a parte magnética da função de partição,
J
X
ZH = eg·µB ·mJ H/kB T = e−aJ + e−a(J−1) + · · · + ea(J−1) + eaJ
mJ =−J

onde
H
,a = gµB
kB T
vemos que se trata de uma progressão geométrica de razão ea , logo

e−aJ − ea(J+1) e−a(J+1/2) − ea(J+1/2) sinh a(J + 1/2)


ZH = = = (4)
1 − ea e−a/2 − ea/2 sinh a/2
Um comentário aqui: a parte magnética da função partição não pode ser levada em conta como parte
integrante para a energia interna U , por isso a parte advinda do campo cristalino é denotada por Zint .
Não podemos incluir ZH no cálculo de U porque a energia dos microestados resultantes da separação
pelo campo H, εmJ = −gµB mJ H dependem explicitamente do campo e não dos ı́ons ou do cristal em
si. Em outras palavras, o campo externo H é o agente que realiza trabalho sobre o cristal, gerando a
magnetização M . A história seria outra se esses microestados surgissem do acoplamento spin-órbita em
vez de um campo externo H. É por esse motivo que Zemansky não inclui εmJ na energia interna (pág.
408).

Com a função de partição, podemos encontrar a energia livre de Helmholtz,

F = −N kB T ln Z = −N kB T ln[sinh a(J + 1/2)] − ln(sinh a/2) + ln(g0 + g1 e−δ1 /kB T )



(5)

e dela, determinar a magnetização M :


∂F ∂ ln Z
M =− = N kB T =
∂H ∂H
  
d ∂a gµB d
= N kB T ln ZH = N kB T · ln Z =
da ∂H kB T da
d
ln[sinh a(J + 1/2)] − ln(sinh a/2) + ln(g0 + g1 e−δ1 /kB T ) =

= N gµB
da
 1 
(J + 1/2) cosh a(J + 1/2) cosh a/2
= N gµB − 2
sinh a(J + 1/2) sinh a/2

3
ou ainda
M = N gµB JBJ (a) (6)
onde
1 1
BJ (a) = [(J + 1/2) coth a(J + 1/2) − coth a/2] (7)
J 2
é a função de Brillouin. Esta é uma função complicada de H e de T , mas podemos analisá-la tranquila-
mente para valores pequenos de a e para faixa de interesse de H e T :
H H kB
a << 1 ⇒ gµB << 1 ↔ <<
kB T T gµB
Para o NMC,
kB 1.38 × 10−16 erg/K
≈ ≈ 8.1 × 103 Oe/K.
gµB 1.84 × 0.927 × 10−20 erg/Oe
ou seja,
H
<< 8.1 × 103 Oe/K
T
onde tomamos g = 1.84 (quadro 14.1 do Zemansky), fator para um campo perpendicular ao eixo c da
rede romboédrica. Nessa condição, realizando uma expansão em série de Taylor de coth(a) e depois uma
expansão binomial no denominador resultante (não vou colocar aqui pq é um saco escrever essas contas,
mas é de boas de fazer), podemos aproximar
1 a
coth(a) ≈ +
a 3
e levando essa aproximação na eq. 7, vem
    
1 1 (J + 1/2)a 1 1 a/2 (J + 1)a
BJ (a) = (J + 1/2) + − + =
J (J + 1/2)a 3 2 a/2 3 3
e
J(J + 1)a J(J + 1)a H
M = N gµB = N g 2 µ2B
3 3k T
| {z B }
Constante de Curie Cc
H
M = Cc . (8)
T
O resultado 8 é a Lei de Curie. O gráfico abaixo mostra M em termos da razão H/T e a função de
Brillouin para alguns ı́ons.

4
Figura 4: Magnetização por dipolo M/N µB por H/T . A linha vermelha corresponde ao valor da tempe-
ratura 1.5 K e H = 5 × 103 Oe. Figura adaptada da referência [4].
No nosso caso, a faixa de temperaturas é de 10-3 a 1.5 K e o campo vai de zero a 5×103 Oe, o que já está
fora dos limites da aplicação da lei de Curie.

Rigorosamente, devemos usar a função de Brillouin para encontrar a temperatura após uma desmag-
netização adiabática. Vamos fazer isso, porém, na teimosia, também vamos usar a lei de Curie para
efeitos de comparação (afinal, tô curioso e numa vontade danada de usar essa forma simplificada, não
sou de ferro).

Referências
[1] F. Pobell, Matter and methods at low temperatures, vol. 2. Springer, 2007.
[2] A. Zalkin, J. Forrester, and D. H. Templeton, “Crystal structure of cerium magnesium nitrate hy-
drate,” The Journal of Chemical Physics, vol. 39, no. 11, pp. 2881–2891, 1963.
[3] X.-L. Sheng, Z. Wang, R. Yu, H. Weng, Z. Fang, and X. Dai, “Topological insulator to dirac semimetal
transition driven by sign change of spin-orbit coupling in thallium nitride,” Physical Review B, vol. 90,
no. 24, p. 245308, 2014.

[4] M. W. Zemansky, Calor e Termodinâmica. Guanabara Dois, 5 ed., 1978.

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