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Termodinâmica e FIS628 (2023/1)

Introdução à Física Estatística Prof. Gláuber C. Dorsch

Efeito magnetocalórico e resfriamento magnético


Parte I — Termodinâmica
Resfriamento adiabático magnético é uma técnica utilizada para atingir temperaturas
abaixo de 0.3 K (quando o resfriamento por 3 He líquido já é extremamente ineficiente [1])
por meio da desmagnetização de um sal paramagnético. Esses materiais tipicamente
possuem elétrons desemparelhados nas camadas de valência, resultando em um momento
angular total (orbital + spin) que induz um momento de dipolo magnético atômico. Esse,
por sua vez, tende a se alinhar paralelamente a um campo magnético externo H, produ-
zindo uma magnetização total M. Nesta lista de exercícios, vamos entender o princípio
subjacente a essa técnica de resfriamento usando conhecimentos básicos de termodinâ-
mica.

1. Escreva a primeira lei da termodinâmica para um material paramagnético1 . O que


acontece com a energia interna do sal quando ele é magnetizado/desmagnetizado
adiabaticamente?

2. Negligenciando interações mútuas entre os dipolos magnéticos do material, sua ener-


gia interna tem duas contribuições que podem variar no processo de (des)magnetiza-
ção: uma energia potencial devido à orientação dos dipolos magnéticos relativamente
ao campo magnético externo, e a energia cinética dos átomos do cristal. Relem-
brando, da eletrodinâmica, a expressão para a energia potencial de um dipolo mag-
nético na presença de um campo externo, o que ocorre com essa energia potencial
quando o sal se torna magnetizado? Portanto, o que deve acontecer com a tempera-
tura do sal caso a (des)magnetização seja feita adiabaticamente?

3. O processo de resfriamento magnético consiste em essencialmente duas etapas. Pri-


meiro, o sal é magnetizado enquanto está em contato com um reservatório térmico
(por ex. hélio fluido) a temperaturas que podem ser atingidas por outras técnicas de
criogenia. Em seguida, o sal é retirado do contato térmico com a vizinhança e é des-
magnetizado. Quem cede calor para quem nesses processos? Quem está realizando
o trabalho? O que acontece com a temperatura do sal após concluído o ciclo?

4. Os processos descritos acima estão esquematizados na figura 1 para três materiais


paramagnéticos diferentes. Identifique, no gráfico, cada etapa do processo. Qual
material vai proporcionar maior resfriamento? Qual deve ser a característica da
curva S × T para que um material produza maior resfriamento por essa técnica?
A que propriedade física do sistema isso está associado? Interprete fisicamente o
resultado.
1A variação do volume do sal pode ser considerada insignificante nos processos em que estamos interessados.

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Prof. Gláuber C. Dorsch Lista de Exercícios 01

Figura 1: Diagrama S × T para materiais paramagnéticos, ilustrando o processo de resfriamento magné-


tico. As linhas sólida, tracejada, e tracejada-pontilhada ilustram como varia a entropia com a temperatura
para três materiais diferentes com uma mesma magnetização M1 . Uma das curvas correspondendo a
outra magnetização M2 também é mostrada. Fonte: [1].

5. Mais precisamente, mostre que a variação de temperatura no processo adiabático é


dada por Z Hf  
T ∂M
∆T = − d(µ0 H),
Hi CH ∂T H
onde CH é a capacidade térmica do sistema a H constante, e Hi e Hf são os valores dos
campos nos pontos inicial e final do processo adiabático (i.e. os campos necessários
para reduzir a magnetização de M2 a M1 na figura 1).
(Dica: use a relação de Maxwell envolvendo a energia de Gibbs do sistema, e algumas
relações matemáticas entre derivadas parciais.)

Parte II — Perspectiva estatística


6. Outra maneira de entender o efeito magnetocalórico é através da definição micros-
cópica de entropia como o (logaritmo do) número de microestados associados a um
estado termodinâmico. Assim como a energia interna, a entropia também tem uma
contribuição magnética e outra devido à temperatura. Explique por que a entropia
magnética aumenta à medida que o material é desmagnetizado (ver também lista
sobre rede de spins). Use esse resultado para discutir (i) o fluxo de calor no processo
de magnetização isotérmica, e (ii) o que ocorre com a temperatura do material num
processo de desmagnetização adiabática.

A perspectiva estatística explica, também, por que precisamos resfriar o material antes
de iniciar o ciclo descrito anteriormente. É sabido que um material paramagnético não
sustenta sua magnetização na ausência de um campo externo. Assim que o campo é
removido, a agitação térmica dos átomos rapidamente randomiza a orientação dos dipolos
magnéticos atômicos, apagando qualquer magnetização que existia inicialmente. Pelo
mesmo motivo, quanto maior a temperatura do material, mais difícil é magnetizá-lo,
sendo necessário expô-lo a campos mais intensos. Podemos estimar da seguinte maneira
a temperatura a que o material precisa estar submetido para ser magnetizado por um
campo magnético de determinada intensidade.

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Prof. Gláuber C. Dorsch Lista de Exercícios 01

(a) (b)

Figura 2: (a) Níveis de energia 2s e 2p de um átomo. O acoplamento spin-órbita separa o nível 2p em dois níveis
2p1/2 e 2p3/2 (a chamada estrutura fina dos níveis atômicos). O campo magnético externo quebra a degenerescência
dos níveis associados a diferentes números quânticos magnéticos mj . (b) Linhas espectrais em transições atômicas
ilustrando o efeito Zeeman. Na ausência de campos externos há duas linhas espectrais correspondendo às transições
2p1/2 → 2s1/2 e 2p3/2 → 2s1/2 . Ao submeter o átomo a um campo magnético externo, os níveis 2s1/2 e 2p1/2 se
subdividem cada um em dois (com mj = − 21 , 12 ), e o nível 2p3/2 se subdivide em quatro (mj = − 23 , − 12 , 1
2
e 3
2
),
dando origem a mais linhas espectrais.

7. Explique, em poucas palavras, por que um elétron com momento angular total J
ocupa um nível atômico de degenerescência 2J + 1, e por que a presença de um
campo magnético externo H quebra essa degenerescência, dando origem a 2J + 1
subníveis. Esse é o chamado efeito Zeeman, ilustrado na figura 2. O que diferencia,
fisicamente, cada subnível? A diferença de energia entre dois subníveis consecutivos
pode ser calculada usando teoria de perturbação quântica, e é dada por

∆E = gµB (µ0 H),

onde g ∼ 1 é o fator giromagnético (fator de Landé) e µB é o magneton de Bohr.

8. Se o material está em contato com um reservatório à temperatura T , mostre que a


razão entre o número de ocupação de dois níveis consecutivos é
 
nE ∆E
= exp .
nE+∆E kB T
O que essa razão tem a ver com o fato de o material estar ou não magnetizado? Se o
laboratório possui um íma capaz de produzir um campo magnético2 de 1 T, estime
a temperatura a que o material deve ser resfriado para que possa ser magnetizado
isotermicamente. É possível alcançar essas temperaturas usando técnicas usuais de
criogenia com hélio-3 líquido?

A perspectiva estatística nos permite também entender por que há um limite a esse
método de refrigeração, i.e. por que não é possível seguir com esse procedimento até
atingir o zero absoluto.
2 Trata-se de um campo aproximadamente 20,000 vezes mais intenso que o campo magnético da Terra. Esse é um valor

típico para campos magnéticos usados em máquinas de ressonância magnética, por exemplo.

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Prof. Gláuber C. Dorsch Lista de Exercícios 01

9. Até aqui, desprezamos as interações mútuas entre os dipolos magnéticos atômicos,


mas sabemos, da eletrodinâmica, que um dipolo magnético µ gera um campo
µ
h'
4πr3
a uma distância r do dipolo. Assim, mesmo quando retirarmos totalmente o campo
magnético externo no processo de desmagnetização adiabática, ainda haverá um
campo magnético residual tendendo a manter os dipolos alinhados. Como discu-
tido no exercício anterior, a “altas” temperaturas essa tendência de alinhamento não
consegue competir com a randomização termal. Mas, à medida que o material é
resfriado, esse efeito começa a se tornar relevante. Estime a temperatura em que
isso acontece (considere que µ ≈ µB para um momento magnético atômico, e que a
distância interatômica de um sal paramagnético é da ordem de 3 Å).

10. Explique por que a temperatura calculada no item anterior está associada a um limite
inferior que pode ser atingido por essa técnica de resfrigeração.
(Dica: avalie o que acontece com a entropia à medida que resfriamos o material abaixo
dessa temperatura, e interprete o resultado à luz da figura 1 e/ou das discussões feitas
em itens anteriores.)

Nos cálculos acima utilizamos µ ≈ µB , pois estávamos considerando momentos mag-


néticos atômicos, produzidos pelos elétrons de valência desemparelhados. Mas dipolos
nucleares têm magnitude cerca de 1000 vezes menores. Se essa técnica for utilizada com
esses dipolos, as temperaturas atingidas poderiam ser drasticamente reduzidas. O preço
a se pagar é que, justamente por serem menores, é necessário um campo mais intenso
para alinhá-los, além de que o material já precisa estar a temperaturas baixas. Apesar
das dificuldades, a técnica de resfriamento magnético por spins nucleares existe, e nos
possibilita atingir temperaturas da ordem de 10−5 K [1].

Referências

[1] N. Kurti, “Cooling by adiabatic demagnetization of nuclear spins”, Cryogenics 1 n. 1


(1960) pp. 2-11.

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