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Como aproveitar seu ebook

A área Jurídica/Forense é um excelente campo de


atuação na Psicologia, com altas perspectivas de ganho e
ainda em pleno crescimento; especialmente aqui no Brasil!

Mas você mesmo já deve ter se perguntado como


funciona nosso trabalho, afinal: se realizamos
atendimentos clínicos, como é nossa atuação, se lidamos
com cenas de crime, que tipo de casos nós atendemos e
quais as técnicas que nós utilizamos, não é mesmo?

A verdade é que a Psicologia Jurídica/Forense é muito


mais do que mostram os filmes de Hollywood ou as séries
estilo CSI. Neste ebook eu vou te mostrar como nossa
profissão funciona na vida real – já na primeiríssima parte,
te entrego uma série de histórias e exemplos práticos e
objetivos de casos reais com os quais eu mesma trabalhei
ao longo dos meus anos de carreira.

Durante a leitura dessa parte, você provavelmente vai


descobrir muita coisa nova, mas também vão surgir várias
dúvidas! Não se preocupe: logo na sequência, eu explico
tudo que você precisa saber sobre o estado da profissão
aqui no Brasil, como é o processo de inserção nesse
mercado, e te dou ainda mais exemplos de atuação – só que,
dessa vez, de uma forma bem mais abrangente, englobando
o dia-a-dia de diferentes áreas de trabalho, ao invés de
casos específicos.

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Depois, te conto como foi a minha própria trajetória –
do estágio ao doutorado em Psicopatia (e muito além) – e te
falo sobre o trabalho que eu desenvolvi como professora;
ensinando, para centenas de alunos, a Psicologia Jurídica e
Forense na prática.

Pra te mostrar o que afinal eu quero dizer com esse


termo, em seguida eu te conto a história completíssima de
um dos casos mais marcantes que já atendi: uma moça que
cometeu múltiplos assassinatos contra crianças, mas que
buscava a reabilitação – um caso raro de Transtorno de
Personalidade Antissocial1 diagnosticado em uma mulher.

Você terá acesso à história da infância dela, as


dificuldades familiares, o processo terapêutico, o apoio
psiquiátrico e todo o desfecho deste caso incrível. Já ouviu
dizer que é impossível recuperar um psicopata? Essa
história vai te mostrar uma perspectiva diferente. O caso
inclui [comentários profissionais] para que você
compreenda bem como funcionam nossas estratégias,
além de {definições de termos técnicos} com breves
explicações sobre palavras ou expressões que você talvez
ainda não conheça ou não lembre do significado.

Por último, ao final do ebook, explico pra você quais


são seus próximos passos para ingressar nessa área incrível
e promissora, com uma demanda altíssima de profissionais
verdadeiramente qualificados. Espero que você goste!

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Critérios diagnósticos oficiais do TPAS inclusos ao final do ebook (pág. 71)

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ÍNDICE

06 ................................................................................ CASOS REAIS

12 ....................................................................... CASOS GERAIS

17 ............................................................ A FORENSE NO BRASIL

22 .................................................................................. NO PAPEL

25 ............................................................................ NA PRÁTICA

30 ........................................................... MINHA TRAJETÓRIA

39 .................................................................................... PERSONNA

41 .................................................................................... BROOKS

45 ............................................................................ PSICOPATIA

52 ........................................................................................ ABUSO

56 ..................................................................................... FAMÍLIA

63 ............................................... CONFLITO E RESOLUÇÃO

69 .................................................................. PRÓXIMOS PASSOS

74 .................................................................................. Dra. Elisa Krüger

75 ...................................................................................... Critérios TPAS

76 ............................................................................................ Referências

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CASOS REAIS

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O que vem a seguir é uma coleção de histórias
verdadeiras que aconteceram comigo no decorrer dos
meus anos de trabalho com a Psicologia Forense.

O objetivo deste capítulo é apresentar para você


alguns exemplos extremamente práticos de atuação
profissional logo no início, para depois te explicar melhor
sobre as diversas possibilidades e perspectivas de inserção
na carreira, tirar suas dúvidas e responder algumas das
perguntas que com certeza vão surgir ao longo da sua
leitura.

Vamos lá?

Caso 1 – Certo dia, um senhor de idade começou a ter


diversos problemas no trabalho porque passou a sofrer
surtos do tipo psicótico durante o dia – seu emprego era
muito desgastante e ele passou a não conseguir mais
trabalhar.
Depois de consultar diversos médicos para receber
uma descrição mais precisa do que, afinal, estava
acontecendo, ele recebeu enfim um diagnóstico: sofria de
esquizofrenia.
Diante do parecer, esse senhor foi então buscar o
exercício de sua aposentadoria no INSS; mas ao passar pela
perícia dos médicos do órgão, recebeu uma conclusão
contradizendo o diagnóstico anterior e estabelecendo que
poderia voltar a trabalhar sem problemas.

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Foi aí que ele me buscou como perita especialista, para
que eu produzisse um laudo capaz de contrapor o
documento apresentado pelo INSS na Justiça, provando
que ele era, de fato, esquizofrênico e portanto tinha direito
ao benefício.
Assim sendo, apliquei nele uma bateria de testes. Ao
avaliar os resultados, ficou claro que realmente, era um
caso de esquizofrenia – apresentei o laudo e nós ganhamos
o processo na Justiça, garantindo a ele sua aposentadoria.
Cabe ressaltar que, infelizmente, muitas perícias
realizadas por órgãos públicos são realizadas às pressas e
sem o instrumental adequado que é necessário para uma
avaliação precisa de casos complexos como este.

Caso 2 – Certa vez, uma senhora solteira de meia


idade passou por todo o processo jurídico necessário e
conseguiu, então, adotar uma pequena garotinha.
Conforme o tempo foi passando, os vizinhos
começaram a ouvir gritos e barulhos estranhos vindos do
apartamento dessa senhora. Segundo eles, alguns casos
estranhos de negligência costumavam acontecer por parte
dela para com a criança – como uma vez em que ela
abandonou o carrinho com o bebê no meio de um pátio e
saiu para manobrar seu carro.
Alguém dentre esses vizinhos, então, prestou uma
denúncia contra a mulher, e eu fui chamada pela Vara de
Infância para avaliá-la – verificando se ela apresentava

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algum problema compatível com a denúncia e que a
impedisse de permanecer com a guarda da garotinha.
No fim das contas, a senhora não tinha nenhum tipo de
complicação séria, e aparentemente toda a história era mais
um exagero dos vizinhos do que um caso real de maus-
tratos. Assim sendo, ela recebeu toda uma orientação
especial para os cuidados com a filha adotiva, mas
conseguiu permissão para manter a guarda da menina.

Caso 3 – Uma mulher acusava seu ex-marido de


alienação parental porque ele jogava os filhos contra ela,
dizendo que ela era “louca”. O marido conseguiu, inclusive,
a guarda das crianças através dessa alegação.
Eu fui então contratada como perita particular neste
caso para fazer a avaliação psicológica dessa mulher e
determinar se ela apresentava de fato sinais de algum tipo
de transtorno mental.
Com os resultados da avaliação em mãos, eu ajudei o
advogado dela a redigir uma peça para entrar na justiça com
um processo para que ela pudesse reaver a guarda dos
filhos.

Caso 4 - Um rapaz apresentava certos problemas de


conduta, e foi encaminhado para uma psicóloga. Ao
consultar com ela, recebeu o diagnóstico de Psicopatia. O
pai dele, então, veio me procurar, porque não concordava
com esse diagnóstico, e queria uma nova avaliação.

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Ele procurou a mim porque o filho estava envolvido
com a Justiça; e o diagnóstico de uma especialista dizendo
se ele é ou não é de fato um psicopata tem influência direta
no processo, no crime e no tratamento atribuído ao caso.
Por esse motivo, o pai precisava de um laudo bem
respaldado, assinado por um(a) profissional experiente.
Para produzir esse laudo, eu precisei aplicar testes e fazer a
avaliação psicológica do filho, para em seguida avaliar os
resultados e determinar se eram compatíveis ou não com o
diagnóstico dado pela primeira psicóloga.

Caso 5 – Uma vez atendi o caso de uma mulher que


entrou na Justiça querendo reaver a guarda da filha
adotiva, que havia sido colocada num abrigo público.
Isso aconteceu porque supostamente a mulher,
juntamente com seu companheiro, cometia abusos sexuais
contra a criança.
Coube a mim, então, avaliar essa mulher para
determinar se o perfil era de fato compatível com a
acusação: feitos os testes, verifiquei que, infelizmente, ela
era de fato uma abusadora agressiva (o companheiro foi
avaliado por outro psicólogo).
Assim sendo, a criança foi mantida no abrigo público,
sem poder retornar para junto do casal.

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Caso 6 – Uma mulher acusava seu marido de abusar
sexualmente da filha; porém ela não tinha como comprovar
que isso era verdade (certos tipos de abuso não deixam
marcas visíveis – no caso de carícias íntimas, por exemplo).
O marido, então, aproveitou pra rebater a acusação,
alegando que a mãe estava inventando a história toda, e,
portanto, praticando alienação parental.
Nesses casos (isso aconteceu duas vezes, em situações
semelhantes) eu trabalhei ajudando o advogado da mulher
a manejar o processo na Justiça de forma a exigir uma
avaliação psicológica do marido, para que fosse possível
provar que o perfil dele realmente era compatível com a
acusação – então fui contratada pela mãe para fazer uma
assessoria técnica no processo.

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CASOS GERAIS

Existem algumas situações que são muito comuns no


meu trabalho e, portanto, já atendi vários casos
semelhantes que cabem dentro de uma mesma categoria.
Os exemplos a seguir não são de histórias individuais, e sim
de situações desse tipo:

Homens com tendências à pedofilia muitas vezes me


procuram, sob denúncia ou não, para receberem
tratamento contra esses impulsos sexuais.
Eu presto, então, todo o atendimento clínico possível e
necessário para a recuperação desses homens, além de
fornecer orientações sobre o processo judicial (caso
estejam respondendo algum), ajudando, através de um
laudo, a atestar que eles estão sob tratamento e dando meu
parecer sobre a perspectiva de melhora (ou ausência dela).

No Ministério Público, eu lidei com diversos casos de


homens acusados de abuso sexual contra mulheres no
transporte público.
Eu então avaliava esses homens pra verificar se eles
tinham perfis compatíveis com o abuso – se apresentavam,
por exemplo, alguma psicopatologia que sugeria risco para
a sociedade, sendo necessária (ou não) a tomada de
medidas específicas.

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Na Vara de Execuções Penais, trabalhei muito com
avaliação de presos para verificar se eles estavam em
condições para progredir de regime.
A progressão de regime prisional no Brasil acontece
durante o cumprimento da pena – do regime fechado para o
semiaberto e então para o aberto.
O regime fechado é aplicado em casos de crimes
graves, onde o condenado apresenta risco claro para a
sociedade. Decorrido certo tempo, abre-se a possibilidade
de progressão para o regime semiaberto, que testa as
condições do preso para a reinserção na sociedade.
Devido ao caráter dos crimes cometidos, muitas vezes
os juízes ficam preocupados em confiar somente em
aspectos subjetivos para permitir a progressão, e então eu
sou chamada para fazer uma avaliação psicológica e de
risco para determinar, de forma mais objetiva, o quão
seguro é permitir que essa pessoa siga para o regime
semiaberto, onde ela responde em liberdade durante o dia,
e volta para o presídio à noite.
O mesmo procedimento acontece na progressão para
o regime aberto, que é cumprido em liberdade na prática,
mas segue sob processo na Justiça.

Existem casos onde um(a) colega da Psicologia faz uma


avaliação incorreta ou entrega um diagnóstico parcamente
embasado para um paciente; ou mesmo casos onde algum
profissional que nem sequer é da área da Psicologia resolve
falar como se fosse – como pedagogos, psiquiatras,

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assistentes sociais e até mesmo coaches e praticantes de
atividades, digamos, não-oficiais.
Meu trabalho, então, é ler a documentação que foi
produzida por esses profissionais e verificar a validade dos
pareceres em questão: se há algo errado ou fora do padrão;
qual o embasamento utilizado; que tipo de erros foram
cometidos (ou não); etc.
Em seguida eu uso todos esses quesitos para produzir
uma análise documental apontando cada uma dessas
questões.
Fazemos isso também em processos, como no caso de
alguém que foi condenado sem a realização de, por exemplo
(aí depende da situação): um exame de corpo de delito; uma
necropsia da vítima; uma perícia específica, etc.

Já atendi algumas famílias que me trouxeram seus


parentes com alegação de que eram pessoas em
descontrole comportamental e que não podiam gerenciar
seus bens e finanças, porque sofriam de eventuais surtos
onde gastavam quantias exorbitantes de dinheiro.
Nesses casos, é necessário que a família consiga uma
interdição civil da pessoa em questão, sendo necessário um
laudo psicológico com psicodiagnóstico atestando a validez
da alegação – a família então me contrata para que eu faça
os testes específicos e produza esse documento.

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Muitos homens me procuram sendo vítimas de falsas
acusações de abuso sexual contra filhas e enteadas – hoje
em dia, um grande número de mulheres pratica uma forma
especialmente perversa de alienação parental através
desse tipo de acusação, podendo envolver alegações de
abuso sexual, pedofilia e estupro.
Meu trabalho é avaliar esses homens para verificar se
eles têm características psíquicas compatíveis com o perfil
da acusação, ou se esta é falsa e infundada.

Sobre um tipo de trabalho que você muito


provavelmente tem curiosidade: o perfil criminal – aquela
parte “CSI” da prática forense.
Funciona da seguinte forma: diante de um crime que
ninguém sabe quem cometeu, a psicóloga ou o psicólogo
forense pode trabalhar nos detalhes da ocorrência, da cena
do crime e do modus operandi (todas as particularidades da
execução).
Especialmente no caso de crimes em série, nós
verificamos quais são as características em comum entre os
múltiplos crimes e traçamos um perfil do provável autor,
apontando se é um indivíduo agressivo ou se não é, se tem
uma fixação num determinado detalhe do crime, se existe
uma característica obsessiva compulsiva, se ele é detalhista
e metódico ou se é descuidado e apresenta propensão a
deixar pistas, se o crime foi premeditado ou não, o que há de
comum entre as vítimas, e detalhes do tipo.

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Isso não significa que nós temos poder para apontar
exatamente quem é o culpado – isso é papel da perícia
técnica da polícia criminalística, que trabalha com todo o
processo de coleta de DNA, análise de impressões digitais, e
outros métodos de alta eficácia para auxiliar em um
julgamento preciso.
Nosso trabalho com suspeitos específicos é o de
determinar probabilidade: diante de dois ou três suspeitos,
avaliar cada um deles e dizemos qual dos perfis é mais
compatível com o do autor do crime em questão, em quais
aspectos, que características se assemelham mais, etc.
Isso tudo fica registrado e é um dos quesitos que a
polícia leva em consideração para definir o verdadeiro
culpado – esse não é nosso trabalho.

Enfim, eu poderia escrever um livro inteiro só sobre


exemplos de atuação e situações que já atendi, mas acredito
que essas informações tenham sido suficientes para
desmistificar alguns preconceitos, esclarecer algumas
dúvidas, e trazer bastante informação nova – despertando,
eu espero, muitas outras dúvidas sobre como afinal você,
estudante ou formada(o) em Psicologia, pode se
transformar de uma mera curiosa ou um mero curioso para
um(a) profissional de uma das áreas de maior demanda e
menor concorrência da Psicologia brasileira.

E é justamente a resposta para essa pergunta que eu


entrego pra você nas próximas seções. Leia com atenção!

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A FORENSE
NO BRASIL

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Em primeiro lugar, precisamos entender as diferenças
e semelhanças entre Psicologia Jurídica e Psicologia
Forense: existe uma grande interseção entre as duas, mas
são áreas diferentes.

A Psicologia Jurídica é uma área guarda-chuva, mais


ampla – que como o próprio nome diz, engloba diversas
atividades relacionadas ao direito, sob a perspectiva
psicológica: no Brasil, envolve demandas como os litígios de
Varas de Família (casos de disputas de guarda, acusações de
negligência, adoções etc.) e casos de responsabilidade civil
(interdições, casos de insanidade, aposentadorias etc.),
dentre outras.

Já a Psicologia Forense, aqui no país, é uma área de


cunho criminal e penal, dentro da Jurídica – e, portanto,
mais específica. Envolve atuação em presídios, vara de
execução penal, avaliação psicológica de pessoas em
conflito com a lei e muitas outras funções do tipo, sempre
relativas ao cometimento de crimes.

Não existe ainda hoje (em dezembro de 2019) a


obrigatoriedade de formação ou especialização específica
para que se possa trabalhar nessas áreas, na maioria dos
casos: ou seja, qualquer pessoa que tenha um diploma de
Psicologia pode se inscrever em concurso para uma vaga de
psicóloga ou psicólogo jurídico/forense, e se passar na
prova, atuará oficialmente com esse cargo – novamente,
mesmo que não tenha nenhum tipo de formação,
especialização, prática ou conhecimento na área.
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E isso é bom? Não. É péssimo! Para a profissão, para as
instituições, para os clientes e pacientes e claro, para a
sociedade como um todo.

“Ah, mas para trabalhar, é ótimo! Uma área de alta


demanda, baixa concorrência e que não precisa de prática
nem de conhecimento aprofundado...” – é possível que
algumas pessoas tenham essa ideia ao conhecer sobre a
forma de contratação. E não, infelizmente (felizmente, pra
sermos francos) também não é bom para quem tem esse
pensamento.

Por quê?

Porque, nesse caso, qualquer psicólogo com uma


formação generalista pode conseguir um emprego
trabalhando em uma função para a qual tem pouquíssimo
ou nenhum preparo, aprendendo apenas aquilo que vai
praticar no dia-a-dia da profissão, e nada mais.

Já ministrei palestras, por exemplo, sobre avaliação


psicológica para psicólogos que atuavam na área
jurídica/forense há anos. Quando terminei de falar, eles me
olhavam com espanto; então eu percebi que muito do que
eu dizia parecia uma novidade incrível para eles quando, na
verdade, é um conhecimento básico que deveria fazer parte
da formação inicial desses profissionais!

E isso não é culpa dessas pessoas. O fato é que nós


quase não temos, aqui no Brasil, cursos completos e de
qualidade voltados para a formação de jurídicos/forenses.
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Então, de profissionais com capacitação incompleta, o
mercado já está cheio – não adianta você se tornar mais um.

“Mas você não disse que essa era uma área de alta
demanda e baixa concorrência?” Sim, eu disse – e é verdade.
Existe uma grande oportunidade pra você nesse mercado,
desde que você atenda a três requisitos indispensáveis:

1- Formação específica e de qualidade;

2- Capacitação técnica de verdade;

3- Determinação para fazer um trabalho bem-feito.

É somente dessa forma que você realmente tem a


chance de aproveitar a alta demanda – que é de
profissionais realmente qualificados, não de psicólogos
buscando uma forma fácil de ganhar dinheiro;

E é somente dessa forma que você realmente tem a


chance de aproveitar a baixa concorrência – pois como
pouquíssimos psicólogos jurídicos/forenses apresentam
conhecimento completo da profissão, você terá muito mais
facilidade em se destacar e obter renome na sua carreira;
simplesmente por demonstrar o conhecimento teórico,
técnico e as habilidades que te diferenciam como um
verdadeiro profissional da área.

Fiz questão de exagerar no destaque dessa parte pra


que você entenda muito bem qual é a perspectiva real de
sucesso nesse mercado!

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Não existe resultado sem esforço – mas você pode
direcionar bem seu esforço para que ele gere o máximo de
resultado. E aprender/praticar a Psicologia Forense de
verdade é um excelente direcionamento do seu esforço.

“Ok, mas e como eu faço isso então?”

Eu vou te falar especificamente sobre como você pode


se tornar uma das primeiras ou um dos primeiros a fazer
parte desse grupo tão seleto e tão necessário de
profissionais amplamente capacitados.

Mas antes disso, nos próximos capítulos, vou te


explicar melhor sobre a profissão aqui no Brasil – na teoria
(envolvendo toda a burocracia e os procedimentos oficiais)
e na prática (incluindo a minha própria trajetória e alguns
exemplos mais amplos de atuação) –, pra que você possa
entender melhor onde está pisando.

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NO PAPEL

Em outros países, existe um caminho muito bem


delineado para seguir a carreira de Psicologia
Jurídica/Forense, como, por exemplo, a exigência de um
doutorado na área (é o caso dos EUA), mas, por enquanto, a
situação é bem diferente aqui no Brasil, onde ainda existe
pouca padronização.

Hoje há duas formas de se tornar oficialmente uma


psicóloga ou um psicólogo jurídico por aqui, sendo
necessário, claro, ter uma graduação em Psicologia:

1- Obtendo o título de Especialista em Psicologia


Jurídica – isso, por sua vez, pode ser feito de duas formas:

1a- Através de uma especialização lato sensu em


Psicologia Jurídica (algumas poucas universidades
hoje oferecem essa opção);

1b- Através do concurso de provas e títulos do


CFP (Conselho Federal de Psicologia), que te fornece
esse título caso você alcance a pontuação mínima.

O título de especialista por si só, porém, não te coloca


no mercado; mas mostra que você tem algum conhecimento
específico da área.

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2- Obtendo aprovação em concurso para ocupar o
cargo de psicóloga ou psicólogo jurídico – mesmo sem ter
formação específica, como eu mencionei no último capítulo.

Este tipo de concurso vai testar o seu conhecimento


sobre a Psicologia Jurídica através de diversas perguntas
sobre a área.

A não ser que você faça uma especialização de


qualidade para só depois passar em concurso, você vai
sofrer com a ausência completa de formação teórica, e o
aprendizado de uma prática extremamente restrita ao
cargo e à função que você assumiu – sem nunca obter
capacitação completa. E isso tudo só na Psicologia Jurídica.

Caso você busque capacitação em Psicologia Forense


aqui no Brasil, você encontrará apenas uma ou duas
instituições que oferecem um curso de mestrado nesta
área, que costuma ser longo e bem caro.

Porém, o mestrado te fornece capacitação teórica que


te torna qualificada(o) a ensinar e pesquisar sobre
Psicologia Forense, mas não exatamente todos os macetes
e segredos de como praticá-la de fato; como é o caso da
maioria dos mestrados.

Para obter uma capacitação completa e de qualidade,


que te permita atuar diretamente como uma psicóloga ou
um psicólogo forense plenamente capacitada(o), você hoje
precisa fazer o que eu mesma fiz há alguns anos:

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Buscar formação fora do Brasil, em países como
Holanda, Inglaterra e Estados Unidos.

Pois é...

Não sei se você concorda comigo, mas eu acho


absurdo que um país como o nosso ainda esteja tão
atrasado em uma área que é, na verdade, essencial para a
própria realidade social, jurídica e carcerária, dentre tantas
outras que compõe a situação problemática que
enfrentamos há décadas por aqui.

E é exatamente por esse motivo que comecei o projeto


online do Tese Personna.

Nosso grande objetivo é justamente mudar essa


realidade, trazendo a legítima Psicologia Forense – que já é
praticada há anos em países da Europa e América do Norte
– também para o Brasil.

Lá na frente eu te explico melhor sobre isso: por hora,


vamos falar sobre o estado da profissão por aqui na prática.

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NA PRÁTICA

Como psicólogas e psicólogos jurídicos/forenses, nós


encontramos duas grandes áreas de atuação: no mercado
autônomo ou no mercado formal.

Como profissional autônomo, você conquista sua


especialização, abre um consultório e pode receber
demanda de trabalho por parte de advogados, promotores,
juízes e pessoas envolvidas em questões legais ou seus
familiares.

Esses clientes vão requisitar os seus serviços para


avaliações psicológicas, fornecimento de laudos para a
justiça, perícias de diversos tipos, pareceres sobre sanidade
mental, possibilidade ou impossibilidade de aposentadoria,
compatibilidade com perfis de inocentes ou culpados de
determinados crimes e diversas outras funções do tipo.

Você também pode trabalhar como perita(o), dando


pareceres sobre laudos, avaliações e determinações de
colegas de profissão seus – com os quais seu cliente não
concordou, e por isso te procurou para fornecer uma
análise diferente dos fatos. Claro que sua análise poderá ser
idêntica à anterior (caso ambas tenham sido bem-feitas),
mesmo que o cliente discorde do resultado.

Outra opção é trabalhar como assistente técnica(o) de


advogados, ajudando-os em seus casos por meio de

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argumentos e técnicas relativos à Psicologia. Esse trabalho
pode ser feito diretamente com o advogado, por escrito, em
um escritório; ou durante audiências em tribunais, onde
você permanece ao lado do advogado e fornece orientações
específicas a ele durante a sessão.

Outra possibilidade de atuação é, por exemplo,


assistindo a depoimentos de vítimas menores de idade –
que chamamos de “depoimentos sem dano”, pois devem ser
conduzidos com muito cuidado para evitar uma nova
experiência traumática para a criança ou o adolescente.

Nestes casos, acompanhamos o depoimento tentando


detectar incongruências, mentiras e falhas, ou o contrário:
identificando a legitimidade das alegações da vítima, e
reportando os resultados a partir de colocações que
fazemos para que o advogado apresente ao juiz do caso.

Essas são algumas das funções mais comuns que


podemos exercer como profissionais autônomos na área.

Eu, particularmente, também presto atendimento


psicoterápico a pessoas com Transtorno de Personalidade
Antissocial, o que me coloca na interface da Psicologia
Clínica com a Forense.

Quanto às opções de emprego no mercado formal:

Existem três lugares onde normalmente você encontra


pessoas trabalhando com a Psicologia Jurídica e Forense
nesse mercado: na Justiça (em Ministérios Públicos e

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tribunais), no sistema prisional (presídios e Hospitais de
Custódia e Tratamento Psiquiátrico) e na Polícia (Federal,
Civil, perícia, etc.).

Estas áreas contratam através da aplicação de


concursos, cuja maioria, como já mencionei, não exige de
fato a expertise que um profissional qualificado deve
possuir, mas oferece esses cargos mesmo assim.

Lá dentro você passa, então, a atuar como funcionário


da instituição, atendendo a diversos tipos de demanda, que
dependem da função específica que você assume.

Muitos dos trabalhos nesse caso são semelhantes aos


realizados por profissionais autônomos; porém, devido a
seu vínculo empregatício, você enfrenta as desvantagens da
subordinação às exigências de seus superiores e obtenção
de menores rendimentos, mas com alguma estabilidade
salarial (que pode, também, ser uma desvantagem, pois
limita seus ganhos).

Você também tem a opção de trabalhar numa empresa


de advogados, por exemplo, através de um contrato de
prestação de serviço terceirizado. Alguns tribunais têm um
local onde você pode se cadastrar como perita para então
exercer essa função conforme a necessidade aparece,
sendo paga de acordo com o serviço prestado, mas sem ser
de fato uma funcionária concursada.

Uma área de forte contratação através de concursos


públicos são os setores psicossociais de tribunais e
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presídios (apesar de pouquíssimos, os presídios também
empregam psicólogos – na Papuda, por exemplo, existe um
contingente total de cerca de 8 psicólogas(os) para milhares
de presos).

Nesses casos também não existe a obrigatoriedade


de especialização em jurídica para prestação do concurso
– e aqui começa a ficar muito claro o porquê de isso ser um
enorme problema, não é mesmo?

É como se tivéssemos médicos formados, que não


passaram por um ano de residência sequer, trabalhando
oficialmente como neurocirurgiões!

Sei que bato bastante nessa tecla, mas é importante


ressaltar o máximo possível o fato de que temos um enorme
problema no atual sistema de contratação e atuação de
psicólogas e psicólogos jurídicos e forenses no Brasil.

Quanto melhor você compreender essa realidade,


maiores as chances de que você compreenda também a
oportunidade que existe na nossa área – tanto em termos
de ganho financeiro quanto de reconhecimento
profissional e impacto social.

Temos a chance real de causar uma mudança


gigantesca na forma como um dos setores mais
problemáticos da sociedade brasileira é conduzido.

São vidas humanas que estão em jogo.

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É a perspectiva de preservar e transformar a vida de
milhares de pessoas e de suas famílias através do nosso
trabalho, obtendo grande reconhecimento e estabilidade
financeira no processo.

É dessa forma, e com esse objetivo, que eu mesma


atuo como Psicóloga Forense há mais de 10 anos, fazendo
aquilo que praticamente ninguém faz, e ensinando meus
alunos a fazerem o mesmo. Vou te contar um pouco dessa
história nas próximas páginas.

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MINHA TRAJETÓRIA

Pra ser sincera, eu nunca havia cogitado trabalhar


como psicóloga forense.

Eu entrei no curso de Psicologia para atuar como


psicóloga clínica, e, assim que possível, fui fazer estágio
nessa área em um hospital psiquiátrico público.

Lá era comum que casos complexos fossem


encaminhados para os estagiários, como forma de nos
colocar em contato direto com a realidade que
atenderíamos futuramente, como profissionais; então
sempre que surgiam pacientes com transtornos mentais
severos, autores de crimes pesados, usuários de drogas e
etc., eles vinham parar em minhas mãos.

Os meses foram passando, e por meio de muito estudo


e supervisão, fui obtendo sucesso nos meus atendimentos.
Comecei a gostar cada vez mais de trabalhar com esse tipo
de gente, e eles também gostavam muito de mim e da minha
abordagem. Pouco a pouco eu fui obtendo reconhecimento
e meu trabalho começou a ser levado a sério lá dentro.

Eu passei a trabalhar com avaliação psicológica pelo


teste de Rorschach (aquele das manchas de tinta no papel,
que também aparece muito em filmes e séries), e os
psicodiagnósticos que eu realizava eram sempre certeiros,

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facilitando muito o trabalho dos psiquiatras do hospital, que
começaram a confiar bastante na minha técnica.

Por esse motivo, os casos encaminhados pra mim eram


cada vez mais complexos – pessoas com sintomas de
múltiplas psicopatologias diferentes, que os demais colegas
não sabiam ao certo como diagnosticar, por exemplo,
acabavam ficando sob minha responsabilidade.

Fui então desenvolvendo bastante a minha prática ao


longo dos anos com esses tipos de atendimento, ao mesmo
tempo em que lia todos os livros possíveis sobre o assunto.
Na época eu via tudo isso, porém, simplesmente como
Psicologia Clínica: afinal era nessa área que eu estava
oficialmente atuando.

Alguns anos depois, tive um trabalho aceito para ser


apresentado em um congresso internacional de Psiquiatria
na USP – mal acreditei que tinha sido aprovada (menos
ainda, claro, por ser psicóloga), mas viajei, então, até São
Paulo para falar sobre o caso que embasou esse trabalho.

Fui junto com meu orientador de mestrado, e depois


do evento, fomos até um restaurante, nos sentamos e
passamos a conversar sobre diversos assuntos acadêmicos
e profissionais. Foi então que comecei a contar para ele
sobre um dos casos que atendi no hospital. No meio da
história, ele já me olhava com uma cara de espanto (esse
caso, inclusive, é exatamente o mesmo que eu conto
inteirinho pra você na próxima seção) – quando terminei,

31
ele, incrédulo, me perguntou se eu gostava de atender esse
tipo de caso.

Eu respondi que sim, que amava fazer isso.

Ele então me confessou que, apesar de não trabalhar


diretamente com a Psicopatia (era esse o diagnóstico do
caso sobre o qual falamos), adoraria pesquisar mais sobre o
tema juntamente com algum orientando de doutorado
(durante o mestrado, trabalhamos com Avaliação
Psicológica de pessoas em sofrimento psíquico grave
(Psicose), tema no qual ele é uma das maiores autoridades
da área, no Brasil e no mundo).

Em seguida ele me fez uma proposta para


desenvolvermos um projeto nesta área, e eu concordei –
achando que era apenas uma conversa informal, sem muito
significado. Conversamos durante mais algum tempo e
então voltamos para o hotel, combinando de nos
encontrarmos novamente na manhã seguinte.

No dia seguinte, desci para o salão onde era servido o


café da manhã, e me assustei: lá estava ele, debruçado
sobre duas mesas lotadas de folhas de papel.

Perguntei o que, afinal, era aquilo, e ele então me


olhou, juntou duas ou três daquelas folhas, grampeou-as e
as estendeu na minha direção.

– Seu projeto de doutorado.

32
Eu, surpresa, peguei aqueles papéis e li atentamente.

Então, respirei fundo e disse: “Ok.”

Foi assim que aceitei a incumbência de montar um


grupo de estudos na UnB sobre a Psicopatia, mapeando
nas universidades do mundo inteiro os raríssimos
professores e pesquisadores que falavam sobre o tema,
para então viajar até alguns desses locais e aprender com
cada um deles pessoalmente.

Era um projeto tão complexo pelo simples fato de que


praticamente ninguém falava seriamente sobre a Psicopatia
na época, nem no exterior e muito menos no Brasil. Hoje em
dia essa situação começa a mudar: apesar de estar ainda
longe do ideal, há muito mais estudos sobre o tema,
relatando inclusive a possibilidade de recuperação de
psicopatas diagnosticados – na época, havia pouquíssimos.

Durante os quatro anos do meu doutorado, então,


desenvolvemos esse projeto, enquanto eu viajava para o
Chile, Inglaterra, EUA e outros países, conhecendo o
trabalho e as pesquisas de autores como Robert Hare,
Willem Martens e Hilda Morana, em instituições como a
Universidade de Oxford, Kings College de Londres,
Universidade do Chile, de Nova York e da Pensilvânia.

Pude entrar em contato direto com o estado da arte


em relação a essa área, absorver uma quantidade incrível
de conhecimento teórico, técnico e prático, e abrir meus
horizontes para uma missão que ainda estava por vir...
33
De volta ao Brasil, certo dia eu fui para um presídio
fazer uma inspeção de direitos humanos, pois um dos
presos tinha supostamente cometido suicídio (a suspeita
era de que ele tinha, na verdade, sido assassinado).
Enquanto eu estava lá, a diretora da instituição soube que
eu fazia doutorado na UnB e pediu para falar comigo.
Encontrei-a, então, e ela me disse que estava precisando de
estagiários e queria saber se poderíamos arrumar um grupo
de estudantes para trabalhar no local.

Assim que voltei para a universidade, falei com meu


orientador sobre o assunto. Ele ligou para a diretora do
presídio, conversou com ela, virou pra mim e disse: “Nós
vamos montar a primeira disciplina de Psicologia Forense
da história da UnB.” E mais uma vez, eu disse: “Ok.”

De fato, precisávamos mandar psicólogas e psicólogos


forenses bem capacitados para aquele presídio – alunas e
alunos que possuíssem uma excelente base teórica e
técnica sobre direitos humanos; de respeito aos pacientes;
de ir além da mera patologização; que pudessem de fato
fazer algo pela sociedade, e não simplesmente se tornassem
parte da maioria de profissionais que se contentam em
distribuir diagnósticos mal feitos a esmo.

Escrevi então para o professor Bob Johnson, da James


Naylor Foundation, em Londres – que me convidou para
conhecer seu trabalho de perto. Ele gentilmente me
mostrou seu projeto, seus livros, artigos e a estrutura de
suas aulas e seminários.
34
Além dele, tive a oportunidade de aprender com
outros psicólogos e psiquiatras forenses de renome
mundial, como o Dr. Peter Breggin, especialista em
psiquiatria crítica e o Dr. Adrian Cree, do Kings College de
Londres, com quem fiz um treinamento em Avaliação de
Risco.

Nós então traduzimos e adaptamos todo esse


conhecimento teórico, técnico e prático de acordo com a
constituição brasileira e as leis de execução penal de nosso
país - que possui características específicas na área do
Direito - para que pudéssemos fornecer um material de
vanguarda, baseado nas mais modernas técnicas forenses
internacionais, sem que nossos alunos tivessem que gastar
tanto tempo e dinheiro para ter acesso a este conhecimento
tão vasto e especializado.

Foi dessa forma que nós montamos a disciplina


optativa para o curso de Psicologia da UnB, intitulada
“Psicologia Forense”. Abrimos 40 vagas para a primeira
turma – todas foram ocupadas, e mais 130 alunos se
inscreveram para a lista de espera.

A disciplina tinha a duração de um único semestre, e


envolvia a leitura de 17 livros, conteúdo extremamente
denso, treinamento técnico extensivo e um período intenso
de trabalho prático, diretamente nos presídios. Tínhamos
um semestre letivo (que dura, na verdade, cerca de 4
meses) para capacitar uma turma de alunos de acordo com

35
teorias, técnicas e abordagens essencialmente
desconhecidas no Brasil.

Explicamos essa realidade para os alunos no primeiro


dia de aula, avisando que o trabalho seria pesadíssimo; mas
a maioria deles permaneceu.

Eles passavam, então, por uma árdua rotina de aulas,


leituras, trabalhos, treinamentos com testes psicológicos,
oficinas de elaboração de laudos e visitas a presídios,
tribunais e hospitais psiquiátricos.

Foi dessa forma que, ano após ano, evoluímos cada vez
mais na busca de nosso objetivo, formando centenas de
psicólogas e psicólogos forenses verdadeiramente
capacitados para realizar um trabalho legítimo e frutífero.

Ainda na UnB, fundamos então o Grupo Personna


para estudos, pesquisas e intervenções. Avançamos ainda
mais no trabalho e, após a conclusão de meu doutorado,
criamos o Instituto Personna, que realiza trabalho
voluntário por intermédio de convênios com tribunais e
Ministério Público. Nos tornamos referência na área de
Avaliação Psicológica no contexto Forense, além de
prestarmos os serviços de Assistência Técnica, Perícia
Criminal e atendimento psicoterapêutico de pessoas com
Transtornos Mentais Graves em conflito com a lei, e hoje
minha prática profissional é quase totalmente voltada para
estas exatas atribuições. Praticamente apenas eu e meus
alunos fazemos isso, hoje, no Brasil.

36
E pra que você entenda melhor o que esse trabalho
significa na prática, bem como o tipo de resultado que ele
produz com alto grau de confiabilidade, eu vou te contar a
história completíssima de uma das primeiras pacientes que
atendi: um caso de Psicopatia diagnosticada, envolvendo
múltiplos sequestros seguidos de assassinato, todos
cuidadosamente planejados.

Você acompanhará todo o processo terapêutico, do


início ao fim – olhando verdadeiramente para o ser humano
que há por trás do monstro que todos enxergam: pois é
exatamente dessa forma que eu trabalho, é esse o meu
grande segredo, e é por isso que meus atendimentos têm
taxas tão altas de sucesso, mesmo em casos que todos
acreditam serem totalmente irrecuperáveis.

Aproveito pra lembrar que a história inclui [trechos


demarcados entre colchetes] com breves explicações
teóricas para que você compreenda bem como funcionam
nossas estratégias, além de {trechos demarcados entre
chaves} com definições de termos técnicos para garantir
que você compreenda palavras e expressões que você
talvez ainda não conheça, ou não lembre do significado.

Dessa forma você pode acompanhar todo o manejo


desse atendimento altamente complexo como se estivesse
acompanhando o caso ao meu lado, em tempo real –
entendendo o porquê de certas abordagens e técnicas que
eu utilizei durante o processo. Vamos lá?

37
PERSONNA

39
O homem livre é voltado ao próximo,
ninguém se pode salvar sem os outros.
Emmanuel Levinas

Este caso foi atendido por mim, há muitos anos. Um


grande desafio clínico que me fez perceber que por trás de
toda maldade existe sempre muita dor, como bem nos
exemplificam as teorias de Winnicott. A paciente foi
acompanhada por cerca de oito anos e hoje se encontra
plenamente reabilitada, levando uma vida comum com sua
família, sem nenhum episódio de reincidência. Ela é uma das
muitas provas vivas de que a teoria desenvolvida pelo
Personna é aplicada à prática com sucesso, contribuindo,
assim, para a recuperação da saúde mental e consequente
diminuição da violência na sociedade.

Evidentemente, em todos os nossos casos, um


contrato terapêutico é estabelecido e exige, dentre outras
coisas, a completa abstinência de atos violentos por parte
dos pacientes, sob o risco de quebrarmos o sigilo e
oferecermos denúncia. Nunca houve uma desobediência.
Apenas um único caso se negou a assinar e nós, por
conseguinte, não iniciamos o tratamento. Guardar sigilo
sobre crimes cometidos no passado é uma prerrogativa de
psicólogos, advogados e sacerdotes. Mas ser conivente ou
negligente com novas violências é algo bem diferente – e
inaceitável.
40
BROOKS

Brooks1 (nome fictício) era uma jovem mulher com


cerca de 30 e poucos anos, que surgiu no ambulatório de
psicologia de um hospital público e pediu atendimento
emergencial. Com aparência frágil e delicada, baixa
estatura, magra, cabelos e olhos claros, possuía um tom de
voz suave. Ao longo da entrevista de triagem afirmou que
necessitava de tratamento para Síndrome do Pânico, pois
há algum tempo apresentava sinais compatíveis com tal
psicopatologia. Falou de crises de ansiedade, palpitações e
descontrole comportamental. [Sabemos que, hoje em dia, o
fácil acesso à internet leva milhares de pessoas a se auto
diagnosticarem incorretamente. Além do mais, faz com que
muitas pessoas achem fácil fazer um diagnóstico, a partir de
conjuntos de sinais divulgados em redes sociais. Entretanto,
a elaboração de um diagnóstico clínico é uma tarefa
bastante profunda e requer extrema perícia, prática e
conhecimentos avançados na área de avaliação.]

Portanto, lhe expliquei que necessitava realizar uma


avaliação psicológica completa, pois poderia existir outro
transtorno similar ou mesmo alguma co-morbidade
{quando um indivíduo apresenta, além de uma patologia
principal, outras associadas}. Ela concordou e agendamos o
primeiro teste.
1
Costa, E. W. K. A. e Costa, I. I. (2017). Psicologia Forense: uma abordagem crítico-complexa.
Curitiba: Juruá Editora. Disponível em https://www.jurua.com.br/shop_item.asp?id=26143

41
Durante a aplicação do Método de Rorschach [um dos
testes projetivos {testes de personalidade que não utilizam
perguntas diretas e objetivas, e sim técnicas de acesso ao
inconsciente por intermédio do mecanismo da projeção –
um dos mecanismos de defesa no qual os pensamentos ou
emoções inaceitáveis ou indesejados são atribuídos a outra
pessoa ou objeto. Acontece, de forma inconsciente, quando
os sentimentos são reprimidos e depois projetados em
alguém ou algo. Permite a expressão destes impulsos
inconscientes que a mente consciente não reconhece –
estudado por Freud} que costumo utilizar], a qualidade de
suas respostas causou-me imenso espanto: conteúdos
compatíveis com uma personalidade cruel, mórbida e
extremamente violenta, que pareciam incompatíveis com
aquela figura doce e um pouco regredida.

Decidi solicitar supervisão para a correção dos testes,


dada a grande incongruência entre os sintomas alegados
por ela e o tipo de psicodinâmica que se revelava no
resultado. Além disso, eu estava começando minha carreira
e não possuía, ainda, a vasta experiência que tenho hoje.
Após análise do material, um professor de psicodiagnóstico
afirmou que não havia encontrado nenhum erro no material
apresentado. Perguntei-lhe a quem achava que pertencia
aquele material, e ele me disse que poderia ser um homem
maduro, extremamente violento e com uma personalidade
cruel e fria. Expliquei de quem se tratava e ficamos, ambos,
muito surpresos. [Eis a importância de uma avaliação

42
criteriosa e detalhada: não se deve confiar apenas em
meras entrevistas.]

Pensei em como contaria para Brooks sobre os meus


achados e decidi que o faria elaborando algumas perguntas
sobre o seu passado, que pudessem auxiliar na
compreensão de seu quadro. [Esta é uma técnica
reconhecida para entrevistas devolutivas, onde vamos
intercalando perguntas, dados positivos e algumas
informações mais delicadas, de forma a irmos testando a
capacidade do paciente de elaborar os dados fornecidos.]

Mas isso não foi necessário. No dia da devolutiva, ao


abrir a porta do consultório, deparei-me com uma pessoa
que parecia bem diferente: um olhar duro, o passo firme,
cenho franzido e a voz mais severa. Sentou-se diante de
minha mesa e colocou a mão em cima do laudo. Disse-me
que havia lido sobre o Método de Rorschach na internet e
que soubera que o teste revelaria quase tudo sobre sua
personalidade. Assenti em silêncio. [De fato, este método é
reconhecido mundialmente e possui um grau de
fidedignidade e validade muito alto.]

Em seguida, disse que também havia pesquisado sobre


tratamento psicológico e descobrira que para que ele
surtisse efeito era necessário que houvesse profunda
confiança entre os envolvidos. Confirmei novamente.
[diversos teóricos dão ênfase a este fator, como Rogers,
Freud e outros.]

43
Por fim, perguntou-me se era verdade que o conteúdo
tratado em psicoterapia estaria protegido pelo sigilo
profissional, de forma que tudo que ela me contasse ficaria
entre nós. Concordei mais uma vez. [Nós, psicólogos,
seguimos à risca nosso Código de Ética, e apenas em casos
extremos rompemos com o segredo clínico.] Então – disse
ela –, não precisa ler o laudo para mim, deixe que, como
prova de confiança, eu lhe conte quem eu realmente sou...

Um frio percorreu minha espinha; era a primeira vez


que eu havia desejado que minhas conclusões estivessem
incorretas. Mas isso, infelizmente, não parecia ser verdade.
Respirei fundo e recostei-me, tentando me preparar para o
que vinha. Mas o que se seguiu não era nada que, sequer,
tivesse passado pela minha cabeça.

44
PSICOPATIA

Brooks me contou que trabalhara como doméstica há


vários anos, quase sempre em casas com crianças, em várias
cidades do Brasil. Disse que costumava ficar certo tempo
em cada emprego, de forma a conhecer bem a rotina da
família, até que inventava a doença de um parente ou nova
oferta de trabalho para pedir demissão. Mudava-se de
estado, aguardava alguns meses e retornava às
proximidades com o intuito de sequestrar a criança da
família. Aproveitava-se de distrações das atuais babás ou
dos próprios pais, quase sempre em locais públicos, como
parques, supermercados ou shoppings. Preferia crianças
pequenas, que não esboçassem tanta resistência. Levava-
as, posteriormente, para algum local isolado e as matava
por asfixia.

Havia lido muitos livros de mistério e aprendera


técnicas de como se livrar dos corpos, sem quase deixar
vestígios, guardando um intervalo de alguns anos entre
cada atuação.

Tudo isso, segundo ela, era passado: sua carreira de


crimes e envolvimento com a polícia havia ficado para trás,
e hoje ela tentava reconstruir sua vida.

Àquela altura eu era um misto de choque, enjoo, e falta


de reação. Sou mãe e avó, e a história atingiu em cheio meu
coração materno. [Segundo Zaslavsky, quando o paciente
45
deposita em nós os seus conteúdos, transfere a angústia e
diversos outros sentimentos que são, originariamente,
dirigidos a alguém de sua família, infância ou relações
íntimas. Cabe a nós, psicólogos, não contra-transferir, ou
seja, não misturar esses conteúdos com nossas questões
pessoais, reagindo às suas atuações. Entretanto, em
algumas situações, o conteúdo transferido é tão pesado e
denso que torna-se muito difícil manter-nos isentos.]

Mesmo assim, a frase final dela me arrancou do


mergulho em mim mesma: disse que havia engravidado por
acidente há algum tempo, e que quando seu filho estava
com apenas três meses, engravidara novamente. Agora
estava tomada por pensamentos obsessivos de voltar a
sentir desejo de matar, colocando em grave risco a vida dos
dois filhos pequenos. Seus olhos se encheram de água e ela
implorou que eu a ajudasse.

Eu não imaginava como, exatamente, mas precisava


fazer algo. Respirei fundo e prometi que ajudaria.

Expliquei que tais impulsos poderiam ser mantidos sob


controle, em parte, com auxílio medicamentoso, mas para
isso eu precisaria expor sua história a um psiquiatra que
auxiliaria no tratamento. Mas que para solucioná-los, de
fato, seria necessário um longo processo psicoterapêutico
concomitante. [Casos graves assim são beneficiados pelo
manejo conjunto da Psicologia e da Psiquiatria, e é
importante que ambos os profissionais mantenham um

46
estreito diálogo para que possam trocar impressões sobre o
progresso do paciente.]

Ela então me perguntou se o psiquiatra também


guardaria segredo. Garanti que sim, e ela concordou.
Deixei-a em minha sala e fui em busca de algum médico de
plantão. Porém, como já estávamos no final do expediente,
apenas uma psiquiatra encontrava-se ali. Entrei em sua sala
e vacilei: a médica estava grávida. Mas eu não poderia
deixar Brooks voltar para casa sem medicação, colocando
seus filhos em risco. Sentei e lhe contei tudo. A psiquiatra
ouviu a tudo com as mãos sobre a barriga, tão chocada
quanto eu. Mas era nosso dever tentar impedir que o pior
acontecesse e ela concordou em examinar a Brooks.

A psiquiatra a entrevistou e focou nos sintomas que


ela apresentava: compulsão, traços levemente psicóticos
com alucinações auditivas, tremores, impulsividade
extremada e dificuldade para dormir devido aos
pensamentos obsessivos. Dada a gravidade da situação, a
médica preferiu hipermedicá-la, de forma a garantir o
controle de seus impulsos. Alertou que talvez, devido à
grande quantidade de fármacos, ela ficasse letárgica e não
conseguisse vir à consulta na semana seguinte. Mas ela
concordou e disse que faria tudo o que nós sugeríssemos.
Tinha o apoio do marido para cuidar dos filhos, mas ele
ignorava seu passado tenebroso e o risco atual.

Pedimos que ela lhe dissesse que faria um tratamento


para psicose pós-parto e que necessitaria de sua ajuda. Ela
47
concordou, e depois soubemos que ele passou a colaborar
ainda mais. [A recuperação de pessoas que cometem crime
também depende de uma rede de suporte (como em
qualquer outro caso, como a superação de uma depressão,
transtorno bipolar ou tendências suicidas).]

Partiu para casa após receber uma injeção de


antipsicótico e pegar vários medicamentos na farmácia do
hospital: antidepressivos, ansiolíticos, medicação para o
controle de impulso e estabilizador de humor. Uma
quantidade que abateria um elefante. Antes de ir embora,
entretanto, perguntou o que deveria fazer se, mesmo com
toda aquela medicação, o impulso retornasse. Foi a vez da
psiquiatra me devolver o problema. Eu disse que ela
poderia me ligar a qualquer hora do dia ou da noite, que eu
a ajudaria a lidar com a situação.

Aquele dia não parava de me chocar: eu não conseguia


imaginar o que faria para impedir um possível novo desejo
da parte dela, no meio da noite, mas concordei com a
cabeça, confiante de que a medicação e o acompanhamento
evitariam tais ideações {ideias e pensamentos que, muitas
vezes, carregam desejos de realização}.

Depois daquele dia, rumei para a biblioteca e passei a


devorar tudo sobre transtornos de personalidade, manejo
de crise, perfis criminais e psicanálise. Eu tinha que correr
contra o tempo e havia muito o que planejar. Também
contatei meu supervisor e pedi que me desse o máximo de
orientações possíveis ao longo de todo o caso.
48
Na consulta seguinte, eu estava certa de que
encontraria uma Brooks embotada, de fala arrastada e
abatida devido à medicação. Isso se ela conseguisse
levantar da cama. Mas qual não foi minha nova surpresa ao
abrir a porta e encontrar uma Brooks sorridente e bem
disposta diante de mim. Imediatamente pensei que ela
havia deixado de tomar a medicação, mas ela nos assegurou
que não. Disse que, pelo contrário, os remédios lhe haviam
feito muito bem e que ela se sentia mais bem disposta do
que nunca. Eu e a médica nos olhamos incrédulas.
Revisamos a prescrição e os horários e ela confirmou ter
tomado tudo corretamente. Perguntei se havia sentido
alguma melhora nas ideações agressivas e ela,
entristecendo o semblante, respondeu baixinho que não,
mas que ainda estava sob controle. A psiquiatra e eu nos
entreolhamos sem sabermos o que dizer. Mas ela sugeriu
manejar as doses e tipos de psicofármacos. Após nova
prescrição, Brooks se foi e nós combinamos de iniciar a
psicoterapia na semana seguinte.

Ao longo dos primeiros meses, recebi duas ligações


dela durante a madrugada. Na primeira, ela chorava e temia
não conseguir se controlar, falou que pensava em se matar,
já que achava que um dia poderia pensar mais seriamente
em tirar a vida dos filhos. Conversamos por cerca de uma
hora e meia ao telefone, até que ela se acalmou e, após
tomar a medicação, conseguiu ir dormir mais calma.

49
Na segunda, a situação era mais grave: ela disse que
estava em pé na porta do quarto dos filhos e passou a
relatar o que sentia. Dizia que a melhor sensação que já
sentira na vida havia sido o sangue quente de suas vítimas.
Falou que o prazer que sentia durante as execuções era
quase sexual, e que jamais matara uma criança tomada pela
raiva, pois o que a movia era a busca de prazer.

Pelo contrário, sempre tratara bem todas as crianças


de quem cuidava, e seus próprios filhos também. A única
coisa que evitava era tocá-los mais do que o estritamente
necessário, pois isso despertava nela o desejo de matar.
Trocava as fraldas, dava banho e as vestia até que
conseguissem fazer isso por si próprias, mas evitava as
embalar e carregar no colo, ou seus impulsos assassinos
poderiam voltar a aflorar.

Achei que o caso demandava uma intervenção mais


contundente e, enquanto conversava com ela ao celular, me
dirigi para sua casa sem que ela soubesse. Avisei à
psiquiatra por telefone e disse que, se eu não desse notícias
em meia hora, ela deveria chamar a polícia e uma
ambulância.

Foi uma das intervenções mais tensas de que tomei


parte. Mas ao chegar lá e dizer à Brooks que estava diante
do portão de sua casa, ela surgiu com cara de susto e,
inacreditavelmente, me abraçou.

50
Sempre fui muito afetiva com meus pacientes, mas
Brooks sempre rejeitou qualquer tipo de proximidade física,
e eu respeitava esse limite. Vi que ela se acalmou com a
minha chegada e avisei à psiquiatra que estava tudo bem.
Sentamos no meio fio de sua calçada e conversamos até o
sol nascer. Ela decidiu entrar, pois o marido estava prestes a
acordar, e eu voltei para minha casa, exausta, mas com a
sensação de dever cumprido.

[O acolhimento, holding, é muito importante para o


estabelecimento e manutenção de um bom vínculo
terapêutico. Não se sentir julgado, saber que possui um
profissional treinado à sua disposição, estar consciente de
que será ouvido com respeito e atenção fazem toda a
diferença no progresso de um trabalho clínico.]

Quando iniciamos a psicoterapia, na primeira sessão


pedi que me contasse sobre sua infância. Se o choque e o
horror tinham me dominado durante seus relatos sobre os
crimes cometidos, faltaram sensações que descrevessem o
que senti ouvindo sua história de vida ao longo dos meses
seguintes.

51
ABUSO

Brooks era a única filha mulher, e a mais nova, de uma


prole de cinco filhos. A família humilde vivia na roça de uma
cidade do interior, no sul do país. Sua mãe a rejeitou já
durante a gestação, tentando abortá-la algumas vezes.
Estava cansada de ter bebês, segundo ela. Mas o pai dela
tinha visto em seu nascimento a realização do sonho de ser
pai de uma linda menininha. Mimou Brooks o quanto pôde e
a chamava de sua princesinha. A defendia dos ataques da
mãe quando ela ficou maior e sempre acobertava suas
travessuras, de forma que ela não sofresse os frequentes
espancamentos que a mãe lhe reservava.

Mas o pai dela tinha problemas com o álcool que o


levaram a um estado psicótico, e que acabaram culminando
em seu suicídio quando Brooks tinha apenas sete anos.

O mundo dela se despedaçou: foi ela quem encontrou


o corpo do pai pendurado pelo pescoço numa viga da sala
de jantar, ainda se debatendo. Quando ouviu seus gritos, a
mãe dirigiu-se até a sala e, vendo a cena, não esboçou
qualquer intenção de socorrer o marido. Olhou fixamente
para Brooks e disse: “Viu? Seu protetor se foi, e agora
somos só eu e você, sua praga”.

Brooks conta que correu para longe e chorou no meio


do mato até o sol se por. Durante o funeral do pai, disse que
desejou jogar-se junto na sepultura dele, apavorada pela
52
ideia de ficar sozinha com a mãe e os irmãos, que sempre a
trataram de forma muito cruel, devido ao ciúme que
sentiam por ela ser a preferida do pai.

No dia seguinte, a mãe teve que assumir as atividades


agrícolas do pai e encarregou Brooks de todo o serviço da
casa e do cuidado com os irmãos mais velhos que
frequentavam a escola local. Entretanto, devido à pouca
idade, frequentemente ela cometia erros: o feijão passava
do ponto, a roupa manchava durante a lavagem e a casa não
era varrida com a perfeição que a genitora exigia. Isso
rendia surras diárias no final do dia, sempre acompanhadas
de muitos xingamentos por parte da mãe. Os irmãos a tudo
assistiam rindo, e passaram a copiar o comportamento da
mãe contra ela.

Certa vez, ela deixou uma panela de arroz queimar no


fundo, pois não era muito hábil no manejo do fogão a lenha.
Ao retornar para casa, a mãe descontrolada pressionou a
mão de Brooks sobre a grade de ferro quente do fogão,
causando-lhe uma profunda e extensa queimadura de
terceiro grau.

Ela estendeu a mão para que eu observasse as


cicatrizes. Passados todos esses anos, ela sequer conseguia
abrir completamente a mão esquerda, cuja palma
encontrava-se bastante deformada pela queimadura. Meu
estômago se contorceu só de imaginar a cena.

53
[Winnicott, famoso psicanalista inglês que tratou de
crianças traumatizadas, afirma que o excesso de castigos
físicos, violência e crueldade são componentes cruciais para
o desenvolvimento de uma personalidade antissocial.
Obviamente, se somos criados com amor, é com amor que
nos comportaremos na idade adulta, da mesma forma que,
se aprendemos que crianças devem ser machucadas e
violentadas, assim o faremos. Ninguém aprende a dar aquilo
que não recebeu. Entretanto, os estudos internacionais
recentes têm demonstrado que mesmo nos casos de
transtornos de personalidade que são desenvolvidos em
tenra idade, o manejo posterior dos sintomas, a
psicoterapia especializada e a psicofarmacologia podem
reverter boa parte dos “acting-outs” (neste caso,
representados pelas manifestações agressivas), levando a
um comportamento mais adaptativo e socialmente
desejável.]

Conforme os anos foram se passando e seus irmãos


atingiram a puberdade, passaram a cometer abusos sexuais
contra ela. Ao comunicar o fato para a mãe, recebeu como
resposta que “era bem merecido, pois ela ‘era uma safada
que usava vestido curto e provocava os irmãos’ [sic]”. Ainda
tentou minimizar os casos dizendo que tudo não passava de
brincadeira entre irmãos.

Até que um dia seu irmão mais velho, então com 15


anos, tomou uma grande quantidade de aguardente no bar
da vila próxima e estuprou-a de forma violenta: introduziu

54
uma garrafa de vidro em sua vagina, que, com o esforço,
despedaçou-se dentro de seu corpo, provocando sérias
lesões. Ela foi atendida no posto de saúde local e levou
diversos pontos.

Logo que se recuperou, contando com a idade de 13


anos, foi embora de casa, fugindo em busca de uma tia que
morava na capital. Ali começou a trabalhar em casas de
família até cerca de dois anos antes de conhecer o atual
marido. Sem saber como se prevenir de uma gravidez,
acabou tendo os dois filhos. Brooks contou,
posteriormente, que só conseguia obter prazer das relações
sexuais que mantinha com o companheiro se elas
envolvessem violência sadomasoquista.

[Neste caso cabe ressaltar que o contato físico


humano é necessário para a manutenção da saúde mental
dos indivíduos, pois trata-se de uma necessidade básica. E
se, na infância, o toque dos pais era violento e agressivo, a
criança pode introjetar {instalar certos anseios na própria
mente, muitas vezes de maneira inconsciente} o desejo por
este tipo de interação. Outros podem passar a quadros de
auto-mutilação e outros sintomas do tipo. Muitas vezes, a
agressão é mais suportável que a ausência do toque...]

55
FAMÍLIA

Durante o tratamento, também solicitamos que ela


trouxesse seus dois filhos para que passassem por uma
avaliação com os médicos, assistentes sociais e psicólogos.
[O trabalho multidisciplinar é indispensável em casos
assim.] O resultado foi surpreendente: eram crianças
extremamente bem cuidadas, sem sinais de agressão, de
comportamento violento ou com sinais de traumas. Apenas
exibiam um comportamento típico de crianças carentes de
contato físico: certo embotamento afetivo {diminuição na
capacidade de sentir e transmitir afeto}.

Como as medicações pareciam já estar fazendo efeito


desde as primeiras semanas, passei a lhe instruir sobre
tentar fornecer algum holding aos filhos: olhar mais nos
olhos, sorrir ao conversar com eles e fazer elogios. Dentro
do que lhe fosse possível, tentar 56prese-los no colo,
evitando tocar a pele por baixo da roupa. O banho havia
ficado a cargo do pai.

Pouco tempo depois, ela me contou que sua mãe


estava na cidade e que dois de seus irmãos estavam
passando por graves problemas financeiros, tendo
solicitado a ajuda dela. Aquilo me deixou impactada: como
eles podiam ter feito tudo o que fizeram e ainda pedir que
ela os apoiasse? Perguntei por que ela aceitaria aquilo, e ela,

56
em meio às lágrimas, disse que eram sua família e que não
poderia 57presenta-los.

[A dificuldade no estabelecimento de limites claros,


físicos, sexuais, materiais ou emocionais é comum em
vítimas de violência. Não raro, mulheres que foram
espancadas pelo pai durante a infância elegem como
companheiros homens igualmente abusivos. Freud, em seu
trabalho sobre compulsão à repetição, nos esclarece que
quando não conseguimos resolver o trauma com as figuras
de origem (pais, avós, tios...), tendemos a repetir
(inconscientemente) a mesma situação em diferentes
relacionamentos, numa tentativa infrutífera de superação.
Infrutífera pois o trauma só pode ser solucionado quando
entramos em contato com sua fonte, de forma a podermos
reelaborar aquela situação, dando outro destino às nossas
pulsões {Freud define pulsão como um conceito situado na
fronteira entre o mental e o somático, como o
representante psíquico dos estímulos que se originam no
corpo e alcançam a mente}.]

Desde que engravidara pela primeira vez, Brooks


passou a gerenciar uma lanchonete de propriedade do
vizinho, de forma que podia cuidar dos bebês e ainda
trabalhar longe de outras crianças. Mas o vizinho abriu
falência e ela havia assumido o negócio. Em seus testes
psicológicos haviam aparecido características como grande
capacidade empreendedora e inteligência acima da média
[traços frequente em pacientes com Transtorno de

57
Personalidade Antissocial], e com nossa ajuda ela pôde
explorar, saudavelmente, ainda mais essas aptidões.
Durante todo o período em que esteve sob nossos
cuidados, empenhamo-nos em reforçar suas qualidades e
capacidades. Recebíamos ela sempre com um sorriso e
frases de apoio. Notamos que ela ia, aos poucos,
acreditando mais em si mesma. Reforçar o potencial
positivo dos pacientes é importante para que adquiram
autoconfiança e desenvolvam melhor seus recursos
internos.

[A maioria das pessoas leigas desconhece que este tipo


de paciente apresenta remorso e vergonha. Muitas vezes,
são em intensidade tamanha que sequer conseguem entrar
em contato com tais sentimentos. Da mesma forma que nós,
muitas vezes, acreditamos estar bem em relação a um
determinado assunto, mas o passar do tempo nos mostra
que, inconscientemente, apenas negamos algo escondido
dentro de nós...]

Ela havia arrendado uma loja de roupas, ao lado do


primeiro negócio, para complementar a renda, e agora sua
família queria tirar o pouco que ela tinha. Mas era muito
difícil para ela lhes dizer não, e esse foi o tema da maioria de
nossas sessões de psicoterapia.

Foi então que solicitei que sua mãe comparecesse para


uma entrevista. [Em casos assim, trabalhamos com a Teoria
Sistêmica que compreende ser de suma importância o
conhecimento da rede familiar/social onde tal
58
personalidade se desenvolveu. Compreendemos, assim, que
jogos, pactos e conluios estavam presentes durante o
trauma vivido.]

Confesso que nutria esperanças de que ela dissesse


que todo aquele horror não passava de produto da
imaginação da filha e que nada daquilo havia ocorrido de
fato. Era cruel demais imaginar uma mãe tratando a filha
daquela maneira. Mas não foi o que aconteceu. Uma mulher
ríspida, visivelmente agressiva e verborrágica compareceu
ao consultório: entrou reclamando da recepcionista e
seguiu criticando as instalações e a temperatura da água
servida. Pedi que me falasse um pouco sobre a filha e, sem a
menor cerimônia, ela passou a relatar as mesmas histórias
contadas pela Brooks. E culpabilizava a filha por todas as
agressões aplicadas, com o argumento de que a agredira
“para educar”, dizendo que se a Brooks era o que era hoje,
devia graças a ela. Não pude deixar de concordar, mas por
outros motivos, obviamente. [Entretanto, sabemos que a
violência costuma ser transgeracional, ou seja, ela própria
deve ter sido vítima de maus tratos e abusos em sua família
de origem.] Terminei aquela entrevista tão abalada que tive
que suspender a agenda e ir para casa.

Com o passar do tempo, porém, Brooks começou a dar


sinais de enfrentamento à família. Empoderada por nosso
apoio e tomando consciência de que suas pulsões
guardavam estreita relação com os acontecimentos do
passado, ela passou a dizer não para a mãe e os irmãos.

59
Logo depois, se separou. Disse que preferia ficar sozinha a
manter uma relação que perpetuava os maus tratos físicos.
Começava a dar sinais de recuperação: oferecia o rosto
para o beijo ao final da sessão, me presenteou com flores
após um ano e meio e passou a tratar melhor os
funcionários de nosso ambulatório.

Seus filhos já frequentavam a escola, e ela decidiu


abrir mais uma loja: seu sucesso profissional a deixava
muito feliz e ela foi se tornando uma mãe muito zelosa,
atenta às menores necessidades dos filhos, que
continuavam sendo acompanhados por nossa equipe.

O esquema medicamentoso manteve-se denso


durante os primeiros três anos, sofrendo diversos ajustes
ao longo deste tempo. Ao final do terceiro ano de
tratamento, decidimos, em conjunto, realizar pequenos
desmames {retirada gradual de medicação com o intuito de
observar as reações do indivíduo e, ao mesmo tempo,
monitorar eventuais efeitos colaterais indesejáveis} para
observar sua reação. Não poderia ter sido melhor: Brooks
manteve-se apenas com os antidepressivos e ansiolíticos
em esquema de S.O.S. {utilização de medicações apenas em
casos emergenciais, de forma não contínua}. O antipsicótico
já não era mais necessário, bem como as demais
medicações, que foram sendo retiradas conforme a terapia
avançava e seu comportamento demonstrava sinais de
mudanças. [Cabe ressaltar que ela foi uma de nossas
melhores pacientes, sempre pontual e assídua nas

60
consultas, obedecendo à risca qualquer orientação que lhe
fornecíamos. Acreditou em nosso trabalho e nós
acreditamos nela. Essa parceria não poderia ter dado
melhor resultado, ainda que sua motivação inicial me
parecesse destituída de estofo afetivo para com os filhos.]

Os anos foram se passando e após uma das sessões,


sua filha, que esperava na recepção, veio me entregar um
desenho. Deu-me um abraço e disse: “doutora, obrigada por
cuidar da depressão da mamãe, ela está bem melhor agora
que você ajudou ela”. Tomada de surpresa, emocionei-me
ainda mais quando Brooks também me abraçou e disse
baixinho em meu ouvido que mal a filha sabia que só estava
viva por minha causa. Respondi que não, que tudo se devia
ao enorme esforço e capacidade dela mesma, e nós apenas
havíamos mostrado o caminho. A partir daí, todas as
sessões se encerravam com beijos e abraços por iniciativa
dela mesma.

Até que mais alguns anos depois, a TV noticiou um


destes massacres ocorridos em escolas. A notícia chocou
toda a sociedade, e minutos depois, recebi um telefonema
da Brooks. Ela chorava convulsivamente do outro lado da
linha. Pedi que se acalmasse e tentasse me explicar o que
estava acontecendo. Ela soluçava, perguntando se eu havia
visto o massacre na TV. Respondi que sim. Ela passou a
dizer que precisávamos ir à TV também, contar para as
pessoas que existia tratamento para aquele tipo de
problema, que faz com que as pessoas saiam por aí matando

61
assim. Implorava, dizendo, “por favor, doutora, escreva
sobre o que vocês fazem, as pessoas como eu precisam
saber que podem contar com um tratamento de qualidade...
essas crianças não precisavam ter morrido... que horror
desnecessário...”. Fiquei pasma com a reação dela. Era a
primeira vez que demonstrava legítima piedade para com as
vítimas. Lhe garanti que divulgaria nosso trabalho, e seu
caso foi o primeiro que apresentei num congresso de
psiquiatria há alguns anos.

Brooks queria participar ativamente deste trabalho, e


quando fundamos o Personna, ela chorou de felicidade. É
uma de nossas maiores apoiadoras, e como tal, não poderia
lhe negar ver o produto de nosso esforço conjunto: quando
defendi minha tese de doutorado, convidei-a para assistir.
Ela ficou muito feliz. O auditório estava lotado e meus
alunos sabiam que a “famosa Brooks” estaria entre os
convidados, mas obviamente, por questões de segurança,
não pude apresenta-la a ninguém. No fundo, sabemos que
mais do que justiça, boa parte das pessoas só se satisfaria
com uma cruel vingança.

Confesso que o abraço dela foi o melhor de todos, ao


receber meu título. Ela ajudou a construir nossa teoria, e
isso não é pouca coisa.

62
CONFLITO E RESOLUÇÃO

A defesa de minha tese, entretanto, ocorreu durante


um momento extremamente turbulento de minha vida
pessoal: uma de minhas filhas, que morava em outro estado,
estava lutando contra um câncer muito agressivo, o que fez
com que eu me ausentasse da cidade diversas vezes para
acompanhar o tratamento. Neste período, o tratamento da
Brooks já era apenas um acompanhamento esporádico,
após seis anos de psicoterapia intensiva. Notando minhas
ausências constantes, ela me perguntou o que estava
acontecendo. Respondi apenas que estava com um
problema de saúde na família, sem dar mais detalhes. [Não
costumamos compartilhar detalhes pessoais com nossos
pacientes.]

Mas alguns meses depois ela me ligou novamente,


perguntando se eu estava bem. Era a primeira vez que ela
demonstrava preocupação com meu bem estar. Respondi
que as coisas estavam mal e ela pediu detalhes da situação.
Contei-lhe que minha filha estava doente e ela demonstrou
solidariedade dizendo que iria rezar. Passadas algumas
semanas, tornou a manter contato quando minha filha já
estava na UTI. Não lhe escondi o quadro, até para explicar
minha ausência. E sua resposta me surpreendeu mais uma
vez. Ela disse que não estava ligando para cobrar minha
presença, mas apenas para saber como eu estava. Disse que
devia muito a mim e que torcia para que tudo ficasse bem.
63
Mas, infelizmente, não foi isso que aconteceu. Minha
filha veio a falecer meses depois, e na última mensagem
recebida dela, lhe comuniquei o ocorrido. A resposta veio
em forma de uma linda prece que me enviou por telefone e
nada mais. Após algum tempo, retornei para minha cidade e,
assim que me foi possível, retomei as atividades
profissionais. Como não poderia deixar de ser, uma das
primeiras pacientes que convoquei foi a Brooks, pois em
uma de nossas conversas ela pediu que, tão logo me
sentisse pronta, eu a recebesse, não porque tivesse alguma
demanda pessoal, mas por querer me transmitir,
pessoalmente, suas condolências. E ela não pararia de me
surpreender...

Antes disso, conversei com meu supervisor. Nunca


havia passado por aquilo antes e não sabia como me
conduzir perante as perguntas que meus pacientes talvez
fizessem sobre o corrido. No Personna não temos como
regra omitir toda e qualquer informação pessoal, pois
acreditamos que tais conteúdos podem ser trabalhados na
relação terapêutica, mas Brooks me preocupava. Conversar
com ela sobre a morte de minha filha poderia ter efeitos
inesperados e eu não queria colocar tudo a perder agora.
Mas, conhecendo bem o caso, ele me orientou a ser o mais
franca possível e a não esconder a minha dor. [Confesso que
achei aquela uma proposta bastante arrojada, mas como ele
era mais experiente do que eu e eu jamais passara por tal
situação, resolvi seguir sua sugestão. Veríamos como os
afetos dela se manifestariam.]
64
Chegando ao consultório, deparei-me com uma
Brooks abatida, totalmente diferente de tudo o que eu já
havia visto. Ela apresentava grandes olheiras e havia
emagrecido. Preocupei-me com o que poderia estar
acontecendo com ela. Ao se sentar ao meu lado, perguntou-
me como eu estava. Minha aparência também devia estar
dizendo muito sobre meu estado nos últimos meses: eu
parecia tão abatida quanto ela. Me olhando nos olhos e
segurando minhas mãos, ela perguntou como eu me sentia e
começou a chorar. Não pude controlar as lágrimas e chorei
também. [Nossa abordagem compreende que estes
momentos trazem mais conteúdos e podem promover mais
insights que qualquer interpretação impessoal.] Respirei
fundo e tentei resumir meu estado em única frase: era a
maior dor que eu já havia sentido na vida e eu me sentia
despedaçada.

Eu poderia esperar tudo, menos o que se seguiu: ela


ajoelhou-se ao meu lado e, chorando copiosamente, me
acariciava. Em meio às lágrimas notei que ela dizia,
baixinho, “me perdoa, me perdoa...”. Não entendi porque
dizia aquilo e ajudando-a a se levantar, questionei o que
queria dizer. Ainda muito emocionada, ela passou a falar
sem parar, que só agora havia percebido a dor que causara a
tantas mães e que estava devastada com isso... Que só
percebera a dimensão do mal causado quando viu em mim,
quem ela tanto prezava, a dor manifesta nas consequências
da perda de um filho.

65
Disse que desde que soubera do corrido, não parava
de chorar e de se sentir imensamente culpada pelas suas
atitudes. Que precisava encontrar uma forma de amenizar
os danos que cometeu, pois sabia que aquelas pobres mães
nunca mais seriam felizes. Tentei lhe acalmar, ao mesmo
tempo em que concordava com algumas de suas assertivas.

Disse que, realmente, eu também só conhecera agora


o tamanho de uma perda assim, mas que compreendia seu
desejo de reparação. Ela disse que, se pudesse, iria até cada
uma das mães para se desculpar, mas que sabia que isso não
resolveria nada. [Este “Desejo de Reparação” foi abordado
na teoria de Melanie Klein, quando um indivíduo, após
destruir o “objeto” de seu ódio, tenta remediar o ocorrido
através do amor.]

Após me recompor por uns momentos, sugeri que


dissesse a mim tudo o que diria a elas. Ela respirou fundo e,
voltando a chorar, passou a pedir perdão a cada uma das
mães que via em mim. Contou dos problemas que a levaram
até aquilo, dizendo que não tinha controle sobre si mesma
na época. Pedia desculpas incessantemente e voltou a se
ajoelhar.

Foi um momento muito, muito denso e rico.


Acariciando seus cabelos, passei a lhe dizer que a perdoava
e que ficava feliz por ela ter se tratado e não ter feito outra
vítima nunca mais. Ela foi se acalmando novamente até que,
sentadas frente a frente, ela conseguiu se aquietar.
Obviamente eu não poderia, na prática, perdoar coisas que
66
não foram feitas a mim, mas aquele foi um gesto simbólico,
para que ela compreendesse que poderia ser melhor do era,
que seu arrependimento fazia sentido e que não
necessitava voltar seu ódio contra si mesma.

Notei que aquela sessão seria nossa despedida. Ela,


finalmente, conseguira entrar em contato com toda sua dor,
com as consequências de seus atos e demonstrar desejo
sincero de reparação. Disse-lhe, na semana seguinte, que
lhe daria alta e que ela não precisava mais voltar, a não ser
que sentisse necessidade. Sugeri que se engajasse em
algum projeto para ajudar mães e crianças, pois aquilo faria
bem para todos.

Alguns meses depois recebi a última ligação dela:


arrendara um terreno perto de sua casa e, junto com a
igreja que passara a frequentar, desenvolveu um programa
de apoio para mães carentes que perdem filhos ou que
estão gravemente doentes. Passou a destinar trinta por
cento do que ganha para doar cestas de alimentos,
remédios e auxiliar no tratamento psicológico destas mães
e seus filhos. Enfim, sua culpa surgira, mas mais do que isso:
se transformara em responsabilidade. Responsabilidade e
consciência que lhe indicavam, enfim, um caminho correto a
seguir.

Sem dúvida, as vidas que ela tirou não retornarão, mas


temos a consciência tranquila de que, se novas vítimas não
existiram, foi graças ao empenho dela e da equipe em

67
fornecer um tratamento humano e eficaz que colabora para
a erradicação e prevenção de novas violências no mundo.

O tratamento da Brooks envolveu um esforço imenso


de re-maternagem e desenvolvimento de afetos sadios. Foi,
como diz Rogers, um “tornar-se pessoa” e um curar-se “na
relação”. Crescemos nós duas, e hoje sinto profundo
respeito pela pessoa que ela se tornou.

[Sua prisão jamais a recuperaria, pois bem sabemos


como são tratados os prisioneiros no Brasil. Haveria em seu
lugar uma pessoa destruída, o que igualmente não mudaria
os fatos e nem traria aquelas vidas de volta. Se o que
desejamos, realmente, é a ressocialização de alguém que
comete crimes, isso também pode ser conseguido de outra
maneira sem ser pela privação de liberdade.

Como Brooks, atendemos centenas de casos bem


sucedidos e sem reincidências. No dia em que os
profissionais e a sociedade, de fato, resolverem investir na
recuperação destas pessoas e não mais em meras
retaliações, o mundo poderá se tornar um lugar melhor.]

68
PRÓXIMOS PASSOS

69
Espero que você esteja chegando ao final desta leitura
com uma compreensão muito mais profunda da Psicologia
Jurídica e Forense, das perspectivas de inserção nesse
mercado e de uma forma bem diferente de enxergar a
profissão – que eu acredito, verdadeiramente, ser capaz de
mudar o mundo.

Como psicólogas e psicólogos forenses, temos a


possibilidade real de fazer uma enorme diferença por
meio de um trabalho íntegro, responsável e humano,
embasado por teorias minuciosamente desenvolvidas e
estudadas, bem como técnicas e abordagens de eficácia
amplamente comprovada.

Essa é minha tese e minha missão: desenvolvi esse


trabalho durante anos, alcançando enorme sucesso nos
tratamentos, amplo reconhecimento e ensinando dezenas
de alunas e alunos a fazerem o mesmo, também com grande
sucesso – provando que meus resultados não são graças a
um “dom especial” ou nada do tipo, e sim graças a uma
abordagem muito bem desenvolvida e fundamentada, que
qualquer pessoa pode aprender, desde que tenha a
orientação correta para isso.

E é pra te fornecer essa orientação que eu criei o


projeto online do Tese Personna, onde entrego conteúdo de
frequência diária sobre a Psicologia Jurídica e Forense, falo
sobre diversos assuntos relacionados à área e ofereço pra
você materiais como este ebook; buscando te ajudar a
compreender os pormenores da profissão, desenvolver
70
uma visão bem-fundamentada da Psicologia Jurídica e
Forense e conseguir uma boa inserção no mercado através
de uma capacitação completa e de qualidade.

Se você acredita no que eu faço, gosta dos meus


conteúdos, e pretende se tornar uma psicóloga ou
psicólogo jurídico ou forense, basta continuar me
acompanhando – especialmente através do email com o
qual você se inscreveu para receber esse ebook: lá eu
consigo ter um relacionamento mais próximo contigo, por
entender que você tem um grande interesse na área e no
que eu tenho a te oferecer.

É nesse email que você vai receber atualizações sobre


os conteúdos e projetos do Tese Personna, incluindo o
Psicologia Forense Aplicada – um curso completo de
capacitação, totalmente online, ministrado por mim através
de uma ementa semelhante à que eu aplicava em minha
disciplina de Psicologia Forense, lá na UnB; porém de forma
adaptada às demandas específicas de cada uma das alunas e
alunos, muito conteúdo especial, os melhores materiais e
arquivos cuidadosamente selecionados a partir de meus
estudos, leituras e décadas de profissão, um guia prático
completíssimo de inserção no mercado de trabalho e acesso
direto a mim para esclarecimento de dúvidas, além de
alguns bônus exclusivos.

E se você se interessou pela área, mas não compactua


com a minha forma de trabalho/ensino, você tem duas
opções:
71
1 - Acompanhar meu trabalho da mesma forma, afinal,
o escopo da profissão vai muito além da minha abordagem
específica, e você pode facilmente destilar, dos meus
conteúdos e cursos, os fundamentos que servem muito bem
para qualquer tipo de trabalho desenvolvido na área; desde
que verdadeiramente responsável e bem-intencionado.

2- Buscar outras opções de inserção na carreira,


como as que eu mencionei na seção “A Forense no Brasil”.
Caso você queira saber mais sobre alguma delas, ou mesmo
esteja procurando indicações de bons cursos ou
instituições, mande suas perguntas pra mim: não garanto
conseguir resolver seu problema, mas prometo tentar.

E se você já tem um conhecimento construído sobre


bases bem diferentes e discorda veementemente de alguma
perspectiva que eu apresento aqui, eu te convido a
conversar comigo sobre o assunto, ou mesmo acompanhar
meus conteúdos, nos quais eu falo mais extensivamente
sobre essas questões, e apresento cada uma delas de
diversas formas diferentes.

Qualquer que seja o seu caso, porém, por favor não


tome a minha forma de enxergar a profissão como
inquestionável e absoluta: você pode (e deve) tirar suas
próprias conclusões pesquisando de forma independente,
entrando em contato com diferentes instituições, lendo
livros e artigos sobre o tema e buscando conversar com
outros professores e profissionais da área.

72
Recomendo, porém, que você também pesquise sobre
os estudos e sobre o trabalho que é desenvolvido nessa
área em outros países. O estado da arte lá fora é
completamente diferente do nosso, e pode te trazer
reflexões incríveis.

E é importantíssimo que você jamais caia na perigosa


armadilha de insistir em qualquer tipo de opinião que tenha
sido formada sem um embasamento fortíssimo em teoria,
técnica e prática, especialmente ao tratar de temas tão
complexos quanto os que nossa profissão envolve.

Espero que este material tenha sido útil para você!


Caso tenha qualquer dúvida relativa à nossa área, seja na
teoria ou na prática, ou mesmo alguma sugestão ou
reclamação específica, por favor entre em contato comigo
através dos chats do Facebook ou Instagram, ou pelo email
de atendimento – você encontra esses links no rodapé da
próxima página.

É sempre um prazer conversar um pouco contigo!


Espero que em breve você venha a se tornar minha colega
ou meu colega de profissão – estamos precisando de
reforços, viu? Falo seríssimo.

Grande abraço, e até a próxima!

73
Dra. Elisa Krüger

✔ Psicóloga Forense & Perita Criminal


✔ Formada em Psicologia pela Universidade de Brasília (UnB)
✔ Especialização em Psicologia Jurídica
✔ Mestrado na área de Avaliação Psicológica & Psicose
✔ No Doutorado pesquisou sobre Transtorno de Personalidade
Antissocial (Psicopatia) e Medida de Segurança
✔ Formação em Avaliação de Risco de Violência pelo King’s
College de Londres
✔ Integrou o Comitê Nacional de Prevenção e Combate à
Tortura
✔ Presidente do Instituto Personna de Estudos, Pesquisas &
Intervenções
✔ Trabalha com Perfis Criminais e Crimes em Série
✔ Atua no sistema prisional há mais de 10 anos
✔ Participa de comissões sobre violência, guerra e terrorismo na
ONU
✔ Professora universitária, escritora e palestrante

SAIBA MAIS ou FALE COMIGO!

74
Transtorno de Personalidade Antissocial
Critérios diagnósticos pelo DSM-V (Código: 301.7):

A. Um padrão constante de desrespeito e violação aos direitos dos


outros, que ocorre desde a adolescência, como indicado por pelo menos
TRÊS dos seguintes critérios:

1. Fracasso em conformar-se às normas sociais com relação a


comportamentos éticos e legais, indicado pela execução repetida de atos
que constituem motivo de reprovação social ou detenção (crimes);

2. Impulsividade predominante ou incapacidade em seguir planos


traçados para o futuro;

3. Irritabilidade e agressividade, indicadas por histórico constante de


lutas corporais ou agressões verbais violentas;

4. Desrespeito irresponsável pela segurança própria ou alheia;

5. Irresponsabilidade consistente, indicada por um repetido fracasso em


manter um comportamento laboral consistente ou honrar obrigações
financeiras;

6. Ausência de remorso, indicada por indiferença ou racionalização por


ter manipulado, ferido, maltratado ou roubado outra pessoa;

7. Tendência para enganar e à falsidade, indicada por mentir


compulsivamente, distorcer fatos ou ludibriar os outros para obter
credibilidade, vantagens pessoais ou prazer;

B. O indivíduo tem no mínimo 18 anos de idade.

C. Existem evidências de Transtorno de Conduta com início antes dos 15


anos de idade.

D. A ocorrência do comportamento antissocial não se dá exclusivamente


durante o curso de Esquizofrenia ou Transtorno Bipolar.

75
Referências Bibliográficas
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