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Interação Psicol., Curitiba, v. 18, n. 3, p. 373-379, set./dez.

2014 373

Desafios para a Formação do Neuropsicólogo Clínico no Brasil

Ana Paula Almeida de Pereira *


Universidade Federal do Paraná, Curitiba, PR, Brasil

RESUMO
A Neuropsicologia Clínica é um campo de trabalho recente no Brasil, no entanto, existe uma forte
demanda no mercado por profissionais qualificados. Embora o Conselho Federal de Psicologia já
tenha esboçado este campo como uma especialidade da formação em Psicologia, ainda não existe um
consenso sobre como deve ser delineada a formação desse profissional. O presente artigo busca,
através de uma análise histórica da área, delimitar esse campo de conhecimento para, então,
observando os processos de formação do neuropsicólogo clínico em outros países mais avançados
nesta discussão, traçar um breve perfil das competências, atitudes e comportamentos desse
profissional. Finalmente, apontar os desafios que a formação do neuropsicólogo clinico representa no
contexto brasileiro.
Palavras-chave: neuropsicologia clínica; formação profissional; Brasil.

ABSTRACT
Challenges for the Professional Education of the Clinical Neuropsychologist in Brazil
Clinical Neuropsychology is a fairly recent field of work in Brazil, however, there is a growing
demand for professionals within this specialty. Though the Federal Council of Psychology has already
delineated this field as a possible specialty after professional graduate training, the requirements for
such training are still unclear. The present article seeks to build this field’s framework by pointing out
the competencies attitudes and behaviors of the Clinical Neurospychologists and by investigating
historical aspects and the training requirements established by other countries which are more
advanced in the debate. Finally, the major challenges for providing training in clinical
neuropsychology are pointed out.
Keywords: clinical neuropsychology, professional training, Brasil.

A Neuropsicologia definiu-se como um campo de rém, ignorar que os conhecimentos provenientes de


estudo interdisciplinar que busca compreender a rela- pesquisas em Neuropsicologia são construídos através
ção entre o comportamento e o cérebro, no qual co- do estudo em diversas áreas da ciência (por exemplo,
nhecimentos de diversas áreas da ciência contribuem neurologia, psicofarmacologia, psicobiologia, linguís-
para sua construção. Esta peculiaridade representa um tica e psicologia cognitiva). O trabalho do neuropsicó-
desafio para a formação em Neuropsicologia, especial- logo clinico caracteriza-se tanto por uma formação
interdisciplinar em neurociências e psicologia quanto
mente, para o profissional que irá se dedicar à Neu-
por buscar uma pratica clinica voltada para os objetos
ropsicologia Clínica. O presente artigo propõe contri-
de intervenção e estudo da Psicologia Clinica. Assim,
buir para a reflexão sobre a formação em Neuropsico-
por exemplo, o campo de estudo da Neuropsicologia
logia Clínica no Brasil como um campo de atuação do
da memória integra informações provenientes de dis-
psicólogo.
ciplinas diversas como biologia celular, neurofisiolo-
Um importante debate tem sido travado com o in- gia e neurologia, ou seja, a Neuropsicologia faz parte
tuito de delimitar as especificidades do trabalho do da grande área denominada Neurociências, porém,
psicólogo especialista em Neuropsicologia sem, po- apresenta especificidades importantes que a discrimi-

* Endereço para correspondência: Ana Paula Almeida de Pereira – anapaula_depereira@yahoo.com


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nam em sua atuação clínica. Outro exemplo, o psicó- derivados de seus objetivos específicos, mas interco-
logo, especialista em Neuropsicologia Clínica, ao nectados através de metas interdisciplinares.
intervir junto a um cliente com problemas de memória A Neuropsicologia, como campo de conhecimento
deve se utilizar deste conhecimento interdisciplinar
deve estar ao alcance de qualquer profissional que se
mantendo o foco em objetivos característicos de sua
interesse pelo tema e, tal tarefa, pode ser realizada
especialidade como a facilitação das relações sociais e
através de diferentes recursos da comunidade como
familiares através de estratégias compensatórias para
universidades, sociedades profissionais, ou ainda,
reabilitação da memória.
associações acadêmicas. O profissional busca conti-
O debate sobre a formação em Neuropsicologia, nuidade em sua formação através de livros, eventos
frequentemente, negligencia a diferença entre a neces- científicos e cursos de capacitação continuada. No
sidade de se divulgar os conhecimentos em Neuropsi- entanto, os requisitos necessários para a formação do
cologia para diversos profissionais e a formação espe- neuropsicólogo clínico requerem uma reflexão maior.
cífica do profissional psicólogo que se propõe a práti- Primeiramente, para proteger o cliente que busca ser-
ca da Neuropsicologia Clínica. Talvez, isto ocorra viços profissionais de neuropsicologia de qualidade e,
devido ao fato que, no país, ainda existam poucas em segundo lugar, para que os próprios profissionais
equipes multiprofissionais que efetivamente trabalham em formação possam fazer suas escolhas de capacita-
de modo interdisciplinar nos diversos contextos, ou ção continuada é preciso que a formação necessária
ainda, devido ao conhecimento incipiente sobre as para atuar como neuropsicólogo clínico seja claramente
características específicas das funções do Neuropsicó- divulgada.
logo Clínico.
O presente artigo propõe uma delimitação das
É consenso que se deve fomentar a divulgação do competências e habilidades do psicólogo especialista
conhecimento em Neuropsicologia junto a profissio- em Neuropsicologia Clínica em relação a outros pro-
nais como o fonoaudiólogo, o fisioterapeuta, o tera- fissionais da área de Neurociências. Esta delimitação
peuta ocupacional, o educador, ou o psiquiatra, para será fundamentada através de uma breve apresentação
citar alguns dos profissionais que trabalham em dife- histórica sobre a formação profissional do neuropsicó-
rentes contextos de reabilitação e inclusão de pessoas logo clínico e da compreensão de alguns dos requisi-
com distúrbios neuropsicológicos. Esta necessidade tos teóricos e metodológicas necessários para prática
decorre pelo fato que tal conhecimento pode tanto da Neuropsicologia Clínica.
tornar o trabalho individual de cada um dos profissio-
nais da equipe mais eficaz, quanto facilitar a comuni- A história da formação em Neuropsicologia
cação entre os profissionais envolvidos e a elaboração Clínica
de um plano interdisciplinar de trabalho. Neste plano O campo da Neuropsicologia caracteriza-se, desde
interdisciplinar existiriam intervenções específicas sua origem, por apresentar elementos provenientes de
determinadas pela formação profissional e os objeti- estudos multidisciplinares experimentais e clínicos.
vos característicos de cada uma destas áreas profissio- Sendo assim, a Neuropsicologia engloba uma diversi-
nais. Deste modo, o terapeuta ocupacional, por exem- dade epistemológica e metodológica que pode ter
plo, ao fazer uma avaliação dentro do contexto da fomentado controvérsias sobre a formação e a prática
equipe, se utilizaria de instrumentos avaliativos com profissional nesta área recentemente criada no Brasil.
enfoque na compreensão das diferentes atividades Kristensen, Almeida e Gomes (2001) buscaram des-
humanas desempenhadas pelo cliente e proporia um crever o surgimento da Neurociência Cognitiva a par-
plano de intervenção para organizar seu cotidiano (dia tir do estudo das lesões cerebrais e seus efeitos na
a dia), possibilitando-lhe melhor qualidade de vida. A cognição e no comportamento humano. Estes autores
prática profissional é pautada por um procedimento discutiram ainda a importância de diferentes metodo-
específico que leva a um objetivo em comum entre os logias na construção do conhecimento na área: estudo
profissionais da equipe: melhoria da qualidade de de caso e estudo de grupos, tarefas cognitivas e mais
vida. Assim, cada um destes profissionais da equipe recentemente, as técnicas de neuroimagem. A Neu-
interdisciplinar apresentaria procedimentos próprios ropsicologia Clínica seguiu um caminho semelhante.
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Frequentemente, os primórdios da Neuropsicologia igualmente, por fundamentos que possibilitem uma


são relacionados com os estudos da afasia. Segundo prática clínica.
Manning (2005), a Neuropsicologia Clínica nasceu na Observam-se pelo menos dois sinais do crescimen-
metade do século XIX com o estudo de caso de afasia to da área de Neuropsicologia Clínica: o aumento de
registrado por Paul Broca um médico e pesquisador publicações científicas específicas para o tópico e
interessado em neuroanatomia (1861). No século XX, ampliação do número de organizações profissionais
Brenda Milner, psicóloga e pesquisadora, acompa- fundadas em diferentes países que buscam fomentar a
nhou durante anos o paciente H.M. após uma neuroci- pesquisa aplicada e a formação profissional. Nos Es-
rurgia que provocou um déficit profundo nas suas tados Unidos da América, as primeiras organizações
funções de aprendizagem e memória. Desde então, profissionais congregando profissionais de áreas varia-
diversos casos de pacientes com lesão foram relatados das surgiram nos últimos 60 anos. No Brasil, diferen-
e os distúrbios psicológicos derivados do insulto ao tes organizações profissionais começaram suas ativi-
sistema nervoso central, cuidadosamente, descritos. dades a partir do final do século passado.
Pode-se dizer que parte importante do conhecimento
atual em Neuropsicologia foi construído através dos A fundação da Neuropsicologia como um campo
estudos de casos, os quais, muitas vezes, foram acom- de pesquisa e de prática profissional, formalmente,
panhados longitudinalmente pelo pesquisador/profis- ocorreu primeiro nos Estados Unidos. Embora pesqui-
sional (Wilson, 1999). Na área de reabilitação neu- sadores e profissionais de vários países já trabalhas-
ropsicológica, estudos de caso único com desenho sem em Neuropsicologia. Diversos marcos podem ser
experimental têm sido apontada como um método ressaltados que referendam esta afirmativa, mas o
importante para compreender a relação entre as inter- principal evento parece ter sido a criação da Internatio-
venções clínicas e suas consequências (Tate, Perdices, nal Neuropsychological Society (INS), em 1967. Esta
Rosenkoetter, Wakim, Godbee, Togher, & McDonald, associação constituiu-se, inicialmente, de pesquisado-
2013). res em diferentes áreas das neurociências, ligados
principalmente à fisiologia e à psicobiologia, que bus-
Simultaneamente, a influência dos estudos com de- cavam um espaço formal de discussão e integração
lineamentos experimentais também pode ser observa- das pesquisas sobre a relação cérebro e comportamen-
da. Desde W. Wundt e J. Watson, a tradição experi- to. Atualmente, a INS conta com mais de 4500 mem-
mental influencia as pesquisas realizadas em diferen- bros, organiza duas reuniões anuais em diferentes
tes campos da Psicologia, inclusive a Neuropsicolo- países do mundo e oferece sistematicamente cursos de
gia. O importante papel da Psicometria como área formação continuada. Nestas reuniões, o equilíbrio
fundamental para a construção da prática da Avalia- entre as apresentações da pesquisa experimental e da
ção Neuropsicológica também deve ser destacado pois pesquisa clínica permanece até hoje (http://www.
reforçou a tradição que busca medir e predizer com- the-ins.org/society-info).
portamentos e características psicológicas.
Apenas em 1980, a Associação de Psicologia Ame-
Um dos periódicos mais importantes e antigos da ricana (American Psychological Association) criou
área de Neuropsicologia, em seu título já claramente uma divisão de Neuropsicologia Clínica (APA Division
demonstra a importância dos métodos de delineamen- 40). Esta diferença temporal pode indicar que o traba-
to clínico e experimental para a área: o Journal of lho inicial na Neuropsicologia, enquanto campo de
Clinical and Experimental Neuropsychology encontra- atuação formal, ocorreu dentro do contexto da acade-
-se em seu 36º ano de existência e revela a busca de mia, dos hospitais universitários e, principalmente,
diálogo interdisciplinar na área. Pode-se dizer que laboratórios. A INS teve um papel importante para
estudos clínicos fomentaram a organização de pesqui- liderar um grupo de trabalho junto a APA, que em
sas experimentais e estes, por sua vez, influenciaram a 1987, definiu pela primeira vez consensualmente as
pesquisa e a prática clínica. A pesquisa em Neuropsi- atribuições do neuropsicólogo clínico. Dez anos de-
cologia caracteriza-se assim, não apenas pela busca do pois, em 1997, na Conferência de Houston, publicou
conhecimento e a criação de modelos teóricos sobre a as diretrizes americanas que fundamentam a formação
relação cérebro e cognição/comportamento mas, de neuropsicólogos clínicos neste país (http://www.
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apa.org/ed/graduate/specialize/neuro.aspx). Deste mo- capacitação do psicólogo para o atendimento


do, no contexto norte-americano, a formação profis- clínico.
sional em Neuropsicologia Clínica passou a ser cla- 2. Além da formação em pesquisa científica, os
ramente distinta da formação em Neuropsicologia profissionais em treinamento passam por expe-
Experimental, em Neurociência Cognitiva, ou em riências clínicas supervisionadas extensas e es-
Psicobiologia, uma vez que, pressupõe habilidades pecíficas em contextos de Neuropsicologia Clí-
clínicas de intervenção, caracterizando-se como uma nica.
especialidade da atuação profissional do psicólogo.
Deste modo, diversos programas de Neuropsicologia 3. Todos os sistemas de formação reconhecem a
Clínica encontram-se ligados a departamentos e pro- importância da graduação em Psicologia como
gramas de pós-graduação de Psicologia Clínica nos alicerce para a capacitação pós-graduada em
Estados Unidos e na Europa. Esta especificidade deve Neuropsicologia Clínica.
ser considerada nas discussões brasileiras sobre a es- 4. As associações profissionais e a academia exer-
pecialidade em Neuropsicologia Clínica como área de cem um papel ativo na elaboração de diretrizes
atuação profissional fundamentada na relação entre a para a formação profissional do Neuropsicólogo
psicologia e as neurociências. assim como, no modo em que sua prática deve
Em 2013, o site da APA listava um total de 38 ser validada.
programas credenciados para formação de Neuropsi- Cada uma dessas semelhanças entre a formação em
cólogos Clínicos. Nos Estados Unidos, para se tornar diferentes países será analisada na próxima sessão
Neuropsicólogo Clínico, deve-se fazer quatro anos do considerando-se as competências que buscam desen-
curso de graduação em Psicologia e, posteriormente, volver no neuropsicólogo com formação clínica.
um Programa de quatro a cinco anos de Doutorado e
No Brasil, a forte influência destas duas vertentes,
mais um ano de estágio pós-doutoral e dois anos de
residência supervisionada na área, ou seja, requer experimental e clínica, também pode ser observada na
onze anos de formação. história da Neuropsicologia brasileira. Em 1988, a
Sociedade Brasileira de Neuropsicologia formou-se
Os requisitos para a formação em Neuropsicologia através da iniciativa de diferentes grupos ligados a
Clínica diferem entre países. Na Austrália, a formação instituições de pesquisa e preocupados com a relação
ocorre após três anos de curso de graduação em Psico- cérebro, cognição e comportamento. Dois neurologis-
logia, e um ano de estágio, e em mais dois anos de tas ligados à academia tiveram papel essencial em
Mestrado ou três anos de Doutorado em Neuropsico- congregar tais grupos: o Dr. Jayme Antunes Maciel Jr
logia Clinica e apenas cerca de cinco universidades (UNICAMP) e o Dr. Norberto Rodrigues (PUC-SP)
oferecem Programas na área. No Reino Unido, é ne- (http://sbnp.com.br/site/index.php/asbnp/historia/).
cessária formação de três anos de curso de graduação Esta organização, tal qual a INS, fomenta a interação
em Psicologia, três anos de Doutorado em Psicologia entre os diversos profissionais das neurociências e de
Clínica ou Educacional e, posteriormente, mais um outras áreas e tem papel importante na divulgação do
ano de Mestrado ou pós-graduação específica em conhecimento científico da Neuropsicologia através
Neuropsicologia Clínica em uma das poucas universi- de eventos científicos, cursos de formação continuada
dades que oferecem esta formação (quatro no momen- e publicações.
to da redação deste artigo) (British Psychological So-
Em 2009, o Instituto Brasileiro de Neuropsicologia
ciety, 2013). Enfim, nesses países, a formação em
Neuropsicologia Clínica foi instituída recentemente de e Comportamento (IBNeC) foi criado para refletir
modo formal e já apresenta algumas coincidências sobre a interação da Psicologia com as Neurociências
importantes: e fomentar a interação entre pesquisa básica e aplica-
da. Esta associação científica congrega profissionais
1. A formação se difere da formação em Neu- de diferentes áreas e tem caráter multidisciplinar. Se-
ropsicologia Experimental ou outras áreas das guindo um dos principais propósitos de sua criação
Neurociências, pois objetiva primordialmente a preocupa-se especialmente em participar do debate
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junto ao Conselho Regional de Psicologia eoutras exemplo de capacitação em que as habilidades inter-
organizações profissionais e científicas sobre a forma- disciplinares devem ser cultivadas.
ção do Neuropsicólogo Clínico. A formação em neuropsicologia é essencialmente
O Conselho Federal de Psicologia reconhece que o interdisciplinar e a prática da Neuropsicologia Clínica
profissional especialista em Neuropsicologia utiliza-se torna-se enriquecida e mais eficaz no contexto da
de “conhecimentos teóricos angariados pelas neuro- equipe multiprofissional. Consequentemente, tal for-
ciências e pela prática clínica, com metodologia esta- mação deve tornar-se um exemplar destes parâmetros.
belecida experimental ou clinicamente” (Conselho Deste modo, faz-se necessário delimitar quais os co-
Federal de Psicologia, 2004). Porém, a resolução do nhecimentos e as habilidades necessários para formar
CRP carece de uma delimitação clara e detalhada o neuropsicólogo clínico sem perder de perspectiva
sobre a formação profissional do Neuropsicólogo que sua interdisciplinaridade.
irá atuar no campo da clínica. Este debate ainda está
em curso no Brasil. No presente artigo, buscou-se Os conhecimentos
apresentar alguns dos principais marcos do conheci- Dentro do campo da Neuropsicologia, o conheci-
mento clínico da Neuropsicologia que, atualmente, mento das bases neuroanatomo-fisiológicas do siste-
constitui parte das competências e habilidades especí- ma nervoso central (SNC) é essencial, assim como
ficas do neuropsicólogo clínico. para todos os profissionais que trabalham no campo
das Neurociências Clínicas. Uma breve observação
Conhecimentos e habilidades do neuropsicólogo dos princípios epistemológicos que norteiam a prática
clínico do neuropsicólogo clinico indica que o estudo sobre a
Os conhecimentos da Neuropsicologia, comparti- construção da pessoa como sujeito influenciado por
lhados entre diversos profissionais, fundamentam a fatores biopsicossociais que se relacionam com capa-
prática do neuropsicólogo clínico, no entanto, tal prá- cidades e limitações neuropsicológicas e estão envol-
tica apresenta características que requerem uma for- vidos na expressão de sua identidade, ocupam papel
mação específica (Lamberty & Nelson, 2012). A visão privilegiado na perspectiva deste profissional. O co-
histórica de como o campo da Neuropsicologia Clíni- nhecimento proveniente da Psicologia Clinica e da
Psicometria fundamentam a utilização de estratégias
ca se constituiu auxilia na compreensão destas carac-
variadas de avaliação e intervenção psicológica no
terísticas específicas.
contexto de pessoas com déficits neuropsicológicos o
Desde 2010, a Organização Mundial da Saúde que constrói uma prática baseada em evidências e
(OMS) incentiva a educação interdisciplinar pois sa- teoricamente consistente. Enfim, o corpo de conheci-
be--se que os serviços profissionais da área da saúde mento necessário para a atuação do Neuropsicólogo
quando promovem a colaboração interdisciplinar tor- Clínico difere daquele da formação em Neuropsicolo-
nam-se mais eficazes. No entanto, poucos cursos de gia Experimental ou outras áreas das Neurociências à
graduação ou pós-graduação no Brasil propiciam em medida que se trata de uma ciência aplicada que obje-
seus currículos as habilidades para este trabalho cola- tiva primordialmente a capacitação do profissional
borativo, o que dificulta sobremaneira sua implanta- psicólogo para o atendimento de clientes com dificul-
ção na prática profissional. Este documento recomen- dades neuropsicológicas. Deste modo, é coerente que
da uma série de ações em busca da educação interdis- a formação ao nível de graduação em Psicologia, es-
ciplinar e afirma que esta se fundamenta em um currí- pecialmente no Brasil, onde o psicólogo já se encontra
culo que une as atividades dos estudantes aos resulta- habilitado para o trabalho clínico, torne-se alicerce
dos esperados. Para tanto, o aprendiz deve saber “o para a capacitação teórico-prática pós-graduada em
que fazer (conhecimento), como aplicar seu conheci- Neuropsicologia Clínica.
mento (habilidade) e quando aplicá-lo seguindo as
diretrizes éticas (atitudes e comportamento)” (tradu- As habilidades
ção livre da autora, OMS, 2010). A formação em Neu- O neuropsicólogo clínico deve ser capaz de trans-
ropsicologia Clínica, sem dúvida, é um importante ferir seus conhecimentos sobre o funcionamento do
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SNC para uma prática clínica em psicologia baseada CONSIDERAÇÕES FINAIS


em evidências. Por exemplo, quando déficits mnemô- Tanto a história da Neuropsicologia quanto as atuais
nicos afetam a memória autobiográfica de uma pes- diretrizes mundiais para a formação de profissionais
soa, o foco da intervenção permanece na pessoa (seus da saúde indicam que a colaboração entre profissio-
sentimentos, comportamentos e pensamentos caracte- nais de diferentes especialidades é necessária e torna o
rísticos) enquanto as diversas estratégias de interven- serviço mais eficaz. Deste modo, a formação pós-
ção são programadas para contornar ou minorar tais graduada do profissional em Neuropsicologia Clínica
déficits no seu dia a dia e reconstruir sua identidade. deve incorporar os conhecimentos básicos obtidos
Este enfoque funcional, compartilhado por vários durante o curso de graduação em psicologia, enfatizar
profissionais da equipe de reabilitação/intervenção e as evidências da relação cérebro-compor-tamento,
fomentado pelos parâmetros da Classificação Interna- demonstrar a importância da intervenção psicológica
cional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde (Or- para a plasticidade cerebral, facilitar a aquisição de
ganização Mundial de Saúde, 2001) possibilita tanto o conhecimentos sobre as estratégias compensatórias e o
delineamento de intervenções com objetivos comuns planejamento de intervenções neuropsicológicas, criar
entre os membros da equipe quanto à especificidade experiências supervisionadas onde os modos de co-
que a colaboração entre cada um deles pode proporci- municação compartilhada e as habilidades para a elei-
onar. Assim, outro exemplo pode ser apresentado: ção de objetivos comuns e o trabalho interdisciplinar
utilizar-se de um mesmo instrumento de trabalho ou são efetivamente realizados entre os profissionais da
atividade, como o brinquedo e o jogo, não deve ser equipe.
restrito a um profissional da equipe, de fato, todos os Em suma, sugere-se que tal como ocorreu em ou-
profissionais que trabalham com crianças devem ter tros países, as associações profissionais e as institui-
familiaridade em adaptar suas intervenções a utiliza- ções de ensino superior, principais responsáveis pela
ção de estratégias motivadoras ao cliente. Deste mo- formação profissional no país, assumam não apenas o
do, o que determina a especificidade da intervenção debate sobre a formação em Neuropsicologia mas
de um profissional não é o instrumento eleito como também criem diretrizes claras que respondam aos
parte da estratégia de intervenção, no exemplo – o desafios atuais para a formação profissional do Neu-
brinquedo/jogo – mas sim o objetivo específico e as ropsicólogo Clínico no Brasil apontados neste artigo:
estratégias utilizadas durante a intervenção. a) promover a formação voltada para a prática inter-
Portanto, as habilidades para fomentar o trabalho e disciplinar; b) organizar as experiências de práticas
a comunicação interdisciplinar e para delimitar as supervisionadas em Neuropsicologia Clínica como
responsabilidades e características profissionais de- parte integral da formação; c) incentivar que os cursos
vem ser adquiridas. A educação para a atuação inter- de graduação em Psicologia, especialmente aqueles
disciplinar requer que os profissionais em treinamento com ênfase curricular nas áreas de intervenção clínica
passem por experiências clínicas supervisionadas ex- e de saúde, contemplem as disciplinas básicas para a
tensas e específicas em contextos de Neuropsicologia formação em Neuropsicologia como Processos Psico-
Clínica. O modelo de Boulder (Peterson & Park, lógicos Básicos, Avaliação Psicológica ou Neuroana-
2005) pode contribuir para a construção dos progra- tomia; d) construir subsídios que viabilizem a avalia-
mas educacionais brasileiros em Neuropsicologia ção dos programas de formação e seus currículos.
Clínica pois apresenta vantagens importantes para Finalmente, propõe-se a criação de grupos de tra-
guiar tais programas de formação uma vez que busca balho regionais que apresentem suas propostas e re-
desenvolver uma prática profissional fundamentada flexões em um debate nacional para que soluções para
em pesquisa científica e, simultaneamente, pode tor- os desafios acima apontados sejam passíveis de serem
nar o profissional um agente na construção do conhe- acordadas e, posteriormente, adotadas. A busca da
cimento. Esta relação entre teoria e prática pode fun- divulgação dos conhecimentos em Neuropsicologia
damentar uma atuação ética e inovadora dos Neu- deve ser combinada com o fomento de uma prática
ropsicólogos. parcimoniosa e ética do Neuropsicólogo Clínico, e

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estão diretamente ligadas a excelência desta formação Organização Mundial da Saúde. (2010). Framework for
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Aceito em: 23/08/2014

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