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VARNHAGEN. História Geral PDF
VARNHAGEN. História Geral PDF
LEITURA BÁSICA
CENTRO DE DOCUMENTAÇÃO DO
PENSAMENTO BRASILEIRO (CDPB)
2011
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SUMÁRIO
INDEPENDÊNCIA DO BRASIL
Texto de Varnhagen
2
FRANCISCO ADOLFO DE
VARNHAGEN
LEITURA BÁSICA
3
CENTRO DE COCUMENTAÇÃO
DO PENSAMENTO BRASILEIRO –
CDPB
2011
INTRODUÇÃO: Varnhagen e os
alicerces da historiografia brasileira
Antonio Paim
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Embora a de Ipanema funcionasse desde 1810, considera-se
que somente na gestão de Varnhagen (1815 a 1821) é que ocorreria
a superação da precariedade do material ali produzido.
Francisco Adolfo de Varnhagen nasceria no segundo ano
(1816) de permanência do seu pai no Brasil. Presentemente a
localidade de São João de Ipanema denomina-se Iperó,
municipalidade resultante dos desmembramentos de Sorocaba.
Tradicionalmente Varnhagen é dado como tendo nascido nesta
última cidade. Ele próprio tinha-se nessa conta. Como nutria a
aspiração de que seus restos mortais viessem a ser enterrados no
local de seu nascimento, a consumação dessa aspiração teve lugar em
Sorocaba, como parte das comemorações do primeiro centenário de
sua morte, ocorrido em 1978.
Frederico Guilherme de Varnhagen demitiu-se da fundição
em 1821. Acredita-se que esse gesto deveu-se a desentendimento
com as autoridades a que se achava subordinado. Formalmente
anunciou que pretendia assegurar a boa educação do filho, então com
cinco anos, razão pela qual regressaria à Europa. Radicou-se em
Portugal, certamente pelo fato de que se casara com portuguesa ( D.
Maria Flávia de Sá Magalhães) e esta, é de presumir-se, desejaria
viver junto de sua família. Assinala-se este fato na medida em que
explica a afeição que o jovem Francisco Adolfo iria revelar pela
pátria de origem de um dos ramos de seus ancestrais.
Francisco Adolfo de Varnhagen estudou no Real Colégio
Militar da Luz, em Lisboa. Quando se dá a transferência de seu pai
para Portugal (1821), ali recém iniciara, com a Revolução do Porto,
a transição da monarquia absoluta para a constitucional. Esse
processo acabaria paralisando o país e levando-o, por fim, à guerra
civil, que durou de 1828 a 1834.
Como se sabe, esses acontecimentos tiveram amplo reflexo
no Brasil, notadamente pelo fato de que, durante o seu transcurso, em
1826, ocorre o falecimento de D. João VI o que torna D. Pedro I
herdeiro do trono da nação de que nos dissociaramos, reabrindo a
discussão em torno da Independência. Acontece que o falecimento
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do Rei explicita a divergência entre os dois filhos, D. Miguel
disposto a preservar a monarquia absoluta e D. Pedro a monarquia
constitucional. Agastado com a emergência de setores hostis à sua
permanência no trono, D. Pedro opta, em 1831, por assumir a
liderança anti-miguelista na guerra civil a que nos referimos,
abdicando da condição de Imperador do Brasil. Talvez essa
circunstância haja decidido o jovem Varnhagen a participar da luta,
na tropa liderada por D. Pedro. Em 1834, quando se dá o seu
desfecho, tinha 18 anos de idade. Como parte dessa carreira militar
então iniciada, Varnhagen freqüentou a Real Academia de
Fortificação, concluindo o curso de engenharia militar em 1939, aos
23 anos de idade.
Ainda naquela década revelaria a sua verdadeira vocação e o
tema a que se dedicaria. Entre 1835 e 1838, ocupa-se do texto que
submeteu à Academia das Ciências de Lisboa, dedicado a Gabriel
Soares de Sousa, que se tornaria o principal documento relativo ao
primeiro século da colonização portuguesa no Brasil, cuja autoria
seria justamente estabelecida por nosso autor. Graças a essa primeira
contribuição à nossa historiografia, tornou-se sócio correspondente
da instituição. Para que se tenha, desde logo, idéia da relevância da
iniciativa, basta por agora indicar que a própria Academia o havia
publicado, em 1825, sem qualquer alusão ao autor. Por sua
relevância, voltaremos a considera-lo da forma pormenorizada que
merece.
Justamente essa vocação é que o levaria a regressar ao Brasil,
em 1840. Logo ingressa no Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro, criado em 1838, passando a integrar o seu núcleo
dirigente ao assumir o cargo de primeiro secretário. Em 1844, obtém
a nacionalidade brasileira, sendo admitido no corpo diplomático.
Como diplomata, serviu em Lisboa e Madrid, nas décadas de
quarenta e cinquenta, condição de que se valeu para institucionalizar
o levantamento sistemático da documentação apta a orientar a
reconstituição de nossa história, atividade que se coroa com a
primeira versão da História geral do Brasil (1854/57). Em tópico
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autônomo, iremos considerar mais detidamente como atuou para
sedimentar tais procedimentos, essenciais à constituição da
historiografia brasileira, verificada ainda no século XIX.
Entre 1858 e 1867, Varnhagen serviu em alguns países da
América do Sul, ocupando-se basicamente da questão dos limites do
Brasil com seus vizinhos. Atuou, respectivamente, no Paraguai
(1858/1861), seguindo-se uma curta estada na Venezuela (agosto a
dezembro, 1861); Equador (dezembro, 1861/abril, 1863); Venezuela
(abril-setembro, 1863); Peru (outubro-dezembro, 1863); breve estada
no Chile, entre janeiro e maio de 1864, ocasião em que contrai
matrimônio com a chilena Carmen Ovalle; volta breve ao Peru
(junho-setembro, 1864); retorno ao Chile (outubro a dezembro,
1865) e, por fim, nova e prolongada estada no Peru (dezembro, 1865
a agosto, 1867).
Os relatórios que encaminhou ao Itamaraty, dando conta da
atividade desenvolvida nesses países foram tornados públicos no
livro Francisco Adolfo Varnhagen. Correspondência ativa,
coligida e anotada por Clado Ribeiro de Lessa (Rio de Janeiro,
Instituto Nacional do Livro, 1961, págs. 424-503). Notícia do seu
conteúdo consta da obra Varnhagen. Subsídios para uma
bibliografia (São Paulo: Editoras Reunidas, 1982, págs. 364-413)
da autoria de Hans Juerguem Wilhelm Horsh.
Encerrou a carreira diplomática como nosso representante em
Viena, Áustria, onde faleceu (1878), aos 62 anos de idade.
7
sua reconstituição, sobretudo tendo em vista que o próprio Arno
Wehling desincumbiu-se dessa tarefa em outros de seus livros, em
especial em A invenção da história. Estudos sobre o historicismo
(1994)
Creio que não seria simplificação grosseira, assinalar que o
eixo central da nova visão da história, conhecida com a indicada
denominação, seria superar a visão escatológica, segundo a qual
obedeceria a um desígnio da providência, sendo ademais passível de
previsão. A superação em apreço deu origem à importante linhagem
que remonta a Giambatista Vico (1668/1744), apropriada pelos
alemães, a partir de Johann Gottfried Herder (1744/1803). Sua obra
básica --Idéias para a filosofia da história humana--, publicada em
quatro volumes entre 1784 e 1791-- iria influenciar grandemente a
historiografia do ciclo subseqüente, marcado pelo apogeu dos
grandes filósofos Kant e Hegel. A estrela que despontaria sobretudo
na década de trinta, quando Varnhagen forma o seu espírito, seria
Leopold Von Ranke (1796/1886), a quem coube a tarefa de difundir
a idéia de que era preciso documentar as afirmações acerca dos
acontecimentos históricos.
A medida em que esse ambiente marcou o espírito de
Varnhagen pode ser aquilatado a partir da verdadeira fixação com
que cuida de demonstrar a seus pares, a partir de exemplos práticos,
que a reconstituição da história do Brasil passa obrigatoriamente pela
busca obsessiva do documento.
O trabalho que desenvolveu para estabelecer a autoria do
relato sobre o Brasil, em fins do primeiro século, de Gabriel Soares
de Sousa serviu para fixar-lhe não só o estilo de investigação que
adotaria como, igualmente, apontando as lacunas a preencher. Nesse
documento, a que deu o título Tratado Descritivo do Brasil em
1587, seu autor está mais voltado para os aspectos físico-geográficos,
bem como em fixar os contornos do litoral desde a foz do Amazonas.
Saltava às vistas a necessidade de reconstituir os aspectos
institucionais, isto é, formas de organização governamental adotadas,
procedimentos para a ocupação do território, disputas com potencias
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estrangeiras. Enfim, o que pesava na história da nação independente
recém constituída era precisamente os três séculos da colonização
portuguesa. No estabelecimento daqueles marcos que iriam,
progressivamente, facultar-nos uma visão de conjunto, o papel de
Varnhagen seria decisivo. Neste tópico vamos nos limitar ao que nos
pareceu essencial na fase que precedeu o aparecimento dos dois
volumes da História Geral do Brasil, publicados, respectivamente,
em 1854 e 1857.
O próprio Varnhagen limitou este período inicial ao ano de
1850, ao fazer uma relação de suas publicações que colocaria à venda
e que Hans Horch considera como uma autêntica bibliografia.
Tomando isoladamente os de cunho estritamente historiográfico
(nesse período ocupou-se também da poesia brasileira e da
arquitetura portuguesa) mereceriam maior destaque aqueles referidos
a seguir.
“Diário da navegação da armada que foi à terra do Brasil em
1530, sob a capitania mor de Martim Afonso de Sousa, escrita por
seu irmão Pero Lopes de Sousa” (Lisboa, 1839). Coube a Varnhagen
estabelecer o significado da estada no Brasil, entre 1530 e 1532, do
fidalgo português Martim Afonso de Sousa (1500/1564). Compunha-
se sua frota de cinco navios, transportando cerca de 400 pessoas,
tripulantes e passageiros. Entre os últimos muitos nobre ilustres que
tiveram participação no povoamento do país. O objeto do relato,
tornado público por Varnhagen, corresponde às atividades
desenvolvidas pela expedição.
Martim Afonso percorreu toda a costa, desde a foz do
Amazonas até a bacia do Prata e concebeu uma estratégia de
ocupação que posteriormente seria generalizada, com a fundação de
São Vicente. Consistia na escolha de um local abrigado para
construir vila e erigir fortificações, disseminando atividade agrícola
nas proximidades, mediante doação de terras (denominadas
sesmarias) a pessoas capazes de explorá-las. Em seguida ao regresso
de Martim Afonso a Portugal foi o país dividido em capitanias
hereditárias, entregues a nobres portugueses que deveriam mobilizar
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os recursos exigidos por sua exploração. Esse sistema durou mais ou
menos vinte anos, sendo em parte revogado ao criar-se um governo
geral no Brasil e capitanias reais (1549).
No seu primeiro ano de estada no Brasil (1840), editou em
livro --pela Tipografia J. Villeperva, do Rio de Janeiro-- a serie de
artigos publicados em Panorama, que se editava na capital
portuguesa, dedicados ao Descobrimento do Brasil.
Em Lisboa, no ano de 1847, saiu pela Imprensa Nacional “A
narrativa epistolar de uma viagem e missão jesuítica pela Bahia,
Ilhéus, Porto Seguro, Pernambuco, Espírito Santo, Rio de Janeiro, S.
Vicente (São Paulo), etc., desde o ano de 1583 ao de 1590, indo por
visitador o padre Cristovam de Gouveia”. Escrita em duas cartas ao
Provincial em Portugal pelo padre Fernão Cardim, ministro do
Colégio da Companhia em Évora. Segundo indicação de Varnhagen,
o manuscrito (“defeituoso”) encontrava-se na Biblioteca de Évora,
em Portugal. Além das atividades da companhia, fornece
informações que complementam o texto anterior, relativas ao
primeiro século.
Nesse mesmo ano (1847), no Rio de Janeiro foram editadas
as Memórias para a história da Capitania de São Vicente (1797),
de Frei Gaspar da Madre de Deus, prefaciada por Varnhagen.
Completa-se a enumeração pelas “Vidas, elogios ou
biografias de grandes e várias personagens que muito avultam na
história do Brasil.” Esses artigos apareceram sobretudo na revista
portuguesa Panorama, no período indicado, sendo intenção do autor
reuni-las numa publicação autônoma, pretensão que não chegou a
efetivar-se.
Praticamente em todos os números da Revista do Instituto
Histórico, da década de quarenta e início da seguinte, consta
colaboração de Varnhagen. Com exceção da lista de brasileiros ou
colonos estabelecidos no Brasil, condenados pela Inquisição nas
primeiras décadas do século XVIII, e de algumas das biografias antes
referidas, consistem de documentos com os quais se foi deparando e
entendeu que devia copiá-los para guarda da instituição. São de teor
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muito variado. No número do primeiro trimestre de 1850, por
exemplo, figura aquele que foi denominado de “Compêndio histórico
cronológico das notícias da capitania de Mato Grosso”, entre 1778 e
1817.
Pelas indicações precedentes acredito haver demonstrado que
Varnhagen achava-se empenhado em convencer o grupo que assumiu
o encargo de estruturar o Instituto Histórico que todos os esforços
deveriam ser direcionados para a pesquisa das fontes documentais
disponíveis. Naturalmente esse trabalho deveria complementar-se por
sua sistematização, de que daria exemplo com a publicação da
História geral do Brasil.
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códice que possui Southey, mas foram inúteis as buscas que aí fiz
após ele, e no Museu Britânico nem sequer encontrei notícia de
algum exemplar.” Conclui: “nenhum daqueles códices porém é --a
meu ver-- o original e baldados foram todos os meus esforços para
descobrir este, seguindo indicações de Nicolau Antonio, de Barbosa,
de Leon Pinelo e de seu adicionador Barcia.”
Diz ainda que “algumas dessas cópias foram tão mal tiradas
que disso proveio que o nome do autor ficasse esgarrado, o título se
trocasse e até na data se cometessem enganos”
A existência de tantas cópias não deixa de ser expressivo
indicador do sucesso que alcançou em seu tempo e também da
curiosidade e falta de informação sobre o Brasil.
Comparando essas diversas cópias, Varnhagen pode
estabelecer qual delas conteria menos omissões. Na cuidadosa edição
que preparou do mencionado Tratado Descritivo, numerou as
diversas seções, de modo a introduzir as correções, em forma de
apêndice, muitas das quais dizem respeito a denominações que
caíram em desuso.
O texto de Gabriel Soares de Sousa registra a descoberta do
Brasil por Pedro Álvares Cabral mas não refere documentos. Comete
aqui muitos erros históricos, a exemplo da suposição de que o
Tratado de Tordesilhas (1494) tivesse sido negociado por D. João III,
cujo reinado inicia-se em 1521. Varnhagen os corrige no Apêndice
(intitulado Breves Comentários) mas soube valorizar as preciosas
informações sobre o estado da civilização ao longo do litoral, que
conhecia por ter visitado. Sobretudo esse texto há de ter-lhe indicado
as lacunas a preencher.
A descrição em apreço seciona-se do seguinte modo: parte do
rio Amazonas --dando notícia do que sabia sobre incursões que se
tenham efetivado em seu leito-- e segue até o Maranhão. São
registros sucintos, assinalando distâncias percorridas (em léguas),
entre os cursos d´água existentes, e ainda as respectivas coordenadas
geográficas. O trecho seguinte, partindo desse ponto, vai até o Rio
Jaguaribe (Ceará). E assim, por diante, até o extremo Sul
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É interessante destacar que onde o sistema das capitanias
logrou avanços no processo de colonização, Gabriel Soares de Sousa
detém-se na sua descrição. Tomo o exemplo do Espírito Santo.
Assinala que o donatário, Vasco Fernandes Coutinho, “a foi povoar
em pessoa”. Apresenta as informações que pode recolher de sua
biografia, registra os embates com os indígenas, etc. Enfim, busca
estabelecer a sua história.
A essa parcela da obra denominou de Primeira Parte. A
segunda é certamente mais interessante. Começa com o que chamou
de “História da Colonização da Bahia”, a que se segue minuciosa
descrição dos acidentes geográficos, da flora e da fauna. Igualmente
detalhada é a intitulada “notícia etnográfica do gentio Tupinambá
que povoava a Bahia”. Em complemento apresenta informações
“acerca de outras nações vizinhas da Bahia, como Tupinarés,
Aimorés, Amoipiras, Ubirajaras, etc.”
Deste modo, inclusive pelas omissões, o Tratado descritivo
do Brasil em 1587 insere um primeiro esboço do caminho a
percorrer em matéria historiográfica. Varnhagen saberá valoriza-lo
devidamente, na medida em que há de ter-lhe permitido atuar a partir
do que se poderia chamar de “plano de trabalho”. A averiguação de
como se deu a opção por determinado modelo de colonização o terá
levado a localizar o material que permitiu estabelecer o papel
desempenhado pela missão de Martim Afonso de Sousa, entre 1530 e
1532. E, também, de dar-se conta de que os relatórios do Governo
Geral seriam a fonte privilegiada para a reconstituição da história das
diversas capitanias.
Louvo-me das indicações deixadas pelo próprio Varnhagen
acerca do valor que atribuía ao trabalho dos que o precederam. A
propósito da edição do livro de Gabriel Soares de Sousa, pela
Academia de Ciências de Lisboa, escreveria o seguinte: “Em 1825
realizou a tarefa da primeira edição completa a Academia de Lisboa;
mas o códice de que teve de valer-se foi infelizmente pouco fiel, e o
revisor não entendido na nomenclatura das coisas de nossa terra.
Ainda assim muito devemos a essa primeira edição; ela deu
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publicamente importância ao trabalho de Soares, e sem ela não
teríamos tido ocasião de fazer sobre a obra os estudos que hoje nos
fornecem a edição que proponho, a qual, mais que a mim, a deveis à
corporação vossa irmã, a Academia Real das Ciências de Lisboa”.
Esse trecho consta do documento que encaminhou ao Instituto
Histórico em 1851
A correspondência de Varnhagen, que se preservou e foi
publicada, fornece outras elementos para definir o que batizamos de
seu “estilo de trabalho”, servindo de exemplo o que se refere a
seguir.
Na década de quarenta, como foi referido, serviu na
embaixada de Portugal. Em 1846, foi-lhe dada, pelo governo
imperial, a incumbência de verificar na Espanha a existência de
documentação relacionada aos limites do Brasil com as Guianas.
Aliás, no decênio em que serviu em embaixadas da América do Sul
(1858/1867) também tinha por encargo documentar as bases para a
definitiva fixação de nossas fronteiras com os vizinhos (contribuição
que seria assinalada pelo Barão de Rio Branco, a quem coube a tarefa
de levá-la a bom termo).
Veja-se como, sem embargo no zelo no cumprimento das
mencionadas disposições, não o abandonava a preocupação com o
preenchimento de outras lacunas documentais relacionadas à história
do país. Escreve nessa carta (de dezembro de 1846), endereçada ao
Embaixador do Brasil em Portugal (Antonio Vasconcelos Drumond):
“Partindo desta capital (Lisboa) pelo primeiro paquete imediato
àquela data, aproveitei da minha estada em Cadiz para me
desenganar de não existirem ali papeis manuscritos que nos
interessassem. Percorri também as lojas de livros, em geral nessa
cidade mais abastecidas do que nas outras de Espanha, de obras
sobre a América, e disso resultou a compra do Dicionário
geográfico da América, do Coronel Salcedo, feita com
recomendação minha e autorização de V. Excia., por D. José Esteves
Gómez.” E, prossegue: “Em Sevilha, para onde prossegui no
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primeiro vapor, tive mais de dois meses de persistência examinando
o Arquivo das Índias, que era o principal fim de minha missão.”
Como se vê, dedicou toda a existência adulta ao que caberia
referir como a constituição de sólidos fundamentos para a
historiografia brasileira.
A responsabilidade com que encarava essa tarefa explica que,
ao publicar, dois anos antes de falecer, em 1876, a segunda edição
da História Geral do Brasil não a considerava obra acabada, tendo
deixado as indicações da forma pela qual deveria ser
complementada. Encontraria na pessoa de Rodolfo Garcia
(1873/1949) a pessoa que dedicou àquele mister vários anos de sua
vida.
Depois da publicação da primeira versão da História geral
do Brasil, nos meados da década de cinqüenta, ocupou-se dos temas
de que dá conta nas edições adiante relacionadas.
A continuidade da pesquisa
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Irmão, Lisboa), com reedição em 1874. A edição brasileira somente
se daria em 1945.
Em 1872, em Viena, publica estudo bibliográfico dos autores
que contribuíram para tornar usual a denominação de América.
Nesse mesmo ano, no Rio de Janeiro, o Arquivo Nacional publica
textos de sua autoria sobre a Prosopopéia, de Bento Teixeira Pinto e
sobre o livro Peregrino da América, de Nuno Marques Pereira
(1652/1753), sucessivamente reeditado no século XVIII; e, em
Lisboa, pela Tipografia de Castro Irmão, Estudo biográfico de
Salvador Corrêa de Sá e Benevides.
Em 1874, em Viena, texto descritivo do Maranhão.
Em 1878, aparece no Rio de Janeiro, a Biografia de Santa
Rita Durão, como introdução ao seu poema épico “Caramuru”.
No período indicado, preparou a História da Independência
do Brasil, somente publicada em 1916, na Revista do Instituo
Histórico, sendo editada pela Imprensa Nacional, no ano seguinte.
Em que pese essa edição autônoma, na verdade se constitui no tópico
final da História geral, como bem entendeu Rodolfo Garcia.
Merece os comentários que se seguem na medida em que
comprova como era escrupuloso, no tocante às responsabilidades do
historiador.
Na correspondência de Varnhagen com o Imperador Pedro II,
comentada por Hélio Viana (1908/1972) --na apresentação da obra
antes mencionada--, em começos da década de cinqüenta, quando
ultimava a publicação da História geral do Brasil, explica as
razões pelas quais estava em dúvida quanto aos eventos com os quais
a concluiria. Segundo indica, imaginava que seria o ano de 1825,
para “compreender a Constituição; o reconhecimento da Mãe-Pátria
e o nascimento de V.M.I, mas não me foi possível. Tão espinhosa é
por enquanto a tarefa de imparcial marcação desse período,
sobretudo para um nacional. Daqui a anos não será” (No texto
publicado está “não o serei”, que não concorda com o teor da
oração).
Pelo que foi indicado, optou finalmente por 1822.
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Compreende-se a dificuldade de Varnhagen, quando se vivia
pouco mais de uma década na busca dos caminhos para estabelecer o
que foi batizado de “conciliação nacional” e não se sabia se, desta
vez, o país iria alcançar o normal funcionamento das instituições
governamentais. No ciclo em apreço, não devia haver o necessário
distanciamento para escolher os documentos que pudessem dar uma
idéia do que Octávio Tarquínio chamou de “lutas tão ásperas” para
caracterizar os dois decênios que se seguiram à Independência. É
fácil dar-se conta da consistência de seus argumentos se tivermos
presente a incapacidade dos republicanos de valorizar a nossa
primeira experiência de governo representativo, vale dizer do
Segundo Reinado, persistindo no tom planfetário do período em que
se tratava de popularizar a idéia do novo regime, o que até hoje
dificulta conceber instituições capazes de reproduzir o meio século
de estabilidade política que nos proporcionou aquela primeira
experiência.
A opção por levar a História Geral até a Independência terá
tardado tanto muito provavelmente porque se tratava, como era de
seu parecer, empreendimento de “grande responsabilidade não só
com o Brasil como para com Portugal”. A decisão de enfrentá-lo, é
ainda Varnhagen quem esclarece, prende-se a “fatos novos e novas
apreciações (que) se nos apresentaram em vista de novos documentos
e informações fidedignas por nós recolhidas, às vezes inteiramente
em oposição às que se encontram admitidas pelos escritores que nos
têm precedido...”
Aproveita o ensejo para explicitar um dos princípios que,
entende, devem nortear a ação de quem se proponha dedicar-se a
esse tipo de estudo. Escreve: “O historiógrafo não pode adivinhar a
existência de documentos que não são de domínio público e não
encontra, e cumpre com o seu dever quando, com critério e boa fé e
imparcialidade, dá, como em um jurado, mui conscienciosamente o
seu veredictum, cotejando os documentos e as informações orais
apuradas com o maior escrúpulo que, à custa do seu ardor em
investigar a verdade, conseguiu ajuntar”.
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A História da Independência corresponde a um verdadeiro
primor em matéria de utilização da documentação disponível. Assim,
por exemplo, a convicção (ou talvez sobretudo a esperança) da
entourrage de D. João VI, diante da Revolução do Porto, era a de que
não conseguiria sustentar-se. Essa evidência, contudo, é transmitida
através de sucessivos documentos e acaba por saltar às vistas do
leitor pela simples apresentação da correspondência daquelas
autoridades --e do próprio Rei-- com as Cortes de Lisboa, que
acabaram sendo divulgadas. O Ministério da época --ao qual um
partidário da monarquia constitucional como Palmella não conseguiu
ajustar-se, terminando por pedir demissão--, com a anuência de D.
João VI, obviamente tratava de ganhar tempo. Conclui-se que
estavam empenhados na preservação da monarquia absoluta, sem que
essa tese seja alardeada.
Deste modo, a ascensão de Silvestre Pinheiro Ferreira ao
governo sugere que D. João VI convencera-se de que seria obrigado
a negociar. Sua escolha para chefiar o governo correspondia a
acontecimento inusitado no contexto, a ponto de que o próprio, não
tendo tomado conhecimento de dois chamados anteriores do Rei,
acabou sendo conduzido preso a palácio. Silvestre Pinheiro Ferreira
tivera oportunidade de indicar ao Rei a necessidade de antecipar-se à
transição, de modo a trilhá-la de forma pacífica.
Diante da intransigência das Cortes, fracassada a tentativa de
negociação empreendida por Silvestre Pinheiro Ferreira, tornando
impossível a convivência tanto com o Rei como com a nova
liderança emergente no Brasil, não lhe restava outro caminho senão o
de exilar-se na França.
Cito estes fatos para mostrar como o tratamento escrupuloso,
do material histórico disponível, pode facultar nova luz na
compreensão do processo em seu conjunto.
Do que precede acredito ter tornado patente que Varnhagen
estava imbuído dos princípios que, no século XIX, lançaram as bases
das novas regras de estabelecimento da objetividade histórica.
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Indique-se, adicionalmente, que na História geral do Brasil
menciona expressamente cada um dos historiadores que o
antecederam, prestando-lhes o devido tributo.
No tópico subseqüente tentaremos destacar as regras que
Varnhagen procurou estabelecer para a história geral do país, regras
essas que, preservadas sem revestir-se de tom dogmático ou
impositivo, permitiram a gerações posteriores de historiadores
revisitar muitos dos temas então abordados, aprimorando o seu
conhecimento, sem embargo do que se indicará acerca do quadro
atual.
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Seguem-se a reunião das informações que se preservaram
sobre os aborígines e do contexto histórico em que se dá o
descobrimento.
Quanto aos indígenas, considero que a informação reunida
por Varnhagen deve ser preferida à dos jesuítas que se ocuparam dos
primeiros passos da catequese. Sem embargo do papel que
desempenharam no estabelecimento das bases de um dos elementos-
chave da unidade nacional --a religião cristã--, deram preferência
àqueles aspectos da cultura aborígine que poderiam facilitar a
transmissão de sua mensagem. Outras fontes a que recorreu
Varnhagen, a exemplo de Gabriel Soares de Sousa, a descreveram
sem segundas intenções sendo talvez mais fidedignas. A verdade é
que o convívio com os portugueses tornou cada vez mais difícil
apreendê-la em sua pureza original, como se pode comprovar dos
percalços experimentados por Couto de Magalhães (1837/1898),
nesse mister, conforme se pode ver dos resultados de suas pesquisas,
sistematizadas em O selvagem (1876).
No caso, à historiografia competiria dar conta dos seus
valores originários, incumbência que não abrange avaliações. Não se
trata também de evitar que sejam efetivadas mas apenas de precisar
que tal deve dar-se em lugar próprio.
Ainda quanto a esse aspecto, na época de Varnhagen
acreditava-se ser possível estabelecer, em bases científicas, a sua
origem. Embora se haja detido nesse aspecto em outro lugar --
L´origine touraniene des Americans Tupi-Caribes et des anciens
Egyptiens indiqueée par la Philologie comparée et notice d`une
emigration em Amerique effetuée à través l´Atlantique siécles
avant notre era.Vienne, 1876--, tudo indica que o interesse por esse
tipo de especulação haja desaparecido. De todos os modos, não faz
muito sentido, na História do Brasil, deter-se na reconstituição desse
debate.
No que respeita ao descobrimento, Varnhagen procurou
escrupulosamente registrar não só o contexto da época como as
conquistas da navegação portuguesa e o fato de que, no período em
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que Cabral aporta a Porto Seguro, outros navegadores registraram a
existência dessa parte do continente.
Entendo que a abordagem clássica e definitiva sobre o tema
coube a Capistrano de Abreu (1853/1927) no ensaio com esse título
que, acrescido de “O Brasil no século XVI”, constitui a tese de
concurso a que se submeteu no Pedro II (1881). Desde então tornou-
se praxe publicá-los em conjunto. Publicação autônoma do primeiro
ensaio pode ser acessado em www.cdpb.org.br/leiturabasica
Começa deste modo: “Três nações da Europa disputaram a
glória de ter descoberto o Brasil: a França, a Espanha e Portugal.
Vejamos em que se assentam essas pretensões”. Consegui dar à
pendência solução magistral.
O elemento unificador dos três primeiros séculos corresponde
ao estabelecimento e efetivação da política portuguesa de
colonização. Parece tautológico mas assim não foi entendido pelos
desbravadores de nossa historiografia. Tenha-se presente o exemplo
de Southey, que fixou como a chave da compreensão do processo a
disputa entre potências estrangeiras e a comunidade de destino
histórico entre o Brasil e os países limítrofes.
Varnhagen, por sua vez, foi logo ao ponto. Reconstitui
minuciosamente os percalços da definição da mencionada política e
enfatiza o papel de Martim Afonso de Sousa. A expedição desse
nobre português mereceria o devido destaque, não só descrevendo-a
como detendo-se no que colheu da própria expedição bem como o
sumário de seus resultados imediatos. Tais aspectos mereceram nada
menos que três capítulos.
Seguindo o alvitre de Gabriel Soares de Sousa trata, em
seguida, das “seis capitanias, cuja colonização vingou”. Nesse
particular, vale transcrever a referência ao açúcar.
Escreve: “Foi igualmente essa capitania (São Vicente) a
primeira que apresentou um engenho de açúcar moente e corrente,
havendo para esse fim o donatário feito sociedade com alguns
estrangeiros entendidos nesse ramo, como os Venistes, Erasmos e
Adornos, sem dúvida no Brasil mestres e propagadores de tal
21
indústria, que primeiro permitiu que o país se pudesse reger e pagar
seus funcionários, sem sobrecarregar o tesouro da metrópole. Se
alguns destes não eram já vindos das ilhas da Madeira e São Tomé,
não há dúvida que muitos dos principais operários daí vieram, não só
para o Brasil, como para as colônias tropicais da América espanhola,
onde ainda são portugueses muitos nomes nos engenhos, como
safra, chumaceira, etc.”
É interessante frisar o fato de que tivesse desde logo
assinalado qual o significado do que, mais tarde, seria batizado de
“modelo agro-exportador”. Este é que permitiu ao Brasil, naquele
tempo, “pagar as contas”, como de resto tem ocorrido ao longo do
tempo, embora contestado em toda a nossa história, mesmo em
momentos de grandes riscos para a nossa sobrevivência como na
transição do trabalho escravo para o livre, até hoje satanizada por
expressivos segmentos da intelectualidade.
Varnhagen dedica capítulo autônomo à vida dos primeiros
colonos e suas relações com os índios, logo consignando que
começaram por adotar muitos de seus usos habituais, enumerando-
os. Dizem respeito basicamente a espécies vegetais incorporadas à
alimentação, palavras, etc. Parece-lhe contudo que, no tocante ao
trabalho --que se revelou uma questão essencial, cabe enfatizar--
deixaram de atentar para o hábito que tinham de trabalhar poucas
horas, evitando fazê-lo na parte mais quente do dia. Vista à distância,
mais parece uma ilusão, certamente acalentada pelo desconforto que
revela, no capítulo seguinte, em relação à alternativa adotada
(trabalho escravo). A exemplo do comum dos conservadores
brasileiros da época, tinha presente os riscos que enfrentava o país
no imperativo da transição para o trabalho livre. Se não fosse
encontrada uma saída --como veio a ocorrer com a invenção do
original sistema de parceria (que combinava trabalho remunerado
com atividade empresarial autônoma)-- iríamos enfrentar uma crise
da qual ninguém sabe qual seria o desfecho.
Duas inferências podem ser efetivadas da circunstância
descrita. Primeira: mesmo um historiador escrupuloso como
22
Varnhagen pode deixar-se influir, na análise de determinado evento,
por uma preocupação ocasional. Segunda: a importância para a
normal sobrevivência do país de que se revestia, na segunda metade
do século XIX, a eliminação do trabalho escravo de modo a
assegurar a manutenção do modelo agro-exportador. O mínimo que
se pode dizer dos que, ainda hoje, nutrem a convicção de que a
pequena propriedade, conduzida por colonos estrangeiros, poderia
desempenhar tal papel é que não sabem fazer contas.
Depois de descrever os aspectos enumerados --que, sem
dúvida proporcionam uma idéia (estática) do Brasil como um todo,
no ciclo subseqüente à descoberta--, no formato idealizado por
Varnhagen a fim de reconstituir a sua história, chega-se ao
estabelecimento do governo geral (Capítulo XV). Completa o que, na
sua visão, seria o essencial: a política portuguesa de colonização,
elemento constitutivo daquilo que viemos a ser nos três primeiros
séculos.
A organização do governo geral deu-se em 1549,
praticamente meio século após a descoberta. No período
transcorrido, evidenciaram-se duas questões prioritárias: a defesa e a
organização de uma atividade produtiva que pudesse, como foi
referido, “pagar as contas”, sem embargo de que teria
prosseguimento a pesquisa de riqueza mineral, basicamente ouro e
diamantes. No registro do evento, Varnhagen chama a atenção para
um outro aspecto.
Eis como o assinala: “Resolvido o governo da metrópole a
delegar parte de sua autoridade em todo o Estado do Brasil num
governador geral, que pudesse coibir os abusos e desmandos dos
capitães-mores donatários, ou de seus locotenentes ouvidores, que
acudisse às capitanias apartadas em casos de guerras dos inimigos ou
de quaisquer arbítrios, autorizando que fiscalizasse enfim os direitos
da coroa, conciliando ao mesmo tempo os dos capitães e os dos
colonos, determinou fixar a sede do governo geral na Bahia, por ser o
ponto mais central, com respeito a todas as capitanias.”
23
A questão nova para a qual chama a atenção --a necessidade
de assegurar-se a Lei e a Ordem-- viria a merecer aprofundamento na
obra de Oliveira Viana (1883/1951), sobretudo em Populações
meridionais do Brasil (1920). O aprofundamento em causa repousa
na análise da forma de que se revestiu a organização da atividade
produtiva central (grandes fazendas e engenhos), assumindo ao fim
dos três primeiros séculos a feição de autênticos clãs. O país corria o
risco da anarquia que certamente resultaria se diante dos chefes
desses clãs não se tivesse erguido a autoridade do que denomina de
capitães gerais (autoridades fixadas nas capitanias onde as
populações foram se deslocando para o interior ou somente neste se
localizassem, a exemplo de São Paulo e Minas Gerais) para
distinguir dos capitães-mores, denominação que lhe parecia deveria
ser usada por referência a esse tipo de autoridade que logo foi
instituída nos núcleos populacionais do litoral.
A tese de Oliveira Viana, que nos parece bastante consistente,
tem o mérito de bem precisar o papel da aristocracia rural no
povoamento do país, sem idealizá-la, ao mesmo tempo em que fixa
com propriedade o papel do Estado. Enterra a simplificação que seria
popularizada, segundo a qual o país “não tinha povo, só Estado”.
Ainda no que respeita ao tema da colonização, cumpre
consignar a contribuição definitiva de Capistrano de Abreu ao
detalhar devidamente o que chamou de “caminhos antigos e
povoamento”. Embora Hélio Viana, na qualidade de um dos
principais estudiosos de sua obra, considere que os Capítulos de
História Colonial formam um todo que deve ser lido (ou estudado)
em conjunto, o próprio Capistrano reuniu outros ensaios dando-lhe o
título antes referido, que é justamente uma síntese extraordinária do
papel da iniciativa privada na ocupação do interior do país.
Enfim, bem fixadas as características da política portuguesa
de colonização, para Varnhagen os acontecimentos passariam a ser
descritos em períodos históricos com certa homogeneidade. No
primeiro século, toma por base, exclusivamente, os governos gerais -
-talvez para fazer sobressair o seu entendimento de que, com a sua
24
criação ganhamos fonte documental primorosa--, detendo-se na
década de oitenta para a introdução de uma espécie de balanço geral,
data escolhida mais para homenagear os estudiosos precedentes
como Cardim, Gandavo ou Gabriel Soares de Souza do que registrar
o início do período filipino. Nas centúrias subseqüentes, com tantos
eventos extraordinários como as guerras holandesas, no segundo, e o
Tratado de Madrid e a mudança radical da coroa portuguesa de
subserviência à Igreja Católica, com a ascensão de Pombal, a
subdivisão teria que refletir a nova realidade.
Rodolfo Garcia assinala que “a História do Brasil relativa ao
século XVIII...é obra exclusiva de Varnhagen, o primeiro a escrevê-
la integralmente, como bem observou Capistrano de Abreu. Para o
tempo em que foi escrita, pode considerar-se completa ou quase
completa”. Faz em seguida uma ponderação que pode ser
considerada como adequada formulação de outro princípio que rege a
historiografia, enriquecendo o legado de Varnhagen nessa matéria.
Vejamos de que se trata.
Escreve: “Mas a verdade é que aquele período histórico, que
abarca os descobrimentos das minas, os movimentos
emancipacionistas, as lutas com os espanhóis no Sul, que testemunha
o povoamento insólito do Brasil, sua maior expansão territorial, sua
mais acentuada importância política e administrativa: aquele período
tem sido, depois de Varnhagen, objeto de pesquisas mais acuradas,
de estudos mais aprofundados, à medida que os depósitos de
documentos se tornam mais acessíveis, e à medida também que
forem surgido monografias especiais elucidativas de fatos nele
enquadrados.”
Esse precisamente o entendimento que cabe preservar do
significado do trabalho desenvolvido pelos que criaram a
historiografia nacional, entre os quais Varnhagen ocupa lugar dos
mais proeminentes.
A esse propósito não poderia deixar de registrar aqui a visão
renovada que tem sido proporcionada do mencionado século XVIII,
justamente seguindo uma das pistas abertas pelo insigne mestre.
25
Como antes se referiu, Varnhagen registra a atuação da
Inquisição no Rio de Janeiro, na primeira metade do século XVIII, a
fim de destacar o caráter odioso da instituição.
O significado da presença do Santo Ofício, em nossa história,
corresponde a um dos aspectos mais enriquecidos pela investigação
subseqüente. Assinalo o que me parece essencial.
Omer Mont´Alegre (1913/1989) havia correlacionado a
intensificação da atividade inquisitorial, no período mencionado, isto
é, primeira metade do século XVIII, ao desmantelamento do
empreendimento açucareiro --na obra Açúcar e capital (Rio de
Janeiro, Instituto do Açucar e do Álcool (IAA), 1974). De fornecedor
praticamente monopolista no século XVII e início do seguinte, chega
à condição de participante marginal, nesse mercado, no fim da
centúria (13,7% das exportações mundiais em 1796).
Louva-se da freqüência com que se encontram senhores de
engenho e outros ligados àquela atividade, nos dados então
conhecidos sobre os autos-de-fé, bem como na denúncia efetivada,
nesse sentido, por D. Luís da Cunha (1662/1749) em documentos
dirigidos ao Rei e outras autoridades que, ainda que tudo indique
tivessem sido do conhecimento de setores da elite, quando de sua
elaboração, somente no início da transição para a monarquia
constitucional, devida à Revolução do Porto (1820), vieram a ser
divulgados com o título de Testamento político, obra posteriormente
reeditada em diversas oportunidades, a partir de sua inclusão nas
Obras inéditas de D. Luís da Cunha (Lisboa, Imprensa nacional,
1821). Nas indicações apresentadas ao Rei encarece a necessidade de
ser proibido o confisco dos bens dos senhores de engenho, a que se
dedicava a Inquisição, nada indicando que haja sido atendido.
A confirmação definitiva dessa hipótese resultaria do
extraordinário trabalho de pesquisa desenvolvido pela professora da
USP, Anita Novinski. Conseguiu identificar a profissão de parcela
representativa dos processados pela Inquisição no mencionado
período, permitindo concluir que cerca de 70% eram pessoas
abastadas, entre estes senhores de engenho e outros personagens
26
ligados ao açúcar. A sistematização desses estudos constam de Rol
dos culpados. Fontes para a história do Brasil --século XVIII (Rio
de Janeiro, Expressão e Cultura) e Inquisição.prisioneiros do
Brasil. Séculos XVI a XIX (São Paulo, Perspectiva, 2009).
A intensificação da atividade do Santo Ofício, na primeira
metade do século XVIII, no governo de D. João V, sendo inquisidor
o cardeal D. Nuno da Cunha, acha-se igualmente documentada por
Francisco Bethencourt (História das Inquisições --Portugal,
Espanha e Itália, Lisboa, 1987).
De minha parte, efetivei a periodização da Inquisição em
Portugal (Momentos decisivos da história do Brasil --Martins
Fontes, 2000).
Tivemos oportunidade de referir os escrúpulos de Varnhagen
no tocante à abrangência da História Geral do Brasil, optando por
encerrá-la ordenando a vasta documentação que conseguiu reunir
acerca da Independência.
O imperativo de preservarmos a
herança cultural de nossos antepassados
27
o cientificismo com efeitos catastróficos para a historiografia,
presentes sobretudo no que Arno Wehling denomina de
“reavaliações contemporâneas” e iremos referir.
A tradição historiográfica digna do nome, mesmo quando não
registra especificamente a Varnhagen, soube preservar os princípios
que, de fato, eram consensuais aos criadores da historiografia
brasileira. Arno Wehling refere o caso de Oliveira Viana que, como
diz “implicitamente condenou a visão de Varnhagen através de um
eloqüente silêncio”, não obstante o que, muitas das “teses por ele
defendidas já se encontravam em Varnhagen”. Outros historiadores,
que enumera, “se identificaram com o seu espírito”.
A reavaliação contemporânea, desde as décadas de sessenta e
setenta, notadamente por influência francesa, consiste, como diz,
“num assalto às posições de Varnhagen... sobretudo com base em
posições marxistas e naquelas vinculadas ao movimento dos Annales
e da Nouvelle Histoire.” Essas posições, assinala, refletiram-se sobre
o ensino de primeiro e segundo graus, adiantando que, “no ensino
universitário e na pesquisa, inspiradores do ensino primário e
secundário, a rejeição foi completa”.
De minha parte, entendo que a rejeição não atinge apenas
Varnhagen mas o conjunto da historiografia e às diversas linhas de
pesquisa dedicadas á cultura brasileira, de um modo geral.
Essa avassaladora ocupação da praça representa
empobrecimento cultural de tal magnitude que exige uma reação à
altura.
O Brasil jamais ultrapassará o subdesenvolvimento --que
longe está de limitar-se à economia-- se não for capaz de avaliar com
propriedade as contribuições daqueles que nos precederam. Graças à
simples comemoração dos quinhentos anos --que parece ter sido
esquecida quando transcorreu apenas uma década-- perdemos o
direito de continuarmos nos conformando com o atraso, reconhecido
em análise isenta de qualquer domínio do conhecimento, a pretexto
de que seríamos “um país jovem”.
28
Encontrar as formas de permitir que as novas gerações
tenham acesso às mencionadas contribuições é um dever de que não
podemos nos furtar.
ANEXOS
29
domínio espanhol (que batiza de “usurpação”). Mas a razão talvez
tivesse sido outra e até a insinua, como iremos referir. O certo
entretanto é que não há um texto contínuo sobre o Brasil mas
entremeado pela história de países vizinhos. Vejamos alguns
exemplos.
No primeiro volume, depois de indicar as viagens ao Brasil e
registrar a de Cabral, embora a detalhe, logo a mistura com as de
Américo Vespuci e passa ao capítulo II onde o tema é a descoberta
do Rio da Prata. Embora neste figure a referência à subdivisão do
Brasil em capitanias, não dá qualquer indicação de seu significado,
em termos de política portuguesa de colonização. Nem parece ter-se
dado conta de que proviria da Expedição de Martim Afonso de
Sousa. A par disto, o relato acha-se entremeado por indicações
relativas à disputa entre europeus pela posse do território. Cito: “Por
estes mesmos tempos se formou outra capitania, a de Pernambuco.
Um navio de Marselha ali havia estabelecido uma feitoria, deixando
nela setenta homens, pensando em manter a possessão. Mas o navio
foi apresado na volta, e sabendo-se assim em Lisboa do ocorrido
imediatamente se tomam medidas, para reaver o lugar.”
Não satisfeito com esta forma de apresentar a sua História do
Brasil, o capítulo III está dedicado à fundação de Buenos Aires. No
capítulo IV, que se segue, supostamente volta ao Brasil, desta vez
dedicando-se ao Maranhão. Mas o projeto de ocupação de que se
trata diz respeito a súdito de Espanha e explicita tratar-se do
“privilégio de conservar as suas possessões na Nova Espanha”.
Somente na parte final alude-se ao fracasso desta tentativa espanhola
de colonização mas à portuguesa, que a sucedeu, dedica umas poucas
linhas à presença do donatário, acrescentando “do qual não se teve
mais notícia”.
No capítulo seguinte (V) o tema é o Prata, com ênfase no
Paraguai passando a ênfase, no capítulo VI, ao Peru. No VII, volta ao
Brasil mas para se ocupar de Hans Staden.
Estamos num terço do volume I, quando se chega ao governo
geral.
30
Qual a imagem que nos transmite da área descoberta há
poucos séculos? Primeiro, no que se refere especificamente à
América do Sul, não haveria distinções a assinalar entre as partes
componentes. A potência que destaca não é Portugal mas a Espanha.
No que respeita propriamente ao Brasil, sobressaem as disputas por
sua posse enquanto o domínio na parcela restante (Nova Espanha)
parece inconteste. Não se apercebeu da mudança estabelecida na
política portuguesa de colonização em decorrência da expedição de
Martim Afonso de Sousa.
No restante deste primeiro volume, como de resto nos dois
subseqüentes (o último, terceiro, chega a Pombal, à expulsão dos
jesuítas e ao que chama de “progresso no correr do século XVIII e
seu estado ao tempo de passar ali a sede do governo”), a tônica não é
diversa: disputa pela posse e integração ao conjunto. Em relação ao
seu propósito há uma indicação esclarecedora no III volume (pág.
1428 da edição do Senado). Transcrevo-a: “Se os ministros ingleses
tivessem previsto quão depressa iam ver-se envolvidos, numa guerra
com a Espanha, teriam logo tomado parte na justa contenda do Rei
de Portugal, a respeito de Nova Guiana, em vez de lhe excitarem
ressentimento e a má vontade, intervindo unicamente para emplastar
a desavença teriam encontrado na América poderoso aliado”.
Cumpre esclarecer que estas indicações dizem respeito
apenas à questão do modelo adotado por Southey --contrastando-o
com o que preside à História geral do Brasil-- e nem de longe por
em causa os méritos de sua obra. Prestou-nos enorme serviço, dando
a conhecer aos ingleses algo acerca do Brasil. Há de ter contribuído
para torná-los nosso aliado, quando passamos a carecer do
reconhecimento internacional à vista da Independência.
31
me que seria adequado proporcionar ao leitor uma breve notícia de
seu conteúdo. Ver-se-á que a associação em apreço prende-se
sobretudo ao fato de que, tratando-se de documentar o feito
considerado, a grande autoridade que os autores invocam é a do
fundador da nossa historiografia. Com efeito, os documentos que
permitiram fazer-nos uma idéia dos percalços experimentados por
aquela maravilhosa aventura, praticamente em sua totalidade,
tornaram-se acessíveis graças à dedicação daquele mestre, como tem
sido apontado e pode-se ver do seu livro básico.
A referência é a seguinte: História da Colonização
Portuguesa do Brasil. Edição comemorativa do primeiro centenário
da Independência do Brasil. Coordenação de Carlos Malheiros Dias.
Porto: Litografia Nacional, 1921-1924, 3 vols. A obra acha-se
fartamente ilustrada e tem estas dimensões: 37 x 28 cm.
Indique-se que a publicação intitula-se, merecidamente, sem
qualquer dúvida, de “monumental”.
Na ilustração de abertura constam estas notas: Planisfério de
Jerônimo Marini (1511), onde pela primeira vez aparece a América
do Sul com a denominação de Brasil. O volume I inclui a carta de
Pero Vaz de Caminha a El-Rei D. Manuel, versão em linguagem
atual, com anotações da doutora D. Carolina Michaelis de
Vasconcelos, professora de Filologia, na Faculdade de Letras da
Universidade de Coimbra, v. 2., p. 86-99.
Os documentos inseridos nos diversos volumes, geralmente
localizados por Varnhagen, são transcritos em fac-símile e, por
vezes, acompanhados da impressão do seu conteúdo com a ortografia
da data da edição. A presença de Varnhagen é assinalada logo no
início ao ser transcrito o fac-simile das recomendações que levaram
Cabral a afastar-se da costa. A esse propósito teria oportunidade de
esclarecer na História geral do Brasil: “Nas instruçõesescritas que
recebeu e das quais chegaram providencialmente às nossas mãos
alguns fragmentos da maior importância, foi-lhe recomendado que na
altura de Guiné se afastasse quanto pudesse da África, para evitar
suas morosas e doentias calmas.Obediente a essas instruções, que
32
haviam sido redigidas pelas insinuações de Gama, Cabral se foi
amarando da África, e naturalmente ajudado a levar pelas correntes
oceânicas ou pelágicas, quando se achava com mais de quarenta dias
de viagem, aos 22 de abril, avistou a Oeste terra desconhecida” Em
nota indica que “o fac-simile ou borrão da primeira folha do
rascunho ou borrão dessas instruções, por nós encontrada e mandada
gravar” foi oferecido à Torre do Tombo.
A atribuição a Vasco da Gama --de responsabilidade de
Varnhagen-- veio a ser confirmada pelos eruditos portugueses que
prepararam a obra que estamos considerando, apenas com a precisão,
efetivada por Antonio Baião, de que seriam notas tomadas pelo
secretário de Estado Alcaçova Carneiro, ouvido o parecer de Vasco
da Gama como perito na viagem”
O primeiro volume está intitulado “Os precursores de Cabral”
e inicia-se, como foi indicado, pelo fac-simile das instruções
recebidas por Pedro Álvares Cabral. Tem como propósito atestar que,
“a partir de certo ponto abandonou-se a circunavegação costa a costa,
aventurando-se em alto mar.” A tese pretende justificar a transcrição
de documentos que, no entender dos compiladores, permitiram
deduzir da intencionalidade da descoberta. É apresentado o inteiro
teor do Tratado de Tordesilhas.
Além dos documentos --todos antecedidos por longas
introduções--, este primeiro volume contém a caracterização da Era
Manuelina, devida a Júlio Dantas ( capítulo I); da “arte de navegação
dos portugueses” --Prof. Luciano Pereira da Silva ( capítulo II); “Dos
falsos precursores de Álvares Cabral” --Prof. Duarte Leite (capítulo
III); e de Duarte Pacheco Pereira, intitulado “Precursores de Cabral”
(capítulo IV). Ao todo o volume tem 226 páginas, em grande número
ocupadas por ilustrações.
O volume II intitula-se “A epopéia dos litorais”, achando-se
composto apenas por ensaios de eruditos portugueses, a saber: A
expedição de Cabral --Jaime Cortezão (capítulo V); De Restelo a
Vera Cruz --H. Lopes Mendonça (capítulo VI); A semana de Vera
Cruz --C. Malheiro Dias (capítulo VII); A expedição de 1501 --C.
33
Malheiro Dias (capítulo VIII); O mais antigo mapa do Brasil --Prof.
Duarte Leite (capítulo IX); A expedição de 1503 --C. Malheiro Dias
(capítulo X); O comércio do Pau Brasil --Antonio Baião (capítulo
XI); e O descobrimento do Rio da Prata --F. Esteves Pereira
(capítulo XII). O volume abrange das páginas 227 a 458.
O terceiro e último volume saiu a lume em 1924 e intitula-se
“A Idade Média Brasileira” (1521-1580). Quer marcar a mudança de
orientação, em seguida à morte de D. Manuel I (fins de 1521). Na
Introdução, escreve Malheiro Dias: “A Índia dos esplendores
inesperadamente aparecia transformada em sugadouro de cabedais e
de vidas.” A seu ver, iria dar lugar “à reação do organismo nacional
contra os males de um aparente gigantismo, que produziu a obra
criadora de colonização do Brasil.”
O volume III segue o modelo do antecedente, isto é, compõe-
se de ensaios eruditos (desta vez com a participação brasileira),
adiante relacionados. Assinale-se que o livro obedeceu a numeração
autônoma das páginas, o mesmo acontecendo com os capítulos.
Segue-se a enumeração:
Capítulo I --A Metrópole e suas conquistas nos reinados de
D. João III, D. Sebastião e
Cardeal Henrique –C. Malheiro Dias (p. 2-58)
Capítulo II --A expedição de Cristovam Jacques –Antonio
Baião e C. Malheiro Dias .
(p.59-96)
Capítulo III –A expedição de Martim Afonso de Sousa --
Jordão de Freitas (p.97-166)
Capítulo IV –A solução tradicional da colonização do Brasil -
-Prof. Paulo Meréa
(p. 167-193)
Capítulo V --Os primeiros donatários --Pedro Azevedo (p.
194-220)
Capítulo VI --O regime feudal das donatarias --C. Malheiro
Dias (p. 221-258)
Apêndice de documentos ( p. 259-286)
34
Capítulo VII --A nova Lusitânia --Oliveira Lima ( p. 287-
326)
Capítulo VIII --A instituição do governo geral --Pedro
Azevedo p. 327-344
Apêndice de documentos ( p. 350-383)
Antonio Paim
35
autônoma --e logo no início-- a informação de que dispunha da
atuação da Inquisição, no Rio de Janeiro, no século XVIII, razões
essas que aponto na breve nota introdutória que a antecede..
No tomo primeiro, não chega a completar-se o relato
dedicado ao primeiro século, a que se refere a transcrição
subsequente, merecendo entretanto breves comentários.
Na transcrição em causa, cujo propósito consiste em facilitar
o conhecimento do magistral trabalho desenvolvido por Varnhagen,
no estabelecimento dos marcos essenciais, a limitamos aos capítulos
que fixam os rumos que seriam seguidos para assegurar a ocupação
do território, dada a circunstância de não ter sido localizada riqueza
mineral, de imediato, ao tempo em que a posse era disputada por
potências européias concorrentes.
Pareceu-nos que o mencionado objetivo seria alcançado pela
apresentação das secções VII; VIII e IX, dedicadas à expedição de
Martim Afonso (1530) e seus resultados imediatos. Para definir o
caminho a seguir, incumbiu seu irmão de fazer uma viagem
exploratória, de que deu conta em documento localizado por
Varnhagen. Concebeu uma estratégia de ocupação que depois seria
generalizada. Segue-se a secção XV, em que aborda a criação do
governo central na Bahia (1549). Por fim, no que respeita ainda ao
século XVI, transcreve-se a Secção XIII (com que se inicia o Tomo
Segundo) que insere uma espécie de balanço. Intitula-se “O Brasil
em 1584”, e tem o propósito de render homenagem a Gabriel Soares
de Sousa, autor do Tratado Descritivo do Brasil. A publicação do
que chamaríamos de “edição crítica” desse texto seria o primeiro
trabalho historiográfico desenvolvido por Varnhagen e muito
influenciaria no rumo que adotou e empreendeu. Não conseguiu
determinar a data em que teria sido escrito (na edição de que se
incumbiu havia adotado 1587), questão a que Rodolfo Garcia
dedicou uma de suas notas.
A parte restante desse tomo segundo contém indicações sobre
a colonização do Norte e
36
as guerras holandesas. A estas acham-se dedicadas as últimas
secções, a saber:
37
Histórico, onde se diz o seguinte: “Os verdadeiros missionários
foram os Apóstolos de Cristo e são aqueles que não têm terras, nem
rendas, nem propriedades, nem outros bens, alguns aonde assistem, e
não aqueles que, com título de serviço de Deus e bem das almas,
andam procurando terras e mais terras, com o pretexto de que são
para os índios. O título é santo: o intuito é diabólico: porque com o
seu nome se procuram as terras e os índios, para se servirem deles
como escravos, para todas as suas lavouras, comércios, negócios e
granjeiros.”
A situação descrita provocou atritos dos mais sérios na região
abrangida pelo Estado do Maranhão, notadamente no Pará, onde os
moradores chegaram a levantar-se em armas para expulsar os
jesuítas, consumada em sucessivas oportunidades e em várias
localidades. Manifestações contra a Ordem tiveram lugar mesmo em
São Luís, tendo se mobilizado em, favor dos colonos portugueses, os
órgãos que então eram os autênticos institutos da representação
popular, as Câmaras Municipais.
Varnhagen tinha conhecimento da Crônica da Missão dos
Padres da Companhia de Jesus no Estado do Maranhão, de
autoria do padre jesuíta João Filipe Bettendorff, considerado como o
depoimento mais confiável do mencionado conflito. Nessa obra há
mais de um “livro” (partes em que o autor a subdividiu) com o título
de “Levantamento do povo do Maranhão e do Pará contra os padres
da Companhia de Jesus”. O período abrangido pela Crônica
compreende a segunda metade do século XVII (o segundo da
colonização). O Senado Federal editou, em 2010, a versão integral
desse documento, que tem nada menos que 803 páginas.
As razões do conflito eram claras. Varnhagen refere que os
jesuítas dispunham de “22 grandes fazendas de gado e engenhos de
açúcar” na mencionada região. Posteriormente passou-se a dispor de
levantamentos circunstanciados desse patrimônio, com base nos
registros efetivados quando se deu a sua expulsão, decretada por
Pombal. Ficou estabelecido, por exemplo, que as fazendas que
haviam criado na ilha de Marajó contavam com mais de cem mil
38
cabeças de gado. A fazenda de Santa Cruz (no Rio de Janeiro) era
considerada a maior em todo o Centro-Sul. Sendo os índios a mão de
obra empregada, qual a natureza desse vínculo? Varnhagen formulou
essa questão que não foi respondida pelos que saíram em defesa dos
jesuítas, argumentando com o papel que desempenharam na
disseminação da religião, que ninguém contesta, nem tampouco a
importância de que se revestiu na preservação da unidade nacional.
Entendo ser suficiente o que se referiu, sendo desnecessária a
transcrição de textos do autor, dando preferência a outros eventos.
Entre estes, aqueles em que chama a atenção para a ação do
Santo Ofício na primeira metade do século XVIII. Antecedo-a de
uma nota em que destaco ter resultado na desorganização do
empreendimento açucareiro, de onde proveio a maior parcela da
receita de nossas exportações nos três primeiros séculos.
Varnhagen referiu mas não deu maior desenvolvimento às
bandeiras, que desempenharam papel destacado na disseminação do
povoamento. Capistrano é que feriu o tema, inclusive mostrando
como a pecuária resultou de sua atuação. Contudo, é fora de dúvida
que o bandeirantismo nunca recebeu de nossa parte a atenção e
destaque que merecia. Seria um grande tema para o cinema, a
exemplo da exploração que Hollywood deu à Marcha para o Oeste
nos Estados Unidos.
Em compensação, deteve-se nos incidentes que seriam a
origem da disputa, que se tornaria secular, em torno do controle do
acesso à bacia do Prata. Como era de seu estilo, mobilizou a
documentação disponível. Teria amplos desdobramentos, a exemplo
do Tratado de Madrid, nesse terceiro século; a opção pela separação
do Uruguai, logo no início da Independência –e mesmo o desfecho
colossal que seria a Guerra do Paraguai--, não pareceu-nos essencial
quando nos propomos apenas a manter viva a presença de Varnhagen
e assegurar a possibilidade de que as novas gerações tenham dela
notícia.
No que respeita ao tomo quarto, dão uma idéia do
desenvolvimento da obra as seções XLV –D. José I e Pombal.
39
Administração Josefina. Letras; e, XLVII -Idéias e conluios em
favor da Independência em Minas. Adicionalmente, permitem situar
a espécie de conservadorismo da elite que logrou facultar-nos uma
experiência bem sucedida de governo representativo, a que pertencia
Varnhagen.
A transcrição se conclui com textos da parte dedicada à
Independência. O propósito é dar uma idéia do volume da
documentação que mobilizou para concluí-los.
40
Brasil. Henrique Montes. Martim Afonso de Sousa. Poderes
que trazia. Pero Lopes de Sousa. Reclamações de França.
Negociações diplomáticas importantes.
41
grande império, a metrópole aguardava acaso para isso melhor
ocasião. A glória que Portugal adquiriu na Ásia custou-lhe,
entretanto, a perda de muita da sua população, e o perverter
em parte a índole dos seus habitantes, com tantas piratarias e
crueldades. Em virtude delas, o têm coberto de baldões, como
se as crueldades e as piratarias não tivessem em todos os
tempos sido apanágio das conquistas. Esses heróis da
antiguidade, que, em geral, só contemplamos pelo aspecto
maravilhoso, também praticaram muitas crueldades e muitas
injustiças; porém como aos panegiristas, que nos transmitiram
seus feitos, não faltou manhoso artifício para no-lo contarem a
seu modo, ocultando tudo quanto lhes não servia ao
panegírico, e nem todos os que lêem são pensadores, sucede
que muitos, inconseqüentemente, louvam e admiram na
história como heroicidades feitos idênticos aos que em outra
época, ou em outro país, condenam como misérias e
pequenezas desta ou daquela geração. Se de todas as
conquistas dos Gregos e dos Romanos tivéssemos histórias
escritas pelos seus inimigos ou rivais, talvez que não
admirasse o mundo tantas proezas, nem tantos heróis.
Enquanto, porém, Portugal se via a braços com grande
número de inimigos no litoral e mares da Ásia, onde, em 1521,
a sua armada constava nada menos que de uns oitenta e tantos
vasos (Doc. da Torre do Tombo), muitos armadores da
Bretanha e Normandia, já avezados à navegação das costas de
Guiné e da Malagueta, passavam não só a alguns excessos de
pirataria com os galeões que vinham da Índia, como a traficar
nas terras do Brasil; onde adquiriam quase de graça gêneros,
que nos mercados europeus obtinham grandes valores, e os
quais lhes deviam produzir maiores vantagens do que aos
contratadores portugueses; por isso mesmo que não tinham,
como estes, de indenizar a coroa pela faculdade de
comerciarem. – Debalde havia Portugal proibido com duras
penas aos seus “mestres de cartas de marear’ o fazerem pomas
42
ou esferas terrestres, e o marcarem nos mapas as terras ao
suldo rio de Manicongo e das ilhas de São Tomé e Príncipe
(Alov. de 13 de Nov. de 1504, na Torre do Tombo). Debal de
proibia que aceitassem seus pilotos e marinheiros (Ordenações
Manuelinas, liv. V, tít. 98, § 2; tít. 88, § 11) o serviço de mar
de outras nações, pensando talvez com isso obstar à propagação
dos conhecimentos náuticos pela Europa. Os ousados
navegadores de Honfleur e de Dieppe freqüentavam cada dia
Mais os portos do Brasil. As guerras da França não faziam
diminuir o ardor e a atividade dos seus homens do mar,
estimulados por tantos lucros. Em 1516 haviam chegado a
Portugal tais notícias de suas navegações no Brasil, que el-rei D.
Manuel mandava por seus agentes representar contra elas à corte
de França (2). E digamos desde já que tão poderosos se tinham
feito alguns armadores, que nem o mesmo governo francês podia
sujeitá-los, e que Portugal, depois de haver exaurido na França,
perante os tribunais, os parlamentos e a própria coroa, todos os
recursos do foro e da diplomacia, se viu obrigado a transigir e a
negociar com os mais notáveis corsários, que eram João Afonso e
o célebre João Ango, ao depois visconde de Dieppe (3). Todos
estes acontecimentos merecem uma história especial que não
duvidamos se escreverá algum dia; pois sobram para ela os
documentos, dos quais somente aproveitaremos agora o que mais
de perto nos interesse. Sabemos que, já em vida de el-rei D.
Manuel, fora o seu subdito Jácome Monteiro nomeado
embaixador junto a Francisco I, com instruções para representar
acerca das tomadias e das invasões nas suas conquistas,
efetuadas umas e outras por franceses. A Monteiro sucedeu João
da Silveira mandado por D. João III, apenas subiu ao trono, com
especial recomendação para que ponderasse quão triste era que
se estivessem hostilizando no mar os súditos, de dois reis e de
duas nações que se diziam amigos (4). Apesar das reclamações
que faziam, como levamos dito, os agentes portugueses,
empreendera Hugues Roger com felicidade em 1521 uma viagem
43
à nossa costa, e havia notícia de que se preparavam outros
navios. Por fim, em 11 de Fevereiro de 1526, escrevia o
embaixador João da Silveira, como em França se armavam dez
navios para virem apoderar-se das embarcações que
encontrassem.
Tal aviso, a nosso ver, decidiu Portugal a mandar ao
Brasil de guarda-costa, neste mesmo ano, uma esquadrilha
composta de uma nau e cinco caravelas, a qual findo certo
prazo devia ser rendida por outra. Vinha por capitão-mor
Cristóvão Jaques(I), e trazia de chefes subalternos Diogo
Leite, com seu irmão Gonçalo Leite, e Gaspar Correia. O
mesmo Jaques era portador de um alvará, passado em
Almeirim por Jorge Rodrigues, a 5 de Julho de 1526,
autorizando a Pero Capico a retirar-se. Esse alvará era
concedido nos seguintes termos: “Eu Elrei Faço saber a vós
Christovão Jacques, que ora envio por Governador às partes do
Brasil, que Pero Capico, Capitan de uma das capitanias (5) do
dito Brasil, me enviou dizer que lhe era acabado o tempo da
sua capitania, e que queria vir para este Reyno, e trazer
comsigo todas as peças de escravos e mais fazendas que
tivesse, Hey por bem e me praz que, na primeira caravela ou
navio que vier das ditas partes, o deixeis vir, com todas as suas
peças de escravos e mais fazendas; comtanto que virão
diretamente à casa da India, para nella pagarem os direitos de
quarto e vintena, e o mais que a isso forem obrigados, na
fórma que costumam pagar todas as fazendas que vêm das
sobreditas partes” (6).
Jaques alcançou a costa do Brasil no fim do dito ano; e
fundeando no canal que separa do continente a ilha de
Itamaracá, deu ali princípio a uma casa da feitoria no sítio, que
se chamou “dos Marcos”, em virtude dos que aí depois se
colocaram para termos de demarcação, no próprio continente,
quase em frente da entrada do sul do mesmo canal, e da antiga
vila da Conceição, situada a cavaleiro, na própria ilha. Esta
44
feitoria, ou outra a par desta, passou ao que parece a ser
estabelecida pelo mesmo Jaques no porto de Pernambuco ou
antes Paranámbuko, nome que significa furo do mar, segundo
alguns; mas que parece antes dever derivar-se de duas palavras
equivalentes a “mar largo”; visto haver no litoral mais algum
Paranambuco, sem nenhum furo ou ria (7).
Deixando fundada essa feitoria, passou Jaques a correr
a costa até o Rio da Prata, onde pouco tempo se demorou,
regressando outra vez para o norte, a cometer feitos que não
tardaremos em comemorar. Primeiro, nos cumpre dizer como
por este mesmo tempo estacionavam ou navegavam nas águas
do nosso litoral duas frotas, ambas de Castela. De uma, que
constava de três naus, era chefe Diego Garcia (8). Mandava a
outra, com igual número de redondos e mais uma caravela,
Sebastião Cabot, filho do navegador de igual apelido, que
descobrira por Inglaterra as costas do Norte deste grande
continente. Estas duas frotas haviam deixado a Europa um
pouco antes que Jaques. Diego Garcia, que partira primeiro,
aportou em São Vicente; e tantos meses aí se demorou que
parecia se esquecer do seu destino, que era subir o Rio da
Prata. Por meio da relação que de sua viagem nos transmitiu,
não se nos recomenda como homem verdadeiro, nem polido,
nem superior à mesquinha inveja, e deve ler-se com precaução.
Cabot era mandato às Molucas por este lado, reforçando outra
armada maior que havia partido um ano antes, e da qual em
breve daremos notícia. Aportou Cabot em Pernambuco(II),
onde já encontrou a feitoria portuguesa, e seguindo a
navegação para o sul, só avistou de novo terra nas alturas da
ilha, a que então pôs o nome de Santa Catarina. Aí fundeou
Cabot, e logo de um porto vizinho da parte do sul vieram
visitá-lo muitos castelhanos, dos quais uns ali viviam desde
muitos anos (9), e outros desde mui pouco tempo, não ha vendo
querido seguir a D. Rodrigo, de quem passaremos a tratar.
Era D. Rodrigo de Acuña o comandante da nau São
45
Gabriel pertencente a uma armada (10) que, às ordens do
comendador Fr. Garcia Jofre de Loaysa, partira, antes de
Cabot e de Diego Garcia, com direção às Molucas, seguindo
derrota pelo ocidente. Essa armada, largando da Corunha em
24 de Julho de 1525, avistara em princípios de Dezembro a
costa do Brasil, ao sul do cabo de São Tomé, e fora, pela
maior parte, desbaratar-se junto ao Estreito de Magalhães. Não
é de nosso propósito contar esse desbarato, ao qual pouco
depois se seguiu a morte de Loaysa e do seu imediato Del
Cano; e contentemo-nos de saber que D. Rodrigo achou
refúgio em um porto, ao sul da ilha de Santa Catarina, e
encontrou vários companheiros de Solis que, abastecendo-o de
água, lenha e mantimentos, deram da terra tais informes que
muitos da tripulação, alborotando-se, se determinaram a ficar
nela, em vez de exporem-se a novos perigos de mar. As
exortações de D. Rodrigo apenas puderam atrair-lhe alguns
poucos dos alborotadores.
Daqui proveio a este porto o nome de Porto de D.
Rodrigo, com que por muito tempo foi conhecido nos mapas e
roteiros. Acaso seria o mesmo a que Solis, dez anos antes,
chamara Baía dos Perdidos, talvez em virtude dos
mencionados seus companheiros que aí lhe fugiram ou se
perderam; se é que esses indivíduos não houvessem
efetivamente ficado por aí, voluntariamente ou desgarrados, já
desde alguns anos antes.
Com trinta e dois homens menos de tripulação, fez -se
por fim D. Rodrigo de vela para o Rio de Janeiro. Neste porto
convocou a sua gente a conselho: e nele foi resolvido que a
nau em vez de seguir para as Molucas, voltasse à Espanha,
com alguma carregação de pau-brasil. Dirigiu, pois, D.
Rodrigo o rumo para o norte e entrou na Bahia. – Aí a
tripulação se lhe diminuiu de nove homens que, indo à terra, lá
ficaram devorados pelos selvagens, segundo se julgou.
Saindo da Bahia para o norte, pela muita água que fazia
46
a nau, tratou de arribar, e deu-se a casualidade de que, meado
Outubro, fosse entrar justamente num porto próximo do rio de
São Francisco, no qual se achavam carregando de brasil suas
naus e um galeão de França (11). Os capitães franceses ao
princípio ofereceram proteção a D. Rodrigo, mandando-lhe até
dois calafetes; e quando, passados oito dias, se achava a nau
espanhola virada de crena, e impossibilitada de navegar,
caíram na fraqueza de ir acometê-la, intimando a D. Rodrigo
que se rendesse. Vendo este que a resistência era impossível,
meteu-se no batel, foi ter com os franceses, e conseguiu deles
tréguas, ficando de lhes dar vinhos e azeite que diziam
carecer. Enquanto, porém, se negociavam estas tréguas, e os
franceses tendo o capitão castelhano em refém, se
descuidavam da nau agredida, ela conseguia, não só surgir
boiante, como picar as amarras, e fazer-se de vela. Quando os
franceses despertaram do seu descuido, já a nau espanhola ia
barra fora, sem o capitão, nem os marinheiros que o haviam
acompanhado. Em vão D. Rodrigo lhes bradava e fazia sinais,
em vão os seguia em um batel à vela. A nau São Gabriel já
nem nas promessas do seu próprio capitão confiava, que tanta
desconfiança levam os desenganos das promessas não
cumpridas.
Seguiu D. Rodrigo no batel todo aquele dia e parte do
imediato. Porém... baldados esforços! a nau tinha desaparecido
no horizonte, e o seu legítimo comandante e fiéis romeiros,
exaustos de forças, emproavam para terra e iam varar à costa,
a umas dez léguas para o norte do porto donde haviam partido:
- naturalmente na paragem que se ficou até hoje chamando os
Baisios de D. Rodrigo, quase defronte do rio Cururipe. Daí se
dirigiram por terra, bastante expostos aos selvagens, ao porto
que acabavam de deixar.
Já tinham dele partido as duas naus francesas, e só
ficara o galeão. Neste se alojaram os tristes por mais de um
mês; mas acabando o mesmo galeão de carregar, fez -se de
47
vela, desamparando os míseros em um batel, sem mantimento
algum!
Não havia, porém, soado a hora final aos pobres
desamparados. Entregues à providência, seguiram pelos mares
durante vinte dias, nutrindo-se apenas de algum marisco e de
pouca fruta que acertavam de colher pela costa, até que na ilha
de Santo Aleixo lhes deparou Deus porto, onde puderam
refazer-se. Nessa ilha tiveram a fortuna de encontrar alguma
farinha de trigo, uma pipa de bolacha molhada, um forno, e
anzóis com que apanharam muito peixe (12). De Santo Aleixo
passaram à feitoria de Pernambuco (13).
Cristóvão Jaques se negou a dar-lhes passagem para a
Europa, primeiro em uma nau que enviava carregada de brasi l,
e na qual mui provavelmente se embarcou, com seus haveres
Pero Capico, e depois numa caravela que igualmente mandou
regressar ao reino. Pela primeira escreveu D. Rodrigo ao bispo
d’Osma; porém a carta, em vez de seguir ao seu destino, foi
apreendida, e ainda hoje se guarda no arquivo público em
Portugal (14). Dez meses depois escreve3u outras, uma das
quais para el-rei D. João III; e estas chegaram a Lisboa, pela
mencionada caravela, ao mando do capitão Gonçalo Leite. As
que eram para Castela foram remetidas pelo embaixador em
Lisboa (15) Lope Hurtado. Os da nau São Gabriel, depois de
eleger por capitão ao piloto Juan de Pilola, não podendo
montar o Cabo de santo Agostinho, retrocederam à Bahia, para
querenar; porém, inquietados aí por outra nau francesa,
passaram ao Cabo Frio e, deste, a um porto mais ao sul, do
qual se fizeram afinal de vela para a Europa, chegando a
Bayona de Galiza aos 28 de Maio de 1527 (16).
Quando a nau espanhola São Gabriel, ao querenar,
sofria as bombardadas dos três navios franceses, navegava elos
mares brasílicos, por aquela altura, a armada de Sebastião
Cabot, que deixara Pernambuco no mês anterior. – E ai dos
aleivosos, se nessa ocasião se aproximara da costa a esquadra
48
espanhola! – Porém Cabot seguia de largo, e só foi de novo
avistar terra na ilha de Santa Catarina, como antes dissemos.
As informações que a Cabot deram os castelhanos, que
nesta ilha encontrou, das riquezas do rio da Prata, o induziram,
a pretexto de não poder empreender maior viagem por se haver
perdido a capitânia, a subir pelo mesmo rio da Prata, em vez
de prosseguir para as Molucas (17).
Deixando, porém, os mais sucessos desta armada, bem
como os outros da sua contemporânea castelhana ao mando de
Diego Garcia (18), e que não pertencem à nossa história,
sigamos a Cristóvão Jaques em seus feitos. Vimos como,
julgando que lhe bastava ter consigo as cinco caravelas latinas,
mandara para o reino a nau, com carga de brasil. Logo depois,
andando a correr a costa, com quatro das ditas caravelas,
travou peleja com três navios de mercadores bretões, dois
deles de cento e quarenta toneladas. Combateu um dia inteiro,
e, saindo vencedor, levou para Pernambuco os prisioneiros em
número de trezentos. Segundo nos consta por tradição, este
combate teve lugar num recôncavo, pelo rio Paraguaçu acima,
junto à ilha ainda chamada dos Franceses. Sabendo, porém,
positivamente, por outro lado, que as hostilidades começaram
de parte dos navios franceses contra uma das caravelas, pelos
tempos contrários esgarrada das outras, que depois a cudiram,
só teria o combate lugar nessa paragem, se acaso a ela se
foram refugiar os mesmos navios, depois de começadas as
hostilidades. As queixas do atribulado D. Rodrigo de Acuña,
os informes de Gonçalo Leite, que se nos denuncia como
pouco afeiçoado ao chefe, e uma carta de Diogo Leite, em que
parece censurar quanto no Brasil se fazia, decidiram o governo
em apressar-se a dar por acabada a comissão de Jaques. Para
lhe suceder foi escolhido Antônio Ribeiro. E Jaques recolheu
ao Reino, com os trezentos prisioneiros estrangeiros que tinha
consigo na feitoria. Neste número entrou talvez Acuña, em
favor de quem se empenharia o mencionado embaixador
49
espanhol Lope Furtado (19).
Quanto a Ribeiro, nenhuma notícia encontramos dos
seus feitos em nossos mares (20). Naturalmente abandonou
pouco depois a costa com a esquadrilha, chamada talvez a
outro serviço. O certo é que, ficando a feitoria desprotegida,
caiu sobre ela um galeão de França, que a saqueou,
conseguindo apenas o feitor Diogo Dias escapar-se em uma
caravela, que ali então passava com destino para Sofala.
Cristóvão Jaques, que havia tido ocasião de estudar o
país e de avaliar a sua riqueza, e que conhecia o estado
florescente a que já nesse tempo tinham chegado as colônias
portuguesas da Madeira, dos Açores e de São Tomé, onde
possuíam importantes solares vários senhores donatários, cujos
avós apenas eram conhecidos, propôs-se a ser também
donatário no Brasil, oferecendo-se a levar consigo mil
colonos.
Achava-se então em Lisboa Diogo de Gouveia, um dos
portugueses mais ilustrados daqueles tempos, estabelecido em
Paris, onde dirigia o colégio de Santa Bárbara, do qual saíram
para o mundo literário não poucos alunos, que lhe deram
glória. Gouveia, que desde 1513 prestava em França nos
negócios das tomadias valiosos serviços, empenhou-se com el-
rei D. João III para que levasse avante os intentos de Cristóvão
Jaques (III). Parece, porém, que ainda então não estava a corte
resolvida a seguir o seu parecer, como depois seguiu, apenas o
tempo começou a deixar que se principiassem a realizar as
previsões do profundo pensador, porventura antes tratado,
como sucede ordinariamente, de sonhador e de utopista, pelos
que não pensam, ou pelos que não chegam a lobrigar o que ele
vê às claras. Digamos desde já que o de que tratamos é o
mesmo doutor (ou mestre) Diogo de Gouveia, que depois
(1537) foi eleito regente da Universidade de Bordéus e, nesta,
lente de teologia, enquanto não passou a Coimbra com muitos
outros professores que foi encarregado de ajustar (21).
50
Antes de prosseguir, cumpre-nos dizer que os
interessados (22) nos três navios apresados por Cristóvão
Jaques, requereram a Francisco I, por intermédio do conde de
Laval, governador de Bretanha, cartas de marca que se
indenizarem de suas perdas, que orçavam em sessenta mil
cruzados. mandou Francisco I a Portugal para agenciar essas
indenizações o rei d’armas Helice Alesge de Angoulême.
Chegou este a Lisboa em Janeiro de 1529; deu conta da
missão, porém, não sendo despachado durante mais de dois
meses, regressou a França; e poucos dias depois assinava
Francisco I uma carta patente de corso, em favor do célebre
Ango, contra Portugal. Vendo-se, porém, mui necessitado de
dinheiro, inclusivamente para pagar o resgate de seus filhos ao
vencedor Carlos V, mandou o mestre Pedro de la Garde de
embaixador a D. João III, oferecendo-se a cassar as cartas de
corso, e pedindo-lhe trezentos mil cruzados emprestados.
Respondeu o monarca português (com muitas desculpas e
incumbindo de encarecê-las em França o seu embaixador João
da Silveira) que por obsequiá-lo lhe emprestaria cem mil
cruzados em dinheiro; e que o mais, que passava e muito de
trezentos mil cruzados, lhe cedia também de empréstimo, se
ele quisesse fazer justiça, obrigando muitos dos seus vassalos
a restituir as tomadias ilegitimamente feitas. João da Silveira
era autorizado, inclusivamente, a agenciar estes negócios,
concedendo aos indivíduos que assentassem “algum proveito
secreto” (23). A este mesmo intento foram de embaixada os
desembargadores Lourenço Garcez e Gaspar Vaz.
Entretanto, reconhecera-se que eram insuficientes as
pequenas capitanias, antes fundadas no Brasil, e que as
simples armadas de guarda-costa, além de muito dispendiosas,
não prometiam toda a segurança; sem uma forte colônia
nalgum porto vizinho, a que elas se pudessem recolher para
refazer-se, não só de mantimento, como de gente, em caso de
necessidade. Ao mesmo tempo a colônia, desenvolvendo -se e
51
crescendo, poderia com seus próprios recursos sustentar tal
armada, sem sobrecarregar o tesouro da mãe-pátria.
A idéia de fundar, pois, no Brasil uma colônia vigorosa
começava a triunfar, quando se recebia em Lisboa uma carta
escrita (IV) de Sevilha por um Dr. Simão Afonso, dizendo
como acabando Sebastião Cabot de chegar mui derrotado do
rio Paraná, o haviam mandado ali prender, e de como pensava
ele doutor que Espanha não tentaria para aquelas bandas novas
empresas.
O plano vago da fundação de uma povoação forte no
aquém-mar se fixou então justamente sobre essa paragem de
clima temperado, e de tantas apregoadas riquezas, que os
castelhanos escarmentados iam porventura desamparar de
todo: sobre as margens do rio da Prata. Aprontou-se com mais
rapidez a frota composta de duas naus, um galeão e duas
caravelas. Além das competentes guarnições e tripulações,
embarcaram-se nela famílias inteiras... “Vão para o rio da
Prata!”... E bastava esta voz para não faltar quem quisesse
alistar-se... Ao todo contam-se nas cinco velas (24),
quatrocentas pessoas. Muitas destas diziam adeus à pátria, no
momento em que porventura sonhavam que dentro de pouco
volveriam a ela com grossos cabedais – com rios de prata.
Henrique Montes, que estivera com Cabot e que tinha passado
a Portugal, regressava na armada (V) feito cavaleiro da casa, e
agraciado com o ofício de provedor dos mantimentos, assim na
viagem, como ao depois, “em terra, em qualquer lugar onde
assentassem” os que iam na armada, uns por obediência às
soberanas ordens, outros por curiosidade, ou por ambição ou
sede de riquezas, e alguns até por sua infelicidade – seus
vícios e crimes.
Para comandante fora escolhido Martim Afonso de
Sousa, que ao depois se fez célebre na Ásia, obrando prodígios
de valor (VI). Contava então apenas trinta anos; mas já, por
seu bom juízo, havia merecido a honra de fazer parte dos
52
conselhos do rei. A amizade e o parentesco que com ele tinha
o vedor da Fazenda D. Antônio de Ataíde, depois conde de
Castanheira, deviam contribuir muito para a escolha; mas
quem, como nós, teve ocasião de conhecer tão cabalmente o
dito castanheira, por toda a sua correspondência privada e de
ofício, incluindo a que ao depois por anos entreteve com o
mesmo Martim Afonso, no serviço na Ásia, não pode por um
só instante suspeitar que, no animo do conde, a amizade
preponderasse ao zelo pelo Estado, tratando-se de um
empregado deste, além de que: não era o conde da Castanheira
exclusivo no conselho – e não se atreveria a fazer ao soberano
qualquer recomendação, quando não tivesse o apoio de
Antônio Carneiro, que era também secretário, mui influente na
governação do estado. Demais: o êxito desta expedição e a
sucessiva carreira de serviços de Martim Afonso justificam
cabalmente a proposta que dele fez o seu primo e amigo a Sua
Alteza – que tal era o tratamento que se dava ainda ao rei.
Vinha Martim Afonso munido de poderes extraor-
dinários, tanto para o mar, como para reger a colônia que
fundasse; e até autorizado com alçada e com mero e misto
império no cível e no crime, até morte natural inclusive;
exceto quanto aos fidalgos que, se delinqüissem, deveria
enviar para Portugal. Trazia autorização para tomar posse de
todo o território situado até à linha meridiana demarcadora;
para fazer lavrar autos, e pôr os marcos necessários; para dar
terras de sesmaria a quem as pedisse, e até para criar tabeliães,
oficiais de justiça e outros cargos. As sesmarias (25), deviam
ser dadas em uma só vida, o que não parece coerente com o
pensamento de ligar a terra à geração perpetuada de pais a
filhos. Não sabemos que a política ou que miras envolvia esta
disposição, que logo depois se modificou, com m elhor
conselho.
Com Martim Afonso vinha também nesta armada seu
irmão Pero Lopes de Sousa, moço honrado e de grandes brios
53
e valor, e igualmente muito bem conceituado perante o mesmo
conde da Castanheira (26). À pena de Pero Lopes devemos
hoje tudo quanto de mais averiguado sabemos dessa
expedição, que se apresentou diante do Cabo de Santo
Agostinho no último de Janeiro de 1531, depois de haver tido
alguns dias de demora, para se refazer de mais mantimentos,
na Ribeira Grande, porto da cidade capital do arq uipélago de
Cabo Verde.
Para não interrompermos dentro de pouco a narração
que vai seguir-se digamos já que, complicando-se as
negociações em França, e havendo probabilidade de que mais
se complicariam com alguns feitos da nova armada, foi lá de
embaixador, em Maio de 1531, o próprio vedor da Fazenda D.
Antônio d’Ataíde. E à presença nesse reino, durante poucos
meses, deste prudente estadista, a quem por certo não se faz
geralmente a devida justiça, atribuímos não só as capitulações
celebradas com Ango, mas também as boas disposições da
parte do almirante de França (VII) e outros, para os acordos
depois tomados, em virtude dos quais, em 1537, se instalaram
em Irun e Fuenterrábia comissões mistas de Portugal e França,
para atenderem às reclamações de presas e tomadias, dos
queixosos duma e outra parte. O próprio João Afonso, de
apelido Francês, prático do Brasil (27) (e que antes de fugir de
Portugal fora mestre de um navio de Duarte de Paz), recebeu
del-rei carta de seguro de que não seria demandado, nem
perseguido (28), por incurso nas penas dos naturais que
aceitavam serviço do mar das outras nações, ou iam às
conquistas sem licença (VIII).
54
Portugal, um astrólogo “levantara uma figura e achara que a terra descoberta
havia de ser uma opulenta província, refúgio e abrigo de gente p ortuguesa”. –
(C.).
(5) Prova que havia mais de uma. – (A.). – Haveria mais de uma
capitania, sem dúvida; é, porém, duvidoso se a capitania era de terra ou de
navio. Esta última hipótese parece a mais aceitável, sem embarco da carta de
D. João III, extratada na secção seguinte. Pero Capico, ou outro de igual
nome, apareceu depois na capitania de São Vicente como escrivão, sob o
governo de Martim Afonso de Sousa. – Azevedo Marques, Apontamentos
históricos, 2, 169, Rio 1879. – (C.).
(7) Pará-ná, rio tantas vezes, ou mar, e bog furo; ou antes pucu,
largo, transformado em mbuku para a composição, segundo Montoya, Arte,
cap. 22. – (A.).
Nos Anais da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, 8, 1880-1881,
págs. 215-219, Baptista Caetano e Vale Cabral colecionaram as diversas
etimologias de Pernambuco, que se encontram nos autores. Acham-se aí nada
menos de onze interpretações, inclusive a de Varnhagen; mas Baptista
Caetano opina por paraná-puka, arrebentação do mar ou rio grande, alusão
quiçá ao recife. – (G.).
(10) Veja Herrera, Dec. III; 7º,; 5, 6 e 7. – Veja também Gav. 2, 10,
20, a C. de Antônio Ribeiro, de 28 de Fev. 1525, da Corunha, e a relação da
viagem de Fr. Garcia de Mendoza, Tom. 5º. – (A.).
(16) Nav., 5, 173 e 233: quanto ao dito porto ao sul de Cabo Frio, ao
qual na relação se chama Rio do Extremo, pode supor-se que fora a Angra
dos Reis ou a baía de Guaratiba, em vista do lugar que lhe assina a carta de
Diogo Ribeiro (1529). – (A.).
56
(17) Henrique Montes e Melchior Ramirez apenas confirmaram as
notícias colhidas na feitoria de Pernambuco. Como evidencia Harisse no livro
citado supra, Caboto já levava desde então a idéia de ir ao Prata. – (C.). –
Conf. Henry Harisse, John Caboto, the discoverer of North America, and
Sebastian his son, pág. 205, London, 1896. – As notícias teriam sido levadas
a Pernambuco por Cristóvão Jaques. No Islario de Alonso de Santa Cruz lê-
se: “Al austro de estas ay otras islas dichas de Christoval Jaques, que era un
Portuguez llamado asi, que las descubrio veniendo a este rio por captan de
una caravale desde la costa del Brasil a fama del oro, que se dezia aver en
el”. – Franz R. von Wieser, Die Karten von America in dem Islario General
de Alonso de Santa Cruz, pág. 56, Innsbruck, 1908. – (G.).
57
of Joh III, King of Portugal – 1521-1557, págs. 135-136, Cambridge
(Massachusetts), 1931. – (G.).
58
citadas, pág. 81. – (G.).
(28) Casa da Coroa, Arm. 26, 3, 10. – (A.). – Publicado pelo autor
em Amerigo Vespucci, 115-116, Lima, 1865, e reproduzido por Sousa
Viterbo, Trabalhos náuticos dos Portugueses nos séculos XVI e XVII, 1, 16-
17, Lisboa, 1898. – (C.).
59
NOTAS EM ALGARISMOS ROMANOS
(I)
60
Foi nessa viagem, cujas instruções deviam ser contra os castelhanos,
que Cristóvão Jaques, depois de fundar uma feitoria em Pernambuco,
encontrou ao sul, em um porto de Santa Catarina, nove dos companheiros de
Solis, e navegou até o Rio da Prata, conforme, baseado na carta de Luís
Ramirez, presumiu Capistrano de Abreu (Livros I e II da História do Brasil
de Frei Vicente do Salvador, pág. 35, nota, Rio, 1887; prefácio da História
Topográfica e Bélica da Nova Colónia do Sacramento, págs. XLIII-XLIV,
nota B, Rio, 1900) e agora, como justamente reconhece o Sr. Esteves Pereira,
vêm confirmar as notícias de Montarroio Mascarenhas.
A essa viagem devem referir-se as palavras do embaixador João da
Silveira a D. João III, em carta de Paris de 24 de Dezembro de 1527, Alguns
documentos da Torre do Tombo, pág. 490, avisando-o da partida projetada de
navios franceses “hum grão rrio na costa do Brasil... creo que he o que achou
Christovão Jacques”.
De uma carta ao imperador Carlos V, escrita pelo sem embaixador
em Portugal, Juan de Çuñiga, datada de Évora, 27 de Julho de 1524, tem -se
deduzido outra viagem de Cristóvão Jaques ao Brasil e ao rio da Prata em
1521. O embaixador diz ter atraído à sua pousada, uns quinze dias antes, um
homem que não nomeia, e que, confiando em sua palavra, embora com
grandes medos, lhe disse “que agora três años, el Rey don Manuel le dió
licencia que fuese á descubrir por aquella costa, prometiéndole grades
mercedes si hallase cobre y otras cosas que él deseaba, y dice que se fué
derecho al Brasil com dos carabelas, y que siguió la costa del dicho Brasil
por el sudueste setecientas leguas de donde ellos toman el Br asil, y que halló
à las CCC leguas, poco más ó ménos, nueve hombr4es de los que fueron com
um Juan de Solís á descubrir, y habló com ellos, y están casados alli, y
quisieran que él se los truxera, porque él no osó por ser astellano, y porque él
sabia que al Rey le habia pesado de lo que iba á descubrir el dicho Juan de
Solís, porque les prometió que si Dios alli le tornase, que los traeria. Dice
que en la tierra que aquellos están no hay cosa de provecho, y que seguió su
costa otras CCCL leguas, que son las DCC dichas, y que halló um rio de agua
dulce, maravilloso, de anchura de cuatorce leguas, y que subió por el rio doce
leguas y vió muy hermosos campos á todas partes, y que surgió alli y tomó
lengua de la tierra, y que dijeron que aquel río no sabian de donde venia sino
que era de muy lejos…” Esse homem, diz em começo de sua carta o
embaixador, “andaba com el Rey (de Portugal) en demandas y respuestas ára
que le pagase su trabajo, ayudandole par que pudiese volver all á, a vista de lo
que habia descubierto…” Medina, Juan Diaz de Solis, CCCXII-CCCXVI.
Do exposto vê-se que a expedição descrita se efetuou três anos antes
de 1524, isto é, em 1521; que era castelhano quem a empreendeu; que se
compunha de duas caravelas; que a trezentas léguas, pouco mais ou menos do
61
lugar onde os Portugueses tomavam pau-brasil, isto é, de Pernambuco,
seguindo para o sul, achou os nove homens da armada de Solis, em Santa
Catarina, e, continuando a navegar, foi ter a um rio maravilhoso , de quatorze
léguas de largura, pelo qual seguiu doze léguas. Vê-se também que, excluídas
as duas primeiras circunstâncias, as demais se ajustam perfeitamente à
armada de Cristóvão Jaques, de 1516 a 1519; por outro lado, não se conhece
nenhuma expedição portuguesa que no último ano do reinado de D. Man uel
viesse ao Brasil e ao Rio da Prata. Pode-se, portanto, admitir seja ele o
homem a quem Çuñiga se refere, embora contra essa hipótese militem as
duas circunstâncias apontadas: o tempo que o embaixador assinala para a
navegação e a qualidade de castelhano que atribui ao navegador. Quanto à
primeira, é possível engano de Çuñiga, ou do próprio Cristóvão Jaques,
dizendo três años, em vez de seis años, o que datia 1518 ou 1519, para termo
da viagem; quanto à segunda, é provável que Cristóvão Jaques, talvez
desgostoso pela demora das recompensas prometidas, ou por não ter
comissão nos primeiros anos do reinado de D. João III, pusesse seus serviços
à disposição da coroa de Castela e se dissesse castelhano para vê -los melhor
aceitos.
Parece, pois, que se deve eliminar a expedição de 1521, fundida com
a primeira de 1516 a 1519, sobre a qual não pairam dúvidas.
Da segunda viagem sabe-se por Frei Luís de Sousa, Annaes de elrei
Dom João Terceiro, pág. 178, Lisboa, 1844, que: “No mesmo (ano de 1526)
despachou El Rey a primeyra Armada que foy em seu tempo ao Brasil;
Capitão-mór Christovão Jaques. Foy correr aquella costa, e alimpalla de
corsarios, que com teyma a continuavão pollo proveito do pau Brasil. E erão
os mais dos portos de França do Mar Oceano.” Era uma armada de Guarda-
costa e destinava-se especialmente a impedir que os Franceses continuassem
a forragear em nosso litoral. Além de Cristóvão Jaques, que comandava a
nau capitânia, vinham como capitães de três caravelas Diogo Leire, Gonçalo
Leite e Gaspar Correia; mas não se conhece o número exato dos navios que
compunham a esquadrilha.
Uma carta do embaixador João da Silveira, datada de Paris a 11 de
Fevereiro de 1526, referida no texto, denunciava ao rei que se estavam
armando nos portos de França dez navios para o corso no Brasil, e essa seria
a razão decisiva para o apresto da armada. A data da saída de Portugal não
consta de documento algum conhecido. Da carta de Diogo Leite, de 30 de
Abril de 1528, Revista do Instituto Histórico, 6,pág. 222, deduz-se que o
tempo da armada era limitado a dois anos, “des o dya que chegamos a esta
costa”, e já estava terminado; portanto, acrescentando -se àquele tempo, pelo
menos, cinqüenta dias, que comportava a travessia oceânica, ter -se-ia para a
partida os dez primeiros dias e Março de 1526. Mas, com essa suputação não
62
concorda o fato de trazer o capitão-mor um alvará passado a 5 de Julho
daquele ano, que vem transcrito no texto, sobre a retirada de Pero Capico,
além de que, se foi a carta de João da Silveira uma das causas dete rminantes
da expedição, como parece, não é possível conceber que em tão angusto
prazo – de 11 de Fevereiro a 10 de Março – sem contar o tempo que levaria a
missiva do embaixador para chegar às mãos do rei, fosse ela aprestada. O
mais certo é que tenha zarpado em Setembro ou Outubro, que era a monção
preferida, para alcançar em Dezembro a costa do Brasil, como diz o autor. Do
modo por que foi cumprida a missão existem documentos vários que
certificam sobretudo da guerra sem tréguas feitas aos Franceses.
Reclamações e queixas chegaram à presença de D. João III e por isso talvez
Cristóvão Jaques tivesse sido substituído no cargo por Antônio Ribeiro, que
na feitoria de Pernambuco despachava a 26 de Outubro de 1528 uma petição
de D. Rodrigo de Acuña, para que se tomassem as declarações de alguns
marinheiros da nau São Gabriel sobre os desgraçados sucessos que
experimentaram desde sua separação da armada de Loaysa, Navarrete,
Colección de los viajes, 5, 313-321. Depois o nome de Cristóvão Jaques
ainda aparece em uma proposta, talvez de 1530, para povoar o Brasil,
introduzindo mil colonos, como consta de uma carta de Diogo de Gouveia,
datada de Ruão, 29 de Fevereiro e 1 de Março de 1532, a D. João III.
“Entretanto, - observa Capistrano de Abreu, Livros I e II da História
de Frei Vicente do Salvador, cits., - o seu oferecimento não foi aceito, nem
seu nome figura entre os dois donatários, ou porque não parecesse
satisfatório o seu desempenho de comissão, sobre o qual há muitas queixas,
fundadas ou não, ou por qualquer outro motivo não conhecido, e que teria
antes valor biográfico do que histórico.”
Veja-se sobre Cristóvão Jaques: - F. M. Esteves Pereira, História da
Colonização Portuguesa do Brasil, Vol. II, págs. 361-364; Antônio Baião e
C. Malheiro Dias, ibidem, vol. III, págs. 59-94. – (G.).
(II)
63
America, etc., pág. 409, London, 1896, pode concluir-se que Itamaracá era
chamada naquele tempo ilha da Ascensão.
Em Pernambuco a primeira pessoa que se dirigiu para a nau capitânia
foi João ou Jorge Gomes, que estava desterrado e daí se incorporou à armada.
Medina, J. D. de Solis, CCXCIII. O feitor chamava-se Manuel de Braga,
como se vê no citado livro de Harrisse. – João de Melo da Câmara descreve
esses colonos como homens que se contentam “com terem quatro indias por
mancebas e comerem do mantimento da terra”, ao contrário dos que ele
queria introduzir, “homens de muita sustancia e pessôas mui abastada s, que
podem consigo levar muitas eguas, cavallos e gados, e todalas outras cousas
necessarias para o frutificamente da terra.” – (C.). – Manuel de Braga obteve
carta de mercê “dos officios de feitor e almoxarifado da capitania dos
bytygares que Pero Lopes tem no Brasil”, os quais por seu falecimento
passaram a João Gonçalves, criado de Pero Lopes, por carta de mercê feita
em 8 de Fevereiro de 1538. – Liv. 49, fls. 30 v. da Chancelaria de D. João III,
cit. pelo dr. Jordão de Freitas, na Lusitânia, vol. III, fasc. IX, pág. 324.
Em Dezembro de 1530, quando a feitoria foi saqueada por um galeão
de França, o feitor era Diogo Dias, que Martim Afonso foi encontrar na
Bahia. É possível que Manuel de Braga tivesse o cargo pela segunda vez, e
desta com a carta de mercê a que se refere o documento supracitado. – (G.).
(III)
64
O irmão do capitão da ilha de São Miguel chamava-se João de Melo
da Câmara: dele possuímos uma carta a D. João III, sem data, mas de 29 ou
30, como se vê do trecho acima de Gouveia, em que alude à sua proposta,
Melo da Câmara assim se refere a Christóvão Jaques: “... dá-me muita paixão
darem pessôas informações a Vossa Alteza como querem, por onde o fazem
assi estar perdendo tempo, e non tomar em nem uma cousa concrusão. E non
sei, Senhor, quem lh’as dá, porque lhe non dizem que dê as terras que
temperdidas a seus vasalos e naturaes, que lhas ganhem e povôem, pagando -
lhe aquelles direitos que Vossa Alteza ordenar e forem resão, e não buscarem
lhe cousas em que gaste dinheiro sem proveito, como agora me certificaram
que dizia Christóvão Jaques que lhe mandara Vossa Alteza dizer que nã fazia
nada desta terra sem seu parecer, o que lhe havia de mandar ou mandara já
por apontamentos. E que este meio buscara por terceira pessoa, que o
dissesse como de si a Vossa Alteza, que eu nã sei que parecer pode ser o seu,
pois que Vossa Alteza tem por experincia nisto quanto foi. E diz que buscou
este meio pera lhe dizer que nã dê sinã a tal parte a tal e que o mais guarde
pera si pelo muito ouro, e prata, e metaes que ahi havia e que pera aqui havia
de dar-me Vossa Alteza que o fizesse; mas até aqui não temos visto esta
somma de metaes, nem quem vos visse, sinã dizerem que um homem viu
outro... (falta) que fosse assi porque eu e os mais amigos nossos portuguezes
e naturaes somos e leaes, e nã castelhanos nem francezes, e tudo como é
servido de Vossa Alteza. E com isto diz que com estas cousas se ha de vingar
dos que lhe pedem o seu, e que os ha de fazer ficar nas mõtanhas e serranias
pera que se percam, porque elle crê que toda esta terra lhe pertence de
direito, e que nã ha lá de mandar Vossa Alteza outrem sinã a elle, e assi o
anda dizendo, que eu affirmo a Vossa Alteza que lhe o ouvi, e eu, Senhor, lhe
digo pera que saiba a verdade e a tenção e fundamento deste homem, e dahi
pode fazer o que mais seu serviço for. E si Vossa Alteza quizer mais
verdadeira informação da terra, aqui andam homens que o sabem tão bem
como elle, porque foram nella mais vezes, e que lhe darão verdadeiramente,
porque nã são partes no caso.” – Sousa Vitervo, Trabalhos náuticos dos
Portugueses nos séculos XVI e XVII, 1, 216-217, Lisboa, 1898. – (C.).
(IV)
65
fação segundo tenho escrito a V. A., e per não vir mãdado de V. A. não sam
ja partydo porque sua justiça se perde é esto se dilatar mãdeme V. A. o que
for seu serviço porque não espero outra cousa.
Esta semana chegou aqui hu piloto e capitão que era hydo a
descobrir terra o quoal se chama gabote piloto mor destes reinos e he ho que
mãdou o navio que veo ter a lisboa agora ha dous anos que trazia nova de hua
terra descuberta polo rio Pereuái que dezião ser de muito ouro e prata, elle
veo muy desbaratado e pobre por q. dizer qué não tr az ouro né prata né cousa
algua de proveito aos armadores e de duzétos homes que leuou não traz vyte
que todos los outros dyzé que la ficão mortos hús de trabalho e fome outros
de guera q. cos mouros tiverão porq. as frechadas dizé mataraõ muitos deles e
lhe desfizerão hua fortaleza de madeyra que la tinhaõ feyta, de maneira que
eles vem mal cõtétes, e o piloto está preso e dizé que quere mãdar á corte ver
o q. mãndoõ que se dele faça, o que disto pude saber e se aqui pobrica ayda
que mui paso que na terra que dezião ter descuberto não deixaõ nenhum
requado salvo a géte morta e o gasto perdido, dizé com tudo estes homes que
vierão que a terra he de muita prata e ouro e a causa pesq. não traze nada he
segundo dizé per que o capitão os não quis deixar tratar e taobem perque os
mouros os eganaraõ e se levantaraõ cõtraeles disto podera V. A. crer o que
lhe parecer, da terra ficar deserta não tenho duvida o rio dizé que he muito
grande e alto e muito largo, na étrada se V. A. ouver por seu serviço mãdar la
agora o podera fazer, porq. esta géte apartase donde não ve drº, e se acergua
disto poder ao diãte saber mais particularidades escreverei a V. A., nosso snr,
a vida e real estado de V. A. cõserve a acrecéte per muitos anos, de sevilha
ha ij dagosto de 1530. – Simão, doctor.” (Torre do Tombo, Conf. Cron., I, 45,
90). – Conf. Henry Harisse, John Cabot, the discoverer of Nort-America, and
Sebastian his son, citado, págs. 196. 427-428. – (G.).
(V)
66
depois de abandonar a esquadra de Loaysa, tocou naquele porto.
Montes levou consigo para a Espanha duas índias forras, suas
mulheres; com uma delas passou a Portugal, a outra ficou em Cantillana.
Embarcou de novo na armada de Martim Afonso de Sousa, como
consta de Herrera, no lugar citado em princípio desta nota.
Melchior Ramirez, natural de lepe, era com Montes derrelito da
armada de Solis, em que tinha a graduação de alferes. Voltou à Espanha com
Diego Garcia, que passou pelo porto de Patos pouco depois de Cabot.
Sobre Montes há abundantes informações nos livros de Harrisse e
Medina, citados supra, como também no deste último – Juan Diaz de Solis,
vol. I, onde à pág. CCCXXXVIII se encontra o fac-símile de sua assinatura.
Veja-se ainda a carta de Luís Ramirez, na Rev. do Inst. Hist., t. 15, 1853,
págs. 14-41. – (G.).
(VI)
67
vemos Martim Afonso encarregado depois de altas e honrosas, mas
longínquas comissões.” – Ficalho, Garcia da Orta e o seu tempo, 65-66,
Lisboa, 1886. – (C.).
(VII)
68
carta de marca de João Ango, Lisboa, 1882, que trata só da primeira, e Eug.
Guénin, Ango et ses pilotes, Paris, 1901, que publica ambos os documentos. –
(C.).
(VIII)
69
SECÇÃO VIII
70
Diogo Leite foi o capitão a quem Martin Afonso confiou o
mando dessas duas caravelas. Sabemos que este chefe,
percorrendo o litoral de leste-oeste, chegou pelo menos até a
baía de Gurupi, que por algum tempo se denominou “abra de
Diogo Leite”; – nome este que já se lê em um mapa em
pergaminho de toda a costa, feito por Gaspar Viegas em 1534
(1).
Da nau francesa mandada a Portugal foi capitão João de
Sousa, Além de umas setenta toneladas de brasil, levou trinta e
tantos dos prisioneiros, e em fins de Julho estava a dita nau
fundeada em Vila Nova de Portimão, no Algarve, onde se
procedeu à venda da sua carga de brasil, à razão de 800 a 900
réis o quintal (2).
De Pernambuco seguiram os outros navios para o sul, e
foram entrar na baía de Todos os Santos, descoberta em 1501.
Aqui se apresentou ao capitão-mor o português Diogo Álvares,
que em terra vivera entre os índios os vinte e dois anos
anteriores, e que aí tinha muitos filhos, havendo -se aliado a
uma índia, cujo nome primitivo corre haver sido Paraguaçu,
Catarina o da pia batismal (3).
Por intervenção do mesmo Diogo Álvares, vieram todos
os principais visitar ao capitão-mor, trazendo-lhe manti-
mentos, que foram retribuídos com as dádivas de costume.
Admirou Pero Lopes na baia a alvura da gente, a boa
disposição dos homens, e a formosura das mulheres, que não
achou inferiores às mais belas de Lisboa.
Reservando-nos a tratar, mais ao diante, do colono
Diogo Álvares e desta baía, nos limitaremos agora a dizer que,
durante os quatro dias que fundeada se demorou a armada,
tiveram os nautas ocasião de presenciar um combate naval
71
travado dentro do recôncavo; naturalmente entre os da ilha de
Itaparica, e os do lado do norte que senhoreavam as terras
onde se assentou depois a cidade do Salvador. Cada
esquadrilha constava de cinqüenta canoas, guarnecidas
algumas destas de sessenta homens, todos escudados de
paveses de cores, semelhantes aos que usavam então os
guerreiros marítimos portugueses. O combate durou desde o
meio-dia até o sol posto; – os da armada européia
conservaram-se impassíveis espectadores desta naumaquia
entretrópica, e viram com gosto decidir-se o triunfo pelos que
combatiam do lado em que eles estavam surtos. Muitos dos
vencidos caíram prisioneiros; e com estes praticaram os
vencedores o costumado uso de os matarem, com grandes
cerimônias, e de lhe tragarem depois – oh, asqueroso horror! –
as carnes.
Martim Afonso, deixando com Diogo Álvares dois
homens e muitas sementes, para saber-se por experiência o que
a terra (que segundo doze anos antes publicara Enciso (4) era
de pouco proveito) poderia melhor produzir, velejava com sua
pequena frota para o sul, quando, ao cabo de alguns dias, foi
obrigado a arribar. Entrando na mesma baía, em 26 de março
(1531), encontrou agora aí fundeada a caravela que, com
destino a Sofala, passara por Pernambuco, e recebera a bordo a
Diogo Dias, feitor do estabelecimento ou feitoria, que o galeão
francês havia, meses antes, saqueado (5). Martim Afonso,
vendo que esta caravela lhe podia servir, decidiu-se a levá-la
consigo. No dia imediato levantaram de novo âncoras todos os
navios da armada, e seguiram navegando para o sul até que
entraram, em 30 de Abril, no porto ou baía já então conhecida
pelo impróprio nome de “Rio de Janeiro” (6). Para não
72
deixarmos de aproveitar a mínima eventualidade no pouco que
sabemos do que então se passou nesta paragem, cujas menores
circunstâncias hoje interessam a todo o país, transcreveremos
fielmente quanto nos transmitiu um dos nautas, que logo
veremos donatário de Itamaracá, Santo Amaro e Santa
Catarina. É Pero Lopes quem prossegue, em seu estilo, tão
ingênuo como pitoresco: “Como fomos dentro (da baía de
Janeiro) mandou o capitão I. (Martim Afonso) fazer uma casa
forte com cerca por derredor; e mandou sair a gente em terra, e
pôr em ordem a ferraria, para fazermos coisas de que tínhamos
necessidade. Daqui mandou o capitão I. (Martim Afonso)
quatro homens pela terra dentro: e foram e vieram em dois
meses; e andaram pela terra cento e quinze léguas, e as
sessenta e cinco delas foram por montanhas mui grandes; e as
cinqüenta foram por um campo mui grande; e foram até darem,
com um grande rei, senhor de todos aqueles campos; e lhes fez
muita honra, e veio com eles até os entregar ao capitão; e lhe
trouxe muito cristal, e deu novas como no rio de Paraguai
havia muito ouro e prata (7). O capitão I. lhe fez muita honra,
e lhe deu muitas dádivas, e o mandou tornar para as suas
terras. A gente deste rio é como a da baía de Todos os Santos;
senão quanto é mais gentil gente. Toda a terra deste rio é de
montanhas e serras mui altas. A melhores águas há neste rio
que podem ser. Aqui estivemos três meses tomando
mantimentos para um ano, para quatrocentos homens que
trazíamos, e fizemos dois bergantins de quinze bancos”.
Cumpre aqui acrescentar que o mencionado
estabelecimento de Martim Afonso, nesta baía, deve ter tido
lugar na enseada em que desemboca o rio Comprido; e em uma
73
paragem que, ainda meio século depois, de denominava “porto
de Martim Afonso” (G. Soares, I, cap. 52).
Deixando o Rio de Janeiro foram os navios, ao cabo de
doze dias de navegação, ancorar da banda de dentro da ilha
chamada “do Abrigo”, junto do porto da Cananéia. Por este
último, cujas águas, com o nome de “Mar pequeno”, se
estendem terra dentro (desde o rio de Iguape até o sul da barra
de Ararapira, onde acaba a ilha que ora chamam do Cardoso) e
quase a comunicam com a baía de Paranaguá, mandou Martim
Afonso ao piloto Pedro Anes, entendido na língua dos índios,
que fosse, em um bergantim, haver fala dos que ali houvesse.
Este piloto voltou cinco dias depois, conduzindo a bordo do
bergantim um bacharel português, que havia trinta anos que ali
estava, isto é, como vimos, desde a primitiva exploração da
costa em 1502, um tal Francisco de Chaves, e vários
castelhanos.
Este Francisco de Chaves, naturalmente, era algum dos
aventureiros que antes haviam chegado até as terras do Inca. O
certo é que, pelas informações que deu e promessas que fez de
trazer, dentro de dez meses, quatrocentos escravos carregados
de prata e ouro, Martim Afonso acedeu a mandá-lo seguir de
oitenta homens armados, metade de arcabuzes, e outra metade
de bestas, da sorte dos quais adiante trataremos.
Quarenta e quatro dias se demorou a esquadra junto da
Cananéia, durante os quais esteve sempre encoberto o sol,
circunstância pouco para admirar aos que saibam que ainda
hoje raras vezes ele se mostra radiante aos habitantes desses
contornos.
Também no ancoradouro se romperam muitas amarras e
perderam-se várias âncoras, o que sucede ainda agora nesse
74
porto, cujo fundo tem rato, como dizem os mareantes, daqueles
que rompem as amarras, quando não são de elos de ferro.
Defronte da ilha da Cananéia sai da terra para o mar um
pontal de pedra, que se chama hoje de Itaquaruçá, onde ainda
existem três padrões de mármore sacaróide, do que se encontra
nas formações vulcânicas das imediações de Lisboa, os quais,
com toda a probabilidade, foram ali postos durante estes
quarenta e quatro dias, apesar do silêncio que a tal respeito
guarda o (tantas vezes desesperantemente omisso) escritor dos
feitos desta expedição, que merece desculpa, porque não se
propunha ele a ser cronista, mas somente a consignar por
escrito o seu roteiro ou diário marítimo. Os padrões da
Cananéia que examinamos pessoalmente, são de quatro palmos
de comprido, dois de largura e um de grossura; e têm
esculpidas as quinas portuguesas, sem a esfera manuelina, nem
castelos; e nenhuma data se lê em suas faces (8).
Com o pensamento sempre na colonização do rio da
Prata, seguiu Martim Afonso para o Sul, e daí a dias, a 26 de
Setembro, experimentou tão grande temporal que a capitânia
deu à costa, junto ao riacho de Chuí, na atual fronteira
meridional do Brasil; do que resultou perecerem sete pessoas.
Reunidos de novo todos os navios, excetuando um
bergantim também naufragado, chamou Martim Afonso a
conselho todos os que para isso eram, e neste foi assentado
que, em virtude, não só da falta de mantimentos, originada da
perda da capitânia, como do mau estado das outras duas naus,
que se não poderiam expor aos temporais do rio da Prata
naquela estação (naturalmente os conhecidos pampeiros), se
desistisse da empresa de ir colonizá-lo.
75
Apesar desta resolução, julgou Martim Afonso que,
estando tão perto desse tio, não devia deixar para mais tarde o
ato da posse dele, por meio dos padrões que levava. Jul gando
ser para isso suficiente um bergantim com trinta homens,
encarregou o comando deste, e a comissão de pôr os mesmos
padrões, a seu irmão Pero Lopes (9), que se fez de vela em
companhia de Pero de Góis, ao depois donatário da capitania
de São Tomé ou Campos de Guaitacases. – Desempenhou Pero
Lopes o mandato, subindo pelo Paraná e Uruguai, e achando -
se de volta, decorrido pouco mais de um mês. Desta
exploração do rio da Prata é que seu chefe Pero Lopes, a quem
ela deu tantos trabalhos, se compraz de nos transmitir
informações muito mais minuciosas do que costuma. Ainda
mal, são justamente todas alheias à nossa história, e mais
poderão interessar à dos estados limítrofes do Brasil pelo sul.
Muito provável é que no entremeio de tantos dias, em
que Pero Lopes demarcava o Rio da Prata, não estivessem
ociosos os pilotos que haviam ficado na costa com Martim
Afonso. Em terra tiveram ocasião de fazer freqüentes
observações astronômicas (10) sobre a latitude e longitude do
lugar e isso lhes daria a convicção, e ao capitão-mor, de que
aquela costa e, com mais razão, todo o rio da Prata, já se
achavam fora, isto é, mais a oeste, da raia até onde se estendia,
pelo tratado de Tordesilhas, o domínio português naquelas
paragens. Ao conhecimento deste fato em Portugal dev emos
atribuir o não prosseguirem em Madri as reclamações acerca
desse rio; e o desistir aquele reino de mandar mais frotas às
suas águas; e até o não doar, quando doou outras terras, as que
ficaram além das de Sant’Ana, ou da Laguna, onde terminava
a courela que de direito ainda por aí lhe tocava.
76
Talvez também pelo conhecimento desse fato, mais que
por serem aí as terras (no litoral) sáfias e areentas, é que
Martim Afonso não se deixou ficar nas plagas da atual
província do Rio Grande, onde o lançara de si o próprio mar, e
decidiu retroceder mais para o norte, a buscar outro local onde
fixar-se de preferência. Entrando no porto de São Vicente, o
bom abrigo que nele encontrou para as naus, a excelência das
águas, a abundância do arvoredo, encantador principalmente
aos que acabavam de viver nos areentos planos do Chuí, a
amenidade do clima, por certo mui preferível ao do vizinho
porto da Cananéia, onde nunca se vira o sol durante quarenta e
quatro dias, e talvez, mais que todas estas razões, a presença
de um colono português, por nome João Ramalho, que ali
contava já mais de vinte anos de residência e que,
naturalmente avisado pelos índios, apareceu dando razão da
terra e de como toda ela pelo interior era de campos e clima
semelhantes aos amenos de Coimbra onde nascera – tudo
concorreria a predispor o ânimo do capitão-mor em favor desta
paragem para fundar nela, como fundou, a primeira colônia
regular européia no Brasil. E dizemos a primeira, porque não
podemos chamar colônias regulares às pequenas feitorias
provisórias fundadas antes, nenhuma das quais vingou até
chegar a ter as honras de povoação e de vila.
É o porto de São Vicente por assim dizer formado em
um canal que, convenientemente, se afeiçoa entre duas ilhas de
mediana extensão conchegadas à terra firme. Mais metida por
esta adentro fica a que se diz de São Vicente, cuja planta
apresenta alguma semelhança ao perfil de uma cabeça humana,
vista pela face direita (11), Um pouco para o norte, se
prolonga a vizinha ilha de Santo Amaro que, nesse rumo, vai
77
fenecer na barra do canal chamado da Bertioga, corrupção de
Buriqui-oca, que quer dizer covil de bugios; o que prova que
aí devia de haver muitos; pois eram os Tupis sinceros em tais
denominações (III). Assim à dita ilha de Santo Amaro
chamaram eles do Guaimbé (12), planta deste nome, que nela
dava como verdadeira praga. A ilha de São Vicente chamavam
Orpion ou Morpion (13), nome que somente podemos explicar
como uma contração de Morubi-nhum, isto é, “campo dos
trabalhadores ou lidadores”. O nome de São Vicente lhe
proveio da povoação nela construída, que o recebeu, em
virtude de ser o que já tinha o porto.
O local desta última ilha, escolhido para assento da
colônia, foi uma quase insensível eminência fronteira à barra e
à ilha de Santo Amaro, mui lavada de ares, e situada no meio
do istmo para um farelhão ou promontório, em que ela remata
por este lado. Os morros deste promontório alimentariam os
mananciais de água para a povoação; e dariam no princípio
pedra para as obras; e os matos, que ainda hoje os cobrem,
forneceriam com a maior comodidade a necessária lenha. Um
pequeno regato, essencial para muito em qualquer povoação,
corre para o lado da barra, e vai desaguar na deliciosa praia
que segue contornando a ilha. – Para o rumo oposto, a quase
igual distância, havia outra vez água, um mar pequeno, com
beiras mui a propósito para porto e varadouro das canoas.
Finalmente, do local preferido se descobria, pela barra, o mar
até perder-se no horizonte, o que permitiria aos moradores,
sem atalaias de aviso, juntarem-se a tempo para acudir a
qualquer rebate de pirata inimigo. O viajante que percorresse a
ilha de São Vicente, em busca da melhor paragem para uma
povoação, sobretudo no mês de Janeiro, em que a praia de
78
Embaré, fronteira à barra, está alagada, ainda hoj e não
indicara outra mais adequada, se o porto de São Vicente
pudesse competir com o de Santos, aliás abafadiço e tristonho
(14).
Martim Afonso não quis, porém, limitar-se a fundar
uma só vila. À vista das informações que lhe deu João
Ramalho, assentou de reforçar esta, contra qualquer tentativa
de inimigo marítimo, com outra povoação sertaneja, que ao
mesmo tempo servisse de guarda avançada para as futuras
conquistas da civilização. As duas vilas irmãs fiariam assim no
caso de prestarem apoio uma à outra, segundo lhes viesse do
mar ou da terra o inimigo, ao passo que a marítima receberia,
ao mesmo tempo, socorros das naus do reino, a quem por seu
turno socorreria.
De São Vicente para o interior, a umas três léguas, se
levanta o continente, apresentando para o mar um paredão, em
forma de serra, às vezes elevada de mais de dois mil pés. Do
cimo manam vários riachos, dos quais um se despenha com tal
fúria que de longe se vê branquejar a espuma de seus ferventes
cachões. Chamavam-lhe os índicos Itu-tinga ou cachoeira
branca. As águas desses riachos, promiscuindo-se com as
salgadas do mar, recortam todas as planícies debaixo, por tal
forma em esteiros que, vistas estas dos altos ao longe, mais
parecem marinhas de sal, que braços de mar ou de rios. – À
serra denominavam os índicos, como nós hoje, paraná-
piacaba, o que quer dizer “de onde se vê o mar” (15).
Desde aquelesw cimos elevadíssimos, as águas baixam
com o terreno para o interior, quase insensivelmente; pois este
se reduz na essência a uma extensa chapa ou chapada, que para
o sertão se ramifica em vários sentidos até mui longe. A zona
79
vizinha ao mar, o paredão de serra para o lado dele, reforçado
por muitos espigões ainda o primeiro par de léguas para o
interior, são vestidos de vegetação vigorosa de mato-virgem,
que alcança até um linde que chamam “Borda do Campo”; pois
que daí por diante a terra não é de matos e, apenas de quando
em quando, povoada de reboleiras e de pequenas boscagens,
algumas delas de pinheiros curis ou araucários, que os índios
muito apreciavam, pelo alimento que lhes forneciam seus
grandes pinhões (16).
A algumas léguas da Borda do Campo, e próximo de
uma ribeira, cujas margens não deixam de recordar as
coimbrãs do plácido Mondego, era a aldeia em que
principalmente vivera João Ramalho, com a sua família, já
numerosa, como se pode imaginar, sabendo que vinte anos
passara livremente entre aquela gente, à lei da natureza.
Chamavam-se, tanto a aldeia como a ribeira, de Pira-tininga
ou do Peixe-seco (17). nome que em outros lugares do Brasil
se pronunciava Pira-sinunga, e queria dizer o mesmo. A
origem do nome explica a causa por onde se fundara aí a
aldeia: provinha aquela das freqüentes pira-cemas ou invasões
do peixe, pelas margens principalmente do chamado saguairu,
isto é, de certos enxurros e desenxurros, digamos assim,
demasiado rápidos, a que era, e é ainda, sujeita a dita ribeira;
em virtude dos quais o peixe ficava em seco pelas margens, o
que dava aos moradores destas grande fartura; como sucede
aos povos do litoral quando, com os temporais, dão certos
peixes à costa. O fenômeno das pira-cemas é freqüente em
vários rios do império, sobretudo nas proximidades de sua foz,
donde se pode imaginar que vem tal fenômeno a ser como uma
pequena pororoca, causada pelo desempate de suas águas com
80
as do monte do outro rio, em que aflui o da piracema. Foi a
aldeia de Piratininga que Martim Afonso escolheu para fundar
a colônia ou vila sertaneja, cujo governo militar confiou a João
Ramalho, com o pomposo título de guarda-mor do campo. Eis
a origem européia da atual cidade de São Paulo.
Ouçamos agora o que nos diz Pero Lopes de Sousa,
testemunha de vista, durante os primeiros quatro meses de vida
das ditas duas colônias: “Repartiu o capitã-mor a gente nestas
duas vilas, e fez nelas oficiais; e pôs tudo em boa ordem de
justiça; do que a gente toda tomou muita consolação, com
verem povoar vilas, e ter leis e sacrifícios, celebrar
matrimónios e viver em comunicação das artes; a ser cada um
senhor do seu; e investir as injúrias particulares; e ter todos
outros bens da vida segura e conversável”.
Nestas poucas palavras se encerram os pontos capitais
respectivos a qualquer sociedade constituída. Vemos as
colônias e as suas competentes autoridades; vemos o
reconhecimento das leis; vemos as práticas, assim do qu e
respeita às consciências, pelas cerimônias dos sacrifícios
religiosos, como ao estado social pela celebração dos
matrimônios; vemos garantida a segurança individual e a
propriedade, e sem valhacouto as tropelias e injúrias. Para
nada faltar, como bem essencial na vida “segura e
conversável”, diz-nos Pero Lopes que já viviam os colonos em
“comunicação das artes”.
Tal era o estado florescente das duas colônias, quando
Pero Lopes, por ordem de seu irmão, as deixou, fazendo-se de
vela aos 12 de Maio de 1532.
Enfim Martim Afonso não se descuidou da empresa
confiada à sua solicitude, e que mais no-lo recomenda, e o há-
81
de recomendar à posteridade, que todos os outros seus feitos
militares (apesar de mui brilhantes, de mais perecedoura
memória) praticados nesse Oriente por que tanto se afanava.
Enquanto no Brasil, não dava ele nem um dia de féria a seu
cuidado. A Igreja, a casa da câmara, o estaleiro, as sesmarias,
o tombo competente para estas, tudo o trazia ocupado – a tudo
acudia. Nem lhe consentiu o dever, nem talvez tampouco a
curiosidade, própria da sua idade, o deixar de empreender uma
jornada a Piratininga: e sesmarias chegaram até nós que ele aí
assinou. De falta de atividade nem sequer na velhice foi
acusado. O seu caráter, se tinha defeito, era antes o da viveza
afanosa, e de alguma violência.
Várias terras de São Vicente e de Piratininga destinou
ele desde logo, como era natural, para rocios e logradouros dos
dois concelhos, aos quais fixou os termos que julgou razoáveis
(18). – Escusamos dizer que estas vilas foram fundadas sem
diferença alguma do que se passaria, tratando-se da instalação
de qualquer colônia, em uma paragem menos povoada de
Portugal. Subentendeu-se que, em legislação e em tudo, os
novos moradores e os descendentes destas teriam, em relaç ão à
metrópole, os foros de naturais; e seriam governados pelas
mesmas leis vigentes, das quais nos ocuparemos mais ao
diante.
Quanto à jurisdição eclesiástica, vimos que em 1514
fora o Brasil considerado sujeito à mitra do Funchal. Cumpre
acrescentar que assim continuou ao declarar-se, em 1534,
metropolitana a sua sé, tendo por sufragâneos os bispados de
Angra, Cabo Verde, São Tomé e Goa, então criados por
Clemente VII; o que mais evidentemente se consignou na bula
82
– Romani Pontificis – de 8 de Julho de 1539, que reformou a
anterior (19).
83
buen puerto, i tiene buenos rios i la de todos Sanctos tiene dentro unos ileos
pequeños, en esta entra dos rios buenos, i nel paraje desta costa es la tierra
algo baxa, la gente desnuda i comun pan de rayses: es tierra de povo
provecho…”. – (G.).
84
não aparece letreiro algum”. Veja a Descrição da comarca de Paranaguá,
Ms. na Bib. do Porto, 437. – (A.).
Um desses marcos, com o respectivo tenente ou testemunha, foi
em 1866 recolhido ao museu do Instituto Histórico, por iniciativa do Dr.
Guilherme Schüch de Capanema, depois barão de Capanema. Na Revista,
tomo 49, parte 2ª, págs. 261-265, ocorre notícia a respeito por Moreira de
Azevedo. – (G.).
(14) É (São Vicente) situada em uma ilha que tira seis milhas em
largo e nove em circuito, antigamente era porto de mar e nele entrou
Martin Afonso a primeira vez com sua frota, mas depois com a corrente
das águas de terra do monte se tem fechado o canal, nem podem chegar as
embarcações por causa dos baixos e arrecifes. – Anchieta, Informações e
fragmentos históricos, 44. – (C.).
86
(15) Ruiz de Montoya. Conq. Espiritual del Paraguay, fol. 45 f.;
se bem que “ver” se diga (Dic Bras. pág. 78) Cepiaca. – (A.). – Na edição
da Conquista Espiritual, de Bilbao, 1892, à pág. 143. – (C.).
(19) Provas da Hist. Gen., II, n. 122, pág. 728. – Nesta bula se
diz em latim terras de brasil, e terrarum de Brasil, em vez de Brasiliae,
87
como hoje, e como já se preferira escrever no hemisfério de J. S Achoener
(1520). – (A.).
88
NOTAS EM ALGARISMOS ROMANOS
(I)
(II)
(III)
92
SECÇÃO IX
93
que por esses campos passava, mais prevenido contra os
índios, dez anos depois (1).
Enquanto Martim Afonso navegava pelo Sul, fora ter a
Pernambuco uma nau de Marselha (2), com dezoito peças e
cento e vinte homens, denominada La Pélerine, e armada à
custa do Barão de St. Blancard (3). Em lugar da feitoria
portuguesa, de seis homens, que aí havia ficado, fez o capitão
da Pélerine, Jean Duperet, construir uma fortaleza provisória,
que deixou guarnecida de trinta homens; e regressara à Europa
com uma carga que (segundo as reclamações posteriores dos
interessados, às quais nos cumpre dar algum desconto)
montava a cinco mil quintais de brasil, trezentos de algodão
(bombicis), seiscentos papagaios, três mil peles de animais,
grande número de macacos e muita bugiarias.
Tanto a nau como a fortaleza francesa tinham de ser
mui mal afortunadas. A primeira, entrando no Mediterrâneo, se
viu necessitada de arribar a Málaga; e, quando deste porto
saía, foi apresada pela armada de guarda-costa, que Portugal
mantinha à boca do estreito de Gibraltar, e que, pela
mencionada arribada da nau, soubera que vinha ela do Brasil.
A fortaleza galo-pernambucana (4), ou porque Pero Lopes teve
conhecimento da sua existência, ou porque necessitava ir no
porto em que ela estava a fazer aguada, antes de atravessar o
Atlântico, foi por tal forma pelo intrépido capitão combatida,
durante dezoito dias consecutivos (I), que se lhe rendeu (II).
Então Pero Lopes, deixando a mesma fortaleza
guarnecida de gente sua, às ordens de um Paulos Nunes, fez -se
de vela para Portugal, levando consigo duas naus francesas
que tomara, alguns índios, e trinta e tantos prisioneiros. No
princípio do ano imediato aportou em Faro; e desta cidade do
94
Algarve, seguiu logo para Évora, onde então estava a corte, e
aí chegou, ao que parece, a 20 de Janeiro de 1533 (5). Suas
naus se mandaram recolher com os franceses a Lisboa; e
quatro principais da terra, que o soberano chegou a distinguir
dando-lhes o nome de reis, foram por ordem régia vestidos de
seda.
Já havia meses que, pelos da mencionada nau apresada
no Estreito, soubera o governo de como ela havia deixado em
Pernambuco um forte com numerosa guarnição; e mandara
ordens à costa da malagueta a fim de que Duarte Coelho,
capitão-mor de uma esquadrilha aí estacionada, passasse a
Pernambuco para desalojar os intrusos (6). Com a chegada de
Pero Lopes, foi ordenado que a mesma esquadrilha, em lugar
de ir ao Brasil, ficasse cruzando na altura dos Açores (7), e
para Pernambuco foi, segundo entendemos (Vol. II, fls. 208 da
Col. de cartas do conde da Castanheira) despachada (depois de
23 de Janeiro de 1534) uma caravela, ao mando de Vicente
Martins, com ordens para Paulos Nunes (III).
Pouco antes, o governo português, instado ainda de
França pelo Dr. Diogo de Gouveia, e receoso do demasiado
desenvolvimento que os franceses iam dando ao seu comércio
com o Brasil, viu-se obrigado a adotar o plano de colonizar,
pelo simples meio de ceder essas terras a uma espécie de
novos senhores feudais, que, por seus próprios esforços, as
guardassem e cultivassem, povoando-as de colonos europeus,
com a condição de prestarem preito e homenagem à Coroa.
Providências análogas tinham adotado, com proveito, os reinos
da Europa, para se povoarem com a necessária disciplina,
sobretudo nos lugares fronteiriços aos inimigos em que, para
fugir da perigosa fraqueza, era necessária toda a união e a
95
maior subordinação; e para convocar colonizadores com
alguns capitais, era indispensável conceder-lhes, sobre os
colonos, que eles contratavam e levavam à sua custa, certo
ascendente (8).
Foi, pois, resolvido que o Brasil se dividisse (9) em
grandes capitanias, contando para cada uma, sobre a costa,
cinqüenta ou mais léguas; o que el-rei participou logo a
Martim Afonso, na resposta às cartas que o mesmo Martim
Afonso escrevera de Pernambuco, dando conta da tomada das
naus francesas. Embora seja essa resposta bastante conhecida ,
por andar reproduzida em muitos livros, julgamo-la de tal
importância que não nos é possível deixar de inclui-la também
neste lugar. Diz assim:
“Martim Afonso, amigo: Eu el-rei vos envio muito
saudar.
“Vi as cartas que me escrevestes por João de Sousa; e
por elle soube da vossa chegada a essa terra do Brasil, e como
ieis correndo a costa, caminho do Rio da Prata; e assim do que
passastes com as naus francesas, dos cossairos que tomastes, e
tudo o que nisso fizestes vos agradeço muito; e foi tão bem
feito como se de vós esperava; e sou certo qual a vontade que
tendes para me servir.
“A nau que cá mandastes quizera que ficára antes lá,
com todos os que nella vinham. Daqui em diante, quando
outras taes naus de requeriam capitanias de cincoenta leguas
cada uma; e segundo se requerem, parece que se dará a maior
parte da costa; e todos fazem obrigações de levarem gente e
navios à sua custa, em tempo certo, como vos o Conde mais
largamente escreverá; porque elle tem cuidado de me requerer
vossas cousas, e eu lhe mandei que vos escrevesse.
96
“Na costa da Andaluzia foi tomada agora pelas minhas
caravelas, que andavam na armada do Estreito, uma nau
franceza carregada de brasil, e trazida a esta cidade; a qual foi
de Marselha a Pernambuco, e desembarco gente em terra, a
qual desfaz uma feitoria minha que ahi estava, e deixou lá
trinta (10) homens, com tenção de povoarem a terra e de se
defenderem. E o que eu tenho mandado que se nisso faça
mandei ao Conde que vo-lo escrevesse, para serdes informado
de tudo o que passa, e se há-de fazer; e pareceu necessario
fazer-vo-lo saber, para serdes avisado disso, e terdes tal vigia
nessas partes, por onde andaes, que vos não possa acontecer
nenhum mau recado: e que qualquer força ou fortaleza que
tiverdes feita, quando nella não estiverdes, deixeis pessoa de
quem confieis, que a tenha a bom recado; ainda que eu creio
que elles não tornarão lá mais a fazer outra tal; pois lhe esta
não succedeu como cuidavam.
“E mui declaradamente me avisai de tudo o que
fizerdes; e me mandai novas de vosso irmão, e de toda a gente
que levastes; porque com toda a boa que me enviardes,
receberei muito prazer” (11).
A recepção desta carta (12) devia apressar a partida do
capitão-mor para a Europa. Vê-se dela que o rei, com o seu
conselheiro, o Conde da Castanheira, ansiava primeiro ouvir
os votos de pessoas práticas, como o capitão-mor do Brasil,
para não ir tanto às cegas, na doação das suas terras. Assim o
entendeu também Martim Afonso; e deixando por seu lugar-
tenente, com os poderes que podia delegar, a Gonçalo
Monteiro (Rev. do Inst. Hist. 9, 160) na colônia de São
Vicente, partiu para Portugal, onde chegou naturalmente antes
do meado do ano de 1533 (13).
97
Bem que, como se vê da carta acima transcrita, a
resolução de se dividir o Brasil por donatários foi tomada em
1532, e já então se fizeram alvarás de lembrança por algumas
doações, só em Março de 1534, mês em que partia (14) Martim
Afonso para a Índia, é que se começaram a passar as cartas ou
diplomas aos agraciados, que gozariam, de juro e herdade, do
título e mando de governadores das suas terras, as quais
tinham pela costa mais ou menos extensão; e por conseguinte
eram maiores ou menores os quinhões, segundo o favor de que
gozavam e talvez os meios de que podiam dispor.
Compreendiam-se nas doações as ilhas que se achassem até à
distância de dez léguas da costa continental. As raias entre
capitania e capitania se fixaram por linhas geográficas tiradas
de um lugar da mesma costa, em direção a oeste. Assim o
território ficou verdadeiramente dividido em zonas paralelas,
porém umas mais largas que outras. Este meio de linhas retas
divisórias imaginárias, que ainda com os mais exatos
instrumentos num terreno muito conhecido seriam quase
impossíveis de traçar, era o único de que se podia lançar mão,
pelo quase nenhum conhecimento corográfico que havia do
país, além do seu litoral. Em algumas doações, nem foi
possível declarar o ponto em que principiavam ou acabavam.
Incluía-se apenas a extensão da fronteira marítima, e
designavam-se os nomes dos dois donatários limítrofes.
Manifesta é a insuficiência de uma tal demarcação que,
para algumas capitanias, veio a dar origem a leitos que
duraram mais de um século.
Doze foram os donatários: mas verdadeiramente quinze
os quinhões, visto que os dois irmãos Sousa tinham só para si
cento e oitenta léguas, distribuídas em cinco porções
98
separadas, e não em duas inteiriças. Com razão deviam eles de
ser, pelos serviços importantes que acabavam de prestar no
próprio Brasil, os mais atendidos na partilha.
A Martim Afonso, a quem a carta régia acima fazia
terminantemente a promessa, foram adjudicadas, naturalmente
por sua própria escolha, as terras da colônia de São Vicente, e
por conseguinte com ela os gastos já feitos pelo Estado para
fundá-la. O não se mencionar esta cláusula fez que, em virtude
da letra da carta de doação, se entendesse tempos depois
pertencer esta vila aos herdeiros de Pero Lopes, cuja doação
começava do lado do norte da barra grande de São Vicente. Os
dois quinhões de Martim Afonso compreendiam as terras que
correm desde a barra de São Vicente até doze léguas mais ao
sul da ilha da Cananéia, ou proximamente até uma das barras
de Paranaguá; e para o lado oposto, as que vão desde o Rio
Juquiriqueré até treze léguas ao norte do Cabo Frio, que depois
se fixou pela barra de Macaé; ficando por conseguinte suas as
magníficas terras de Angra dos Reis, as da soberba baía de
Janeiro, e do Cabo Frio. Eram nada menos que cem léguas
contadas sobre o litoral; mas em virtude do rumo, que durante
essa extensão toma a costa, vieram a produzir, na totalidade,
em léguas quadradas, alguns milhares de menos do que a
vários dos outros, como se verá.
A extensão do Juquiriqueré até a barra de São Vicente,
e a de Paranaguá para o sul até as imediações da Laguna, que
chamavam terras de Sant’Ana (15), foi doada a Pero Lopes
que, além destas porções, que perfaziam cinqüenta léguas
sobre o litoral, recebeu, desde a ilha de Itamaracá inclusive
para o orte, trinta léguas mais, como abaixo diremos, quando,
costeando como vamos, o Brasil de sul a norte, chegarmos,
99
com a nossa resenha, à paragem onde delas se encontram.
Com a porção mais setentrional de Martim Afonso
entestavam as trinta léguas doadas a Pero de Góis, e que iam
terminar no baixo dos Pargos, ou antes de Itapemirim
proximamente. Pero de Góis prestara também importantes
serviços na armada de Martim Afonso, a cuja família devia ser
mui afeiçoado, e até foi ele quem se encarregou de escrever
por sua letra o diário de Pero Lopes, cujo original entregamos,
em 1839, pela primeira vez, à imprensa (16). Essa afeição não
deixaria de ser tomada em conta no repartimento da terra para
evitar as demandas e pleitos que pudessem acaso resultar da
falta irremediável da precisão nas demarcações laterais.
Contíguo a Pero de Góis, cinqüenta léguas sobre a
costa, as quais alcançavam até o rio Mocuri, veio a ficar Vasco
Fernandes Coutinho, também fidalgo da casa real; e que
havendo servido em Goa, em Malaca e na China, às ordens de
Affonso d’Albuquerque (17), conforme recordam as historias
da Ásia, depois de juntar algum cabedal se havia retirado a
Alenquer (vila situada, como sabemos, a algumas léguas de
Lisboa, perto de Tejo) para aí desfrutar, com a ajuda da
moradia, de uma tença que recebia do Estado. Naturalmente
nessa vila, por intermédio de algum agente do conde da
Castanheira, proprietário vizinho seu, se recomendaria para
entrar no número dos da partilha.
Do Mocuri para o norte vinha a capitania de Porto
Seguro, com outras cinqüenta léguas concedidas a Pero do
Campo Tourinho, rico proprietário de Viana do Minho.
Seguiam-se os Ilhéus, nas cinqüenta léguas até a barra
da Bahia, doadas a Jorge de Figueiredo Correia, também
fidalgo da casa real, e que exercia na corte o cargo de escrivão
100
da Fazenda, o qual lhe daria lugar a estar informado do que se
passava, e a pedir para si o que tão generosamente via
conceder a outros. A raia entre esta capitania e a precedente
não se indicava.
Tudo quanto se estende desde a barra da Bahia à foz do
rio de São Francisco obteve para si Francisco Pereira
Coutinho, excetuando-se, porém, o mesmo rio que devia ficar
exclusivamente a Duarte Coelho; e, segundo se diz na própria
doação, foi-lhe conferida tal graça, em atenção aos muitos
serviços que ele havia prestado, assim em Portugal, como “nas
partes da Índia, onde servira muito tempo com o Conde
Almirante (18) e com o Vice-Rei D. Francisco de Almeida, e
com Affonso d’Albuquerque, e em todos feitos e cousas que os
ditos capitães nas ditas partes fizeram, nos quaes dera sempre
de si mui boa conta”.
As Alagoas e parte do atual território da província de
Pernambuco tocaram, na extensão de sessenta léguas, a Duarte
Coelho, valente capitão que muito se distinguira por feitos no
Oriente, em cujos fastos achamos mais de uma vez consignado
honrosamente o seu nome, em missões ao reino de Sião e à
China, no descobrimento da Cochinchina, no recontro que reve
com duas armadas, conseguindo fazer vinte e tantas presas, e
em outras ações ilustres (19). Havia sete anos que voltara do
Oriente, e se casara com D. Brites, irmã de Jerônimo d’
Albuquerque. Como, por ocasião da primitiva repartição das
terras, lhe haviam ido ordens para navegar até Pernambuco (da
costa da Malagueta, onse de achava cruzando), a fim de
destruir a feitoria deixada pela nau de Marselha, é natural que
daí proviesse o ser preferido para esta parte da costa, de que
porventura chegaria a ter conhecimento prévio.
101
Um pouco ao norte da foz do rio Igaraçu ficava a
extrema do domínio de Coelho. À margem esquerda da foz
deste rio, no canal de Itamaracá, fora levantada a feitoria de
Cristóvão Jaques. A cinqüenta passos ao norte dela, onde se
diz “Os Marcos”, em virtude dos que aí se postaram, era o
ponto donde partia designadamente a raia setentrional da
mesma capitania. Para o norte se contavam as restantes trinta
léguas da pertença do donatário Pero Lopes, as quais
alcançavam a baía da Traição, compreendendo parte da atual
província da Paraíba, e incluindo a fértil ilha de Itamaracá.
A extensão d litoral daí para diante, o resto da atual
Paraíba e Rio Grande do Norte, coube a João de Barros e a
Aires da Cunha, de parceria; contando-se-lhes cem léguas
além da baía da Traição. Seguiam-se sobre o Ceará quarenta
léguas para o cavaleiro fidalgo Antônio Cardoso de Barros
(20), e depois de mediarem setenta e cinco para Fernando
Álvares de Andrade, e que vinham a incluir parte da costa do
Piauí e Maranhão atual “desde o cabo de Todos os Santos, a
leste do rio Maranhão, até junto ao rio da Cruz (IV)”,
competiam outra vez àqueles dois donatários associados,
Barros e Cunha, cinqüenta léguas mais, começando a contá-las
de loeste “desde a abra de Diogo Leite até o dito cabo de
Todos os Santos”.
Fernando Álvares de Andrade, do conselho do rei, era
então tesoureiro-mor do Reino (Barros, Déc. I, VI, 1º). –
Enquanto viveu, diz-nos o conde da Castanheira, foi
solicitador acérrimo em favor de providências a bem do Brasil.
Aires da Cunha era um valente nauta que se distinguira
como capitão-mor do mar em Malaca (Barros, Déc. III, liv. 10,
c. 6. – IV, liv. 1º, cs. 9, 10 e 11. – Couto, IV, liv. 1º, c. 6; liv.
102
2º, cs. 2 e 3). Recolhendo dos Açores, onde se achava com
uma esquadrilha de caravelas de guarda-costa e onde prestara
serviços importantes, em Setembro de 1533 (21), chegara a
Lisboa, comandando um galeão, com o qual se oferecera a
destruir a feitoria que em Pernambuco fundara a nau de
Marselha La Pélerine, comissão que não lhe foi incumbida,
por chegar pouco depois Pelo Lopes, deixando concluída essa
empresa.
Quanto ao donatário João de Barros, escusado é dizer
que se trata do que viria a ser historiados da Índia, com tanta
glória para a nação, e fortuna para a língua, em que ele tão
vigorosamente escrevia. Louve-se muito embora, nos
historiadores portugueses, a crítica de Brandão, o colorido de
Brito, o fraseado de Sousa, de Lucena, ou de Mendes Pinto,
sempre haverá que conceder a Barros toda a pureza na
linguagem, muita propriedade na frase, e um estilo elegante,
principalmente quando descreve ou pinta certas paragens,
ostentando as muitas noções que tinha das coisas do Oriente,
como quem, aproveitando-se do seu ofício de feitor da casa da
Índia, não praticava em outro assunto com os que de lá
chegavam. Bem alheias vereis sempre as Décadas da Ásia,
assim dos soporíferos contos de Castanheda e de Azurara,
como das pregações homéricas do velho Fernão Lopes; e por
isso mereceram elas a glória de ser o livro português que mais
folheou o imortal cantor do Gama. O conde da Castanheira
tinha o erudito feitos da Casa da Índia em tão boa conta que a
seu respeito dizia num relatório (22) ou exposição ao monarca:
“O feitor hei eu por tão fiel em seu officio que casi me
parece que ainda que furtar fôra virtude elle o não fizera:
entende o negocio muito bem, ha mister mais favor que
103
sofreadas. Não fôra mau para o negocio da cada (23) não ser
elle incrinado a outros, os quaes, não somente não são illicitos,
mas muito proveitosos à terra”. Estes outros negócios lícitos,
úteis à terra, a que se mostrava inclinado o pobre feitor, eram
naturalmente as ocupações de sua pena, que tanta glória dão ao
país, e que revertem em quem assim o protegia, para escrever
suas obras, e colonizar a pátria e o orbe com as suas criações.
No número destas contaríamos hoje uma crônica do Brasil até
o seu tempo, se havendo vivido mais anos, houvesse ele
podido realizar (24) os seus intentos.
Resta-nos unicamente tratar do cavaleiro fidalgo
Antônio Cardoso de Barros, cuja capitania, computada em
quarenta léguas de costa, se estendia, aquém da de Fernando
Álvares, desde o rio da Cruz, em dois graus e um terço,
correndo para leste, até a Angra dos Negros, em dois graus
(25). Esta capitania tinha apenas seis léguas de espaço de
latitude, pois seguia de dois graus a dois graus e um terço. –
Dos precedentes deste donatário não encontramos notícias. –
Segundo certos indícios de ruínas de pedra e cal, e ncontradas
depois na Tutóia (26), aí pretendeu estabelecer uma colônia,
que se viu obrigado a desamparar; e mais tarde aceitou da
coroa um cargo de fazenda para a Bahia, e ao recolher-se ao
Reino naufragou, e foi barbaramente assassinado pelos índios.
Por certas expressões, que lemos no relatório
mencionado do conde da Castanheira, deduzimos que não
houve, entre os poderosos da corte, grande concorrência, como
dá a entender a carta régia a Martim Afonso, para alcançar tais
capitanias, que nem sabiam alguns dos agraciados que coisa
eram. Reconhece o conde que a distribuição não tinha dado
ainda tantos resultados como se esperava, e desculpa -se de que
104
a tal respeito não se pôde fazer mais, por o não consentirem os
que queriam ir, “e serem poucos os que sobre isso
competiam”.
Embora pareça que nada há que opor a estas reflexões,
porque a necessidade era a lei, e porque urgia o estímulo aos
empreendedores, que naturalmente imporiam as condições, não
podemos dissimular que, em nosso entender, o governo andou
precipitado em distribuir logo a terra, de juro e herdade:
reconhecemos a necessidade que havia de colônias por toda a
extensão da costa; mas talvez estas se houveram da mesma
sorte obtido e outras muitas após elas, se as doações se
houvessem limitado, por então, a doze ou mais quinhões
muito mais pequenos; e que constassem de algumas léguas
quadradas, próximas aos portos principais da costa, já então
conhecidos e freqüentados. A colonização não se teria
disseminado tanto (chegando às vezes a perder-se), e houvera
sido mais profícua, e dado resultados mais prontos; e o
governo poderia ter guardado um novo cofre de graças, para
recompensar os serviços feitos pelos abastados do comércio
que aspirassem a satisfazer a tendência existente no coração
humano de vincular, para sucessores, as fortunas adquiridas. –
Com doações pequenas, a colonização se teria feito com mais
gente, e naturalmente o Brasil estaria hoje mais povoado –
talvez – do que os Estados Unidos: sua povoação seria
porventura homogênea, e teriam entre si as províncias menos
rivalidades que, se ainda existem, procedem, em parte, das tais
grandes capitanias. Pois é possível crer que esses poucos que
competiam para ser donatários, como diz o conde da
Castanheira, se não contentassem sem a idéia do domínio de
muita terra embora inútil, e sobre que nem sequer podiam
105
saciar com os olhos, mas só com a imaginação, sua cobiça,
quando na maior parte eram de sertão, onde não poderiam ir,
nem foram, em sua vida? O mal foi fazer-se tudo às pressas” E
o caso é que isso, por ser mal feito, não se expulsaram de
nossos mares os navios franceses, que era o resultado principal
que se pretendia obter.
É certo que a mania de muita terra acompanhou sempre
pelo tempo adiante os sesmeiros, e acompanha ainda os nossos
fazendeiros, que se regalam de ter matos e campos em tal
extensão que levem dias a percorrer-se, bem que às vezes só a
décima parte esteja aproveitada; mas se tivesse havido alguma
resistência em dar o mais, não faltaria quem se fosse
apresentando a buscar o menos. Anos antes tinham aparecido
colonizadores para os Açores, com muito mais pequenas
doações de terras; e os Açores e a Madeira têm hoje,
proporcionalmente mais povoação que os distritos de Portugal,
naturalmente porque foram as doações mais pequenas e em
maior número: e apesar de haverem sido muitos dos colonos
estrangeiros, como os que levou Hürter para o Fayal e Bugres
para a ilha Terceira, nem por isso a colônia, formada de
flamengos, ficou flamenga, nem falando flamengo.
Na distribuição primitiva das terras, sem dúvida se
deram muito notáveis desigualdades, não tanto no avaliar as
doações pelo maior ou menor número de léguas sobre a costa,
que esse foi em geral de cinqüenta; bem que por exceção se
estendesse a oitenta ou a cem, ou se restringisse a trinta. As
maiores e mais caprichosas desigualdades se encontram,
quando hoje vamos sobre o terreno apurar até onde chegavam,
pelo serão a dentro, os direitos senhoriais concedidos; e
medimos aproximadamente os milhares de léguas quadradas
106
que, segundo a correspondente carta de doação, tocava a cada
um destes Estados, geralmente com maior extensão de
território do que a mãe-pátria; extremando de loeste, pela
meridiana da raia que estabelecemos (27), na suposição de se
contarem as léguas como de dezesseis graus e dois terços.
Procedendo a esta apuração, fácil será conhecer que as
doações, em milhares de léguas quadradas, vinham a guardar,
pouco mais ou menos, as proporções seguintes:
1º - Duarte Coelho, doze milhares;
2º - Pero Lopes, sete milhares e meio;
3º - Francisco Pereira, sete milhares;
4º - Figueiredo, quase o mesmo;
5º - Tourinho, seis milhares e meio;
6º e 7º - Barros e Cunha, quase o mesmo cada um;
8º - Vasco Fernandes, cinco milhares e meio;
9º - Martin Afonso, pouco mais de dois e meio;
10º - Pero de Góis, menos de dois;
11º - Fernando Álvares, menos de milhar e meio;
12º - Antônio Cardoso, pouco mais de seiscentas
léguas.
(1) Também desse infausto sucesso trata Oviedo, no Liv. 23, cap.
10 (T. 2º, pág. 188). – (A.). – Sobre o caminho seguido por Cabeça de
Vaca, interpretação de modos tão difere ntes, consulte-se Rio Branco,
Exposição, etc., II, págs. 224-225. – (C.). – A expedição, composta de
quarenta besteiros e outros tantos espingardeiros, comandada por Pero
Lobo, um dos capitães de Martim Afonso, e guada por Francisco de
Chaves, partiu de Cananéia, no primeiro dia de Sertembro de 1531, -
Diário de Pero Lopes, I, págs. 206-207, da edição de Eugênio de Castro.
Entranhando-se pelo sertão, rumo do sudoeste, em busca de metais
preciosos, dos expedicionários não houve mais notícias senão a que, dez
anos depois, transmitiu o adiantado Alvar Nuñez Cabela de Vaca:
108
“Llegados que fueron al rio Yguaçu fu[e informado de los índios naturales
que el dicho rio entra en el rio del Parana, que asi mismo se llama el rio
de la Plata. Y que entre este rio del Parana y el rio de Yguaçu mataron los
índios a los Portugueses que Martim Afonso de Sousa ambio a descubrir
aquela tierra; al tiempo que pasavam el rio en canoas dieron los índios en
ellos y los mataron; algunos destes de la del Parana que ai mataron a los
Portugueses, le avisaron al governador (Cabeça de Vaca) que los índios
del rio del Pequeri, que era mala gente, enemigos nuestros, y que estavon
aguardando para acometerlis y matarlos en el passo del rio...”. –
Comentarios de Alvar Nuñez Cabeça de Vaca, adelantado y governador
de la provincia del rio de la Plata. Scriptos por Pero Hernández, scrivan
y secretario de la provincia, y dirigidos al Serenisimo, muy alto y muy
poderoso Señor el Infante Don Carlos, N. S.”, fls. LXVIII v., Valladolid,
1555. – Dos termos do itinerário de Cabeça de Vaca, Rio Branco ( op. et
loc. cit.) deduziu elementos de prova de que naquela região, cuja posse a
República Argentina disputava ao Brasil, os Portugueses precederam de
dez anos aos Espanhóis no descobrimento. – (G.).
110
antemão já cantava vitória? Conterá referência a algum fato de que não
temos outra notícia? – (C.).
112
(23) Da Índia, entende-se. – (A.).
(I)
(II)
(III)
114
Consta de uma certidão passada a 15 de Junho de 1535, por Heitor
de Barros, escrivão da feitoria de Pernambuco, sobre os serviços do
bombardeiro Diogo Vaz, que “chegando a pernambuquo do Ryo da prata
domde vynha foy necesariho ho dyto Dº Vaz fyquar é o dyto
pernambuquo para serviço delRey nosso sõr ho quoall pº lopes mãdou e
fez fyquar por cõdestabre da fortaleza que se fez de q. Vte. miz [Martins]
feReyRa [Ferreira] hera quapitã e quomesou a servyr no dyto
pernambuquo aos trynta dyas do mês doutubro da era de myll e qujñetos e
trynta e dos años [até] q. chegou palus nniz [Pa ulos Nunes] na qaRavela
espeRa pera ser quapitã do dyto pernambuquo quomo ho foy e fez
cõdetabre da fortaleza a xpº franq e ho dyto Dº Vaz servya de
bombardeyRO do primeiRo de mayo da era de trynta e três años esta de
mjll e qujn~etos e trynta e cinquo e q. estamos q. aquj chegou Duarte
qoelho a esta fortaleza a nove dyas do mês de março da dyta era e q. lhe
foy entregue a duta fortaleza e lhe deu lycensa pera q. se qujzesse jr pera
ho Reyno”. – Doc. da Torre do Tombo, Corpo Cronológico, II, 202,
citado pelo dr. Jordão de Freitas, Lusitânia, vol. III. fascículo IX, pág.
326. – em carta de D. João III ao Conde da Castanheira, de 8 de Fevereiro
de 1533, determina o rei que da armada de Duarte Coelho, que estava na
costa da Malagueta, se mandasse ao Brasil, por to de Pernambuco, uma
caravela com sessenta homens, e que nela fosse Paulos Nunes, “o quall
estee por capitão da gente que llaa lleyxou Pero Llopez de Sousa...” – J.
D. M. Ford, Letters of John III, citadas, pág. 91. – Outra carta de 16 dos
mesmos mês e amo, o rei aprovava o regimento que Paulos Nunes devia
levar; escrevia que Pero Lopes lhe dera conta do que era necessário sobre
Manuel de Braga e Vicente Martins, piloto, e que logo mandava as
competentes provisões, ibidem, pág. 99. – (G.).
(IV)
116
SECÇÃO XXIII
(3) “De Santa Cruz o nome lhe poreis” – (Lusíadas, 10, 140).
Referência directa ao nome do Brasil encontra -se no canto 10,
estr. 63, quando fala de Martim Afonso de Sousa:
“... que já será ilustrado
no Brasil com vencer e castigar
O pirata francês ao mar usado.”
Outras alusões: cantos 2, 45; 5, 4; e 7, 14. – (A. e G.).
133
(4) A primeira edição da obra de Acosta saiu em Salamanca,
1589, em latim. Vertida em castelhano na edição citada no texto ( História
/ Natural / y Moral delas / Índias / en que se tratan las cosas / notables
del cielo, y elementos, metales, plantas, y ani - / males dellas: y los ritos,
y ceremonias, leys y / gobierno, y guerras de los índios, etc.) Sevilla en
casa de Iuan de Leon, 1590, in – 4º - Logo no ano seguinte teve outra na
mesma cidade e ainda em barcelona. Existem dela traduções em línguas
italiana, francesa, holandesa, alemã e inglesa. – Acosta foi provincial dos
jesuítas no Peru, onde residiu dezessete anos; nasceu em Medina del
Campo em 1539 e faleceu em Salamanca em 1600. – (G.).
(28) Brás Cubas teria então uns oitenta anos, pois faleceu, com
oitenta e cinco, em 1592, como se colige de seu epitáfio no presbitério da
hoje matriz de Santos, que consigna os seus principais feitos, que
explanará a sua biografia melhor do que esta história o pudera aqui tentar.
– (A.). – Desta biografia anunciada aqui pelo Autor, ignora -se o
paradeiro. – (C.). – Na Revista do Instituto Histórico de São Paulo, tomos
137
13, 241/249, e 18, 13/36 e 37/43, ocorrem bons subsídios de Eugênio
Egas, F. C. de Almeida Morais e Benedito Calixto sobre o fundador de
Santos. O epitáfio supra mencionado diz assim:
Sª DE BRAZ CUBAS
CAVALLEIRO FIDALGO DA CAZA D’EL-REY
FVNDOV E FEZ ESTA VILLA SENDO CA
PITAN E CAZA DE MISERICORDIA
ANNO 1543
DESCVBRIO OVRO E METAES
ANNO 60
FEZ FORTALEZA POR MANDO D’EL-REY
D. JVAN III
FALLECEV NO ANNO DE 1592 A.
A História da Colonização Portuguesa do Brasil, III, 260/261,
insere três documentos importantes sobre B rás Cubas. – (G.).
138
(33) Sobre as terras de Estêvão Costa, veja tomo I, 169. (G.).
(49) O fato não parece muito certo; pelo menos tem sido
ultimamente contestado. – (C.). – Pedro de Azevedo, História da
Colonização Portuguesa do Brasil, III, 212/213, não admite mais dúvida
a respeito. – (G.).
142
(50) Veja a nossa publicação – Da Literatura dos Livros de
Cavalarias, com o respectivo aditamento [Viena, 1872]. – (A.).
143
NOTAS EM ALGARISMOS ROMANOS
(I)
(II)
147
A edição de 1851 foi reproduzida na mesma Revista em 1879,
com defeituosa revisão, e alcançou outra na Brasiliana da Companhia
Editora Nacional, São Paulo, 1939. Sua última edição, com o título de
Notícia do Brasil, saiu na Bibiloteca Histórica Brasileira da Livraria
Martins Editora, São Paulo, s/d (1945), 2 tomos, dirigida pelo sábio
Professor Pirajá da Silva, que a opulentou com exaustiva introdução e
eruditos comentários e notas, tudo relacionado com a história dos
primeiros povoadores, sua genealogia, a etnografia, a corografia, a
agricultura, flora, fauna e mineralogia do Brasil quinhentista. São lições
de mestre, que tornam o livro do senhor de engenho do Recôncavo ainda
mais valioso e, para tudo dizer, insuprível em qualquer biblioteca
brasileira. – (G.).
(III)
149
TEXTOS DE VARNHAGEN
TERCEIRO SÉCULO
(século XVIII)
150
SECÇÃO XLV
D. JOSÉ I E POMBAL. ADMINISTRAÇÃO
JOSEFINA. LETRAS.
151
marquês de Pombal (1). – E quando a evidência dos fatos fale
por um e outro, os seus detratores poderão condenar alguns
erros, que eles cometessem, como homens que eram; acaso
perderão sua autoridade desde que intentem infamá-los, o que
aliás não causará admiração aos que saibam que não faltam
católicos que nem sequer respeitam a memória do sábio
pontífice Clemente XIV (2), - só pelo fato de haver abolido a
Companhia de Jesus, - levado por exigências a que acaso
qualquer outro não houvera talvez tão pouco resistido.
Possuía el-rei D. José grandes dotes para rei,
começando pelo amor do país, da glória e da virtude. Era
benigno, verdadeiro e probo. De sua firmeza de caráter,
qualidade primeira nos que governam, não necessitamos mais
prova que a do modo como soube empatar tantas e tão
diferentes intrigas que lhe armaram contra o seu ministro
Pombal; e isso apesar de que era, com compleição, um pouco
timorato.
Flagelado pela Providência, com um terremoto,
acometido por um atentado de alguns de seus vassalos,
palpado pela guerra estrangeira, - a nada se abalou o seu
grande ânimo para deixar de conservar à frente da
administração o homem que, em meio de seus defeitos,
desejava a todo transe despertar a apatia da nação, restaurand o
a sua dignidade e independência; - e que, quando nos
perigosos momentos do célebre terremoto em Lisboa, outros
ministros fugiam ou se escondiam, ordenava “prontas e bem
entendidas providências no meio da calamidade geral” (3), e,
segundo certa frase proverbial, ia a el-rei pedir as ordens, para
“enterrar os mortos e cuidar dos vivos”.
E não só dos vivos, como também dos vindouros cuidou
152
e muito nos anos (perto de vinte e dois) que, ainda depois do
mesmo terremoto, foi ministro até o falecimento do rei. Ai nda
hoje estamos desfrutando dos benefícios que nos legou a
ciência desse grande estadista; isto apesar que algumas leis
teve ele mesmo que reformar ou revogar, e apesar da reação
imprudente que distinguiu o reinado seguinte, e das tendências
tão excessivamente inovadoras do século. Assim, cremos que
todo brasileiro que for a Lisboa verá com gosto a memória de
el-rei D. José, com o busto do sábio ministro restituído ao seu
pedestal, por justo decreto do primeiro imperador do Brasil
(4). E começaremos por dizer que as leis josefinas não ficavam
em letras mortas: eram logo cumpridas, pois tinha D. José um
ministro, que, sabendo aproveitar os homens, escolhia logo
quem as havia de executar, sendo que não apresentava à
sanção a lei, senão depois de haver preparado o seu
recebimento no país, à maneira do bom agricultor que sabe de
antemão adubar a terra, em que tem de lançar a semente, para
que dê sazonados frutos. – Com magistrados e fiscais das leis,
corruptos ou covardes, não há leis que valham, nem povo que
se melhores, nem patriotismo que se acrisole: nem a
constituição mais bela do mundo felicitará jamais qualquer
poro, quando ele não esteja preparado, por meio de virtudes
domésticas, para não sofismar os seus mais sagrados dogmas.
Começaremos por fazer menção da empresa, talvez
mais importante, levada avante nesse reinado, a favor da
nacionalidade brasileira: - a de haver incorporado de todo no
Estado, resgatando-as por meio de indenizações convencio-
nadas com os interessados, e que consistiam em títulos e
pensões ou padrões de juros (de 600$000 a 2:000$000), todas
as capitanias que ainda tinham donatários, e eram umas onze,
153
pelo menos, a saber: as de Cametá (5), ilha de Joanes (6), de
Caité (7), de Cumá (8), de Itamaracá (9), do Recôncavo da
Bahia (10), de Itaparica (11), dos Ilhéus (12), de Porto Seguro
(13), Campos de Goitacazes (14) (sem dúvida as duas reunidas
já em uma só) e São Vicente (15).
No militar sabido é como ao reinado del-rei D. José e
ao conde de Lippe remonta a base da organização do nosso
exército, começando pelo seu regulamento. Em todas as
capitanias se aumentaram as forças da tropa de linha, e em
virtude das guerras do Sul, regimentos inteiros vieram de
Portugal. Em Minas, São Paulo e Rio Grande se organizaram
companhias de dragões, combatendo a pé e a cavalo, e por
conseguinte apropriados a prestar, em seus vastos campos,
apoio à autoridade. – O aumento dos terços de auxiliares de
cavalaria e corpos de ordenança mereceu também muito
especiais atenções do governo. Para quase todas as vilas f oram
nomeados capitães-mores, e freqüentemente os que come-
çavam servindo nos auxiliares e ordenanças, quando se
distinguiam por serviços importantes, eram passados em seus
mesmos postos para a primeira linha.
Na instrução e obras públicas, no comércio, lavoura e
indústria, na navegação, na arrecadação da Fazenda e na
governação do Estado, na organização militar, em úteis
reformas judiciais, em providências benéficas e caritativas, o
dedo gigânteo de Pombal ficou assinalado neste país.
Benefícios legítimos do reinado de José I experimentou
também o Brasil na instrução pública, em primeiro lugar pela
admirável reforma da Universidade de Coimbra, que levou a
cabo, pondo-a, como se vê dos seus Estatutos, especialmente
nas faculdades de direito, filosofia e matemáticas, a par das
154
primeiras do seu tempo. A esta reforma, em que trabalharam
muito dois beneméritos brasileiros, o bispo conde reformador
D. Francisco de Lemos e seu irmão João Pereira Ramos,
deveram depois outros brasileiros a ilustração, com que
serviram com tanta distinção nesse reinado, que muito os
protegia, e com que ainda nos últimos tempos puderam bem
servir o seu País. Para realizá-la o ministro Pombal não
hesitou, como patriota superior a prevenções, de fazer vir até
de fora capitais de inteligência e de atividade, nas pessoas dos
Vandellis, Francinis, Dallabellas, Blascos e outros. – Não foi
menor o benefício que resultou da reforma dos estudos das
escolas menores, o restabelecimento do colégio dos Nobres,
tudo debaixo da inspeção da Mesa Censória, tribunal
encarregado da censura dos livros, que ficaram isentos de
passar pelas três censuras, da inquisição, do desembarbo do
paço e do ordinário. para a manutenção destas escolas foi
estabelecido o imposto do subsídio literário para o reino e
conquistas (16), em vez dos parciais, que foram abolidos. Os
edifícios monumentais da cidade do Pará, levantados desde
que ideou, em 1761, preparar aí um refúgio, em caso de
necessidade, ao trono da casa de Bragança, recomendam a sua
previsão (17). Pela maior parte foram delineados pelo
arquiteto Antônio José Landi, que para esse fim despachou
(18). O palácio, hoje ocupado pela presidência da província,
com quinze janelas de frente, três das quais no corpo do meio,
é um dos mais esplêndidos do Brasil. A sé e as igr ejas de São
João e Santa Ana são idênticos testemunhos do favor real que
presidiu à sua ereção.
O comércio em geral deveu ao reinado de José I o
estabelecimento de uma aula de comércio, em Lisboa, para
155
guarda-livros e praticantes, da ereção de um tribunal, ou Junta
do Comércio, para o animar e proteger, em utilidade do bem
comum dos seus domínios, tendo em geral as atribuições e
privilégios da antiga Companhia do comércio. A instituição
em 1755, da companhia do Grão-Pará e Maranhão (19), com o
fundo e capital de um milhão e duzentos mil cruzados, fez
surgir estas duas capitanias do definhamento em que jaziam.
Outro tanto sucedera ao vizinho distrito de Venezuela desde o
estabelecimento, em 1730, de uma companhia semelhante (20).
O Maranhão principalmente, cujos produtos antes se achavam
empatados, e que parecia condenado a volver outra vez à
barbárie, levantou cabeça, e começou a rivalizar com as
províncias mais opulentas (21). O algodão e o arroz especial -
mente prosperaram muito, favorecendo ao primeiro a
introdução das máquinas nas fábricas, e ao segundo as guerras
dos Estados Unidos, etc. Menos feliz foi acaso o monopólio,
quatro anos depois concedido (22), a outra semelhante
Companhia de Pernambuco e Paraíba (reunidos poucos anos
antes em uma só capitania) com o fundo de três milhões e
quatrocentos mil cruzados. Ambas foram extintas no seguinte
reinado. Se a primeira delas, tendo por emblema a estrela
sobre uma âncora, foi civilizadora, pelos capitais que adiantou
aos ovos, que deles tanto careciam, é certo que a última, não
compreendeu ao mote ut luceat omnibus, que adotou, em seu
selo, ao redor de outra estrela (23). O com´percio do açúcar e
do tabaco (24), apesar de sujeitado por meio de preços
impostos para a venda no Brasil e para os transportes nos
navios (25), e apesar de alguma opressão que chegou a causar
aos lavradores o estabelecimento de Mesas ou casas de
inspeção (26) para o qualificar, cobrou grande desenvol -
156
vimento. As casas de inspeção eram quatro, a saber: no Rio,
Bahia, Pernambuco e Maranhão. Compunham-se de um
magistrado, de um lavrador eleito pelas câmaras da capitania,
e de um negociante indicado pelo corpo do comércio da praça
do porto de embarque. O tabaco devia ser classificado como de
primeira qualidade ou escolha de Holanda, ou como de
segunda folha; o máximo dos direitos em Portugal era de 1689
1/4 réis por arroba, regulando o custo desta aos lavradores por
l$200, sendo de primeira folha (27). O tabaco inferior não se
podia exportar para a Europa: porém sim para África, quando
se não consumisse no país (28). – A Bahia deveu a Pombal, no
tabaco, a introdução da cura seca, própria para os charutos,
enviando aí à Cachoeira, cuidar da preparação do tabaco em
folha, um André Moreno, o qual havia chegado em 1757 (I).
Pouco depois já um Manuel da Silva Pimentel remetia dali, a
João Francisco da Cruz, uns maços de folhas, apertadas e
ligadas, e outros de manocas ligadas em volumes separados.
Em 17 de Dezembro, remetia mais algum, feito em manojos,
como no Maranhão, com muito trabalho e impertinência. –
Antes (pelo Reg. de 18 de Outubro 1702) o tabaco do Brasil
pagava de entrada em Portugal l$600, e o do Maranhão 800
réis (29).
O favor concedido pela corte à agricultura do Maranhão
(30), se fez agora extensivo ao anil, que foi por dez anos
isento de todos os direitos de entrada e saída, sendo que em
1762 já, sem esta providência, se haviam do mesmo Maranhão
exportado quarenta e duas libras dele.
Também já então se exportava daí porção de café (31),
além de algum cacau, gengibre, algodão, mais de vinte mil
couros, e duas mil oitocentas e quarenta e sete arrobas de arroz
157
(32). A cultura deste último produto no Brasil foi muito
animada com a isenção, por duas vezes concedida por dez
anos, à fábrica de descascar arroz de Manuel Luís Vieira e
Domingos Lopes Loureiro, no Rio de Janeiro (33). – Esta
proteção dada então ao arroz veio a tempo, pois havendo a
companhia do comércio do Maranhão introduzido a semente
do da Carolina, e tendo estabelecido em 1766 uma fábrica de
soque, com o do Brasil se chegou em parte a suprir a falta do
verdadeiro carolino, ocasionada pela guerra nos Estados
Unidos (34). – Recebeu igualmente a régia proteção uma
fábrica de curtumes no Rio, ordenando-se para esta a economia
dos mangues não descascados; e para proteger o uso da adu ela
indígena, tirada do pau da canela e tapinhoã, proibiu o
governo, no Brasil, a importação da da Europa, impedindo -se
por outro lado em Portugal (35) a entrada de toda goma -copal
estrangeira, para proteger a de jatubá ou jutaicica do Brasil,
da qual em 1769 haviam sido remetidas a Lisboa 14 arrobas
colhidas no Turiaçu. Foi também consentido o estabelecimento
de uma fábrica de lonas na Bahia, o que não deve admirar
quando já alguns anos antes, em 1750, se chegara a ordenar o
estabelecimento no Pará de fábricas de chitas, trazendo-se para
isso tecelões da costa de Coromandel (36). Como favorável à
nossa lavoura devemos também considerar o alvará de 14 de
Outubro de 1751 (37), que proibiu a saída de pretos, do Brasil
para os domínios estrangeiros, bem como o de 10 de Janeiro de
1757 (38), que permutou o contrato do tabaco que se
estabelecera no Rio de Janeiro, por um equivalente de 800 réis
em cada escravo que entrasse, 1$000 em cada pipa de jerebita
que ali se fabricasse, e 3$000 em cada pipa de azeite de pei xe
que se consumisse.
158
Em 1775 foi criada a nova capitania do Maranhão, com
o Piauí, independente da do Pará, e dela foi nomeado capitão -
general Joaquim de Melo e Póvoas (39), que antes tivera o
governo subalterno do Rio Negro e depois o do Maranhão
(desde 1761); havendo nesta ocasião recebido do primeiro
ministro uma notável carta, contendo instruções e
recomendações, ainda digníssimas de ser estudadas e
meditadas por quem tenha o espinhoso encargo de governar
povos. Nessa carta, hoje divulgada pela imprensa (40),
recomenda-lhe Pombal toda a justiça e possível piedade e
benevolência, o devido comedimento nas palavras, a
necessária serenidade em todos os atos, o essencial desprezo
dos aduladores e esteliões, a concessão de fáceis audiências
aos queixosos, protegendo aos pobres e humildes; o não dever
jamais valer-se da jurisdição real que lhe era conferida em
satisfação das suas paixões; porque, diz, “é injúria do poder
usar da espada da justiça fora dos casos dela”. Prudência para
deliberar, informando-se bem da verdade, destreza para dispor,
preparando o terreno, e perseverança para executar, vencendo
os obstáculos, tais seriam suas máximas. Nem lhe esqueceu a
advertência de deverem ser leais e de todo seus, os criados que
tivesse de portas a dentro.
Quanto a providências favoráveis à navegação do
Brasil, limitar-nos-emos a citar a preferência dada para a
mesma aos navios fabricados neste Estado, a permissão para se
navegar sem ser em frotas (41), e a provisão de 10 de Junho de
1766 (42) para virem cada ano duas fragatas de guerra, uma
em Abril, outra em Outubro, ao Rio de Janeiro, a fim de
poderem ser por elas mandados os valores com mais
segurança. No Maranhão se ativaram então os trabalhos do
159
furo de Arapapaí projetado em 1742, comunicando, sem os
perigos do passo do Boqueirão, as águas da Bacanga com as
do Arapapaí (43); ao mesmo tempo que se abria (em 1754) a
importante estrada da Estiva, que oferece a mais fácil e natural
comunicação da ilha com o continente (44).
As rendas públicas eram rematadas no Conselho
Ultramarino, geralmente por três anos; e feitas as arrema -
tações, se publicavam logo os contratos. – De uma coleção
destes (impressos avulsamente) (45), que conseguimos reunir,
demos em outro lugar (II) um resumo que, por sua pouca
amenidade nos dispensaremos de reproduzir de novo.
Como providências essenciais à governação do prin-
cipado do Brasil propriamente dito, devemos contemplar a
nomeação de um cronista especial na pessoa de Inácio Barbosa
Machado, irmão do erudito abade de Sever; e não menos a
provisão de 28 de Março de 1754, que mandou reunir uma
coleção completa de todas as leis e ordens expedidas para o
Brasil (46) – coleção que se chegou a completar até o ano de
1757, em 39 volumes, e ainda, ultimamente se viu em Londres
(47). Também é digno de notar-se o alvará (48) que regulou a
sucessão na falta dos governadores, conferindo-a a uma junta
composta das três primeiras autoridades militar, eclesiástica e
de justiça. Igualmente pertence a esse reinado a idéia da
fundação da praça de Macapá, na Guiana brasileira, à custa da
de Mazagão, em Marrocos, cujas muralhas se fizeram voar
(49).
Desse mesmo reinado são, principalmente no Norte do
Brasil, todos esses nomes de terras idênticos a outros de
Portugal: Oeiras, Borba, Santarém, etc. (50).
Deixaremos sem menção as muitas reformas, amplia-
160
ções e interpretações feitas às ordenações do reino, e muitas
providências legislativas, que mais que à nossa história civil
em geral, pertencem à especial do direito pátrio.
Com aplicação especial à justiça no Brasil,
mencionaremos, primeiro: o estabelecimento da Relação do
Rio de Janeiro em 1751 (51). Essa criação havia sido já antes
proposta, e até ordenada (52); porém dessa primeira vez fora
deixada em trespasso. – Para a nova relação (53) tomou-se por
base o regimento da da Bahia, donde até passaram para a
instalação da nova dois dos desembargadores, que consigo
trouxeram cópia do livro dourado (54) que nela havia. A
relação passou a contar, incluindo o chanceler, de dez
desembargadores, sendo cinco agravistas, um ouvidor-geral do
crime, e outro do cível, um juiz dos feitos da coroa e fazenda e
outro procurador da coroa e fazenda (55). Abrangeria as treze
comarcas do Sul, incluindo as de Minas e a do Cuiabá (56). –
O capitão-general do Rio ficou pelo regimento declarado
governador da Relação (57), da qual foi nomeado chanceler
João Pacheco Pereira de Vasconcelos, que, deixando-a
instalada, regressou à Europa em 1755 (58). Em segundo lugar
mencionaremos o alvará com força de lei de 18 de Janeiro de
1765 (59), que fez extensiva a todas as terras do Brasil onde
houvesse ouvidores a instituição das Juntas de Justiça, ou
pequenos tribunais para sentenciar sumariamente, já em
prática em Pernambuco e no Maranhão e no Pará (60),
compostas do dito ouvidor, com dois letrados adjuntos, as
quais foram autorizadas a deferir os recursos contra as
violências dos juízes eclesiásticos, devendo os provimentos
que nelas se tomassem ser cumpridos logo, e sem esperar-se
pela decisão última da respectiva Relação ou do Desembargo
161
do Paço.
Das miras caridosas e filantrópicas do legislador nos
deixaram evidentes provas:
1º) Os alvarás de 19 de Setembro de 1761 e 16 de
Janeiro de 1773 (61), pelos quais foram declarados forros não
só os escravos que desembarcassem em Portugal, como os aí
nascidos de ventre escravo, mas cujo cativeiro viesse já das
bisavós, ficando logo hábeis “para todos os ofícios, honras e
dignidades, sem a nota distintiva de libertos, que a superstição
dos Romanos estabeleceu nos seus costumes”.
2º) O alvará de lei de 4 de Abril de 1755, favorecendo
os casamentos com as raças dos índios, e proibindo tratar a
estes com o nome de caboucolos (62).
3º) As leis (63), revalidando as antigas, em favor da
liberdade dos índios; e a aprovação dada ao conhecido
Diretório (64) para estes; o que tudo descobre intentos mais
que filantrópicos, embora, em nossa opinião, foi esta parte da
legislação a que menos aplicação pôde ter; por isso mesmo que
quase toda ela se reduziu a teóricos tratados de moral, – a
conselhos; visto que meros conselhos são as leis não
acompanhadas de penas; e estas tanto mais severas quanto
mais brutal está o homem para quem são feitas. Os diretores,
privados de direitos coercivos sobre os índios, deixaram a
estes entregues à sua reconhecida indolência e devassidão,
conforme veio anos depois a provar, em uma luminosa e larga
exposição repleta de notícias e de profundas considerações, o
Dr. Antônio José Pestana e Silva (65), pondo em contribuição
a própria experiência que tivera como ouvidor e intendente
geral dos índios na capitania do Rio Negro, subordinada à do
Pará.
162
4º) O aviso de 15 de Maio de 1756, permitindo que os
ciganos (66) fossem empregados em obras públicas, dando -se
mestres a seus filhos.
5º) Finalmente a carta de lei, constituição geral e edito
perpétuo de 25 de Maio de 1773 (67), mandando acabar para
sempre com as frases distintivas de cristãos novos e velhos, de
que tanto havia inclusivamente abusado, com escândalo e
contra as doutrinas do Evangelho, o tribunal da Inquisição; e o
alvará de lei (do 1º de Setembro de 1774) aprovando um novo
regimento para este tribunal (68), cujos poderes D. José I
sopeou muito, fazendo as sentenças dependentes da
confirmação régia, sendo para lamentar que não ousasse
(talvez por isso mesmo que estava já lutando contra tantos
inimigos) aniquilá-lo de todo.
Em elogio de el-rei D. José, limitar-nos-emos a
transcrever aqui os seguintes períodos do que, em suas
exéquias na Bahia, proferou (69) o exímio pregador baiano Fr.
Antônio de Sampaio: “O Brasil pode sem dúvida (disse o
orador) gloriar-se de ter merecido a predileção do seu real
ânimo... A veneração com que ele recordava a memória desses
antigos povoadores do Brasil, de quem nós agora
descendemos, induzia-o a olhar com carinho para a nobreza
deste novo Estado; a colocar sobre os nossos compatriotas as
mitras de Pernambuco (70), Rio de Janeiro (71), Coimbra (72)
e outras. Com esta consideração honrou os nossos jurisperitos
com togas honoríficas, ocupou-os nos governos, intendências e
magistraturas. Essa foi a verdadeira ocasião de tantos
privilégios com que honrou as nossas cidades, com que
amplificou e enriqueceu os nossos territórios”.
“Política do Brasil! Tu mereceste ao glorioso príncipe
163
essas leis benéficas, que tanto promovem nestes domínios a
tranqüilidade pública: conseguiste da sua magnificência
tribunais amplíssimos, intendências, administrações esten -
didas, que prometem a esta preciosa porção da América a
população de um império. Que descobrimentos não fizemos?
Que progressos não conseguimos, no Pará, no Maranhão, no
Mato Grosso? Que desvelos não foram os do monarca para
fazer culto e feliz o estendido país das minas do ouro?...” “O
Brasil floresce hoje na posse de todos os cômodos e
ornamentos das nações mais cultas... As nossas esperanças
animadas com tantos benefícios iam criando asas para voar à
glória que nos mereceu a ascendência que nos prezamos trazer
dos Correias Sás, Sousas Coutinhos, Pires, Costas, Azeredos,
Pereiras e outros antigos celebérrimos argonautas, que por
glória da nação, por aumento da fé, por novo esplendor destas
colônias, deixaram o ninho da sua amada pátria, para virem
disputar a estes homens semi-feras a posse destas regiões bem-
aventuradas.”
Acerca da pessoa de Pombal atrevemo-nos a transcrever
aqui o que dele nos informa um francês que muito o conheceu
e tratou (73): - “O conde de Oeiras [Pombal] possuía muitas
qualidades para ser, como foi, um grande ministro.
Empregando todo o tempo da semana no serviço de seu amo,
reservava as manhãs dos domingos para os negócios de sua
casa, nos quais se ajuntavam todos os almoxarifes, feitores e
mestres de obras, no quarto de sua contadoria, metodicamente
escriturada com livros em partes dobradas; e ali conferia com
eles, recebia e pagava, à boca de cofre, as entradas e despesas
da semana precedente. E era extremamente reservado com sua
família e amigos, a respeito dos negócios do Estado; de modo
164
que ninguém podia descobrir, da sua conversação, gestos ou
maneiras, os negócios que o ocupavam, e que se deviam
conservar em segredo. Ouvia as partes, sem lhes interromper
as suas falas, e as respostas eram graves, breves e terminantes,
revestidas sempre da autoridade do soberano, e não do seu
motu próprio. Não consta que se enfadasse e descompusesse as
partes que o buscavam, por mais que estas se desmedissem em
palavras, nem que em sua casa aparecesse pessoa alguma, que
fosse recebida debaixo do mais estreito cerimonial. Sabia
assim conciliar o recíproco respeito que o público deve ter aos
ministros do soberano, e estes ao público. Possuía mais o
conde de Oeiras um arranjo metódico, tanto na distribuição do
tempo, como nas matérias de que se achava encarregado; e foi
por efeito deste arranjo metódico que ele pôde dirigir bem
todas as repartições do Estado, a ponto de o fazer prosperar
tanto que, apesar da reedificação da cidade, extinção dos
jesuítas, estabelecimentos de inumeráveis fábricas, escolas
públicas, reforma dos estudos, e guerras que ocorreram no seu
tempo, deixou, quando saiu do ministério, 48 milhões de
cruzados no erário régio, e 30, segundo ouvi, nos co fres das
décimas: riqueza que jamais se tinha ajuntado desde a
descoberta das minas. Esse espírito metódico se mostra bem no
arranjo econômico da sua própria casa, o qual confirma o
axioma de que “quem não sabe bem governar a sua casa não
presta para governar o Estado”.
“Foi por efeito da sua estrita economia (continua
ponderando acerca de Pombal o mesmo escritor) que ele pôde
fazer a sua grande casa, e não à custa do Estado, como alguns
terão pensado, regulando-se unicamente pelas aparências. O
conde de Oeiras viveu sempre... sem fausto, nem aparato;
165
servindo-se ele, e seus irmãos da mesma cozinha. Sua mesa,
bem que farta, não era delicada; sua cavalheirice era mui
pouco dispendiosa. ainda nos anos de 1764 a 1766 andava por
Lisboa na mesma carruagem de jornada em que tinha vindo de
Viena d’Áustria”...
Acusam-no de haver usado demasiado rigor com alguns
que haviam sido seus colegas no ministério, como Diogo de
Mendonça Corte Real, demitido em 1756 (74), Tomé Joaquim
da Costa, em 1760, e José de Seabra (75), seu antigo
confidente nos assuntos contra os jesuítas, demitido em 1774;
o primeiro dos quais foi desterrado para Mazagão, e este
último para Vizeu e Porto e por fim para Angola. Mas os que
assim pensam pretendem que há mais de um século se
pensasse como hoje, e esquecem-se de que deviam ser quase
crimes de lesa-majestade o haver, o primeiro revelado os
projetos de casamento da herdeira do trono com um infante de
Espanha e o último nada menos do que certos planos de el -rei
de fazer passar a sucessão da coroa a seu neto o príncipe D.
José, em detrimento da princesa do Brasil, sua mãe.
É igualmente acusada a memória do dito primeiro
ministro Pombal, pelas irregularidades ou faltas de clareza que
se notam em quanto foi publicado acerca da condenação dos
réus implicados na tentativa de assassinato do rei em 1758
(III). Essa acusação desaparecerá, cremos nós, quando venha a
ser integralmente dado à luz todo o processo, que nos
asseguram existir em Portugal (76). Mas, pelo que já sabemos,
na falta de publicação do mesmo processo íntegro, deu o dito
primeiro ministro mais um aprova de abnegação, expondo até
a sua reputação, em serviço e dedicação pelo rei. Ele próprio o
disse na sua célebre “Justificação”, ainda inédita, por estas
166
palavras: “A necessidade pública que fez preciso um
melindroso segredo de Estado a respeito de alguns fatos que se
contêm nos Processos”. E em outro lugar: “Não havendo
confiado o dito monarca o segredo daquele delicadíssimo
negócio senão aos três secretários de Estado, ... logo que pôde
passar do leito para o gabinete, no dia 9 de Dezembro” (77).
Reduzia-se o segredo a que o próprio rei fora o acusador,
apenas toda a trama lhe foi revelada pela sua favorita, a jovem
Távora, na primeira visita que lhe fez, depois do atentado.
Cumpre-nos acrescentar que (pois a sentença acerca das
consciências compete exclusivamente ao supremo e
sempiterno Juiz) todos os homens que se ocupam de governo,
quanto mais estudam a administração de Pombal, mais
sinceramente a admiram, chegando até a crer que, sem ela ,
Portugal se houvera acaso submergido, “no gosto da cobiça e
na rudeza”.
Graças ainda ao auxílio indireto dos capitais e ouro do
Brasil, para não mencionar um pingue donativo de três milhões
de cruzados (78) em trinta anos, ou quarenta contos em cada
ano (79), com que, convidadas pela carta régia de 16 de
Dezembro de 1755 (80), todas as capitanias deste Estado
puderam, depois do terremoto do 1º de Novembro de 1755,
socorrer a capital, a ova Lisboa se levantou como por encanto.
– Pelo que se o Brasil, pelos nomes das famílias e pela língua
vernácula, há de testemunhar sempre qual foi o tutor europeu
que lhe encaminhou os passos, na infância da sua civilização,
também Portugal não se esquecerá jamais dos socorros que lhe
ministrou o seu rico pupilo americano, enquanto existir uma
pedra no enorme aqueduto de Alcântara, no pomposo
monumento de Mafra, ou nas suas regularissimamente
167
alinhadas da baixa da antiga Ulíssipo. Esta é a verdade, por
mais que (nem que apostados a evitar justas, políticas e
convenientes conciliações) defendam partidos opostos as
opiniões extremas, acerca de quem deve ou é devedor. Não
cremos razoável, nem generoso, nem nobre, nem animador da
colonização européia de que tanto carecemos, lembrar de parte
a parte só o que há de queixa, sem pôr ao lado o muito que
pede louvor e gratidão. – Do lado da metrópole, e mais ainda
dos agentes dela, sabemos que houve muitas vezes despotismo,
injustiças, incoerências, ignorância, e por conseguinte maus
governo. Mas, não é menos verdade que a corte mostrava
sempre desejos de caminhar com o possível acerto, e não
deixava de repreender e de castigar o procedimento dos
governadores menos observantes das leis. A própria
independência que concedia aos magistrados, às câmaras, aos
bispos e às ordens religiosas e que foram causa de tantas
desordens, eram, para essas corporações e para os povos,
verdadeiras garantias de liberdade, que não existiriam em
governos propriamente despóticos.
Além de que, as faculdades dos mesmos governadores,
não deixavam de estar sopeadas pela independência do poder
judicial, exercido pelas relações, ouvidores e juízes, pelas
garantias dos empregados do fisco, e pela autoridade de certas
juntas e até das câmaras ou municipalidades. Não faltaram, é
verdade, governadores, em geral saídos da classe militar,
ignorantes dos mais triviais princípios do governo político,
que se entremetessem a alterar as formas dos processos, que se
envolvessem nas questões de propriedade, dando sesmarias já
concedidas a outros, que fossem menos observantes das leis,
que à vezes até ignoravam; mas alguns se poderão citar que
168
administravam admiravelmente, ou que, nos próprios ofícios à
corte e nas instruções por escrito que deixaram a seus
sucessores, mostraram especial conhecimento dos assuntos
mais importantes da capitania, e grande ciência de governo, e
muito juízo prudencial. – Os governadores não podiam
comerciar por si, nem por outrem, nem lançar nos bens que
iam à praça; nem mandar fazer seqüestros; nem receber
presentes; nem aceitar cessões de dívidas; nem consentir que
as aceitassem seus criados. Igualmente não podiam mandar
tirar devassas; nem prender sem culpa formada; nem dar
auxílios ara prisões, senão por ordens das justiças dos
distritos; nem podiam conceder ajudas de custo; nem abrir
cartas particulares, ainda a pretexto de averiguar descaminhos
da fazenda; nem proibir os descobrimentos em terra incultas. –
Não podiam, nem tampouco os ouvidores e juízes de fora,
contratar casamento no círculo de suas jurisdições. Deviam os
governadores além disso evitar eficazmente que os oficiais da
justiça e fazenda levassem às partes emolumentos excessivos,
cuidando que os ministros observassem o regimento de seus
salários, e não faltassem às suas obrigações. Também eram
obrigados a mandar logo aos ministros as cartas do serviço
recebidas para eles; a fazer que as eleições dos juízes dos
órfãos tivessem lugar ao mesmo tempo em que as das mais
justiças; e a não consentir que os ouvidores passassem
provimento aos oficiais que serviam com eles. Era -lhes
proibido arbitrar salários aos ministros, ou passar-lhes
atestados durante o tempo em que exerciam lugares. Não
podiam convocar a palácio as câmaras, sem necessidade
urgente, a benefício delas ou do serviço público; nem permitir
que elas lançassem fintas. E só das mesmas câmaras podiam
169
receber por aposentadoria casas e camas, para si e suas
comitivas: aos oficiais das mesmas não podiam obrigar a que
os fossem visitar em corpo de câmara. Não deviam intrometer -
se nas eleições dos oficiais de ordenanças, nem criar novos
postos. Nos preenchimentos das vagas deviam justificar estas
com documentos, e atender às propostas das câmaras. Também
lhes era proibido ter criados com praça de soldados;
providência esta que se fez extensiva acerca dos ministros.
Tantas peias tinham os governadores pela lei, que acaso
algumas vezes não poderiam eles ter a necessária autoridade
para governar na distância a que se achavam da metrópole, se
as tendências naturais do instinto de conservação e de mando
lhes não fizessem propender para o arbítrio. – Em vista das
ditas peias, que expusemos, pudéramos desconfiar que a
administração devia principalmente ressentir-se de falta de
centralização tão encomiada pelo ilustre Timon da França (81),
quando chegou, no tratado especial acerca da mesma
centralização, a afirmar que “quanto mais se concentra a
autoridade, menos pesa sobre os governados; e quanto mais se
divide e desce, também mais se apresenta com o caráter das
humanas paixões”. E com efeito, já nesse tempo a própria
experiência provava que, sobretudo nos sertões menos
habitados, não era pelo excesso de autoridade dos
governadores que mais pecava a boa administração da justiça;
pois o influxo deles era em geral benéfico aos povos, contra as
demasias e prepotências dos capitães-mores locais, que
alguém, não sem malícia nem sem razão, se lembrou de
comparar a certos potentados de nossos dias, revestidos com a
fita de juiz de paz ou as dragonas de comandante superior da
guarda nacional. Desgraçadamente, a experiência prova que os
170
países menos povoados passam sempre uma época com
tendências feudais, seja qualquer o nome que se dê aos
suseranos, que acabrunham os pequenos, quando, aliás, na
cabeça do Estado e nas cidades populosas a administração da
justiça corre com a maior regularidade. Felizmente, as estrad as
de ferro, e os vapores acabarão essas tendências, esta-
belecendo a polícia mais rigorosa, equilibrando a população, e
melhorando-a pelos dois grandes meios civilizadores: a
indústria que subministra ao homem os maiores cômodos da
vida; e a observância da religião, que o beneficia moralmente.
Depois dos capitães-mores, eram, mais que os
governadores, causas de imoralidade e arbítrios os empregados
subalternos, tanto da justiça, como da fazenda; pois que,
dando-se a princípio de preferência os ofícios aos que
ofereciam para as urgências do Estado maiores quantias, veio
isso a degenerar em abuso, a tal ponto que havia na corte
agentes ou corretores deles, e às vezes recaíam em indivíduos
de procedimento menos regular. A esses abusos pôs cobro el -
rei D. José, que, por carta régia de 20 de Abril de 1758,
mandou às capitanias do Brasil Antônio de Azevedo Coutinho,
do Conselho Ultramarino, a fim de proceder nelas à
arrematação dos mesmos ofícios, entre os indivíduos dignos de
os exercer (82).
Como delegados de el-rei D. José na administração das
capitanias do Brasil prestara serviços mais importantes, além
do conde de Bobadela e da Cunha, o vice-rei marquês de
Lavradio.
Em seu largo vice-reinado de dez anos e cinco meses, o
marquês de Lavradio, que antes governava na Bahia, em meio
dos cuidados em que se viu com as hostilidades e guerras no
171
Sul, com o maior zelo e inteligência, a todos os ramos da
administração. Ao passo que se entregava à organização da
milícia, animava os estudos, protegia os estudiosos e cuidava
do aformoseamento da capital, que ainda à sua memória dedica
o nome de uma de suas ruas. Ao mesmo tempo se dedicava,
com o maior empenho, a favorecer o desenvolvimento das
indústrias agrícolas no país, e com especialidade as do anil,
cochonilha, queijos e manteigas (83). E todos sabem que no
seu tempo nasceram e floriram, em uma chácara de
Mataporcos, do holandês João Hopman, as plantas de café que
deram as sementes para todo o Sul do Brasil (84).
Quanto ao seu caráter, preferimos deixar que nos dê
dele idéia um eloqüente frade, seu contemporâneo (85), no
sermão que, depois do seu falecimento, recitou na catedral do
Rio de Janeiro: ouçamo-lo:
“... homem singular, em quem o contágio da dignidade,
e da grandeza não tinha feito mudar o aspecto, nem corromper
o coração. Não o cercou nunca aquela nuvem medonha, que,
escondendo a autoridade de que necessitam os povos, deixa
com tudo aparecer uma soberba que os aterra (86). Brilharam
sempre do redor de sua presença os sinais mais evidentes de
seu amor para convosco, e vós sois testemunhas daquela
candura que pintava em seu rosto e seus afetos. Viu-se na sua
pessoa aquela união prodigiosa que poucas vezes faz o poder
com a ternura e a justiça com a humanidade Despendeu
liberalmente convosco aquele tesouro de talentos preciosos
que tinha recolhido em sua alma, e fez da vossa felicidade o
unido objeto dos seus cuidados.”
Do seu grande tino governativo pode-se fazer perfeita
idéia, em presença das explicações por ele próprio dadas ao
172
seu jovem sucessor acerca do modo como alcançara apaziguar
muito os turbulentos habitantes do distrito de Campos. Ei -las
(87): “... como aquelas gentes ainda estão com as idéias muito
frestas da má criação que tiveram, é necessário, enquanto não
passam mais anos, não dar a nenhum deles um poder e
autoridade que, enchendo-os de vaidade, possa vir a dar um
cuidado que traga consigo maiores conseqüências. Eu tenho
seguido o sistema de dar ali muitas sesmarias, de facilitar às
pessoas desta capital que se vão para ali estabelecer. Tenho
mandado vir a muitos para lhes falar; tenho-os aqui
conservado por algum tempo, para os costumar a ver como os
povos vivem sujeitos; e que vejam o modo com que se respeita
e obedece aos diversos magistrados, e às pessoas que mais
representam: e em todo o tempo que aqui estão, procuro que
estejam muito dependentes; e por fim os mando retirar,
fazendo-lhes sempre algum benefício. Por este modo se tem
ido sujeitando de sorte que já hoje não acontecem aquelas
horrorosas desordens, que todos os dias inquietavam os
governadores desta capitania. É preciso ter um grandíssimo
cuidado em não consentir que para ali se vão estabelecer
letrados rábulas ou outras pessoas de espíritos inquietos;
porque, como aqueles povos tiveram uma má criação, em
aparecendo lá um desses, que falando-lhes uma linguagem
mais agradável ao seu paladar, convidando-os para alguma
insolência, eles prontamente se esquecem do que devem, se
seguem as bandeiras daqueles. No meu tempo assim sucedeu,
por causa de um advogado chamado José Pereira, que
parecendo-me homem manso e de boas circunstâncias, o fiz
juiz das sesmarias daquele distrito, o qual fez tais desordens
que até se fomentou um levantamento, e se naquela ocasião eu
173
seguisse os meios ordinários, e não tomasse uma resolução
extraordinária, ficariam de todo arruinados os utensílios e
excelentes estabelecimentos, que ali estão hoje adiantados. Eu
mandei buscar este homem e aqueles que com ele mais
procuravam representar, tive-os por muitos meses reduzidos a
uma aspérrima prisão; mascarei-os até o último ponto; e, com
este meu procedimento, se intimidaram todos os outros, e
depois de estar tudo sossegado, tornei a permitir -lhes que
voltassem para que pudessem contar o que lhes tinha sucedido;
e lhes disse que a primeira notícia que eu tivesse de alguma
inquietação por aquelas partes, eles seriam os primeiros que
me fossem responsáveis de todas aquelas desordens. Com isso
consegui o serem eles os primeiros, quando voltaram, que
procuravam a quietação de todos, de sorte que hoje tudo se
conserva na maior tranqüilidade”.
Além dos condes de Bobadela e da Cunha e do marquês
de Lavradio, distinguiram-se também neste reinado, D.
Antônio Rolim de Moura, conde de Azambuja, pela sua
atividade nos governos de Mato Grosso, Bahia e Rio, e D.
Álvaro Xavier Botelho, conde de São Miguel, pelas
prevaricações escandalosas que lhe foram provadas em seu
governo de Goiás, de 1755 a 1759 (88), embora ele se
chegasse a queixar que haviam passado três anos sem receber
nenhuma comunicação da metrópole.
Em Minas, fez-se muito notável o governador (1768-
1773) conde de Valadares, D. José Luís de Menezes, que,
apesar de sua pouca idade, sendo menor de vinte e cinco anos
(89), quando tomou posse do bastão, soube fazer respeitar a
autoridade (90), perseguindo os malfeitores, e reduzindo o
numeroso quilombo do Bateeiro na comarca do Rio das
174
Mortes.
Pelo que respeita à sua integridade, formamos dela
desfavorável idéia desde que tivemos conhecimento do notável
fato que passamos a narrar (91). Oito dias depois de seu
regresso de Minas, procurou-o o marquês de Pombal, e lhe
pediu emprestados noventa mil cruzados. Entregou-lhos o
conde, em 12 de Março de 1768; e nesse mesmo dia mandou
Pombal que se desse entrada desta soma no erário, e
efetivamente se abriu sobre ela assento a fls. 122 v. do liv ro 2º
dos ofícios da fazenda; declarando serem dela, cinqüenta, por
um ofício conferido a José Rodrigues do Amaral, de Mariana,
e quarenta, de outro dado a Bento José Gomes, de Vila Rica. –
Em Maio de 1778, vendo Valadares a grande reação contra
Pombal, foi queixar-se à rainha da dívida em que lhe estava o
dito ex-ministro. Sendo este ouvido, respondeu, em 14 de
Maio, ser verdade haver recebido os noventa mil cruzados, e
citando a folha do livro do erário em que se achavam lançados,
e a razão por quê, acrescentando porém que, apesar disso,
entregaria a mencionada soma ao conde, se a rainha o
ordenasse.
Acerca dos trajes no Brasil (92) baste-nos dizer que se
iam seguindo à risca as modas da metrópole, que por sua parte
seguia as do resto da Europa. Estavam em voga, até para os
soldados, as cabeleiras com rabicho, os chapéus à Frederica, as
fardas desabotoadas, redondas, nas abas, as camisas de folhos,
e os calções com fivelas, sapatos e polainas.
A administração de Pombal, apesar de tão votada a
promover os interesses materiais do país, não deixou de ser
muito propícia às letras, e aos brasileiros que nestas se
distinguiram. – O favor que durante ela receberam os dois já
175
mencionados fluminenses, irmãos, reformadores da
Universidade, bispo-conde D. Francisco de Lemos, e João
Pereira Ramos, procurador da coroa e guarda-mor da Torre do
Tombo, se estendeu a outros muitos brasileiros. O modesto
autor da História Eclesiástica Lusitana, D. Tomás da
Encarnação (93) e o franciscano Fr. Antônio de Santa Maria
Jaboatão (94) deixaram-nos obras que ainda os recomendam. –
Também foi obra desse reinado a Etiópia resgatada, que deu à
luz em 1758 o padre Manuel Ribeiro da Rocha, na qual já este
filantropo autor propõe a idéia de ser o tráfico declarado
pirataria, e de poderem os escravos resgatar a sua liberdade ao
cabo de cinco anos de cativeiro. – O distinto mineiro, autor do
poema épico Uraguai, José Basílioda Gama, foi honrado com a
confiança do ministro, que o escolheu para seu oficial de
gabinete, com carta, foros e escudo de nobreza. Igualmente
não deixaram de encontrar favor em Pombal os nossos poetas
Cláudio Manuel da Costa, Manuel Inácio da Silva Alvarenga,
Inácio José de Alvarenga Peixoto, e até já o próprio Domingos
Caldes Barbosa. O fluminense Feliciano Joaquim de Sous a,
deixou-nos, entre outros escritos, a sua Política Brasílica (95).
O bispo do Pará D. Fr. João de São José legou -nos o seu
Diário (1762-1763) (96), sento também valiosos, acerca das
terras do Amazonas, os escritos do vigário-geral do Rio Negro
José Monteiro de Noronha (97) e do ouvidor Francisco Xavier
Ribeiro de Sampaio (98); João da Silva Santos viajava em
1764 (99) pelo Jequitinhonha, e o governador de São Paulo
Luís Antônio de Sousa Explorava, pouco depois (1768),
pessoalmente, os rios Tibagi e Ubaí (100).
Pouco diremos das três associações literárias que
contou o Brasil durante este reinado. A dos Seletos, no Rio de
176
Janeiro, em 1752, de que foi secretário um ex -ouvidor de
Paranaguá, Manuel Tavares de Sequeira e Sá, teve
principalmente em vista um certame em favor do governador,
e as suas produções foram publicadas na coleção Júbilos da
América (101).
A dos Renascidos, que se instalou na Bahia em 1759,
debaixo dos mais favoráveis auspícios (IV), com quarenta
acadêmicos de número (todos residentes na Bahia) e oitenta e
três supranumerários, com estatutos bem pensados, e que
chegou durante vários meses a ter sessões regulares duas vezes
por mês, e viu-se dissolvida pela misteriosa prisão do seu
diretor ou presidente (V), o conselheiro José Mascarenhas
Pacheco (o qual, comprometido na questão dos jesuítas, foi
remetido preso à corte em 1760, e não veio a sair solto senão
em 1777) produziu um interessante livro, ainda manuscrito, a
História Militar do Brasil de 1547 a 1562, pelo sócio tenente-
coronel José Mirales (VI).
A Científica foi instituída no Rio de Janeiro em
Fevereiro de 1772, pelo médico do vice-rei Lavradio, José
Henriques Ferreira, que foi dela o presidente (VII).
Entretanto, no reinado de D. José, no Brasil, não eram
tanto os escritos de literatura amena, como os que continham
informes estatísticos do país, os que mais fomentava o
governo, e que efetivamente se escreviam. Ainda hoje se
guardam em Lisboa, nos arquivos do Conselho Ultramarino,
maços e maços, contendo muitos de tais informes, que
esperamos hão-de um dia ser dados ao prelo (102). De uma
dessas estatísticas acerca da capitania de Pernambuco e suas
subalternas, Ceará, Rio Grande, Paraíba e Alagoas, em 1774,
temos cópia, e dela aproveitaremos os seguintes fatos (103).
177
Contava o Ceará mais de 34 mil almas, o Rio Grande passante
de 21 mil, a Paraíba de 30 mil, e Pernambuco 175 mil,
incluindo as comarcas das Alagoas e do Penedo, relacionadas
pelas listas das desobrigas das freguesias. No Ceará contavam -
se 972 fazendas; no Rio Grande 283; na Paraíba 869; em
Pernambuco 516. Havia nas oito comarcas de Pernambuco 360
engenhos e na Paraíba 37. O sobrante das rendas públicas
montava em Pernambuco acima de 14 contos (104); na Paraíba
perto de 13; no Rio Grande a mais de 5; e no Ceará (produto
dos dízimos) a mais de 11. - Os tributos, fontes dessa receita,
eram além dos dízimos, o subsídio do açúcar e das carnes e do
tabaco, donativo da alfândega, novos direitos dos ofícios e
cartas de seguro, direito de caixas, passagem de alguns rios,
pensão dos engenhos, pesqueiros do mar, etc.
Acerca da Bahia o seu termo escrevera em 1757 uma
estatística o medidor da cidade Manuel de Oliveira Mendes
(VIII). Havia 17 freguesias; mas o autor só designa os fogos e
almas de 14; subindo aqueles a 8.026 e estas a 46.455. – Em
São Paulo, a renda provincial em 1776 montava a 47:900$599,
e a despesa ordinária subia a 49:429$869; havendo portanto
um excesso de 2:339$270; isto sem contar os enormes gastos
com as tropas da capitania estacionadas no Sul, os quais
corriam à conta do vice-reinado. A respeito de Minas
preparava o desembargador José João Teixeira Coelho uma
mui importante notícia estatística, hoje impressa (105), e da
qual trataremos, com mais extensão, na secção seguinte. Da
Estatística do Ceará se ocupava o coronel Antônio José
Vitoriano Borges da Fonseca, autor da Nobiliarquia
Pernambucana (106), que ali estivera dezesseis anos de
capitão-mor. Do Rio de Janeiro, em fins de Janeiro e
178
princípios de Fevereiro de 1751, nos deixou uma idéia o
matemático La Caille (107), que então aqui esteve, morando
na rua do Rosário. A população da cidade se avaliava em
cinqüenta mil almas. Nas janelas e portas viam-se urupemas.
Nas esquinas havia nichos diante dos quais se rezava o terço. –
No largo do Paço se construía o chafariz (108).
Das relações contemporâneas de festas públicas nos é
dado coligir algumas notícias curiosas acerca do estado das
artes (109). – Pelo que respeita à Bahia, muito minuciosas
notícias nos dá uma relação escrita (1761) por Francisco
Calmon, sócio dos Renascidos (110), acerca das festas
celebradas pelos desposórios da princesa, depois D. Maria I
(111). – A um bando, em que saíram a cavalo o porteiro da
câmara e meirinhos, vestidos à cortesã, ao som de atabales e
mais instrumentos, seguiram-se danças, fogos e comédias. –
Entre as danças, distinguiram-se não só as dos mesteres; v. gr.
a dos cutileiros e carpinteiros, com farsas mouriscas, a dos
alfaiates, a dos sapateiros e correeiros, como a dos Congos,
que muito agaloados, anunciavam a vinda de um rei negro, o
qual depois aparecia com a sua corte e sovas, dançando as
talheiras e quicumbis, ao som de seus instrumentos: seguiam-
se índios emplumados e de arco e flechas, saindo de ciladas. E
por fim houve canas, escaramuças e argolinhas, e se
representaram a comédia Porfiar amando e a ópera Anfitrião,
muito provavelmente a de Antônio José (112). – Mais curiosa
que esta, de notícias verdadeiramente interessantes para as
artes, é outra anterior acerca dos festejos com que Pernambuco
celebrou a aclamação de el-rei D. José, publicada pelo oficial
maior da secretaria do governo da capitania, Filipe Néri
Correia (113). Nela se descrevem minuciosamente os artefatos
179
do teatro, devidos ao artilheiro Miguel Álvares Teixeira; nela
se diz que a música foi obra do compositor mestr e de capela da
sé, o padre Mestre Antônio da Silva Alcântara; dela finalmente
se vê que as comédias La sciencia de reinar, Cueba y costillo
de amor e La piedra filosofal, que se representaram nos dias
14, 16 e 18 de Fevereiro de 1752, foram ensaiadas pelo
compositor dramático Francisco de Sales Silva. Das artes do
Rio nos oferece algumas notícias uma Epanáfora festiva
acerca do nascimento do príncipe real em 1763 (114). Nessa
última festa não somente se correram touros e praticaram
escaramuças, com argolinha, alcanzias e canas, como saíram
também à rua danças de ciganas, dos cajadinhos, com gaitas
de foles, dos cavaleiros, além das dos alfaiates, carpinteiros e
pedreiros, e das dos marceneiros e sapateiros, cada uma destas
últimas com seu carro. Concluiu a festa com índios caçando,
com pardos e congos divertindo-se, e afinal com um castelo e
navio de fogo, que arderam, etc.
180
(2) Aqui podemos repetir com o sábio Augusto Theiner, na
História de Clemente XIV: “Cada vez que lançamos os olhos sobre
quaisquer inúmeras obras publicadas de oitenta anos a esta parte, com
nomes dos autores ou sem eles, pelos jesuítas ou pelos seus amigos... um
sentimento de dor e de tristeza se apodera de nós... vendo a pouca justiça
e caridade com que nelas se trata não só de Clemente XIV, como de
outros personagens célebres, que, embora não isentos de alguma fraqueza,
não deveram ser tratados inclusivamente com infâmia”. – (A.). – A obra
de Theiner, mais vulgar na tradução francesa, intitulou -se – Histoire du
Pontificat de Clément XIV, Paris, 1852. – (G.).
182
(10) Do armador-mor [aliás armeiro-mor] José da Costa e Sousa:
pensão 64$000. – (A.). – A capitania do Recôncavo originou-se da
sesmaria dada pelo segundo governador-geral D. Duarte da Costa, em
Janeiro de 1557, a seu filho D. Álvaro, abrangendo da narra do Paraguaçu
da parte do sul, até a barra do Jaguaripe, quatro léguas de costa, pouco
mais ou menos, e para o sertão, pelo dito rio acima dez léguas. Essa
sesmaria teve confirmação régia a 12 de Março de 1562; a 29 de Março de
1566 foi elevada a capitania, com a mesma extensão de costa, mas sendo a
largura das dez léguas para o sertão a que houvesse entre os dois rios
Jaguaripe e Paraguaçu. D. Álvaro da Costa faleceu por 1578, porque a 8
de Abril Pedro Carreiro concedeu uma sesmaria em seu nome e como seu
procurador, e a 16 de Julho Cristóvão de Barros pediu outra a Sebastião
Álvares, mas como procurador de D. Leonor de Sousa, sua viúva, e de seu
filho menor D. Duarte da Costa. Este foi o segundo donatário; seguiram -
se outros, sendo nono e último D. José da Costa, que faleceu sem
sucessão a 10 de Março de 1766. Dele foi que passou a capitania para a
coroa. – Conf. Capistrano de Abreu. op. cit., 107/108. – (G.).
183
(13) Confiscada à casa de Aveiro, herdada pelos marqueses de
Gouveia, em 1749, a poder de muita proteção de que dispunham na corte
de D. João V. a Capitania, depois de ter saíd o duas vezes da casa de
Aveiro para um filho segundo, entrara nela de novo (em 1637), pela
herança do duque de Torres Novas. Depois uma sentença a adjudicou à
coroa; porém, em 1724, foi adjudicada a D. Gabriel de Alencastro Ponde
de Leon [duque de Banhos, D. Gabriel Pereira de Leon Lencastro]. – Veja
as Alegações Jurídicas, do Dr. Francisco Velasco de Gouveia, Lisboa,
1637; Manuel Lopes de Oliveira, ibidem, 1666; Padre Bibiano Pinto da
Silva, Ibidem, 1666; Miguel Lopes de Leão, Lisboa Ocidental, 1719, (em
casa do conde de Unhão, em magnífico papel); e Sebastião Martinez de
Cabezon, Madri, 1 vol. de 1223 págs. in -fol. – (A.). – Por morte do duque
de Banhos, em 1745, foi seu sucessor por sentença de 1749, o marquês de
Gouveia. A esse, executado a 13 de janeiro de 1759 como regicida, foi
confiscada a capitania e definitivamente incorporada à coroa. – Conf.
Capistrano de Abreu, op. cit., 105. – (G.).
185
das praças de Lisboa, Porto e Pernambuco, em 30 de Julho do mesmo ano,
Delgado, Coleção citada, 1, 695/713. – (G.).
(23) Deste modo temos a idéia da esfera del -rei DS. Manuel
adotada pela Companhia do Brasil em 1649, e a das estrelas para as
províncias, muito antes dos Estados Unidos. – (A.).
188
ia ser fundada, que publicou quem escreve esta linha na Regista do
Instituto Histórico, 84, 609/695. – (G.).
193
(71) D. José Joaquim Justiniano Mascarenhas Castelo Branco,
natural do Rio de Janeiro. – (G.).
194
(78) Só a Pernambuco (ofício do governador de 2 de Maio de
1756) foram impostos 900 mil cruzados, em todas as fazendas que
pagavam dízimas, com a condição de que cessariam estes ap enas se
prefizesse essa quantia. – A Paraíba prestou-se a dar 100 mil cruzados
dentro dos seis anos primeiros, e aproveitou a ocasião para pedir o ficar
independente de Pernambuco. – (G.).
199
(103) Idéa da população da Capitania de Pernambuco, e das suas
annexas, extensão de suas Costas, Rios, e Povoações notaveis.
Agricultura, numero dos Engenhos, Contractos, e Rendimentos Reaes,
augmento que estes têm tido, &, &, desde o anno de 1 774, em que tomou
posse do Governo das mesmas Capitanias o Governador e Capitam
General José Cezar de Meneses, – impressa nos Anais da Biblioteca
Nacional, 40, 1/111. – (G.).
(I)
(II)
Veja pág 283 do vol. II da 1ª ed. desta História. – (A.). – Para que
204
se possa ter idéia das rendas do país em geral, aqui fica o resumo a que o
A. se refere:
“Em 23 de Dezembro de 1752 rematou José Machado Pinto, por
158.000 cruzados livres, os dízimos da Bahia. Estavam por 120.075
cruzados.
“Em 10 de Abril de 1753 tomou Antônio José Dinis a Passagem
do Rio Grande em Minas por 1:525$000; e em 10 de Maio seguinte João
de Sequeira Lima a de Goiases por 365$000; e em 15 de Maio Domingos
José de Campos a do Rio Verde por 85$000, tudo em cada ano.
“Em 1753 se rematou em 8.000 cruzados e 25$000 o rendimento
de dez tostões de entrada na Bahia por cada escravo, para manter em
África o forte de Ajudá; e em 18.000 cruzados e 120$000 o de 3$500 de
direitos por cabeça.
“Em Março de 1756 foi contratado o rendimento do subsídio dos
molhados de novo imposto de Santos por 1:520$000; e o dons registros de
Viamão e Curitiba em 34.000 cruzados e 15 réis. O subsídio da
aguardente do reino, no Rio, desde 1757, foi dado por ano em 5:255$000;
e a dízima da chancelaria da cidade em 2:420$000; o rendimento da
aguardente e vinhos de mel da Bahia em 15.000 e tantos cruzados por
ano. Os dízimos das capitanias do Sul (São Paulo, Santa Catarina e Rio
Grande) foram rematados em 27$000 e 145$000; os de Cuiabá em
2:800$000; os das passagens para Goiás em 2:410$000, e os das entradas
de Minas em 344:005$000. OS dízimos de Goiás foram contratados, em
21 de Agosto de 1764, por 19:005$000”. – (G.).
(III)
(IV)
(V)
(VI)
(VII)
(VIII)
212
Manuel Cardoso de Saldanha, em carta para Francisco Xavier de
Mendonça Furtado, datada da Bahia, 30 de Julho de 1761, pedindo
dispensa do emprego de engenheiro, que ali exercia, indicava para
substitui-lo o capitão José Antônio Caldas, seu discípulo na Academia
Militar, “o qual ainda que bem instruído na Teoria, principia a praticar
só”, e acrescenta: “Tenho outro discípulo chamado Manuel de Oliveira
Mendes, soldado infante no Regimento de que he Coronel Manuel Xavier
Ala, que depois de graduado em Philosofia, dispensado para os postos
subalternos, vivendo com muita honra, foi á minha aula, e escreveu todas
as materias que ditei instructivas para um perfeito official engenheiro, e
com inteligencia dellas, risca sofrivelmente as plantas; mas nas praticas
de conhecer as obras e seus materiaes, nas medições conforme a
geometria pratica ensina, em fazer as contas dos seus valores, em avaliar
projectos e os edificios já construidos, como verificaram as avaliações
que fez no inventario das fazendas dos Padres denominados da
Companhia, o julgo perfeitissimo; por exerce o emprego de medidor das
obras do Senado da Câmara desta Cidade. A este homem póde V. M.
prover no posto de ajudante de Infantaria...”, Anais da Biblioteca
Nacional, 31, 438/439.
Por carta patente de 10 de julho de 1773, o governador conde de
Povolide nomeou capitão agregado do regimento de artilharia a Manuel de
Oliveira Mendes, que devia ter falecido antes de 5 de Setembro de 1796,
quando seu filho Luís Manuel de Oliveira Mendes pediu justificação dos
serviços por ele prestados, à qual juntou duas certidões dos que se
referiam à organização do tombo dos bens pertencentes à fazenda real e à
inventariação e seqüestro dos bens dos jesuítas proscritos, Anais citados,
36,364.
Quanto a José Antônio Caldas, sabe-se que escreveu a Noticia
Geral de toda esta Capitania da Bahia, desde o seu descobrimento até o
presente anno de 1759, somente agora publicada na Revista do Instituto
Geográfico e Histórico da Bahia, n. 57 (1931), págs. 7/444, sem as vistas
e plantas que acompanham o manuscrito original. Era capitão engenheiro
e acadêmico da Academia Militar da Bahia; foi, como se lê antes, da
Academia Brasília dos Renascidos. Faleceu antes de 10 de Maio de 1786,
como sargento-mor engenheiro, Anais citados, 34, 15; deixou muitas
cartas de diversas partes do Brasil, que o marquês de Valença comprou
em leilão, Anais citados, 36, 243. – (G.).
213
(Transcrito do tomo quarto, págs. 234 -266).
SECÇÃO XLVII
214
O aumento da facilidade das comunicações, que
acompanha o desenvolvimento da civilização, irmana de tal
modo em sentimentos, assim os povos da mesma nação, como
os de nações diferentes, que não é raro em política que os ecos
de uma grande revolução se repercutam em paragens muito
distantes, mediando só o tempo necessário para se propagar a
notícia. Memorável exemplo do que levamos dito nos oferece
a bem lograda revolução feita pelas colônias inglesas do Norte
da América, para se declararem nação independente da mãe
pátria. Como era natural, cada uma das outras colônias
americanas, ou ao menos a sua gente mais ilustrada,
reconheceu a analogia de situação. – Em Coimbra doze
estudantes brasileiros, combinando entre si a possibilidade de
se declarar o Brasil independente, se comprometeram a levar
avante a idéia, quando isso fosse possível. Em França, onde
tanto entusiasmo havia pela revolução norte-americana,
deviam os Brasileiros encontrar nesse mesmo entusiasmo
incentivos e estímulos, para imitarem o primeiro povo da
América colonizada e cristã, que se emancipou, proclamando
sua nacionalidade. – Ventilou-se, pois, a questão em
Montpellier em 1786, entre alguns jovens brasileiros (talvez
algum ido ali de Coimbra) que estudavam Medicina, contando -
se nesse número Domingos Vidal Barbosa, natural de Minas,
isto é, da freguesia da Conceição, hoje Queluz; José Mariano
Leal, do Rio de Janeiro, e José Joaquim da Maia, também do
Rio de Janeiro, filho de um pedreiro da rua da Ajud. – Este
último, movido de ambição, e segundo sua própria narrativa,
aspirando a exorbitar da esfera em que nascera (1), decidiu -se,
com menos rebuço do que os seus companheiros e colegas, a
215
escrever em Outubro desse ano ao célebre Tomás Jefferson,
que estava de plenipotenciário dos Estados Unidos em Paris,
dizendo-lhe como ele e outro patrício seu eram ali vindos do
Brasil, para tratarem da independência deste Estado da
América, e desejavam saber até que ponto, para uma tal
empresa, poderiam contar com o apoio dos Estados Unidos.
Respondeu Jefferson muito pontualmente; mas, guardando as
formas que a sua posição oficial lhe recomendava, disse que
apenas os brasileiros por si próprios conquistassem a
independência, não teria a sua nação dúvida em negociar o
provê-los; porém que antes disso nada podia fazer, pois que
estava em paz com Portugal, e em seus portos recebiam os
cidadãos dos Estados Unidos benigno acolhimento. Conclui
noticiando-lhe que contava ir passar o próximo inverno em
Aix, e que faria uma volta por Nimes, a fim de ver as suas
antiguidades, e aí poderia Maia avistar-se com ele. –
Estiveram ambos os americanos, o do Norte e o do Sul,
pontuais no encontro em Nimes: Maia expôs então todo o seu
plano: pintou as forças viris do Brasil e os seus muitos
recursos para constitui-se em nação, e o pouco receio que
devia haver de forças vindas de Portugal ou das colônias
espanholas, sobretudo quanto o porto do Rio e o sertão de
Minas eram por si muito defensáveis, quando os lit eratos do
país eram favoráveis à independência, e quando grande parte
do clero e da mesma tropa do Brasil constava de brasileiros. –
Jefferson ouviu com atenção o seu interlocutor: tornou a dizer -
lhe que a revolução deveria em todo caso ser primeiro efetua da
pelos próprios Brasileiros, e que depois, uns por desejo de
ganho, outros por ambição, não deixariam de passar a levar -
lhes bacalhau, etc., e a ajudá-los. Maia não saiu muito
216
satisfeito dessa conferência, e julgou que o ilustre enviado
tivera em pouco o plano dele improvisado negociador, ao
tratá-lo, - ao presenciar-lhe a casca, segundo a sua expressão.
Entretanto, não era assim: o fino diplomata o que fez foi
disfarçar bem, ante o jovem inexperiente, o seu entusiasmo,
em presença de tais idéias, pois, em 4 de Maio desse mesmo
ano (1787), escrevia de Marselha a J. Jay, dando -lhe conta de
quanto passara, e ficou sempre pensando em tais planos (2).
Entretanto, por outra parte, o conde de Aranda,
embaixador espánhol em Paris, nem que o seu coração
pressagiasse tudo quanto se passava a respeito dessa
insurreição, meditava não só um plano da independência do
Brasil todo, instituindo nele uma monarquia regida pela casa
de Bragança, como até do engrandecimento de uma tal
monarquia, inclusivamente até as beiras do Pacífico, unindo-
lhe o Peru e o Chile, uma vez que a família Bragança
abdicasse os seus direitos às províncias continentais européias
de Portugal, e que estas se agregassem à Espanha. O conde de
Aranda chegou a formular esse pensamento, em uma carta
escrita ao ministro Florida-Blanca, em 1786 (3), acrescentando
a idéia de formar de Buenos Aires e terras de Magalhães outra
monarquia em favor de um infante espanhol. – “Não falo
(prossegue Aranda, desenvolvendo sua proposta) de reter
Buenos Aires para Espanha, porque ficando cortado por ambos
os mares pelo Brasil e Peru, mais nos serviria de cuidado que
de proveito, e o vizinho pela mesma razão se tentaria a
alargar-se. Não prefiro tão pouco agregar ao Brasil toda a
extensão até o cabo de Horn, e reter o Peru, ou destinar este ao
infante; porque a posição de um príncipe da mesma casa de
Espanha, colhendo em meio ao dono do Brasil e Peru, serviria
217
para conter a este pelos dois lados:”... “... se tenho tanto na
cabeça que a América Meridional se nos irá das mãos, e que,
se tem de suceder, melhor seria uma troca do que nada, não me
faço projetista, nem profeta; ... porque a natureza das coisas o
trará, e a diferença não consistirá senão em anos antes ou
depois. Se eu fora português aceitaria a troca, porque lá grão -
senhor e sem os riscos do de cá, também, mais dia menos dia,
seria maior que no canto da Lusitânia; e sendo, como sou, bom
vassalo da coroa, prefiro e preferirei sempre a reunião a ela de
Portugal, embora pareça que se lhes dava em troca um mundo
(I)”.
Em parte a providência veio pouco antes a realizar, em
favor do Brasil e da casa de Bragança, o que não soube
realizar a política. Pelo que toca ao Peru e a Portugal, nada
diremos, pois melhor compete decidir se houveram sido mais
ou menos felizes. Quanto ao império americano, que grande
nação seria ele hoje!
Maia, quando se propunha recolher ao Brasil, faleceu
em Lisboa; mas Domingos Vidal Barbosa voltou à pátria, e
chegou a Minas, doutorado em Medicina na faculdade de
Bordéus, quando essa capitania sofria ainda dos insultos com
que, por perto de cinco anos, a avexara o governador Luís da
Cunha de Menezes, cujo desgoverno um dos poetas mais
notáveis da mesma capitania satiricamente pintara nas
chamadas Cartas Chilenas (II): não devendo admirar que já aí
existisse quem pensasse em independência, quando, segundo
vimos, esta se resolvera em Coimbra, entre o apostolado dos
estudantes; e destes, três, segundo se disse, estavam agora em
Minas. Quase ao mesmo tempo, chegava da Europa,
igualmente doutorado, José Álvares Maciel, filho do capitão-
218
mor de Vila Rica, e que, depois de formar-se em Filosofia em
Coimbra (onde talvez fora do número dos doze), passara à
Inglaterra, e aí se aplicara muito às artes e manufaturas,
proposta a introduzi-las no Brasil.
Os seus conhecimentos em Mineralogia (4) foram,
desde logo, para ele uma grande recomendação perante o
governador e capitão-general Visconde de Barbacena, que
tomara posse em 11 de Julho de 1788, e que, igualmente era
afeiçoado (5) a tais estudos (aos quais porventura devia até o
haver sido preferido para governar esta capitania), chegou a
oferecer hospedagem, na sua casa de campo da Cachoeira, ao
mencionado doutor, filho do capitão-mor.
Esse regresso ao Brasil do dito Dr. Maciel, veio, quanto
a nós, dar alento à idéia (6) de ser possível efetuar na
província de Minas, e com bom êxito, um levante, se o dito
governador intentasse executar as ordens que trazia da corte
para fazer cobrar, por meio de uma derrama geral, grandes
impostos devidos do tributo do ouro, levante em que, além
dele Dr. Maciel, e (muito ao depois) do mencionado Dr. Vidal
Barbosa, vieram a figurar entre os cúmplices os conhecidos
poetas Cláudio Manuel da Costa (7) e Inácio José de
Alvarenga (Peixoto) (8); sendo também acusado o
desembargador Tomás Antônio Gonzaga (9), autor da muito
conhecida Marília de Dirceu; e, aparecendo em cena como
principal vulto, pelo seu grande entusiasmo, pela sua muita
expansão e indiscrição, e, afinal, até pelo seu martírio, o
alferes de cavalaria Joaquim José da Silva Xavier, alcunhado o
Tiradentes.
Repelindo aqui, com a devida energia, a injusta
acusação de havermos sido contraditórios na sucinta narração
219
deste sucesso, contida nas páginas da primeira edição desta
obra (10), narração pela maior parte escrita, não pela ouvida
das tradições, mas especialmente em presença das informações
oficiais enviadas à corte pelo próprio governador em ofício de
11 de Julho de 1789 (11), que alguns têm citado sem o ter
visto (dando-o até com a data errada de um ano), começaremos
por declarar que a publicação efetuada, embora interpolada e
menos corretamente, do teor do processo, nos permitirá,
cingindo-os aos depoimentos, interpretados com o devido
critério, dar atualmente a esta secção um pouco mais de
desenvolvimento, esmerando-nos, como temos feito nas
demais, em ser concisos e exatos, sem nos emaranharmos em
pormenores que se contradizem, que escapam apenas lidos e
que nada aproveitam à história, pois (não nos cansaremos em
repeti-lo), não consiste o bom critério desta em juntar muitos
fatos, nem muitas autoridades, mas sim em apreciá-los
devidamente, apurando deles e delas a verdade.
Em primeiro lugar diremos que hoje temos a convicção
de que o poeta desembargador Gonzaga não chegou jamais a
associar-se aos tais ou quais planos aéreos de se efetuar na
província uma insurreição.
Resulta essa nossa convicção do estudo profundo de
toda a devassa, analisada com a devida imparcialidade, ante a
luz da crítica, que não se deve guiar pelo dito de uma ou outra
testemunha apaixonada, ou interessada; mas unicamente pela
essência que ressumbra do conjunto dos depoimentos,
manifestamente mais sinceros, e de todos os fatos apurados.
Cremos, sim, que, em geral, chegou o mesmo Gonzaga a
conversar, antes de se pensar em semelhante insurreição,
acerca da “possibilidade e naturalidade de vir um dia o Brasil
220
a separar-se de Portugal” (12) e que mais tarde ouviria
vagamente os clamores gerais contra a idéia da derrama, e os
perigos que havia de poder ela vir a causar uma grande
perturbação e sublevação na província; mas a prova de que
sinceramente não desejava que estalasse um rompimento, se
deduz dos esforços que, primeiro com o intendente Dr.
Francisco Gregório Pires Monteiro Bandeira, e por fim ante o
próprio governador, fez para não levar avante a idéia da
mesma derrama, com a desistência da qual caíram por terra
todos os pretextos para um tumulto. Não há dúvida que um
grande inimigo seu (13) o acusou “de ser um dos
conspiradores, indicado até para chefe, e encarregado de
fabricar as novas leis, e de ser autor da idéia de se dever cortar
a cabeça ao governador”. Mas, quando é que se viu a acusação
de inimigos encarniçados ser recebida como prova? – E isso,
quando foram demonstrados evidentemente de falsos outros
testemunhos do mesmo denunciante? Mas, acrescente -se,
também vários, não inimigos seus, serviram-se do seu nome, e
alguns dos seus próprios amigos o acusaram. Responderemos
que os que eram interessados (14) em valer-se do seu nome,
tão respeitado na província, não podem tampouco fazer
autoridade; nem podem merecer mais créditos do que quando
esses mesmos ou seus sócios citaram entidades imaginárias
(15), como já de acordo com eles: e, quanto aos amigos, tudo
induz a crer que chegaram candidamente a persuadir-se de que,
associando a si na cumplicidade um nome tão respeitável, nada
menos que um desembargador, colega dos seus juízes,
conseguiriam salvar-se, à maneira dos que, vendo-se em perigo
de afogar-se, não duvidam, pensando escapar, agarrar-se
tenazmente aos seus que encontram próximos, resultando, de
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ordinário, o levarem também consigo ao pego essas novas
vítimas, – às vezes até a mulher ou os filhos. Mas, a verdade é
que não se prova que Gonzaga fosse conspirador, nem
assistisse a nenhuma das reuniões em que se tratou da idéia da
revolta, depois de essa idéia nascer. Assim, pois, cremo-nos
hoje com todo o fundamento autorizados, em defesa da
probidade do autor de Marília, a proclamar que ele não mentiu
à posteridade, quando em seus versos lhe deixou dito que era
calúnia vil e insolente a acusação com que “se ultrajava o seu
nome, com o suposto delito”; acrescentando, na célebre lira
em que se figura na presença da deusa Astréia, razões em
prova de como tais planos eram então utopias impossíveis, e
incluindo até aquele conhecido verso: “Daqui nem ouro quero”
(16).
Liquidado este ponto, passaremos a ocupar-nos do
assunto.
Da acareação, por nós pausada e refletidamente feita, de
todos os depoimentos, resulta que, verdadeiramente, entre os
vários que se conluiaram, só um chegou a entusiasmar-se pela
idéia da revolução: foi o mencionado alferes Silva Xavier,
nascido em Pombal, perto de São João del-Rei (17). Desde que
na alma lhe caiu a primeira centelha a favor da idéia de
independência, lavrou o incêndio por tal forma que não se
pôde mais apagar. A esse único pensamento, que o abrasava,
subordinava tudo quanto via e ouvia; e, com uma leviandade e
audácia inauditas, para aquele tempo, a todos se propunha
converter e angariar, inclusivamente inventando para isso,
como ainda hoje vemos nos partidos políticos, que ha via
esperanças de socorros estrangeiros, e partidários e conjurados
decididos, em outras paragens. Assim, foi ele que
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atrevidamente começou por abordar o seu próprio
comandante, jovem de trinta e dois anos, o tenente -coronel
Francisco de Paula Freire de Andrada (18), dizendo-lhe que no
Rio de Janeiro, donde regressava, se ia fazer a revolução. Foi
ele que tentou inutilmente aliciar a Cláudio; chegando, porém,
a converter o poeta Alvarenga, dizendo-lhe que “era pena de
uns países tão ricos... se achassem reduzidos à maior miséria,
só porque a Europa, como esponja, lhes estivesse chupando
toda a subsistência; e os excelentíssimos generais de três em
três anos traziam uma quadrilha, a que chamavam criados, os
quais, depois de comerem a honra, a fazenda e os ofícios, que
deviam ser dos habitantes, saíam rindo-se deles” (10). Foi
ainda ele quem contribuiu a angariar o padre Carlos Correia de
Toledo e Melo, paulista, filho de Taubaté, e vigário de São
José do Rio das Mortes, e o irmão do distinto pregador
Rodovalho (20), o opulento padre José da Silva de Oliveira
Rolim; e ao depois, atacando a cada qual pelo respectivo lado
fraco, não só brasileiros natos, então alcunhados pelos filhos
de Portugal de mazombos (21), mas até portugueses natos,
começando pelo seu compadre, o venerando Domingos de
Abreu Vieira.
No auge do entusiasmo, obedecia o mesmo alferes, não
só aos impulsos do patriotismo, como também aos da ambição.
Havendo começado por aplicar-se à profissão de dentista, em
que chegou a ser hábil, do que lhe proveio o ser denominado
Tiradentes, lançou-se também a mascatear em Minas Novas;
mas saiu-se mal, e resolveu-se a sentar praça na cavalaria.
Muito pontual nos seus deveres, foi seguido os postos
inferiores, e como rebentassem guerras no Sul, e o seu corpo
chegou a marchar para o Rio de Janeiro, conseguiu ser
223
promovido a alferes; mas de alferes não passou. Vendo -se por
vezes preterido, o que ele candidamente acreditava provir de
falta de proteção, e devemos antes hoje atribuir à
“desrecomendação” que seria para ele o geral conceito de ser
um hábil tiradentes, pretendeu votar-se à mineração; mas saiu-
se de novo mal, e tornou ao serviço; e contava já de idade mais
de quarenta anos (22), quando, achando-se no Rio de Janeiro,
com esperança de melhorar de fortuna em umas empresas de
estabelecimento de trapiches e encanamentos, para suprir de
mais águas a capital (23), empresas para que não conseguiu
encontrar sócios, nem fundos, aí travou conhecimento do dito
Dr. Maciel, quando regressava da Europa, e dele recebeu as
primeiras inspirações para se lançar, com afinco, na nova
empresa, de que viria a ser a vítima principal.
Cumpre acrescentar que para alguns dos malogros do
mesmo alferes em suas pretensões, além da circunstância de
ser tiradentes, devia também contribuir o seu físico. – Era
bastante alto e muito espaduado, de figura antipática, e “feio e
espantado”.
Pelo que respeita à sua heróica empresa, não a
denominaremos conjuração. Custa-nos até o dar-lhe o nome de
conspiração; embora concedamos que fosse ele verdadei ro
conspirador. Não houve, porém, conjurados ou conspiradores
ajuramentados em regra; não foi a resolução precedida de
conciliábulos tenebrosos, conluiados em forma: as reuniões
faziam-se quase a portas e janelas abertas, sendo apenas o
assunto, que servia nelas de tema, conversação reservada,
interrompida com a entrada de qualquer profano, que vinha de
visita. Assim sucedeu até na única reunião, em casa do
tenente-coronel Andrada, em fins de 1788 ou princípios de
224
1789, que teve um pouco mais aparência do verdadeiro
conventículo, ou conluio, e na qual se cruzaram e ventilaram
mais fixamente algumas espécies revolucionárias. Assistiram a
essa reunião, além do dono da casa e do seu alferes, os padres
Toledo e Rolim, o Dr. Maciel, e, por fim, o poeta Alvarenga,
calando-se todos, segundo depôs o Tiradentes, ao chegar
Gonzaga de visita, prova evidente de que não era este dos do
conluio (24).
Não há dúvida que, nessa ocasião, se tratou da
conveniência, se tivesse lugar um levante, de não se esperar
pelo rompimento do Rio de Janeiro; da necessidade de que,
para o haver, se contasse com segurança com a província de
São Paulo; da vantagem de ser feito, começando pelo povo, e
fraternizando depois a tropa; e isso com o menor
derramamento de sangue possível, respeitando-se a pessoa do
governador, e mandando-o escoltado até a fronteira, no
registro da Paraibuna. Por essa ocasião foi, pelos que estavam
presentes, aplaudida a idéia do Tiradentes, mui devoto do
mistério da Santíssima Trindade, de tomar-se por armas um
triângulo, representando o mistério, à imitação de Portugal,
que tinha as Chagas de Cristo (25); e também, sem se votar
pelas que seriam preferidas, pela de Alvarenga, de um gênio
quebrando os grilhões, com uma legenda em latim a isso
alusiva (26). – Mas, repetimo-lo, tudo isso não passou de
conversação hipotética: não houve decididas resoluções, a que
se devesse começar a dar cumprimento. Nem sequer se
assentou em quem deveria ser o chefe. De todos o que tomou o
negócio mais a sério, constituindo-se verdadeiro cabeça de
motim, foi ainda o Tiradentes, que já não pensava em outra
coisa; e quando muito, depois dele, também o vigário Toledo.
225
– Os demais, especialmente Alvarenga e o tenente-coronel,
pareceram antes, pouco depois, arrependidos de se haverem
deixado levar tanto adiante. Quase todos trataram sem demora
de se ausentar de Vila Rica; o tenente-coronel logo, com
licença para a sua fazenda de Caldeirões, com projetos de
obter outra, a fim de passar dentro de poucos meses ao Rio de
Janeiro, à Bahia, e até a Portugal.
O alferes Silva Xavier, porém, à custa de algum
sacrifício, pedindo até dinheiro emprestado, resolveu seguir
para o Rio de Janeiro. As recomendações que solicitou para
militares dessa praça, as exclamações que desde logo começou
a proferir (27) diante dos da tropa, depois de chegar a esta
vice-corte, nos autorizam a crer que não voltara só com
intenções de sair ao encontro do seu requerimento, acerca das
empresas dos trapiches e das águas, mas sim de aqui adquirir,
tão indiscretamente como em Minas, e com a mesma
perseverança, partido em favor da independência da pátria.
Infeliz! Não tinha obtido mais do que conseguir fazer, livre de
algemas, até o sítio do seu martírio, a jornada que os demais
companheiros, menos culpados e até inocentes, haviam de
fazer, pouco depois, acorrentados!
O número dos cúmplices foi crescendo, sendo uns
estimulados pelo amor da pátria ou por simples ambição, e
outros pelo desejo de se libertarem do pagamento da derrama;
unindo-se-lhes muitos, que se viram comprometidos, já pel a
maldade dos denunciantes, já pela deferência com os primeiros
conluiados, já pela indiscrição deles, ou pelos seus apuros,
quando acusados, já finalmente pela própria fatalidade. Entre
todos, devemos fazer menção, por haverem sido julgados mais
comprometidos, de Luís Vaz de Toledo Piza, de Taubaté,
226
irmão do mencionado vigário, Francisco Antônio de Oliveira
Lopes, os dois José de Resende Costa, pai e filho, um infeliz
aprendiz de cirurgia, de nome Salvador Carvalho do Amaral
Gurgel, que se limitou a escrever duas linhas, recomendando o
Tiradentes (28), um ilustrado cônego e exímio pregador de
Mariana, Luís Vieira da Silva, só porque simpatizara com os
Estados Unidos, e muitos outros, incluindo o Dr. Maciel e
mais três miseráveis, que vieram a converter-se em primeiros
denunciantes, seguindo-os depois, nesse exemplo, vários
outros, pensando obter a impunidade por meio de tardias e
incompletas delações. Foi o primeiro, em 15 de Março,
Joaquim Silvério dos Reis, natural de Leiria, coronel de um
regimento de auxiliares, mandado extinguir, homem
geralmente tido por orgulhoso, de mau coração e gênio altivo,
que contava muitos inimigos, por haver abusado das
protecções que desfrutara, e que agora se vira apertado para o
pagamento das somas, em que ficara alcançado, do contrato
das entradas, que tivera por sua conta de 1782 a 1784 (29); –
somas que talvez pensava remir com a traição, – que ao
mesmo tempo lhe servisse de se desafrontar de seus
perseguidores, em cujo número contava o desembargador
Gonzaga. A esse denunciante seguiram-se depois, com
denúncias escritas, como por cautela exigira já do primeiro o
governador, o tenente-coronel Basílio de Brito Malheiro do
Lago (natural de Ponte de Lima), e o mestre de campo Inácio
Correia Pamplona, ilhéu (natural da Terceira).
O visconde de Barbacena, achava-se no sítio da
Cachoeira do Campo a três léguas da capital, na casa de campo
dos governadores, onde ele preferia fixar a residência, quando,
aos 15 de Março de 1789 (30), se lhe apresentou o primeiro
227
denunciante a fazer as suas pérfidas revelações. Conhecendo-
lhe o caráter, e não deixando de imaginar que poderia na
denúncia andar espírito de intriga e de calúnia (31), assentou,
entretanto, como lhe cumpria em caso tão arriscado, caminhar
mais pelo seguro, precavendo-se como se tudo quanto ele dizia
fora certo. Recomendou ao denunciante o maior segredo,
ordenou-lhe que seguisse, traiçoeiramente, metendo-se com os
revoltosos (e outro tanto praticou com os outros dois
denunciantes), regressou à capital, e sem se dar em nada po r
entendido, limitou-se a dirigir logo às diferentes câmaras da
província uma circular concebida nos seguintes termos (32):
“A considerável diminuição que tem tido a quota das
cem arrobas de ouro que esta capitania paga anualmente de
quinto a Sua Majestade, pede as mais eficazes averiguações e
providências. A primeira de todas deveria ser a derrama, tanto
em observância da lei, como pela severidade com que a mesma
Senhora foi servida estranhar o esquecimento dela; porém,
conhecendo eu as diversas circunstâncias, em que hoje se acha
esta capitania, e que este ramo da Real Fazenda é suscetível de
melhoramento, não só em benefício do Régio Erário, mas dos
povos, cuja conservação e prosperidade é o objeto principal do
iluminado governo da Rainha Nossa Senhora; e não tanto pela
afeição particular com que me ocupo em procurar aos desta
capitania toda sorte de felicidade, que sempre preferiria à
minha própria, como pela confiança que devemos ter na
piedade e grandeza de Sua Majestade, que é bem notória,
tomei sobre mim suspender o lançamento da derrama que a
junta da administração e arrecadação da Real Fazenda é
obrigada a promover até chegar a decisão da conta que terei a
honra de pôr na augusta presença de Sua Majestade, sobre os
228
meios que me parecerem mais proporcionados ao bem da
mesma administração nesta parte, e ao dos seus leais vassalos.
E para me haver com o conhecimento e acerto que desejo, e
me é necessário neste importante negócio, recomendo a V.
Mcês. que hajam de fazer sobre ele, com toda a brevidade, a s
mais sérias reflexões e exames, e me enviem por seus
procuradores até meado de Junho os seus requerimentos,
informação e parecer; e com isto espero também que V. Mcês.
concorram comigo, entretanto, assim pelo reconhecimento a
que ficam obrigados, como por conveniência própria, para o
descobrimento e extirpação dos contrabandistas e
extraviadores, que são e têm sido a principal causa da referida
diminuição. Deus guarde a V. Mcês. – Vila Rica, vinte e três
de Março de mil setecentos e oitenta e nove. – Visconde de
Barbacena. – Senhor juiz de fora e oficiais da Câmara de...”
Essa resolução do governador ia de acordo com o
parágrafo da sua Instrução (de 29 de Janeiro de 1788), redigida
talvez em virtude das sugestões do desembargador J. J.
Teixeira, em que, depois de contar-lhe as revoluções anteriores
em Minas, acrescentava: ...”sempre se faz indispensavelmente
necessário que V. Sª, sem mostrar no exterior a menos
desconfiança, tenha toda a vigilância em que os mesmos
habitantes se conservem na devida obediência e sujeição a S.
M., – e que à vista dos acontecimentos anteriores... tome V. Sª
sempre as providentes medidas, não só para ocorrer aos
incidentes que possam sobrevir de presente, mas para acautelar
os futuros (33)”.
Logo ordenou o mesmo governador ao primeiro dos
denunciantes que seguisse imediatamente para o Rio de
Janeiro, a espiar os passos do alferes; e alcançando-o ainda em
229
caminho, e perguntando-lhe para onde ia, lhe respondeu o
mesmo alferes: “Cá vou para o Rio de Janeiro para tratar de
você”.
O simples fato da expedição da dita circular
desconcertou bastante os cúmplices, que dela tiveram notícia, -
e a não ser a muita manha e dissimulação com que seguiu
conduzindo-se o governador, houveram conhecido estar seu
plano descoberto. Em todo caso esmoreceram, ao ver que se
desviava de relance a ocasião que tão favorável se apresentava
à realização de seus desejos, deixando estranha a eles a
maioria do povo, que teria mais dificuldade de mover -se por
motivos políticos, que não compreendia, do que pelo int eresse
imediato de ser aliviada por novos governantes, de pagar
tributos com que não podia, e aos quais pretendiam obrigar os
mandantes de direito.
Entretanto, Alvarenga, com muito bom senso, indicou
que se devia tentar o golpe, pois que, uma vez que disso se
tratara, era necessário levar avante, sob pena de saber-se, e
serem todos considerados tão culpados como se o intentassem.
Mas, por outra parte, ou então ou pouco mais tarde, esse poeta
da adulação, para se recomendar, empreendia escrever uma
ode, cujo começo se encontrou entre os seus papéis, contendo
duas estrofes (a 5ª e a 6ª) que parecem um verdadeiro elogio
ao governador, que, vendo a tempestade, salvara (com esta
resolução) o perigo, e tornara feliz o povo, que se via
miserável, bem que rodeado de minas de ouro.
Assim, enquanto Barbacena tratava de colher novas
informações, enquanto se prevenia com mais tropa, e enquanto
participava reservadamente para o vice-rei Vasconcelos o que
fora revelado, e lhe recomendava que fizesse espiar e seguir o
230
alferes Silva Xavier, o desembargador Gonzaga ia visitar o
mesmo governador à Cachoeira, para onde havia regressado, e
lhe dizia que mal sabia o serviço que havia feito ao Estado,
suspendendo a derrama, que o povo lhe podia, por ele, levantar
uma estátua, que só faltavam cabeças para se realizarem certos
planos, que a corte devia ter aquela capitania na menina dos
seus olhos, etc.
Todas estas frases no ânimo do governador, prevenido
pelas caluniosas denúncias do grande inimigo de Gonzaga,
Silvério dos Reis, produziam um efeito análogo ao das carícias
de Desdêmona no coração atribulado de Otelo. Esmerou -se,
porém, o mesmo governador por aparentar que dava a tudo
pouca importância, pois, não desejando inculcar suspeita,
continuamente se fazia desentendido e mudava de
conversação; e pode-se fazer idéia de que não poucos
tormentos passaria, para não arriscar palavra que
comprometesse o êxito das disposições que estava dando, nem
mostrar-se suspeitoso ou bem informado ou tímido; receando
com isso, segundo ele, precipitar o rompimento, ou pelo menos
aconselhar a fuga de muitos réus. Gonzaga, sem haver podido
notar da parte de Barbacena a menos suspeita, e vendo que era
já muito tarde, retirou-se.
Enquanto o governador seguia procedendo com tanto
excesso de disfarce e manha, ou levando nisso tanto tempo que
pudera acaso revelar-se o fato da denúncia, e estalar uma
sublevação, embora ainda não de vez, foi prevenido pelo vice -
Rei Vasconcelos como do Rio se escapara, com muitas armas e
sem passaportes, o alferes Silva Xavier, o que não era verdade;
pois que o mesmo alferes, por uma série de fatalidades, veio a
ser encontrado depois, no sótão de uma casa da rua dos
231
Latoreiros (34), em 10 de Maio de 1789. Com aquela notícia,
mandou Barbacena executar as ordens para as prisões já
prevenidas (35), guardando ainda nestas muita cautela, a fim
de que fossem feitas pouco a pouco, sem alarmar nem causar
escândalo, e até dando a entender que se efetuavam por
motivos alheios à suposta conjuração.
Foram em primeiro lugar presoso o desembargador
Gonzaga, o poeta Alvarenga e o vigário Toledo. Gonzaga sabia
já, na véspera do dia em que foi preso, que havia contra ele
denúncia; mas tão tranqüila tinha a consciência que declarou a
seus amigos que ia ainda nessa noite compor uma ode, antes de
se deitar (36). No dia seguinte estava em ferros! Seguiram -se
depois as prisões de Cláudio Manuel da Costa e outros
denunciados por Joaquim Silvério; e o governador, por sua
conta, mandou igualmente prender a Oliveira Lopes e ao
tenente-coronel Andrada, por haverem ambos, quando
souberam das prisões, procurado justificar-se, indo fazer-he
denúncias tardias e diminutas; e, além deles, o velho português
Abreu Vieira, por haver hospedado em sua casa um dos
conjurados mais conhecidos, o padre Rolim... E justamente
foram esses três presos e o alferes Xavier os que então mais
descobriram toda a trama da oposição! Foram também presos
Maciel, Vidal Barbosa, os dois Rezendes, o irmão do vigário,
o cônego Luís Vieira e outros acusados. José de Sá e
Bittencourt, bacharel em filosofia por Coimbra, que, ao acabar
os seus estudos, viajara pela França e Inglaterra, em 1777, e
vivia no Caité, foi também buscado, como suspeito; mas
conseguiu escapar-se para os sertões da Bahia, foi preso pelo
ouvidor dos Ilhéus, remetido à Bahia, e daí ao Rio de Janeiro,
onde conseguiu sair absolvido (37).
232
Coadjuvaram o governador, em suas diligências, o
ajudante de ordens Francisco Antônio Rebelo (encarregado,
depois de feitas as prisões, de levar os ofícios à corte), e o
novo ouvidor Pedro José Araújo de Saldanha, sendo nomeado
escrivão da devassa o ouvidor do Sabará José Caetano César
Manitti, até que chegaram do Rio de Janeiro, mandados pelo
vice-rei para a mesma devassa, o desembargador José Pedro
Machado Coelho Torres e o ouvidor do Rio de J aneiro
Marcelino Pereira Cleto. – Outras devassas se tiraram no Rio,
onde, em fins de 1790, se instaurou a alçada para julgar os
réus, que foram todos levados ante ela. Desta alçada fazia
parte o desembargador Dinis, conhecido pelo seu poema herói -
cômico e por suas odes pindáricas (38). A ela vieram a
responder todos os presos mandados de Minas, aos poucos, em
sete remessas, alguns deles em ferros, entrando neste número
os poetas Gonzaga e Alvarenga.
Gonzaga alegou, em seu favor, razões mui
convincentes, sem acusar a ninguém. Outro tanto fez o
honrado cônego Luís da Silva, que não era mais culpado que
ele; pois toda culpa, se a havia, se reduzia a serem ambos
muito ilustrados, verem claro o que se passava no mundo, e
preverem os sucessos que, segundo a ordem natural, tinham de
acontecer um dia.
Cláudio, já então com sessenta anos de idade feitos,
uma só vez interrogado, em 2 de Julho de 1789 (39),
acovardou-se excessivamente: atribui a sua desgraça a castigo
da justiça divina, declarou que pedia perdão ao go vernador,
protestou que não estava em nenhum plano de conspiração,
nem acreditava nela. O estado, porém, de alucinação em que se
achava o seu espírito fez avultar o alcance de conversações
233
íntimas que tivera com seus amigos, ou revelações que estes
lhe haviam feito, depois das idéias lançadas pelo Dr. Maciel e
o Tiradentes, e muito os veio a comprometer. Dois dias depois,
foi encontrado no cárcere, suspendido de um armário,
havendo-se enforcado com uma liga (40). Alvarenga, Maciel e
Vidal Barbosa revelaram quanto sabiam, e o mesmo fez
religiosamente o Tiradentes (depois de haver tudo negado a
princípio) quando se persuadiu, devoto como era, que estava
de Deus que tudo ficasse sabido. Os seus depoimentos últimos
merecem, pois, o conceito de um relato muito verdadeiro de
quanto se passou.
Gonzaga procurou disfarçar as largas horas nas
masmorras, retocando muitas das suas liras, e compondo
outras novas, em que, apesar de amorosas, chegou a incutir a
impressão medonha sob que eram inspiradas. Alvarenga, o
pindárico vate, de novo procurou recomendar-se por meio de
uma poesia, adulando na prisão, a um tempo, a rainha, o vice -
rei e o próprio governador Barbacena. A sublime ode (41)
imprecando a soberana para visitar o Brasil, bem que não
serviria de recomendação aos juízes, em virtude da
consagração dos princípios de americanismo, que nela
dominam, excedeu à que antes compusera ao nascimento do
filho do conde de Cavaleiros, fazendo votos para que o recém -
nascido viesse um dia a empunhar o bastão de governador na
sua pátria (42).
Aos 18 de Abril de 1792, proferiu a dita alçada o
acórdão, e na conformidade das leis eram condenados à morte,
enforcados com infâmia, o Tiradentes, Alvarenga, Freire de
Andrada, o Dr. Maciel, Abreu Vieira, Vaz de Toledo, Oliveira
Lopes, Vidal Barbosa, os dois Rezendes, e o Amaral Gurgel,
234
ficando-lhes infamados os filhos e netos, e sendo confiscados
os seus bens, Dos sete primeiros, deviam ser cortadas as
cabeças, levadas a seus distritos, e aí pregadas em postes altos
até que o tempo as consumisse. De alguns as casas seriam
derribadas e os chãos delas salgados. O Tiradentes seria, além
disso, esquartejado. Lida a sentença, Rezende pai exclamou:
“Senhor! eu tenho credores e muitas dívidas!”, e ficou mudo
(43). Abraçou-se com ele o filho e, entre muitas lágrimas,
pareceram ambos resignar-se. Igualmente se abraçara
Domingos de Abreu com um seu escravo que muito o amava.
Procurava Maciel consolar a Oliveira Lopes. Mais feliz foi
Vidal Barbosa, que desatou em uma gargalhada, pois de uma
conversação que ouvira aos juízes do cárcere, via chegada a
hora do perdão...
Felizmente, não tinha para todos de executar-se a dura
sentença. Ocupava o trono uma piedosa rainha, que havia com
tempo prevenido contra a severidade do código criminal do
país, o livro quinto das Ordenações Filipinas. Por carta régia
de 15 de Outubro de 1790 (44), dirigida ao chanceler, juiz da
alçada, fora ordenado que, aos próprios chefes da facção, a
pena ficasse limitada a degredo; exceto quando fosse isso
absolutamente impossível, pela atrocidade e escandalosa
publicidade de seu crime, revestido de tais e tão agravantes
circunstâncias que fizessem a comiseração impossível.
Esse só ato da boa alma da primeira testa coroada, que
veio em pessoa com o diadema ao novo mundo, fará todos os
brasileiros bendizer a memória desta ínclita herdeira da
piedosa Santa Isabel, da talentosa rainha D. Catarina (mulher
de D. João III) e da intrépida esposa do primeiro rei
bragantino...
235
“Este perdão, diz Fr. Raimundo de Penaforte, firmou
muito mais o direito de vassalagem nos corações, do que a
justiça, ainda eu revestida da clara luz do meio-dia, que
castigasse delito semelhante (45).”
A leitura desse decreto apresentou-se nos mais trágicos
momentos, produzindo uma verdadeira catástrofe dramática.
Alvarenga prorrompeu em exclamações quase de alienado.
O alferes Silva Xavier foi o único declarado como
cabeça (46). Julgando os juízes necessário para o escarmento
público algum exemplo, votaram para que fosse ao patíbulo,
cumprindo-se inteiramente, a seu respeito, a dura e cruel
sentença.
Alvarenga foi degredado para Ambaca, Maciel para
Maçangano, Freire de Andrada para as Pedras de Ancoche, e
Gonzaga para Moçambique, donde naturalmente enviaria, para
ser dado ao prelo, o seu célebre cancioneiro, que intitulou
Marília de Dirceu (47), sendo o nome Dirceu o que ele adotara
como árcade. Com estes, foram condenados, para outros
presídios mortíferos da África, e por maior ou menor número
de anos, mais quatorze infelizes (48).
Do alferes Silva Xavier sabemos que ouvira a sentença
com toda a serenidade; e que, com a maior abnegação de si,
chegou a dizer quanto estimava vir a pagar as culpas daqueles
que ele havia comprometido. Por essa forma ele se adiantou a
aceitar para si a responsabilidade desta nobre tentativa e as
glórias do martírio que hoje lhe confere a posteridade.
O dia 21 de Abril veio a ser o designado para o do seu
suplício no Rio de Janeiro. Teve ele lugar depois das onze da
manhã, na praça então denominada de Lampadosa, junto à
atual da Constituição (49). Toda a tropa estava em armas, e
236
postada pelas ruas com cartucheiras providas. O
acompanhamento foi aparatoso, e a população curiosa se
apinhava pelas ruas e praças. Ao pedir o carrasco perdão ao
réu, quando lhe vestia a alva, exclamou ele: “Oh meu amigo!
Deixe-me beijar-lhe as mãos e os pés: também o nosso
Redentor morreu por nós”. Marchou depois sereno ao suplício,
pediu por três vezes ao carrasco que abreviasse a execução, e
com os olhos pregados no Crucifixo, subiu ao patíbulo...
Os degredados para Angola e Moçambique partiram
todos do Rio de Janeiro, aos 22 de Maio seguinte (50); e por lá
vieram a morrer, sem que até hoje almas patrióticas tenham
procurado fazer que voltem seus ossos a abrigar-se na terra da
pátria (51). O martírio do patíbulo conferiu ao alferes Silva
Xavier, apesar de “pobre, sem respeito e louco”, como dele diz
Gonzaga, a glória toda de semelhante aspiração prematura em
favor da independência do Brasil.
Lamentando, como devemos, as vítimas que causou esta
mal denominada conspiração, que tantas simpatias inspira a
todas as almas generosas, cremos que o seu êxito, ainda
quando a revolução chegasse a realizar-se, não podia ser
diferente do que foi; e que, portanto, quase parece ter sido um
bem que ela não estalasse, para não comprometer muito mais
gente, e induzir a província em uma guerra civil, que
devastasse essas povoações, que começavam a medrar.
Na apatia em que estava o governador, gozando das
delícias da sua Cápua, nada mais fácil do que os primeiros
triunfos, se tivesse tido resolução e vontade o tenente-coronel
Freire de Andrada. Mas depois?
Os paulistas, que não consta haverem sido ouvidos,
estavam satisfeitos com seu governador, Bernardo José de
237
Lorena (52), não temiam ser vexados com a derrama, e
começavam já a aborrecer-se do ócio em que viviam, depois da
paz com Espanha. Não seria difícil ao vice-rei Luís de
Vasconcelos, ainda quando o Rio de Janeiro se declarasse com
os republicanos (o que não era provável, pois não vigoravam
aí tais idéias (53), – refugiar-se para Santa Catarina ou Rio
Grande, e enviar dali forças, por São Paulo, enquanto fizessem
bloquear o porto do Rio, empório da província de Minas. As
forças da capitania do Rio de Janeiro constavam então de
quinze terços de auxiliares (cinco destes na cidade), ao todo
com mais de nove mil praças; a tropa de linha, compreendendo
a que estava no Rio Grande e Santa Catarina, acercava-se a
sete mil homens. Os socorros dos Estados Unidos ou da
França, com que se faziam ilusões os que suspiravam pelo
movimento, só poderiam vir, se é que com eles deviam contar
(no que pomos tanta dúvida como na possibilidade do êxito
então de uma revolução de independência), se a mesma
revolução começasse a mostrar algumas aparências de
duração, o que não era provável, não se lhe unindo São Paulo,
como dissemos (54), e neste caso a guerra civil podia estar
terminada, ainda antes de se haver feito constar na Europa a
sua existência. De Pernambuco, cujo governador era então um
hábil militar, e ode havia bastante tropa, poderiam estas ter
sido mandadas: enfim a guerra civil teria estalado, e os
resultados não se pode crer que fossem em favor dos Mineiros.
E supondo ainda que no fim de uma encarniçada guerra civil,
que já por si só seria um flagelo, triunfasse a revolução,
estaria hoje o Brasil em melhor estado? Essa pequena
república, encravada no meio do majestoso império de Santa
Cruz, não teria sido um mal? Não teria alguma nação poderosa
238
procurado um pretexto de guerra para buscar ter nesse
território uma Guiana? Não teria ainda nele também outra
Guiana o próprio Portugal? Curvemos a cabeça ao decreto da
Providência, que, à custa do próprio sangue dos mártires do
patriotismo, veio a conduzir-nos à única situação, em que
podemos, sem novos ensaios, procurar ser felizes, e fazer -nos
respeitar como nação.
Pelo que respeita ao visconde de Barbacena, quando
esperava haver bem merecido grande galardão da rainha pelo
seu bom serviço, encontrou-se ele, ao cabo de mais de um ano
de dar a notícia, com um aviso (55) do sisudo e honesto
ministro Martinho de melo, increpando-lhe uma grande parte
da responsabilidade de quanto sucedera, e levando-lhe ate a
quase a mal o haver mandado fazer tantas prisões, quando os
verdadeiros culpados eram em pequeno número; e por fim
ordenando-lhe que deixasse de ter a sua residência habitual no
campo, e passasse a morar na capital da província, para bem
das partes, e para poder atender a qualquer desordem. Não
cremos impossível que, tanto para esta repreensão, como para
a concessão do perdão, concorressem muito as informações
verbais dadas pelo vice-rei, amigo do Brasil, Luís de
Vasconcelos e Sousa, que justamente por esse tempo deixara o
posto, e partira para a corte, muito queixoso do mesmo
Barbacena (56).
(1) Todos esses fatos constam do auto sumário fei to aos presos,
em 7 de Julho de 1789, são admiravelmente confirmados pela carta do
próprio Jefferson a J. Jay, extratada na Revista do Instituto Histórico, 3,
239
208/216. – (A.). – Conf. citada Revista, 47, parte 1ª, 123/132, onde se
encontra a correspondência trocada entre Jefferson e Vendek, pseudônimo
de José Joaquim da Maia, que escrevia de Montpellier. – Essas cartas, em
número de quatro, são vertidas do mau francês em que foram lançadas
para o português, e abarcam o período de 2 de Outubro de 1786 a 5 de
Janeiro de 1787. Encontra-se também a carta de Jefferson a John Jay, de 4
de Maio daquele último ano, mais completa do que a que vem transcrita
na mesma Revista, 3, 209/213. – Autos de devassa da Inconfidência
Mineira (Publicação autorizada pelo Decreto n. 756ª, artigo 3º, de 21 de
Abril de 1936). Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, 1936 -1938, 7
volumes. – O Auto sumario de testemunhas, a que mandou proceder o
Illustrissimo Senhor Visconde de Barbacena, Governador, e Capitão
General desta Capitania de Minas Geraes, nesta Villa Rica de Nossa
Senhora do Pilar, supra referido, vem nos mesmos Autos de devassa, II,
págs. 81/95. – Das cartas de José Joaquim da Maia, que era estudante em
Montpellier, e se ocultava sob o pseudônimo de Vendek, e de Tomás
Jefferson, ministro dos Estados Unidos em França, existem cópias
autênticas dos originais em língua francesa, na secção de manuscritos da
Biblioteca Nacional, por certidão obtida pelo Dr. José Carlos Rodrigues: -
“Department of State. Bureau of Rolls and Library, Washington, April 11,
1883. – I certify that the papers hereto attached, viz: - A letter to Th.
Jefferson from one “Vendek”, dated October 2, 1786. – Ditto, dated
November 2, 1786. – Ditto, dated January 5, 1787; and a letter from Th.
Jefferson to monsieur Vendek dated Paris, Dec. 26, 1786 – Are true
copies, made from their originals in files of this Department – Theodore
F. Dwigth, Chief of Bureau of Rolls and Library”. – Seguem-se as cópias
dos documentos. Na segunda carta de Vendek acusa -se a recepção de uma
carta de Jefferson, de 16 de Outubro, que não consta da certidão, e da
qual o Dr. Lúcio José dos Santos, A Inconfidência Mineira – Papel de
Tiradentes na Inconfidência, pág. 101, São Paulo, 1927, supre a falta em
bom extrato. – (G.).
(6) “... foi o primeiro que suscitou esta espécie, com a lembrança
da Inglaterra...”. – Depoimento de Cláudio, 2 de Julh de 1789. – (A.). –
Revista do Instituto Histórico, 53, parte 1ª, 158. – (G.).
(21) Não teve esta palavra para nenhum dos do conluio, a mínima
referência à de maçon, como pensou um contemporâneo. – Veja o
243
Dicionário de Morais. – (A.). – “...qui ad Europaeis parentibus, patre
atque matre, hic natus est, appellatur Mazombo”. – explica Marcgrav,
Historiae Rerum Naturalium Brasiliae, 268, Amsterdam, 1648. – (G.).
(26) E não é para nós vem averiguado, por certa contradição que
se adverte nos depoimentos, se a verdadeira legenda de Alvarenga, por
todos preferida, foi a Libertas quae sera tamen, ou a de Libertas aut nihil,
que se atribuiu depois a Cláudio. – (A.).
(34) Assim chamada até 1865, quando passou a denominar -se rua
de Gonçalves Dias. – (G.).
(41) Essa ode não estava feita antes de ser preso, como há quem
creia. E deve entender-se que anda geralmente impressa dividida em duas,
sendo uma só. Começa pelo Sonho, que se acha às págs. 385 e 386 do 2º
vol. do nosso Florilégio da Poesia Brasileira, e depois segue de págs. 369
a 372, constituindo os três últimos versos desta o final do Sonho. – (A.). –
Florilégio, II, págs. 30/31, da edição da Academia Brasileira. – (G.).
246
(42) Não “fosse convidado a reinar”, como disse um escritor, que
pelo nome não perca. – (A.). – Esse escritor foi Joaquim Norberto de
Sousa Silva, História da Conjuração Mineira, 121. – (G.).
(46) “... Sendo talvez por esta descomedida ousadia, com que
mostrava ter totalmente perdido o temor das justiças e o respeito e
fidelidade devida à dita Senhora (Rainha), reputado por um herói entre os
conjurados”. – Sentença na Revista do Instituto Histórico, 8, 318. – Dizia
“que os cariocas americanos eram fracos, vis, e de espíritos baixos,
porque podiam passar sem o jugo que sofriam e viver independentes do
reino, e o toleravam”, etc., ibidem, 319. – (A.). – Edição mais fidedigna
da Sentença, de acordo com o original existente na Biblioteca Nacional,
vem na citada Revista, 64, parte 1ª, 109/152. – A sentença está impressa
nos Autos de devassa, VII, págs. 145/197. – Conf. nota 27. – (G.).
(48) Veja a nota 50. – Sobre os que foram deportados para Angola
publicou o Rev. Padre Manuel Ruela Pombo, na edição ilustrada da
Revista Diogo Cão, de Luanda, fascículos 1 a 6, de 1932, preciosos
documentos que informam suficientemente das circunstâncias de vida
daqueles brasileiros nos presídios de maçangano, de Cambambe, de
Ambaca, de Muxima, de Ancoche ou Encoge, de Bié e de Mengue-a-
Nova. Merece destaque a ação do Dr. José Alvares Maciel, desterrado
para Maçangano, e encarregado depois pelo governo português de montar
uma fábrica de ferro em Angola. Dos documentos a respeito consta a
correspondência do governador de Angola, D. Miguel Antônio de Melo
com o ministro D. Rodrigo de Sousa Coutinho, bem como uma longa carta
de Maciel, de 2 de Maio de 1800, dando conta de seus trabalhos de
mineração. – (G.).
(I)
(II)
*
No depoimento de Cláudio em Vila Rica, no dia 2 de Julho de 1789, ele é o
próprio que reconhece “o gênio gracejador que tinha”, e que confessa como fora
amigo da “maledicência”. (Nota do A.).
252
imprimir em Portugal. Bastante chamei sobre essas palavras a atenção,
transcrevendo-as pela primeira vez no Florilégio. Ora, que o autor das
cartas era filho de Minas, o revela ele claramente, quanto a mim, no fim
da carta 10ª..., dizendo:
Agora bem: sabemos que Nise havia sido o nome da amada, ideal
ou verdadeira, - da deidade poética, a quem votara Cláudio os seus versos,
ao chegar da Europa; mas já não havia indiscrição em designá -lo, quando
tantos outros poetas versejavam pelo mesmo tempo a outras Nises; da
mesma forma que outros, sem ser Gonzaga, fariam coetane amene com ele
versos a outras Marílias, e outros, sem ser Alvarenga, a outras Clauras.
Demais as Cartas não eram destinadas a ver a luz da imprensa. Escrevia -
as o autor a um amigo seu que estava na corte, e provavelmente teria bem
cuidado de dirigi-las, até o Rio de Janeiro pelo menos, em carta fechada e
253
por algum próprio de confiança; de modo que não corressem risco de cair
nas mãos dos mandões em Minas. Mas se chegassem a cair, não deveriam
elas comprometer a Cláudio, que já então poetava à sua Eulina. As sim,
com a lembrança da antiga Nise (alguma Inês provavelmente), dirigindo a
Doroteu, que talvez também tivesse dela notícia em Portugal, bem poderia
o poeta julgar que nenhuma revelação fazia; ao passo que, para com o seu
amigo, guardava a lei dos trovadores, ao ter, como os antigos cavalheiros
andantes, continuamente presente a sua Dulcinéia.
Nome de Critilo.- Neste nome era necessário maior disfarce, pois
que o de Galucestes devia ser mui conhecido. Destarte pela mesma razão
com que o poeta, por prudência, dissera Cartas Chilenas em vez de
Mineiras, Chile em vez de Minas, Santiago em vez de Vila Rica,
substituições todas como calculadas para poderem, a todo tempo, entrar
nos versos, sem prejuízo da metrificação, escreveu Critilo em vez de
Glaucestes, com igual disfarce. Um e outro nome entram no verso da
mesma forma.
Porventura, se Critilo fosse nome de Arcádia, há de por meio dele
revelar-se o autor, que em tudo o mais, para não chegar a comprometer -se
em caso de alguma violação do correio, buscava guarda r tantos mistérios?
Cabe-me ainda para mais, acrescentar que alguma tradição deviam
haver recolhido a favor de Cláudio Manuel da Costa os redatores dos
Anais Fluminenses de 1822, quando, propondo-se a imprimir as Cartas no
Jornal Científico, Econômico e Literário, publicado por eles nesta corte
em 1826, não duvidaram associar a elas, desde logo, bem que
misteriosamente, o nome de Cláudio, publicando -o com as suas iniciais
deste modo: De C. M. da C.
Passando agora a tratar da época em que foram escritas as Cartas,
direi que, pela própria leitura delas, se reconhece que não se compuseram
de um jacto, mas sim sucessivamente, mediando largas interrupções.
Foram, ao que parece, escritas as primeiras enquanto ainda o Minésio
permanecia no governo, e por conseqüência talvez em 1784 ou 1785;
seguiram a 5ª e 6ª depois dos festejos pelos desposórios dos Infantes em
1786; e as seguintes à 7ª, que começa:
“Ha tempo, Dorotheo, que não prosigo
Do nosso Fanfarrão a longa historia...”
INDEPENDÊNCIA DO BRASIL
Textos de Varnhagen
258
PREFÁCIO
264
de Meneses Vasconcelos de Drummond, de 14 de Dezembro daquele ano,
dirigido ao então Ministro dos Negócios Estrangeiros, Caetano Maria
Lopes Gama, cuja minuta encontra-se no Arquivo do Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro. (H.V.).
(7) Smith & Elder, London, 1836. (A.). John Armitage – The
History of Brazil, from the period of the arrival of the Bragaza family in
1808, to the abdication of Don Pedro The First in 1831. Compiled from
State Documents and other Original Sources. Forming a continuation to
Southey’s History of that country; 2 vols. (Londres, Smith, Elder and Co.,
265
1836). (H.V.).
266
(11) Cônego Geraldo Leite Bastos. (H.V.).
268
CAPÍTULO I
332
(11) Antônio Rodrigues Veloso de Oliveira. (H. V.).
335
(33) Exame analítico-crítico da solução da questão..., 52 págs., 8º
pequeno. É obra de um filho de Portugal, publicada “com licença da
Comissão da Censura” na tipografia da Viúva Serva e Carvalho. Na pág.
17 se lê: “Até o senhor discursista (A. do tal escrito) teria que importar ao
Brasil, se quisesse cortar os seus pinheiros, e excusavam os americanos
de trazerem o precioso comércio do tabuado...” (A.). – É o seguinte o
título completo do folheto baiano, n. 6.704 do Catálogo da Esposição de
História do Brasil. cit.,: Exame Analítico-Crítico da Solução da questão:
O Rei, e a Família Real de Bragança devem, nas circunstâncias
presentes, voltar a Portugal ou ficar no Brasil? Publicada na Corte do
Rio de Janeiro, por um anônimo, em idioma Francês, nos últimos dias do
ano próximo passado (Bahia, s.d. [1821]). Há engano, como vimos na
nota anterior e veremos na seguinte, quanto à época exata da saída do
folheto que deu causa a este, existente na Divisão de Obras Raras da
Biblioteca Nacional. Começa a publicação baiana por uma “Observação
Prelimianr”, seguindo-se-lhe a “Memória” em apreço, com as seis
“Proposições” do folheto francês, acima resumidas por Barnhagen,
respondidas uma por uma. A p. 18 poder-se-ia ver nova alusão ao
Ministro Silvestre Pinheiro Ferreira, quando diz o autor do folheto baiano
que “isto não é prova de grande conselheiro”. (H. V.).
338
p. 172/174. (H. V.).
(64) Sobre sua ação no cargo, ver, adiante, a nota 79. (H. V.).
341
(68) José Joaquim Nabuco de Araújo, depois 1º Barão de Itapoã .
(H. V.).
(98) Não a bordo, como disse o Sr. Pereira da Silva. Vej. carta do
príncipe, de 19 de Junho de 1822. (A.). – Apesar da correção de
Varnhagen, quanto ao local e ao próprio texto, numerosos foram os
escritores e compendiógrafos que repetiram erros a respeito, inclusive
apresentando uma versão inteiramente fantasiosa da frase de D. João VI
ao filho e herdeiro, por este confirmada em carta muitas vezes publicada,
desde 1822. A versão errônea da famosa frase |(“Ponha a coroa sobre a
tua cabeça”, etc.) teve origem na História dos Principais Succesos
Politicos do Império do Brasil, cit., do Visconde de Cairu, parte X, seção
I, cap. XXI, “Recomendação na Despedida de El -Rei ao Herdeiro da
Coroa”, p. 87. (H. V.).
347
CAPÍTULO III
348
A Casa da Suplicação do Rio de Janeiro ficaria reduzida
a simples Relação provincial, estabelecendo-se nela uma mesa,
por onde se despachariam os assuntos que corriam pelas do
Desembargo do Paço e Consciência; ficando, portanto,
dependentes da metrópole quaisquer mercês que se houvessem
de fazer.
Em meados do mês de março era apresentado um
projeto de relações comerciais com o Brasil (4), que veio
assustar os deputados do Brasil e daí a dois meses excitou os
clamores do Brasil todo.
A comissão que o submeteu ao Congresso valeu-se do
trabalho, com dois artigos menos, apresentado pouco antes (25
de Janeiro) (5) por uma comissão criada no ano anterior (28 de
Agosto de 1821), à qual ele fora cometido em 14 de Janeiro.
O comércio entre os dois reinos seria considerado como
de entre províncias do mesmo continente, e só feito por navios
nacionais; estabelecia-se troca dos produtos com exclusão dos
similares dos demais países, com grande desvantagem do
Brasil, pela menor soma que exportaria; favoreciam-se nos
direitos de exportação de Lisboa os gêneros do Brasil, que aí
entrassem em depósito, para converter de novo Lisboa no
empório do comércio do Brasil. Desta sorte, sob aparências de
reciprocidade, volveria o comércio do Brasil quase ao mesmo
estado em que estava em 1808.
Para que se faça idéia da impressão que este projeto
faria aos deputados do Brasil, transcreveremos as próprias
expressões que encontramos em um documento assinado por
dois deles (6):
“Apresenta-se um projeto de relações comerciais entre
os dois reinos, no qual, ajuntando o escárnio à fraude, alcunha -
349
se de igualdade a mais descarada desigualdade, e quer-se
arteiramente soldar os já quebrados ferros do sistema colonial,
erigir de novo Portugal em depósito privativo dos gêneros do
Brasil, e fechar quase aquele reino à indústria estranha, por
proibições diretas ou por meio de restrições equivalentes a
proibições, sem se tomar em conta que um país inteiramente
agrícola, como o Brasil, tem interesses mui diversos dos de
Portugal, que quer à força ser manufatureiro, e que não pode
ser político, e menos justo, que uma parte do Império seja
sacrificada ao bem da outra, sem alguma compensação da
sacrificada, e até sem duradoura utilidade daquela a quem se
sacrifica.
“Um sistema de ilusão, só calculado para o horizonte da
rude Nigrícia, achou no primeiro dos abaixo-assinados a mais
atinada repulsa; passou, porém, pela decidida maioria dos
deputados de Portugal, numa conformidade de idéias
interessadas e inimigas do aumento e prosperidade do Brasil.”
Conforme antes dissemos, em fins de Agosto de 1821 se
haviam apresentado a tomar assento os deputados de Per -
nambuco; seguiram-se, em Setembro, alguns do Rio de
Janeiro; em 16 de Outubro, Vilela Barbosa, também do Rio de
Janeiro, como segundo substituto, que entrou em lugar do
Bispo de Coimbra; em Dezembro, vários da Bahia; e, em
Fevereiro de 1822, os principais de São Paulo, Antônio Carlos,
Vergueiro e Feijó (7).
Assim, de uns oitenta que devia dar o Brasil, apenas
estavam presentes uns trinta, em princípios de Março de 1822.
À frente de todos achava-se Antônio Carlos Ribeiro de
Andrada Machado, irmão de José Bonifácio. Tomando assento
a 11 de Fevereiro, e sendo a primeira vez em sua vida que
350
entrava em semelhantes lides, logo no dia seguinte se lançava
à discussão, como se fosse um consumado parlamentar, e a sua
grande resolução e energia e o seu talento fecundo de acudir
com alvitres na discussão, lhe granjearam, em poucos dias, a
posição de verdadeiro chefe e líder da parte da deputação
brasileira que pugnava por obter concessões a favor do novo
reino. Contava então pouco mais de quarenta e oito anos de
idade. Depois de formar-se em leis e tomar o grau de Bacharel
em Filosofia na Universidade de Coimbra, e de haver
colaborado na tradução de algumas obras para o estabe -
lecimento, sob a direção de Frei Veloso, no Arco do Cego, em
Lisboa (8), seguira Antônio Carlos a magistratura, e passara de
juiz de fora de Santos, sua pátria, a ouvidor em Olinda, quando
aí rebentou a revolução de 1817, na qual se envolveu, bem que
a sua cooperação para ela, segundo a sua própria confissão,
feita anos depois, espontaneamente (9), não passou de
tolerância passiva, sem chegar a ativa cooperação. Em todo
caso, vendida essa revolução, foi preso e remetido para a
Bahia, onde veio a ser solto em Fevereiro de 1821, por ocasião
da aclamação constitucional, ao cabo de perto de quatro anos
de reclusão, dos quais os dois primeiros, até chegar ao Rio
com licença o seu irmão José Bonifácio, em 1819, bastante
rigorosa.
Esses anos de reclusão forçada contribuíram mais para
acabar de formar o espírito e o caráter de Antônio Carlos do
que o seu curso em Coimbra. Durante eles, leu muito, meditou
não menos, e até se exercitou no foro, tomando a seu cargo a
defesa de muitos dos seus compatriotas, comprometidos com
ele, e alguns até seus companheiros na prisão, e também seus
discípulos. Mas, ao mesmo tempo, essa prisão agriou-lhe o
351
caráter, e porventura contribuiria a ver nos que se lhe op unham
inimigos em vez de antagonistas, e a tratar sempre de
combater em vez de tentar persuadir sem ofender.
Bem que mais parco de frases, mais moderado na forma
e menos brilhante e pomposo no dizer, não lhe cedia em
energia, coragem, honra e atividade, e era-lhe superior pela
prudência, e prometia já ser melhor estadista, o Deputado
fluminense Francisco Vilela Barbosa (10), que lhe levava
grande vantagem pela nobreza da figura e pela melhoria do
órgão da voz.
Nascido no Rio de Janeiro, em 1769, passara a
Coimbra, e, já antes de aí se formar em matemáticas, o que
efetuou em 1796, publicada um volume de poesias. Em 1801
passara a reger uma cadeira de matemática na Academia de
Marinha de Lisboa, obtendo, ao mesmo tempo, segundo era
então freqüente, um posto em que ia tendo acesso, na Marinha,
donde passou depois para a Engenharia. Alcançou grandes
créditos como lente, e ilustrara, além disso, o magistério,
compondo um compêndio de Geometria ainda hoje muito
conceituado, que a própria Academia das Ciências de Li sboa,
de que era membro, se encarregara de publicar, e que o
secretário desta, José Bonifácio, no discurso da sessão pública
e solene de 1815, não duvidou de recomendar, não só por mui
conforme “com as regras da analogia e do método, na
exposição e demonstração das proposições”, mas também pela
“vantagem preciosa de simplificar a ciência, enriquecendo -a
ao mesmo tempo de idéias novas”. Da mesma Academia fora
Vilela eleito vice-secretário, e lhe coubera ainda o proferir na
sessão solene de 24 de Junho de 1821 o discurso histórico dos
trabalhos dela, quando lhe chegou a notícia de que os seus
352
comprovincianos o haviam eleito suplente ao Congresso, quase
ao mesmo tempo que ele, naquele discurso, a propósito de um
trabalho oferecido pelo então Tenente-Coronel Varnhagen (11)
acerca do Ipanema e Morro de Biraçoiaba, recordava a
expressão de Rocha Pita, que dizia deste “ter as entranhas de
ferro” (12), e prosseguia: - “Nem era de supor que a natureza,
liberal em tantas preciosidades para com aquele abençoado
país, só fosse escassa em conceder-lhe o mais útil de todos o
minerais, o ferro, tão necessário em tudo à vida, até nos usos
funestos que dele fez a perversidade humana, depois que o
ouro, seu tirânico irmão, filho do luxo e da terra, o estendeu
em algemas e grilhões, o aguçou em espadas e baionetas, e o
fundiu em balas e canhões, para instrumentos da tirania, de
crimes e da morte”.
Sendo segundo suplente, viera a caber-lhe tomar
assento no Congresso, no dia 16 de outubro, em virtude da
renúncia, feita providencialmente pelo seu antigo protetor na
Universidade de Coimbra, o fluminense Bispo-Conde D.
Francisco de Lemos, que se eximira de aceitar a deputação
“pela sua muita idade e achaques”.
Segundo o seu biógrafo, matemático também, o
ilustrado Cândido Batista de Oliveira (13), foi Vilela – de
espírito elevado, de ânimo oficioso, nobre e franco de caráter,
“legislador consciencioso” e “rígido observador dos seus
deveres, tanto como homem público, como nos hábitos
próprios da vida privada; e tão amigo se mostrava do
verdadeiro merecimento, como aborrecia e menosprezava a
impostura”. “Para ele o justo e o honesto eram termos que...
exprimiam as mesmas idéias”. Em presença de tal autoridade,
nem nos ocuparemos em declarar caluniosas as proposições de
353
algum seu gratuito inimigo, que pensando favorecer aos seus
protetores Andradas (14), chegou a assegurar que Vilela
regressara ao Brasil com intentos de favorecer o despotismo,
citando-se até frases de um seu discurso nas Cortes, em que,
como recurso oratório, para conseguir a retirada de Luís do
Rego, protestou, com Malaquias e Muniz Tavares (15), que o
Brasil não queria a Independência, asserção que aliás se
encontra também em escritos de José Bonifácio (16).
A par dos de Vilela, devemos colocar os serviços e a
respeitabilidade de caráter de Nicolau Pereira de Campos
Vergueiro. Nascido em Portugal, em 1778, e formado em
1804, em Coimbra, passara em 1805 a São Paulo, com intento
de aí exercer a advocacia. Casando-se nesta província,
preferira entregar-se à lavoura em Piracicaba, quando se viu
eleito deputado, em 1821. Passando a Lisboa, enquanto no
parlamento zelava pelos seus constituintes, fazia imprimir
(1822) uma conscienciosa memória histórica acerca da fábrica
e minas de ferro de Ipanema, que antes compusera, e passa à
posteridade como uma das melhores monografias que possui o
Brasil (17).
Bem que mais calado e retraído, não cedia a nenhum
dos três em firmeza de princípios, nem em coragem, o Padre
Diogo Antônio Feijó. Obrando por convicção, com a maior
independência e abnegação, sem aspirações políticas pessoais,
regulando os seus atos só em harmonia com a sua consciência
e o que julgava do seu dever, alheio até talvez a ambições de
glória, já nas poucas vezes que falou ou teve que justificar por
escrito atos seus, deixou entrever a respeitabilidade do seu
caráter impertérrito, de que ao depois deu tantas provas, vindo
a ser o verdadeiro salvador do Império, no começo do segundo
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reinado, e associando o seu nome, em nossa opinião, mais do
que nenhum outro brasileiro, ao do fundador do mesmo
Império, que, segundo ele, não fora outrem, senão o próprio
Pedro I (18), conforme a posteridade imparcial já começa a
reconhecer.
Como caracteres graves e respeitáveis, gozavam
igualmente de muito bom conceito entre os seus compatriotas
o Padre Marcos [Antônio de Sousa], Vigário da Vitória, na
Bahia, os Deputados de São Paulo, Desembargadores Costa
Aguiar e Fernandes Pinheiro, paulistas, o primeiro da família
Andrada e o segundo mui ligado nas Cortes a Vilela Barbosa,
o Comendador Borges de Barros, escritor e poeta baiano, e o
pernambucano, doutor em cânones, Pedro de Araújo Lima. Por
grandes e vigorosos discursos se assinalaram também, depois
de Antônio Carlos, o médico José Lino Coutinho, autor de
alguns escritos médicos e já então membro da Academia de
Ciências, e Barata de Almeida (19), da Bahia, Muniz Tavares,
de Pernambuco, e, por fim, o Padre Alencar, do Ceará, que
somente chegou mais tarde. Gonçalves Ledo (20), deputado
fluminense, que fora dos primeiros a sair a campo em defesa
dos direitos do Brasil, eclipsou-se depois quase inteiramente.
O Bispo do Pará (21) e os deputados do Maranhão, que
chegaram mais tarde, votaram em geral com os deputados de
Portugal, e Martins Basto e Luís Paulino, eleitos aquele pelo
Rio de Janeiro e este pela Bahia, nem sempre se associaram
nas votações com os outros seus conterrâneos, nos primeiros
passos de armas, que foram providenciais para se estabelecer
uma espécie de harmonia entre os deputados de províncias
distantes, e quase sem nexo entre si [harmonia], que depois
veio a ser aproveitada em favor da integridade na declaração
355
da Independência.
Assim, os principais dos deputados brasileiros que mais
tarde tomaram nas discussões, já se achavam com assento nas
Cortes, quando a elas eram apresentadas as cartas dirigidas elo
príncipe [D. Pedro] a el-rei, seu pai, em 14 e 15 de Dezembro
(22), dando conta do alarma em que ficava o sul do Brasil com
a promulgação dos dois decretos de 29 de Setembro e a certeza
da imediata chegada do outro para a supressão dos tribunais.
Ainda um pouco antes, em sessão de 23 de fevereiro,
havia o Deputado Borges de Barros feito uma indicação
pedindo a revisão do artigo (capítulo I do título 6º) já votado...
a respeito das Juntas administrativas, antes que fosse
declarado de aplicação no Brasil (23). Era até doutrina que se
deduzia do teor das próprias bases, já então juradas. Foi,
porém, impugnada injustamente elos Deputados Moura (24) e
Borges Carneiro (25), a pretexto de que os deputados presentes
representavam toda a nação.
Um ofício do Senado na Câmara do Rio de Janeiro (26),
referindo-se às instruções (27), dadas pela Junta Provisória de
São Paulo aos deputados dessa província, como um manifesto
das necessidades do Brasil a bem da união, deu também a
conhecer as mesmas instruções que Antônio Carlos, apesar de
ponderar ser contra o espírito delas, tudo quanto as Cortes
haviam já deliberado, não duvidou entregar (28) à Comissão
de Constituição.
Estremeceram os portugueses mais cordatos. Modera -
ram-se muito os mais violentos. Começaram todos a reler, com
maior atenção, o projeto de Oliva (29), os artigos do Correio
Brasiliense, a respeito do modo único de ser possível levar-se
a cabo a união, e certas polêmicas acerca da preferência do
356
Brasil para sede da monarquia, que, no ano anterior, segundo
dissemos, tanta celeuma de injúrias havia levantado.
Em presença da aparente tolerância, resultante desta
nova situação, animou-se Vilela Barbosa a apresentar, em
sessão de 11 de Março, uma indicação para que os gover -
nadores das armas do Brasil fossem tirados do respectivo
exército e ficassem subordinados à autoridade das juntas
governativas. Já não foi rejeitada: ficou somente adiada.
Tinham abraçado as idéias de tolerância vários
jornalistas e os deputados mais cordatos, começando por
Trigoso (30) e Bento Pereira do Carmo (31), e, ainda mais que
ambos, o judicioso Correia de Seabra (32). Com o apoio eficaz
destes e alguns outros, chegou-se a nomear uma comissão
especial dos “negócios políticos do Brasil”. Resolveu -se que
fosse composta de doze membros, seis de cada reino. Saíram
votados aqueles dois primeiros, juntando-se-lhes os corifeus
exaltados, Borges Carneiro e Moura, e os médicos Guerreiro
(33) e Anes de Carvalho (34). Brasileiros, foram escolhidos
Antônio Carlos, Gonçalves Ledo, Almeida e Castro (de
Pernambuco), Granjeiro (das Alagoas), Belfort (do Maranhão)
e Bento de França (35).
Apresentou a mesma comissão um projeto no dia 18 de
Março (36), declarando-se vencidos vários dos seus membros.
Constava de doze artigos, precedidos de um relatório (37), em
que se procuravam justificar mui candidamente todos os atos
de arbítrio e violência, decretados contra o Brasil, no ano
anterior. Entretanto, concluíram apresentando um projeto, pelo
qual se admitia: que o príncipe seguisse no governo do Rio de
Janeiro e não se instalasse aí Junta enquanto se não fizesse a
organização geral do seu governo; que ficasse autorizado para
357
não abolir, senão progressivamente, os tribunais; que os
generais das armas e Juntas de Fazenda ficassem subordinados
às de governo em cada província; que se discutisse e votasse
logo o projeto, que acima analisamos, acera das relações
comerciais, o qual seria um dos mais fortes vínculos da união;
que se especificariam, em cada reino, os gastos próprios a cada
um, dos que deveriam ser de cada parte tirados para as
despesas gerais da união, como família real, corpo
diplomático, marinha e extraordinárias de guerra; que a dívida
transata do Brasil seria declarada nacional; que a dívida
contraída com o Banco do Brasil seria declarada pública (38),
assinando desde logo prestações para sustentar esse útil
estabelecimento; que se declarasse às províncias do Brasil que
o Congresso não tinha dúvida de conceder-lhes um ou dois
centros de delegação de governo executivo, se assim o
desejassem; que, finda a Constituição, se discutiriam os
artigos adicionais a ela, com todos os mais deputados
brasileiros, que ainda comparecessem: que as tropas por -
tuguesas que estavam no Brasil aí continuassem, enquanto o
governo, depois de ouvir as juntas governativas das
províncias, não ordenasse o seu regresso.
Tratava-se de discutir este projeto, quando chegaram ao
conhecimento das Cortes as cartas do príncipe, de 30 de
Dezembro e 2 de Janeiro, acompanhando esta a representação
da Junta de São Paulo. Foi logo ouvida acerca desta
representação a comissão especial dos negócios do Brasil, a
qual, no dia 22, apresentou um parecer, que se reduzia a que se
esperassem mais notícias do Brasil, dando, entretanto, ocasião
de ter lugar, nesse dia e no seguinte, um violento debate, onde
Fernandes Tomás (39) chegou a dizer não se poder duvidar
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que o Brasil se havia de separar, e que a sua opinião era que o
fizesse desde já. Distinguiram-se também, por seus ataques
contra o Brasil, Ferreira Borges, Xavier Monteiro (40), M oura
e outros dos vinte e dois mais notáveis contra as idéias dos
brasileiros, que denominaram “Regimento 22” (41). Defendeu
Pereira do Carmo a prórroga reclamada pela comissão, para
dar tempo a que se viesse a conhecer melhor se a opinião da
Junta de São Paulo era geral, e proceder-se com moderação.
Acrescentou que não deviam as Cortes querer tomar a
responsabilidade de que por sua culpa se fizera em pedaços o
Império lusitano, que até elas se havia mantido íntegro, através
de tantas contrariedades.
(1) Esta carta de lei tem a data de 13 (e não 12) de Janeiro. Foi
referendada por Filipe Ferreira de Araújo de Castro. Vej. Documentos
para a História das Cortes Gerais & tomo I, p. 263-265. (R. B.). – Note-
se que “tribunais”, à época, não eram apenas os órgãos judiciais, mas
quaisquer repartições públicas. (H. V.).
(2) Este ministro, que tanto se empenhou para que o Brasil fosse
dividido em governos separados e convertidos em pequenas colônias
dependentes em tudo da metrópole, que q uis extinguir tribunais e
substituir todos os magistrados que serviam no Brasil, e suprimir escolas,
foi o protetor de um turbulento e exaltado guarda -livros, que converteu
por esse tempo em oficial de secretaria (1823), tomando -o para seu
auxiliar. Pouco depois, o improvisado oficial de secretaria, que aplaudiu
todas as medidas tendentes a escravizar o Brasil, teve de emigrar de
Lisboa, em conseqüência da contra -revolução (1823), e passou a
Pernambuco, onde entrou ao serviço da causa separatista, trabalhan do aí,
embora obscuramente, pelo desmembramento da terra que não era sua e
que um ano antes quisera ver reduzida ao regime colonial anterior a 1808.
Refiro-me a Guilherme Tatcliffe. (R. B.).
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(3) Em Pereira da Silva, História da Fundação do Império (tomo
V, p. 285), lê-se o seguinte: “Publicou (Silva Carvalho) dois avisos,
extingüindo as Academias de Marinha e Belas -Artes, fundadas no Rio de
Janeiro, e mandando recolher a Lisboa os seus professores (16 de
Fevereiro de 1822). Clamou energicamente Vilela Barb osa contra estes
atos ilegais do governo. Em que lei do Congresso achara autorização para
resolvê-los? Não via o depuTado fluminense incluídas aquelas academias
no decreto promulgado pelas Cortes, em 13 de Janeiro, relativo só às
secretarias e tribunais que extinguira. Requereu se mandassem sustar e
suspender os arbitrários avisos, mas não foram ouvidas as suas vozes e
nem aprovada a sua proposta (sessões de 1 e 4 de Março de 1822). (R.
B.).
(20) Custódio Gonçalves Ledo, que não deve ser confundido com
seu irmão Joaquim Gonçalves ledo. (H. V.).
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(34) Joaquim Pereira Anes de Carvalho, Deputado substituto pela
Estremadura. (H. V.).
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