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“Um Universo de Pensamento Abolido”


Daniel Bensaid

Prefácio1*

Quando Marc Perelman pediu-me para contribuir numa reedição dos


textos publicados há mais de vinte anos no volume Contra Althusser, primeiro
fiquei surpreso. Por que ressuscitar uma polêmica muito marcada por uma
conjuntura político-intelectual possivelmente mais antiga do que seu objeto? E
depois, a maior parte da obra de Althusser, hoje publicada postumamente, não
tinha sido lida por mim no tempo de nossas indignações juvenis.

Finalmente, a iniciativa das Edições Passion primeiramente me incitou a


ler o que não havia lido, [bem como] a reler os velhos textos, a começar de Por
Marx e Ler o Capital que nós tínhamos estudado apaixonadamente, Antoine
Artous e eu, durante as férias do inverno de 1965-66, na pequena escola de
Aveyron de Gages, onde a mãe de Antoine era professora. Devido ao rigor do
clima e refugiados junto do fogão antigo, nós discutíamos passo a passo essas
ideias caídas do santuário prestigioso da Rua de L´Ulm, sem esquecer de
seguir na rádio as informações sobre o massacre dos comunistas indonésios.

Engajados na oposição de esquerda no seio dos estudantes comunistas


(a favor de um apoio mais ativo na luta pela liberação vietnamita e contra o
apoio a Mitterand no primeiro turno da eleição presidencial de dezembro de
1965), mais atraídos pela figura emblemática de Che do que pela liturgia
maoísta, nossa conclusão foi definitiva: nós não seríamos althusserianos.

As razões de nossa recusa eram primeiramente de ordem política.


Althusser parecia, “em última instância”, cobrir de sofisticação a [posição] da
direção do partido. Ele havia cometido no ano anterior, em La Nouvelle
Critique, um artigo sobre problemas estudantis que lemos como um lembrete

1
Reedição de Contra Althusser, Éditions de la Passion, 1999. 1/Louis Althusser, XX
Congresso, Paris, Maspero, 1977. O Que não pode durar no partido comunista, Paris,
Maspero, 1979.
2

autoritário da disciplina - que ele, no entanto, excluiu dos textos de Por Marx.
Nossas razões também eram teóricas: animados por um desejo de lutar que
não era avesso ao voluntarismo, tivemos a sensação de um enterro horrível do
sujeito na estrutura.

No calor do momento, houve muitas aproximações e mal-entendidos.


Em retrospectiva, não há nada para se arrepender. Politicamente, o
althusserianismo envelheceu muito. Acima de tudo, ele alimentou suas
ambiguidades em duas crenças desastrosas: manteve além da razão a idéia de
uma possível recuperação do partido e encorajou simetricamente um maoísmo
assombrado pela nostalgia stalinista. Fazer essas coisas compatíveis,
teoricamente, é muito difícil de fazer. Primeiro, porque o clima intelectual do
movimento comunista da época se tornou hoje inimaginável: as peripécias que
envolveram a publicação do artigo “Freud e Lacan” em 1964 na La Nouvelle
Critique, depois de ter sido considerado heterodoxo demais para La Pensée,
têm a aparência da teologia medieval. Segundo, porque o pensamento de
Althusser parece muito mais contraditório e movimentado do que
imaginávamos no calor da luta política.

Ele agora parece, com ajuda da distância crítica - embora muitas vezes
envelhecido e às vezes tedioso - aumentado pelas banalidades e subsistência
conceitual dos "pensadores pobres" [referência a um livro de Dominique
Lecourt, ligada a Althusser, que escreveu um livro onde critica a linguagem
estereotipada dos pensadores de seu tempo, que repetiam muito a palavra
classe e outros termos para insistir que seu marxismo era vivo, n. t.]. Em
contrapartida, assume até dimensões subversivas que são totalmente
agradáveis. Colocar os trabalhos em uma perspectiva editorial destaca uma
tendência crítica, sublinhada pelos textos mais recentes sobre "o materialismo
do encontro", que havíamos entendido mal. Finalmente, não podemos mais ler
esses textos sem pensar no que está acontecendo por trás da frieza dos
confrontos conceituais, da tragédia apaixonada hoje evidenciada pela
autobiografia e pelas cartas a Franca.

Na época da morte de Louis Althusser, em 1985, havia uma espécie de


embaraço jornalístico, uma homenagem carregada de má consciência. E por
uma boa razão. O Partido Comunista (incluindo a oposição) não poderia
3

esquecer os anos de tensão que terminam no colapso, com o XX Congresso e


O que não pode mais durar no Partido Comunista [1]. Quanto aos discípulos,
uma parte tendeu à renúncia, a outra evoluiu em direções divergentes e às
vezes opostas. A rigor, não há mais "althusserianos", como costumávamos
dizer, com uma pitada de suficiência tribal para aqueles que "eram" e um gosto
de zombaria daqueles que "não eram mais”.

A cerimônia de despedida jornalística girou em torno das cinzas.


Defensor do "anti-humanismo teórico", Althusser tinha direito a uma reverência
humanista, comemorando as qualidades do homem e do pedagogo. A
franqueza mostra mais respeito do que as indulgências apressadas. Como a
maioria dos aprendizes comunistas da época, tínhamos lido Althusser com
paixão e preocupação, lápis na mão, destacando e anotando, conversando
longamente. Mas na Juventude Comunista Revolucionária (fundada na Páscoa
de 1966 após nossa exclusão dos Estudantes Comunistas), quase não havia
"althusserianos". Indo a um outro extremo como uma flecha disparada, fomos
para Karl Korsch, Gyorg Lukács, Wilhelm Reich, Lucien Goldmann, Henri
Lefebvre, Jean-Paul Sartre, até pelos ramos díspares para contratacar o que
percebemos como um novo avatar da máquina positivista universitária,
reforçada pela onipotência da razão de estado stalinista.

Em 1968, Ernest Mandel publicou sua formação do pensamento


econômico de Marx, uma contra-leitura polêmica de Marx 2, que criticou em
particular, à luz dos Grundrisse (então praticamente ignorados na França), o
conceito de "ruptura epistemológica". Em 1975, publicamos em Bourgois a
coleção de artigos simplesmente intitulados Contra Althusser, com um capa
turbinada, em boa medida, com um martelo bem endurecido e uma foice
particularmente aguda3. Os ventos conceituais começaram a mudar. A
Althusseromania estava diminuindo. E Jacques Rancière acabara de produzir
seu panfleto filosófico sobre La Leçon d'Althusser (A Lição de Althusser)4.

Em suma, éramos vigorosamente "anti". Até em excesso.

2
Ernest Mandel, A Formação do Pensamento Econômico de Marx, Paris, Maspero, 1968.
3
Contra Althusser, Paris, 10/18, 1975 (Coletivo: artigos de J-M Vincent, J –M Brohm, Catherine
Colliot-Thélène, A. Brossat, D. Avenas, D. Bensaid, J-M Poiron, Samir Nair
4
Jacques Rancière, A Lição de Althusser, Paris, Gallimard, Coll. Idées, 1974.
4

Como entender as reações extremas, favoráveis ou hostis, então


despertadas por esses textos? Para mergulhar na atmosfera intelectual da
época, entender sua censura e suas repressões, é esclarecedor ler o
testemunho de Jacques Derrida, "Amizade e Política" (em Althusserian Legacy,
Verso, Londres, 1989). Ele afirma ali que o peso do Partido Comunista e a
personalidade de Althusser foram paradoxalmente exibidos nos anos sessenta
entre ele e o comunismo: não-membro do partido, "fiquei paralisado, diz ele,
porque não queria não que as questões fossem exploradas de maneira hostil
por um discurso anticomunista”. A esse medo, muito significativo na época, de
se surpreender ao "uivar com os lobos", que era tão frequentemente explorado
para silenciar os críticos ao sugerir "escolher lados" de acordo com uma
alternativa binária, é adicionado efeito de intimidação teórica: “Fiquei paralisado
diante de algo que parecia uma espécie de teórico com letra maiúscula." Dupla
paralisia, portanto, política e intelectual.

Derrida afirma isso, no entanto, como um gesto político que faz sentido:
"Certo ou errado, por convicção política, mas provavelmente também por
intimidação, sempre me abstive de criticar o marxismo": "Houve uma guerra,
tanta intimidação, tanta luta pela hegemonia que o espectro da traição
assombrava instituições e controvérsias. Nesse clima um tanto terrorista, "me
senti intimidado, não estava confortável", repete Derrida. "Eu era anti-stalinista.
Eu já tinha uma imagem do Partido Comunista e da União Soviética
incompatível com a esquerda democrática à qual sempre quis permanecer leal.
Mas eu não queria expressar objeções políticas que poderiam ter sido
confundidas com alguma relutância conservadora."

Essa restrição gira em torno da figura paterna de Louis Althusser e da


influência hegemônica do partido na Rua d'Ulm. Um fenômeno dificilmente
imaginável hoje em dia, era difícil não ingressar no Partido, lembra Derrida. No
entanto, após a intervenção soviética na Hungria, alguns intelectuais o
deixaram, mas "Althusser não fez isso e acho que ele nunca o faria"
(Althusserian Legacy, p. 199). Se há uma coisa que ele provavelmente nunca
poderia ter feito, foi sair do partido. No entanto, mesmo sendo considerado
potencialmente herético pelo aparato, o discurso althusseriano teria autoridade
nos círculos da intelligentsia marxista ou marxista. Até 1968, "eu percebi esse
5

discurso não como ostracizado, mas como hegemônico dentro do partido",


testemunha novamente Derrida em 1989. Sua relutância relacionava-se, em
particular, à noção de corte epistemológico, estabelecendo uma fronteira entre
um Marx ideológico pré-marxista e um Marx científico. Tornar-se ele mesmo.
Derrida nunca foi convencido por esta tese dos dois Marx. O conceito de
ciência não era para ele a última palavra que permitia escapar à
heterogeneidade de Marx e de seu pensamento. Assim, apesar de seu
refinamento, o discurso de Althusser e seus discípulos lhe apareceu, ele
lembra, como "novo cientificismo" ou "novo positivismo". Perguntas tão
decisivas quanto "o que é um objeto?" foram cruelmente censuradas.

Entre as reservas ao pensamento althusseriano, que o mantinham longe


de um compromisso comunista, Derrida menciona o fato de que muitas
perguntas lhe pareciam ser negligenciadas "em particular as relativas à
historicidade da história ou ao conceito de 'história': “Descobri que Althusser
rapidamente removeu certas coisas da história, por exemplo, afirmando que a
ideologia não tem história. Não quis desistir da história. A destruição do
conceito metafísico de história não significa para mim que não há história"
(Althusserian Legacy, p. 193) Pelo contrário, ele acredita que o conceito de
ideologia tem uma história e que a palavra ideologia tem uma história, portanto,
a divisão entre ciência e ideologia tem uma história.

É uma pena que a paralisia e a intimidação tenham silenciado essas


reservas. Sua expressão na época por alguém cujo prestígio estava crescendo
poderia ter mudado os termos do debate.

Especialmente porque as resistências que mantinham o filósofo da


desconstrução separado do partido não eram, ele disse, puramente discursivas
ou teóricas: "Elas também eram políticas". Nesse sentido, ele brinca trinta anos
depois: "Eu me sinto mais marxista do que eles". Não sem razão, se é verdade,
como ele diz, que o desastre do partido lhe parecia previsível a partir dos anos
sessenta: "Pessoalmente, eu já vi o viés em uma lógica suicida": "O paradoxo
do althusserianismo é que ele quis ao mesmo tempo mudar o partido e
endurecê-lo. Desse ponto de vista, ele representa um produto teórico singular
"muito francês", cujo inspirador era ainda mais suicida do que seu partido, de
modo que ele foi "o grande perdedor de 68" (ibid., p. 120).
6

Esforçando-se para dar ao marxismo suas cartas de cientificidade,


despejando vinagre no corte epistemológico, Althusser emancipou a teoria da
exigente e cotidiana tutela do Partido. Ele libertou os intelectuais marxistas do
tempo ainda muito próximo à Guerra Fria, o dos "filósofos armados", "filósofos
sem obras, mas fazendo política [a partir] de qualquer obra" 5. Agora, além das
vicissitudes da crise aberta do stalinismo, "a prática teórica é, por si só, um
critério próprio, contém protocolos definidos para validar a qualidade de seu
produto, isto é, - declarar os critérios de cientificidade dos produtos da prática
científica”. Para estudantes comunistas em conflito com a figura totêmica do
partido, essa emancipação da teoria deu o sinal para uma renovada liberdade
de pensamento.

Ao mesmo tempo, Althusser trouxe uma nova dignidade científica ao


marxismo. Longe vão os dias dos intelectuais peticionários e mercenários,
confinados às cadeiras da Universidade Nova, considerados intrusos pela
Universidade oficial. Desde a introdução de Por Marx, Althusser revelou essa
frustração do intelectual comunista: "Não havia saída para um filósofo. Se ele
falava ou escrevia filosofia para o partido, estava fadado a comentar, bem
como repetir as poucas variações para uso interno das citações famosas. Não
tínhamos audiência com nossos colegas”. Passando do combate ideológico à
serenidade majestosa das leis científicas, o marxismo estava finalmente
ganhando esse reconhecimento precioso do salário acadêmico.

Foi uma benção para uma geração iniciante, impulsionada pelo boom da
universidade e vagamente preocupada com a compatibilidade entre
compromisso político e carreira. Servos de uma nova ciência todo-poderosa,
como é verdade, esses intelectuais culpados diante do próprio "partido da
classe trabalhadora" tornaram-se produtores, pois, disse o mestre, agora era
necessário "conceber o conhecimento como produção" e não como visão. Eles
teriam o poder tecnocrático dessa ciência e a boa consciência dessa causa.

Se o gesto althusseriano parecia libertador, essa liberdade tinha um


preço. Uma teoria emancipada da política? A ponto de se trancar na porta
fechada da própria prática e romper todos os relacionamentos íntimos com a

5
Louis Althusser, Por Marx, Paris, Maspero, 1965, p. 12/6. Nicolas Boukharine, Manual Popular
de Sociologia Marxista, Paris, EDI, 1967.
7

prática. Qual a relação entre a pretensão revolucionária desse ajustamento


teórico e a política efetiva do partido em 1968? Nessa paz armada entre teoria
e prática, a política permaneceu nas mãos políticas da liderança do partido.

O marxismo finalmente elevado à dignidade acadêmica pelo


reconhecimento dos colegas? Althusser abriu as janelas e ventilou as células
estudantis carregadas com a fumaça fria do "diamat" ortodoxo. Ele convidou
para dialogar com a psicanálise, linguística, antropologia estrutural. Encorajou
uma curiosidade entusiasta e multidisciplinar. Ao mesmo tempo, esse maldito
par de materialismo histórico e materialismo dialético, herdado do Manual
Popular de Sociologia Marxista de Bukharin 6 (corretamente peneirado por
Gramsci em seus Cadernos do Cárcere) e legalizado pelo próprio Stalin em
seu imortal folheto7, ainda legitimava um passado recente mais do que
duvidoso com sua autoridade científica.

Ciência da história de um lado? Uma "ciência da distinção entre verdade


e erro", uma metalógica, uma meta-ciência da outra?

Quanto à política, a última palavra foi deixada para a sabedoria do


partido.

Finalmente, a exoneração dos intelectuais foi contrabalançada pelo texto


de janeiro de 1964 sobre Problemas estudantis8, que foi uma intervenção direta
na crise da União dos Estudantes Comunistas. Ao relermos, sentimos calafrios:
"Qualquer discussão entre comunistas é sempre uma discussão científica: é
nessa base científica que repousa a concepção marxista-leninista de crítica e
autocrítica; o direito de criticar e o dever de autocrítica têm um e o mesmo
princípio: o reconhecimento real da ciência marxista-leninista e suas
consequências”. A distinção entre divisão técnica e divisão social do trabalho
justificou, além da função pedagógica, uma certa ordem universitária dos
mandarins, na condição de identificar no conhecimento ensinado "a linha
divisória permanente da divisão técnica e social do trabalho”, a linha divisória
mais constante e mais profunda entre "ciência real" e "ideologia pura". Essa

6
Nicolas Boukharine, Manual Popular de Sociologia Marxista, Paris, EDI, 1967.
7
./ Stalin. Materialismo Histórico e Materialismo Dialético.
8
Louis Althusser, Problemas Estudantis, La Nouvelle Critique, janeiro de 1964.
8

abordagem poderia levar tanto à submissão aos veredictos da ciência real


quanto a rebeliões puramente ideológicas contra a falsa ciência burguesa.

"O marxismo que aprendemos na escola althusseriana”, conclui


Rancière com veemência (e talvez o tom insultoso do discípulo revoltado), era
uma filosofia de ordem, cujos princípios nos separavam do movimento de
revolta que abalou a ordem burguesa... Em 1964, Althusser encontrou, para
justificar a ordem da universidade, o conceito "marxista" de "divisão técnica do
trabalho". Com isso, toda a hierarquia na fábrica, a separação do trabalho
manual e intelectual e a autoridade dos professores foram "teoricamente"
asseguradas... Marx pode muito bem estar errado e Althusser certo em corrigi-
lo. Só ele não pode fazê-lo sem confrontá-lo francamente. Mas a história lhe
ensinou que era melhor deixar Marx em paz; ao querer tocá-lo, você nunca
sabe o que pode desencadear. Daí o seu avanço: é melhor falar de Gramsci do
que de Marx, de Lukacs que de Gramsci, de Garaudy que de Lukacs e de John
Lewis que de Garaudy: fuga à frente, sempre mais longe; mais longe da
pergunta: onde estamos com Marx? Em outras palavras, onde estamos com a
revolução?"

A influência de Althusser foi indubitavelmente proporcional à


desertificação prévia do "marxismo" na França (com algumas exceções
solitárias: Lefebvre intermitentemente, Lucien Goldmann sempre marginal), e
seu eco amplificado pelo silêncio desse "marxismo" não encontrado. Suas
inovações permaneceram relativas ao provincianismo protecionista tenaz da
universidade e das edições francesas. Como lembrete, uma parte significativa
da obra de Marx era inacessível em francês na década de 1960, e nem os
principais textos da Escola de Frankfurt, nem Colletti e Della Volpe foram
traduzidos. Trinta anos depois, as principais obras de Henryk Grossmann,
Roman Rosdolsky, Jendrich Zeleny, Ludovico Geymonat, Enrique Dussel, bem
como os marxistas japoneses ainda não estão acessíveis…

Em 1980, Althusser ficou em silêncio. Armado com o bisturi afiado da


ciência, ele acreditava que poderia descartar a história. A história havia sido
rejeitada. "Seu mundo de pensamento foi abolido", confessou pateticamente.
Paradoxalmente, seu convite inaugural hoje assume um novo escopo. Não
podemos mais Ler o Capital como Althusser. Os resultados sinistros do século
9

exigem outro olhar. Mas reler O Capital, com e contra Althusser, continua
sendo um ponto de passagem para nossas revoltas lógicas.

Miséria da política

Os textos anteriores à autocrítica da década de 1970 fizeram do


"althusserianismo" uma escola ou corrente de pensamento, mas também uma
referência política, positiva ou negativa, para a geração intelectual da revolta
pós-guerra contra a mundo antigo. A política de Althusser certamente
envelheceu pior que seu trabalho teórico, o problema é esclarecer a relação
entre um e outro.

O pensamento político de Althusser parece se debater como um inseto


cativo dentro do vidro do stalinismo, que ele tratou não como uma
contrarrevolução histórica formidável, pesando com todo o peso não conceitual
de seus expurgos e campos, mas como o produto de um "desvio teórico". Em
sua Resposta a John Lewis (em 1973, após a Autocrítica de 1972!), O positivo
ainda supera em muito o negativo das escalas do materialismo dialético: "Stalin
não pode, por razões óbvias e fortes, ser reduzido ao desvio que ligamos ao
seu nome ... Ele tinha outros méritos antes da história. Ele entendeu que tinha
que desistir do milagre iminente da revolução mundial e, portanto,
comprometer-se a construir o socialismo em um único país, e ele desenhou
todas as consequências: defendê-lo a todo custo, como base e por trás de todo
socialismo no mundo, torná-lo sob o cerco do imperialismo uma fortaleza
inexpugnável e, para esse fim, dotá-lo de uma indústria pesada prioritária da
qual surgiram os tanques de Stalingrado, que serviram ao heroísmo do povo
soviético na sua luta de vida ou morte para libertar o mundo do nazismo. Nossa
história também passa por lá. E através das caricaturas e tragédias desta
história, milhões de comunistas aprenderam, mesmo que Stalin os ensinasse
como dogmas, que existem princípios do leninismo” 9.

9
Louis Althusser, Resposta a John Lewis, Paris, Maspero, 1973.
10

[Deixando de lado] que os tanques stalinistas também foram usados em


Praga e Budapeste, que havia o pacto germano-soviético, as prisões e os
campos, era tudo não mais que um punhado de areia, mal esmagado debaixo
da bota de princípios um pouco endurecidos pelo dogma? Althusser atacou
tardiamente o "desvio stalinista" para salvar sua medula óssea, à custa da
purificação da história e de seus erros lamentáveis. Para ele, a "única crítica de
esquerda ao desvio stalinista" ainda era "crítica silenciosa, mas em ações
realizadas pela revolução chinesa". É verdade que a revolução chinesa
prevaleceu contra a vontade e as ordens de Stalin. Mas, em 1973, após a
revolução cultural e seus milhões de mortes, como ainda podemos ver na
China uma pátria alternativa do socialismo e em Mao um Stalin melhorado?

Althusser havia tomado suas precauções e dado antecipadamente a


justificativa para uma cegueira persistente. Os "desvios teóricos" que levaram
às grandes falhas históricas do proletariado são chamados a ele:
economicismo, empirismo, dogmatismo, etc. “Basicamente, esses desvios são
filosóficos e foram denunciados como filosóficos pelos grandes líderes
operários, Engels e Lenin, foram os primeiros. Mas estamos muito perto de
entender agora porque eles subjugaram as mesmas pessoas que os
denunciaram: de certa forma, eles não eram inevitáveis de acordo com o
próprio atraso exigido pela filosofia marxista. Filosofia feliz, que pode se dar ao
luxo de fixar o olhar crepuscular no campo das ruínas, tendo deixado a política
pobre, prática vulgar, mergulhar o dia todo no sangue da batalha.”

Não temos ilusão de que uma era seja imediatamente transparente para
seus protagonistas. Mas este pássaro de Minerva marxista tem uma desculpa
fácil, e há dissidentes e oposições liquidadas suficientes para afirmar que a
História que foi feita não era a única possível, e que Stalin não era uma
passagem obrigatória. E menos ainda o "filósofo extraordinariamente
perceptivo", [Stalin esse que] Althusser insistia em celebrar o mérito de ter
eliminado das "leis da dialética" a negação da negação 10.

Louis Althusser. “A Querela do Humanismo” (1967), Escritos Filosóficos e Políticos, Tomo II,
10

Paris, Stock, 1997, p. 453.


11

Em 1978, [o artigo] O Que Não Pode Mais Durar no Partido Comunista


chegou um pouco tarde. Em 1976, Althusser ainda aclamava o XX Congresso
como "um evento decisivo, como um momento decisivo na história do Partido
Comunista e do movimento operário francês". Ele criticou o abandono da
ditadura do proletariado e do regime interno do partido, mas congratulou-se
com as inovações estratégicas do Congresso e rejeitou categoricamente a
idéia de um direito de tendência (que, no entanto, tem alguma conexão
necessária com uma idéia pluralista de socialismo): "O reconhecimento de
tendências organizadas me parece fora de questão no partido francês. Eu não
falo a língua da oportunidade aqui"; porque as tendências são sempre
descartadas como "uma ameaça à unidade". A unidade sofreu e morreu de
ameaças muito mais ameaçadoras.

O que não poderia durar já havia durado muito tempo.

Era tarde demais. Mais uma vez a coruja abriu os olhos ao entardecer.
Dez anos antes do Muro de Berlim cair e a União Soviética se desintegrar,
Althusser afundaria com seu universo abolido, esperando até o fim um milagre
de Gorbachev.

Dividido entre submissão à hierarquia e uma heresia monótona


controlada por uma prudência clerical, ele havia contribuído, consciente ou não,
para acionar um mecanismo infernal. Por um lado, ele ajudara a manter as
ovelhas em fuga longe da saída do partido; por outro lado, ele havia favorecido
um autêntico esquerdismo maoísta. "A dupla verdade althusseriana após maio
de 1968 se divide em dois pólos: o esquerdismo especulativo de aparatos
ideológicos onipotentes e o jdanovismo especulativo da luta de classes na
teoria que interroga cada palavra para confessar sua classe... É aqui que os
desvios levaram desta ortodoxia paradoxal: era necessário mediar a filosofia
para trazer Mao de volta a [George] Marchais [líder comunista que foi grande
crítico do Maio de 68]”11.

Antes de 68, Althusser acreditava que poderia fazer a escolha política de


um apoliticismo tático: "Se Althusser não nos diz nada sobre os efeitos políticos
das teses contra as quais está lutando, ele diz muito sobre os fundamentos

11
Jacques Rancière, op. cit.
12

políticos de sua autoria": "A autonomia das autoridades foi um substituto para a
autonomia das massas”12. Depois de 68, a verdade althusseriana foi assim
dividida em dois pólos, o esquerdismo especulativo dos (micro)aparatos
maoístas e o jdanovismo especulativo da luta de classes na teoria. E a
substância política da Resposta a John Lewis apareceu em 1973 como "a
anexação à ortodoxia comunista de teses que eram a herança do
esquerdismo13". Pelo menos um certo esquerdismo que logo começaria a
vomitar seu stalinismo mal digerido para passar principalmente, sem transição
ou bagagem, mas com armas, para as novas filosofias anti-totalitárias, para as
cruzadas neoliberais ou para o aquecimento de um místico recozido.

Em vista dessa avaliação, é surpreendente ler da pena de Sylvain


Lazarus que Althusser foi o primeiro a "abrir a possibilidade de pensar na
política". De fato, o sucesso de Althusser com a elite das grandes escolas
deveu-se sobretudo ao fato de lhe permitir vencer em todas as frentes, libertar-
se da sufocante tutela do partido em nome do privilégio de competência e
experiência em marxismo. Os aspirantes a mestres-pensadores tornaram-se
especialistas na luta de classes, seguros de sua nova legitimidade e
convencidos de que o magistério do conhecimento merecia algum poder.

É aqui que o prestígio da teoria e a miséria da política estão ligados ao


duplo estágio da escola e do partido.

O corte e a ferida

O tema teórico que obteve o sucesso do althusserianismo no final da


década de 1960 gira principalmente em torno de três questões: a ruptura
epistemológica, a crítica ao historicismo e o anti-humanismo teórico. Sabemos
que Althusser pegou emprestado de Bachelard, para aplicá-lo ao trabalho de
Marx, o conceito de "ruptura epistemológica", separando uma ciência da
ideologia pré-científica. Este é um ponto ao qual, ao longo da autocrítica e das

12
Ibid, p. 50.
13
Ibid, p. 183.
13

retificações, ele nunca quis retornar: o corte não é uma invenção ou uma
ilusão: "Não vou ceder a esse ponto14".

Tratava-se, diz ele, de uma oposição política, "a categoria central das
minhas primeiras tentativas [...]. Esta expressão selou adequadamente contra
mim o pacto de uma verdadeira União sagrada: daqueles que, burgueses,
mantêm a vida na morte até a continuidade da história que eles dominam...,
para aqueles que, comunistas, medo de perder seus aliados políticos por
alguns conceitos científicos inadequados, até aqueles que, anarquistas,
consideraram um crime eu ter introduzido conceitos burgueses (ciência e
corte)”15.

Em seu discurso, no entanto, a ferida cortada teve problemas para


fechar-se. De fato, deveria legitimar o compartilhamento com o bisturi, não
mais classicamente entre verdade e erro, conhecimento e ignorância, mas
entre ciência e ideologia: "Este corte, finalmente o tenho, e apesar de todas as
minhas precauções, concebido e definido nos termos racionalistas da ciência e
da não-ciência. Quando conhecemos a interpretação que foi feita da luta entre
a ciência proletária e uma ciência burguesa retornou ao inferno das ideologias,
vemos o uso formidável que a razão burocrática poderia fazer desse
racionalismo implacável.”

Existe outro inconveniente em embarcar nas leituras de Marx em busca


do corte improvável. Era primeiro uma questão de enfatizar a importância da
ruptura teórica em direção à herança especulativa: "Tive a imprudência de
chamar corte ou ruptura o momento em que surge na consciência de Marx e
Engels a necessidade de desafiar radicalmente os princípios teóricos recebidos
de sua formação universitária, para mudar de terreno” 16. Esse momento surge
após os Manuscritos de 1844. Podemos atribuir uma data a ele: 1845. No ano
seguinte, a Ideologia Alemã proclama o fim da filosofia e o retorno às próprias
coisas. Mas foi apenas "o começo de um evento muito longo que, em certo
sentido, não tem fim"17. Marx pensou que ele havia chegado, ele estava apenas

14
Louis Althusser, Elementos de Autocrítica, Paris, Hachette, 1974, p. 18.
15
Ibid, p. 32
16
Louis Althusser, “Marx nos seus limites”, Escritos Filosóficos e Políticos, I, Paris Stock, 1994,
p. 381.
17
Louis Althusser, “A Querela do Humanismo”, op. cit., p. 488.
14

começando. Daí a noção retificada de um “corte como tentativa”, ou de um


corte contínuo, que busca salvar o conceito: “Toda ciência não passa de um
corte contínuo, pontuada por cortes subsequentes em seu interior."

Esse jogo entre o corte maiúsculo e os cortes menores, se quisermos


pensar na dialética da continuidade e descontinuidade, parece
desnecessariamente confuso. Na política, somos constantemente obrigados a
pensar juntos, em sua unidade contraditória, a ruptura e continuidade, o evento
e a historicidade, o ato e o processo. O conceito estratégico de revolução
permanente é basicamente um resumo dessa dialética. Se Althusser apega-se
ao corte, apesar das esquisitices que ele impõe, é certamente porque cumpre
uma função fundamental em seu dispositivo conceitual. Mas também tem o
preço de envolver Marx em becos sem saída. Escusado será dizer que seu
pensamento se alterna, como qualquer pensamento em treinamento ainda
incompleto. É óbvio que é útil identificar e destacar essas inflexões. Desde que
os encadeamentos misturados com continuidade e descontinuidades também
sejam seguidos. Caso contrário, o corte imperfeito deve ser constantemente
empurrado para os limites extremos do trabalho.

Aquilo tudo que Althusser podia reivindicar, com uma teimosia que
beirava a má-fé, eram os conceitos de alienação e negação da negação que
sobreviveram ao rompimento de 1845 e reapareceram em Grundrisse e O
Capital. Enredado nessa discussão ruim, em vez de voltar atrás, limitou-se ao
ridículo de repuxar o corte fundador do marxismo "científico" até as Notas Pré-
Póstumas Sobre Wagner (1880). Já estava na hora! Esse Marx sagrado quase
nos deixou ao nos abandonar na escuridão da ideologia!

A aposta nesse corte implacável é explícita. Trata-se de purificar o


trabalho de Marx da ideologia burguesa e de conjurar seus múltiplos demônios
(humanismo, historicismo, evolucionismo). No entanto, a ideologia tem mais de
um truque na manga, incluindo sua substituição (foi Aragon, entre outros, que
viu corretamente) pela noção de cultura, que permite, ecumenicamente, o
direito de pertencer a uma elite. Mas essa delimitação sem espaço de
compromisso passa pela hipóstase fetichista da razão científica e técnica.
Assim, "é do conhecimento ensinado na Universidade que passa a linha
divisória permanente da divisão técnica e social do trabalho, a linha divisória
15

mais constante e mais profunda. O conhecimento distribuído é uma ciência


real? Portanto, sua distribuição realmente corresponde a uma necessidade
técnica. O conhecimento distribuído é uma ideologia pura? Portanto, a função
pedagógica está a serviço de uma ideologia e, portanto, de uma política de
classe, mesmo que as formas de educação sejam muito modernas” 18.

A pedagogia tem, portanto, a função de "transmitir determinado


conhecimento a indivíduos que não o possuem", e a relação educacional
traduz "a desigualdade entre conhecimento e não conhecimento", de modo que
"a famosa relação mestres-alunos, professores-alunos é a expressão técnica
desta relação educacional fundamental”. A autoridade em todas as suas formas
(a do professor e do secretário da célula do partido) é assim legitimada em
nome de um conhecimento absoluto que se opõe não ao conhecimento parcial,
mas à absoluta ignorância do não-conhecimento. O populista "servindo o povo"
do maoísmo e seu culto às massas aparece então como a figura invertida e
como a expiação intelectual desse discurso de domínio.

A exclusão recíproca de conhecimento e não-conhecimento, no entanto,


parece contradizer o famoso texto de Lacan sobre a verdade, imanente ao não-
conhecimento e à linguagem: ouve a si mesmo, mas não fala. Quando ele
aponta que o subconsciente "é a afirmação de que o conhecimento da
ideologia é imanente à ideologia", Althusser entende isso muito bem. A
sobreposição topológica das superfícies da famosa faixa de Mœbius exibida
por Lacan é uma ilustração desse entrelaçamento. É também por isso que "a
oposição entre ciência e ideologia é sempre baseada em uma retrospecção ou
recorrência. É a própria existência da ciência que estabelece na história das
teorias essa ruptura a partir da qual é possível declarar sua pré-história
ideológica19."

Essas dificuldades não resolvidas refletem uma contradição obstinada.


Apesar do ideal científico e da tentação positivista, ora reivindicada, ora
rejeitada, que o habita, Althusser foi constrangido pelos objetos recalcitrantes
que são a crítica marxista da economia política e a teoria freudiana do

18
Louis Althusser, “Problemas Estudantis”, Nouvelle Critique, janeiro 1964.
19
Louis Althusser. “Sobre Feuerbach” (1967). Escritos Filosóficos e Políticos,
il. Op.cit., p. 225, p. 487.
16

inconsciente. Do ponto de vista da epistemologia popperiana, esses são


precisamente os dois casos exemplares de "não-ciência" que fazem fronteira
com charlatanismo. Uma coisa é denunciar a psicologia clássica (Politzer o fez
de maneira tão brilhante) como o lugar "para as piores confusões e perversões
ideológicas de nosso tempo", para opor positivamente a ela a verdadeira
ciência que seria a psicanálise. "Formalmente, o que Freud nos dá tem a
estrutura de uma ciência", mas, para atravessar essa "passagem em
movimento da não-ciência para a ciência", precisaríamos de outra idéia de
racionalidade e causalidade, de acordo com a singularidade irredutível de seu
objeto.

Althusser sente-se bem, nunca deixa de procurar em Spinoza uma


alternativa apenas à causalidade mecânica e à sua eficiência transitiva, sem
cair no conceito leibniziano de causalidade expressiva ou na causalidade
teleológica hegeliana. Daí a sua proposta de "causalidade metonímica" e
"contradição sobredeterminada". Esta pesquisa tateando mostra a
preocupação legítima de evitar a versão apologética da dialética hegeliana,
como pode ter ocorrido no discurso autojustificativo do partido. Em O Futuro
Dura Muito Tempo, ele "admite prontamente" ter removido de Marx "tudo o que
parecia não apenas incompatível com os princípios materialistas, mas também
o que lhe restava da ideologia, acima de todas as categorias apologéticas da
dialética, até a própria dialética, que me pareceu servir, em suas famosas ‘leis’
apenas como pedido de desculpas (justificativa) após o fato com o fato
consumado do desdobramento aleatório da história pelas decisões da direção
do Partido”20”. Estamos bem posicionados para entender essa preocupação,
pois tivemos que suportar mais de uma vez essa lógica escolástica stalinista
cuja dialética, sem quebrar os tijolos, era boa para tudo. Mas a dialética do
concreto merecia melhor.

Em vez de aprofundar esse debate minado, que sem dúvida teria


suscitado muitas outras lutas subversivas na história da controvérsia política
dentro do movimento comunista, Althusser adota outro viés, buscando outros
modos de racionalidade na biologia e na psicanálise. Freud, ele insiste, sempre
comparou-se, não a um matemático ou lógico como Lacan, mas a um cientista

20
Escritos Filosóficos e Políticos, il. Op.cit., p. 225, p. 487.
17

das ciências naturais, “e ele estava 100% certo". Desde que a ciência da
natureza não entenda ciências físicas ou exatas, mas ciências da vida. Para
Marx, a lógica do capital não é uma lógica mecânica, mas uma lógica orgânica,
e o próprio capital é um sujeito ou um vampiro cheio de trabalho morto.

Na medida em que a ciência de referência não é mais física, mas um


conhecimento de história e política, podemos admitir com Sylvain Lazarus que
Althusser resiste ao cientificismo que o aguarda e que suas contradições se
manifestam sem satisfazer a necessidade de Marx de fazer ciência de maneira
diferente. De certa forma, ele teria gostado de escapar da fusão stalinista de
ciência e ideologia através de uma "dupla desvinculação": "do pensamento e
do partido" e, "no próprio pensamento, da ciência e da ideologia” 21. Esse
esforço se depara com uma dupla dificuldade de retorno: a lógica narrativa
própria de seus objetos (história, inconsciente) e o paradoxo em virtude do qual
ainda existe história após o "intervalo": a verdade faz histórias!

Daí a solução inteligente segundo a qual uma ciência "nunca para", mas
"toda a ciência começa". Como Lucien Sève diria, o copo parece um pouco
vazio, no entanto. Esta é uma indicação de uma dificuldade mais do que uma
solução. Althusser está ciente disso. Assim, ele reconhece que é incrível
combinar os termos da ciência e do revolucionário em uma e mesma fórmula:
e, no entanto, acrescenta, os proletários precisam de conhecimento objetivo
verificado e verificável, "toques científicos”22. De fato, as ciências físicas e
matemáticas são universalizáveis na medida em que transcendem as
determinações de classe, mas suas condições de produção e aplicação
permanecem dependentes das relações sociais.

A contradição é real, mas não antagônica.

A conseqüência, como Étienne Balibar escreve em seu prefácio de


1996, é a hesitação de Por Marx entre a aplicação ao marxismo de um modelo
de cientificidade existente e a revisão radical do conceito de ciência. Cientes da
tentação científica, éramos, deve-se admitir, menos sensíveis ao segundo
período de hesitação.

21
Sylvain Lazarus, Política e Filosofia na Obra de Louis Althusser. Paris, Puf, 1993, p. 10.
22
Louis Althusser, Elementos de Autocrítica, op. cit,, p. 27.
18

No entanto, é consistente com a referência espinozista subjacente ao


pensamento de Althusser e com sua idéia de uma verdade não empírica, que
não é verdadeira de acordo com o sucesso de sua aplicação, mas cujos
critérios são imanentes em prática: enquanto o critério está sempre na
representação clássica da ciência, a figura de um juiz ou tribunal que deve
garantir a validade da verdade, Espinosa fala apenas da verdade que "se
indica". Porque "é no processo de produção que o conhecimento é revelado". É
por isso que "o reconhecimento do erro é a recorrência do erro real". 23

É também por isso que, em Lenin e Filosofia, Althusser retoma a


controvérsia do materialismo e da crítica empírica contra a dupla armadilha do
relativismo cético e do dogmatismo científico: a distinção entre verdades
relativas e verdade absoluta é vaga, mas é suficiente, escreve Lenin, para
"impedir que a ciência se torne um dogma no pior sentido da palavra" e
"suficientemente preciso para traçar uma linha de demarcação decisiva e
indelével" em relação ao fideísmo, agnosticismo, sofisma e "o suficiente
determinado a permitir uma luta implacável contra todas as variantes do
idealismo”.

Portanto, não é sem razão que Althusser defende-se da acusação de


positivismo que nós (frequentemente) dirigimos a ele. Em sua Carta a Merab,
de 16 de janeiro de 1978, ele admite uma verdadeira propensão à herança
comtiana tão presente na universidade francesa: "O que eu fiz quinze anos
atrás foi fazer uma pequena justificação muito francesa, em um bom
racionalismo alimentado por algumas referências (Cavaillès, Bachelard,
Canguilhem e, por trás delas, um pouco da tradição Spinoza-Hegel) à
reivindicação do marxismo (materialismo histórico) de se dar como ciência. Eu
meio que acreditei nisso, como qualquer bom espírito, mas essa metade da
desconfiança era necessária para a outra metade escrever” 24. No entanto, em
seu texto de 1966 sobre a Conjuntura Filosófica, ele ainda designava Auguste
Comte como "o único grande filósofo francês do século 19", que teria "salvado
a honra da filosofia francesa" da "terrível reação espiritualista". Ele então
declarou guerra a uma filiação espiritualista em que ocorriam Bergson, Péguy,

23
Ibid. p. 75 e 47.
24
Carta à Merab, Escritos Filosóficos e Políticos I, Op, cit. p. 527.
19

Merleau-Ponty, cujas vítimas deveriam ser reabilitadas: Saint-Simon, Fourier,


Comte, Cournot, Durkheim. O mínimo que se pode dizer é que essa
delimitação maniqueísta entre espiritualismo e materialismo permite alianças
estranhas e promiscuidades comprometedoras. Podemos ver neste ponto a
expressão de um remorso meio-admitido, na homenagem prestada a Merleau-
Ponty na confissão autobiográfica: ao contrário de Sartre, "filósofo romancista",
ele era "realmente um grande filósofo", e até "o último na França antes desse
gigante que é Derrida25".

Acreditar que Althusser há muito insistia em ignorar o desprezo em que


Marx mantinha nosso "grande filósofo" - e pai fundador da Universidade
Mandarim - Auguste Comte! No lado da filosofia, apenas um ano após sua
profissão de fé comtiana, ele denunciou o neopositivismo como uma aquisição
do formalismo e o positivismo como o "atual representante do empirismo".
Como "compromisso entre empirismo dominante e formalismo dominado", ele é
até "nosso adversário número um".

Da mesma forma, Althusser defende-se vigorosamente, mesmo em seus


últimos escritos do amálgama à moda estruturalista dos anos sessenta: "Desde
o início, insistimos na diferença estrutural entre combinatória (abstrata) e
combinada (concreta), o que causou todo o problema. Ninguém prestou
atenção a essa diferença. Fui acusado em todo o mundo do estruturalismo, de
justificar a imobilidade das estruturas na ordem estabelecida e a
impossibilidade da prática revolucionária, quando, no entanto, havia mais do
que esboçado sobre Lênin uma teoria da conjuntura 26”. "É verdade. O fato é
que um entendimento muito estrutural do modo de produção, desenvolvido
especialmente pela contribuição de Balibar a Ler o Capital, torna a subversão
revolucionária praticamente impensável. Althusser admite, além disso, na
autocrítica de 1972 que a noção de causalidade estrutural sugeria
desajeitadamente um flerte com o estruturalismo. Foi bastante inspirado pela
causa sui spinozista e expressou a busca por uma forma de causação dialética.
Não é inútil nesse esforço pensar na efetividade do todo por parte ou na
efetividade da causa ausente”.

25
Louis Althusser, O Futuro Dura Muito Tempo. Paris, Stock, 1972, p. 170.
26
Ibid. , p. 177.
20

"Seja como for, protesta Althusser, fomos decretados estruturalistas”.


Provavelmente foi uma simplificação polêmica. A combinação não é
combinatória, e Balibar não está errado ao enfatizar que ele então usou a
estrutura articulada, em oposição à expressiva totalidade hegeliana, não para
pensar em história ou historicidade, mas "na necessidade de contingência na
história27”. Por outro lado, ele não explica como a preocupação anti-humanista
e anti-histórico-histórica deve se cruzar logicamente com a ideologia
estruturalista do momento e fazer um pacto com ela.

Anti-humanismo teórico e o sentido da história

Nosso primeiro dever teórico hoje é expulsar da filosofia marxista "todo o


lixo humanista": essa proclamação de 1967 fez algum barulho no Landerneau
[comuna francesa] do marxismo ortodoxo e também alguns danos. No entanto,
tem uma parte indiscutível de legitimidade. Trata-se de opor o que Althusser
chamará mais apropriadamente de "O Humanismo" de Marx às tentações de
uma antropologia especulativa. A Sagrada Família (1845) e A Ideologia Alemã
(1846) marcam uma ruptura explícita com a herança das filosofias
especulativas da História. Para ser consistente, essa ruptura teve que ir até o
acerto de contas com a antropologia especulativa. Até aí, tudo bem.

Althusser descreve, assim, as principais linhas de um programa


filosófico: alienação, sujeito, homem seriam três conceitos antropológicos "dos
quais teremos que nos livrar para deixar aberto o único conceito positivo
aprisionado nesse dispositivo, o conceito de tentativa (que, entregue a partir de
sujeito e do homem, então se tornará um julgamento sem sujeito) 28”. Ele
pretende resolver o caso com um golpe de bisturi, de acordo com o espírito
cirúrgico do corte epistemológico. O "corte" na ideologia alemã já parece muito
áspero: a lâmina escorregou, de forma que ficamos presos em "um
hegelianismo difuso". Condenado ao grande dia de críticas, o Homem

27
Balibar, Prefácio à Reedição de Por Marx, Paris, Le Découverte, 1986.
28
“A Querela do Humanismo”, op. cit., p. 468.
21

continuaria emboscado "nos bastidores da teoria" e ainda pesaria sobre o


indivíduo historicizado29.

Karl, mais um esforço para se tornar Marx! Agora era necessário descer
o fio da obra em busca do corte perfeito, sem rebarbas ou retorno, tão difícil de
encontrar.

Em vez de oferecer uma crítica rigorosa aos conceitos antropológicos e


sua transformação através dos novos dispositivos conceituais desenvolvidos
por Marx na longa gênese do Capital, Althusser contenta-se em liquidá-los.
Sem mais delongas, somos tentados a dizer 30. Tende a esvaziar o problema
alegando que as categorias constituintes do humanismo teórico
desapareceram, com algumas "persistências" próximas, residuais e
insignificantes em suma. A indiscutível "persistência" do conceito de alienação
nos Grundrisse e em O Capital (doravante ligada ao fetichismo e à reificação)
31
é, no entanto, significativa . Ele procede de um trabalho conceitual e de uma
mudança de problemática (ou campo) que permite efetivamente a passagem
de um conceito antropológico para um conceito pertencente às críticas à
economia política. Poderíamos fazer trabalhos comparáveis sobre os conceitos
de sujeito (e subjetivação revolucionária) e homem (no sentido de um
humanismo histórico distinto do humanismo antropológico). Caso contrário, o
anti-humanismo teórico atribuído a Marx poderia muito bem se transformar em
uma falsa saída do stalinismo, em um anti-humanismo muito prático,
perfeitamente compatível com as explosões do fundamentalismo maoísta.

Apesar de sua unilateralidade, a crítica do humanismo antropológico, no


entanto, abriu caminhos que poderiam ser frutíferos para a crítica de uma
filosofia especulativa da história que continuava a assombrar o marxismo muito
além de Marx.

Em sua introdução a Ler o Capital, Althusser define a obrigação de


“renunciar toda a teleologia da razão e conceber a relação histórica de um
resultado com suas condições como relação de produção e não de expressão,
portanto, o que poderia chamar de uma palavra que jure pelo sistema das

29
Ibid, p. 481.
30
Ver Roman Rodolsky, Gênese do Capital, Éditions du Passion.
31
Livro de 1968, de Ernest Mandel, que não somente ele leu.
22

categorias tradicionais e exija a substituição dessas categorias, a necessidade


de sua contingência32”. O programa é inteiramente relevante e consistente com
a rejeição da expressiva totalidade hegeliana em favor do todo
predominantemente estruturado que se abre para o jogo das mediações e das
temporalidades diferentes. Porque o que irreparavelmente mancha a
concepção hegeliana da história como um processo dialético, é sua concepção
teleológica da dialética inscrita nas próprias estruturas, [...] teleológica porque,
desde suas origens, busca um objetivo". A conceituação profana da história
que Marx esboça da Sagrada Família, pelo contrário, implica renunciar a esse
propósito transcendental.

Ela requer um conceito de História que não é mais empírico, “isto é,


histórico no sentido vulgar". Portanto, trata-se agora de libertar a teoria da
História de qualquer compromisso com a temporalidade empírica e com "a
concepção ideológica do tempo que a sustenta". Esta é realmente "a base do
historicismo contemporâneo" que "gostaria que confundíssemos o objeto do
conhecimento com o objeto real". A história não é o que acontece na história, e
a teoria da história ainda precisa ser feita para superar o vazio de fórmulas
como: a necessidade encontra seu caminho através da contingência.

O programa teórico é convincente. Depois de fazer suas contas com a


velha consciência filosófica, Marx perdeu o interesse no conceito de história
para dedicar mais às críticas à economia política, onde podemos decifrar o
alfabeto de uma "nova escrita de história”. Mas a ausência de uma nova
conceituação explícita de fato permite o retorno, através da janela da
popularização, de uma ideologia histórica adulterada, com seu "Tribunal de
História" da memória sinistra como substituto do Juízo Final 33.

Althusser fornece valiosas indicações sobre as consequências de uma


crítica severa à razão histórica. Em particular no que diz respeito ao status dos
conceitos de origem e gênese: "Eu mantenho como religiosos em sua essência
os conceitos de origem e gênese, obviamente tomados no sentido estrito
constituído pelo casal”34. "Trata-se de expor uma dialética específica que não é
32
Louis Althusser, Ler o Capital I, Paris, Maspero, 1965, p. 55.
33
Ver Daniel Bensaid, Quem é o Juiz? Para Acabar com o Tribunal da História (Fayard, 1999).
34
Louis Althusser, “Carta à D...” (1966). Em: Escritos Sobre a Psicanálise, Paris, Stock, 1993, p.
65.
23

mais a de uma gênese, mas de uma emergência em que algo novo começa a
funcionar autonomamente". Em flagrante contradição com as acusações de
estruturalismo dogmático, a crítica aqui dá seu lugar completo (com o risco de
absorver um milagre) à eventual irrupção, na psicanálise como na história: "Em
última análise, o pensamento da gênese perdura fortemente de fato, a idéia de
mutação ou descontinuidade sob a condição absoluta de que essas mutações
e descontinuidades possam ser designadas como mutações e
descontinuidades no desenvolvimento do mesmo indivíduo identificado
previamente." Qualquer gênese supõe que o indivíduo desenvolvido esteja
contido em um “germe programado" da origem de sua procriação de geração.
Essa ideia de pré-formação tem uma pele dura. No entanto, como Gramsci diz
com humor, 99% das bolotas "pré-formadas" para serem carvalho acabarão
como alimento para os porcos produzirem linguiças e mortadelas!

A ilusão retrospectiva toma, portanto, "a ordem do julgamento do


conhecimento pela ordem do julgamento real 35". Contra a ideologia genética
atribuída a Marx pelo marxismo vulgar, Althusser lembra que "o modo de
produção capitalista não foi engendrado pelo modo feudal de produção como
seu próprio filho". “Surge da reunião e da combinação de certos elementos
muito precisos”. Daí a necessidade de desenvolver "uma teoria não genética
da emergência histórica [ou evento]36".

Isso inclui desafiar a noção de origem, cuja conotação religiosa evoca a


criação. É porque o materialismo vulgar pensa na história sob a categoria de
gênese que os problemas da Origem assumiram tanta importância. O conceito
de gênese é, portanto, "um dos maiores obstáculos epistemológicos". Isso
causou estragos na psicologia e na história. A mobilização da estrutura visa,
portanto, acima de tudo, afastar o chamado de Gênesis: "Entende-se, eu
sacrifico a gênese às estruturas; eu sou bom para este julgamento secular. Eu
não vou responder”37. O capitalismo é de fato "o resultado de um julgamento
que não tem a forma de uma gênese". Ao contrário da ilusão evolucionista ou
geneticista, "um modo de produção não contém nele em poder, em germe, o
modo de produção que o sucederá". A gênese evoca a filiação do Antigo
35
Ibid, p. 87.
36
Louis Althusser, “Sobre Feuerbach”, op. cit., p. 217.
37
“A Querela do Humanismo”, op. cit., p. 517.
24

Testamento. Sucessão não é paternidade. Nesse caso, insiste Althusser, não


se perde a história, mas "certamente se perde a gênese por lá e é uma boa
perda38".

Essa crítica é claramente inspirada na imanência radical spinozista que


proíbe qualquer uso da origem e do fim. Em Hegel, pelo contrário, o fim da
imanência ainda é uma figura mascarada de transcendência. Falta a natureza
radical da causa sui.

A rejeição do genetismo teológico permite delinear uma elaboração da


temporalidade histórica rompendo com a continuidade homogênea do tempo
hegeliano como "contínua na qual se manifesta a continuidade dialética do
processo de desenvolvimento da idéia” 39. Ele lança outra idéia de
contemporaneidade e presente histórico. Em Hegel, "todos os elementos do
todo sempre coexistem no mesmo presente e, portanto, são contemporâneos
entre si no mesmo presente". É por isso que sua abordagem da história opera
por "cortes de essência". Este presente constitui o horizonte absoluto de todo
conhecimento. A ausência de conhecimento do futuro, portanto, aniquila
qualquer possibilidade de conhecimento político relacionado aos efeitos futuros
dos fenômenos presentes. É por isso que, de acordo com Althusser, não existe
"política hegeliana possível"40.

Lucien Febvre e Fernand Braudel observam, ao contrário, que há


momentos diferentes na história. No entanto, contentam-se em observar as
interferências, sem chegar ao ponto de construir o conceito de história como o
de um todo estruturado. Mas não é mais possível "pensar ao mesmo tempo
historicamente no processo de desenvolvimento dos diferentes níveis do todo".
Cada nível corresponde a "um tempo específico pontuado [...] especificamente"
e "a especificidade desses tempos e dessas histórias é diferencial". Pode-se
então ler O Capital como um "entrelaçamento de tempos diferentes" e suas
crises como um efeito de sua discordância41.

38
Ibid, p. 519.
39
Louis Althusser, Ler o Capital, Tomo II, Paris, Maspero, 1965, p. 39.
40
O que contesta, não sem razão, Bernard Bourgeois, cf. “Althusser e Hegel”. In: Althusser
filósofo, op. cit.
41
Ler o Capital, II, op. cit., p. 47.
25

Enquanto a Ideologia Alemã mantém a categoria de sujeito e permanece


dependente do "historicismo do sujeito" (há um ou mais sujeitos na história), a
crítica de uma história antropológica e filosófica leva a uma conquista
conceitual decisiva. É até o único ponto em que Althusser reconhece uma
dívida de Marx com Hegel: ele deve a ele "a categoria filosófica decisiva do
julgamento" e "ele lhe deve ainda mais: o conceito de "julgamento sem
assunto"42.

Como a oposição à "emergência" na origem, as críticas à representação


clássica do sujeito soberano são inspiradas pela psicanálise: "A noção de
sujeito parece-me cada vez mais advir do único discurso ideológico de que é
constitutivo. Não creio que se possa falar do sujeito da ciência ou do
inconsciente sem trocadilhos e sem causar história no sentido ideológico da
proposição”. Althusser retorna a ele em sua Resposta a John Lewis: não são
os homens, mas as massas que fazem história.

O assunto sobre o qual ainda podemos falar não é mais um princípio,


mas uma resultante. Não é mais um sujeito da história, mas um sujeito na
história. É por isso que é preferível desistir do termo e preferir as noções de
agente ou suporte (Träger) menos acusadas de conotação psicológica. Forjado
nos textos de 1968 (no relatório de Marx a Hegel) e 1973 (Lenin antes de
Hegel), o conceito de "julgamento sem sujeito ou fim" é consistente com a idéia
de uma história profana sem origem ou julgamento final. Permite que você se
liberte de toda persistência teleológica. Por outro lado, o processo possui um
"motor" e uma dinâmica intencional, a da luta de classes.

A categoria de tentativa sem sujeito passa a ser central, a ponto de


definir o materialismo dialético. Marca uma ruptura com uma filosofia da
consciência em favor de uma filosofia do conceito capaz de "dar uma doutrina
da ciência": "A necessidade geradora não é a de uma atividade, mas de uma
dialética43."

A trilha é boa. E, no entanto, podemos sentir que o negócio está


estragando. Seus impasses não estão relacionados à impossibilidade de uma
política althusseriana.
42
“A Querela Sobre o Humanismo”, op. cit., p. 453e 474.
43
Louis Althusser, Sobre a Lógica da Teoria da Ciência.
26

Empolgado pelo ímpeto da controvérsia contra o historicismo e o


humanismo, Althusser realmente chega à estranha máxima positivista segundo
a qual "o conhecimento da história não é mais histórico do que o conhecimento
do açúcar é doce44”. Afinal, se trata-se de aplicar à história a famosa distinção
espinozista entre o cachorro latindo e seu conceito que não late, então é banal.
Se se trata de aplicar ao conhecimento da história o ideal científico das
ciências exatas (neste caso a química), é um absurdo: o conhecimento da
história é realmente histórico, como todas as "ciências humanas", e essa
reflexividade crítica, baseada na unidade de sujeito e objeto, é essencial.

Portanto, não somos tão facilmente deixados com a questão do sujeito.


Althusser refere-se a esse ponto à descoberta freudiana: “Freud descobre que
o sujeito real, o indivíduo em sua essência singular, não tem a figura de um ego
centrado no ego, na consciência ou no ego. Existência de que o sujeito
humano é descentralizado, constituído por uma estrutura que não tem centro
senão no reconhecimento imaginário do ego, ou seja, na formação ideológica
em que ele se reconhece” 45. A noção de sujeito, portanto, não resiste à análise.
No entanto, "todo discurso produz um efeito de subjetividade"; tem como
necessário correlacionar "um sujeito que é um dos efeitos, se não o principal
efeito, de seu funcionamento 46". Se o discurso não é a afirmação de um sujeito
soberano, mas o lugar de uma subjetivação, por que não deveria ser o mesmo
com a história? E por que os indivíduos não seriam, neste "julgamento",
"desafiados a tornar-se um sujeito", de acordo com a fórmula de Pierre-
François Moreau47.

É isso que Bernard Rousset sustenta, para quem o abandono de uma


concepção antropológica de um sujeito soberano, mestre de sua razão e autor
de sua história, não elimina, na boa imanência espinozista, o abandono de um
sujeito em “devir", “o processo sem sujeito também é a emergência de um
sujeito que, por ser inteiramente relativo, não é menos real 48". Da mesma
forma, o anti-humanismo teórico não implica necessariamente a renúncia ao
humanismo histórico como um discurso de ação, no qual a humanidade e a
44
Louis Althusser, “Freud e Lacan”, in Positions, Paris, Éditions Sociales, 1982, p. 21-26.
45
. Ler o Capital, II, op. cit., p. 47.
46
“A Querela do Humanismo”, op. cit., p. 453 e 474, 43.
47
“Três Notas Sobre A Teoria do Discurso”, em Escritos Sobre a Psicanálise, op. cit., p. 165.
48
.Louis Althusser, “Sobre a Lógica e a Teoria da Ciência.”
27

universalidade não são mais entidades abstratas, mas tornam-se concretas,


através da prática de produção, reprodução e a luta pela qual tudo é gerado 49.

Rumo a um materialismo do encontro

A Autocrítica de 1972 é geralmente considerada um ponto de virada no


trabalho de Althusser. Como o corte na ideologia alemã, ele constitui, para
considerar sua evolução como um todo, apenas um "corte" parcial, que não
exclui uma parte dominante da continuidade. O próprio autor sabe muito bem
disso, tanto que fala com contenção "de elementos de autocrítica" e começa
com uma restrição orgulhosa: "Nunca deserdei meus ensaios: não há razão
para fazê-lo”. Ele apenas reconhece que eles foram "afetados por uma
tendência errada", agora conhecida como "teórica". Querendo muito "defender
o marxismo contra as ameaças reais da ideologia burguesa", querendo expor
demais - o pecado, afinal perdoável - "sua novidade revolucionária", a noção de
corte o levaria "a uma interpretação racionalista do corte. Opondo a verdade ao
erro sob as espécies da oposição especulativa da ciência e da ideologia em
geral”. A partir dessa cena, "a luta de classes estava praticamente ausente". A
Resposta a John Lewis procurará remediar isso.

É sobre a relação entre ciência e filosofia, pensada para ser cortada do


mesmo tecido, especialmente em Para Ler O Capital, que "o subproduto de
[sua] tendência teórica, o filhote jovem do estruturalismo, fugiu-nos entre as
50
pernas ” Em 1972, Althusser admitiu "um flerte ambíguo com a terminologia
estruturalista". De fato, ela cedeu à tentação positivista pela qual a censuramos
na época: "Embora suspeitássemos que a ciência marxista não era uma
ciência como as outras, por falta de capacidade de dizer como finalmente a
tratamos. Ciência como as outras, voltando aos perigos do teórico. Mas não
éramos estruturalistas”.51.

49
Louis Althusser, “Maquiavel e Nós”, (1972-1986), In: Escritos Filosóficos e Políticos II, p. 55.
50
Louis Althusser, “Freud e Lacan”, in Posições, Edições Sociais, 1982, p. 21-26..
51
“Três Notas...” In Escritos Sobre a Psicanálise, op. cit.
28

Esse “elemento” de Autocrítica passa então ao segundo plano em prol


de uma forma de reconhecimento da dívida: “Nós fomos culpados de uma
paixão forte e comprometedora, nós fomos spinozistas”. Spinozistas heréticos
certamente, mas um “spinozismo herético fazendo quase parte do spinozismo”
e do spinozismo ele mesmo é “uma das grandes lições de heresia da história”.
O que é perfeitamente exato.

Althusser retoma de Spinoza a questão do conhecimento do singular (de


onde o tema recorrente da conjuntura), o colocar em causa do sujeito humano
como princípio, a idéia da ilusão e da opacidade em si mesmo (o tema da
ideologia). Na passagem (três vezes remanejada) de sua autobiografia
consagrada a Spinoza, ele fez, sobre a forma de breves notas, um inventário
dessa herança: “uma prodigiosa teoria da ideologia religiosa”; o conhecimento
do primeiro gênero que é o da “ideologia espontânea”; o conhecimento do
terceiro gênero enquanto um objeto singular e universal; uma teoria do
conhecimento onde ele reconhece “um pensamento sem sujeito”, sem origem e
nem fim; enfim, o tema do corpo como uma “antecipação espantosa da libido
freudiana”. Spinoza aparece, então, como sólido reforço de Marx contra as
transcendências hegelianas. O anulamento do sujeito no meio da potência
processual produtiva da natureza, isso seria Spinoza.

Esse spinozismo tem, então, suas fraquezas. A ele faltará sempre o que
Hegel deixou como legado a Marx: a contradição. E essa falta “fará sua obra”
no próprio pensamento de Althusser. Essa falta esclarece, se não explica, a
outra falta “o que falta de essencial nos meus primeiros ensaios; a luta de
classes e seus efeitos na teoria”. O pecado teórico venal tornou-se um pecado
político capital. Althusser não parece portanto confessá-lo para poder salvar a
essência, o famoso corte, que ele não entende manter em serviço, ‘mas
substituí-lo”.

A Autobiografia traz um claro esclarecimento sobre esta autocrítica


menos reticente. E o que tem de novo: “Eu só li O Capital em 1964-65, ano do
Seminário”. Aron não estava tão errado em falar de “marxismo imaginário”.
Althusser não deixa então de jogar o jogo do pai, “por exemplo, dando uma
lição aos estudantes em 1964 com um artigo em Nouvelle Critique”; mas ele
tem ainda a circunstância atenuante de fazer passar (discretamente) o dever
29

contra a teoria adiante da obediência ao partido. Não foi mais que um texto,
que “rapidamente lhe fez medo” e “guardou-se de recolhê-lo em Por Marx em
196552.” Vejamos, então, ao menos um ensaio renegado. Ele sofre de uma
tristeza muito profunda, até uma “impressionante depressão” depois das
publicações de 1965: “O que eu fiz então em termos políticos? Um pensamento
político puro’”.53

Foi assim que entendemos. E esta é uma das razões para tomarmos
partido "contra Althusser".

A segunda autocrítica, a da Autobiografia, às vezes parece uma


mortificação. Podemos entender seu contexto psicológico e simpatizar com o
sentimento trágico de que emerge disso. Balibar vê mais profundamente uma
"propensão a voltar a si mesmo para justificar ou desfazer, ou mesmo destruir a
si mesmo". Sob humildade do pecador arrependido, não exclui autojustificativa.
Então o teórico dos anos sessenta está sob um estratagema necessário,
permitindo a intervenção teórica no partido. Ou o retorno a Marx e a busca do
recorte teria tentado opôr ortodoxia à ortodoxia. Habilidades maquiavélicas em
suma! Próximo entre os próximos, Balibar admite estar perplexo com essas
explicações conspiratórias.

É mais plausível e provavelmente mais proveitoso ler a jornada teórica


de Althusser como um trabalho - como a parte da dor implícita no termo - que
falha. Ele nós legar o que é mais precioso: seu esforço para resistir ao ar do
tempo, dos quais os textos mais recentes sobre o "materialismo do encontro"
são os frutos preciosos (esse elemento de autocrítica vale o reconhecimento da
dívida); eles retrospectivamente iluminam o curso, suas "tolices", suas palavras
e apagamentos.

Althusser descobre uma tradição materialista "quase completamente


ignorada": "o materialismo da chuva, o desvio, a encontro e tomada", um
materialismo, então, "aleatoriedade e contingência", também há muito tempo
reprimido e desviado para o idealismo de liberdade 54 /. A estrutura petrificada

52
O Futuro Dura Muito Tempo, op. cit., p. 189.
53
Ibid., p. 162.
54
Louis Althusser, “A Corrente Subterrânea do Materialismo”.(1982) em Escritos Filosóficos e
Políticos I, op. cit., p. 540.
30

então voa, então, abalada pelo eventual efeito do clinâmen, o desvio


infinitesimal que mina a montanha mais acidentada. Este evento não é não
uma origem, mas uma emergência. Althusser encontra aqui suas críticas à
origem. Não é não "no começo era...", mas simplesmente "existe...", [es gibt].
Ele reivindica desesperadamente uma filosofia de es gibt que admite a
contingência do mundo em que são jogados fora, onde a história é apenas "a
revocação permanente do fato consumado por um outro fato indecifrável a ser
realizado sem saber antecipadamente, nunca, nunca onde, nem como, o
evento de sua revogação ocorrerá55 /".

Estaríamos em dívida com Rousseau pela ressurreição da corrente


subterrânea desse materialismo do encontro. Como estaríamos em dívida com
Maquiavel pelo conceito político da reunião que é "a conjuntura". O esboço de
uma teoria da conjuntura como unidade de múltiplas determinações o fascina
no florentino.

É um pensamento impensável: "Isso significa pensar na conjuntura?


Pensar um problema político na categoria de conjuntura? Significa primeiro
levar em consideração de todas as determinações, de todas as circunstâncias
concretas, para fazer a contagem e o comparação. "Esse pensamento da
conjuntura, ele diz, é comum a Epicuro, Spinoza, Rousseau”. E Marx, é claro.
Mas um Marx "forçado pensar em um horário dividido entre a aleatoriedade da
Reunião e a necessidade de Revolução”.

Para o último Althusser, as noções de encontro e conjuntura são,


portanto, usadas para pensar não apenas na realidade da história, mas da
política e sua articulação na luta. Ele está aqui no caminho certo, o de reversão
da relação entre política e história. Ele não chega ao ponto de dizer tanto
quanto Walter Benjamin, a primazia do momento político sobre a abstração de
lógica histórica.

Ele retoma seu próprio conceito de julgamento sem sujeito, definindo o


materialista como "um homem que pega o trem em movimento sem saber de
onde vem e para onde vai". Fórmula que tem implicações capciosas de humor
desesperado. Althusser parece tentado a resolver o problema. Contradição que

55
Pierre-François Moreau, “Althusser e Spinoza”, In Althusser Filósofo, op. cit, p. 85.
31

ele atribui a Marx, o rasgo "entre a aleatoriedade da reunião e a necessidade


da revolução", removendo uma de termos, o de necessidade.

Em alguns textos antigos, ele havia sublinhado corretamente o conteúdo


original que Marx tem desse conceito de necessidade (sem reconhecer, no
entanto, o que ele deve à Lógica hegeliana). De Por Marx, ele criticou a relação
abstrata entre acaso e necessidade, à qual Engels cede quando apresente
necessidade, como Cournot, como externo a essas chances (como um
movimento que acaba abrindo caminho entre uma infinidade de chances),
porque então "não sabemos não se essa necessidade é precisamente a
necessidade dessas chances e, se for, porque é 56/". Por outro lado "o
pensamento de Marx contém informações extremamente originais sobre a
questão da necessidade histórica da finalidade ou finalidade do destino ou da
ordem dos modos hierárquicos de produção”; ele pensam a necessidade "de
uma dialética da tendência necessariamente tomada em causas que a
contrariem57/”.

Althusser vê aqui a rica lógica de O Capital e das "leis de tendências"


que trazem à unidade contraditória do acaso e precisa de uma resposta
original58 /. No Elementos de Autocrítica, ele insistiu na estranheza do conceito
desenvolvido por Marx em seu capítulo sobre "contradições internas da lei":
"Temos que vir fazer a pergunta do estranho status desse conceito decisivo no
Teoria marxista de que o conceito de tendência é (lei de tendências, lei de um
59
julgamento justo, etc.) / "Esta questão justifica, além disso, seus protestos
contra a acusação simplificadora de estruturalismo. Seu marxismo escapa ao
estruturalismo porque na tendência, a contradição prevalece sobre o
julgamento: "Em vez de pensar na contingência como modalidade ou exceção
da necessidade, é necessário pensar na necessidade como devir-necessário
do encontro dos contingentes”60.

56
Bernard Rousset, “A Questão do Humanismo”, ibid, p. 151.
57
Diante da proclamação de Althusser: “Nós fomos spinozistas”, Bernard Rousset acrescenta:
“O que ele tinha por ilusão, por uma mistificação, está na raiz do humanismo...Aquilo que o
impede, é então uma forma de pensar de outra forma o sujeito, de pensã-lo enquanto atividade
de emancipação.
58
Elementos de Autocrítica, op. cit. P. 15 e 53.
59
Elementos de Autocrítica, op. cit., p.64.
“A corrente subterrânea do materialismo”, op. cit., p. 566.
60
O Futuro Dura Muito Tempo, op. cit., p. 189.
32

Estranhamente, os textos sobre materialismo do encontro, ao mesmo


tempo em que sistematizam uma problemática difusa, quase reprimidos ao
longo da obra, parecem resolver a contradição. Althusser não está bem com as
tensões das contradições. A aleatoriedade indefinida agora vence. O evento
então parece arrancado da historicidade ao ponto de surgir da contingência
pura como um "miracle du clinamen"(milagre do clinamen, a fórmula é de
Althusser próprio). Também estamos testemunhando um retorno espetacular
da tentação estruturalista em voluntarismo arbitrariamente subjetivo.

Essa revolta de um pensamento contra si mesmo faz parte da crise do


marxismo, declarada em 1978, no limiar da tragédia pessoal, tanto como
derrota e como libertação: “Finalmente, a crise do marxismo eclodiu.
Finalmente, torna-se visível para todos! Finalmente, um o trabalho de correção
e revisão se torna possível! A partir daí, é possível começar o trabalho."

Mas para Althusser já é tarde demais. Especialmente desde que a


explosão da crise liga inextricavelmente teoria e política. Depois do
Arquipélago Gulag, mesmo a negação mais obstinada não pode mais se ater à
tese irrisória do "desvio stalinista". Por marxismo, agora entendemos não
apenas a teoria, mas também as organizações e práticas: "de onde vieram
todos esses horrores61? "/

"A crise do marxismo pode se tornar hoje o começo de sua liberação,


logo de seu renascimento e sua transformação?” Certamente. Mas essa crise
também revela outras coisas, "um paradoxo singular", então Lucien Sève
coloca a hipótese de forma prudente: "Um dos pensadores marxistas mais
fortes deste século provavelmente nunca foi bem exatamente marxista” 62 /.
Obviamente, haveria muito o que dizer sobre esse "bem exatamente marxista".
Por seu treinamento religioso e intelectual, Althusser vem de longe, talvez
demais para estar completamente de volta. Este caminho inacabado parece
levar a política "a becos sem saída uma política aleatória sem eficácia possível”
e termina com “uma fuga insana correspondente ao desencantamento do
espírito do tempo”63. A reclusão solitária de Althusser, condenava-o a
61
Ibid, p. 162.
62
Louis Althusser, “A Corrente Subterrânea do Materialismo” (1982), in: Escritos Filosóficos e
PolíticosI, op. cit. , p. 540.
63
Pierre Raymond. “Althusser e o Materialismo”. Ibid. p. 175-178.
33

compromissos e encontros fracassados com o que Pierre Raymond chamou "O


exterior": a luta de classes, as práticas sociais, o proletariado real, um exterior
"que não é só o da filosofia mas o da teoria".

É também por isso que ele não se impede de abordar a política sujeita à
filosofia e conceder uma função em troca diretamente política à filosofia. O que
distingue assim a filosofia da ciência, é o que seria sua relação orgânica com a
política: é político porque intervém diretamente - dentro da luta política. O teoria
geral ou filosofia marxista vê-se, em seguida, [tendo que atribuir ao] objeto
específico "a distinção entre conhecimento científico e a ideologia 64/". Mas a
prática invocada pela teoria permanece "prática teórica" e a intervenção "em
uma conjuntura definida", reivindicada pela defesa de Amiens, permanece uma
intervenção filosófica em um conjuntura teórica: "Se proponho hoje uma nova
fórmula: se a filosofia é, em última instância, luta de classes na teoria, é
precisamente por colocar no lugar certo a luta de classes (última instância) e
outras práticas sociais (incluindo prática científica) em relação com a
filosofia65/."

A filosofia, portanto, serviu primeiro. Realmente guarda o segredo dos


becos sem saída das visões teóricas e políticas de Althusser. "Nós fomos
espinozistas"? O problema é ter permanecido sem assumir as transformações
operadas por Marx. Ao escrever "Spinoza e outros hereges" 66/? Althusser
aceitou o sinal vermelho ao tratar dessa heresia. No texto sobre Freud e
Lacan, ele saudou o nascimento no século dezenove de três filhos sem pai:
Marx, Nietzsche, Freud. A razão ocidental, constatou ele, pagou bem caro por
isso.

O espectro teimoso de Stalin

64
Louis Althusser, “Notas Sobre a Filosofia” (1967-1968), Escritos Filosóficos e Políticos II, op.
cit., p, 301-302. Badiou foi fiel a ele nesse ponto, que considera inelutável a existência da
filosofia como lugar onde nós sabemos que existem verdades que a ciência, a política, a arte, o
amor e que essas verdades são compossíveis. (Em Sylvain Lazarus, op. cit., p. 45).
65
Ibid., p. 547.
66
Louis Althusser, Por Marx, Paris, Maspero, 1965, p. 119
34

Após a derrota das oposições de esquerda da década de 1930, a


resistência intelectual ao stalinismo muitas vezes se viu exilada da política.
Revigorada pelos primeiros levantes anti-burocráticos de 1953 e 1956 na
Europa leste, com a divulgação do relatório Khrushchev e através do degelo na
União Soviética, ela procurou legitimidade ética na redescoberta editorial do
jovem Marx.

Publicados pela primeira vez na véspera da Segunda Guerra Mundial, os


Grundrisse e outros manuscritos provocam muitas traduções, um debate
apaixonado sobre coerência e as rupturas na produção marxiana. Alguns viram
nesta renovação uma má recaída humanista no humanismo abstrato da Liga
dos Justos, em detrimento da luta de classes. Esse foi particularmente o caso
de Galvano Della Volpe.

No início dos anos cinquenta, sua Lógica Como Ciência Histórica


endurece a cientificidade de Marx. O prefácio da primeira edição estabeleceu,
assim, o objetivo de acessar "esta filosofia-ciência cujos primeiros fundamentos
foram lançados por Marx em suas críticas processos viciosos do idealismo
hegeliano e a metafísica da economia política 67/". Della Volpe concorda com
Jdanov, para quem a emancipação das ciências naturais e sociais de sua
filosofia tutelar representam um processo progressivo, na perspectiva da
transformação da lógica filosófica na "ciência positiva" ou na "filosofia como
ciência". Isto foi a conclusão positiva da filosofia de que é suposto derrotar o
grande ceticismo moderno, o "pirronismo místico" de Pascal.

Às leituras historicistas de Marx de Della Volpe, [Althusser] opõe, então,


a "revolução cultural", inauguração galileana das ciências modernas. Ao
contrário dos historiadores desta revolução, que associam Bacon e Galileu, ele
dissocia-os e abre uma frente dupla contra as hipóstases idealistas e contra a
idolatria empirista dos fatos. Qualificada como "galileísmo moral", a teoria de
Marx constituiria uma ruptura de um porte comparável para o conhecimento
histórico e social. A metafísica hegeliana do estado foi substituída por uma
sociologia do estado. Não é uma sociologia no sentido de "sociólogo
metafísico", como Lênin aponta, mas no sentido da análise científica "de uma
sociedade e de um progresso determinado".
67
Marx em Seus Limites, op. cit., p. 452.
35

Com o "galileísmo moral", o devir-ciência da filosofia é que prevalece


claramente sobre sua dimensão crítica e seu futuro político. Sobre as
controvérsias Della Volpe não se demorará mais: "No caso da lógica filosófica
(ou dialética) e dessas outras disciplinas que, até agora, não foram designadas
como “ciências” morais apenas por metáfora, então essa é a lógica do
galileísmo moral (e falamos de "galileísmo" para distinguir o método do
materialismo histórico não apenas do método idealista com suas hipóstases,
mas também do método positivista, com sua idolatria dos fatos e sua
desconfiança com Bacon em relação às suposições ou idéias) 68 /. A passagem
estreita entre o misticismo lógico (hegeliano) e o misticismo factual (positivista)
dá acesso à fecundidade da "Abstração determinada" e "círculo metodológico"
(do concreto ao abstrato e abstrato ao concreto). Uma metáfora feliz e
cinematográfica caracteriza este julgamento conhecimento como
"desenvolvimento histórico contínuo e necessário de abstrações ou categorias
econômicas, porque a verdade deles está inversamente relacionado à
simplificação ou abstração unilateral de suas conteúdo".

O medo de uma recaída na filosofia com fins especulativos em Della


Volpe a uma discussão lógica sobre condições históricas reais. O anúncio de
Marx de uma fusão de tendências das ciências de natureza e sociedade em
uma ciência assume o significado imediato de uma homogeneidade decretada:
"Existe apenas uma ciência porque que existe apenas um método, ou seja,
uma única lógica: a lógica materialista de ciência experimental galileana ou
moderna”. Sem dúvida, da lei física à lei moral e de acordo com a lei
econômica, as técnicas variam com experiência e realidade, mas o método, a
lógica não varia". Então torne-se ciência do homem, a filosofia não é mais
ciência em significado metafórico, mas "ciência no sentido estrito de história da
ciência ou ciência materialista da história 69/". Contra uma bastardização
humanista da teoria, contra retornos a Hegel ou Feuerbach, o "galileísmo
moral" proclama, assim, a unificação forçada do campo científico. Referências
a Jdanov, a Stalin ou a Vichinsky não aparecem mais como curiosidades
anacrônicas ou como concessões forçadas a uma época passada. Eles
68
É interessante notar que a econometria contemporânea trabalha sobre as noções de
“tendências estocásticas, ou os ciclos dependentes do impacto transitório dos choques e das
variáveis aleatórias indicadas sobre o tempo”.
69
Elementos de Autocrítica, p. cit., p. 63.
36

celebram o pacto contrarrevolucionário e as núpcias burocráticas entre


conhecimento e poder, entre o ideal científico e a razão de estado. 70

Evidentemente, Althusser foi amplamente inspirado por Della Volpe,


então praticamente desconhecido na França. Mesmo em suas ambições
ascéticas, a leitura althusseriana de Marx carrega pateticamente o traço de um
stalinismo retornado. O primado das reviravoltas políticas em primazia da teoria
(considerada eficaz - "poderosa" - porque verdadeira): "É porque a teoria de
Marx era verdadeira que ela foi aplicada com sucesso, mas nem tudo que é
aplicado com sucesso é verdade 71/."Que tal essa eficiência anexada à
verdade? Empirismo retornado (a essência enterrada no objeto) ainda não se
enquadra no mau hegelianismo (a essência representada no objeto)
denunciando-se vigorosamente?”

A frase althusseriana merece um olhar mais atento. Parece uma máxima


anti-empirista. A única vitória não tem mais valor de prova. Não basta superar
para ganhar a verdade como um bônus. A esperança de escapar da forte
certeza dos vencedores durou pouco. A verdade imediatamente tornou-se uma
máquina de sucesso novamente: falha em provar isso, as vitórias em constituir
a manifestação necessária. Isto a reversão restabelece em seus direitos uma
teoria muitas vezes reduzida à defesa e à ilustração de uma prática bruta. Não
esclarece no que diz respeito ao sucesso: operador, intermediário, testemunha,
em qualquer caso leal auxiliar à verdade.

O que superar? E o que é isso, poder onde a verdade é revelada?

No momento da publicação de Por Marx e Ler O Capital, lutas


questionáveis e vitórias amargas já estavam cruzando espadas. A fortiori,
devemos concluir hoje a partir da falência do "socialismo real" que a teoria foi
falsa porque impotente ou simplesmente foi mal aplicada? Que não há relação
necessária entre teoria e sucesso, ou que as noções de sucesso e verdade
devem ser revistas?

Ao proclamar a autossuficiência da teoria, Althusser assumiu a


liderança: "O critério da verdade do conhecimento produzido pela prática

70
Zapata, Lutas Filosóficas na URSS; Stálin, Materialismo Histórico e Materialismo Dialético.
71
“A Corrente Subterrânea do Materialismo”, op. cit. p. 566.
37

teórica de Marx é fornecida em sua prática teórica em si […] por título de


cientificidade das formas que lhe asseguravam a produção desse
conhecimento". "A teoria não é mais verdadeira porque é eficaz, mas porque
que cumpra o requisito de cientificidade (o sucesso dado a ele como um
bônus). De um critério não-pragmático da prática que passamos assim, a uma
"prática teórica" autorreferida, retirada das provas da prática e dos seus
avatares. Entrincheirada atrás da ruptura epistemológica, fora do alcance de
artilharia empírica dos fatos, a teoria achava que podia monologar à vontade. O
princípio da realidade dolorosamente alcançou-a na virada: as contradições e
becos sem saída de Althusser fazem parte deste trabalho de luto inacabado do
stalinismo.

Tradução: Lúcio Emílio do Espírito Santo Júnior

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