Você está na página 1de 4

Vítor Belanciano

CRÓNICA

Sabe vender-se bem?


Até há algum tempo ser-se um vendido era um dos maiores
insultos que se podia receber. Hoje saber “vender-se bem” é
uma grande aspiração.

8 de Março de 2020, 7:03


Partilhar notícia
 49PARTILHAS
 Partilhar no Facebook
 Partilhar no Twitter

o Partilhar no LinkedIn
o Partilhar no Pinterest
o Enviar por email
o Guardar
o

Reparámos que tem um ad blocker activo


O jornalismo livre precisa do seu apoio.Pense bem, pense Público.

ASSINE JÁ COMO DESACTIVAR


Já é assinante? Inicie aqui

História com dias. Encontrámo-nos na rua e perguntei-lhe como ia a vida.


Estava no desemprego há semanas. Tinha que sair da casa onde estava daí a três
meses. E ia a tribunal com a mãe da filha, de quem se havia separado, por causa
da custódia da mesma. Mas antes que eu balbuciasse seja o que for, já ele
acrescentava: “Mas isto fica entre nós porque não existe pior, quando estamos no
mercado e temos que vender-nos, do que assumirmos que estamos em baixo.”
“Como assim?”, inquiri. “Não sabes?! O que se deve dizer quando temos de nos
vender é que estamos muito ocupados, com projectos em andamento. É isso que
atrai trabalho.”

Não sabia. Mas, lá está, devo ser mau a “vender-me”. E fiquei a pensar como a
linguagem acompanha as mutações sociais. É aliás por isso que tantos conflitos
irrompem nos últimos tempos tendo a linguagem no seu centro, num mundo
onde uma velha ordem transmite sinais de degeneração, mas sem que uma nova
tenha sido capaz de ocupar o seu lugar. Palavras que ontem tinham um sentido
claro tornam-se ambíguas e em alguns casos na antítese daquilo que
significavam outrora.

MAIS POPULARES

CORONAVÍRUS
Itália fecha a Lombardia e põe 16 milhões de pessoas de quarentena


COVID-19
Coronavírus: Universidade do Minho suspende aulas em campus de Braga

i-album

INSTAGRAM
Literacidades, um “Porto literário” em cada canto da cidade

Até há pouco ser-se um vendido era um dos maiores insultos que se podia
receber. De há algum tempo a esta parte saber “vender-se bem” é uma grande
aspiração, para quem deseja um novo emprego, valorizar o que tem ou subir na
escala social. “Vender-se bem” é um louvor. Faz parte do idioma corrente. Não é
comunicar-se com sabedoria. Não é melhorar as competências para expandir as
suas possibilidades de empregabilidade. É outra coisa. É saber negociar-se,
insinuar-se, promover-se. É fazê-lo com astúcia, de forma ardilosa até, de forma
a retirar daí ganhos económicos. 
A linguagem nunca é neutra. Nas expressões aparentemente mais superficiais
reside o que de mais profundo uma sociedade em determinado momento expõe.
“Vendermo-nos”, neste sentido, mais do que ter algo para transaccionar com
alguém por um preço estabelecido, é assumir que o sujeito se converte no
objecto de venda através da coisificação da própria pessoa. Ter as competências
adequadas para uma tarefa pela qual nos será devida uma retribuição por essa
mais-valia é outra coisa. A mercantilização do trabalho confunde-se com a
mercantilização da pessoa que o leva a efeito. O que se aprecia é a estratégia. É
propor o “investimento” na sua pessoa no momento certo.

O verbo vender domina o vocabulário e empobrece a nossa imaginação. É fácil


confundir a transacção do trabalho com a venda de quem o realiza, um facto
exponenciado no ecossistema digital, onde se pode conjugar o marketing com as
competências do eu, funcionando a autoencenação como montra ou marca, ou
mesmo como um projecto empresarial.

Hoje estamos sempre em modo de (auto)venda, logo, também de compra. Em


conversa, dizemos, “compro essa ideia” ou “compro a tua alegria.” Quer-se
adquirir o poder que as palavras têm sobre a realidade. A nomenclatura
economicista invade a linguagem para descrever o que nada tem a ver com
vender e comprar. Abundam os cursos que prometem técnicas infalíveis de
autopromoção. O mercado impôs a sua retórica. Essa é a maior prova da sua
supremacia total. E pelos vistos move-se. O meu amigo já arranjou emprego. E
tem nova namorada.

É o mercado a funcionar, dir-se-á. Talvez. Embora também seja a continuação da


economia do senhor feudal sobre o servo, ou do amo sobre o escravo, numa
lógica onde não há lugar para assumir uma existência plena. Há apenas a
violência do simulacro ou da representação. Ser-se produto ou mercadoria em
permanência.

https://www.publico.pt/2020/03/08/opiniao/cronica/sabe-venderse-bem-1906576?
fbclid=IwAR33clMadulVg8Vzlz6GCBKE9zNCSNQe2FQzc68dyj1Ab-Hpb2w9SpscMLw, consultado em
08/03/2020.

Você também pode gostar