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VARELA, Julia. Categorias espaço-temporais e socialização escolar: do individualismo ao narcisismo.

In:
COSTA, Marisa Vorraber (Org.). Escola básica na virada do século: cultura, política e currículo. São
Paulo: Cortez, 1999. p. 73-106.

Categorias espaço-temporais e
socialização escolar
Do individualismo ao narcisismo *
Julia Varela
Introdução
Emile Durkheim foi um dos primeiros sociólogos clássicos que se interessou
pelo estudo das categorias de pensamento com a preocupação de dar conta da
gênese e das transformações dos conceitos no marco de uma sociologia do
conhecimento. Categorias são noções essenciais que regem nossa forma de
pensar e de viver. Formam "o esqueleto da inteligência", o marco abstrato
que vertebra e organiza a experiência coletiva e individual. Durkheim
confere especial importância às categorias de espaço e de tempo, pois são
estas noções as que permitem coordenar e organizar os dados empíricos e
tornam possíveis os sistemas de representação que os homens de uma
determinada sociedade e em um momento histórico concreto elaboram sobre o
mundo e sobre si mesmos. [p.74]
As categorias de pensamento variam em função das culturas e das
épocas históricas, estão se refazendo constantemente e não são, como pensava
Kant, categorias a priori da sensibilidade e sim conceitos, representações
coletivas, que estão relacionadas de algum modo com as formas de organização
social, e, mais concretamente, com as formas que o funciona mento do poder e
do saber adotam em cada sociedade. As categorias de pensamento são,
portanto, o resultado de uma imensa cooperação em que numerosas gerações
foram depositando seu saber. O sociólogo francês valoriza -as como "um
capital intelectual muito particular", infinitamente mais rico e complexo que o
que se possa adquirir ao longo de uma só vida. Constituem sábios
instrumentos de pensamento que os grupos humanos forjaram laboriosamente
ao longo de séculos nos quais se foi acumulando o melhor desse capital
intelectual, o qual não apenas permite aos homens de uma determinada
sociedade comunicar-se uns com os outros, mas, além disso, torna possível um
certo conformismo lógico necessário para poder viver em comunidade.
Para saber com mais precisão o que significam estes marcos de
inteligibilidade e de sociabilidade não basta, assinala Durkheim, buscar em nosso
interior, mas "é preciso olhar para fora de nós, é preciso observar a história, é
preciso construir de cima a baixo uma ciência; ciência complexa que não pode
senão avançar lentamente, com base num trabalho coletivo" 1. Na realidade,
esta ciência, destinada a dar conta da gênese do desenvolvimento e das funções
sociais das categorias de pensamento, ainda está longe de haver alcançado a

* Este texto foi publicado originalmente na Revista de Educácion. n. 298, 1992. p. 7-29. Publicado aqui
com a autorização da autora. Tradução de Jandira O. Fraga. Revisão de Guacira Lopes Louro.
1
Cf. Durkheim. E. As formas elementares da vida religiosa. São Paulo: Paulinas, 1989.
maioridade, mas não há dúvida de que sua construção supõe, na atualidade, um
apaixonante desafio.
Inserindo-se no phylum aberto por As formas elementares da vida religiosa,
Norbert Elias ocupou-se também das categorias de pensamento. Em sua obra
intitulada Sobre o tempo, ressalta [p.75] uma vez mais a idéia de que as
categorias são instituições sociais e insiste no seu caráter simbólico quando
assinala que os homens as adquirem e utilizam como meio de orientação e de
saber. 2 E assim, somente em épocas muito tardias de desenvolvimento da
humanidade, o tempo converteu-se em "um símbolo de uma coação inevitável e
totalizadora".
A partir da formação dos Estados modernos e sobretudo com o
desenvolvimento das sociedades industrializadas, as exigências sociais que
pesam sobre a determinação do tempo e do espaço se fazem cada vez mais
prementes no interior do "processo de civilização". 3 Deste modo, a paulatina e
cada vez mais intensa rede de reguladores temporais vai permitir viver tempo
como um continuum, como um fluxo invariável, o que facilitará que a própria
existência seja percebida também como um continuum que serve de fundamento à
categoria de identidade pessoal, tão arraigada em nossas sociedades ocidentais.
Esse inteligente sociólogo alemão levanta uma série de questões de capital
importância para o tema que aqui vamos desenvolver. Como as categorias espaço-
temporais influem na regulação da conduta e da sensibilidade? Como as regulações
espaço-temporais são incorporadas na estrutura social da personalidade? A
sensibilidade moderna constrói-se no Ocidente em relação com um tempo que é
percebido de forma imperiosa, sintoma de um processo civilizador no qual as
exigências temporais são cada vez mais intensas, se as comparamos com outras
sociedades menos complexas. Nessas últimas sociedades, seus membros não têm
nossa concepção do tempo, não seguem os ditames que essa categoria impõe, nem
desenvolveram uma consciência individual como a nossa, carecendo da própria
categoria de identidade pessoal: um homem pode ser idêntico a outro, possuir
ao mesmo tempo as qualidades de um homem [p.76] e de um animal, ou estar em
dois lugares distintos simultaneamente.
Os controles socialmente induzidos através da regulação do espaço e do
tempo contribuem, ao interiorizar-se, para ritualizar e formalizar as condutas,
incorporam-se na própria estrutura da personalidade, ao mesmo tempo que
orientam uma determinada visão do mundo, já que existe uma estreita inter-
relação entre os processos de subjetivação e de objetivação.
A Norbert Elias interessa especialmente explicar como em nossas
sociedades ocidentais, constituiu-se um tempo subjetivo, a sensação de que
existe um tempo individual próprio separado do tempo objetivo. E afirma que,

2
Cf. Elias, N. Sobre el tiempo. México: FCE, 1989.
3
Cf. Elias, N. O processo civilizador. Rio de Janeiro: Zahar, 1990.
pelo menos desde o nascimento do racionalismo moderno, começa a se
intensificar uma concepção do tempo mais centrada no indivíduo,
antropocêntrica, a qual, curiosamente, coexiste com uma tendência social, cada
vez mais forte, para determinar, medir e diferenciar os ritmos temporais aos
quais terão que se submeter todos os sujeitos4.
Essas progressivas e intensas regulações têm suscitado conflitos e lutas
entre as diferentes forças sociais, particularmente entre a Igreja e o Estado, que
visam adquirir, através delas, posições hegemônicas. Foi precisamente a
instituição do Estado que, com a formação dos Estados modernos, conseguiu
progressivamente a vitória atribuindo-se, praticamente de forma exclusiva, a
determinação do espaço e do tempo. Mas isso foi sobretudo a partir do século
XVIII, com o peso que então adquiriram as cidades, com a intensificação do
comércio e a revolução industrial, quando se fez mais premente a necessidade de
sincronizar um número cada vez maior de atividades e transações e quando,
em conseqüência, elaborou-se uma rede temporal e espacial contínua e
uniforme que serviu de marco de referência a toda a vida social.
Medir e regular o tempo de uma determinada forma implica não apenas
relacionar os acontecimentos de um modo [p.77] específico, mas também
percebê-los e vivê-los de um modo peculiar. A categoria de identidade pessoal e
a percepção da própria vida como um continuum estão, pois, em íntima relação com
o fato de que, em nossas sociedades, não apenas se mede o tempo com uma
pontual exatidão, mas que, além disso, ele é percebido socialmente como um
fluxo que vai do passado ao presente e do presente ao futuro, o que supõe a
elaboração conceitual de um símbolo para referir-se a uma relação, que não é
causal, entre estes diferentes períodos temporais. Todo o livro citado de Norbert
Elias constitui uma tentativa de decifrar como, nas sociedades ocidentais,
chegou-se a pensar o tempo físico, o tempo social e o tempo subjetivo ou individual
como se fossem diferentes, como se coexistissem justapostos e não
relacionados entre si.
A maioria dos trabalhos destinados a dar conta da gênese das modernas
categorias espaço-temporais tiveram a tendência, sistematicamente, de relegar o papel
que as instituições educativas desempenharam e seguem desempenhando, na
formação, reprodução e transformação de nossas concepções de espaço e de
tempo. Sem dúvida, tem contribuído para este esquecimento a própria especialização
dos saberes sociológicos, o parcelamento dos saberes em áreas hierarquizadas e
separadas. E assim, enquanto o estudo destas categorias converteu-se numa
parte da sociologia do conhecimento, a sociologia da educação permaneceu, em
geral, alheia a essas questões. E foi assim que a especialização converteu-se em
um obstáculo que é preciso salvar.
O ponto de partida deste estudo é a idéia de que os processos de
socialização dos sujeitos nas instituições escolares põem em jogo determinadas

4
Cf. Elias. N. Sobre el tiempo, op. cit., p. 46.
concepções e percepções do espaço e do tempo. Para entender os processos escolares
de socialização e as diferentes pedagogias é necessário levar em conta a
configuração que, em cada período histórico, adotam as relações sociais e, mais
concretamente, as relações de poder que incidem na organização e definição dos
saberes legítimos, assim como na formação de subjetividades específicas.
Categorias espaço-temporais, poder, pedagogias, saberes e sujeitos constituem
[p.78] dimensões que se cruzam, se imbricam e se ramificam no interior das
instituições educativas. Desenvolver as interdependências complexas que se têm
produzido e continuam produzindo entre esses processos supera em muito as
possibilidades e o objeto deste trabalho. Mas, pelo menos, tentaremos mostrar
que se trata de um problema pertinente, ilustrando -o através de três períodos
histéricos distintos, nos quais se produzem, sob a forma de tendências, de
tipos ideais, três modelos pedagógicos: as pedagogias disciplinares que se
generalizam a partir do século XVIII; as pedagogias corretivas, que surgem em
princípios do século XX em conexão com a escola nova e a infância
"anormal"; e, enfim, as pedagogias psicológicas, que estão em expansão na
atualidade. Três modelos pedagógicos que implicam diferentes concepções do
espaço e do tempo, diferentes formas de exercício do poder, diferentes formas de
conferir um estatuto ao "saber" e diferentes formas de produção da subjetividade.

Do tempo mágico das idades da vida ao tempo disciplinar: a formação


do indivíduo moderno
Para os sociólogos clássicos, e em especial para Marx, Weber e
Durkheim, um dos traços que caracteriza a Modernidade é o processo de
individualização. A partir do século XVI e, sobretudo, a partir da constituição
dos Estados modernos, tal processo se intensifica e estende em conexão com a
crescente divisão social do trabalho, o aumento da densidade da população nas
zonas urbanas, a acumulação primitiva do capital e o desenvolvimento da
propriedade privada, a influência da ética protestante e o impulso da
Administração. 5 Todos esses soció-[p.79]logos se ocuparam, portanto, do
processo de individualização — o qual consideram o reverso do processo
de estatização —, partindo de análises de processos de caráter estrutural e
sem relacioná-lo, a não ser de forma indireta, com a construção das categorias
de pensamento. 6 A partir do marco traçado por eles tentaremos "descer" a
processos de alcance médio, com a intenção de analisar como incide a
regulação social do espaço e do tempo — e suas formas de transmissão e
interiorização mediante técnicas pedagógicas — nas sutis conexões que se

5
Max Weber analisou em relação ao surgimento da Administração, como o Estado moderno, no exigir de
uma parte importante de seus funcionários a superação de provas e exame nos quais deviam demonstrar
que possuíam conhecimentos e capacidades para desempenhar o cargo a que aspiravam, inaugura uma via
individual — meritocrática — oposto à do sangue e da linhagem que até então havia dominado.
6
O próprio Durkheim que, como se tem assinalado, propõe a criação de urna ciência das categorias, de
uma sociologia do conhecimento, o faz na última etapa da sua vida, já que As formas elementares da vida
religiosa foi publicado em 1912, ou seja, cinco anos antes de sua morte.
estabelecem historicamente entre o processo de individualização e os modos
de educação, ou seja, entre as tecnologias de produção de subjetividades
específicas e as regras que regem a constituição dos campos do saber.
Na segunda metade do século XVI se configuram novos modelos de
educação que marcam a pauta para a socialização das jovens gerações dos
grupos sociais dominantes. A intensa preocupação dos reformadores e
humanistas pelo "governo da terna idade", os programas de ensino que por
tal motivo planejam, bem como sua aplicação, constituíram um dispositivo
fundamental para definir o novo estágio temporal que hoje denominamos
infância. Esse dispositivo desempenhou igualmente um papel importante na
constituição do tempo subjetivo enquanto tempo separado do tempo físico e do
tempo social objetivo7.
No Renascimento, contudo, "as idades da vida" eram conceitos que
supunham a existência de uma unidade fundamental entre os fenômenos
"naturais", "cósmicos" e "sobrenaturais". O movimento descrito pelos planetas
em suas órbitas celestes, o ciclo das estações, as fases da lua e o ciclo da
[p.80] vida humana regiam-se pela mesma lógica 8. O microcosmo era um reflexo
do macrocosmo e o homem se relacionava com todos os seres do universo segundo
laços profundos e misteriosos. As idades de vida expressavam uma continuidade
cíclica e inevitável, inscrita na ordem geral das coisas. A semelhança e suas
diferentes figuras organizavam as relações existentes entre os símbolos de um
mundo que se dobrava sobre si mesmo, se duplicava, se encadeava e refletia
permanentemente. Conhecer as coisas consistia em descobrir o sistema de
semelhanças que as fazia próximas e solidárias ou distantes e incompatíveis.
Essa percepção do mundo e da vida humana, essas formas de classificação, essa
correspondência entre microcosmo e macrocosmo, que permitiu a coexistência da
magia, da adivinhação e da erudição como formas de saber, rompeu-se em fins do
século XVI 9.
Com o início da Modernidade, os códigos de saber transformam-se e o
homem deixa de ser um pequeno microcosmo, em contato permanente com todo o
universo, para iniciar um longo exílio destinado a separá-lo cada vez mais da
"natureza natural", que então se institui, para distanciá-lo da animalidade. A
partir de agora, o homem terá que se converter em ser "civilizado", em ser cada
vez mais individualizado o qual, com o passar dos séculos, se transformará no
"átomo fictício" de uma "sociedade formada por indivíduos". Mas justamente o de que
se trata aqui é mostrar mais detidamente alguns dos processos que contribuíram para
que esse homem renascentista, integrado no cosmos, se perceba hoje como Homus

7
Em relação às formas de educação e à moderna definição de infância, assim como sobre o papel
estratégico da educação institucional na formação de um novo tipo de sociedade, pode-se ver meu livro
Modos de educación en la Espana de la Contrarreforma, Madri, La Piqueta, 1983.
8
Cf. Ariés, Ph. História social da criança e da família, Rio de Janeiro. Zahar. 1981. 2. ed.
9
Sobre as regras que regem no campo do saber, mais concretamente sobre a episteme renascentista, ver
M. Foucault. As palavras e as coisas, São Paulo. Martins Fontes. 1987.
clausus, para utilizar o conceito cunhado por Norbert Elias10. [p.81]
Voltemos, pois, aos modos de educação que se configuraram a partir do
século XVI e que não são alheios a essa importante mutação. A moderna
definição de infância, as novas formas que adotou a educação das crianças
contribuíram, junto com outros muitos fatores, para pôr fim a um tempo cósmico,
mágico e cíclico. Ao particularizar a idade infantil, ao conferir-lhe determinadas
qualidades que correspondem, a partir de então, a aprendizagens específicas, os
reformadores renascentistas vincularam a noção de infância a um novo ciclo que
se desgarrava daquele que regia a ordem celeste e terrestre: o desenvolvimento
biológico individual. A educação institucional, predominantemente urbana e elitista
— que encontrou uma de suas figuras paradigmáticas nos colégios jesuítas —
supôs a elaboração de uma pedagogia que, ao mesmo tempo que se movia e
transmitia seguindo uma nova concepção do espaço e do tempo — como
vamos ver a seguir —, contribui na produção do honnête homme, quer dizer, do
indivíduo burguês.
Michel Foucault mostrou de forma muito precisa como tempo e o espaço se
reorganizaram no século XVIII mediante o exercício de um novo tipo de poder
que denominou poder disciplinar. Tal poder parte do princípio de que é mais
rentável vigiar do que castigar. Domesticar, normalizar e fazer produtivos aos
sujeitos é mais rentável do que segregá-los ou eliminá-los. Esse tipo de poder,
cuja tradição se encontra na teologia e o ascetismo, "numa consideração política
das pequenas coisas, do detalhe", e que começou se forjando em instituições
tais como os colégios e o exército, se consolidará e estenderá na idade das
disciplinas: tecnologias de individualização que estabelecem uma relação com o
corpo que ao mesmo tempo que o fazem dócil fazem-no também útil. Esse
modelo de poder está ligado a profundas transformações que tiveram lugar no
século XVIII: transformações econômicas (acréscimo e conservação das
riquezas), sociais (evitar motins e sublevações; demanda de uma maior segurança),
políticas (tornar viável o novo modelo de sociedade, ou seja, a aceitação da
nova soberania baseada no contrato social). [p.82]
O poder disciplinar serve-se não apenas das tecnologias de individualização
como também das tecnologias de regulação das populações, tecnologias diferentes
que, às vezes, se superpõem e reforçam e, outras vezes, entram em contradição. Essas
tecnologias acarretam uma autêntica revolução ao permitir que o corpo e a vida
tomem parte do domínio do poder que, dessa forma, se fez ainda mais material. De
qualquer modo, constituíram peças importantes para alcançar uma sociedade
disciplinada e produtiva, uma sociedade que começou a deixar de ser uma sociedade
eminentemente jurídica já que tais tecnologias tornaram possível o surgimento de novos
dispositivos de poder que não se serviram para seu funcionamento tanto da lei e da
proibição, como da norma. Ao lado do aparato jurídico passaram, portanto, a ter maior

10
A ilusão do individuo, como ser auto-suficiente, constitui para Nobert Elias a outra face de um processo
de ―civilização‖ – e individualização – crescente que implica a interiorização dos controles sociais. Cf.
Elias. N. O processo civilizador, op.cit., assim como La sociedad de lós indivíduos. Barcelona. Península,
1990.
importância as instâncias de normalização 11.
Esse poder disciplinar, em razão de sua economia e de seus efeitos, tendeu a
se estender por todo o corpo social, mas seus efeitos se deixaram sentir de forma
mais sensível no âmbito institucional e, mais concretamente, nas instituições
educativas. As tecnologias disciplinares, que estão na base da produção social de novos
saberes e de novos sujeitos, funcionam através de uma nova concepção e organização
do espaço e do tempo. Implicam a existência de um espaço e um tempo
disciplinares. Para o espaço disciplinar, o princípio de clausura deixa de ser constante,
indispensável e suficiente. O importante agora é a redistribuição dos indivíduos no
espaço, sua reorganização, a maximização de suas energias e de suas forças, sua
acumulação produtiva tão necessária para a acumulação de riquezas, para a
acumulação de capital. A cada indivíduo há de se determinar um lugar, u ma
localização precisa no interior de cada conjunto. Os indivíduos hão de estar
vigiados e localizados permanentemente para evitar encontros perigosos e
comunicações inúteis, se de fato se quer favorecer exclusivamente as relações úteis
e produtivas. [p.83]
Como já assinalamos, Foucault considerava os colégios das ordens
religiosas e os quartéis como os lugares específicos onde começaram a vigorar
as tecnologias disciplinares 12. E, de fato, em Vigiar e punir dedica algumas
páginas muito ilustrativas para mostrar a forma que adotou o ensino nos
colégios dos jesuítas. Pouco a pouco o espaço escolar esboçado e
minuciosamente organizado pela Companhia de Jesus converteu -se em um
espaço homogêneo e hierarquizado que pouco tinha a ver com o espaço
acondicionado por outras instituições educativas do Antigo Regime, no qual
coexistem justapostos uns alunos ao lado dos outros sob o olhar de um só
mestre. Os colégios dos jesuítas contribuíram, portanto, para configurar um
espaço disciplinar seriado e analítico que permitiu superar o sistema de
ensino no qual cada aluno trabalhava com o mestre durante alguns minutos, para
permanecer em seguida ocioso e sem vigilância, misturado com o resto de
seus companheiros.
A classificação ou posto é um dos procedimentos de distribuição e
divisão dos colegiais no espaço escolar a partir do século XVIII: filas de
colegiais na classe, nos corredores, na Igreja e nas excursões. O posto que
se atribui a cada colegial em função de seu êxito ou fracasso nas provas
ou nos exames, o posto que se obtém ao final de cada semana, de cada mês e
de cada ano no interior da classe, o posto que se ocupa em uma classe em

11
Cf. Foucault, M. Vigiar e Punir. Petrópolis, Vozes, 1977, especialmente o cap. III, dedicado as
disciplinas.
12
Em numerosos momentos históricos parecem entrecruzar-se e reforçar-se as tecnologias pedagógicas e
militares no âmbito escolar, tal como sucede concretamente no ensino dos jesuítas.
relação às outras classes.
Neste conjunto de alinhamentos obrigatórios, cada aluno, segundo
sua idade, seus resultados, sua conduta, ocupa um posto ou outro;
desloca-se sem cessar em uma série de compartimentos, alguns
ideais, que indicam hierarquias do saber ou das capacidades, e
outros que traduzem materialmente, no espaço da classe ou do
colégio, esta divisão dos valores ou dos méritos 13.
As pedagogias disciplinares implicam também mudanças importantes
com relação ao tempo. O tempo disciplinar se [p.84] impõe
progressivamente na prática pedagógica especializando tempo da formação
escolar e separando-o do tempo dos adultos, e do tempo de formação nos ofícios.
Além disso, face à mistura de estudantes de idades distintas numa mesma sala,
prática habitual nas instituições educativas do Antigo Regime como, por exemplo,
nas Universidades e escolas de primeiras letras — e inclusive nos próprios
colégios dos jesuítas nos seus inícios —, lentamente se vão separando os mais
velhos dos menores e, finalmente, a idade se converte no critério fundamental
de distribuição dos colegiais. A nova concepção do tempo exige organizar as
atividades de acordo com um esquema de séries múltiplas, progressivas e de
complexidade crescente. Organiza distintos níveis separados por provas graduais,
que correspondem a etapas de aprendizagem e que compreendem exercícios de
dificuldade cada vez maior. Rompe-se assim com um ensino no qual o tempo era
concebido globalmente e a aprendizagem sancionada com uma única prova.
Essa nova forma de perceber e de organizar o espaço e o tempo permite um
controle detalhado do processo de aprendizagem, permite o controle de todos e de
cada um dos alunos, faz com que o espaço escolar funcione como uma máquina
de aprender e ao mesmo tempo possibilita a intervenção do mestre em qualquer
momento para premiar ou castigar e, sobretudo, para corrigir e normalizar.
A incorporação direta do poder no espaço e no tempo está na base de uma
utopia social regida pela transparência e a visibilidade que o panóptico de J.
Bentham reflete de forma paradigmática. A busca desta sociedade de cristal na
qual o olhar desempenha um papel primordial está intimamente ligada à
quadriculação progressiva do espaço e à historicidade progressiva do tempo. Um
tempo e um espaço divididos, segmentados, seriados, que deveriam permitir,
segundo os reformadores da época uma síntese e uma globalização totais. Essa
modalidade de poder não apenas torna possível a visão de uma sociedade em
contínuo e ascendente progresso, mas também uma percepção funcional do corpo, um
corpo-segmento pronto e disposto a articular-se com outros em conjuntos
produtivos [p.85] mais amplos que tornem possível a obtenção de seu máximo
rendimento, um resultado ótimo de conjunto.
As pedagogias disciplinares não podem ser analisadas, portanto, a partir
da noção de repressão, já que seus efeitos, como estamos vendo, são
enormemente produtivos: supõem uma mudança na percepção social do
13
Cf. Foucault, M. Vigiar e punir. op. cit.
espaço e do tempo, mudança que se manifesta, ao mesmo tempo, na
organização do espaço e do tempo pedagógicos, e em sua interiorização pelos
colegiais. Essas pedagogias são também um instrumento de primeira ordem na
construção, por um lado, de uma forma de subjetividade nova, o indivíduo, e,
por outro, na organização do campo do saber.
A produção social do indivíduo
Michel Foucault afirmou que o indivíduo exigido por uma representação
burguesa da sociedade — a sociedade definida como a soma de sujeitos
individuais — não é apenas uma "ficção ideológica" mas também uma
realidade construída por essas tecnologias específicas de poder chamadas
disciplinas.
Qual é o principal dispositivo utilizado pelas disciplinas na produção
desse tipo determinado de sujeitos que são os indivíduos? Esse dispositivo é o
exame que se generaliza como forma de subjetivação e também de
objetivação, de extração de saberes no século XVIII. O exame instituiu-se em
múltiplas instituições — quartéis, colégios, hospitais, administração — e
também aplicou-se a campo aberto — estatística, higiene etc. Em
conseqüência, por meio de notas, fichas, registros e históricos se introduz a
individualidade no terreno da escritura, convertendo cada sujeito em um caso.
As pedagogias disciplinares fazem das instituições educativas instituições
examinadoras, espaços de observação eminentemente normalizadores e
normativos, já que o exame implica duas operações fundamentais: a vigilância
hierárquica e a sanção normalizadora. Ambas coordenadas permitem decifrar,
medir, comparar, hierarquizar e normalizar aos colegiais. [p.86]
A "escola examinadora' atribui a cada aluno como estatuto sua própria
individualidade, a qual é o resultado de provas e exames contínuos que, por sua
vez, supõem uma extração de saberes dos próprios colegiais, o que tornará
possível a formação e o desenvolvimento da ciência pedagógica. Os exames não
apenas avaliam as aprendizagens, a formação que recebem os escolares, como
também conferem a cada estudante uma natureza específica: convertem-no em um
sujeito individual.
As pedagogias disciplinares implicam, portanto, novas relações de poder
que são tanto menos visíveis quanto mais física e materialmente estão presentes
e quanto mais vinculadas estão ao processo de aprendizagem. Daí que o poder
disciplinar tenha podido suprimir, em teoria, as penalizações e os castigos físicos,
já que as sanções, as correções, consistem, a partir de agora, em repetir as
atividades, em repetir os exercícios, em fazer novamente a mesma coisa.
O disciplinamento dos saberes
O poder disciplinar afeta também o campo do saber . Ao final do século
XVIII produziu-se uma luta político-econômica em torno dos saberes, saberes
que até então estavam dispersos e apresentavam um caráter heterogêneo. A
medida que o Estado se consolidou, e à medida que se desenvolveram as
relações de produção com o impulso da Revolução Industrial, se
desencadearam processos de anexação e confisco de saberes locais e artesanais
por saberes mais gerais ou industriais. Nessas lutas o Estado intervém, direta ou
indiretamente, como mostrou Michel Foucault, mediante quatro operações:
eliminação dos saberes irredutíveis, inúteis ou economicamente muito custosos;
normalização dos saberes; hierarquização dos saberes: os mais gerais, os mais
formais sendo legitimados; enfim, centralização dos saberes. Todas estas
operações permitem sua seleção e controle e implicam o surgimento de toda
uma série de práticas, de iniciativas e instituições que vão desde A
Enciclopédia até a criação de instituições acadêmicas e o nascimento de um
[p.87]novo tipo de Universidade controlada pelo Estado. Os saberes
se verão assim reduzidos a disciplinas, com uma organização e uma lógica
interna específicas, dando lugar ao que na atualidade conhecemos como
ciências. A partir deste momento as instituições acadêmicas vão exercer um
monopólio no campo do saber de tal forma que unicamente os saberes formados e
sancionados por estas instituições receberão um estatuto de cientificidade.
As formas de controle sobre o território do saber sofreram assim uma
mudança. Já não se trata, como ocorria com a ortodoxia eclesiástica, de
suprimir e censurar enunciados, mas de assegurar que esses enunciados
remetam a uma lógica específica que permita vinculá-los a uma disciplina
concreta, e situá-los nessa ordem quadriculada e hierarquizada dos saberes legítimos.
O controle passa de um nível externo a um nível interior tornando menos visível
e aparentemente menos coativo o exercício do poder.
O poder disciplinar joga, portanto, e complementarmente, em dois terrenos,
o da produção dos sujeitos e o da produção dos saberes. E, assim, as tecnologias
disciplinares aplicadas ao corpo permitem a extração de saberes sobre os sujeitos,
saberes que por sua vez, ao serem devolvidos ao sujeito, o constituem como
indivíduo, constroem seu "eu". Mas, além disso, essas tecnologias, ao serem
admitidas no campo do saber, produzem um disciplinamento dos saberes que é a
própria condição de possibilidade da formação das ciências 14.
Uma etapa de transição: as pedagogias corretivas e a busca da criança
natural
O poder disciplinar, que começa a gestar-se no Antigo Regime, e que
alcançará o auge a partir de fins do século [p.89] XVIII, se perpetuará
durante todo o século XIX nos países ocidentais. Em princípios do século XX
surge um novo tipo de poder. E precisamente nesse momento histórico que se
retomam e reformulam as propostas educativas dos ilustrados e especialmente o
modelo pedagógico proposto por Rousseau. O Estado Interventor, modelo
iniciado por Bismarck na Alemanha no último quartel do século XX, triunfou em

14
Sobre a disciplinalização dos saberes, ver M., Foucault, Genealogia del racismo. Madri, La Piqueta.
1992.
praticamente todos os países da Europa ocidental. Tratava-se de solucionar a
questão social, de neutralizar a luta de classes por meio de uma política de
harmonização dos interesses do trabalho e do capital que permitisse integrar ao
movimento operário.
Justamente neste marco impôs-se a obrigatoriedade escolar convertida em um
dos dispositivos fundamentais de integração das classes trabalhadoras. A escola
obrigatória fazia parte, portanto, de um programa de regeneração e de profilaxia
social baseado nos postulados do positivismo evolucionista. Numerosos filantropos,
economistas e reformadores sociais, ao aceitar a teoria segundo a qual a
ontogênese recapitula a filogênese (Lei de Haeckel), vão estabelecer toda uma
série de analogias entre a criança, o selvagem e o degenerado 15. Deste modo, se
fará corresponder o estágio de selvageria com o da infância. As crianças, e
especialmente as crianças das classes populares, se identificam com os selvagens.
Civilizá-los e domesticá-los constitui o objetivo dessa escola pública obrigatória
na qual seguirão reinando as pedagogias disciplinares.
Essa escola para os filhos dos pobres, suas práticas, seus sistemas de
valoração, a percepção do mundo que transmite e o estatuto de infância que
veicula, rompe a tal ponto com os modos de educação das classes trabalhadoras,
com seus hábitos e seus estilos de vida que irá provocar, desde sua imposição
por via legal, toda uma série de conflitos e desajustes que serão interpretados
a partir de uma enviesada ótica que responsabiliza a má índole dos alunos por
todos os males. Surgirá [p.89] assim, em relação às crianças que resistem à escola
disciplinar, um novo campo institucional de intervenção e de extração de saberes
destinado à ressocialização da "infância anormal e delinquente" 16.
Os textos da época põem claramente em relevo as funções de controle social
destes novos centros educativos quando nos apresentam seus ainda balbuciantes e
rudimentares sistemas de classificações. O Dr. Binet, herdeiro das medidas
realizadas pelo psiquiatra Bourneville com as crianças do manicômio de Bicêtre,
afirma que é necessário detectar o quanto antes os alunos que são "refratários à
disciplina escolar" para o que elaborará, em colaboração com o Dr. Simon, seu
célebre Teste Menta 17. As crianças "insolentes, indisciplinadas, inquietas, faladoras,
turbulentas, imorais e atrasadas" serão qualificadas por Binet como anormais 18.
Não menos detalhadas e expressivas são as classificações de alguns autores
espanhóis. Roso de Luna, por exemplo, encontra ainda mais gêneros e

15
Cf. "La escuda obrigatória, espacio dc civilización del nino obrero", em J. Varela e F. Alvarez-Uria.
Arqueología de la escuela, Madri, La Piqueta, 1991. pp. 175-98.
16
Sobre a constituição do campo da infância anormal, cf. Muel, F. "La escula obligatoria y la invención
de la infancia anormal", em VVAA. Espacios de poder, Madri, La Piqueta, 1981, pp. 123-43, assim como
Alvarez-Urfa, F. "La infancia tutelada", em VVAA, Perspectivas psiquiátricas, Madri, CSIC, 1987, pp.
179-90. Em relação ao peso que adquirem os códigos médico-psicológicos na socialização infantil, cf.
Donzelot, J. A polícia das famílias, Rio de Janeiro, Great, 1980.
17
Os testes, esses "científicos instrumentos de medidas", se estenderam rapidamente às crianças
"normais" - "já que estas não diferem das anormais mais a não ser que por seu grau de evolução" - e
posteriormente aos adultos.
18
Cf. Binet, A., Les idées modernes sur les enfants, Paris, Flammarion, 1973, p. 130.
espécies que Binet nessa infância que resiste à obrigatoriedade escolar: "abúlicos,
teimosos, mimosos, parabúlicos, cretinos, sem sentimentos, desconfiados, frios,
desmemoriados, memoriosos, visionários, terroristas, surdos-mudos, cegos, de gostos
grosseiros, inexpressivos, imbecis, histéricos, hiperestésicos, passionais e
masturbadores" 19. [p.90]
Na medida em que a adaptação em geral, e a escola em particular, é definida
por estes primeiros pedagogos da infância anormal — e pelos primeiros
psicólogos — como "a função geral da inteligência", as diferentes instituições
que então surgem para educar as crianças "inadaptadas" se converteram em
espaços privilegiados, em laboratórios de observação, nos quais se obtiveram
saberes e se ensaiaram tratamentos que implicaram uma mudança importante em
relação às pedagogias disciplinares até então dominantes. E foi precisamente nestas
instituições de correção onde começaram a aplicar-se, por conhecidos membros
da chamada Escola Nova, novos métodos e técnicas, onde se ensaiaram novos
materiais, enfim, onde se aplicaram novos dispositivos de poder que implicavam
uma reutilização do espaço e do tempo, uma visão diferente da infância, a
produção de novas formas de subjetividade, que eram inseparáveis de um novo
estatuto do saber 20.
Maria Montessori e Ovidio Decroly aceitam, da mesma forma que a maioria
dos representantes da Escola Nova, a lei biogenética fundamental e a lei do
progresso, e pensam que para ser um bom civilizado a criança tem que ser
previamente um bom selvagem. Daí sua crítica às pedagogias disciplinares, aos
métodos tradicionais de ensino, aos horários inflexíveis, aos espaços rígidos, e
enfim, aos programas sobrecarregados. [p.91]
Quase todos eles viram nos exames uma das maiores imperfeições e, de
fato, como já vimos, isto constituía a ponta da lança das pedagogias disciplinares.
Ferrière, por exemplo, afirma que os exames são a imagem mais estereotipada da
escola da imobilidade e que viciam toda a aprendizagem: cada idade se parece a
todas as demais, cada cadeira a todas as demais e cada criança a todas as
demais.
Estes novos pedagogos — em sua maior parte procedentes da medicina, já que
exerceram a profissão de psiquiatras e de psicólogos clínicos — aceitam as teorias
19
Cf. "Los niños anormales. Constitución del campo de la infancia, deficiente y delincuente" em J. Varela
e F. Alvarez-Uria. Arqueologia de la escuela, op. cit., pp. 209-34, p. 227.
20
A. Binet não oculta que a adaptação está no centro de seu trabalho e da elaboração dos testes mentais:
"Penso que o conhecimento das aptidões das crianças é o problema mais bonito da pedagogia. Ainda não
tem sido tratado por ninguém, ao menos que eu conheça, e não possuímos atualmente nenhum
procedimento seguro para detectar as aptidões de um sujeito, seja criança ou adulto. No entanto, existe
esta preocupação em diferentes meios: os sindicatos patronais compreendem o enorme interesse que
existiria em fazer conhecer a cada um seu valor e a profissão a que sua natureza lhe destina. Os métodos e
exames que esclarecessem as vocações, as aptidões, e também as inaptidões proporcionariam serviços
incomensuráveis a todos". Cf. Binet, A., "Bilan de la psychologie en 1910", L'Année Psychologique,
XVII, 1911, p. X. E Maria Montessori escreve: "Não eduquemos as nossas crianças para o mundo de
hoje. Este mundo não existirá quando eles forem maiores. Nada nos permite saber que mundo será o seu
em conseqüência ensine-mo-lhes a adaptar-se". Cf. Pedagogia scientifique, Paris, Desclée de Brouwer,
1958.
pedagógicas rousseaunianas, situam a criança no centro da ação educativa, são
partidários da aprendizagem através da ação, já que a atividade da criança
constitui o centro de um processo de auto-educação. A escola deve adaptar-se aos
"interesses e tendências naturais" da criança. A missão do mestre é precisamente
condicionar o espaço e o tempo para dar forma e sentido a essas atividades. Como
escreve textualmente o Dr. Decroly, uma das finalidades da escola primária é
"organizar o meio de forma que a criança encontre nele os estimulantes
adequados a suas tendências favoráveis" 21. E para fundamentar cientificamente
seus sistemas teóricos não apenas irão observar as crianças recolhidas em
instituições especiais e fazer experiências com elas, mas, além disso, procurarão
descobrir as leis que regem seu desenvolvimento. Aceitarão assim, na busca de
um estatuto científico para seu trabalho pedagógico, a ajuda que lhes brinda a
nascente psicologia - em princípio, a psicofisiologia na condição de psicologia
experimental e pouco depois a psicologia genética.
O Dr. Bourneville não apenas foi uma autoridade para o Dr. Binet como
também para a Dra. Montessori, para o Dr. Decroly e, mais tarde, para um dos
pais da psicologia evolutiva, Jean Piaget. Todos eles começaram trabalhando com
crianças "anormais" e logo deslocaram seu interesse para as crianças "normais" e
para a "primeira infância". Montessori inicia sua atividade criando, em 1907, "A
casa de Bambini", uma insti-[p.92]tuição localizada nos bairros baixos de
Roma — onde as crianças não iam à escola — cujos moradores "viviam nas
piores condições de higiene e promiscuidade". A referida instituição
educativa não era alheia à necessidade de procurar uma existência melhor para
os operários, baseada na higiene e na harmonia familiar e social. Foi
precisamente aí onde Maria Montessori realizou suas primeiras pesquisas e
aprimorou sua metodologia que em seguida aplicou às escolas de pré-escolares
que continuaram chamando-se da mesma maneira. Decroly, por sua vez, seguiu
uma trajetória paralela, já que também em 1907, e depois de haver trabalhado
com crianças anormais, fundou a célebre "École de l'Ermitage" para crianças
normais. Tratava-se também de um centro de caráter experimental que exerceu
uma grande influência no campo educativo.
O regeneracionismo e o reformismo social constituíram a base teórica na
qual ambos renovadores se movimentaram, como demonstram em toda sua obra.
Maria Montessori diz explicitamente que sua metodologia e seu material têm
como finalidade alcançar a concentração, a perseverança e a auto -disciplina da
criança. A ação educativa deve produzir, ao final, uma personalidade equilibrada
e adaptada. Decroly, por sua vez, afirma que
na luta contra a degeneração e suas múltiplas conseqüências, a inter-
venção do médico deve, ao mesmo tempo, ser profilática e
terapêutica e o conceito terapêutico implica tratamento médico e
tratamento pedagógico.
Para entender as transformações que operam as pedagogias corretivas não é

21
Segers, J. A., En torno a Decroly, Madri: MEC, 1985, p. 32.
apenas preciso levar em conta o momento histórico no qual surgem, como
também a preocupação de seus autores pelas crianças anormais e seu trabalho
com elas. Suas produções estão vinculadas a questões políticas e sociais de
primeira ordem, à posição que estes reformadores adotam no campo social e à
prática que realizam nessas instituições especiais. Que significam suas
proclamações em favor de uma educação ativa e criativa que respeite o
desenvolvimento infantil [p.93] e permita "ao aluno" ser livre e autônomo? Para
poder responder a esta questão é preciso ir além das funções explícitas que
indicam seus sistemas educativos. Em sua rejeição das peda gogias
disciplinares se percebe a necessidade de evitar um controle considerado
exterior e demasiado coativo. Seu grande problema é como conseguir um novo
controle menos visível, menos opressivo e mais operativo. Para alcançá-lo, não
apenas situam a criança no centro do próprio processo educativo, fazendo
passar, em teoria, o mestre a um segundo plano, mas, além disso, fazem
coincidir um meio educativo "artificial", minuciosamente organizado e
preparado, com algumas supostas "necessidades naturais" da criança. Seus
sistemas teóricos implicam a aceitação de uma visão ideológica da
sociedade formada por indivíduos e aceitam também, como já assinalamos, o
positivismo evolucionista, o qual os leva a pensar que a história da educação,
em sua evolução ascendente, tem passado por um estágio teológico-dogmático-
autoritário - que identificam com a pedagogia tradicional -, e se encontra em
um estágio metafísico-revolucionário, que tende, com a ajuda das inovações que
eles mesmos introduzem, a alcançar um estágio científico-positivo que será o
resultado de estudos experimentais sobre a criança e do conhecimento das leis
que regem seu desenvolvimento.
O controle, portanto, que o mestre exercia no ensino tradicional através
da programação das atividades e dos exames, se desloca agora, tornando-se
indireto, para a organização do meio. E o objetivo, ao qual se volta já não é
a disciplina exterior, produto de um tempo e de um espaço disciplinares, mas
a disciplina interior, a autodisciplina, "a ordem interior".
Que novas formas de socialização são promovidas por estas pedagogias
corretivas que surgiram à sombra das "crianças anormais", e de instituições
especiais, para generalizar-se às pré-escolares e mais tarde às escolas de ensino
primário? Em primeiro lugar, supõem a afirmação de que existe a possibilidade
de uma socialização universal, individualizada, válida para qualquer sujeito,
desligada das classes sociais e do contexto [p.94]histórico e legitimada por
códigos chamados experimentais. As resistências a essa nova forma de socialização
podem ser, e serão desde então, tratadas como "desvios" individuais. Produz-se assim,
uma negação dos conflitos sociais e das lutas pela hegemonia social através da
construção da "criança natural". Seus interesses e necessidades já não estão ligados à
posição social, nem ao capital econômico e cultural familiar, senão que são
estritamente individuais. Daí o fato que alguns autores vejam nestas práticas pedagógicas
uma transferência dos princípios do liberalismo econômico ao âmbito da educação, já
que, de fato, ao deixar livre a concorrência entre os alunos, favorece a reprodução das
elites, permite a "seleção" dos "melhores" 22.
As pedagogias corretivas, ao colocar em ação novas técnicas pedagógicas
destinadas a condicionar o meio "à medida das necessidades e interesses infantis",
supõem uma transformação das categorias espaço-temporais nas quais irá se desenvolver
a atividade escolar. Neste sentido, a obra de Maria Montessori aparece como
exemplar ao se dirigir ao ensino pré-escolar. Construir um mundo adaptado ao aluno
implica uma mudança radical na organização da sala de aula, concebida agora como a
prolongação do corpo infantil, como um espaço proporcionado a suas necessidades de
observação e experimentação: salas claras e iluminadas, com móveis pequenos e de
formas variadas: pequenas mesas, pequenas cadeiras, pequenas poltronas, armários fáceis
de abrir, diminutos lavabos de fácil acesso, enfim, móveis leves, simples e
transportáveis. Configura-se assim todo um mundo "em miniatura" que rompe com a
rígida organização do espaço disciplinar no qual o estrado de madeira era o símbolo
da autoridade e o poder do mestre. Além deste mobiliário e de outros objetos
destinados a ensinar, a realizar atos da vida prática cotidiana, Montessori elaborou "o
material de desenvolvimento, sistemas de objetos - sólidos [p.95] encaixáveis,
tabuinhas, objetos geométricos, campainhas, cartazes, barrinhas... - para educar os
sentidos, a sensibilidade, aprender o alfabeto, os números, a leitura, a escritura
e a aritmética", A função da mestra consiste, neste caso, em ajudar a criança a
orientar-se entre estes variados objetos em contato com os quais, e trabalhando
com eles o tempo que deseje - o tempo disciplinar se rompe também e deixa
margem a um tempo cada vez mais subjetivo - poderá realizar uma aprendizagem
livre de coações. A mestra é, segundo suas palavras, "a guardiã e protetora do
meio".
Não há dúvida de que este modelo de educação, fortemente experimentalista,
vinculado aos postulados rousseaunianos e à educação das crianças "anormais"
(crianças, portanto, que se distraem facilmente, que fazem gestos desordenados e
para os quais o jogo é dificilmente reconduzível a trabalho) suscita toda uma
série de questões, ainda mais se levamos em conta que irá ser progressivamente
extrapolado para etapas posteriores do ensino. Na realidade, não apenas o
material, não apenas o espaço e o tempo devem adaptar-se às supostas
necessidades e interesses individuais dos alunos, como também os saberes. Para
Decroly, por exemplo, o método da globalização do ensino e seu programa dos
centros de interesse se inscrevem nessa direção e supõem uma modificação dos
programas escolares tradicionais e do trabalho escolar. A organização dos
conhecimentos deve ser feita de forma que esses estejam relacionados com as
necessidades fundamentais da vida da criança. A observação, a associação e a
expressão, assim como a supressão de horários fixos, estão na base deste ensino
"atrativo" através dos centros de interesse, um ensino que permitirá a cada aluno
adquirir, seguindo o processo cognoscitivo global próprio de sua idade, um
saber cuja organização já não corresponde à tradicional divisão em disciplinas.
Ainda que o método Montessori ou o método Decroly, seus "atrativos materiais"

22
Uma crítica fundada da Escola Nova foi formulada por G. Snyders, in Pedagogia progressista.
Coimbra, Almedina, 1974.
ou "os centros de interesse adaptados às necessidades infantis" fiquem distantes, na
atualidade, do que consideramos "atrativos" e "interessantes" para as crianças,
nem por isso podemos esquecer que foram os iniciadores de uma redefinição da
"infância" que [p.96] supôs a afirmação, na prática, de uma especificidade
teorizada por Rousseau, a qual constitui um dos pilares básicos de uma nova
construção e percepção do sujeito: o sujeito psicológico. O processo de
separação do mundo infantil e do mundo adulto caracteriza e põe em ação
um modelo de ensino para "lilipu tianos" no qual a manipulação, a observação
e a experimentação passam a um primeiro plano 23. A insistência nesta
"criança natural", em suas potencialidades criativas e expressivas, supõe
"uma infantilização" das crianças pequenas e, progressivamente, das crianças
em geral às quais essas pedagogias distanciam da possibilidade e
capacidade de compreensão do mundo dos adultos e, mais concretamente,
dos saberes da "cultura legítima", já que todo processo de objetivação tem
agora que partir da própria atividade individual e individualizada.
Vimos, na seção anterior, como o poder disciplinar havia surgido graças
a determinadas tecnologias de poder qu e se haviam começado a ensaiar
em certas instituições, entre as quais figuravam com um importante peso
as educativas, para logo se converterem numa tática geral na segunda
metade do século XVIII. Poder-se-ia avançar a hipótese de que a nova
forma de exercício do poder que se esboça no início do século XX, o
psicopoder, é gerido fundamentalmente nestas instituições educativas de
correção e de educação pré-escolar 24. Foram elas que serviram de ponta de
lança de novas tecnologias de poder, de novas formas de socialização que
supuseram uma determinada [p.97] visão do mundo, o que implicou uma
mudança no estatuto do saber e nas formas de produção da subjetividade.
O auge das pedagogias psicológicas: do psicopoder ao Homo clausus
O fato de que numerosos representantes da Escola Nova, assim como o
primeiro núcleo de especialistas em psicologia infantil, tenham sido médicos ou
tenham estado ligados à clínica, explica, em parte, o interesse que prestaram às
funções profiláticas e terapêuticas da educação, ao mesmo tempo que os coloca
em uma posição privilegiada frente às pedagogias tradicionais ou disciplinares
para impor suas teorias mais fundadas cientificamente. As perspectivas abertas
por eles se intensificaram e estenderam à medida que avançou o século XX. O

23
Na realidade, esta separação vem de longe. Richard Sennet demonstrou que a reorganização do espaço
social, do público e do privado, está ligada, ao menos a partir do século XVIII, a uma nova definição da
infância, às diferenças graduais que se estabelecem entre as formas de jogo das crianças e dos adultos e à
função do ato de amamentar os filhos que passam a ser de responsabilidade exclusiva da família. Cf.
Declínio do homem público. São Paulo, Companhia das Leiras, 1989.
24
Se observarmos outros âmbitos e instituições sociais - escola pública, colégios de ordens religiosas,
fábricas, quartéis, hospitais etc. - podemos comprovar que segue vigente nelas o exercício do poder
disciplinar. Assim pois, longe daqueles que conferem uma posição superestrutural às instituições
educativas, estas podem ser, e de fato têm sido, um espaço importante de experimentação e de inovação
social.
campo da psicologia escolar diversificou-se: psicologia genética, da aprendizagem,
infantil, evolutiva, da instrução, cognitiva, de educação especial etc. E converteu-
se no fundamento de toda ação educativa que aspirasse a ser científica.
Configuram-se assim as pedagogias psicológicas que fundam suas raízes nas
pedagogias corretivas. Uma vez mais, a gestão da anormalidade converteu-se em
ponta de lança do governo de populações mais amplas. Neste sentido, a infância
anormal, que parecia uma população residual e secundária, serviu, na condição de
objeto de tratamento e de técnicas, de laboratório de experimentação de novos
saberes e poderes com desejo de expansão.
Piaget e Freud, ambos ligados uma vez mais à clinica, irão constituir dois
referentes obrigatórios, a partir de finais dos anos 20, para a educação
institucional 25. Tanto eles, como [p.98] seus discípulos imediatos, apesar de os
sistemas teóricos que elaboraram serem muito diferentes, coincidem em perceber o
desenvolvimento infantil como etapas ou estágios progressivos e diferenciados,
supostamente universais. Psicanalistas e piagetianos situam a criança no centro do
processo educativo e atribuem ao mestre uma função de ajuda. O ensino, em
conseqüência, deve adequar-se cada vez mais aos interesses e necessidades dos
alunos, à sua suposta percepção específica do espaço e do tempo. A adaptação
continua sendo o objetivo principal da educação. Não foi em vão que Piaget fez
sua a frase de Binet segundo a qual "a adaptação é a lei soberana da vida", e
para Freud o processo de sublimação conduz ao homem civilizado. A atividade
segue ocupando o primeiro lugar nessas teorias da aprendizagem e, no caso
concreto de Piaget, os exercícios sensório-motores não apenas fazem parte do
desenvolvimento da motricidade como jogam um importante papel no desempenho
cognitivo. Neste sentido, situa-se em linha direta em relação com os promotores
das pedagogias corretivas.
A que formas de regulação social, ou seja, de exercício do poder,
encaminham essas formas de socialização escolar? Para responder a esta
questão é necessário uma vez mais remeter esta instituição a uma configuração
social mais ampla, sem esquecer os enfrentamentos e os conflitos sociais. Tudo
parece indicar que foram certos grupos da burguesia os que desde os anos trinta
aceitaram para seus filhos pequenos estes modos de educação ligados em sua
origem às pedagogias corretivas. Tais grupos não pertenciam à burguesia
tradicional, que continuava aspirando a uma formação para seus filhos que
expressasse e, se possível, reforçasse sua posição de poder e prestígio, e lhes
conferisse uma identidade social e individual clara, forte e bem delimitada.

25
A primeira obra de J. Piaget, Le langage et la pensée chez l'enfant foi publicada em 1923 e é também
por essa época que começa a vulgarização da psicanálise. E assim, entre os numerosos colaboradores da
Revista de Pedagogia (fundada em 1922 por Lorenzo Luzuriaga), não apenas figuram todos os membros
da Escola Nova como também psicanalistas e, entre eles, Oskar Pfister, que publicou durante esta década
um texto de grande influência, El psicoanálisis y la educación.
As pedagogias psicológicas caracterizam-se por um controle exterior frágil:
a criatividade e a atividade infantis são promovidas e potencializadas e as
categorias espaço-temporais devem ser flexíveis e adaptáveis às necessidades de
desenvol-[p.99]vimento dos alunos. Mas, nelas, o controle interior é cada vez mais
forte, já que agora não se baseia predominantemente na organização e planificação
minuciosa do meio, mas em normas cientificamente marcadas pelos estágios do
desenvolvimento infantil. Como muito bem expressa Valerie Walkerdine, as
estratégias pedagógicas destinadas a um desenvolvimento sem coações desta suposta
"criança natural e universal" "implicavam uma constante programação e vigilância do
que se considerava o desenvolvimento ‗correto‘". Poder-se-ia dizer sem dúvida que,
como por ironia, esta criança foi vigiada e controlada muito mais do que nas "velhas
pedagogias", porque não apenas se requeriam dela as respostas corretas, mas também agora
era necessário que mesmo seu verdadeiro mecanismo do desenvolvimento fosse
controlado 26. Os alunos têm assim cada vez um menor controle sobre sua própria
aprendizagem, já que apenas os mestres, e sobretudo os especialistas, podem conhecer os
progressos ou retrocessos que realizam. A verdade sobre eles mesmos e seus verdadeiros
interesses torna-se uma realidade distante e alheia. Sofrem, portanto, um processo de
expropriação cada vez mais intenso que constitui a outra face da intensificação de um
estatuto de minoria que, além dos cânticos à criatividade, à liberação e à autonomia,
supõe dependência e subordinação cada vez maiores.
À medida que nos adentramos na década de 60 poderia, talvez, afirmar-se que as
leis e os estágios de desenvolvimento começam a ser substituídos ou, em todo caso, a
verem-se solapados, pelas leis do ritmo, mais diretamente vinculadas a certas correntes
de vulgarização da psicanálise, que colocam no centro do processo de aprendizagem
o ritmo individual e as relações interpessoais. Cada aluno tem um ritmo próprio,
específico, que deve ser respeitado. Toda ação educativa deve procurar que o aluno se
expresse, se manifeste, encontre seu [p.100] estilo próprio, redescubra uma suposta
"natureza natural" original e livre de coações. A expressão, a comunicação, a
criatividade, as relações interpessoais — reduzidas a um jogo de status, de papéis, de
funções — são chamadas a desempenhar neste marco uma função liberadora. Daí que
as leis do ritmo estejam diretamente relacionadas ao desenvolvimento do corpo, das
linguagens, da gestualidade, da imagem: esporte, expressão corporal e verbal, teatro,
psicodrama, dinâmica de grupos, mímica, música, dança e outras atividades que supõem
determinadas operações de coordenação e de percepção espaço-temporais passam a fazer
parte da educação institucional.
Muitos são os inspiradores destas pedagogias cada vez mais psicologizadas, que
vão desde J. L. Moreno e K. Rogers até G. Bateson — o qual trabalhou no hospital
psiquiátrico de Palo Alto — e cujo modelo de interpretação da realidade parece ter
influído na visão do grupo como jogo de interações. O grupo, um grupo psicologizado,

26
Cf. Walkerdine. V. "Enseñaza comprensiva y educación progresiva en Gran Bretaña", em Educar, para
qué? Revista Archipiélago, n. 6, 1991, pp. 20-6.
adquire assim um especial destaque ao servir de catalisador e regulador de tensões:
reforça a imagem de cada aluno, sublima conflitos e ajuda a superar deficiências afetivas.
Daí que, segundo algumas correntes, aprender consista em aprender a expressar-se
`livremente". Ao mestre atribuem-se novos dispositivos de controles sutis, já que é quem
interpreta aquilo que perpassa o manejo de códigos cada vez mais sofisticados e
sempre em um suposto clima de não-diretividade 27. A ação educativa aproxima-se, desta
forma, a uma espécie de psicoterapia cujos pilares são também a expressão e a liberação
de energia, e a aprendizagem adota a forma de uma catharsis cuja finalidade seria
desbloquear e eliminar resistências.
Toda essa literatura que se centra na atividade, na criatividade, na espontaneidade,
enfim, na liberação, parte em geral da premissa de que o aluno - no singular e
masculino - [p.101] pode liberar-se - não ser livre - mediante um intenso e
sistemático trabalho sobre si mesmo, mediante um processo de
personalização - não mais de individualização. A noção de indivíduo,
característica do processo de individualização, já é mais adequada a sistemas,
como o de personalização, que enfatizam a diversidade e uma relação entre
pessoas que, em teoria, se opõe a uma relação baseada no status.
As pedagogias psicológicas transmitem uma visão enviesada do mundo que
tem de se adaptar não apenas a algumas supostas necessidades e interesses infantis
como também a suas motivações e desejos. Tal versão implica uma
determinada percepção da infância e, correlativamente, da idade adulta, e isso
não apenas porque se acredita que a resolução de conflitos que se produzem na
infância são determinantes no futuro desenvolvimento pessoal. Por trás destas
racionalizações, reformas e mudanças de modelos pedagógicos se escondem na
realidade batalhas e interesses entre grupos sociais que tratam de impor e
legitimar sua própria visão do mundo e da cultura 28. O sistema de regulação
espaço-temporal com o qual operam implica uma flexibilização máxima do
tempo e do espaço ao ter que se adaptar as distintas tarefas da aprendizagem,
como destacamos, ao ritmo interno de cada aluno, à dinâmica particular de cada
grupo. Neste sentido, a classe é percebida, em sua organização, através de uma
ótica psicológica (interações, papéis, líderes, grupos dominados...) passando agora
o controle, como acertadamente observou Basil Bernstein, pela comunicação
29
interpessoal . Os saberes, os conteúdos perdem assim
progres-[p.102]sivamente seu valor, pois já não se trata tanto de transmitir

27
Um dos "ensaios" mais conhecidos, baseado em princípios psicanalíticos, foi o de Summerhill: uma
instituição dedicada também à educação de crianças e adolescentes "inadaptados" das "novas classes
médias", e destinada à liberação e à afirmação radical da criança como bom selvagem.
28
Cf. Varela. J. "Una reforma educativa para las nuevas clases medias", em Educar para quê?,
Archipiélago, n. 6, 1991, p. 65-71.
29
Basil Bernstein, um dos sociólogos da educação mais lúcido e coerente, é também um dos poucos
autores que tem tentado relacionar a sociologia do conhecimento - não em vão é um bom conhecedor de
Durkheim - com a sociologia da educação. Nosso questionamento apresenta muitas afinidades com o seu,
mas se diferencia dele, entre outras coisas, pelo fato de que Bernstein, mais do que se referir a categorias
de pensamento, utiliza conceitos tais como "formas de classificação" e "marcos de referência", no
momento de definir as pedagogias visíveis e invisíveis, e concede uma menor importância às formas de
subjetivação.
saberes, nem de partir — em caso extremo — da globalização de destrezas
múltiplas ligadas à "relação", que se converte no motor da formação.
Aprender a aprender é, em última instância, aprender a escutar-se através
dos outros. Frente ao poder disciplinar, característico das pedagogias tradicionais,
o psicopoder, característico das pedagogias psicológicas, baseia-se em tecnologias
cuja aplicação implica uma relação que torna os alunos tanto mais dependentes e
manipuláveis quanto mais liberados se acreditem.
Explica-se, pois, que esteja no auge uma programação educativa opcional,
preparada e disponível, na qual o culto à personalização se incrementa. A educação
institucional volta-se cada vez mais à busca de si mesmo, a viver livremente sem
coações, sem esforço, no presente. Trata-se de formar seres comunicativos,
criativos, expressivos, empáticos, que interajam e comuniquem bem. Essas
personalidades flexíveis, sensíveis, polivalentes e "automonitorizadas" — capazes
de autocorrigir-se e auto-avaliar-se — estão em estreita interdependência com
um neoliberalismo consumista que tão bem se harmoniza com identidades
moldáveis e diversificadas em um mercado de trabalho cambiante e flexível que
precisa de trabalhadores preparados e disponíveis para funcionar.
Um dos autores que cantam as vantagens deste neoliberalismo e destacam o
vertiginoso campo de possibilidades que, segundo dizem, existe no presente,
incluídas as do processo de personalização, escreve:
A apatia (atual) não é um deleito de socialização, mas uma
socialização flexível e econômica, uma expansão necessária
para o funcionamento do capitalismo moderno enquanto
sistema experimental acelerado e sistemático. Fundado na
combinação incessante de possibilidades, inéditas, o
capitalismo encontra na indiferença uma condição ideal para
sua experimentação que pode cumprir-se assim como um
mínimo de resistência. 30 [p.103]
O texto é suficientemente claro em relação a esta espécie de harmonia
preestabelecida entre as exigências de uma neocapitalismo agressivo e a
construção de "personalidades apáticas".
O peso tão forte que adquirem os especialistas na vida cotidiana e
especialmente os psi (psiquiatras, psicanalistas, psicólogos) justifica que outros
analistas sociais vejam nesta busca incessante e insatisfatória de si próprios uma
dimensão prototípica da atual sociedade terapêutica. A crescente preocupação por
si próprio, a popularização, nos países de capitalismo avançado, das terapias
paranormais, a identificação cada vez maior do eu com o corpo e com a
imagem, o auge de um misticismo e espiritualismo sectários, assim como dos
fundamentalismos, enfim, todos estes fatores estariam intimamente vinculados a
uma sociedade burocratizada e consumista na qual abundam personalidades
narcisistas. Frente ao individualismo resultado de tecnologias de poder

30
Cf. Lipovetsky. G. Império do efêmero: a moda e seu destino nas sociedades modernas. São Paulo,
Companhia das Letras, 1989.
disciplinares - no qual o sujeito tinha que se fazer a si mesmo, ser competitivo e
ambicioso e alcançar o sucesso "graças a suas capacidades e méritos próprios", o
narcisismo - resultado de tecnologias de psicopoder - seria próprio de sujeitos
voltados sobretudo à conquista e ao cuidado de si próprios, à busca da riqueza
e da paz interiores. O mundo dos afetos e dos desejos parece, pois, predominar
neste tipo de subjetividade fechada, para a qual o amor, a amizade, a
generosidade, o trabalho bem-feito, a confrontação dos desejos com as realidades e
as possibilidades de compreender e transformar o mundo que nos rodeia parecem
distanciar-se cada vez mais, pois, como temos tentado mostrar, a formação destas
subjetividades enclausuradas está em estreita relação, não apenas com a aplicação de
específicas tecnologias de poder, mas também com a psicologização e
pedagogização dos saberes. É como se as instituições escolares que funcionam com
pedagogias psicológicas se afastassem nas primeiras etapas de formação da função
explícita da transmissão de saberes, como se a paixão pelo conhecimento e a
compreensão dos mundos da natureza e da cultura se vissem relegados ou quase
excluídos em detrimento de um processo de formação de [p.104]
personalidades apenas encoberto mediante referências ao lúdi co-tecnológico, a
processos de simulação de problemas, a jogos na "realidade virtual" que fazem
de muitas destas escolas verdadeiros parques de alucinado entretenimento.
Christopher Lasch, em uma espécie de tipologia da personalidade narcisista -
para quem o mundo e os demais são um reflexo do eu -, apresenta-a como
própria de pessoas encantadoras que manejam bem suas relações com os demais,
são brilhantes, obsequiosas e sedutoras, movem-se bem em encontros
esporádicos e superficiais, evitam o compromisso, anseiam estima e
reconhecimento, temem o passar do tempo, têm fantasias de onipotência e se
crêem com direito a manipular e explorar a quem as rodeia 31. Essa exitosa
"personalidade" de nossos dias está ligada à utopia de um exercício de poder
cada vez menos visível, mais capilar e microscópico que se incorpora em formas
de socialização e em modos de educação específicos, e que produz "um corpo
próprio", frente ao corpo-segmento do poder disciplinar. O narcisismo constitui,
certamente, um paradigma de subjetividade a qual apenas podem se aproximar
alguns dos indivíduos existentes que, por pertencer a determinados grupos sociais,
podem rentabilizar ao máximo esse "capital relacional" tão em alta na
atualidade.
As mudanças que se têm operado nas últimas décadas e que, como estamos
vendo, incidem cm uma percepção e em uma construção determinada do
mundo, dos saberes e dos sujeitos - percepção que coexiste com outras
percepções e culturas -, implicam modificações importantes nas formas de
conceber e interiorizar as regulações espaço-temporais: tempos e espaços
flexíveis e adaptáveis às motivações e desejos do sujeito no presente. Tais
processos nos obrigam a nos perguntar se não estão ligados ao que se

31
Cf. Lasch, Ch. A cultura do narcisismo. Rio de Janeiro, Tinago. 1983.
convencionou chamar a perda do sentido histórico — o tão propagado fim da
história —, da memória histórica, a qual suporia uma ruptura com relação à
percepção social do tempo como continuum. Esta ruptura [p.105] não apenas
incidiria na visão do mundo como também na da própria identidade pessoal: na
atualidade, quando alguns parecem alardear possuir múltiplos eus, a grande
maioria dos sujeitos tem trabalho suficiente para tratar de manter o que
adquiriram com dificuldades e que, em muitos casos, implica uma consciência de
fragilidade que leva a uma busca de ajuda e de tratamento.
A este tempo e espaço subjetivados, psicologizados e "interiores" se
oporiam, em nossos dias, espaços e tempos sociais, objetivos, "exteriores", cada
vez mais regrados e coativos. Frente ao tempo e espaço públicos, cuja
regulação depende dos profissionais da política, da Administração e de um
sem-fim de peritos, o tempo e o espaço privatizados são percebidos pelos sujeitos
como algo pessoal e próprio, "íntimo", um reduto onde expressar-se e expressar
seu próprio eu supostamente sem reações e interferências.
Norbert Elias, que analisa com grande lucidez, a partir de outra
perspectiva, alguns dos processos que tentamos ligar à socialização escolar,
mostra como, nas sociedades ocidentais, foi-se conferindo, através de uma lenta
aprendizagem social, mais valor à "identidade como eu" que à "identidade
como nós". Existe, no entanto, para isso, uma discordância entre esse desejo
construído e estimulado socialmente de autonomia, criatividade e liberação pessoal
- que supõe uma ampla margem de escolha a que apenas tem acesso uma
minoria - e as possibilidades reais de satisfazê-lo, já que os modos e âmbitos
para consegui-lo estão fortemente delimitados e são de difícil acesso. Daí que
frente à sensação de auto-realização de uns poucos, a maioria manifeste um mal-
estar de viver caracterizado pela apatia, o vazio e a culpa. Esta sensação de
fracasso existencial continuará existindo, em sua opinião, enquanto não se
produzir um maior ajuste entre a configuração social das necessidades e desejos
e as possibilidades socialmente abertas para canalizá-los, ou seja, enquanto se
continue aprofundando a divisão e separação entre "o exterior" e "o interior",
entre o público e o privado, separação que carrega importantes [p.106]
conflitos atualmente existentes, ao mesmo tempo que serve para ocultá-los e
escamoteá-los. O Homo clausus é correlativo de uma sociedade na qual
desapareceram as paixões políticas, tem-se psicologizado e burocratizado as
decisões, prima o nível de vida sobre a qualidade de vida, enfim, onde não
apenas as crianças, como também os adultos, se converteram em seres
"egocêntricos" 32.
A escola não é alheia a estes desajustes nos quais se forjam a
insolidariedade, a solidão e a dependência e infantilização dos homens. São

32
Robert Castel tem mostrado com lucidez em vários de seus livros até que ponto o auge da cultura
psicológica, a afanosa busca da liberação individual, supõe um parêntese das relações sociais que serve de
parapeito também à própria psicologia como instituição. Cf. O psicanalismo, Rio de Janeiro, Graal, 1978;
La societé psychiatrique avancée, Paris, Grasset, 1979; e La gestion des risques. Paris, Minuit. 1981.
muitos os que pensam que as instituições escolares carecem de autonomia e se
movem como um barco a vela à mercê dos ventos que sopram. Mas seu papel
não é tão subordinado, nem tão secundário como tantas vezes se pretende. A
transmissão de categorias de pensamento na escola e sua interiorização são hoje
fundamentais para a manutenção do status quo, da ordem escolar e da ordem
social. Neste sentido, as análises e as discussões sobre a organização das escolas
não podem, hoje, evitar os problemas relacionados com as categorias, as formas
de subjetividade, o estatuto do saber e os mecanismos de poder . Em torno destas
dimensões giram não apenas a mudança escolar como também a mudança social.
As alternativas, portanto, à escola disciplinar e à escola psicologizada poderiam
servir de lugar de encontro para os que, tanto a partir da teoria como a partir da
prática, seguem comprometidos na busca de novos modos de educação que
promovam uma sociedade mais igualitária e mais livre.

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