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(Coordenadora)
Mediação
de conflitos
Novo paradigma de acesso à justiça
2ª edição
2015
1
CONSELHO EDITORIAL
Prof. Dr. Alexandre Morais da Rosa – Direito – UFSC e UNIVALI/Brasil
Prof. Dr. Alvaro Sanchez Bravo – Direito – Universidad de Sevilla/Espanha
Profª. Drª. Angela Condello – Direito - Roma Tre/Itália
Prof. Dr. Carlos M. Carcova – Direito – UBA/Argentina
Prof. Dr. Demétrio de Azeredo Soster – Ciências da Comunicação – UNISC/Brasil
Prof. Dr. Doglas César Lucas – Direito – UNIJUI/Brasil
Prof. Dr. Eduardo Devés – Direito e Filosofia – USACH/Chile
Prof. Dr. Eligio Resta – Direito – Roma Tre/Itália
Profª. Drª. Gabriela Maia Rebouças – Direito – UNIT/SE/Brasil
Prof. Dr. Gilmar Antonio Bedin – Direito – UNIJUI/Brasil
Prof. Dr. Giuseppe Ricotta – Sociologia – SAPIENZA Università di Roma/Itália
Prof. Dr. Gustavo Raposo Pereira Feitosa – Direito – UNIFOR/UFC/Brasil
Prof. Dr. Humberto Dalla Bernardina de Pinho – Direito – UERJ/UNESA/Brasil
Prof. Dr. Ingo Wolfgang Sarlet – Direito – PUCRS/Brasil
Prof.ª Drª. Jane Lúcia Berwanger – Direito – UNISC/Brasil
Prof. Dr. João Pedro Schmidt – Ciência Política – UNISC/Brasil
Prof. Dr. Jose Luis Bolzan de Morais – Direito – UNISINOS/Brasil
Profª. Drª. Kathrin Lerrer Rosenfield – Filosofia, Literatura e Artes – UFRGS/Brasil
Profª. Drª. Katia Ballacchino – Antropologia Cultural – Università del Molise/Itália
Profª. Drª. Lilia Maia de Morais Sales – Direito – UNIFOR/Brasil
Prof. Dr. Luís Manuel Teles de Menezes Leitão – Direito – Universidade de Lisboa/Portugal
Prof. Dr. Luiz Rodrigues Wambier – Direito – UNIPAR/Brasil
Profª. Drª. Nuria Belloso Martín – Direito – Universidade de Burgos/Espanha
Prof. Dr. Sidney César Silva Guerra – Direito – UFRJ/Brasil
Profª. Drª. Silvia Virginia Coutinho Areosa – Psicologia Social – UNISC/Brasil
Prof. Dr. Ulises Cano-Castillo – Energia e Materiais Avançados – IIE/México
Profª. Drª. Virgínia Appleyard – Biomedicina – University of Dundee/ Escócia
Profª. Drª. Virgínia Elizabeta Etges – Geografia – UNISC/Brasil
COMITÊ EDITORIAL
Profª. Drª. Fabiana Marion Spengler – Direito – UNISC e UNIJUI/Brasil
Prof. Me. Theobaldo Spengler Neto – Direito – UNISC/Brasil
2
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404 p.
3
Sumário
Apresentação 10
PARTE I 15
Noções Gerais
4
6 Importante inovação: mediação on-line ou a distância 76
7 Considerações finais: o potencial da mediação 76
Referências 77
5
5 Valores a serem positivados 105
6 A atuação do mediador, a questão ética, o comprometimento de sua atuação e os reflexos na 108
aceitação e permanência do instituto
7 Conclusão 113
Referências 113
PARTE II 157
Aplicação da Mediação
6
O componente de mediação vítima-ofensor na Justiça Restaurativa: uma breve 183
apresentação de uma inovação epistemológica na autocomposição penal
André Gomma de Azevedo
1 Introdução 183
2 Justiça Restaurativa e mediação vítima-ofensor: concei-tos 189
3 Características procedimentais da mediação vítima-ofensor 194
3.1 Pré-seleção de casos 194
3.2 Preparação para a mediação 194
3.3 Mediação vítima-ofensor 195
4 Conclusão 198
Referências 199
203
Mediação em relações de trabalho no Brasil
Antônio Rodrigues de Freitas Jr.
1 O papel da mediação na solução de conflitos de justiça 203
2 Conceituação de conflito 204
3 Conflitos aos quais se aplica a mediação 209
3.1 Relações entre sujeitos constitutivamente desiguais não comportam mediação? 210
4 Considerações finais 214
Referências 215
7
1 Apresentação 269
2 Origem da cláusula “med-arb” 269
3 Conflitos societários: ênfase na empresa familiar 271
4 Inconveniência do recurso ao procedimento judicial 271
5 Aspectos positivos do processo de mediação para os conflitos societários 272
6 Objetivos que se pretendem alcançar com a aplicação da técnica de mediação 273
6.1 Construir um novo espaço adequado para uma negociação produtiva 273
6.2 Despersonalizar o conflito 274
6.3 Transformar uma negociação baseada em “posições” em uma negociação baseada em interesses 275
6.4 Adotar uma orientação com vistas ao futuro 276
7 Conclusão: a importância do “design” da cláusula med-arb. 277
Referências 280
8
5 As medidas necessárias para a viabilização da resolução consensual de conflitos coletivos 339
envolvendo o Poder Público
6 O capítulo dos conflitos que envolvem o Poder Público na nova lei sobre mediação de conflitos 342
6.1 Seção I - Disposições comuns às três esferas federativas 342
6.2 Seção II - Conflitos envolvendo entes públicos federais 345
7 Conclusões 349
9
Apresentação
A mediação se inscreve em diversas culturas e tradições legais como expediente
ao mesmo tempo singelo e eficaz de resolução pacífica de conflitos. Sua regulação por
meio de instrumentos legais formais pode ou não ser considerada apropriada.
No Brasil, na esteira da bem sucedida regulação da arbitragem, por meio da
Lei nº 9.307/96 1, bem como da jurisprudência e da prática subsequentes, entendeu-se
que seria oportuna equivalente ordenação da mediação. Diante de tantas iniciativas de
mediação já existentes tanto na seara judicial quanto no âmbito extrajudicial, durante
muito tempo a comunidade que trabalha com o tema debateu se seria de fato necessária
uma lei específica para fomentar a institucionalização da mediação no Brasil, sendo que o
primeiro projeto de lei a respeito foi apresentado nos idos de 1998, pela deputada federal
paulista Zulaiê Cobra (PL 4827/1998). A ele se seguiram diversos outros2 e agora, com
a edição da Lei 13.140, de 26 de junho de 2015, esta questão resta prejudicada. Vale
ressaltar que também o novo Código de Processo Civil contém um capítulo tratando da
mediação e da conciliação de conflitos na esfera judicial.
Resta-nos agora, além de continuar a estudar e divulgar o instituto, sua
importância e modo de funcionamento, analisar de forma crítica o conteúdo da lei que
veio a disciplinar o tema, além das bases culturais que permitem melhor compreender e
aplicar este instituto. A ideia dessa obra coletiva, nos idos de 2006, partiu do Professor
Paulo Borba Casella, um dos coordenadores de sua primeira edição, que por este motivo
merece um agradecimento especial3.
A mediação deve ser compreendida no que concerne aos tipos de conflitos que
por meio desta possam ser solucionados, assim como no que diz respeito à adequação da
obrigatoriedade de realização da mediação em diversas situações, ou, ainda, no que tange
a participação de advogados no processo — para mencionar apenas algumas das questões
mais controvertidas e necessárias para que se compreenda a natureza da mediação e a
1 Recentemente, foi aprovada legislação atualizando a lei de arbitragem – por sinal recheada de polêmicas, tal como
ocorreu quando a Lei 9.307 foi promulgada em 1996. A nova lei veio a solucionar algumas dúvidas quanto à abran-
gência da arbitragem, mas faltou maior diálogo com a comunidade afetada no que concerne aos conflitos de natureza
trabalhista e consumerista, para se chegar a um consenso quanto a uma solução viável e aceitável para todos. Também
perdeu-se a oportunidade de avançar em alguns temas necessários, ensejando possivelmente nova reforma para breve.
2 No Senado, merece destaque o projeto de lei de autoria do Senador capixaba Ricardo Ferraço (PLS 517/2011), que
contou com a assessoria de alguns especialistas no assunto na sua elaboração (Prof. Humberto Dalla Bernardina de
Pinho, mediadora Gabriela Asmar e Juíza Trícia Navarro). Esse projeto foi aproveitado em parte na redação final da
nova lei. Existe também na Câmara um projeto de lei (PLC 4891/2005) que cria as profissões de mediador e árbitro,
com parecer do relator favorável à sua aprovação, com exceção de alguns dispositivos eivados de inconstitucionalidade
formal. Além destes, há diversos outros projetos de lei propondo a utilização da mediação para conflitos específicos.
3 Agradeço também de modo especial aos autores que, como eu, atualizaram seus artigos para esta edição: Tania Al-
meida, Roberto Bacellar, Adolfo Braga Neto, Wei Dan, Henrique Gomm Neto, Ariane Gontijo e Giselle Cruz e Ivan
Ruiz. Já a mediadora Célia Zapparolli passou a integrar o grupo de coautores desta obra a partir desta segunda edição.
10
Apresentação
suas possíveis aplicações. As vicissitudes por que passaram os diferentes projetos de lei a
respeito da matéria em nada mudam o interesse e a relevância do tema. De fato, proliferam
há muitos anos no Brasil, muitas vezes com grandes limitações, programas patrocinados
por entidades, públicas e privadas, dispostos a trabalhar com a mediação, a qual acarreta
grande mudança na compreensão do acesso à justiça, bem assim multiplicam-se as
pesquisas acadêmicas que têm se dedicado ao estudo do instituto.
Afinal, os problemas que afligem os brasileiros carentes de meios eficazes de
solução de “conflitos de justiça”, como os denomina o Professor Antônio Rodrigues de
Freitas Jr. (USP), continuam presentes. O Judiciário se vê acuado por demanda crescente,
ante a evidente impossibilidade do sistema contencioso tradicional sustentar, a longo
prazo, tal volume de expectativas e necessidades sociais, como ressalta o Professor Roberto
Portugal Bacellar (PUC/PR) em seu artigo.
O dado mais grave da situação, imperativo salientar, é que os problemas da
solução judicial de conflitos não se restringem ao aspecto da morosidade, pois, muitas
vezes, ao final do processo tradicional, não se obtém nenhuma pacificação social, não se
resolve o problema que levou os envolvidos ao Judiciário, os quais são apenas substituídos
e, algumas vezes, agravados, como mostra o Professor André Gomma de Azevedo (UnB)
em seu trabalho, ao confrontar a perspectiva destrutiva dos métodos contenciosos
tradicionais com a perspectiva construtiva dos métodos consensuais de resolução de
conflitos. Todavia, como também demonstra este mesmo autor, se não adequadamente
manejados, também os novos meios podem falhar em sanear o déficit de justiça que
acomete os envolvidos em conflitos de natureza jurídica.
Meu primeiro artigo nesta obra busca mostrar como a mediação pode contribuir
para sanear os diversos obstáculos para acesso à justiça em sentido pleno e como contribuição
determinante para o desenvolvimento institucional – aspecto indispensável para qualquer
país cujo desenvolvimento se entenda como criação de oportunidades para que as pessoas
realizem o seu potencial. Nele, realizo ainda uma descrição crítica dos projetos de lei
que tramitaram perante o Poder Legislativo no Brasil tratando da institucionalização da
mediação, confrontando-os com a legislação argentina sobre o assunto, bem assim com
a legislação colombiana sobre conciliação. Nesta nova edição, abordo, além do primeiro
projeto de lei sobre o tema (PLC 4827/1998), os dois projetos que foram apresentados no
Senado Federal bem mais tarde (PLC 517/2011 e 405/2013), assim comoo anteprojeto
elaborado por Comissão de Especialistas criada pelo Ministério da Justiça também em
2013 – culminando pela análise da redação final que constou na nova Lei de Mediação
de Conflitos. Além disso, abordo os dispositivos do novo Código de Processo Civil que
versam sobre o tema e, ainda, a Resolução 125, de 2010, do Conselho Nacional de Justiça,
ressaltando que estes dois últimos diplomas normativos dispõem tanto sobre mediação
quanto sobre conciliação de conflitos.
Também é importantíssimo distinguir, como faz muito bem o trabalho da
mediadora Tania Almeida (Mediare), a mera obtenção do acordo, objetivo principal da
11
Apresentação
12
Apresentação
Por fim, contamos também com dois artigos que descrevem experiências de
mediação em outros países: um de autoria da Professora Déborah Lídia Lobo Muniz, que
estudou os sistemas de mediação de Portugal, França e Costa Rica, comparando os sistemas
ali existentes com o primeiro projeto de lei brasileiro que propôs a institucionalização da
mediação (PLC 4827/1998), e outro da Professora Wei Dan (Universidade de Macau),
outra convidada internacional, no qual descreve a secular utilização da mediação para
solução de conflitos na China.
Esperamos, assim, contribuir para difundir maior conhecimento e mais
adequada implementação deste singelo mas revolucionário instrumento de realização do
acesso à justiça que é a mediação, que se caracteriza sobretudo por seu caráter democrático
(por buscar uma solução criada pelas próprias partes em conflito), pedagógico (por
possibilitar às partes aprenderem a se comunicar e administrar os problemas em comum)
e preventivo (ao evitar o surgimento de novos conflitos, em situações similares, por meio
do aprendizado obtido pelas partes).
Fica cada vez mais evidente que a solução contenciosa deve ser evitada ao
máximo: o processo judicial tradicional está para a realização de direitos como a cirurgia
está para a conservação da saúde — trata-se de caminho caro, arriscado e ao qual somente
se recorre quando falhou a prevenção e o diagnóstico do problema chegou muito tarde,
não havendo mais condições de trabalhar nas causas. Aprender a exercer direitos de
forma pacífica seria, assim, um pouco como aprender a cuidar da própria saúde: algo
que se aprende um pouco mais a cada problema, e exige monitoramento constante, mas
consiste em condição fundamental para o desenvolvimento pessoal, ao qual todos os seres
humanos estão destinados — afinal, sem saúde e paz, é impossível alcançar a felicidade.
A coordenadora
13
14
PARTE I
Noções Gerais
15
16
Fatores de efetividade de
processos de resolução de disputas: uma análise
sob a perspectiva construtivista4
1 Introdução
Refletindo característica de um moderno ordenamento jurídico (CARREIRA
ALVIM, 1993, p. 14; CINTRA; GRINOVER; DINAMARCO, 2002, p. 20;
COUTURE, 1958, p. 10), o direito processual brasileiro, na sua vocação preponderante
de servir como instrumento para a efetiva realização de direitos materiais (GRINOVER,
1990, p. 7) e a pacificação social, tem gradativamente se aproximado de novos instrumentos
de composição de disputas, inserindo-os nas tradicionais formas de resolução de
conflitos: autocomposição (e.g., mediação) e heterocomposição (e.g., arbitragem). Todavia,
como reflexo do amadurecimento no Brasil desses novos mecanismos de resolução
de disputas, há crescente preocupação com a efetividade desses processos. Em alguns
casos, há arbitragens cujos custos excederam aqueles projetados para a eventualidade
da disputa ser conduzida no processo judicial, em outros as arbitragens são conduzidas
por pessoas que se apresentam como “juízes arbitrais” conduzindo procedimentos de
arbitragem travestidos de processos judiciais e há casos em que o desenvolvimento
da arbitragem se elastece excessivamente.5 Há também alguns artigos doutrinários
4 Texto elaborado a partir de palestras proferidas no Curso de pós-graduação lato sensu em Arbitragem e Me-
diação da Fundação Getúlio Vargas/SP (GVLaw), em 7.7.2004, e no 2º Congresso do Instituto Brasileiro de
Estudos do Direito da Energia, em 9.11.2004, na Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP),
bem como em artigos publicados na Revista dos Juizados Especiais, do Tribunal de Justiça do Estado da Bahia,
e na obra Estudos em arbitragem, mediação e negociação, v. 3. Meus agradecimentos especiais ao Professor Ivan
Machado Barbosa pelas críticas e comentários, bem como pelo trabalho de revisão de texto.
5 Recentemente, a Petróleo Brasileiro S/A (Petrobras) firmou termo de conciliação encerrando uma arbitragem,
conduzida pela Corte de Arbitragem da Câmara de Comércio Internacional (CCI), movida em desfavor de país
do continente africano e que durava quase uma década. Os termos dessa conciliação não podem ser reproduzidos
em razão da política de confidencialidade da CCI.
17
Fatores de efetividade de processos de resolução de disputas
6 Cabe registrar que, segundo uma perspectiva tradicional de direito processual, a jurisdição é considerada
como uma “atividade secundária”, sendo definida, portanto, como poder estatal atribuído a uma determinada
autoridade para aplicar a norma ao fato concreto, visando à composição de lides em razão da inexistência
dessa resolução de controvérsia ter sido alcançada espontaneamente pelas partes. Assim, o dever principal ou
primário de resolução de conflito é considerado como sendo das próprias partes — devendo o Estado intervir
tão somente quanto as partes não são bem sucedidas nesta atividade. Sob esta ótica da “substitutividade da
jurisdição” (CHIOVENDA, 2000, p. 17), pode-se afirmar que a principal forma de resolução de disputas é a
negociação entre as partes e a forma “alternativa” seria a intervenção estatal por meio da jurisdição.
7 Cf. relatório de atividades do Programa de Estímulo à Mediação do Tribunal de Justiça do Distrito Federal
e Territórios. Disponível em: <http://www.tjdf.gov.br>.
8 Cabe destacar que três capítulos desse trabalho foram traduzidos, e podem ser encontrados em: Azevedo
(2003, v. 3).
18
André Gomma de Azevedo
9 Por esse motivo, muitas instituições de arbitragem recomendam que, antes de iniciado o procedimento heterocom-
positivo propriamente dito, as partes sejam direcionadas a uma breve fase autocompositiva ou a um mediador para que
estas possam dirimir eventuais questões que não sejam juridicamente tuteladas (e.g., falha de comunicação) ou especi-
ficamente objeto da arbitragem, mas que tenham contribuído para o agravamento do conflito ou — na melhor das
hipóteses — as próprias partes possam dirimir sua disputa, prescindindo do regular desenvolvimento da arbitragem.
19
Fatores de efetividade de processos de resolução de disputas
10 De fato, há diversas situações em que a mediação ou a arbitragem podem não ser recomendadas, como deman-
das que versem sobre interesses coletivos ou que requeiram elevado grau de publicização (e.g. Ações Civis Públicas
ou ações de indenização decorrentes de danos à saúde causados pelo uso do amianto como isolante térmico).
11 No mesmo sentido, cf. Hensler (2003); Hensler (1999).
20
André Gomma de Azevedo
mais de 85% dos entrevistados12 acreditam que o processo do qual participaram os ajudará
a melhor resolver questões semelhantes no futuro.13 Programas similares em outros países
(PLAPINGER, 1992; RHODE, 2000) também apresentam resultados semelhantes —
dos quais se pode concluir marcante tendência nos ordenamentos jurídico-processuais
de direcionar procedimentos para que tratem do futuro da relação social das partes em
disputa (i.e., para que sejam prospectivos na forma de abordagem de questões) e para que
sejam mais do que conjuntos de atos coordenados lógica e cronologicamente segundo
brilhantes modelos teóricos que lamentavelmente se projetam na prática como morosos,
ineficientes e, em relação à classificação de Deutsch, em regra, destrutivos.
12 Na pesquisa realizada com partes que conseguiram transacionar, todos responderam acreditar que o processo
do qual participaram os ajudará a melhor resolver questões semelhantes no futuro.
13 Para maiores detalhes quanto a esses resultados, vide relatório do Projeto Piloto em Mediação Forense do Tribu-
nal de Justiça do Distrito Federal e Territórios. Disponível em: <http://www.tjdft.jus.br>.
14 Este artigo encontra-se traduzido para o português em: Azevedo (2005, v. 4).
15 Também conhecido como Princípio da Imutabilidade ou Princípio da Concentração ou ainda Princípio
da Preclusão. Sobre esse tema, cf. Carreira Alvim (1993); e Cintra, Grinover e Dinamarco (2002).
21
Fatores de efetividade de processos de resolução de disputas
22
André Gomma de Azevedo
Segundo esse mesmo autor, “Jogos de soma não-zero, por sua vez, representam a
maior parte dos conflitos reais [...]”. Nestes jogos, os participantes têm interesses comuns
e, concomitantemente, interesses antagônicos. O contrato de compra e venda pode ser
apresentado como um exemplo de relação de soma não-zero — pois o comprador e
16 O Centro de Recursos Públicos apresenta o Pleito de RADs por meio da seguinte proposta de política
interna para empresas:
“Nós reconhecemos que para muitas disputas há um método mais eficiente e menos oneroso do que o pro-
cesso judicial tradicional. Procedimentos de Resoluções Alternativas de Disputas (RADs) envolvem técnicas
colaborativas que podem frequentemente proporcionar significativas economias para as empresas. Em re-
conhecimento ao que segue acima, nós subscrevemos a seguinte declaração de princípios em nome de nossa
empresa e suas subsidiárias domésticas: No caso de haver uma disputa comercial entre nossa e outra empresa
que fez ou fará semelhante declaração, estamos preparados para explorar com a outra parte a resolução da disputa
por intermédio da negociação ou alguma outra técnica de RAD antes de buscar a tutela estatal tradicional. Se
alguma das partes acreditar que determinada disputa não se mostra adequada para RAD ou se tal mecanismo
não produzir resultado satisfatório, qualquer parte poderá proceder com o processo judicial”.
De forma semelhante, essa mesma instituição promoveu semelhante pleito de RADs para escritórios de advocacia:
“Nós reconhecemos que para muitas disputas há um método mais eficiente e menos oneroso do que o processo judicial
tradicional. Procedimentos de Resoluções Alternativas de Disputas (RADs) — usados em conjunto com o processo
judicial ou independentemente — podem reduzir significativamente os custos e perdas decorrentes do processo judi-
cial, bem como podem resultar em soluções não disponíveis em juízo estatal. Em reconhecimento ao que segue acima,
nós subscrevemos a seguinte declaração de princípios em nome de nosso escritório de advocacia: Inicialmente, adequa-
dos advogados de nosso escritório serão capacitados acerca de RADs. Ainda, quando apropriado, o advogado responsável
discutirá com o cliente a disponibilidade de procedimentos de RADs para que o cliente possa tomar uma decisão informada
referente à resolução da disputa” (Disponível em: <http://www.cpradr.org>).
23
Fatores de efetividade de processos de resolução de disputas
o vendedor têm, em parte, interesses antagônicos, haja vista que o comprador quer
adquirir o bem a um preço reduzido e o vendedor alienar a um preço elevado. Todavia,
há um interesse comum: ambos querem concluir o negócio jurídico para com isso
auferir seus ganhos individuais. Uma característica deste tipo de relação consiste na
possibilidade de comunicação e cooperação, que, se desenvolvida adequadamente,
proporciona ganhos mútuos.
Ao tratar o conflito como um jogo de soma zero, frequentemente as partes
em conflito inadvertidamente abdicam de diversos interesses que possuem, como a
manutenção do relacionamento social pré-existente com a outra parte ou a resolução dos
pontos controvertidos como objetivamente apresentados no início do conflito e não em
razão de um acirramento do conflito que se expandiu, tornando-se “independente de suas
causas iniciais” (DEUTSCH, 1973, p. 351). A percepção de que se faz necessário em
um determinado conflito que uma parte “vença a outra” (jogo de soma zero) — e não
“objetivamente resolva os pontos em relação aos quais as partes divergem” — faz com que
as partes envidem esforços para prejudicar uma à outra e não necessariamente apenas para
resolver os pontos controvertidos.
Em processos privados, como a mediação e a arbitragem, que envolvem
profissionais liberais que, em regra, estipulam honorários por hora trabalhada (ou
considerando uma projeção de horas a serem trabalhadas), a abordagem pelas partes
desses processos como se fossem relações de soma zero produz, em regra, dispêndio de
tempo e, por consequência, elevação desnecessária de custos.
d) Os advogados adotam postura excessivamente litigiosa e adversarial.
Muitos advogados, ao ponderarem sobre suas práticas profissionais, concluem
que o efetivo “empenho” previsto no preâmbulo do Código de Ética e Disciplina
da Ordem dos Advogados do Brasil17 requer que desenvolvam o maior número de
atividades dentro de suas relações processuais em curso, desde que estas não sejam
expressamente proibidas em lei. Essa conduta estimula advogados a litigar de forma
enfática, buscando auferir todas as formas possíveis de ganhos para seus clientes. Em
regra, esta relação ocorre sob forma de jogo de soma zero — isto é, busca-se vencer
determinada lide, derrotando a parte contrária.
Todavia, sob a ótica do próprio Código de Ética e Disciplina, constata-se que
a advocacia zelosa resume-se a buscar os meios mais eficientes para atender da melhor
forma possível aos interesses da parte que está a representar (MNOOKIN; PEPPET;
TULUMELLO, 2000, p. 292). A presunção de que este meio mais eficiente equivale
ao exercício profissional por intermédio de litigiosidade excessiva contraria esse próprio
Código de Ética e Disciplina que, em seu artigo 2º, parágrafo único, VI, estabelece o
dever de “estimular a conciliação entre os litigantes, prevenindo, sempre que possível, a
instauração de litígios”.
Percebe-se, assim, que os advogados detêm bastante flexibilidade ao definir qual
conduta reflete a “advocacia zelosa”, podendo estes optar tanto por uma que reflita uma
17 Publicado pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil no Diário da Justiça, Seção I,
1º.3.1995, p. 4.000-4.001.
24
André Gomma de Azevedo
“litigiosidade eficiente” quanto por uma que apresente uma litigiosidade excessiva (e
ideofrênica). Os interesses do cliente (tanto aqueles juridicamente tutelados como aqueles
outros que não o são) podem ser melhor atendidos por uma perspectiva mais racional e
planejada sobre a forma de resolução do conflito. Segundo William Ury (1991), trata-se
de “atacar” as questões controvertidas e não a pessoa com quem se interage.
25
Fatores de efetividade de processos de resolução de disputas
interesse de manter uma adequada ou cordial relação ou um casal que está a se separar e
que tem o interesse de proceder a tal rompimento da relação sem prejudicar a imagem que
seus filhos terão do casamento enquanto instituição familiar). Da mesma forma, faz-se
necessário também identificar quais são as disposições emocionais das partes em conflito,
pois frequentemente seus sentimentos alteram suas percepções a ponto de impedi-las de
apreciar objetivamente os pontos controvertidos (PERRONI, 2003; BIRKE; FOX, 1999).
A partir dos novos desenvolvimentos em arbitragem e mediação e em razão dos
resultados das pesquisas de avaliação de qualidade de programas de RADs (e pesquisas
de satisfação dos usuários quanto a esses novos processos) (BARUCH BUSH, 2003-
2004; ROLPH; MOLLER, 1995; RESNIK, 1994-1995; AZEVEDO, 1998), pode-se
afirmar que há crescente tendência das instituições provedoras de arbitragem e mediação
em direcionar seus esforços para capacitar árbitros e mediadores a conduzir seus
procedimentos estimulando as partes a transformá-los em processos construtivos.
5 Conclusão
Diante da significativa contribuição de Morton Deutsch (1973) ao apresentar a
definição de processos construtivos de resolução de disputas, pode-se afirmar que ocorreu
uma recontextualização acerca do conceito de conflito, na medida em que se registrou
ser este um elemento da vida que inevitavelmente permeia todas as relações humanas e
contém potencial de contribuir positivamente nessas relações. Nesse sentido, com base
em construções teóricas de caráter multidisciplinar corroboradas por projetos-piloto
existentes no Brasil, pode-se afirmar que, se conduzido construtivamente, o conflito
pode proporcionar crescimento pessoal, profissional e organizacional (DEUTSCH;
COLEMAN; MARCUS, 2000). A abordagem do conflito no sentido de que este
pode, se conduzido com técnica adequada, ser um importante meio de conhecimento,
amadurecimento e aproximação de seres humanos, impulsiona relevantes alterações
quanto à ética e a responsabilidade profissional.
Semelhantes alterações ocorreram em meados do século XIX, período no qual
muitos médicos ainda vestiam, no exercício de seus ofícios, pesados casacos de pele e
roupa preta como sinal de distinção. Nesta época, o médico húngaro Ignaz Semmelweis,
ao perceber que muitos profissionais saíam da sala de autópsia para a sala de parto do
Hospital Geral da Viena sem trocar de roupa ou sequer lavar as mãos, concluiu que
algum desconhecido “material cadavérico” causava a elevadíssima taxa de mortalidade
em parturientes de aproximadamente 13% (GILLESPIE, 1980). Ao propor que os
médicos lavassem as mãos com uma solução a base de cloro, Semmelweis constatou queda
de aproximadamente 85% na taxa de mortalidade, reduzindo esta para 2% dos casos.
Posteriormente, quando voltou para a Hungria e conseguiu persuadir colegas médicos
a abandonarem os trajes de peles escuras e utilizarem roupas brancas, alcançou nova
redução do índice de mortalidade de cerca de 60%, chegando a níveis de letalidade de
0,85% dos casos. As ideias acerca da transmissibilidade de microorganismos patogênicos
26
André Gomma de Azevedo
(germes) por intermédio dos médicos foram recebidas com muito cepticismo na Áustria
onde Semmelweis desenvolveu tal teoria. Em parte, muitos médicos resistiram à ideia de
terem que mudar diversas convenções sociais e utilizarem roupas brancas — vestimentas
inusitadas para a época. Por outro lado, muitos não acreditavam que poderiam estar
servindo como meio de transmissão de doenças.
Semelhantemente à relação de médicos com agentes patológicos, no Direito
moderno, em especial diante do conceito apresentado por Morton Deutsch de processos
construtivos de resolução de disputas, constata-se que em grande parte o ordenamento
jurídico processual, que se dirige predominantemente à pacificação social, organiza-se, em
especial na sua feição pública (i.e., processo judicial), em torno de processos destrutivos,
lastreados em procedimentos fundados, em regra, somente no direito positivo. Pode-se
afirmar que, mesmo na iniciativa privada (i.e., mediação e arbitragem), em função da
falta de preparo técnico e desnecessária judicialização desses processos,18 ainda há com
frequência processos destrutivos. As partes, quando buscam, para solução de seus conflitos,
auxílio do Poder Judiciário ou de entes privados que servem para resolver litígios “sob
os auspícios do Estado”19 frequentemente têm o conflito acentuado ante procedimentos
que abstratamente se apresentam como brilhantes modelos de lógica jurídico-processual,
mas que na prática acabam por se mostrar ineficientes e enfraquecer os relacionamentos
sociais preexistentes entre as parte em conflito.
Quando um árbitro sentencia, determinando quem deve indenizar e o quantum a
ser indenizado a título de danos materiais, põe fim, sob a perspectiva do direito positivado,
a um determinado litígio. Todavia, pode não estar resolvendo a relação conflituosa se, e.g.,
deixar de suscitar o debate de como eventual falha de comunicação poderia ser evitada
para que as partes possam evitar novos problemas no futuro ou deixar de estimular o
debate sobre pontos que não sejam juridicamente tutelados. De fato, ainda há com
frequência julgadores que, inadvertidamente, acirram o próprio conflito, criando novas
dificuldades para as partes em disputa (COSTA, 2004). Torna-se claro que o conflito, em
muitos casos, não pode ser completamente resolvido tão somente por abstrata aplicação
da técnica de subsunção. Ao considerar que sua função consiste somente em examinar
quais fatos encontram-se demonstrados para, em seguida, indicar o direito aplicável à
espécie (subsunção), o operador do direito muitas vezes deixa de fora um componente
fundamental ao conflito e sua resolução: o ser humano.
Com a incorporação de diversos processos ao sistema processual, constata-se que
o operador do direito deve passar também a:
18 No Brasil, há diversas instituições autodenominadas de “Tribunais Arbitrais” que, compostas por “juízes arbi-
trais”, insistem em judicializar a arbitragem. De um lado, seguindo a linha de Carver e Vondra, essas instituições
se encontram desenvolvendo técnica imprópria, por não terem a adequada compreensão de como os processos
de arbitragem ou mediação são distintos do processo judicial. De outro lado, se seus usuários forem induzidos ou
mantidos em erro, mediante intimações ou citações obscuras, poderá restar caracterizado o crime de estelionato
(artigo 171 do Código Penal).
19 Mauro Cappelletti e Bryant Garth (1988, p. 8), ao conceituarem o “Acesso à Justiça”, apresentaram “duas
finalidades básicas do sistema jurídico — o sistema pelo qual as pessoas podem reivindicar seus direitos e/ou
resolver seus litígios sob os auspícios do Estado”.
27
Fatores de efetividade de processos de resolução de disputas
20 Como indicado acima, sobre as diversas técnicas existentes, cf. o endereço eletrônico do Grupo de Pes-
quisa e Trabalho em Resolução Apropriada de Disputas na Faculdade de Direito da Universidade de Brasília
(disponível em: <http://www.unb.br/fd/gt>, seção Bibliografia) onde poderá ser encontrada lista detalhada
de obras. Destacam-se, contudo, os seguintes trabalhos: Moore (1998); Slaikeu (2004); Cooley (2000); Gol-
dberg et al. (1992); e Golann (1995).
29
Fatores de efetividade de processos de resolução de disputas
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34
Mediação, acesso à justiça e desenvolvimento
institucional: análise histórico-crítica da
legislação brasileira sobre mediação
1 Introdução
O presente artigo busca esclarecer o potencial do método de solução de
conflitos conhecido como mediação para a efetividade do acesso à justiça, ou seja,
se este pode contribuir como meio de tutela de direitos dos cidadãos e entidades
em geral, bem assim, e diretamente relacionado ao primeiro objetivo, como
instrumento de desenvolvimento institucional, o qual parece estar diretamente
ligado ao crescimento econômico e, em última instância, ao desenvolvimento em
sentido amplo.
Assim, começo por elucidar a correlação apontada pelos estudiosos do tema
entre o crescimento econômico e o desenvolvimento institucional (muito embora não
esteja claro se existe uma relação de causa e efeito, efeito e causa, ou ambas), mostrando a
35
Mediação, acesso à justiça e desenvolvimento institucional
1. nos EUA, os negros têm uma renda per capita bastante superior à média
21 Diante da complexidade do tema, deixo de tratar neste artigo da mediação de conflitos envolvendo o
Poder Público, que contou com capítulo específico na nova lei. Trato do assunto mais adiante, em artigo
dedicado exclusivamente a ele, inserido na Parte II desta obra.
22 Também Joseph Stiglitz (1998, p. 3), ex-presidente do Banco Mundial, adota uma concepção ampliada
de desenvolvimento, que ele entende como “transformação social”, que deve propiciar ao indivíduo e à
sociedade maior controle sobre seu próprio destino (ou seja, mais liberdade), ampliando ao mesmo tempo
seus horizontes e sua vitalidade.
36
Luciane Moessa de Souza
dos países do Terceiro Mundo, mas têm uma expectativa de vida inferior à de
muitos desses países;
2. a educação das mulheres tem um impacto muito maior na redução das taxas
de fecundidade e da mortalidade infantil que uma renda per capita mais alta ou
políticas públicas coercitivas;
3. a situação comparativa entre Índia e China, em que ambos os países
propiciaram ampliação da liberdade de mercado nas últimas décadas, mas
a última, por ter investido antes (e continuar investindo) na prestação de
serviços sociais (nomeadamente saúde e educação) de qualidade, tem obtido
crescimento muito maior.
Ele derruba alguns mitos, como o de que a liberdade política deve vir depois
de um desenvolvimento político mínimo, apontando, por exemplo, que os maiores
episódios de fomes coletivas da história nunca se deram em democracias, mas sim em
regimes ditatoriais. Também salienta que as pessoas, muitas vezes, dão um valor maior
à liberdade de escolha que à renda mínima garantida, citando como exemplo o estudo
comparativo entre os escravos do sul dos Estados Unidos e os trabalhadores agrícolas
livres da mesma época, que tinham uma renda média inferior àqueles e, no entanto, os
escravos fugiam e optavam pelo risco da liberdade.
Com o propósito de sistematizar os diferentes aspectos inter-relacionados que
conduzem ao desenvolvimento como liberdade, Sen (2005, p. 25) estabelece cinco
categorias de liberdades instrumentais:
a) liberdades políticas;
b) facilidades econômicas;
c) oportunidades sociais;
d) garantias de transparência; e
e) segurança protetora.
As liberdades políticas “referem-se às oportunidades que as pessoas têm
para determinar quem deve governar e com base em que princípios, além de
incluírem a possibilidade de fiscalizar e criticar as autoridades, de ter liberdade de
expressão política e uma imprensa sem censura, de ter a liberdade de escolher entre
diferentes partidos políticos, etc.” (SEN, 2005, p. 55). As facilidades econômicas
“são as oportunidades que os indivíduos têm para utilizar recursos econômicos
com propósitos de consumo, produção ou troca” (SEN, 2005, p. 55). Ele salienta
aqui a importância dos critérios relativos à distribuição da renda, sendo que a
“disponibilidade de financiamento e o acesso a ele podem ser uma influência
crucial”, no sentido de permitir a criação efetiva de um ambiente de liberdade de
mercado e de livre concorrência. Oportunidades sociais “são as disposições que
a sociedade estabelece nas áreas de educação, saúde, etc., as quais influenciam a
liberdade substantiva de o indivíduo viver melhor” (SEN, 2005, p. 56), bem como
as próprias liberdades políticas e econômicas. As garantias de transparência, para
o autor, “referem-se às necessidades de sinceridade que as pessoas podem esperar:
a liberdade de lidar uns com os outros sob garantias de dessegredo e clareza. [...]
37
Mediação, acesso à justiça e desenvolvimento institucional
23 “Com oportunidades sociais adequadas, os indivíduos podem efetivamente moldar seu próprio destino e
ajudar uns aos outros” (SEN, 2005, p. 26).
38
Luciane Moessa de Souza
24 Segundo Richard Messick (1999, p. 117), “desde 1994, o Banco Mundial, o Banco Inter-Americano
de Desenvolvimento (BID) e o Banco de Desenvolvimento da Ásia aprovaram ou iniciaram mais de
500 milhões de dólares empréstimos destinados a financiar projetos de reformas no sistema judicial em
26 países” (Tradução nossa). O autor enfatiza, todavia, a existência de diferentes motivos por parte do
Banco Mundial e do BID para financiar tais projetos: enquanto este último encara a reforma do sistema
judicial como “um elemento indispensável na consolidação das instituições democráticas na América
Latina, através da proteção de direitos humanos básicos e da promoção de relações sociais harmôni-
cas” (MESSICK, 1999, p. 119), além de ser importante para o desenvolvimento de uma economia de
mercado, o Banco Mundial enfoca somente este último aspecto, o que significa, na prática, que ele não
financia projetos “para reformar códigos criminais, treinar policiais ou juízes criminais ou administrar
instituições penitenciárias”, o que torna muitos destes projetos ineficazes (MESSICK, 1999, p. 119).
25 Pode-se dizer que esse movimento foi inaugurado por Ronald Coase, ganhador do prêmio Nobel de Eco-
nomia, que “demonstrou como a introdução de custos de transação na análise econômica determina as formas
organizacionais e as instituições do ambiente social” (ZYLBERSZTAJN; SZTAJN, 2005, p. 1).
39
Mediação, acesso à justiça e desenvolvimento institucional
ganho coletivo possa ser realizado, é necessário que haja alguma restrição ou orientação ao
comportamento das partes, de tal modo que as ações não-cooperativas sejam eliminadas. Está aqui
um importante ganho do uso de contratos, particularmente do comprometimento com deveres em
uma relação plurilateral. [...]
Como as partes desejam que seu acordo resulte em efetivo direcionamento de comportamentos,
elas também acordam sobre aspectos do contrato que têm o papel de forçar o cumprimento de seus
deveres fundamentais.
26 É o caso, por exemplo, de um fabricante de autopeças que desenvolve toda uma linha de produção para atender a um
determinado modelo de veículo de uma montadora.
27 Como ressalta Sztajn, Zylbersztajn e Azevedo (2005, p. 125-126), “o Judiciário e o modo com que ele
utiliza as informações disponíveis no julgamento dos processos são também elementos relevantes no dese-
nho dos contratos”.
40
Luciane Moessa de Souza
No que diz respeito aos direitos de propriedade, não é muito difícil vislumbrar
a correlação, apresentada de forma sucinta por Rachel Sztajn, Décio Zylbersztajn e
Bernardo Mueller (2005, p. 92):
Direitos de propriedade que não são perfeitamente seguros desestimulam os investimentos [...]
direitos de propriedade contribuem para afetar o comportamento econômico dos agentes e o
desenvolvimento de mercados [...] direitos de propriedade seguros e bem definidos, incluindo o
direito de vender ou transferir a propriedade, farão com que o recurso venha a ser alocado ao uso
que gere mais bem-estar.
Ocorre que “na vida real, direitos de propriedade frequentemente não são bem
definidos e custos de transação raramente são baixos” (SZTAJN; ZYLBERSZTAJN;
MUELLER, 2005, p. 98). Assim, afirmam Sztajn, Zylbersztajn e Mueller (2005, p. 99), “a
lei deve dar incentivos para que os agentes ajam da forma que resulte na mesma alocação
de recursos que resultaria caso os custos de transação fossem baixos”.
Por último, importa ressaltar que desenvolvimento institucional não se reduz
apenas às dimensões aqui exemplificadas (proteção da propriedade; sistema de resolução
41
Mediação, acesso à justiça e desenvolvimento institucional
de conflitos eficaz, entre outras), mas envolve diversos aspectos, como aponta Luis Miguel
Castilla (2002) em estudo sobre o tema, destacando-se: império da lei (abrangendo
eficiência do sistema de segurança pública, poder do crime organizado, confiança
dos agentes econômicos nos políticos e influência das atividades ilícitas), controle da
corrupção, qualidade do marco regulatório (garantia da livre concorrência e dos direitos
dos consumidores) e eficiência da administração pública. Para ele, há também outros
fatores que medem o desenvolvimento institucional, repercutindo de forma ainda mais
direta na esfera econômica, quais sejam: a autonomia dos bancos centrais (favorecendo a
estabilidade monetária), uma política fiscal sustentável, a existência de redes de segurança
financeira, que protejam os pequenos depositantes e evitem a propagação de crises
financeiras, um quadro normativo que proteja os investidores nas sociedades de capital
aberto (“governo corporativo”), regras fiscais e orçamentárias que garantam o equilíbrio
fiscal e, ao mesmo tempo, a necessária flexibilidade para as decisões governamentais nesta
área e, por fim, um quadro regulatório de serviços públicos e um sistema de resolução de
conflitos eficiente.
É evidente, ainda, que, assim como o desenvolvimento das instituições jurídicas
contribui para o desenvolvimento econômico, a recíproca é verdadeira, daí porque
Messick (1999, p. 122) afirma não estar clara a direção de causalidade entre ambos. Da
mesma maneira, o desenvolvimento institucional está diretamente correlacionado ao que
se tem chamado de “capital social”, ou seja, o conjunto de atitudes e crenças disseminadas
na sociedade em geral.
Também Maria Dakolias (1999) elucida como o nível de desenvolvimento
institucional afeta outros aspectos igualmente importantes do desenvolvimento, levando
diversos países a adotarem reformas de seus sistemas judiciais:
Em outro artigo, a mesma autora ressalta uma vez mais o papel de um sistema
eficiente de resolução de conflitos em vários setores, bem como o quanto esse papel tem se
tornado mais relevante com a globalização econômica:
28 Tradução nossa.
42
Luciane Moessa de Souza
43
Mediação, acesso à justiça e desenvolvimento institucional
44
Luciane Moessa de Souza
30 O Judiciário brasileiro, se comparado à maioria dos países da América Latina, goza de elevado grau de indepen-
dência institucional, com a totalidade dos membros da primeira instância ingressando mediante concurso e 80% dos
membros da segunda instância sendo oriundos da primeira instância, além de autonomia administrativa e orçamen-
tária. Ademais, a remuneração alta dos magistrados, bem como sua vitaliciedade, os põe relativamente a salvo tanto
de pressões políticas quanto de corrupção. Cf. DAKOLIAS (1999): “In contrast to other Latin American countries,
however, corruption does not seem to be a major problem”. Todavia, a população ainda se ressente de um tratamento
igualitário em juízo, existindo a percepção difusa de que existe uma tendência ao favorecimento do Poder Público
tanto no que diz respeito ao mérito das decisões, quanto no que diz respeito à agilização do procedimento. Trata-se de
interessantes hipóteses a serem pesquisadas na prática judiciária. Note-se que, para ter acesso aos tribunais superiores, a
participação do Poder Executivo é tanto mais determinante quanto mais alta a Corte.
45
Mediação, acesso à justiça e desenvolvimento institucional
46
Luciane Moessa de Souza
31 Tradução nossa.
47
Mediação, acesso à justiça e desenvolvimento institucional
48
Luciane Moessa de Souza
significa que este se alinha claramente com os segmentos sociais menos privilegiados da população:
entre o inquilino e o senhorio, ele se inclina a favor do primeiro; entre o banco e o devedor, ele tende
a ficar com o último, e assim por diante. Isso faz com que, nos casos em que essa não-neutralidade é
clara e sistemática, esses segmentos menos privilegiados sejam particularmente afetados com prêmios de
risco (isto é, preços) mais altos, ou então simplesmente alijados do mercado, pois a outra parte sabe que o
dito e assinado na hora do contrato dificilmente será respeitado pelo magistrado, que buscará redefinir
ex post os termos da troca contratada. Isso significa que são exatamente as partes que o magistrado
buscava proteger que se tornam as mais prejudicadas por essa não-neutralidade. (CASTELAR
PINHEIRO, 2003, p. 25).
33 Tradução nossa.
34 Dos 11 países estudados na mostra, o Brasil é aquele em que o valor da remuneração dos magistrados com-
parada à média da população é o mais alto: 33 vezes o salário médio, enquanto na Alemanha, por exemplo, o
valor é de apenas duas vezes o salário médio. A proporção, contudo, é três vezes maior do que o país que paga
os melhores salários, dentre os estudados (ressalte-se que a mostra trouxe apenas dois países desenvolvidos:
Alemanha e França).
35 Tradução nossa.
49
Mediação, acesso à justiça e desenvolvimento institucional
36 Tradução nossa.
37 Isso se tornou claro com a implantação dos Juizados Especiais, tanto a nível estadual, quanto a nível federal,
os quais, depois de um período de grande agilidade na resolução dos litígios, foram inundados com tal número
de demandas que o período para solução aumentou sensivelmente.
50
Luciane Moessa de Souza
38 Assim dispõe o artigo 24 da Lei nº 9.099/95: “Não obtida a conciliação, as partes poderão optar, de co-
mum acordo, pelo juízo arbitral, na forma prevista nesta Lei. §1º O juízo arbitral considerar-se-á instaurado,
independentemente de compromisso, com a escolha do árbitro pelas partes. Se este não estiver presente, o
juiz convocá-lo-á e designará, de imediato, a data para a audiência de instrução. §2º O árbitro será escolhido
dentre os juízes leigos”.
39 Artigos 7º, 21 e 22 da Lei nº 9.099/95.
40 Nova redação do §2º do artigo 331 do CPC, cf. previsto no artigo 43 do projeto (PLC nº 94/2002 no Senado
e nº 4.827/1998 na Câmara).
51
Mediação, acesso à justiça e desenvolvimento institucional
41 Posição com a qual já concordei em edição anterior desta obra, produzida em momento no qual eu
tinha apenas conhecimento teórico sobre o tema e que revi depois de ter contato prático com trabalhos
de mediação e conciliação, bem como me aprofundar nas diferenças entre as diversas escolas de media-
ção, sendo que a escola predominante nos EUA, por exemplo, em muito se aproxima da conciliação.
Para saber mais, vide a obra de minha autoria “Meios consensuais de solução de conflitos envolvendo
entes públicos: negociação, mediação e conciliação na esfera administrativa e judicial”, no capítulo em
que exponho as escolas.
52
Luciane Moessa de Souza
Em muitos casos, as partes se mostram mais propostas a cumprir acordos obtidos pela via da
mediação do que decisões provenientes do Judiciário. No Chile, por exemplo, há um índice de
70% de sucesso nos procedimentos de mediação.42
42 Tradução nossa.
53
Mediação, acesso à justiça e desenvolvimento institucional
entre as culturas. Ele não pôde mais deixar de olhar o mundo global e sistemicamente e,
portanto, não pôde mais abrir mão de soluções e ações cooperativas, sob pena de ameaçar a
própria sobrevivência.
54
Luciane Moessa de Souza
43 Tais matérias não poderiam estar contidas em projeto de lei de iniciativa de parlamentar, pois são de ini-
ciativa reservada.
55
Mediação, acesso à justiça e desenvolvimento institucional
56
Luciane Moessa de Souza
44 O assunto vem causando muita polêmica em matéria de arbitragem, justamente pela falta de um disposi-
tivo semelhante na Lei nº. 9.307/96. De qualquer modo, vem a ser mais um argumento a favor da admissibi-
lidade da arbitragem sobre o tema.
57
Mediação, acesso à justiça e desenvolvimento institucional
Não se entende bem, por outro lado, as razões de excluir as ações de inventário
e arrolamento, já que, quando não houver interesse de menores envolvido, a mediação
seria um espaço bastante interessante para solucionar controvérsias entre herdeiros. De
todo modo, a mediação aqui não estaria proibida, já que se trata de direitos passíveis de
transação, apenas não se revestiria de obrigatoriedade.
É imprescindível ressaltar, no entanto, que essa concepção da mediação prevista
no PL 4827/1998 como destinada apenas à solução de conflitos cíveis que envolvam
direitos negociáveis não decorre da natureza da mediação em si. Parecia tratar-se
talvez de uma opção no sentido de começar com a adoção da mediação para este tipo
de conflito, já que não temos tradição na utilização da mediação no Brasil. Na prática,
contudo, a mediação já vem sendo utilizada também na área penal (normalmente para
conflitos de pequena monta), em projetos/programas que trabalham com a chamada
“justiça restaurativa”. Em outros países (e no Brasil a tendência é a mesma), a mediação
é bastante utilizada tambémpara a resolução de conflitos ambientais, sem falar na sua
utilização crescente pelo setor privado para resolução de conflitos na área educacional e
também corporativa.
Jáo PLS 517/2011, apresentado treze anos mais tarde, não padecia do mesmo
vício, tendo previsto de forma inteiramente diversa: em seu artigo 1º., estipula que a
mediação de conflitos é cabível “em quaisquer matérias em que a lei não proíba as partes
de negociar”; já no artigo 7º., dispunha ser “possível a mediação em todo e qualquer
litígio submetido ao Poder Judiciário, desde que as partes a desejem de comum acordo
ou que sua realização seja recomendada pelo magistrado, pelo Ministério Público, pela
Defensoria Pública ou por outro sujeito do processo”.
Como já dito, o PL em questão veio a ser agrupado com outros dois no Senado
Federal, sendo que a redação final do artigo 3º. da lei que deles resultou admite a
utilização da mediação para todo “conflito que verse sobre direitos disponíveis ou sobre
direitos indisponíveis que admitam transação.” Prevaleceu o bom senso e a concepção
mais avançada sobre o potencial da mediação.
58
Luciane Moessa de Souza
mínimos mensais e pode ser aplicada quer em caso de ausência, quer na hipótese de
recusa a discutir as propostas formuladas.
No PLC 4827/1998, apesar de constar a obrigatoriedade, não estava
prevista a aplicação de qualquer sanção para o não-comparecimento à audiência,
dispondo o projeto apenas que, em caso de não comparecimento das partes, estaria
frustrada a mediação.45
É bem verdade que a questão da obrigatoriedade sempre foi um dos grandes
pontos polêmicos acerca da mediação, havendo muitas vozes que entendem que a
imposição da tentativa de mediação revela-se de todo incompatível com o espírito
da mediação. Ponderemos. A obrigatoriedade de comparecimento à audiência
preliminar já vem prevista na legislação processual trabalhista e na legislação dos
juizados especiais brasileiras desde a sua criação, sendo certo que o índice de acordos
nestas duas searas do Judiciário é enormemente superior ao índice de acordos nos
processos cíveis em que o acordo é possível, mas não existe obrigatoriedade da
tentativa. Por outro lado, se se deseja implementar a mediação em larga escala, não se
pode esperar que uns poucos demandantes de boa vontade se disponham a comparecer
para a audiência de mediação e passem a relatar sua boa experiência às pessoas em
geral para que então aumentem os índices de comparecimento. Infelizmente, temos
uma maioria da população pouquíssimo educada, com limitações no discernimento
e conhecimentos necessários para sopesar o custo de um comparecimento a uma
audiência com os benefícios de uma possível solução através da mediação. As pessoas
costumam raciocinar apenas a curto prazo e concentrar-se no incômodo de ter que
comparecer e, ainda por cima, encontrar o adversário com quem já desistiram de
dialogar a partir do momento em que decidiram recorrer ao Judiciário. Não sabem
como funciona a mediação, e, com exceção dos litigantes habituais, tampouco
conhecem (até se verem envolvidas como partes) a alternativa tradicional de solução
de litígios: o processo judicial. Ignoram quanto tempo costuma demorar, quais as
etapas, quais os critérios de julgamento em um processo judicial. Fica claro, assim,
que, normalmente, não estão em condições de ponderar as vantagens e desvantagens
da tentativa de mediação. Pode parecer paternalista, mas temos que considerar
a nossa realidade social. O importante é que, ao comparecerem, as pessoas sejam
tratadas de acordo com suas necessidades e seja realizada uma tentativa de mediação
efetivamente capaz de propiciar a solução definitiva daquele conflito. No entanto,
para que uma estrutura de obrigatoriedade como essa possa ser implementada, é
evidente que precisamos contar com quadros de mediadores capacitados em número
suficiente — o que certamente é uma realidade ainda inexistente no Brasil.
É interessante mencionar a experiência norte-americana neste sentido, pois, nos
EUA, não existe uma regra que obrigue de antemão a submeter determinados conflitos à
mediação, mas sim a possibilidade de que o juiz, no caso concreto, remeta as partes a um
meio alternativo de resolução de litígios, se entender que esse método é o mais apropriado
para manejar o caso delas.46 Essa análise casuística, que toma em conta a especificidade
de cada conflito, aliada ao fato de que naquele país a produção de provas é toda realizada
numa fase preparatória, que antecede a propositura do litígio — o que faz com que o
resultado de um eventual julgamento seja bastante previsível — torna a possibilidade de
acordo bastante grande, de modo que a maior parte dos conflitos acabam sendo resolvidos
desta maneira.
O PLS 517/2011 adotava orientação diametralmente oposta à do PLC
4827/1998, optando claramente pela facultatividade, como se verificava em seus artigos
3º, inciso III (voluntariedade em participar da mediação como um dos princípios básicos
da mediação), e 8º., parágrafos 1º. e 2º. Temperando um pouco esta facultatividade,
dispunha o artigo 12 que:
O juiz deverá recomendar a mediação judicial, preferencialmente, em conflitos nos quais haja
necessidade de preservação ou recomposição de vínculo interpessoal ou social, ou quando as
decisões das partes operem consequências relevantes sobre terceiros.
Já a legislação que resultou do PLS 517/2011 e dos outros dois projetos de lei
apresentados no Senado (405 e 434/2013) optou pela obrigatoriedade da mediação
extrajudicial quando houver cláusula contratual nesse sentido, deixando de disciplinar o
tema quanto à mediação judicial, como se vê do seu artigo 2º.:
Art. 21. O convite para iniciar o procedimento de mediação extrajudicial poderá ser feito por
qualquer meio de comunicação e deverá estipular o escopo proposto para a negociação, a data e o
local da primeira reunião.
[...]
46 Segundo Edward P. Davis apud Delagado (2003, p. 25): “A forma mais aceita de ADR [Alternative Dispute
Resolution = meio alternativo de resolução de conflitos] em quase todo o país é uma forma de mediação, que é a
chave entre gerenciamento de caso e mediação. É o resultado do gerenciamento de caso, quando o juiz assume o
controle do caso e diz, geralmente no início do caso, ‘Litigantes, vocês têm de escolher um ADR. Eu não posso for-
çá-los a resolver o caso, mas vocês devem empregar algum meio alternativo de resolução de litígios’. E o mecanismo
escolhido pela grande maioria dos litigantes nos Estados Unidos é a mediação”.
47 No mesmo sentido dispõe o art. 18 da nova lei: “Iniciada a mediação, as reuniões posteriores com a presença das
partes somente poderão ser marcadas com a sua anuência.”
60
Luciane Moessa de Souza
61
Mediação, acesso à justiça e desenvolvimento institucional
48 A legislação argentina prevê que o mediador deve ser advogado com pelo menos três anos de experiência
profissional. O mediador pode ser escolhido diretamente pelas partes ou mediante sorteio dentre os media-
dores cadastrados.
49 Dispunha o artigo 30, caput, do projeto: “O interessado poderá optar pela mediação prévia judicial”. Mais
adiante, o § 1º estabelecia: “Distribuído ao mediador, o requerimento ser-lhe-á encaminhado imediatamen-
te”. E o § 4º do mesmo artigo previa: “Os interessados, de comum acordo, poderão escolher outro mediador,
judicial ou extrajudicial”.
62
Luciane Moessa de Souza
extrajudicial (muito embora seja plenamente possível que as partes por esta optem mesmo
no curso de um processo judicial).
Indo além da questão normativa, deve-se fazer referência, por fim, às diferentes
concepções que embasam a ideia de mediação, que se distinguem, basicamente, em
duas vertentes:
a) aquela que vê a mediação apenas como a técnica voltada à obtenção de um
acordo, encerrando assim o conflito (caso em que ela muito se assemelha à
conciliação); e
b) aquela que concebe a mediação como técnica que, a par de possibilitar a solução
do conflito, deve possibilitar às partes que aprendam com ele a se relacionar
melhor, superando as posturas que levaram ao surgimento daquele conflito e
evitando, assim, que venham a se envolver em novos conflitos da mesma natureza.
Relata Rosemary Padilha (2004, p. 67):
SUARES (1997, p. 58-63) cita três modelos de mediação nos Estados Unidos,
provenientes de diferentes epistemologias: o Modelo Tradicional Linear de Harvard, o
Modelo Transformativo de Bush e Folger e o Modelo Circular-Narrativo de Sara Cobb.
A autora considera que existem diferenças fundamentais entre o modelo de Harvard e os
outros dois quanto à conceitualização da comunicação e a meta do processo. Enquanto
a escola de Harvard tem como meta o acordo, a transformativa busca a transformação da
relação entre as partes envolvidas na disputa e a Circular-Narrativa foca tanto no acordo
quanto nas relações.
O PLC 4827/1998 acolhia implicitamente a orientação que vê na mediação um
método para que as próprias partes aprendam a administrar seus conflitos, já que proibia
expressamente que o mediador fizesse uma proposta específica de acordo para as partes.50
Como resquício dessa concepção mais tradicional, o novo Código de Processo Civil
brasileiro dispõe, em seu artigo 165:
§ 1º. O conciliador, que atuará preferencialmente nos casos em que houver vínculo anterior entre
as partes, poderá sugerir soluções para o litígio, sendo vedada a utilização de qualquer tipo de
constrangimento ou intimidação para que as partes conciliem.
§ 2º. O mediador, que atuará preferencialmente nos casos em que houver vínculo anterior entre as
partes, auxiliará aos interessados a compreender as questões e os interesses em conflito, de modo
que eles possam, pelo restabelecimento da comunicação, identificar, por si próprios, soluções
consensuais que gerem benefícios mútuos.
63
Mediação, acesso à justiça e desenvolvimento institucional
propostas na mesa para serem discutidas entre as partes. Minha opinião é que
conciliação e mediação somente devem ser diferenciadas quanto ao escopo ou enfoque,
não quanto ao procedimento do terceiro imparcial - o qual, desde que respeite os
princípios éticos aplicáveis, se caracteriza pela flexibilidade. Entender que uma
mediação se transforma em conciliação apenas porque o terceiro formula eventual
proposta de solução do conflito é uma visão extremamente rasa e que ignora a
diferença de essência entre as duas técnicas: a primeira (mediação), trabalhando todo
o contexto subjacente ao conflito e com caráter altamente pedagógico; a segunda
(conciliação), trabalhando em um nível superficial, com objetivo claro de solucionar
o problema da forma que ele foi inicialmente desenhado.
51 Estabelecia o artigo 9º: “Pode ser mediador qualquer pessoa capaz, de conduta ilibada e com formação
técnica ou experiência prática adequada à natureza do conflito, nos termos desta lei”.
52 Veja-se o texto do projeto:
“Artigo 11. São mediadores judiciais os advogados com pelo menos três anos de efetivo exercício de atividades
jurídicas, capacitados, selecionados e inscritos no Registro de Mediadores, na forma desta lei.
Artigo 12. São mediadores extrajudiciais aqueles independentes, selecionados e inscritos no respectivo Registro de
Mediadores, na forma desta lei.”
64
Luciane Moessa de Souza
ciliadores, a ser preenchido por concurso público de provas e títulos (artigo 167,
parágrafo 6º.).
A Lei 13.140, de 26 de junho de 2015, admite que atue como mediador extraju-
dicial “qualquer pessoa capaz, que tenha a confiança das partes e seja capacitada para fazer
mediação, independentemente de integrar qualquer tipo de conselho, entidade de classe
ou associação, ou nele inscrever-se” (artigo 9º. – grifei). Já o mediador judicial deve ser
“pessoa capaz, graduada há pelo menos dois anos em curso superior e que tenha recebido
capacitação em curso reconhecido pela Escola Nacional de Formação de Magistrados –
ENFAM, observados os requisitos mínimos estabelecidos pelo Conselho Nacional de
Justiça, em conjunto com o Ministério da Justiça” (art. 11).
Quanto à escolha do terceiro, no que concerne à mediação ou conciliação reali-
zada no curso de um processo judicial, o novo CPC estipula:
Artigo 168. As partes podem escolher, de comum acordo, o conciliador, o mediador ou a câmara
privada de conciliação e mediação.
§ 1o. O conciliador ou mediador escolhido pelas partes poderá ou não estar cadastrado no tribunal.
§ 2o.. Inexistindo acordo quanto à escolha do conciliador ou mediador, haverá distribuição entre
aqueles inscritos no registro do tribunal, observada a respectiva formação.
Ressalto, porém, que minha sugestão incluía a previsão de que, havendo uma
mediação em curso, fosse tentada em primeiro lugar a composição amigável também no que
concerne a medidas de urgência.
Na mesma linha, a Lei 13.140, de 2015, dispõe que apenas que a suspensão
de processo judicial ou arbitral em curso, em razão da instalação de mediação, não
obsta a concessão de medidas de urgência pelo juiz ou pelo árbitro (artigo 16, § 2º.)
– infelizmente, nada dispôs, portanto, acerca de uma tentativa prévia de composição
amigável também no que concerne a questões urgentes, que não podem aguardar o
desenrolar da negociação.
68
Luciane Moessa de Souza
Artigo 21. O termo do acordo obtido em mediação extrajudicial prévia equipara-se a título
executivo judicial desde que o mediador que assina o termo de acordo seja reconhecido por
instituição idônea, que atenda aos requisitos do Conselho Nacional de Justiça e do Tribunal de
Justiça do Estado em que exerça a mediação extrajudicial.
71
Mediação, acesso à justiça e desenvolvimento institucional
59 Este era o texto do artigo 15 do projeto: “Caberá, em conjunto, à Ordem dos Advogados do Brasil, aos
Tribunais de Justiça dos Estados e às pessoas jurídicas especializadas em mediação, nos termos de seu estatuto
social, desde que, no último caso, devidamente autorizadas pelo Tribunal de Justiça do Estado em que estejam
localizadas, a formação e seleção de mediadores, para o que serão implantados cursos apropriados, fixando-se
os critérios de aprovação, com a publicação do regulamento respectivo”.
73
Mediação, acesso à justiça e desenvolvimento institucional
60 Artigo 42 do projeto: “Os serviços do mediador serão sempre remunerados, nos termos e segundo os
critérios fixados pela norma local”.
61 Assim estabelecia o parágrafo único do artigo 38 do projeto: “O valor pago a título de honorários do me-
diador, na forma do artigo 19 do Código de Processo Civil, será abatido das despesas do processo”.
74
Luciane Moessa de Souza
justiça gratuita62, o que é uma questão das mais significativas, já que não se pode depender
apenas da atuação de voluntários para que o sistema funcione de forma a atender a
demanda e, evidentemente, se o sistema funcionar bem, o maior número de interessados,
possivelmente, será de pessoas carentes, hoje predominante excluídas do sistema judicial
de resolução de litígios.
O PLS 517/2011 não tratava do tema, que também não é disciplinado pela nova
Lei de Mediação de Conflitos, tendo sido tratado pelo novo Código de Processo Civil
(apenas no que se refere à mediação judicial, naturalmente):
Artigo 169. Ressalvada a hipótese do art. 167, § 6º, o conciliador e o mediador perceberão por seu
trabalho remuneração prevista em tabela fixada pelo tribunal, conforme parâmetros estabelecidos
pelo Conselho Nacional de Justiça.
§ 1º. A mediação e a conciliação podem ser realizadas como trabalho voluntário, observada a
legislação pertinente e a regulamentação do tribunal.
§ 2º. Os tribunais determinarão o percentual de audiências não remuneradas que deverão ser
suportadas pelas câmaras privadas de conciliação e mediação, com o fim de atender aos processos
em que deferida gratuidade da justiça, como contrapartida de seu credenciamento.
Desde 2010, a Resolução CNJ 125/2010 já dispôs, de forma lacônica, caber aos
Núcleos Permanentes de Métodos Consensuais de Solução de Conflitos de cada tribunal
“regulamentar, se for o caso, a remuneração de conciliadores e mediadores, nos termos da
legislação específica” (artigo 7º., VII).
Trata-se de assunto que é ainda uma incógnita, em especial pela tendência
que tem se verificado entre os órgãos judiciais brasileiros de utilizar seus próprios
servidores para atuarem como voluntários na mediação e conciliação, ou seja,
acumulando estas atribuições com as que já possuem ordinariamente, sem perceber
nenhum acréscimo por isso. Se esta alternativa tem se mostrado viável quando ainda é
proporcionalmente bastante pequeno o número de casos em que se utiliza a mediação
ou a conciliação no Brasil, ela parece pouco sustentável caso se pretenda realmente
difundir a utilização dos caminhos consensuais de solução de conflitos, generalizando
efetivamente um acesso à justiça de qualidade. Entretanto, nenhum tribunal brasileiro
regulamentou a matéria até o momento. A boa – e muito recente – notícia é que no
Estado de São Paulo foi recentemente promulgada a primeira lei brasileira atinente à
remuneração de mediadores e conciliadores judiciais – Lei estadual 15.804, de 23 de
abril de 2015. Embora tenha estabelecido uma remuneração bastante módica, sendo
que o ideal seria diferenciar a remuneração de acordo com o grau de experiência e
qualificação do mediador, bem assim de acordo com a complexidade do conflito
(número de partes, matéria envolvida, etc), já é ao menos um primeiro passo, que
foi muito comemorado pelos inúmeros mediadores e conciliadores que vinham
62 Note-se que o § 1º do artigo 42 supra transcrito dispunha: “Nas hipóteses em que for concedido o benefí-
cio da assistência judiciária, estará a parte dispensada do recolhimento dos honorários, correndo as despesas
às expensas de dotação orçamentária do respectivo Tribunal de Justiça”.
75
Mediação, acesso à justiça e desenvolvimento institucional
76
Luciane Moessa de Souza
Referências
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78
Sustentabilidade do Poder Judiciário e a
mediação na sociedade brasileira
1 Introdução
Muito se falou em sustentabilidade nas discussões ambientais e a própria
Constituição da República, em seu artigo 225, destaca a necessidade de um meio
ambiente equilibrado para as presentes e futuras gerações. Resta o desafio de pensar em
desenvolvimento fundado em uma ética do futuro, que equilibre o tempo da produção de
mercadorias e o da reprodução das condições naturais da existência humana.
Com a ampliação e as novas aplicações do conceito de sustentabilidade, surgiu a
ideia de lançar reflexões sobre o Poder Judiciário e a mediação nesse contexto.
A judicialização ou jurisdicização das relações sociais é uma realidade. Mais de
17 milhões de causas ingressam nos juízos brasileiros anualmente.
Abriram-se as portas da justiça ao cidadão comum (a partir dos juizados de
pequenas causas, depois com os juizados especiais estaduais, seguidos pelos juizados
especiais federais...). Porém, além do acesso, há necessidade de saída da justiça. O índice
de congestionamento dos tribunais é alarmante e a cada ano aproximadamente quatro
milhões de causas se acumulam sem chegarem ao julgamento.
Mesmo sendo grande o número de processos iniciados, pesquisas indicam haver
uma imensa parcela de “renúncia aos direitos”. Fica represada nos corações brasileiros uma
“litigiosidade contida”,63 tal qual uma panela de pressão, que, não aliviada na maioria das
vezes, pode levar o cidadão a praticar condutas anti-sociais e conduzi-lo à criminalidade.
O custo político dessa renúncia ao Poder Judiciário não pode ser desprezado. Abrir as
portas da justiça é uma prioridade;64 entretanto, incentivar a saída da justiça com soluções
pacíficas gerais (“dentro” e “fora” do processo) é uma necessidade.
65 Utilizei a expressão para indicar uma maior participação das pessoas na solução pacífica das controvérsias,
tal qual ocorre no Japão e na China, onde — guardadas as suas tradições — buscar o Poder Judiciário em
alguns casos pode até indicar motivo de desonra e incapacidade de autodeterminação.
66 Estimo ser necessário um número muito grande de mediadores e não há ainda pessoas capacitadas em
número suficiente, de modo que com a obrigatoriedade haverá uma maior demora na prestação jurisdicional,
com prejuízo à já desgastada imagem do Poder Judiciário. Ademais, contraria a própria essência da mediação
a obrigatoriedade de participar da sessão, mesmo que o acordo não seja obrigatório.
67 Carlos Alberto Carmona (1993), dentre outros doutrinadores, defende a existência de jurisdição mesmo
fora do Poder Judiciário.
68 Quando se fala em “partes” já se está a indicar juridicamente os sujeitos ativos ou passivos de uma lide no
sistema conflitual. A expressão “interessados” melhor se ajusta ao sistema consensual.
80
Roberto Portugal Bacellar
69 Eis algumas recomendações: estabelecer rapport; ouvir ativamente; separar as pessoas dos problemas; concen-
trar-se nos interesses e não nas posições; trabalhar junto para criar opções, comprometendo os interessados (par-
tes) na solução do problema; procurar padrões objetivos independentes da vontade de qualquer dos lados (não
confio no valor estimado por ele, quero saber o valor real); inventar opções de benefícios mútuos; dentre outras.
70 É interessante a história de duas irmãs que brigavam por uma laranja. Depois de concordarem em dividi-la ao
meio, a primeira pegou sua metade, comeu a “fruta” e jogou fora a casca, enquanto a outra jogou a “fruta” e usou
a casca para fazer um doce.
81
Sustentabilidade do Poder Judiciário e a mediação na sociedade brasileira
71 Quando judicava na Comarca de Catanduvas/PR, uma mãe me apresentou seu filho entre 10 e 12 anos, desabafando
na sua simplicidade: “eu não dô conta do moleque, por isso eu troxe pro senhor dá um jeito nele”. O exemplo indica um
de tantos casos que não podem livrar responsabilidades próprias e exclusivas dos pais e de certa forma confirma a falta de
cultura nacional em resolver diretamente seus problemas.
82
Roberto Portugal Bacellar
4 Conclusão
É preciso encontrar soluções pacíficas e harmônicas que apresentem resultados
efetivos. A simples verdade formal é fácil de ser descoberta, porém a justiça desejada,
querida e esperada pelos interessados como suficiente e eficaz à pacificação integral do
conflito é o maior desafio da geração presente.
A sustentabilidade do Poder Judiciário depende de incentivar uma Justiça
Comunitária onde a própria sociedade local esteja capacitada, preparada e empoderada
a solucionar seus conflitos. Não é possível que todos os conflitos sejam levados ao
conhecimento do Poder Judiciário.
A sustentabilidade dos métodos extrajudiciais, fora do ambiente do Poder
Judiciário, depende fundamentalmente da preservação das qualidades éticas, combatendo
os denominados “tribunais de carteirinha”, onde se anuncia a criação da profissão de
árbitro e ilude-se a comunidade prometendo ganhos inalcançáveis tanto ao árbitro quanto
às partes. Tal sustentabilidade também passa pelo prisma econômico, na medida em que
muitas das câmaras arbitrais que estão trabalhando de maneira ética (sem vender ilusões)
não estão conseguindo se auto-sustentar.
Resta o desafio de formar uma cultura mediacional (empoderando e emancipando a
comunidade a solucionar seus conflitos), fundada em qualidades éticas que possam equilibrar
a procura pelo Poder Judiciário aos casos em que ele efetivamente seja indispensável.
Referências
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83
Sustentabilidade do Poder Judiciário e a mediação na sociedade brasileira
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84
Mediação e conciliação:
dois paradigmas distintos,
duas práticas diversas
Tania Almeida
1 Considerações iniciais
A chegada da mediação à cultura brasileira vem se fazendo gradativamen-
te. Um dos desafios deste percurso é estabelecer uma adequada distinção em relação
à conciliação, instrumento de resolução de conflitos praticado há mais tempo. Por
contemplarem ambas a construção de acordos, mediação e conciliação são, por vezes,
tomadas como sinônimos.
Como a cultura mundial caminha em direção à ampliação de métodos de
acesso à justiça, é interessante que possamos então conhecer esta diferenciação com
clareza. Visa o sistema multiportas72 de acesso à justiça – disponibilização de dis-
tintos métodos de resolução de conflitos – poder ampliar o número de portas de
que dispomos e, sobretudo, adequar o encaminhamento de nossas questões à que
for mais apropriada.
Esse é um dos benefícios dos sistemas multiportas de acesso à justiça e resolu-
72 Termo cunhado por Frank Sander - MultiDoors CourtHouse - 1985, para designar a possibilidade de
oferta e de escolha de diferentes métodos de resolução de conflitos integrados ao Judiciário.
85
ção de controvérsias: possibilitar o encaminhamento da questão existente para o instru-
mento de resolução que ofereça maior eficácia e, conseqüentemente, maior eficiência.
Se tivermos dois ternos no armário, precisamos eleger um ou outro para ocasiões que
demandem o uso de traje formal. Se ampliarmos o número de ternos, podemos adequar
o modelo ao evento, à temperatura e ao horário da ocasião, assim como à maior ou me-
nor formalidade exigida.
Apesar da finalidade conciliatória em comum, mediação e conciliação guardam
distinções tão nítidas em seus propósitos e em seu alcance social que vale a pena, nesse
momento em que ambas se encontram no mesmo cenário, destacá-las.
O caráter transdisciplinar da mediação – recurso que articula dessemelhantes
saberes de forma a potencializar o diálogo autocompositivo voltado à construção de con-
senso – é o principal responsável pelas inúmeras distinções com a conciliação e com ou-
tros meios de resolução de conflitos. Os aportes teóricos oriundos de distintas disciplinas
conferiram à condução da mediação uma significativa complexidade, exigindo capacita-
ção específica dos mediadores; em contrapartida, conferiram ao seu ritual negocial uma
especial informalidade.
73 Rubén Calcaterra é um autor argentino que defende a descontrução do conflito como condição para a
autocomposição e o restauro da relação social. Em sua visão, os métodos genuinamente autocompositivos de-
vem incluir três passos consecutivos: desconstrução do conflito, reconstrução da relação social e co-constru-
ção da solução. Para o autor, os métodos que trabalham com sugestão ou determinação da solução prescindem
desse passo a passo e têm alcance social distinto.
86
Tania Almeida
considerada o método de eleição ideal ou mais apropriado para desacordos entre pes-
soas cuja relação vai perdurar no tempo – seja por vínculos de parentesco, trabalho,
vizinhança ou parceria.
74 Novos Paradigmas em Mediação é obra coordenada por Dora Fried Schitman que reúne vários artigos
relativos a mudanças paradigmáticas propostas pela mediação.
87
Mediação e conciliação: dois paradigmas distintos, duas práticas diversas
75 Carlos Sluzky é um psiquiatra argentino, casado com Sara Cobb, uma referência mundial para a mediação,
que se debruçou sobre o tema das redes sociais e suas repercussões.
88
Tania Almeida
primaz de gerar informações para as partes, uma vez que serão elas as autoras das soluções.
A exemplo do diálogo socrático, um mediador precisa auxiliar os envolvi-
dos a parirem suas idéias e a se darem conta de que a solução que melhor as atende
pode – e deve – ser construída a partir do próprio saber e conhecimento sobre as
suas reais necessidades.
Essa é uma característica que legitima o termo negociação assistida, freqüente-
mente usado para se referir à mediação. O mediador atua como um facilitador do diálogo
entre pessoas a fim de que a negociação direta entre elas possa ser restabelecida.
89
Mediação e conciliação: dois paradigmas distintos, duas práticas diversas
90
Tania Almeida
91
Mediação e conciliação: dois paradigmas distintos, duas práticas diversas
12 Considerações finais
Pela competição, mantemo-nos tão assertivos em busca da satisfação pessoal que
desconsideramos necessidades, pontos de vista e interesses do outro. Pela concessão, fa-
zemos o oposto: atendemos aos interesses e às necessidades do outro mais do que aos
nossos, cedendo e concedendo. Pela colaboração, mantemos a assertividade em direção
aos nossos interesses e necessidades e fazemos o mesmo em direção aos interesses e às
necessidades do outro, na intenção de atendê-los. A colaboração é a postura de atuação
solicitada na mediação.
76 É crescente o interesse dos autores pela necessária mudança de postura dos advogados quando assessores
de seus clientes em processos de mediação.
92
Tania Almeida
Referências
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trumentos apropiados para la abogacía moderna. Buenos Aires: Ad-Hoc, 1997.
77 A construção de consenso – instrumento especialmente voltado para as composições que envolvem múltiplas
partes e múltiplos interesses – ganha privilégio na contemporaneidade em função de ter como princípio funda-
mental o respeito às diferenças na convivência, competência social necessária ao homem deste século. Consensus
Building Institute (<http://cbuilding.org/>) é instituição dedicada a esse tema que motiva crescente produção
literária. Uma obra síntese de seus múltiplos aspectos é: Susskind, Mckearnan e Thomas-Larmer (1999).
93
Mediação e conciliação: dois paradigmas distintos, duas práticas diversas
CÁRDENAS, Eduardo José. El cliente negocia y el abogado lo asesora: una variante poco usada en
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SERPA, Maria de Nazareth. Teoria e prática da mediação de conflitos. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
1999.
SLUZKI, Carlos E. A rede social na prática sistêmica: alternativas terapêuticas. São Paulo: Casa
do Psicólogo, 1997.
94
Ser um mestre em mediação?78
Nosotros debemos cultivar la intuición para anticipar cambios antes de que ellos ocurran;
empatía para entender lo que no puede ser claramente expresado; sabiduría para ver las
conexiones entre los hechos que aparentemente no están relacionados, y creatividad para descubrir
nuevas formas de definir problemas, nuevas reglas que posibiliten adaptarse a lo inesperado
(CSIKSZENTMIHALYI, 1996).
1 Conceito de maestria
Definimos a maestria como o nível mais alto da arte e da ciência da mediação. Trata-
se de um grau permanente de habilidade que se compõe basicamente da retroalimentação
entre as diversas teorias, as múltiplas práticas e a reflexão sobre ambas. Para alcançá-la,
deve-se ter a habilidade de sintetizar o conhecimento e as destrezas no momento da
interação, de integrar teoria e técnica em uma série de estratégias e intervenções.
Nem todos os profissionais chegam a adquirir este grau de desenvolvimento
profissional. Podem ser bem-informados, competentes, especializados, eficazes e
inclusive realizar intervenções brilhantes, sem alcançar às vezes o mais alto nível
de qualidade profissional, que foi denominado de estágio do artista (LANG;
TAYLOR, 2000).
A maestria é a manifestação de uma pessoa que usa todo seu conhecimento e
suas habilidades de tal maneira que se diferencia dos demais não apenas no resultado mas
também no processo pelo qual chega àquele. Requer mais que competência na prática
das habilidades essenciais e mais que capacidade para aplicar a teoria de forma consciente
e analítica. É a forma como um profissional responde às circunstâncias únicas, aos fatos
imprevistos que emergem na prática profissional, o que distingue o mestre do praticante. E
pode ser aprendida, e pode ser ensinada.
2 Os estágios da profissão
Cada profissional pode construir seu caminho rumo a níveis de alta qualidade.
Segundo o modelo de Lang e Taylor (2000), passa-se por quatro etapas ou dinâmicas. No
primeiro nível de aprendizagem, costuma-se colocar ênfase no “como” (mediar, facilitar,
negociar). É o estágio do iniciante. O iniciante está interessado em adquirir conhecimentos
e habilidades, compreender a natureza da prática. Para desenvolver a competência nesta
etapa, os mediadores necessitam de marcos conceituais, teorias, modelos, treinamento,
simulações, estudo de casos, observação e retroalimentação que permitem ao iniciante
adquirir noções de como funciona a mediação.
Finalizada esta etapa de capacitação básica e, em seguida, de avaliação de
desempenho e certificação, que alguns sistemas prevêem, começa a etapa do aprendiz. O
mediador neste estágio deseja colocar em prática seus conhecimentos e habilidades. É o
momento de ter acesso a uma prática supervisionada, seja em co-mediação, monitoramento
ou supervisão e aí aparecem as necessidades e o potencial da prática.
O terceiro estágio é o do praticante, no qual se inicia o caminho para a
profissionalização. O trabalho do mediador está sustentado por teorias e habilidades.
Espera-se que tenha adquirido a habilidade de utilizar o conhecimento e as destrezas
no momento da interação, que seja capaz de integrar a teoria e a técnica em uma
série de estratégias e intervenções. A capacitação contínua e a clínica de mediação
(ARÉCHAGA; BRANDONI; FINKELSTEIN, 2004) são os meios para enriquecer-se
profissionalmente.
Para avançar até o estágio do mestre ou do artista, requer-se mais que
competência na prática das habilidades essenciais e mais que capacidade para
aplicar a teoria de forma consciente e analítica. A maestria, reiteramos, é o como se
responde às circunstâncias únicas, aos fatos imprevisíveis que emergem na prática
profissional.
Aqueles que praticam a mediação e aspiram a níveis de alta qualidade
necessitam examinar seus princípios e valores, questionar suas crenças e práticas
de forma tal que os ajude a identificar, conscientemente, o que é essencial, o que
deve ser abandonado e o que merece ser investigado. A menos que os mediadores
compreendam os princípios teóricos que subjazem, influenciam e moldam suas
práticas, correm o risco de serem talentosos mecânicos testando uma ferramenta atrás
da outra sem compreender porque uma ferramenta determinada pode ser útil, e que
resultados cabe esperar desta intervenção, a respeito da qual é necessário, ademais, ter
a habilidade de avaliar o êxito ou fracasso.
No estágio de maestria se refocaliza a aprendizagem, e o foco se volta para pensar
o conflito e sua resolução de forma criativa e aplicar estes pensamentos nas múltiplas
situações que a prática apresenta. O resultado é o aprendizado deixado pela experiência e
que permite pensar produtivamente o tratamento e manejo das disputas.
96
Gladys Stella Álvarez
79 John Haynes, Jornadas e Oficinas de Mediação, preparadas e organizadas pela Fundação Libra no Colégio de Es-
crivãos de Buenos Aires, em 1999. As perguntas reveladoras seriam: Estou enredado na desesperança das partes? Que
informação me falta para poder provocar um reenquadramento da situação?
97
Ser um mestre em mediação
80 A palavra usada por Lang e Taylor (2000) na obra citada é resiliência. Não é uma palavra de uso corrente. Em inglês,
abrange como metáfora certas qualidades humanas. Segundo Martín Wainstein (2000, p. 138), em nosso idioma, o cha-
maríamos de plasticidade... Talvez o conceito, em si mesmo, não seja demasiado original, mas pragmaticamente orienta o
pensamento em direção à criatividade construtiva, tirando-nos das soluções padrão.
98
Gladys Stella Álvarez
99
Ser um mestre em mediação
5 Conclusão
A arte da mediação se aprende. Seus princípios podem ser identificados,
aprendidos, integrados e recriados para que possam ser experimentados. Cada pessoa
é capaz de experimentar a arte da mediação em suas práticas. O processo de ensino-
aprendizagem tem sua metodologia para desenvolver o conhecimento necessário, as
habilidades e hábitos para converter-se em artista, um profissional de alta qualidade.
Muitas das habilidades básicas para a prática que se identificam como essenciais
para o desenvolvimento profissional são comuns; a maioria dos mediadores as aprende na
capacitação básica e nos treinamentos avançados. O coração das áreas de conhecimento
é também familiar, são os princípios e crenças fundamentais que dão suporte à prática.
O que é único na aprendizagem da arte da mediação é a sintetização do
conhecimento e das habilidades através da prática reflexiva e do processo interativo.
Os praticantes podem continuar descobrindo novos enfoques através do
processo reflexivo, mas, para muitos mediadores, o nível e a paixão pela exploração pode
ter diminuído. Pensamos que os mediadores não passarão do estágio de praticante a menos
101
Ser um mestre em mediação
Referências
ARÉCHAGA, Patricia; BRANDONI, Florencia; FINKELSTEIN, Andrea. Acerca de la clínica
de mediación: relato de casos. Buenos Aires: Librería Histórica, 2004.
LANG, Michael D.; TAYLOR, Alison. The making of a mediator: developing artistry in practice.
San Francisco: Jossey-Bass, 2000.
102
A ética na mediação
Ética é daquelas coisas que todo mundo sabe o que são, mas que não são fáceis de explicar, quando
alguém pergunta (VALLS, 1993, p. 7).
Ética, já sabemos de que se trata. Há quem saiba mais, quem menos, mas todo ser humano tem sua
noção básica. Alguns a levam mais a sério, outros nem tanto como seria desejável (IASI, 2002).
1 Apresentação
A presente exposição aborda a questão da importância de se delimitar parâmetros,
standards de comportamento e de procedimento para o instituto da mediação e o
comprometimento entre o cumprimento desses valores estabelecidos e a seleção, formação
e atuação dos mediadores, que proporcionarão uma maior credibilidade, aceitação
e consequente crescimento de sua utilização. Explana, então, sobre ética e eticidade, a
importância de um código e seu conteúdo, a relevância da personalidade do terceiro
interventor e sua formação e os reflexos destes em relação aos princípios atinentes ao
mediador e aos mediados e à própria mediação.
2 A ética
Antes de falar em um Código de Ética para mediação, deve-se delimitar
primeiramente o que se entende por ética e por eticidade, quais as vantagens de se estabelecer
um padrão de comportamento e quais os parâmetros que devem dele fazer parte.
O que é ética? As citações ao início já demonstram que parece ser fácil identificar
do que estamos falando, porém, na sua concretização, grande complexidade se faz presente.
Ética é uma palavra de origem grega, que pode ser entendida como costume
e/ou propriedade do caráter. Está presente nesta e em todas as sociedades, inclusive,
aceitando-se hoje como encontrável nas não humanas (SINGER, 1994, p. 4-6). Nessa
análise, tomaremos como seu objeto material somente o ato humano e como seu
objeto formal a moralidade desse ato. Portanto, a ética lida com questões do bem, do
103
A ética na mediação
3 A eticidade
O que é eticidade? O que determina o comportamento ético do indivíduo?
No pensamento de Hegel, exposto por Thadeu Weber (1999, p. 97-118), a
eticidade está ligada à adequação da vontade individual aos conceitos e parâmetros
identificados como éticos. A vontade, por sua vez, só se determina pela decisão que a
individualiza em relação ao outro. Toda decisão é, então, uma escolha que leva à renúncia
das demais possibilidades estabelecendo limites. Essa escolha é determinada pelas:
4 Código de Ética
Por que um Código de Ética? Quais as vantagens de se positivar valores?
Porque tais documentos, nas diferentes atividades, em especial na mediação,
têm a função de proporcionar parâmetros ou diretrizes para que os envolvidos se sintam
seguros ao adotarem formas éticas de se conduzir, de garantir homogeneidade na
81 Todos sabemos o que é empatia, o que é respeito — mas, no dia-a-dia, não reservamos muito tempo para
aplicar tais conceitos às nossas relações... (SERRA, 2005).
104
Tânia Lobo Muniz
105
A ética na mediação
106
Tânia Lobo Muniz
Entre outros elementos, o Código de Ética poderia versar sobre (PORTUGAL, 2002):
a) reconhecimento da autonomia da vontade, garantindo a autodeterminação
das partes;
b) atribuições ou deveres do mediador na condução do processo;
c) princípios éticos fundamentais da atividade, como: a imparcialidade como
critério subjetivo, a independência, a competência, a diligência e discrição, pela
qual também se obriga ao sigilo;
d) imparcialidade como critério técnico, objetivo de atuação, permitindo a
igualdade entre as partes;
e) confidencialidade, assegurando-lhe direito/dever de manter o sigilo das
informações que lhe forem reveladas e a consequente proibição de intervenção
em processos subsequentes à mediação a qualquer título;
f ) a nomeação;
g) os limites de sua participação como facilitador e não como julgador, devendo
o acordo refletir a vontade das partes e não as determinações do interventor;
h) a condução do processo;
i) o perfil, as qualidades ou as características do mediador;
j) os honorários;
k) a participação das instituições especializadas;
l) o mediador face ao Judiciário.
Pode-se resumir este conteúdo a quatro (BENJAMIN, 2004) comportamentos
específicos para proteger as partes e a integridade do processo de mediação. Deve o
mediador conservar a imparcialidade, revelando e evitando os conflitos de interesses. Deve
o mediador previdente divulgar às partes todo e qualquer contato ou relacionamento
com qualquer uma delas ou com seus associados, organizações, familiares; devem evitar
manter contato ou impropriedades que possam causar aos mediados o questionamento
da parcialidade ou favorecimento do mediador a um dos negociadores, não somente ao
tempo da negociação, mas no futuro.
Deve-se sustentar a clareza de papéis de facilitador e não de julgador, não devendo
jamais fazer recomendações ou apegar-se a uma opção de solução do problema sem a
concordância, por escrito, das partes interessadas. Ele tem o dever adicional de esclarecer
às partes os riscos e vantagens de se fazer certas escolhas, mas não de induzir as partes
ou fazê-lo por elas. O mediador deve permanecer em sua função e não cruzar a linha de
facilitador para a de julgador.
O mediador deve manter o direito de terminação das partes, ligado à sua
autodeterminação. As partes devem ter garantido seu poder de decidir se dão ou não
continuidade ao processo, independente de justificativa ou explicações. Depende da atuação
do profissional a maior ou menor motivação dos envolvidos para participar da mediação. Se
ele não oferecer razões adequadas às partes para que permaneçam engajadas no processo,
elas podem decidir retirar-se ou procurar outros mecanismos para a solução de seu conflito,
sem que possam ser compelidas a participar por qualquer corte ou outra autoridade.
E ainda, deve ser mantida a confidencialidade, pela qual o mediador se obriga a
não revelar para outrem, perante os tribunais ou outras autoridades qualquer informação,
107
A ética na mediação
atitude, motivação ou ação a qualquer tempo das partes; ele deve manter o dever de
lealdade para com os envolvidos.
108
Tânia Lobo Muniz
estes elementos, não conseguirá conduzir as partes de forma a alcançarem seus objetivos
— acesso à justiça, proximidade, informalidade e economia processual —, fazendo
com que a sociedade não lhe atribua credibilidade. Pois, se a proposta de utilização do
mecanismo é a de obter uma verdadeira pacificação, fazendo uma transposição para uma
cultura de paz, sua má utilização geraria desconfiança em sua factibilidade, colocando
obstáculos à sua aceitação e desenvolvimento.
Mas para que serve um Código de Ética se não for respeitado? O problema é que
“a ética é eminentemente pessoal. De nada serve a norma ética, escrita num código, se
antes o indivíduo não for ético... não são as normas que fazem o homem ético”. A chave
está na excelência pessoal, na vontade individual de ser gente, de ser uma pessoa boa, de
ser um cidadão, no que se pode chamar de qualidade humana, colocando-se o acento mais
nas virtudes pessoais do que nas normas éticas (ALONSO, 2002).
Como a ética é antes interna do que externa, flui do interior da pessoa e não das
normas positivas, é essencial que os padrões éticos sejam mantidos potencializados ao máximo.
O grande desafio está, então, na formação ética pessoal do indivíduo (ALONSO, 2002).
Daí decorre a importância de se adequar os processos de formação e seleção de
mediadores na busca daqueles que tenham o perfil do mediador (DAVIS, 2003, p. 15-26;
DIAS, 2003, p. 52-59; MOORE, 1998; SIX, 2001; URY, 2000; PORTUGAL, 2002).
As características daquele indivíduo, cidadão que “pensa que modificando a si mesmo é
possível mudar sua relação com o outro, com o grupo e por isso mesmo que é possível
mudar um pouco da sociedade” (SIX, 2001, p. 118). O melhor profissional tem a alma de
um humanista, a mente de um estrategista e o coração de um negociador, oprimido pela
fraude, somente para lhe dar a justa medida (BENJAMIN, 2004).
Assim, o bom mediador deve ter algumas características que o habilitem a
desenvolver sua função, tais como: confiabilidade e imparcialidade, paciência e tenacidade,
conhecimento e capacidade, habilidade de comunicação e flexibilidade.
A imparcialidade, da qual trataremos mais adiante, se manifesta na retidão, na
justiça, no equilíbrio de julgamento, sem se deixar dominar pelas paixões, próprias ou
dos envolvidos no processo; sem imparcialidade e neutralidade, não há confiabilidade
que se faça perceptível na habilidade de transmitir às partes segurança em relação ao seu
comportamento, ao seu talento e à sua discrição, pois, se elas não confiarem na pessoa que
desempenhará o papel de terceiro, não haverá ambiente para a condução da mediação.
A paciência consiste na virtude de suportar os infortúnios, as idas e vindas e o
passar do tempo necessários para a consecução do acordo, uma vez que nem sempre as
coisas se conduzem da maneira como as partes e o mediador imaginaram e é preciso ter
resignação para fazer com que os envolvidos cheguem a um acordo satisfatório, aliada à
tenacidade, que proporciona ao mediador a coerência, pertinência e firmeza de propósito
para chegar até a resolução da questão.
O conhecimento não exige a erudição, mas que tenha relações, convívio, vivência
com os métodos e técnicas necessários ao desenvolvimento da mediação, que seja versado,
que saiba sobre seu conteúdo, assim como sobre o tema atinente ao objeto do litígio,
mas, além da teoria, que tenha a capacidade, a destreza mental, a agudeza de pensamento,
109
A ética na mediação
83 Sobre os princípios reguladores da atuação dos mediadores, Sales (2004); Moore (1998); Vezzulla (2003);
e Portugal (2002).
84 Quanto à imparcialidade e neutralidade do mediador: [...] a intervenção do terceiro por mais independente e im-
parcial que seja não deixa de ser modificadora, pois a neutralidade inexiste já que o mediador ao formular questões
diversas aos mediados o faz dentro de sua bagagem pessoal e profissional, porém com um limite de isenção, já que não
poderá ultrapassar o terreno fronteiriço dos valores demarcados e trazidos pelas partes. Marines Suares afirma que se
“a neutralidade é um meio”, acrescentar-se-ia uma finalidade também, “o mediador deverá atuar de maneira imparcial
e equidistante durante todo o processo, como se fosse de pedra e sem seus valores, preconceitos, crenças, etc. [...]”. Na
verdade, é um exercício de isenção, esforço que deverá adotar para que sua intervenção atinja o ideal da neutralidade
necessária (BRAGA NETO, 2003, p. 30).
85 Apesar de a neutralidade ser considerada um mito, uma vez que ninguém é neutro, pois possuímos uma visão
cósmica, convicções, crenças e ideologias e com estes pré-conceitos vivemos e nos relacionamos na vida, deve o
mediador procurar manter-se distante das partes e da causa, evitando comprometer a decisão das partes e com isso
a mediação realizada e o próprio instituto como um todo.
110
Tânia Lobo Muniz
86 A respeito da imparcialidade, Greco Filho (1996, p. 232-235); Santos (1993, p. 170-171); e Cintra, Grinover
e Dinamarco (1997, p. 51-52).
111
A ética na mediação
87 Sobre os princípios norteadores da conduta dos participantes, Sales (2004); Moore (1998); Vezzulla
(2003); e Portugal (2002).
112
Tânia Lobo Muniz
7 Conclusão
Para que um Código de Ética seja um instrumento de realização da filosofia da
atividade, de sua visão, missão e valores, deve ser concebido pela própria classe e expressar a
sua cultura e finalidade, orientar as ações de seus participantes e colaboradores e explicitar
a postura do mediador em face dos diferentes litígios com os quais interage. É essencial que
haja consistência e coerência entre o que nele está disposto e o que se vive na atividade de
mediação. Se o código de conduta de fato cumprir o seu papel, sem dúvida significará um
diferencial que trará o aperfeiçoamento do instituto e sua maior credibilidade traduzida
no incremento de sua utilização (WHITAKER, 2002).
Referências
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projeto inovador. Brasília: Conselho da Justiça Federal: Centro de Estudos Judiciários, 2003. p.
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113
A ética na mediação
DIAS, José Carlos de Mello. Mediador: uma experiência profissional. In: DELGADO, José et
al. Mediação: um projeto inovador. Brasília: Conselho da Justiça Federal: Centro de Estudos
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www.oa.pt>. Acesso em: 7 fev. 2003.
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Acesso em: 25 jun. 2009.
114
Diretrizes éticas, capacitação,
credenciamento e supervisão da atuação
de mediadores e conciliadores:
contribuições preliminares
Sumário. Introdução. 1. Diretrizes éticas. 1.1 Imparcialidade. 1.2 Dever de respeitar a autonomia
das partes. 1.3 Deveres de competência e diligência. 1.4 Dever de alertar as partes sobre a necessi-
dade de perícia técnica ou assessoramento de terceiros. 1.5 Dever de zelar pelo equilíbrio de poder
entre as partes. 1.6 Confidencialidade. 1.7 Transparência na condução do processo. 1.8 Dever de
zelar pela viabilidade do cumprimento do acordo. 1.9 Dever de zelar pelos interesses de terceiros
afetados. 1.10 Remuneração do mediador. 2. As qualidades necessárias para um bom mediador.
3. Sobre a regulamentação (ou não) da atividade. 3.1 Cadastro, registro ou certificação de me-
diadores – critérios apropriados. 3.2 A capacitação de mediadores. 4. Supervisão e aplicação de
penalidades por desvio ético. 6. Conclusões. Referências.
1 Introdução
São pontos cruciais no que concerne ao funcionamento de programas de solução
consensual de conflitos a definição das diretrizes éticas que devem conduzir a atuação
dos profissionais encarregados de tais atividades, bem assim as condições exigidas para
o exercício de tal atividade, seja no que se refere à qualificação, seja no que concerne ao
credenciamento destes profissionais ou à supervisão de sua atuação.
Preliminarmente, cabe, todavia, mencionar a distinção que Jean-François Six ela-
bora entre “mediadores institucionais”, normalmente integrantes dos quadros de órgãos
públicos, e “mediadores cidadãos”, normalmente voluntários que atuam em programas de
mediação comunitária.
Segundo Six (2001, p. 33), os mediadores institucionais são, “essencialmente, es-
pecialistas formados para atender a um problema específico, bem definido, pelo qual vão
responder.” Para esse autor, o “aumento dos conhecimentos necessários à decisão e uma
grande virtuosidade para se encontrar no emaranhado da lei os tornaram pouco a pouco
imprescindíveis”. Todavia, o “perigo da burocratização da mediação institucional existe.”
(SIX, 2001, p. 30).
Já os mediadores cidadãos “fazem então apelo aos recursos próprios das pessoas
que os procuram. Apóiam-se sobre o que essas pessoas dispõem e que não se atrevem a
utilizar: seus próprios recursos” (SIX, 2001, p. 34). E prossegue: “o mediador cidadão é
115
Diretrizes éticas, capacitação, credenciamento e supervisão da atuação
aquele a quem se procura porque se sabe – ou se pressente – que tem um dom, o de sus-
citar ligações, reconciliar as pessoas, de trazer uma pequena luz a um momento opaco.”
(SIX, 2001, p. 35).
Um outro ponto relevante na distinção da metodologia adotada por cada um
dos dois perfis, que, para Six (2001, p. 35), podem perfeitamente coexistir, diz respeito ao
ritmo dos trabalhos:
O mediador institucional é apressado, pelo organismo que o colocou no lugar, para encontrar re-
sultados, para chegar a soluções o mais rapidamente possível; ele deve apresentar rendimento, o
que é compreensível. O mediador cidadão deve tomar tempo, afastar o simplismo, os atalhos, a
precipitação, deve guardar o senso da duração e do recuo, da paciência e da distância.
2 Diretrizes éticas
O rol de deveres de mediadores e conciliadores que se apontará a seguir se pauta
pela necessidade de melhor explicitar os limites éticos para a atuação destes profissionais,
tendo em vista os objetivos de resolução pacífica e ao mesmo tempo adequada dos confli-
tos que lhes são submetidos.
Apesar de pairar grande controvérsia, como abordarei mais adiante, sobre
se a atividade de mediação constitui ou não uma profissão, não existe dúvida quan-
to ao fato de que ela envolve responsabilidades tanto do ponto de vista positivo,
isto é, deveres de fazer algo durante o processo, quanto do ponto de vista negati-
vo, ou seja, deveres de não adotar determinadas condutas. Em simpósio realizado
em 1995 nos EUA com o propósito específico de discutir os padrões de conduta
de mediadores e outros profissionais na resolução de conflitos, uma das falas de
abertura já salientou: “há um crescente consenso de que os métodos alternativos
de resolução de controvérsias suscitam questões de conduta profissional distintas,
que não têm como ser totalmente abarcadas pelos códigos de outras profissões.”
(FEERICK et al. 1995, p. 1).
116
Luciane Moessa de Souza
Tânia Lobo Muniz (2009, p. 107), ao tratar da utilidade e importância dos Có-
digos de Ética na atuação de mediadores, resume bem a finalidade destes preceitos de
comportamento:
O objetivo destes parâmetros é proteger a sociedade do mau profissional e das más instituições -
proteger-nos de nós mesmos -, assegurando assim uma melhor utilização do instituto e garantindo
os interesses das pessoas que dele se socorrerem, como também daqueles que atuarão como inter-
venientes no processo.
117
Diretrizes éticas, capacitação, credenciamento e supervisão da atuação
2.1 Imparcialidade
O primeiro dever elencado nos Códigos de Ética de Mediadores costuma ser a
imparcialidade. Nos EUA, às vezes é também chamado de neutralidade e, por vezes, uma
de suas facetas é elencada como um dever autônomo, qual seja, o dever de evitar conflitos
de interesse 89. Trata-se de um debate que conhecemos muito bem no Brasil, no campo
da Filosofia do Direito, onde o pensamento crítico já deixou claro, há muito tempo, que a
neutralidade, além de impossível, implicaria a simples manutenção do status quo. No cam-
po da mediação, como visto, um dos objetivos, segundo parte considerável da doutrina, é
transformar o padrão destrutivo de relacionamento entre as partes, muitas vezes marcado
por considerável desequilíbrio de poder, substituindo-o por um novo padrão, caracteriza-
do por autêntico equilíbrio, justamente para fazer com que as partes aprendam a gerenciar
seus conflitos de forma natural e construtiva.
Essa postura, que vê na mediação esse caráter pedagógico e transformativo, so-
mente se coaduna com um dever de imparcialidade que se desdobra no dever, do qual
trataremos mais adiante, de buscar um maior equilíbrio de poder entre as partes, quando
a assimetria é muito significativa.
Segundo Suzanne McCorkle (2005, p. 171),
Muito embora os autores que escrevem sobre mediação diferenciem entre neutralidade (não
tomar partido nem ter preconceito em relação a nenhuma das partes) e imparcialidade (não ter
nenhum interesse no desfecho do processo), a maioria dos Códigos usam os termos de forma
intercambiável.
89 É interessante observar que aquilo que costumamos chamar no Brasil de neutralidade corresponde ao que, nos EUA, se
entende por imparcialidade – e vice-versa. Vejamos o que diz Carole Silver (1996) ao definir imparcialidade: “Impartiality
also can be defined as equal treatment; one who is impartial treats both parties the same, regardless of whether their cir-
cumstances indicate that equivalent results would be produced only by different or unequal treatment.” A mesma autora
cita a definição que Leda M. Cooks e Claudia L. Hale dão a neutralidade: “neutrality involves the idea of fairness; where
differences in power or sophistication of the parties result in one party needing the mediator’s participation in order to
equalize the two sides, neutrality is obtained by such mediation participation.” Para Silver (1996), “Impartiality may ap-
pear compromised in achieving neutrality.”
118
Luciane Moessa de Souza
Deste modo, como resume ela, “as restrições somente se aplicam em circunstân-
cias em que o relacionamento entre o terceiro e uma das partes (ou seu advogado) é tão
próximo que provoca em qualquer pessoa razoável a crença de que ele terá um impacto na
conduta do terceiro” 92. Daí a importância de revelar estas conexões a todas as partes logo
no início do procedimento.
O standard III, A, do principal Código de Ética dos EUA assim dispõe a respeito:
Um conflito de interesse pode surgir a partir de um envolvimento do mediador com a matéria
objeto do conflito ou de qualquer relacionamento, passado ou presente, pessoal ou profissional,
que suscite dúvida razoável sobre a imparcialidade do mediador.93
o mediador deverá revelar, tanto quanto praticável, todos os reais e potenciais conflitos de interesse
que sejam razoavelmente conhecidos do mediador e possam ser vistos como suscetíveis de causar
dúvida sobre a sua imparcialidade. Após a revelação, se todas as partes concordarem, o mediador
poderá prosseguir com a mediação. 94
O mesmo vale, segundo o item D deste standard III, para fatos ocorridos ou co-
nhecidos do mediador apenas após o início do processo de mediação. Já outros Códigos,
como os dos Estados de Massachussetts, Illinois e o do California Judicial Council, con-
forme relata McCorkle (2005, p. 175), estipulam que, quando houver potencial conflito
de interesses, o mediador deve deixar de atuar, ainda que as partes consintam em que ele
continue. Muitos dos Códigos estaduais, segundo a mesma autora, elencam claramente
quais são os tipos de relacionamento que devem ser revelados pelo mediador às partes,
sendo eles:
[...] relações financeiras ou associações; relações familiares ou sociais; relações sociais ou de ne-
gócios com membros da família do mediador ou das partes; relações pessoais, financeiras ou de
negócios com o advogado de alguma das partes; ter atuado como advogado ou representante de
alguma das partes; interesses pecuniários; fazer parte da mesma Diretoria de algum órgão que al-
guma das partes; fazer parte do mesmo quadro de acionistas que alguma das partes; estar envolvido
no conflito interesse do escritório do qual o mediador que é advogado faz parte; estar envolvido
no conflito interesse do empregador do mediador; relações íntimas entre mediador e alguma das
partes; visões fortes com relação a alguma das questões envolvidas no conflito; relações sexuais com
alguma das partes. (MCCORKLE, 2005, p. 177).
participantes em qualquer matéria que possa levantar dúvidas sobre a integridade do pro-
cesso de mediação” (tradução da autora). A regra é, porém, flexível, não estabelecendo
prazo certo nem que tipo de relacionamento estaria proibido, deixando a critério do me-
diador julgar se o relacionamento poderia gerar a percepção de ter havido um conflito de
interesses. No caso dos Códigos estaduais americanos, segundo McCorkle (2005, p. 178),
alguns deles permitem a atuação profissional do mediador para alguma das partes, caso as
demais assim consintam (caso do Alabama).
No Brasil, o Código de Ética para Mediadores do Conselho Nacional das Ins-
tituições de Mediação e Arbitragem (CONIMA), em seu subitem III, 2, dispõe que o
mediador “revelará, antes de aceitar a indicação, interesse ou relacionamento que possa
afetar a imparcialidade, suscitar aparência de parcialidade ou quebra de independência,
para que as partes tenham elementos de avaliação e decisão sobre a sua continuidade.”
Neste compasso, estabelece o mesmo Código, no subitem IV (Do mediador
frente às partes), 5, que cabe ao mediador “dialogar separadamente com uma parte so-
mente quando for dado o conhecimento e igual oportunidade à outra.”
Já no subitem IV, 10, estabelece caber ao mediador “observar a restrição de não
atuar como profissional contratado por qualquer uma das partes para tratar de questão
que tenha correlação com a matéria mediada.”
Esta proibição, que, no caso do Código do CONIMA, é limitada sob o ponto de
vista material (só vale para matéria correlata com a mediação), mas ilimitada sob o prisma
temporal, é absolutamente relevante no caso em que uma das partes constitui o que se
chama nos EUA de “repeat players” e no Brasil de “litigantes habituais”, ou seja, aqueles
entes (públicos ou privados) que se veem envolvidos em grande número de conflitos se-
melhantes, gerando grande possibilidade de o mediador vir a atuar novamente para uma
delas, que é também a parte mais poderosa, tanto do ponto de vista econômico quanto do
ponto de vista do acesso a informações e assessoria técnica relevantes.
As legislações argentina e colombiana sobre o assunto também cuidaram de tra-
zer proibições com o propósito de garantir a imparcialidade do mediador ou do conci-
liador. Na Argentina, o mediador fica impedido de atuar para qualquer das partes até
um ano após a cessação de sua atuação como mediador, não no caso concreto, mas do
exercício da atividade de mediador. A proibição é definitiva no que diz respeito às causas
em que atuou como mediador – disposição que parece bastante adequada. Na Colômbia,
da mesma forma, os conciliadores ficam impedidos, em definitivo, de atuar como árbitros,
consultores ou procuradores de qualquer das partes em assuntos relacionados ao conflito
em que tenham atuado, porém não existe proibição de trabalhar ou se relacionar com as
partes em outros assuntos. Prevê ainda a legislação que os centros de conciliação ficam
impedidos de atuar em casos nos quais eles ou seus membros sejam diretamente interes-
sados.
O PLC 4827/1998 previa que o mediador ficaria impedido por dois anos (a
contar do encerramento da atuação no caso) de prestar qualquer serviço às partes; e, em se
tratando de matéria correlata à mediação, o impedimento é definitivo (artigo 23 do pro-
jeto). Naturalmente, havia também previsão de que os casos de impedimento e suspeição
121
Diretrizes éticas, capacitação, credenciamento e supervisão da atuação
O PLS 517/2011 não previa, porém, qualquer impedimento para a atuação pos-
terior de mediadores.
Já o texto do novo Código de Processo Civil prevê, em seu artigo 172, que o
conciliador ou mediador “fica impedido, pelo prazo de um ano contado a partir da última
audiência em que atuaram, de assessorar, representar ou patrocinar qualquer das partes”.
Além de estipular prazo curto, não se estabelece qualquer proibição adicional de atuar em
matéria correlata à do litígio, estabelecendo autêntico retrocesso em relação ao conteúdo
do projeto de lei anterior sobre o assunto. Dispõe também que os conciliadores e media-
dores judiciais que sejam advogados estão impedidos de exercer a advocacia nos juízos
em que desempenhem suas funções (art. 167, § 5º.). A redação original, mais restritiva,
falava em “limites da competência do respectivo tribunal” (o que abrangeria toda a Justiça
Federal, estadual ou trabalhista de uma dada região ou Estado) e da proibição de integrar
escritório de advocacia que atuasse na mesma área.
O PLS 405/2013, que tratava apenas da mediação extrajudicial, dispunha que as
“pessoas indicadas para funcionar como mediador têm o dever de revelar, antes da acei-
tação da função, qualquer fato que denote dúvida justificada quanto à sua imparcialidade
em relação às partes e ao conflito” (artigo 12), e também proibia o mediador de atuar
como árbitro em conflito no qual tenha atuado como mediador, salvo acordo em sentido
contrário entre as partes (artigo 13).
Já o anteprojeto elaborado pela Comissão de Especialistas do Ministério da Jus-
tiça, que veio a se converter no PLS 434/2013, estipulava que os mediadores ficariam
impedidos “pelo prazo de dois anos, contados do término da última sessão de mediação
em que tenha atuado, de assessorar, representar ou patrocinar qualquer das partes” (ar-
tigo 11), além de estabelecer que se aplicam aos mediadores as mesmas hipóteses legais
de impedimento e suspeição de juízes, “devendo o mediador revelar, antes da aceitação
da função, qualquer fato que comprometa sua imparcialidade em relação às partes e ao
conflito” (artigo 10).
A redação final da lei que se originou de tais projetos, Lei 13.140, de 26 de junho
de 2015, , inclui norma (art. 6º.) que repete a mesma regra do artigo 172 do novo CPC,
com o prazo de apenas um ano, além de proibição da atuação como árbitro ou como tes-
temunha em processo arbitral ou judicial em que tenha atuado como mediador (art. 7º.
da nova lei). Também estão mantidas a aplicação das causas de suspeição e impedimento
de juízes e o dever de revelar às partes qualquer situação que possa suscitar dúvida quanto
122
Luciane Moessa de Souza
123
Diretrizes éticas, capacitação, credenciamento e supervisão da atuação
§ 2º. Autonomia da vontade – Dever de respeitar os diferentes pontos de vista dos envolvidos,
assegurando-lhes que cheguem a uma decisão voluntária e não coercitiva, com liberdade para
tomar as próprias decisões durante ou ao final do processo, podendo inclusive interrompê-lo a
qualquer momento.
§ 3º. Ausência de obrigação de resultado – Dever de não forçar um acordo e de não tomar decisões
pelos envolvidos, podendo, quando muito, no caso da conciliação, criar opções, que podem ou não
ser acolhidas por elas.
O dever de diligência também tem especial relevância no que diz respeito à dura-
ção do processo de mediação. O Código-modelo americano cuida do tema: “O mediador
somente deverá aceitar casos quando possa satisfazer às razoáveis expectativas das partes
no que diz respeito à duração do processo de mediação.” 97.
O Código de Ética de Conciliadores e Mediadores Judiciais constante da já
referida Resolução do CNJ define o dever de competência como: “dever de possuir
qualificação que o habilite à atuação judicial, com capacitação na forma desta Re-
solução, observada a reciclagem periódica obrigatória para formação continuada.”
(artigo 1º.)
Não podendo o mediador, porque não é sua função (de modo que, muitas vezes,
sequer estará qualificado para tanto), prestar assessoria jurídica, psicológica ou de qual-
quer natureza técnica às partes – o que, ademais, poderia mesmo colocar em risco a sua
imparcialidade –, o mediador pode e mesmo deve alertar qualquer uma das partes sobre a
necessidade de uma assessoria em área profissional especializada quando perceber que esta
é necessária e não está sendo buscada espontaneamente pela parte.
O Código de Ética para Mediadores do CONIMA, em seu subitem V, 6, tam-
bém dispõe caber ao mediador: “Sugerir a busca e/ou a participação de especialistas na
medida em que suas presenças se façam necessárias a esclarecimentos para manutenção da
equanimidade”.
Da mesma forma, no subitem IV, 7 e 8, o mesmo Código dispõe caber ao me-
diador:
125
Diretrizes éticas, capacitação, credenciamento e supervisão da atuação
[...]
O mediador não deverá desempenhar um papel adicional na resolução do conflito sem o consen-
timento das partes. Antes de prestar tal consultoria, o mediador deve informar às partes das impli-
cações da mudança para o processo e obter delas o consentimento para a mudança. O mediador
que assumir tal papel assume diferentes obrigações e responsabilidades que podem ser governadas
pelas regras de outras profissões. 99
[...] o mediador deverá suscitar questões específicas e formular perguntas acerca de pontos que as
partes não examinaram, alertando-as sobre a imperativa necessidade de obter maiores informações
ou aconselhamento jurídico e/ou alertando seus advogados para fazerem seu dever de casa com
respeito a questão específica levantada pelo mediador, bem como outras questões que podem ter
passado despercebidas ao mediador.[...] o mediador, em sessões privadas com cada uma das partes,
deverá verificar se cada uma delas considerou o possível desfecho em um processo judicial e avaliou
os pontos fracos e fortes de suas respectivas posições. [...] Fazer perguntas cabe perfeitamente den-
tro do papel do mediador, mas dar ou sugerir respostas não cabe.
Outro dos painelistas, Dean Feerick (1995, p. 13), também defendeu a possibi-
lidade de trabalhar com as partes em sessões privadas para se assegurar de que elas estão
tomando decisões bem-informadas, sendo que, se ainda assim não for possível se assegu-
rar disso, segundo ele, cabe encerrar a mediação.
No Brasil, o Código de Ética de Conciliadores e Mediadores Judiciais cons-
tante da já referida Resolução do CNJ estabelece, como uma das regras que regem o
procedimento de conciliação/mediação, a “desvinculação da profissão de origem”, que
consiste no dever que possui o mediador ou conciliador de “esclarecer aos envolvidos
que atua desvinculado de sua profissão de origem, informando que, caso seja necessá-
ria orientação ou aconselhamento afetos a qualquer área do conhecimento, poderá ser
convocado para a sessão o profissional respectivo, desde que com o consentimento de
todos.” (artigo 2º., § 4º.)
127
Diretrizes éticas, capacitação, credenciamento e supervisão da atuação
2.6 Confidencialidade
Outro item sempre presente nos Códigos de Ética de Mediadores é a confiden-
cialidade.
O Código-modelo americano já mencionado, em seu standard V, estabelece o
dever de confidencialidade tanto quanto ao que foi ventilado na sessão conjunta quanto
nas sessões individuais, estipulando como únicas exceções o consentimento das partes ou
a existência de legislação em contrário.
O Código do CONIMA dele trata em diversos pontos:
V. DO MEDIADOR FRENTE AO PROCESSO
O mediador deverá:
[...]
3. Esclarecer quanto ao sigilo.
[...]
5. Zelar pelo sigilo dos procedimentos, inclusive no concernente aos cuidados a serem tomados
pela equipe técnica no manuseio e arquivamento dos dados.
128
Luciane Moessa de Souza
É preciso enfatizar que as duas omissões do texto do projeto, quais seja, quanto
à previsão de exceções aplicáveis à regra da confidencialidade, e quanto à explicitação da
abrangência desta nos processos envolvendo entes públicos, certamente trarão incontáveis
dificuldades na aplicação da confidencialidade, por um lado, e enorme resistência para
101 O mesmo entendimento é defendido, entre outros trabalhos, no artigo “Keeping public mediation public:
exploring the conflict between confidential mediation and open government”, de Thomas Leatherbury e Mark
A. Cover, publicado na SMU Law Review (n. 46, 1992-1993, p. 2221-2234). Também sobre as diversas ex-
ceções à confidencialidade, ver: HOBBS, Karin S. Mediation confidentiality and enforceable settlements: deal
or not deal? Utah Bar Journal. N. 20, 2007, p. 37-41.
102 A tese foi co nvertida nas obras “Meios consensuais de solução de conflitos envolvendo entes públicos: negocia-
ção, mediação e conciliação na esfera administrativa e judicial” e “Mediação de conflitos coletivos: a aplicação dos
meios consensuais à solução de controvérsias que envolvem políticas públicas de concretização de direitos funda-
mentais”, ambas recém publicadas pela Editora Fórum.
129
Diretrizes éticas, capacitação, credenciamento e supervisão da atuação
Dever de manter sigilo sobre todas as informações obtidas na sessão, salvo autorização expressa das
partes, violação à ordem pública ou às leis vigentes, não podendo ser testemunha do caso, nem
atuar como advogado dos envolvidos, em qualquer hipótese (artigo 1º. - grifei).
130
Luciane Moessa de Souza
Tais regras parecem fazer muito sentido, basicamente por duas razões: a) sendo
o processo de mediação algo pouco familiar para a grande maioria das pessoas que dele
se utilizam, parece útil e necessário, para torná-lo mais produtivo, explicar às partes os
caminhos que se pretende tomar, até para deixá-las mais à vontade com o que ainda não
conhecem; b) uma das mais relevantes justificativas e propósitos da mediação é o “em-
poderamento” das partes em conflito, de modo que não parece adequado que elas sejam
simplesmente conduzidas ao longo de um processo que não compreendem.
Michael Moffitt (1998, p. 1) coloca muito bem a questão:
Transparência do mediador envolve compartilhar com as partes aquilo que o mediador acredita
ser o melhor passo a ser dado em seguida e porque ele ou ela acredita que este passo é o mais
apropriado. [...] Transparência no processo envolve dizer às partes que atividades elas desenvol-
verão em seguida.
Ele não sugere, contudo, que o mediador discuta com as partes cada pequena de-
cisão que ele toma durante o processo, o que poderia comprometer inclusive a efetividade
da mediação, mas recomenda que cada mediador avalie, em cada circunstância, em que
medida maior transparência pode ser útil para o desfecho do processo e o aprendizado
das partes.
Na esfera dos conflitos envolvendo entes públicos, em especial aqueles de dimensão
coletiva, o dever do mediador de garantir a adequada transparência ao processo é ainda
mais essencial.
131
Diretrizes éticas, capacitação, credenciamento e supervisão da atuação
132
Luciane Moessa de Souza
[...] mediadores raramente permanecem indiferentes aos termos dos acordos, eles frequentemen-
te argumentam contra ou a favor de elementos específicos de um acordo (em suas conversações
privadas com as partes), ainda que elas estejam muito inclinadas em favor destes elementos, e eles
normalmente defendem uma determinada solução não apenas com base em questões estratégicas,
mas também com base em fundamentos éticos. (SUSSKIND, 2004, p. 514).
Para ele, cabe, assim, ao mediador “direcionar as partes para além da solução mais
óbvia”, de modo a “maximizar os ganhos conjuntos” (SUSSKIND, 2004, p. 516), fazendo
um “esforço consciente para maximizar a justiça, eficiência, estabilidade e sabedoria de
qualquer acordo.” (SUSSKIND, 2004, p. 517).
A proposta de Susskind (2004) contempla a responsabilidade ética que falta in-
cluir de forma expressa nos Códigos de Conduta de mediadores. Entendo que ela deve ser
incluída por fundamentos similares, porém não exatamente idênticos aos apontados por
ele, até porque originados de um sistema jurídico distinto do nosso.
Os acordos firmados em processos de mediação, notadamente aqueles que en-
volvem o Poder Público, não podem, de forma alguma, descurar dos interesses, que
muitas vezes são múltiplos, de todos aqueles que podem estar sub-representados na
mesa de negociação e o mediador está na posição ideal para lembrar às partes ali presen-
tes o que esse acordo pode representar no complexo tecido social em que ele se insere.
Seus efeitos sobre terceiros devem ser levados em conta, por três razões: a) respeito ao
princípio da eficiência, já que acordo inviável possivelmente se torna acordo descumpri-
do; b) necessidade de respeito a todos os direitos fundamentais que possam ser afetados
por seu conteúdo; c) efeitos do acordo em termos de precedentes, já que sua possível
133
Diretrizes éticas, capacitação, credenciamento e supervisão da atuação
A. O mediador deverá fornecer a cada uma das partes ou seus representantes informações precisas
e completas sobre os custos da mediação, despesas e qualquer outras potenciais taxas que possam
ser incorridas em conexão com uma mediação.
1. Se o mediador cobra pelos seus serviços, ele deverá fazê-lo à luz de todos os fatores relevantes,
incluindo o tipo e complexidade da matéria, as suas qualificações, o tempo requerido e as tarifas
costumeiras para tais serviços.
2. O acordo referente aos honorários do mediador deverá ser escrito, a menos que as partes o
requeiram de outra forma.
B. O mediador não deverá cobrar honorários de uma forma que possa afetar sua imparcialidade.
1. O mediador não deverá fazer acordo de honorários baseado no resultado da mediação ou no
valor de eventual acordo.
2. Embora o mediador possa aceitar pagamentos desiguais pelas partes, ele não poderá permitir que
este arranjo impacte de forma adversa sua habilidade de conduzir a mediação de forma imparcial. 103
104 Ver, por exemplo, ÁLVAREZ, Gladys. Ser um mestre em mediação?, nesta obra.
135
Diretrizes éticas, capacitação, credenciamento e supervisão da atuação
138
Luciane Moessa de Souza
111 A versão anterior do projeto (PLS 166/2010) trazia a exigência de que os mediadores fossem advogados, o tema
envolve grande polêmica entre estes profissionais e os de outras categorias que já atuam com mediação em diversos
programas existentes. Entendo assistir razão a Humberto Dalla Bernardina de Pinho (2009, p. 289) quando este afir-
ma que o debate não tem sido desinteressado e sim dominado por interesses corporativistas da classe advocatícia, bem
como quando o autor defende que o mediador não precise ser necessariamente um advogado, muito embora, em de-
terminados conflitos, certamente seja importante a existência ao menos de um co-mediador advogado, tudo a depen-
der do peso que a legalidade desempenhe na solução do conflito (o que, em qualquer caso, pode ser suprido também
pela presença dos advogados das partes que participam da mediação). Esta é, aliás, a experiência dos Estados Unidos,
bem assim de vários países onde a mediação já está bem mais desenvolvida que no Brasil – com exceção da Argentina,
onde a reserva de mercado para os advogados acabou por prevalecer.
112 Quando utilizo o termo “certificação geral”, refiro-me à certificação para atuar como mediador em qual-
quer programa, em oposição à certificação que atende a critérios de programas específicos, que, quando exis-
tente, é sempre compulsória.
113 Um bom exemplo desse pensamento aplicado à mediação pode ser visto no artigo de Michael Moffitt
(2009), em que ele, apesar de afirmar, logo no início do trabalho, que “Mediadores atuam hoje com poucas
restrições de mercado, poucos controles de sua conduta e poucas consequências de conduta inadequada. Esta
condição não vai persistir.”, acaba concluindo, ao final, que a “regulação diminuiria a inovação e diversidade
nas abordagens de mediação”, de modo que ele aposta no mercado privado para assegurar maior controle da
qualidade de tais serviços.
139
Diretrizes éticas, capacitação, credenciamento e supervisão da atuação
tatos que levem à aquisição de experiência em grande número de casos). Sarah Rudolph
Cole (2004), uma das autoras que faz esta crítica, propõe, ao revés, que seja realizada
uma “avaliação holística” do perfil de cada candidato a atuar como mediador, a fim de
contrabalançar treinamento e experiência, de maneira a permitir uma seleção mais aberta
à diversidade. Embora a proposta pareça bastante interessante, o fato é que o simples fato
de sopesar treinamento e experiência, embora amenize o problema, dificilmente garante
de forma significativa maior acesso àqueles que são econômica e socialmente desfavore-
cidos, já que, como argumenta a própria autora, ambos (treinamento e experiência) são
mais difíceis de adquirir por este grupo. De outra parte, é preciso lembrar que, a par de
garantir acessibilidade à certificação de mediadores, não se pode jamais perder de vista a
necessidade de garantir a qualidade da atuação, a fim de proteger os interesses daqueles
que dela se utilizam.
Ainda entre os argumentos favoráveis à certificação, ao lado da uniformidade e
da garantia da qualidade dos serviços aos usuários, coloca-se a possibilidade de supervisão
da atuação dos mediadores e aplicação de penalidades quando for o caso. Desta se tratará
no item seguinte, mas é evidente que a supervisão pressupõe o cadastro ou certificação de
mediadores, já que as principais consequências que podem advir de mau comportamento
são justamente o registro de tal informação no cadastro de mediadores ou, em última ins-
tância, a exclusão do mediador de tal cadastro.
Como salienta Carole Silver (1996), se, em alguns cenários, parece ser possível
confiar no mercado e sua capacidade de auto-regulação para assegurar a qualidade dos ser-
viços, em muitas outras, em que, pela sua dimensão, não existem suficientes informações e
monitoramento da atuação de seus membros, parece bastante arriscado não realizar uma
regulação da atividade.
De outra parte, um dos argumentos sempre aventados em desfavor da certifica-
ção diz respeito aos custos dela advindos, não apenas para administrar o processo seletivo
e a supervisão, encarecendo de consequência a utilização da mediação, mas também com
a potencial exclusão de mediadores voluntários que não estariam dispostos a suportar os
custos da certificação (ROBINSON, 2007).
Parece evidente ser necessário, sim, evitar que os processos de certificação e su-
pervisão de mediadores venham a gerar custos que inviabilizem o processo, de modo que
um dos critérios na escolha dos métodos pode e deve ser o custo de sua implementação.
Para Michelle Robinson (2007), os benefícios podem compensar os custos de tal sistema
desde que estes últimos sejam mantidos num patamar mínimo. Vale mencionar que, a par
de mensurar tais custos, deve-se decidir por quem estes serão pagos, se com fundos públi-
cos ou pelos próprios mediadores – ou ambos.
Além dos métodos já acima descritos, há que se mencionar os métodos pelos
quais se garante que um mediador continue atuando, quais sejam: a) atualização nos trei-
namentos; b) avaliação de desempenho.
Michelle Robinson (2007), ao realizar uma análise dos diferentes métodos para
certificar mediadores e seus respectivos custos, acaba por concluir que os que apresentam
menos custos são também os menos precisos: “Enquanto os sistemas de reconhecimento
140
Luciane Moessa de Souza
114 Um estudo a respeito realizado pela Society of Professionals in Dispute Resolution (SPIDR) concluído
em 1989 concluiu que os melhores critérios para qualificação de mediadores são os baseados no desempenho,
muito mais que em critérios de credenciamento. Cf. FEERICK et al. (1995).
115 Tradução desta autora.
116 Esta é a descrição, por exemplo, que faz Kimberlee Kovach, no painel de que participou no Simpósio
“Standards of professional conduct in Alternative Dispute Resolution”, publicado no Journal of Dispute
Resolution, N. 95, 1995.
141
Diretrizes éticas, capacitação, credenciamento e supervisão da atuação
tais cursos, o candidato a mediador deveria ter um curso superior ou ao menos alguns
anos de experiência profissional em determinadas áreas.
Sob o ponto de vista da metodologia de ensino, como asseveram Lieberman,
Foux-Levy e Segal (2005), “existe consenso no que diz respeito à necessidade de incorpo-
rar a prática de mediação em casos reais como um componente integral do programa de
treinamento”117, normalmente supervisionada por um mediador experiente.
Antes de se pensar em conteúdo e metodologia, porém, parece evidente a neces-
sidade de serem bem definidos os objetivos do treinamento. Para Roselle Wissler (2004),
estes objetivos recaem em três categorias: dimensões cognitivas, aquisição de habilidades
e resultados “afetivos”.
As dimensões cognitivas, diz ela no mesmo trabalho, “podem ser avaliadas ao se
aplicar aos participantes do treinamento um exame escrito ou pedir a eles que descrevam
como é que eles reagiriam em determinadas situações hipotéticas” 118, nas quais, natural-
mente, fosse exigida a aplicação dos conhecimentos adquiridos (WISSLER, 2004).
Já a avaliação da aquisição de habilidades precisa verificar
142
Luciane Moessa de Souza
utilização de vídeos pode mesmo servir para introduzir um caso simulado, em que os
estudantes assumem, a partir de uma certa altura, o papel das partes e mediador(es) no
vídeo apresentado 121.
Uma técnica inovadora, descrita em trabalho singular neste sentido, é a
utilização de video-games para o ensino de técnicas de resolução de disputas. Goo-
drich e Schneider (2010) escreveram um interessante artigo sobre o potencial pe-
dagógico do video-game Peacemaker, que coloca os jogadores na posição de líderes
israelense e palestino, no ensino de tais técnicas. Elas dão notícia de que a utili-
zação de simulações propiciadas por jogos eletrônicos por professores, políticos,
economistas e militares em técnicas de treinamento ou previsão de cenários não é
nova, sendo o jogo em questão uma interessante ferramenta não apenas pela grande
familiaridade com o cenário que há de ser comum entre jovens estudantes, mas
também porque ele “propicia uma oportunidade de experimentar uma série de dife-
rentes técnicas de uma forma que as simulações de casos baseadas em desempenho
de papeis por estudantes não são capazes de fornecer” (GOODRICH; SCHNEI-
DER, 2010)122. Apresentando uma situação com alto grau de complexidade, tendo
em vista os diferentes interesses internos de cada grupo e internacionais (e a corre-
lação entre eles) e uma série de episódios concretos em que o jogador deve tomar a
decisão mais adequada à construção da paz, além de exigir uma postura pró-ativa
neste sentido, o jogo busca “desafiar indivíduos a desenvolver estratégias coopera-
tivas e avaliar os resultados através de tentativa e erro à medida que trabalham para
a paz.” (idem)123.
Sob o prisma do conteúdo, Cheryl Picard (2003) lembra que a capacidade de
formular perguntas é uma das ferramentas essenciais a ser ensinada ao mediador:
As ferramentas mais poderosas do mediador no processo de facilitação são perguntas, que levem
a investigar, refletir, perguntar-se, resolver problemas, fazer conexões, desfazer conexões, reenqua-
drar, empoderar. Perguntas chamam a atenção das partes para aspectos relevantes que podem ter
passado despercebidos. Pelo fato de o mediador oferecer possibilidades às partes, mais do que afir-
mações, o poder sobre o processo permanece nas mãos das partes. São elas que deverão ter insights
e aprender a partir deles.124
É importante mencionar, por fim, que algumas das mais recentes tendências
exploratórias no ensino da mediação atentam, de um lado, para os aspectos emocionais
do aprendizado e, de outro, para a importância de um determinado grau de maturidade
emocional no desempenho das atividades do mediador, o qual, se não preexistir ao treina-
mento, pode e deve ser ensinado.
121 Este autor explora de forma abrangente as potencialidades da utilização de vídeos no ensino de mediação
e negociação, não só apontando as finalidades pedagógicas, mas também ensinando até mesmo como evitar
problemas técnicos e produzir seus próprios vídeos.
122 Tradução desta autora.
123 Tradução desta autora.
124 Tradução desta autora.
143
Diretrizes éticas, capacitação, credenciamento e supervisão da atuação
[...] para uma pessoa implementar, de forma apropriada, as estratégias associadas com as novas
técnicas de mediação, negociação e advocacia, ela precisa ter um conjunto de habilidades de fundo,
como consciência, maturidade emocional e compreensão. Mas os cursos de capacitação em nego-
ciação e mediação – em especial aqueles voltados para advogados e estudantes de Direito – não
propiciam este treinamento. Professores e instrutores tendem a assumir, ao revés, que advogados e
estudantes de Direito já possuem capacidades de atenção e consciência suficientes para habilitá-los
não apenas a compreender as novas abordagens, mas também a implementá-las 127.
Para desenvolver tais habilidades, que a prática demonstra não serem possuídas
por todos os que se dispõem a atuar em mediação, ele propõe uma possível solução: “min-
dfulness meditation”, uma técnica de meditação budista que desenvolve a auto-consciên-
cia, concentração no presente, senso de equilíbrio, capacidades de empatia e compaixão
– todas características desejáveis num mediador, sem falar nos benefícios adicionais para
o crescimento pessoal128. Ele relata vários programas bastante reconhecidos, no âmbito de
Faculdades de Direito (inclusive o Programa de Negociação de Harvard), que já estão ofe-
recendo tais cursos, mas deixa claro que muitas questões devem ser respondidas ao pensar
no ensino destas técnicas, tais como: qual a metodologia adequada (simples ensino teóri-
co ou exercícios práticos?); se este conteúdo deve ser obrigatório nos cursos de mediação;
se práticas provenientes de outras tradições espirituais ou filosóficas podem substituí-la
ou devem ser ensinadas em conjunto; entre outras.
A visão de Riskin é compartilhada por Bowling e Hoffman (2003, p. 38), que
afirmam: “Existem currículos bem desenvolvidos com foco nos dois primeiros estágios
do desenvolvimento do mediador – habilidades e teoria – mas não conhecemos qualquer
treinamento em mediação que esteja focado no desenvolvimento pessoal.” Para estes auto-
res, “da mesma forma que há diversas abordagens para o treinamento nas áreas de técnicas
144
Luciane Moessa de Souza
e teorias sobre mediação, podemos imaginar muitas abordagens possíveis para um trei-
namento focado no terceiro estágio de desenvolvimento do mediador”129. Eles parecem,
contudo, acenar de forma contrária à inclusão de tais conteúdos de forma padronizada ou
obrigatória nos treinamentos sobre mediação:
As qualidades pessoais que auxiliam a nos tornarmos mediadores melhores não são as mesmas para
cada um de nós, nem nossos caminhos para alcançar tais qualidades são os mesmos. [...] Desenvol-
ver estas qualidades é um processo que envolve tempo, propósito e disciplina, e que vem, em nossa
visão, não da investigação intelectual ou estudos, mas da experiência. (BOWLING; HOFFMAN,
2003, p. 44) 130.
O risco de um notável atuar como terceiro imparcial numa situação em que ele carece da experiên-
cia ou do conhecimento necessário para guiar sua conduta, contudo, é relativamente pequeno. A
conduta do notável, em resolução alternativa de disputas como em geral, é guiada pelo seu intento
de preservar e engrandecer sua reputação, tanto no que concerne ao seu papel na resolução de
disputas quanto em geral. Esse interesse fará com que o notável se auto-regule e restrinja sua par-
ticipação a situações em que ele possa se assegurar de que seus serviços sejam apropriados. Em de-
corrência disso, requerer treinamento específico dos notáveis que atuam como terceiros imparciais
em resolução de disputas pode ser desnecessário, já que podemos confiar em que eles vão obter o
treinamento necessário para preservar sua reputação nesta área.131
145
Diretrizes éticas, capacitação, credenciamento e supervisão da atuação
Bernardina de Pinho (2009, p. 247-248) acerca do peso que a capacitação tem na atuação
do mediador:
Obviamente chegar a um acordo por meio do processo de mediação não é tarefa fácil. Exige tempo,
dedicação e preparação adequada do mediador.
Seria um erro grave pensar em executar mediações em série, de forma mecanizada, como hoje,
infelizmente, se faz com as audiências prévias ou de conciliação, nos juizados especiais e na justiça
do trabalho.
A mediação é um trabalho artesanal.
Cada caso é único. Demanda tempo, estudo, análise aprofundada das questões sob os mais diversos
ângulos. O mediador deve se inserir no contexto emocional-psicológico do conflito. Deve buscar
os interesses por trás das posições externas assumidas, para que possa indicar às partes o possível
caminho que elas tanto procuravam.
147
Diretrizes éticas, capacitação, credenciamento e supervisão da atuação
[...] há poucas reclamações sobre os serviços de mediação, mas isso pode não indicar a alta quali-
dade de tais serviços, mas apenas o fato de que as partes frequentemente não estão conscientes de
seus direitos ou não são capazes de avaliar a qualidade da atuação de um mediador devido a uma
ausência de conhecimento técnico (SILVER, 1996)) – .
No que tange à aplicação de penalidades por desvio ético na conduta dos media-
dores, como lembra McEwen (2005), os sistemas de supervisão administrados por enti-
dades de filiação voluntária são claramente insuficientes, já que “as reclamações tendem
a ser pouco frequentes, além de não alcançarem mediadores que não são membros da
organização.” 132
Quanto ao primeiro aspecto (monitoramento da qualidade), existe uma certa
clareza quanto à necessidade de avaliar periodicamente o desempenho dos mediadores
a fim de assegurar a qualidade dos procedimentos. Dentre os métodos de avaliação da
competência de mediadores, como aponta a pesquisadora estadunidense Roselle Wissler
(2004, p. 33),
Há um consenso geral de que avaliações baseadas no desempenho fornecem melhores informações
sobre a competência dos mediadores do que outros métodos, como credenciamento, exames escri-
tos, reclamações de usuários e taxas de obtenção de acordos. Há menos consenso, porém, no que
diz respeito a como e se as habilidades dos mediadores podem ser medidas de forma confiável.133
Ela afirma que seu recente estudo empírico sugere que os participantes apresentam, sim,
estas condições.
O estudo referido pela autora foi feito num tribunal de segunda instância em
uma das jurisdições da Justiça Federal estadunidense (6º. Circuito). O departamento en-
carregado de administrar a mediação enviou um questionário a todos os advogados que
haviam participado de mediações entre setembro de 2000 e fevereiro de 2001, sendo que
405 advogados (61% do total) os responderam. Nesse período, os cinco mediadores con-
tratados pelo tribunal haviam sido sorteados para atuar nos diferentes casos. Da mesma
forma, foi feita uma avaliação do desempenho dos cinco mediadores pela administração
do programa e cada um deles também fez uma auto-avaliação, sempre em sete aspectos
diferentes. A pesquisadora relata que “as notas atribuídas pelos advogados e pelos admi-
nistradores do programa revelaram um padrão bastante similar quanto à habilidade dos
mediadores. Em contraste, a auto-avaliação dos mediadores produziu um padrão bem
diferente”, demonstrando “as limitações de se confiar na auto-avaliação dos mediadores.”
( 2004, p. 34) 135.
Não obstante este estudo específico realizado pela autora demonstre um índice
bastante alto de participação dos advogados na avaliação, é preciso ressaltar que, na gran-
de maioria dos programas, conforme apurou minha pesquisa de campo durante o Dou-
torado136, tanto no Brasil como no exterior, sendo a avaliação da mediação voluntária, é
bastante pequeno o percentual de respostas pelos usuários.
Assim, a fim de se confiar nesse tipo de mecanismo, seria necessário estabelecer
algum tipo de incentivo para os participantes realizarem a avaliação, ou talvez a obrigato-
riedade da avaliação como parte do procedimento. O risco da obrigatoriedade é o preen-
chimento sabotador por usuários insatisfeitos com a compulsoriedade da avaliação. Para
garantir que a avaliação dos usuários seja expressiva em termos de quantidade e séria em
termos de qualidade, parece fundamental um trabalho educativo e conscientizador por
parte da equipe administradora de cada programa de mediação.
No caso da avaliação da mediação de conflitos que envolvem políticas públicas, o
programa do Estado de Maryland, nos EUA, desenvolveu um questionário específico que
é exemplar no que diz respeito a esta modalidade de conflito e cuja tradução foi incluída
no último capítulo.
Cabe referir, ainda, um exemplo do outro sistema de avaliação, qual seja, o pro-
posto por Dorothy Della Noce e outros autores (2008), baseado na avaliação ao vivo da
atuação de mediadores iniciantes por mediadores mais experientes encarregados da sua
capacitação e monitoramento. Os pesquisadores americanos em questão são partidários
da mediação dita transformativa e defendem que a avaliação ao vivo é mais econômica
para os programas e menos invasiva para as partes do que aquela que se baseia na filmagem
das sessões, sendo também mais eficiente que a mediação de casos simulados.
137 “In fact, there is empirical evidence that the very actions that are defined as ‘good practice’ for mediators
oriented to one framework are considered ‘bad practice’ for mediators oriented to a different framework.”
(NOCE et al., 2008, p. 200).
138 Tradução desta autora.
139 Tradução desta autora.
140 Tradução desta autora.
141 Tradução desta autora.
150
Luciane Moessa de Souza
[...] revisores independentes que acompanharam o processo alcançaram conclusões similares (con-
fiabilidade) e os desfechos da avaliação se aproximaram bastante daqueles alcançados mediante o
outro processo de avaliação da competência de um mediador transformativo (validação) (NOCE
et al., 2008, p. 209) 142.
151
Diretrizes éticas, capacitação, credenciamento e supervisão da atuação
pares a fim de conversar e trabalhar com os colegas cuja conduta possa gerar questionamentos. 145.
6 Conclusões
Os métodos consensuais de solução de conflitos têm, recentemente, recebido
grande aceitação tanto por parte do Poder Judiciário quanto pelos jurisdicionados que
a eles vêm tendo acesso. A utilização do diálogo como caminho para a solução de pro-
blemas se insere muito bem em nossa cultura e, sobretudo, no contexto de sobrecarga do
Poder Judiciário – a qual se verifica tanto do ponto de vista quantitativo quanto sob o
prisma da complexidade dos litígios que a ele têm sido levados.
Todavia, é preciso alertar que tais métodos não devem ser utilizados sem a ade-
quada preparação e os profissionais que os aplicam, como quaisquer outros, necessitam de
parâmetros éticos para nortear sua atuação, bem assim de supervisão apropriada, notada-
mente em respeito aos usuários de tais serviços.
O desrespeito a diretrizes éticas básicas, tais como a imparcialidade e o dever de
zelar pelo equilíbrio de poder entre as partes, para ficar apenas em duas essenciais, bem as-
sim a ausência de mecanismos institucionais claros a serem acionados quando houver uma
atuação deficiente por parte de mediadores e conciliadores, colocam em xeque a validade
e em risco a eficácia de qualquer programa de mediação ou conciliação.
Da mesma forma, para estimular a qualificação adequada, é importante reconhe-
cer a necessidade de remuneração adequada para tais profissionais, quando estes atuam no
setor privado, e a necessidade de uma adequação da capacitação ao tipo de conflito que se
pretende resolver, seja para profissionais que integram os quadros do serviço público, seja
para os que atuam no mercado. A preparação para resolver conflitos de natureza familiar,
por exemplo, é totalmente distinta daquela para resolver conflitos na seara empresarial,
sendo ambas bastante diferenciadas daquela necessária para quem atue em conflitos en-
volvendo entes públicos.
A importância destes aspectos não pode ser subestimada, como lamentavelmente
vem ocorrendo em alguns programas. O grande risco é comprometer a aceitação e a cre-
dibilidade de um caminho (o consensual) que é ainda bastante incipiente, mas extrema-
mente necessário, em nosso país, por conta de seu manejo inadequado. Embora existam
muitas controvérsias envolvendo a matéria, existem alguns consensos básicos que podem
e devem ser considerados na estruturação de programas que trabalham com a solução
consensual de conflitos.
Espero, com este trabalho, ter contribuído com o aprimoramento da reflexão
153
Diretrizes éticas, capacitação, credenciamento e supervisão da atuação
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155
156
PARTE II
Aplicação da Mediação
157
158
A mediação de conflitos
no contexto empresarial
1 Introdução
Hoje no Brasil amplia-se cada vez mais o interesse sobre a mediação de con-
flitos. Profissionais de diferentes áreas têm buscado informações sobre a atividade e ao
mesmo tempo em nela se capacitar. O Poder Judiciário, por intermédio do Conselho
Nacional de Justiça a consagrou como método adequado de resolução de conflitos, ado-
tando-a como política pública. Por isso, magistrados de primeira, segunda e terceira
instâncias, com o advento da Resolução CNJ nº 125/2010, vêm se utilizando dos ser-
viços de mediadores para auxiliar as pessoas físicas ou jurídicas a buscarem a autocom-
posição indireta ou triangular.
Instituições especializadas e mediadores independentes têm aumentado o
número de casos solucionados por mediação. O mesmo tem acontecido no segmen-
to empresarial, onde homens de negócios têm se utilizado do método para resolver
conflitos internos em suas organizações, dirimir pendências entre empresas ou grupo
de empresas, solucionar disputas societárias ou mesmo questões trabalhistas, bem
como promover soluções criativas para questões ambientais e também criar institui-
ções voltadas a administrar este procedimento, com enfoque especial em questões
empresariais. Enfim, assiste-se hoje a uma crescente evolução da atividade, inclusive
no segmento empresarial.
O presente artigo pretende oferecer breves reflexões sobre a mediação de
conflitos na área acima descrita, que possui características específicas e demanda
encaminhamentos e tratamentos diferenciados. Para efeitos de melhor compreen-
são sobre a mediação no mundo empresarial, há que se determinar fronteiras no
sentido de pontuar questões decorrentes de relações contratuais ou não, comerciais
ou não, entre empresas e grupos de empresas. Já as questões ligadas às inter-rela-
ções dos diversos agentes e indivíduos que integram internamente uma empresa ou
organização, derivados das interações profissionais ou sócio-afetivas, a mediação
de conflitos é conhecida como mediação empresarial organizacional. Além disso,
159
A mediação de conflitos no contexto empresarial
2 Mediação comercial
de que o futuro está em suas próprias mãos. É a devolução do poder aos empresários de
gerir e posteriormente resolver o conflito, se o desejarem e efetivamente tiverem condi-
ções para tanto.
A ansiedade e a pressão por um resultado rápido e imediato é um elemento cons-
tante e fator decisivo e prioritário nas questões empresariais, por isso o mediador busca
a conscientização acerca de se o que está em jogo são ou foram relações importantes para
a consecução de seus negócios, mesmo em operações que envolvam pequenas quantias.
Assim, cabe-lhe estar alerta para os discursos fechados das posições apresentadas pelos
empresários ou executivos representantes de empresas comerciais, industriais, financeiras,
agrícolas, etc., os quais estão impregnados de fortes argumentos de convencimento, que
encobrem os efetivos interesses, valores pessoais, institucionais, corporativos e missões
das próprias empresas ou organizações. Tal posicionamento, no entanto, não visa con-
fundir o outro lado. Pelo contrário, deve ser lido no sentido de que está baseado na visão
ilusória de um discurso estruturado de maneira defensiva, por constituir-se na falsa pre-
missa de que é a melhor opção para a situação existente ou para as duas ou mais empresas
envolvidas na controvérsia.
Convém lembrar que a mediação lida com pessoas, as quais possuem sua pró-
pria visão a respeito do objeto da controvérsia. Por isso, os empresários, ao defenderem
suas posições, expõem aspectos subjetivos que afloram no conflito que estão enfrentando,
criando uma perspectiva pessoal parcializada e limitadora. Este fato acaba por dificultar
ainda mais a resolução da controvérsia. Por isso, é importante delimitar nestes proce-
dimentos todas as questões subjetivas, não no sentido de separá-las da negociação para
facilitar o acordo, como defendem alguns especialistas estrangeiros, mas sim de identifi-
cá-las, acolhê-las e, com a devida relevância, oferecer um encaminhamento no âmbito do
processo de mediação.
Há que se destacar que muitas controvérsias nestas relações são resultantes
do descumprimento de cláusulas contratuais. Cabe lembrar, por oportuno, que o
contrato, ao ser elaborado, atendeu, no passado, a uma situação econômica específica
e a determinadas expectativas dos contratantes ou mesmo a determinados interesses.
A economia, por seu turno, avança sempre, quer seja de maneira positiva, quer seja de
maneira negativa. Por isso, eventuais descumprimentos contratuais ocorrem por for-
ça de não atenderem ao dinamismo exigido pela economia a que estão intrinsecamen-
te ligados. Por esse motivo, a mediação, nestes casos, tem resultado na elaboração de
uma nova relação e no nascimento de um novo contrato tendo como premissa básica
novas perspectivas das partes, incluindo-se na maioria dos casos elementos relati-
vos a fatores mutáveis da economia. E o mediador, neste caso, oferece seus serviços
apontando a exigência da abertura dos empresários e suas empresas a estas mudan-
ças, bem como para a eventual elaboração de um novo contrato que regerá a relação.
Por exemplo, eventuais conflitos societários, se submetidos à mediação de conflitos,
poderão resultar na elaboração de um novo contrato social ou um novo estatuto e,
com isso, o surgimento de uma nova empresa. Foi o que ocorreu num caso em que
atuamos em que um sócio desejava sair da sociedade por considerar que o relaciona-
161
A mediação de conflitos no contexto empresarial
162
Adolfo Braga Neto
3 Mediação organizacional
As empresas, de maneira geral, possuem uma organização interna que constitui-
se em uma complexa rede de conexões e interações entre as pessoas que dela fazem parte.
Com isso, geram entre si inúmeras inter-relações, algumas delas decorrentes da própria
atividade profissional e outras resultantes das afinidades pessoais e/ou sociais. Este qua-
dro acaba por transformá-las, não importando seu porte, quer seja micro, pequeno, mé-
dio ou grande, em um ambiente onde ocorrem diversos conflitos, relativos às inúmeras e
intensas atividades internas no dia-a-dia.
Tais conflitos, caso alcancem número muito elevado, comprometem o cresci-
mento e a evolução positiva da própria empresa, podendo resultar na perda da competi-
tividade da empresa, grupo de empresas ou corporações. Tal fato é decorrente da forma
negativa em que, internamente, o conflito não somente é percebido, mas sobretudo como
é administrado. Além disso, em alguns casos, é comum a negação de que ele exista. Ao
mesmo tempo, perde-se muito tempo na sua resolução, por intermédio de reuniões infru-
tíferas, exigindo de seus dirigentes decisões impositivas ou terceirizadas para as autorida-
des responsáveis por fazer valer o respeito à hierarquia e ao poder. Na verdade, todos estes
fatos tendem a agravar ainda mais os conflitos.
Empresas com número grande de descumprimento de cláusulas contratuais, ele-
vado grau de rotatividade de seus funcionários, reclamações trabalhistas, recusa ou devo-
lução de produtos em altos níveis, absenteísmo, custos operacionais muito altos, baixa
163
A mediação de conflitos no contexto empresarial
164
Adolfo Braga Neto
4 Mediação ambiental
Nos últimos anos, tem se notado a valorização de condutas que privilegiam so-
luções negociadas por parte dos agentes públicos responsáveis pela fiscalização e preser-
vação do meio ambiente. O Ministério Público Federal e Estadual e os órgãos estaduais
e municipais ligados ao meio ambiente têm desempenhado importante papel ao prio-
rizarem o diálogo para as questões ambientais, baseado na cooperação. Seu objetivo é
construir compromissos a serem efetivamente cumpridos, por estarem identificados os
interesses reais de todos os envolvidos, dentro dos limites impostos pela norma jurídica e
adequados à prioridade de preservar o meio ambiente.
Na realidade, a iniciativa daqueles órgãos deve ser incentivada e pode contar com
o auxílio de órgãos especializados em conflitos e mediadores independentes, para que
possam em conjunto proceder a uma análise mais detalhada da questão ambiental con-
troversa. Assim é que a abordagem integrada das múltiplas variáveis que compõem os
conflitos ambientais permite orientar à reflexão para conscientização ecológica de todos,
parâmetros fundamentais para a construção de estratégias de futuro, as quais devem estar
em sintonia com os imperativos do desenvolvimento e em bases mais sustentáveis e coe-
rentes com a legislação em vigor, cujo objetivo fundamental é a preservação de todos os
recursos ambientais naturais, não como uma tentativa de substituir a prestação jurisdicio-
nal estatal, mas como um auxílio a esse serviço prestado pelo Estado.
5 Mediação trabalhista
A mediação nas relações capital/trabalho remonta à própria história da atividade
no Brasil. Convém lembrar que, no Brasil, auditores do Ministério do Trabalho, já em
meados da década de oitenta, conscientes de que sua responsabilidade social extrapolava
a simples função de fiscalização, vivenciaram experiências que primavam pelo equilíbrio
entre aqueles dois pólos, por intermédio da flexibilização da aplicação da lei, com a utili-
zação do diálogo entre os protagonistas. Muitas dessas experiências eram empíricas e obje-
tivavam a pacificação daquelas relações, por intermédio de um convívio mais harmonioso,
que primasse pelo reconhecimento e respeito do papel que cabe a cada um.
Tendo em vista estas experiências, tentou-se implementar no país um papel mais
ativo na gestão e resolução de maneira mais pacífica das controvérsias trabalhistas pelo
Ministério do Trabalho. Com este propósito é que a Lei 10.101/2000 foi sancionada.
Ela dispõe sobre a participação dos trabalhadores nos lucros e resultados das empresas,
prevendo, nesses tipos de negociações entre empregado e empregador, que, caso ocorra
impasse, se estabeleça a possibilidade de utilização da mediação, coordenada por media-
dor independente, mediador pertencente ao quadro oficial do Ministério do Trabalho e
Emprego ou, ainda, mediador vinculado a alguma instituição privada ou independente,
escolhido de comum acordo entre as partes. Esta lei, repetindo a experiência dos anos 40,
levou o Ministério do Trabalho e Emprego a responder pelas tentativas mais pacíficas de
resolução daquelas controvérsias. Este texto legal, por outro lado, tem sido interpretado,
na maioria dos casos, pelas categorias econômicas e profissionais sem seu principal nor-
teador, qual seja, um programa de envolvimento entre capital e trabalho em prol do desen-
166
Adolfo Braga Neto
167
A mediação de conflitos no contexto empresarial
168
Adolfo Braga Neto
trabalhista. Tramita, por seu turno, desde 1998, no Congresso Nacional um projeto
de lei que a regula, sobretudo no âmbito judicial. Independentemente disto, diante
dos aspectos mencionados, se pode afirmar que a natureza jurídica da mediação de
conflitos é contratual, posto se originar de duas ou mais vontades orientadas para um
fim comum, no sentido de contratar um profissional para que este as auxilie a produ-
zir conseqüências jurídicas, extinguindo ou criando direitos, baseadas nos princípios
da boa fé e da autonomia das vontades, preservando durante seu procedimento a
igualdade das partes.
Como contrato, a mediação pode ser classificada como plurilateral, por
estarem ajustadas, no mínimo, 3 (três) pessoas físicas ou jurídicas, isto é, as partes
(pessoas físicas ou jurídicas) e o mediador (sempre pessoa física). É consensual,
uma vez que nasce do consenso entre as partes envolvidas na controvérsia, que
contratam um terceiro independente e imparcial. É também informal, visto pres-
supor regras flexíveis, de acordo com os interesses das partes. E oneroso, posto ser
objeto de remuneração ao profissional que colaborará com as partes. Na verda-
de, caracteriza-se como um contrato de prestação de serviços, o qual, de comum
acordo, as partes contratam um mediador para que as auxilie na busca de soluções
para o conflito que estão enfrentando. Ele possibilita, portanto, a criação de um
contrato futuro ou compromissos a serem assumidos no futuro, constituindo-se
seu objetivo principal.
E, como contrato, ainda, há que se pensar, a partir de seus princípios norteadores,
nos seguintes requisitos mínimos:
a) qualificação completa das partes e dos seus advogados, devendo estes apresen-
tarem os documentos que lhes conferem poderes de representação, nos termos
da lei;
b) qualificação completa do mediador e do co-mediador, se for o caso de co-me-
diação;
c) regras claras estabelecidas para o procedimento;
d) número indicativo de reuniões para o bom andamento do processo de
mediação;
e) valor dos honorários, bem como das despesas incorridas durante a mediação e
formas de pagamento, os quais, na ausência de estipulação expressa em contrário,
serão suportadas na mesma proporção pelas partes;
f ) previsão de que qualquer das partes, assim como o mediador, pode, a qualquer
momento, retirar-se da mediação, comprometendo-se a dar um pré-aviso desse
fato ao mediador e vice-versa;
g) inclusão da confidencialidade absoluta em relação a todo o processo e
conteúdo da mediação, nos termos da qual as partes e o mediador se com-
prometem a manter em total sigilo a realização da mediação e a não utilizar
qualquer informação, documental ou não, oral, escrita ou informática, pro-
duzida ao longo de todo o processo de mediação, posteriormente em juízo
arbitral ou judicial.
169
A mediação de conflitos no contexto empresarial
7 Conclusão
Nos momentos atuais as mudanças na ordem social, política, econômica e
cultural tem demonstrado ser cada vez mais profundas, impactantes e paradigmá-
ticas. Os imaginários, ilusórios, preconceitos e paradigmas sociais existentes são
substituídos por outros de uma maneira tão rápida que os empresários em muitas
vezes se surpreendem pelo dinamismo e radicalismo. Resulta em um convívio
diversificado oferecido pelas múltiplas interrelações entre as pessoas e acaba por
se constituir em fatos geradores de conflitos que exigem respostas imediatas para
que a convivência seja baseada no respeito, reconhecimento mútuo de diferenças
e harmonia.
A mediação de conflitos no contexto empresarial, como observado nas áreas
apontadas neste trabalho, promove a busca de respostas e contribui para a criação de es-
paços de diálogo em que se apresentam as diferenças e se redesenham de maneira parti-
cipativa, dinâmica e pacífica os papeis que cabe a cada um nas inúmeras inter-relações
existentes. Permite também estabelecer canais facilitadores da articulação e ao mesmo
tempo convida a todos para uma reflexão responsável sobre a diversidade das temáticas
da realidade atual, constituindo-se num verdadeiro desafio a preservação das relações de
maneira equitativa e integradora.
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172
Mediação e Estatuto da Criança
e do Adolescente: práticas e possibilidades
Alexandre Morais da Rosa
1 Introdução
Apresentar a mediação no campo do Estatuto da Criança e do Adolescente
(ECA) parece, ainda, ser uma novidade. Embora inexista regulamentação específica no
Brasil, diversos Juizados da Infância e Juventude espalhados pelo país instituíram serviços
desta ordem. De regra, a atuação se dá no campo do “ato infracional”, consoante se verifica
nos projetos de São Caetano do Sul, Brasília, Porto Alegre e Joinville, este último que
coordenei até recentemente, quando optei pela Vara Criminal. O tema produziu alentada
bibliografia recente, a qual não pode ser desconsiderada 147. Este artigo, pois, de maneira
sumária, procura explicitar uma das possibilidades de implementação no campo do ECA,
especialmente do “ato infracional”, em projeto que dialoga com a psicanálise e seu sujeito
do desejo (MORAIS DA ROSA, 2007).
147 Indica-se, dentre muitas outras, a seguinte bibliografia para consulta: Amaral (2005); Barros (2008);
Aréchaga, Brandoni e Risolía (Org.) (2005); Leal (2005); Mendonça (2006); Neuman (2005); Nordenstahl
(2005); Sica (2007); Spengler (2008); Prudente (2008); VasconceloS (2008); Vezzulla (2004); e WARAT
(2001). Cf., também, os artigos de Adriana Barbosa Sócrates, Ester Kosovski, Leonardo Sica, Neemias Mo-
retti Prudente e Renato Sócrates Gomes Pinto, todos disponíveis em: <http://www.ibjr.justicarestaurativa.
nom.br/arquivos/artigos.htm>. Último acesso em: 29 jun. 2009.
173
Mediação e Estatuto da Criança e do Adolescente: práticas e possibilidades
plexo de Prazo de Validade”148 é que podem acreditar que isto corresponde à realidade.
Cada adolescência é única, singular, e como tal deve ser respeitada em sua alteridade. Aí
reside a ética de respeito ao desejo do sujeito e dos atores jurídicos. Sem esta compreensão,
o mero fato biológico de se completar a idade respectiva significaria o início da adolescên-
cia, situação, de fato, ilusória.
Neste contexto, Alberti (1999, p. 10) aponta que na fase da adolescência se
dá, em regra, o encontro com o real do sexo e também o trabalho de desligamento dos
pais, necessitando, todavia, que algo neles (pais) falhe, isto é, deixe a desejar para que a
função paterna se instaure. Realinhar seu papel social é um desafio, mormente porque
o véu do período de latência se esvai. A diferença de gerações e o processo de identifi-
cação sexual implicam em escolhas singulares, situadas na dinâmica das pressões sociais
(família, etc.). As mudanças estão aí e, no trabalho de elaboração, as regras universais
são insuficientes. Dando-se conta, na maioria dos casos, de que foi objeto do desejo
do Outro, de quem exerce as funções paternas, surge uma encruzilhada. Independen-
temente de ser uma crise ou um processo, a adolescência implica, necessariamente, um
acertamento subjetivo em que os trilhamentos do complexo de Édipo estarão presentes.
As relações do sujeito adolescente com seu entorno, então, ganham novos matizes, cujo
enfrentamento depende, em muito, da maneira como o sujeito foi estruturado. A in-
tervenção nesta seara, para ser ética, demanda o reconhecimento da singularidade e da
procura individual de atribuição de sentido.
Podem ocorrer, assim, dificuldades neste momento, culminando em construções
defensivas em que o sintoma não compromete o sujeito, podendo se dar a simbolização.
Dentre as saídas, aponta Cahn (1999, p. 30), existe a possibilidade de dificuldades banais,
baixo rendimento escolar (RPUDINESCO, 2005, p. 87), problemas de relacionamento
com o entorno, inibição, distúrbios de comportamento, drogas, ansiedade, pequenos
delitos, condutas masoquistas ou auto-punitivas, conflitos com os pais e irmãos, onde
prepondera a angústia por sua identidade e identificações. Depende fundamentalmente
do trilhamento do Complexo de Édipo a maneira pela qual o adolescente poderá enfrentar
os desafios deste momento conflituoso do estabelecimento da subjetividade.
Por esta estrutura de acertamento se explica, assim, a resoluta tendência ao agir,
de não pensar duas vezes (CAHN, 1999, p. 156; COSTA, 2004), já que se sabe — apesar
de se negar — que o sentido é a posteriori 149. Entendido o ato infracional como (possível)
sintoma de que algo não está acertado subjetivamente, desde que haja demanda, porque
impor é violador da ética do desejo e não se sustenta no Estado Democrático de Direito de
148 “O positivista ferrenho vai ao supermercado e confere — na forma da lei — os prazos de validade e somente
consome o produto até o dia fatídico, ou seja, se o prazo de validade é hoje, somente pode consumir até às 24h; às
00h01 o produto está fora do prazo de validade e, portanto, inservível ao consumo. Para este, no exato minuto que
se transpôs o dia, as bactérias, em Assembléia Geral Ordinária — adrede convocada — decidiram, à unanimidade,
avançar (estragar) sobre o produto. O prazo fatal é 24h. Somente rindo! E o pior é que essa ingenuidade mesclada
com astúcia é reproduzida pelo senso comum teórico dos juristas” (MORAIS DA ROSA. 2001, p. 73-74).
149 “Porque nessa época ondulante da vida é-se apenas fantasia, crédula fantasia. Vem depois o raciocínio,
a lucidez, a desconfiança — e tudo se esvai... Só nos resta a certeza — a desilusão sem remédio...” (SÁ-CAR-
NEIRO. 1998, p. 14).
174
Alexandre Morais da Rosa
cariz garantista (FERRAJOLI, 2002), pode-se, caso a caso, constituir-se caminhos que
demandam a participação dos sujeitos envolvidos, especificamente o adolescente, vítimas,
os pais e a sociedade. Caso não haja demanda, sem eufemismos, é puro ato de poder, já
que o fundamento da medida socioeducativa é agnóstico (ZAFFARONI et al., 2003;
CARVALHO, 2002). Neste sentido, deve-se acreditar em novas formas de engajamento
ao laço social. Porque, se isto não ocorrer, na seara da infância e juventude, entrega-se o
bilhete da imputabilidade, deixando-o à mercê do nefasto sistema penal.
3 O ato infracional
Desde a mirada da Criminologia Crítica, Cirino dos Santos (2002, p.
122) aprofunda o questionamento e destaca que o “desvio” pode fazer parte de
sua construção subjetiva, descabendo a intervenção estatal, principalmente nos
casos de bagatela e pequenas questões comportamentais. Assim é que a (dita)
agressividade não significa sempre a dita “delinquência”, mas um momento da vida
do sujeito — sujeito este adolescente, protagonista de um momento de passagem,
sem ritos sociais de apoio, lançado aos seus próprios mitos, na eterna tentação
de existir, se constituir como sujeito, numa sociedade complexa. Rejeitando-
se, pois, os discursos positivistas fáceis e fascistas, deve-se buscar entender este
possível movimento agressivo como o sintoma de que algo não vai bem e buscar
construir um caminho com o outro e o Outro (VEZZULLA, 2005). Sem esperança,
a agressividade é mais que esperada, mormente diante das condições sociais dos
sujeitos frequentadores das Varas Criminais e da Infância e Juventude: a pobreza
(BARROS, 2003, p. xii-xiii). Percebe-se, assim, que a estrutura psíquica condiciona
o sujeito nas suas relações com o meio, constituindo-se a adolescência, no caso do
ato infracional, numa possibilidade de intervenção em Nome-do-Pai, na perspectiva
de trazer o adolescente para o laço social, sabendo-se, ademais, que a maneira como
será significada depende de cada singularidade do sujeito adolescente, sem que
haja, portanto, uma regra universal de ouro.
De qualquer forma, a resposta estatal brasileira em face da verificação de um ato
infracional é a aplicação de uma medida socioeducativa (advertência, reparação do dano,
prestação de serviços à comunidade, liberdade assistida, semiliberdade e internação).
A postura adotada, de regra, todavia, é a de salvação moral-comportamental dos
adolescentes, via “conserto” de sua subjetividade, “como se algo não funcionasse bem”.
Busca-se, na grande maioria dos casos, movimentar o aparelho de controle social com
a finalidade de “normatizar” o adolescente (FOUCAULT, 1989), desconsiderando-o
como sujeito para torná-lo objeto de atuação.
Assim é que, após a queda, isto é, o ato infracional, organiza-se uma cruzada
pela salvação moral do adolescente. Longe de buscar estabelecer um limite, como
substituto paterno, a função materna acaba sendo incorporada pela Justiça da Infância
e da Juventude brasileira. Assim, lotados de boas intenções, claro, o juiz, o promotor de
justiça, os advogados, a equipe interprofissional, todos, de regra, buscam agarrar o cajado
175
Mediação e Estatuto da Criança e do Adolescente: práticas e possibilidades
150 “Faz da psicanálise uma escola de escuta das paixões da alma e do mal-estar da civilização, única capaz de frustrar
os ideais filantrópicos e enganadores das terapias da felicidade que pretendem tratar o eu e cultivar o narcisismo
mascarando a desintegração da identidade” (ROUDINESCO, 2006, p. 49).
176
Alexandre Morais da Rosa
151 “Uma vez perguntei: quem nos protege da bondade dos bons? Do ponto de vista do cidadão comum, nada nos
garante, a priori, que nas mãos do Juiz estamos em boas mãos, mesmo que essas mãos sejam boas [...]. Enfim, é necessá-
rio, parece-me, que a sociedade, na medida em que o lugar do Juiz é um lugar que aponta para o grande Outro, para o
simbólico, para o terceiro” (MARQUES NETO, 1994, p. 50).
177
Mediação e Estatuto da Criança e do Adolescente: práticas e possibilidades
4 A Justiça Restaurativa
O que se dá, de regra, são atores sociais que amam o Direito, a Justiça Restaurativa,
mas odeiam gente, contato, proximidade, como fala Luís Alberto Warat (2001). Amam
as pessoas à distância, nos seus lugares, desde que os deixem em paz. A paz muitas vezes
152 Relatório disponível em: <http://www.ilanud.org.br>. Último acesso em: 29 jun. 2009.
153 “Ao direito penal não interessa, segundo esta interpretação, eliminar o sofrimento [da vítima], mas eliminar o mal
(cuja definição se encontra nos distintos tipos delitivos). E é tanta a inquietude para eliminar o mal que simboliza o
dano resultante do delito, que o sofrimento da vítima fica postergado, ou mesmo esquecido. Não obstante, pouco a
pouco foi-se desenvolvendo uma sensibilidade diante do sofrimento, que revela, entre outras coisas, a preocupação para
descobrir o indivíduo por detrás das máscaras que lhe haviam sido atribuídas na concepção da imagem do mundo. Na
medida em que vai se ‘encarnando’ o sujeito de direito no indivíduo de carne e osso, o sofrimento que este pode pade-
cer vai despertando uma sensibilidade antes sufocada por outras considerações. Somente incorporando o indivíduo,
poderá o direito determinar a importância que o sofrimento merece. Porque este é uma experiência profundamente
individual. À medida que se interesse pelo sofrimento individual, ir-se-á interessando cada vez mais pela vítima do
delito, pelas formas de evitar se sofrimento” (MESSUTI, 2003, p. 76).
178
Alexandre Morais da Rosa
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Mediação e Estatuto da Criança e do Adolescente: práticas e possibilidades
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O componente de mediação vítima-ofensor na
Justiça Restaurativa:
uma breve apresentação de uma inovação
epistemológica na autocomposição penal 154
1 Introdução
154 Texto elaborado a partir de palestra proferida no 2º Congresso do Instituto Brasileiro de Estudos do Direito
da Energia, em 9.11.2004, na Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP), e de artigo publicado na
Revista dos Juizados Especiais: Doutrina e Jurisprudência, Brasília, v. 5, n. 11, p. 13-24, jul./dez. 2001.
Meus agradecimentos especiais ao pesquisador Sérgio Antônio Garcia Alves Júnior pelas críticas e comentá-
rios, bem como pelo trabalho de revisão de texto.
155 No presente trabalho, a palavra “ofensor” é utilizada para englobar os diversos termos referentes àquele
que se encontra em pólo passivo em inquéritos, termos circunstanciados ou processos (i.e. investigado, indi-
ciado, autor do fato ou réu). Procede-se desta forma em atenção às Regras de Tóquio (United Nations Mini-
mum Rules for Non-custodial Measures - Resolução 45/110 de 14.12.1990 da Assembléia Geral da Organiza-
ção das Nações Unidas) que, no item 2.1 do seu anexo, estabelece esta mesma uniformização terminológica.
183
O componente de mediação vítima-ofensor na Justiça Restaurativa
de padrões amplos fixados pelo Estado156. Nesse contexto, surge a chamada “Justiça
Restaurativa”, uma nova tendência sistêmica na qual “as partes envolvidas em
determinado crime [e.g. vítima e ofensor] conjuntamente decidem a melhor forma
de lidar com os desdobramentos da ofensa e suas implicações futuras” (MARSHALL
apud ASHWORTH, 2002, p. 578).
Assim, pela Justiça Restaurativa se enfatizam as necessidades da vítima, da
comunidade e do ofensor, sob patente enfoque de direitos humanos, consideradas as
necessidades de se reconhecerem os impactos sociais e de significativas injustiças decorrentes
da aplicação puramente objetiva de dispositivos legais que frequentemente desconsideram
as necessidades das vítimas. Desta forma, busca-se reafirmar a responsabilidade de ofensores
por seus atos ao se permitirem encontros entre estes e suas vítimas e a comunidade na qual
estão inseridos. Em regra, a Justiça Restaurativa apresenta uma estrutura mais informal,
em que as partes têm maior ingerência quanto ao desenvolvimento procedimental e ao
resultado. Existem diversos processos distintos que compõem a Justiça Restaurativa, como
a mediação vítima-ofensor (Victim Offender Mediation), a conferência (conferencing),
os círculos de pacificação (peacemaking circles), círculos decisórios (sentencing circles), a
restituição (restitution), entre outros que merecem ser oportunamente examinados 157.
O acesso à justiça foi definido por Mauro Cappelleti e Bryant Garth (1988, p.
8) como uma expressão para que sejam determinadas “duas finalidades básicas do sistema
jurídico — o sistema pelo qual as pessoas podem reivindicar seus direitos e/ou resolver seus
litígios sob os auspícios do Estado”. Cumpre ressaltar que a corrente que preconiza o estímulo
ao acesso à justiça o faz considerando não apenas disputas cíveis, mas também conflitos no
âmbito penal. Nesse sentido, há relevante preocupação no sentido de que o sistema penal
não se transforme em um mecanismo de marginalização de hipossuficientes (CUESTA
AGUADO, 1997). Isto porque alguns autores chegam a indicar que já “fazem parte do
sistema penal — inclusive em sentido limitado — os procedimentos contravencionais de
controle de setores marginalizados da população, as faculdades sancionatórias policiais
arbitrárias, as penas sem processo, as execuções sem processo, etc.” (ZAFFARONI;
156 Nota-se, assim, a tendência de mitigação de corrente excessivamente positivista que impõe o predomínio
da norma sobre a vontade consentida. Por essa corrente, encontrada em autores como Hobbes, “não exis-
te outro critério do justo e do injusto fora da lei positiva” (BOBBIO apud DINAMARCO, 2003, p. 12).
Atualmente, a posição consentânea é de que o justo enquanto valor pode e deve ser estabelecido pelas partes
consensualmente e que, caso estas não consigam atingir tal consenso, um terceiro as substituirá nessa tarefa,
indicando, com base na lei, o justo diante de cada caso concreto. Por meio da autocomposição, o conceito
de justiça se apresenta em umas de suas acepções mais básicas: a de que a justiça da decisão é adequadamente
alcançada em razão de um procedimento equânime que auxilie as partes a produzir resultados satisfatórios
considerando o pleno conhecimento destas quanto ao contexto fático e jurídico em que se encontram. Por-
tanto, na autocomposição a justiça se concretiza na medida em que as próprias partes foram adequadamente
estimuladas à produção de tal consenso e, tanto pela forma como pelo resultado, estão satisfeitas com seu
termo. Constata-se de plano que, nesta forma de resolução de disputas, o polissêmico conceito de justiça
ganha mais uma definição, passando a ser considerado também em função da satisfação das partes quanto ao
resultado e ao procedimento que as conduziu a tanto.
157 Para maiores informações acerca desses instrumentos e processos restaurativos, cf. Umbreit (2000).
Recomenda-se, ainda, a visita ao sítio: <http://www.restorativejustice.org>.
184
André Gomma de Azevedo
185
O componente de mediação vítima-ofensor na Justiça Restaurativa
158 Entende-se por algoritmo o processo de resolução de um grupo de questões semelhantes, em que se
estipulam, com generalidade, regras formais para a obtenção de resultados, ou para a solução dessas questões.
159 Acerca desses novos conceitos desenvolvidos, cf. artigos dos pesquisadores Fábio Portela Almeida (2003),
Otávio Perroni (2003) e Gustavo Trancho Azevedo (2003).
160 Para maiores detalhes acerca da metodologia de formação de mediadores e advogados, cf. Schmitz
(2001); Henning (1999); Nolan-Haley (1996, p. 47).
161 Para referências bibliográficas acerca dessas técnicas e processos de resolução de disputas reportamo-nos ao ende-
reço eletrônico do Grupo de Pesquisa e Trabalho em Resolução Apropriada de Disputas na Faculdade de Direito da
Universidade de Brasília (disponível em: <http://www.unb.br/fd/gt>, seção Bibliografia) onde poderá ser encontrada
lista detalhada de obras. Destacam-se, contudo, os seguintes trabalhos: Moore (1998); Slaikeu (2004); Cooley (2000);
Goldberg et al.; e Golann (1995).
186
André Gomma de Azevedo
162 Carnelutti (2000a, p. 72)define processo como um “conjunto de atos dirigidos à formação ou à aplicação
dos preceitos jurídicos cujo caráter consiste na colaboração para tal finalidade das pessoas interessadas com uma
ou mais pessoas desinteressadas [...] a palavra processo serve, pois para indicar um método para a formação ou
para a aplicação do direito que visa a garantir o bom resultado, ou seja, uma tal regulação do conflito de interes-
ses que consiga realmente a paz e, portanto, seja justa e certa [...] para o objetivo de alcançar a regulamentação
justa e certa é necessária uma experiência para conhecer os termos do conflito, uma sabedoria para encontrar seu
ponto de equilíbrio, uma técnica para aquilatar a fórmula idônea que represente esse equilíbrio, a colaboração
das pessoas interessadas com pessoas desinteressadas está demonstrada para tal finalidade como um método
particularmente eficaz”.
163 Ver princípio da adaptabilidade do órgão às exigências do processo, in: Calamandrei apud Dinamarco
(2000, p. 290).
187
O componente de mediação vítima-ofensor na Justiça Restaurativa
é atribuída, assume também uma função gerencial (RESNIK, 1982, p. 435), pois, ainda que
a orientação ao público seja feita por um serventuário, ao magistrado cabe a fiscalização e
acompanhamento (ELLIOTT, 1986, p. 323), para assegurar a efetiva realização dos escopos
pretendidos pelo ordenamento jurídico processual, ou, no mínimo, que os auxiliares (e.g.,
mediadores) estejam atuando dentro dos limites impostos pelos princípios processuais
constitucionalmente previstos.
Pode-se mencionar que a recente busca da autocomposição como meio de
composição de controvérsias é decorrente, principalmente, de dois fatores básicos do
desenvolvimento da cultura jurídico-processual:
a) de um lado, cresce a percepção de que o Estado tem falhado na sua missão
pacificadora em razão de fatores como, dentre outros, a sobrecarga dos tribunais, as elevadas
despesas com os litígios e o excessivo formalismo processual (CAPPELLETTI; GARTH,
1988, p. 83);
b) por outro lado, tem se aceitado o fato de que o escopo social mais elevado das
atividades jurídicas do Estado é eliminar conflitos mediante critérios justos (DINAMARCO,
2000, p. 161), e, ao mesmo tempo, apregoa-se uma “tendência quanto aos escopos do
processo e do exercício da jurisdição que é o abandono de fórmulas exclusivamente positivadas”
(DINAMARCO, 2000, p. 157)164.
Ao se desenvolver esse conceito de “abandono de fórmulas exclusivamente
positivadas”, de fato, o que se propõe é a implementação no nosso ordenamento jurídico-
processual de mecanismos paraprocessuais ou metaprocessuais que efetivamente
complementem o sistema instrumental, visando ao melhor atingimento de seus escopos
fundamentais ou, até mesmo, que se atinjam metas não pretendidas originalmente no
processo judicial (BARUCH BUSH; FOLGER, 1994).
Nota-se, portanto, que, se a autocomposição penal, em modernos ordenamentos
processuais, se mostra como uma categoria de “portas” disponíveis, a Justiça Restaurativa
consiste em um movimento para se estimular a utilização dessas portas para, assim,
“proporcionar uma oportunidade para que vítimas possam obter reparações, sentirem-se
mais seguras, e encerrar um ciclo psicológico”, bem como permitir que “ofensores tenham
melhor compreensão acerca das causas e efeitos de seus comportamentos e que sejam
responsabilizados de uma forma significativa” 165. Paralelamente, a Justiça Restaurativa busca
também “proporcionar à comunidade melhor compreensão acerca das causas subjacentes ao
crime, bem como promover o bem estar da comunidade e prevenir crimes” 166.
164 A expressão original do autor é “abandono de fórmulas exclusivamente jurídicas”, contudo, não enten-
demos adequada a indicação de que a autocomposição não seria, com sua adequada técnica, um instrumento
exclusivamente jurídico. Isto porque se consideram as novas concepções de Direito apresentadas contempora-
neamente por diversos autores, dos quais se destaca Boaventura de Sousa Santos (1988, p. 72), segundo o qual
“concebe-se o direito como o conjunto de processos regularizados e de princípios normativos, considerados
justificáveis num dado grupo, que contribuem para a identificação e prevenção de litígios e para a resolução
destes através de um discurso argumentativo, de amplitude variável, apoiado ou não pela força organizada”.
165 Preâmbulo da Resolução nº 2002/12 do Conselho Econômico e Social da Organização das Nações Unidas.
166 Preâmbulo da Resolução nº 2002/12 do Conselho Econômico e Social da Organização das Nações
Unidas.
188
André Gomma de Azevedo
Como será tratado a seguir, cumpre destacar ainda que a Justiça Restaurativa, com
seu principal instrumento — a mediação restaurativa — não visa a substituir o tradicional
modelo penal retributivo. Trata-se de iniciativa voltada a complementar o ordenamento
processual penal para, em circunstâncias específicas, proporcionar resultados mais eficientes
da perspectiva do jurisdicionado.
167 Cf. Terminologia da Resolução nº 2002/12 do Conselho Econômico e Social da Organização das
Nações Unidas.
168 E.g., Gomes Pinto (2005); Umbreit (2000); Ashworth (2002); Morris (2002); Van Ness (2001); Baze-
more e Walgrave (1999); e Roche (2001).
189
O componente de mediação vítima-ofensor na Justiça Restaurativa
o processo que proporciona às vítimas de crimes contra a propriedade (property crimes) e crimes de
lesão corporal leve (minor assaults) a oportunidade de encontrar os autores do fato (ofensores) em
um ambiente seguro e estruturado com o escopo de estabelecer direta responsabilidade dos ofensores
enquanto se proporciona relevante assistência e compensação à vítima. Assistidos por um mediador
171
treinado, a vítima é capacitada a demonstrar ao ofensor como o crime a afetou, recebendo uma
resposta às suas questões e estará diretamente envolvida em desenvolver um plano de restituição para
que o ofensor seja responsabilizado pelo dano causado.
171 Da conceituação desenvolvida na Resolução nº 2002/12 do Conselho Econômico e Social da Organização das
Nações Unidas conclui-se que o “facilitador”, definido por esta resolução como “todo aquele que facilite de forma
justa e imparcial a participação das partes em um processo restaurativo”, é gênero, do qual o “mediador” seria espécie.
Isto porque a mediação vítima-ofensor consiste tão somente em um dos diversos processos da Justiça Restaurativa.
172 Glossário – Métodos de Resolução de Disputas (RADS). In: Azevedo (2002-2205, v.3).
173 Cabe registrar que novas tendências autocompositivas têm direcionado o processo de mediação a uma
orientação mais transformadora do que meramente voltada ao acordo. Sobre esse tema, cf. Folger e Jones
(1994); e Baruch Bush e Folger (1994).
191
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André Gomma de Azevedo
193
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174 Para maiores detalhes quanto aos procedimentos referentes a essa fase, cf. Umbreit (2000, p. 41).
195
O componente de mediação vítima-ofensor na Justiça Restaurativa
viciosos (ou virtuosos) de ação e reação. Considerando que cada reação em regra é
mais severa e intensa do que a antecedente, uma reação agressiva tenderá a produzir
uma reação ainda mais agressiva, o que por sua vez proporcionará nova ação ainda
mais agressiva — produzindo-se assim o círculo vicioso denominado de espiral de
conflito destrutiva (BUNKER; RUBIN, 1995). De igual forma, quando há eficiente
participação do mediador nesta fase, as partes são estimuladas a agirem de forma
construtiva ao fazerem uso de linguagem neutra e não agressiva. Como resultado, essa
ação produz uma reação construtiva, que por sua vez proporciona nova ação ainda
mais construtiva — produzindo-se assim um círculo virtuoso denominado de espiral
de conflito construtiva.
Ao ouvir ativamente (BINDER; PRICE, 1977, p. 20) a perspectiva das partes,
o mediador deve acrescer à lista de pontos objetos da mediação, originalmente elaborada
na sessão individual preliminar, questões relevantes, interesses e sentimentos. Após a
feitura de tal lista, recomenda-se que se apresente um breve resumo, usando linguagem
neutra e apontando as questões e os interesses identificados (em regra, os sentimentos são
tratados somente em sessões individuais para preservar as partes). Com isso, o mediador
consegue recontextualizar os fatos pertinentes ao conflito e estimular o desenvolvimento
de uma espiral de conflito construtiva. Desta forma, naturalmente serão escolhidas,
pelo mediador, as questões a serem prioritariamente endereçadas na mediação. Cumpre
registrar que esta escolha consiste em opção individual do mediador, que, em regra, opta
por iniciar a “comunicação construtiva” pelas questões que tratem de aspectos relacionados
à comunicação entre as partes (uma vez que esta, se adequadamente endereçada, auxiliará
na resolução das demais questões). Critérios frequentemente utilizados na escolha da
ordem de abordagem de questões a serem tratadas na mediação são, entre outros:
a) aqueles que se reportam a histórico de relacionamento positivo das partes;
b) os que evocam interesses comuns;
c) aqueles em que a solução já foi implicitamente indicada pelas partes nas suas
exposições iniciais (e.g., conversarem com urbanidade); e
d) os que proporcionam maior aprofundamento da compreensão recíproca
acerca das necessidades e interesses de cada parte.
Naturalmente, ao se desenvolver, na mediação, a comunicação acerca das questões
controvertidas, a relação entre as partes aos poucos começa a ser restaurada ou estabelecida
em patamares aceitáveis por estas. Nesse sentido, cumpre frisar que compete exclusivamente
às partes (re)construir esta relação, na medida em que estabelecem adequada comunicação.
Cabe destacar, ainda, que a atribuição do mediador não é secundária ou passiva, pois, se de
um lado não compete a este apresentar soluções às partes, de outro lado, o estabelecimento
de um ambiente adequado para que as partes encontrem suas soluções, bem como o
esclarecimento de questões e interesses reais e a identificação e endereçamento adequado
de sentimentos que venham a obstaculizar o andamento produtivo da resolução do conflito
são atribuições do mediador que requerem a devida capacitação, supervisão e treinamento.
Pode-se afirmar que a mediação aproxima-se de uma resolução em bons
termos quando as partes começam a se comunicar diretamente sem se referirem ou
197
O componente de mediação vítima-ofensor na Justiça Restaurativa
4 Conclusão
Em razão do aperfeiçoamento contínuo do ordenamento jurídico processual
penal, constata-se o desenvolvimento de corrente genericamente denominada de “Justiça
Restaurativa”, com enfoque predominante nas necessidades da vítima, da comunidade
e do ofensor. Nesse contexto, mostra-se imperativo o reconhecimento dos impactos
sociais do ato infracional ou crime e a redução das injustiças significativas decorrentes da
aplicação puramente objetiva de dispositivos legais que frequentemente desconsideram
as necessidades das vítimas. Por meio da Justiça Restaurativa, busca-se reafirmar a
responsabilidade de ofensores por seus atos, ao se permitirem encontros entre estes e suas
vítimas e a comunidade na qual estão inseridos.
O acesso à justiça mostra-se cada vez mais como um sistema de melhoria contínua,
não apenas no tocante a disputas cíveis, mas também a conflitos no âmbito penal. Nesse
sentido, cabe realizar as normas positivadas de forma a que o sistema penal não promova
a marginalização e sim a aproximação de seres humanos, por meio da ressocialização,
prevenção, educação, empoderamento e humanização do conflito.
No que concerne à autocomposição penal prevista na Lei nº 9.099/95 e na Lei
nº 10.259/01, pode-se afirmar que lentamente vem se formando no Brasil a compreensão
de que a autocomposição, quando desenvolvida sem a técnica adequada, em regra gera a
imposição do acordo e com isso a perda de sua legitimidade. Isto porque as partes muitas
vezes não são estimuladas a comporem seus conflitos e sim coagidas a tanto. Como
indicado acima, o sucesso das modernas iniciativas autocompositivas penais decorre do
desenvolvimento de pesquisas aplicadas e voltadas a assegurar maior efetividade a esses
processos por intermédio do desenvolvimento de técnica adequada.
Nota-se, portanto, que a autocomposição penal, em ordenamentos processuais
modernos, se compõe de uma categoria de opções processuais ou “portas”. Nesse sentido,
a Justiça Restaurativa consiste em um movimento para se estimular a utilização dessas
portas para, assim, “proporcionar uma oportunidade para que vítimas possam obter
176 Umbreit (2000), Morris (2002), Cooley (2000; 2001), Azevedo (2002-2005), entre outros.
198
André Gomma de Azevedo
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202
Mediação em relações
de trabalho no Brasil
178 O autor registra que para muitas das asserções constantes deste estudo, sem embargo de sua responsabili-
dade individual por seu conteúdo, muito contribuiu a interlocução com a advogada, mediadora e consultora
do PNUD em segurança e mediação, Célia Regina Zapparolli, cuja reflexão e experiência encontram-se par-
cialmente documentadas nos seus trabalhos referidos nas indicações bibliográficas, ao final; bem assim com
os alunos do programa de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da USP – Largo de São Francisco.
179 Numa perspectiva convergente com a que sustento aqui, Lagrasta Neto (2007, p. 11), ocupando-se especifica-
mente dos Juizados Especiais (e, portanto de política judiciária em sentido estrito), enaltece a seguinte advertência:
“o que queremos de um sistema alternativo de solução de litígios? Uma solução que privilegie o acesso à Justiça para
os mais humildes; ou a solução para a crise de Judiciário?”
203
Mediação em relações de trabalho no Brasil
2 Conceituação de conflito
Indo direto ao que importa para estas reflexões, ocupemo-nos inicialmente dos
predicados que permitam convencionar um conceito operativo para o fenômeno sócio-
jurídico do conflito, em especial, de conflito intersubjetivo de justiça.
São ao menos três as dimensões em que se projeta o fenômeno conflito, a saber: cognitiva,
emocional e comportamental. Seguindo Mayer (2000, p. 5), conflitos existem em virtude da
circunstância de que alguém se sinta em conflito com outro, muito embora esse sentimento
não seja necessariamente recíproco nem reconhecido pelo outro. Para que esse fenômeno, não
reciprocamente perceptível, possa caracterizar-se como conflito intersubjetivo (não como conflito
intrapsíquico), é também necessário não perder de vista sua dimensão objetiva. Não apenas para
isso. Também para que não se confunda mediação com terapia relacional — conquanto não
se tencione negar à mediação a possibilidade, por sinal virtuosa, de eventualmente produzir
efeitos terapêuticos, nem tampouco à mediação o benefício de se socorrer do auxílio terapêutico,
quando necessário para a mediação ou quando aconselhável às partes.
Mas que elementos podem ser apontados como indispensáveis e necessários para
um conceito operativo de conflito intersubjetivo de justiça?
Como distinguir conflito de controvérsia ou litígio; conflito de contradição ou
contraposição de interesses; conflito de desajuste no relacionamento intersubjetivo?
Surpreende que a maior parte dos autores que se ocupam de mediação e de outros
processos de administração de conflitos não ofereça uma predicação clara para conflito.
Um clássico no assunto prefere afirmar que “existe conflito quando quer
que ocorram atividades incompatíveis” (DEUTSCH, 1973, p. 10).180 Ao prometer
180 “At this point it would be well do define some of the key terms used in this text. A conflict exists whenever
incompatible activities occur. [...] An action that is incompatible with another action prevents, obstructs,
interferes, injures, or in some way makes the latter less likely or less effective. The terms competition and con-
flict are often used synonymously or interchangeably. This reflects a basic confusion. Although competition
produces conflict, not all instances of conflict reflect competition” (DEUTSCH, 1973, p. 10).
204
Antônio Rodrigues de Freitas Jr.
uma definição para conflito, Mayer (2000, p. 4) resolve-se pelo seguinte atalho: “O
que é conflito? Conflito pode ser visto como ocorrendo em dimensões cognitivas
(percepção), emocionais (sentimentos) e comportamentais (ações)”. E fica por aí.
Marinés Suares (1996, p. 78) vai mais além, e, ao tratar da distinção entre disputa e
conflito, propõe:
No campo da mediação entenderemos por conflito: – um processo interacional, que como tal
nasce, cresce, desenvolve-se e pode às vezes se transformar, desaparecer e/ou se dissolver, e outras
vezes permanecer relativamente estacionário; – que se dá entre duas ou mais partes [...];– em que
predominam as interações antagônicas sobre as interações atraentes ou atrativas; – interações
nas quais as pessoas que intervêm o fazem como seres totais [...] — por vezes, porém não
obrigatoriamente, agressivas; – que se caracteriza por ser um processo co-construído pelas partes;
– um processo complexo e como tal não pode ser abarcado totalmente por uma definição.
206
Antônio Rodrigues de Freitas Jr.
administrável a atmosfera da relação entre eles, nem tampouco, por esse e outros motivos,
mais fácil a solvibilidade do problema. Eis o porquê, no que pertine à administração
pacífica dos problemas alocativos, a natureza absoluta ou relativa (objetiva ou subjetiva)
da “necessidade” conferida aos bens é, em geral, de importância secundária. Até porque
os sujeitos se comportam conforme cálculos, cenários, prospecções, receios, etc., sempre
balizados pela “necessidade” aferida segundo suas respectivas percepções; pouco
importando, nesse particular, a acuidade dessas últimas. Desse modo, retornando ao
exemplo do desabastecimento de alimentos: nada está a indicar que as dificuldades
alocativas do problema sejam substancialmente diversas, quer na hipótese de ausência
concreta, quer na de ausência presumida de alimentos.
Sob o ângulo lógico, a alocação positiva de um bem escasso é o equivalente
matemático da alocação negativa de um encargo. Assim, por exemplo, o problema
alocativo consistente na identificação de critérios de justiça mediante os quais se seleciona
um receptor de órgão ou um calouro no ensino universitário é logicamente equivalente
àquele presente na alocação de carga tributária, de dispensa no emprego, de overbooking
no embarque em um vôo internacional. Entretanto, devo registrar que, de minhas
investigações voltadas ao problema da justiça alocativa, em decisões relativas à dispensa de
empregados,181 resultou a forte impressão de que, nos problemas de alocações positivas,
em comparação com a atmosfera presente naqueles de alocações negativas, é mais
facilmente concertável a fixação dos critérios de justiça alocativa; conquanto nada esteja
a indicar que os conflitos decorrentes dos respectivos problemas produzam ambientes
de administração simetricamente diversos. Minha hipótese de explicação para esse
fenômeno é meramente aproximativa e de índole inercial: no que concerne à intensidade
das expectativas e à assimilação das frustrações, parece mais fácil emular o despojamento
numa situação de não aquisição que numa de perda, observada, naturalmente, alguma
correspondência na valoração (atribuída por critérios patrimoniais e/ou emocionais,
conforme o caso) reservada aos bens objeto da decisão alocativa.
Falemos um pouco mais do segundo ingrediente conceitual que proponho seja
identificado como imprescindível à noção de conflito: a circunstância de que os sujeitos se
comportem por vetores contrapostos, num dado problema alocativo. Em outros termos, um
problema alocativo hipotético somente exibe grandeza de conflito se, e na medida em que,
os sujeitos nele envolvidos inclinem-se por reproduzir comportamento de antagonismo;
caso contrário, estaríamos tão-somente diante de uma situação de contradição abstrata e
não propriamente de relação de conflito. Por outro lado, interessa notar que a maior ou
menor consciência ou intencionalidade, por parte dos sujeitos, acerca da contraposição vetorial
de seus comportamentos, não é essencial para a caracterização do conflito, embora seja de grande
importância como fator a ser considerado na intervenção mediadora. Assim, por exemplo: ao
se mover em direção à conquista da posse de um terreno, pode o ocupante acreditar-se em
181 Refiro-me à pesquisa desenvolvida enquanto projeto temático sob patrocínio da FAPESP, que, no Brasil,
foi coordenada por Argelina Figueiredo, e no plano internacional por Jon Elster. V., assim, Freitas Junior (1994,
p. 160-173).
207
Mediação em relações de trabalho no Brasil
208
Antônio Rodrigues de Freitas Jr.
182 Ou, como preferem alguns no equivalente em vernáculo, RDA; objetivando designar os assim chamados
meios alternativos de resolução de disputas.
209
Mediação em relações de trabalho no Brasil
183 À falta de melhor vocábulo, no vernáculo, para traduzir o termo inglês empowerment.
210
Antônio Rodrigues de Freitas Jr.
211
Mediação em relações de trabalho no Brasil
porque há uma larga distinção entre “renunciar à proteção alimentar” e dispensar pensão
(especialmente quando desnecessária ou juridicamente incabível), entre renunciar aos
direitos/deveres de “paternidade/maternidade – poder familiar” e definir um regime
de guarda em que apenas um dos pais o exerça; entre renunciar ao direito/dever de
visita e a definição de um regime de visita que seja compatível com a preservação das
rotinas co-essenciais à formação da criança e do adolescente. Ora bem, esses parecem
ser exemplos eloquentes de que o conflito comporta intervenção mediante a confecção
harmoniosa de uma pauta de exercício de direitos indisponíveis, tendo em vista cada
situação concreta de possibilidade e de necessidade.
O mesmo ocorre com os direitos sociais, em especial os direitos trabalhistas.
Tomemos o exemplo da proteção ao meio-ambiente do trabalho e à saúde do trabalhador.
Ninguém haverá de negar tratar-se de matéria de tutela indisponível. Por outro lado, todos
sabemos quão numerosos são os entendimentos sindicais e os termos de ajuste de conduta
(firmados perante o Ministério Público), que têm por objeto o diferimento, no tempo e na
métrica, de observância das disposições legais indisponíveis voltadas à tutela da saúde e do meio
ambiente. E assim não por conta de uma morosidade da Justiça, que hoje dispõe de uma ampla,
ágil e sofisticada variedade de modalidades de tutela específica. Ocorre que a implantação de
certas medidas importa tempo, prioridades, procedimentos, etapas, etc., que nem mesmo por
força da mais célere e imperativa decisão judicial podem ser ignoradas; até porque decorrem de
limitações de fato e da necessidade de observância de procedimentos técnicos que, não raro,
requerem tempo e implicam escolha de prioridades e decisões de compromisso. Mesmo que
o responsável pelo empreendimento reconheça e se disponha sinceramente à observância das
regras (não raro com sinceridade maior do que quando ordenados judicialmente a fazê-lo), seu
cumprimento poderá vir a se efetivar de diferentes modos, e é precisamente na definição desses
modos de exercício do direito que emerge o cenário para uma agenda consensuável para sua
implementação (não, é claro, para seu desrespeito).
Outro exemplo de direito social indisponível: a tutela da honra e da dignidade
da pessoa do trabalhador. Numa hipotética ocorrência de assédio moral, praticado por um
empregado contra outro empregado, na qual emerge a responsabilização da empresa,184 a
184 Para o que importa em meu argumento, é irrelevante discernir se se trata de responsabilidade objetiva,
culpa presumida, inversão do ônus da prova, ou outra figura jurídica de efeito análogo. Importa ter presente
que, demandada judicialmente, porque de regra responsável por fatos que seus empregados pratiquem no
curso da prestação laboral, a empresa e todo seu poder de persuasão judicial tenderá a desqualificar a preten-
são declaratória/reparatória da vítima, e a sair na defesa do apontado agressor. Não raro, configurando um
quadro recorrente em que a empresa deduz judicialmente sua defesa pela negativa do fato e desqualificação
da queixa do ofendido. Fosse um cenário não adversarial em que a queixa viesse a ser formulada (um processo
de mediação empregado-empregado), talvez o empregador se abrisse para aferir a medida da materialidade
do fato e da autoria; promovendo até mesmo — porque não? — uma solução reparadora equilibrada para
restabelecer a harmonia do ambiente de trabalho, evitar a reincidência e promover o aperfeiçoamento
das relações interpessoais de seus trabalhadores. Até porque, como não é difícil supor, muitos assédios
são praticados sem e mesmo contra o comando e o aval institucional do empregador; e deles pode resultar
não apenas sua responsabilização patrimonial como também efeitos profundamente perniciosos à higidez
psíquica e motivacional de seus prestadores.
213
Mediação em relações de trabalho no Brasil
4 Considerações finais
Em conclusão, proponho que, na promoção da cultura da paz, inclusive no
âmbito das relações interpessoais no mundo do trabalho, ferramentas não-adversariais
como a mediação constituem importantes instrumentos a serem consideradas na
perspectiva da administração, justa e eficaz, dos conflitos. Especialmente daqueles em que
seus protagonistas comportem-se por vetores contrapostos e o façam porque portadores
de valores distintos de justiça. De justiça! Como enfatizei acima, não de correspondência
entre o conteúdo da decisão alocativa e aquele do ordenamento jurídico positivo. Para
tanto, é necessário que nos despojemos — sobretudo nós de formação jurídica — do vezo
de reproduzir, de modo não crítico e irrefletido, a equação: justiça = legalidade.
Caso contrário, permitindo que o conteúdo do justo deixe-se aprisionar pelo continente
185 Há pouco fiz alusão à diferença entre o olhar dos países de tradição romano-germânica e de origem latina,
comparativamente àqueles de matriz diversa. Em matéria de relações de trabalho essa diferença adquire manifesto
contorno. Leonardo Schvarstein, prefaciando Marinés Suares (1997, p. 28-32), é enfático ao afirmar que “las
organizaciones que se estructuran jerárquicamente no constituyen ámbitos propícios para la utilización de la
mediación”. Para Schvarstein, “lo que definitivamente no vamos a encontrar en el jefe es um tercero capaz de ayudar
a las partes a construir historias alternativas, porque él tiene su propria historia, la de estar obligado a poner límites a
la disputa en tanto lo comprometa en la obtención de sus resultados. Esto lo descalifica como mediador y al mismo
tiempo inhibe la inclusión de otro tercero como mediador, ya que ello sigificaría um menoscabo a su autoridade”.
Contrastemos, por exemplo, as asserções de Schvarstein, corroboradas por autores como Mello (2004,
p. 241-255), que não admite sequer arbitragem em conflitos trabalhistas, com as já referidas narrativas de Mayer
(2000), ou mesmo com capítulos inteiros de Ury, Brett e Goldberg (1988, p. 134 et seq.), v.g., intitulado “Cutting
Dispute Costs for an Industry: The Grievance Mediation Program”, em que a mediação é ricamente preconizada para
conflitos trabalhistas. No Brasil, divergindo, como o faço, da dogmática predominante, porém a partir de fundamen-
tos teóricos e de premissas metodológicas diversas, q.v., Targa (2004), que reconhece e aplaude o emprego de meios
alternativos de administração de conflitos no âmbito das relações do trabalho; e Michelon (1999, p. 156-161), encora-
jando-os por via de um balanço bastante favorável da experiência do Plantão Especial para Denúncias e Mediação dos
Conflitos Individuais Trabalhistas da Delegacia Regional do Trabalho de Rio Grande do Sul, criada em 1990.
186 Bem ao contrário da regra da publicidade do processo judiciário, um dos princípios basilares da mediação
é a observância da confidencialidade do processo.
214
Antônio Rodrigues de Freitas Jr.
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216
Programa Mediação de Conflitos:
uma experiência de mediação
comunitária como política pública
em Minas Gerais
1 Apresentação
O presente trabalho versa sobre os pressupostos teóricos e metodológi-
cos que embasam a formulação e execução do Programa Mediação de Conflitos
(PMC), desenvolvido pela Diretoria do Núcleo de Resolução Pacífica de Confli-
tos da Coordenadoria Especial de Prevenção à Criminalidade, órgão da Secretaria
de Estado de Defesa Social do Governo de Minas Gerais. O Programa Mediação
de Conflitos é atualmente uma política pública alocada à agenda da política de
segurança pública do Estado de Minas Gerais, com recorte territorial. O progra-
ma se enquadra no “gênero” Mediação Comunitária, por se tratar de uma prática
que envolve mecanismos garantidores dos direitos humanos calcados na filosofia
da paz, representando um marco central das propostas de mediação no Brasil, pois
congrega uma densidade sensível, profunda e crítica, avançando quanto aos rumos
democráticos do país. Cultiva e agrega novos atores diante do desafio de transfor-
mar os dados de violência em dados de paz, especialmente quando focamos no re-
conhecimento dos modos de sociabilidade local, evidenciando o capital social local
e o engajamento de grupos e sujeitos sociais na participação e solução dos próprios
conflitos.
O Programa Mediação de Conflitos, como Programa de mediação comuni-
tária, visa empreender ações em mediação de conflitos, orientações sociojurídicas,
217
Programa de Mediação de Conflitos
218
Ariane Gontijo Lopes Leandro e Giselle Fernandes Corrêa da Cruz
Figura 1 - Organograma
Organograma
Programa Mediação de Conflitos
Atendimentos Atendimentos
individuais Princípios e coletivos
técnicas da
Mediação
Prevenção social
Acesso a à violência e à Resolução
Direitos criminalidade pacífica de
conflitos
Projetos
temáticos e Organização Projetos
coletivização de comunitária Institucionais
demandas
187 Programa de Pesquisa e Extensão desenvolvido no âmbito da Faculdade de Direito da ostos conceitos: a
base de uma metodologiaUniversidade Federal de Minas Gerais.
219
Minas Gerais. Um elemento importante que vale ser ressaltado diz respeito à necessária
reavaliação da metodologia, mais adequada à estrutura política do governo, ou seja, esta
ganhou novos arranjos institucionais que aperfeiçoam a prática do programa para a leitu-
ra e enfrentamento da(s) violência(s) social(is).
O conjunto institucionalizado de direitos e garantias do ser humano que tem por finalidade básica
o respeito a sua dignidade, por meio de sua proteção contra o arbítrio do poder estatal e o estabe-
lecimento de condições mínimas de vida e desenvolvimento da personalidade humana pode ser
definido como direitos humanos fundamentais.
221
Programa de Mediação de Conflitos
222
Ariane Gontijo Lopes Leandro e Giselle Fernandes Corrêa da Cruz
223
Programa de Mediação de Conflitos
Todo este processo garante um potencial contínuo de trabalho na(s) e com a(s) comu-
nidade(s). Este pilar é fundamental para garantir o marco teórico e prático do Programa Media-
ção de Conflitos e contribui diretamente na ação conjunta das diretrizes da política de prevenção
à criminalidade. Esta noção de organização comunitária é basilar no conceito de capital social,
pois é a partir do contexto das relações sociais e das redes sociais que um ou mais atores se mo-
bilizam em proveito próprio e ao mesmo tempo mútuo e que, assim, são extraídos o acúmulo e
estoque de capital social, geradores de uma sociedade mais democrática e igualitária na qual os
atores sociais se reconhecem enquanto sujeitos de direitos e protagonizam as ações dos espaços
público-comunitários. Vale ressaltar que a articulação comunitária e a mobilização social fazem
parte de um processo de intervenção, e não são fins em si mesmas. Além disso, não se caracterizam
pela eventualidade e sim decorrem de um modo sistemático e contínuo de atuação.
O entendimento sobre a noção de coletivização de demandas é fundamental, pois
sua função é unificar valores, forças e estratégias de mobilização de dado contexto, com
o intuito de fomentar o surgimento de novos atores sociais ou fortalecer os já existentes.
Trata-se de toda e qualquer ação decorrente de questões que perpassam o envolvimento
de mais de um indivíduo no que diz respeito ao sentimento de pertença a determinada
demanda. Estes vários atores envolvidos pactuam da via coletiva para transformar dada
circunstância, compartilhando saberes e almejando o acesso aos direitos garantidos a to-
dos, fomentando o exercício da cidadania.
A coletivização de demandas, de acordo com o marco metodológico do Progra-
ma Mediação de Conflitos, se dará de modo integrado às ações do Programa e será uma
via condutora capaz de qualificá-lo com vistas à mediação comunitária. Existem algumas
hipóteses de coletivização de demandas, que dizem respeito à recorrência de casos indi-
viduais advindos de atores diferentes. Portanto, sendo percebida uma reiterada busca das
pessoas pelos mediadores para trabalhar suas questões (que a princípio podem se apresen-
tar como de interesses somente privados), desenvolvem-se assim as possibilidades de se
coletivizar as demandas “passíveis” de serem ampliadas 188. Concordamos com Henriques
(2002, p. 8) quando o mesmo define o processo de coletivização como fator de “mudanças
coletivas” e “fonte de novas informações”:
A coletivização pode ser alcançada pelo sentimento e certeza de que não se está sozinho na luta pela
mudança, há outros atuando com o mesmo sentido e propósito. Distingue-se da simples divulga-
ção porque há um compromisso com os resultados – espera-se que as pessoas não apenas tomem
conhecimento da informação, mas incorporem-na de alguma forma, utilizem-na, compartilhem-
na e tornem-se elas próprias fontes de novas informações.
188 Podemos citar como exemplo de coletivização as demandas relacionadas à violência de gênero. Ao fazermos
um estudo dos perfis dos atendimentos realizados pelo programa ao longo dos anos, foi observada a recorrência
dos casos individuais relacionados a tal temática. Ao percebermos o volume de tais demandas e a inadequação
da abordagem de forma pontual, planejamos uma ação de coletivização de tais demandas. Foi desenvolvido um
Projeto Institucional entre a Coordenadoria Especial de Prevenção à Criminalidade (através de dois programas
de prevenção: Programa Mediação de Conflitos e a Central de Penas Alternativas) e um instituto especialista no
assunto, no intuito de abordarmos tal temática de forma coletiva, através de trabalhos com grupos nas comuni-
dades. Dessa forma, esse fator de risco social (violência de gênero) poderá ser trabalhado de forma a aumentar sua
eficiência dentro da perspectiva de prevenção social à violência e criminalidade.
224
Ariane Gontijo Lopes Leandro e Giselle Fernandes Corrêa da Cruz
É importante salientar que muitas das demandas que são coletivizadas são
desenvolvidas por meio de parcerias com organizações especializadas no tema, através
de Projetos Institucionais que buscam envolver os diversos atores do Sistema de Defesa
Social e a sociedade civil de modo geral. Importante destacar que nem todas as demandas
são passíveis de serem coletivizadas e que há que se pensar a estratégia específica para cada
processo de coletivização.
O Programa Mediação de Conflitos, conforme mencionado acima, é composto
por eixos orgânicos denominados: atendimentos individuais, atendimentos coletivos, pro-
jetos temáticos e projetos institucionais. Quanto aos atendimentos individuais e coletivos,
temos dois procedimentos capazes de atender as demandas apresentadas pelas populações
moradoras dos aglomerados urbanos, bairros, vilas e favelas: o procedimento da mediação
e o procedimento da orientação (Figura 2). Em seguida, apresentaremos com detalhes
a metodologia aplicada em nossa experiência, mas antes iniciaremos, para melhor com-
preensão do leitor, com a definição do agente estratégico desta política, o “mediador”.
Escuta do caso
Apresentação do Programa Mediação
Breve apresentação do Centro de Prevenção à Criminalidade
Discussão do caso em
Retorno do equipe
atendimento Definição da dupla de
(quantos forem referência
necessários)
225
Programa de Mediação de Conflitos
3 O mediador
Todas as ações propostas pelo Programa Mediação de Conflitos, como apresen-
taremos no decorrer do artigo, são desempenhadas localmente nos Centros de Prevenção
à Criminalidade por profissionais graduados e por estagiários das áreas das ciências hu-
manas e sociais, tais como: Direito, Psicologia, Ciência Social, Pedagogia e Serviço Social.
Para a realização e desempenho das ações do Programa, as equipes de trabalho recebem
formação contínua sobre a técnica de mediação adaptada ao contexto específico das co-
munidades nas quais o programa atua e na perspectiva da prevenção social às violências e
criminalidade. Contamos com a qualificação destes profissionais para o exercício do papel
do “mediador”. Podemos dizer que enquanto os participantes, também chamados de de-
mandantes ou mediandos, são os principais atores e elementos do processo de mediação,
o mediador é o elemento essencial no que diz respeito à caracterização da mediação. Não
existe mediação sem a figura da terceira pessoa, o mediador, ou mesmo não há mediação
em espaços em que as pessoas não legitimam a proposta figurada pelo lugar do mediador,
o que pode ser visto nas palavras de Sales (2004, p. 79): “O condutor da mediação de con-
flitos é denominado mediador – terceiro imparcial que auxilia o diálogo entre as partes com
o intuito de transformar o impasse apresentado, diminuindo a hostilidade, possibilitando o
encontro de uma solução satisfatória pelas próprias partes do conflito.”
Nas palavras de Six (2001, p. 220), o papel do mediador é o de estabelecer liga-
ções entre aqueles que suscitam juntos uma nova maneira de ser ou agir. Encontramos
sempre na literatura a caracterização do mediador como um terceiro imparcial. Há, po-
rém, uma definição que consideramos mais apropriada ao papel do mediador na prática
do programa, que, embora agregue valor à compreensão do terceiro imparcial, trará uma
singularidade na condução dos trabalhos do programa com ênfase em mediação comu-
nitária. Referimo-nos ao mediador como um terceiro multiparcial 189. Isso significa que
o mediador desenvolve um potencial de habilidades onde são reconhecidas as versões e
razões de cada um dos participantes, sem “tomar partido” de qualquer uma das pessoas
envolvidas, mas devemos mencionar que o mediador multiparcial reconhecerá os territó-
rios (contextos) de vida dos mesmos, devendo assegurar o espaço mútuo de um e de outro
ponto de vista, conduzindo o caminho para as saídas e soluções apresentadas e pactuadas
por eles, sempre pautado no princípio do respeito aos direitos humanos. O mediador, nes-
te contexto, é um catalisador dos discursos enunciados pelos participantes, uma vez que
ele auxilia os mesmos a descobrirem seus reais interesses, abrindo espaço para o diálogo,
para intercompreensão dos envolvidos no conflito e motivando a criatividade na busca de
soluções para a questão. Por fim, a importância dada ao mediador multiparcial dá-se em
razão do contexto social em que os participantes ou mediandos estão inseridos, sendo ne-
cessária a visão central do Programa Mediação de Conflitos, que se orienta pela garantia e
promoção dos direitos humanos.
189 Conceito adotado e desenvolvido pela experiência prática do Programa Mediação de Conflitos da Secretaria de
Estado de Defesa Social, desde sua implantação como política pública orientada pela pesquisa-ação.
226
Ariane Gontijo Lopes Leandro e Giselle Fernandes Corrêa da Cruz
227
Programa de Mediação de Conflitos
2ª parte aceita participar do processo. 2ª parte não comparece após duas 2ª parte não aceita participar
Marca-se a data da Pré-mediação tentativas do processo
Abertura
Equipe acolhe a primeira
Investigação parte e faz as orientações
e encaminhamentos
Discussão
necessários
do caso em Agenda
equipe
Monitoramento do caso dentro do prazo de 1
Criação de opções (um) mês, após último atendimento
Desistência do procedimento
de mediação
228
Ariane Gontijo Lopes Leandro e Giselle Fernandes Corrêa da Cruz
229
Programa de Mediação de Conflitos
Diálogo: Na introdução de sua obra, Six (2001) faz uma reflexão sobre o mito
da comunicação-total que impera no tempo atual, em que as informações circulam de
maneira rápida e sem fronteiras, em que, porém, há a negação de toda a interioridade
e toda a profundidade. Ele caracteriza o tempo em que há espaço para a mediação
como um tempo de diálogo e silêncio verdadeiros. O mediador é a ponte de ligação
entre pessoas ainda desconexas em suas pretensões antagônicas ou divergentes. Ele
é quem suscita entre os participantes o diálogo construtor e verdadeiro, sem o qual
não há possibilidades de se chegar a um acordo que responda aos anseios de justiça e
solução do problema. Ele se utiliza da arte de estabelecer ligações entre os envolvidos
no conflito, através do diálogo e da abertura de oportunidades para que os mesmos
se percebam mutuamente em seus anseios e sentimentos. É a partir deste movimento
que os próprios participantes suscitam saídas e soluções colaborativas, não-violentas,
criativas, participativas, co-responsáveis, solidárias, respeitadoras de suas diferenças
e que sejam duradouras.
Tempo: Todo o processo de mediação está intimamente ligado ao fator tem-
po. Desenvolve-se com o tempo a seu favor e não contra ele. Na mediação, não se
pode prever um padrão ideal de tempo no qual ela se desenvolva. Esse tempo depen-
derá de cada caso e do estágio em que os demandantes se encontram na percepção e
entendimento das questões que trazem, assim como da disposição, da vontade dos
mesmos em convergirem para um acordo. Quando não há a observância do fator tem-
po, há grandes possibilidades de as partes não chegarem a um acordo ou do resultado
ser superficial quanto ao objeto da demanda ou do conflito propriamente dito, não
respondendo assim ao objetivo de condução dos envolvidos ao acordo legítimo, du-
radouro e justo, em relação aos qual os participantes se impliquem no compromisso
de cumpri-lo.
Conforme exposto acima, as equipes de atendimento atuam no espaço físico
do Centro de Prevenção à Criminalidade, reconhecido pela comunidade como um
espaço de referência e de convivência. Quando uma pessoa procura o Programa Me-
diação de Conflitos, ela traz uma demanda, um problema, um conflito, uma dúvida
ou mesmo a curiosidade de conhecer o que funciona naquele local. Dá-se então a
recepção desta pessoa e um agendamento para o atendimento com a dupla de me-
diadores disponível. No primeiro atendimento, se a pessoa ainda não conhece o pro-
grama, este é apresentado pela dupla que realiza o atendimento esclarecendo as ações
desenvolvidas, conforme apresentamos na Figura 2 acima.
Muitos procuram o Programa demandando assistência jurídica gratuita, pelo
fato de ter conhecimento de que um advogado compõe a equipe. Da mesma for-
ma, ocorre também a procura pelos serviços terapêuticos do psicólogo. Na ocasião
do primeiro atendimento, a dupla explica como funciona o programa, esclarece que
os profissionais não advogam e nem realizam psicoterapia. Após a explicação sobre
o programa e a abordagem ali realizada, o participante voluntariamente decide (ou
não) pelo início do procedimento da mediação. Caso sua demanda seja de orientação
ou de encaminhamento para outro serviço público, a dupla realiza esta orientação,
230
Ariane Gontijo Lopes Leandro e Giselle Fernandes Corrêa da Cruz
190 A rede parceira é composta por instituições do poder público municipal, estadual e federal e pelas orga-
nizações não-governamentais que atuam na prestação de serviços à população.
191 Sobre este procedimento, ver Gustin (2005, p. 36) e ver Figura 3 acima.
231
Programa de Mediação de Conflitos
Sabe-se que todo processo pedagógico é sempre edificante, ou seja, ele é sempre transformador,
ele ‘edifica’ porque constrói novos parâmetros para a decodificação da situação problemática.
Por ser um processo pedagógico, onde se aprende na argumentação-convencimento, ele é essen-
cialmente libertador, pois qualquer processo de aprendizagem emancipa os seres das amarras do
desconhecimento e da desinformação. Enfim, por ser um processo pedagógico, a mediação é não
só uma abordagem informativa, mas, também, formativa. Por isso, cidadã, isto é, constitutiva de
novas cidadanias.
Por isso, a mediação não se resume à realização do acordo. Ela representa o pro-
cesso de composição das relações sociais. Em alguns casos, as partes retornam posterior-
mente ao programa para a retomada da mediação, numa clara demonstração de parceria e
de abertura à mediação e ao diálogo.
233
Programa de Mediação de Conflitos
234
Ariane Gontijo Lopes Leandro e Giselle Fernandes Corrêa da Cruz
4º - Papel do mediador
O programa dispõe deste agente para ser o condutor que proporcionará a to-
dos os envolvidos a resolução da demanda por eles mesmos apresentada. O mediador,
em todas as suas faces, nas mediações individuais e nas mediações comunitárias, é o
co-protagonista que levará em consideração as adversidades nos discursos de cada ator
participante. O mediador, diante do caso coletivo, seja de mediação ou orientação,
desenvolverá habilidades múltiplas, adequadas à complexidade dos casos comunitá-
rios, habilidades estas que proporcionarão uma reflexão contínua a cada participante
e também ao próprio mediador. Há que se lembrar, na atuação comunitária, que o
mediador deverá levar em conta os níveis de poder e hierarquias presentes na ação de
cada participante envolvido no processo de mediação coletiva, bem como perceber as
complexidades e especificidades existentes diante dos atores institucionais envolvi-
dos e suas relações perante os grupos. É importante perceber que o mediador, frente
aos casos coletivos, será um elo importante de acesso aos bens públicos e serviços es-
senciais para os grupos, bem como um ator que contribuirá no fomento, organização
e emancipação destes grupos.
5º - Fator tempo
Este fator levará sempre em consideração o determinante do coletivo, ou seja,
deverá ter sempre o cuidado de aperfeiçoar a relação e a noção de tempo entre todos os
envolvidos em questões comunitárias. Em todos os momentos, devemos estar atentos ao
nosso objetivo principal – que pode ser amplamente compreendido como o processo de
construção e criação de acesso a direitos de pessoas, grupos, segmentos sociais destituídos
de direitos fundamentais e, assim, sermos capazes de proporcionar a efetivação de direitos
humanos, incrementando noções de cidadania e viabilizando ações de participação ético
-político-social.
planejar todo o trabalho desenvolvido pelas equipes, portanto, o programa destina dois dias da
semana para desenvolver momentos de reflexão e coordenação das ações. Um desses momen-
tos é entendido como o espaço de reunião local de discussão de casos, onde as equipes do pro-
grama, em sua base local em cada região específica do Estado de Minas Gerais, analisam todas
as ações do programa, sejam os atendimentos individuais, os atendimentos coletivos, os projetos
temáticos e os projetos institucionais. A equipe completa participa destas reflexões e discussões
sobre os retornos e novos casos atendidos e sobre as ações desenvolvidas. Estas discussões têm
por objetivo ampliar o olhar do mediador sobre as demandas apresentadas e sobre as condu-
ções das atividades propostas pelo programa. Essas discussões internas, como as chamamos,
envolvem todos os componentes da equipe de cada centro, que juntos discutem, de forma téc-
nica e interdisciplinar, os casos do atendimento e da mediação comunitária, qualificando ainda
mais o trabalho e as decisões quanto à condução de cada caso.
s três dias da semana designados para os atendimentos, as equipes do pro-
grama, em cada centro, realizam os atendimentos ou reuniões comunitárias e com a
rede parceira, fazem também os encaminhamentos necessários de cada caso, desen-
volvem as ações próprias dos projetos, ações temáticas, coletivizações de demandas,
reuniões com policiais e comunidade local, além das ações correspondentes à arti-
culação da rede do Centro de Prevenção à Criminalidade.
Além das discussões internas que descrevemos acima, são realizadas ações de su-
pervisão metodológica dos eixos do programa, que consistem em todas as ações voltadas
à orientação e condução técnica, gerencial e metodológica das atividades propostas. Essas
atividades vão desde as visitas dos supervisores metodológicos aos centros, passam pela
organização e preparo das capacitações técnicas e encontros metodológicos que ocorrem
semanalmente e pelas discussões coletivas de casos. As visitas técnicas aos núcleos são pe-
riódicas e objetivas, visando o acompanhamento e supervisão local no desenvolvimento
das ações de todos os eixos, a percepção das dificuldades e facilidades, entre outros.
As reuniões semanais externas aos centros contam com a participação de todas
as equipes (técnicos e estagiários) e com a supervisão da coordenação/ diretoria do pro-
grama. Envolvem discussões coletivas de casos e de ações, com o intuito de possibilitar
a troca de experiências entre as equipes, ampliar o entendimento das possibilidades em
mediação para cada caso apresentado, e supervisionar de forma coletiva a metodologia
adotada pelas equipes. A discussão coletiva é também uma forma de contínua capacita-
ção com base nas reflexões sobre os próprios casos concretos e ações.
Outro momento que faz parte do encontro semanal com todas as equipes
refere-se às exposições com temas técnicos, gerenciais e metodológicos, cujo obje-
tivo é capacitar e orientar as equipes em temas relacionados a todas as atividades
cotidianas do programa, como, por exemplo, os temas relacionados à técnica de
mediação, à violência de gênero, benefícios previdenciários, questões trabalhistas,
pensão de alimentos e questões relacionadas à paternidade, trabalho com grupos,
redes sociais, associativismo, capital social, mobilização, temas em segurança públi-
ca, orientação sobre a elaboração de projetos, temas sobre gerenciamento do pro-
grama, interface e ações conjuntas com os parceiros institucionais e com os outros
programas que compõem o Centro de Prevenção à Criminalidade.
236
Ariane Gontijo Lopes Leandro e Giselle Fernandes Corrêa da Cruz
Período
Fonte: Arquivo do Núcleo de Resolução Pacífica de Conflitos, órgão responsável pela execução Programa
Mediação de Conflitos da Coordenadoria Especial de Prevenção à Criminalidade - Secretaria de Estado de
Defesa Social - Governo de Minas Gerais.
237
Programa de Mediação de Conflitos
Classificação dos
casos
de atendimentos
0 5 10 15 20 25 30
Abuso de Autoridade ou Poder Adolescente em Conflito com a Lei
Conflitos de Vizinhança Conflitos Intrafamiliares
Contratos em Espécie Pensão de Alimentos/Paternidade/visitas
Previdência Questões Associativas
Questões com o Poder Público Questões Penais
Questões Psicológicas Questões Psiquiátricas
Questões Trabalhistas Registro Civil/Emissão de Documentos
Regulariz.Fundiária/Posse/Propriedade Relações de Consumo
Separação e Divórcio Sucessões
Tutela/Curatela/Guarda/Adoção Uso de ácool e/ou outras drogas
Outros
Fonte: Arquivo do Núcleo de Resolução Pacífica de Conflitos, órgão responsável pela execução Programa
Mediação de Conflitos da Coordenadoria Especial de Prevenção à Criminalidade - Secretaria de Estado de
Defesa Social - Governo de Minas Gerais.
é a situação dos casos que apresentam relatos de violência contra a mulher, contra a criança,
contra o idoso, de jovens ameaçados de morte, entre outros. Quanto ao sexo preponderante
das pessoas que buscam pela primeira vez o Programa Mediação de Conflitos, cerca de 78%
são do sexo feminino, caracterizando a classificação do caso e os relatos de violência.
Figura 5 – Registro dos relatos de violência nos casos de mediação e orientação atendidos
pelo Programa Mediação de Conflitos durante o 1º Quadrimestre de 2011
30
25
20
15
10
5
0
Relatos de violência
Violência em geral (não necessariamente conhece a vítima) Violência com relatos de uso de álcool e/ou outras drogas
Outros
Violência de Gênero
1 - Violência doméstica contra a mulher (especificar):
1a - Violência física
1b - Violência psicológica
1c - Violência sexual
1d - Violência patrimonial
1e - Violência moral
Fonte: Arquivo do Núcleo de Resolução Pacífica de Conflitos, órgão responsável pela execução Programa
Mediação de Conflitos da Coordenadoria Especial de Prevenção à Criminalidade - Secretaria de Estado de
Defesa Social - Governo de Minas Gerais.
30,00
20,00
10,00
0
Classificação dos Casos Atendimentos Coletivos
1. Habitação 2. Educação
3. Saúde 4. Segurança Pública
5. Infra-estrutura 6. Cultura e Lazer
7. Meio Ambiente 8. Associativismo
9. Relações Interpessoais – Inter institucional 10. Geração de renda/ inclusão produtiva
11. Outro
Fonte: Arquivo do Núcleo de Resolução Pacífica de Conflitos, órgão responsável pela execução Programa
Mediação de Conflitos da Coordenadoria Especial de Prevenção à Criminalidade - Secretaria de Estado de
Defesa Social - Governo de Minas Gerais.
Apresentaremos alguns dos principais dados que foram analisados como resulta-
do da Pesquisa de Avaliação e Qualidade do Programa Mediação de Conflitos realizado
pela Fundação Guimarães Rosa, por meio da Superintendência de Avaliação e Qualidade
da Atuação do Sistema de Defesa Social. A pesquisa objetivou verificar o cumprimen-
to das finalidades institucionais do Programa de Mediação de Conflitos (com base nos
princípios da eficiência, eficácia e efetividade), produzindo uma compreensão dos pre-
ceitos teórico-metodológicos que subsidiam a sustentação do Programa de Mediação de
Conflitos. A avaliação da efetividade dessa política pública no âmbito da Pesquisa obteve
variações quanto à “qualidade do gasto” dos recursos (incluindo os técnicos) empregados
no procedimento de mediação, do grau de execução das soluções dos conflitos (incluindo
os encaminhamentos à Rede) e dos “sentimentos” das pessoas que tenham participado
da mediação. Em linhas gerais, podemos concordar com a seguinte menção à pesquisa:
A Pesquisa de Avaliação da Qualidade do PMC, a qual se vincula este Relatório, não deixa dúvidas de
que se trata de uma ação exemplar. Pode-se afirmar que o Programa de Mediação de Conflitos alcançou,
em apenas quatro anos, ótimos resultados. E, muito provavelmente, alcançará nos próximos anos um de-
sempenho de excelência, constituindo-se como uma referência nacional no desenvolvimento de políticas
públicas de proteção e promoção de direitos humanos. Para tanto, numa síntese introdutória, basta refor-
çar as atividades de qualificação em serviço da equipe técnica, investir no aprimoramento das instalações
(sobretudo, com incrementos tecnológicos próprios à prática da mediação), instituírem mecanismos de
interação com a “Rede de Apoio” e adotar mecanismos de avaliação periódica capazes de identificar defi-
240
Ariane Gontijo Lopes Leandro e Giselle Fernandes Corrêa da Cruz
ciências pontuais e corrigi-las sem prejuízo do funcionamento normal do Programa. (Fundação Guimarães
Rosa, Pesquisa de Avaliação e Qualidade do Programa Mediação de Conflitos, 2009)
Uma das conclusões que a pesquisa aponta é a satisfação com o resultado dos casos de
mediação (percentual de situações em que as partes entenderam o processo como “justo”), ou
seja, grande parte dos entrevistados se mostrou “satisfeita” com a resolução do conflito, o que é
retratado por 72,4%. Contudo, a minoria dos entrevistados enfatizou que o resultado não foi
justo (18,4%), ou que foi parcialmente justo (9,2%). Veremos na Figura 7, entre aqueles que
consideraram “justo” o resultado da demanda, as principais justificativas atribuídas.
Figuras 7 – Justificativas das partes que consideraram a resolutividade do problema como justa
Quanto ao tipo de solução de conflitos adotada pelas partes, conforme Figura 8, cerca
de 60% chegaram a um acordo, sendo que em torno de 40% não chegaram a um acordo ao final
do procedimento de mediação, mas relatam que a condução da mediação ajudou nas soluções
241
Programa de Mediação de Conflitos
periféricas, abrindo possibilidades de diálogo e que não necessariamente seria aquele o momento
das partes para obter algum acordo. Ressaltamos que os conceitos e princípios da mediação não
visam o acordo, a mediação visa o processo de transformação das partes com base no diálogo, e
que não necessariamente essa transformação levará a acordos, sejam formais ou verbais.
Figura 8 – Classificação quanto à solução de conflitos entre as partes envolvidas nos casos de mediação
Outro resultado obtido pela pesquisa que cabe salientar diz respeito à seguinte
questão: caso as partes precisassem novamente de ajuda na solução dos conflitos, se elas
buscariam novamenteo Programa Mediação de Conflitos. Como podemos perceber na Figura
9, grande parte das pessoas, além de atribuírem uma avaliação satisfatória quanto à resolução
de seus conflitos, também diz que recorreria novamente ao Programa Mediação de Conflitos.
82% das partes relatam que os casos foram finalizados em até 6 meses. Como já dito,
o tempo é uma estratégia fundamental do Programa Mediação de Conflitos, mas
sabemos que devemos usá-lo a favor da mediação e não contra. O fato, portanto,
do tempo de duração dos casos de mediação não ser tão longo poderia trazer
complicações se as partes mencionassem insatisfação com o trabalho do Programa
Mediação de Conflitos, mas de fato não podemos afirmar isso, uma vez que os dados
da pesquisa indicam uma ampla satisfação, ou seja, uma eficácia e também eficiência
na execução dos seus objetivos. Podemos verificar, conforme Figura 11, que as partes
(80%) afirmam que o processo foi rápido ou muito rápido.
1,8%
2,3% 5,0%
9,0%
Ainda não encerrou
Menos de 6 meses
Entre 6 e 12 meses
Entre 1 e 2 anos
Entre 2 e 4 anos
82,0%
Figura 11 – Avaliação das partes quanto à agilidade da duração do processo nos casos de
mediação
Gráfico 14 - Agilidade do Processo de Mediação de Conflitos - Minas Gerais - Brasil - 2009
7,8% 72,5%
19,7%
Não, favoreceu ninguém
Sim, favoreceu a minha parte
Sim, favoreceu a(as) outra(s)
parte(s)
8 Conclusão
Ao propor apresentar a metodologia adotada pelo Programa Mediação de Conflitos
e alguns de seus resultados alcançados, nos engajamos em uma tarefa nada fácil. Diante da
inovadora e recente perspectiva da prevenção social à criminalidade no campo das políticas
públicas do Sistema de Defesa Social, nos deparamos com o desafio de desenvolver ações em
contextos marcados pelas altas taxas de criminalidade e exclusão econômica e social, consistin-
do em um objeto complexo. Não bastasse esse desafio, outro se apresenta quando nos depara-
mos com a incumbência de aplicar a metodologia de mediação e de orientação ao campo desta
política pública, originada por meio de um importante projeto de extensão, o Programa Pólos
244
Ariane Gontijo Lopes Leandro e Giselle Fernandes Corrêa da Cruz
de Cidadania da Universidade Federal de Minas Gerais, que visa à promoção dos direitos hu-
manos por meio da constituição de capital social junto a grupos vulneráveis em situação de
exclusão, práticas ainda pouco difundidas no Brasil.
Este cenário, que alia teoria e prática frente aos desafios apresentados, orientou a
construção de uma prática de seis anos, um trabalho árduo, constante e progressivo, de todos
os mediadores que compuseram e compõem as equipes do programa Mediação de Conflitos e,
o mais importante, com a participação das comunidades que nos auxiliam no delineamento da
política. Ao mesmo tempo em que a construção dessa metodologia é tarefa cotidiana e difícil,
ela é extremamente proveitosa, justamente pelo fato de poder ser construída, vivida, pensada e
aprimorada pelos próprios mediadores e por aqueles que participam da mediação.
No presente registro, demos enfoque aos dois eixos que originaram o programa, no
intuito de contribuir com estabelecimento da teoria, o aprimoramento da prática e propor-
cionar o conhecimento de toda essa construção inovadora. E por fim, vale ressaltar que esta
teorização é uma das formas de se pautar a legitimidade da metodologia. Sabemos que, mesmo
com o intuito de garantir esta elaboração teórica a partir da prática realizada, não se tem a
intenção, neste artigo, de sintetizar o que venha a ser nosso trabalho. A tentativa é de lançar
a ideia de uma prática inovadora que apresenta uma concepção de mundo que cultiva uma
noção ampliada de acesso a direitos pautada em uma cultura de paz.
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246
A Defensoria como agente
na mediação de conflitos
1 Introdução
247
A Defensoria como agente na mediação de confllitos
[...] ao perder a certeza de um mundo futuro, o homem moderno foi arremessado para dentro
de si mesmo, e não de encontro ao mundo que o rodeava; longe de crer que este mundo fosse
potencialmente imortal, ele não estava sequer seguro do que fosse real. (ARENDT, 2003, p. 334)
248
Eduardo Antônio de Andrade Villaça e Michele Cândido Camelo
2 Mediação de conflitos
O acesso à justiça não está umbilicalmente ligado ao Poder Judiciário, embora
seja ele essencial na resolução de alguns conflitos, especialmente nos que dizem respeito
a direitos em que a lei expressamente não admite transação. A mediação em nenhum
momento busca contrapor-se ou substituir aquele órgão estatal, o que pretende é oferecer
um procedimento diverso para que todos, sem exceção, possam usufruir dos benefícios da
justiça e da conscientização de seus direitos. Aqui falamos em justiça em sentido amplo,
daí a ideia de um pluralismo jurídico, pois cada grupo social, como um bairro, pode
possuir normas próprias que são desconhecidas pelo Judiciário.
O mais importante é que, neste processo, o diálogo é estimulado. Não é um
terceiro alheio aos problemas quotidianos de cada um que impõe uma decisão, mas as
próprias partes chegam a um acordo.
Muitas vezes, o acordo é difícil de ser alcançado, pois existem mágoas,
ressentimentos, no entanto, o bom mediador consegue apaziguar os ânimos e sugerir
diversos caminhos, consoante o Direito e a moral. Assim, além de estimular o diálogo,
as partes saem conhecendo um pouco mais do Direito em sentido amplo, se sentindo
mais cidadãs, inclusas em uma forma de perceber o mundo que era, muitas vezes, alheia
à sua realidade. Os mediados se sentem capazes de resolver seus próprios conflitos, daí a
semente da cidadania, da inclusão social. E a cidadania, como bem explicitou a professora
Teresa Maria Frota Haguette (1992, p. 67):
[...] não tem vida própria; qual peste ou epidemia; ela avança inexoravelmente contagiando a
todos com o vírus da igualdade, deixando-lhes a sequela da aversão a toda sorte de iniquidade.
Por isso ela impregna a todos com o sentimento da rainha das virtudes: a justiça, que representa o
sangue circulante do seu ser, necessitando de invólucros para materializar-se: os atores sociais, os
indivíduos.
249
A Defensoria como agente na mediação de confllitos
A mediação é:
A inscrição do amor no conflito
Uma forma de realização da autonomia
Uma possibilidade de crescimento interior através dos conflitos
Um modo de transformação dos conflitos a partir das próprias identidades
Uma prática dos conflitos sustentada pela compaixão e pela sensibilidade
Um paradigma cultural e um paradigma específico do Direito
Um modo particular de terapia
Uma nova visão da cidadania, dos direitos humanos e da democracia.
A mediação não se coloca como mero método de solução de disputas, mas como
forma de emancipação social, tendo em vista que promove a manutenção dos valores
do grupo beneficiado pela sua implementação, mantendo, assim, a harmonia entre seus
integrantes. A inserção da Defensoria Pública como agente nesta forma de pacificação
de pendengas, seja comunitária, seja coletiva, permite o crescimento da comunidade, ao
mesmo tempo em que insere uma figura estatal autônoma e permanente para fortalecer
e tutelar o instituto, conforme adiante discutiremos. Isso afasta a ideia de repasse das
obrigações do Estado, preocupação de Montaño.
A independência do cidadão em relação ao Estado não é aspecto negativo, ao
contrário, como esclarece Tocqueville (1969, p. 30), já no século XIX:
251
A Defensoria como agente na mediação de confllitos
O governo da democracia leva a noção de direitos políticos ao nível dos cidadãos mais humildes,
do mesmo modo que a disseminação da riqueza leva a noção de propriedade ao alcance de todos
os homens; na minha opinião essa é uma de suas vantagens maiores. Não digo que seja fácil ensinar
aos homens o exercício dos direitos políticos; mas afirmo que, quando for possível, os efeitos que
disso resultam são altamente importantes; e acrescento que, se jamais chegou a ocasião de disso se
tentar, esta ocasião é agora. Não se vê que a crença religiosa está abalada, e a noção divina de direito,
declinando? [...] Quando me dizem que as leis são fracas e o povo turbulento, que as paixões estão
excitadas e a autoridade da virtude paralisada, e que, portanto, não se devem tomar medidas que
aumentem os direitos da democracia, respondo que, por essas mesmas razões, é que devem tais
medidas serem tomadas [...] pois os governos podem perecer, mas a sociedade não pode morrer.
3 A Defensoria Pública
A Assembléia Constituinte de 1988, a qual deu origem à Carta Magna vigente
nos dias atuais, diante do sistema de justiça formulado, optou pela formação de algumas
instituições vocacionadas à tutela de direitos básicos pelo mesmo texto garantidos.
Tais instituições são as denominadas, pela própria Constituição da República
de 1988, como “Funções Essenciais à Justiça”,193 enumerando como tais o Ministério
Público,194 a Advocacia Pública195 e, por fim e conjuntamente, a Advocacia e a
Defensoria Pública.196
Para garantir o acesso à Justiça da população de baixa renda, ou seja, das pessoas
192 O termo empoderamento é tradução da palavra empowerment, que possui bastante utilização na área de
psicologia. A expressão passa a ideia da capacidade que possui a comunidade de apoderar-se de sua autonomia,
de depender cada vez menos de políticas assistencialistas.
193 Título IV, Capítulo IV, CF 1988.
194 Seção I, CF 1988.
195 Seção II, CF 1988.
196 Seção III, CF 1988.
252
Eduardo Antônio de Andrade Villaça e Michele Cândido Camelo
que não possuem condições de pagar um advogado sem prejuízo de seu sustento e do
sustento de sua família, a Constituição Federal de 1988 pensou a Defensoria Pública.
Para que esta instituição fosse forte o suficiente para lutar pelos direitos humanos da
maior parte da população, que, infelizmente, se enquadra no perfil exposto, o constituinte
originário garantiu-lhe autonomia, permanência, além de prerrogativas necessárias para
sua boa atuação, tal como “autonomia funcional e administrativa e a iniciativa de sua
proposta orçamentária, dentro dos limites estabelecidos na lei de diretrizes orçamentárias
e subordinação ao disposto no artigo 99, §2º”.197
Em 1994, a Defensoria Pública teve sua atividade regulamentada pela Lei
Complementar nº 80, sendo esta, hoje, objeto de reforma, a fim de se coadunar com
sua importância no contexto constitucional, ou seja, como garantidora do Estado
Democrático de Direito.
Como o tema do presente trabalho é dar ênfase à atuação da Defensoria Pública,
especialmente na atuação da mediação de conflitos comunitários e coletivos, passaremos
a tratar do tema em espécie no contexto a que nos propusemos estudar.
falha deste sistema adversarial está em limitar às situações distintas um padrão de lei igual,
desrespeitando a diversidade cultural, linguística e étnica.
O Direito não pode servir ao monoculturalismo, sob pena de tornar-se
um sistema contraditório em si mesmo. A contemporaneidade é marcada por uma
realidade multicultural, que necessita de várias alternativas para resolver as diversas
demandas sociais.
Nesse contexto, a Mediação Comunitária se mostra uma delas, não a única,
destaque-se, como meio pacífico de solucionar conflitos. Com suas especificidades,
apresenta alguns aspectos que a diferenciam dos demais meios de autocomposição
mediada. São eles: o momento de inserção no conflito, a flexibilidade processual, a
presença do mediador na comunidade, o estímulo à autonomia e ao empoderamento da
comunidade, bem como a execução dos acordos obtidos.
Em regra, quando se recorre a qualquer meio heterocompositivo de solução de
conflitos, já se tem chegado a um estágio de incômodo tamanho que torna-se difícil a
possibilidade de diálogo. Se a opção for recorrer ao Poder Judiciário, a espera é tanta que
desestimula o próprio ingresso. Como disseram Mauro Capelletti e Bryant Garth (1988, p.
8): “[...] da ruptura da crença tradicional na confiabilidade de nossas instituições jurídicas
e inspirando-se no desejo de tornar efetivos — e não meramente simbólicos — os direitos
do cidadão comum, ele exige reformas de mais amplo alcance e uma nova criatividade.”
No mesmo passo, Santos (2007, p. 78) trata do tema:
O direito e a justiça, para serem exercidos democraticamente, têm de assentar numa cultura
democrática, e esta é tanto mais preciosa quanto mais difíceis são as condições em que ela se
constrói. [...]
Em geral, o sistema judiciário não corresponde à expectativa e, rapidamente, passa de solução a
problema. A terceira razão para a reforma judicial está no impulso democrático dos cidadãos que
tomam consciência dos seus direitos. Essa consciência revela que a procura efetiva de direitos é a
ponta do iceberg. Para além dela há a procura suprimida.
É a procura dos cidadãos que têm consciência de seus direitos, mas que se sentem impotentes para
reivindicá-los quando violados. Intimidam-se ante as autoridades judiciais que os esmagam com
a linguagem esotérica, o racismo e o sexismo mais ou menos explícitos, a presença arrogante, os
edifícios esmagadores, as labirínticas secretarias. Se a procura suprimida for considerada, levará a
uma grande transformação do Judiciário.
O fato do Poder Judiciário ser estruturado de forma a não parecer tão confortável
ao leigo e ao menos favorecido economicamente pode representar, de fato, um obstáculo
à Justiça estatal. Em relação às críticas elencadas por Santos (2006), em trecho descrito
anteriormente, a mediação comunitária se apresenta mais convidativa a boa parcela da
demanda dos que a procuram.
Analisemos, pois, os pontos que distanciam o Poder Judiciário do cidadão,
gerando a chamada demanda reprimida. Inicialmente, a linguagem falada pelos
magistrados, advogados, promotores e defensores não facilita o entendimento e
a participação da chamada “parte”. Um exemplo clássico de linguagem comum no
âmbito judicial é “execução”. O processo de execução se presta a compelir o devedor
254
Eduardo Antônio de Andrade Villaça e Michele Cândido Camelo
Tal qual um pastor que, em sua tarefa religiosa, dedica-se a atender às necessidades espirituais,
255
A Defensoria como agente na mediação de confllitos
o mediador comunitário deve ouvir as partes, reconhecer os seus clamores e suas emoções e, ao
fornecer um ambiente seguro, permitir que as raízes do conflito floresçam. Nesse sentido, há um
aspecto restaurativo na justiça comunitária, pelo qual os disputantes podem reconhecer uns aos
outros e, desenvolvendo aptidões para a comunicação, trabalham na direção de cura dos danos
causados pelo conflito, assim como na aptidão para evitar problemas futuros. O empowerment é
resultado de um processo que proporciona autoconhecimento e reconstrução das auto-identidades
por meio do conflito.
Tirar o foco de si mesmo e colocá-lo no todo (família, empresa, vizinhança) é fundamental para
facilitar a compreensão da responsabilidade de cada um para solução do problema. Busca-se aqui a
percepção da relação existente entre os atos individuais e o seu resultado na relação como um todo.
As pessoas agem sem a percepção real do impacto de sua atitude para o relacionamento. (...)
Se o diálogo se mantiver apenas nas posições, no “egoísmo” de cada um, ficará difícil a cooperação.
Além de buscar os interesses e as posições, o mediador deve conseguir que as partes percebam a
importância do todo envolvido nesse conflito — como fica a “nossa” família? O que é importante
para “nossa” família?
O juiz da 3ª Vara do Trabalho de Cascavel/PR, Bento Luiz de Azambuja Moreira, decidiu não
realizar uma audiência, em 13/06, porque o reclamante, um trabalhador rural, usava chinelo
de dedos. No termo de audiência, ressaltou o magistrado que “o calçado é incompatível com a
dignidade do Poder Judiciário”, e marcou nova audiência para o próximo dia 14 de agosto. O
advogado Olímpio Marcelo Picoli protestou, aduzindo que seu cliente é pessoa humilde, analfabeta
e desempregada, e que “foi com a melhor roupa que tinha”, mas seus argumentos não modificaram
o entendimento do julgador (POLÍZIO JUNIOR, 2007).
256
Eduardo Antônio de Andrade Villaça e Michele Cândido Camelo
[...] a graça da sociedade não está em compor indivíduos justapostos e apenas replicados, mas
individualmente polarizados. [...] Assim como não somos capazes de copiar uma cultura — ao
contrário, geramos culturas diferentes — não somos capazes de reproduzir simplesmente as
pessoas, mesmo quando são gêmeos ditos idênticos.
Tradicionalmente, o processo de mediação inicia com uma declaração de abertura por parte
do mediador, que serve para estabelecer as regras que deverão ser respeitadas na mediação.
Posteriormente a esta, segue-se uma etapa em que ambas as partes têm liberdade para expor as
questões em disputa. Nesse momento, o mediador identifica as questões, os interesses e os
sentimentos de cada parte e, a partir de então, começa a aplicar técnicas específicas visando à
resolução do conflito. Uma das técnicas de aplicação frequente é a das sessões privadas. Nestas o
mediador se reúne individualmente com cada uma das partes para esclarecer as questões e estimular
a geração de opções para um eventual acordo. A grande maioria dos programas segue esse modelo,
notadamente nos Estados Unidos. Há, todavia, outros modelos.
257
A Defensoria como agente na mediação de confllitos
198 Há, contudo, dois projetos de lei que regulamentam a mediação, o PL nº 4.827, de 1998, e sua versão
mais atualizada, o PL nº 94, de 2002 – Anexo B.
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Eduardo Antônio de Andrade Villaça e Michele Cândido Camelo
260
Eduardo Antônio de Andrade Villaça e Michele Cândido Camelo
Artigo 81. A defesa dos interesses e direitos dos consumidores e das vítimas poderá ser exercida em
juízo individualmente, ou a título coletivo.
Parágrafo único. A defesa coletiva será exercida quando se tratar de:
I - interesses ou direitos difusos, assim entendidos, para efeitos deste código, os transindividuais,
de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias
de fato;
II - interesses ou direitos coletivos, assim entendidos, para efeitos deste código, os transindividuais,
de natureza indivisível de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou
com a parte contrária por uma relação jurídica base;
III - interesses ou direitos individuais homogêneos, assim entendidos os decorrentes de origem
comum.
O que pode ocorrer é que uma única combinação de fatos, sob uma única relação jurídica, venha a
provocar o surgimento de interesses transindividuais de mais de uma categoria, os quais podem até
mesmo ser defendidos na mesma ação civil pública ou coletiva. Assim, de um único evento fático e
de uma única relação jurídica consequente, é possível advirem interesses múltiplos.
instituição vocacionada não só à proteção dos direitos dos desvalidos no plano individual,
como também dos direitos humanos e dos direitos da sociedade como um todo.
Nessa esteira de entendimento, a legitimidade ativa da Defensoria Pública,
por exemplo, para propositura de Ação Civil Pública, há muito, está sedimentada na
jurisprudência das Cortes Superiores pátrias. Vale dizer, a omissão legislativa no que
pertine à previsão expressa no direito adjetivo não se mostrou obstáculo à veiculação de
pretensões em nível coletivo pela instituição, uma vez que, sendo-lhe conferidas funções
institucionais significativas, não há que se negar os instrumentos de operacionalização
correspondentes.
A título de ilustração, colacionamos trecho do voto do Ministro Sepúlveda
Pertence proferido no julgamento da ADI nº 558-8:
262
Eduardo Antônio de Andrade Villaça e Michele Cândido Camelo
Pública pertinente, mas tem também o dever institucional de ir mais além: de desenvolver
as virtudes e os institutos das resoluções extrajudiciais de conflitos coletivos.
Fixadas as premissas do instituto da mediação, como acima fora feito, bem como
aquelas que se deve ter em mente quando se discutir a legitimidade da Defensoria Pública
na resolução de conflitos coletivos, vale a pena tentar estabelecer tais ideias para o que seria
a “mediação coletiva”. Não se pretende, com isto, fixar um conceito, vez que tal atividade
demandaria estudo mais aprofundado acerca das possibilidades do tema.
Neste sentido fundamentam-se os ensinamentos de Warat, o qual qualifica a
atividade da mediação como instrumento para o exercício da cidadania, posto que educa
os envolvidos em lide, além de promover a produção das diferenças, ajudando que as
mesmas sejam compreendidas e, por fim, possibilita que a solução da pendenga existente
seja encontrada pelos interessados, através do diálogo promovido e facilitado.
No que diz respeito aos direitos coletivos, vê-se que sua violação termina por
envolver número maior de pessoas, ligadas entre si ou por uma situação de fato ou de
direito, conforme o âmbito da violação perpetrada.
A mediação coletiva, então, se realiza mediante a promoção e facilitação de
diálogo entre as partes envolvidas, através de seus representantes legalmente constituídos,
os quais devem se mostrar capazes e legítimos para resolver e implementar eventuais
soluções vislumbradas neste diálogo.
A ideia da legitimidade da Defensoria Pública é fundamentalmente ressaltada,
uma vez que várias instituições estão previstas na Constituição Federal para resguardar os
direitos fundamentais e, caso violados, promover sua reparação.
No contexto das figuras a se fazerem presentes na sessão de mediação, destaque-
se o autor da ameaça ou da conduta violadora do direito transindividual. Tratando-se
de espécie de direito coletivo lato sensu em que a coletividade interessada seja pelo
menos determinável, facilidade maior existe para que sejam identificados os possíveis
representantes. Por fim, o mediador, que deve ser pessoa imparcial à causa, não exercendo
a representação de nenhum dos interesses em questão.
Estas são, pois, as premissas da mediação coletiva, instrumento de utilidade
e virtudes indiscutíveis, embora ainda pouco explorado pelas instituições capazes e
legitimadas a desenvolvê-la.
Reconhecemos, inicialmente, não só a possibilidade, mas o dever da Defensoria
Pública de promover a tutela dos direitos transindividuais e, com mais pertinência ainda,
promover os institutos pacíficos de resolução de conflitos, judicial ou extrajudicialmente,
também no âmbito coletivo. Vê-se no instituto da mediação, por todas as vantagens
que apresenta (estímulo ao diálogo, maior grau de satisfação das partes, celeridade,
economicidade, etc.), sua plena possibilidade.
A Defensoria Pública do Estado do Ceará, a fim de solucionar conflitos
coletivos, passou a aplicar o instituto da mediação, com seus princípios e procedimentos
a tais questões, de forma a promover com efetividade e celeridade o pleno acesso à Justiça.
Passaremos aqui a tratar de duas situações exemplificativas da utilização da mediação
coletiva como forma de resolução de disputas.
O primeiro caso decorreu de notícia televisiva no qual se deu conta da morte de
263
A Defensoria como agente na mediação de confllitos
264
Eduardo Antônio de Andrade Villaça e Michele Cândido Camelo
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A Defensoria como agente na mediação de confllitos
Diante de tal quadro, tendo sido aceitas as propostas sugeridas pelos envolvidos,
foi lavrado o compromisso de conduta. Para citar como exemplo da plena vigência e
eficiência do acordo firmado, foi enviado à Defensoria Pública conta de consumidor na
qual constava o valor de R$482,24, a qual, com o abono do consumo do equipamento de
tratamento médico, foi reduzida para R$120,56.
6 Considerações finais
Analisou-se nesse trabalho de que forma a Defensoria Pública, em que pese sua
juventude, poderia realizar seu mister de orientação e defesa judicial e extrajudicial dos
hipossuficientes economicamente, de forma a proporcionar um real direito fundamental
ao acesso à justiça.
Refletiu-se acerca da mediação enquanto forma de resolução de conflito em que
se proporciona o fomento da cidadania e a inclusão social.
Por fim, analisou-se de que formas a Defensoria Pública poderia participar da
mediação comunitária e desenvolver a mediação coletiva.
Com as reflexões expressas, concluímos que a mediação é instituto capaz
de promover a democratização do acesso à Justiça, proporcionando não somente a
pacificação social, como também o conhecimento e apropriação de seus direitos. Nesse
contexto, a Defensoria Pública atua amplamente, destacando-se por não se reduzir à
simples assistência jurídica, exercendo as funções de indicadora dos direitos de cada um.
No âmbito da mediação comunitária, presente em alguns Estados, atua mediante
a promoção de uma capacitação constante dos mediadores comunitários, bem como com
a colaboração na feitura dos termos de acordo e, em caso de descumprimento do mesmo
ou não realização, a defesa dos interesses dos assistidos. Assim, a comunidade conta com
uma instituição permanente e autônoma na administração dos conflitos, promovendo
celeridade na resolução dos mesmos e assistência ampla. Em nenhum momento aquela
coletividade se sentirá desprotegida sob a perspectiva de proteção dos direitos, porque,
além de contar consigo mesma, manifestando sua autonomia na mediação comunitária,
se mantém próxima da Defensoria Pública, que atuará de acordo com todos os preceitos
constitucionalmente ditados.
No que tange aos conflitos coletivos, a Defensoria Pública, além de ser legitimada
para o ajuizamento de ações coletivas, possui o dever de promover a solução consensual dos
mesmos quando os atingidos, direta ou indiretamente, pela controvérsia se enquadrarem
em seu perfil de atendimento.
Comprovamos, assim, que a mediação coletiva é forma não somente viável de se
solucionar conflitos, como também eficaz, sob o ponto de vista da efetivação do direito.
Por fim, concluímos que a Defensoria Pública, seja tutelando a mediação
comunitária, seja mediando conflitos coletivos, atua de forma condizente com sua
266
Eduardo Antônio de Andrade Villaça e Michele Cândido Camelo
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268
Conflitos societários e empresariais: a
conveniência da adoção da cláusula de mediação
e arbitragem (“med-arb”)
1 Apresentação
Julgamos apropriado tecer algumas considerações sobre a conveniência de se
introduzir nos contratos sociais e estatutos sociais, em conjunto com a cláusula arbitral, a
cláusula de mediação, constituindo assim a chamada cláusula “med-arb”.
A cláusula “med-arb” tem por finalidade estabelecer entre as partes contratantes
um compromisso: na hipótese de surgir qualquer disputa entre os sócios ou entre estes e a
sociedade, de submeter a controvérsia primeiramente à mediação e, em não havendo uma
solução total da disputa, encaminhá-la posteriormente para ser resolvida por arbitragem.
Trata-se da aplicação de uma modalidade de step clause ou escalation clause, muito
utilizada no campo das ADR (Alternative Dispute Resolution) no comércio internacional.
270
Henrique Gomm Neto
deixando para o juízo arbitral apenas as questões que não obtiveram consenso.
Além do mais, o processo de mediação não traz nenhum prejuízo às partes na
hipótese de insucesso, uma vez que não ficam impedidas de utilizarem outros meios,
como o juízo arbitral, processo judicial ou administrativo, conforme o caso.
Mas o aspecto que se nos afigura mais relevante, e que nos permitimos explicar
adiante, é a possibilidade de se criar uma instância permanente de resolução de conflitos
que atue de forma preventiva, de modo a evitar que opiniões contrárias sobre determinados
fatos, desinformações, animosidades pessoais, interesses antagônicos e outras questões se
transformem em crises na empresa.
Este é o exemplo que nos ensina a experiência dos contratos internacionais que
deram origem à constituição da cláusula “med-arb”.
273
Conflitos societários e empresariais
274
Henrique Gomm Neto
Na maioria das vezes as pessoas que vêm à mediação após terem vivenciado
negociações fracassadas comparecem com um sentimento de frustração e desesperança.
Quase sempre culpam a outra parte pela difícil situação em que se encontram.
As partes tendem a construir uma dinâmica destrutiva focada na culpa. E o foco
na culpa nunca leva à resolução do conflito.
A tarefa do mediador é desmontar essa armadilha e adotar uma orientação com
vistas ao futuro. Como fazer? É preciso trabalhar no sentido de reconhecer as emoções, os
sentimentos das partes. O que é verdadeiro está abaixo da superfície, isto é, o que se sente
e pensa e não o que se diz.
Reconhecer significa aceitar que a parte expresse os seus sentimentos, a sua
emoção, para que ela possa dar um segundo passo: desconectar-se da exclusividade da sua
situação para considerar também a situação do outro.
Quando a parte se sente aliviada pela expressão dos seus sentimentos, ela pode
passar a “mutualizar” o conflito, ou seja, admitir a existência das necessidades da outra
parte e que elas são parte do problema.
Em vez de focar a discussão das partes nas alegações que trazem à mediação,
o mediador dirige a sua atenção para entender as percepções e interpretações dos
sentimentos. Aí estão os verdadeiros temas.
Assim, em vez de focar na culpa (“quem é o responsável?”), o mediador coloca
o foco de atenção dos mediados na mútua contribuição: “como cada um contribuiu para
a situação atual?”; “agora que sabemos o que cada um fez, como podemos fazer para
melhorar, crescer e aprender com essa situação?”.
Para conduzir o processo de mediação nesse percurso, o mediador capacitado,
imparcial no que diz respeito às partes, neutro no que toca às convicções pessoais dos
mediados, utiliza todo instrumental que a técnica de mediação oferece, tais como:
“escuta ativa”, a certificação através da paráfrase, reformulação dos conteúdos expressos
e, sobretudo, o uso adequado das várias espécies de perguntas que funcionam como um
“bisturi” que lhe permite obter informações e realizar movimentos estratégicos.
276
Henrique Gomm Neto
277
Conflitos societários e empresariais
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280
A mediação no direito de família
e o acesso à justiça
1 Introdução
O presente texto tem por objetivo analisar a contribuição dos meios consensuais
de solução de conflitos para a universalização do acesso à justiça, mormente quando se
trabalha com questões tão delicadas como as que se referem ao direito de família, por
exemplo a separação consensual extrajudicial e o divórcio consensual extrajudicial, bem
como a dissolução da união estável por intermédio de escritura pública.
Inicialmente, buscar-se-á enfocar a evolução histórica dos métodos consensuais
de resolução de conflitos de interesses, para em seguida abordar o conceito e vantagens
da mediação até chegar à análise de sua ampla aplicabilidade no âmbito do direito de
família, inclusive à luz das recentes reformas da legislação, com o ingresso da chamada
separação consensual extrajudicial e do divórcio consensual extrajudicial, por intermédio
de escritura pública.
No que concerne à conciliação, o próprio Cristo teria afirmado: “aquele que traz uma oferenda,
mas que tem uma contenda com seu irmão, deve, antes, reconciliar-se com ele, para somente depois
completar a oferenda” [...]. Na verdade, [...] o instituto da conciliação, ignorado pelas fontes do
direito romano, teria surgido na esfera do direito canônico.
200 Acerca da autotutela à jurisdição, cf. Cintra; Grinover; Dinamarco (2006, p. 26-40).
201 “Art. 1º. Nas causas de desquite litigioso e de alimentos inclusive os provisionais, o juiz, antes de despachar a
petição inicial, logo que esta lhe seja apresentada promoverá todos os meios para que as partes se reconciliem, ou
transijam, nos casos e segundo a forma em que a lei permite a transação”.
282
Ivan Aparecido Ruiz
[...] es un procedimiento no adversarial en el que un tercero neutral, que no tiene poder sobre las
partes, ayuda a éstas a que en forma cooperativa encuentren el punto de armonía en el conflicto. El
mediador induce a las partes a identificar los puntos de la controversia, a acomodar sus intereses a
los de la contraria, a explorar fórmulas de arreglo que trascienden el nivel de la disputa, a tener del
conflicto una visión productiva para ambas.
Instituyese con carácter obligatorio la mediación previa a todo juicio, la que se regirá por las
disposiciones de la presente ley. Este procedimiento promoverá la comunicación directa entre
las partes para la solución extrajudicial de la controversia. Las partes quedarán exentas del
cumplimiento de este trámite si acreditaren que antes del inicio de la causa, existió mediación ante
mediadores registrados por el Ministerio de Justicia.
202 “Art. 98. A União, no Distrito Federal e nos Territórios, e os Estados criarão: I - juizados especiais, pro-
vidos por juízes togados, ou togados e leigos, competentes para a conciliação, o julgamento e a execução de
causas cíveis de menor complexidade e infrações penais de menor potencial ofensivo, mediante os procedi-
mentos oral e sumaríssimo, permitidos, nas hipóteses previstas em lei, a transação e o julgamento de recursos
por turmas de juízes de primeiro grau”.
283
A mediação no direito de família e o acesso à justiça
[...] afirmar que, atualmente, um movimento universal pela efetividade do acesso à justiça engloba
pelo menos as seguintes matérias: [...]
d) A adoção da mediação paraprocessual voluntária, ampliação das oportunidades da conciliação e
da própria arbitragem no curso dos processos judiciais, inclusive medidas alternativas reparadoras
no campo penal, com fundamento nos conceitos da justiça restaurativa;
e) A difusão da mediação, da arbitragem e de outras abordagens extrajudiciais, como procedimentos
da sociedade civil enquanto protagonista da solução de conflitos, inclusive por intermédio de
núcleos comunitários e/ou instituições administradoras de mediação e arbitragem.
Dessa forma, utiliza-se aqui o termo acesso à justiça num sentido bem mais amplo,
abrangendo uma ordem de valores e direitos sublimes e fundamentais (RODRIGUES,
1994, p. 28). Isto faz com que o acesso ao Poder Judiciário esteja compreendido no acesso
à justiça. O acesso ao Poder Judiciário, nessa relação, estaria para o acesso à justiça numa
relação de meio e fins, porém sem exclusividade.
Os métodos autocompositivos de solução de conflitos de interesses, principalmente
a mediação e a conciliação, são vistos hoje como uma forma de universalização do acesso
à justiça. Atualmente, como ensina Heliana Maria Coutinho Hess (2004, 158), “a ampla
possibilidade de solucionar o litígio de forma mais flexibilizada, simplificada e agilizada
pode ser cada vez mais regulamentada por instrumentos autorizados pelo Estado e pela
descentralização da jurisdição para órgãos privados”.
Assim, deve-se, sempre, antes de utilizar um método heterocompositivo (arbitragem
203 Cf. Aloisio (1997); Álvarez, Highton e Jassan (1996); Caivano, Gobbi e Padilla (1997); Colerio e Rojas
(1998); Gozaíni (1996); Highton e Álvarez (1995); Highton, Álvarez e Gregorio (1998); Lascala (1999); Rodrí-
guez Fernández (2000); Rufino (1999); Schnitman (2000); Slaikeu e Zadunaisky (1996); e Yanieri (1994).
204 Cf. Amaral (1994); Araújo (1999); Azevedo (2002-2005); Braga Neto (1999); Caetano (2002); Co-
laíacovo e Colaíacovo (1999); Cooley (2001); Galano (1999); Garcez (2002); Grunspun (2000); Haynes e
Marodin (1996); Morais e Spengler (2008); Oliveira (1999); Serpa (1999a); Serpa (1999b); Tavares (2002);
Vezzulla (1999); e Warat (2001).
205 Não é por outra razão que se encontram, tanto na doutrina estrangeira, quanto brasileira, várias obras
que tratam os meios alternativos como uma forma de acesso à justiça. Cf., a título de exemplo: Álvarez
(2003); Lima Filho (2003); Torres (2005); e Vasconcelos (2008).
284
Ivan Aparecido Ruiz
eficiência e como era de se esperar, desvencilhar-se das mesmas, cumprindo o seu dever
legal. Não é à toa que muito se fala em mudanças de paradigmas. O modelo atual não mais
206 Veja-se o conceito do citado autor: “La mediación es un proceso en virtud del un tercero, el mediador,
ayuda a los participantes en una situación conflictiva a su resolución mutuamente aceptable y estructurada
de manera que permita, de ser necesario, la continuidad de las relaciones entre las personas involucradas en
el conflicto. Esta es la razón por la que la mediación es tan adecuada para la resolución de los conflictos de
separación o divorcio” (HAYNES, 1995, p. 9).
207 A respeito dos processos heterocompositivos, cf. Martins (1986).
208 Portanto, “num momento em que toda a sociedade e também as suas instituições estão em crise, em face das
mudanças tecnológicas e comunicacionais que significaram a decadência do período que se convencionou chamar de
sociedade industrial, é mais que oportuno refletir sobre os fatores que na prática são responsáveis pelo complexo nor-
mativo que rege a atividade e a interação humana. É justamente em face dessas mudanças que nos perguntamos se a ad-
vocacia e o direito no qual se baseia podem manter, hoje, a mesma configuração que se mostrou adequada nos períodos
de relativa estabilidade, quando essas mudanças ocorrem num ritmo quase frenético” (PONIEMAN, 1999, p. 121).
285
A mediação no direito de família e o acesso à justiça
209 Oportuna, nesse contexto, a observação de Alejandro Ponieman (1999, p. 124): “É hora de assumir com preocupação
as indicações que a sociedade está oferecendo (leia-se desconformidade com a Justiça, com os advogados, etc.). Pergunta-
mos se diante do hiperdinamismo e instabilidade que, via globalização, mostram-se em diferentes países, o direito deveria
mudar na forma e no fundo. Assim como o sistema jurídico, que após a Revolução Francesa, sofreu uma transformação,
não é possível pensar que a sociedade do século XXI exigirá sistemas e métodos também substancialmente diferentes dos
atuais? É notório que os mecanismos adaptativos do direito, em especial em sua versão continental, são particularmente
lentos e manifestam uma resistência estrutural à mudança. Esta é a conjuntura e o desafio do momento e a pertinência de
nos dispormos a repensar integralmente tanto o direito como a advocacia. A opinião pública contrária é uma mensagem
que não pode nem deve ser ignorada na atual conjuntura mundial, pois, como outros setores advertiram, a globalização
não perdoa a quem se prende ao passado. [...] Uma sociedade tão hiperdinâmica requer imperiosamente um sistema jurí-
dico e métodos de resolver controvérsias igualmente ágeis e atualizados e além disso idôneos para pacificar uma sociedade
convulsionada. A mediação reaparece então não por acaso, mas porque está funcionalmente apta para tanto, pois contra-
riamente ao que ocorre nos casos dos litígios contribui para restaurar as relações e o necessário consenso de modo geral”.
210 Alcira Ana Yanieri (1994, p. 126), em uma de suas conclusões a respeito do assunto, afirma que: “La mediación es
complementaria de la Justicia, no es una técnica competitiva, se cree que estos modos alternativos de solución de conflictos
son una respuesta posible al disfuncionamiento del servicio público de Justicia, por su lentitud, falta de eficacia, costos, etc.”.
211 Alcira Ana Yanieri (1994, p. 47), a respeito da utilização de métodos alternativos anteriormente ao processo judicial, as-
sim se expressa: “los métodos autocompositivos como la conciliación y la mediación pueden actuar como filtro, reteniendo
aquellas situaciones litigiosas en que aun — necesitando de auxilio externo — pueda lograrse una solución que parta de los
mismos interesados, dejando el arbitraje para cuando no sea posible un acuerdo directo, pero exista, al menos, un grado de en-
tendimiento mínimo, que les permita convenir el sometimiento de diferencias al arbitraje. La justicia ordinaria quedará como
reducto final, reservado para los conflictos que no admitan soluciones total o parcialmente consensuadas”.
Mais adiante, prossegue ela: “Con estas técnicas — como es obvio — no se busca ‘privatizar la Justicia’, ni se pretende
quitar y/o restar protagonismo a los jueces, ni menoscabar su labor. Se procura solamente complementarla, ayudan-
do de alguna manera para que la Justicia (como un todo) sea eficiente. El buscar nuevas alternativas para afrontar la
crisis, pueden ser autocompositivos como la mediación — tema del presente —, o bien heterocompositivos como
el arbitraje” (YANIERI, 1994, p. 46-47).
286
Ivan Aparecido Ruiz
intenção não é privatizar a justiça. Não se deve olvidar, ainda, que o juiz, no exercício
da jurisdição, conta com o poder de imperium, ou seja, poderá utilizar-se da coação
para cumprir os comandos judiciais. Ademais, tem-se ciência de que os meios
alternativos de resolução de conflitos não solucionarão todos os problemas.212 Mas
por que estes meios são tão defendidos então? Basicamente dois fatores justificam o
manejo da mediação, quais sejam:
1) possibilitará amenizar a crise por que passa o processo e, consequentemente, o
Poder Judiciário; e
2) a solução é encontrada pelas próprias partes, ainda que sejam auxiliadas nesse
sentido, e com a vantagem de ser uma solução não-adversarial, alcançando-se para as
partes a verdadeira justiça.
Em amparo ao que aqui se pretende sustentar, ou seja, a utilização da mediação,
inicialmente se reproduzirá o conhecido caso da disputa da laranja. Alcira Ana Yanieri
(1994, p. 1-2), ao tratar do conceito primário da mediação, relata esse caso:
Dos hermanas pequeñas discuten por una naranja, ambas la quieren y dice la menor: “es para
mí”, la otra dice: “no, es mía”. La madre cansada pone fin a la disputa. Llama a las dos hijas, y
divide la naranja cuidadosamente en dos partes exactamente iguales y las entrega. Satisfecha la
madre, vuelve a sua tarea pensando haber solucionado con justicia el conflicto. Esta situación
muestra la generalizada idea de lo que significa una solución justa: un tercero neutral que reparta
equitativamente aquello que está en disputa.
A primera vista, la solución parece acertada. Pero la historia no termina aquí, porque la menor
de las hermanas pela su mitad, tira la cáscara y come la pulpa; la otra al contrario, tira la pulpa y
guarda la cáscara para sazonar su torta. Vemos que la solución, aunque fue equitativa, no fue un
buen remedio.
Si la madre hubiese indagado los reales intereses, en vez de limitarse exclusivamente a cuestiones
de procedimientos (cortar la fruta en exactas mitades) o de posiciones (las dos hermanas querían
la única naranja porque tenían el mismo derecho), sin dudas averían llegado a una solución
satisfactoria para ambas, pelaba ella la naranja y entregaba toda la pulpa a una y toda la cáscara a
otra, por ejemplo.
Es más, si las partes hubiesen sabido negociar cooperativamente entre ellas, evitando el reparto,
habrían llegado a un resultado más satisfactorio.
Este ejemplo, conocido como “La disputa de la naranja”, es mencionado frecuentemente en la
literatura norteamericana relativa a la solución de conflictos para mostrar métodos alternativos.
212 Como acentuaM J. S. Fagundes Cunha e José Jairo Baluta (1997, p. 22), abordando a crise por que passa a
administração da justiça, não se pode perder de vista “a perspectiva de que a instituição da mediação não seria o
remédio suficiente para pôr fim à crise”.
287
A mediação no direito de família e o acesso à justiça
melhor solução para o problema. Solução justa é apenas aquela que está amparada no
princípio da igualdade, no sentido de equivalência de valores? Seria, ainda, a solução
justa aquela pautada em texto de lei? E se a lei foi editada para favorecer determinados
“grupos”, para determinadas classes detentoras do poder (econômico, político, etc.),
com endereço certo?
Como se pode perceber, nas situações de conflito, a comunicação é tudo. Se a
mediação é um método de solução de conflitos não-adversarial, em que as próprias partes
chegam a um consenso, é evidente que a comunicação e a forma dessa comunicação entre
elas têm grande importância.
Delfina Linck (1997, p. 21-22), ao discorrer sobre el conflicto y su transformación,
relata duas situações nas quais se constata que a comunicação é tudo num método
não-adversarial. Refere-se a autora à colisão de dois automóveis num cruzamento
com semáforo. Na primeira situação, os condutores descem dos veículos gritando e se
insultando, ao passo que, na segunda, o comportamento é totalmente diverso, pois, ao
saírem de seus veículos, os condutores passam a questionar acerca do estado de saúde
um do outro. Retrata, assim, nesse quadro do acidente, as diversas condutas que podem
ter os envolvidos no acidente de trânsito, mostrando que a forma de comunicação no
ambiente posto é muito importante para o acirramento ou não dos ânimos, podendo
até mesmo evitar um litígio, bem como o processo. Na verdade, deixa-se claro que
a comunicação se mostra fator decisivo, pois com ela as partes poderão, ambas, sair
ganhando, diferentemente do que ocorre no método adversarial, em que haverá
necessariamente ganhador e perdedor.
organizados seja ele o mais utilizado, até mesmo pela autoridade de que se reveste o
Estado, e acabe sendo aceito pelas pessoas envolvidas.
De outro lado, existem outros meios para solução dos conflitos de
interesses, e, com um pouco de ousadia, entende-se que a solução a que se chega nos
meios autocompositivos de resolução de conflitos de interesses atende muito mais
aos interesses das partes, já que se está diante do que se chama de teoria do ganha/
ganha. Quando se trabalha com o ganha/ganha, a energia é positiva, favorecendo os
dois lados, criando, também, uma energia positiva para o universo. A aceitação da
solução, aqui, é muito maior, até mesmo porque são as próprias partes que chegam
a esse resultado. Trata-se, nesse caso, de uma autêntica solução não-adversarial. Ao
que se percebe, a solução dos conflitos pelos próprios interessados é o caminho
a ser perseguido pelas próximas e futuras gerações, já que se reveste de maior
importância, mormente levando-se em conta o aspecto da comunicação, o diálogo
213
. A comunicação entre as pessoas é a chave que abrirá as portas para uma vida
em sociedade mais harmônica e mais esperançosa. As pessoas, hodiernamente, não
mais suportam as intrigas, as discórdias, as imposições. Não é à toa que os métodos
alternativos, em especial a mediação, vêm ganhando foros de destaque no cenário
jurídico internacional.
A doutrina vem apontando a instância judicial como o último recurso,
apresentando, para tanto, várias razões214. Aqui nos valemos dos ensinamentos de Juan
Pedro Colerio e Jorge A. Rojas (1998, p. 10), quando enumeram essas razões:
213 Aqui, realmente, há que se fazer uma distinção entre o ideal e o real. Pensa-se que o ideal seja uma solução
arquitetada voluntariamente pelas próprias partes interessadas. Ninguém melhor do que as partes interessadas
sabe o que é melhor para elas. No entanto, nem sempre o que muitas vezes é o ideal é o que vige no mundo da
realidade. A realidade, muitas vezes, difere do ideal. Não se pode deixar de mencionar os litigantes contumazes,
que se utilizam do processo e das regras procedimentais para levar vantagens e aproveitar-se da parte mais fraca.
214 Um dos problemas que se tem presenciado refere-se à morosidade na entrega da prestação juris-
dicional. Essa situação delicada não é peculiaridade do Brasil, ou dos países da América Latina, mas
também ocorre em países europeus com tradição no cenário político mundial. Refiro-me ao caso es-
pecífico de Portugal. Carlos Manuel Ferreira da Silva (2002, p. 204), em recente Art. publicado
na Revista de Processo, a certa altura, assim se expressa: “O maior problema com que a Justiça Por-
tuguesa se debate desde há alguns anos é certamente o da morosidade causada pelo incremento ex-
ponencial do número de processos que são introduzidos nos tribunais. Neste contexto, muitos vêm
entendendo — e nesse sentido acaba de pronunciar-se, p. ex., a Associação Sindical dos Juízes Por-
tugueses — que a única solução está em retirar da jurisdição comum um número substancial dos as-
suntos que lhe são confiados, configurando-se a conciliação e a arbitragem como meios de obter este
desideratum. [...] Falta tradição em Portugal no sentido da arbitragem e da conciliação extrajudicial
e o aumento da sua importância prática não pode obter-se com a mera afirmação da sua necessida-
de, mas, sim, como a experiência vem demonstrando, com a existência de claras vantagens para quem
delas se socorra”. Esse mesmo autor aponta os seguintes dados estatísticos, que, pela sua importân-
cia no presente contexto, merecem aqui ser registrados: “O número de processos cíveis movimen-
tados por ano aumentou de 613.256 em 1993 para 1.214.190 em 1998” (SILVA, 2002, p. 204).
289
A mediação no direito de família e o acesso à justiça
Varias son las razones que llevan a esta conclusión. Una de ellas es el colapso por el que atraviesa
la administración de justicia, con procesos que se dilatan interminablemente y en los que, cuando
por fin se llega a sentencia definitiva, siempre ambas partes pierden en gastos, tiempo y esfuerzos.
Otro motivo no menos importante, reside en que muchas de las veces los verdaderos intereses de
los sujetos no llegan a ser debidamente debitados en el proceso judicial, perdidos en una maraña de
cuestiones, tales como planteos de incompetencia, incidentes de nulidades, acuses de negligencias
y caducidades, interposición de recursos, notificaciones, etcétera, que hacen perder de vista el
concreto problema real que afecta a los litigantes.
La tercera razón que ponderamos valedera para impulsar los medios de negociación asistida, es
que se trata de métodos de resolución de conflictos no adversariales. Esto es que, mientras en el
proceso judicial se agudiza el enfrentamiento, pues cada parte debe de extremar su posición a un
máximo para en definitiva tratar de obtener el mayor beneficio posible, en la autocomposición
asistida, como es la mediación, se trabaja exclusivamente sobre los intereses de los sujetos, tratando
de afirmar las coincidencias y acercar las diferencias.
5 Conceito de mediação
Conceituar a mediação não é tarefa simples, porquanto ela tem aplicação em
diversas áreas do conhecimento 215 e varia até mesmo dentro do próprio direito. Na seara
da educação, por exemplo, fala-se também em mediação (AFONSO, 1996), assim como
na esfera da psicologia. A mediação, no âmbito do direito, quanto à sua incidência, ao
contrário do que se possa pensar no primeiro momento, a nosso ver, não é cabível somente
em conflitos envolvendo direitos disponíveis e patrimoniais. Tem ela aplicação até mesmo
em casos que envolvam direitos indisponíveis e não patrimoniais. A doutrina sustenta a
sua possibilidade em matéria de direito de família (FARINHA; LAVADINHO, 1997;
GRUNSPUN, 2000; HAYNES, 1995; HAYNES, MARODIN, 1996; RIOS, 2001;
SCHNITMAN, 2000; SERPA, 1999a, YANIERI, 1994), direito ambiental, direito
penal (COSTA, 1985; HIGHTON; ÁLVAREZ; GREGORIO, 1998; MAIER, 2000),
direito do consumidor 216, conflitos empresariais (BENÍTEZ PARODI, 2006), entre
outros. Assim, elaborar um conceito estrito, preciso, é tarefa quase impossível.
Talvez em razão disso, com efeito, não há uniformidade de tratamento quanto ao
seu conceito. Este varia conforme o momento em que a mediação é realizada (extraprocessual
e endoprocessual)217 e até mesmo conforme a maneira de o mediador agir para a solução dos
215 A mediação, como afirma Susana Figueiredo Bandeira: “[...] é uma realidade multidisciplinar, reunindo, nos
seus princípios, conhecimentos a vários níveis, de Direito, Psicologia, Sociologia, no fundo de todas as ciências
sociais e humanas, daí ser a mediação tão rica e eficaz na resolução de litígios, e por causa disso, acolhida já por
inúmeros ordenamentos jurídicos” (BANDEIRA, 2002, p. 116).
216 Ada Pellegrini Grinover (1988, p. 291), tratando das controvérsias submetidas com mais frequência aos
conselhos ou juizados de conciliação, dentre outras, aponta a relativa à defesa do consumidor.
217 Entende-se que a mediação seja sempre extraprocessual, pois, como meio alternativo que é, jamais poderia
sê-lo no curso do processo (rectius = procedimento). Se é um meio alternativo ao processo, como método de
solução dos conflitos de interesses, não se compreende que a mediação possa ser endoprocessual. Contudo, re-
gistre-se que há quem defenda a mediação endoprocessual.
290
Ivan Aparecido Ruiz
[...] mediação é palavra polissêmica, utilizada tanto como sinônimo de corretagem, enquanto
intermediação mercantil, quanto como equivalente jurisdicional, na solução de conflitos de
interesses. Enquanto equivalente jurisdicional, a mediação ocorre quando terceiro intervém na
disputa, a fim de propor-lhe solução, ou seja, a fim de promover acordo entre os contendores.
218 Para uma análise mais aprofundada sobre esse tema, cf., na doutrina italiana, Troisi (1995); e, na doutrina
brasileira, Carvalho Neto (1956).
291
A mediação no direito de família e o acesso à justiça
Veja-se que a autora coloca a mediação como sendo facultativa e não obrigatória,
porquanto afirma tratar-se de método voluntário, ou seja, de um agir espontâneo, derivado
da vontade das próprias partes, não havendo imposição de quem quer que seja.
Elena I. Highton e Gladys S. Álvarez (1995, p. 122), acerca do conceito de
mediação, assim se manifestam:
[...] sencillamente como una “negociación asistida”. Con algo más de detalle podríamos describirla
como un método de gestión de conflictos en el que uno o más terceros imparciales asisten a las
partes para que éstas intenten un acordo recíprocamente aceptable. Al carecer de autoridad para
dirimir la controversia, el mediador debe aplicar una serie de técnicas destinadas a superar las
barreras de comunicación.
292
Ivan Aparecido Ruiz
Costuma ter caráter confidencial 219 e a responsabilidade pela construção das decisões
cabe às partes envolvidas. É um meio autocompositivo de resolução de conflitos, uma
vez que a solução é alcançada pelas próprias partes, amigavelmente. Consiste ela numa
técnica, num método para solução de conflitos de interesses. Nesse método, no entanto,
há a presença de um terceiro, chamado de mediador, imparcial e neutro, que nada decide.
O mediador age no sentido de aproximar as partes, mostrando a elas o que é a mediação,
as suas vantagens, auxiliando-as no sentido de que encontrem a melhor solução 220. O
terceiro, assim, funciona como um catalisador, ou seja, tem a finalidade de imprimir, na
busca de solução do conflito pelas partes, maior velocidade em suas reações, sem que se
altere o processo entre elas.
Entende-se que o mediador não tem que sugerir a solução para as partes. Elas
é que deverão, dentro do contexto que se estabeleça no decorrer da mediação, buscar
a melhor alternativa para ambas. Há autores que sustentam o entendimento de que o
mediador, além de desenvolver essa técnica de aproximação, também pode apontar
eventuais soluções (RUPRECHT, 1979, p. 212; DEVEALI, 1957, p. 209; GARCIA,
1973). Contudo, assim não se pensa, porquanto se entende que essa possibilidade —
apontar soluções para as partes — é própria da conciliação e não da mediação.
O procedimento de mediação implica, como já dito, a intervenção de uma
terceira pessoa imparcial, que guia as partes, estabelece a comunicação entre elas, para
que encontrem por si mesmas a base do acordo, que porá fim ao conflito. Trata-se de uma
atividade prática, destinada a facilitar o diálogo com o objetivo de redefinir e resolver os
pontos divergentes, como uma forma de atribuir aos próprios protagonistas do conflito
a tomada de decisões a seu respeito. Para além do acordo em certos tipos de mediação,
por exemplo familiar, também se visa melhorar a relação entre as partes envolvidas. A
mediação, aqui, não só procura solucionar o conflito de interesses existente, mas também
estabelecer uma convivência harmônica no futuro. Aí reside uma das grandes vantagens
da mediação.
É a forma mais popular de solução alternativa de conflitos de interesses. É um
processo vocacionado para uma comunicação mais efetiva e utilização de mecanismos de
negociação.
Na mediação, depois de se alcançar um acordo, por natureza favorável a ambas as
partes 221, estão reunidas condições para que se mantenham as relações que as unem, sejam
elas de caráter familiar, comercial ou obrigacional.
É um processo de solução de litígios em que uma pessoa com formação específica
em mediação ajuda as partes envolvidas em um conflito a chegarem a um acordo acerca
do modo como irão solucioná-lo. O mediador, ao contrário de um juiz estatal ou de
um árbitro, não decide sobre o conflito de interesses. A mediação é um processo não-
219 Alguns também inserem um caráter facultativo. No entanto, defende-se no presente texto o caráter obrigatório.
220 Como ensina Susana Figueiredo Bandeira (2002, p. 116): “O Mediador é apenas um facilitador do diálogo e da
autocomposição que as partes desejam, ao tentarem chegar ao acordo, e se é certo que nenhuma das partes ‘perde’,
na realidade, pode-se dizer até que, na Mediação, ambas ‘ganham’”.
221 Tem-se, aqui, a teoria do ganha/ganha.
293
A mediação no direito de família e o acesso à justiça
La mediación es, en segundo lugar, indisciplinada por su heterodoxia, puesto que del mediador
se exige que sepa moverse entre teorías, sin la obligación de defender un feudo intelectual o la
ortodoxia de una capilla de clase o de saber. [...]
La autocomposición de los procedimientos de mediación es asistida porque se necesita siempre la
presencia de un tercero imparcial, aunque implicado, que ayude a las partes en su proceso de asumir
“los riesgos” de su autodecisión transformadora del conflicto. Lo que se busca con la mediación,
que es un trabajo de reconstrucción simbólica, imaginaria e sensible de producción de diferencias
que permitan superar las divergencias, lo que exige siempre la presencia de un tercero que cumpla
las funciones de un terapeuta emocional. [...]
El proceso es de autocomposición en la medida en que son las mismas partes de un conflicto las que
tratan de llegar a la producción, con el otro adversario, de una diferencia que pueda recomponer, a
través de una mirada interior, los ingredientes afectivos, jurídicos, patrimoniales o de otros tipos y
generar, así, lo nuevo en el conflicto.
[...] la mediación es una forma ecológica de autocomposición en la medida en que, al procurar una
negociación transformadora de las divergencias, facilita una considerable mejoría en la calidad de
vida (WARAT, 2000, p. 5-8).
e, caso obtido um acordo, o mesmo seria anotado na própria petição inicial, que seria
devolvida ao autor, mandando-se cancelar a distribuição, de modo que nada constaria nos
arquivos do Poder Judiciário.
Em nossa proposta para o procedimento de mediação, entendemos que, diante
da situação de desentendimento conjugal, onde se tenciona a separação, o divórcio ou a
dissolução da união estável, o casal deve ficar obrigatoriamente “convidado” a sentar-se
diante do mediador, numa mesa redonda, cuja figura solícita de pronto se diferencia da
imagem austera e intimidadora do juiz, quando então, sob o resguardo da confidencialidade
(princípio da publicidade restrita ou sigilo), ambos partirão em busca de uma solução que
potencialize as condições mais favoráveis e minimize o desgaste e o prejuízo.
Wilson José Gonçalves (1998, p. 152-154), em tese de Doutorado apresentada
perante a PUC/SP, sob a orientação de Maria Helena Diniz, aborda o tema de forma incisiva:
A mediação na seara do direito de família tende a encontrar um profícuo terreno fértil, uma vez que
viabiliza soluções do conflito. Ou mesmo, pode detectar o seu início e dizimá-lo por profissionais
que estejam próximos aos fatos e à vida do casal. Sem contar que as resoluções e o restabelecimento
da paz efetiva-se num tempo mais rápido, obtendo-se um menor desgaste nas relações familiares e,
principalmente, evitando traumas quando há filhos. [...]
Por tais características, a mediação familiar vem reforçar as tendências atuais em permitir uma
realização de justiça nesse campo, pois propicia um diálogo sem bloqueio, verdadeiro entre as partes,
cada qual confiando seus motivos e razões aos mediadores, com maior autenticidade e abertura
para negociação de propostas e contrapropostas, podendo atingir um consenso satisfatório.
A mediação imbuída desse espírito, que se pauta pela mais absoluta informalidade e simplicidade
dos procedimentos das decisões em que soluções não são impostas mas negociadas entre as partes,
por autocomposição, elimina em grande parte os traumas gerados por decisões judiciais.
Dessa forma, a mediação no âmbito do direito de família poderia ser instituída de modo a
se transformar em condição sine qua non ao ajuizamento de qualquer ação dessa natureza,
sem retirar o mérito da conciliação promovida pelo magistrado. O que viabilizaria uma
reflexão mais profunda e detalhada, evitando o volume grande de ações que são propostas
e que se findam por vontade das partes, exatamente por se terem iniciado de forma
imatura. [...]
Esse espaço representa uma abertura no monopólio estatal da jurisdição. O que permite um acesso
facilitado para compor soluções da regularização dos conviventes, uma vez que o Judiciário, nos
moldes como se apresenta hoje, significa um poder, via de regra, traumático para quase a totalidade
das questões que envolvem a família.
O Judiciário representa uma decisão de fora para dentro, que deve ser aceita. Nos meios não
judiciais, a solução surge de dentro para fora e deve ser aceita pelos envolvidos, uma vez que foram
eles que buscaram, em seu meio uma solução para o conflito. Incentivar que as questões privadas
sejam resolvidas nessa esfera, significa, além de uma economia de tempo e dinheiro do Poder
Público, uma solução com maior aceitação e eficácia social.
296
Ivan Aparecido Ruiz
222 Lei do Divórcio, Art. 9º: “No caso de dissolução da sociedade conjugal pela separação judicial con-
sensual (art. 4º), observar-se-á o que os cônjuges acordarem sobre a guarda dos filhos”.
223 “As últimas décadas propiciaram um avanço em estudos psicológicos. A ciência criança, como é chamada a
Psicologia, passou a ser instrumento de auxílio para elementos de famílias em desajuste, mas o divórcio, propria-
mente dito, permanece visto por profissionais da saúde mental como um processo legal, além do contexto tera-
pêutico. Ao mesmo tempo, profissionais do direito conscientizam-se, cada vez mais, das limitações da lei, para
tratar dos conflitos entre cônjuges, e vêem, na psicoterapia, um recurso de primeira linha, para a resolução de
disputa. A teoria do divórcio movimentou também estudos sociológicos. De uma visão dimensional, como um
processo legal, expandiram o divórcio para uma visão mais integrada, como um processo multidimensional, que
demanda o envolvimento de ambas as matérias, legal e psicológica, além da Sociologia” (SERPA, 1999a,
p. 22).
225 Talvez não seja por outra razão que, no passado, autores de nomeada, como é o caso de Unger, conceituavam
o direito de ação como um direito em pé de guerra, reagindo contra sua ameaça ou violação. (SANTOS, 2002, p.
148). Gabriel José Rodrigues de Rezende Filho (1965, p. 144), a propósito do assunto, afirma: “Unger compara
a ação ao direito em pé de guerra, no seio marcial, em oposição ao direito em estado de paz, na toga.”
226 “Existe a crença de que quando dois lados opostos se confrontam na arena judicial, cada lado apresentando
sua própria versão dos fatos, a ‘verdade será revelada e a justiça será servida’” (SERPA, 1999a, p. 68).
227 Cf. Dinamarco (1993, p. 159-167), quando trata dos escopos sociais do processo.
228 Entendida, aqui, como mediação assistida.
297
A mediação no direito de família e o acesso à justiça
229 “Quanto mais você faz o que você sempre fez, mais você obtém o que sempre obteve” (Tradução livre).
230 Não se deve olvidar que, no desenvolvimento do processo judicial, como lembra Ângela Oliveira,
o advogado usa de “estratégias legais que muitas vezes fomentam o litígio, no legítimo dever da
melhor defesa ao seu cliente”. Essa mesma autora, na continuidade, afirma, com muita propriedade,
que “a solução judicial pode resolver o processo, mas não interrompe a demanda nem tampouco o
deslocamento sintomático a novas lides, durante o procedimento principal, por lides marginais, ou pelas
várias revisionais, ao longo de anos”. A aludida autora vai mais longe, ao expor: “[...] é necessário uma
leitura que extrapole o âmbito legal e permita uma compreensão mais abrangente e humanizada, que
inclua o sofrimento e outros aspectos emocionais e interrelacionais. [...] Mais do que um outro meio de
solução de controvérsias, ventilado na mídia como alternativa mais rápida ao judiciário, inegavelmente
sobrecarregado e estatisticamente incapaz de processar a projetada demanda do futuro, a mediação tem
que ser ressaltada como uma mudança paradigmática e ser promovida como a cultura de humanização
de vínculos e de pacificação social, sejam estes na separação e divórcio, ou em qualquer outro contexto”
(OLIVEIRA, 1999, p. 138-140).
231 “Art. 2º. O advogado, indispensável à administração da Justiça, é defensor do estado democrático de
direito, da cidadania, da moralidade pública, da Justiça e da paz social, subordinando a atividade de seu
Ministério Privado à elevada função pública que exerce. Parágrafo único. São deveres do advogado: [...]
VI - estimular a conciliação entre os litigantes, prevenindo sempre que possível a instauração de litígios.”
298
Ivan Aparecido Ruiz
partes 232 233. Isso se deve à ausência de uma formação mais humanística, em que, em lugar do
estrito tecnicismo legal, fosse trabalhada e estimulada a busca por técnicas não-adversariais.
Ora, nem sempre o discurso legal do advogado corresponde ou reflete, com autenticidade, o
interesse real de seu cliente, e é nesse descompasso que se verifica, muitas vezes, o triunfo da
lei em detrimento da própria justiça em si 234. E daí advém a ácida indagação, ou seja, o que
se alcançou efetivamente com o processo: alcançou-se a justiça? Fez-se a justiça? Pacificou-
se o conflito? Ou mais uma vez foi fomentado o voraz mercado das causas jurídicas, onde
impera o entendimento de que, quanto mais atos se pratiquem no processo (requerimentos,
audiências, incidentes, recursos, etc.), maior será o retorno de ordem financeira para o seu
operador, com absoluto desprezo pelas íntimas pretensões das partes e pelo interesse do
Estado, que, afinal, é o legítimo patrocinador e prestador da tutela jurisdicional?
Tanto é flagrante esse contexto que espocam as observações dos analistas jurídicos,
tais como Alessandra Gomes do Nascimento Silva (2002, p. 22-23), que aponta:
A primeira barreira que encontramos numa negociação difícil somos nós mesmos. É bastante árduo
defrontar-se com um colega advogado que não tem a mínima noção do que vem a ser negociar. Chega a
ser irritante ouvi-lo alardeando todas as medidas judiciais que poderá intentar, fazendo do encontro uma
oportunidade para unicamente enfatizar o poder de sua tese jurídica. Isso sem falar nos ataques pessoais,
a você e seu cliente. Esse tipo de ataque pessoal é a primeira coisa que deve ser esquecida pelo negociador
como ferramenta. Não há como se chegar a uma solução negociada atacando as pessoas envolvidas no
processo. Assim agindo só se conseguem a represália e a retaliação, não o acordo. [...] Nunca ignore
que a negociação é um processo que envolve seres humanos. Ainda que esteja em jogo uma transação
empresarial, são pessoas que estão ali sentadas em volta da mesa tentando chegar a um acordo.
232 Fernando da Costa Tourinho Filho (1982, p. 302), noutro contexto (do Ministério Público, natureza de sua
funções), mas que tem inteira aplicação no raciocínio que ora se desenvolve, traz interessante lição que merece ser
aqui transcrita: “O Ministério Público é o representante da lei. É a encarnação do espírito da lei. E por que se diz
isso? Responde Alcalà-Zamora: ‘Lo que con ello se quiere significar más bien, es la objetividad e imparcialidad
con que el Ministerio Público deve actuar’. De fato, a verdadeira norma de conduta de um Promotor não é a de
converter a desgraça alheia em pedestal para os seus êxitos e ‘cartaz para a sua vaidade’. ‘No: la verdadera norma
de conduta de un Fiscal (Promotor) debe ser la de comportase como un Juez’”.
233 É sabido que “os advogados cultivam mais a postura litigiosa do que a consensual” (Trecho da Exposição
de Motivos do Anteprojeto de Lei sobre a mediação no processo civil do Instituto Brasileiro de Direito Pro-
cessual e da Escola Nacional da Magistratura).
234 E é nesse foco que se destaca a observação de Corinne M. Davis (2001, p. 127): “O estilo informal da mediação permi-
te às partes discutirem seus conflitos usando um discurso não-legal. O’Barr e Conley examinaram os efeitos do uso de um
discurso legal (dedutivo, testando alguma hipótese) versus um discurso não-legal (indutivo, conversacional). Chegaram
à conclusão que, embora a satisfação do litigante possa ser maior, a efetividade do discurso não-legal no ambiente legal era
menor. Isto se deve ao fato de os agentes legais (juízes, advogados e mediadores) estarem treinados a usar um discurso legal
e casos apresentados num discurso não-legal serem menos convincentes para estes agentes. Então, argumentam que a es-
trutura informal da mediação pode prover mais satisfação para o litigante, dado que os litigantes podem usar um discurso
não-legal, mas que pode ultimamente ser uma desvantagem na apresentação do caso a um agente legal”.
235 Nos EUA, por exemplo, essa preocupação de ensinar e estudar as ADR não se limitou somente às faculdades de
Direito, mas também teve ensinança nas escolas secundárias e primárias (HIGHTON; ÁLVAREZ, 1995, p. 152).
299
A mediação no direito de família e o acesso à justiça
obrigatoriamente, constar das suas grades curriculares disciplinas tais que efetivamente
delimitassem, de forma nítida, essas noções na formação do profissional do Direito, em especial
do advogado, no sentido da indeclinável valorização da harmonia social, acima de tudo.
Nesse contexto, menciona-se a crítica elaborada por Cláudio Lemes Fonteles
(1996, p. 262-263):
18. De plano impõe-se a atenção à formação universitária do advogado.
19. As faculdades de direito deixam muito a desejar.
20. Em sua maioria entregues a “empresários do ensino”, fornecem — fornecem mesmo? —
reduzidíssima aptidão profissional. [...]
22. Os bons propósitos, todavia, conturbam-se com o excessivo número de alunos em sala de aula:
70; 80; 90; 100; e mais de 100 alunos numa única classe!!! [...]
25. Hoje, o fraco ensino, teórico e personalista, desvirtua claramente o fundamental papel
reservado a esses profissionais, como operadores de transformação social na linha de formação de
sociedade autenticamente democrática.
Todavia, em que pese o exposto, não se pode afirmar que o nosso direito esteve
totalmente alheio a essa forma de solução dos conflitos (autocomposição) na órbita do direito
de família, se bem que se fala em conciliação e não em mediação. Quando do tratamento da ação
de separação judicial litigiosa e de alimentos, previu a Lei nº 968, de 10.12.1949 236, em especial
no seu art. 1º, que: “Nas causas de desquite litigioso e de alimentos, inclusive os provisionais,
o juiz, antes de despachar a petição inicial, logo que esta lhe seja apresentada promoverá todos
os meios para que as partes se reconciliem, ou transijam, nos casos e segundo a forma em que a
lei permite a transação”. Também o Código de Processo Civil vigente não se mostrou afastado
dessa possibilidade, tanto que, no parágrafo único do art. 447237, admitiu, em causas relativas à
família, a conciliação, nos casos e para os fins em que a lei consente a transação.
Nas causas de família, a mediação, principalmente nos processos de separação
judicial e de divórcio, constitui-se em alternativa ao processo litigioso, quando as partes
238
236 Estabelece a fase preliminar de conciliação ou acordo nas causas de desquite litigioso ou de alimentos,
inclusive provisionais, e dá outras providências.
237 “Art. 447. Quando o litígio versar sobre direitos patrimoniais de caráter privado, o juiz, de ofício, determi-
nará o comparecimento das partes ao início da audiência de instrução e julgamento. Parágrafo único. Em causas
relativas à família, terá lugar igualmente a conciliação, nos casos e para os fins em que a lei consente a transação”.
238 Há bastante divergência, em sede doutrinária e jurisprudencial, acerca do entendimento sobre a eliminação ou não
da separação no Direito Brasileiro, mas parece que a tese que vai predominando é a de que não mais há que se falar em
separação no Direito brasileiro, tese à qual o signatário do presente artigo se filia. A propósito, confira-se: “Apelação Cível
– Direito de Família – Separação Judicial Litigiosa – Conversão em Divórcio – Emenda Constitucional nº 66/2010
– Possibilidade – Regime de Comunhão Parcial – Artigos 1.658 e 1.659 do Código Civil – Bens Adquiridos Após a
Separação de Fato – Incomunicabilidade – Litigância de Má-Fé – Não Configurada.- Embora permaneçam, ainda, no
Código Civil, alguns dispositivos que tratam da separação judicial (arts. 1.571 e 1.578), a partir da edição da Emenda
Constitucional nº 66/2010, não há mais a possibilidade de se buscar o fim da sociedade conjugal por meio deste instituto,
mas, tão somente, a dissolução do casamento pelo divórcio.- Verificando que o bem objeto do litígio foi adquirido após a
separação de fato do casal, e, considerando o disposto nos artigos 1.658 e 1.659 do Código Civil, que tratam do regime da
comunhão parcial de bens, não há que se falar em partilha.- O abuso do direito de demandar resta configurado, apenas,
quando patente a vontade de causar prejuízo à parte contrária”. (TJMG, Apelação Cível nº 1.0487.06.021825-1/001(1),
Relator: Des. DÁRCIO LOPARDI MENDES, data do julgamento: 20/01/2011, data da publicação: 07/02/2011).
300
Ivan Aparecido Ruiz
mais apropriada como meio de solução do litígio. Nesses tipos de causas, por existir um
forte vínculo de parentesco ou afetividade, mormente no que se refere aos filhos, essa
continuidade nas relações das pessoas se constitui num louvável imperativo 241.
Apesar de essa colocação parecer tão óbvia e clara, o nosso direito permanece
ainda inerte à provocação que a mediação inspira, sendo que, mesmo considerando-
se o avanço jurídico ilustrado pelo projeto de lei da Escola Nacional da Magistratura,
as questões de família encontram-se excluídas do aconchegante agasalho oferecido
pelo instituto da mediação. Saliente-se, também, que o Projeto do Novo Código de
Processo Civil, elaborado pela Comissão de Juristas instituída pelo Ato do Presidente
do Senado Federal n. 379, de 2009, destinado a elaborar anteprojeto de Novo
Código de Processo Civil, que, inclusive, já tramitou no Senado Federal (Projeto de
Lei n. 166/2010), tendo logrado aprovação, e que, atualmente, tramita na Câmara
dos Deputados, pouca atenção deu ao tema Mediação, limitando o tratamento do
Mediador, ao lado do Conciliador, como Auxiliares da Justiça (arts. 144 usque 153).
Acredita-se que o Legislador está perdendo uma grande oportunidade para avançar
no tema da Mediação e, em particular, na Mediação Familiar 242. É o que vem cada vez
mais reforçar a nossa proposta de urgência da humanização da tutela jurisdicional,
principalmente no direito de família, traduzida na obrigatoriedade da aplicação da
mediação como condição da ação.
Na Argentina, pela Lei nº 24.573, art. 2º, nº 2, foi afirmado que o procedimento
da mediação obrigatória não se aplica às ações de separação, divórcio, nulidade de
matrimônio, filiação e pátrio poder. Osvaldo Alfredo Gozaíni (1996, p. 55), comentando
esse art. 2º, afirma que “La supresión en la ley de llevar a mediación estas cuestiones parece
incongruente, toda vez que resulta uno de los campos más propicios para intentar el
ensayo que se propone”.
Mas, felizmente, não é o que ocorre no direito comparado. Na Espanha, a respeito
da mediação familiar, encontram-se leis específicas, como é o caso da Ley nº 1/2001,
de 15.3, de mediación familiar de Cataluña, da Ley nº 2/2001, de 31.5, reguladora da
mediación familiar da comunidad autónoma de Galicia, e da Ley nº 7/2001, de 26.11,
normatizadora da mediación familiar no ámbito da comunidad de Valencia.
A Ley nº 1/2001, de mediación familiar de Cataluña, no capítulo das disposições
das relações estáveis e monoparentais, conforme preceitua o Art. 226, parágrafos 3º e 4º, da CF/88.
241 Como ensinam John M. Haynes e Marilene Marodin (1996, p. 11), a mediação é idealmente apropriada para os confli-
tos familiares. A essa conclusão, esses autores chegam após teceram o conceito de mediação. Afirmam os citados autores: “A
mediação é um processo no qual uma terceira pessoa estranha — o mediador — auxilia os participantes na resolução de uma
disputa. O acordo final resolve o problema com uma solução mutuamente aceitável e será estruturado de modo a manter a
continuidade das relações das pessoas envolvidas no conflito. Para resolver a disputa os participantes devem negociar uma
solução e esta etapa já faz parte do processo das negociações. Como a resolução do problema envolve mais do que uma pessoa,
a solução escolhida deve satisfazer todos os participantes na disputa. Os participantes devem negociar qual solução ou combi-
nação de soluções são aceitáveis para todos. Por isso a mediação é idealmente apropriada para disputas familiares.”
242 Em Portugal, conforme se vê do Despacho n. 18.778/2007, do Ministério da Justiça, Gabinete do Secre-
tário de Estado da Justiça, foi regulada a atividade do Sistema de Mediação Familiar (SMF). Aliás, a propósito
do tema, no âmbito da Doutrina, no Direito Português, consulte-se Silva (2009).
302
Ivan Aparecido Ruiz
Artículo 1. Objeto.
1. La presente Ley tiene por objeto regular la mediación familiar como medida de apoyo a la
familia y como método de resolución de conflictos en los supuestos que recoge la presente ley, para
evitar la apertura de procedimientos judiciales de carácter contencioso y poner fin a los ya iniciados
o reducir su alcance.
La otra cuestión a tener en cuenta es la predisposición de los abogados que asisten al requirente
y al requerido en la etapa prejudicial de mediación. La formación del abogado en nuestras
universidades está prevista, en general, para el litigio. Él es el experto que en el proceso judicial,
de neto corte adversarial, mejor elabora la estrategia procesal para defender el derecho de su
cliente frente al contrario. Y como la mediación es otra cosa, los protagonistas son los propios
interesados y se trabaja sobre sus intereses, muchas veces sucede que el abogado, celoso protector
de su cliente, pretende in voce frente al mediador, explicar los hechos como si se tratara de una
demanda, frustrando así la espontaneidad del cliente y la búsqueda de sus verdaderos intereses.
De allí, como señala Bianchi (1996, p. 162), el abogado deberá adaptarse a este nuevo entorno
en el que pude encontrar muchas posibilidades de realización humana y profesional, donde con
discreción y sin ceder un ápice de lo que conoce teórica y prácticamente, estará haciendo un
aprendizaje de modestia y humanidad. Por eso dice Moore (1995, p. 181) que, en general, los
abogados están adiestrados para desarrollar una defensa en relación con determinada solución
o posición, y es posible que clasifiquen las alternativas de solución en términos de acertadas o
equivocadas, o que formulen opciones en las cuales puede responderse por sí o por no. El éxito de
la negociación depende, en cambio, de las decisiones basadas en la cooperación y la integración,
más que en las alternativas que imponen rígidamente una elección en determinado sentido. Los
mediadores pueden atenuar el antagonismo recibiendo a los abogados como asesores legales
pero no como negociadores subrogados.
Comumente, o processo se inicia com um dos cônjuges procurando um advogado, dando seu
relato do por que querem se separar. São depoimentos vários, carregados de sentimentos de
mágoas, raivas, dúvidas, medos, desejos não correspondidos, outros tantos a serem conquistados,
303
A mediação no direito de família e o acesso à justiça
ou ressarcidos, pela atuação do advogado. O impacto emocional do cliente e sua história atingem
o advogado e o influenciam em condutas futuras, a saber da orientação jurídica e proposição de
estratégias de ação.
Ademais do fato de ser a separação um período altamente sofrido, este sofrimento é potencializado
ao extremo pelo sistema jurídico.
O sistema, conduzido pelas estratégias dos advogados e somado pelo formalismo dos procedimentos
e pela sobrecarga dos processos que abarrotam os tribunais, tomando-se como referencial a
experiência vivida pelos clientes (os separandos) no decorrer das ações, adiciona grande parcela de
sofrimento à dor da separação, é responsável pelo aumento de litígio entre as partes e por sequelas
no futuro da família binuclear. (OLIVEIRA, 1999, p. 137).
304
Ivan Aparecido Ruiz
bem que por meio de escritura pública (Lei nº 11.441, de 4.1.2007). Registre-se que,
em parte, essa postura foi objeto de nossa defesa, quando do Doutorado perante a
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP), no ano de 2003, já que
se defendeu a possibilidade de se registrar o próprio termo de mediação junto ao
cartório de registro civil, não havendo, porém, a necessidade de lavratura de escritura
pública, e o seu posterior registro. É a redução do montante das despesas, para tornar
o acesso à justiça ainda mais efetivo.
243 Ante a divergência nos tribunais acerca da coexistência da separação judicial no ordenamento jurídico,
mesmo após o advento da Emenda Constitucional n. 66/2010, entende-se oportuno, ainda, o tratamento da
matéria dessa forma, como está no texto. Aliás, pensa-se que esta forma de exposição possibilita uma maior
reflexão e compreensão por parte do leitor sobre a temática.
244 O texto do art. 3º da lei mencionada é o seguinte: “Art. 3º. A Lei nº 5.869, de 1973 – Código de Processo
Civil passa a vigorar acrescida do seguinte artigo 1.124-A: ‘Art. 1.124-A. A separação consensual e o divórcio
consensual, não havendo filhos menores ou incapazes do casal e observados os requisitos legais quanto aos pra-
zos, poderão ser realizados por escritura pública, da qual constarão as disposições relativas à descrição e à partilha
dos bens comuns e à pensão alimentícia e, ainda, ao acordo quanto à retomada pelo cônjuge de seu nome de
solteiro ou à manutenção do nome adotado quando se deu o casamento. §1º A escritura não depende de homo-
logação judicial e constitui título hábil para o registro civil e o registro de imóveis. §2º O tabelião somente lavrará
a escritura se os contratantes estiverem assistidos por advogado comum ou advogados de cada um deles, cuja
qualificação e assinatura constarão do ato notarial. §3º A escritura e demais atos notariais serão gratuitos àqueles
que se declararem pobres sob as penas da lei’.”
245 Essa locução, entende-se, não é a mais adequada. Não se realiza a separação ou divórcio consensual na via
administrativa, mas sim, perante um órgão estatal, vinculado ao Poder Judiciário, do foro extrajudicial. Com
efeito, o mais adequado é falar-se em “separação consensual extrajudicial ou divórcio consensual extrajudicial”.
305
A mediação no direito de família e o acesso à justiça
portas do Poder Judiciário, e aquele que pretender utilizar dos serviços do Poder Judiciário
para tal finalidade poderá fazê-lo. Consoante ensina Misael Montenegro Filho (2008, p. 962):
Os procedimentos de separação e de divórcio extrajudicial não ferem o direito de ação (de logo
afastando a possibilidade do ingresso da ação de inconstitucionalidade por esse fundamento), uma
vez que não são de uso obrigatório, mas faculdade conferida aos separandos ou aos divorciandos,
que podem rejeitar a instauração do processo de separação ou de divórcio (por lógico, amigável)
no seu modo tradicional, preferindo realizá-los no cartório, através de escritura pública, de forma
simplificada.
246 Observe-se que esse terceiro simplesmente presta uma ajuda às partes, a fim de que estas possam se entender
por sua própria vontade.
247 No entanto, é de se observar que a transação, quando judicial, é consequência da conciliação. Resulta,
pois, a transação, nesse caso, da conciliação.
248 Esta, dependendo do tratamento legislativo, poderá ser extrajudicial ou judicial. A extrajudicial será
realizada por um terceiro que, necessariamente, não precisa ter conhecimentos jurídicos. Quando realizada
judicialmente, deverá ser realizada também por um terceiro, no caso, por um auxiliar da justiça. Na Argenti-
na, por exemplo, a mediação é sempre extrajudicial. No Brasil, pelo projeto de lei que tramita no Congresso
Nacional, a mediação tanto poderá ser judicial, quanto extraprocessual.
249 Mozart Victor Russomano (1960, p. 1463-1464), no âmbito do direito do trabalho, a respeito dessa diferencia-
ção, assim se manifesta: “A conciliação distingue-se da transação e da mediação. A semelhança que possa existir entre a
conciliação e a transação não as identifica. Na transação, atuam as vontades das partes; na conciliação, como diz Villar-
real, interfere a vontade do Estado, representado pelo juiz que a propõe aos litigantes. Dessa forma, enquanto a tran-
sação é medida espontânea e voluntária, a conciliação é proposta, obrigatoriamente, a todos quantos comparecerem
perante a Justiça do Trabalho, sendo sugerida pelos representantes do Estado. Por outro lado, enquanto a mediação
pode ser espontânea ou provocada, a conciliação será, sempre, obtida mediante certos atos judiciais, como a interposi-
ção da demanda — diz ainda Villarreal. Aponta, também, Carnelutti uma diferença entre a conciliação e a mediação
com base na finalidade a que ambas se destinam, relativamente à ideia da justiça. Aquela tende a uma composição justa;
esta se limita a resolver a controvérsia”.
306
Ivan Aparecido Ruiz
250 José Eduardo Carreira Alvim (1995, p. 46), tratando dos conciliadores privados e atividade jurisdicional,
afirma: “A mim me parece que, antes que a lei disponha a respeito, conciliação continua sendo ato jurisdicio-
nal e, portanto, atribuição do juiz, que não pode delegá-la a outrem, ainda que serventuário da justiça”. A con-
ciliação tanto é ato do juiz que Marcos Afonso Borges a conceitua como “[...] meio através do qual, no pro-
cesso, as partes encerram a lide, mediante provocação do juiz” (LIMONGI FRANÇA, 1977, p. 113-114).
José Celso de Mello Filho (1975, p. 238) também afirma que a “[...] tentativa de conciliação, que constitui ato
privativo do juiz, deverá realizar-se antes de iniciada a instrução”.
251 Confira-se o art. 133, primeira parte, da Constituição Federal de 1988: “Art. 133. O advogado é indis-
pensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão,
nos limites da lei”.
252 “Art. 2º O advogado, indispensável à administração da Justiça, é defensor do Estado democrático de direito,
da cidadania, da moralidade pública, da Justiça e da paz social, subordinando a atividade do seu Ministério
Privado à elevada função pública que exerce. Parágrafo único. São deveres do advogado: [...] VI - estimular a
conciliação entre os litigantes, prevenindo, sempre que possível, a instauração de litígios.”
307
A mediação no direito de família e o acesso à justiça
253 “Art 3º [...] §2º O juiz deverá promover todos os meios para que as partes se reconciliem ou transijam,
ouvindo pessoal e separadamente cada uma delas e, a seguir, reunindo-as em sua presença, se assim considerar
necessário.”
254 O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) aprovou e editou a Resolução nº 35, de 24.4.2007, que disci-
plina a aplicação da Lei nº 11.441/07 pelos serviços notariais e de registro.
308
Ivan Aparecido Ruiz
8 Conclusões
1 A sociedade contemporânea, crê-se não ser novidade para ninguém, vive em crise,
cujos reflexos incidem direta e verticalmente sobre as instituições estatais. Em razão dessa
crise, vive-se momento hiperdinâmico, de mudança de paradigmas. É crise funcionando
como corante para dar nova cor, nova vida e moldura ao quadro societário. Nessa mudança
de modelos, observa-se que o Estado vem deixando de ser um Estado administrador para
tornar-se um Estado gerenciador. Nessa contextualização, no campo da Justiça surge no
horizonte a mediação. Esta, como meio alternativo e pacífico de solução de conflitos de
interesses que é, não tem como alvo principal afastar a utilização do “processo judicial”
e, tampouco, utilizá-lo como seu concorrente, mas, ao revés, ser sua aliada e prestar bem-
vinda contribuição ao Poder Judiciário. Por isso mesmo, o procedimento da mediação
deve ser incentivado e manejado ao lado do processo, agindo como um necessário filtro às
incontáveis demandas que dele muito bem podiam prescindir, tudo no afã de se agilizar a
paz social, com maior efetividade.
2 No processo judicial, observa-se a visão ganha/perde, enquanto que, na mediação,
tem-se a visão do ganha/ganha. Naquele, a solução é imposta, é adversarial, vem de fora
para dentro. Nesta, ao invés, a solução é encontrada pelas próprias partes envolvidas
no conflito de interesses, é não-adversarial, vem de dentro para fora. Na mediação, não
há perdedor, ou vencido, como sói acontecer no processo tradicional. A solução não-
adversarial tem, sem sombra de dúvida, maior carga de efetividade, o que se deve ao seu
espírito pacífico, simples e ágil, voltado para atender às esperanças fundadas nos supostos
direitos dos envolvidos no litígio.
3 O conceito de mediação não guarda uma uniformidade na doutrina, até mesmo
porque a mediação é uma palavra polissêmica. Assim, ora encontra-se com o significado
de corretagem, de intermediação mercantil, ora com o de solução de conflitos de interesses.
Mesmo sob o enfoque de solução de conflitos de interesses, verificam-se discórdias
dentro da doutrina, porquanto uns entendem que ela pode ser tanto endoprocessual
quanto extraprocessual, ou que o mediador pode apresentar sugestões às partes, enquanto
outros não admitem tais possibilidades. No entanto, verificam-se também muitos pontos
convergentes, como, por exemplo, a presença de um terceiro neutro e que este nada decide.
A nosso ver, a mediação é um procedimento autocompositivo extraprocessual, consistente
num método alternativo de solução de conflitos de interesses, dotado de técnicas
específicas e desenvolvido anexo ao Poder Judiciário. Tal procedimento será utilizado de
forma obrigatória, como requisito para a propositura de ação judicial, e se desenvolverá
mediante a presença de um terceiro imparcial e neutro, ao qual caberá restabelecer o
canal de comunicação entre as partes, a fim de facilitar uma negociação entre elas, para
que possam, por si sós, chegar a um acordo a ambas favorável, não podendo o mediador
sugerir, propor ou impor nenhuma decisão a respeito da controvérsia.
4 A proposta de inserção do procedimento obrigatório prévio da mediação
no ordenamento jurídico brasileiro almeja semelhantes resultados, ou seja, pretende-
se oportunizar as soluções não-adversariais aos litigantes para que, de maneira simples,
309
A mediação no direito de família e o acesso à justiça
desembaraçada e sem custos, seja alcançada a paz entre as partes, dispensando, para isso,
a forma lenta, emaranhada e onerosa oferecida pelo sistema vigente (lei processual e
Poder Judiciário). Assim, antes de ajuizarem demanda perante o foro judicial, as partes
em controvérsia devem se permitir a chance de lograr êxito no desfecho da mesma por
intermédio de um acordo perante os órgãos mediadores.
5 A universalização do acesso à justiça por meio da separação consensual
extrajudicial e do divórcio consensual extrajudicial (escritura pública) é um dos caminhos
da abertura e da flexibilização da jurisdição, apontando, ainda, os meios alternativos de
solução dos conflitos de interesses como uma das formas de minimizar a crise por que
passa o Poder Judiciário.
6 A possibilidade da impropriamente chamada separação consensual ou divórcio
consensual “administrativo” — porquanto entende-se que deveriam ser tratados como
extrajudiciais (fora do Poder Judiciário) — serem realizadas perante tabelionatos, não
é exclusividade da separação consensual ou do divórcio consensual, como formas de
dissolução de entidades familiares, mas, também, da dissolução da união estável, já que
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Agir contra si – Acrasia –
e a Mediação de Conflitos
Sumário. 1 Introdução - 2 Akrasia ou acrasia - 3 Caso em estudo no. 1 - 4 Caso em estudo no. 2
- 4.1 Reflexões técnicas preliminares - 4.2 Seguimento do relato do caso em estudo no. 2 e outras
considerações técnicas - 5 Análise dos casos concretos 1 e 2 à luz da teoria da acrasia em Elster - 6
Instrumentos propostos para superação da acrasia – Referências
1 Introdução
2 Akrasia ou Acrasia
Faiblesse de volonté, akrasia ou acrasia, segundo Elster (2007), consiste no agir
do sujeito contra seu próprio e melhor julgamento, quer pela falta de forças, por impotên-
cia para se governar, por intemperança ou falta de autocontenção e em nada se confunde
com capacidade do agente, nem com a livre manifestação de vontade previstas em lei, erro
de fato ou de direito, tampouco com a ausência de viabilidade prática das alternativas
levantadas e pactuadas através da mediação.
Segundo Elster, o agente tem razões para fazer “a”; o agente tem razões para pra-
317
Agir contra si - Acrasia - e a Mediação de Conflitos
ticar “b”; as razões para praticar “a” são mais fortes do que aquelas relativas a “b”, mas o
agente decide e pratica “b”.
Em outra modalidade, a acrasia decorre da influência do tempo: o agente tem
razões para praticar “a”; o agente tem razões para fazer “b”; as razões para praticar “a” são
mais fortes que aquelas relativas a “b”, mas, no momento da ação, apesar de sua decisão
por “a”, o agente pratica “b”.
Assim, não serão dados de realidade, nem um simples teste de realidade, tampou-
co apenas a observância dos requisitos legais durante os espaços de gestão de conflitos,
demandas, problemas e disputas que terão o condão de superar a acrasia. O agente é capaz,
livre, tem informações suficientes, dimensiona o alcance das alternativas, mas, ao decidir,
perpetra ato contra o seu melhor julgamento.
Estou em pesquisa da acrasia nos espaços de gestão de conflitos, em suas distin-
tas modalidades e, neste artigo, optei por trabalhá-la através do estudo de casos, volta-
dos ao contexto da mediação em ambiências de violência e crimes de gênero e família,
já que, ao mediar em situações de violências intrafamiliares desde 1997, constatei a
elevada incidência de hipóteses de acrasia nesses espaços, passando a estudar e testar
instrumentos para superá-la.
Registre-se que a mediação no contexto de violências e crimes de gênero
e família não é justiça restaurativa255 nem objetiva a simples transação ao fim do
255 Mediação Criminal não é Justiça Restaurativa, visto não se destinar à aplicação de sanções, nem à
execução penal. A intervenção, de regra, ocorre antes da primeira audiência criminal, no intervalo compreen-
dido entre a chegada do inquérito ou termo circunstanciado ao Fórum e a sua realização ou, em situações de
urgência, antes mesmo de sua distribuição, já feito o Boletim de Ocorrência ou o Termo Circunstanciado
e, também quando já extinto o processo, questões jurídicas, relacionais, comunicativas, adições e de saúde
ainda são fatores de risco a novos episódios de violência. Nas Políticas Públicas de Justiça, sejam elas não
Judiciárias ou Judiciárias, a mediação pode ser metodologicamente adaptada e aplicada a conflitos de natu-
reza civil, penal, comercial, laboral etc, no âmbito comunitário, técnico, técnico-comunitário e empresarial,
entre outros. Seu foco não é o pacto isolado, fragmentário, mas a funcionalidade comunicativa e relacional,
independentemente da apuração de culpa ou dolo. O uso da mediação na seara criminal implica adaptação
metodológica para proporcionar equilíbrio de poderes, contenção, reflexão, transformação, redução da rein-
cidência. Sua aplicação independe da fixação prévia da autoria, tampouco a identificação do fato ilícito/
típico criminal/contravencional/infracional, da culpa, do dolo. Na área penal, a mediação pode ser utili-
zada em espaços policiais e, nos processos, antes mesmo das audiências preliminares ou já extinto o feito,
inclusive com a absolvição do réu. Constatando-se que o uso nos espaços policiais e fora do Fórum (ambos
testados) tendem a levar ao sub-registro de B.Os e T.C.s, com a retomada posterior da dinâmica violenta em
patamares mais agravados.
O objetivo da mediação criminal é o redimensionamento de relações conflituosas continuadas e violentas
que chegaram a patamares da prática de crime, mesmo extintas pela separação, mas que de alguma forma
mantem alguma ligação, quer pela prole, quer por aspectos intrapsíquicos das mais variadas ordens. De
regra, relações previamente existentes ao fato típico criminal.
No Brasil, há hipóteses estudadas e testadas de aplicação da mediação em praticamente todas as lei penais,
inclusive em júri, Lei 11.340/2006, tráfico de crianças para fins de restabelecimento de relação entre o genitor
e a criança traficada, não apenas nas leis 9099/95 e 8069/90. E também em contextos penitenciários e à rein-
serção de egressos na sociedade/família- Vide Projeto Íntegra. Como se vê, não tem caráter restaurativo entre
vítima e agressor. Nela, mediação criminal, é identificada existência de uma relação de natureza continuada,
318
Célia Regina Zapparolli
um conflito intersubjetivo de justiça que já tenha atingido patamares de violências e de crimes, buscando
gerar, através desse instrumental, além da contenção, do pacto (por meio de estratégias avaliativas ou fa-
cilitativas), essencialmente a transformação do padrão comunicativo, relacional e cultural violentos, não
necessariamente apenas entre partes diretas presentes no processo criminal, mas outros envolvidos com
suas influências e exercícios de poderes, como ocorre nas relações de vizinhança, trabalho, família, comu-
nitárias, escolares etc violentas. Seu objetivo final volta-se à transformação, à funcionalidade comunicacional
relacional, assim, além da contenção, evitando-se as reincidências.
Além da inter-relação, também trabalham-se os fatores de morbidade, inclusive adições, patologias, efeitos
dos problemas estruturais e dos conflitos sociais que venham influenciar os indivíduos e os relacionamentos,
ao ponto de atingirem patamares de violências e fatos típicos criminais. Viabiliza as ações de Justiça Terapêu-
tica, mas não se confunde com ela.
O arcabouço técnico que reveste a mediação e suas vertentes avaliativa e facilitativa também podem ser uti-
lizadas com vistas ao pacto pontual em relações não continuadas e acordos definitivos ou provisórios,
durante o trabalho transformativo, a se evitar a necessidade de ações em sede Cível/Família, para fixação
de alimentos, guarda, divórcio, partilha, reparação de danos entre outros. (ZAPPAROLLI, 2003).
319
Agir contra si - Acrasia - e a Mediação de Conflitos
320
Célia Regina Zapparolli
322
Célia Regina Zapparolli
mediadora já havia ouvido a gravação trazida por J.A.B. em 22.10.12, que visivelmente
expunha contexto de grave violência de F.L.B. à J.A.B.
J.A.B., mais uma vez, sempre colocando-se para evitar embates com F.L.B., insis-
tiu na extinção dos feitos, falando que F.L.B. não bebia há 7 meses. Mas as datas eram con-
traditórias: Veja que estávamos em 12.11.12 e havia uma denúncia de J.A.B. de 22.10.12
quanto ao descumprimento da ordem judicial, com pedido de proteção face a F.L.B., em
que J.A.B. alegou que F.L.B fizera uso de álcool e invadira o lar familiar.
Novamente usando de técnicas de comunicação, sem assumir o discurso de ne-
nhuma das partes, a mediadora indagou às partes se o álcool seria um aspecto a ser consi-
derado por elas nas dificuldades havidas na relação. E com a resposta evasiva de ambos, in-
dagou a mediadora se o “tema álcool” era algo que aparecia nas conversas de J.A.B e F.L.B
e se, ao tratarem desse “tema álcool”, havia algum desconforto pessoal e/ou problema na
relação de ambos. Somente então, com essa última questão é que F.L.B. reconheceu o seu
alcoolismo, o vício como um problema pessoal e para a relação, passando a verbalizar seu
esforço em tentar parar de beber e se tratar. Inclusive noticiou sua inserção no serviço de
saúde pública no CAPS-AD.
F.L.B. deixou claros os esforços para superar a adição, o que J.A.B. manifestou
apoiar. E J.A.B, mesmo reconhecendo a violência praticada por F.L.B., manteve sua vee-
mente intenção de reconciliação, ressaltando ser em benefício da prole (apenas uma filha
menor de 14 anos residia então com ambos, os demais maiores não mais habitavam com
os pais).
te incapaz, após invasão do apartamento dos pais da menina, manteve Eloá e amigos em
cárcere privado, entre eles a melhor amiga de Eloá. Seguiu-se uma longa semana de co-
bertura televisiva ao vivo. Libertada do cativeiro a melhor amiga de Eloá, ela foi colocada
pela polícia a poucos metros da porta do apartamento para conversar com Lindemberg. E,
num ato intempestivo, tanto em lá ser colocada uma vítima resgatada para negociar com o
sequestrador, como por ela própria, a menina sai correndo e retorna ao cativeiro para estar
com a amiga Eloá. Ao final, Eloá é morta e a amiga resgatada viva com alguns ferimentos.
Veja que o tempo influenciou toda a sorte de decisões nesse caso.
Seguindo em Elster (2007), ele traz exemplos de ações e inações que revelam a
acrasia. São elas: paixão; tentação; procrastinação; atitude de descumprimento ou não
observância; impaciência; adições; rigidez de comportamentos, etc.
Segundo Donald Davidson, citado por Elster (2007), não se trata de paradoxo
ou irracionalidade sincrônica. O problema da acrasia está em o agente alinhar suas ações
em relação ao seu julgamento.
Os dois cases acima descritos, o primeiro de M.S./ J.S. e o segundo de J.A.B./
F.L.B. não gravitam em torno de um conflito intrapsíquico, numa dúvida íntima entre
duas ou mais saídas possíveis que as impedem de tomar uma decisão. Há uma decisão
efetiva entre ao menos duas opções. Nada obstante, as situações de J.A.B e de M.S. dife-
renciam-se de forma sutil, vejamos:
Como é possível constatar, J.A.B. teme concretamente pela violência de F.L.B.,
diferentemente do caso preliminarmente transcrito de M.S. e J.S., em que M.S. perdoa J.S.
e veementemente acredita que, quando J.S. não bebe, o que ele já não faz há algum tempo,
ele efetivamente é um bom marido e um bom pai.
J.A.B., por sua vez, não vê F.L.B. como um bom pai, nem um bom marido, nem quan-
do ele não bebe, não há um perdão real, sabe e denuncia as suas violências, mas não tem forças
para decidir pela opção de se separar definitivamente de F.L.B., justificando-se na prole.
Em ambos os casos, as vítimas, ao ponderarem entre duas opções, decidem em
acrasia, mas M.S. apenas ao olhar externo, pois M.S. perdoa e acredita na mudança de J.S.,
portanto acha ser a sua a melhor decisão entre distintas possibilidades. Já J.A.B. tem a cons-
ciência de que sua decisão não é a melhor, mas, mesmo assim, decide por ficar com F.L.B.
No caso M.S. e J.S., veja que M.S. perdoa e acredita ter feito a melhor opção, não
há uma falta de sincronia entre suas ações e seu julgamento. Ela não está decidindo contra
o seu melhor juízo. M.S. não tem o alcance de que a condição de J.S. não beber não é
simplesmente racional, mas está decidida em relação ao perdão e a viabilidade da vida em
comum. E, por mais que se tragam dados reais a esse respeito, ela fecha-se rigidamente
em sua posição. Assim, a avaliação de ser a decisão de M.S. em seu prejuízo é externa, não
configurando acrasia.
O interessante é que J.A.B., como na música Saigon 256, pensa em deixar
F.L.B pelas violências, tem meios para isso, mas ela esquece-se de si mesma, de-
324
Célia Regina Zapparolli
cide contra si: “Tantas palavras, meias palavras, nosso apartamento, um pedaço
de Saigon... E quase sempre eu penso em te deixar. E é só você chegar, pra eu
esquecer de mim...”
Assim, o que deveria fazer o mediador, considerando que F.L.B. e J.A.B já estão
reconciliados, mesmo J.A.B. temendo as violências por F.L.B.? E sabendo o mediador
que, ao recebê-los em mediação, ambos já morando juntos, não haveria a curto prazo
qualquer espaço para mudanças, como deveria trabalhar para não acirrar o conflito e
não deixar que os mediandos exponham-se ou exponham a prole a riscos, até porque vi-
sivelmente J.A.B. tinha decidido contra o seu melhor juízo? Como proporcionar meios à
reflexão, às mudanças de primeira ordem, à contenção, até que haja espaços e meios para
mudanças de segunda ordem da teoria Geral dos Sistemas?
257 Pactos Provisórios: pactos globais ou fragmentários não definitivos, utilizados para experimentação pe-
los mediandos, com vistas à identificação, na concretude, de sua viabilidade antes da homologação do acordo
final. Também podem ser utilizados quando o mediador tem por hipótese contextos de decisões em acrasia.
258 Psicoterapia Breve: Intervenção psicoterapêutica focal, com objetivos delimitados e tempo pré-definido. Per-
mite que o psicoterapeuta lance mão de diferentes recursos, adaptados às necessidades de cada paciente, casal ou
grupo familiar. Prioriza as necessidades presentes, dando maior importância para a experiência, a relação do “aqui
-e-agora”, com vistas a um futuro possível. Tem origem na Psicanálise, na década de 1930, na discussão da aplicação
da teoria e técnica, em dissidência a Freud. Vide Referências Bibliográficas: Gillièron (1983); Fiorini (2004) e;
Santeiro (2005); vide também os estudos de Melanie Klein e Winnicott.
259 Para saber sobre o Projeto Íntegra, consultar: Zapparolli (2013). O projeto recebeu o PRÊMIO INNO-
VARE: <http://www.premioinnovare.com.br/praticas/projeto-integra-mediacao-em-crimes-de-genero-e-
familia-leis-113402006-e-90991995-1782/>.
325
Agir contra si - Acrasia - e a Mediação de Conflitos
326
Célia Regina Zapparolli
260 Transição Psicossocial e Luto: De acordo com Parkes (1996), o primeiro esforço do sujeito, diante de uma mu-
dança, é o de interpretá-la à luz dos modelos internos e das concepções até então existentes. É comum a negação da rea-
lidade, manifestada na incredulidade da nova situação. E, segundo Reginandrea Gomes Vicente (in curso de Mediação
Técnica CDHU 2008), a despeito do modelo de mundo ser imperfeito e não se encaixar mais na situação agora posta,
é o único modelo conhecido, o melhor que se acredita ter. Abandoná-lo significa a troca do certo pelo incerto. Assim,
é natural surgirem resistências às mudanças.Nessas circunstâncias, as certezas desaparecem. Em consequência, tem-se
manifestações e prejuízos de diversas ordens:
1) sentimentos de medo, insegurança, incompreensão, tristeza, anseio, culpa, raiva, hostilidade, solidão, de-
samparo, e alívio.
2) prejuízo nas habilidades cognitivas, tais como a capacidade de concentração, percepção, avaliação e tomada
de decisões;
3) prejuízo nas habilidades comportamentais, como o controle da agressividade, da tolerância, das emoções
de maneira geral;
4) prejuízos no físico, como os sintomas típicos de quadros de estresse.
Nessas ocasiões de mudança, há a inaptidão interna aos sujeitos para lidarem com o novo, com respostas emocionais, a
redução da escuta, além da desarticulação social. Contexto que leva à carência, à necessidade de suporte, para que haja
gradativamente a aceitação da nova realidade e, com ela, o sentido de uma nova identidade individual ou coletiva.
Para o sujeito ajustar-se às transições psicossociais é preciso um período de elaboração do luto, análogo ao processo
de passar pela morte de um ente querido. É necessária uma reinterpretação dos objetivos e apegos, para o sujeito
recompor-se e construir uma nova rede de significados, reformulando os seus modelos internos e externos.
Culturalmente, muitas das transições psicossociais são objeto de rituais de passagem, como aqueles da infância
para a maturidade, da solteirice ao casamento, justamente para superar situações de adoecimento pelo luto. Rituais
inexistentes de regra, nas separações, nos divórcios. A mediação pode servir de ritual de passagem, facilitando as
transições psicossociais e os processos de luto. Contudo, só servirá a essa finalidade caso objetive transformações
efetivas e crie meios para superação da acrasia.
327
Agir contra si - Acrasia - e a Mediação de Conflitos
328
Célia Regina Zapparolli
261 Rede: As redes são a somatória de todas as relações que cada sujeito estabelece e percebe como significativas.
Rede diz respeito ao nicho interrelacional e contribui para o reconhecimento do sujeito e sua autoimagem. Possibi-
lita a capacidade de adaptação e superação em situações de crise. Há diversas definições de rede, como a de Franco
(2009) e durante as transições psicossociais, as redes sociais e pessoais são reduzidas. Acontece uma sobrecarga na
pequena rede remanescente (ZAPPAROLLI, 2003; 2013; VICENTE; BIASOTO, 2003; FREITAS JUNIOR,
1994; SOUZA; RAMIRES, 2006). E essa descompensação, que pode ser decorrente de conflitos interpessoais e
intrapsíquicos, costuma deflagrar outros e novos conflitos intrapsíquicos e interpessoais, num círculo vicioso que
tende a gerar precipitações e equívocos nas decisões. A mediação que pensa os mediandos em seu contexto trabalha
-os considerando as redes existentes e a possibilidade de sua ampliação para suporte.
329
Agir contra si - Acrasia - e a Mediação de Conflitos
Referências
ELSTER, J. Agir Contre Coi – La Faiblesse de Volonté. Paris: Odile Jacob, 2007.
FREITAS JUNIOR, A. R. Legal norms, local norms and bargaining procedures in layoffs: the
case of Brazil. In: ENGELSTAD, F. et al. Layoffs and local justice. Oslo: Institutt for samfunns-
forsking, 1994. p. 160-173.
PARKES, C. M. Luto: estudos sobre a perda na vida adulta. São Paulo: Summus, 1996.
330
Mediação de conflitos
envolvendo entes públicos262
1 Introdução
Não obstante, segundo dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o Poder
Público seja parte em mais da metade dos processos judiciais em curso em nosso país 263,
pouco ainda se produziu, seja em nível normativo (vide a Resolução 125, de 2010, do
próprio CNJ), seja em nível doutrinário, seja em nível jurisprudencial, sobre as peculiari-
dades da resolução consensual de conflitos na esfera pública. E esta necessidade é evidente
por conta do regime jurídico diferenciado da Administração Pública em face dos parti-
culares, o qual lhe coloca limites muito claros e relevantes no momento de negociar para
resolver conflitos.
Ao analisar o capítulo que trata da “composição de conflitos no âmbito da Ad-
ministração Pública” na Lei 13.140/2015, a primeira observação que cabe fazer diz
respeito à falta de transparência que caracterizou a sua elaboração. Não houve, como
262 Parte deste artigo está publicada também na obra “Transformações e tendências do Direito Ad-
ministrativo”, coordenada pelo Professor Thiago Marrara, pela Editora Almedina, e na obra “Desenho
de sistemas e mecanismos consensuais de solução de conflitos na Justiça Federal”, coordenada pela Pro-
fessora Daniela Gabbay e pelo magistrado Bruno Takahashi, pela Editora Gazeta Jurídica. Ambos os
artigos foram escritos antes da aprovação da nova Lei de Mediação de Conflitos, promulgada em junho
de 2015. Esse artigo é uma versão revista tendo em conta o texto final da lei e foi publicado também
na obra coletiva coordenada por Humberto Dalla Bernardina de Pinho, Trícia Navarro e Durval Hale,
recém lançada pela Editora Atlas, versando sobre o “Marco legal da mediação – anotações, comentários
e interface com o novo Código de Processo Civil”.
263 Vale registrar também que o número de processos judiciais em curso no Brasil ultrapassa os 90 milhões.
331
Mediação de conflitos envolvendo entes públicos
ocorreu com os demais capítulos do projeto de lei que terminou sendo aprovado, dis-
cussão aberta que contasse com a participação de todos os atores essenciais e, ao mesmo
tempo, dos especialistas na matéria. Assim, embora as regras deste capítulo abranjam os
conflitos entre Administração Pública (nas três esferas federativas) e particulares, e não
apenas os conflitos internos da Administração Pública, o seu conteúdo somente foi dis-
cutido internamente, ainda assim sem uma participação ampla dos próprios membros
da Advocacia Pública Federal, sem nenhuma participação dos Estados-membros, dos
Municípios e do Distrito Federal, muito menos do Judiciário ou do Ministério Público,
seja em nível federal, seja em nível estadual.
O resultado desse processo defeituoso está claro no conteúdo do capítulo em
questão – seja pelas falhas técnicas, seja pelas omissões, seja por algumas inconstitu-
cionalidades.
Se, por um lado, existe alguma utilidade na introdução de um capítulo sobre
o tema na primeira lei que veio a disciplinar a mediação de conflitos em nosso país,
o capítulo em questão, como se verá, não dá conta das peculiaridades atinentes aos
conflitos que envolvem o Poder Público e peca principalmente por omissões muito
relevantes, notadamente no que diz respeito aos conflitos de natureza coletiva – o
que poderá vir a ser sanado, oxalá, mediante a edição de legislação específica sobre
o tema. De um modo geral, o texto traz poucos avanços em relação ao que já estava
previsto na Lei 9.469, de 1997, sobretudo pela excessiva remissão à necessidade de
regulamentação, já que não são estabelecidos quaisquer parâmetros ou diretrizes para
nortear a celebração de acordos ou transações nos conflitos envolvendo o Poder Pú-
blico, sob o aspecto dos critérios materiais.
Comentarei cada uma das seções, mas, preliminarmente, discorrerei sobre os
fundamentos já existentes, em nível constitucional e infraconstitucional, para a utilização
dos métodos consensuais nos conflitos envolvendo entes públicos.
dos da forma que apresente a melhor relação entre custo e benefício, ou seja, meno-
res custos, menos tempo, menos desgaste para a relação entre as partes e melhores
resultados para ambas; c) o princípio democrático, fundamento de nossa ordem
constitucional (art. 1º.), que decorre de o Estado não ser um fim em si mesmo e
reclama portanto que, quando o Poder Público se veja envolvido em conflitos com
particulares, ele se disponha, em primeiro lugar, a dialogar com estes para encon-
trar uma solução adequada para o problema.
Por tais razões, entendo – e defendi tal posicionamento em minha Tese
de Doutoramento 264 – que o Poder Público deve necessariamente disponibilizar
métodos de resolução consensual de conflitos para as situações em que estiver li-
tigando com particulares. Tal não significa, por evidente, que sejam os particula-
res obrigados a tomar parte nestes processos consensuais, podendo optar, se assim
entenderem mais apropriado, pelo processo contencioso tradicional. Da mesma
forma, nos conflitos que envolvem entes públicos entre si, a solução consensual
deve ser buscada sem cessar até que se alcance sucesso, por decorrência lógica do
princípio da eficiência.
264 A Tese em questão, defendida perante a UFSC, resultou na publicação de duas obras de minha
autoria pela Editora Fórum em 2012: “Meios consensuais de resolução de conflitos envolvendo entes
públicos: negociação, mediação e conciliação nas esferas administrativa e judicial” e “Mediação de con-
flitos coletivos: a aplicação dos meios consensuais à solução de controvérsias que envolvem políticas
públicas de concretização de direitos fundamentais”. Tive a honra de contar com o organizador dessa
obra coletiva, Prof. Humberto Dalla, na Banca Examinadora.
265 Isto se não se considerar o Código Tributário Nacional, de 1966, que já admitia a extinção do
crédito tributário por meio de transação – norma que, por seu turno, demanda detalhamento por lei
específica.
333
Mediação de conflitos envolvendo entes públicos
tes direitos fundamentais colidam entre si nos conflitos de natureza coletiva, devendo-
se buscar, pelo caminho do diálogo, a solução que seja capaz de compatibilizá-los de
forma ótima – resultado, por sinal, improvável de ser alcançado mediante a prolação de
uma decisão unilateral.
No mesmo ano de 1990, o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069)
também previu, em seu artigo 211, a possibilidade de celebração de ajuste de conduta.
Tal exemplo foi seguido pela legislação de defesa da concorrência (Lei 8.884, de
1994), cujo artigo 53 admitiu a celebração de compromisso de cessação de conduta para
suspender processo administrativo sancionador. Este modelo segue sendo adotado pela
nova lei que disciplina o assunto (Lei 12.519, de 2011), cujos artigos 9º., V, e 85 conti-
nuam a dispor sobre o compromisso de cessação de conduta lesiva à concorrência.
Em 1997, a Lei 6.385, de 1976, que disciplinou o mercado de capitais e criou
a Comissão de Valores Mobiliários para regulá-lo, foi alterada pela Lei 9.457, que
incluiu os parágrafos 5º. a 12 em seu artigo 11, que trata do processo administrativo
sancionador. Os novos parágrafos 5º. a 9º. tratam da possibilidade de suspensão do
processo punitivo mediante celebração de termo de compromisso de ajustar a con-
duta às prescrições legais. Alguns destes parágrafos tiveram sua redação alterada pelo
Decreto 3.995, de 31 de outubro, mas a tônica foi mantida. Tais dispositivos foram
regulamentados pelas Deliberações CVM 390, de 2001, e 486, de 2005. Na prática,
somente após a regulamentação, que criou o Comitê de Termo de Compromisso, é
que a norma passou efetivamente a ser levada a efeito, produzindo-se percentuais
altíssimos de cumprimento de acordos.
Em matéria ambiental, a Lei 9.605/1998 (art. 79-A), o Decreto 99.274/1990
(art. 42) e o Decreto 6.514/2008 (arts. 139 a 148) também admitem a celebração de
compromisso de ajuste de conduta, reforçando e detalhando o permissivo já contido na
Lei da Ação Civil Pública.
O Estatuto do Idoso (Lei 10.741, de 2003) também contém, em seu artigo 74, X,
previsão de possibilidade de celebração de ajuste de conduta.
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, igualmente, admite proce-
dimento desta natureza no exercício das atividades de fiscalização das instituições de
ensino superior (Lei 9.394/1996, art. 46, § 1º.; Decreto 5.773/2006, arts. 47 a 50).
No mesmo compasso, a Consolidação das Leis do Trabalho foi alterada em 2001,
com acréscimo do artigo 627-A e alteração do artigo 876, para se prever a possibi-
lidade de celebração de termo de compromisso ou de ajuste de conduta em matéria
de saúde e segurança do trabalho. Tais regras foram regulamentadas pelo Decreto
4.552/2002 (art. 28).
A legislação de quase todas as agências reguladoras contém norma semelhante:
a) ANEEL – artigo 3º., V, da Lei 9.427, de 1996, e Resolução ANEEL 333, de 2008; b)
ANATEL – artigo 19, XVII, da Lei 9.472, de 1996; c) ANP – artigo 20 da Lei 9.478,
de 1997 e Portaria ANP 69/2011, art. 54; d) ANTT – Resolução 442/2004; e) AN-
TAQ – Resolução 987/2008; f ) ANS – Lei 9.656, de 1998, art. 29, § 1º. e Lei 9.961,
de 2000, art. 4º., XXXIX; g) PREVIC – Lei 12.154, de 2009, art. 2º., VIII; Instruções
334
Luciane Moessa de Souza
266 Uma observação à parte merece ser feita ao cabo desta descrição de tantas normas que admitem a resolução
consensual de conflitos em temas sensíveis: nem sempre a previsão normativa tem sido acompanhada da devida im-
plementação de programas pelos entes públicos competentes. A pesquisa de campo que realizei no Brasil revela que
são ótimos programas, que já produziram excelentes resultados, os do CADE, o da CVM e o da ANEEL. Muitas
destas normas, infelizmente, ainda não “saíram do papel”.
267 Eu trato do assunto na obra “Meios consensuais...”, já referida (no item “elaboração negociada de regula-
mentos administrativos”), e também Sérgio Varella Bruna, na obra “Agências reguladoras: poder normativo,
consulta pública, revisão judicial”, publicada pela Editora Revista dos Tribunais, explora bastante bem o tema.
335
Mediação de conflitos envolvendo entes públicos
artigo 8º. Na esfera federal, a legislação básica sobre transações é a Lei 9.469, de 1997,
que admite transação sem diferenciar ou restringir a matéria, para os litígios que en-
volvem a União ou outro ente federal. Esta norma está regulamentada por diversas
Portarias da Advocacia-Geral da União e seus órgãos vinculados. Da mesma forma,
vale mencionar que o Código Tributário Nacional admite a transação como forma de
extinção do crédito tributário (artigo 156, III).
336
Luciane Moessa de Souza
337
Mediação de conflitos envolvendo entes públicos
268 Existem várias diferenças apontadas pela doutrina brasileira entre os dois métodos, sendo uma das
mais comuns a de que o mediador não pode sugerir soluções para o conflito, ao passo que o conciliador
pode. Esta distinção já caiu claramente por terra nos EUA, eis que um estilo mais ativo de mediação
(conhecido como “mediação avaliativa” e que é muito utilizado) admite claramente que o mediador
desempenhe um papel de condutor do acordo, sendo que, na prática, nem sequer se registra (aqui ou
nos EUA) no acordo de onde partiram as propostas de solução – pois isto é irrelevante. A distinção
mais relevante é a que diz respeito à abordagem, mais rasa ou mais aprofundada, do conflito e suas ra-
zões. Enquanto na conciliação esta abordagem é mais superficial, na mediação deve ser mais profunda,
valorizando-se seu papel pedagógico, pois esta deve ser usada quando as partes têm um relacionamento
entre si que querem preservar (exemplo: sócios de uma empresa, Fisco e contribuinte, indústria e órgão
ambiental), ao passo que aquela (a conciliação) serve para os conflitos em que não há relacionamento
entre elas (exemplo: acidente de trânsito).
338
Luciane Moessa de Souza
339
Mediação de conflitos envolvendo entes públicos
341
Mediação de conflitos envolvendo entes públicos
do pode ser recomendável para dar mais segurança jurídica a todas as partes envolvidas.
Notadamente quando se trata de conflitos envolvendo o Poder Público, em razão da
alternância periódica no comando dos poderes políticos (os agentes políticos exercem
mandato limitado no tempo), por decorrência do sistema democrático, e subsequente
alteração na titularidade de cargos comissionados, é fundamental garantir eficácia exe-
cutiva ao acordo celebrado, coroando assim todos os esforços realizados para a obten-
ção do consenso.
atuação efetiva da Consultoria Jurídica, e não no âmbito de um órgão específico que aten-
da a toda a Administração.
As competências de resolução de conflitos se desdobram em três:
343
Mediação de conflitos envolvendo entes públicos
fundamentação fática e jurídica dos acordos celebrados, identificando as normas aplicáveis ao caso e os
fatos relevantes que levaram à pactuação de cada transação.”
Ainda, cabe ressaltar, mais uma vez, que é impossível viabilizar a celebração
de acordos no âmbito público enquanto não forem previstos procedimentos claros
(sobretudo quem autoriza, como são identificados os casos semelhantes, etc) e cri-
térios para celebração de acordos. Estes procedimentos e critérios podem, como
estipula o projeto, ser estabelecidos por atos normativos editados pelos órgãos de
Advocacia Pública competentes. Todavia, a lei já poderia prever desde logo os cri-
térios gerais para a celebração de acordos (atos normativos aplicáveis ao caso, fatos
comprovados durante o procedimento, jurisprudência administrativa e judicial so-
bre o tema, pareceres da própria Advocacia Pública, custos e duração da instrução
e do processo judicial, interesses legítimos dos envolvidos no conflito), que pode-
riam ser detalhados, para cada matéria, por esses atos normativos da Advocacia Pú-
blica, de modo a fornecerem parâmetros para os advogados públicos que atuarem
em cada conflito concreto. O ideal, assim, seria que houvesse um dispositivo com
a seguinte redação:
Os órgãos de Advocacia Pública de cada ente público, da Administração direta ou indireta, deverão
estipular, mediante atos normativos próprios, procedimentos e critérios para a celebração de acordos
envolvendo o ente público.
Parágrafo primeiro. Estes critérios deverão incluir:
a) atos normativos aplicáveis ao caso;
b) fatos comprovados durante o procedimento de negociação;
c) jurisprudência administrativa e judicial sobre o tema;
d) pareceres da própria Advocacia Pública;
e) custos e duração da instrução e do processo judicial;
f ) interesses legítimos dos envolvidos no conflito, positivados ou não em atos normativos.
Parágrafo segundo. Além de atos normativos gerais sobre a celebração de transações, poderão ser edita-
dos atos normativos específicos, para os casos de matérias em que seja adequado estipular uma faixa de
negociação possível, estipulando parâmetros e procedimentos para autorização de acordos em determi-
nados conflitos repetitivos.
344
Luciane Moessa de Souza
necessária tal previsão. Se o que o legislador pretendeu foi excluir de tal subseção
a mediação que vier a ser desenvolvida no seio das câmaras administrativas, após
a sua criação, temos aí uma perigosa exceção que pode vir a comprometer alguns
princípios basilares da mediação. Como já deve ter ficado claro no início desse
artigo, as exceções somente se justificam em razão do regime jurídico próprio da
Administração Pública. Fora disso, corre-se o risco de entrar no perigoso terreno da
falta de técnica (comprometendo os bons resultados da mediação) ou, pior ainda,
da arbitrariedade.
Quanto ao artigo 34, que trata da suspensão da prescrição, a regra pouco acres-
centa em face do que já previam os artigos 2º., IV, e 2º.-A, V, da Lei 9.873, exceto pelo fato
de que esta última estabelecia a interrupção, ao invés da suspensão.
Interessante a previsão do parágrafo único do artigo 33, por seu turno, que pre-
tende atribuir papel de mediador à Advocacia Pública, no que se refere a “conflitos re-
lacionados à prestação de serviços públicos.” Certamente poderão ser suscitadas sérias
dúvidas quanto à imparcialidade, já que os entes públicos defendidos pela Advocacia Pú-
blica serão partes em tais conflitos. Faria muito mais sentido falar em “procedimentos de
negociação”, já que a imparcialidade aqui é inviável.
O que realmente faltou nesta Seção com as regras gerais sobre mediação de con-
flitos envolvendo entes públicos foi uma regra prevendo a necessidade de fundamentação
dos acordos, algo com o seguinte conteúdo:
Nos conflitos envolvendo entes públicos, o acordo deverá sempre ser fundamentado, com a demonstra-
ção dos fatos específicos, considerações técnicas e normas jurídicas que levaram à sua celebração.
Nos conflitos coletivos envolvendo políticas públicas, judicializados ou não, deverá ser garantida a
participação na mediação de todos os entes públicos (do Poder Executivo ou Legislativo) que tenham
competências relativas à matéria envolvida no conflito, dos entes privados diretamente afetados, e de
todos os grupos sociais também diretamente afetados pelo conflito, bem assim do Ministério Público, e,
quando houver interesse de hipossuficientes, também da Defensoria Pública. Quando houver uma ou
mais entidades do terceiro setor que sejam representativas e atuem na matéria afeta ao conflito, estas
também deverão ser convidadas.
345
Mediação de conflitos envolvendo entes públicos
ção por adesão” (artigo 35); b) conflitos administrativos envolvendo entes federais
(artigo 36) ou entre entes federais e entes de outra esfera federativa (art. 37); c)
conflitos em matéria tributária (art. 38); d) conflitos judicializados entre entes pú-
blicos federais (artigo 39).
Quanto à primeira modalidade, trata-se de categoria que abrange os cha-
mados “conflitos repetitivos”, que envolvem matéria de direito e em que, a partir da
pacificação da jurisprudência em nível de tribunais superiores, são traçadas condi-
ções para a celebração de acordos, bastando ao particular que comprove estar en-
quadrado na situação fática correspondente. Trata-se de caminho que, sem dúvida,
prestigia o princípio da isonomia e facilita a celebração de transações em massa,
mas, por outro lado, perde a oportunidade de melhorar o diálogo entre Poder Pú-
blico e cidadão e de propiciar a consideração de situações peculiares eventualmente
não pensadas pelo ato normativo que estipular as condições dos acordos.
No que tange à segunda categoria de conflitos, estipula-se a obrigatorie-
dade de utilização do caminho consensual, no caso mediante procedimento de
composição extrajudicial do conflito conduzido pela Advocacia-Geral da União,
observados os regulamentos a serem emitidos pelo Advogado-Geral da União, que
também solucionará a controvérsia mediante decisão unilateral caso não seja al-
cançado o acordo. Esse artigo simplesmente alça a nível legislativo disposições já
em pleno vigor, desde 2007, no âmbito da Advocacia-Geral da União, com base
simplesmente em normas de nível regulamentar.
Já vem sendo praticado no âmbito da Câmara de Conciliação e Arbitragem
da Advocacia-Geral da União, criada por ato regulamentar do Advogado-Geral da
União em fevereiro de 2007.
Se, por um lado, as normas ali previstas são bastante adequadas aos confli-
tos de natureza individual, como os que concernem meramente a questões tributá-
rias, como aqueles referidos pelo artigo 38, ou outras questões orçamentárias, é pre-
ciso registrar que, no âmbito da referida Câmara de Conciliação, muitos equívocos
já foram cometidos quando se pretende resolver conflitos coletivos, que afetam
diretamente setores da comunidade ou outros atores do setor privado (inclusive
grandes empresas), sem que estes participem da negociação.
Já houve inclusive questionamento da 6ª. Câmara do Ministério Público
Federal, com base na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho,
acerca da obrigação de se ouvir as comunidades tradicionais (no caso brasileiro,
principalmente, mas não apenas, comunidades indígenas ou quilombolas) em pro-
cedimentos de conciliação nos quais seus direitos estão sendo discutidos. Este ques-
tionamento resultou inclusive numa Portaria do Consultor-Geral da União (no.
3, de dezembro de 2009), determinando a realização de audiências públicas com
tais comunidades em tais procedimentos, mas a boa técnica, como visto acima, re-
comenda que, em caso de conflito coletivo, todos os atores afetados pelo conflito
participem da negociação, ainda que por meio de representantes – e isto não se
restringe aos conflitos que envolvam comunidades tradicionais.
346
Luciane Moessa de Souza
Tal procedimento não tem sido seguido pelo órgão em questão 270 e, de for-
ma reflexa, vê-se que a redação proposta para o projeto de lei ignora por completo a
questão dos conflitos coletivos, dando margem a que estes possam vir a ser tratados
como conflitos internos ao âmbito da Administração Pública – e está bem longe
de ser o caso.
A “inovação” nesse artigo 36 fica por conta dos parágrafos 2º. a 4º., que
preveem: a) a participação do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão
quando houver o reconhecimento de créditos de um ente federal em face de outro;
b) a responsabilidade disciplinar de servidor público que tiver dado causa à dívida;
c) a necessidade de anuência do juiz da causa, em caso de ação de improbidade
(como se não fosse suficiente prever a necessidade de homologação – pretende-se
transformar o juiz em parte na negociação) ou do Ministro Relator, quando a ma-
téria estiver em curso no Tribunal de Contas da União. Vale notar que todos estes
parágrafos poderiam muito bem ser objeto de norma regulamentar, pois trazem
detalhes que nada agregam ao conteúdo que seria de se esperar desse capítulo.
O artigo 37 causa grande estranheza, pois pretende que as demais entidades fe-
deradas submetam seus conflitos com ente federal à Advocacia-Geral da União, que tam-
bém é ente federal. A par do desrespeito ao princípio constitucional federativo, a norma é
de nenhuma utilidade, pois é pouco provável que Estados, Distrito Federal e Municípios
dela façam uso. Teria caminhado muito melhor o legislador se previsse a criação de um
órgão com tal incumbência no qual houvesse também a participação dos entes federados,
por suas Procuradorias dos Estados e dos Municípios. Falha técnica, jurídica e adminis-
trativa ao mesmo tempo. Enquanto esta entidade mista não existir, o que se tem nestes
conflitos é uma Câmara de Negociação federal, sendo possível que cada Estado, o Distrito
Federal ou o Município também criem câmaras equivalentes, fazendo surgir problemas
de “competência” quando estiverem envolvidos no conflito entes públicos estaduais, dis-
tritais e municipais (característica comum aos conflitos em questões ambientais e/ou de
moradia, por exemplo). Não obstante a redação preveja a participação facultativa das uni-
dades federadas, não é este o modelo adequado em um Estado federativo, como o nosso.
O artigo 38 exclui os conflitos de natureza tributária da competência das câma-
ras administrativas previstas no artigo 32, no que se refere à celebração de acordos em
conflitos envolvendo particulares e à celebração de termos de ajustamento de conduta.
Os conflitos em matéria tributária, normalmente, por óbvio, envolvem particulares (os
contribuintes), mas estes ficaram de foram da nova lei. Supõe-se que o assunto será tra-
tado em legislação própria, já que em 2009 a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional
elaborou projeto de lei sobre transação tributária, que foi apresentado pela Presidência
270 Eu atuei na Câmara de Conciliação e Arbitragem da AGU de outubro de 2010 a agosto de 2011 e realizei
as primeiras (e, segundo tive notícia, únicas) audiências públicas envolvendo comunidades quilombolas. Em
outros conflitos onde atuei como Conciliadora, como aquele envolvendo cerca de 600 famílias que vivem em
imóvel de titularidade da União na vizinhança do Instituto de Pesquisas Jardim Botânico (que é uma autarquia
federal), cheguei a ser repreendida pelos superiores por seguir a metodologia apropriada aos conflitos coletivos e
dialogar com as associações de moradores e de defesa ambiental que atuam na área.
347
Mediação de conflitos envolvendo entes públicos
“No caso de conflitos idênticos (judicializados ou não), todos aqueles que estiverem envolvidos em
conflitos com o Poder Público terão direito a celebrar acordos idênticos aos já celebrados; deverão ser
estipuladas normas que prevejam objetivamente os critérios para celebração de acordos em conflitos de
idêntica natureza.”
7 Conclusões
Não obstante seja necessário reconhecer a peculiaridade dos conflitos envolven-
do o Poder Público, ainda assim o caminho da consensualidade se revela, em muitos casos
– e aí eu saliento a situação daqueles conflitos que envolvem políticas públicas – a solução
mais adequada para o problema, para não dizer a única possível, notadamente em situa-
ções em que os impasses criados geram autênticas paralisações do aparato estatal.
Os métodos consensuais podem ser utilizados seja para prevenir conflitos, seja
para resolvê-los, tudo a depender do momento em que se está na escalada do problema.
Não podem, contudo, ser manejados sem consideração com os princípios constitucionais
mais caros ao funcionamento de um Estado Democrático de Direito.
A estruturação de um quadro normativo bem elaborado pode contribuir em
muito para a expansão, com qualidade e segurança, da utilização de tais métodos em nos-
so país. Entretanto, como procurei deixar claro ao longo deste trabalho, a redação atual do
capítulo que trata dos conflitos envolvendo o Poder Público na nova lei sobre mediação
de conflitos está muito aquém das necessidades do país, contendo vícios e omissões graves
que, indubitavelmente, demandam aprimoramento.
349
350
PARTE III
Direito Comparado
351
Mediação de conflitos envolvendo entes públicos
352
Mediação: estudo comparativo
1 Introdução
353
Mediação: estudo comparativo
271 Na história, muitos são os exemplos de mediação bem sucedida. Apenas para ilustrar, a mediação da In-
glaterra entre Brasil e Portugal para reconhecimento da independência em 1825, quando a Inglaterra mediou
a disputa entre Brasil e Argentina durante a guerra da Cisplatina, o Papa Leão XIII em 1885 na disputa entre
Alemanha e Espanha pelas Ilhas Carolinas, e de Brasil, Uruguai, Peru, Argentina, EUA e Chile de 1935 a
1938 para pôr fim à guerra do Chaco entre Bolívia e Paraguai. Ou seja, é prática comum e de longa data, nas
relações internacionais, e regulamentadas através de Convenções Internacionais.
354
Déborah Lídia Lobo Muniz
272 Tem-se, por exemplo, os serviços de Mediação Familiar na Irlanda, os serviços de mediação comercial na
Itália, Espanha, Reino Unido.
355
Mediação: estudo comparativo
educação para a paz, apresentando uma nova visão do que é o conflito, de suas
consequências, da necessidade de respeito aos outros indivíduos e a si mesmo, da
possibilidade de uma solução para os conflitos surgidos de forma a produzir não
apenas um resultado, mas também uma compreensão do que está envolvido.
O estudo destes três modelos poderá contribuir para o aperfeiçoamento do
projeto de lei 4827/1998 sobre mediação, através do levantamento das semelhanças
e diferenças em cada um dos modelos, com atenção especial aos pontos em comum,
pois já empregados com sucesso.
a primeira pode ser percebida pelo seu modo de ação e a segunda pela origem dos mediadores que
são instituídos pelo Estado e pelas empresas e, por outro lado, temos aqueles que são propostos por
associações livres e por cidadãos a outros cidadãos. Temos de um lado a institucional, que vem de
um poder estabelecido e de outro a comunitária ou cidadã (SIX, 2001, p. 11).
357
Mediação: estudo comparativo
com o crescimento das cidades, houve a substituição desses mediadores naturais pelos
das associações de mediadores da cidade, que desenvolvem seus trabalhos com o objetivo
de facilitar as relações entre os membros da comunidade. Esse é o tipo de mediação tida
como cidadã, origina-se nos grupos sociais e baseia-se na autonomia, na participação de
mediadores ligados à sociedade, conhecedores de suas questões e problemáticas. Nela,
cidadãos intervêm por cidadãos, facilitando as relações.
A institucionalização da mediação operou-se pela Lei nº 93-2/93, de
4.1.1993, e pela nº 95-125/95, de 8.2.1995. No âmbito cível, está regulada pela Lei
nº 95-125/95, em seus artigos 21 a 26. Essa lei passou por atualização através da Lei
nº 2002-1138, de 9.9.2002.
O artigo 21 da Lei nº 95-125/95 estabelece a possibilidade de mediação e
conciliação em relação aos direitos patrimoniais e ao direito de família, com uma exceção:
as questões de divórcio e separação de corpos.
A designação da negociação pode se dar após a aceitação das partes, cabendo ao
juízo determinar o terceiro interventor; fixar o valor necessário para prover a remuneração
do mediador, além de designar qual parte ou se ambas devem contribuir para tal provisão,
uma vez que a atividade é onerosa e os litigantes devem proceder ao pagamento do valor
determinado no prazo pelo juízo estabelecido. Caso as partes não o façam, a designação
do mediador caducará. Nesse mesmo artigo 21, 2º, a lei prevê que o peso dos resultados da
mediação será o mesmo de uma sentença provisória dada pelo juízo en référé.273
O artigo 22 diz que as partes podem determinar livremente a proporção que
caberá a cada uma nas despesas da mediação; porém, se as partes não chegarem a um
acordo, as despesas são repartidas de forma igual, exceto nos casos em que o juízo
considere impossível para uma das partes fazer tal pagamento. Nesse caso, pode ele prover
273 Loi 95-125 du 8 fevriér 1995; Loi relative à l’organisation des juridictions et à la procédure civile,
pénale et administrative version consolidée au 27 septembre 2003, TITRE II: Dispositions de procédure
civile. CHAPITRE Ier: La conciliation et la médiation judiciaires, Article 21, Modifié par Loi nº2002-
1138 du 9 septembre 2002, art. 8 ( JORF 10 septembre 2002 Le juge peut, après avoir obtenu l’accord
des parties, désigner une tierce personne remplissant les conditions fixées par décret en Conseil d’Etat
pour procéder: 1º Soit aux tentatives préalables de conciliation prescrites par la loi, sauf en matière de
divorce et de séparation de corps; 2º Soit à une médiation, en tout état de la procédure et y compris en
référé, pour tenter de parvenir à un accord entre les parties. Le juge fixe le montant de la provision à valoir
sur la rémunération du médiateur et désigne la ou les parties qui consigneront la provision dans le délai
qu’il détermine. La désignation du médiateur est caduque à défaut de consignation dans le délai et selon
les modalités impartis. L’instance est alors poursuivie. Si le juge n’a pas recueilli l’accord des parties pour
procéder aux tentatives de conciliation prévues au 1º, il peut leur enjoindre de rencontrer une personne
qu’il désigne à cet effet et remplissant les conditions fixées au premier alinéa. Celle-ci informe les parties
sur l’objet et le déroulement de la mesure de conciliation. Article 22, Les parties déterminent librement
la répartition entre elles de la charge des frais de la médiation. A défaut d’accord, ces frais sont répartis à
parts égales, à moins que le juge n’estime qu’une telle répartition est inéquitable au regard de la situation
économique des parties. Lorsque l’aide juridictionnelle a été accordée à l’une des parties, la répartition de la
charge des frais de la médiation est établie selon les règles prévues à l’alinéa précédent. Les frais incombant
à la partie bénéficiaire de l’aide juridictionnelle sont à la charge de l’Etat, sous réserve des dispositions des
articles 45 et 46 de la loi nº 91-647 du 10 juillet 1991 relative à l’aide juridique.
358
Déborah Lídia Lobo Muniz
- prevê a possibilidade de a mediação ser realizada em parte ou sobre todo o litígio, sem tolher o
juízo de que, em acreditando necessário, tome as medidas cabíveis;
- estabelece prazo para a conclusão da mediação;
- dispõe que a mediação pode ser confiada a mediador ad hoc, ou a associação, que, neste caso,
deverá apresentar, quando da designação, o nome do mediador que realizará a tarefa;
- estabelece requisitos a serem preenchidos pelos mediadores particulares, como não ter sido
objeto de condenação por incapacidade, ter reputação ilibada, não ter sido demitido por sanção
administrativa, não ter sido punido com cassação de licença de exercício profissional, exercer ou
ter exercido atividade profissional que o capacite a apreciar o litígio que lhe é dado mediar, ter uma
formação em mediação que possa ser comprovada pela experiência, e demonstrar capacidade de
independência e imparcialidade para o exercício da mediação.
359
Mediação: estudo comparativo
O Procurador da República pode, enfim, previamente à sua decisão sobre a ação pública e com
o acordo das partes, decidir recorrer a uma mediação quando entender que uma tal medida é
suscetível de assegurar a reparação do dano causado à vítima, de pôr fim à perturbação resultante
da infração e de contribuir para a reinserção do autor da infração.
360
Déborah Lídia Lobo Muniz
no Código Penal Francês são as que seguem: serem pessoas físicas, que não exerçam
atividades judiciais a qualquer título, não ter sofrido condenação e apresentar garantias
de competência, independência e imparcialidade.
A mediação penal delegada, na qual se decide o conflito através de uma
terceira pessoa ou associação, realiza-se por decisão do Ministério Público, antes da
propositura da ação. Ao fazê-lo, designa-se um mediador particular ou entidade para
a execução. A esses escolhidos caberá a incumbência de convocar as partes a fim de
expor os trâmites e objetivos do procedimento e recolher o seu consentimento para
a realização dos trabalhos. Essa tarefa deverá se desenvolver num prazo de dois a seis
meses, a partir da data da infração. Esses prazos têm por objetivo, segundo António
Farinha (2004, p. 17), “conseguir garantir não apenas a celeridade, mas a eficácia da
intervenção”, onde o indivíduo de imediato enfrenta as consequências de seus atos
e, ao estar ali de livre vontade, participa da determinação do como irá reparar o ato
danoso praticado. É esse participar, pensar, que leva à responsabilidade e à eficácia da
reparação que for estipulada.
Findo o processo, o mediador comunicará o resultado ao Ministério Público,
sem, contudo, quebrar seu compromisso de confidencialidade. Em havendo sucesso, os
danos serão ressarcidos através de reparação financeira, material ou simbólica, de acordo
com o dano produzido, e sua execução dar-se-á de duas formas: imediata ou continuada.
Em existindo acordo ou insucesso, o Ministério Público decidirá pelo arquivamento,
suspensão ou exercício da ação penal.
Ainda na área penal, relativamente a infrações praticadas por menores, a
Lei nº 93-2, de 4.1.1993, facultou não apenas ao Ministério Público, mas também
ao juiz que proponha a esse menor formas alternativas de reparação tanto à vítima
quanto à coletividade. Essas formas podem consistir no auxílio à vítima e à
sociedade, como é o caso da prestação de serviços em creches, hospitais, etc. Com
esse tipo de intervenção, pretende-se promover a responsabilização não apenas
do menor, mas de seus pais ou guardiões e valorizar os sentimentos da vítima
também, propiciando uma relação em que todos dêem seu consentimento e se
comprometam com seu cumprimento. Tais medidas são passíveis de serem tomadas
em qualquer fase do processo, com fins educativos e pedagógicos, resultantes do
confronto vítima-infrator e do propósito de promover a responsabilização efetiva
pelo ato praticado.
A aplicação desse tipo de medida não exige a mediação, mas a mediação leva a
uma reflexão e ao estabelecimento de vias de comunicação importantes nesses casos. O
que ocorre é que geralmente isto as precede, pois, para sua aplicação, o consentimento do
infrator, dos pais ou responsáveis e da vítima é necessário.
A partir de 1990, com a tripla finalidade de administrar com mais eficiência
e celeridade as questões de delinquência e ainda atuar na prestação de serviços de
acesso ao direito e de ajuda às vítimas, foram criadas as maisons de Justice et du Droit.
Nessas casas, desenvolve-se um processo — a mediação — destinado a aproximar as
partes em conflito nos casos de litígios da vida diária. A sua instalação se deu como
361
Mediação: estudo comparativo
mediadores, sua formação, sua prestação de serviço aos julgados de paz de forma eventual
e não-vinculada, o impedimento, em caso de operador do direito, de exercer naquele
julgado suas funções profissionais; prevê como é realizada a seleção, a remuneração, as
listas, o regime e as funções do mediador.
Os artigos 49 a 54 tratam detalhadamente da pré-mediação e da mediação,
no que diz respeito a objetivos, marcação das audiências, confidencialidade e falta de
comparecimento às audiências previstas.
Fora do âmbito dos Julgados de Paz, há também a Câmara de Mediação Familiar,
Câmara de Mediação de Consumo e a Câmara de Mediação de Acidentes de Trânsito, as
Câmaras de Seguros e Imobiliários.
durante as audiências que tenha realizado e esclarece que não se lhes pode atribuir
responsabilidade cível ou penal, porque são as partes que tomam a decisão final e
por esta são responsáveis.
Impõe-se, no artigo 11, aos advogados que atendam casos que possam ser
solucionados por meios alternativos o dever de informar a seus clientes dessa possibilidade.
Nos artigos 13 e 14, esclarece-se quanto aos deveres do mediador de
imparcialidade, sigilo e não-interferência, e reforça-se mais enfaticamente a questão
do segredo profissional a que está submetido o mediador.
A constituição e organização de entidades para fins de mediação necessitam
da autorização prévia do Ministério da Justiça, à exceção dos casos em que haja
previsão expressa em lei própria. Para ilustrar, cita-se a legislação que trata das questões
trabalhistas. Essa autorização depende da verificação da existência de regulamento,
recursos humanos e de infra-estrutura adequados e se estão presentes todos os
elementos necessários para o funcionamento de um centro destinado a tais funções.
Mesmo com a autorização, o Ministério da Justiça tem poder de controlar e fiscalizar
seu funcionamento, podendo, inclusive, revogar as autorizações para funcionamento,
desde que baseado em decisão fundamentada e realizadas as diligências e o processo
devido para tal cassação.
366
Déborah Lídia Lobo Muniz
que as decisões de mediação tenham o mesmo valor que uma sentença provisória
prolatada pelo juízo, ou seja, apenas após a homologação é que terá força de coisa
julgada material.
4. No mesmo artigo acima, se determina que as partes procedam ao depósito
dos valores previstos para a mediação, e, caso não o façam no prazo estipulado, a
nomeação da mediação caducará.
5. A legislação francesa ainda prevê que, ao arbítrio do juízo, em se
percebendo a hipossuficiência das partes ou de uma delas, deverão ser aplicados os
artigos 45 e 46 da Lei nº 91-647 de 10.7.1991, que trata da assistência judiciária
naquele país.
6. Também no artigo 1071 do Código Civil Francês há a possibilidade de,
em casos de família, o juízo “ordenar” a busca de mediador familiar.
7. Prevê-se a impossibilidade de aplicação de sanção penal ou cível ao
mediador, uma vez que responsabilidade pelo acordo é das partes, o que encontra
previsão nas legislações da Costa Rica e de Portugal. No projeto brasileiro, se prevê,
no artigo 14, a possibilidade de se atingir o profissional penalmente.
8. A Lei nº 78/2001 de Portugal não prevê a aplicação na esfera penal, porém
prevê a possibilidade de julgar ações de indenizações para casos pontuais, como o
caso de lesões corporais simples (leves), ofensa à integridade física por negligência,
furto e dano simples, injúria e difamação desde que não se tenha proposto ação na
esfera criminal; frisa-se que, ao entrar com tal ação, ocorre a preclusão do direito
de ação na área penal.
9. A legislação portuguesa fixa competências de atuação dos Julgados de
Paz em razão do objeto (artigo 6º), em razão do valor (artigo 8º), em razão do
território (artigo 10), da situação dos bens (artigo 11) e, ainda, em função do local
de cumprimento da obrigação (artigo 12).
10. A legislação portuguesa estipula, ainda, regras para as pessoas coletivas
(artigo 14) e a possibilidade de utilização da informática para quaisquer atos ou
peças processuais (artigo 18).
11. Na lei da Costa Rica, há previsão de que, se alcançado o acordo
parcialmente, este poderá ser homologado e se dará continuidade ao processo
quanto aos pontos em que não houve acordo (artigo 8º).
12. Na mesma lei acima citada, está previsto que os acordos judiciais e
extrajudiciais homologados farão coisa julgada material, no artigo 9º.
13. Aos advogados cabe a obrigatoriedade de informar seus clientes dessa
opção e de instruí-los, conforme artigo 11 da Lei nº 7.727, da Costa Rica.
14. A lei acima citada também prevê, em sua abertura, que o Estado é
obrigado a proporcionar e o cidadão tem o direito a uma educação para a paz.
367
Mediação: estudo comparativo
368
Déborah Lídia Lobo Muniz
transposto para se chegar à justiça, mesmo quando não se tem interesse em usar
essa alternativa. Além disso, existirá mais um ônus para quem busca a justiça, pois a
mediação gera custas, que devem ser suportadas pelas partes.
A determinação da utilização compulsória do advogado como mediador,
presente no projeto original, nos remetia à falta de formação destes profissionais,
que, na maioria dos cursos de Direito, são treinados apenas para o contencioso.
Apenas na virada do milênio é que a disciplina Mediação e Arbitragem começa
a fazer parte dos currículos dos cursos de graduação e, na melhor das hipóteses,
apenas a médio e longo prazo se conhecerá mais profundamente o procedimento da
mediação. Como desempenhar tão complexa função que, em nada, se confunde com
a atividade dos profissionais de Direito, uma vez que, na academia, sua formação é
voltada para a adversariedade?
Felizmente, o texto acabou sendo alterado para possibilitar que profissionais
especializados e com formação para tal possam realizar o processo de mediação. Jean
François Six (2001, p. 62-63) nos lembra que o mediador, ao exercer sua função:
[...] é estritamente independente do advogado; ele não tem um trabalho de jurista, nem o de
desbastar o terreno para o advogado e o juiz. Que um mediador, que não tem poder, receba conselho
de um advogado ou de um especialista, sim; que ele saiba que não é sua atribuição realizar uma
regulamentação legal, sim, é claro e evidente. Mas é necessário evitar toda confusão, é preciso agir
com precisão, de modo que aqueles que se engajam em uma mediação não possam, em momento
algum, pensar que o mediador e o advogado, ou o mediador e o juiz, sejam parceiros em conivência,
parceiros que encontrariam a vítima. É estritamente necessário evitar a fluidez que daria a sensação
de se estar ao léu.
369
Mediação: estudo comparativo
seus cidadãos.
Segundo o relatório de 2003 do Ministério da Justiça, na França, foram
realizadas 470.391 intervenções das maisons du Justice et du Droit, sendo 379.776
acessos ao direito, onde foram atendidos 8.325 casos por mediadores. Na esfera
penal, foram atendidos 49.007 casos, aplicadas 41.123 medidas alternativas, 4.938
aplicações de penas e 2.946 medidas de acompanhamento; na esfera cível foram
atendidos 10.994 casos, sendo conciliados 8.373 casos, mediados 2.621 e tratados
diretamente nas cortes 3.819 casos.
Existem, nos dias atuais, 116 maisons du Justice et du Droit na França, que
se desenvolveram sobretudo após 1998. Elas asseguram uma presença judicial mais
próxima, concorrem para a diminuição e prevenção dos índices de violência, bem
como promovem o auxílio às vítimas e seu acesso ao direito.
No Brasil, os Tribunais de Justiça dos Estados têm experimentado essa forma
de composição de litígios através de meios alternativos de resolução de conflito há
algum tempo. Entre os exemplos, pode-se citar o projeto Casa da Cidadania de Santa
Catarina, que utiliza juízes leigos para dizer o direito. Esses “juízes” são escolhidos
entre os moradores das comunidades atendidas, nas Igrejas, nas Associações
Comunitárias, nos movimentos populares; são posteriormente capacitados para
essa finalidade, recebem noções de Direito e de técnicas apropriadas para solução
de litígios e têm como finalidade agilizar o acesso à justiça, prevenir os conflitos e
pacificar os ânimos, introduzindo uma cultura de paz. As resoluções são feitas de
forma rápida e na própria comunidade.
Da mesma forma, o Distrito Federal vem desenvolvendo o Projeto Justiça
Comunitária, com a finalidade de resolver os conflitos nas comunidades, utilizando
pessoas daquele local que conheçam os problemas e as pessoas. É desenvolvido o
trabalho em parceria com a Defensoria Pública e o Ministério Público, levando-
se para as comunidades debates sobre seus próprios problemas, estimulando a
elaboração e implementação de projetos, incentivando e ensinando o exercício da
cidadania e capacitando os mediadores comunitários, com noções de Direito de
Família, Direito do Consumidor, Direitos e Garantias fundamentais, Organização
do Estado, Direito de Moradia e das Minorias, e Mediação.
Com os mesmos objetivos já citados, foram desenvolvidos projetos pelo
Estado do Ceará, que, através da sua Secretaria da Ouvidoria Geral e Meio Ambiente
(SOMA), criou as casas de mediação comunitária, pelo Estado do Mato Grosso do
Sul, que implantou a Justiça Comunitária, a Prefeitura de Belo Horizonte criou
um atendimento jurídico para moradores de favela com ênfase em conciliação e
mediação e o Estado do Rio de Janeiro, com seus balcões de Direitos, também
buscou facilitar o acesso do cidadão à justiça. No Estado do Rio Grande do Sul, os
projetos de mediação vêm sendo implantados pela organização não-governamental
THEMIS, mais voltada para solução de problemas relativos às mulheres e família,
bem como de direitos humanos.
O que se pode perceber é que, onde está sendo aplicada a mediação
372
Déborah Lídia Lobo Muniz
7 Conclusão
Chegar à paz é um exercício social que ultrapassa o discurso legal e o político,
pois deve refletir um complexo de atitudes que dão suporte a uma sociedade voltada
para a paz.
A implantação de meios alternativos de solução de conflitos introduz
modificações nos comportamentos enraizados em uma sociedade que baseia a solução
de seus litígios no método da adversariedade de posições, onde se confere a outrem
a responsabilidade pela resolução das questões. Ao fazê-lo, deixa-se de assumir a
parcela de responsabilidade que cabe a cada um, deixa-se não apenas de enxergar o
outro como a ele se imputa toda a culpa, permitindo que as emoções interfiram. Faz-
se um mal ainda maior, desencadeia-se e encoraja-se uma subcultura de litígios que
contribui para a deterioração das relações e para o aumento da violência.
É possível modificar esse quadro que vem se desenrolando ao longo do
373
Mediação: estudo comparativo
374
Déborah Lídia Lobo Muniz
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377
Mediação: estudo comparativo
378
Mediação na China:
passado, presente e futuro
Wei Dan
1 Apresentação
A China de ontem foi um grande país que criou uma civilização brilhante.
O direito chinês tem uma longuíssima história e fontes muito ricas. A concepção
tradicional chinesa do direito e justiça foi influenciada em grande parte pela literatura
das escolas filosóficas, designadamente o confucionismo e o legalismo. Apesar do
impacto do legalismo, o confucionismo teve uma influência dominante e permanente
sobre o pensamento e as instituições jurídicos da China feudal, a partir da dinastia
Han (206 a.C.). Na perspectiva do confucionismo, os litígios devem resolver-
se fora dos tribunais oficiais, através de um processo de compromisso, mediação e
arbitragem. A mediação, sendo uma das alternativas para a resolução de conflitos,
remonta a tempos muito antigos na China.
A mediação não se assemelha a remédios judiciais tradicionais. Na era
moderna, na medida em que a China passa por profundas transições sociais e amplas
reformas econômicas, legislativas e institucionais, a mediação pode ser, e sempre é,
extremamente imaginativa e tem o efeito de restabelecer boas relações entre as partes
e a harmonia social. Na China, numerosos indivíduos, instituições e órgãos têm
contribuído para o seu desenvolvimento.
O presente estudo pretende fazer uma retrospectiva da mediação na China
no passado, expor relevantes instituições vigentes, observar problemas existentes e
olhar para o rumo de desenvolvimento no futuro.
379
Mediação na China: passado, presente e futuro
277 Não havia distinção entre o órgão administrativo e o judicial na China tradicional. Os poderes
administrativos e judiciais concentravam-se num mesmo órgão. O poder de aplicação da justiça estava nas
mãos dos oficiais administrativos.
278 Trata-se de um sistema administrativo antigo organizado na base de famílias, cada Jia consistindo de 10
famílias e cada Bao consistindo de 10 Jias.
380
Wei Dan
279 É importante registrar que a Escola do Taoísmo também defende a harmonia: “Man is to follow, or
abide by, Earth. Earth to follow heaven. Heaven to follow Tao. Tao follows only itself, i.e., the Self-so. Or, the
what-is-so-of-itself ”.
381
Mediação na China: passado, presente e futuro
280 A mediação judicial é um procedimento indispensável nas ações de divórcio. Nos termos do artigo 32 da
Lei do Casamento da República Popular da China, aprovada na 3ª Sessão do 5º Congresso Nacional Popular de
10.9.1980, alterada pela decisão relativa à alteração da “Lei do Casamento da RPC”, tomada pela 21ª Reunião da
Comissão Permanente do 9º Congresso Nacional Popular de 28.4.2001: “O Tribunal Popular, na apreciação da
petição deve proceder à mediação...” (tradução livre do chinês para o português).
281 Na divisão administrativa da China, existem vários níveis: o nível central, o nível provincial, o nível
municipal, o nível distrital e o nível da aldeia. Os governos populares das aldeias podem mediar conflitos da
vizinhança.
382
Wei Dan
determinadas disputas civis e econômicas 282 de acordo com uma disposição legal.
Já que a mediação administrativa não possui o significado nem pertence à
abordagem judicial, o presente trabalho concentra-se essencialmente na mediação
popular e na mediação judicial na China.
A mediação popular é regida principalmente pelos seguintes atos e
dispositivos legais:
- artigo 111º (2) da Constituição da China;283
- artigo 16º da Lei de Processo Civil;284
- artigo 25º da Lei Orgânica das Comissões de Habitantes das Aldeias;285
- artigo 13º da Lei Orgânica das Comissões de Moradores nas Zonas
Urbanas;286
- Lei da Mediação Popular da China;287
- Regulamento Orgânico da Comissão Mediadora Popular;288
- Normas Relativas ao Trabalho da Mediação Popular;289
- Interpretação judicial proferida pelo Supremo Tribunal Popular: “Regras
do Conhecimento da Causa Civil respeitantes ao Convênio da Mediação Popular”;290
- Interpretação judicial proferida pelo Supremo Tribunal Popular:
“Regras sobre o Procedimento da Confirmação Judicial para Acordos Obtidos na
Mediação”;291
- artigo 15º da Lei da Sucessão;292
282 Por exemplo, casos relacionados com o direito de propriedade de terreno e recursos mineiros, disputas
acerca de indenização em consequência de poluição ambiental ou controvérsias respeitantes à violação de
direitos, tais como patentes, marcas e direitos de autor, entre outros.
283 Adotada a 4.12.1988, a 29.3.1993, a 15.3.1999 e a 14.3.2004.
284 Adotada a 9.4.1991 pela 4ª Sessão da Comissão Permanente do 7º Congresso Nacional Popular.
285 Adotada a 4.11.1988 pela 5ª Sessão da Comissão Permanente do 9º Congresso Nacional Popular.
286 Adotada a 26.12.1989 pela 11ª Sessão da Comissão Permanente do 7º Congresso Nacional Popular,
entrada em vigor em 1º.1.1990.
287 Adotada a 28.8.2010 pela 16ª Sessão da Comissão Permanente do 11º Congresso Nacional Popular.
288 Adotado a 5.5.1989 pela 40ª Reunião Permanente do Conselho de Estado, com entrada em vigor em
17.6.1989.
289 Trata-se da norma regulamentadora elaborada pelo Ministério da Justiça a 26.9.2002, com entrada em
vigor em 1º.11.2002.
290 Adotada a 5.5.1989 pela 1240ª Reunião do Comitê de Julgamento do Supremo Tribunal Popular, publi-
citada a 16.9.2002, entrada em vigor em 1º.11.2002.
291 Adotada a 21.3.2011 pela 1515ª Reunião do Comité de Julgamento do Supremo Tribunal Popular, pu-
blicada em 23.3.2011, entrada em vigor em 30.3.2011.
292 Adotada a 10.4.1985 pela 3ª Sessão do 6º Congresso Nacional Popular, entrada em vigor em
1º.10.1985. Nos termos do artigo 15º desta Lei: “Os herdeiros devem tratar o problema da sucessão através
de acordos mútuos e com espírito de harmonia, compreensão e concessão mútua. No momento da parti-
lha, o método e a quota-parte da herança devem ser divididos pelos herdeiros, através de mútuo acordo.
Caso não haja acordo, poderá o conflito ser resolvido pelo comitê popular de mediação ou ser intentado
no tribunal popular”.
383
Mediação na China: passado, presente e futuro
293 Adotada na 3ª Sessão do 5º Congresso Nacional Popular de 10.9.1980, alterada pela decisão rela-
tiva à alteração da “Lei do Casamento da RPC” tomada pela 21ª Reunião da Comissão Permanente do
9º Congresso Nacional Popular de 28.4.2001. O artigo 32º prevê que: “(...) Tratando-se de divórcio
pedido por um dos cônjuges, o respectivo departamento procederá à mediação ou o próprio cônjuge
intentará diretamente ação de divórcio ao Tribunal Popular”. Nos termos do artigo 44º, “O membro
da família afetada tem o direito de peticionar; a comissão de desaconselhar a pessoa que abandonou e
proceder à mediação”.
294 Adotada a 14.7.1992.
295 Adotada a 16.11.1993.
296 Adotada a 4.7.2003 pela 1280ª Reunião do Comitê de Julgamento do Supremo Tribunal Popular, publi-
cada em 10.9.2003, entrada em vigor em 1º.12.2003.
297 Adotada a 18.8.2004 pela 1321ª Reunião do Comitê de Julgamento do Supremo Tribunal Popular, pu-
blicada em 16.9.2004, entrada em vigor em 1º.11.2004.
298 Adotada a 29.6.1989 pela 411ª Reunião Comitê de Julgamento do Supremo Tribunal Popular.
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Mediação na China: passado, presente e futuro
2005, p. 651; ZHANG, F., 2002, p. 6), 302 o direito de acesso ao tribunal constitui
um direito fundamental dos cidadãos. Este princípio assegura justamente o papel
fidedigno e sólido da mediação popular.
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lei prevê que determinadas disputas possam somente ser tratadas por órgãos especiais
ou a lei simplesmente proíbe o uso da mediação popular; (2) o tribunal popular, o
órgão de segurança pública ou outro órgão administrativo qualquer já despachou ou
resolveu o assunto.
Por via de regra, o âmbito de atuação da mediação popular abrange todos
os conflitos cíveis e comerciais entre os cidadãos, entre os cidadãos e as pessoas
coletivas e entre as pessoas coletivas e as associações sociais. Trata-se de um vasto
campo abrangido, o qual é muito difícil de sintetizar. Desde que haja a participação
voluntária das partes litigantes e que não se violem as disposições compulsórias do
Estado, todas as contendas relacionadas com direitos pessoais, direitos patrimoniais,
a economia, administração e moral, entre outros, podem ser resolvidas pela mediação
popular. É importante ter em mente que a China é um país enorme que passa por
uma profunda transição social, onde se encontra o pluralismo de interesses e a
intensificação dos conflitos. Segundo as estatísticas, hoje em dia, as contradições dos
interesses diferenciados entre os cidadãos correspondem já aproximadamente a 70-
80% de todas as contendas sociais na China (WANG, 2005, p. 653). A mediação
popular, muitas vezes, reflete bem os problemas sociais que requerem urgentemente
soluções na China, em particular a expropriação de terrenos e despesas de remoção
no processo de urbanização, a indenização por acidentes médicos, disputas entre o
assalariado e o patronato, a contratação de terras cultiváveis, os empregados afastados
em consequência das reformas de empresas estatais, o planejamento familiar e
a qualidade dos produtos, entre outros. Tendo em conta isso, a nova lei alargou o
âmbito de aplicação da mediação popular, pois, de acordo com o artigo 34º, se for
necessário, as vilas, cidades, subdistritos, organizações sociais e outras organizações
podem formar comissões de mediação popular, sob a orientação da referida lei, para
mediar disputas entre as pessoas.
312 Vide respectivamente os artigos 4º, 5º e 6º das Regras do Conhecimento da Causa Civil respeitantes ao
Convênio da Mediação Popular.
313 Vide artigo 31º da Lei da Mediação Popular.
314 Vide artigo 18º da Lei da Mediação Popular.
315 Vide artigo 33º da Lei da Mediação Popular.
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5 Da mediação judicial
316 Segundo o artigo 6º da Lei do Processo Civil de 1982: “Os tribunais populares, no conhecimento da
causa, devem dar ênfase à mediação”.
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duas instâncias na China, e a segunda funciona como a última. Perante uma sentença
ou decisão da primeira instância proferida por um tribunal local, as partes podem
recorrer ao tribunal popular de nível superior, segundo os procedimentos legais.317
Entretanto, se se descobrirem erros sobre a verificação dos fatos ou a aplicação das
leis nas sentenças e decisões já com eficácia jurídica, o Presidente do tribunal popular
onde a sentença ou decisão foi proferida tem que apresentá-las ao respectivo Comitê de
Julgamento. Se o Supremo Tribunal Popular descobrir erros nas sentenças e decisões já
com eficácia jurídica levadas a cabo por tribunais populares de outros níveis, ou se os
tribunais populares superiores descobrirem erros nas sentenças ou decisões dos outros
tribunais populares, têm o direito de julgar a ação de novo ou de mandar ao tribunal
imediatamente inferior para julgá-la novamente. Neste sentido, o regime de fiscalização
do julgamento constitui uma exceção ao regime normal de duas instâncias.
Na primeira instância, a mediação pode ocorrer antes, durante ou depois
da audiência. Na segunda instância, o tribunal popular pode presidir à mediação
segundo o princípio da voluntariedade. O âmbito da mediação abrange todas as
questões materiais, quer interpostas no recurso, quer não. Uma vez obtido um
acordo, o tribunal de segunda instância deve elaborar uma convenção mediadora,
que se tornará efetiva quando for feita a citação pessoal. A sentença ou decisão do
tribunal de primeira instância será assim anulada. No procedimento de fiscalização do
julgamento, o tribunal pode aceitar o pedido feito pelas partes e presidir à mediação.
Depois de os citandos confirmarem pessoalmente a citação, as sentenças ou decisões
anteriores serão anuladas.
317 As ações julgadas diretamente pelo Supremo Tribunal Popular e as ações às quais é aplicável o processo
especial segundo a lei do Processo Civil só têm uma instância.
318 A estruturação dos tribunais populares na China encontra-se em quatro níveis, sendo os tribunais popu-
lares de base, os tribunais populares intermediários, os tribunais populares superiores e o Supremo Tribunal
Popular. Segundo o artigo 20 da Lei Orgânica dos Tribunais Populares da República Popular da China: “Os
tribunais populares de base podem criar vários juízos delegações consoante a localização, a população ou as
circunstâncias das ações. Os juízos são elementos componentes dos tribunais populares de base cuja sentença
e decisão constituem as dos tribunais populares de base”.
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Referências
WANG, Gongyi. People’s Mediation is an Important Legal System to Resolve Social
Disputes. In: CAO, Jianming (Ed.). The 22nd Congress on the Law of the World: The Rule
of Law and Harmony of International Society Working Papers. Pequim: The People’s Court
Press, 2005.
ZHANG, Baifeng (Ed.). Judicial System in China. 2. ed. Pequim: Law Press, 2002.
ZHANG, Fusen. Strengthen and Improve the System of People’s Mediation with Chinese
Characteristics. Chinese Judicial Review, n. 4, outono 2002.
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Síntese curricular dos autores
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Foi Secretário Nacional de Justiça e, no presente, é advogado, Procurador Legislativo
do Município de São Paulo e Diretor-Executivo da Escola do Parlamento da Câmara
Municipal de São Paulo. Advogado. Autor e coordenador de diversas obras e artigos
científicos nas áreas de Direito do Trabalho e Mediação de Conflitos.
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Déborah Lídia Lobo Muniz
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Henrique Gomm Neto
Tania Almeida
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Doutora e Mestre em Direito pela Universidade de Coimbra. Licenciada em
Direito pela Universidade de Pequim. Professora Titular e Diretora do Instituto para
Estudos Jurídicos Avançados da Faculdade de Direito da Universidade de Macau.
Redatora-Chefe da Macau Law Review. Árbitro do China International Economic
and Trade Arbitration Commission (CIETAC). Árbitro do Centro de Arbitragem
do World Trade Center em Macau, da Comissão de Arbitragem em Guangzhou,
China e do Centro Internacional de Mediação e Arbitragem em Nansha, China.
E-mail: <danwei@umac.mo>.
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