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História Da Filosofia 6
História Da Filosofia 6
Volume seis
NicolA Abbagnano
DIGITALIZAÇÃO E ARRANJOS:
Ângelo Miguel Abrantes.
HISTÓRIA DA FILOSOFIA
VOLUME VI
CAPA DE: J. C.
COMPOSIÇÃO E IMPRESSÃO
TIPOGRAFIA NUNES R. José Faldo, 57-Porto
VII
AS ORIGENS DA CIÊNCIA
§ 388 LEONARDO
ignorância porque pedem à experiência aquilo que está para lá dos seus
limites. Em contrapartida, pode o juízo enganar-se sobre a experiência; e para
evitar o erro não há outra via senão reduzir todos os juízos a cálculos
matemáticos o servir-se exclusivamente da matemática para entender e
demonstrar as razões das coisas que a experiência manifesta (Cod. atl., fol.
154 r). A matemática é o
estridor" (ed. Richter, n. 1157). Por isso Leonardo faz seu o autêntico
espírito de Platão e a legenda que se encontrava à entrada da Academia: "Não
entre nesta casa quem não for matemático." Ub., n. 3). A experiência e o
cálculo matemático revelam a natureza na sua objectividade, isto é, na
simplicidade e na necessidade das suas operações. A natureza identifica-se com
a própria necessidade da sua ordenação matemática. "A necessidade é tema e
inventora da natureza, é freio e
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Santo Oficio de Roma. O processo dura até 22 de Junho de 1633 e conclui-se com
a abjuração de Galileu. Tinha então 70 anos. Passou os últimos anos da sua
vida na solidão da casa de campo de Arcetrí, perto de Florença, alquebrado
pelas doenças e diminuído pela cegueira, mas sem interromper o seu trabalho,
escrevendo os Diálogos das novas ciências e mantendo numerosa correspondência
com amigos e discípulos. Morreu a 8 de Janeiro de 1642.
As obras filosóficas mais notáveis são as já nomeadas: O Ensaiador, os
diálogos. sobre os dois máximos sistemas e os Diálogos das novas ciências. Mas
em todos os seus escritos estão disseminadas considerações filosóficas e
metodológicas.
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homens, porque não se importa que as suas recônditas razões sejam ou não
compreendidas por eles./ Por isso o que da natureza nos revela a sensata
experiência ou o que as demonstrações necessárias nos levam a concluir, não
podo ser posto em dúvida, ainda que divirja de algum passo da Escritura (Lett.
alla duchessa Cristina, in Op., V, p. 316).
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seguida em desgraça. O processo a que foi submetido lança uma luz pouco
simpática sobre a sua
actividade de ministro, uma vez que ele não pôde negar as acusações de
corrupção que lhe dirigiram. Mas este homem ambicioso e amante do dinheiro
e
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Bacon, todavia, não dirigiu a sua atenção apenas para o mundo da natureza. A
sua primeira obra, os Ensaios, publicados pela primeira vez em 1597 e depois
traduzidos em latim com o título Sermones fídeles sive interiora rerum, são
subtis e eruditas análises da vida moral e política nas quais a sapiência dos
Antigos é amplamente utilizada. Mas a sua ,principal actividade foi a que
dedicou ao projecto de uma enciclopédia das ciências que devia renovar
completamente a investigação científica colocando-a numa base experimental. O
plano grandioso desta enciclopédia deu-no-lo ele no escrito De augmentis
scientiarbim, publicado, em 1623, o qual compreende: as ciências que se fundam
na memória, isto é, a história, que se dlivide em natural e civil; aquelas que
se fundam na fantasia, isto é, a poesia, que se
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que nela não lhe convém. Todas estas disposições naturais são fontes de idola
tribus,- e a principal fonte de tais idola é a insuficiência dos sentidos aos
quais escapam todas as forças ocultas da natureza. Os idola specus, ao invés,
dependem da educação, dos hábitos e das circunstâncias fortuitas em que cada
qual se encontra. Aristóteles, dei de ter inventado a lógica, sujeitou a ela
completamente a sua física, tornando-a estéril: isto foi devido por certo a
uma particular disposição do seu intelecto. Gilbert, o descobridor do
magnetismo, arquitectou sobre a sua descoberta toda uma filosofia. E assim, em
geral, todo o homem tem as suas propensões para os antigos ou para os
modernos, para o velho ou para o novo, paira aquilo que é simples ou para
aquilo que é complexo, para as semelhanças ou para as diferenças; e todas
estas propensões são fontes
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de idola specus, como se cada homem tivesse no seu interior um antro ou uma
caverna que refractasse ou desviasse a luz da natureza.
fusão e Bacon não se propõe confutá-los um por um. Ele divíde as falsas
filosofias em três espécies: a sofística, a empírica e a supersticiosa. Da
filosofia sofística o maior exemplo é Aristóteles, que procurou adaptar o
mundo natural a categorias lógicas predispostas e se preocupou mais em dar a
definição verbal das coisas do que em procurar a verdade delas. Ao género
empírico, pertence a filosofia dos alquimistas e também a de Gilbert, que tem
a pretensão de explicar todas as coisas por meio de poucos e restritos
experimentos. Finalmente, a filosofia supersticiosa é a que se mistura com a
teologia, como acontece em Pitágoras e Platão, e especialmente neste último,
que Bacon considera mais subtil e perigoso e ao qual não hesita em atribuir
num seu escrito (Temporis partus musculus, Opere, M,
530-31) as qualificações de "urbano trapaceiro, poeta enfatuado, teólogo
mentecapto". Finalmente, idola theatri derivam também de demonstrações
erróneas. E as demonstrações são erróneas porque se fiam demasiado nos
sentidos ou abstraem indevidamente das suas impressões ou têm a pretensão de
passar de golpe dos pormenores sensíveis aos princípios gerais.
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fruto (experimenta fructífera) acha que são preferíveis os que dão luz
(experimenta lucifera), que nunca falham e nunca são estéreis, porquanto
revelam a causa natural dos factos (Ib., 1, 99).
exemplos (instantiae) segundo um método ou uma ordem que torna tais recolhas
apropriadas às exigências do intelecto (Nov. org., 11, 10). As tábuas de
presença serão então a recolha das instâncias conhecidas, isto é, das
circunstâncias em que uma
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Bacon deriva das cruzes que se erguem nas encruzilhadas para indicar as vias.
O valor desta instância consiste em que, quando se não sabe ao corto qual das
duas ou mais naturezas é a causa da natureza estudada, a instância crucial
mostra que a
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descobrir as causas que permitem ao homem o domínio sobre o mundo (Ib., 111,
4). Quanto às outras causas aristotélicas, Bacon considera que a
eficiente e a material são superficiais e inúteis para a ciência verdadeira e
activa por serem concebidas como separadas do processo latente que tendo à
forma. Resta a forma, que Bacon tem a pretensão de entender de um modo
inteiramente diverso de Aristóteles. E o que ele entende, verdadeiramente por
forma é o mais difícil problema da crítica baconiana.
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"esquematismo latente dos corpos quiescentes e não em movimento". E mais
adiante considera o processo e o esquematismo em dois capítulos separados,
insistindo na conexão e na diversidade dos dois aspectos da natureza (Ib., 11,
6 e 7). Correspondentemente, distingue duas partes da física: a doutrina do
esquematismo da matéria e a doutrina dos apetites e dos movimentos (De augm.,
111, 4). A primeira doutrina é por ele comparada ao que é a anatomia dos
corpos orgânicos (Nov. org., 11, 7). Ora, a forma é ao mesmo tempo o princípio
do esquematismo e o princípio do processo: assim, ela conserva para Bacon uma
duplicidade de significado que é inerente à duplicidade da função que lhe
atribui. deve ver na forma, por um lado, a estrutura que constitui
essencialmente, e portanto individua e define, um determinado fenómeno
natural; por outro lado, a lei que regula o movimento de geração ou de
produção do próprio fenómeno. "Indagar e descobrir a forma de um dado fenómeno
natural (lb., 11, 1), isto é, a diferença verdadeira ou a natureza naturante
ou a fonte da emanação (são estes os vocábulos que exprimem melhor a coisa),
tal é o escopo e a intenção da ciência humana". Logo, é evidente que a forma
como diferença verdadeira constitui o princípio do esquematismo, isto é, da
ordem intrínseca das partes da matéria, porque é aquilo que individua a
estrutura de uma realidade material; enquanto como natureza naturante ou fonte
de emanação é a lei que regula o movimento de produção de um determinado
fenómeno. E insiste ora num ora noutro significado do
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termo forma. Por um lado, diz que "a forma é tal que pode deduzir um dado
fenómeno de uma qualquer essência que é inerente a vários fenómenos. e é mais
geral do que o fenómeno dado" (Ib., 11, 4): chama forma à " Minição
verdadeira" do fenômeno (Ib., 11, 20) e descreve-a. como "a coisa mesma" na
sua estrutura interna (Ib., 11, 13). Por outro lado, fala das leis
fundamentais e comuns que constituem as formas" (Ib., 11, 17). E diz: "Se bem
que na
natureza não existam senão corpos individuais que produzam actos puros
individuais segundo uma determinada lei, nas doutrinas essa mesma lei, a
busca e a descoberta dela e o seu esclarecimento servem de fundamento quer ao
saber quer ao operar. Esta lei, e os seus parágrafos, é aquilo que nós
designamos com o nome de forma, especialmente porque este vocábulo é usado e
se tornou familiar" (lb., 11, 2). Por vezes os dois significados são indicados
ao mesmo tempo: "Quando falamos de formas não queremos indicar senão aquelas
leis e aquelas determinações do acto puro que ordenam e
constituem qualquer simples fenómeno natural, como
o calor, a luz, o peso, qualquer que seja a matéria ou o substracto adaptado.
Por isso a forma do calor ou a forma da luz é a mesma coisa que a lei do calor
ou a lei da luz" (lb., 11, 117). Assim se distinguem os dois significados
fundamentais da forma, como lei do movimento e determinação do acto puro, isto
é, o esquematismo latente.
Não é justo, por isso, exprobar a Bacon (como tantas vezes se tem feito) a
ambiguidade do significado que ele atribui à palavra forma. Na reali41
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NOTA BIBLIOGRÁFICA
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§ 392. Sobre a vida de Bacon: RÉMUSAT, Bacon, sa vie, son temps, sa phil. et
son influence jusqu'à nos
jours, Paris, 1857; M. M. Rossi, Saggio su F. B., Nápoles, 1935. A melhor ed.
das obras de Bacon é a de Ellis, Speliding e Hath, Works, 1857-59, em 5 vol.
Como exemplo das frequentes desvalorizações de que tem sido objsc,to a figura
de Bacon, pode ver-se
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QUINTA PARTE
DESCARTES
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ele próprio submetidos a crítica na primeira parte do Discurso: eles não
bastaram para lhe dar uma orientação segura e revelaram-lhe a profunda
vacuidade da cultura escolástica da época. Descartes, contudo, manteve sempre
relações afectuosas com os seus mestres jesuítas, e com um deles, o padre
Marino Marsenne, correspondeu-se e manteve relações de amizade por toda a
vida. A incerteza em que a primeira educação o havia deixado levou-o a viajar
"para ler no grande livro do mundo". Em 1618 alistou-se nos exércitos do
príncipe de Nassau, que participou na Guerra dos Trinta Anos. Era um costume
militar da época deixar aos jovens ampla liberdade, e Descartes pôde viajar a
seu
talante por toda a Europa, dedicando-se aos estudos de matemática e de fíSica
e continuando a procurar o fundamento seguro de todo o saber humano. Em
1618 conheceu o médico holandês Isaac Beekman e desta amizade colheu novo
incentivo para prosseguir as suas investigações matemáticas e físicas. No ano
seguinte, a 10 de Novembro, numa pequena cidade alemã, teve a grande
iluminação em que fez a sua descoberta fundamental. Foi uma verdadeira crise
de entusiasmo, que induziu o filósofo a fazer o voto de ir em peregrinação ao
santuário de Loreto. Em 1622 voltou a França e no ano seguinte viajou ainda
pela Suíça e pela Itália. Em 1628 fixou a sua residência na Holanda. Este era
então o país da liberdade e da tolerância filosófica e religiosa, e esse foi
decerto o motivo principal que levou Descartes a instalar-se aí, se bem que
também pesasse na sua deliberação um outro motivo (que ele
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Qui voit comme nous sommes faÍtes Et pense que la guerre est belle Ou quelle
vaut mieux que la paix Est estropié de cervelle 1
Após a morte do filósofo, foram publicadas cartas ou escritos que ele deixara
-inéditos: Compendium musicae (1650); Tratado do Homem, primeiro em latim
(1662) e depois em francês (1664); O Mundo ou Tratado da Luz (1664), Cartas
(1657-67), entre as quais se destacam as dirigidas à princesa Elisabeth do
Palatinado, Regulae ad directionem ingenii (1701); Inquisitio veritatis per
lumen naturale (A investigação da verdade através da luz natural) (1701).
1 Quem vê como o homem é / E penm que é boa a guerra / Ou que ela é melhor que
a paz / Não regula bem da cabeça.
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Esta substância é, como tal, única o universal. "A faculdade de julgar bem e
distinguir o vero
cimentos o nas acções dos homens. Descartes leva a efeito aquela mundanização
e humanização da razão que a filosofia do Renascimento havia parcialmente
iniciado. Porque para Descartes o primeiro fruto da razão é a ciência, e, em
particular, a matemática, sobre a qual funda a descoberta do método. A razão,
todavia, não se identifica inteiramente com o seu método, mas participa da
própria natureza dos elementos sobre que o método se exerce: tais elementos
são racionais só na--medida em que possuam clareza e evidência. A clareza e
bém prática, pela qual o homem possa tornar-se dono e senhor da natureza".
Esta filosofia deve pôr à disposição do homem dispositivos que lhe permitam
gozar sem fadiga dos frutos da natureza e de
homens a ficarem isentos "de uma infinidade de doenças, tanto do corpo quanto
do espírito, e talvez mesmo da decadência da velhice" (Disc., VI). Por isso
torna públicos os resultados das suas investigações: sabe que a sua vocação o
chama ao serviço da humanidade e que, das suas descobertas, a humanidade pode
esperar o benefício e o equilíbrio da vida.
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poder aplicar a todos os ramos do saber. Tal aplicação- não seria possível se
não se tivesse previamente justificado o valor universal do método. Cumpre,
por conseguinte, justificar o próprio método e a possibilidade da sua
aplicação universal, reportando-o ao seu fundamento último, isto é, à
subjectividade do homem, como pensamento ou razão. O facto de as matemáticas
estarem já de posse da prática do método facilitou decerto a tarefa de
Descartes, mas tal tarefa só começa verdadeiramente com a justificação (ou
fundação) das regras metódicas, justificação que só consente e autoriza a
aplicação delas a todos'os domínios do saber humano. Descartes devia portanto:
1.'-formular as regras do método tendo sobretudo presente o procedimento
matemápico no qual elas estariam já presentes e em acção; 2.'-fundar mediante
uma investigação científica o valor absoluto e universal do método; 3.o -
demonstrar a fecundidade do
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método nos vários ramos do saber. Tal foi de facto a sua tarefa.
Descartes define o método como o conjunto de "regras certas e fáceis que, por.
quem quer que sejam exactamente observadas, lhe tornam impossível tomar o
falso pelo verdadeiro e, sem nenhum esforço mental inútil, antes aumentando
sempre gradualmente a ciência, conduzirão ao conhecimento de tudo o que ele
será capaz de conhecer" (Reg. IV).
O método deve conduzir o homem, de um modo fácil e seguro, não só ao
conhecimento verdadeiro, mas também "ao ponto mais alto" (Disc., 1) a que ele
pode chegar, isto é, simultaneamente ao domínio sobre o mundo e à sabedoria da
vida. Nas Regulae ad directionem ingenii,' Descartes expusera não só as regras
fundamentais mas também as modalidades ou as particularidades da sua
aplicação: tinha assim enumerado vinte e uma regras e depois interrompera,
desencorajado, a sua obra. Na 11 parte do Discurso sobre o método reduz a
quatro as regras fundamentais.
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crítica radical de todo o saber. É necessário suspender, pelo menos uma vez, o
assentimento a todo o conhecimento Comummente aceite, duvidar de tudo
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sonho, quer na vigília, como os conhecimentos matemáticos (dois mais três são
sempre cinco, quer se esteja a dormir ou acordado), mas nem mesmo
estes se subtraem à dúvida, porque também a certeza relativa a eles pode ser
ilusória. Enquanto nada de certo se souber acerca de nós próprios e
da nossa origem, pode-se sempre supor que o homem foi criado por um génio mau
ou por uma potência maligna que se, tenha proposto enganá-lo fornecendo-lhe
conhecimentos aparentemente certos mas
desprovidos de verdade. Basta fazer uma tal hipótese (e pode-se fazê-la, dado
que não se sabe nada) para que mesmo os, conhecimentos subjectivamente mais
certos se revelem duvidosos e capazes de esconder o engano. Assim, a dúvida se
estende a todas as coisas e se torna absolutamente universal.
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DESCARTES
próprio não tenho coipo. Mas para que me engane ou para que seja enganado,
para duvidar e para
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eu que penso seja qualquer coisa e não nada. A proposição penso, logo existo é
a única absolutamente verdadeira porque a própria dúvida a confirma. Toda a
dúvida, suposição ou engano, pressuporá sempre que eu que duvido, suponho ou
me engano, exista?(A afirmação existo será portanto verdadeira todas as vezes
que a concebo no meu espírito.
Ora, esta proposição contém também, evidentemente, uma certa indicação acerca
do que sou eu
que existo. Não posso dizer que existo como corpo, já que nada sei da
existência dos corpos, a respeito dos quais a minha, dúvida permanece. Eu só
existo como uma coisa que duvida, isto é, que pensa. A certeza do meu existir
liga-se apenas ao
originária, que é ao mesmo tempo uma verdade necessária, deve fundar-se todo e
qualquer outro conhecimento.
Sobre tal certeza assegura Descartes poder fundar em primeiro lugar a validez
da regra de evidência. "Tendo notado, &z ele (Disc., IV; d. Med.
111) que não há nada nesta afirmação: eu penso, logo existo, que me assegure
que eu diga a verdade, senão que vejo clarissimamente que para pensar é
necessário existir, julguei poder tomar por regra geral que as coisas que
concebemos de um modo claro e distinto são todas verdadeiras". Porém, já a
alguns contemporâneos de Descartes (por exemplo, HUET, Cens. phil cartes, H,
1) esta relação entre o cogito e a regra da evidência se apresentara
problemática. Se o princípio do cogito é aceite porque evidente, a regra da
evidência é anterior ao
quais seja necessário estabelecer a prioridade? Será o cogito apenas uma entre
as variadíssimas evidências que a regra da evidência garante serem
verdadeiras? Na realidade, o cogito não é uma evidência mas antes a evidência
no seu fundamento metafísico: é a evidência de que a existência do sujeito
pensante tem por si mesma, a transparência absoluta que a
não recebe a sua validez de nenhuma regra mas tem o princípio e a garantia da
sua existência unicamente em si mesma. A regra da evidência, provisoriamente
deduzida da consideração das matemáticas, nela encontra a sua última raiz e a
sua justificação absoluta; torna-se assim verdadeiramente universal e
susceptível de ser aplicada em todos os casos. Diz de facto Descartes,
respondendo a uma
geral que possa servir como princípio para provar a existência de todos os
seres, os entia, que se
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mente de Deus (o universal ante rém). Descartes definiu a ideia como "a
forma de um pensamento, pela imediata **pe~o da qual sou consciente de tal
pensamento" (Resp., II, def. 2). Isto significa que a ideia exprime esse
carácter fundamental do pensamento pelo qual ele é imediatamente consciente
de si mesmo. Qualquer ideia tem, em primeiro lugar, uma realidade como acto do
pensamento, e tal realidade é puramente subjectiva ou mental. Mas, em segundo
lugar, tem também uma realidade a que Descartes chama escolàsticamente
objectiva, porquanto representa um objecto; neste sentido, as
ideias são "quadros" ou imagens" das coisas. Ora o cogito torna-me seguro de
que as ideias existem no meu pensamento como actos do próprio pensamento, já
que fazem parte de mim como sujeito pensante. Mas não me tornam seguro do
valor real do conteúdo objectivo delas, isto é, não me diz se os
objectos que elas representam existem, ou não na realidade. Ideias são para
mim a terra, o céu, os astros e todas as coisas percebidas pelos sentidos:
como ideias, existem no meu espírito. Mas existem realmente as coisas
correspondentes fora do meu
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Deste ponto de vista, podem ser examinadas para se descobrir a causa que as
produz. Ora, as ideias que representam outros homens ou coisas naturais nada
contêm de tão perfeito que não possa ter sido produzido por mim. Mas no que se
refere à ideia de Deus, isto é, de uma substância infinita, eterna,
omnisciente. omnipotente e criadora, é difícil supor que possa eu próprio tê-
la. criado. A ideia de Deus é a única ideia em que há alguma coisa que não
poderia vir de mim próprio, na medida em que eu
não possuo nenhuma das perfeições que estão representadas nessa ideia.
Descartes afirma, em geral, que a causa de uma ideia deve sempre ter pelo
menos tanta perfeição quanto a que a ideia representa. Por isso a causa da
ideia de uma substância
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presença no homem da ideia de Deus; além disso, esta segunda prova é fundada
sobre o reconhecimento da própria finitude por parte do homem. Descartes
estabelece uma estreita conexão entre a natureza finita do homem e a ideia de
Deus. "Quando reflicto sobre mim, diz ele (Med., IU), não somente sei que sou
uma coisa imperfeita, incompleta e dependente de outro, que tende e aspira sem
descanso
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a algo de melhor e de superior, mas sei também ao mesmo tempo que Aquele de
que dependo possui em si todas as grandes coisas a que aspiro e de que
encontro em mim as ideias, e as possui não indefinidamente em potência, mas na
realidade, actualmente e infinitamente, e que por isso é Deus". Não seria
possível que a minha natureza fosse tal qual é, isto é, finita mas dotada da
ideia do infinito, se o ser infinito não existisse. A ideia de Deus é, pois,
"como a marca do artífice impressa na sua obra e nem sequer é necessário que
tal marca
seja alguma coisa de diferente dá própria obra". Por outros termos, a própria
finitude constitutiva do homem implica a relação causal do homem com Deus,
relação de que a ideia de Deus é a expressão e a revelação imediata.
Ambas as provas que acabamos de expor assumem como ponto de partida a ideia de
Deus. Mas já a Escolástica havia fornecido uma prova que pretendia ir da
simples ideia de Deus à existência de Deus: a prova de Santo Anselmo de Aosta
(§ 192). Tal prova cabia perfeitamente na
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triângulo. É evidente que esta prova diferencia-se das duas precedentes porque
considera a ideia de Deus, não em relação ao homem e à sua finitude, mas em si
mesma, o enquanto essência de Deus. E sobre esta essência versam os
esclarecimentos que Descartes deu sobre, a prova (Resp., 1). A necessidade da
existência de Deus deriva da superabundância de ser que é própria da sua
essência. Através desta superabundância põe-se Deus a si mesmo na existência
comportando-se de algum modo para consigo como uma causa eficiente. Conquanto
não haja em Deus distinção entre a existência e a causa eficiente (que seria
absurda), a causalidade eficiente torna de algum modo inteligível a
necessidade da sua existência. Deus existe em virtude da sua própria essência,
pela superabundância de ser, por consequência da perfeição, que o constitui.
Como as provas da existência de Deus têm todas como ponto de partida comum a
ideia de E0eus, constituem a simples; explicação da natureza finita do homem.
No acto de duvidar e de se reconhecer imperfeito, reporta-se o homem
necessariamente à ideia da perfeição e daí à causa dessa ideia, que é Deus. A
afirmação de Descartes de que a ideia de Deus é como a marca que o artífice
imprime na sua obra e que não é necessário que tal marca seja algo de diverso
da própria obra significa precisamente que a pesquisa mediante a qual o homem
chega à certeza de si é idêntica à investigação mediante a qual o homem atinge
a certeza de Deus.
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criou, como criou todas as outras criaturas. Disse Descartes: "Perguntais quem
obrigou Deus a criar tais verdades; e ou digo que ele foi livre para fazer que
não fosse verdade que todas as linhas que partem do centro para a
circunferência fossem iguais como foi livre para não criar o inundo. E é certo
que estas verdades não estão ligadas à sua essência mais necessariamente do
que outras criaturas" (Leares à Mersennes de 27 de Maio de 1630. Cf. também as
cartas ao mesmo Mersennes de 15 de Abril e de 6 de Maáo de 1630).
Esta doutrina liga-se estreitamente, por muito que pareça paradoxal, ao núcleo
contra do cartesianismo. As verdades eternas poderiam ser independentes de
Deus se fossem para ele próprio necessárias; e poderiam para ele ser tais que
fizessem parte da necessidade da sua natureza. Mas em tal caso a razão que
nelas se manifesta seria a Própria razão divina; e a razão humana e divina
coincidiriam, segundo o velho conceito do estoicismo. Descartes afirma, ao
invés, que a razão é uma faculdade especificamente humana; vê em Deus antes
uma potência inexaurível, isto é, uma infinidade de entendimento; reconhece-
lhe, no entanto, a mais ampla faculdade de arbítrio mas ao mesmo tempo confia
só ao homem a responsabilidade e a razão como gula. Como a redução das
verdades eternas a decretos de Deus não é mais que a transcrição teológica do
postulado da sua imutabilidade, tal transcrição evita a identificação da razão
humana com Deus.
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apenas uma substância pensante, e ela não pressupõe de modo algum o meu
pensamento, já que as ideias que ela produz me são amiúde representadas sem
que eu para isso contribua, antes contra a minha própria vontade. Daí que
tenha, necessariamente, de pertencer a uma substância diversa, a qual só pode
ser ou um corpo, isto é, uma outra natureza corpórea na qual esteja contido
realmente aquilo que nas ideias está contido representativamente, ou então o
próprio Deus, ou enfim alguma outra criatura mais nobre do que o corpo. Mas é
evidente que Deus, não sendo enganador, não me envia essas ideias
**im"tamente, nem sequer por
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meio de qualquer criatura que não as contenha realmente. Ele infundiu-me uma
forte inclinação para crer que elas me são enviadas por coisas corpóreas, e
por isso enganar-me-ia se elas fossem produzidas por outro. Cumpre reconhecer
que há uma substância pensante que sou eu próprio: substância divisível,
precisamente porque extensa, ao passo que o espírito é indivisível e não tem
partos. A substância extensa não possui todavia todas as qualidades que nós
percepcionamos. A grandeza, a figura, o movimento, a situação, a duração, o
número, são decerto as suas qualidades próprias; mas a cor, o cheiro, o sabor,
o sono, etc., não existem como tais na realidade corpórea e correspondem nesta
realidade a alguma coisa que nós não conhecemos. Descartes estabelece, elo
também, a distinção entre qualidades objectivas e subjectivas, já estabelecida
por Galileu.
Pelo mesmo motivo, isto é, em virtude da veracidade divina, devo admitir que
tenho um corpo, que s-1 sente mal disposto quando tenho dores, que tem
necessidade de comer quando tenho as
sensações da fome, da sede, etc. Tais sensações demonstram que ou não estou
alojado no meu corpo
como um piloto no seu navio, mas que lhe estou tão estreitamente ligado que
formo um só todo com ele. Sem esta união eu não poderia perceber o prazer ou a
dor que me advém de tudo o que acontece no corpo, mas conheceria as sensações
de prazer ou de dor, de fome, de sede, etc., com o puro intelecto, como coisas
que não concernem ao meu
fusos de pensar" que provêm da própria união do espírito com o corpo (Med.,
VI). Além disso, esta união pressupõe uma distinção real entre o espírito e o
corpo, na medida em que posso pensar existir como pura substância espiritual
sem admitir em
mim nenhuma parte, ou elemento de outra natureza; e, por outro lado, devo
reconhecer no corpo caracteres (como a divisibilidade) que a substância
espiritual recusa.
De qualquer modo, seja corno corpo humano, seja como corpo natural, a
substância corpórea tem, segundo Descartes, um único carácter fundamental,
isto é, a extensão. A matéria pode ser concebida como sendo privada de todas
as qualidades que lhe
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possamos atribuir (peso, cor, etc), mas não como sendo privada da extensão em
comprimento, largura e profundidade: este é, pois, o seu atributo fundamental
(Princ. phil., 11, 4). O conceito do espaço geométrico identifica-se com a
extensão; é fruto da abstracção pela qual se eliminam dos corpos todas
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Bastam estas três leis, segundo Descartes, para explicar todos os fenómenos da
natureza e a estrutura de todo o - universo, o qual é uma maquina gigantesca,
de que se exclui qualquer força animada ou qualquer causa final. Tal como
Bacon, Descartes acha legítimo considerar o finalismo da natureza no domínio
da ética, mas assegura ser tal consideração "ridícula e estúpida", na física,
"uma, vez que, segundo diz (Ib., 111, 3), não duvidamos que existam, ou
existissem durante um tempo e tenham já deixado de existir muitas coisas que
nunca foram vistas ou compreendidas pelos homens, e que por isso não lhes
foram de qualquer utilidade". É por isso um simples acto de soberba imaginar
que tudo tenha sido criado por Deus para exclusivo benefício do homem. Pela
única acção destas três leis, Descartes afirma poder explicar como se formou a
ordem actual do mundo a partir do caos. A matéria primitiva era composta de
partículas iguais em grandeza e em movimento; estas partículas moviam-se quer
em torno do próprio centro quer umas, em relação às outras, de modo a formarem
turbilhões fluidos que, compondo-se de modos vários entre si, deram origem ao
sistema solar e depois à terra.
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82
alma é advertida das coisas que prejudicam o corpo e assim experimenta ódio
por o que lhe causa tristeza e o desejo de se libertar disso. Pela alegria, ao
invés, a alma é advertida das coisas úteis ao corpo e assim experimenta amor
por elas e desejo de conquistá-las e conservá-las (Ib., 11, 137).
83
procurar o outro com mais ardor do que conviria (lb., 11, 138). O homem deve
deixar-se guiar, tanto quanto possível, não por elas, mas pela experiência e
pela razão, e só assim poderá distinguir, no seu justo valor, o bem do mal, e
evitar os excessos. É neste domínio das emoções que consiste a sabedoria, a
qual se obtém estendendo o domínio do pensamento claro e distinto e separando,
tanto quanto possível, este domínio dos movimentos do sangue e dos espíritos
vitais, dos quais dependem as emoções e aos quais habitualmente está ligado
(Ib., 111, 211).
Ele não fez, nem mesmo posteriormente, a exposição da sua moral definitiva, ou
seja, fundada no
método. Nesse caso, de facto, ela implica "que haja uma firme e constante
resolução em seguir tudo o que a razão aconselha sem que nos deixemos
desviar
85
Z.@
coisas poderiam ser adquiridas com a nossa conduta ou que são devidas à nossa
natureza, o que não é verdadeiro das outras. Poderemos livrar-nos desta
Opinião considerando que, por ter sempre seguido
86
o conselho da nossa razão, nada esquecemos do que estava em nosso poder e que
os infortúnios não são menos naturais para o homem do que a prosperidade e a
saúde". É este o único meio para alcançar o supremo bem, a felicidade da vida.
"Como um pequeno vaso pode estar cheio do mesmo modo que um vaso grande, mesmo
que contenha uma menor quantidade de líquido, assim, se cada um se entregar
com satisfação ao cumprimento dos seus
desejos regulados pela razão, mesmo o mais pobre e o menos favorecido pela
fortuna e pela natureza poderá viver contente e satisfeito, embora gozando de
uma menor quantidade de bens". (Ib., IV., 264).
O preceito estóico recebe aqui o seu significado genuíno da regra cartesiana
do pensar claro e d4stinto, regra que impõe o ter em conta os limites das
possibilidades humanas e adequar a tais limites os desejos e as aspirações.
e o não-ser; considera-se que foi criado pelo ser perfeito, não encontra nada
em si que possa conduzi-lo ao erro; mas se considera que participa do nada,
enquanto não é ele próprio o ser supremo, acha-se exposto a uma infinidade de
defeitos entre os quais a possibilidade do erro (Med., IV). Ora,
87
que façamos do nosso livre arbítrio, não nos abstendo do juízo nos casos em
que o entendimento não nos iluminou o bastante (Med., IV; Pritic. Phil.,
1, 34).
88
entendimento nos propõe, ajamos de modo que não sintamos nenhuma força
exterior a coagir-nos". Descartes acrescenta que, para se ser livre não é
necessário que se seja indiferente na escolha entre um ou outro de dois
contrários. Tal indiferença é antes "o mais baixo grau de liberdade" e é mais
defeito do conhecimento do que uma perfeição da vontade. O grau mais alto da
liberdade alcança-se quando a inteligência está provida de noções claras e
distintas que dirigem. a escolha o a decisão da vontade. Neste caso, de facto,
conhece-se' claramente o que é verdadeiro e o que é bom, e não se está na
situação penosa de ter de deliberar acerca
89
rei que proibiu os duelos, por alguma razão procede de modo que dois gentis-
homens do seu reino, que se odeiam de morte, possam encontrar-se, ele sabe que
não deixarão de bater-se e de infringir a proibição; mas nem este seu saber,
nem a vontade que ele tem de que eles se encontrem, tirará o carácter
voluntário e livre ao acto dos dois gentis-homens, que poderão por isso ser
justamente punidos. Ora,
91
Deus, pela sua presciência o seu poder infinitos, conhece todas as inclinações
da nossa vontade, pois que elo próprio as criou; e ele próprio cria e
determina as circunstâncias ou as ocasiões que favoreceram ou não tais
inclinações. Mas nem por isso Deus quis obrigar-nos a agir de um modo
determinado. É necessário distinguir nele "uma vontade absoluta e independente
pela qual quer que todas as coisas aconteçam tal como acontecem e uma vontade
relativa, que se relaciona com o mérito ou o demérito dos homens, pela qual
ele quer que se
com a qual, segundo Molina (§ 373), Deus prevê infalivelmente as acções dos
homens, embora sem as determinar. Na realidade, trata-se da solução tomística
que retornará também, com algumas variantes de linguagem, com Leibniz
(Teodiceia, 165).
importância que tem para o homem a escolha da ocupação a seguir na vida, Ele
próprio declara ter escolhido deliberadamente, e depois de ter considerado a
fundo as várias ocupações dos homens, a de cientista. "Experimentara tão
extremas satisfações, diz ele (Disc., 111), desde que começara a servir-me
deste método, que não julgava poder obter outras mais doces, nem mais
inocentes, nesta vida; e descobrindo todos os dias alguma verdade que me
parecia bastante importante e comummente ignorada pelos outros homens, a
satisfação que isso me
92
dava enchia de tal modo o meu espírito que nada mais me importava-". Todavia,
no fim do Discurso, o próprio Descartes revela-se consciente dos limites das
suas possibilidades, devidos sobretudo à brevidade da vida e à falta de um
número suficiente de experiências. Descartes partiu de princípios muito mais
gerais para explicar os fenómenos simples da natureza, mas reconhece que, as
mais das vezes, os fenómenos podem ser explicados de modos diversos fundados
nos mesmos princípios, e qual destes modos será o verdadeiro é algo que só a
experiência pode decidir. A possibilidade de fazer experiências é, portanto, o
limite da explicação científica. "Eu vejo bem, diz ele (lb., VI), qual o
caminho a seguir, mas vejo também que as experiências, necessárias a tal
objectivo são tais e tantas que nem as minhas mãos nem as minhas riquezas,
mesmo que multiplicadas por mil não poderiam bastar para todas; deverei
contentar-me em progredir no conhecimento da natureza no âmbito limitado das
experiências que posso realizar". A experiência é para Descartes mais a
confirmação de uma doutrina científica do que o seu ponto de partida. Nisso o
seu
93
NOTA BIBLIOGRÁFICA
§ 396. Sobre a função central que a ideia da unidade das ciências tem no
cartesianisnio: CASSIRER, Descartes, EstGcoImo, 1939, p. 39 segs. Sobre
"Descartes, leitor de Montaigne": BRUNSLCHVIGG, D. e Pascal lecteurs de
Montaigne, Neuchatel, 1945.
94
95
II
HOBBES
97
Hobbes foi devida sobretudo aos contactos com o ambiente cultural europeu que
ele estabeleceu durante -as suas viagens e estadias no continente. Estas
viagens foram-lhe proporcionadas primeiro pelas suas tarefas de tutor de um
jovem conde (Wilham Cavendish) e do filho deste, e em seguida pelos
acontecimentos políticos que tornaram por algum tempo, insegura a sua
permanência na Inglaterra. Em 1640 fazia circular entre os amigos Os elementos
de legislação natural e política nos quais sustentava a teoria da
indivisibilidade do poder soberano sem direito divino. Temendo as reacções
negativas ao seu escrito, deixou a Inglaterra e -instalou-se em Paris, onde
permaneceu até 1651. Aí entrou em contacto
com O padre- Marsenne através do qual fez chegar às mãos -de Descartes as suas
Objecções às Meditações. Já nas viagens precedentes se apaixonara pela
geometria de Eucliides, nas quais viia o próprio modelo da ciência e tornara-
se em 1636 amigo de Galileu. Em Paris tornou-se amigo de Gassendi e frequentou
os ambientes libertinos franceses.
98
das tradições. fabulosas", exige Hobbes que o filósofo civil assuma como seu
ponto de partida uma filosofia racional, em vez da velha metafísica
"fabulosa", mostrando as consequências perigosas que tal metafísica, com a sua
doutrina das "essências absolutas" ou "formas substanciais", tem no terreno
político, bem como no domínio científico. Tal metafísica, levando a considerar
a virtude e, daí, também a obediência política como "infusa no homem" ou nele
"ins@2Íada" pelo céu, torna problemá@tica a obediência à lei e coloca os
padres, que administram essa infusão, acima do magistrado civil. Além disso,
tende a estender a **f,@rqa da lei que é apenas "uma regra de acção" aos
pensamentos e às consciências dos homens e a inquirir sobre as suas intenções,
não obstante a
conformidade das suas pa@lavras e das suas acções às leis. Ora, "forçar alguém
(a acusar-se a si mesmo de más opiniões quando as suas acções não são
99
O filósofo que indaga os fundamentos desta comunidade não pode por isso deixar
de partir de uma filosofia que se funde únicamente na razão: quer dizer, que
exclua os erros, a revelação sobrenatural, a autoridade dos livros e se atenha
únicamente à natureza.
Tal investigação é, por outro lado, a única possível que se apresenta à razão
porquanto é a única que gira em torno da realidade acessível ao homem. Só os
corpos existem, segundo Hobbes: todo o conhecimento é por isso conhecimento
dos corpos. A ~física materialista serve a Hobbes para reduzir estatuto ao
homem, à obra do homem na natureza, o domínio do conhecimento humano.
§ 404. HOBBES: A NATUREZA DA RAZÃO
101
a manifestação de uma substância que só o homem possua mas uma função que, a
níveis inferiores, também os animais possuem. Esta função é substancialmente a
da previsão. Também os animais participam desta função que lhes permite
regular a sua conduta em vista do desejo ou desígnio; também os animais são,
portanto, capazes do que Hobbes chama "experiência" ou "prudência", isto, é,
de uma certa ",previsão do futuro mediante a experiência do passado". Mas no
homem esta possibilidade de previsão, que é ao mesmo tempo e na mesma medida
possibilidade de contrôle dos acontecimentos futuros, é de grau muito
superior. De facto, os homens não são apenas capazes de procurar as causas ou
os meios que podem vir a produzir no futuro efeito calculado. coisa que também
os animais podem fazer - mas são, outrossim, capazes de procurar todos os
possíveis efeitos que podem ser produzidos por uma coisa qualquer; ou, por
outros termos, são capazes de prever e planear a longo prazo a sua conduta e a
consecução dos seus fins (Lev., 3). Esta capacidade só se encontra nos homens.
102
103
Mas uma faculdade de raciocinar que consista essencialmente no uso de sinais
artificiais ou convencionais, item caracteres particulares A sua actividade
específica é o cálculo. Diz Hobbes: "Por raciocínio (raciocinatio) entendo o
cálculo. O cálculo consiste em reunir várias coisas para fazer delas uma
soma ou em subtrair uma coisa da outra para conhecer o resto. Raciocinar é a
mesma coisa que adicionar e subtrair; e se se quisesse acrescentar a estas
operações também as de multiplicar e dividi, eu não estaria de acordo porque a
multiplicação é a mesma coisa que a adição de partes iguais e a divisão é a
mesma coisa que a subtracção de partes iguais tantas vezes quanto possível.
Todo o processo do raciocínio se reduz, portanto, a duas operações mentais: a
adição e a subtracção." (De corp., 1, § 2).
Tais operações, no entanto, não concernem ,somente aos números. "Do mesmo modo
que os aritméticos ensinam a somar e a subtrair números, assim os geómetras
ensinam a somar e subtrair linhas, figuras sólidas superficiais, ângulos,
proporções, tempos, velocidade, força, ete., os lógicos ensinam a
mesma coisa a propósito das consequências das palavras juntando dois nomes
para fazer a afirmação e duas afirmações para fazer um silogismo e muitos
silogismos para fazer umademonstração, e, da soma ou conclusão de um
silogismo, subtraem uma proposição para encontrarem outra. Os escritores
políticos adicionam pactos para encontrar os deveres dos homens, e os
advogados leis e factos para encontrar o lícito e o ilícito nas acções dos
particulares. Em suma, em todos os campos em que há lugar para a
104
adição ca subtracção, há também lugar para a razão; e onde tais operações não
encontrem lugar, a razão nada tem a fazer" (Lev., 5).
Entendida como faculdade de calcular, a razão não é nem infalível nem inata;.
é uma capacidade que se obtém com o exercício e que consiste em
105
106
próprias figuras depende apenas do nosso arbítrio; de modo que, para conhecer
a propriedade de uma figura, temos apenas de considerar tudo o que concorre
para a construção que fazemos ao desenhá-la. Precisamente porque somos nós
próprios que criamos as figuras, há uma geometria, e esta é demonstrável"
(lb., 10, § 5).
109
os filósofos distinguem o sujeito das suas faculdades e dos seus actos, isto é
das suas propriedades e das suas essências; já que outra coisa é aquilo que é
e
outra coisa é a sua essência. (Troisièmes objections,
11). Se se faz esta objecção, pode muito bem ser
que a coisa que pensa, isto é, o sujeito do espírito, da razão ou do
intellecto, seja alguma coisa de corpóreo; e deve ser alguma coisa de
corpóreo, porque "todos os actos parecem poder ser entendidos apenas como uma
razão corpórea ou como uma
razão de matériia" (lb., 11). O que quer dizer que todos os actos e todas as
essências podem ser expl-icados racionalmente, segundo Hobbes, apenas mediante
um processo genético que tem início num corpo. Ao corpo, portanto, refere
Hobbes todas as categorias ontológicas. Enquanto é extenso, o corpo chama-se
corpo; enquanto é independente do nosso pensamento chama-se subsistente por
si; enquanto existe fora de nós chama-se existente; enfim, enquanto parece
estar por sob o espaço imagimário, que a razão concebe chama-se suposto ou
sujeito. Por-tanto, o corpo pode definir-se como sendo "tudo o que não
dependendo do nosso pensamento, coincide com alguma parte do espaço". (De
corp., 8, § 1). Por outro lado, o acidente é "a faculdade do corpo pela qual
ele imprime em nós o seu conceito," (Ib., 8, § 2). E o principal acidemte do
corpo é o movimento com que se podem explicar todas as gerações dos corpos.
Sendo assim, todas as partes da filosofia têm por objecto corpos e a diMsão a
filosofia modela-se
111
pela DIVISÃO dos corpos. Como os corpos podem ser naturais e artificiais, A
filosofia será ou filosofia natural que tem por objecto os corpos naturais, ou
filosofia civil que tem por objecto os corpos artificiais, isto é as
sociedades. humanas. E como para conhecer as propriedades das sociedades
humanas é necessário conhecer preliminarmente as mentes, as emoções e os
costumes dos homens, a filosofia civil dividiir-se-á em duas partes, a
primeira das quais, a ética, tratará desses argumentos e a segunda, -a
política, tratará dos deveres civis (Ib., 1. § 9).
112
HOBBES
sim lei em todas as comunidades: por conseguinte, não é para discutir mas para
cumprir (De hom.,
14, § 4).
do tempo que Hobbes define nos mesmos termos que Aristóteles (§ 79). Nem o
espaço nem o tempo nem o próprio mundo podem dizer-se: infinitos. Também neste
ponto retoma as correspondentes doutrinas
113
tem-se o intelecto que é por isso comum ao homem * a todos os animais ca@pazes
(como, por exemplo, o cão) de reagir a chamados ou a censuras. Todavia, tem o
homem a peculiaridade de um intelecto, capaz de formar séries ou conexões, ,
dando -lugar a afirmações ou negações e a outras fórmulas linguísticas, em que
o cálculo, ou a razão, consiste. (Ib., 2). Deste peculiiar intelecto já se
-vi~ os caracteres.
Tal como as sensações, as emoções originam-se dos movimentos que provêm dos
objectos externos. Enquanto que a sensação consiste na reacção do orgão à
acção do objecto, reacção que -se dirige ao exterior, a emoção consiste numa
reacção análoga que, pelo contrário, se dirige, ao interior do corpo que a
experimenta (De hom., 11, § 1). Por conseguinte, a força de que todas as
emoções dependem é o apetite @(ou instinto) que leva a procurar o prazer e a
fugir à dor. Bem e mal são os nomes que se dão, respectivamente, aos objectos
da apetência e da aversão. Chama-se bem aquilo que se deseja, mal aquilo que
se odeia; e não se deseja. qualquer coisa por ser um bem nem se a desama por
ser um mal, mas pelo contrário, chama-se bem a qualquer cosia que se deseja e
mal à que se odeia, O bem e o mal são coisas, relativas às pessoas, aos
lugares, aos tempos. "A natureza do bem e do mal segue a syntucchia [ =
circunstância]" (Ib., 11, § 4), diz Hobbes.
116
coisa pode decidir agir livremente mas pode deixar de desejar aquilo que
deseja (lb. 11, § 2). A própria vontade não passa de um desejo e, como todos
os desejos, é necessariamente determinada. pelas coisas. Quando na mente do
homem se alternam, desejos diversos e opostos, esperanças e temores, e se
apresentam as consequências boas ou más de uma acção possível, tem-se aquele
estado que se chama deliberação: e o termo de deliberação, isto é, "o apetite
ou aversão última a que imediatamente se segue a
acção ou omissão da acção" é o que se chama vontade (Lev., 6). A vontade põe
termo temporariamente às dúvidas, às oscilações, às incertezas do homem, mas
estas renascem logo porque o homem não pode alcançar um estado definitivo de
tranquilidade ou de quietude. Não existe, por isso, segundo Hobbes, um sumo
bem ou um fim último na presente vida do homem. Um fim último geria aquele que
depois do qual nada mais deveria ser desejado. Mas uma vez que o ~o se
acompanha necessariamente da sensibilidade, o, homem que tivesse alcançado o
fim último não só não desejaria mais nada como nem sequer s~ia, púT congegwnte
não viveria verdadeiramente. "0 máximo dos bens, diz Hobbes, é progredir sem
impedimento para novos fins sempre. O próprio gozo daquilo que se desejou é um
desejo, isto é, o movimento da alma que goza. através das partes da coisa de
que goza. A ~ é um movimento perpétuo, que, quando não pode progredir em linha
recta, se transforma em movimento circular" (De hom., 11, § 15).
117
118
São dois, segundo Hobbes "os postulados certíssimos da natureza humana dos
quais procede toda a ciência política: 1 -o desejo natural (cupiditas
naturalis) pelo qual cada um pretende gozar exclusivamente dos bens comuns; 2
- a razão natural, (ratio naturalis) pela qual todos fogem da morte violenta
como do pior dos males naturais (De cive, dedicatória).
O primeiro destes postulados exclui que o homem seja por natureza um "animal
político". Hobbes não nega, a este respeito, que os homens tenham necessi119
dade uns dos outros ("Assim como as crianças têm necessidade da ajuda de
outrem para viverem, assim os adultos precisam dos outros para viver bem", diz
ele); mas nega que os homens tenham por natureza um instinto que os leve à
benevolência e à concórdia recíprocas. O objectivo polémico da sua
amor natural do homem pelo seu semelhante. "Se os homens chegam a acordo para
comerciar, diz ele, cada um interessa-se não pelo sócio mas pelos seus
próprios bens. Se, por dever de oficio, nasce
entre elos uma amizade formal, que é mais temor recíproco do que amor, talvez
nasça uma facção, nunca a benevolência. Se se associam por prazer ou a fim de
se divertirem, cada um compraz-se sobretudo naquilo que excita o riso para se
sentir superior (como é próprio da natureza do ridículo) em
que a pedra é impelida para baixo" (De cive, 1, § 7). Mas este instinto
natural não é, dadas as circunstâncias, contrário à razão, porque não é
contrário à razão tudo fazer para sobreviver. E já que o direito em geral é
precisamente "a liberdade que cada um tem de usar das faculdades naturais
segundo a r~ razão" (lb., 1, § 7), assim o instinto que leva cada homem a
fazer tudo o que está em
121
122
Como se vê, a lei natural de que fala Hobbes nada tem a ver com a ordem divina
e universal nos termos em que a conceberam os Estóicos, os Romanos e toda a
tradição medieval. Para Hobbes, como para Grócio e para todo o subnaturalismo
moderno, a lei natural é um produto da razão humana. Mas a razão humana, que
para Grócio é ainda uma actividade especulativa ou teórica capaz de determinar
de modo absolutamente autónomo, isto é, independentemente de todas as
condições ou circunstâncias e da própria natureza humana, o que é bem ou mal
em si mesmo é, pelo contrário, para Hobbes. uma actividade sujeita ou
condicionada pelas circunstâncias em que opera, uma calculadora capaz de
prover as circunstâncias futuras e de exercer as escolhas que sejam mais
convenientes em
123
paz e defesa, deve renunciar ao seu direito a tudo e contentar-se em ter tanta
liberdade relativamente aos outros quanta a que ele próprio reconheça aos
outros relativamente a sã" (De cive, 2, § 3; L--V., 14). Esta segunda lei não
é, nota Hobbes, senão o próprio preceito evangélico: não fazer aos outros
aquilo que não queres que te façam a ti. Sa significa o
mantidos: de modo que a segunda lei natural é precisamente a que diz que "é
necessário respeitar os pactos, isto é, observar a palavra dada" (L£v., 15; De
cive, 3, § 1).
A seguir Hobbes enuncia outras 18 leis naturais (que são ao todo 20),
nomeadamente: 3 a, a que proíbe a ingratidão; 4.a, a que prescreve o
ser útil aos outros; 5.a , a que prescreve a misericórdia,
124
tuir uma defesa estável para todos. Só se cada homem submeter a sua vontade a
um único homem ou a uma única assembleia. e se obrigar a não resistir ao
indivíduo ou à assembleia a que se submeteu, se obterá uma defesa estável da
paz e dos pactos de reciprocidade em que ela consiste. Desde que esta
transferência é efectuada, tem-se o estado ou sociedade civil, dito também
pessoa civil, porque, conglobando a vontade de todos, pode considerar-se uma
só pessoa. Pode dizer-se assim que o estado é "a única pessoa por cuja
vontade, em virtude dos pactos firmados reciprocamente por muitos indivíduos,
se deve regular a vontade de todos estes indivíduos: daí que se possa dispor
das forças e dos haveres dos particulares para a paz e para a defesa comum"
(De cive, 5, § 9). Aquele que representa esta pessoa (que pode ser indivíduo
ou assembleia) é o soberano e tem poder soberano; todos os outros são
súbditos. "Isto, diz Hobbes, é a origem daquele grande Leviatão ou, para usar
de maior respeito, daquele Deus imortal ao qual devemos paz e defesa: de modo
que, pela autoridade que lhe é conferida por todos os homens da comunidade,
tem tanta força e poder que pode disciplinar, com o terror, a vontade de
todos, com vista à paz interna e à ajuda recíproca contra os inimigos
externos" (Lev., 17).
126
o argumento de que o Estado não se pode obrigar nem para com os cidadãos, cuja
obrigação é unilateral e irreversível, nem para consigo próprio porque ninguém
pode contrair uma obrigação senão para com outro (Ib., 121, § 4).
127
Tudo isto, porém, não significa que a teoria política de Hobbes não ponha
alguns limites à acção do Estado. Nem mesmo o Estado pode ordenar a
um homem que se mate ou se fira a si próprio, ou mate ou fira uma pessoa que
lhe seja querida, que não se defenda ou não tome alimentos, deixo de respirar
ou fazer qualquer outra coisa necessária à vida; nem pode ordenar-lho que
confesse um
128
NOTA BIBLIOGRÁFICA
§ 402. Hobbes: The Elements of Law, Natural and Politic (,ed. Tormies, segundo
os manuscritos), Londres, 1889; Elementorum philosophiae sectio tertia de
cive, Paris, 1642; Leviathan, Londres, 1651; Elem. phil. sectio prima de
corpore, Londres, 1655; Elem. phil. sectio, secunda de homine, Londres, 1658;
The Qestions Concerning Liberty, Necessity and Chance (polémica com o bispo
Brarnha.11), Londres, 1656.
Edições completas das obras: em latim, Opera philosophica, Amsterdão, 1668;
Works, Londres, 1750; Opp. philosophica, ed. Molesworth, 5 vol., Londres,
1839-45; English Works, ed. Molesworth, 11 vol., Londres, 1839-45.
Sobre as obras: G. SORTAIS, La phil. moderne d6puis Bacon jusqu1à Leibniz, II,
Paris, 1922, p. 298 segs.
§ 403. Sobre a doutrina: TõNNIEs, T. H., Estugarda, 1896; LEMIE STEPHEN, H.,
Londres, 1904; TAYLOR, T. H., Londres, 1908; P. BRANDT, T. H.'s Mechanical
Conception of Nature, Londres, 1928: A. LEvi, La fil. de T. H., Milão, 1929;
B. LANDRY, H., Paris,
1930; J. LAIRD, H., Londres, 1934; VIANo, ALEssio, DAL PRA, WARRENDER; POLIN;
130P1310, CATTANEO,
129
130
III
A filosofia de Descartes pode ser considerada sob dois aspectos diversos. Sob
um primeiro aspecto, é uma técnica racional que procede de modo autónomo e
geometricamente, isto é, utilizando apenas as ideias claras e distintas numa
ordem rigorosa. Sob este aspecto, é em primeiro lugar o empenho em realizar a
autonomia da razão empregando a
131
episódio capital dessa luta pela razão que se pode considerar o característico
da cultura filosófica do século XVII. Esta luta tende a fazer prevalecer a
132
de Hobbes, uma outra, para a qual a razão é uma força finita ou condicionada,
cuja esfera de acção se circunscreve aos vários campos da sua actividade e que
em cada um destes campos é subjacente a limites ou a condições diversas. Ambas
estas alternativas compartilham o ideal geométrico da razão e
tradicional escolástica que permanece dominante ainda por muito tempo nas
universidades europeias
133
Por outro lado, o racionalismo não cartesiano dava lugar a outro fenómeno
característico do século, o libertinismo erudito, que utilizava, para a
crítica das crenças religiosas tradicionais, motivos extraídos do Renascimento
italiano, e encontrava na obra de Gassendi a sua principal expressão
filosófica. A obra de Hobbes pode ser considerada, no seu conjunto, como a
primeira formulação rigorosa do conceito da razão finita, conceito que,
retomado por Locke,
134
como o nosso espírito é um modo do espírito infinito. Por isso o homem não
pode fazer nada e deve limitar-se a ser o espectador do que Deus opera nele. A
sua virtude fundamental deve ser a humildade, a qual inevitavelmente o conduz
ao conhecimento de si.
Encontra-se o mesmo carácter limitativo e negativo em relação ao homem na
teoria do conhecimento de Geulincx, segundo a qual o único conhecimento corto
é para o homem o reconhecimento de que as coisas não são em si mesmas coisas
como elo as conhece. Deste ponto de vista, as percepções
137
paixões (amor, ódio, afirmação e negação), ao passo que deve reconhecer a Deus
a sapiência infinita e a ciência de tudo o que existe, desde o movimento e os
corpos até ao espírito e ao próprio homem (Metaph. vera, 111, 6). O
ocasionalismo iria encontrar a sua melhor formulação na teoria da "visão em
Deus" de Malebranche.
138
um filósofo chinês sobre a natureza de Deus (1708). Além destes, são notáveis
os escritos polémicos de Malebranche contra Arnauld, que havia criticado a sua
doutrina no livro Sobre as verdadeiras e falsas ideias. Malebranche faleceu a
13 de Outubro de
1715, depois da visita de Berkeley, que fatigara e
luz das trevas ou das falsas luzes, isto é, a recorrer a verdadeira razão, a
razão cartesiana da evidência necessária, da imaginação e do verosímil.
"A evidência, ou seja, a inteligência, é preferível à fé. Porque a fé há-de
passar, mas a inteligência subsistirá eternamente". A fé é um bem
porque conduz a inteligência e porque sem ela não se podem alcançar certas
verdades, necessárias à virtude e à felicidade eterna. Mas a fé sem a
inteligência não torna o homem virtuoso, uma vez que não o ilumina nem o
conduz à verdade. Deste modo, a razão cartesiana assume em Malebranche um
significado religioso e torna-se no instrumento mais adaptado para a
ilustração e defesa da verdade religiosa. Male139
razão de que fala Malebranche não é a aristotélica (de que falava S. Tomás)
mas a cartesiana.
O método, as regras, os problemas da razão são, segundo Malebranche, os que
Descartes esclareceu. E daí que Malebranche peça ao cartesianismo a resposta
ao problema escolástico do acordo entre razão e fé.
140
alma) nem pela alma. Produzir as ideias significa criar, e nenhuma criatura,
nem mesmo o homem, tem o poder de criar. Malebranche nega terminantemente que
o homem participe, sob este aspecto, da natureza de Deus. Afirma, de acordo
com o ocasionalismo, que a única verdadeira causa de tudo o que acontece é
Deus e que o homem toma por causas as ocasiões de que a vontade divina se
serve para levar a efeito os seus decretos. É uni
141
prejuízo crer que uma bola em movimento que se choca com ou-tra seja a
verdadeira e principal causa do movimento que lhe comunica; ou que a vontade
da alma seja a verdadeira e principal causa do movimento do braço. Este
prejuízo assenta no facto de que a bola é sempre posta em movimento pelo
choque com outra bola e que os nossos braços se movem todas as vezes que o
quisermos. Mas este facto é explicado de modo completamente diverso. Significa
apenas que, na ordem da natureza, certos factos são necessários a fim de que
ocorram outros, embora não sejam a causa destes outros. O embate das duas
bolas é apenas a ocasião para o autor do movimento da matéria executar o
decreto da sua vontade comunicando à outra bola urna parte do movimento da
primeira. E assim a nossa vontade de mover o braço ou de rememorarmos
determinadas ideias é apenas urna ocasião de que Deus se
serve para levar a efeito o seu decreto correspondente (Rech. de la vér., 111,
11, 3).
142
143
144
MALEBRANCHE
garantiu que efectivamente nos criou" (Rech. de la vér., VI, écl.). Mas esta
prova de facto, segundo Malebranche, está feita, porque a fé, efectivamente,
ensina-nos que Deus criou o mundo corpóreo.
duvidar delas seriamente" (Entr. sur la mét., 6, 7). Aqui está indicado o
motivo fundamental que garante a realidade dos corpos externos. A ordem e a
sucessão das ideias no homem seguem as leis gerais que não teriam sentido nem
valor se se prescindisse da ordem e da sucessão das coisas a que as ideias se
referem. Se Deus torna visíveis ao homem as simples ideias segundo uma ordem
estabelecida imutàvelmente, essa ordem concerne também aos objectos de tais
ideias- e por isso pressupõe a realidade desses objectos. As leis da acção
divina implicam as causas ocasionais; se as causas ocasionais das ideias
faltassem por completo, a acção divina, suscitadora das ideias, não teria uma
lei e seria em absoluto arbitrária. O que é contrário a um ponto essencial do
pensamento de Malebranche.
A crítica que Malebranche faz às teses de Descartes sobre este ponto consiste
em mostrar que ela não garante nem a ciência nem a religião. Se as verdades e
as leis fossem estabelecidas só
147
por um acto livre da vontade criadora de Deus, se, numa palavra, a razão que o
homem consulta não fosse necessária, não poderia haver verdadeira ciência. Já
não haveria diferença entre uma verdade eterna (,por exemplo, que duas vezes
quatro é igual a oito e que os três ângulos de um triângulo são iguais a dois
rectos) e uma qualquer proposição dotada de verdade apenas aparente. O recurso
à imutabilidade do decreto divino não basta, já que se
melhor fundamento. "Se a ordem e as leis eternas não fossem imutáveis por
necessidade da sua própria natureza, as provas mais claras e mais fortes da
religião seriam, ao que me parece, destruídas no seu próprio princípio, assim
corno a liberdade e as ciências mais sólidas... Como se poderá provar que é
uma desordem que os espíritos estejam sujeitos aos corpos, se não se tiver uma
ideia clara da ordem e da sua necessidade e se não se souber que o próprio
Deus é obrigado a segui-la pelo amor necessário que dedica a si mesmo?" (Rech.
de Ia vér., X séc.). Este último argumento é para Malebranche decisivo.
Descartes preocupara-se em estabelecer o carácter necessário das verdades
eternas apenas relativamente ao homem e considerara por isso suficientemente
garantido este carácter da imutabilidade de Deus. Mas se aquelas verdades
(pensa Malebranche)
148
não são também necessárias em relação a Deus, não oferecem nenhum meio para
chegar até ele e para se dar conta da vontade divina no que respeita à ordem
que Deus entende que seja respeitada pelos homens. Se, ao invés, essas
verdades são para o próprio Deus necessárias, oferecem a melhor via para
chegar a Deus e para se dar conta claramente das suas vontades no que respeita
ao homem. A preocupação que domina Malebranche neste ponto crucial é portanto
religiosa, ao passo que a preocupação que dominava Descartes ora filosófica e
científica. Por outros termos, a tese de Descartes levava ao agnosticismo
perante os desígnios de Deus que concernem ao homem, isto é, perante os
problemas religiosos. A tese de Malebranche conduz à justificação absoluta da
ordem do mundo e da atitude religiosa que nela assenta. Segundo Descartes,
Deus poderia ter construído o mundo de um outro modo qualquer e o mundo teria
sido igualmente admirável: o que quer dizer, nota Malebranche, que o
Deus criou o mundo "para se conceder uma honra digna de si". Como um
arquitecto se compraz na obra que fez cómoda e bela, assim Deus goza da beleza
do universo, o qual traz em si os caracteres das qualidades de que se gloria,
das qualidades que estima e ama (Ib., IX séc.). Assim o mundo se justifica do
ponto de vista divino porque é a obra
149
150
realidade correspondente nem em Deus nem fora de Deus, tem de se concluir que
os corpos não existem de facto e que a revelação nos engana quando fala da
existência deles. Para fugir a esta
domínio inteiro do conhecimento que o homem pode conseguir com os seus meios
naturais: para lá deste domínio, a fé, como o próprio Descartes dissera, pode
ter livre curso, Arnauld é por isso hostil à tentativa de Malebranche de fazer
intervir Deus a cada passo no curso das operações cognitivas do homem; e a sua
teoria do conhecimento é formulada em nítida antítese com a de Malebranche
contra o qual se dirige polemicamente o escrito em que ela vem exposta: Sobre
as verdadeiras e falsas ideias (1683). Se o conhecimento é para Male5ranche
uma visão em Deus, para Arnauld é a per152
Este ponto de vista, que seria felizmente retomado por Locke, é o fundamento
da Lógica de Porto Real ou arte de pensar que Arnauld escreveu
Deste modo, a lógica vinha assumir aquele carácter (corno hoje se diz)
mentalístico, pelo qual as operações que ela considera são actos ou
actividades do espírito pensante, carácter este que ela conservou por muito
tempo até ao surgir da nova lógica matemática cerca de meados do Oitocentos.
E, por outro lado, o espírito ora concebido corno actividade que une ou divide
um certo material, mas que sobretudo o une, ordenando-o segundo certos
procedimentos ou esquemas. Este conceito do espírito, que estava decerto
implícito na filosofia de
154
§ 417. GASSENDI
155
156
157
foram estas, como se disse, as tarefas que tal filosofia assumiu. Na sua parte
sistemática pretendeu ela ser a conciliação da concepção atomística do mundo
com a religião. E na sua parte polémica foi a defesa de certas exigências que
se revelaram particularmente fecundas nas suas filiações históricas. A
Descartes que (muito erradamente, como se viu) lhe dava na sua resposta o
apelativo de "carne", Gassendi respondia assim: "Chamando-me carne, vós não me
tirais o espírito, e chamando-vos eu espírito, vós não abandonais a vossa
carne. Basta para tanto permitir-vos falar de acordo com o vosso
génio. Basta que, com a ajuda de Deus, eu não seja de tal modo carne que deixe
de ser espírito e que vós não sejais de tal modo espírito que deixeis de ser
carne; de modo que nem vós nem eu estamos abaixo nem acima da natureza humana.
Se vós vos envergonhais da humanidade, eu não me envergonho dela" (Ib., III,
p. 864). Esta reafirmação da natureza humana nos seus limites e nas suas
imperfeições não é, para Gassendi, um puro motivo polémico: implica, ao invés,
para ele o reconhecimento do valor da experiência, dos limites da razão, e
158
Com estas doutrinas, com o tom genericamente céptico das suas considerações,
(deduzidas amiúde de Charron), com a via prudentemente aberta para uma
integração sobrenatural, graças à fé, dos conhecimentos naturais do homem, com
urna ética que defende igualmente o prazer mundano (considerado como ataraxia)
e a felicidade ultramundana, a figura
159
de Gassendi é uma boa imagem das tendências, das aspirações e das confusões
conceptuais de uma
§ 418. O LIBERTINISMO
GASSENDI
Já se disse que Gassendi pertence aos círculos libertinos de Paris, mas foi
sobretudo com François de la Mothe le Vayor (1588-1672), Gabriel Naudé (1600-
53) e Elie Diodati, um dos quatro grandes eruditos que constituem o centro de
atracção do libertinismo francês. Estes amigos de Gassendi foram
161
mais literatos do que filósofos: não partilharam o
são, por sua vez, grandes animais que servem de mundos a outros seres, por
exemplo, nós, aos cavalos, etc.; e nós, por nossa vez, somos mundos em relação
a certos animais incomparavelmente mais pequenos do que nós como certos
vermes, os piolhos, os insectos; estes são ainda a terra de outros animais
mais imperceptíveis, de modo que cada um de nós em particular aparece como um
mundo grande a estes pequenos seres. Talvez a nossa carne, o nosso sangue, os
nossos espíritos não sejam mais do que um tecido de pequenos animais que se
reagrupam, nos emprestam o seu movimento e, deixando-se cegamente conduzir
pela nossa vontade que lhes serve de guia, nos conduzem a nós próprios e
produzem todos juntos aquela acção a que chamamos vida" (Ies états et empires
de Ia lune, p. 92-95).
162
Ainda mais radicais são as negações contidas numa vasta obra intitulada
Theofrastus redivivus, composta provavelmente em 1659. Aqui todos os
menos que se queira indicar com o nome de Deus o sol, que dá vida e calor a
todas as coisas e que, juntamente com os outros astros, dirige o destino dos
seres vivos. O Deus dos teólogos é uma mera entidade racional: o Deus do povo
é apenas a expressão do temor humano. A religião não passa da invenção de um
legislador para refrear os homens
163
Todas as religiões têm por isso o mesmo valor e @;ã@_, igualmente boas, isto
é, igualmente úteis do ponto de vista político. Quanto ao homem, é um animal
entre outros, e como toda a espécie animal possui uma faculdade peculiar,
assim o homem tem a da palavra interior e do discurso, já que a "razão não é
outra coisa do que o discurso com o qual discernimos o verdadeiro do falso e o
bem do mal". Deste ponto de vista, entender, raciocinar e sentir são a mesma
coisa. A conduta do homem é dirigida, como a de qualquer outro animal, pelo
seu
164
melhor, à descoberta de uma religião racional fiel aos podem naturais do homem
e portanto também "natural". Esta religião foi também, em seguida, denominada
deísmo.
Como fundador do deísmo inglês (que no entanto tem na Utopia de Thomas More um
precedente importante) costuma-se considerar Edward Herbert de Cherbuiry
(1583-1648), autor de unia obra intitulada De Veritate, prout distingui a
revelatíone, a verisinúle, a possibili et falso (1624) assim como de escritos
menores: De causis errorum (1624); De religione laici (1624); De religione
Gentíliwn (póstumo,
1663) e de uma autobiografia, também edição póstuma (1764).-0 intento de
Herbert é, declaradamente, o de Ísolar nas várias tradições refigio165
166
167
168
referidos os predicados absolutos (uno, simples, eterno, imóbil, etc.) que são
referidos ao espaço. "0 objecto espiritual, diz More, a que nós chamamos
espaço, é apenas uma sombra evanescente que a verdadeira e universal
natureza da ininterrupta presença divina produz na débil luz do nosso
intelecto, até que estejamos à altura de a ver
com olhos despertos e bastante mais de porto" (Ench. nwt., 1, 8). A extensão
percebida pelos sentidos é o símbolo da realidade inteligível que se
oculta por detrás dela. A matemática que considera o puro esquema espacial dá
já um passo do símbolo para a realidade inteligível. O passo ulterior e
definitivo, é dado pela filosofia que na realidade inteligível do espaço
reconhece o próprio Deus.
169
NOTA BIBLIOGRÁFICA
§ 414. 0LLP-LAPRUNE; La phil. de M., 2 vol., Paris, 1870-72; 1-1. JoLY, M.,
Paris, 1901; J. VIDGRAIN, Le christianisme dans Ia phil. de M., Paris, 1923;
DELBOS, Étude sur Ia phil. de M., Paris, 1924; M. G0UMER, La phil de M. et son
expérience religieuse, Paris 1926; R. W. CHURCE, A Study in the Phil. of M.,
Londres, 1931: A. DEL NOCE, in "Rivista di filos. neo-scolastica", 1934 e
1938; GuÉROULT, M.. 3 V&., ParJ.13,
1955-59.
170
171
172
IV
PASCAL
são do homem como tal, e que a razão é incapaz de chegar a essa compreensão.
vocação religiosa torna-se clara nele. Num escrito (23 de Novembro de 1654)
que foi encontrado depois da sua morte cosido à roupa, deixou-nos o documento
da iluminação que se fez no seu espírito. Eis algumas frases desse documento:
Deus de Abraão, Deus de Isaac, Deus de Jacob. Não dos fi16sofos e dos
cientistas.
A partir desse momento, Pascal começou a fazer parte dos solitários de Port-
Royal, entre os quais havia uma sua irmã que lhe era extremamente
que é o mesmo que dizer que ela é suficiente de nome e insuficiente de facto".
A partir da quinta carta as críticas de Pascal visam as praxes dos jesuítas, a
sua conduta acomodatícia de estenderem os braços a todos: põem em regra
facilmente a
176
consciência dos pecadores mediante uma casuística emoliente, vão, por outro
lado, melindrar as almas verdadeiramente religiosas com os seus severos
directores. Mas já que as almas religiosas são raras, "eles não precisam do
muitos directores severos para as
conduzir. Têm-nos poucos para os poucos, enquanto que a multidão dos casuístas
complacentes se oferece à multidão daqueles que procuram a complacência"
(Lett., V). Na última carta, Pascal retoma a doutrina agustiniana da graça.
Entre os dois pontos de vista opostos, o de Calvino e o de Lutero, segundo os
quais. não cooperamos de modo nenhum para obter a nossa saúde, e o do Molina,
que não quer reconhecer que a nossa cooperação se deve à própria força da
graça, cumpre, segundo Pascal, reconhecer, como S.to Agostinho, que as nossas
acções são nossas por causa do livre arbítrio que as produz; o que elas são
tamb6m de Deus, por causa da graça divina, a qual faz, não obstante, com que o
nosso arbítrio as produza. Assim, como
S.to Agostinho diz, Deus leva-nos a fazer o que lhe aprouve, fazendo-nos
querer o que poderemos não querer de facto. Nesta doutrina, Pascal vê a
verdadeira tradição da Igreja, de S.to Agostinho a S Tomás e a todos os
tomistas, assim como o verdadeiro significado do jansenismo.
Enquanto publicava as Cartas e se aplicava ao
177
178
então a hipótese é falsa; ou então não se pôde ainda derivar um absurdo nem da
sua afirmação nem da sua negação, e então a hipótese permanece duvidosa. Deste
modo, acrescenta Pascal, "para verificar se uma hipótese é evidente não basta
que dela se sigam todos os fenómenos, enquanto que, pelo contrário, para nos
assegurarmos da falsidade de uma hipótese basta que dela decorra algo de
contrário a um só dos fenómenos" (Carta ao padre Noel, de 29 de Outubro de
1647). Nesta atitude, Pascal está bastante mais próximo de Galileu do que de
Descartes; e é uma atitude que permite a
Pascal reconhecer que a experiência é um primeiro limite daquela razão que
Descartes considerava suficiente em si mesma.
179
180
181
objecto próprio o mundo dos homens, ao passo que o espírito geométrico tem
como objecto próprio o mundo exterior. A eloquência, a moral, a filosofia,
fundam-se no espírito de finura, isto é, na compreensão do homem, e quando
dele prescindem, tomam-se incapazes de atingir os seus objectivos. Por isso a
verdadeira eloquência se ri da eloquência geométrica, a verdadeira moral ri-se
da moral geométrica; e o 1@r-se da filosofia torna-se a verdadeira filosofia
(4). Apenas o espírito de finura (o juízo, o sentimento, o coração, o
instinto) pode compreender o homem e realizar uma eloquência ,persuasiva, uma
moral autêntica e uma verdadeira filosofia. O homem não pode conhecer-se como
objecto geométrico, não pode comunicar consigo mesmo e com os outros mediante
uma cadeia de raciocínios. A razão cartesiana encontra-se no mundo humano
completamente deslocada. Este reconhecimento é o verdadeiro início da
compreensão do homem. "Rir-se, da filosofia é verdadeiramente filosofar".
183
Montaigne "o ter complicado tanto as coisas e ter falado demasiado de si" e
diz que o que ele tem de bom pode ser adquirido dificilmente. O filosofar de
Pascal é uma continuação directa do filosofar de Montaigne, mas uma
continuação que tem por fim, último a fé. ao passo que Montaigno tinha por fim
último a filosofia. Toda a obra de Pascal é a tentativa de alcançar a clareza
no tocante ao próprio. destino do homem: uma clareza, não objectiva nem
racional, mas subjectiva e empenhada, de modo a constituir o homem naquilo que
ele verdadeiramente deve ser.
184
PASCAL
tudo: o que temos do ser esconde-nos o conhecimento das primeiras origens que
nos radicam no nada, e o pouco que possuímos do ser oculta-nos a vista do
infinito. A nossa inteligência ocupa, na
estado que nos é natural e que é todavia o mais contrário à nossa inclinação:
ardemos do desejo de encontrar um assento estável e uma base última, para
sobre ela edificarmos, uma torre que se eleve ao infinito. Mas hoje o nosso
fundamento rui e a terra abre-se até aos abismos (72).
Nestes termos define Pascal a condição de instabilidade que é própria do homem
e pela qual ao
185
modo que ele se encontra por cima do nada, pelo menos tanto quanto se encontra
por sob o ser.
186
decidem louvar o homem e os que decidem censurá-lo, assim como os que resolvem
distrair-se. Eu só posso aprovar os que procuram gemendo" (4211). Assim, a
primeira aproximação da natureza do homem faz-nos compreender a sua
incompreensibilidade, revela-nos a sua originalidade absoluta que o faz não
ser nem anjo nem animal. Mas o reconhecimento desta originalidade é difícil:
só se alcança no termo de uma busca que faz sofrer e
homem como estar em pleno repouso, sem paixões, sem nada que fazer, sem
divertimento, sem ocupação. Sente então o seu nada, o seu abandono, a sua
insuficiência, a sua dependência, a sua impotência, o seu vazio. Imediatamente
sair-lhe-á do fundo da alma o tédio, a disposição sombria, a perfídia, a
tristeza, o desgosto, o despeito, o desespero (131).
O valor fundamental de todas as ocupações é que
187
pode ganhar ao jogo ou na lebre que se persegue numa caçada: são coisas que
não se quereria que nos fossem oferecidas. Não se busca o uso tranquilo e
adamado das coisas, que nos faz ainda pensar na
busca-se o tumulto que nos desvia do pensar naquela condição e nos distrai
(139). Nós não procuramos nunca as coisas, mas a busca das coisas. Assim, nas
comédias, as cenas alegres nada valem e nada valem as misérias extremas sem
esperança, os amores brutais, os cruéis rigores (135). Não se
188
olhos perante a sua miséria porque desse modo renuncia ao seu único privilégio
e à sua dignidade: a de pensar. Não se oferece portanto verdadeiramente ao
homem outra alternativa senão o reconhecimento explícito da sua condição
indigente e
§ 425 PASCAL: A FÉ
O homem não pode reconhecer-se no seu não ser senão em referência ao ser; não
pode reconhecer-se no seu erro, na sua dúvida, na sua miséria, senão em
relação, à verdade, ao bem e à felicidade.
O reconhecimento da própria miséria é o início de uma busca dolorosa (buscar
gemendo), que o leva à fé. A fé é , para Pascal, uma atitude total que envolve
todos os aspectos do homem até às suas
189
A fé não é uma evidência nem uma certeza inabalável nem uma posse certa. A
condição humana exclui tais coisas. Se o mundo existisse para instruir o homem
acerca de Deus, a sua divindade esplenderia por toda a parte de um modo
incontestável, mas ele subsiste apenas graças a Jesus Cristo e para Jesus
Cristo, isto é para instruir os homens
acerca da sua corrupção e da sua redenção. Isto não revela, portanto, nem uma
exclusão total nem uma presença manifesta da divindade. Se o homem visse no
mundo bastantes sinais da divindade, julgaria possuí-la e não se daria conta
da sua miséria. Se o homem não visse nenhum sinal da divindade, não saberia o
que perdeu e não aspiraria a reconquistá-la. Para conhecer o que perdeu, deve
ver e não ver: e tal é, precisamente, o estado em que se encontra na natureza
(556). Todas as coisas instruem o homem acerca da sua condição; mas não é
verdade que tudo revele Deus, nem é verdade que tudo esconda Deus. É verdade
ao mesmo tempo que ele se esconde daqueles que o tentam e se revela aos que o
procuram, porquanto os homens são todos indignos de Deus e ao mesmo tempo
capazes de Deus: indignos na sua corrupção, capazes pela sua natureza
originária (557). Tentar a
Mas trata-se de uma busca que não concerne exclusivamente à razão do homem.
Não se pode alcançar a fé mediante demonstrações e provas. As
190
provas que se dão da existência de, Deus, partindo das obras da natureza, só
podem valer para quem já possua a fé, mas não podem produzir a
a sua providência sobre a vida e os bens dos homens para conceder longos anos
felizes aos que o adoram: esse é o papel que lhe atribuem os
se Deus existisse e viver como se Deus não existisse; não pode Subtrair-se a
esta escolha, por191
quanto não escolher é ainda uma escolha: a escolha negativa. Se a razão não o
pode ajudar, impõe-se4he que considere qual a escolha mais conveniente. Trata-
se de um jogo, de unia aposta, em que é necessário considerar, por um lado, o
valor da aposta, por outro, a perda ou a vitória eventual. Ora, quem aposta
pela existência de Deus, se ganha, ganha tudo, se perde, nada perde: cumpre,
portanto, apostar sem hesitar. A aposta já se justifica quando se trata de uma
vitória finita e pouco superior ao valor da aposta; mas torna-se tanto mais
conveniente quanto a vitória é infinita e infinitamente superior ao valor da
aposta. Não quer isto dizer que a infinita distância entre a certeza do que se
aposta e a incerteza do que se pode ganhar tome igual o bem finito que se
arrisca. e que é certo ao infinito que é incerto. Todo o jogador arrisca o
certo para ganhar o incerto; e arrisca pela certa o infinito para ganhar
incertamente o
finito sem pecar contra a razão. Num jogo em que existem iguais probabilidades
de vencer ou de perder, arriscar o finito para ganhar o infinito é
evidentemente uma medida da máxima conveniência.
192
o seu espírito sem que ele de tal se aperceba. Uma vez que o espírito viu onde
está a verdade, precisa de adquirir uma crença mais fácil, que elimine o
contínuo retorno da dúvida, ou seja o
193
NOTA BIBLIOGRÁFICA
194
ESPINOSA
195
Haia, onde passou o resto da sua vida. Em observância ao preceito rabínico que
prescreve que todo o
A primeira obra a que Espinosa lançou mãos foi um Tractatus de deo et homine
eiusque felicitate (conhecido então com o nome de Breve tratado) que se perdeu
e foi reencontrado e publicado por meados de Oitocentos. Neste escrito podem
já distinguir-se com clareza as duas componentes da filosofia de Espinosa, a
neoplatónica e a cartesiana, como também o interesse fundamental desta filo196
Em 1663, foi publicado o único, escrito de Espinosa a que ele deu o seu nome,
Renati Cartesi Principia philosophiae. Cogitata metaphisica. O escrito era, na
origem, um sumário dos Princípios de fil~ia de Descartes, que Espinosa.
compusera para um seu aluno. A podido de alguns seus amigos, o escrito foi
publicado com o apêndice dos Pensamentos metafísicos em que vêm apontadas as
197
sua morte, em 1677, num volume de Obras póstumas que compreendia, além da
Ethica, um Tractatus politicus, um Tractatus de intellectus emendatione, ambos
inconclusos, e um certo número de Cartas. Só muito mais tarde (1852), foi
encontrado e publicado o Breve tratado sobre Deus e sobre o homem e a sua
felicidade na tradução holandesa.
198
Deus. Não há outra substância, isto é, outra realidade independente que não
seja o próprio Deus. Deus torna-se então a origem, a fonte de toda a
realidade, a unidade absoluta (no sentido neoplatónico), a única fonte donde
pode brotar a multiplicidade das coisas corpóreas e dos seres pensantes. Deste
modo, reconduz Espinosa à unidade neoplatónica e à ordem necessária em que a
substância se manifesta os aspectos da realidade que Descartas distinguira e
separara. Sobretudo procura reconduzir a ela o mundo humano: as paixões e a
razão do homem e tudo o que nasce das paixões e da razão: a moralidade, a
religião e a vida política. Daí que tenda a anular toda a separação e
distinção entre a natureza e Deus e a identificá4os, como já fizera Giordano
Bruno (§ 380), a
200
Ética, mas que se apresenta como uma espécie de Discurso sobre o método,
declara Espinosa qual é o escopo do seu filosofar. Esse escopo é o
seu próprio poder de homem (Op., ed. Van Vloten e Land, 1, p. 9). Com vista a
isso, o único conhecimento utilizável é aquele género de percepção em
que o objecto é percebido só através da sua essência ou através da noção da
sua causa próxima, enquanto que são inutilizáveis os outros tipos de
201
percepção, tais como a simbólica, a produzida por uma experiência acidental e
a deduzida inadequadamente de um certo efeito. O conhecimento que é necessário
ao homem é o que se adequa plenamente à ideia do objecto e tem por isso em si
a garantia necessária da sua verdade. O problema do método é o problema da via
que leva a um
de uma dada ideia verdadeira. Mas de que ideia verdadeira já dada deverá o
método procurar a
de nenhuma outra realidade e que para ser concebida não necessita de nenhum
outro conceito. Tal substância é causa de si mesma, no sentido de que sua
essência implica a sua existência e que não pode ser concebida senão como
existente. Ela é infinita, uma vez que não há nenhuma outra substância que a
limite, e consta de infinitos atributos; entendendo por atributo o que o
intelecto dela percebe como constitutivo da sua essência. Devido a esta
infinidade dos atributos, isto é, da essência divina, devem derivar de Deus
infinitas coisas de infinitos modos: de sorte que, enquanto Deus não é causado
por nada e é causa sui, é causa eficiente de tudo o que existe. Cada coisa
existente é portanto um modo, isto é, uma manifestação de Deus. Natura
naturante é a própria substância, isto é, Deus, na sua essência infinita;
natura naturata são os modos, quer dizer, as manifestações simples da essência
divina.
Destas teses fundamentais decorre que nada pode existir fora de Deus e nada
pode existir senão como
um modo de Deus. Mas Deus não produz os infinitos modos mediante uma acção
criadora arbitrária ou voluntária. Tudo procede de Deus devido unicamente às
leis da sua natureza e a liberdade da acção divina consiste precisamente na
sua necessidade, quer dizer, na sua perfeita conformidade com a natureza
divina. Por via desta necessidade nas coisas não há nada de contingente, isto
é, nada existe que possa ser diverso daquilo que é. Tudo é necessário enquanto
é necessariamente determinado pela necessária natureza de Deus. As coisas
203
não poderiam ter sido produzidas por Deus de outra maneira ou noutra ordem
diferente daquela por que foram produzidas. Deus não tem vontade livre ou
Espinosa conclui a primeira parte da sua Ética com uma negação categórica da
vontade humana. Nada existe no mundo que não derive de um aspecto necessário
de Deus e que portanto não seja intrinsecamente determinado. O homem julga-se
liberto porque é consciente da sua vontade mas ignora a
causa que a determina, ora esta causa é o Próprio Deus, que determina a
vontade humana, como todos os outros modos de ser, necessariamente. Nenhuma
diferença existe sob esse aspecto entre o homem e a natureza. Tudo é
necessário num como noutra. A propósito disto, Espinosa faz uma crítica
radical ao finalismo, crítica cuja conclusão é assaz simples: não existem fins
nem para o homem, nem para a
fim, isto é, a uma vantagem ou a um bem que desejam obter. E uma vez que
encontram à sua disposição um certo número de meios paira obterem os seus fins
(por exemplo, os olhos para ver, o sol para iluminar, as ervas e os animais
para se alimentarem, etc.) são levados a considerar as coisas
204
naturais como meios para a obtenção dos seus fins. E como sabem que tais meios
não foram produzidos por si próprios, julgam que foram destinados ao uso deles
por Deus. Assim nasce o preconceito de que a divindade produz e governa as
coisas para uso dos homens, para ligar os homens a si e para ser honrada por
eles. Mas, por outro lado, os homens observam que a natureza lhes oferece não
só facilidades e comodidades, mas também incomodidades e desvantagens de toda
a espécie (doenças, terremotos, intempéries, etc.); e crêem então que estes
infortúnios derivam de não terem venerado devidamente a divindade que por isso
se encoleriza. E, posto que a experiência de todos os dias denuncie e mostre
com infinitos exemplos que as vantagens e os danos se distribuem igualmente
por pios e ímpios, os homens, em vez de abandonarem o seu preconceito,
preferem recorrer a outro
juizo divino supera em larga medida o do homem. Isto, nota Espinosa, teria
bastado para que a verdade se ocultasse eternamente ao género humano, se a
matemática (a qual concorre não aos fins mas somente às essências e às
propriedades das figuras) não houvesse mostrado aos homens uma outra norma da
verdade. Além da matemática, outras causas fizeram com que os homens se
apercebessem destes preconceitos vulgares e fossem reconduzidos ao verdadeiro
conhecimento das coisas.
205
intermédias. Evidentemente, se tais coisas fossem feitas por Deus como meios
para obter um certo
fim, seriam menos perfeitas do que as outras. Mas a doutrina das causas finais
não só tira a perfeição ao mundo, como tira também a perfeição a Deus. Se Deus
agisse para um fim, necessariamente quereria algo de que careceria. Espinosa
afirma a este
não têm valor objectivo nem podem de modo algum valer como critérios para
entender a realidade mesma. Uma vez mais, a correcção de tais preconceitos
faz-se na matemática, na qual já não valem as valorizações individuais e que
por isso subtrai o homem aos prejuízos da imaginação. A perfeição das coisas,
diz Espinosa (Et., 1, ap., Op., 1, p. 61) deve ser valorizada apenas pela
natu206
reza e potência delas, e as coisas não são mais ou menos perfeitas conforme
agradem ou ofendam os sentidos dos homens ou conforme convenham ou repugnem à
natureza humana. Não se procure por isso saber de :onde emanam as perfeições
da natureza, dado que toda a natureza decorre necessariamente da essência de
Deus. Não existem imperfeições na natureza. As leis da natureza divina são tão
amplas que bastam para produzir tudo o que pode ser concebido por um intelecto
infinito. Do ponto de vista deste intelecto infinito e não já do ponto de
vista dos indivíduos e empíricas valorizações humanas, é que cumpre colocar-se
para entender verdadeiramente a natureza do universo em relação com a sua
causa necessária e necessitante, que é Deus. E o apelo à matemática evidencia
a
norma que, segundo Espinosa, deve seguir a autêntica reflexão sobre o mundo.
Ela deve visar exclusivamente à ordem necessária em virtude da qual as coisas,
como modos da substância divina, se deixam deduzir necessariamente dela.
207
que o exame deste aspecto resultaria extremamente frágil e incerto sem uma
preliminar solução do problema da substância, é melhor defrontar neste ponto o
problema mesmo, optando por pôr à prova, na
ESPINOZA
ria agir contra a sua própria natureza. Em conclusão, "a virtude e a potência
da natureza são a própria virtude e potência de Deus e as leis e regras da
natureza os próprios decretos de Deus". Não subsiste portanto o milagre como
uma suspensão das leis da natureza, como se ele não a houvesse sabido criar
bastante potente e ordenada para que servisse em todos os casos aos seus
desígnios. O chamado milagre é apenas um acontecimento ou um facto cuja causa
natural nos escapa, porque é fora do comum ou porque simplesmente aquele que o
narra o não sabe ver. (Tract. teol.-pol., 6). A crença nos milagres pode
conduzir ao ateísmo, porquanto conduz a duvidar da ordem que Deus estabeleceu
para a eternidade mediante as leis naturais.
209
humana razão. O mal é-o não em relação à ordem e às leis da natureza universal
mas apenas relativamente às leis da nossa natureza. Espinosa pretende superar
o ponto de vista da razão humana e colocar-se no ponto de vista da ordem
necessária. Ele declara não reconhecer nenhuma diferença entre os homens e os
outros indivíduos da natureza nem entre os homens dotados de razão e os que
ignoram * verdadeira razão, e entre os fátuos, os delirantes * os sãos. "De
facto, seja o que for que um ser
fazê-lo pela natureza e não poderia fazer de outro modo". De sorte que o
direito natural que para Grócio (§ 348) era a norma da razão, é para Espinosa
definido exclusivamente pela necessidade, pela qual precisamente entra na
ordem natural. "Por direito e instituição natural não entendo outra coisa
senão as regras da natureza de cada indivíduo, segundo as quais o concebemos
naturalmente determinado a existir e a actuar de um certo modo" (Ib.,
16; Tract. pol., 2, 18).
210
tem, segundo Espinosa, um campo bastante restrito, designando a ordem que tem
o seu centro naquela parte da natureza que é o homem. Por outro lado, todavia,
é verdade que a substância, como ordem necessária, é norma da razão e é em
geral o princípio a que ela deve adequar-se nas suas valorizações para
chegar ao terceiro género de conhecimento, isto é, ao conhecimento
pleno e perfeito (§ 43 1).
Em segundo lugar, a substância não pode ser considerada como causa (segundo a
outra das duas interpretações fundamentais), porque a causa deixa fora de si
aquilo de que é causa; e a substância é ao mesmo tempo naturante e natureza
naturada, porquanto, como ordem necessária, compreende ao
211
divina. Mas a exclusão da doutrina da criação significará que ele tenha aceite
a doutrina da emanação? Na doutrina de Espinosa, não há vestígios de tal
aceitação, que teria feito da sua doutrina a exacta repetição da doutrina de
Bruno. É preciso não esquecer que entre Espinosa e Bruno se encontram Galileu,
Descartes, Hobbes: é a primeira formação da ciência, inteiramente polarizada
em torno do principio da estrutura matemática do universo. Assim se explica
por que é que a matemática é explicitamente invocada por Espinosa como
salvação dos preconceitos (Et., 1, ap.), assim como se explica a
unidade é a própria conexão dos modos e os modos realizam no seu ser e no seu
agir a ordem unitária. "Qualquer que seja o modo como concebamos a natureza,
diz Espinosa (Et., H, 7, escol.), sob o
213
vez que os modos não são senão Deus e Deus não é senão os modos (Ib., 11, 9).
ideia de uma coisa existente, de um objecto real. Esta coisa existente, este
objecto real cuja ideia é a alma humana, é o corpo, que é um modo da extensão.
O homem consta portanto de mente e
corpo. E uma vez que o corpo é o objecto da ideia da mente, esta terá a ideia
também de todas as modificações que são produzidas no corpo pelos outros
corpos. Assim, a ideia que constitui a alma humana não é una mas multíplice,
já que implica
214
as ideias de todas as modificações que o corpo, seu objecto, sofre, e por isso
igualmente das dos outros corpos enquanto modificam o próprio corpo. Daí que a
mente humana considere como existente em acto não só o corpo que ela tem por
objecto, mas também os corpos exteriores que sobre ela actuam (lb., 11, 17). A
mente não conhece os corpos exteriores senão por meio das ideias das
modificações do próprio corpo, e estas ideias são sempre confusas, porque não
são situadas e reconhecidas na ordem necessária da sua derivação de Deus (da
qual são modos) e portanto são, diz Espinosa, "consequências sem premissas"
(lb., 11, 28). O carácter confuso e inadequado das ideias não lhes tira
todavia a necessidade, porque também as ideias inadequadas e confusas são
modos de Deus e participam da sua absoluta necessidade. E uma vez que o erro
215
ideias particulares, Espinosa expõe as vantagens que resultam para o homem das
teses que afirma haver demonstrado. A primeira vantagem fundamental é a de que
o homem, convencendo-se de que age apenas conforme o querer de Deus,
tranquiliza
Esta atitude inspira o estudo das emoções nas últimas partes da Ética.
Iniciando este estudo, declara Espinosa que ele considera as emoções não como
coisas que estão fora da natureza, mas como coisas naturais e sujeitas às leis
comuns da natureza. Espinosa está convencido de que a natureza
Sobre esta base construiu Espinosa a sua geot@7,etr,;(1 das emoções que é ao
mesmo tempo a análise da escravidão e da liberdade humana, dado que considera
o poder das emoções sobre o homem
217
e o poder do homem sobre as emoções. Tal análise baseia-se num reduzido número
de princípios, que não são propriamente do homem mas pertencem a todos os
entes em geral. O princípio fundamental é o de que cada coisa tende a manter o
seu próprio ser e que este esforço (conatus) de autoconservação constitui a
essência actual da coisa mesma (Et., M,
6-8). Quando este esforço se refere só à mente chama-se vontade; quando se
refere ao mesmo tempo à mente e ao corpo chama-se apetite. O apetite é a
homem não tem em vista, quer, deseja ou cobiça uma coisa porque a tem em
vista, a quer, a deseja
Deste instinto do homem, instinto que não tem outro fim senão a conservação do
próprio ser, derivam as emoções fundamentais. Por emoção entende-se, segundo
Espinosa, a passividade da mente que consiste na inadequação e confusão das
ideias. A mente sofre quando possui ideias inadequadas e
confusas; age quando possui ideias adequadas. A ideia adequada é a ideia que
se sabe claramente ser derivada de Deus e de que se conhecem por isso os
feitos que derivam claramente dela enquanto é um modo da essência divina. Quem
tem uma ideia adequada realiza por isso necessariamente alguma coisa (lb.,
111, 1). Posto isto, as emoções
218
219
sentido de que aumenta o poder de agir que está implícito na sua essência.
Para o homem, por exemplo, a perfeição constituirá no passar do conhecimento
inadequado e confuso, pelo qual é passivo, ao conhecimento adequado, pelo qual
se torna activo e liberto.
Este ponto de vista faz do mal e do bem valores que são tais unicamente em
relação com a
desejo fundamental que o constitui. E uma vez que este instinto visa a
autoconservação, o bem será aquilo que serve a tal conservação, o mal aquilo
que a perjudica (Ib., IV, 8). Deste modo o bem é identificado ao útil, e a
busca do útil torna-se a forma fundamental da razão. "A razão, diz Espinosa"
(Ib., IV, 18, esc.), nada exige contra a natureza; mas ela mesma exige que
cada um se ame
da razão. Por isso Espinosa diz que o bem ou o mal para o homem são
verdadeiramente aquilo que
220
permite entender e aquilo que impede de entender Ub., IV, 26). E visto que o
mais alto objecto que o homem pode entender é Deus, o sumo bem da mente humana
é o conhecimento de Deus (lb., IV, 28).
Seguir a razão significa para o homem ser activo, quer dizer ter ideias
adequadas. A emoção, ao invés, é uma ideia confusa; e a emoção não é nunca um
absoluto poder do homem porque o
homem é uma parte da natureza e as suas emoções são determinadas também pelas
outras partes da natureza. Sucede, assim, que uma emoção não pode ser
reprimida ou destruída senão por uma
e a generosidade a essas emoções más. "Quem sabe bem, diz Espinosa (Ib., IV,
50, esc.) que tudo deriva da necessidade da divina natureza e acontece segundo
as leis e as regras eternas da natureza,
221
virtude humana esforçar-se-á por agir bem, como se, diz, e por ser alegre. É
de acrescentar que quem facilmente se deixa possuir pela compaixão e se
comove com a miséria e as lágrimas de outros, muita vezes faz coisas de que se
arrepende; seja porque, pelo impulso da emoção, não fazemos nada que saibamos
verdadeiramente ser bom, seja porque somos enganados facilmente pelas falsas
lágrimas. E aqui eu falo expressamente do homem que vivo tendo por guia a
razão. Visto que não é induzido nem pela razão, nem pela compaixão a dar ajuda
aos outros, é justamente considerado desumano por parecer dissemelhante do
homem." Neste passo tão característico de Espinosa patenteia-se o modo como
ele entende substituir a emoção pela razão como guia do homem e como entende a
razão como a recta consideração do útil religando-a assim ao impulso da
autoconservação e
da vida (lb., IV, 67). O pensamento da morte 'surge a Espinosa como temor da
morte e portanto
222
como estranho a quem deseja "agir, viver, conservar o seu próprio ser tendo
por base a busca do seu próprio bem". Também na consideração da escravidão
humana, Espinosa é optimista. O mal é uma ideia inadequada porque é a própria
tristeza que corresponde à passividade e à imperfeição do homem. Donde se
segue que a mente humana não teria noção do mal, se tivesse apenas ideias
adequadas (Ib., IV, 64, cor.) e que não haveria distinção entre bem e mal se o
homem nascesse livre e permanecesse livre, uma vez que quem é livre tem apenas
ideias adequadas. Espinosa nota logo que a hipótese não é verdadeira, mas o
tê-la formulado revela a sua convicção íntima de que o
O homem que domina as emoções, o homem livre, é aquele que, tendo compreendido
a natureza das emoções, é capaz de agir independentemente delas. A emoção faz
agir o homem com mira na alegria e na tristeza, mas a alegria e a
223
emoção é, de facto, uma ideia inadequada e confusa que a mente pode levar à
adequação e à distinção subtraindo-se assim à passividade que ela implica
(Ib., V, 3). Mas compreender adequadamente uma razão significa compreender a
sua necessidade, pela qual é natural e inevitável. O reconhecimento desta
necessidade é a primeira condição do domínio humano sobre as emoções. Chora-se
menos
224
COMO NECESSIDADE
225
226
potência de uma coisa natural qualquer não é mais do que a potência de Deus
que é livre em sentido absoluto. Espinosa entende então por direito natural
"as próprias leis ou regras naturais segundo as quais todas as coisas ocorrem,
isto é, o próprio poder da natureza. O direito natural de toda a natureza e,
consequentemente, de cada indivíduo estende-se tanto quanto o seu poder. Tudo
o que um homem faz segundo as leis da sua natureza fá-lo por sumo
direito de natureza e tem sobre a natureza tanto direito quanto o seu poder
vale." (Tract, pol., 24). Estas expressões do Tratado político são apenas
verbalmente diversas das que Espinosa empregara no Tratado teológico-político
para definir o direito
227
Ora se a natureza humana fosse tal que os homens vivessem apenas segundo os
preceitos da razão e não procurassem mais nada, o direito natural próprio do
género humano seria determinado só pelo poder da razão. Mas os homens são
guiados mais pela cega cupidez do que pela razão e portanto o poder natural
dos homens, quer dizer o
direito, não deve ser definido pela razão mas pelo instinto, pelo qual os
homens são determinados a agir e pela qual tendem à sua própria conservação.
Certamente, este instinto não se origina na razão e, por conseguinte, é mais
paixão do que acção. Mas do ponto de vista do direito natural, isto é, do
poder universal da natureza, não é possível reconhecer nenhuma diferença entre
as tendências que
228
são geradas pela razão e aquelas que têm outras causas, pois que umas e outras
são efeitos da natureza e manifestam a força natural pela qual o
homem tende a conservar o seu próprio ser. Uma vez mais Espinosa declara a
este propósito que "o homem, quer seja sapiente ou ignorante, é parte da
natureza e tudo aquilo por que é determinado a agir deve ser referido ao poder
da natureza enquanto é definida e limitada pela natureza deste ou daquele
homem particular. Portanto, tudo o que o homem faz, quer guiado pela razão,
quer guiado pela cupidez, é conforme às leis e às regras da natureza, quer
dizer ao direito natural (Tract. pol., 2, 5; Tract. teol.-pol., 16).
poder de outros e que está no seu direito enquanto pode repelir toda a
violência, punir segundo o seu critério o dano que lhe fizeram e, numa
palavra, viver a seu talante. Mas esta condição determina aquela que já Hobbes
denominara guerra de todos contra todos. O homem não pode defender-se sózinho
e o seu direito natural sobre tudo é tornado
229
nulo e fictício pela hostilidade dos outros. Se. além disso, se considera que
os homens nem sequer podem prover às suas necessidades sem uma ajuda
recíproca, vê-se logo que o direito de natureza do género humano implica que
os homens tenham direitos comuns e que procurem viver segundo um
acordo comum. E como quanto mais os indivíduos se associam tanto mais cresce o
seu poder e portanto o direito deles, assim a sua associação determina um
direito mais forte que pertence àquilo que se chama governo (Tract. Pol., 2,
17). O surgir de um direito comum, devido à instituição de um governo, isto é,
de uma multidão organizada, faz nascer as valorizações morais que fora dele
não têm sentido. Tal como Hobbes, afirma Espinosa que tais valorizações apenas
se justificam no âmbito de uma comunidade organizada, a qual condena e pune
como sendo pecado qualquer transgressão às normas que estabeleceu. A justiça e
a injustiça nascem
assim por obra do direito comum. A origem destas valorizações nada tem a ver
com a razão. Todavia, uma vez que um governo deve sempre fundar-se na
razão e que, por outro lado, a razão nos ensina a desejar uma vida pacífica e
honesta, o que só pode efectuar-se no âmbito do Estado, assim se pode chamar
pecado aquilo que vai contra os ditames da razão (Ib., 2, 21). Mas a
coincidência entre a racionalidade e as normas de direito comum é parcial e
acidental, segundo Espinosa. As normas do direito comum têm a mesma validez
que as normas de direito natural: só são válidas enquanto necessárias, nada
mais. De facto, o direito do
230
Espinosa não afirma no entanto, como Hobbes, que o direito do Estado seja
absoluto, quer dizer ilimitado. Como todas as outras coisas naturais, o Estado
não pode existir e conservar-se se não se conformar às leis da própria
natureza. O limite da sua acção é portanto determinado por aquelas leis sem as
quais ele cessa de ser "estado".
O Estado, diz Espinosa, peca quando faz ou tolera
231
coisas que podem causar a sua ruina; peca no sentido em que os filósofos e os
médicos dizem que peca a natureza, isto é, no sentido de que age contra a
ditame da razão. Por outros termos, o Estado está submetido a leis no mesmo
sentido em que o
Por outro lado, a vida do Estado é de qualquer modo garantida pela própria
natureza do homem. Os homens unem-se para formar uma comunidade política, na
qual constituam como que uma alma só, não por um impulso racional, mas por
alguma paixão, como a esperança e o temor. E visto que todos têm medo do
isolamento, já que ninguém tem forças bastantes para se defender e obter as
coisas necessárias à vida, daí se segue que todos desejam naturalmente o
estado social e que não é possível que os homens o destruam alguma vez por
completo. Nem mesmo das desordens intestinas pode jamais nascer a completa
dissolução do Estado, como sucede com as outras associações, mas tão-só uma
mudança de forma (Ib., 6, 1).
232
233
as penas e estimulou-os com os prémios: meios que nada têm a ver com a ciência
e apenas visam à obediência. A doutrina evangélica não contém nada mais do que
a simples fé, ou seja, o crer em
2.1'-Deus é único. Ninguém pode duvidar de que também esta é uma condição
absoluta da devoção, da admiração e do amor por Deus, visto que estas coisas
nascem apenas da convicção da excelência de um ser acima de todos os outros.
3.o - Deus está presente em toda a parte e tudo conhece. Se se julgasse que
algumas coisas lhe esca234
4.'-Deus tem o supremo direito e domínio sobre todas as coisas e faz tudo, não
por constrição, mas por seu absoluto beneplácito e por graça singular. Todos
de facto têm o dever de lhe obedecer, mas ele não tem qualquer obrigação seja
para com
quem for.
que se arrependem. Não há ninguém que não peque; se portanto não houvesse a fé
na remissão dos pecados, todos desesperariam da sua salvação e
não teriam razão para crer na misericórdia de Deus. Pelo contrário, aquele que
crê firmemente que os
pecados dos homens são remidos por Deus arde de amor por ele e por isso
verdadeiramente conhece Cristo segundo o espírito, e Cristo é nele.
236
todos os seus direitos, até ao ponto de eles nada poderem fazer sem a vontade
dos que governam. Em qualquer comunidade política, o homem conserva uma parte
dos seus direitos; e o direito mais cioso o menos transferível é a faculdade
de pensar o de julgar livremente. Sobre esta faculdade não é possível exercer
qualquer forma de coacção. Os governos podem fazer calar a língua dos homens,
mas não o seu pensamento. É preciso por isso incluir entre os governos
violentos o que pretende exercer uma coacção sobre o pensamento o prescrever a
cada um o que deve ter por verdadeiro e por falso
e as opiniões por que deve ser movido na sua devoção a Deus. "0 fim do Estado,
diz Espinosa (Tract.-teoUpol., 20) não é o de transformar os homens, seres
racionais, em animais ou em máquinas, mas, pelo contrário, o de garantir que a
mente e o corpo deles desempenhem com segurança as suas funções, que se sirvam
da livre razão e não se combatam com ódio, ira ou engano nem se defrontem com
espírito de inquidade". O fim do Estado é, de facto, a liberdade,
237
NOTA BIBLIOGRÁFICA
238
L. BRUNSCi-IVIGG, S., Paris, 1894, 19062; F. POLLOCK, S., Hís Life and
Philosophy, Londres> 1899, 19122; DELBOs, Le spinozisme, Paxis, 1906,
CASSIRER, Erkenntnissproblem, 11, p. 74 segs.; A. GUZZQ, Il pewiero di S.,
Florença, 1924; "EUD£NTIIAL-GEBHARDT, S, SCin Leben und seine Lehre,
Heidelberga, 1927; DUNIN-BoRi@.owsKI, S., 4 vol., Müwteri, W., 1933-36.
obra: DELBOS, Le Vroblème moral dans Ia phil. de S., Paris, 1893; EUSOLT, Die
Grundzüge der Erkenntnistheorie und Metaphysie, s. s., Berlim, 1875; SPAV£NTA,
Seritti filosofici, Nápoles, 1900.
239
ÍNDICE
VII- AS ORIGENS DA CIÊNCIA ... ... ... 1
§ 388. L~ardo ... ... ... ... ... ... 7 § 389. Copérrxioo.
Xepler ... ... ... ... 11 §390. Galileu: Vida e
Obras ... ... ... 14 §391. Galileu: o método da ciência
... 17 §392. Racori. Vida; e Escritos ... ... 24
QUINTA PARTE
241
11 - HOBBES
97
§ 402.
97
§ 403.
93
§ 404.
101
§ 405.
106
§ 406.
109
§ 407.
113
§ 408
O Homem
115
§ 409.
natural
119
§ 410.
125
129
A LUTA PELA RAZÃO ... ... ... ...
131 1
§ 411.
131
§ 412.
135
§ 413.
138
§ 414.
141
§ 415.
146
§ 416.
§ 417.
155
§ 418.
160
§ 419.
na Tipografia N....
Porto