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HIstória da Filosofia

Volume seis
NicolA Abbagnano

DIGITALIZAÇÃO E ARRANJOS:
Ângelo Miguel Abrantes.

HISTÓRIA DA FILOSOFIA

VOLUME VI

TRADUÇÃO DE: ANTóNIO RAMOS ROSA

CAPA DE: J. C.

COMPOSIÇÃO E IMPRESSÃO
TIPOGRAFIA NUNES R. José Faldo, 57-Porto

EDITORIAL PRESENÇA - Lisboa 1970

TITULO ORIGINAL STORIA DELLA FILOSOFIA

Copyright by NICOLA ABBAGNANO

Reservados todos os direitos para a língua portuguesa à EDITORIAL PRESENÇA,


LDA. - R. Augusto Gil, 2 cIE. - Lisboa

VII

AS ORIGENS DA CIÊNCIA

§ 388 LEONARDO

O resultado último do naturalismo do Renascimento é a ciência. Nela confluem:


as pesquisas naturalísticas dos últimos Escolásticos que tinham dirigido a sua
atenção para a natureza, desviando-a do mundo sobrenatural considerado desde
então inacessível à pesquisa humana; o aristotelismo renascentista, que
elaborara o conceito da ordem necessária na natureza; o platonismo antigo e
novo, que insistira na estrutura matemática da natureza; a magia, que havia
patenteado e difundido as técnicas operativas destinadas a subordinar a
natureza ao homem; e, finalmente, a doutrina de Telésio, que afirmara a
autonomia da natureza, a exigência de explicar a natureza por meio da
natureza. Por um lado, todos estes elementos são integrados pela ciência
mediante a redução da natureza à pura objectividade mensurável: a um complexo
de formas ou coisas constituídas essencialmente por determinações
quantitativas e sujeitas por isso a leis matemáticas. Por outro lado, os
próprios elementos são purificados pelas conexões metafísico-teológicas, que
os caracterizavam nas doutrinas a que originariamente pertenciam. Assim a
ciência elimina os pressupostos teológicos a que permaneciam vinculadas as
investigações dos últimos Escolásticos; elimina os pressupostos metafísicos do
aristotelismo em que assentavam a magia e a filosofia de Telésio. Nesta
direcção, pode dizer-se que a ciência da natureza foi orientada pelas
intuições antecipadoras de Leonardo de Vinci.

Leonardo de Vinci (1452-1519) considerou a arte e a ciência como tendentes a


um único escopo: o

conhecimento da natureza. A função da pintura é a de representar para os


sentidos as obras naturais; e por isso ela estende-se às suas superfícies, às
cores, às figuras daqueles objectos naturais de que a ciência procura conhecer
as forças intrínsecas (Tratt. della pitt. ed. Ludwig, n. 3-7). Arte o ciência
assentam ambas em dois pilares de todo o

conhecimento verdadeiro da natureza: a experiência sensível e o cálculo


matemático. De facto, as artes,

e em primeiro lugar a pintura, que Leonardo coloca acima de todas as


artes, procuram nas coisas a proporção que as faz belas e
pressupõem um estudo directo que procura descobrir nas coisas, mediante a
experiência sensível, aquela mesma harmonia que a ciência exprime nas suas
leis matemáticas. O vínculo entre arte e ciência não é, portanto, acidental na
personalidade de Leonardo: é fruto da faina única que Leonardo se propõe:
buscar na natureza

a ordem mensurável que é ao mesmo tempo proporção evidente, o número que é


também beleza.

Leonardo exclui da pesquisa científica toda a

autoridade e toda a especulação que não tenha o

seu fundamento na experiência. "A sabedoria é filha da experiência" (ed.


Richter, n. 1150). A experiência jamais engana; e os que se lamentam dos seus
logros deveriam antes lamentar-se da sua

ignorância porque pedem à experiência aquilo que está para lá dos seus
limites. Em contrapartida, pode o juízo enganar-se sobre a experiência; e para
evitar o erro não há outra via senão reduzir todos os juízos a cálculos
matemáticos o servir-se exclusivamente da matemática para entender e
demonstrar as razões das coisas que a experiência manifesta (Cod. atl., fol.
154 r). A matemática é o

fundamento de toda a certeza. "Quem censura a suma certeza da matemática


padece de confusão, e nunca porá termo às contradições das ciências sofísticas
com as quais se aprende um eterno

estridor" (ed. Richter, n. 1157). Por isso Leonardo faz seu o autêntico
espírito de Platão e a legenda que se encontrava à entrada da Academia: "Não
entre nesta casa quem não for matemático." Ub., n. 3). A experiência e o
cálculo matemático revelam a natureza na sua objectividade, isto é, na
simplicidade e na necessidade das suas operações. A natureza identifica-se com
a própria necessidade da sua ordenação matemática. "A necessidade é tema e
inventora da natureza, é freio e

regra eterna" (Ib., n. 1135). Nestas palavras é reconhecida claramente a


essência última da objectividade da natureza: a necessidade que lhe determina
a ordem mensurável e se exprime na relação causal entre os fenómenos. É
precisamente esta necessidade que exclui toda a força metafísica ou mágica,
toda a interpretação que prescinda da experiência e que queira submeter a
natureza a princípios que lhe são estranhos. Tal necessidade, enfim,
identifica-se com a necessidade própria do raciocínio matemático, que exprime
as relações de medida que constituem as leis. Entender a "razão" na natureza
significa entender a "proporção" que não se encontra apenas nos números e nas
medidas, mas também nos sons, nos
pesos, nos tempos, nos espaços e em qualquer potência natural (ed. Ravaisson,
fol. 49 r ). Foi precisamente a identificação da natureza com a necessidade
matemática que conduziu Leonardo a fundar a mecânica e a pôr em luz pela
primeira vez os seus princípios. "ó admirável e estupenda necessidade, tu
compeles, com a tua lei, todos os efeitos, por brevíssima via, a participarem
das suas causas e, com suma e irrevogável lei, todas as acções naturais te
obedecem" (Cod. ad., fol. 345 v). Ele pôde assim chegar a formular a lei de
inércia, o principio da reciprocidade da acção e da reacção, o teorema do
paralelogramo das forças, o da velocidade e outros conceitos fundamentais da
mecânica que deviam encontrar em Galileu a sua forma definitiva- A mole imensa
dos seus manuscritos contém

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uma soma de intuições felizes, de descobertas, de sinais precursores nos


campos mais dispares da ciência, da anatomia à paleontologia, e testemunha a
perseverança com que Leonardo prosseguiu no

estudo da natureza, não já com o fim de a enquadrar em fórmulas metafísicas ou


teológicas ou de a vergar às operações miraculosas da magia, mas

unicamente com o intuito de a reduzir à objectividade empírica e à necessidade


matemática.

§ 389. COPÉRNICO. KEPLER

Nikolaus Copernicus (Kopernicki) partiu do princípio pitagórico-platónico da


estrutura matemática do universo para chegar a uma precisa formulação
matemática da nova cosmologia. Nascido em Thorn a 19 de Fevereiro de 1473,
estudou na Universidade de Cracóvia e depois em Bolonha, Pádua e Ferrara, onde
se doutorou em direito canónico (1503). Após uma segunda estada em Pádua
(1503-06), voltou à pátria, onde viveu entre os cuidados administrativos de um
canonicato e os estudos astronómicos. Morreu em Frauenburgo a 24 de Maio de
1543. A sua obra fundamental De revolutionibus orbium celestium libri VI, foi
publicada poucos meses depois da sua morte. Dedicada ao pontífice Paulo IU,
apareceu com um prefácio de Osiander, que limitava o
alcance da doutrina de Copérnico apresentando-a
como uma simples "hipótese astronómica", que não representava uma renovação
relativamente à concepção do mundo estabelecida pelos Antigos. E, na
realidade, só mais tarde foi entendido o alcance

revolucionário da doutrina de Copérnico que assinala a destruição definitiva


da cosmologia aristotélica. Copérnico, de facto, mostrou como todas as
dificuldades que esta cosmologia encontrava na explicação do movimento
aparente dos astros se resolveram facilmente admitindo que a terra gira em
torno de si mesma, em vez de a considerar o centro imóvel dos movimentos
celestes, ele reconheceu três movimentos da terra: o diurno em torno do
próprio eixo, o anual em torno do sol e o anual do eixo terrestre
relativamente ao plano da elíptica (De rev. 1, 5). Copérnico mostrou que esta
hipótese representava uma enorme simplificação no que concernia à explicação
dos movimentos celestes e por isso era conforme ao procedimento da natureza
que tende a atingir os seus efeitos pelos meios mais simples (Ib., 1, 10).
Mostrou também como, por sua vez, os cálculos matemáticos se simplificaram,
prestando-se facilmente a explicar a
observação astronómica.

A doutrina de Copérnico foi atacada por motivos religiosos, quer por


católicos, quer por luteranos. Um astrónomo dinamarquês, Tycho Brahe (1546-
1601), benemérito coleccionador de observações astronómicas, sustentava que só
a terra, a Dia e o sol giravam em torno do eixo terrestre, enquanto que os
outros planetas giravam em tomo do sol. Mas das próprias observações de Tycho
Brahe, o seu amigo e discípulo Kepler tirou a mais importante confirmação da
doutrina copernicana, mediante a descoberta das leis reguladoras do movimento
dos planetas.

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Johannes Kepler nasceu a 27 de Dezembro de


1571 em Weil, perto de Estugarda, foi professor de matemática e assistente de
Tycho Brahe e morreu em Regensburgo a 15 de Novembro de 1630. Teve de lutar
asperamente com protestantes e católicos pelas suas ideias e só a custo logrou
obter os meios para publicar as suas obras, uma vez, teve mesmo de empregar-se
para salvar da fogueira sua

mãe, acusada de bruxaria. Na sua primeira obra, Prodronws dissertationum


cosmographicarum, continem mysterium cosmographicum de adnúrabili proportione
celestium Orbium (1596), exaltou firmemente a beleza, a perfeição e a
divindade do universo e via nele a imagem da trindade divina. No centro do
mundo estaria o sol, imagem de Deus Padre, do qual derivariam todas as luzes,
todo o calor e toda a vida. O número dos planetas e a sua disposição em torno
do sol obedeceria a uma
precisa lei, de harmonia geométrica. Os cinco planetas constituiriam de facto
um poliedro regular e mover-se-iam em esferas inscritas ou circunscritas ao
poliedro delineado pela sua posição recíproca. Nesta obra, ele atribuía o
movimento dos planetas a uma alma motora ou à alma motriz do sol; mas este
mesmo esforço para encontrar nas observações astronómicas a confirmação dos
filosofemas pitagóricos, ou neoplatónicos conduziu-o a abandoná-los. Nos seus
escritos astronómicos e ópticos, substituiu as inteligências por forças
puramente físicas; considera o mundo necessariamente participe da quantidade e
a matéria necessariamente ligada a uma ordem geométrica. Permaneceu por

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isso sempre fiel ao princípio de que a objectividade do mundo está na


proporção matemática implícita em todas as coisas. Era o mesmo principio que
animara Leonardo; e a ele se deve a descoberta principal de Kepler: as leis
dos movimentos dos planetas. As primeiras duas leis (as órbitas descritas
pelos planetas em torno do sol são elipses de que um dos focos é ocupado pelo
sol; as áreas descritas pelo raio vector (o segmento de recta que liga o
planeta ao sol) foram publicados na Astronomia nova de 1609; a terceira lei
(os quadrados dos tempos empregados por diversos planetas a percorrer as suas
órbitas estão entre si como os cubos dos eixos maiores das elipses descritas
pelos planetas) aparece pela primeira vez no escrito Harmoníces mundi de 1619.
Foram as observações de Tveho Brahe que permitiram a Kepler descobrir as suas
leis e corrigir assim a doutrina de Copérnico, que admitia o movimento
circular dos planetas em torno do sol. Mas a descoberta de Kepler confirmava
definitivamente a validade do procedimento que reconhece a verdadeira
objectividade natural da proporção natural.

§ 390. GALILEU: VIDA E OBRAS


Galileu Galilei nasceu em Pisa a 15 de Fevereiro de 1564. Votando-se a
estudos de medicina, enquanto aprofundava o conhecimento dos textos antigos em
conformidade com os quais esses estudos eram conduzidos, também

se dedicava à observação dos fenômenos naturais. Em 1583, a oscilação de uma


lâmpada na catedral permitia-lhe determinar a lei do isocronismo das
oscilações do pêndulo, Nos anos seguintes chegou a formular alguns teoremas de
geometria e de mecânica que mais tarde deu à estampa. O estudo de Arquimedes
levou-o a descobrir a balança para determinar o peso específico dos corpos
(1586). A sua culturamatemática proporcionou-lhe a estima e simpatia de muitos
matemáticos da época e foi-lhe confiada em 1589 a cadeira de matemática na
Universidade de Pisa. Permaneceu nesta cidade três anos, durante os quais fez
várias descobertas, nomeadamente, a seguir a repetidas experiências feitas por
Campanile de Pisa, a da lei da queda dos graves. Em 1592, passou a ensinar
matemática na universidade de Pádua e aí viveu dezoito anos, que foram os mais
fecundos e felizes da sua vida. Das numerosas invenções de vários géneros,
feitas neste lapso de tempo, a mais importante é a do telescópio (1609); esta
invenção abre a sério das descobertas astronómicas. A 17 de Janeiro de 1610,
Galileu descobriu o três satélites de Jove, a que chamou planetas medicisianos
em honra dos princípios toscanos, tendo-os anunciado no Sidereus nuncius
publicado em Veneza a 12 de Março do mesmo ano. Kepler dirigiu-lhe os seus
aplausos a propósito desta descoberta e o Grão-Duque deu-lhe o lugar, que ele
desejava, de matemático do gabinete de Pisa. Com o seu telescópio Galileu pôde
dar-se conta de que a Via Láctea é um conjunto de estrelas; pôde descobrir os
anéis de Saturno, obser15

var as fases de Vénus em torno do Sol e reconhecer as manchas solares, as


quais (como ele disse) foram o funeral da ciência aristotélica, porque
desmentiam a pretensa incorruptibilidade dos céus. Mas, entretanto, as
descobertas astronómicas levavam-no a considerar a estrutura do mundo celeste.
Numa carta ao seu aluno Castoffi, datada de 21 de Dezembro de 1613, defendia a
doutrina copernicana. Mas esta doutrina começava precisamente então a atrair a
atenção da Inquisição de Roma, a qual move um processo contra Galileu. Em vão
o cientista se dirige a Roma procurando evitar a
condenação da doutrina copernicana. A afirmação da estabilidade do sol e do
movimento da terra é condenada; e Galileu é admoestado pelo cardeal Belarmino
a abster-se de professá-la (26 de, Fevereiro de 1916). Poucos dias depois, a 5
de Março, a obra de Copérnico De revolutioniãs orbium coefestium é posta no
índice. Galileu continuou no entanto as suas especulações astronómicas. Contra
o padre jesuíta Lotario Sarsi (Horacio Grassi), autor do to Libra astronómica
ac philosophica dirigido contra o seu Discorso delle comete (1619), Galileu
publicou em Roma (1623) il Saggiatore. E entretanto continuava a trabalhar nos
Diálogos sobre os dois máximos sistemas do mundo, o ptolemaico e o
copernicano, encorajado também pela subida ao pontificado do cardeal Barberini
(Urbano VIII), que lhe havia sempre demonstrado a sua benevolência. O Diálogo
foi dado à estampa em Fevereiro de 1632. Mas já em Setembro Gafileu fora
citado pelo papa a comparecer perante o
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Santo Oficio de Roma. O processo dura até 22 de Junho de 1633 e conclui-se com
a abjuração de Galileu. Tinha então 70 anos. Passou os últimos anos da sua
vida na solidão da casa de campo de Arcetrí, perto de Florença, alquebrado
pelas doenças e diminuído pela cegueira, mas sem interromper o seu trabalho,
escrevendo os Diálogos das novas ciências e mantendo numerosa correspondência
com amigos e discípulos. Morreu a 8 de Janeiro de 1642.
As obras filosóficas mais notáveis são as já nomeadas: O Ensaiador, os
diálogos. sobre os dois máximos sistemas e os Diálogos das novas ciências. Mas
em todos os seus escritos estão disseminadas considerações filosóficas e
metodológicas.

§ 391. GALILEU: O MÉTODO DA CIÊNCIA

Galileu pretende desimpedir a via da investigação científica dos obstáculos da


tradição cultural e teológica. Por um lado, polemiza, contra o "o

mundo de papel" dos aristotélicos; por outro, quer subtrair a investigação do


mundo natural aos Emites e aos estorvos da autoridade eclesiástica. Contra os
aristotélicos, afirmava a necessidade do estudo directo da natureza. Nada é
mais vergonhoso nas disputas científicas, diz ele (Op., VII, p. 139), do que
recorrer a textos que amiúde foram escritos com outro propósito e pretender
utilizá-los para responder a observações e experiências directas. Quem escolhe
tal método de estudo deveria pôr de parte o nome de filósofo, uma vez que "não

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convêm que aqueles que deixaram de filosofar usurpem o honroso título de


filósofo". É próprio de espíritos vulgares, tímidos e servis dirigir antes os
olhos para um mundo de papel do que para o verdadeiro e real, que, fabricado
por Deus, está sempre diante de nós para nosso ensinamento. Também não se
podem, por outro lado, sacrificar os ensinamentos directos que a natureza nos
fornece às afirmações dos textos sagrados. A Escritura Sagrada e a natureza
procedem ambas do Verbo divino, aquela como ditado do Espírito Santo, esta
como executora das ordens de Deus; mas a palavra de Deus teve de adaptar-se ao
limitado entendimento dos homens aos quais se dirigia, ao passo que a natureza
é inexorável e imutável c

nunca transcende os limites das leis que impõe aos

homens, porque não se importa que as suas recônditas razões sejam ou não
compreendidas por eles./ Por isso o que da natureza nos revela a sensata
experiência ou o que as demonstrações necessárias nos levam a concluir, não
podo ser posto em dúvida, ainda que divirja de algum passo da Escritura (Lett.
alla duchessa Cristina, in Op., V, p. 316).

Só o livro da natureza é o objecto próprIo da ciência; e este livro é


interpretado e lido apenas pela experiência. A experiência é a revelação
directa da natureza na sua verdade, ela nunca engana: mesmo quando os olhos
nos fazem ver o pau imerso na água quebrado, o erro não está na vista, que
recebe verdadeiramente a imagem quebrada e

reflexa, mas no raciocínio que ignora que a imagem se refracta ao passar de um


para outro meio trans18

parente (Op., 111, 397; XVIII, 248). A tarefa do raciocínio, porém, e


especialmente do raciocínio

matemático, é igualmente importante porque é a

da interpretação e transcrição conceitual do fenómeno sensível. Por vezes,


esta tarefa assume para Galileu uma importância predominante: de modo que a
confirmação experimental parece degradar-se a simples verificação, ocasional e
não indispensável, de uma teoria elaborada independentemente dela. Diz, por
exemplo, Galileu a propósito das leis do movimento: "mas voltando ao meu
tratado do movimento, argumento ex suppositione sobre o
movimento, daquele modo definitivo; de maneira que, quando mesmo as
consequências não correspondessem aos acidentes do movimento natural, pouco me
importaria, uma vez que em nada derroga às demonstrações o facto de não se
encontrar na natureza nenhum móbil que se mova por linhas espirais" (Ib.,
XVIII, 12-13). Considerações como esta que se repelem aqui e ali nas obras de
Galileu, foram algumas vezes utilizadas para aproximar a investigação
galileica da aristotélica: tal como Aristóteles, Galileu estaria mais
interessado em encontrar as "essências" dos fenómenos do que em descobrir as
suas leis e as experiências servir-lhe-L,m tão-só de pretexto ou de
confirmação aproxiMativa da teoria. E por certo que a experiência, ou melhor,
os resultados dela seriam, segundo Galileu, cegos, isto é, sem significado, se

não fossem iluminados pelo raciocínio, isto é, sem

uma teoria que lhes explicasse as causas. Galileu explicitamente afirma


que entender matemática19

mente a causa de um evento "supera. por infinito intervalo o simples


conhecimento obtido através de outras atestações e mesmo de muitas reiteradas
experiências" (Discorsi intorno a due nuove scienze, -IV, § 5). Evidentemente,
para Galileu só o raciocínio pode estabelecer as relações matemáticas entre os
factos da experiência e construir uma teoria científica dos próprios factos.
Mas é do mesmo passo evidente que só a experiência pode fornecer, segundo
Galileu, o incentivo para a formulação de uma hipótese e que as deduções que
derivam matematicamente destas hipóteses devem, por seu turno, ser
confrontadas com a experiência e confirmadas com experimentos repetidos antes
de poderem ser declaradas válidas`.<Além. disso, o raciocínio que tem essa
função é sempre o raciocínio matemático, dado que, quanto à lógica
tradicional, Galileu compartilha a opinião negativa dos escritores do
Renascimento: ela não serve para descobrir coisa alguma mas só para saber se
os discursos e as demonstrações já feitos e experimentados procedem de
maneira concludente (Ib., VIII, 175).

Por outro lado, a experiência não é só o fundamento, mas também o limite do


conhecimento humano...A este é impossível alcançar a essência das coisas: deve
limitar-se a determinar as suas qualidades e as suas afecções- O lugar, o
movimento, a figura, a grandeza, a opacidade, a produção e a dissolução, são
factos, qualidades ou

fenómenos que podem ser apreendidos e utilizados para a explicação dos


problemas naturais. A experiência é purificada pelos elementos subjectivos e

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variáveis e reduzida aos permanentes e verdadeiramente objectivos. Galileu


distingue as qualidades sensíveis que são próprias dos corpos e aquelas que o
não são porque pertencem apenas aos órgãos dos sentidos. Não se pode conceber
uma substância corpórea senão limitada, provida de figura o de grandeza
determinada, situada num corto lugar e

num corto tempo, imóvel ou em movimento, em contacto ou não, una ou


múltiplice, mas, em contrapartida, pode-se concebê-la privada de cor, de
sabor, de som e de cheiro. Assim, quantidade, figura, grandeza, lugar, tempo,
movimento, repouso, contacto, distância, número são qualidades próprias e
inseparáveis dos corpos materiais; enquanto que sabores, odores, cores, sons,
subsistem apenas nos
órgãos sensíveis mas não são caracteres objectivos dos corpos, se bem que
sejam produzidos por estes. A objectividade reduz-se, portanto, exclusivamente
às qualidades sensíveis que são determinações quantitativas dos corpos;
enquanto que as qualidades não redutíveis a determinações quantitativas são
declaradas por Galileu puramente subjectivas.

Isto revela o íntimo móbil da investigação de Galileu, o qual conduz a uma


extrema clareza a tese, já apresentada por Cusano e Leonardo_ da -estrutura
-matemática da realidade objectiva. Galileu considera que o livro da natureza
é escrito em língua matemática e os seus caracteres são triângulos, círculos
e outras figuras geométricas. Por isso não se pode entender tal livro se antes
não se tiver aprendido a língua e os caracteres em que está

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escrito (Ib., VI, p. 232). Sobro a estrutura matemática do universo, repousa a


Sua ordem necessária, que é única e nunca foi nem será diversa (Ib., VII, p.
700). Para entender esta ordem é necessário

que a ciência se constitua como um sistema de rigorosos procedimentos de


medida. As determinações genéricas "grande" ou "pequeno", "próximo" ou
<longínquo", não captam- coisa alguma da realidade natural: as mesmas coisas
podem parecer grandes ou pequenas, próximas ou longínquas. A reflexão
científica começa apenas quando se introduz uma unidade de medida e se
determinam relativamente a ela todas as relações quantitativas (Ib., VI, p.
263).

Galileu fundou, deste modo em toda a sua clareza o método da ciência-


assegurou a medida como o instrumento fundamental da ciência e fez valer o
ideal quantitativo como critério para discernir na experiência os elementos
verdadeiramente objectivos. o reconhecimento da subjectividade de certas
qualidades sensíveis não significa para ele a subjectivação parcial da
experiência mas a sua objectivação perfeita e a sua redução aos caracteres que
correspondem à estrutura matemática da natureza., Galileu subtraiu
explicitamente a investigação natural a todas as preocupações finalísticas ou
antropoló gicas. As obras da natureza não podem ser julgadas com uma medida
puramente humana, em referência àquilo que o homem possa entender ou ao que se
lhe torne útil. É arrogância, e loucura mesmo, da parte do homem, declarar
inúteis as
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obras da natureza de que não entenda a utilidade para os seus fins. Nós não
sabemos para que serve Jove ou Saturno, nem tão pouco sabemos para que servem
muitos dos nossos órgãos, artérias ou cartilagens, os quais nem suspeitaríamos
possuir se não nos tivessem sido mostrados pelos anatomistas. Em qualquer
caso, para julgar da utilidade ou dos efeitos deles, seria mister fazer a
experiência de tirá-los e constatar então as perturbações rosultantes da sua
falta. Mas qualquer antecipação em relação à natureza é impossível, uma vez
que os nossos pareceres ou opiniões não lhe dizem respeito, nem
têm valor para ela as nossas razões prováveis. A subtileza da inteligência e a
força da persuasão estão deslocadas nas ciências naturais; nelas Demóstenes e
Aristóteles devem ceder a uma inteligência medíocre, que tenha sabido aceitar
algum aspecto real da natureza (Op., VII, p. 80). Por isso qualquer discurso
que nós façamos acerca das coisas naturais ou é veríssimo ou falsíssimo; se é
falso, cumpre desprezá-lo, se verdadeiro é necessário aceitá-lo porque não há
modo de lhe fugir (Ib., IV, p. 24).
O que confirma que, não há filosofia que possa mostrar-nos a verdade da
natureza melhor do que a natureza (Ib., IV, p. 166), a qual não antecipa a
natureza, senão que a segue e a manifesta na sua objectividade. Com a
eliminação de toda e qualquer consideração finalistica ou antropomórfica do
mundo natural, Galileu realizou completamente a redução da natureza à
objectividade mensurável e conduziu a ciência moderna à sua maturidade.

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§ 392. BACON: VIDA E ESCRITOS

Se Galileu elucidou o método de investigação científica, Bacon entreviu pela


primeira vez o poder que a ciência oferece ao homem em relação ao mundo. Bacon
concebeu a ciência como essencialmente destinada a realizar o domínio do homem
sobre a natureza. O regnum hominis: viu a fecundidade das suas aplicações
práticas, de modo que podemos considerá-lo o filósofo e o profeta da técnica.

Francis Bacon nasceu em Londres a 22 de Janeiro de 1561, sendo filho de Sir


Nicholas Bacon, ministro da justiça da rainha Elisabeth. Estudou em Cambridge
e em seguida passou alguns anos em

Paris, no séquito do embaixador de Inglaterra, onde teve ensejo de completar e


enriquecer a sua cultura. De regresso à pátria, quis iniciar a carreira
política. Enquanto viveu a rainha Elisabeth, não pôde obter nenhum cargo
'importante, não obstante o apoio do conde de Essex. Mas com a subida ao trono
de Jaime I, Stuart (1603), pôde gozar do apoio do favorito do rei, Lord
Buckingham, para obter cargos e honras. Foi nomeado advogado geral (1607),
depois procurador geral (1613), e, finalmente, ministro das justiças (1617) e
Lord Chanceler (1618). Como tal, presidia às principais cortes de justiça e
tornava executórios os decretos do rei. Foi, além disso, nomeado barão de
Verulam e visconde de Slo Albano. Mas quando Jaime 1 teve de convocar em 1621
o Parlamento, inculpou Bacon de

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corrupção, acusando-o de ter recebido ofertas de dinheiro no exercício das


suas funções. Bacon reconheceu-se culpado. Foi condenado então a pagar
quarenta mil esterlinos de multa, a permanecer prisioneiro na Torre de Londres
até que o rei o quisesse, e foi exonerado de todos os cargos do estado (3 de
Maio de 1621). O rei perdoou a Bacon a multa e a prisão, mas a vida política
do filósofo estava acabada. Bacon retirou-se para Gorhw, nbury e aí passou os
últimos anos da sua vida, entregando-,se ao estudo. Faleceu a 9 de Abril de
1626.

A carreira política de Bacon foi a de um cortesão hábil e sem escrúpulos. Não


hesitou em sustentar a acusação como advogado do rei contra o conde Essex que
o havia ajudado nos primeiro passos difíceis da sua carreira, e que caíra em

seguida em desgraça. O processo a que foi submetido lança uma luz pouco
simpática sobre a sua

actividade de ministro, uma vez que ele não pôde negar as acusações de
corrupção que lhe dirigiram. Mas este homem ambicioso e amante do dinheiro
e

do fausto teve uma ideia altíssima do valor da ciência ao serviço do


homem. Todas as suas obras tendem a ilustrar o projecto de uma
pesquisa científica que, aplicando o método experimental em

todos os campos da realidade, faça da realidade mesma o domínio do homem.


Bacon quis tornar a

ciência activa e operante colocando-a ao serviço do homem e considerando como


seu escopo a constituição de uma técnica que devia dar ao homem o domínio de
todo o mundo natural. Quando, na

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Nuova Atlântida, pretende dar a imagem de uma

cidade ideal, recorrendo ao pretexto, já empregado por Tomás Moro na Utopia,


da descrição de uma

ilha desconhecida, não se deteve a sonhar com formas de vida sociais ou


políticas perfeitas, mas imaginou um paraíso da técnica onde fossem postos em
prática as invenções e os achados do mundo inteiro. E, de facto, neste escrito
(que não chegou a ser concluído) a ilha da Nova Atlântida é descrita como um
enorme laboratório experimental, na qual os habitantes procuram conhecer todas
as forças ocultas da natureza "Para estender os confins do império humano a
todas as coisas possíveis". Os numes tutelares da ilha são os grandes
inventores de todos os países; e as relíquias sagradas são os exemplares de
todas as grandes e mais raras invenções.

Bacon, todavia, não dirigiu a sua atenção apenas para o mundo da natureza. A
sua primeira obra, os Ensaios, publicados pela primeira vez em 1597 e depois
traduzidos em latim com o título Sermones fídeles sive interiora rerum, são
subtis e eruditas análises da vida moral e política nas quais a sapiência dos
Antigos é amplamente utilizada. Mas a sua ,principal actividade foi a que
dedicou ao projecto de uma enciclopédia das ciências que devia renovar
completamente a investigação científica colocando-a numa base experimental. O
plano grandioso desta enciclopédia deu-no-lo ele no escrito De augmentis
scientiarbim, publicado, em 1623, o qual compreende: as ciências que se fundam
na memória, isto é, a história, que se dlivide em natural e civil; aquelas que
se fundam na fantasia, isto é, a poesia, que se

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divide em narrativa, dramática e parabólica (a que serve para ilustrar uma


verdade); e as ciências que se fundam na razão, entro as quais, por um lado, a
filosofia prima ou ciência universal, por outro as

ciências particulares que concernem a Deus ou à natureza ou ao homem. "A


filosofia prima" é considerada por Bacon como "a ciência universal e mãe das
outras ciências", consistindo a sua tarefa em recolher "os axiomas que não são
próprios das ciências particulares mas comuns a outras ciências" (De augm.
séient., 111, 1). Este conceito devia permanecer típico da interpretação da
tarefa da filosofia segundo os métodos positivistas, isto é, segundo todo o
método que faça coincidir com a ciência a totalidade do saber.

A Instauratio magna deveria dar as directivas de todas estas ciências e devia,


consequentemente. compreender seis partes: 1.a Divisão das ciências;
2.a-Novo órgão ou indícios para a interpretação da natureza; 3 a Fenómenos
do universo ou história natural experimental para construir a filosofia; 4 a
Escala do intelecto; 5 a - Pródromos ou antecipações da filosofia segunda;
6 a - Filosofia segunda ou ciência activa. Deste vasto projecto Bacon
&penas realizou adequadamente a segunda parte que é precisamente o Novum
organum, publicado em 1620. As outras obras podem-se considerar como esquissos
ou esboços das outras partes: O progresso do saber (em inglês, 1605), De
sapientia veterum (1609); História naturalis (1622)-, De dignitate et
augmentis scientiarum (1623); este último escrito representa a primeira parte
da Instauratio nwgna.

27

Escritos menores, incompletos ou esboçados foram publicados após a sua morte:


De interpretatione natura e proemium (1603), Valerius Terminus (1603);
Cogitationes de rerum natura (1605); Cogitata e visa (1607), Descriptio globi
intelectualis (1612); Thema coeli (1612). Nos últimos anos compôs e publicou
também uma História de Henrique VII.

§ 393. BACON: O CONCEITO DA CIÊNCIA E DA TEORIA DOS ÍDOLOS

Do projecto grandioso de uma Instauratio magna que devia culminar na Sciencia


activa, isto é, numa técnica que aplicasse as descobertas teóricas, muito
pouco realizou Bacon. O que ele fez reduz-se substancialmente ao Novum
Organum, isto é, a uma

lógica do procedimento técnico-científico que é polemicamente contraposta à


lógica aristotélica, que ele achava servir apenas para alcançar vitórias nas
disputas verbais. Com a velha lógica vence-se o adversário, com a nova
conquista-se a natureza. Esta conquista da natureza é a tarefa fundamental da
ciência. "0 fim desta nossa ciência, diz Bacon (Nov. org., Distributio
operis), é o de encontrar não argumentos mas artes, não princípios
aproximativos, mas

princípios verdadeiros, não razões prováveis mas projectos e indicações de


obras". A ciência é posta assim inteiramente ao serviço do homem; e o homem,
ministro e intérprete da natureza, opera e compreende de acordo com o que
observou na ordem

28

da natureza, quer mediante a experiência, quer mediante a reflexão: para além


disto, não sabe nem

pode coisa alguma. A ciência e o poder humano coincidem: a ignorância da causa


toma impossível conseguir o efeito. Não se vence a natureza senão obedecendo-
1he, e o que na observação está como causa, na obra vale como regra (Ib., 1,
3). A inteligência humana tem necessidade de instrumentos eficazes para
penetrar na natureza e dominá-la: à semelhança das mãos, não pode efectuar
nenhum trabalho sem um instrumento adequado. Os instrumentos da mente são os
seus experimentos: experimentos pensados e adaptados tecnicamente ao fim que
se pretende alcançar. Os sentidos por si só não bastam para nos fornecer uni
guia seguro: só os

experimentos são os guardiões e os intérpretes das respostas daqueles. O


experimento representa, segundo a imagem de Bacon, w conúbio da mente e do
universo", conúbio do qual se espera "uma prole numerosa de invenções e de
instrumentos aptos a dominarem e a mitigarem, pelo menos em parte, as
necessidades e as misérias dos homens" (lb., Distr. op.).
Mas a união entre a mente e o universo não se pode celebrar enquanto a mente
permaneça presa a hábitos e preconceitos que a impedem de interpretar a
natureza. Bacon opõe a interpretação da natureza à antecipação da natureza. A
antecipação da natureza prescinde do experimento e passa imediatamente das
coisas particulares sensíveis aos axiomas generalíssimos, e, à base destes
princípios e da sua imóvel verdade, tudo julga e encontra os chamados

29

axionas médios, isto é, as verdades intermédias entro os princípios últimos e


as coisas. Esta é a via da antecipação, de que se serve a lógica tradicional,
via que toca apenas de raspão a experiência porque se satisfaz com as verdades
gerais. A interpretação da natureza, ao invés, adentra-se com método e ordem
na experiência e ascende, sem saltos e por graus de sentido, das coisas
particulares aos aXiomas, chegando só por último aos mais gerais. A vila de
antecipação é estéril, uma vez que os axiomas por ela estabelecidos não servem
para inventar seja o que for. A via da interpretação é fecunda, porque dos
axiomas deduzidos com método e ordem das coisas particulares facilmente brotam
novas cognições particulares que tornam activa e produtiva a ciência (lb., 1,
24). A tarefa preliminar de Bacon, na sua tentativa de estabelecer o novo
órgão da ciência, é, por conseguinte, o de eliminar as antecipações, e a tal é
dedicado substancialmente o primeiro livro do Novum organum. Este livro
destina-se a purificar o intelecto de todos os ídolos, para o que estabelece
uma tríplice crítica: (redargutio): crítica das filosofias, crítica das
demonstrações e crítica da razão humana natural, respectivamente destinadas a
eliminar os preconceitos que se radicaram na mente humana através das
doutrinas filosóficas ou através das demonstrações extraídas de princípios
errados, ou pela própria natureza do intelecto humano. Ele quer "conduzir os
homens Perante as coisas Particulares e as suas séries e ordena, afastando-os
por algum tempo das noções

30

antecipadoras para que comecem a familiarizar-se com as coisas mesmas" (Ib.,


1, 36).

As antecipações que se radicam na própria natureza humana são as que Bacon


denomina idola tribus e idola specus: os idola tribus são comuns a todos os
homens, os idola specus são próprios de cada indivíduo. O intelecto humano é
conduzido a supor que existe na natureza uma harmonia muito maior do que a que
existe de facto, a dar mais importância a certos conceitos do que a outros, a
atribuir maior relevância ao que, impressiona a fantasia do que ao que é
oculto e longínquo. Além de ser impaciente, quer progredir sempre para além do
que lhe é dado, e pretende que a natureza se

adapte às suas exigências. rejeitando assim tudo o

que nela não lhe convém. Todas estas disposições naturais são fontes de idola
tribus,- e a principal fonte de tais idola é a insuficiência dos sentidos aos
quais escapam todas as forças ocultas da natureza. Os idola specus, ao invés,
dependem da educação, dos hábitos e das circunstâncias fortuitas em que cada
qual se encontra. Aristóteles, dei de ter inventado a lógica, sujeitou a ela
completamente a sua física, tornando-a estéril: isto foi devido por certo a
uma particular disposição do seu intelecto. Gilbert, o descobridor do
magnetismo, arquitectou sobre a sua descoberta toda uma filosofia. E assim, em
geral, todo o homem tem as suas propensões para os antigos ou para os
modernos, para o velho ou para o novo, paira aquilo que é simples ou para
aquilo que é complexo, para as semelhanças ou para as diferenças; e todas
estas propensões são fontes

31

de idola specus, como se cada homem tivesse no seu interior um antro ou uma
caverna que refractasse ou desviasse a luz da natureza.

Além destas duas espécies naturais de ídolos, existem os adventícios ou


provenientes do exterior: idola fori e idola theatri. Os ídolos da praça
derivam da linguagem. Os homens crêem impor .a sua

razão às palavras: também sucede que as palavras retorçam e repercutam a sua


força sobre o intelecto. Nascem assim as disputas verbais', as mais longas e
insolúveis, que se podem resolver apenas com um recurso à realidade. Os ídolos
que derivam das palavras são de duas espécies: ou são nomes de coisas que não
existem ou são nomes de coisas que existem, mas que são confusos e mal
determinados. À primeira espécie pertencem os nomes

de fortuna, primeiro móbil, órbitas dos planetas, elemento do fogo e


quejandos, os quais têm a sua origem em falsas teorias. À segunda espécie
pertencem, por exemplo, a palavra húmido, que indica coisas diversissímas, as
palavras que indicam acções como gerar, corromper, etc., e as que indicam
qualidades, como grave, ligeiro, poroso, denso, etc. Tais são os idóla fori,
'assim chamados porque gerados por aquelas convenções. humanas que as relações
entre os homens tornaram necessárias. o último género de preconceitos é o
idola theatri que derivam das doutrinas filosóficas ou de demonstrações
erradas. Bacon denomina-os- assim porque compara os sistemas filosóficos a
fábulas, que são como mundos fictícios ou cenas de teatro. As doutrinas
filosóficas, e por conseguinte, os idola theatri, existem em pro32

fusão e Bacon não se propõe confutá-los um por um. Ele divíde as falsas
filosofias em três espécies: a sofística, a empírica e a supersticiosa. Da
filosofia sofística o maior exemplo é Aristóteles, que procurou adaptar o
mundo natural a categorias lógicas predispostas e se preocupou mais em dar a
definição verbal das coisas do que em procurar a verdade delas. Ao género
empírico, pertence a filosofia dos alquimistas e também a de Gilbert, que tem
a pretensão de explicar todas as coisas por meio de poucos e restritos
experimentos. Finalmente, a filosofia supersticiosa é a que se mistura com a
teologia, como acontece em Pitágoras e Platão, e especialmente neste último,
que Bacon considera mais subtil e perigoso e ao qual não hesita em atribuir
num seu escrito (Temporis partus musculus, Opere, M,
530-31) as qualificações de "urbano trapaceiro, poeta enfatuado, teólogo
mentecapto". Finalmente, idola theatri derivam também de demonstrações
erróneas. E as demonstrações são erróneas porque se fiam demasiado nos
sentidos ou abstraem indevidamente das suas impressões ou têm a pretensão de
passar de golpe dos pormenores sensíveis aos princípios gerais.

Entre as causas que impedem os homens de se libertarem dos ídolos e


progredirem no conhecimento efectivo da natureza, Bacon coloca em primeiro
lugar a reverência pela sabedoria antiga. A este propósito, observa ele que,
se por antiguidade se entende a velhice do mundo, o termo deveria aplicar-se
ao nosso tempo, e não àquela juventude do mundo de que os Antigos foram quase
um exemplo.
33

Essa época é antiga e fundamental para nós, mas

relativamente ao mundo é nova e menor; e como é lícito esperar de um homem


antigo um maior

conhecimento do mundo do que de um jovem, assim deveremos esperar da nossa


época muito mais do que dos tempos antigos, porque ela se foi pouco a pouco
enriquecendo no curso do tempo através de infinitos experimentos e
observações. A verdade, diz Bacon, é filha do tempo, não da autoridade. Como
Bruno, ele pensa que ela se

revela gradualmente ao homem através dos esforços que se somam e se integram


na históriaPara sair das velhas vias da contemplação improdutiva e empreender
a via nova da investigação técnico-científica, é necessário colocarmo-nos no
terreno do experimento. A simples experiência não basta, porque procede ao
acaso e sem directivas. É semelhante, diz Bacon, (Nov. Org., 1, 82) a uma

vassoura velha, ao avançar às cegas como quem andasse de noite à procura do


caminho, quando seria mais fácil e prudente esperar pelo dia ou acender uma
luz, e assim enfiar pelo caminho. A ordem verdadeira da experiência consiste
em acender a luz, ,iluminando desse modo a via, quer dizer, começar pela
experiência ordenada e madura, e não por experiências irregulares e
desordenadas. Só assim o experimento pode levar a vida humana a enriquecer-se
de novas invenções, a assentar as bases do poder e da grandeza humana e a
alargar cada vez mais os seus horizontes. Aliás, o objectivo prático e técnico
que Bacon atribui à ciência não a encerra

num estreito utilitarismo. Aos experimentos que dão

34

fruto (experimenta fructífera) acha que são preferíveis os que dão luz
(experimenta lucifera), que nunca falham e nunca são estéreis, porquanto
revelam a causa natural dos factos (Ib., 1, 99).

§ 394. BACON: A INDUÇÃO E A TEORIA DAS FORMAS

A pesquisa científica não se funda só nos sentidos nem apenas no intelecto. Se


o intelecto por si não produz senão noções arbitrárias e infecundas e se os
sentidos, por outro lado, só dão indicações ordinárias e inconcludentes, a
ciência não poderá constituir-se como conhecimento verdadeiro e fecundo de
resultados senão enquanto impuser à experiência sensível a disciplina do
intelecto e ao

intelecto a disciplina da experiência sensível. O procedimento que realiza


aquela exigência é, segundo Bacon, o da indução. Bacon preocupa-se em
distinguir a sua indução da aristotélica. A indução aristotélica, isto é, a
indução puramente lógica que não incide sobre a realidade, é uma indução por
simples enumeração dos casos particulares: Bacon considera-a uma experiência
pueril que produz conclusões precárias e é continuamente exposta ao perigo dos
exemplos contrários que possam desmenti-la. Ao invés, a indução que é a
invenção e a demonstração das ciências e das artes funda-se na escolha e na
eliminação dos casos particulares: escolha e eliminação repetidas
sucessivamente sob o controle do experimento, até se atingir a deter35
minação da verdadeira natureza do fenómeno. Esta indução procede por isso sem
saltos e por graus; quer dizer, remonta gradualmente dos factos particulares
aos princípios mais gerais e só por último chega aos axiomas generalíssimos.

A escolha e a eliminação em que se funda tal indução supõem em primeiro lugar


a recolha e a descrição dos factos particulares: recolha e descrição que Bacon
denomina storia naturale sperimentale, porque não deve ser imaginada ou
cogitada, mas recolhida da experiência, ou seja, ditada pela própria natureza.
Mas a história natural e experimental é tão variada e vasta que confundiria o
intelecto em vez de ajudá-lo se não fosse composta e sistematizada numa ordem
idónea. Para tal fim servem as tábuas que são recolhas de casos ou

exemplos (instantiae) segundo um método ou uma ordem que torna tais recolhas
apropriadas às exigências do intelecto (Nov. org., 11, 10). As tábuas de
presença serão então a recolha das instâncias conhecidas, isto é, das
circunstâncias em que uma

certa "natureza", por exemplo, o calor, habitualmente se apresenta. As tábuas


de ausência recolhem, ao invés, aqueles casos que são privados da natureza em
questão, embora estando próximos ou

ligados àqueles que a apresentam. As tábuas dos graus ou comparativas


recolherão, pelo contrário, aquelas instâncias ou casos em que a natureza
procurada se encontra em diferentes graus, maiores ou

menores: o que deve fazer-se ou comparando o seu aumento e a sua diminuição no


mesmo sujeito ou comparando a sua grandeza em sujeitos diferentes,

36

confrontados um com o outro. Formadas estas tábuas, começa o verdadeiro e


próprio trabalho da indução, cuja primeira fase deve ser negativa, isto é,
deve consistir "em excluir as naturezas que não se encontrem em alguns casos
em que a natureza dada é presente ou se encontrem em algum caso em que ela é
ausente ou cresce em algum caso em que a natureza dada decresce ou decresce em
algum caso em que a natureza dada aumenta". A parte positiva da indução
**co~rá apenas após esta longa e difícil obra de exclusão, com a formulação de
uma hipótese promissória, acerca da forma da natureza estudada, que Bacon,
denomina "primeira vindima". Esta hipótese guiará o desenvolvimento ulterior
na pesquisa que consiste substancialmente em pô-la à prova em sucessivas
confirmações ou experimentos que Bacon chama instâncias prerrogativas. Ele
enumera vinte e sete espécies de tais instâncias, designando-as com nomes
pitorescos (instâncias solitárias, migratórias, impressionistas, clandestinas,
manipulares, analógicas, etc.). A ,instância decisiva é a instância crucial,
cujo nome

Bacon deriva das cruzes que se erguem nas encruzilhadas para indicar as vias.
O valor desta instância consiste em que, quando se não sabe ao corto qual das
duas ou mais naturezas é a causa da natureza estudada, a instância crucial
mostra que a

união de uma das naturezas com ela é segura e

indissolúvel e assim permite reconhecer nesta natureza a causa da natureza


estudada. Algumas vezes, acrescenta Bacon, instâncias desta natureza
apresentam-se por si; outras vezes, ao contrário, devem ser
37

procuradas ou provocadas e constituem verdadeiros e próprios experimentos (M.,


11, 36).

No vigésimo sétimo e último lugar das instâncias prerrogativas, Bacon coloca


as instâncias da magia, caracterizadas pela desproporção entre a causa
material ou eficiente, que é pequena ou insignificante, e o efeito produzido.
Devido a esta desproporção, as instâncias mágicas parecem milagres: na
realidade, os efeitos mágicos são obtidos por via puramente natural, mediante
a multiplicação das forças produtoras devida ou a estas forças mesmas ou às
forças de outros corpos (Nov. org., H, 51). Deste modo, a magia, com todos os
seus mirabolantes efeitos, foi incluída por Bacon no plano do trabalho
experimental.

Todo o processo da indução tende, segundo Bacon, a estabelecer a causa das


coisas naturais. E esta causa é a forma. Ele faz seu o principio: vere scire
est per causas scire, e aceita finalmente a distinção aristotélica das quatro
causas: material, formal, eficiente e final. Mas elimina logo a causa
final por ser mais nociva do que benéfica à ciência Ub., 11, 2). "A pesquisa
das causas finais, diz ele (De augm., 111, 5), é estéril: como uma virgem
consagrada a Deus, não pode parir coisa alguma". Bacon não nega que se possam
legitimamente contemplar os fins dos objectos naturais e a harmonia geral do
universo para se dar conta do poder e da sabedoria de Quem o criou. Mas esta
pesquisa deve ser consagrada ao serviço de Deus, não pode ser transposta para
o plano da ciência natural, porque esta não é contemplativa mas activa, e deve

38

descobrir as causas que permitem ao homem o domínio sobre o mundo (Ib., 111,
4). Quanto às outras causas aristotélicas, Bacon considera que a
eficiente e a material são superficiais e inúteis para a ciência verdadeira e
activa por serem concebidas como separadas do processo latente que tendo à
forma. Resta a forma, que Bacon tem a pretensão de entender de um modo
inteiramente diverso de Aristóteles. E o que ele entende, verdadeiramente por
forma é o mais difícil problema da crítica baconiana.

Bacon insiste em primeiro lugar na tese de que só a forma revela a unidade da


natureza e permite descobrir o que nunca existiu antes e que nunca
poderia passar pela cabeça de ninguém, e que nem os acontecimentos naturais
nem as explorações experimentais nem o acaso poderiam alguma vez produzir. "Só
da descoberta das formas, diz ele, nasce a contemplação verdadeira e a
liberdade do operam (lb., 11, 3). Para entender o significado da forma é
necessário uma observação preliminar. Bacon distingue em todos os fenómenos
naturais dois aspectos diferentes: 1º o esquematismo latente (Iatens
schematismus), isto é, a estrutura ou a ordem intrínseca dos corpos
considerados estàticamente;
2º o processo latente (latens processus ou processus ad formam), isto é, o
movimento intrínseco dos próprios corpos, que os conduz à realização da forma.
De facto, ele distulgue (Ib., 11, 1) "o processo latente que em todas as
gerações ou movimentos parte continuamente da causa eficiente e manifesta e da
matéria sensível para a forma inata" e o

39
"esquematismo latente dos corpos quiescentes e não em movimento". E mais
adiante considera o processo e o esquematismo em dois capítulos separados,
insistindo na conexão e na diversidade dos dois aspectos da natureza (Ib., 11,
6 e 7). Correspondentemente, distingue duas partes da física: a doutrina do
esquematismo da matéria e a doutrina dos apetites e dos movimentos (De augm.,
111, 4). A primeira doutrina é por ele comparada ao que é a anatomia dos
corpos orgânicos (Nov. org., 11, 7). Ora, a forma é ao mesmo tempo o princípio
do esquematismo e o princípio do processo: assim, ela conserva para Bacon uma
duplicidade de significado que é inerente à duplicidade da função que lhe
atribui. deve ver na forma, por um lado, a estrutura que constitui
essencialmente, e portanto individua e define, um determinado fenómeno
natural; por outro lado, a lei que regula o movimento de geração ou de
produção do próprio fenómeno. "Indagar e descobrir a forma de um dado fenómeno
natural (lb., 11, 1), isto é, a diferença verdadeira ou a natureza naturante
ou a fonte da emanação (são estes os vocábulos que exprimem melhor a coisa),
tal é o escopo e a intenção da ciência humana". Logo, é evidente que a forma
como diferença verdadeira constitui o princípio do esquematismo, isto é, da
ordem intrínseca das partes da matéria, porque é aquilo que individua a
estrutura de uma realidade material; enquanto como natureza naturante ou fonte
de emanação é a lei que regula o movimento de produção de um determinado
fenómeno. E insiste ora num ora noutro significado do

40

termo forma. Por um lado, diz que "a forma é tal que pode deduzir um dado
fenómeno de uma qualquer essência que é inerente a vários fenómenos. e é mais
geral do que o fenómeno dado" (Ib., 11, 4): chama forma à " Minição
verdadeira" do fenômeno (Ib., 11, 20) e descreve-a. como "a coisa mesma" na
sua estrutura interna (Ib., 11, 13). Por outro lado, fala das leis
fundamentais e comuns que constituem as formas" (Ib., 11, 17). E diz: "Se bem
que na
natureza não existam senão corpos individuais que produzam actos puros
individuais segundo uma determinada lei, nas doutrinas essa mesma lei, a
busca e a descoberta dela e o seu esclarecimento servem de fundamento quer ao
saber quer ao operar. Esta lei, e os seus parágrafos, é aquilo que nós
designamos com o nome de forma, especialmente porque este vocábulo é usado e
se tornou familiar" (lb., 11, 2). Por vezes os dois significados são indicados
ao mesmo tempo: "Quando falamos de formas não queremos indicar senão aquelas
leis e aquelas determinações do acto puro que ordenam e
constituem qualquer simples fenómeno natural, como
o calor, a luz, o peso, qualquer que seja a matéria ou o substracto adaptado.
Por isso a forma do calor ou a forma da luz é a mesma coisa que a lei do calor
ou a lei da luz" (lb., 11, 117). Assim se distinguem os dois significados
fundamentais da forma, como lei do movimento e determinação do acto puro, isto
é, o esquematismo latente.

Não é justo, por isso, exprobar a Bacon (como tantas vezes se tem feito) a
ambiguidade do significado que ele atribui à palavra forma. Na reali41

dade, este significado é necessáriamente duplo em


virtude de uma distinção que Bacon claramente estabeleceu e considerou.
fundamental. Resta, porém, uma dúvida: será a doutrina da forma tão original
como o próprio Bacon a julgou e, sobretudo, distinguir-se-á ela
suficientemente da doutrina aristotélica? Não há dúvida de que Bacon contrapôs
o seu
conceito de forma ao do aristotelismo escolástico; mas a forma, tal como ele a
concebeu, como princípio estático e dinâmico dos corpos físicos, corresponde
exactamente à autêntica forma de Aristóteles: a substância, como princípio do
ser, do devir e da inteligibilidade de todas as coisas reais (§ 73). Sem o
querer e talvez sem o saber, Bacon reportou-se directamente ao genuíno
significado aristotélico, da forma substancial. onde, porém, se afasta de
Aristóteles é na exigência, tenazmente mantida, de que a forma seja sempre
inteiramente resolúvel em elementos naturais; isto é, que a busca e a
descoberta da forma não consiste em processos conceituais mas num processo
experimental que chega, mediante o
exame de cada caso, a determinar os elementos precisos e operantes da
estrutura interna e do processo generativo de um dado fenômeno. Enxertou assim
no tronco do aristotelismo a sua exigência experimentalista. E isto explica a
eficácia limitada e quase nula que a sua doutrina exerceu no desenvolvimento
da ciência, a qual permaneceu inteiramente dominada pelas intuições
metodológicas de Leonardo, Kepler e Galileu, mas quase por completo ignorou
O experimentalismo baconiano que de facto era para ela aproveitável. O
experimentalismo científico não

42

podia ser enxertado no tronco do aristotelismo; e a


teoria da índução baconiana devia falir nossa tentativa. O experimentalismo
científico havia já encontrado a sua lógica e com ela a sua capacidade de
sistematização. Esta lógica era, como se viu (§ 391), a matemática. É
significativo que a matemática não encontre lugar na indução baconiana. Bacon
preocupou-se, é certo, em situar a matemática na sua enciclopédia das
ciências, agregando-a umas vezes à metafísica (Advancement, 11, 82), outras
vezes
à física (De augm., 111, 6, Nov. org., 1, 96); mas
não atribuiu à matemática mesma nenhuma função eficaz na investigação
científica, e afirmou explicitamente que ela "está no termo da filosofia
natural, mas não a deve gerar nem procriam (Nov. org., H,
96). Assim, ao mesmo tempo considera que a matemática é causa de corrupção da
filosofia natural; e, aliás, (De augm., 111, 4), diz que a astronomia foi
incluída entre as matemáticas, não sem perda da sua dignidade (non sine
dignitatis suae dispendio). Na realidade, o experimentalismo de Bacon mantém-
se nos quadros da metafísica aristotélica, e não podia fornecer à ciência um
novo órgão de investigação. Aliás, a ciência já encontrara (ou estava em vias
de encontrar) o seu órgão, que é precisamente a matemática, e era por causa
desse órgão que se desinteressava daquelas formas que Bacon considerava como
termo último da investi~ gação, e se dispunha a considerar únicamente a ordem
mensurável das coisas naturais, isto é, as suas relações matemáticas. A
grandeza de Bacon consiste sobretudo em ter reconhecido a estreita

43

conexão entre a ciência e o poder humano e em haver sido o profeta da técnica,


isto é, da possibilidade de domínio que a investigação científica abre ao
homem no mundo.

NOTA BIBLIOGRÁFICA

§ 388. Os manuscritos de Leonardo foram publicados com as reproduções


fotográficas por Ravisson-Mdllien, 6 vol. in fol., Paris, 1881-91;
Codice atlantico, ed. Piumati, Milão, 1894-1903; 1 manoscritti e disegni
di Leonardo da Vinci, publicados pela R. Comissão Vinciana, Roma,
1923 segs.-A mais rica de todas as selecções é de RIGHTER, The
Literary Works of Leonardo da Vinci Compiled and Edited from the
Original manuscripts, 2 vol., Londres, 1883; 2.1 ed., 1939; Frammenti
litterari e filosofici, se'eccionados púr E. Sdlmi, Florença, 1899.-Trattato
della pittura, ed.
6udwig, Viena, 1882.

Sobre os precedentes históricos das doutrinas de Leonardo: DUI-TEM; Êtudes sur


L. de V., 3 val., Paris,
1906, 1908, 1913.-E. SOLM1; Leonardo, Florença
1900; CROCE, Leonardo filosofo, in Saggio, sullo Hegel, Bari, 1913; GENTILE,
Leonardo, in Pe"ero del rinascimento, e. IV, Florença, 1940; 1d., Il pensiero
di L., Florença, 1941. C. LuPORINi, Ta mente di L., Florença,
1953; E. GkRIN (Medioevo e renascimento, Ban, 1954, p. 311 segs.; La cultura
filosofica del renascimento italiano, FIlorença, 1961, p. 388 segs.) combate,
com razões vãlidas, a tese de Duhem da dependência de Leonardo para com
Cusano, mostrando as conexões do pensamento de Leonardo com a cultura
florentina do tempo.

§ 389. O De revolutionibus de Copérnico foi publicado em Nuremberga, 1543;


outras ed.: Basileia,
1566; Amsterdão, 1617; Varsóvia, 1854; Thorn, 1991,

44

-- SCHIAPARELLI, I precursori di Copernico nell'antichità, Milão, 1873;


NATORP; Die kosmolog. Reform des K. in ihrer Bedeutung fur d. Philos., in
"Press. Jahr",
49.1, p. 355 segs.

De Tycho Brahe: Opera omnia, Praga, 1611; Francoforte, 1648.

De Kepler: Prodromus, Tubi-nga, 1596, 1621; Astronomia nova, Hedelberg, 1609;


Harmonices mundi, Linz, 1619; Opera omnia, 8 vol., Francoforte, 1858-71.PRANTL
nos "Atti dell'Accademia delle scienze di Monaco", olasse de história, 1875.

§ 390. A ediç" nacional das obras de GaUleu (FlorenGa, 1890-1909) compreende


20 vi o 20., contêm os índices, o 11.1 os documentos, os vo,1s. 10.---18., a
oorrespondência. II saggiatore encontra-se no vol. 6.O; os Dialoghi sopra i
due massimi sistemi encontram-se no 7.o vol.; os Dialoghi intorno a due nuove
scienze no vol. 8., - So-bre a vida de Galficu, as numerosas investigações de,
A. FAVARO; BANFI, Vita di C. G., Milão, 1930.

§ 391. FAVARO, G. G., Modena, 1910, GENTILE, TI pensiero dei rinascimento,


Florença; L. OUCHIU, G. und seine Zeit, Halle, 1927; A. KOYRÉ, Études
galiIéennes, 3 vdl., Paris, 1939. A interpretação a que se faz referéncia no
texto, de um Galileu aparentado com Aristóteles, é devida precisamente a
KOYRÉ. Ver uma crítica muito equilibrada a esta interpretação: L. GEYMONAT, G.
G., Turim, 1957.

§ 392. Sobre a vida de Bacon: RÉMUSAT, Bacon, sa vie, son temps, sa phil. et
son influence jusqu'à nos

jours, Paris, 1857; M. M. Rossi, Saggio su F. B., Nápoles, 1935. A melhor ed.
das obras de Bacon é a de Ellis, Speliding e Hath, Works, 1857-59, em 5 vol.

-i2 boa ia precedente ed. de Bouillet, en 3 voL, Paris,


1834-35; Novuin org., ed. e com. de T. FowIer, Oxford,
1889; The Advancement of Learning, ao cuidado de
45

H. Morley, Londres, 1905, The New Atlantis, ao cuidado de G. C. Moore Smith,


Cambridge, 1960.

Como exemplo das frequentes desvalorizações de que tem sido objsc,to a figura
de Bacon, pode ver-se

o escrito de L. VoN LIEBIG, Ueber F. B. und die Methode der Naturforschung,


Mónaco, 1863; trad. frane.,
1866 e 1877.

§ 393. Sobre a doutrina de B.: K. -"SCHER, F. B, von V. Die Realphil.und ihre


Zeitalter, Leipzig, 1853;
2,1 ed., 1875; HEUSSLER; F. B. und seine ge.-chichtliche Steilung, Breslan,
1889; LEVI, 11 pensiero di F. B., Turim, 1925; BROAD, The phil. of P. B.,
Cambridge,
1928; FAZIO ATLMAYER, Saggio su F. B., Pa:lermo, 1928; THEOBALD, F. B.
Concealed and Revealed, Londres,
1930; M. M. ROSSI, Saggio su F. B., cit.; F. ANDERSON, The Phil. of. P. B.,
Chicago, 1948; B. FARRINGTON, F. B.: Philosopher of Industrial Science, Nova
lorque, 1949, trad. ital. Turim, 1952; P. M. SCHUHL, La pensée de B., Paris,
1949; PAOLO Rossi, F. B., Dalla. magia alla sci"za, Bari, 1957 (esta última
obra é destinada especialmente à ilustração das relações entre o pensamento de
Bacon e o pensamento escolástico e renascentista).

§ 394. As várias interpretações da teoria das formas são expostas e discutidas


nas monogratias mais recentes; LEvi, op. cit., p. 243; ROSsi, op. cit., p. 195
segs.

46

QUINTA PARTE

FILOSOFIA MODERNA DOS SÉCULOS XVII E XVIII

DESCARTES

§ 395. DESCARTES: VIDA E ESCRITOS

A personalidade de Descartes marca a decisiva viragem do Renascimento para a


idade moderna, Os temas fundamentais da filosofia do Renascimento, o
reconhecimento da subjectividade humana e a exigência de aprofundá-la e
esclarecê-la com um retorno a si mesma, o reconhecimento da relação do homem
com o mundo e a exigência de a resolver em favor do homem, tornam-se, na
filosofia de Descartes, os termos de um novo problema em que são envolvidos a
um tempo o homem como sujeito e o mundo objectivo.

Renê Descartes nasceu a 31 de Março de 1596 em Haia, na Touraine. Foi educado


no colégio dos Jesuítas em La nèche, onde permaneceu de 1604 a 1612. Os
estudos que fez neste período foram por

49
ele próprio submetidos a crítica na primeira parte do Discurso: eles não
bastaram para lhe dar uma orientação segura e revelaram-lhe a profunda
vacuidade da cultura escolástica da época. Descartes, contudo, manteve sempre
relações afectuosas com os seus mestres jesuítas, e com um deles, o padre
Marino Marsenne, correspondeu-se e manteve relações de amizade por toda a
vida. A incerteza em que a primeira educação o havia deixado levou-o a viajar
"para ler no grande livro do mundo". Em 1618 alistou-se nos exércitos do
príncipe de Nassau, que participou na Guerra dos Trinta Anos. Era um costume
militar da época deixar aos jovens ampla liberdade, e Descartes pôde viajar a
seu
talante por toda a Europa, dedicando-se aos estudos de matemática e de fíSica
e continuando a procurar o fundamento seguro de todo o saber humano. Em
1618 conheceu o médico holandês Isaac Beekman e desta amizade colheu novo
incentivo para prosseguir as suas investigações matemáticas e físicas. No ano
seguinte, a 10 de Novembro, numa pequena cidade alemã, teve a grande
iluminação em que fez a sua descoberta fundamental. Foi uma verdadeira crise
de entusiasmo, que induziu o filósofo a fazer o voto de ir em peregrinação ao
santuário de Loreto. Em 1622 voltou a França e no ano seguinte viajou ainda
pela Suíça e pela Itália. Em 1628 fixou a sua residência na Holanda. Este era
então o país da liberdade e da tolerância filosófica e religiosa, e esse foi
decerto o motivo principal que levou Descartes a instalar-se aí, se bem que
também pesasse na sua deliberação um outro motivo (que ele

50

explicitamente aduz), a saber: o de subtrair-se às obrigações sociais que em


França lhe tomavam muito tempo. Pôde, assim, nesse país gozar aquela solidão
isenta de isolamento que constituiu o ideal de toda a sua vida.

Desde 1619, ano da "iluminação", Descartes estava de posse da ideia central do


seu método. Mas só em 1628, provàvelmente, começou a pôr em prática a sua
ideia num escrito e a redigir as regras do método nas Regulae ad directionem
ingetui que, não obstante, não chegou a publicar em vida: elas só foram dadas
à estampa alguns anos após a sua morte. (1701). Na Holanda começou a
compor um tratado de metafísica que será o protótipo das Meditações; e em 1633
terminava o Tratado do Mundo, ao qual pretendia dar o título menos ambicioso
de Tratado da Luz. Mas enquanto se preparava para publicá-lo, teve notícia da
condenação de Galileu de 22 de Junho de 1633. Como também ele aceitava, no seu
tratado, a hipótese copernicana, renunciou desde logo à sua publicação para
evitar entrar em conflito aberto com a Igreja. A sua natureza cauta e prudente
levou-o a ladear o obstáculo. Tirou do tratado original algumas partes
fundamentais e publicou em 1637 três ensaios: A Dióptrica, Os Meteoros e A
Geometria, antepondo-lhes um prefácio que foi o Discurso sobre o Método. Em
seguida retomou o tratado de metafísica que esboçara em 1629 e deu-lhe a
redacção definitiva. Antes de publicá-lo, Descartes mandou-o ao padre Marsenne
para que ele o sobmetesse ao parecer dos maiores filósofos e teólogos da
época. Como

51

se dirigia aos doutos, a obra (diversamente do Discurso) era escrita em latim,


foi publicada no ano seguinte (1641), seguida de uma série de Objecções a que
Descartes acrescentou as suas Respostas, com o título Meditationes de prima
philosophia in qua Dei existentia et animae immortalitas demonstranTur. Esta
obra foi publicada em francês em 1641X A matéria integral do Mundo foi depois
reelaborada por Descartes numa nova obra em que compendiava. a sua filosofia,
e que publicou em latim com o título Principia philosophiae. A obra é composta
de breves artigos seguindo -o modelo dos manuais escolares da época, pois
Descartes quis dedicá-la precisamente às escolas onde desejava vê-la superar o
ensino aristotélico, ainda dominante. Cinco anos depois, desgostoso com a
hostilidade que a sua doutrina encontrava nos ambientes universitário
holandeses (o que havia provocado a sua Epistola ad Gisbertum Voetium, 1643),
pensava em retirar-se para França, quando recebeu o convite da rainha Cristina
da Suécia para se dirigir a Estocolmo a fim de a instruir na sua filosofia.
Encorajado pelo seu amigo Chanut, embaixador de França junto da rainha,
Descartes partiu para a Suécia, depois de ter mandado para o prelo o
manuscrito da sua última obra As Paixões da Alma (1649). A rainha Cristina
gostava de ter as suas conversações com Descartes às cinco da manhã; uma manhã
de Fevereiro de 1650, o filósofo, ao deixar a corte, apanhou uma pneumonia
que, após uma semana de delírio e de sofrimentos, lhe foi fatal. Os últimos
escritos do filósofo foram uma comédia

52

francesa (que se perdeu), e a letra de um balet,


O nascimento da paz, destinado a celebrar o tratado de Westfália, cujo
espírito se patenteia na seguinte quadra:

Qui voit comme nous sommes faÍtes Et pense que la guerre est belle Ou quelle
vaut mieux que la paix Est estropié de cervelle 1

Após a morte do filósofo, foram publicadas cartas ou escritos que ele deixara
-inéditos: Compendium musicae (1650); Tratado do Homem, primeiro em latim
(1662) e depois em francês (1664); O Mundo ou Tratado da Luz (1664), Cartas
(1657-67), entre as quais se destacam as dirigidas à princesa Elisabeth do
Palatinado, Regulae ad directionem ingenii (1701); Inquisitio veritatis per
lumen naturale (A investigação da verdade através da luz natural) (1701).

§ 396. DESCARTES: A UNIDADE DA RAZÃO

O problema que domina toda a especulação de Descartes é o do homem Descartes.


O procedimento de Descartes é essencialmente autobiográfico, mesmo
quando (como nos Princípios) tem a pretensão de no-lo expor em forma objectiva
e escolar. O seu

1 Quem vê como o homem é / E penm que é boa a guerra / Ou que ela é melhor que
a paz / Não regula bem da cabeça.

53

p~ente e o seu exemplo é Montaigne. "O meu


escopo, diz Descartes (Disc., 1), não é o de ensinar o método que cada um deve
seguir para bem conduzir a própria razão, mas tão-só fazer ver de que modo
procurei conduzir a minha". Como Montaigne, Descartes não quis ensinar mas
descrever-se a si mesmo e teve por isso de falar na primeira pessoa.
O seu problema emerge da necessidade de orientação que ele sente ao sair da
escola de La Flèche, quando, embora tivesse assimilado brilhantemente o saber
da sua época, se dá conta de que não está de posse de nenhum critério seguro
que lhe permita distinguir o verdadeiro do falso e que tudo o que aprendeu de
pouco ou de nada lhe serve para a vida.

O problema do homem Descartes e o problema da recta razão ou da bona mens


(isto é, da sabedoria da vida) são, na realidade, um só e mesmo problema.
Descartes não procurou senão resolver o seu próprio problema; porém, a verdade
é que a
solução encontrada por ele não vale apenas para si mas para todos os homens,
porque a razão que constitui a substância da subjectividade humana é igual em
todos os homens, uma vez que a diversidade entre as opiniões deriva apenas dos
diversos modos de conduzi-la e da diversidade dos objectos a que se aplica.
Este principio da unidade dá razão, que é, por conseguinte, a substancial
unidade dos homens na razão, foi a primeira grande iluminação de Descartes, a
de 1619. Nas Regulae, que são, sem dúvida, o primeiro escrito em que a
iluminação é

54

referida, o filósofo afirma claramente a unidade do saber humano, fundado na


unidade da razão. "Todas as diversas ciências, diz ele, não são outra coisa
senão a sabedoria humana, a qual permanece sempre una e idêntica por muito que
se aplique a diferentes objectos, e não recebe destes maior distinção do que
recebe a luz do sol da diversidade das coisas que ilumina "A única sabedoria
humana, a que todas as ciências se reportam, é denominada por Descartes bona
mens (Reg., 1) e é, ao mesmo tempo, a sageza pela qual o homem se orienta na
vida e a razão pela qual decide do verdadeiro e do falso.- É um princípio
simultaneamente teórico e

prático, que é a própria substância do homem.

Esta substância é, como tal, única o universal. "A faculdade de julgar bem e
distinguir o vero

do falso, que é propriamente aquilo que se chama bom senso ou razão, é,


naturalmente, igual em todos os homens", diz Descartes no início do Discurso.
Esta universalidade da razão é, sem dúvida, a maior herança que Descartes
recebeu da filosofia clássica e, em particular, do estoicismo. Mas, enquanto
que para os Estóicos a razão é a Própria substância divina o o homem dela
participa só na medida em que Deus nele opera, para Descartes a razão é uma
faculdade especificamente humana a

que Deus oferece apenas alguma garantia, subordinada de resto ao respeito de


regras precisas. E, como faculdade humana, a razão não opera descobrindo ou
manifestando a ordem divina no mundo, mas produzindo e estabelecendo a ordem
nos conhe55

cimentos o nas acções dos homens. Descartes leva a efeito aquela mundanização
e humanização da razão que a filosofia do Renascimento havia parcialmente
iniciado. Porque para Descartes o primeiro fruto da razão é a ciência, e, em
particular, a matemática, sobre a qual funda a descoberta do método. A razão,
todavia, não se identifica inteiramente com o seu método, mas participa da
própria natureza dos elementos sobre que o método se exerce: tais elementos
são racionais só na--medida em que possuam clareza e evidência. A clareza e

evidência dos elementos conhecidos (isto é, das ideias) constituem a condição


preliminar de todo o

procedimento racional; e não é por acaso que o

reconhecimento desses caracteres é prescrito pela primeira regra do método.


Porque Descartes nrivi;.2gia as matemáticas que se servem apenas de
semelhantes elementos, mas tal privilégio, tem, como
sua contraparte negativa, a rejeição de uma quantidade de noções
aproximativas, "perfeitas ou fantásticas que Descartes se recusa a tomar em
consideração porque as considera insusceptíveis de tratamento racional. O
ideal da clareza e da distinção, ou seja, o ideal da filosofia como ciência
rigorosamente conceptual, é um dos ensinamentos cartesianos que mais
poderosamente influíram na tradição ocidental.

Este ideal, além disso, não constituía para Descartes um empobrecimento do


horizonte da filosofia ou a sua redução a uma tarefa puramente especulativa.
Como Bacon, Descartes tinha em mira uma filosofia "não puramente especulativa
mas tam56

bém prática, pela qual o homem possa tornar-se dono e senhor da natureza".
Esta filosofia deve pôr à disposição do homem dispositivos que lhe permitam
gozar sem fadiga dos frutos da natureza e de

outras comodidades, e visar à conservação da saúde, o primeiro bem paira o


homem nesta vida. E Descartes é francamente optimista sobre a possibilidade e
sobre os resultados práticos de uma semelhante filosofia, que, segundo pensa,
poderia conduzir os

homens a ficarem isentos "de uma infinidade de doenças, tanto do corpo quanto
do espírito, e talvez mesmo da decadência da velhice" (Disc., VI). Por isso
torna públicos os resultados das suas investigações: sabe que a sua vocação o
chama ao serviço da humanidade e que, das suas descobertas, a humanidade pode
esperar o benefício e o equilíbrio da vida.

Mas tais resultados são condicionados pela posse do método. É necessário um


método que seja fundado na unidade e na simplicidade da razão humana e que,
portanto, seja aplicável a todos os domínios do saber e a todas as artes. A
descoberta e a justificação deste método é o primeiro escopo da actividade
especulativa de Descartes.

§ 397. DESCARTES: O MÉTODO

Descartes descobriu o seu método mediante a consideração do processo


matemático. "As longas cadeias de raciocínios tão simples e fáceis, de que os
geómetras costumam servir-se para chegar às

57

suas mais difíceis demonstrações, proporcionaram-me o ensejo de imaginar que


todas as coisas de que o homem pode ter conhecimento se seguem do mesmo modo e
que, desde que se abstenha de aceitar por verdadeira uma coisa que não o seja
e que respeite sempre a ordem necessária para deduzir uma coisa da outra, nada
haverá tão distante que não se chegue a alcançar por fim nem tão <)culto que
não se possa descobrir (Disc., 11). As ciências matemáticas encontram-se
portanto já, praticamente, de posse do método. Mas não se trata &penas de
tomar consciência deste método, isto é, de extraí-lo das matemáticas e de
formulá-lo em geral, (para o

poder aplicar a todos os ramos do saber. Tal aplicação- não seria possível se
não se tivesse previamente justificado o valor universal do método. Cumpre,
por conseguinte, justificar o próprio método e a possibilidade da sua
aplicação universal, reportando-o ao seu fundamento último, isto é, à
subjectividade do homem, como pensamento ou razão. O facto de as matemáticas
estarem já de posse da prática do método facilitou decerto a tarefa de
Descartes, mas tal tarefa só começa verdadeiramente com a justificação (ou
fundação) das regras metódicas, justificação que só consente e autoriza a
aplicação delas a todos'os domínios do saber humano. Descartes devia portanto:
1.'-formular as regras do método tendo sobretudo presente o procedimento
matemápico no qual elas estariam já presentes e em acção; 2.'-fundar mediante
uma investigação científica o valor absoluto e universal do método; 3.o -
demonstrar a fecundidade do

58

método nos vários ramos do saber. Tal foi de facto a sua tarefa.

Descartes define o método como o conjunto de "regras certas e fáceis que, por.
quem quer que sejam exactamente observadas, lhe tornam impossível tomar o
falso pelo verdadeiro e, sem nenhum esforço mental inútil, antes aumentando
sempre gradualmente a ciência, conduzirão ao conhecimento de tudo o que ele
será capaz de conhecer" (Reg. IV).
O método deve conduzir o homem, de um modo fácil e seguro, não só ao
conhecimento verdadeiro, mas também "ao ponto mais alto" (Disc., 1) a que ele
pode chegar, isto é, simultaneamente ao domínio sobre o mundo e à sabedoria da
vida. Nas Regulae ad directionem ingenii,' Descartes expusera não só as regras
fundamentais mas também as modalidades ou as particularidades da sua
aplicação: tinha assim enumerado vinte e uma regras e depois interrompera,
desencorajado, a sua obra. Na 11 parte do Discurso sobre o método reduz a
quatro as regras fundamentais.

A primeira é a da evidência. "A primeira era

a de jamais aceitar alguma coisa por verdadeira se

não a reconhecêssemos evidentemente como tal: ou seja, evitar diligentemente a


participação e a prevenção; e compreender nos meus juízos tão-só o que se
apresentasse tão clara e distintamente ao meu

espírito que eu não tivesse nenhuma possibilidade de o pôr em dúvida".


Descartes opõe a evidência à conjectura, que é aquilo cuja verdade não se
apresenta ao espírito de modo imediato. O acto com

que o espírito atinge a evidência é a intuição. Des59

cartes entende por intuição "não o flutuante testemunho dos sentidos ou o


juízo falaz da imaginação nas suas erradas combinações, mas um conceito da
mente pura e atenta tão fácil e distinto que nenhuma dúvida permaneça acerca
do que pensamos; ou seja, -- é precisamente o mesmo, um conceito não duvidoso
da mente pura e atenta que nasce só da luz da razão e é mais certo do que a
própria dedução" (Reg. III). A intuição é , portanto, o acto puramente
racional com o qual a mente colhe o seu próprio conceito e se torna
transparente a si mesma. A clareza e a distinção constituem os caracteres
fundamentais de, uma ideia evidente: entendendo-se por clareza (Princ. phil.,
I,,
21 e 45) a presença e a abertura da ideia à mente que a considera e por
distinção a separação de todas as outras ideias de modo que ela não contenha
nada que pertença às outras., A evidência define assim um acto fundamental do
espírito humano, a intuiçãoo que Descartes nas Regras coloca antes da dedução
e a par dela, como os dois únicos actos do intelecto. A intuição é o próprio
acto da evidência, o transparecer da mente a si mesma e a certeza inerente a
este transparecer. Veremos que a busca metafísica de Descartes será,
fundamentalmente, uma justificação do acto intuitivo.

A segunda regra é a da análise. "Dividdir cada uma das dificuldades a examinar


no maior número de partes possíveis e necessárias para melhor as resolver".
Uma dificuldade é um complexo de problemas em que o falso se mistura com o
verdadeiro. A regra implica em primeiro lugar que um pro60

blema seja absolutamente determinado e, portanto, que seja libertado de


qualquer complicação supérflua, e, em segundo lugar, que seja dividido em
problemas mais simples que se possam considerar separadamente (Reg., 13).

A terceira regra é a da síntese. "Conduzir os meus pensamentos por ordem,


começando pelos objectos mais simples e mais fáceis de se conhecer, para pouco
a pouco me elevar, como por graus, até aos conhecimentos mais complexos,,
supondo que haja uma ordem também entre-os objectos que não procedem
naturalmente uns dos outros". Esta regra supõe o procedimento ordenado que é
próprio da geometria e supõe, outrossim, que todo o domínio do saber seja
ordenado ou, ordenável de modo análogo. A ordem assim pressuposta é, segundo
Descartes, a ordem da dedução, que é o outro acto

fundamental do espírito humano. Na ordem dedutiva, estão primeiro as coisas


que Descartes chama absolutas, isto é, providas de uma natureza simples e,
como tais, quase independentes das outras, são, ao invés, relativas as que,
devem ser deduzidas das primeiras através de uma série de raciocínios (Ib. 6).
A exigência da ordem dedutiva implica que, quando uma ordem semelhante não se
encontre naturalmente, ela deva ser a seu tempo cogitada; assim, no caso de
uma escrita em caracteres desconhecidos, que não revele nenhuma ordem, se
começa por imaginar uma e pô-la à prova (Ib., 10). A regra da ordem é para a
dedução tão necessária como a

evidência o é para a intuição.

61

A quarta (regra é da enumeração. "Fazer sempre enumerações tão completas e


revisões tão gerais que se fique certo de não omitir nenhuma". A enumeração
controla a análise, enquanto que a revisão controla a síntese. Esta regra
prescreve a ordem e a

continuidade do procedimento dedutivo e tende a reconduzir este procedimento à


evidência intuitiva. De facto, o controle completo que a imaginação estabelece
ao longo de toda a cadeia das deduções faz desta cadeia um todo completo e
totalmente evidente (Ib., 7).

Estas regras não têm em si mesmas a sua justificação. O facto de as


matemáticas se servirem delas com sucesso não constitui uma justificação,
porque elas poderiam ter uma utilidade prática para os fins da matemática e
serem, não obstante, destituídas de validade absoluta e por isso inaplicáveis
noutros domínios. Descartes deve, pois, elaborar uma pesquisa que as
justifique remontando à raiz delas; e essa raiz não pode ser senão o princípio
único e simples de toda a ciência e de toda a arte: a subjectividade racional
ou pensante do homem.

§ 398. DESCARTES: O COGITO


Encontrar o fundamento de um método que deve ser o guia seguro da investigação
em todas as ciências só é possível, seguindo Descartes; mediante uma

crítica radical de todo o saber. É necessário suspender, pelo menos uma vez, o
assentimento a todo o conhecimento Comummente aceite, duvidar de tudo

62

e considerar provisoriamente como falso tudo o que seja susceptível de ser


posto em dúvida. Se, persistindo nesta atitude de crítica radical, se chegar a
um princípio sobre o qual não seja possível a dúvida, esse principio deverá
ser considerado extremamente sólido e tal que possa servir de fundamento a
todos os outros conhecimentos. Em tal princípio se encontrará a justificação
do método.

A dúvida cartesiana implica dois momentos distintos: 1º reconhecimento do


carácter incerto e problemático dos conhecimentos sobre os quais recai; 2.'-a
decisão de suspender o assentimento a tais conhecimentos e de considerá-los
provisoriamente falsos. O primeiro momento é de carácter teórico, o segundo é
de carácter prático e implica um acto livre da vontade doutrina cartesiana do
livre-arbítrio está já 4nplícita neste segundo momento (§ 401). Evidentemente,
a suspensão do juizo ou epoché (segundo o termo dos antigos cépticos), se
abole todo o juízo que afirme ou negue a verdade de uma ideia, não abole
todavia as próprias ideias. Ela diz respeito à existência, não à essência, das
coisas. Recusar-se a afirmar a realidade dos objectos sensíveis não significa
negar as ideias sensíveis de tais objectos. A epoché suspende a afirmação da
realidade das ideias enquanto possuídas pelo homem, mas reconhece essas ideias
corno puras ideias ou

essências. O que implica uma indicação precisa do sentido em que se move o


processo da dúvida., Este processo será bem sucedido se, reduzido mediante a
epoché o mundo da consciência a um mundo de puras ideias ou essências, se
encontrar uma ideia

63

ou essência que seja a imediata. revelação de, uma

existência. E tal será o caso do eu.


1 Ora, Descartes afirma que nenhum grau ou forma de conhecimento se subtrai à
dúvida. Pode-se, é por isso se deve, duvidar dos conhecimentos sensíveis, seja
Porque os sentidos algumas v= nos enganam, embora nem sempre nos enganem, seja
porque no sonho se têm- conhecimentos semelhantes aos da vigília sem que se
possa encontrar um critério seguro de distinção entre uns e outros. É bem
certo haver conhecimentos verdadeiros quer no

sonho, quer na vigília, como os conhecimentos matemáticos (dois mais três são
sempre cinco, quer se esteja a dormir ou acordado), mas nem mesmo

estes se subtraem à dúvida, porque também a certeza relativa a eles pode ser
ilusória. Enquanto nada de certo se souber acerca de nós próprios e

da nossa origem, pode-se sempre supor que o homem foi criado por um génio mau
ou por uma potência maligna que se, tenha proposto enganá-lo fornecendo-lhe
conhecimentos aparentemente certos mas

desprovidos de verdade. Basta fazer uma tal hipótese (e pode-se fazê-la, dado
que não se sabe nada) para que mesmo os, conhecimentos subjectivamente mais
certos se revelem duvidosos e capazes de esconder o engano. Assim, a dúvida se
estende a todas as coisas e se torna absolutamente universal.

Porém, mesmo no carácter radical desta dúvida se apresenta o princípio de uma


primeira certeza. Eu posso admitir que me engano ou que estou enganado de todo
em todo. Posso supor que não há Deus, nem o céu, nem os corpos, e que eu

64

DESCARTES

próprio não tenho coipo. Mas para que me engane ou para que seja enganado,
para duvidar e para

WL41 9

eu que penso seja qualquer coisa e não nada. A proposição penso, logo existo é
a única absolutamente verdadeira porque a própria dúvida a confirma. Toda a
dúvida, suposição ou engano, pressuporá sempre que eu que duvido, suponho ou
me engano, exista?(A afirmação existo será portanto verdadeira todas as vezes
que a concebo no meu espírito.

Ora, esta proposição contém também, evidentemente, uma certa indicação acerca
do que sou eu

que existo. Não posso dizer que existo como corpo, já que nada sei da
existência dos corpos, a respeito dos quais a minha, dúvida permanece. Eu só
existo como uma coisa que duvida, isto é, que pensa. A certeza do meu existir
liga-se apenas ao

meu pensamento e às suas determinações: o duvidar,


* compreender, o conceber, o afirmar, o negar,
* querer, o não querer, o imaginar, o sentir e, em geral, a tudo quanto existe
em mim e de que sou imediatamente consciente (H Resp., Def. 1). As coisas
pensadas, imaginadas, sentidas, etc. podem não ser reais; mas é real decerto o
meu pensar, sentir, etc. A proposição eu existo significa apenas eu sou uma
coisa .pensante, isto é, espírito, intelecto, razão. A minha existência de
sujeito pensante é certa como o não é a existência de nenhuma das coisas que
penso. Pode ser que aquilo que eu percepciono (por exemplo, um pedaço de cera)
não exista; mas é impossível que não exista eu que penso que percepciono esse
objecto. Sobre esta certeza
* 65

originária, que é ao mesmo tempo uma verdade necessária, deve fundar-se todo e
qualquer outro conhecimento.

Sobre tal certeza assegura Descartes poder fundar em primeiro lugar a validez
da regra de evidência. "Tendo notado, &z ele (Disc., IV; d. Med.
111) que não há nada nesta afirmação: eu penso, logo existo, que me assegure
que eu diga a verdade, senão que vejo clarissimamente que para pensar é
necessário existir, julguei poder tomar por regra geral que as coisas que
concebemos de um modo claro e distinto são todas verdadeiras". Porém, já a
alguns contemporâneos de Descartes (por exemplo, HUET, Cens. phil cartes, H,
1) esta relação entre o cogito e a regra da evidência se apresentara
problemática. Se o princípio do cogito é aceite porque evidente, a regra da
evidência é anterior ao

próprio cogito como fundamento da sua validade: e a pretensão de justificá-la


em virtude do cogito torna-se ilusória. Mas o cogito e a evidência serão
verdadeiramente dois princípios diversos entre os

quais seja necessário estabelecer a prioridade? Será o cogito apenas uma entre
as variadíssimas evidências que a regra da evidência garante serem
verdadeiras? Na realidade, o cogito não é uma evidência mas antes a evidência
no seu fundamento metafísico: é a evidência de que a existência do sujeito
pensante tem por si mesma, a transparência absoluta que a

existência humana, como espírito ou razão, possui no seu próprio âmbito. A


evidência do cogito é urna relação intrínseca ao ou e pelo qual o ou se

liga imediatamente à própria existência. Esta relação


66

não recebe a sua validez de nenhuma regra mas tem o princípio e a garantia da
sua existência unicamente em si mesma. A regra da evidência, provisoriamente
deduzida da consideração das matemáticas, nela encontra a sua última raiz e a
sua justificação absoluta; torna-se assim verdadeiramente universal e
susceptível de ser aplicada em todos os casos. Diz de facto Descartes,
respondendo a uma

objecção análoga (Lett. à Clercelier, Junho-Julho


1646, Oeuvr., IV, 443): "A palavra porincípio pode-se tornar em diversos
sentidos: uma coisa é procurar uma noção comum que seja tão clara e

geral que possa servir como princípio para provar a existência de todos os
seres, os entia, que se

conhecerão depois; outra coisa é procurar um ser, a existência do qual nos


seja mais conhecida do que a dos outros de modo que possa servir como
princípio para os conhecimentos.

Isto permite responder à outra questão (também ela tradicional na crítica


cartesiana), se o cogito é ou não um raciocínio. Em tal caso, suporia uma
premissa maior: "tudo o que pensa existe" o (como Gassendi observava) não
seria um primeiro princípio. O próprio Descartes afirmou decididamente contra
os seus críticos o carácter imediato e intuitivo do cogito. E, na realidade, a
identidade entre a evidência (no seu princípio) e o cogito' estabelece também
a identidade entre o cogito e a intuição, que é o acto da evidência. Se a
intenção, como se

viu (§ 397), é o acto com que a mente se torna transparente a si mesma, a


intuição primeira e fundamental é aquela com que se toma transparente

67

a si mesma a existência da mente, ou seja, do sujeito pensante. O cogito, como


evidência existencial originária é a intuição existencial originária do
sujeito pensante.

O sujeito pensante, definido pela auto-evidência existencial é, segundo


Descartes, uma substância (Disc., IV; Resp., II def. 5; Resp., III). Descartes
aceita aparentemente a noção escolástica de substância e por ela entende o
sujeito imediato de qualquer atributo de que tenhamos uma ideia real. Mas, na
realidade, tal noção sofre nele uma metamorfose radical. A substância pensante
não é outra coisa senão o pensamento existente. A substancialidade do ou não
implica o reconhecimento de um qualquer seu desconhecido subjectum, mas apenas
exprime a intrínseca relação pela qual o eu é evidência da sua própria
existência. De modo análogo, o carácter substancial da extensão (a que se
reduz a corporeidade das coisas) significará apenas a objectividade da
extensão relativa aos outros caracteres dos corpos, mas excluirá todo o
substracto recôndito. A substância pensante não é senão o pensamento, enquanto
existência evidente a si mesma. A aparente aceitação por parte de Descartes do
termo aristotélico-escolástico de substância é, na realidade, uma nova
definição do próprio termo, cujo significado se exaure na intrínseca relação
existencial do eu.

As considerações precedentes permitem estabelecer a originalidade do princípio


cartesiano do cogito. Descartes indubitavelmente repetiu (se conscientemente
ou não é impossível dizê-lo) um movimento

68

de pensamento que remonta a S.to , Agostinho (§ 160), que de Santo Agostinho o


passou para a Escolástica, e foi retomado e renovado por Campanella quase ao
mesmo tempo que por Descartes (§ 385). Mas não há dúvida de que, como o
próprio Descartes afirmou (Resp., IV), S.to Agostinho se servira do cogito
para fins bastante diversos dos dele. Ele visava ao reconhecimento da
presença transcendente de Deus no homem, e na tradição medieval o cogito
agustiniano conserva o mesmo valor. Quanto a Campanella, viu-se que o
principio vale para ele unicamente como fundamento de uma teoria naturalística
da sensação. Mas o que torna evidente a separação radical que existe entre os
precedentes históricos do cogito cartesiano e o próprio cogito é que neste
falta o carácter problemático que mercê do cogito vem a assumir toda a
realidade diversa do eu. pela primeira vez, Descartes fez valer o cogito como
relação do eu consigo mesmo, portanto como principio que torna problemática
qualquer outra realidade e que ao mesmo tempo permite justificá4a. Só
Descartes compreendeu o pleno valor do cogito em todas as suas implicações e o
utilizou como principio único e simples para uma reconstrução metafísica que
tem como seu ponto de partida a problematicidade do real.

§ 399. DESCARTES: DEUS

O principio do cogito não encerra o homem na

interioridade do seu eu. É um principio de abertura ao mundo, a uma realidade


que está para além do

69

eu. Certamente, à base dele, ou só estou seguro da minha existência; mas a


minha existência é a de um ser pensante, isto é, de um ser que tem ideias.
O uso do termo ideia para indicar qualquer objecto do pensamento em geral é
uma novidade terminológica de Descartes. Para os escolásticos ideia era a
essência ou arquétipo das coisas subsistentes na

mente de Deus (o universal ante rém). Descartes definiu a ideia como "a
forma de um pensamento, pela imediata **pe~o da qual sou consciente de tal
pensamento" (Resp., II, def. 2). Isto significa que a ideia exprime esse
carácter fundamental do pensamento pelo qual ele é imediatamente consciente
de si mesmo. Qualquer ideia tem, em primeiro lugar, uma realidade como acto do
pensamento, e tal realidade é puramente subjectiva ou mental. Mas, em segundo
lugar, tem também uma realidade a que Descartes chama escolàsticamente
objectiva, porquanto representa um objecto; neste sentido, as

ideias são "quadros" ou imagens" das coisas. Ora o cogito torna-me seguro de
que as ideias existem no meu pensamento como actos do próprio pensamento, já
que fazem parte de mim como sujeito pensante. Mas não me tornam seguro do
valor real do conteúdo objectivo delas, isto é, não me diz se os

objectos que elas representam existem, ou não na realidade. Ideias são para
mim a terra, o céu, os astros e todas as coisas percebidas pelos sentidos:
como ideias, existem no meu espírito. Mas existem realmente as coisas
correspondentes fora do meu

pensamento? Este é o problema ulterior que se

apresenta à investigação cartesiana. Descartes divide

70

em três categorias todas as ideias: as que me parece haverem nascido em mim


(inatas); as que me parecem estranhas ou vindas do exterior (adventícias); e
as formadas ou encontradas por mim próprio (factícias). Ã primeira classe de
ideias pertence, a

capacidade de pensar e de compreender as essências verdadeiras, imutáveis e


eternas das coisas; à segunda classe pertencem as ideias das coisas naturais;
à terceira, as ideias das coisas quiméricas ou

.inventadas (Med., 111, Lett. à Mersenne, 16 de Junho de 1641, Oeuvr., 111,


383). Ora, entre todas estas ideias não há nenhuma diferença' se as
considerarmos do ponto de vista da sua verdade subjectiva, isto é, como actos
mentais; mas se se consideram do ponto de vista da sua realidade objectiva,
isto é, das coisas que representam ou de que não são imagens, são
diferentíssimas umas das outras.

Deste ponto de vista, podem ser examinadas para se descobrir a causa que as
produz. Ora, as ideias que representam outros homens ou coisas naturais nada
contêm de tão perfeito que não possa ter sido produzido por mim. Mas no que se
refere à ideia de Deus, isto é, de uma substância infinita, eterna,
omnisciente. omnipotente e criadora, é difícil supor que possa eu próprio tê-
la. criado. A ideia de Deus é a única ideia em que há alguma coisa que não
poderia vir de mim próprio, na medida em que eu

não possuo nenhuma das perfeições que estão representadas nessa ideia.
Descartes afirma, em geral, que a causa de uma ideia deve sempre ter pelo
menos tanta perfeição quanto a que a ideia representa. Por isso a causa da
ideia de uma substância

71

infinita só pode ser uma **sub~ia infinita. e a simples presença em mim da


ideia de Deus demonstra a existência de Deus. Esta demonstração cartesiana
modela-se decerto **jiclas demonstrações escolásticas fundadas sobre o
princípio de causalidade; mas, ao contrário delas, não parte das coisas
sensíveis para chegar, através da impossibilidade de remontar ao infinito, à
causa primeira; mas parte, sim, da simples ideia de Deus e ascende
imediatamente do seu conteúdo representativo à sua causa.

A prova é, assim, unicamente fundada sobre a natureza que Descartes atribui às


ideias e é típica do cartesianismo.

Em segundo lugar, posso chegar a reconhecer a existência de Deus, mercê da


mesma consideração da finitude do meu eu. Eu sou finito e imperfeito, como é
demonstrado pelo facto de que duvido. Mas se eu fosse a causa de mim mesmo,
teria concedido a mim próprio as perfeições que concebo e que estão
precisamente contidas na ideia de Deus. É, pois, evidente que não fui criado
por mim e que devo ter sido criado por um ser que possui todas as perfeições
de que eu tenho a simples ideia. Também o ponto de partida desta segunda prova
é a

presença no homem da ideia de Deus; além disso, esta segunda prova é fundada
sobre o reconhecimento da própria finitude por parte do homem. Descartes
estabelece uma estreita conexão entre a natureza finita do homem e a ideia de
Deus. "Quando reflicto sobre mim, diz ele (Med., IU), não somente sei que sou
uma coisa imperfeita, incompleta e dependente de outro, que tende e aspira sem
descanso

72

a algo de melhor e de superior, mas sei também ao mesmo tempo que Aquele de
que dependo possui em si todas as grandes coisas a que aspiro e de que
encontro em mim as ideias, e as possui não indefinidamente em potência, mas na
realidade, actualmente e infinitamente, e que por isso é Deus". Não seria
possível que a minha natureza fosse tal qual é, isto é, finita mas dotada da
ideia do infinito, se o ser infinito não existisse. A ideia de Deus é, pois,
"como a marca do artífice impressa na sua obra e nem sequer é necessário que
tal marca

seja alguma coisa de diferente dá própria obra". Por outros termos, a própria
finitude constitutiva do homem implica a relação causal do homem com Deus,
relação de que a ideia de Deus é a expressão e a revelação imediata.

Ambas as provas que acabamos de expor assumem como ponto de partida a ideia de
Deus. Mas já a Escolástica havia fornecido uma prova que pretendia ir da
simples ideia de Deus à existência de Deus: a prova de Santo Anselmo de Aosta
(§ 192). Tal prova cabia perfeitamente na

lógica do procedimento de Descartes. E Descartes fê-la sua, apresentando-a


provida da mesma necessidade que uma demonstração matemática. Como não é
possível conceber um triângulo que não tenha os ângulos internos iguais a dois
rectos, assim não é possível conceber Deus não existente. O ser soberanamente
perfeito não pode ser pensado privado daquela perfeição que é a existência: a
existência pertence-lhe, pois, com a mesma necessidade com que uma propriedade
do triângulo pertence ao

73

triângulo. É evidente que esta prova diferencia-se das duas precedentes porque
considera a ideia de Deus, não em relação ao homem e à sua finitude, mas em si
mesma, o enquanto essência de Deus. E sobre esta essência versam os
esclarecimentos que Descartes deu sobre, a prova (Resp., 1). A necessidade da
existência de Deus deriva da superabundância de ser que é própria da sua
essência. Através desta superabundância põe-se Deus a si mesmo na existência
comportando-se de algum modo para consigo como uma causa eficiente. Conquanto
não haja em Deus distinção entre a existência e a causa eficiente (que seria
absurda), a causalidade eficiente torna de algum modo inteligível a
necessidade da sua existência. Deus existe em virtude da sua própria essência,
pela superabundância de ser, por consequência da perfeição, que o constitui.

Como as provas da existência de Deus têm todas como ponto de partida comum a
ideia de E0eus, constituem a simples; explicação da natureza finita do homem.
No acto de duvidar e de se reconhecer imperfeito, reporta-se o homem
necessariamente à ideia da perfeição e daí à causa dessa ideia, que é Deus. A
afirmação de Descartes de que a ideia de Deus é como a marca que o artífice
imprime na sua obra e que não é necessário que tal marca seja algo de diverso
da própria obra significa precisamente que a pesquisa mediante a qual o homem
chega à certeza de si é idêntica à investigação mediante a qual o homem atinge
a certeza de Deus.

Uma vez reconhecida a existência de Deus, o

critério da evidência encontra a sua última garantia.

74

Deus, pela sua perfeição, não pode enganar-me: a

faculdade de juízo que dele **rwebá não pode ser

tal que me induza em erro, se for aplicada correctamente. Tal consideração


tira todas as possibilidades de dúvida sobre todos os conhecimentos que se
apresentem ao homem como evidentes. A possibilidade de dúvida permanece, ao
invés, para o ateu; pois que, quanto menos poderoso for aquele que ele
reconheça como autor do seu ser, tanto mais poderá supor que a sua natureza
seja tão imperfeita que o engane mesmo nas coisas que lhe pareçam mais
evidentes. O ateu não poderá, pois, alcançar a ciência, isto é, o conhecimento
certo e seguro, se não reconhecer ter sido criado por um verdadeiro Deus,
princípio de toda a verdade, que não pode ser enganador (Resp., VI,
4).)@Assim, a primeira e fundamental função que Descartes atribui a Deus é a
de ser o princípio e o garante de toda a verdade. E, na realidade, o conceito
cartesiano de Deus é desprovido de todo o carácter religioso. Como notará
Pascal (Pensées, 556), o Deus de Descartes não tem nada a ver com o Deus de
Abraão, de Isaac, de Jacob, com o Deus Cristão; é, simplesmente, o autor das
verdades geométricas e da ordem do mundo. Assim se poderia esperar que um Deus
invocado como garante das verdades evidentes estivesse de algum modo vinculado
a estas verdades; e que elas fossem reconhecidas por Descartes como sendo
independentes de Deus. Mas a doutrina cartesiana sobre este ponto é
precisamente o contrário. As chamadas verdades eternas que exprimem a

essência imutável das coisas não são de modo algum

75

independentes da vontade de Deus: foi Deus que as

criou, como criou todas as outras criaturas. Disse Descartes: "Perguntais quem
obrigou Deus a criar tais verdades; e ou digo que ele foi livre para fazer que
não fosse verdade que todas as linhas que partem do centro para a
circunferência fossem iguais como foi livre para não criar o inundo. E é certo
que estas verdades não estão ligadas à sua essência mais necessariamente do
que outras criaturas" (Leares à Mersennes de 27 de Maio de 1630. Cf. também as
cartas ao mesmo Mersennes de 15 de Abril e de 6 de Maáo de 1630).

Esta doutrina liga-se estreitamente, por muito que pareça paradoxal, ao núcleo
contra do cartesianismo. As verdades eternas poderiam ser independentes de
Deus se fossem para ele próprio necessárias; e poderiam para ele ser tais que
fizessem parte da necessidade da sua natureza. Mas em tal caso a razão que
nelas se manifesta seria a Própria razão divina; e a razão humana e divina
coincidiriam, segundo o velho conceito do estoicismo. Descartes afirma, ao
invés, que a razão é uma faculdade especificamente humana; vê em Deus antes
uma potência inexaurível, isto é, uma infinidade de entendimento; reconhece-
lhe, no entanto, a mais ampla faculdade de arbítrio mas ao mesmo tempo confia
só ao homem a responsabilidade e a razão como gula. Como a redução das
verdades eternas a decretos de Deus não é mais que a transcrição teológica do
postulado da sua imutabilidade, tal transcrição evita a identificação da razão
humana com Deus.

76

§ 400. DESCARTES: O MUNDO

Com a demonstração da existência de Deus e do seu atributo de veracidade, as


regras do método encontraram a sua confirmação definitiva. Descartes pode,
passar à terceira parte da sua tarefa que é a de demonstrar a sua fecundidade
no domínio do saber científico. E, em primeiro lugar, a regra de evidência,
agora plenamente justificada e garantida, permite eliminar a dúvida que havia
sido levantada em princípio sobre a realidade das coisas materiais. De facto,
eu não posso duvidar de que há em mim uma certa faculdade passiva de sentir,
isto é, de receber e de reconhecer as ideias das coisas sensíveis. Mas ela
ser-me-ia inútil se não houvesse em mim ou noutros uma faculdade activa capaz
de formar ou produzir as própria ideias. Ora, esta faculdade activa não pode
existir em mim, porque eu sou

apenas uma substância pensante, e ela não pressupõe de modo algum o meu
pensamento, já que as ideias que ela produz me são amiúde representadas sem
que eu para isso contribua, antes contra a minha própria vontade. Daí que
tenha, necessariamente, de pertencer a uma substância diversa, a qual só pode
ser ou um corpo, isto é, uma outra natureza corpórea na qual esteja contido
realmente aquilo que nas ideias está contido representativamente, ou então o
próprio Deus, ou enfim alguma outra criatura mais nobre do que o corpo. Mas é
evidente que Deus, não sendo enganador, não me envia essas ideias
**im"tamente, nem sequer por

77

meio de qualquer criatura que não as contenha realmente. Ele infundiu-me uma
forte inclinação para crer que elas me são enviadas por coisas corpóreas, e
por isso enganar-me-ia se elas fossem produzidas por outro. Cumpre reconhecer
que há uma substância pensante que sou eu próprio: substância divisível,
precisamente porque extensa, ao passo que o espírito é indivisível e não tem
partos. A substância extensa não possui todavia todas as qualidades que nós
percepcionamos. A grandeza, a figura, o movimento, a situação, a duração, o
número, são decerto as suas qualidades próprias; mas a cor, o cheiro, o sabor,
o sono, etc., não existem como tais na realidade corpórea e correspondem nesta
realidade a alguma coisa que nós não conhecemos. Descartes estabelece, elo
também, a distinção entre qualidades objectivas e subjectivas, já estabelecida
por Galileu.

Pelo mesmo motivo, isto é, em virtude da veracidade divina, devo admitir que
tenho um corpo, que s-1 sente mal disposto quando tenho dores, que tem
necessidade de comer quando tenho as

sensações da fome, da sede, etc. Tais sensações demonstram que ou não estou
alojado no meu corpo

como um piloto no seu navio, mas que lhe estou tão estreitamente ligado que
formo um só todo com ele. Sem esta união eu não poderia perceber o prazer ou a
dor que me advém de tudo o que acontece no corpo, mas conheceria as sensações
de prazer ou de dor, de fome, de sede, etc., com o puro intelecto, como coisas
que não concernem ao meu

ser. Tais sensações são, na realidade, "modos con78

fusos de pensar" que provêm da própria união do espírito com o corpo (Med.,
VI). Além disso, esta união pressupõe uma distinção real entre o espírito e o
corpo, na medida em que posso pensar existir como pura substância espiritual
sem admitir em

mim nenhuma parte, ou elemento de outra natureza; e, por outro lado, devo
reconhecer no corpo caracteres (como a divisibilidade) que a substância
espiritual recusa.

Este dualismo substancial da alma e do corpo tem sido frequentemente


considerado como um dos aspectos mais deficientes da filosofia cartesiana. Na
realidade, o que há de novo em tal filosofia é o reconhecimento da
substancialidade do corpo, o

qual, na concepção tradicional (aristotélica) era considerado não como


substância mas como órgão ou instrumento da substância alma, ou como dotado
(segundo o agustianismo medieval, § 307) de uma

substancialidade parcial ou imperfeita. Reconhecer que o corpo é substância,


significa, em primeiro lugar, para Descartes tornar possível a consideração e
o estudo do corpo como tal, isto é, sem referência à alma ou aos seus poderes:
de modo que esse reconhecimento aparece a Descartes como a primeira condição
para o estudo científico do corpo humano e em tal sentido influi no
desenvolvimento dos estudos biológicos.

De qualquer modo, seja corno corpo humano, seja como corpo natural, a
substância corpórea tem, segundo Descartes, um único carácter fundamental,
isto é, a extensão. A matéria pode ser concebida como sendo privada de todas
as qualidades que lhe

79

possamos atribuir (peso, cor, etc), mas não como sendo privada da extensão em
comprimento, largura e profundidade: este é, pois, o seu atributo fundamental
(Princ. phil., 11, 4). O conceito do espaço geométrico identifica-se com a
extensão; é fruto da abstracção pela qual se eliminam dos corpos todas

as suas propriedades reduzindo-as ao seu atributo fundamental (Ib., II, II). A


redução cartesiana da corporeidade à extensão é o fundamento do rigoroso
mecanismo que domina toda a física cartesiana. Todas as propriedades da
matéria reduzem-se à sua divisibilidade em partes o à mobilidade dessas partes
(lb.,, 11, 23). O movimento das partes extensas deve ser, portanto o único
princípio de explicação de todos os fenómenos da natureza.

Descartes afirma que a causa prima do movimento é o próprio 'Deus, que


ao princípio criou a matéria com uma determinada quantidade de repouso e de
movimento, e que em seguida mantém em si, imutável, esta quantidade.
Deus, de facto, é imutável, não só em si mesmo, mas também em todas as suas
operações, visto que, exceptuadas aquelas mutações reveladas pela experiência,
que não supõem nenhuma mutação nos d~ de Deus, não devemos supor qualquer
outra variação nas suas obras (Ib., 11, 36). Deste princípio da imutabilidade
divina Descartes tira as leis fundamentais da sua física. Da imutabilidade
divina segue-se de facto como primeira lei da natureza o princípio de inércia:
todas as coisas, enquanto simples e indivisas, perseveram sempre no mesmo
estado o só podem ser mudadas por uma causa externa (Ib.,

80

11, 37). A segunda lei, também ela derivada da imutabilidade divina, é a de


que todas as coisas tendem a mover-se em linha recta (Ib., 11, 39). A terceira
lei é o princípio da conservação do movimento, graças à qual, no choque dos
corpos entre si, o movimento não se perde, mantendo-se a sua quantidade
constante. (Ib., 11, 40).

Bastam estas três leis, segundo Descartes, para explicar todos os fenómenos da
natureza e a estrutura de todo o - universo, o qual é uma maquina gigantesca,
de que se exclui qualquer força animada ou qualquer causa final. Tal como
Bacon, Descartes acha legítimo considerar o finalismo da natureza no domínio
da ética, mas assegura ser tal consideração "ridícula e estúpida", na física,
"uma, vez que, segundo diz (Ib., 111, 3), não duvidamos que existam, ou
existissem durante um tempo e tenham já deixado de existir muitas coisas que
nunca foram vistas ou compreendidas pelos homens, e que por isso não lhes
foram de qualquer utilidade". É por isso um simples acto de soberba imaginar
que tudo tenha sido criado por Deus para exclusivo benefício do homem. Pela
única acção destas três leis, Descartes afirma poder explicar como se formou a
ordem actual do mundo a partir do caos. A matéria primitiva era composta de
partículas iguais em grandeza e em movimento; estas partículas moviam-se quer
em torno do próprio centro quer umas, em relação às outras, de modo a formarem
turbilhões fluidos que, compondo-se de modos vários entre si, deram origem ao
sistema solar e depois à terra.

81

Não só o universo físico mas também as plantas e os animais e o próprio corpo


litiniano são máquinas. Para explicar a vida dos corpos orgânicos não há
necessidade de admitir uma alma vegetativa (Nu sensitiva, mas avenas. as
próprias forças mecânicas que actuam no resto do universo. Descartes vê uma

confirmação do carácter puramente mecânico do organismo humano na circulação


do sangue, que atribui à maior quantidade de calor que existe no coração
(Disc., V). A circulação havia já sido estudada e descrita por Harvey 1628)
que indicara como sua causa a contracção e distensão do músculo cardíaco. Mas
Descartes crê (erradamente) corrigir a explicação de Harvey, porque, segundo
diz "supondo que o coração se move do modo com,) Harvey descreve, é preciso
imaginar alguma faculdade que produza esse movimento, a natureza da qual é
muito mais difícil de conceber-se do que tudo o que se pretende explicar com
ela" (Description du corps humain, 18; Oeuvr., XI, 243).

§ 401. DESCARTES: O HOMEM

A presença da alma racional estabelece a diferença radical entre o homem e os


animais. A união entre a alma e o corpo, que torna possível a acção reciproca
de um sobre outro, ocorre no cérebro e precisamente na glândula pineal que é a
única parte do cérebro que não é dupla e pode por isso unificar as sensações
que vêm dos órgãos dos sentidos, que são todos duplos (Paixões, 1, 32). No

82

bratado Les passions de 1'âme, Descartes distingue na alma acções e afecções:


as acções dependem da vontade, as afecções são involuntárias e são
constituídas por percepções, sentimentos ou emoções causadas pelos espíritos
vitais, isto é, pelas forças mecânicas que actuam no corpo (lb., 1, 27).
Evidentemente, a força da alma consiste em vencer as

emoções e deter os movimentos do corpo que as

acompanham, enquanto que a sua debilidade consiste em deixar-se dominar pelas


emoções, que sendo amiúde contrárias entre si, solicitam a alma para aqui e
para ali, levando-a a combater contra si mesma e reduzindo-a ao estado mais
deplorável. Isto, aliás, não quer dizer que as emoções sejam essencialmente
nocivas. Elas relacionam-se todas com o corpo e são dadas à alma enquanto esta
está ligada àquele, de modo que têm a função natural de incitar a alma a
consentir e a participar nas acções que servem para conservar o corpo e torná-
lo mais perfeito. Neste sentido, a tristeza e a alegria são as emoções
fundamentais. Pela primeira, de facto, a

alma é advertida das coisas que prejudicam o corpo e assim experimenta ódio
por o que lhe causa tristeza e o desejo de se libertar disso. Pela alegria, ao
invés, a alma é advertida das coisas úteis ao corpo e assim experimenta amor
por elas e desejo de conquistá-las e conservá-las (Ib., 11, 137).

Ás emoções está ligado, todavia, um estado de servidão de que o homem deve


tender a libertar-se. Elas fazem quase sempre com que o bem e o mal se
representem muito maiores e importantes do que são realmente, mas induzem a
fugir de um e a

83

procurar o outro com mais ardor do que conviria (lb., 11, 138). O homem deve
deixar-se guiar, tanto quanto possível, não por elas, mas pela experiência e
pela razão, e só assim poderá distinguir, no seu justo valor, o bem do mal, e
evitar os excessos. É neste domínio das emoções que consiste a sabedoria, a
qual se obtém estendendo o domínio do pensamento claro e distinto e separando,
tanto quanto possível, este domínio dos movimentos do sangue e dos espíritos
vitais, dos quais dependem as emoções e aos quais habitualmente está ligado
(Ib., 111, 211).

É este progressivo domínio da razão, o qual restitui ao homem o uso total do


livre arbítrio e o torna senhor da sua vontade, que constitui o traço Saliente
da moral cartesiana. Na terceira parte do

Discurso sobre o Método, antes de principiar pela dúvida a análise metafísica,


Descartes estabelecera algumas regras de moral provisória, destinadas a
evitar que "ele permanecesse irresoluto nas suas

acções enquanto a acção o obrigava a sê-lo nos seus juízos".

Ele não fez, nem mesmo posteriormente, a exposição da sua moral definitiva, ou
seja, fundada no

método, e assim inteiramente justificada. Mas as

Cartas à Princesa Elisabeth e as Paixões da Alma permitem determinar os


limites em que a moral provisória do Discurso pode ser considerada definitiva.
A primeira regra provisória ora obedecer às leis e

aos costumes do país, conservando a religião tradicional e regulando-se a cada


passo pelas opiniões mais moderadas e mais afastadas de quaisquer

excessos. Com esta regra renunciava preliminarmente a toda a extensão da sua


crítica ao domínio da moral, da religião e da política. E, na realidade, esta
regra exprime um aspecto, não provisório, mas definitivo da personalidade de
Descartes caracterizada pelo respeito para com a tradição religiosa e
política. "Tenho a religião dó meu rei", "Tenho a religião da minha alma",
responde ele ao ministro protestante Revius que o interrogava a esse respeito.
Na realidade, ele distinguia dois domínios diversos: a vida prática e a
contemplação da verdade. Na primeira, a vontade tem a obrigação de decidir-se
sem esperar a evidência; na segunda, tem a obrigação de não decidir senão
quando se alcançou a evidência (Resp., 11). No domínio da contemplação o homem
só pode contentar-se com a verdade evidente; no domínio da acção, o homem pode
contentar-se com a probabilidade (Disc., 111). A primeira regra da moral
provisória tem assim, dentro de certos limites, para Descartes, um valor
permanente e definitivo.

A segunda máxima consistia em ser-se o mais firme e resoluto possível na acção


e seguir com constância mesmo a opinião mais duvidosa, uma vez que houvesse
sido aceita. Também esta regra é sugerida pelas necessidades da vida que
obrigam muitas vezes a agir na falta de elementos seguros e definitivos. Mas,
evidentemente, a regra perde todo o carácter provisório se a razão
já entrou de posse do seu

método. Nesse caso, de facto, ela implica "que haja uma firme e constante
resolução em seguir tudo o que a razão aconselha sem que nos deixemos
desviar
85

pelas paixões ou pelos apetites" (Lett. à Elisabeth, 4 de Agosto de 1645,


Oeuvr., IV, 265).

A terceira regra consistia em procurar vencer-se antes a si mesmo do que a


fortuna e mudar antes os pensamentos do que a ordem do mundo. Descartes afirma
constantemente que nada está inteiramente em nossas mãos excepto os nossos
pensamentos, que dependem apenas do nosso livre arbítrio (Med., IV); ele
atribui todo o mérito e dignidade do homem ao uso que souber fazer das suas
faculdades, uso que o torna semelhante a Deus (Pass. 111,
152). Esta regra permanece a pedra angular da moral de Descartes. Ela exprime,
na fórmula tradicional do preceito estóico, o espírito do cartesianismo, o
qual exige que o homem se deixe conduzir unicamente pela própria razão e
delineia o próprio ideal Ia moral cartesiana, o da sageza. "Não há nada, diz
Descartes (Lett. à Elisabeth, 4 de Agosto de 1645, Oeuvr., IV, 265), que nos
impeça de estarmos contentes excepto o desejo, a pena ou o arrependimento: mas
se fizermos sempre tudo o que nos dita a nossa razão, nunca teremos nenhum
motivo para nos arrependermos mesmo que os acontecimentos nos mostrem em
seguida que nos enganámos sem culpa nossa. Nós não desejamos ter, por exemplo,
mais braços ou mais línguas do que as que temos, mas desejamos ter mais saúde
ou mais riqueza: isso acontece porque imaginamos que tais

Z.@

coisas poderiam ser adquiridas com a nossa conduta ou que são devidas à nossa
natureza, o que não é verdadeiro das outras. Poderemos livrar-nos desta
Opinião considerando que, por ter sempre seguido

86

o conselho da nossa razão, nada esquecemos do que estava em nosso poder e que
os infortúnios não são menos naturais para o homem do que a prosperidade e a
saúde". É este o único meio para alcançar o supremo bem, a felicidade da vida.
"Como um pequeno vaso pode estar cheio do mesmo modo que um vaso grande, mesmo
que contenha uma menor quantidade de líquido, assim, se cada um se entregar
com satisfação ao cumprimento dos seus

desejos regulados pela razão, mesmo o mais pobre e o menos favorecido pela
fortuna e pela natureza poderá viver contente e satisfeito, embora gozando de
uma menor quantidade de bens". (Ib., IV., 264).
O preceito estóico recebe aqui o seu significado genuíno da regra cartesiana
do pensar claro e d4stinto, regra que impõe o ter em conta os limites das
possibilidades humanas e adequar a tais limites os desejos e as aspirações.

Que a razão humana se encontra de súbito diante da necessidade de reconhecer


os seus próprios limites, já o vira bem claro Descartes ao considerar o
problema do erro. O homem não tem apenas uma

ideia positiva de Deus, isto é, de um ser soberanamente perfeito, mas tem


também uma corta ideia negativa do nada, isto é, daquilo que é infinitamente
alheio a toda a perfeição. Ele é posto entre o ser

e o não-ser; considera-se que foi criado pelo ser perfeito, não encontra nada
em si que possa conduzi-lo ao erro; mas se considera que participa do nada,
enquanto não é ele próprio o ser supremo, acha-se exposto a uma infinidade de
defeitos entre os quais a possibilidade do erro (Med., IV). Ora,

87

o erro depende, segundo Descartes, do concurso de duas causas: o entendimento


e a vontade. Com o entendimento, o homem não afirma. nem nega coisa alguma.
Mas concebe apenas as ideias que pode afirmar e negar. O acto da afirmação ou
da negação é próprio da vontade. E a vontade é livre. Como tal, é bastante
mais extensa do que o entendimento e pode por isso afirmar ou negar mesmo o
que o entendimento não consegue perceber clara e distintamente. Nisto reside a
possibilidade de erro. Se eu afirmasse ou negasse, isto é, usasse o meu juízo,
só acerca do que o entendimento me faz conceber com suficiente clareza e
distinção e se me abstivesse de dar o meu juízo acerca de todas as coisas que
não têm clareza e distinção suficientes, nunca poderia enganar-me. Mas, já que
a minha vontade, que é sempre livre, pode fugir a esta regra e dar
assentimento mesmo ao que não é claro e evidente, surge a possibilidade do
erro. Eu poderei adivinhar por mero acaso; mesmo assim, terei usado mal do meu
livre arbítrio. Mas poderei também afirmar o que não é verdadeiro, e nesse
caso terei caldo imediatamente no erro. O erro, portanto, não depende de
nenhum caso de Deus, o qual deu ao

nosso intelecto a máxima extensão compatível com

a sua finitude, e à nossa vontade a máxima perfeição fazendo-a livre. Depende


apenas do mau uso

que façamos do nosso livre arbítrio, não nos abstendo do juízo nos casos em
que o entendimento não nos iluminou o bastante (Med., IV; Pritic. Phil.,
1, 34).

88

A possibilidade do erro é fundada no livre arbítrio, como sobre o livre


arbítrio é fundada também a possibilidade da epoché, da suspensão do juizo de
que Descartes se valeu no início do seu procedimento. Em que consiste
exactamente o livre arbítrio? Responde Descartes que consiste no seguinte
(Med., IV): "que nós possamos lazer uma

coisa ou não fazê-la (isto é, afirmar ou negar, seguir ou fugir), ou antes


tão-só nisto: que, para afirmar ou negar, seguir ou fugir às coisas que o

entendimento nos propõe, ajamos de modo que não sintamos nenhuma força
exterior a coagir-nos". Descartes acrescenta que, para se ser livre não é
necessário que se seja indiferente na escolha entre um ou outro de dois
contrários. Tal indiferença é antes "o mais baixo grau de liberdade" e é mais
defeito do conhecimento do que uma perfeição da vontade. O grau mais alto da
liberdade alcança-se quando a inteligência está provida de noções claras e
distintas que dirigem. a escolha o a decisão da vontade. Neste caso, de facto,
conhece-se' claramente o que é verdadeiro e o que é bom, e não se está na
situação penosa de ter de deliberar acerca

do juizo e da escolha a fazer (Ib., IV). Na doutrina cartesiana do livre


arbítrio viu-se, algumas vezes, a oscilação entre dois conceitos diversos e
exclusivos da liberdade: a liberdade como indiferença a

actos opostos e a liberdade como determinação racional. Na realidade, aquilo


em que Descartes vê a substância da liberdade é (como o indica o passo citado)
" o agir de modo a não sentir-se coagido por

89

existência de uma ** força exterior". A liberdade é um facto íntimo


constitutivo da consciência, de tal modo que Descartes indica como única e
fundamental testemunha dela a experiência interior (Princ. phil., 1, 39). Ora,
é evidente que, quando o homem age à base do juizo da própria razão, age de
modo a não sentir-se coagido por nenhuma força estranha, porque a razão é ele
próprio, a sua subjectividade pensante. A liberdade é, neste caso, perfeita
porque a razão é o princípio autónomo do eu. Em virtude do cogito, que
reconheceu na razão a substância mesma do homem, o poder da razão sobre a
vontade é o poder do homem sobre as suas próprias acções. Quando, pelo
contrário, a noção evidente da razão não surge, a vontade vê-se obrigada a
decidir em estado de indiferença. Ora, se nesta situação o homem suspende o
juizo e não decide, conforma-se mais uma vez com a razão e com a primeira das
suas regras fundamentais. Se, ao invés, decide, terá sido sempre levado a
decidir por alguma percepção obscura ou

paixão, já que a indiferença é considerada por Descartes apenas no âmbito da


razão e não no dos outros móbiles que continuam a actuar sobre o homem. Nesse
caso deverá o homem sentir-se menos livre, porque uma força estranha à sua
subjectividade racional interveio na decisão; em alguns casos extremos, porém,
a sua liberdade será nula. Por conseguinte, em Descartes não subsistem dois
conceitos heterogéneos de liberdade, mas um só conceito: a ausência da coacção
exterior - entendendo-se por coacção exterior toda a força estranha à
subjectividade
90

racional do homem. E este conceito prende-se estreitamente com o princípio


fundamental do cartesianismo. Se esta ou aquela fórmula adoptada por Descartes
se encontra também nos textos de S. Tomás, nem por isso a doutrina cartesiana
é menos original, uma vez que supõe o princípio da autonomia racional do
homem, princípio que não pode encontrar-se no tomísmo.

Descartes abordou o velho problema da relação entre a liberdade humana e a


preordenação divina (Pritic. phil, 1, 40-41; Lett, a Elisabeth, Janeiro de
1646, Oeuvr., IV, 352 segs.). Se a liberdade humana é, infalivelmente,
testemunhada pela experiência interior, a preordenação divina é uma verdade
evidente, já que não se pode conceber a omnipotência de Deus limitada ou
deficiente em nenhuma parte do mundo e, por isso, tão pouco no homem. Nos
Princípios de Filosofia, Descartes limita-se a contrapor as duas faces do
problema, aduzindo como justificação da sua aparente inconciabilidade a
finitude da mente humana. Nas Cartas à Rainha Elisabeth. tenta, pelo
contrário, uma solução. Se um

rei que proibiu os duelos, por alguma razão procede de modo que dois gentis-
homens do seu reino, que se odeiam de morte, possam encontrar-se, ele sabe que
não deixarão de bater-se e de infringir a proibição; mas nem este seu saber,
nem a vontade que ele tem de que eles se encontrem, tirará o carácter
voluntário e livre ao acto dos dois gentis-homens, que poderão por isso ser
justamente punidos. Ora,

91

Deus, pela sua presciência o seu poder infinitos, conhece todas as inclinações
da nossa vontade, pois que elo próprio as criou; e ele próprio cria e
determina as circunstâncias ou as ocasiões que favoreceram ou não tais
inclinações. Mas nem por isso Deus quis obrigar-nos a agir de um modo
determinado. É necessário distinguir nele "uma vontade absoluta e independente
pela qual quer que todas as coisas aconteçam tal como acontecem e uma vontade
relativa, que se relaciona com o mérito ou o demérito dos homens, pela qual
ele quer que se

obedeça às suas leis". Tem-se aparentado esta sedução (ou pseudo-solução)


cartesiana à ciência média,

com a qual, segundo Molina (§ 373), Deus prevê infalivelmente as acções dos
homens, embora sem as determinar. Na realidade, trata-se da solução tomística
que retornará também, com algumas variantes de linguagem, com Leibniz
(Teodiceia, 165).

No discurso sobre o Método, depois de ter exposto a moral provisória,


Descartes insiste na

importância que tem para o homem a escolha da ocupação a seguir na vida, Ele
próprio declara ter escolhido deliberadamente, e depois de ter considerado a
fundo as várias ocupações dos homens, a de cientista. "Experimentara tão
extremas satisfações, diz ele (Disc., 111), desde que começara a servir-me
deste método, que não julgava poder obter outras mais doces, nem mais
inocentes, nesta vida; e descobrindo todos os dias alguma verdade que me
parecia bastante importante e comummente ignorada pelos outros homens, a
satisfação que isso me

92

dava enchia de tal modo o meu espírito que nada mais me importava-". Todavia,
no fim do Discurso, o próprio Descartes revela-se consciente dos limites das
suas possibilidades, devidos sobretudo à brevidade da vida e à falta de um
número suficiente de experiências. Descartes partiu de princípios muito mais
gerais para explicar os fenómenos simples da natureza, mas reconhece que, as
mais das vezes, os fenómenos podem ser explicados de modos diversos fundados
nos mesmos princípios, e qual destes modos será o verdadeiro é algo que só a
experiência pode decidir. A possibilidade de fazer experiências é, portanto, o
limite da explicação científica. "Eu vejo bem, diz ele (lb., VI), qual o
caminho a seguir, mas vejo também que as experiências, necessárias a tal
objectivo são tais e tantas que nem as minhas mãos nem as minhas riquezas,
mesmo que multiplicadas por mil não poderiam bastar para todas; deverei
contentar-me em progredir no conhecimento da natureza no âmbito limitado das
experiências que posso realizar". A experiência é para Descartes mais a
confirmação de uma doutrina científica do que o seu ponto de partida. Nisso o
seu

método difere do de Galileu, que se atém estritamente aos resultados da


experiência. O desenvolvimento ulterior da ciência devia ser mais conforme ao
método de Galileu do que ao de Descartes. Mas a obra de Descartes, abria, por
um lado, mais amplas perspectivas à explicação mecânica do mundo natural, por
outro estabelecia, com o princípio da subjectividade racional do homem, o
primeiro pressuposto do pensamento moderno.

93

NOTA BIBLIOGRÁFICA

§ 395 A edição fundamenta, das obras de Descartes é a de ADAM e TANNERY;


OeuVres, 12 V., Paris,
1897-1910. O 12.- volume é uma monografia de CHARLES ADAM sobre a vida e as
obras de Descartes. Quanto a edições parciais, a única fundamental é a do
Discours de la méthode, ao cuidado de Etiène Gilson, peJo seu riquíssimo
comentário histórico (2.1 ed., Paris,
1939). Esitá em curso de publicação a recolha completa das Cartas ao cuidado
de Adam e Milhaud, 6 vol.,
1936-56. -Algumas trad. !tal.: Discorso deil metodo e Meditazioní filosofiche,
trad. Tfigher, Bari, 1949; Le pa&,sioni delVanima e Lettere sulla morale,
trad. Garin, Bari, 1954; 11 mondo, trad. Cantelli, Turim, 1960; L'uomo, trad.
Cantellí, Turim, 1960.

§ 396. Sobre a função central que a ideia da unidade das ciências tem no
cartesianisnio: CASSIRER, Descartes, EstGcoImo, 1939, p. 39 segs. Sobre
"Descartes, leitor de Montaigne": BRUNSLCHVIGG, D. e Pascal lecteurs de
Montaigne, Neuchatel, 1945.

§ 397. Sobre ométodo e, -em geral, sobre os temas fundamentais da filos.


cristã: G. GALLI, Studi cartes@ani, Turim e as seguintes monografias: K.
FiSCHER, CeSchichte der nemern Philosophie, 1, 5.a ed., Heidelberg,
1912; LIARD, D., Paris, 2.a ed., 1903; HAMELIN, Le système de D., Paris, 1911;
GIBSON, The Phiosophy of D., Londres, 1932; OLGIATI, C., Milão, 1934; KEELING,
D., Londres, 1934; LAPORTE, Le racionalisme de D., Paris,
1945; M. GUÉROULT, D. selon Pordre des raisons, 2 vol., Paris, 1953.

§ 398. A tese de que o cogito é um raciocin-lo é sustentada não isó pior


alguns contemporâneos de Descartes (por ex. GASSENDI, Objections), mas tiambém
por HAMELIN, op. cit. p. 131-135; e GALLI, op. Cit., p. 95 segs.

94

Sobre os precedentes históricoe do cogito: BLANCHET, Les antécédents


historiques du "Je Peme", donc @@e suis", Paris, 1920; e GILSON, ed. cit. do
Disc., p.294 segs.

§ 399. Sobre as provas da existência de Deus:


1<-OYRÉ, Essai sur Ndée de Dieu et sur les preuves de son existence chez
Descartes, Paris, 1922.

§ 400. Sobre as doutrinas científicas de Descartes: G. MILTIAUD, Descartes


savant, Paris, 1922; LoRiA e DREYFUS-LE FoYER, in Êtudes sur D., fascículo da
"Revue de Métaphysique et de Morale", Paris, 1937. P. MONY, Le dévelopement de
Ia physique cartésienne, Paris, 1934; R. LENOBLE, Mersenne ou Ia naissance du
mécanisme, Paris, 1943.

§ 401.' Sobre a moral cartesiana: BOUTROUX; ÉtUdes d'histoire de Ia phil.,


Paris, 1891; A. ESPINAS, D. et Ia morale, 2 vol., Paris, 1925; J. SEGOND, La
sagesse cartésienne et Ndéa1 de Ia science, Paris, 1932; P. ME.S@NARD, Essa!
sur Ia morale de D., Paris, 1936.

Sobre o pensamento religioso: H. GOU111ER, L(,, pensée réligieuse de D.,


Paris, 1924; J. RuSSIER, Sagesse cartésienne et reZigion, Paris, 1958.

Sobre o conceito de liberdade: GILSON, La liberté ch--- Deccartes et Ia


Théologie, Paris, 1913. A oscilação de Dwcartes na sua doutr`na da liberdade
afirmado, por GILSON foi, POÍS, admitida por quase todos os historiadores
coÈtemporâneos (GoUI-IIER, GiBSON, KEELING, OLGIATI); S. LAPORTE, La Ziberté
selon D., Études, cit., p. 102 segs.

Sobre a bibliografia caxtesiana: J. BOORSKH, Etat présent des études sur D.


Paris, 1937; G. LEWIS, in "Revue philosophique", Abril-Junho, 1951.

95

II

HOBBES

§ 402. HOBBES: VIDA E OBRAS

A filosofia de Hobbes representa, em comparação com a de Descartes, a outra


grande alternativa a que . elaboração do conceito de razão deu início no
século XVII. E isso não só porque está ligada a pressupostos materialistas e
nominalísticos, enquanto que a de Descartes está ligada a uma metafísica.
espiritualista, mas também e sobretudo porque vê na
razão uma técnica, sob muitos aspectos diversa ou
oposta à que lhe atribuíra Descartes.

Thomas Hobbes nasceu em Westport a 5 de Abril de 1588. Fez os seus estudos


universitários, que o decepcionaram, no Magdalena Hall de Oxford, e dedicou-se
a leituras e estudos Literários, apaixonando-se sobretudo por Tucídides, de
que fez uma tradução (publicada. em 1629). Mas a formação de

97

Hobbes foi devida sobretudo aos contactos com o ambiente cultural europeu que
ele estabeleceu durante -as suas viagens e estadias no continente. Estas
viagens foram-lhe proporcionadas primeiro pelas suas tarefas de tutor de um
jovem conde (Wilham Cavendish) e do filho deste, e em seguida pelos
acontecimentos políticos que tornaram por algum tempo, insegura a sua
permanência na Inglaterra. Em 1640 fazia circular entre os amigos Os elementos
de legislação natural e política nos quais sustentava a teoria da
indivisibilidade do poder soberano sem direito divino. Temendo as reacções
negativas ao seu escrito, deixou a Inglaterra e -instalou-se em Paris, onde
permaneceu até 1651. Aí entrou em contacto
com O padre- Marsenne através do qual fez chegar às mãos -de Descartes as suas
Objecções às Meditações. Já nas viagens precedentes se apaixonara pela
geometria de Eucliides, nas quais viia o próprio modelo da ciência e tornara-
se em 1636 amigo de Galileu. Em Paris tornou-se amigo de Gassendi e frequentou
os ambientes libertinos franceses.

Em Paris, em 1642, publícou o De cive, que deveria ser a última parte de um


sistema filosófiCo que começara a elaborar em 1637. Em 1651, após a publicação
do Leviatão, ou seja a matéria, a forma e o poder de um estado eclesiástico e
civil regressou a Inglaterra, onde publicou em 1655 o Deo Corpore e em 1658 o
De homine, as outras duas obras que constituem, como o De cive, a base
teórica do seu sistema. Os últimos anos da sua vida foram ocupados com várias
polémicas, bastante infrutuosas, entre as quais uma de natureza teológica com
o

98

bispo Bramhall e outras sobre argumentos matemáticos e científicos, a que


Hobbes era levado por uma avaliação optimista da sua competência. Morreu em
Londres, a 4 de Dezembro de 1679, aos 91 anos.

§ 403. HOBBES: A TAREFA DA FILOSOFIA

A filosofia de Hobbes, é declaradamente, inspirada num intento prático-


político. O seu escopo é o de assentar os fundamentos de uma comunidade
ordenada e pacífica e de um governo, esclarecido e

autónomo. No capítulo 46 do Leviatão, intitulado "Sobre a obscuridade que


deriva da vã 0osofla e

das tradições. fabulosas", exige Hobbes que o filósofo civil assuma como seu
ponto de partida uma filosofia racional, em vez da velha metafísica
"fabulosa", mostrando as consequências perigosas que tal metafísica, com a sua
doutrina das "essências absolutas" ou "formas substanciais", tem no terreno
político, bem como no domínio científico. Tal metafísica, levando a considerar
a virtude e, daí, também a obediência política como "infusa no homem" ou nele
"ins@2Íada" pelo céu, torna problemá@tica a obediência à lei e coloca os
padres, que administram essa infusão, acima do magistrado civil. Além disso,
tende a estender a **f,@rqa da lei que é apenas "uma regra de acção" aos
pensamentos e às consciências dos homens e a inquirir sobre as suas intenções,
não obstante a
conformidade das suas pa@lavras e das suas acções às leis. Ora, "forçar alguém
(a acusar-se a si mesmo de más opiniões quando as suas acções não são

99

proibidas pela lei; é contrário à lei da natureza." E, além disso, querer


impôr a povos diversos, além da lei civil, itambém uma determinada lei
reliigiosa significa "eliminar uma liberdade legítima, o que é o contrário,
dadoutrina do governo civil". Por outros termos, a metafísica tradicional é,
segundo Hobbes, contrária à liberdade de consciência e de tolerância, que são
as verdadeiras condições da comunidade civiil.

O filósofo que indaga os fundamentos desta comunidade não pode por isso deixar
de partir de uma filosofia que se funde únicamente na razão: quer dizer, que
exclua os erros, a revelação sobrenatural, a autoridade dos livros e se atenha
únicamente à natureza.

Deste ponto de vista, define Hobbes a filosofia como "o conhecimento


adquiriido com o raciocínio, que vai do modo como uma coisa se gera às
propriedades da coisa ou destas propriedades a qualquer possível modo comoa
coisa se gere, e que tem por fim produzir, nos limites em que a matéria e a
força o permitam, efeitos que sejam requeridos pela vida humana". (Lev., 46;
De corp., 1, § 2).

Uma filosofia assim entendida coincide necessariamente com a ciência; e uma


ciência como a entendia Bacon, isto é, que vise a acrescer o poder do homem
sobre a natureza (De cive, 1, 5, 6). Tal como Bacon, porém, Hobbes não nega
que haja uma Philosophia prima "da qual todas as outras filosofias devem
depender", mas atribui a esta filosofia a tarefa de "limitar os significados
daqueles apelativos ou nomes que são, os mais universais de todos, Emitações.
que servem para evitar ambiguidades e equívocos nos raciocínios e que são
comum100

mente chamadas definições, tais como: as definições do corpo, do tempo, do


lugar, da matéria, da forma, da essência do sujeito, da substância, do
acidente, da força, do acto, do finito, do infinito, da quantidade da
qualidade, do movimento, da acção, da paixão e de todas as outras coisas
necessárias para explicar as concepções do homem que concernem à natureza e à
geração, dos corpos" (Lev., 46). Assim, a filosofia prima não tem por objecto
um mundo de "formas" ou de "essênciias" que estejam para lá das aparências
sensíveis ou corpôreas das coisas, mas tem apenas como escopo definir os
termos que podem ser utílizados na descrição das aparências sensíveis, para
evitar a ambiguidade ou os erros do raciocínio, e não faz mais do que fornecer
o aparelho conceptual da .investigação natural.

Tal investigação é, por outro lado, a única possível que se apresenta à razão
porquanto é a única que gira em torno da realidade acessível ao homem. Só os
corpos existem, segundo Hobbes: todo o conhecimento é por isso conhecimento
dos corpos. A ~física materialista serve a Hobbes para reduzir estatuto ao
homem, à obra do homem na natureza, o domínio do conhecimento humano.
§ 404. HOBBES: A NATUREZA DA RAZÃO

O ponto focal da filosofia de Hobbes é o seu


conceito de razão. Para Hobbes, como para Descartes, a razão é o atributo
próprio do homem; mas para Hobbes, diversamente de Descartes, a razão não é

101

a manifestação de uma substância que só o homem possua mas uma função que, a
níveis inferiores, também os animais possuem. Esta função é substancialmente a
da previsão. Também os animais participam desta função que lhes permite
regular a sua conduta em vista do desejo ou desígnio; também os animais são,
portanto, capazes do que Hobbes chama "experiência" ou "prudência", isto, é,
de uma certa ",previsão do futuro mediante a experiência do passado". Mas no
homem esta possibilidade de previsão, que é ao mesmo tempo e na mesma medida
possibilidade de contrôle dos acontecimentos futuros, é de grau muito
superior. De facto, os homens não são apenas capazes de procurar as causas ou
os meios que podem vir a produzir no futuro efeito calculado. coisa que também
os animais podem fazer - mas são, outrossim, capazes de procurar todos os
possíveis efeitos que podem ser produzidos por uma coisa qualquer; ou, por
outros termos, são capazes de prever e planear a longo prazo a sua conduta e a
consecução dos seus fins (Lev., 3). Esta capacidade só se encontra nos homens.

Mas tal capacidade requer a linguagem, que é o uso arbitrário,ou convencional


dos sinais. Um sinal é, em geral, "o antecedente evidente doconsequente,ou, ao
invés, o consequente do antecedente quando consequências semelhantes hajam
sido observadas antes" (lb., 3). Enquanto tais, os sinaiS são naturais e não
constituem linguagem: são, antes meios com os quais o animal (e o próprio homm
enquanto animal) induz o seu semelhante a um certo comportamento, por exemplo
à pastagem ou à fuga, ao

102

canto, ao amor, etc.. Os sinais só se tornam palavras quando são instituídos


arbitràriamente para significar os conceitos das coisas que se pensam. Neste
sentido, a linguagem é definida por Hobbes como "um conjunto de vocábulos
estabelecidos arbiitràriament@-, para significar uma série de conceitos das
coisas que se pensam." E neste sentido identifica-se a linguagem com a função
do entendimento e pode dizer-se que os outros animais carecem de entendimento.
"o entendimento, diz Hobbes, é ~a espécie de imaginação que nasce do
significado das palavras instituído arbitrariamente" (De hom., 10, § 1). A
faculdade racional do homem identifica-se com a possibilidade de criar sinais
artificiais, isto é, as palavras. Um homem que, fosse privado de linguagem
podia, segundo, Hobbes, se posto. diante da figura de um triângulo, dar-se
conta de que os ângulos internos são iguais a dois rectos; posto, porém,
diante de outro triângülo, deveria começar de novo porque o seu raciocínio,
não passaria do caso particular. Ao invés, a criação da palavra "triângulo"
permite, graças ao seu significado, a generalização de que "todos os
triângulos ,têm os ângulos internos iguais a dois rectos", possibilitando
assim passar daquilo que é verdadeiro aqui e agora para aquilo que é
verdadeiro em todos os tempos e lugares (Lev., 4). Neste sentido,, afirma
Hobbes que "a faculddade de raciocinar é uma consequência do uso da linguagem"
(Ib., 46); e a definição que os filósofos dão hoje do homem como
animal simbólico, exprime bem o ponto de vista de Hobbes.

103
Mas uma faculdade de raciocinar que consista essencialmente no uso de sinais
artificiais ou convencionais, item caracteres particulares A sua actividade
específica é o cálculo. Diz Hobbes: "Por raciocínio (raciocinatio) entendo o
cálculo. O cálculo consiste em reunir várias coisas para fazer delas uma
soma ou em subtrair uma coisa da outra para conhecer o resto. Raciocinar é a
mesma coisa que adicionar e subtrair; e se se quisesse acrescentar a estas
operações também as de multiplicar e dividi, eu não estaria de acordo porque a
multiplicação é a mesma coisa que a adição de partes iguais e a divisão é a
mesma coisa que a subtracção de partes iguais tantas vezes quanto possível.
Todo o processo do raciocínio se reduz, portanto, a duas operações mentais: a
adição e a subtracção." (De corp., 1, § 2).

Tais operações, no entanto, não concernem ,somente aos números. "Do mesmo modo
que os aritméticos ensinam a somar e a subtrair números, assim os geómetras
ensinam a somar e subtrair linhas, figuras sólidas superficiais, ângulos,
proporções, tempos, velocidade, força, ete., os lógicos ensinam a
mesma coisa a propósito das consequências das palavras juntando dois nomes
para fazer a afirmação e duas afirmações para fazer um silogismo e muitos
silogismos para fazer umademonstração, e, da soma ou conclusão de um
silogismo, subtraem uma proposição para encontrarem outra. Os escritores
políticos adicionam pactos para encontrar os deveres dos homens, e os
advogados leis e factos para encontrar o lícito e o ilícito nas acções dos
particulares. Em suma, em todos os campos em que há lugar para a

104

adição ca subtracção, há também lugar para a razão; e onde tais operações não
encontrem lugar, a razão nada tem a fazer" (Lev., 5).

Neste ponto de vista, a única forma lícita de que a razão, e portanto a


filosofia, pode fazer uso
é a que consiste na adição ou subtracção dos nomes; isto é, a proposição ou
enunciado. Hobbes define aproposição como o "discurso que consta de dois nomes
discurso com o qual aquele que fala entende que o segundo nome é nome da mesma
coisa de que o primeiro énome"; de sorte que, quando se
diz "o homem é animal" entende-se que o nome "animal" pertence à mesma coisa a
que pertence o nome "homem" ou, o que é o mesmo, que o nome "homem" está
contido no segundo nome "animal" (De corp., 3, § 2). Esta teoria da proposição
é substancialmente a da lógica nominalística e, em particulár, de Occam: os
dois nomes, ligados, na proposição, consistem na mesma coisa. Uma conexão
entre iestas três proposições constitui o silogismo; e neste campo a propensão
nominalística da lógica, de Hobbes revela-se na redução do silogismo
categórico ao hipotético. Assim, o silogismo categórico "Todo o homem é
animal; todo o animal é corpo; todo o homem é corpo" teriam a mesma força que
o silogismo hipotético "Se al-guma coisa é homem, é -também animal; se alguma
coisa é animal, é também corpo; se alguma coisa é homem, é também corpo".
(Ib.,
4, § 13).

Entendida como faculdade de calcular, a razão não é nem infalível nem inata;.
é uma capacidade que se obtém com o exercício e que consiste em
105

primeiro lugar em -impor os nomes e em segundo lugar em possuir um método para


se passar dosconhecimentos, que são prezísamente os nomes às asserções
obtidas; mediante a ligação de uns com os outros, aos silogismos, que são as
conexões de uma asserção com outra, até ao conhecimento de todas as
consequências dosnomes quepertencem ao sujeito em causa: conhecimento a que os
homens chamam ciência (Lev., 5). A ciência é, portanto, segundo Hobbes, não já
conhecimentos dos factos que são, ao invés, objecto dos sentidos e da memória,
mas conhecimento das consequências e da dependência causal de um facto em
relação ao outro. O conhecimento desta dependência, com base no princípio de
que causas semelhantes produzem efeitos semelhantes, dá aos homens a
possibilidade de prever os
factos e de tirarem proveito de talprevisão.

§ 405. HOBBES: A CIÊNCIA

Ciência e filosofia coincidem perfeitamente, segundo Hobbes, e coincidem ~bem


naquela parte da filosofia. que se chama "filosofia prima", filosofia que
considera os conceitos fundamentais comuns a todas as ciências. E o único
objecto da ciência e da filosofia é -a geração (generatio),isto, é o processo
causal mediante o quall as coisas se originam. Hobbes ínterpreta o conceito
tradicional da ciência como sendo o conhecimento das causas em sentido
restritivo, isto é como sendo o conhecimento das causas geradoras: das causas
que podem produzir a coisa considerada.

106

Dado este sentido restrito, deve excluir-se do âmbito da ciência (e da


filosofia) a teologia, já que não se pode decerto aduzir a causa geradora de
Deus; deve excluir-se também dela a doutrina dos anjos e, em geral, das coisas
incorpóreas, em que não há geração. Estas exclusões são fundadas no princípio
de que "onde não há geração, não há também filosofia" (De corp. 1, § 8). Por
um outro motivo fundamental, isto é, porque não têm carácter raciocinativo,
são excluídas da ciência: a história, quer seja natural quer política, a qual,
por muito útil que seja a filosofia, é um conhecimento que depende da
experiência ou da autoridade, não do raciocínio; toda a doutrina que nasce de
uma inspiração ou revelação divina, porque não é adquirida com a razão, a
doutrina do culto divino, que depende da autoridade da igreja e pertence à fé
e não à ciência; e, enfim, as doutrinas falsas ou mal fundamentadas, como a
astrologia e, em geral, as actividades diviinatórias. (lb., 1, § 8).

A concatenação das proposições no discurso científico exprime, segundo Hobbes,


a conexão, causal mediante a qual por uma causa determinada se gera um efeito
determinado. Hobbes chama a este tipo de demonstrações, demonstrações a priori
e sustenta que elas são possíveis para os homens apenas em
relação àqueles objectos cuja geração depende do livre arbítrio dos próprios
homens (De hom., 10, § 4). São demonstráveis neste sentido os teoremas da
geometria, que concernem à quantidade. "De facto, diz Hobbes, as causas das
propriedades das simples figuras geométricas são inerentes àquelas linhas que
nós próprios traçamos, e a génese das
107

próprias figuras depende apenas do nosso arbítrio; de modo que, para conhecer
a propriedade de uma figura, temos apenas de considerar tudo o que concorre
para a construção que fazemos ao desenhá-la. Precisamente porque somos nós
próprios que criamos as figuras, há uma geometria, e esta é demonstrável"
(lb., 10, § 5).

São além disso, susceptíveis de demonstração a priori a política e a ética,


isto é, a ciência do justo * do Injusto, ido equitativo e do unívoco; de
facto, os princípios dela, os conceitos do justo e do equitativo e dos seus
ramos, são-nos conhecidos porque nós próprios criamos as causas da justiça, ou
seja, as leis e as convenções (1b.) Em todos esses casos podemos formular ou
aceitamos por convenção a definição da causa geradora, dado que esta causa
geradora é uma operação realizada por nós próprios; e desta equação posta como
princípio deduzimos os efeitos gerados pela causa. Mas para as coisas
naturais, que são produzidas, por Deus e não por nós, semelhantes
demonstrações a priori não são, possíveis. São possíveis apenas demonstrações
a posteriori que ascendem dos efeitos, Isto é, dos fenómenos às causas que os
possam ter gerado. As nossas conclusões neste caso não são necessárias mas
apenas prováveis, porque um
mesmo efeito pode ter sido produzido de diversos modos (De corp., 25 § 1). A
física. é, segundo Hobbes, ciência demonstrativa no verdadeiro sentido do
termo. Ela tem, todavia, necessidade da matemática, porquanto o seu conceito
fundamental é o de movimento, e o movimento não se pode
108

entender sem o conceito de quantidade que é próprio da matemática. E enquanto


se vale da matemática torna-se susceptível de demonstrações a priori e pode
chamar-se uma matemática mista, em comparação com a matemática pura, que se
ocupa da quantidade em abstracto e não tem necessidade de considerar outras
qualidades. As partes da física como a astronomia, a música, diversificam-se,
pelo contrário, entre si segundo a variedade das espécies e das partes do
universo (De hom., 10, § 5).

§ 406. HOBBES: O CORPO

Como se viu, a tese fundamental de Hobbes é a de que a razão, pode exercer-se


apenas relativamente a objectos geráveis porque a sua função é a
de determinar as causas geradoras dos objectos. A consequência (imediata,
desta tese é que, quando não se trata deobjectos gerais, a razão não tem a
possibilidade de exercer-se e, por consequência, nesse caso não há nem ciência
nem filosofia. Ora, os únicos objectos geráveis são os corpos, ou seja, os
objectos extensos ou materiais, sendo por isso que, para Hobbes, os corpos são
os únicos objectos possíveis da razão,

Nesta última tese consiste o materialismo de Hobbes. Este materialismo é mais


um empenho ontológico do que uma doutrina de natureza metafísica. Hobbes não
afirma que fora da matéria não haja nada e que a causalidade da matéria seja a
única possível; reconhece de facto a causalidade de Deus,

109

embora negando (como veremos) que Deus seja o


Mundo ou a alma do mundo; mas sustenta que só à matéria se estendem os poderes
da -razão humana e que, portanto, o que não é matéria cai fora das
possibilidades de investigação da filosofia e da ciência.

Deste ponto de vista, o corpo é o único sujeito (subjectum) de que se pode


falar e de que se podem considerar as propriedades e investigar as géneses.
Hobbes sustenta em absoluto uma das teses fundamentais dos antigos Estóicos:
que só o corpo existe porque só o corpo pode agir ou sofrer uma a~ ,(D,og. L,
LII, 56). A palavra <incorpóreo", afirma Hobbes, é destituída de significado,
e mesmo quando referida a Deus, nada exprime a não ser a fiel intenção de o
honrar com um atributo honorífico que dele afaste a grosseria dos corpos
visíveis. (Lev., 12). Na polémica com o bispo Bramhall, Hobbes chega a dizer
que asseverar que Deus é incorpóreo equivale, a dizer que de facto não existe
(Works, IV, p. 305,).
Por isso, não é certamente **meo,opórco o espírito ou o intelecto do homem. A
este respeito é significativa a crítica que Hobbes faz ao cogito ergo sum
cartesiano. Segundo Hobbes, do "eu penso" segue-se decerto ",logo exiisto"
porque o que pensa não pode ser nada. Mas quando Descartes acrescenta que o
que pensa é "um espírI@to -uma alma, um intelecto, uma razão" é como se
dissesse, "eu estou passeando, logo sou um passeante.Por outros termos,
Descartes identifica a coisa inteligente com a intelecção que é o acto dela;
enquanto que, segundo Hobbes, " todos

os filósofos distinguem o sujeito das suas faculdades e dos seus actos, isto é
das suas propriedades e das suas essências; já que outra coisa é aquilo que é
e
outra coisa é a sua essência. (Troisièmes objections,
11). Se se faz esta objecção, pode muito bem ser
que a coisa que pensa, isto é, o sujeito do espírito, da razão ou do
intellecto, seja alguma coisa de corpóreo; e deve ser alguma coisa de
corpóreo, porque "todos os actos parecem poder ser entendidos apenas como uma
razão corpórea ou como uma
razão de matériia" (lb., 11). O que quer dizer que todos os actos e todas as
essências podem ser expl-icados racionalmente, segundo Hobbes, apenas mediante
um processo genético que tem início num corpo. Ao corpo, portanto, refere
Hobbes todas as categorias ontológicas. Enquanto é extenso, o corpo chama-se
corpo; enquanto é independente do nosso pensamento chama-se subsistente por
si; enquanto existe fora de nós chama-se existente; enfim, enquanto parece
estar por sob o espaço imagimário, que a razão concebe chama-se suposto ou
sujeito. Por-tanto, o corpo pode definir-se como sendo "tudo o que não
dependendo do nosso pensamento, coincide com alguma parte do espaço". (De
corp., 8, § 1). Por outro lado, o acidente é "a faculdade do corpo pela qual
ele imprime em nós o seu conceito," (Ib., 8, § 2). E o principal acidemte do
corpo é o movimento com que se podem explicar todas as gerações dos corpos.

Sendo assim, todas as partes da filosofia têm por objecto corpos e a diMsão a
filosofia modela-se
111

pela DIVISÃO dos corpos. Como os corpos podem ser naturais e artificiais, A
filosofia será ou filosofia natural que tem por objecto os corpos naturais, ou
filosofia civil que tem por objecto os corpos artificiais, isto é as
sociedades. humanas. E como para conhecer as propriedades das sociedades
humanas é necessário conhecer preliminarmente as mentes, as emoções e os
costumes dos homens, a filosofia civil dividiir-se-á em duas partes, a
primeira das quais, a ética, tratará desses argumentos e a segunda, -a
política, tratará dos deveres civis (Ib., 1. § 9).

Quanto à teologia, Hobbes exclui-a, (como se viu) do número das


disciplinasracionais. O que não quer dizer, não obstante, que Deus seja um
puro objecto de fé. Existe um trâmite puramente racional através do qual Deus
dá a conhecer ao homem a sua lei e este trâmite é o "ditame da recta razão"
(De cive, 15, § .3). Mas por este ditame pode conhecer-se apenas que Deus
existe, que não pode ser identificado com o mundo oucom aalma do mundo e
quenão só governa o universo físico como também o género humano. Pode-se
conhecer também que não se lhe devem atribuir atributos finitos ou que, de
qualquer modo, lhe limitem a perfeição, mas só atributos ou nomes negativos
(como infinito, eterno, incompreensível, etc.) ou indefinidos (como justo e
forte, etc.), com os quais não se significa. o que ele é, mas apenas se
exprime a admiração e obediência para com ele (lb., 15, § 14). Quanto aio
resto, a noção de Deus pertence ao domínio da fé; e ia fé faz parte da lei
civil. "A religião, diz Hobbes, não é filosofia, mias

112

HOBBES

sim lei em todas as comunidades: por conseguinte, não é para discutir mas para
cumprir (De hom.,
14, § 4).

§ 407. HOBBES: OS CORPOS NATURAIS

As partes da filosofia natural que são susceptíveis de demonstração a priori


são, segundo, Hobbes, as que trajuam dos conceitos da lógica, os atributos
comuns a todos os corpos e os atributos geométricos dos próprios corpos
(movimento e grandeza), isto é, respectivamente a lógica, a filosofia prima e
a geometria. A física pelo contrário, segundo Hobbes, é susceptível apenas de
demonstrações a posteriori: por isso assume como ponto de partida os fenómenos
dos quais procura ascender às causas possíveis.

Para isolar os objectos da filosofia, prima, isto é, os atributos fundamentais


comuns a todos os corpos naturais, propõe Hobbes **chminaride~te do universo
todas as coisas percebidas e considerar tão-só as imagens mentais que podem
também ser consideradas como as espécies das coisas **exwmas. Se se efectuar
esta operação fictícia, o primeiro, conceito que se encontra é o de espaço que
está ligado à própria noção gera de alguma coisa que existe fora da alma e por
isso se pode definir como ",a imagem (fantasma) de uma coisa existente
enquanto existente" (De corp., 7, § 2). O segundo conceito é o

do tempo que Hobbes define nos mesmos termos que Aristóteles (§ 79). Nem o
espaço nem o tempo nem o próprio mundo podem dizer-se: infinitos. Também neste
ponto retoma as correspondentes doutrinas

113

de Aristóteles. E bem pouco também se distinguem da tradição aristotélica-


escolástica, ou pelo menos, das alternativas que tal tradição apresenta, o uso
que Hobbes faz dos conceitos de causa e de efeito, de potência e de facto,
identidade e diversidade, analogia, figura, das noções de recto, de curvo e de
ângulo (Ib., 8-14). Pode-se sublinhar todavia a interpretação megárica que
Hobbes nos dá do conceito de potência, afirmando, com Diodoco Crono, que
aquilo que não se verifica não é possível. "É impossível o acto para cuja
produção nunca haverá uma potência plena; porquanto, sendo plena a potência
para a qual concorre tudo o que se requere para a produção do acto, se a
potência nunca for plena fal@tará sempre alguma coisa sem a qual o acto não se
pode produzir; por isso, nunca poderá ser produzido e será um acto impossível
(Ib., 10, § 4). Desta interpretação da potência deriva uma tese fundamental: a
necessidade de tudo o que acontece, "O acto que é impossível que não seja é um
acto necessário; portanto, qualquer acto futuro é necessàriamente futuro, já
que não deve ser impossível que seja futuro e porque, COMO, se demonstrou,
todo o acto possível se produz algumas vezes". De modo que a proposição "o
futuro é futuro", não é menos necessária do que a proposição o homem é homem"
(lb., 10 § 5).

A teoria do movimento e da grandeza, que constitui a terceira parte de De


corpore, e que Hobbes chama "ge~rja", mas que é uma espécie de mecânica geral,
reproduz, com variações insignificantes, concepções comuns na cultura
científica do ,tempo. E a quarta parte do mesmo escrito é a física
114
propriamente dita, em que Hobbes estuda as sensações e o movimento dos
animais, a ordenação astronóníca, ia luz, o calor, as cores, os meteoros, o
som, os corpos e, por último, a gravidade, que, segundo Hobbes, é a tendência
que os corpos pesados têm para se mover para o centro da terra, tendência que
ele atribui não, a um "apetite" dos corpos mas a uma certa força exercida pela
própria terra (Ib., 30, § 2).

§ 408. HOBBES: O HOMEM

Ao estudar o homem, vale-se Hobbes das mesmas categorias que adoptou ao


estudar as outras coisasnaturais, principalmente as de corpo e de movimento. A
sensação não é senão a imagem aparente do objecto corpóreo, que a produz nos
órgãos dos sentidos. Quer o objecto quer a sensação não são mais que
movimentos: movimentos são as qualidades sensíveis que existem no objecto,
assim como as sensações que tais qualidades produzem no homem. A sensação é,
portanto, um crescente entre dois movimentos: daquele que vai da coisa ao
órgão do sentido e daquele que vai do orgão da coisa ao orgão do sentido, da
coisa, que constitui a reacção ao primeiro. (De corp., 25, § 2). Movimento é
também a imaginação que conserva as imagens dos sentidos e é, por -isso, uma
espécie de inércia dos movimentos que se originam no exteriior com a sensação
(Lev., 2). Quando no homem, ou em qualquer ~a criatura dotada de imaginação, a
actividade desta é estimulada por palavras ou por outros sinais,
115

tem-se o intelecto que é por isso comum ao homem * a todos os animais ca@pazes
(como, por exemplo, o cão) de reagir a chamados ou a censuras. Todavia, tem o
homem a peculiaridade de um intelecto, capaz de formar séries ou conexões, ,
dando -lugar a afirmações ou negações e a outras fórmulas linguísticas, em que
o cálculo, ou a razão, consiste. (Ib., 2). Deste peculiiar intelecto já se
-vi~ os caracteres.

Tal como as sensações, as emoções originam-se dos movimentos que provêm dos
objectos externos. Enquanto que a sensação consiste na reacção do orgão à
acção do objecto, reacção que -se dirige ao exterior, a emoção consiste numa
reacção análoga que, pelo contrário, se dirige, ao interior do corpo que a
experimenta (De hom., 11, § 1). Por conseguinte, a força de que todas as
emoções dependem é o apetite @(ou instinto) que leva a procurar o prazer e a
fugir à dor. Bem e mal são os nomes que se dão, respectivamente, aos objectos
da apetência e da aversão. Chama-se bem aquilo que se deseja, mal aquilo que
se odeia; e não se deseja. qualquer coisa por ser um bem nem se a desama por
ser um mal, mas pelo contrário, chama-se bem a qualquer cosia que se deseja e
mal à que se odeia, O bem e o mal são coisas, relativas às pessoas, aos
lugares, aos tempos. "A natureza do bem e do mal segue a syntucchia [ =
circunstância]" (Ib., 11, § 4), diz Hobbes.

A apetência e a aversão não dependem do homem, pois são determinadas


directamente pelos objectos externos. A fome, a sede, os desejos em geral não
são voluntários. Quem deseja qualquer

116

coisa pode decidir agir livremente mas pode deixar de desejar aquilo que
deseja (lb. 11, § 2). A própria vontade não passa de um desejo e, como todos
os desejos, é necessariamente determinada. pelas coisas. Quando na mente do
homem se alternam, desejos diversos e opostos, esperanças e temores, e se
apresentam as consequências boas ou más de uma acção possível, tem-se aquele
estado que se chama deliberação: e o termo de deliberação, isto é, "o apetite
ou aversão última a que imediatamente se segue a

acção ou omissão da acção" é o que se chama vontade (Lev., 6). A vontade põe
termo temporariamente às dúvidas, às oscilações, às incertezas do homem, mas
estas renascem logo porque o homem não pode alcançar um estado definitivo de
tranquilidade ou de quietude. Não existe, por isso, segundo Hobbes, um sumo
bem ou um fim último na presente vida do homem. Um fim último geria aquele que
depois do qual nada mais deveria ser desejado. Mas uma vez que o ~o se
acompanha necessariamente da sensibilidade, o, homem que tivesse alcançado o
fim último não só não desejaria mais nada como nem sequer s~ia, púT congegwnte
não viveria verdadeiramente. "0 máximo dos bens, diz Hobbes, é progredir sem
impedimento para novos fins sempre. O próprio gozo daquilo que se desejou é um
desejo, isto é, o movimento da alma que goza. através das partes da coisa de
que goza. A ~ é um movimento perpétuo, que, quando não pode progredir em linha
recta, se transforma em movimento circular" (De hom., 11, § 15).

117

Com estas últimas análises, pretendeu Hobbes -2ustrar o mecanismo da natureza


humana. Nesse mecan~0, como se 6sse, não, há lugar para a liberdade. A
liberdade é entendida por Hobbes, como <Q ausência de todos os impedimentos da
acção que não seriam contidos na natureza. e na intrínseca qualidade do
agente". Tal definição reduz a liberdade à liberdade de acção que existe
quando a vontade não é impedida nas suas manifestações exteriores, mas nega a
liberdade do querer. Quando um homem tem apetite ou vontade de alguma coisa de
que no instante anterior não tinha nenhum desejo, a causa da sua vontade não é
a própria vontade, mas algo de diverso, que não depende Me. A própria vontade
é, portanto, causada necessariamente por outras coisas: enquanto consequência
de causais

necessárias, as acções humanas são necessárias (Works, IV, p. 264).Hobbes, que


defendeu o determinismo na sua polémica com o bispo **BrambaM, insiste no
facto de que a vontade é intrinsecamente requerida pelas causas e motivos que
lhe são inerentes, motivos que, em última análise, se devem à totalidade da
natureza, visto que todos; os actos do e~ humano **(lineltiWa a deliberação e
a von-tade) são movimentos conexos com os movimentos. dos objectos externos.
"Dificilmente há alguma acção que, por muito que pareça casual, não seja
produzida por itudo o que existe na natureza." (Ib., p. 267).
Sobre o mecanismo da natureza humana pretende Hobbes fundar os princípios da
sociedade civil. Só inserindo-se neste mecanismo é de facto possível conduzir
o homem a uma consciência onesta..

118

Hobbes, propõe-se a construção de uma geometria da política, isto é, de uma


ciência da sociedade humana que alcance a mesma objectividade e necessidade
que a g~ ~.. "Se, diiz ele, se conheceissem as regras das ~ts humanas com
certeza igual à certeza com. que se conhecem as regras das grandezas em
geornetiria, a ambição e a avidez (cuja força é baseada sobre as falsas
opiniões que o viigo tem dos conceitos de idw~ e de errado) seriam. impotentes
e a humanidade gozaria um período de paz constante que ha~ de pare= que nunca
mais se
combateria a não ser por razões t=llor&tis, ou seja, paira a mu@@tpEcação dos
homens" (De cive dedicatória). Hobbes pretende itier reunido as noções
indispensáveis para a construção de uma geometria política e por isso
prossegue com confiança nessa construção.

§ 409. HOBBES: O ESTADO DE GUERRA E O DIREITO NATURAL

São dois, segundo Hobbes "os postulados certíssimos da natureza humana dos
quais procede toda a ciência política: 1 -o desejo natural (cupiditas
naturalis) pelo qual cada um pretende gozar exclusivamente dos bens comuns; 2
- a razão natural, (ratio naturalis) pela qual todos fogem da morte violenta
como do pior dos males naturais (De cive, dedicatória).

O primeiro destes postulados exclui que o homem seja por natureza um "animal
político". Hobbes não nega, a este respeito, que os homens tenham necessi119

dade uns dos outros ("Assim como as crianças têm necessidade da ajuda de
outrem para viverem, assim os adultos precisam dos outros para viver bem", diz
ele); mas nega que os homens tenham por natureza um instinto que os leve à
benevolência e à concórdia recíprocas. O objectivo polémico da sua

crítica da velha definição do homem como animal político é, provàvelmente, a


interpretação que dela havia dado Grócio: segundo este, mesmo que os homens
não trouxessem nenhuma utilidade ao viver comum deveriam igualmente aceitá-lo
por uma exigência @a própria razão natural (§ 348). Por outros termos, o que
Hobbes nega é a exigência de um

amor natural do homem pelo seu semelhante. "Se os homens chegam a acordo para
comerciar, diz ele, cada um interessa-se não pelo sócio mas pelos seus
próprios bens. Se, por dever de oficio, nasce

entre elos uma amizade formal, que é mais temor recíproco do que amor, talvez
nasça uma facção, nunca a benevolência. Se se associam por prazer ou a fim de
se divertirem, cada um compraz-se sobretudo naquilo que excita o riso para se
sentir superior (como é próprio da natureza do ridículo) em

relação à fealdade ou doença de outrem". Portanto, não é a benevolência,


segundo Hobbes, a origem das maiores e mais duradouras sociedades, mas apenas
o temor recíproco.

A causa deste temor é, em primeiro lugar, a igualdade natural entre os homens


pela qual todos desejam a mesma coisa, isto é, o uso exclusivo dos bens
comuns. Em segundo lugar, é a vontade natural de se prejudicarem mutuamente,
ou mesmo o anta120

gonismo, que deriva do contraste das opiniões e da insuficiência do bem. O


direito de todos a tudo, que é inerente à igualdade natural, e a igualmente
natural vontade de se prejudicarem mutuamente fazem com que o estado natural
seja um estado de guerra incessante de todos contra todos. Neste estado, nada
há de justo: a noção do direito e do errado, da justiça e da injustiça, nasce
onde há uma lei e a lei nasce onde há um poder comum: onde não há nem lei nem
poder falta a possibilidade da distinção entre o justo e o injusto. Cada um
tem direito a tudo, incluindo a vida dos outros (Ib., 1, § 14, Lev., 13). Este
"direito" não tem, obviamente, nada a ver com a lei natural, que, como
veremos, consiste antes na eliminação ou, pelo menos, na

radical limitação daquele. É antes um instinto natural insuprimível, pois que,


nota Hobbes, "cada um

é levado a desejar aquilo que para si é um bem e a fugir do que para si é o


maior de todos os males naturais, que é a morte; e isto com uma necessidade
por natureza não menor do que aquda com

que a pedra é impelida para baixo" (De cive, 1, § 7). Mas este instinto
natural não é, dadas as circunstâncias, contrário à razão, porque não é
contrário à razão tudo fazer para sobreviver. E já que o direito em geral é
precisamente "a liberdade que cada um tem de usar das faculdades naturais
segundo a r~ razão" (lb., 1, § 7), assim o instinto que leva cada homem a
fazer tudo o que está em

seu poder para se defender e prevalecer sobre os

outros, pode bem chamar-se um direito, enquanto o homem, obedecendo ainda à


razão, não haja

121

encontrado outro instrumento mais eficaz e mais cómodo para a própria


sobrevivência. Todavia, é precisamente do exercício inevitável deste direito
que resulta a condição de contínua guerra de todos contra todos. Esta condição
(que por isso não deriva de uma malvadez inata nos homens) não pode todavia
realizar-se e estabilizar-se de modo total porque coincidiria Obviamente com a
destruição total do género humano. Disto se podem encontrar exemplos parciais
em algumas sociedades, como se podem encontrar confirmações do temor que o
homem tem dos outros homens em certos comportamentos habituais ou quotidianos
como o de se armar quando viaja em região pouco conhecida ou o de fechar a
porta da casa a cadeado mesmo quando está protegido pela lei e pelos agentes
públicos. De qualquer modo, a simples ameaça potencial do estado de guerra
impede a actividade industrial ou comercial, a agricultura, a navegação, a
construção de casas, e em geral a arte e a ciência, e põe o homem ao nível de
um animal solitário embrutecido pelo temor e incapaz de dispor do seu tempo
(Lev., 13; De cive,
1, § 13). Se o homem fosse destituído de razão, a condição de guerra total
seria insuperável e o embrutecimento ou a destruição da espécie humana seria o
princípio e o fim da sua história. Mas a razão humana é, como se viu, a
capacidade de prever e de prover, mediante um cálculo consciente, às
necessidades e às exigências do homem. É assim * razão natural que sugere ao
homem a norma ou * princípio geral de que decorrem as leis naturais do viver
comum, proibindo a cada homem fazer

122

o que causa a destruição da vida, ou lhe tira os meios de a evitar, e deixar


de fazer o que serve

para conservá-la melhor (Lev., 14). Este princípio é, portanto, o fundamento


da lei natural.

Como se vê, a lei natural de que fala Hobbes nada tem a ver com a ordem divina
e universal nos termos em que a conceberam os Estóicos, os Romanos e toda a
tradição medieval. Para Hobbes, como para Grócio e para todo o subnaturalismo
moderno, a lei natural é um produto da razão humana. Mas a razão humana, que
para Grócio é ainda uma actividade especulativa ou teórica capaz de determinar
de modo absolutamente autónomo, isto é, independentemente de todas as
condições ou circunstâncias e da própria natureza humana, o que é bem ou mal
em si mesmo é, pelo contrário, para Hobbes. uma actividade sujeita ou
condicionada pelas circunstâncias em que opera, uma calculadora capaz de
prover as circunstâncias futuras e de exercer as escolhas que sejam mais
convenientes em

tais condições. Assim, a "naturalidade" do direito significa, para Hobbes como


para a tradição do direito natural, a "racionalidade" de tal direito. Mas esta
racionalidade é estritamente correlativa do significado que para Hobbes tem a
"razão" como faculdade de previsão e de escolhas oportunas.

Portanto, as normas fundamentais do direito natural destinam-se, segundo


Hobbes, a subtrair o homem ao jogo espontâneo e autodestrutivo dos instintos e
a impor-lho uma disciplina que lhe proporcione pelo menos uma segurança
relativa e a

123

possibilidade de se dedicar às actividades que tornam cómoda a sua vida. Por


conseguinte, a primeira norma é a seguinte: "Procurar obter a paz enquanto se
tem a esperança de obtê-la; e, quando não se

pode obtê-la, procurar servir-se de todos os benefícios e vantagens da guerra"


(L£v., 14; De cive,
2, § 2). Desta lei fundamental derivam as outras, a primeira das quais é esta:
"O homem, espontaneamente, desde que os outros o façam também e durante o
tempo que achar necessário para a sua

paz e defesa, deve renunciar ao seu direito a tudo e contentar-se em ter tanta
liberdade relativamente aos outros quanta a que ele próprio reconheça aos

outros relativamente a sã" (De cive, 2, § 3; L--V., 14). Esta segunda lei não
é, nota Hobbes, senão o próprio preceito evangélico: não fazer aos outros
aquilo que não queres que te façam a ti. Sa significa o

abandono ou a transferência do direito ilimitado a tudo e por isso permite


sair do estado natural, isto é, da permanente guerra de todos contra todos, e
implica que os homens firmem entre si pactos mediante os quais renunciem ao
seu direito originário ou o transfiram a pessoas determinadas. Mas,
obviamente, os pactos, para o serem, devem ser

mantidos: de modo que a segunda lei natural é precisamente a que diz que "é
necessário respeitar os pactos, isto é, observar a palavra dada" (L£v., 15; De
cive, 3, § 1).

A seguir Hobbes enuncia outras 18 leis naturais (que são ao todo 20),
nomeadamente: 3 a, a que proíbe a ingratidão; 4.a, a que prescreve o
ser útil aos outros; 5.a , a que prescreve a misericórdia,

124

6 a, a que limita as penas ao futuro; 7 a que condena as injúrias; 8.a, a


que condena a soberba;
9-8, a que prescreve a moderação; 10.a , a que é contra a parcialidade;
1 1..a , a que diz respeito às propriedades comuns; 12.a, a que trata das
coisas * dividir à sorte; 13.a a que trata da primogenitura * do direito do
primeiro ocupante; 14 a a que diz respeito à incolumidade dos
medianeiros; 15.a a que concerne à instítuição dos árbitros; 16.1,, a que
prescreve que ninguém é juiz da sua própria causa;
17.11, a que proibe aos árbitros aceitarem dádivas dos litigantes; 18.11, a
que prescreve o recurso a testemunhas para a prova dos factos; 19.a , a
que proibe firmar pactos com o árbitro; 20 a, a que condena tudo o que
impede o uso da razão (De cive, I11; Lev., 15). Estas leis naturais são também
leis morais e constituem, segundo Hobbes, "a súmula da filosofia moral". São
leis enquanto prescrições da razão: são-no também como fórmulas expressas em
palavras, como as que se encontram nas Sagradas Escrituras, como preceitos de
vida promulgados por Deus.

§ 410. HOBBES: O ESTADO

O acto fundamental que marca a passagem do estado natural ao estado civil é


aquele que é efectuado em conformidade com a segunda lei natural: isto é, a
estipulação de um contrato mediante o qual os homens renunciam ao direito
ilimitado do estado natural e o transferem a outros. Esta transferência é
indispensável a fim de que o contrato possa consti125

tuir uma defesa estável para todos. Só se cada homem submeter a sua vontade a
um único homem ou a uma única assembleia. e se obrigar a não resistir ao
indivíduo ou à assembleia a que se submeteu, se obterá uma defesa estável da
paz e dos pactos de reciprocidade em que ela consiste. Desde que esta
transferência é efectuada, tem-se o estado ou sociedade civil, dito também
pessoa civil, porque, conglobando a vontade de todos, pode considerar-se uma
só pessoa. Pode dizer-se assim que o estado é "a única pessoa por cuja
vontade, em virtude dos pactos firmados reciprocamente por muitos indivíduos,
se deve regular a vontade de todos estes indivíduos: daí que se possa dispor
das forças e dos haveres dos particulares para a paz e para a defesa comum"
(De cive, 5, § 9). Aquele que representa esta pessoa (que pode ser indivíduo
ou assembleia) é o soberano e tem poder soberano; todos os outros são
súbditos. "Isto, diz Hobbes, é a origem daquele grande Leviatão ou, para usar
de maior respeito, daquele Deus imortal ao qual devemos paz e defesa: de modo
que, pela autoridade que lhe é conferida por todos os homens da comunidade,
tem tanta força e poder que pode disciplinar, com o terror, a vontade de
todos, com vista à paz interna e à ajuda recíproca contra os inimigos
externos" (Lev., 17).

A teoria hobbesiana do estado é uma característica típica do absolutismo


político. Hobbes, de facto, insiste em primeiro lugar na irreversibilidade do
pacto fundamental. Uma vez constituído o Estado, os cidadãos não podem
dissolvê-lo negando-lhe o seu

consenso: o direito do Estado nasce, com efeito,

126

dos pactos que os súbditos estabelecem entre si e com o Estado, não de um


pacto entre os súbditos e o Estado que poderia ser revogado por parte dos
primeiros (Lev., 18-, De cive, 6, § 19). Em segundo lugar, diz Hobbes, o
poder soberano é indivisível no sentido em que não pode ser distribuído entre
poderes diversos que se limitem reciprocamente. Segundo Hobbes, tal
divisão não garantiria sequer a liberdade dos cidadãos, porque se os poderes
divididos agissem de acordo essa liberdade sofreria e, se fossem discordes,
depressa se chegaria à guerra civil (De cive, 7, § 4). Em terceiro lugar,
pertence ao Estado, e não aos cidadãos, o juízo sobre o bem e sobre o mal: uma
vez que a regra que permite distinguir entre bem e mal, entre justo e injusto,
etc., é dada pela lei civil e não pode ser confiada ao arbítrio dos cidadãos.
Se isto acontecesse, a obediência ao Estado seria condicionada pela variedade
dos critérios individuais e o Estado dissolver-se-ia (lb., 121, § 1). Em
quarto lugar, faz parte da soberania a prerrogativa de exigir obediência a
ordens reputadas injustas ou criminosas; e em quinto lugar, a própria
soberania exige que se exclua a legitimidade do tiranicídio (lb., § 2, 3). Mas
o traço mais característico do absolutismo de Hobbes é a sua negação de que o
Estado esteja de qualquer modo sujeito às leis do Estado, tese que ele
defende.

o argumento de que o Estado não se pode obrigar nem para com os cidadãos, cuja
obrigação é unilateral e irreversível, nem para consigo próprio porque ninguém
pode contrair uma obrigação senão para com outro (Ib., 121, § 4).

127

Tudo isto, porém, não significa que a teoria política de Hobbes não ponha
alguns limites à acção do Estado. Nem mesmo o Estado pode ordenar a

um homem que se mate ou se fira a si próprio, ou mate ou fira uma pessoa que
lhe seja querida, que não se defenda ou não tome alimentos, deixo de respirar
ou fazer qualquer outra coisa necessária à vida; nem pode ordenar-lho que
confesse um

delito porque ninguém pode ser coagido a acusar-se

a si próprio (Lev., 21, De cive, 6, § 13). No que se

refere a todas as outras coisas, o súbdito só é livre naqueles domínios em que


o soberano se tenha esquecido de regulamentar mediante a lei; por
isso, a sua liberdade em diversos lugares e tempos é maior ou menor
consoante os critérios seguidos pelo Estado Soberano. O Estado, pelo
contrário, é sempre livre porque não tem. obrigações e é uma espécie de "alma
da comunidade", uma vez que se esta alma se afastasse do corpo, os seus
membros deixariam de receber movimento dela (Lev., 21). Do mesmo modo que a
alma da comunidade, o Estado também congloba em si a autoridade religiosa e
não pode reconhecer uma autoridade religiosa independente: portanto, a Igreja
e o Estado coincidem. A diversidade entre Estado e Igreja é, por isso,
puramente verbal, segundo Hobbes. "A matéria do Estado e da Igreja é a mesma,
são os mesmos homens cristãos, e a forma que consiste no legítimo poder de
convocá-los é também a mesma, dado que os cidadãos são obrigados a apresentar-
se onde quer que o Estado os convoque. Por isso se chama

128

Estado enquanto consta de homens e Igreja enquanto consta de cristãos" (De


cive, 17, § 21). Com esta última identificação, deu Hobbes a última demão à
teoria absolutista do Estado.

NOTA BIBLIOGRÁFICA

§ 402. Hobbes: The Elements of Law, Natural and Politic (,ed. Tormies, segundo
os manuscritos), Londres, 1889; Elementorum philosophiae sectio tertia de
cive, Paris, 1642; Leviathan, Londres, 1651; Elem. phil. sectio prima de
corpore, Londres, 1655; Elem. phil. sectio, secunda de homine, Londres, 1658;
The Qestions Concerning Liberty, Necessity and Chance (polémica com o bispo
Brarnha.11), Londres, 1656.
Edições completas das obras: em latim, Opera philosophica, Amsterdão, 1668;
Works, Londres, 1750; Opp. philosophica, ed. Molesworth, 5 vol., Londres,
1839-45; English Works, ed. Molesworth, 11 vol., Londres, 1839-45.

Leviatham, ed. W G. Pogson Smith, Oxford, 1909; ed. M. Gakeshott, Oxford,


1946; trad. ital. Vinciguerra, Bari, 1911-12; R. Giammanco, Turim, s. a.;
Opere politiche di T. H. ao cuidado de N. Bobbio, I, De cive, dialogo fra un
filosofo e uno studioso, del diritto commune d'Inglhilterra, Turim, 1959 (com
bibl.).

Sobre as obras: G. SORTAIS, La phil. moderne d6puis Bacon jusqu1à Leibniz, II,
Paris, 1922, p. 298 segs.

§ 403. Sobre a doutrina: TõNNIEs, T. H., Estugarda, 1896; LEMIE STEPHEN, H.,
Londres, 1904; TAYLOR, T. H., Londres, 1908; P. BRANDT, T. H.'s Mechanical
Conception of Nature, Londres, 1928: A. LEvi, La fil. de T. H., Milão, 1929;
B. LANDRY, H., Paris,
1930; J. LAIRD, H., Londres, 1934; VIANo, ALEssio, DAL PRA, WARRENDER; POLIN;
130P1310, CATTANEO,

129

GARIN, in. "Rivista critica di atoria deà-la filosofiw,


1962, 4.

§ 406. A interpretação metodológica do materialismo de Hobbes, no sentido do


neokantismo, foi iniciada por P. NATORP, Des cartes Erkenntnistheorie,
-qaxburg, 1882, p. 144 segs. Sobre esta ver especialmente: R. MNIGSWALD, H.
und die Staatsphi.",osophie, München, 1924; CASTRER, D" Erkenntnisproblem, II,
Berlim, 1922, p. 46 segs.

§ 409. Sobre o pensamento político: L. STRAUSS, The political Philosophy of


H., OxfoTd, 1936, 2., ed., Chicago, 1952; R. POLIN, Politique et philosophie
chez T. H., Paxis, 1953, que é a obra fundamental; H. WAR- RENDER, The
Political Philosophy of H., Oxford, 1957.

Bibliografia in "Revue Internationale de PhilosopMe", 1950; A. PACCHI; en


"Pivista critica di storia della filwofia", 1962, 4.

130

III

A LUTA PELA RAZÃO

§ 411. RACIONALISMO E CARTESIANISMO

A filosofia de Descartes pode ser considerada sob dois aspectos diversos. Sob
um primeiro aspecto, é uma técnica racional que procede de modo autónomo e
geometricamente, isto é, utilizando apenas as ideias claras e distintas numa
ordem rigorosa. Sob este aspecto, é em primeiro lugar o empenho em realizar a
autonomia da razão empregando a

técnica desta em todos os campos em que a sua aplicação é possível; e, em


segundo lugar, é o empenho em respeitar as exigências internas desta técnica,
pondo de lado o que não pode ser reduzido a ideias claras e distintas e à
ordem de tais ideias. Sob o outro aspecto, pelo contrário, a filosofia de
Descartes é um conjunto de doutrinas metafísicas e

131

físicas que concernem principalmente à dualidade das substâncias (alma e


corpo), às provas da existência de Deus, à espiritualidade e à liberdade da
alma, à mecanicidade da substância extensa, e portanto do mundo vegetal e
animal.

O próprio Descartes parece empenhar-se mais no

sucesso deste segundo aspecto da sua filosofia do que no primeiro, talvez


porque o sucesso do primeiro lhe parecia garantido. Todavia, foi precisamente
o primeiro aspecto da sua filosofia que lhe assegurou a eficácia histórica e
fez dela a protagonista das disputas filosóficas do século XVII. Por este
aspecto, de facto, o cartesianismo surge como o

episódio capital dessa luta pela razão que se pode considerar o característico
da cultura filosófica do século XVII. Esta luta tende a fazer prevalecer a

razão, e a sua autonomia de juízo, não só no domínio científico como nos


domínios moral, político e religioso, e tende, paralelamente, a esclarecer o
próprio conceito de razão. Sobre o primeiro ponto, tal luta vai muito além dos
intentos de Descartes, que se recusara a estender a investigação racional para
lá das fronteiras da ciência e entendera a sua filosofia como uma substancial
confirmação da metafísica, da moral e da religião tradicionais.

Sobre o segundo ponto, o cartesianismo constitui apenas uma das alternativas


que a luta pela razão suscita: precisamente, a que vê na razão uma força
única, infalível e omnipotente que como tal não tem necessidade de nada, salvo
de si, para se

organizar e exercer o seu poder orientador. Frente a esta alternativa


delineia-se, a partir de Gassendi e

132

de Hobbes, uma outra, para a qual a razão é uma força finita ou condicionada,
cuja esfera de acção se circunscreve aos vários campos da sua actividade e que
em cada um destes campos é subjacente a limites ou a condições diversas. Ambas
estas alternativas compartilham o ideal geométrico da razão e

vêem nos Elementos de Euclides o maior monumento antigo desta e na ciência


galilaica a sua mais recente expressão. Além disso, uma e outra alternativa
reconhecem na razão o único guia autónomo do homem e procuram por isso fazer
valer os ensinamentos desta no próprio domínio da fé religiosa. Sob muitos
aspectos, no entanto, o seu contraste é radical.

Inspiram-se fundamentalmente no cartesianismo, além de Espinosa e de Leibniz


(o primeiro dos quais, no entanto, acusa fortemente a influência de Hobbes nas
suas doutrinas políticas), uma plêiade de pensadores e cientistas que amiúde
polemicaram contra Descartes no campo das suas doutrinas específicas e
especialmente sobre a mecanicidade dos corpos viventes, sobre a relação entre
alma e corpo, sobre a relação entre Deus e o mundo e outros temas similares.
Algumas vezes, estes pensadores e cientistas proclamavam-se "anticartesianos",
como anticartesianos foram sob muitos aspectos, Espinosa e
Leibniz; mas a herança capítal de Descartes nem por isso se perdera. A
verdadeira acção anticartesiana foi aquela que viu no cartesianismo a ponta
extrema do racionalismo invasor e que portanto lhe opôs a

tradicional escolástica que permanece dominante ainda por muito tempo nas
universidades europeias

e nos colégios dos religiosos. De facto, à excepção

133

das universidades holandesas, em que Descartes encontrou frequentemente


expositores e sequazes [em Utrecht ensinou um dos seus primeiros alunos, Henry
le Roy ou Regius (1598-1679)], as universidades europeias pouco ou nada
sofreram o influxo do cartesianismo. Em França, a Sorbonne não lhe abriu as
portas porque o ensino das novas doutrinas havia sido proibido pelo Parlamento
de Paris, em 1625. Por vezes, no entanto, o cartesianismo penetrava nos
baluartes da velha escolástica como objecto de refutação; outras vezes,
também, a refutação restringia-se a esta ou àquela doutrina enquanto que
outras eram acolhidas. A literatura anticartesiana da segunda metade do século
XVII é rica de refutações, de críticas, de rectificações e de aceitações
parciais que, no seu conjunto, demonstram a importância crescente que o
cartesianismo assumia na cultura da época. Ele começava também a constituir um
outro fenómeno característico deste século, a escolástica ocasionalista, e era
utilizado pelo jansenismo, como uma defesa da espiritualidade religiosa,
situada para lá da razão cartesiana, num domínio inacessível a ela.

Por outro lado, o racionalismo não cartesiano dava lugar a outro fenómeno
característico do século, o libertinismo erudito, que utilizava, para a
crítica das crenças religiosas tradicionais, motivos extraídos do Renascimento
italiano, e encontrava na obra de Gassendi a sua principal expressão
filosófica. A obra de Hobbes pode ser considerada, no seu conjunto, como a
primeira formulação rigorosa do conceito da razão finita, conceito que,
retomado por Locke,

134

devia constituir o fundamento do empirismo e do iluminismo setecentista.

Relativamente independente destas duas alterna. tivas (contra as quais,


todavia, ocasionalmente polemizou) foi o neoplatonismo inglês que se inseriu
na luta pela razão com a sua defesa do racionalismo religioso, defesa cujos
instrumentos vai buscar ao

platonismo do Renascimento italiano.

§ 412. A ESCOLÁSTICA CARTESIANA: O OCASIONALISMO

Todos os grandes movimentos do pensamento da Idade Moderna são acompanhados


por uma forma de escolástica, isto é, pela tentativa de os utilizar para uma
justificação da fé religiosa. Como período histórico, a Escolástica tem o seu
termo em meados do século XIV quando, com o humanismo e o Renascimento, se
iniciou a Idade Moderna. Porém, como forma de filosofia, a escolástica não tem
época determinada. Assim como a escolástica medieval consiste essencialmente
na utilização da filosofia antiga para justificação e sistematização das
crenças, cristãs, assim também é escolástica a utilização de uma filosofia
qualquer para o mesmo fim. A escolástica cartesiana é o ocasionalismo: ela
vale-se da filosofia e da linguagem de Descartes assim corno a

escolástica medieval se valia da filosofia e da linguagem dos neoplatónicos ou


de Aristóteles.

O problema de que se origina a escolástica cartesiana é o das relações entre


alma e corpo. Descar135

tes considerara a alma e o corpo como duas substâncias diversas e admitira


como um facto, mas sem lhe dar explicação, a acção de uma substância sobre
outra. Esta acção recíproca das duas substâncias fora declarada impossível
pelo cartesiano francês Louis de la Forge no seu Tratado do espírito do homem
(1666), em que fora estabelecida a distinção entre as causas principais e as
causas ocasionais da acção recíproca. O movimento dos corpos era

considerado como "causa ocasional" da sensação correspondente, enquanto que a


causa verdadeira e principal ora atribuída à acção de Deus. Uma doutrina
análoga era defendida por Géraut de Cordemoy (1620-84) e pelo cartesiano
alemão Johann Clauberg (1622-1665). Mas o ocasionalismo encontrava a sua
melhor formulação por obra de Ceulinex.

Arnold Ceulinex, nascido em Antuérpia, em 1627, falecido em 1669, foi autor de


numerosas obras, das quais só algumas foram publicadas durante a

sua vida. Foi editada em 1662 uma Mágica e em


1664 uma Ética; as suas obras póstumas foram Physica Vera e Metaphysica Vera,
publicadas respectivamente em 1688 e em 1691.

Geulinex parte do princípio de que o homem não é autor do que ocorre de um


modo que ele não chega a compreender (quod nescis quomodo flat id non facis).
Ora, eu não conheço o modo como a minha vontade produz o movimento do meu
corpo ou como o meu corpo produz os movimentos dos outros corpos: isto é sinal
de que eu sou o espectador, não o actor deste movimento. Por outro lado, e
pelo mesmo motivo, o corpo não é a causa das sensa136

ções que se verificam na consciência. Deve-se então reconhecer que o acto da


vontade, a que se segue o movimento do corpo, a mutação do corpo a que se
segue a sensação no nosso espírito, são apenas causas ocasionais desse
movimento e dessa sensação, e que a causa verdadeira é, pelo contrário, o
próprio Deus. Daqui deriva o nome de ocasionalismo, dado à teoria. Não é o
corpo a causa das sensações, nem a vontade é a causa dos movimentos corpóreos.
Deus produz, directamente, na alma, a sensação por ocasião de uma modificação
corpórea ou o

movimento corpóreo por ocasião de uma volição da alma. A única causa


verdadeira é Deus; as outras são apenas ocasiões. Esta doutrina tem um alcance
religioso imediato porque tira ao homem toda a possibilidade de acção no mundo
e atribui a Deus todo o poder. O homem não é verdadeiramente uma

realidade, uma substância, segundo Geulincx, mas somente o modo da substância,


que é Deus. O nosso corpo é um modo do infinito e indivisível corpo,

como o nosso espírito é um modo do espírito infinito. Por isso o homem não
pode fazer nada e deve limitar-se a ser o espectador do que Deus opera nele. A
sua virtude fundamental deve ser a humildade, a qual inevitavelmente o conduz
ao conhecimento de si.
Encontra-se o mesmo carácter limitativo e negativo em relação ao homem na
teoria do conhecimento de Geulincx, segundo a qual o único conhecimento corto
é para o homem o reconhecimento de que as coisas não são em si mesmas coisas
como elo as conhece. Deste ponto de vista, as percepções

137

sensóreas são puramente subjectivas e o próprio conhecimento evidente fica


apenas à superfície das coisas, a fim de que nós, necessariamente, possamos
apreender das coisas só o que entra nas categorias do nosso pensamento. O
homem só pode adquirir uma ciência corta das suas próprias acções e

paixões (amor, ódio, afirmação e negação), ao passo que deve reconhecer a Deus
a sapiência infinita e a ciência de tudo o que existe, desde o movimento e os
corpos até ao espírito e ao próprio homem (Metaph. vera, 111, 6). O
ocasionalismo iria encontrar a sua melhor formulação na teoria da "visão em
Deus" de Malebranche.

§ 413. MALEBRANCHE: RAZÃO E FÉ

Nicolas Malebranche nasceu em Paris em 1638 e foi desde 1660 padre da


Congregação do Oratório, congregação fundada pelo cardeal Berulle, amigo de
Descartes, com o fim de promover a elaboração científica da doutrina da
Igreja. Os estudos do Oratório eram orientados mais para Sto. Agostinho do que
para S. Tomás e quando, em 1668, Malebranche, leu o Tratado do Homem de
Descartes, pareceu-lhe ter descoberto uma via que, conjugando-se com o
agustianismo, lhe podia permitir a defesa

e a ilustração da verdade da fé. Em 1674-75 publicava a sua obra fundamental


Procura da verdade,

e em seguida, as Conversações cristãs (1676); o Tratado da Natureza e da Graça


(1680), o Tratado

138

de Moral (1683); as Meditações cristãs e metafísicas (1683); os Diálogos de um


filósofo cristão e de

um filósofo chinês sobre a natureza de Deus (1708). Além destes, são notáveis
os escritos polémicos de Malebranche contra Arnauld, que havia criticado a sua
doutrina no livro Sobre as verdadeiras e falsas ideias. Malebranche faleceu a
13 de Outubro de
1715, depois da visita de Berkeley, que fatigara e

irritara o filósofo já velho (77 anos) e enfermo.

Malebranche atribui à razão o mesmo valor absoluto que Descartes lhe


conferira. "A razão de que eu falo, diz ele (Traité de Mor., 1, 2) é
infalível, imutável, incorruptível. Ela deve ser sempre soberana. O próprio
Deus a segue". Os lamentos sobre a corrupção da razão humana, sobre a
debilidade que a toma sujeita ao erro, baseiam-se num equívoco: é necessário
habituarmo-nos a distinguir a

luz das trevas ou das falsas luzes, isto é, a recorrer a verdadeira razão, a
razão cartesiana da evidência necessária, da imaginação e do verosímil.
"A evidência, ou seja, a inteligência, é preferível à fé. Porque a fé há-de
passar, mas a inteligência subsistirá eternamente". A fé é um bem
porque conduz a inteligência e porque sem ela não se podem alcançar certas
verdades, necessárias à virtude e à felicidade eterna. Mas a fé sem a
inteligência não torna o homem virtuoso, uma vez que não o ilumina nem o
conduz à verdade. Deste modo, a razão cartesiana assume em Malebranche um
significado religioso e torna-se no instrumento mais adaptado para a
ilustração e defesa da verdade religiosa. Male139

branche é plenamente consciente do carácter escolástico da sua filosofia. O


problema que ele se propõe é o de conciliar as exigências da razão com os
dogmas teológicos, e ele, põe em confronto este problema com o da física, que
pretende estabelecer o acordo entre a razão e a experiência. "Os que estudam a
física não raciocinam nunca contra a experiência mas também não concluem nunca
pela experiência contra a razão. Hesitam quando não vêem o meio de passar de
uma a outra; hesitam, digo, não sobre a certeza da experiência nem sobre a
evidência da razão, mas sobre o meio de conciliar uma com a outra, Os factos
da religião, ou os dogmas estabelecidos, são as minhas experiências em matéria
de teologia. Mas eu ponho-as em dúvida e assim me regula e conduz a
inteligência. Mas, quando, procurando segui-las, sinto que vou contra a razão,
detenho-me de súbito, sabendo bem que os dogmas da fé e os princípios da razão
devem estar de acordo na verdade, qualquer que seja a oposição com que se
apresentem ao meu espírito" (Entr. sur

Ia mét., 14). O ponto de vista aqui expendido de um

acordo intrínseco e essencial entre a fé e a razão é o mesmo de S. Tomás, mas


a novidade é que a

razão de que fala Malebranche não é a aristotélica (de que falava S. Tomás)
mas a cartesiana.
O método, as regras, os problemas da razão são, segundo Malebranche, os que
Descartes esclareceu. E daí que Malebranche peça ao cartesianismo a resposta
ao problema escolástico do acordo entre razão e fé.

140

§ 414. MALEBRANCHE: A VISÃO EM DEUS

A utilização dos pontos de referência fundamentais da filosofia cartesiana


para a construção de uma filosofia escolástica devia incluir uma reelaboração
desses pontos de referência. Os aspectos originais da filosofia de Malebranche
reduzem-se a uma reelaboração desse género.

Malebranche aceita o princípio fundamental da filosofia cartesiana: o objecto


imediato da consciência é a ideia. O homem não conhece directamente e em si
mesmos os objectos que estão fora dele: só os conhece através dos trâmites das
ideias. Ora as ideias são, segundo Malebranche, "seres reais" e, além disso
"seres espirituais" assaz diferentes dos corpos que representam e superiores a
esses

corpos, tanto quanto o mundo inteligível é mais perfeito do que o mundo


material. Porém, mesmo que elas fossem seres pequeníssimos e desprezíveis,
nunca poderiam ser produzidas nem pelas coisas exteriores (segundo a doutrina
aristotélica que faz da ideia a espécie impressa da própria coisa na

alma) nem pela alma. Produzir as ideias significa criar, e nenhuma criatura,
nem mesmo o homem, tem o poder de criar. Malebranche nega terminantemente que
o homem participe, sob este aspecto, da natureza de Deus. Afirma, de acordo
com o ocasionalismo, que a única verdadeira causa de tudo o que acontece é
Deus e que o homem toma por causas as ocasiões de que a vontade divina se
serve para levar a efeito os seus decretos. É uni

141

prejuízo crer que uma bola em movimento que se choca com ou-tra seja a
verdadeira e principal causa do movimento que lhe comunica; ou que a vontade
da alma seja a verdadeira e principal causa do movimento do braço. Este
prejuízo assenta no facto de que a bola é sempre posta em movimento pelo
choque com outra bola e que os nossos braços se movem todas as vezes que o
quisermos. Mas este facto é explicado de modo completamente diverso. Significa
apenas que, na ordem da natureza, certos factos são necessários a fim de que
ocorram outros, embora não sejam a causa destes outros. O embate das duas
bolas é apenas a ocasião para o autor do movimento da matéria executar o
decreto da sua vontade comunicando à outra bola urna parte do movimento da
primeira. E assim a nossa vontade de mover o braço ou de rememorarmos
determinadas ideias é apenas urna ocasião de que Deus se

serve para levar a efeito o seu decreto correspondente (Rech. de la vér., 111,
11, 3).

Consequentemente, a tese de Malebranche é a de que a alma humana vê


directamente em Deus a causa de todas as coisas. Em primeiro lugar, de facto,
é necessário que Deus tenha em si a ideia de todos os seres que criou, de
outro modo não o poderia ter criado. Em segundo lugar, Deus está intimamente
unido às nossas almas pela sua presença, de modo que se pode dizer que ele é o
lugar dos espíritos, do mesmo modo que se diz que o espaço é o lugar dos
corpos. Daí que o espírito possa ver em Deus as obras de Deus, no caso de Deus
lhe querer revelar aquilo que em si existe (lb., 111, 11, 6). Aqui se vê

142

como Malebranche concilia a tese cartesiam de Deus garante da verdade das


nossas ideias com a tese agustiniana da presença de Deus no homem como

luz e guia da sua razão. As ideias são eternas, imutáveis, necessárias:


portanto, só podem encontrar-se numa natureza imutável. Deus vê em si mesmo a
extensão inteligível, o arquétipo da matéria de que o mundo é formado e em que
habitam os nossos

corpos; o nós vemo-la nele, porquanto os nossos

espíritos habitam na região universal, na substância inteligível que encerra


as ideias de todas as verdades que descobrimos, seja em consequência das leis
gerais que regulam a união do nosso espírito com a razão absoluta, seja
em consequência das leis gerais que regulam a união da nossa alma com o
nosso corpo (Entr. sur Ia méth., 1, 10).

Isto constitui a primeira prova fundamental da existência de Deus. Deus deve


de facto conter a ideia da extensão infinita e ser o arquétipo de uma
infinidade de mundos possíveis, Mas o ser infinito e perfeito implica
necessariamente a própria existência; e a proposição "há um Deus" é a mais
clara de todas as proposições que afirmam a existência de qualquer coisa e tem
a mesma certeza que o princípio: eu penso, logo existo (Ib., 2).
É verdade que nós não vemos Deus em si mesmo mas apenas em relação com as
criaturas materiais, isto é, só enquanto a substância de Deus pode participar
delas ou ser representada por elas. Contudo, a visão que nós temos de Deus é a
única fonte do nosso conhecimento e a única força da nossa razão. Malebranche
tira todo o partido possível

143

da reconhecida incapacidade das criaturas para criar, para produzir e agir de


outro modo que não seja como passivos instrumentos de um decreto de Deus. Não
há qualquer relação de casualidade entre o corpo e o espírito, nem entre um
corpo e outro ou entre um espírito e outro. "Nenhuma criatura pode agir sobre
outra por uma eficácia que lhe seja própria". A união entre a alma e o corpo é
fruto de um decreto divino, de um decreto imutável, que nunca fica sem efeito.
Deus quis e quer incessantemente que as diversas modificações dó cérebro
humano sejam sempre seguidas por pensamentos diferentes do espírito que lhe
está unido; e

só esta vontade constante e eficaz do criador estabelece a união das duas


substâncias. Deus, porém, não exerce a' sua vontade desordenadamente, mas
segundo uma ordem que ele próprio estabeleceu que é w ordem dás causas
ocasionais (Ib., 7). @ Este é o motivo mais forte, segundo Malebranche, para
reconhecer a realidade das coisas, de que o nosso. espírito não tem
conhecimento directo já que nada. conhece imediatamente a não ser ideias.
Malebranche repete, a propósito da existência de uma realidade exterior às
ideias, à argumentação cartesiana de que, se aquela realidade não existisse, a
nossa tendência para crer nela seria falaz e Deus teria assim permitido que
nós vivêssemos num perfeito engano Mas' é evidente que esta argumentação
cartesiana perdeu muito do seu valor do ponto de vista de Malebranche. Se o
homem vê todas as suas ideias em Deus, a verdade destas ideias não consiste na
sua correspondência a uma realidade

144

MALEBRANCHE

e i mente em serem elas parlies ou xtenor, mas única elementos


daquela extensão inteligível que subsiste na razão divina. Do ponto de vista
de Malebranche, as ideias para serem verdadeiras, não têm necessidade de terem
um objecto exterior, porque a verdade delas é garantida pelo facto de os
arquétipos subsistirem na razão divina. Daqui deriva a mais acentuada
problematicidade que a afirmação da realidade externa tem em Malebranche
relativamente a Descartes. Segundo Malebranche, a cidade exterior não possui
uma evidência total, similar à que concerne à existência de Deus e do nosso
espírito. Além disso, a existência do mundo não é necessária relativamente a
Deus, mas depende de um decreto divino livre e indiferente. Por isso só Deus a
pode garantir; e para nos convencermos da existência dos corpos "há que
demonstrar não só que há um Deus e que Deus é veraz, mas também que Deus nos

garantiu que efectivamente nos criou" (Rech. de la vér., VI, écl.). Mas esta
prova de facto, segundo Malebranche, está feita, porque a fé, efectivamente,
ensina-nos que Deus criou o mundo corpóreo.

O carácter problemático que a crença na realidade exterior conserva em


Malebranche e que é eliminado apenas com um explícito apelo à fé, levou a
pensar certos críticos antigos e modernos que o
desenvolvimento lógico da tese de Malebranche deveria conduzir à negação da
realidade dos corpos externos, como se encontra em Berkeley Q 465). Mas tal
conclusão é, na realidade, contrária à lógica do pensamento de Malebranche. O
apelo à fé faz parte essencial desta lógica, que visa stibstandal145

mente esclarecer os princípios da própria fé, utilizando a problemática


cartesiana; e neste caso o apelo à fé é servido por uma razão filosófica
conexa à própria natureza do ocasionalismo. Diz Malebranche: "Se bem que se
possa formular contra a existência dos corpos objecções que parecem
insuperáveis, principalmente para os que não sabem que Deus deve agir em nós
por meio de leis gerais, eu não creio que ninguém possa alguma vez

duvidar delas seriamente" (Entr. sur la mét., 6, 7). Aqui está indicado o
motivo fundamental que garante a realidade dos corpos externos. A ordem e a
sucessão das ideias no homem seguem as leis gerais que não teriam sentido nem
valor se se prescindisse da ordem e da sucessão das coisas a que as ideias se
referem. Se Deus torna visíveis ao homem as simples ideias segundo uma ordem
estabelecida imutàvelmente, essa ordem concerne também aos objectos de tais
ideias- e por isso pressupõe a realidade desses objectos. As leis da acção
divina implicam as causas ocasionais; se as causas ocasionais das ideias
faltassem por completo, a acção divina, suscitadora das ideias, não teria uma
lei e seria em absoluto arbitrária. O que é contrário a um ponto essencial do
pensamento de Malebranche.

§ 415. MALEBRANCHE: AS VERDADES ETERNAS

Trata-se de um ponto capital que estabelece uma

nítida diferença entre a doutrina de Malebranche e a de Descartes e demonstra


a diversidade de inspi146

ração e de finalidade das duas doutrinas. Para Descartes, as verdades e as


leis eternas são garantidas por Deus, uma vez que são decretos livres do seu
arbítrio (§ 399). Para Descartes, Deus não é um princípio religioso, mas um
princípio filosófico: ele não tem outra função que não seja a de garantir a
imutabilidade das verdades eternas e dos princípios fundamentais da natureza.
Descartes é movido predominantemente pelo interesse filosófico e científico, e
recorre a Deus unicamente a fim de encontrar na sua vontade imutável uma
garantia dos princípios da filosofia e da física. Daí que afirme que tais
princípios são livros decretos de Deus e como

tais imutáveis. Em Malebranche, pelo contrário, predomina o interesse


religioso: o objecto da sua

filosofia não consiste em encontrar garantias para os

princípios científicos e filosóficos, mas antes em conduzir o homem a uma


clareza racional no tocante a Deus e às verdades da fé. Por isso Malebranche
teve de inverter a tese de Descartes: não é a vontade de Deus que garante ao
homem a verdade dos princípios e das verdades eternas, mas antes as verdades
eternas que revelam ao homem a vontade divina nas suas regras necessária.
Assim se explica o paradoxo de que para o racionalista Descartes as verdades
eternas sejam decretos arbitrários de Deus, ao @passo que para o pio
Malebranche são independentes de Deus e regras da sua actividade.

A crítica que Malebranche faz às teses de Descartes sobre este ponto consiste
em mostrar que ela não garante nem a ciência nem a religião. Se as verdades e
as leis fossem estabelecidas só

147

por um acto livre da vontade criadora de Deus, se, numa palavra, a razão que o
homem consulta não fosse necessária, não poderia haver verdadeira ciência. Já
não haveria diferença entre uma verdade eterna (,por exemplo, que duas vezes
quatro é igual a oito e que os três ângulos de um triângulo são iguais a dois
rectos) e uma qualquer proposição dotada de verdade apenas aparente. O recurso
à imutabilidade do decreto divino não basta, já que se

a vontade de Deus é livre para estabelecer verdades deste género, tais


verdades permanecem privadas de uma intrínseca necessidade. "Eu não posso
conceber, diz Malebranche, a necessidade na indiferença, não posso conciliar
entre si duas coisas tão opostas". Além disso, a tese cartesiana tira à
religião o seu

melhor fundamento. "Se a ordem e as leis eternas não fossem imutáveis por
necessidade da sua própria natureza, as provas mais claras e mais fortes da
religião seriam, ao que me parece, destruídas no seu próprio princípio, assim
corno a liberdade e as ciências mais sólidas... Como se poderá provar que é
uma desordem que os espíritos estejam sujeitos aos corpos, se não se tiver uma
ideia clara da ordem e da sua necessidade e se não se souber que o próprio
Deus é obrigado a segui-la pelo amor necessário que dedica a si mesmo?" (Rech.
de Ia vér., X séc.). Este último argumento é para Malebranche decisivo.
Descartes preocupara-se em estabelecer o carácter necessário das verdades
eternas apenas relativamente ao homem e considerara por isso suficientemente
garantido este carácter da imutabilidade de Deus. Mas se aquelas verdades
(pensa Malebranche)

148

não são também necessárias em relação a Deus, não oferecem nenhum meio para
chegar até ele e para se dar conta da vontade divina no que respeita à ordem
que Deus entende que seja respeitada pelos homens. Se, ao invés, essas
verdades são para o próprio Deus necessárias, oferecem a melhor via para
chegar a Deus e para se dar conta claramente das suas vontades no que respeita
ao homem. A preocupação que domina Malebranche neste ponto crucial é portanto
religiosa, ao passo que a preocupação que dominava Descartes ora filosófica e
científica. Por outros termos, a tese de Descartes levava ao agnosticismo
perante os desígnios de Deus que concernem ao homem, isto é, perante os
problemas religiosos. A tese de Malebranche conduz à justificação absoluta da
ordem do mundo e da atitude religiosa que nela assenta. Segundo Descartes,
Deus poderia ter construído o mundo de um outro modo qualquer e o mundo teria
sido igualmente admirável: o que quer dizer, nota Malebranche, que o

Mundo de modo algum é admirável. Segundo a

tese de Malebranche, Deus devia construir o mundo como o construiu, porque só


desse modo ele realiza da melhor maneira a finalidade que Deus se propunha.
Qual é essa finalidade?

Deus criou o mundo "para se conceder uma honra digna de si". Como um
arquitecto se compraz na obra que fez cómoda e bela, assim Deus goza da beleza
do universo, o qual traz em si os caracteres das qualidades de que se gloria,
das qualidades que estima e ama (Ib., IX séc.). Assim o mundo se justifica do
ponto de vista divino porque é a obra

149

em que Deus se reflecte a si mesmo, e de que ele se honra. E esta justificação


é possível precisamente porque as verdades eternas sobre as quais se funda a
ordem do mundo não são indiferentes a Deus, mas obrigatórias tanto para ele
como para o homem. A inversão do procedimento cartesiano realiza, no
pensamento de Malebranche, uma justificação religiosa que era total mente
estranha ao pensamento de Descartes.

Da soberania do criador sobre as suas criaturas derivam as regras da moral, os


deveres do homem para com Deus. O poder divino faz ser e conserva

o homem criando-o de instante a instante; ilumina-o com a sua luz e actua


nele, condu-lo incessantemente para o bem, de sorte que a primeira e
fundamental norma do homem é o amor para com Deus que é, pois, também amor
para consigo mesmo. Assim Malebranche faz falar o Verbo nas Méd. crét. (XII,
5): "É o -meu poder que faz tudo, tanto o bem como o mal. As causas naturais
não são senão causas ocasionais, as quais determinam a eficácia das leis que
eu estabeleci para agir sempre de um modo digno de mim. Por isso deves só
amar-me a mim, já que ninguém além de mim produz em ti os prazeres que
experimentas em tudo o que ocorre no teu corpo".

Um contemporâneo de Malebranche, Dortous de Mairan (1678-1771), com que


Malebranche manteve uma correspondência filosófica, põe a Malebranche o dilema
entre o espinosismo e o imaterialismo. Se nós só vemos em Deus a extensão
inteligível, isto é, uma pura ideia que não tem qualquer objecto ou

150

realidade correspondente nem em Deus nem fora de Deus, tem de se concluir que
os corpos não existem de facto e que a revelação nos engana quando fala da
existência deles. Para fugir a esta

conclusão não se tem de admitir que a extensão existe como realidade no


próprio Deus, como atributo deste, que é a tese de Espinosa. Malebranche
responde a este dilema reportando-se à sua doutrina da visão em Deus. Nós
vemos em Deus as ideias de que o próprio Deus se serviu como arquétipos da sua
criação. Não conhecemos por isso com absoluta certeza a existência dos corpos
que Deus criou em conformidade com arquétipos, mas podemos estar seguros da
sua existência pela própria revelação de Deus. Por outro lado, a visão em Deus
supõe a diversidade absoluta entre o Deus o os entes criados, sejam eles
arquétipos ou corpos. E, na realidade, nada é mais estranho a Malebranche do
que a tese panteísta de Espinosa, segundo a qual toda a realidade é um modo ou
uma manifestação de Deus. Malebranche mantém-se fiel à transcendência de Deus
relativamente ao mundo, e a sua "visão em Deus" não é mais que a tese do
agustianismo tradicional, repensada no plano do racionalismo cartesiano.

§ 416. ARNAULD E A LóGICA DE PORT-ROYAL

A escolástica ocasionalística não foi a única utilização religiosa do


cartesianismo. Uma utilização para o mesmo fim, porém mais livre e mais ajus-

tada aos seus princípios, encontrou-a o cartesianismo no âmbito do jansenismo


por obra do seu maior representante, Antoine Arnauld (1612-1694), a quem ainda
o cartesianismo deve a forma institucional que debalde o seu fundador lhe
procurara dar.

Os jansenistas, como se verá, (§ 420), viam no agustianismo a fonte da sua


doutrina sobre a graça; Arnauld procura conciliar o cartesianismo com o
agustianismo. Esta conciliação, porém, não assume para ele a forma que recebeu
na doutrina de Malebranche, isto é, uma escolástica em que o cartesianismo,
convenientemente modificado, é utilizado para uma defesa das verdades
religiosas. Arnauld aceita todas as teses do cartesianismo preocupando-se em
mostrar a coincidência do princípio cartesiano do cogito com a posição
fundamental de S.to Agostinho. Esta é, de facto a substância das Quartas
objecções (1641) às Meditações de Descartes. O cartesianismo, segundo Arnauld,
abrange o

domínio inteiro do conhecimento que o homem pode conseguir com os seus meios
naturais: para lá deste domínio, a fé, como o próprio Descartes dissera, pode
ter livre curso, Arnauld é por isso hostil à tentativa de Malebranche de fazer
intervir Deus a cada passo no curso das operações cognitivas do homem; e a sua
teoria do conhecimento é formulada em nítida antítese com a de Malebranche
contra o qual se dirige polemicamente o escrito em que ela vem exposta: Sobre
as verdadeiras e falsas ideias (1683). Se o conhecimento é para Male5ranche
uma visão em Deus, para Arnauld é a per152

cepção imediata de um objecto. A ideia é, segundo Arnauld, precisamente tal


percepção. Não é uma imagem no sentido em que um quadro representa o original
ou uma palavra falada ou escrita representa um pensamento, mas é imagem no
sentido em que é a coisa mesma representatívamente ou objectivamente presente
no espirito. Por seu turno, * espírito, ao perceber o objecto, percebe-se
também * si mesmo: é por isso consciência no sentido cartesiano ou reflexão no
sentido lockiano. (Des vraies et des fausses idées, V).

Este ponto de vista, que seria felizmente retomado por Locke, é o fundamento
da Lógica de Porto Real ou arte de pensar que Arnauld escreveu

em colaboração com outro pensador de Port-Royal, Pierre Nicole (1625-95) e foi


publicada em 1662. Trata-se de uma obra que teve. uma influência imensa sobre
a lógica e sobre a gnoseologia subsequentes e

que constitui a mais perfeita codificação da filosofia cartesiana. Como a


lógica tradicional e, em particular, a nominalística. (a única ainda viva na
época), a lógica de Port-Royal tem em primeiro lugar um

escopo normativo; mas diversamente da lógica tradicional, este propósito


normativo incide sobretudo na invenção ou na descoberta, mais do que na

sistematização dos conhecimentos. Assim se toma nota da critica que os


escritores do Renascimento e especialmente Ramus (§ 342) tinham feito à lógica
tradicional, denunciando-lhe a esterilidade. Mas a diferença, fundamental
entre esta lógica e a tradicional reside no objecto que ela toma em
cons;.de153

ração. A lógica tradicional tinha por objecto os

termos ou os sinais, isto é, as palavras com os

seus significados e as relações entre estes significados. A lógica de Port-


Royal ao invés, tem por objecto as operações do espírito: mais precisamente,
do espírito enquanto pensamento, quer dizer, actividade cognitiva ou
teorética. Estas operações são quatro: o conceber, que é a Alusão das coisas
que se apresentam ao espírito e dá lugar à ideia; o

julgar, que consiste em unir ou desunir as ideias conforme concordem ou não


entre Si: a união constitui a proposição afirmativa, a desunião a proposição
negativa; o raciocinar, que consiste em formar uni juizo partindo de outros
juízos; e, enfim, o

ordenar, que consiste em dispor diversos juízos e

raciocínios segundo um método (Logique, Discurso, 1).

Deste modo, a lógica vinha assumir aquele carácter (corno hoje se diz)
mentalístico, pelo qual as operações que ela considera são actos ou
actividades do espírito pensante, carácter este que ela conservou por muito
tempo até ao surgir da nova lógica matemática cerca de meados do Oitocentos.
E, por outro lado, o espírito ora concebido corno actividade que une ou divide
um certo material, mas que sobretudo o une, ordenando-o segundo certos
procedimentos ou esquemas. Este conceito do espírito, que estava decerto
implícito na filosofia de

Descartes e que a lógica de Port-Royal tornou explícito é o mesmo que será


retomado por Locke, e, através dele, pelo empirismo inglês, por Kant e por

154

grande parte da filosofia oitocentista. Num sentido estritamente derivado


dele, Kant dirá que a actividade do espírito é actividade sintética.

§ 417. GASSENDI

A primeira tentativa para opor ao conceito cartesiano da razão um conceito que


tivesse em conta

os limites que ela encontra nos vários campos em

que deve exercer-se, é a de Gassendi. A instância que Gassendi opõe ao


cartesianismo é a antiga, renascentista, do cepticismo. O cepticismo foi a
característica dominante daquela corrente libertina em que se insere a obra de
Gassendi; mas para o próprio Gassendi foi apenas o instrumento para limitar as

pretensões da razão, e por outro lado, para reconduzir à razão as crenças


religiosas tradicionais.

Pierre Gassendi (nascido a 22 de Janeiro de 1952 e falecido a 24 de Outubro de


1655), foi padre e

cónego de Dijon, professor de filosofia na Universidade de Aix e de


matemática no Colégio Real de Paris. Inspirando-se em Charron (§ 344),
assumiu Gassendi uma atitude crítica e céptica em relação a todas as
principais tendências filosóficas do seu

tempo, a saber: a escolástica aristotélica, contra a qual escreveu Exercícios


paradoxais contra Aristóteles (1624); o ocultismo e a magia, que criticou na
pessoa de Fludd (Epistolica dissertatio in qua praec7pua princi .pia
philosiphiae Fluddi deteguntui [16301); e o cartesianismo, contra o qual
formulou as Quintas objecções às Meditações, reiteradas numa
Disquisitio metaphysica seu dubitationes et instantiae

155

adversus Renali Cartesii nwtaphysicam (1644). Entretanto, vinha-se


interessando cada vez mais pela filosofia de Epicuro e os frutos deste
interesse foram o De vita et moribus Epicuri (1647), as Aninwdversiones in
decimium librum Diogenis Iaertii (1649), o Sywagma philosophiae Epicuri
(1649), e um volumoso Syntagma philosophicum que veio a lume postumamente
(1658).

Uma defesa da religião no sentido de uni expedit credere (não de urna


escolástíca), assim se pode definir o escopo principal da actividade
filosófica de Gassendi. Para esta defesa, não considerava útil nem o
aristotelismo (que era ainda utilizado pela filosofia académica) nem o
cartesianismo (que seria utilizado por Malebranche e Arnauld), porquanto
contra ambas estas doutrinas Gassendi considerava prevalecentes as instâncias
cépticas que lhe minavam os fundamentos. A tais instâncias resistia, segundo
Gassendi, a alternativa materialista, em que, portanto, havia que assentar a
possibilidade da fé religiosa. Daí a tarefa que Gassendi assumiu relativamente
a Epicuro, a qual consiste em libertar (como diz o título completo do
Synlagma) a filosofia de Epicuro de tudo o que é contra a fé cristã. Para tal
fim contribuiu Gassendi com uma série de correcções aos fundamentos da
filosofia epicurista. Epicuro considerava os átomos como inegáveis e
incorruptíveis: Gassendi considera-os como tais só no que respeita às forças
naturais mas afirma que foram criadas por Deus e podem ser por ele
aniquiladas. Epicuro sustentava que o movimento é inerente aos átomos e por
isso é eterno; Gassendi afirma

156

que o movimento e a força, que é a causa dele, derivam de Deus. Epicuro


asseverava que a ordem do mundo é uma ordem mecânica, devida ao movimento dos
átomos e às suas acções causais; Gassendi assevera que é uma ordem finalísta,
querida por Deus e governada pela sua providência. Epicuro assegurava que a
alma é composta por átomos e

por isso corpórea e mortal; Gassendi admite, além da alma vegetativa e


sensível que é corpórea, uma

alma intelectiva que é uma substância imortal e incorpórea e para a qual as


imagens sensíveis são apenas " ocasiões" para se ascender ao entendimento
das coisas que nada têm a ver com o mundo sensível (Obra, II, p. 447). Epicuro
dissociara a crença na divindade de toda e qualquer consideração física;
Gassendi considera possível chegar a conhecer a existência de Deus a partir da
consideração do finalismo, com base no principio de que "toda a ordem supõe um
ordenador".

Como se conclui destas simples anotações, Gassendi falhou. inteiramente como


restaurador do materialismo epicúreo. E, não obstante as exigências empiristas
e experimentalistas que ele amiúde apresentou, falhou também inteiramente como
conciliador da nova ciência com a metafísica materialista. A nova ciência
tinha de facto como condição negativa a eliminação do finalismo, sobre a qual
insistiam igualmente Galileu e Bacon, Descartes, Hobbes e Espinosa; e como
condição positiva o

reconhecimento da função da matemática na interpretação da natureza,


reconhecimento esse que não se encontra na filosofia de Gassendi. Mas não

157

foram estas, como se disse, as tarefas que tal filosofia assumiu. Na sua parte
sistemática pretendeu ela ser a conciliação da concepção atomística do mundo
com a religião. E na sua parte polémica foi a defesa de certas exigências que
se revelaram particularmente fecundas nas suas filiações históricas. A
Descartes que (muito erradamente, como se viu) lhe dava na sua resposta o
apelativo de "carne", Gassendi respondia assim: "Chamando-me carne, vós não me
tirais o espírito, e chamando-vos eu espírito, vós não abandonais a vossa
carne. Basta para tanto permitir-vos falar de acordo com o vosso

génio. Basta que, com a ajuda de Deus, eu não seja de tal modo carne que deixe
de ser espírito e que vós não sejais de tal modo espírito que deixeis de ser
carne; de modo que nem vós nem eu estamos abaixo nem acima da natureza humana.
Se vós vos envergonhais da humanidade, eu não me envergonho dela" (Ib., III,
p. 864). Esta reafirmação da natureza humana nos seus limites e nas suas
imperfeições não é, para Gassendi, um puro motivo polémico: implica, ao invés,
para ele o reconhecimento do valor da experiência, dos limites da razão, e

portanto do carácter descritivo ou, como ele diz, "histórico" da ciência e da


validade do conhecimento provável.

O primeiro escrito de Gassendi, os Exercícios paradoxais contra Aristóteles,


apela, contra a metafísica aristotélica, para o empirismo nominalista e

sobretudo para Occam, repetindo as doutrinas fundamentais do filósofo inglês,


principalmente a doutrina do conhecimento intuitivo que está na base

158

da gnoseologia de Occam. Deste ponto de vista, a ciência não é pesquisa ou


determinação das essências mas descrição ou, como diz Gassendi, "história" dos
acontecimentos naturais tais como são atingidos pelo conhecimento sensível. No
próprio epicurismo vê ele uma defesa dos direitos da experiência e, por
conseguinte, do procedimento indutivo r,

contra o dedutivo, da razão problemática, que se

vale de premissas prováveis ou verosímeis, contra a razão dogmática que


pretende valer-se apenas de premissas necessárias, e da origem empírica de
todas as ideias contra o inatismo racionalista (Syntagnw, 1, p. 92 segs.). Com
estes instrumentos à disposição, o homem, segundo Gassendi, não pode avançar
para lá dos fenómenos cujo círculo constitui o limite dos seus conhecimentos:
mas com isto não se pretende negar as substâncias que estão por sob ou para lá
dos fenómenos cujo conhecimento é reservado a Deus como aquele que é seu
autor. Para o homem, ao invés, o conhecer e o fazer coincidem nos limites da
experiência sensível, nos quais pode compor e decompor, com os instrumentos
preparados pelas várias ciências, os corpos naturais e assim dar conta da
construção total da máquina do mundo (Ib., I, p. 122 b segs.).

Com estas doutrinas, com o tom genericamente céptico das suas considerações,
(deduzidas amiúde de Charron), com a via prudentemente aberta para uma
integração sobrenatural, graças à fé, dos conhecimentos naturais do homem, com
urna ética que defende igualmente o prazer mundano (considerado como ataraxia)
e a felicidade ultramundana, a figura
159

de Gassendi é uma boa imagem das tendências, das aspirações e das confusões
conceptuais de uma

larga parte da cultura filosófica do seu tempo.


O libertinismo aceitou o materialismo de Gassendi sem as correcções que o
filósofo lhe veio trazer. Outras teses de Gassendi passaram para Hobbes, e
Locke e encontraram por obra deles aquela formulação rigorosa que as devia
tornar eficazes na história da filosofia. Mas no seu domínio próprio
Gassendi foi sobretudo um erudito, um literato e um retórico, e não era
sem alguma razão que Descartes, em resposta às suas objecções, dizia:
"Continuais a divertir-vos com os artifícios e os truques da retórica, em vez
de nos dardes boas e sólidas razões" (Resp., V,'1).

§ 418. O LIBERTINISMO

A palavra "libertino" permaneceu no uso corrente apenas com o sentido de


dissoluto" ou "vicioso": uma conotação que lhe vem dos opositores polémicos do
libertinismo que (nem sempre de boa fé e na esteira dos escritores medievais)
consideraram indissolúveis cepticismo religioso e imoralidade e interpretaram
a tese de que o prazer é o bem como; uma indicação da conduta moral dos seus
defensores. Na realidade, "libertino" significou no século'XVII "livre
pensador e por libertinismo, nesse século, deve entender-se o conjunto das
doutrinas ou das atitudes que foram próprias, especialmente em França, de
literatos, magistrados, polí160

GASSENDI

t;cos filósofos e moralistas a que se deve a crítica das crenças tradicionais


e por isso a preparação ou o início da explosão iluminista. Esta crítica. foi
em boa parte subterrânea, quer dizer, não se cingiu apenas aos escritos, mas
estendeu-se também às conversações e discussões privadas das quais, no
entanto, permanecera traços na rica literatura anónima ou clandestina do
tempo. E foi, além disso, sempre exercida com o pressuposto de que devia
permanecer apanágio de poucos, para não pôr em perigo, com a sua difusão,
instituições ou costumes considerados indispensáveis à ordem social e ao
governo político. Neste ponto, o libertinismo, enquanto se liga à cultura do
Renascimento, está em antítese com o iluminismo que tem como programa a
difusão da verdade entre todos os homens.

O libertinismo não é uma filosofia ou um corpo coerente de doutrinas, mas um


movimento cultural compósito que uti@liza e faz suas, como instrumentos de
crítica ou de libertação, doutrinas de diversa ascendência. Filosoficamente, o
libertinismo é importante como episódio da luta pela razão que domina a
filosofia dos séculos XVII e XVIII, um episódio que se liga ao predomínio
político que o catolicismo conquistara nos países latinos, com o seu cortejo
de condenações e de intolerâncias.

Já se disse que Gassendi pertence aos círculos libertinos de Paris, mas foi
sobretudo com François de la Mothe le Vayor (1588-1672), Gabriel Naudé (1600-
53) e Elie Diodati, um dos quatro grandes eruditos que constituem o centro de
atracção do libertinismo francês. Estes amigos de Gassendi foram

161
mais literatos do que filósofos: não partilharam o

interesse religioso de Gassendi, mas partilhavam com

ele, e em dose importante, a sua atitude céptica.

Uma figura característica do libertinismo foi a

de Savinien de Cyrano, conDek@ido como Cyrano de Bergerac (1619-55), autor de


uma comédia intitulada Le pédant joué, representada em 1645, de uma tragédia
La mort d'Agrippine, representada em 1654, e de dois romances filosóficos (os
primeiros do género) intitulados Os estados e os impérios da lita (1657) e os
Estados e os impérios do sol (1662). Cyrano inspira-se sobretudo em
Campanella, que ele conhecera e frequentara em Paris, e dele recolhe o
princípio da universal animação das coisas. "Representai-vos, diz ele, o
universo como um grande animal: as estrelas são mundos neste grande animal e

são, por sua vez, grandes animais que servem de mundos a outros seres, por
exemplo, nós, aos cavalos, etc.; e nós, por nossa vez, somos mundos em relação
a certos animais incomparavelmente mais pequenos do que nós como certos
vermes, os piolhos, os insectos; estes são ainda a terra de outros animais
mais imperceptíveis, de modo que cada um de nós em particular aparece como um
mundo grande a estes pequenos seres. Talvez a nossa carne, o nosso sangue, os
nossos espíritos não sejam mais do que um tecido de pequenos animais que se
reagrupam, nos emprestam o seu movimento e, deixando-se cegamente conduzir
pela nossa vontade que lhes serve de guia, nos conduzem a nós próprios e
produzem todos juntos aquela acção a que chamamos vida" (Ies états et empires
de Ia lune, p. 92-95).

162

O universo é assim um grande animal e todas as


suas partes são, por seu turno, animais compostos de animais mais pequenos. Os
mais pequenos destes animais são os átomos: assim, o atomismo epicurista se
combina com o pampsiquismo renascentista italiano. Mas trata-se de um atomismo
não expurgado do ponto de vista cristão como o de Gassendi. Os átomos são
eternos. A sua disposição deve-se às forças que os animam e não obedece a um
desígnio providencial. A alma é composta de átomos, conhece só através dos
sentidos e é mortal. Os milagres não existem. Trata-se, como se vê, de
filosofemas que não têm nenhuma originalidade mas que são empregados, em obras
em que a derrisão e a sátira do mundo contemporâneo assumem uma parte
importante, como instrumentos de destruição dos pilares conceptuais desse
mundo.

Ainda mais radicais são as negações contidas numa vasta obra intitulada
Theofrastus redivivus, composta provavelmente em 1659. Aqui todos os

temas subterrâneos do libertinismo estão claramente expressos com extrema


nitidez. Deus não existe, a

menos que se queira indicar com o nome de Deus o sol, que dá vida e calor a
todas as coisas e que, juntamente com os outros astros, dirige o destino dos
seres vivos. O Deus dos teólogos é uma mera entidade racional: o Deus do povo
é apenas a expressão do temor humano. A religião não passa da invenção de um
legislador para refrear os homens

e os poder governar; e, a este propósito, o autor do escrito retoma a velha


tradição dos três impostores, atribuindo-a ao imperador Federico da Suécia.

163

Todas as religiões têm por isso o mesmo valor e @;ã@_, igualmente boas, isto
é, igualmente úteis do ponto de vista político. Quanto ao homem, é um animal
entre outros, e como toda a espécie animal possui uma faculdade peculiar,
assim o homem tem a da palavra interior e do discurso, já que a "razão não é
outra coisa do que o discurso com o qual discernimos o verdadeiro do falso e o
bem do mal". Deste ponto de vista, entender, raciocinar e sentir são a mesma
coisa. A conduta do homem é dirigida, como a de qualquer outro animal, pelo
seu

desejo de se conservar, tal é a lei da natureza que é revelada à experiência,


No que se refere à sociedade, a primeira lei é não fazer aos outros o que não
quererias que te fizessem a ti. As outras leis derivam das tradições que se
formam nas diferentes sociedades humanas e que levam a julgar as

acções segundo se conformam ou não aos costumes tradicionais.

Através da obra de Fontenelle e de Bayle, o

libertinismo prosseguirá com o iluminismo, purificando-se dos seus elementos


mais grosseiros ou fantásticos e renegando o seu carácter de seita ou de
contra-religião subterrânea. Mas a fim de que o

iluminismo alcançasse, com a sua maturidade, a

posse de meios conceptuais adequados, devia, por um

lado, fazer sua a obra de Locke, na qual muitos temas renascentistas e


libertinos encontraram a sua clareza racional; e, por outro, extrair de Newton
uma concepção da natureza que deixasse definitiva mente de parte as velhas
especulações do animismo e da magia.

164

§ 419. O PLATONISMO INGLÊS

Uma boa parte da filosofia inglesa permanece, até ao aparecimento da obra de


Locke, estranha à influência do cartesianismo. Mas nem por isso permanece
estranha à luta pela razão que é a insígnia da filosofia no ~o XVII, sendo o
terreno preferido, sobre que conduz esta luta, o da religião.
O objectivo da luta é libertar a religião da superstição das superstruturas
inúteis e das crenças irracionais e reduzi-la ao seu núcleo necessário e
necessariamente racional: núcleo idêntico em todas as religiões para que a ele
os homens possam chegar unicamente mercê das forças da razão,
independentemente de qualquer revelação. Boa parte do pensamento filosófico
inglês deste século dedica-se por isso à construção de uma "teologia racional,
ou

melhor, à descoberta de uma religião racional fiel aos podem naturais do homem
e portanto também "natural". Esta religião foi também, em seguida, denominada
deísmo.

Como fundador do deísmo inglês (que no entanto tem na Utopia de Thomas More um
precedente importante) costuma-se considerar Edward Herbert de Cherbuiry
(1583-1648), autor de unia obra intitulada De Veritate, prout distingui a
revelatíone, a verisinúle, a possibili et falso (1624) assim como de escritos
menores: De causis errorum (1624); De religione laici (1624); De religione
Gentíliwn (póstumo,
1663) e de uma autobiografia, também edição póstuma (1764).-0 intento de
Herbert é, declaradamente, o de Ísolar nas várias tradições refigio165

sas (entre as quais considera também a pagÉi), o

núcleo racional de uma religião única e universal Para a descoberta deste


núcleo vale-se Herbert de conceitos estóicos e neoplatónicos e, em primeiro
lugar, da noção de um único instinto universal que presidiria tanto à formação
dos minerais, das plantas, dos animais como ao pensamento e à conduta dos
homens. Este instinto é o solo que a Sapiência divina imprimiu em nós e graças
ao qual podemos distinguir o verdadeiro do falso, o bem do mal. Sobre ele
assentam as verdades inatas ou noções comuns, as quais são independentes da
experiência dos objectos (como a faculdade da vista é independente da vista
deste ou daquele objecto), e que são as condições da própria experiência. "0
espírito diz Herbert, não é uma tábua rasa mas um livro fechado, o qual embora
se abra sob a acção dos objectos externos, só em si mesmo encerra o conteúdo
inteiro do saber". As noções comuns dão-nos os

princípios gerais de todo o saber, noções que condicionam as verdades deste, e


ao mesmo tempo fornecem os artigos da religião natural que é própria de todos
os homens enquanto tais. Segundo estes artigos há um ser supremo, que deve ser
adorado por todos, que comina a pena pelo mal cometido e estabelece o prémio
ou castigo numa vida futura. Estes artigos fundados na religião, que é uma em
todos os homens, tornam possível uma Igreja universal, uma unidade religiosa
superior à particularidade dos vários cultos; e oferecem ao mesmo tempo o
critério para discernir o que há de verdadeiro nos sistemas dogmáticos das
várias religiões.

166

A defesa de uma religião racional ou de uma racionalidade religiosa é o móbil


principal das especulações dos filósofos pertencentes à escola de Cambridge.
Esta escola representa um renascimento do platonismo, e como o platonismo
italiano do Renascimento (a cujas figuras, e esp~ ente a Ficino, estreitamente
se vincula), vê ela no platonismo a única originária concepção religiosa do
universo: essa concepção que, permanecendo substancialmente única na
multiplicidade da fé e das filosofias, assegura a paz religiosa do género
humano, isto é, o fim da intolerância teológica.

O mais notável dos platonistas de Cambridge é Ralph Cudwor(h (1617-1688) cuja


obra fundamental é O verdadeiro sistema do universo (1678). A posição de
Cudworth determina-se polemicamente: em antítese com o materialismo de Hobbes
que é interpretado como ateísmo típico. Segundo Cludworth, a

verdadeira distinção entre teísmo e ateísmo pode-se estabelecer apenas à base


das suas respectivas doutrinas gnoscelógicas. O pressuposto do ateísmo é que a
coisa produza o conhecimento e não o conhecimento a coisa e portanto o
espírito seja não o Senhor mas o criado do universo (The True Intellec. .ad
tual System of the Utdverse, 1, 4). Ora, tal pressuposto é falso, segundo
Cudworth: o conhecimento não deriva da coisa mas precede-a. O homem não
ascende das coisas singulares ao universal, mas, pelo contrário, tendo em si
próprio os universais, desce a aplicá-los às coisas simples; de modo que o
conhecimento não vem após os corpos particulares como
se fosse qualquer coisa de secundário e derivado

167

deles, mas precede-os e é prolífero em relação a

eles. o pressuposto do conhecimento é a presença no intelecto humano das


eternas essências das coisas. Essas eternas essências não têm uma realidade
substancial fora do intelecto. Elas implicam apenas que "o conhecimento é
eterno e que há um eterno espírito que compreende as naturezas inteligíveis e
as ideias das coisas, quer elas existam realmente, quer sejam apenas
inteligíveis; e compreende outrossim as suas relações necessárias e todas
as verdades imutáveis que lhes concernem" (Ib., 1, 5). Cudworth sustenta que
estas eternas essências são inatas nos

homens o que as verdades eternas, e portanto inatas, são também os princípios


morais que têm a mesma

necessidade que as verdades matemáticas. E aplica esta tese numa crítica à


doutrina calvinista da predestinação, segundo a qual Deus condena os homens ao
~o ou à salvação segundo o seu exclusivo bemplácito. O bem e o mal como
eternas essências fazem parte de Deus e determinam as suas decisões. Nem Deus
é de algum modo limitado pelas normas

do bem e do mal, porquanto não se pode dizer ser

limitado por aquilo que essencialmente o constitui (Ib., IV, 6).

A Par de Cudworth é notável entre os representantes da escola de Cambridge


Henry More (1614-87), cujas especulações sobre o espaço o próprio, Newton fez
suas. No seu Manual metafísico (Enchiridium metaphysicum, 1679), More concebe
a
extensão espacial como o fundamento de todas as relações que se estabelecem
entre os objectos corpóreos, porém como algo imóvel, infinito,

168

eterno, que penetra todas as coisas e é de todas distinta. O fundamento deste


eterno e imutável espaço é Deus, uma vez que só a ele podem ser

referidos os predicados absolutos (uno, simples, eterno, imóbil, etc.) que são
referidos ao espaço. "0 objecto espiritual, diz More, a que nós chamamos
espaço, é apenas uma sombra evanescente que a verdadeira e universal
natureza da ininterrupta presença divina produz na débil luz do nosso
intelecto, até que estejamos à altura de a ver

com olhos despertos e bastante mais de porto" (Ench. nwt., 1, 8). A extensão
percebida pelos sentidos é o símbolo da realidade inteligível que se

oculta por detrás dela. A matemática que considera o puro esquema espacial dá
já um passo do símbolo para a realidade inteligível. O passo ulterior e
definitivo, é dado pela filosofia que na realidade inteligível do espaço
reconhece o próprio Deus.

Além de Cudworth e de More, devem recordar-se entre os filósofos pertencentes


à escola de Cambridge, Benjamim Whicheote (1609-83), John Smith (1618-1652) e
especialmente Nathaniel Culversvel (falec@Ído provàvelmente em 1650 ou 51) e
autor de um Discurso sobre a natureza da luz, publicado postumamente em 1652.
É significativa nesta obra a tese da identidade entre lei divina e lei
natural. A lei natural, revelada ao homempela razão, não é mais do que a
aplicação e a adaptação da lei eterna de Deus à natureza particular do homem;
por isso o homem a traz impressa em si próprio. "Existem gravados e

impressos no ser do homem alguns princípios claros e indeléveis, algumas


noções primas e alfabéticas,

169

mediante cuja combinação o homem formula as leis da natureza" (Discourse, §


7). Assim, uma vez mais o velho conceito estóico-neoplatónico da razão é
utilizado para uma defesa da racionalidade da fé.

NOTA BIBLIOGRÁFICA

§ 411. Sobre o cartesianismo: BOUILLIER, Hi-StotrP de Ia philosophie


cartésionne, Paris, 1863; SAISSFT, Précurseurs et disciples de Descartes,
Paris, 1862; G. SoizTAIN, La philosophie moderne depuis Bacon jusqu'à Leibniz,
Paris, 1922.

§ 413. De Malebranche: Oeuvre8, Paris, 11 vol.,


1712; Oeuvres, ed. Genoude e I~doueix, 2 vol., Paris,
1837; Oeuvres, ed. Simon, 2 vol., Paris, 1842; uma nova ed. das obras
completas foi iniciada com a publicação dos primeiros dois livros da Recherche
ao cuidado de Schrehker, Pai4s, 1938. Numerosas edições parciais recentes da
editora Vrin de Paris. Correspondence avec J. J. Dortous de Mairan, ao cuidado
de J. MORE;AU, Paris, 1947. Bibliografia de A. DrL NOCE; in M. nel terzo
centenário della nascita, Mlano, 1938@

§ 414. 0LLP-LAPRUNE; La phil. de M., 2 vol., Paris, 1870-72; 1-1. JoLY, M.,
Paris, 1901; J. VIDGRAIN, Le christianisme dans Ia phil. de M., Paris, 1923;
DELBOS, Étude sur Ia phil. de M., Paris, 1924; M. G0UMER, La phil de M. et son
expérience religieuse, Paris 1926; R. W. CHURCE, A Study in the Phil. of M.,
Londres, 1931: A. DEL NOCE, in "Rivista di filos. neo-scolastica", 1934 e
1938; GuÉROULT, M.. 3 V&., ParJ.13,
1955-59.

§ 416. De Arnauld: Oeuvres, 43 vol., Lausana,


1775-84; Lettres, 9 vol., Naney, 1729; Omures philosophiques, ed. Jourdan,
Paris, 1843, ed. Simon, París,
1843.

170

OLU-LAPRuNF; La phil, de Malebranche, H, Paris,


1870; DELBOS, Êtudes de Ia phil. de Malebranche, Paris,
1924, cap. IX-X; A. DEL NOCE, lu "Rivista di ftl. neo-seõlwtica", 1937, supl.;
LAPORTE, La doetrine de Port-Royal, 4 vol., 1923-52.

§ 417. De Gassendi: Opera, ed. Sorbière, Lyon,


1658; Florença, 1727; F. THOMAS, La philosophie de G., Paris, 1889; G. S.
BRETT, The Phil of G., L,,>ndres, 1908; G. HEss, P. G. Iena, Leipzig, 1930; P.
G., Sa vie et son oeuvre, 1592-1655, vol. colectivo, Paris, 1955; Actes dt&
Congrès du Tricentenaire de P. G., vol. co'ectivo, Dinnie, 1957; T. GREGORY,
Scetticismo ed empirismo, Studio su G., Bari, 1961.

§ 418. Sobre o dibertinismo: CHARBONNEL, La p~ée italienne et le courant


libertin, Paris, 1917; R. PINTARD, Le libertinage érudit dans Ta première
maitM du &iécIe XVII, Paris, 1943; J. S. SPINK, French Pree-Thought from
Gassendi to Voltaire, L-j@ndres, 1960. Para a bibliografia. ver especialmente
o livro de Pint&rd.

De Cyrano, L'histolre comique des Êtats et Empires de Ia Lune et du Saleil, ao


cuidado de C. METTRA e J. SuyEux, Paris, 1962. Sobre Cyrano e sobre
Theofrastus redivivus: SPINK, op. cit, cap. III e IV.

Sobre a passagem para a era do iluminismo: P. HAZARD, La crise de Ia


conscience européenne (1680-1715), Paris, 1935.

§ 419. De Herbert: De veritate, Paris, 1924; De religione laici, ed. H. R.


Hutcheson, New-Haven-Londres, 1944. - RÉmuSÁT, Lord H. d. C., Sa vie et ses
oeuvres, Paris, 1853; M. M. Rossi, La vita, le opere e i tempi di E. H. d. C.,
3 vol., Florença, 1947.

Sobre os Platónicos de Cambridge: J. TULLOCH, Rational Theology and Christian


Philosophy in the Seventeenth Century, 2 vol., Londres, 1872; F. H. POWICKE,
The Cambridge Platonist, Londres, 1926; CASSIRER, Die ptatonische Renaissance
in England und die

171

Schule von Cambridge, lápsia, 1932, J. H. MUIRMEADI The Platonic Tradition in


Anglo-Saxon Philosophy, Londres, New York, 1931. Uma antologia dos escritos de
Whicheote, Smith, Culverwel e CAMPAGNAc, Th6 Cambridge Platonists, Londres,
1901.

Sobre Cudworth: J. A. PAF~0RE, R. C., ClPI-1bridge, 1951, com bibl,

Sobre More: P. R. ANDERSON, H. M., New York,


1933.

172

IV

PASCAL

§ 420. PASCAL E PORT-ROYAL

Na luta pela razão, em que se resume a tarefa da filosofia no século XVII, a


voz de Pascal constitui uma nota discordante. E não porque ele pretenda
defender com os meios tradicionais as crenças tradicionais: a figura de Pascal
não se pode confundir na multidão daqueles que insistiam nas

velhas posições da metafísica escolástica ou defendiam as velhas instituições


e crenças opondo à razão o peso e a autoridade da tradição. Pascal aceita e

faz seu o racionalismo no domínio da ciência, embora reconhecendo os limites


que a razão encontra também nesse domínio; mas não afirma que o

racionalismo se possa estender à esfera da moral * da religião. Pascal


sustenta que, nesse campo, * primeira e fundamental exigência é a compreen173

são do homem como tal, e que a razão é incapaz de chegar a essa compreensão.

Blaise Pascal nasceu em Glermont a 19 de Junho de 1623. Os seus primeiros


interesses encaminham-no para a matemática e para a física. Aos dezasseis anos
compôs o Tratado das secções cónicas; aos dezoito inventou uma máquina
calculadora; em

seguida, fez numerosas experiências sobro o vácuo, (descritas no Tratado sobre


o peso da massa de ar

e no estudo Sobre o equilíbrio dos líquidos), que se

tornaram clássicas. Mesmo quando a vocação religiosa decidiu do rumo da sua


vida, o interesse pela ciência não o abandonou: a teoria da roulette, o
cálculo das probabilidades e outras invenções ocuparam-no nos anos da plena
maturidade. Em 1654 a

vocação religiosa torna-se clara nele. Num escrito (23 de Novembro de 1654)
que foi encontrado depois da sua morte cosido à roupa, deixou-nos o documento
da iluminação que se fez no seu espírito. Eis algumas frases desse documento:

Deus de Abraão, Deus de Isaac, Deus de Jacob. Não dos fi16sofos e dos
cientistas.

Certeza, certeza, sentimento, alegria, paz.

Deus de Jesus Cristo.

A partir desse momento, Pascal começou a fazer parte dos solitários de Port-
Royal, entre os quais havia uma sua irmã que lhe era extremamente

querida, Jaqueline. A abadia de Port-Royal havia sido reconstruída em 1636


pelo Abade Saint Cyran (1581-1643) sob a forma de uma comunidade reli174

giosa, privada de regras determinadas, cujos membros se dedicavam à meditação,


ao estudo e ao ensino. Com Antônio Arnauld (§ 416) as ideias do bispo Cornélio
Jansénio afirmaram-se decisivamente entre os solitários de Port-Royal. O
Augustinus (1641) de Jansénio é uma tentativa de reforma católica mediante um
retorno às teses fundamentais de Santo Agostinho, sobretudo à da graça.
Segundo Jansénio, a doutrina implica que o pecado original tirou ao homem a
liberdade do querer e o tornou

incapaz do bem e inclinado necessariamente ao mal. Deus só concede aos


eleitos, pelos méritos de Cristo, a graça da salvação. Os eleitos são portanto
poucos. disseminados em todo o mundo; e são tais unicamente pela graça
salvadora de Deus. Estas teses eram contrapostas por Jansénio ao relaxamento
da moral eclesiástica, especialmente a jesuítica, segundo * qual a salvação
está sempre ao alcance do homem, * qual, se vive no seio da Igreja, possui uma
graça suficiente, que o salva se for auxiliada pela boa vontade. Era esta a
tese do jesuíta espanhol Molina (§ 373), tese que os jesuítas tinham escolhido
para fundamento do seu proselitismo, com o intuito de conservar no seio da
Igreja o máximo número de pessoas, mesmo aquelas dotadas de escassa
religiosidade interior. Contra esta tese, o jansenismo preconizava um
rigorismo moral e religioso alheio a todo o compromisso, fazendo depender a
salvação apenas da acção eficaz da graça divina reservada a raros.
O jansenismo suscitava uma viva reacção nob

ambientes eclesiásticos e a 31 de Maio de 1653 uma bula de Inocêncio X


conJenava a doutrina do Augus175

tinus de Jansénio. Arnauld e os sequazes de Jansénio aceitaram a condenação


das cinco proposições, mas negaram que, na realidade, elas pertencessem a
Jansénio e se encontrassem na sua obra; por isso sustentaram que a condenação
não respeitava à própria doutrina de Jansénio. Passados alguns anos, a disputa
foi retomada na Faculdade Teológica de Paris, e nela interveio Pascal. A 23 de
Janeiro de 1656, publicou Pascal, com o pseudónimo de Luis de Montalto, a sua
Primeira carta a um provincial por um dos seus amigos acerca das disputas
actuais da Sorbonne; e a esta seguiram-se outras dezassete cartas, a última
das quais tem a

data de 24 de Março de 1657.

As Cartas provinciais de Pascal são uma obra-prima de profundidade e de


humorismo e constituem um dos primeiros monumentos literários da língua
francesa. Nas primeiras cartas bate em brecha a doutrina molinista. "Mas,
enfim, padre, tal graça concedida a todos os homens é suficiente? Sim, diz
ele. E, no entanto, não tem efeito sem graça eficaz? - Isso é verdade, diz
ele. - todos os homens têm a suficiente, continuei eu, e nem todos têm a
eficaz? - É verdade, diz ele. - Isso equivale a dizer, digo-lhe eu, que todos
têm bastante graça e que no entanto não têm bastante; quer dizer que tal graça
basta, conquanto de facto não baste; o

que é o mesmo que dizer que ela é suficiente de nome e insuficiente de facto".
A partir da quinta carta as críticas de Pascal visam as praxes dos jesuítas, a
sua conduta acomodatícia de estenderem os braços a todos: põem em regra
facilmente a

176

consciência dos pecadores mediante uma casuística emoliente, vão, por outro
lado, melindrar as almas verdadeiramente religiosas com os seus severos
directores. Mas já que as almas religiosas são raras, "eles não precisam do
muitos directores severos para as

conduzir. Têm-nos poucos para os poucos, enquanto que a multidão dos casuístas
complacentes se oferece à multidão daqueles que procuram a complacência"
(Lett., V). Na última carta, Pascal retoma a doutrina agustiniana da graça.
Entre os dois pontos de vista opostos, o de Calvino e o de Lutero, segundo os
quais. não cooperamos de modo nenhum para obter a nossa saúde, e o do Molina,
que não quer reconhecer que a nossa cooperação se deve à própria força da
graça, cumpre, segundo Pascal, reconhecer, como S.to Agostinho, que as nossas

acções são nossas por causa do livre arbítrio que as produz; o que elas são
tamb6m de Deus, por causa da graça divina, a qual faz, não obstante, com que o
nosso arbítrio as produza. Assim, como

S.to Agostinho diz, Deus leva-nos a fazer o que lhe aprouve, fazendo-nos
querer o que poderemos não querer de facto. Nesta doutrina, Pascal vê a
verdadeira tradição da Igreja, de S.to Agostinho a S Tomás e a todos os
tomistas, assim como o verdadeiro significado do jansenismo.
Enquanto publicava as Cartas e se aplicava ao

seu trabalho científico, ia Pascal trabalhando numa Apologia do Cristianismo


que deveria ser a sua grande obra. Mas não chegou a terminar o seu trabalho. A
sua saúde, frágil desde a infância, tornava-se cada vez mais débil: morreu a
19 de Agosto de

177

1662, aos 39 anos. Os fragmentos da sua obra apologética foram recolhidos e


ordenados pelos seus

amigos de Port-Royal e publicados pela primeira vez em 1669 com o título de


Pensamentos.

§ 421. PASCAL: LIMITES DA RAZÃO NO CONHECIMENTO Científico

Descartes abrira à razão humana todas as vias e todos os domínios possíveis;


Pascal, ao invés, reconhece-lhe os limites. Fora da razão e das suas
possibilidades, encontra-se, segundo Pascal, o mundo propriamente humano, a
vida moral, social e religiosa do homem. Mas também no mundo da natureza, onde
a razão é árbitra, o seu poder encontra um duplo limite.

O primeiro limite é a experiência. A experiência não vale, corno sustentava


Descartes, só para decidir qual das diversas explicações possíveis, que a

razão apresenta de um dado fenómeno, é a verdadeira: ela é também o ponto de


partida e a norma

das explicações racionais. Diz Pascal no Prefácio ao tratado do vazio (um


fragmento de 1647): "Os segredos da natureza estão ocultos, se bem que ela
actue sempre, nem sempre se lhe descobrem os efeitos: o tempo restabelece-os
de época para época e, conquanto ela seja em si mesma sempre igual, nem sempre
é igualmente conhecida. As experiências que no-los tornam inteligíveis
multiplicam-se continuamente e, uma vez que estas constituem os únicos
princípios da física, as consequências

178

multiplicam-se proporcionalmente". As experiências constituem assim, "os


únicos princípios da física"; mas a elas cabe também o controle das hipóteses
explicativas. Quando se formula uma hipótese para encontrar a causa de muitos
fenómenos, podem-se dar três casos, segundo Pascal: ou da negação da hipótese
se infere um absurdo manifesto, e então a hipótese é verdadeira e comprovada:
ou um

absurdo manifesto decorre da afirmação dela, e

então a hipótese é falsa; ou então não se pôde ainda derivar um absurdo nem da
sua afirmação nem da sua negação, e então a hipótese permanece duvidosa. Deste
modo, acrescenta Pascal, "para verificar se uma hipótese é evidente não basta
que dela se sigam todos os fenómenos, enquanto que, pelo contrário, para nos
assegurarmos da falsidade de uma hipótese basta que dela decorra algo de
contrário a um só dos fenómenos" (Carta ao padre Noel, de 29 de Outubro de
1647). Nesta atitude, Pascal está bastante mais próximo de Galileu do que de
Descartes; e é uma atitude que permite a
Pascal reconhecer que a experiência é um primeiro limite daquela razão que
Descartes considerava suficiente em si mesma.

O outro limite da razão no campo das ciências é determinado pela


impossibilidade de deduzir os primeiros princípios. Os princípios que
constituem o fundamento do raciocínio escapam ao raciocínio, o qual não os
pode demonstrar nem refutá-los. Os cépticos que procuram confutá-los não o
conseguem. A impossibilidade em que- a razão se encontra de os demonstrar
prova, segundo Pascal, não a incerteza desses

179

princípios, 1na@ @ debilidade da razão. E, de facto, o c 'onhecimet't0


desses princípios primordiais (o espaço, o ter@P0@ o movimento, os
números) é segui, como o @@0 é nenhum dos conhecimentos que os nossos
raciocínios nos dão. Somente, trata-se de uma se-guran,, que tais
princípios vão buscar
10 IraçãO e ao instinto não à razão. O coração sente que há três dimensões
no espaço, que os números são jIIfi@jtos; em seguida, a razão demonstra que
não existem dois números quadrados de que um seja o duplo , outro, etc.
Os princípios sentem-se, as ProPosições concluem-se; umas e outras têm a
mesma certeza, mas obtida por vias diversas. E é inútil e ridículo que a razão
peça ao coração as provas dos seis primeiros princípios, do mesmo modo que
seria ridículo que o coração pedisse à razão o sentimento de todas as
proposições que ,existem. Melhor teria sido para o homem conhecer tudo
mediante o instinto e o sentimento. Mas a natureza recusou_lhe tal
privilégio: deu-lhe Poucos conhecimentos dessa espécie, e todos os outros os
tem de adquirir pelo raciocínio (Pensées, ed. Brunschvigg, 282).

No Mesmo domínio que lhe é próprio, o do conhecimento da natureza, a razão


encontra portanto limites, e tais limites são os próprios limites do homem*
Todavia> no âmbito destes limites, a razão é árbitra. Pascal rejeita do
domínio do conhecimento natural toda , intrusão metafísica ou teológica.
Onde a razão demonstra a sua total e congénita incapacidade é no
domínio do homem.

180

422. PASCAL: A COMPREENSÃO DO HOMEM E O ESPIRITO DE FINURA

"Tinha-me entregue longo tempo ao estudo das ciências abstractas, mas a


escassa comunicação que dai se pode extrair havia-me desgostado. Quando
iniciei o estudo do homem, vi que as ciências abstractas não são próprias do
homem e que eu, progredindo nelas, me afastava da minha condição mais do que
os outros ignorando-as. Perdoei aos outros que as conhecessem pouco; julguei
contar com muitos companheiros para o estudo do homem, que é o estudo que lhe
é verdadeiramente próprio. Mas enganei-me: são ainda em menor número do que os
que estudam a geometria" (144). Estas palavras de Pascal exprimem a sua
atitude fundamental. Pascal empenha-se no estudo do homem pela necessidade da
comunicação, que não é apenas comunicação com os outros, mas também
comunicação consigo, isto é, clareza e sinceridade consigo próprio. O homem,
que foi feito para pensar, devia começar a pensar em si próprio (146). Mas tal
não acontece e procura-se de preferência a ciência das coisas exteriores. Ora,
esta ciência não pode consolar o homem da ignorância da vida moral, no

momento da aflição, enquanto que a ciência dos costumes o pode consolar da


ignorância das ciências exteriores (67). O homem deve portanto começar por si,
a sua tarefa essencial e primeira é a de conhecer-se a si mesmo. Mas para tal
tarefa a razão não serve de nada. Como guia do homem, a razão é débil. inútil
e incerta. Ela submete-se facilmente

181

à imaginação, ao costume, ao sentimento. Todo o raciocínio neste campo se


reduz a ceder ao sentimento. A fantasia e o sentimento impelem o homem para
extremos opostos; e a razão, que deveria instituir a regra, é flexível em
todos os sentidos e incapaz de a instituir (274). Nada existe, portanto, de
tão conforme à razão como o desconhecimento da razão(272), desconhecimento que
é ao mesmo

tempo um reconhecimento, o reconhecimento de uma outra via de acesso à


realidade humana que é o coração. O coração, diz Pascal, tem razões que a
razão desconhece (277): entender e fazer valer as razões do coração é a tarefa
do espírito de finura.

O antagonismo entre a razão e o coração, entre o conhecimento demonstrativo e


a compreensão instintiva é expresso por Pascal como um antagonismo entre o
espírito de geometria e o espírito de finura. No espírito de geometria os
princípios são palpáveis, alheios ao uso comum e difíceis de ver, mas, uma vez
vistos, é impossível que não fujam. No espírito de finura os princípios estão
no uso comum, perante os olhos de todos. Não é necessário dar voltas à cabeça
nem usar de quaisquer esforços para os ver, mas é necessário ter boa vista
porque são tão subtis e tão numerosos que é quase impossível que algum não
escape,. As coisas relativas à finura sentem-se mais do que se vêem; requer-se
um esforço imenso para as fazer sentir aos que não as sentem por si e não se
podem demonstrar completamente porque não se conhecem Os seus princípios como
se conhecem os da geometria. 182

O espírito de finura vê o objecto de um


lance e de um só golpe de vista, e não através do raciocínio (1). - Pode-se
exprimir exactamente a diferença estabelecida por Pascal entre espírito de
geometria e espírito de finura, dizendo que o primeiro raciocina, enquanto que
o segundo compreende. Claro que para fundar ou rejeitar devidamente um
raciocínio geométrico se requer também um certo grau de finura, isto é, de
compreensão; mas é também evidente que o espírito de finura tem como seu

objecto próprio o mundo dos homens, ao passo que o espírito geométrico tem
como objecto próprio o mundo exterior. A eloquência, a moral, a filosofia,
fundam-se no espírito de finura, isto é, na compreensão do homem, e quando
dele prescindem, tomam-se incapazes de atingir os seus objectivos. Por isso a
verdadeira eloquência se ri da eloquência geométrica, a verdadeira moral ri-se
da moral geométrica; e o 1@r-se da filosofia torna-se a verdadeira filosofia
(4). Apenas o espírito de finura (o juízo, o sentimento, o coração, o
instinto) pode compreender o homem e realizar uma eloquência ,persuasiva, uma
moral autêntica e uma verdadeira filosofia. O homem não pode conhecer-se como

objecto geométrico, não pode comunicar consigo mesmo e com os outros mediante
uma cadeia de raciocínios. A razão cartesiana encontra-se no mundo humano
completamente deslocada. Este reconhecimento é o verdadeiro início da
compreensão do homem. "Rir-se, da filosofia é verdadeiramente filosofar".

183

§ 423. PASCAL: A CONDIÇÃO HUMANA


Toda a investigação de Pascal é uma análise da condição do homem no mundo.
Pascal continua a obra de Montaigne: para ele, tal como paira Montaigne, o
homem é o único tema da especulação filosófica o esta especulação determina-o
incessantemente nos seus procedimentos. Pascal reprova a

Montaigne "o ter complicado tanto as coisas e ter falado demasiado de si" e
diz que o que ele tem de bom pode ser adquirido dificilmente. O filosofar de
Pascal é uma continuação directa do filosofar de Montaigne, mas uma
continuação que tem por fim, último a fé. ao passo que Montaigno tinha por fim
último a filosofia. Toda a obra de Pascal é a tentativa de alcançar a clareza
no tocante ao próprio. destino do homem: uma clareza, não objectiva nem
racional, mas subjectiva e empenhada, de modo a constituir o homem naquilo que
ele verdadeiramente deve ser.

Como parte da natureza, o homem está situado entre dois infinitos, o


infinitamente grande e o infinitamente pequeno e é incapaz de compreender seja
um, seja outro. Ele é um nada em relação ao

infinito, um todo em relação ao nada, um intermédio entre o todo e nada.


Infinitamente longe de compreender os extremos, o fim dos fins e o princípio
deles estão-41he ocultos num segredo impenetrável. É igualmente incapaz de ver
o nada donde veio e o infinito em que está mergulhado.

Esta condição do homem determina toda a sua

natureza. Nós somos qualquer coisa, mas não somos

184

PASCAL

tudo: o que temos do ser esconde-nos o conhecimento das primeiras origens que
nos radicam no nada, e o pouco que possuímos do ser oculta-nos a vista do
infinito. A nossa inteligência ocupa, na

ordem inteligível das coisas, o mesmo lugar que o

nosso corpo tem na extensão da natureza. Todas as nossas capacidades são


limitadas por dois extremos, para além dos quais as coisas nos escapam porque
estão demasiado acima ou demasiado abaixo delas. Os nossos sentidos não
percebem nada de extremo: e demasiada juventude ou demasiada velhice tornam o
espírito trôpego, e o mesmo faz a demasiada ou a pouca instrução. As coisas
extremas são para nos como se não existissem, e nós somos relativamente a elas
como se não existíssemos: elas fogem-nos e nós a elas. Assim o nosso
verdadeiro estado toma-nos incapazes de sabermos com

segurança e de ignorarmos em absoluto. Movemo-nos num mar vasto, sempre


incertos e ondulantes, atirados de um extremo para outro. Seja qual for o
termo a que nos agarremos para nos mantermos firmes, ele rompe-se e larga-nos;
e se nós o seguimos, escapa-se-nos e foge numa fuga eterna. Tal é o

estado que nos é natural e que é todavia o mais contrário à nossa inclinação:
ardemos do desejo de encontrar um assento estável e uma base última, para
sobre ela edificarmos, uma torre que se eleve ao infinito. Mas hoje o nosso
fundamento rui e a terra abre-se até aos abismos (72).
Nestes termos define Pascal a condição de instabilidade que é própria do homem
e pela qual ao

mesmo tempo o ser e o nada fogem ao homem, de

185

modo que ele se encontra por cima do nada, pelo menos tanto quanto se encontra
por sob o ser.

A posição do homem é entre o ser e o nada: é, inevitavelmente, uma posição de


incerteza e de instabilidade. A função do pensamento é a de fazer-lhe
reconhecer claramente essa posição.

O pensamento é decerto a única dignidade própria do homem. Por isso só o homem


está acima do resto do universo; e mesmo que o universo o esmagasse, o homem
seria mais nobre do que o que o mata, pois ele sabe, que morre e sabe a
vantagem que o universo tem sobre ele, ao passo que o universo nada sabe
(347). E todavia o pensamento não serve para nada se não fizer compreender ao
homem a sua miséria. A grandeza do homem consiste unicamente em reconhecer-se
miserável: uma árvore não pode reconhecer-se miserável (397). É perigoso
mostrar ao homem que ele é demasiado igual aos animais, visto que os animais
não podem resgatar-se da miséria, pois não se apercebem dela. É perigoso
também mostrar-lhes demais a sua grandeza porque isso equivaleria a fazê-los
esquecer que ela consiste unicamente no saber recordar a sua própria miséria.
E ainda será mais perigoso deixá-los ignorar uma e outra coisa. É preciso que
ele não julgue ser igual nem aos animais nem aos anjos (418). Se o homem
pretende ser anjo, será na realidade animal (358). Por isso, se o homem se
vangloria é necessário rebaixá-lo, se se rebaixa é necessário exaltá-lo e
sempre contradizê-lo a fim de que compreenda que é um monstro incompreensível.
"Eu censure igualmente, diz Pascal, os que

186

decidem louvar o homem e os que decidem censurá-lo, assim como os que resolvem
distrair-se. Eu só posso aprovar os que procuram gemendo" (4211). Assim, a
primeira aproximação da natureza do homem faz-nos compreender a sua
incompreensibilidade, revela-nos a sua originalidade absoluta que o faz não
ser nem anjo nem animal. Mas o reconhecimento desta originalidade é difícil:
só se alcança no termo de uma busca que faz sofrer e

gemer. Por isso os homens recalcitram, tentam de todos os modos desviar o


olhar de si e da sua natureza, e procuram divertir-se.

§ 424. PASCAL: O DIVERTIMENTO

"Os homens, não tendo podido destruir a morte, a miséria, a ignorância,


acharam melhor não pensar, para serem felizes" (168). Tal é o princípio que
Pascal denomina divertimento (divertissement), isto é, a atitude que recua
perante a consideração da sua própria condição e procura por todas as formas
distrair-se dela mediante as ocupações incessantes da vida quotidiana. Nada é
tão insuportável ao

homem como estar em pleno repouso, sem paixões, sem nada que fazer, sem
divertimento, sem ocupação. Sente então o seu nada, o seu abandono, a sua
insuficiência, a sua dependência, a sua impotência, o seu vazio. Imediatamente
sair-lhe-á do fundo da alma o tédio, a disposição sombria, a perfídia, a
tristeza, o desgosto, o despeito, o desespero (131).
O valor fundamental de todas as ocupações é que

187

elas distraem o homem da reflexão sobre si e a sua condição. De aí que o jogo,


a conversação, a guerra, os cargos elevados sejam tão procurados. Estas coisas
não são procuradas com o intuito de alcançar a felicidade, nem se julga
verdadeiramente que a

verdadeira beatitude consista no dinheiro que se

pode ganhar ao jogo ou na lebre que se persegue numa caçada: são coisas que
não se quereria que nos fossem oferecidas. Não se busca o uso tranquilo e
adamado das coisas, que nos faz ainda pensar na

nossa desgraçada condição, não se procuram os

perigos da guerra e as fadigas dos empregos, mas

busca-se o tumulto que nos desvia do pensar naquela condição e nos distrai
(139). Nós não procuramos nunca as coisas, mas a busca das coisas. Assim, nas
comédias, as cenas alegres nada valem e nada valem as misérias extremas sem
esperança, os amores brutais, os cruéis rigores (135). Não se

poderia aliviar o homem de todas as ocupações de que está sobrecarregado desde


a infância sem lhe fazer sentir imediatamente o peso da sua miséria. Se fosse
substraído aos seus cuidados, ver-se-ia a si mesmo, pensaria naquilo que é,
donde vem, para onde vai. Por isso nunca está bastante ocupado; e, depois de
haver terminado o seu trabalho, se dispõe de um pouco de tempo para repousar,
aconselha-se-lhe que se divirta, que brinque e se ocupe sempre durante todo o
tempo (143).

Mas o divertimento não é a felicidade. Como procede do mundo exterior, torna o


homem dependente e sujeito a ser perturbado por mil acidentes que constituem
as suas inevitáveis aflições (170). E

188

assim a única coisa que o pode consolar das suas

misérias é a maior das suas misérias. Sem o divertimento cairíamos no tédio, e


o tédio levar-nos-ia a procurar um meio mais sólido para lhe fugir. Mas o
divertimento torna-se agradável e assim nos extravia e nos faz chegar
insensivelmente à morte (171). O divertimento não é a alternativa própria e
digna do homem. O homem não deve fechar os

olhos perante a sua miséria porque desse modo renuncia ao seu único privilégio
e à sua dignidade: a de pensar. Não se oferece portanto verdadeiramente ao
homem outra alternativa senão o reconhecimento explícito da sua condição
indigente e

miserável; e tal reconhecimento põe-no directamente em face de Deus.

§ 425 PASCAL: A FÉ
O homem não pode reconhecer-se no seu não ser senão em referência ao ser; não
pode reconhecer-se no seu erro, na sua dúvida, na sua miséria, senão em
relação, à verdade, ao bem e à felicidade.
O reconhecimento da própria miséria é o início de uma busca dolorosa (buscar
gemendo), que o leva à fé. A fé é , para Pascal, uma atitude total que envolve
todos os aspectos do homem até às suas

raízes. O problema da busca é o de realizar a fé, ou antes, de se realizar na


fé e mediante a fé. Todas as actividades humanas devem ser orientadas paira
esta busca.

189

A fé não é uma evidência nem uma certeza inabalável nem uma posse certa. A
condição humana exclui tais coisas. Se o mundo existisse para instruir o homem
acerca de Deus, a sua divindade esplenderia por toda a parte de um modo
incontestável, mas ele subsiste apenas graças a Jesus Cristo e para Jesus
Cristo, isto é para instruir os homens

acerca da sua corrupção e da sua redenção. Isto não revela, portanto, nem uma
exclusão total nem uma presença manifesta da divindade. Se o homem visse no
mundo bastantes sinais da divindade, julgaria possuí-la e não se daria conta
da sua miséria. Se o homem não visse nenhum sinal da divindade, não saberia o
que perdeu e não aspiraria a reconquistá-la. Para conhecer o que perdeu, deve
ver e não ver: e tal é, precisamente, o estado em que se encontra na natureza
(556). Todas as coisas instruem o homem acerca da sua condição; mas não é
verdade que tudo revele Deus, nem é verdade que tudo esconda Deus. É verdade
ao mesmo tempo que ele se esconde daqueles que o tentam e se revela aos que o
procuram, porquanto os homens são todos indignos de Deus e ao mesmo tempo
capazes de Deus: indignos na sua corrupção, capazes pela sua natureza
originária (557). Tentar a

Deus significa pretender chegar a ele sem a humildade da busca: Deus só se


revela àqueles para quem a própria fé é busca.

Mas trata-se de uma busca que não concerne exclusivamente à razão do homem.
Não se pode alcançar a fé mediante demonstrações e provas. As

190

provas que se dão da existência de, Deus, partindo das obras da natureza, só
podem valer para quem já possua a fé, mas não podem produzir a

fé em quem ainda a não conhece (242). Por vezes, a prova é o instrumento da fé


que o próprio Deus infunde no coração mas, de qualquer modo, a fé é diferente
da prova. A prova é humana, a fé é um dom de Deus (246). Ainda quando a prova
servisse, serviria apenas no momento em que alguém a vê: uma hora depois
recearia ter-se enganado (543). De qualquer modo, nenhuma prova pode impor
outra conclusão que não seja a existência de um Deus autor das verdades
geométricas e da ordem dos elementos, mas esse é o papel que atribuem a Deus
os pagãos e os epicuristas. O Deus dos cristãos também não é um Deus que
exerça

a sua providência sobre a vida e os bens dos homens para conceder longos anos
felizes aos que o adoram: esse é o papel que lhe atribuem os

hebreus. O Deus de Abraão, o Deus de Isaac, o Deus de Jacob, o Deus dos


cristãos é um Deus de amor e de consolação, é um Deus que enche a alma e o
coração dos que ele possui e lhes faz sentir interiormente a miséria que são e
a sua misericórdia infinita (556).

A um Deus semelhante não se chega através da razão: todavia, o homem deve


decidir-se: não pode diferir o problema ou permanecer neutral perante as suas
soluções. Deve escolher entre o viver como

se Deus existisse e viver como se Deus não existisse; não pode Subtrair-se a
esta escolha, por191

quanto não escolher é ainda uma escolha: a escolha negativa. Se a razão não o
pode ajudar, impõe-se4he que considere qual a escolha mais conveniente. Trata-
se de um jogo, de unia aposta, em que é necessário considerar, por um lado, o
valor da aposta, por outro, a perda ou a vitória eventual. Ora, quem aposta
pela existência de Deus, se ganha, ganha tudo, se perde, nada perde: cumpre,
portanto, apostar sem hesitar. A aposta já se justifica quando se trata de uma
vitória finita e pouco superior ao valor da aposta; mas torna-se tanto mais
conveniente quanto a vitória é infinita e infinitamente superior ao valor da
aposta. Não quer isto dizer que a infinita distância entre a certeza do que se
aposta e a incerteza do que se pode ganhar tome igual o bem finito que se
arrisca. e que é certo ao infinito que é incerto. Todo o jogador arrisca o
certo para ganhar o incerto; e arrisca pela certa o infinito para ganhar
incertamente o

finito sem pecar contra a razão. Num jogo em que existem iguais probabilidades
de vencer ou de perder, arriscar o finito para ganhar o infinito é
evidentemente uma medida da máxima conveniência.

Pascal reconhece, todavia, que não se pode crer

por imposição e que, mesmo reconhecendo o valor destas considerações, se


pode sentir as mãos ligadas e a boca muda, incapaz de crer. Mas, nesse caso,
a impotência de crer deriva apenas das paixões. É necessário que a pessoa se
esforce por se convencer, não aumentando as provas de Deus, mas

192

diminuindo as paixões; é preciso assumir as atitudes exteriores da fé e


empenhar na fé a máquina homem (233). O homem é de facto, segundo Pascal,
autómato, pelo menos tanto quanto é espírito. Daqui deriva o valor da tradição
ou costume que, justamente, a religião põe a par da razão e da inspiração como
as três vias da fé (245). A tradição determina o homem enquanto é máquina e
arrasta

o seu espírito sem que ele de tal se aperceba. Uma vez que o espírito viu onde
está a verdade, precisa de adquirir uma crença mais fácil, que elimine o
contínuo retorno da dúvida, ou seja o

hábito de crer e de manifestar nos actos exteriores a crença. A verdadeira fé,


a fé total mobiliza não só o espírito mas o autómato que existe no homem
(252). Daqui deriva a importância dos actos exteriores da fé. É necessário
ajoelharmo-nos, rezar

com os lábios, etc. (250). É necessário fazer tudo como se se cresse:


tomar água benta, mandar dizer missa, etc. Isto vos levará a crer, diz
Pascal, pois fará calar o vosso espírito (vous abêtisera) (233).
Decerto que a fé implica um risco; mas o que é que não implica um risco? Nada,
na realidade, é certo: e há mais certeza na religião do que na

espera do amanhã. Não é certo, de facto, que veremos o amanhã, mas é


certamente possível que não o vejamos. Não se pode dizer outro tanto da
religião. Não é certo que ela exista, mas quem ousaria dizer que é certamente
possível que ela não exista (234). A fé não elimina o risco mas torna-o
aceitável. E o risco não inclui a ameaça: o benefício da fé alcança-se já
nesta vida (233).

193

NOTA BIBLIOGRÁFICA

§ 420. A -ed. fundamental das obras de Pascal é a que foi @confiiada ao


cuidado de Brunschvigg, Boutroux e Gazier, Oeuvres compZètes, 14 vol., Paris,
1904-14.-A ;ed. de uso mais comum é Pensées et Opuscules, ed. Brunschvigg,
Paris, 1897, (muitas ed. suc~vaz).

Trad. italianas: Pensieri, de M. F. Seitacca, Turim,


1956; Le provinciali, de G. Preti, Milão, 1945; Tratatto sulllequilibrio dei
liquidi, de F. Nicoló Di-Casella, Turim, 1958; Opuscoli e scritti vari, de G.
Preti, Bar!, 1959.

Sobre textos pascalianos, Recherches pascaliennes, Paris, 1949; Histoire des


Pensées de P., Paris, 1954; MAIRE, Bibliographie générale des omvres de P., 5
vol., Paris, 1925-27 (até 1925).

Sobre Pascal e Port-Royal: GAZIER, Port-Royca au

XVII sicèle, Paris, 1909.

§ 421. BOUTROUX, P., Paris, 1900; BRUNSCHVIGG, P., Paris, 1932.-BLONDEL;


BRUNSCHVIGG; CHEVALIER; H~DING; LAPORTE; RAUGII, DE UNAMUNO; in "Revue de
Métaph. et de Mor.".

CHEVALIER, Pascal, Paris, 1922, apresenta Pascal na figura convencional de um


santo. Muito unilateral o ensaio de CHESTov, La nuit de Gethsémani, Paris,
1923; SERINI, P., Turim, 1942; J. MESNARD, P., L'Homme et Voeuvre, Paris,
1951; H. LEFEBVRE, P., Paris, 1949-54-, J. STE1NMANN, P., Paris, 1954

194

ESPINOSA

§ 426. ESPINOSA: VIDA E ESCRITOS

O cartesianismo, antes de ser um corpo de doutrinas, é o empenho em se servir


da autonomia da razão e respeitar a técnica que lhe é intrínseca, quer dizer o
método geométrico. Os grandes sistemas. filosóficos do século XVII respeitavam
este emipenho, embora modificando-o ou abandonando os princípios basilares da
metafísica, e da física de Descartes e, por vezes, como o fez Leibniz,
renovando parcialmente o próprio conceito do método geométrico. A figura de
Espinosa, na sua personalidade de homem e de filósofo, está toda firmada neste
empenho. Todavia, o interesse de Espinosa, como o de Hobbes, não é
fundamentalmente gnoseológico ou metafísico, mas moral, político e religioso.

195

Baruch (Benedetto) de Espinosa nasceu em Amsterdão a 24 de Novembro de 1632 de


uma família hebraica que foi obrigada a abandonar a Espanha em vista da
intolerância religiosa deste país. Foi educado na comunidade israelita de
Anisterdão, mas em 1656 foi por ela excomungado e expulso devido a "heresias
praticadas e ensinadas". Alguns anos

depois, abandonou Amsterdão e instalou-se primeiro na aldeia de Rijnsburg


junto de Leida e depois em

Haia, onde passou o resto da sua vida. Em observância ao preceito rabínico que
prescreve que todo o

homem deve aprender um trabalho manual, aprendera a arte de fabricar e polir


lentes para instrumentos ópticos. Este mester permitiu-llhe suprir
suficientemente às suas limitadas necessidades e deu-lhe uma certa fama de
óptico que procedeu a

sua celebridade de filósofo. De saúde débil, cioso da sua independência


espiritual, Espinosa levou vida modesta e tranquila. Quando um seu aluno e
amigo, Simão De Vries, lhe quis dar de presente dois mil. florins, ele
recusou; e quando, mais tarde, o mesmo De Vries lhe quis assegurar uma pensão
de 500 florins, Espinosa afirmou que era demais e não quis aceitar mais de
300.

A primeira obra a que Espinosa lançou mãos foi um Tractatus de deo et homine
eiusque felicitate (conhecido então com o nome de Breve tratado) que se perdeu
e foi reencontrado e publicado por meados de Oitocentos. Neste escrito podem
já distinguir-se com clareza as duas componentes da filosofia de Espinosa, a
neoplatónica e a cartesiana, como também o interesse fundamental desta filo196

sofia, que recai na vida moral, política e religiosa. A componente


neoplatónica é evidente no conceito de Deus como causa única, directa e
necessária de tudo o que existe; a componente cartesiana é evidente no
conceito de substância e dos atributos; a

esta obra falta no entanto a interpretação da necessidade natural ou divina


como necessidade geométrica.

Em 1663, foi publicado o único, escrito de Espinosa a que ele deu o seu nome,
Renati Cartesi Principia philosophiae. Cogitata metaphisica. O escrito era, na
origem, um sumário dos Princípios de fil~ia de Descartes, que Espinosa.
compusera para um seu aluno. A podido de alguns seus amigos, o escrito foi
publicado com o apêndice dos Pensamentos metafísicos em que vêm apontadas as

divergências entre o autor e Descartes. Em 1670, apareceu anónimo o Tractatus


theologico-politicus que se destinava a demonstrar que "numa comunidade livre
deveria ser permitido a cada um pensar o que quiser e dizer o que pensa". O
livro foi logo condenado pelas igrejas protestante e católica e Espinosa teve
de impedir a publicação de uma tradução holandesa para evitar que fosse
proibido na Holanda. Havia vários anos que trabalhava na sua obra fundamental,
a Ethica ordine geometrico demonstata que em 1674 estava concluída e começava
a circular em manuscrito entre as mãos dos amigos. Espinosa preteriu a
publicação da obra, pois teria imediatamente provocado a condenação; de modo
que só foi publicada depois da

197

sua morte, em 1677, num volume de Obras póstumas que compreendia, além da
Ethica, um Tractatus politicus, um Tractatus de intellectus emendatione, ambos
inconclusos, e um certo número de Cartas. Só muito mais tarde (1852), foi
encontrado e publicado o Breve tratado sobre Deus e sobre o homem e a sua
felicidade na tradução holandesa.

A 21 de Fevereiro de 1677, Espinosa morria com 44 anos, de tuberculose. A sua


vida foi a de um homem livre, sem paixões, dedicado exclusivamente à filosofia
e alheio a todas as atitudes heroicizantes ou retóricas. Mas, logo após a
morte, a sua própria figura de homem foi envolvida na condenação unânime que
sofreu a sua filosofia, considerada como puro e simples "ateísmo". O
núcleo desta filosofia estava condensado na tese de que Deus é "o conjunto
de tudo o que existe" (cfr., por ex., Malebranche, Entretiens de métaphysique,
1688, IX) e o atributo mais benévolo que se lhe dirigia era o de "miserável".
Já Pedro Bayle, nos Pensamentos sobre o cometa (1682), defendendo a
tese de que se pode ser atéu e de costumes perfeitos, asseverava ser esse o
caso de Espinosa. Mas nem por isso renunciava a considerar e a criticar a
doutrina de Espinosa exclusivamente sob o aspecto do ateísmo. óbviamente, uma
interpretação do espinosismo que fugisse à polémica religiosa só podia fazer-
se quando a doutrina de Espinosa fosse abordada nos seus conceitos filosóficos
fundamentais. E tal só ocorreu com o romantismo que, a partir de Fichte, viu
na substância espinosana o próprio Infinito na sua expressão objectiva.

198

§ 427. CARACTERISTICAS DO ESPINOSISMO

Descartes reduzira a um rígido mecanismo, a

Lima ordem necessária, o mundo inteiro da natureza; mas excluíra o homem


enquanto substância pensante. A substância extensa é mecanismo e

necessidade, segundo Descartes, mas a substância pensante, a razão humana, é


liberdade, e como tal potência absoluta de domínio sobre a substância extensa.
Espinosa fixou a sua atenção sobretudo no homem, na sua vida moral, religiosa,
política, e a sua tentativa consistiu em reduzir toda a existência humana à
mesma ordem necessária que Descartes reconhecera apenas no mundo da natureza.
Necessidade e liberdade, mecanismo e razão distinguem-se e opõem-se, segundo
Descartes; identificam-se, segundo Espinosa.

Espinosa pretende assim restabelecer a unidade do ser que Descartes cindira


com a separação das substâncias o que lhe havia sido ensinada pela tradição
neoplatónica ainda viva na comunidade judaica em que se formara. A realidade,
a substância, é uma só, única é a sua lei, única a ordem que a

constitui. A característica fundamental do pensa. mento espinosano é a síntese


que ele realizou entre concepção metafísico-teológica e a concepção científica
do mundo. A sua filosofia parte da noção da natureza e, da perfeição de Deus,
mas chega a

uma concepção do mundo que apaga todas as exigências da ciência física. A


tradicional teologia e a nova ciência da natureza fundem-se intima199
mente na obra de Espinosa. O ponto de fusão, o

conceito central que a torna possível é o da substância. Descartes distinguira


(Prine. phil. 1, 51) três substâncias, a pensante, a exterior e a divina, mas
tivera de reconhecer que o termo substância possui um significado diverso
consoante é referido a Deus ou às substâncias finitas; porque enquanto
referido a Deus significa uma realidade que para existir não tem necessidade
de nenhuma outra realidade, referido à alma e às coisas significa uma
realidade que para existir somente tem necessidade de Deus. Mas para Espinosa
só existe um significado autêntico do termo, que é o que ele tem referido a

Deus. Não há outra substância, isto é, outra realidade independente que não
seja o próprio Deus. Deus torna-se então a origem, a fonte de toda a
realidade, a unidade absoluta (no sentido neoplatónico), a única fonte donde
pode brotar a multiplicidade das coisas corpóreas e dos seres pensantes. Deste
modo, reconduz Espinosa à unidade neoplatónica e à ordem necessária em que a
substância se manifesta os aspectos da realidade que Descartas distinguira e
separara. Sobretudo procura reconduzir a ela o mundo humano: as paixões e a
razão do homem e tudo o que nasce das paixões e da razão: a moralidade, a
religião e a vida política. Daí que tenda a anular toda a separação e
distinção entre a natureza e Deus e a identificá4os, como já fizera Giordano
Bruno (§ 380), a

considerar os decretos de Deus como leis da Natureza e reciprocamente, a


retirar à acção de Deus todo o carácter arbitrário e voluntário e, por isso,

200

recusando todo o carácter finalista da ordem do inundo; por último, a


identificar a Natureza e Deus com a ordem geométrica do mundo. Porém, ao mesmo

tempo Espinosa. pretende que esta filosofia da necessidade sirva à liberdade


do homem e, por isso, coloca essa liberdade não no livre-arbítrio mas no
reconhecimento da ordem necessária, reconhecimento em virtude do qual o homem
deixa agir em si mesmo a necessidade da ordem divina do mundo.

§ 428. ESPINOSA: A Substância

Em De intellectus emendatione, obra que deixou inconclusa porque os


pensamentos que aí esboçara haviam encontrado a sua expressão definitiva na

Ética, mas que se apresenta como uma espécie de Discurso sobre o método,
declara Espinosa qual é o escopo do seu filosofar. Esse escopo é o

conhecimento da unidade da mente com a totalidade da natureza. Para a obter, é


necessário que o homem ao mesmo tempo se, conheça a si mesmo e conheça a
natureza, que se aperceba das diferenças, das concordâncias e das oposições
que subsistem entre as coisas, a fim de que veja aquilo que elas lhe permitem
ver e qual é a sua própria natureza e o

seu próprio poder de homem (Op., ed. Van Vloten e Land, 1, p. 9). Com vista a
isso, o único conhecimento utilizável é aquele género de percepção em
que o objecto é percebido só através da sua essência ou através da noção da
sua causa próxima, enquanto que são inutilizáveis os outros tipos de

201
percepção, tais como a simbólica, a produzida por uma experiência acidental e
a deduzida inadequadamente de um certo efeito. O conhecimento que é necessário
ao homem é o que se adequa plenamente à ideia do objecto e tem por isso em si
a garantia necessária da sua verdade. O problema do método é o problema da via
que leva a um

conhecimento desse género. O método não é, segundo Espinosa, a procura de uma


garantia da verdade que decorra da aquisição das ideias, mas é antes a via
para procurar na ordem devida a própria verdade, isto é, a essência objectiva
das coisas. Espinosa define por isso o método como conhecimento reflectido ou
ideia da ideia. E uma vez que não pode dar-se a ideia da ideia se antes não se
deu a ideia, o método será a via através da qual a mente deve dirigir-se para
alcançar a norma

de uma dada ideia verdadeira. Mas de que ideia verdadeira já dada deverá o
método procurar a

norma? Evidentemente, da ideia mais excelente entre todas, que é a do ser


perfeitíssimo. O melhor método será, portanto, o que mostra como a mente se
deve orientar para descobrir a norma da ideia do ser perfeitíssimo (Op., 1, p.
12).

Deste modo, já a determinação do método em De intelectus emendatione levava


Espínosa a pôr no centro da sua doutrina a concepção do ser perfeitíssimo, ou
seja, de Deus. E é tal concepção o

ponto de partida da Ética, cujo primeiro capítulo se intitula "Deus". Espinosa


concebe Deus como a única substância que existe em si e é concebida por si,
isto é., que para existir não tem necessidade

de nenhuma outra realidade e que para ser concebida não necessita de nenhum
outro conceito. Tal substância é causa de si mesma, no sentido de que sua
essência implica a sua existência e que não pode ser concebida senão como
existente. Ela é infinita, uma vez que não há nenhuma outra substância que a
limite, e consta de infinitos atributos; entendendo por atributo o que o
intelecto dela percebe como constitutivo da sua essência. Devido a esta
infinidade dos atributos, isto é, da essência divina, devem derivar de Deus
infinitas coisas de infinitos modos: de sorte que, enquanto Deus não é causado
por nada e é causa sui, é causa eficiente de tudo o que existe. Cada coisa
existente é portanto um modo, isto é, uma manifestação de Deus. Natura
naturante é a própria substância, isto é, Deus, na sua essência infinita;
natura naturata são os modos, quer dizer, as manifestações simples da essência
divina.

Destas teses fundamentais decorre que nada pode existir fora de Deus e nada
pode existir senão como

um modo de Deus. Mas Deus não produz os infinitos modos mediante uma acção
criadora arbitrária ou voluntária. Tudo procede de Deus devido unicamente às
leis da sua natureza e a liberdade da acção divina consiste precisamente na
sua necessidade, quer dizer, na sua perfeita conformidade com a natureza
divina. Por via desta necessidade nas coisas não há nada de contingente, isto
é, nada existe que possa ser diverso daquilo que é. Tudo é necessário enquanto
é necessariamente determinado pela necessária natureza de Deus. As coisas

203
não poderiam ter sido produzidas por Deus de outra maneira ou noutra ordem
diferente daquela por que foram produzidas. Deus não tem vontade livre ou

indiferente. A sua potência identifica-se com a sua

essência e tudo aquilo que ele pode, existe necessariamente.

§ 429. ESPINOSA: A NECESSIDADE

Espinosa conclui a primeira parte da sua Ética com uma negação categórica da
vontade humana. Nada existe no mundo que não derive de um aspecto necessário
de Deus e que portanto não seja intrinsecamente determinado. O homem julga-se
liberto porque é consciente da sua vontade mas ignora a

causa que a determina, ora esta causa é o Próprio Deus, que determina a
vontade humana, como todos os outros modos de ser, necessariamente. Nenhuma
diferença existe sob esse aspecto entre o homem e a natureza. Tudo é
necessário num como noutra. A propósito disto, Espinosa faz uma crítica
radical ao finalismo, crítica cuja conclusão é assaz simples: não existem fins
nem para o homem, nem para a

natureza. Admitir na natureza causas finais é um prejuízo devido à


constituição do intelecto humano. Os homens pretendem todos agir com vista a
um

fim, isto é, a uma vantagem ou a um bem que desejam obter. E uma vez que
encontram à sua disposição um certo número de meios paira obterem os seus fins
(por exemplo, os olhos para ver, o sol para iluminar, as ervas e os animais
para se alimentarem, etc.) são levados a considerar as coisas

204

naturais como meios para a obtenção dos seus fins. E como sabem que tais meios
não foram produzidos por si próprios, julgam que foram destinados ao uso deles
por Deus. Assim nasce o preconceito de que a divindade produz e governa as
coisas para uso dos homens, para ligar os homens a si e para ser honrada por
eles. Mas, por outro lado, os homens observam que a natureza lhes oferece não
só facilidades e comodidades, mas também incomodidades e desvantagens de toda
a espécie (doenças, terremotos, intempéries, etc.); e crêem então que estes
infortúnios derivam de não terem venerado devidamente a divindade que por isso
se encoleriza. E, posto que a experiência de todos os dias denuncie e mostre
com infinitos exemplos que as vantagens e os danos se distribuem igualmente
por pios e ímpios, os homens, em vez de abandonarem o seu preconceito,
preferem recorrer a outro

preconceito para escorar o primeiro; e admitem que o

juizo divino supera em larga medida o do homem. Isto, nota Espinosa, teria
bastado para que a verdade se ocultasse eternamente ao género humano, se a
matemática (a qual concorre não aos fins mas somente às essências e às
propriedades das figuras) não houvesse mostrado aos homens uma outra norma da
verdade. Além da matemática, outras causas fizeram com que os homens se
apercebessem destes preconceitos vulgares e fossem reconduzidos ao verdadeiro
conhecimento das coisas.

Esta análise explicativa. dos preconceitos que se


formam nos homens em virtude das tendências constitutivas da sua natureza,
aparenta Espinosa com

205

os empiristas ingleses. A ela se segue a crítica das causas finais. Esta


doutrina considera como causa o que é efeito, e vice-versa: põe depois o que
na natureza está antes e torna imperfeito o que é perfeitíssimo. É, de facto,
perfeitíssimo o efeito que é produzido imediatamente por Deus, imperfeito o

que, para ser produzido, tem necessidade de causas

intermédias. Evidentemente, se tais coisas fossem feitas por Deus como meios
para obter um certo

fim, seriam menos perfeitas do que as outras. Mas a doutrina das causas finais
não só tira a perfeição ao mundo, como tira também a perfeição a Deus. Se Deus
agisse para um fim, necessariamente quereria algo de que careceria. Espinosa
afirma a este

propósito, não ser válida a distinção teológica entre o "fim de indigência" e


o "fim de assimilação". Se Deus não pôde criar senão tendo-se a si próprio em
vista, na realidade criou tendo em vista algo de que carecia. A concepção
finalista do mundo não passa de um produto da imaginação: consiste na
tentativa de explicar o mundo mediante noções como o bem, o mal, a ordem, a
confusão, o calor, o frio, o belo, o feio, as quais não exprimem senão o modo
como as coisas impressionam os homens e

não têm valor objectivo nem podem de modo algum valer como critérios para
entender a realidade mesma. Uma vez mais, a correcção de tais preconceitos
faz-se na matemática, na qual já não valem as valorizações individuais e que
por isso subtrai o homem aos prejuízos da imaginação. A perfeição das coisas,
diz Espinosa (Et., 1, ap., Op., 1, p. 61) deve ser valorizada apenas pela
natu206

reza e potência delas, e as coisas não são mais ou menos perfeitas conforme
agradem ou ofendam os sentidos dos homens ou conforme convenham ou repugnem à
natureza humana. Não se procure por isso saber de :onde emanam as perfeições
da natureza, dado que toda a natureza decorre necessariamente da essência de
Deus. Não existem imperfeições na natureza. As leis da natureza divina são tão
amplas que bastam para produzir tudo o que pode ser concebido por um intelecto
infinito. Do ponto de vista deste intelecto infinito e não já do ponto de
vista dos indivíduos e empíricas valorizações humanas, é que cumpre colocar-se
para entender verdadeiramente a natureza do universo em relação com a sua
causa necessária e necessitante, que é Deus. E o apelo à matemática evidencia
a

norma que, segundo Espinosa, deve seguir a autêntica reflexão sobre o mundo.
Ela deve visar exclusivamente à ordem necessária em virtude da qual as coisas,
como modos da substância divina, se deixam deduzir necessariamente dela.

§ 430. ESPINOSA: A ORDEM GEOMÉTRICA

A substância divina é a primeira e única realidade; o o conhecimento de Deus o


primeiro e único conhecimento verdadeiro. Estas teses fundamentais do
espinosismo põem imediatamente em evidência o problema da substância. É este,
na realidade, o único problema do espinosismo porque os outros se reduzem a
ele, assim como todos os aspectos

207

da realidade se reduzem para Espinosa a modos ou manifestações da substância.


E é um problema cuja solução pode resultar apenas de uma vista total e
completa da doutrina de Espinosa, mesmo nos seus

aspectos éticos, políticos e religiosos. Porém, uma vez

que o exame deste aspecto resultaria extremamente frágil e incerto sem uma
preliminar solução do problema da substância, é melhor defrontar neste ponto o
problema mesmo, optando por pôr à prova, na

subsequente exposição da doutrina, a solução entrevista. . A primeira e mais


evidente característica da substância espinosana é que ela é a coincidência
e a identidade da Natureza com Deus. Já no Breve Tratado teológico-político,
começando a tratar da profecia (isto é, da revelação de Deus aos homens),
Espinosa põe imediatamente a par dela o conhecimento natural: também ele é
divino, "porque a natureza de Deus, enquanto dela participamos, e os decretos
dele quase a ditam a nós". A identificação da natureza com Deus leva-o a negar
o milagre,
O milagre assenta no prejuízo de que a natureza e Deus são duas potências
numericamente distintas e

que a potência de Deus é a de um soberano sobre o seu reino. Espinosa afirma


que "as leis universais da natureza são s@>mente decretos' de Deus que emanam
da necessidade e da perfeição da natureza de- Deus". Por isso, se na natureza
ocorresse algo de contrário às leis naturais, isso seria necessariamente
contrário ao decreto, ao intelecto e à natureza divinas. E se alguém afirmasse
que Deus poderia agir contra as leis da natureza, admitiria que Deus pode208

ESPINOZA

ria agir contra a sua própria natureza. Em conclusão, "a virtude e a potência
da natureza são a própria virtude e potência de Deus e as leis e regras da
natureza os próprios decretos de Deus". Não subsiste portanto o milagre como
uma suspensão das leis da natureza, como se ele não a houvesse sabido criar
bastante potente e ordenada para que servisse em todos os casos aos seus
desígnios. O chamado milagre é apenas um acontecimento ou um facto cuja causa
natural nos escapa, porque é fora do comum ou porque simplesmente aquele que o

narra o não sabe ver. (Tract. teol.-pol., 6). A crença nos milagres pode
conduzir ao ateísmo, porquanto conduz a duvidar da ordem que Deus estabeleceu
para a eternidade mediante as leis naturais.

Destes textos do Tratado teológico-político e do primeiro livro da Ética (já


exposto no § 428) resulta que a identidade da natureza de Deus se realiza no
âmbito de um conceito que a ambos compreende e que é o da ordem necessária. E
a primeira característica desta ordem necessária é que ela não coincide com a
ordem reconhecida e posta em vigor pela razão humana. ""A natureza, diz
Espinosa (lb., 16), não se restringe às leis da razão humana, as quais tendem
apenas à utilidade e à conservação dos homens, mas estende-se, a infinitas
outras leis que concernem à ordem eterna da natureza inteira de que o homem é
apenas uma parcela". O que na
natureza nos parece ridículo, absurdo, mau, é tal só pela nossa valorização,
pois ignoramos em parte a ordem e a conexão máxima da totalidade da natureza e
julgamos apenas do ponto de vista da nossa

209

humana razão. O mal é-o não em relação à ordem e às leis da natureza universal
mas apenas relativamente às leis da nossa natureza. Espinosa pretende superar
o ponto de vista da razão humana e colocar-se no ponto de vista da ordem
necessária. Ele declara não reconhecer nenhuma diferença entre os homens e os
outros indivíduos da natureza nem entre os homens dotados de razão e os que
ignoram * verdadeira razão, e entre os fátuos, os delirantes * os sãos. "De
facto, seja o que for que um ser

faça segundo as leis da sua natureza, fá-lo por um

seu sumo direito, isto é, porque é determinado a

fazê-lo pela natureza e não poderia fazer de outro modo". De sorte que o
direito natural que para Grócio (§ 348) era a norma da razão, é para Espinosa
definido exclusivamente pela necessidade, pela qual precisamente entra na
ordem natural. "Por direito e instituição natural não entendo outra coisa
senão as regras da natureza de cada indivíduo, segundo as quais o concebemos
naturalmente determinado a existir e a actuar de um certo modo" (Ib.,
16; Tract. pol., 2, 18).

Destas considerações se pode concluir que para Espinosa a substância como


identidade da natureza com Deus, é a ordem necessária do todo. Veremos que
esta tese também torna inteligível e clara a gnoseologia e a ética de
Espinosa. Entretanto, é evidente que ela exclui as duas teses opostas, que
entraram em campo sobre a interpretação historiográfica do espinosismo (e que
foram protagonistas de uma famosa polémica), embora justificando estas teses
na parcial verdade que contêm. A substância

210

espinosana não é decerto razão, dado que a razão

tem, segundo Espinosa, um campo bastante restrito, designando a ordem que tem
o seu centro naquela parte da natureza que é o homem. Por outro lado, todavia,
é verdade que a substância, como ordem necessária, é norma da razão e é em
geral o princípio a que ela deve adequar-se nas suas valorizações para
chegar ao terceiro género de conhecimento, isto é, ao conhecimento
pleno e perfeito (§ 43 1).

Em segundo lugar, a substância não pode ser considerada como causa (segundo a
outra das duas interpretações fundamentais), porque a causa deixa fora de si
aquilo de que é causa; e a substância é ao mesmo tempo naturante e natureza
naturada, porquanto, como ordem necessária, compreende ao

mesmo tempo o necessitante e o necessitado, o atributo e os modos, o uno e o


multíplice. Por outro lado, implica um elemento dinâmico e generativo que foi
obscurecido pelo conceito de causa. Como se pode adequadamente exprimir este
elemento?

Estamos aqui perante a última determinação fundamental da substância


espinosana. Para esclarecer a dependência dos modos simples da substância,
podia Espinosa valer-se dos dois modelos tradicionais: a doutrina da criação e
a doutrina da emanação. Ele excluiu formalmente a doutrina da criação,
porquanto, como se viu, assenta na impossível redução do modo de agir da
substância ao modo de agir do homem. A criação suporia intelecto, vontade,
arbítrio, escolha, coisas que, segundo Espinosa, não têm sentido quando
referidas à substância

211

divina. Mas a exclusão da doutrina da criação significará que ele tenha aceite
a doutrina da emanação? Na doutrina de Espinosa, não há vestígios de tal
aceitação, que teria feito da sua doutrina a exacta repetição da doutrina de
Bruno. É preciso não esquecer que entre Espinosa e Bruno se encontram Galileu,
Descartes, Hobbes: é a primeira formação da ciência, inteiramente polarizada
em torno do principio da estrutura matemática do universo. Assim se explica
por que é que a matemática é explicitamente invocada por Espinosa como
salvação dos preconceitos (Et., 1, ap.), assim como se explica a

forma da sua obra máxima. A ordem necessária, constitutiva da substância, é


unia ordem geométrica. Este esclarecimento estabelece imediatamente a
originalidade do espinosismo em relação a todas as formas de emanatismo. A
substância espinosana não é a

Unidade inefável da qual brotam as coisas por emanação, conforme a doutrina


tradicional do neoplatonismo. Nem é tão-pouco a natureza infinita que pela sua
superabundância de poder gera infinitos mundos, segundo o naturalismo de
Giordano Bruno. Da substância divina brotam os modos particulares como da
geometria brotam os teoremas, os corolários, os lemas. A forma exterior da
Ética não é ditada a Espinosa por um preconceito matemático, que ele tivesse
extraído de Descartes, nem do desejo de macaquear, na ordem formal da
exposição, o

rigor do procedimento matemático, mas da convicção inabalável de que a ordem


geométrica é a substância mesma das coisas, isto é, Deus. A necessidade
intrínseca da natureza divina é uma necessi212

dade geométrica, similar àquela pela qual as proposições particulares da


geometria se concatenam e se soldam no seu conjunto. Espinosa quis reproduzir
na ordem da sua exposição a própria ordem da necessidade divina. Nesta ordem,
a multiplicidade dos modos não contradiz a unidade porque a

unidade é a própria conexão dos modos e os modos realizam no seu ser e no seu
agir a ordem unitária. "Qualquer que seja o modo como concebamos a natureza,
diz Espinosa (Et., H, 7, escol.), sob o

atributo da extensão, ou sob o atributo do pensamento, ou sob qualquer outro,


sempre encontraremos uma ú nica e mesma ordem, uma única e mesma conexão de
causas, isto é, uma única e mesma realidade". Esta ordem, esta conexão, esta
realidade, é o Deus sive natura, a Substância.

§ 431. ESPINOSA: PENSAMENTO E EXTENSÃO

Do conceito da substância como ordem geométrica necessária do todo decorre


imediatamente que, por muito diversos e infinitos que sejam os atributos da
substância, isto é, os aspectos da essência divina, devem todos apresentar no
seio deles a mesma ordem e a mesma conexão dos modos em que se manifestam. Ora
pensamento e extensão são, segundo Espinosa, dois atributos de Deus; as ideias
são modos do pensamento, os corpos mo-dos da extensão. A ordem e o nexo das
ideias devem ser pois idênticos à ordem e ao nexo das coisas (Et.,
11, 7). Isto implica que, a fim de que se considerem

213

as coisas como modos do pensamento, é preciso explicar a ordem causal da


natureza somente pelo atributo do pensamento; e enquanto se consideram as
coisas mesmas como modos da extensão deve-se explicar esta ordem só pelo
atributo da extensão. Por outros termos, importa procurar a causa de uma ideia
noutra ideia, e a causa destoutra numa outra ainda, e assim até ao infinito; e
isto é válido também para os corpos, que são modos da extensão. Nunca se
encontrará, portanto, uma ideia que seja causa de um corpo ou um corpo que
seja causa de uma ideia: a causalidade concatena os modos só na unidade do
próprio atributo. Além disso, nunca

se encontrará a casualidade divina senão sob a forma da causalidade finita dos


modos particulares, uma

vez que os modos não são senão Deus e Deus não é senão os modos (Ib., 11, 9).

Espinosa pretende aplicar estes principios "à cognição da mente humana e da


sua beatitude"; e por isso procura explicar por eles a natureza e o
funcionamento da mente humana. A mente humana é parte do infinito intelecto de
Deus; é uma ideia, um modo do atributo do pensamento. Mas é uma

ideia de uma coisa existente, de um objecto real. Esta coisa existente, este
objecto real cuja ideia é a alma humana, é o corpo, que é um modo da extensão.
O homem consta portanto de mente e

corpo. E uma vez que o corpo é o objecto da ideia da mente, esta terá a ideia
também de todas as modificações que são produzidas no corpo pelos outros
corpos. Assim, a ideia que constitui a alma humana não é una mas multíplice,
já que implica

214

as ideias de todas as modificações que o corpo, seu objecto, sofre, e por isso
igualmente das dos outros corpos enquanto modificam o próprio corpo. Daí que a
mente humana considere como existente em acto não só o corpo que ela tem por
objecto, mas também os corpos exteriores que sobre ela actuam (lb., 11, 17). A
mente não conhece os corpos exteriores senão por meio das ideias das
modificações do próprio corpo, e estas ideias são sempre confusas, porque não
são situadas e reconhecidas na ordem necessária da sua derivação de Deus (da
qual são modos) e portanto são, diz Espinosa, "consequências sem premissas"
(lb., 11, 28). O carácter confuso e inadequado das ideias não lhes tira
todavia a necessidade, porque também as ideias inadequadas e confusas são
modos de Deus e participam da sua absoluta necessidade. E uma vez que o erro

consiste precisamente nas ideias inadequadas e confusas, também o erro é


necessário e entra como tal na ordem do todo.

Mas nesta ordem entra também, naturalmente, a verdade e o conhecimento


adequados. Espinosa distingue a este propósito três géneros de conhecimento. O
conhecimento do primeiro género é a

percepção sensível e a imaginação. A consciência do segundo género é a das


noções comuns e universais que são o fundamento de todos os raciocínios; e

este segundo género de conhecimento é a razão.


O terceiro género de conhecimento que Espinosa denomina ciência intuitiva é
aquele que parte da ideia adequada de um atributo de Deus para o conhecimento
adequado das manifestações ou dos

215

modos dele. Só o conhecimento do segundo e do terceiro género os habilita a


distinguir o verdadeiro do falso. Só ele, com efeito, tira a ideia do seu
isolamento e a li,,a às outras ideias, situando-@ ordem necessária da
substância divina. Ora se uma ideia é concebida nesta ordem necessária ou,
como Espinosa diz, sob o aspecto da eternidade (sub specie aeternitatis), ela
é necessàriamente verdadeira, porque necessàriamente corresponderá ao seu
objecto corpóreo, dado que a ordem das ideias e dos objectos é uma só.
Consequentemente, considerar as

ideias na sua verdade significa considerar as coisas como necessárias,


porquanto significa remontar com a razão à ordem imutável em que todas as
coisas, ideias ou corpos, surgem como necessária. manifestação de Deus (Ib.,
11, 14). De modo que também a análise da mente a que Espinosa procede no
segundo livro da Ética chega à mesma conclusão da consideração metafísica de
Deus que o filósofo estabelecera na primeira parte. No termo da segunda parte,
depois de ter afirmado a identidade da vontade com o intelecto do homem e de
ter negado que uma e outra sejam alguma coisa fora das volições e

ideias particulares, Espinosa expõe as vantagens que resultam para o homem das
teses que afirma haver demonstrado. A primeira vantagem fundamental é a de que
o homem, convencendo-se de que age apenas conforme o querer de Deus,
tranquiliza

o seu espírito no reconhecimento da vontade a que está sujeito e abandona a


pretensão de que Deus o recompense pela sua virtude. Além disso, o homem
começa a fazer face às vicissitudes da fortuna, por216

quanto se convence de que todas as coisas, mesmo as aparentemente mutáveis,


derivam da essência divina pela mesma necessidade com que da essência do
triângulo resulta serem os seus ângulos iguais a dois rectos (Op., 1, p. 116).
Começa assim a tornar-se

evidente a atitude de que a obra de Espinosa nasce

e que ela tende a sugerir e a consolidar no homem: uma atitude de tranquila


aceitação do curso das coisas, considerado, mesmo nos mínimos pormenores,
inevitável e necessário.

§ 432. ESPINOSA: ESCRAVIDÃO E LIBERDADE DO HOMEM

Esta atitude inspira o estudo das emoções nas últimas partes da Ética.
Iniciando este estudo, declara Espinosa que ele considera as emoções não como
coisas que estão fora da natureza, mas como coisas naturais e sujeitas às leis
comuns da natureza. Espinosa está convencido de que a natureza

é sempre a mesma, que as suas leis valem em todos os campos, inclusivamente


para o homem, que portanto nada é possível entender do homem e das suas
emoções senão à base destas leis. É necessário tratar de modo geométrico as
acções e os desejos dos homens, "tal qual como se se tratasse de linhas, de
planos e de corpos".

Sobre esta base construiu Espinosa a sua geot@7,etr,;(1 das emoções que é ao
mesmo tempo a análise da escravidão e da liberdade humana, dado que considera
o poder das emoções sobre o homem

217

e o poder do homem sobre as emoções. Tal análise baseia-se num reduzido número
de princípios, que não são propriamente do homem mas pertencem a todos os
entes em geral. O princípio fundamental é o de que cada coisa tende a manter o
seu próprio ser e que este esforço (conatus) de autoconservação constitui a
essência actual da coisa mesma (Et., M,
6-8). Quando este esforço se refere só à mente chama-se vontade; quando se
refere ao mesmo tempo à mente e ao corpo chama-se apetite. O apetite é a

própria essência, do homem, de cuja natureza derivam necessariamente todas as


acções que sorvem para a sua conservação e que por isso mesmo são pelo apetite
necessariamente determinadas. Quando o apetite é consciente de si denomina-se
cupidel, (cupiditas). Daí decorre, segundo Espinosa, que o

homem não tem em vista, quer, deseja ou cobiça uma coisa porque a tem em
vista, a quer, a deseja

e a cobiça (Ib., 111, 9, esc.).

Deste instinto do homem, instinto que não tem outro fim senão a conservação do
próprio ser, derivam as emoções fundamentais. Por emoção entende-se, segundo
Espinosa, a passividade da mente que consiste na inadequação e confusão das
ideias. A mente sofre quando possui ideias inadequadas e

confusas; age quando possui ideias adequadas. A ideia adequada é a ideia que
se sabe claramente ser derivada de Deus e de que se conhecem por isso os
feitos que derivam claramente dela enquanto é um modo da essência divina. Quem
tem uma ideia adequada realiza por isso necessariamente alguma coisa (lb.,
111, 1). Posto isto, as emoções

218

fundamentais são a alegria e a tristeza. A alegria é a emoção conexa à


conservação e ao aperfeiçoamento do próprio ser, a tristeza é a emoção conexa
a uma diminuição dele. Quando alegria e tristeza são acompanhadas pela ideia
de uma causa externa que a produz, dão origem ao amor e ao ódio, emoções pelas
quais o homem procura o que lhe proporciona alegria e foge àquilo que lhe
proporciona tristeza (lb., 111, 13, esc.). Destas emoções fundamentais
procedem todas as outras, as quais, de facto, Espinosa deduz geometricamente,
sem estabelecer entre elas nenhuma distinção moral mas considerando-as todas,
quer sejam chamadas boas ou más, como manifestações naturais e necessárias do
homem, portanto do próprio Deus que no homem é e age. Sobre esta noção das
emoções se funda a sua análise da escravidão humana.

Espinosa corrobora a este propósito a relatividade e a insignificância das


valorizações humanas. A natureza não tem nenhum fim, mas age apenas por uma
necessidade intrínseca. Os conceitos de perfeição ou de imperfeição não têm
significado para ela: são conceitos humanos, que o homem constrói comparando
entre si coisas do mesmo género e da mesma espécie. Isto aplica-se igualmente
aos conceitos do bem e do mal. Uma mesma coisa pode ser boa ou má ou mesmo
indiferente: a música, por exemplo, é boa para o melancólico, má para quem
está de luto, nem boa nem má para o surdo. Sendo assim, com as palavras
perfeição e imperfeição não se pode indicar outra coisa senão a realidade e a
irrealidade. Pode dizer-se que

219

uma coisa adquire unia perfeição maior apenas no

sentido de que aumenta o poder de agir que está implícito na sua essência.
Para o homem, por exemplo, a perfeição constituirá no passar do conhecimento
inadequado e confuso, pelo qual é passivo, ao conhecimento adequado, pelo qual
se torna activo e liberto.

Este ponto de vista faz do mal e do bem valores que são tais unicamente em
relação com a

natureza própria do homem, isto é, do instinto ou

desejo fundamental que o constitui. E uma vez que este instinto visa a
autoconservação, o bem será aquilo que serve a tal conservação, o mal aquilo
que a perjudica (Ib., IV, 8). Deste modo o bem é identificado ao útil, e a
busca do útil torna-se a forma fundamental da razão. "A razão, diz Espinosa"
(Ib., IV, 18, esc.), nada exige contra a natureza; mas ela mesma exige que
cada um se ame

a si próprio e procure o bem próprio, que verdadeiramente seja tal, e deseje


tudo o que verdadeiramente conduz o homem a uma maior perfeição; e, de um modo
absoluto, que cada um se esforce, no que lhe, diz respeito, por conservar o
seu próprio sem. A virtude não é portanto algo diverso da natureza e, ainda
menos, oposto a ela. É a própria tendência natural para a autoconservação. Mas
como no homem tal tendência natural actua tanto mais eficazmente e melhor
quanto se vale da razão, que é precisamente a busca do útil, assim a virtude
humana está essencialmente ligada ao uso

da razão. Por isso Espinosa diz que o bem ou o mal para o homem são
verdadeiramente aquilo que

220

permite entender e aquilo que impede de entender Ub., IV, 26). E visto que o
mais alto objecto que o homem pode entender é Deus, o sumo bem da mente humana
é o conhecimento de Deus (lb., IV, 28).

Seguir a razão significa para o homem ser activo, quer dizer ter ideias
adequadas. A emoção, ao invés, é uma ideia confusa; e a emoção não é nunca um
absoluto poder do homem porque o

homem é uma parte da natureza e as suas emoções são determinadas também pelas
outras partes da natureza. Sucede, assim, que uma emoção não pode ser
reprimida ou destruída senão por uma

emoção contrária e mais forte e que o próprio conhecimento do bem ou do mal


não pode reprimir nenhuma emoção senão na medida em que se torna ele próprio
emoção, e emoção mais forte do que as outras (Ib., IV, 14). Espinosa analisa
as emoções com o intuito de descobrir quais delas são conformes à razão e
portanto próprias do homem livre. Existem emoções que por si mesmas são sempre
boas, como a alegria, a jovialidade; outras que são em si mesmas más, como a
tristeza, a melancolia, o ódio; outras que são boas ou más, conforme a sua
mistura, como o amor e o desejo. Consequentemente, o homem que vive de acordo
com a razão não responde ao ódio com o ódio, ao desprezo com o desprezo, etc.,
mas opõe o amor

e a generosidade a essas emoções más. "Quem sabe bem, diz Espinosa (Ib., IV,
50, esc.) que tudo deriva da necessidade da divina natureza e acontece segundo
as leis e as regras eternas da natureza,

221

decerto nunca encontrará nada que seja merecedor de ódio, de riso ou de


desprezo, nem terá compaixão de ninguém; mas, no que lhe compete, a

virtude humana esforçar-se-á por agir bem, como se, diz, e por ser alegre. É
de acrescentar que quem facilmente se deixa possuir pela compaixão e se

comove com a miséria e as lágrimas de outros, muita vezes faz coisas de que se
arrepende; seja porque, pelo impulso da emoção, não fazemos nada que saibamos
verdadeiramente ser bom, seja porque somos enganados facilmente pelas falsas
lágrimas. E aqui eu falo expressamente do homem que vivo tendo por guia a
razão. Visto que não é induzido nem pela razão, nem pela compaixão a dar ajuda
aos outros, é justamente considerado desumano por parecer dissemelhante do
homem." Neste passo tão característico de Espinosa patenteia-se o modo como
ele entende substituir a emoção pela razão como guia do homem e como entende a
razão como a recta consideração do útil religando-a assim ao impulso da
autoconservação e

dando-lhe por isso o fundamento e a corporeidade da emoção. Por conseguinte,


condena aquelas emoções que não se deixam transformar pela razão: a

compaixão (como se viu) e depois a humildade, o arrependimento, a soberba e a


abjecção, e, enfim, o temor e, em particular, o temor da morte. A este
respeito afirma Espinosa que o homem livre em coisa alguma pensa menos do que
na morte, e a sua sapiência é uma meditação não da morte, mas

da vida (lb., IV, 67). O pensamento da morte 'surge a Espinosa como temor da
morte e portanto

222

como estranho a quem deseja "agir, viver, conservar o seu próprio ser tendo
por base a busca do seu próprio bem". Também na consideração da escravidão
humana, Espinosa é optimista. O mal é uma ideia inadequada porque é a própria
tristeza que corresponde à passividade e à imperfeição do homem. Donde se
segue que a mente humana não teria noção do mal, se tivesse apenas ideias
adequadas (Ib., IV, 64, cor.) e que não haveria distinção entre bem e mal se o
homem nascesse livre e permanecesse livre, uma vez que quem é livre tem apenas
ideias adequadas. Espinosa nota logo que a hipótese não é verdadeira, mas o
tê-la formulado revela a sua convicção íntima de que o

estado de escravidão do homem, que é ao mesmo

tempo o de queda ou de decadência no erro, é provisório e destinado a ser


vencido e superado. Esta vitória, com efeito, é celebrada na quinta parte da
Ética.

O homem que domina as emoções, o homem livre, é aquele que, tendo compreendido
a natureza das emoções, é capaz de agir independentemente delas. A emoção faz
agir o homem com mira na alegria e na tristeza, mas a alegria e a

tristeza servem na realidade para o conservar e revigorar no seu ser e dar-lhe


uma maior realidade e perfeição. Ora o homem pode fazer isto também
independentemente da alegria e da tristeza, agindo com vista ao útil. Nesse
caso abrir-se-á diante dele a vida da razão e da liberdade. O homem
compreenderá as suas próprias emoções e na medida em que as compreender
deixará de ser escravo delas. Uma

223

emoção é, de facto, uma ideia inadequada e confusa que a mente pode levar à
adequação e à distinção subtraindo-se assim à passividade que ela implica
(Ib., V, 3). Mas compreender adequadamente uma razão significa compreender a
sua necessidade, pela qual é natural e inevitável. O reconhecimento desta
necessidade é a primeira condição do domínio humano sobre as emoções. Chora-se
menos

por um bem perdido quando se sabe que a perda é inevitável; não se


lamenta um menino que não sabe falar nem raciocinar porque se sabe que essa

condição é inevitável e natural. E assim todas as emoções diminuem o seu poder


sobre o homem à medida que o homem descobre a natural necessidade delas. E
visto ser a razão, com o seu terceiro género de conhecimento, que faz
descobrir tal necessidade, deve o homem fiar-se na razão para alcançar a
liberdade das emoções. O terceiro género de conhecimento leva a descobrir de
facto cada coisa particular como manifestação necessária da essência divina.
Mas a contemplação desta necessidade é a contemplação do próprio Deus. A
liberdade humana, na medida em que assenta no conhecimento da necessidade
natural das emoções, e em geral de tudo o que existe, funda-se no conhecimento
de Deus. Espinosa chama amor intelectual de Deus à alegria que nasce do
conhecimento daquela ordem necessária que é a própria substância de Deus (Ib.,
V, 32). O amor intelectual de Deus é eterno e é parte do amor infinito com que
Deus se ama a si mesmo (Ib., V, 36). Este amor é a própria beatitude humana e
o ponto mas alto que a liberdade humana

224

pode alcançar. Este conceito revela claramente o último pensamento de


Espinosa, pelo que respeita a Deus e ao conhecimento adequado do homem
(conhecimento do terceiro género). Deus é a ordem geométrica necessária do
universo; o conhecimento de cada coisa particular como elemento ou
manifestação necessária desta ordem é por conseguinte contemplação de Deus e
amor intelectual dele.
O ideal geométrico de Espinosa assume a terminologia do misticismo
neoplatónico mais nada perde do seu rigor metafísico. Falando de "ciência
intuitiva", Espinosa não quis indicar outra coisa senão a visão matemática que
descobre imediatamente os

liames necessários entre as duas proposições. Tal como o misticismo de


Giordano Bruno, era na realidade um naturalismo, visto que o alvo dele não era
a Unidade transcendente mas o princípio imanente da natureza, assim o
misticismo de Espinosa é, na realidade, uma metafísica geometrizante, para a
qual o fim da união mística não é outro do que a

estrutura matemática do universo que se reconheceu como sendo a substância


última das coisas.

§ 433. ESPINOSA: O DIREITO NATURAL

COMO NECESSIDADE

Quando Espinosa delineou na Ética a figura do homem livre, enunciou, entre


outros traços seus, a sua tendência para viver com outros homens no âmbito do
Estado. E, de facto, segundo Espinosa, os homens têm temperamentos diversos e
contrastantes enquanto são agitados por emoções. Mas

225

quando elegem a razão para guia, visam necessariamente ao que é essencial à


natureza humana e é por conseguinte idêntico em todos. Daí que quanto mais
cada homem procura a sua conveniên. cia, tanto mais os homens são semelhantes
entre si e podem ser úteis uns aos outros (Ét., IV, 35).
O homem livre reconhece assim a utilidade da vida associada e livremente
(e não já por temor) se conforma com as suas leis (Ib., IV, 73). Pode-se
aperceber aqui o fundamento que Espinosa pretende dar à vida associada dos
homens. Este fundamento não é o dever ser mas o ser: não são virtudes ou
qualidades excelentes e fantásticas, de que os homens deveriam ser dotados e
não são, mas sim as própria paixões e virtudes humanas tal como na realidade
se encontram. Iniciando o seu Tratado político, Espinosa condena os filósofos
que exaltaram no homem "uma. natureza que não existe de facto" e cobriram de
opróbio a natureza que realmente existe; e declara, pela sua parte, querer
considerar a natureza humana tal como ela é e as emoções humanas não já como
vícios mas como propriedades que dependem da natureza do homem assim como da
natureza do ar dependem o calor, o frio, a tempestade, etc., "fenómenos, nota
Espinosa (Tract. pol., 1, 5), que, embora nocivos, são todavia necessários e
têm causas determinadas, através das quais nós procuramos entender a natureza
deles". Este realismo político aproxima Espinosa de Hobbes, como o aproxima
dele a intenção expressa de considerar com o método geométrico as relações
humanas que dão origem às comunidades

226

políticas. Mas Espinosa afasta-se de Hobbes e do jusnaturalismo moderno ao


reter as normas de direito natural fundadas não já na razão humana, ruas na
ordem necessária do mundo. Com efeito, segundo Espinosa, o direito natural
emana do poder de Deus; e assim ele retoma a noção de direito natural que era
própria dos estóicos, do direito romano e da filosofia medieval.

As coisas naturais não têm em si próprias, na

sua essência, o princípio da sua existência e da sua conservação. Este


princípio é o próprio Deus. Donde se segue que a potência pela qual as coisas
naturais existem e operam é a própria potência eterna de Deus. Ora Deus tem
direito a tudo e o seu direito não é outro senão o seu próprio poder enquanto
é absolutamente livre; por conseguinte, todas as coisas naturais têm por
natureza tanto direito quanto têm o poder de existir e de actuar, e isto
porque a

potência de uma coisa natural qualquer não é mais do que a potência de Deus
que é livre em sentido absoluto. Espinosa entende então por direito natural
"as próprias leis ou regras naturais segundo as quais todas as coisas ocorrem,
isto é, o próprio poder da natureza. O direito natural de toda a natureza e,
consequentemente, de cada indivíduo estende-se tanto quanto o seu poder. Tudo
o que um homem faz segundo as leis da sua natureza fá-lo por sumo

direito de natureza e tem sobre a natureza tanto direito quanto o seu poder
vale." (Tract, pol., 24). Estas expressões do Tratado político são apenas
verbalmente diversas das que Espinosa empregara no Tratado teológico-político
para definir o direito

227

natural. "Por direito e instituição de natureza, havia ele dito (Tractatus


teol--pol., 16), não entendo outra coisa do que as regras da natureza de cada
indivíduo, segundo as quais o concebemos naturalmente determinado a existir o
a actuar de um certo modo". E acrescentava que "a natureza absolutamente
considerada tem o sumo direito sobre tudo o que pode, isto é, o direito de
natureza estende-se até onde se estende a sua potência". A potência da
natureza identifica-se de facto com a potência de Deus. No pensamento de
Espinosa, o direito de natureza não é portanto senão a meessidade da acção
divina. Assim substitui Espinosa o conceito da racionalidade do direito
natural, sustentado pelo jusnaturalismo, pelo conceito da necessidade de tal
direito, ligando assim o direito natural à ordem necessária do todo, ou seja,
à substância divina.

Ora se a natureza humana fosse tal que os homens vivessem apenas segundo os
preceitos da razão e não procurassem mais nada, o direito natural próprio do
género humano seria determinado só pelo poder da razão. Mas os homens são
guiados mais pela cega cupidez do que pela razão e portanto o poder natural
dos homens, quer dizer o

direito, não deve ser definido pela razão mas pelo instinto, pelo qual os
homens são determinados a agir e pela qual tendem à sua própria conservação.
Certamente, este instinto não se origina na razão e, por conseguinte, é mais
paixão do que acção. Mas do ponto de vista do direito natural, isto é, do
poder universal da natureza, não é possível reconhecer nenhuma diferença entre
as tendências que

228

são geradas pela razão e aquelas que têm outras causas, pois que umas e outras
são efeitos da natureza e manifestam a força natural pela qual o

homem tende a conservar o seu próprio ser. Uma vez mais Espinosa declara a
este propósito que "o homem, quer seja sapiente ou ignorante, é parte da
natureza e tudo aquilo por que é determinado a agir deve ser referido ao poder
da natureza enquanto é definida e limitada pela natureza deste ou daquele
homem particular. Portanto, tudo o que o homem faz, quer guiado pela razão,
quer guiado pela cupidez, é conforme às leis e às regras da natureza, quer
dizer ao direito natural (Tract. pol., 2, 5; Tract. teol.-pol., 16).

O direito natural, sendo expressão da necessidade da natureza, supõe que o


homem não é livre, ou, o que é o mesmo, que é livre apenas no sentido de ~r
existir e agir segundo as leis da sua própria natureza. O direito natural sob
o qual os
homens nawm e vivem a maior parte do tempo não proíbo senão aquilo que o homem
não descia e

não pode fazer; não elimina, portanto, as contendas, os ôdios, os enganos e em


geral tudo aquilo a que o instinto impele o homem. Daqui deriva que cada homem
é por direito outro enquanto está sob o

poder de outros e que está no seu direito enquanto pode repelir toda a
violência, punir segundo o seu critério o dano que lhe fizeram e, numa
palavra, viver a seu talante. Mas esta condição determina aquela que já Hobbes
denominara guerra de todos contra todos. O homem não pode defender-se sózinho
e o seu direito natural sobre tudo é tornado

229

nulo e fictício pela hostilidade dos outros. Se. além disso, se considera que
os homens nem sequer podem prover às suas necessidades sem uma ajuda
recíproca, vê-se logo que o direito de natureza do género humano implica que
os homens tenham direitos comuns e que procurem viver segundo um

acordo comum. E como quanto mais os indivíduos se associam tanto mais cresce o
seu poder e portanto o direito deles, assim a sua associação determina um
direito mais forte que pertence àquilo que se chama governo (Tract. Pol., 2,
17). O surgir de um direito comum, devido à instituição de um governo, isto é,
de uma multidão organizada, faz nascer as valorizações morais que fora dele
não têm sentido. Tal como Hobbes, afirma Espinosa que tais valorizações apenas
se justificam no âmbito de uma comunidade organizada, a qual condena e pune
como sendo pecado qualquer transgressão às normas que estabeleceu. A justiça e
a injustiça nascem

assim por obra do direito comum. A origem destas valorizações nada tem a ver
com a razão. Todavia, uma vez que um governo deve sempre fundar-se na

razão e que, por outro lado, a razão nos ensina a desejar uma vida pacífica e
honesta, o que só pode efectuar-se no âmbito do Estado, assim se pode chamar
pecado aquilo que vai contra os ditames da razão (Ib., 2, 21). Mas a
coincidência entre a racionalidade e as normas de direito comum é parcial e
acidental, segundo Espinosa. As normas do direito comum têm a mesma validez
que as normas de direito natural: só são válidas enquanto necessárias, nada
mais. De facto, o direito do

230

governo não é mais, para Espinosa, do que o próprio direito de natureza,


determinado no entanto não pelo poder do particular mas do da multidão guiada
por uma única mente. Como o indivíduo no estado natural, assim o Estado tem
tanto direito quanto o poder que tiver. O direito do Estado limita o poder do
indivíduo mas, propriamente falando, não anula o seu direito natural,
porquanto tanto no

estado de natureza como na sociedade o homem age segundo as leis da sua


natureza e visa à sua própria conveniência de modo que, em ambas as condições,
só pela esperança ou pelo medo é movido * agir ou a não agir. A diferença
fundamental entre * estado de natureza e o estado civil é que neste último
todos temem as mesmas coisas e para todos há uma única garantia de segurança e
um único modo de viver: porém, isto não tira ao indivíduo a faculdade do juízo
(Ib., 3, 3). As vantagens do estado civil são tais, porém, que a 'razão
aconselha cada um a submeter-se às suas leis; e mesmo aquilo que tais leis
podem ter de contrário à razão é compensado por aquelas vantagens. Intervém
neste caso a lei da razão que prescreve a escolha do menor de dois males (Ib.,
3, 6).

Espinosa não afirma no entanto, como Hobbes, que o direito do Estado seja
absoluto, quer dizer ilimitado. Como todas as outras coisas naturais, o Estado
não pode existir e conservar-se se não se conformar às leis da própria
natureza. O limite da sua acção é portanto determinado por aquelas leis sem as
quais ele cessa de ser "estado".
O Estado, diz Espinosa, peca quando faz ou tolera

231

coisas que podem causar a sua ruina; peca no sentido em que os filósofos e os
médicos dizem que peca a natureza, isto é, no sentido de que age contra a
ditame da razão. Por outros termos, o Estado está submetido a leis no mesmo
sentido em que o

homem está submetido no estado natural: no sentido de que é obrigado a não se


destruir a si próprio (lb., 4, 5). Tanto para o Estado como para o

indivíduo, portanto, a melhor regra será a que se fundar sobre os preceitos da


razão que são os únicos que garantem a sua conservação. E uma vez que o fim do
Estado é a paz e a segurança da vida, assim a lei fundamental que limita a
acção do Estado deriva desta sua intrínseca finalidade, sem a qual ele não
alcança o fim para que nasceu, isto é, a sua própria natureza.

Por outro lado, a vida do Estado é de qualquer modo garantida pela própria
natureza do homem. Os homens unem-se para formar uma comunidade política, na
qual constituam como que uma alma só, não por um impulso racional, mas por
alguma paixão, como a esperança e o temor. E visto que todos têm medo do
isolamento, já que ninguém tem forças bastantes para se defender e obter as
coisas necessárias à vida, daí se segue que todos desejam naturalmente o
estado social e que não é possível que os homens o destruam alguma vez por
completo. Nem mesmo das desordens intestinas pode jamais nascer a completa
dissolução do Estado, como sucede com as outras associações, mas tão-só uma
mudança de forma (Ib., 6, 1).

232

§ 434. ESPINOSA: A RELIGIÃO COMO OBEDIÊNCIA

É sobre o reconhecimento dos limites do Estado que se funda a defesa que


Espinosa faz da liberdade filosófica e e religiosa do homem. O Tratado
teológico-político visa explicitamente a subtrair o homem à escravidão da
superstição e a restituí-lo à sua liberdade de pensamento. Espinosa analisa
criticamente nessa obra todo o conteúdo da Bíblia a fim de demonstrar que o
que ela ensina concerne à vida prática e ao exercício da virtude, mas de modo
algum à verdade. A revelação de Deus aos homens teve a finalidade de
estabelecer as condições daquela obediência a Deus em que consiste a

fé. Espinosa realiza nesta análise uma definição da fé que a coloca


completamente para lá do verdadeiro e do falso, porque a reduz a um acto
prático de obediência. "A fé, diz Espinosa (Tract. teol.-pol, 14), consiste em
ter, em relação a Deus, aqueles sentimentos sem os quais se perde a obediência
a Deus e que decorrem necessariamente de tal obediência". A fé não é,
portanto, senão a totalidade dos sentimentos ou das atitudes que condicionam a
obediência à divindade. "Quem não vê, diz Espinosa (lb., 14) que o velho e o
novo Testamento não são mais que uma disciplina da obediência e que não tendem
senão a que os homens sinceramente obedeçam? Moisés não procurou convencer os
Israelitas por meio da razão, mas procurou obrigá-41os com a aliança, os
juramentos e os benefícios; e para que observassem a lei, ameaçou-os com

233

as penas e estimulou-os com os prémios: meios que nada têm a ver com a ciência
e apenas visam à obediência. A doutrina evangélica não contém nada mais do que
a simples fé, ou seja, o crer em

Deus, o honrá-lo ou, o que é o mesmo, obedecer-lhe". O único preceito que a


Escritura ensina é o amor pelo próximo, de modo que à base da Escritura
ninguém está obrigado a crer senão no que é absolutamente necessário para
obttemperar a este preceito.

A redução da fé à obediência evita, segundo Espinosa, todo o perigo de


dissídio religioso porque reduz a fé religiosa a um reduzido número de pontos
basilares que exprimem precisamente as condições necessárias e suficientes da
obediência. Estes pontos constituem os dogmas da fé universal e os princípios
fundamentais de toda a Sagrada Escritura. São os seguintes:

LO Existe um Deus, isto é, um ente supremo, sumamente justo e misericordioso,


modelo de vida verdadeira. Quem não sabe ou não crê que existe Deus não pode
obedecer-lhe nem reconhecê-lo como juiz.

2.1'-Deus é único. Ninguém pode duvidar de que também esta é uma condição
absoluta da devoção, da admiração e do amor por Deus, visto que estas coisas
nascem apenas da convicção da excelência de um ser acima de todos os outros.

3.o - Deus está presente em toda a parte e tudo conhece. Se se julgasse que
algumas coisas lhe esca234

pam ou se se ignorasse que ele vê tudo, poder-se-ia duvidar da sua justiça ou


ignorá-la.

4.'-Deus tem o supremo direito e domínio sobre todas as coisas e faz tudo, não
por constrição, mas por seu absoluto beneplácito e por graça singular. Todos
de facto têm o dever de lhe obedecer, mas ele não tem qualquer obrigação seja
para com

quem for.

5'.-0 culto de Deus e a obediência para com

ele consistem apenas na justiça o na caridade, ou seja, no amor do próximo.

6.'-Salvam-se apenas os que, vivendo deste modo, obedeçam a Deus; os outros


que vivem sob o império dos prazeres perdem-se. Se os homens não crêem nisto
firmemente, não têm nenhuma razão para crer em Deus em vez de se entregarem ao
prazer.

7.*-Finalmente, Deus perdoa os pecados aos

que se arrependem. Não há ninguém que não peque; se portanto não houvesse a fé
na remissão dos pecados, todos desesperariam da sua salvação e

não teriam razão para crer na misericórdia de Deus. Pelo contrário, aquele que
crê firmemente que os

pecados dos homens são remidos por Deus arde de amor por ele e por isso
verdadeiramente conhece Cristo segundo o espírito, e Cristo é nele.

A redução da fé à obediência e do conteúdo da fé às condições indispensáveis


da obediência torna impossível o conflito entre fé e razão. Entre a fé

ou a teologia, de um lado, e a filosofia, do outro, não há, segundo Espinosa,


nenhuma relação e

nenhuma afinidade. O escopo da filosofia é a ver235

dade, o escopo da fé a obediência. O fundamento da filosofia são as noções


comuns que devem ser procuradas apenas na natureza. O fundamento da fé são as
histórias e a língua que devem ser procuradas apenas na revelação e na Sagrada
Escritura. A fé permite assim a cada um a máxima liberdade de filosofar, de
modo que cada um pode, sem culpa, pensar o que quiser acerca de qualquer
coisa. Heréticos cismáticos são os que ensinam opiniões destinadas a criar
obstinações, ódios, iras e contrastes; fiéis sãos os que aconselham, com todas
as forças da sua razão e com todas as suas faculdades, a justiça e a verdade.
A religião todavia não é para Espinosa um estado natural. Nenhum homem sabe
por natureza ser obrigado a obedecer a Deus e nem mesmo a religião pode
conduzi-lo a isso, mas só a revelação confirmada pelos sinais. Anteriormente à
revelação ninguém é obrigado a obedecer ao direito divino, uma vez que não
pode deixar de ignorar o que não existe ainda. O estado natural] não se
confunde com o estado de religião, mas deve ser concebido como sendo
desprovido de religião e de leis, por conseguinte sem pecado e sem injustiça
(Ib., 16).

§ 435. ESPINOSA: A LIBERDADE DA INVESTIGAÇÃO

A análise que Espinosa faz da organização política e da religião, tem como


único fim defender e

garantir ao homem a liberdade da investigação científica. O Estado não pode


privar os homens de

236

todos os seus direitos, até ao ponto de eles nada poderem fazer sem a vontade
dos que governam. Em qualquer comunidade política, o homem conserva uma parte
dos seus direitos; e o direito mais cioso o menos transferível é a faculdade
de pensar o de julgar livremente. Sobre esta faculdade não é possível exercer
qualquer forma de coacção. Os governos podem fazer calar a língua dos homens,
mas não o seu pensamento. É preciso por isso incluir entre os governos
violentos o que pretende exercer uma coacção sobre o pensamento o prescrever a
cada um o que deve ter por verdadeiro e por falso

e as opiniões por que deve ser movido na sua devoção a Deus. "0 fim do Estado,
diz Espinosa (Tract.-teoUpol., 20) não é o de transformar os homens, seres
racionais, em animais ou em máquinas, mas, pelo contrário, o de garantir que a
mente e o corpo deles desempenhem com segurança as suas funções, que se sirvam
da livre razão e não se combatam com ódio, ira ou engano nem se defrontem com
espírito de inquidade". O fim do Estado é, de facto, a liberdade,

E assim este filósofo da necessidade, que conceber um Deus, a sua acção


criadora e o seu governo no mundo, como uma viva geometria infalível, não teve
outro escopo na sua obra especulativa senão o de garantir ao homem a liberdade
das emoções, a liberdade política e a liberdade religiosa. Como a procura
desta liberdade pode inserir-se e justificar-se num mundo geometricamente
determinado, onde tudo o que existe deve existir em virtude de uma necessidade
que não conheça excepções, eis

237

o grande problema da filosofia de Espínosa. Como num mundo espinosano reduzido


ao denominador comum da necessidade geométrica (que é o próprio Deus), poderia
nascer, viver, pensar Espinosa, é decerto o maior paradoxo do espinosismo.
Decerto que a liberdade do homem frente ao mundo consiste, para Espinosa,
essencialmente, no reconhecimento da necessidade. Tal é, indubitavelmente, o
significado do amor intellectualis Dei. Mas o reconhecimento da necessidade
não é ele mesmo, quando existe, geometricamente determinado? O ideal da razão
que despontara no mundo moderno com Grócio o Descartes encontrou em Espinosa
uma das suas primeiras determinações típicas: a razão como necessidade.
Encontrará em Leibniz a outra: a razão como liberdade.

NOTA BIBLIOGRÁFICA

§ 426- 4s mais completas edições das obras de Espínosa são: B. de S. Opera


quotquot reperta sunt, ao cuidado de J. van Vlaben e J. P. N. Land, 1." ed.,
Hagae, 1882-83; 2.1 ed. -em 3 voL, 1895; 3., ed. em
4 vol., 1914; e a ed. ao cuidado de Gebharclt, 4 vol., Heldelberga, 1923.

Trad. italianas: Breve trattato, de G. Semerari, Florença, 1933; de O. Bianca,


Turim, 1942; Ethica, d@" E. Troilo, Milão, 1914; de S. Giametta, Tuxim, 1959;
de G. Durante, Florença, 1960; Tractatus theologicus-politicus de S.
Casellato, Veneza, s. a.; Tractatus politicus, de A. Meozi, Lanciano, 1918, de
D. Formaggio, Turim,
1950; de A. Droetto, Turim, 1958; Epigtolario, de A. Droetto Turim, 1951.

238

Bibliografia: W. MEIJER, Spinozana, Efeldelberga,


1922.

L. BRUNSCi-IVIGG, S., Paris, 1894, 19062; F. POLLOCK, S., Hís Life and
Philosophy, Londres> 1899, 19122; DELBOs, Le spinozisme, Paxis, 1906,
CASSIRER, Erkenntnissproblem, 11, p. 74 segs.; A. GUZZQ, Il pewiero di S.,
Florença, 1924; "EUD£NTIIAL-GEBHARDT, S, SCin Leben und seine Lehre,
Heidelberga, 1927; DUNIN-BoRi@.owsKI, S., 4 vol., Müwteri, W., 1933-36.

§ 428. A polémica a que se alude é a que f oí travada entre J. E.


ERDMANN; Versuch ~er Wisse-nsch, Darstellung der Gesch. der neuerr Phil,
Leipzig,
1836 e Grundiss der Geschíchte der Phil, 1834-53, e K. FiscHER, Gesch. der
ncuern PU., 11, Sp.s. Leben, Werke und Lehre, 5., ed, Heidelberga, 1909;
solgre a

obra: DELBOS, Le Vroblème moral dans Ia phil. de S., Paris, 1893; EUSOLT, Die
Grundzüge der Erkenntnistheorie und Metaphysie, s. s., Berlim, 1875; SPAV£NTA,
Seritti filosofici, Nápoles, 1900.

As interpretações mais recentes: L. S., Londres, 1929; H. A.


WOLFSON, The ph@losophy of S. Unfolding the Datent Processes of M8 Reasoning,
Cambridge, Maw, 1934; S. HAMPRSIRE, S., Elarmondsworth, 1951; C. 11. R,
PARKINSON, W s,, Theory of KnowIedge, Oxford, 1954; H. F. HALLPT, B. de S.,
Londres, 1957.

239

ÍNDICE
VII- AS ORIGENS DA CIÊNCIA ... ... ... 1

§ 388. L~ardo ... ... ... ... ... ... 7 § 389. Copérrxioo.
Xepler ... ... ... ... 11 §390. Galileu: Vida e
Obras ... ... ... 14 §391. Galileu: o método da ciência
... 17 §392. Racori. Vida; e Escritos ... ... 24

393. Baoon:'c@ conceito da ciência, e da

teor-ia dos ídolos ... ... ... ... 28


394. Bacon: a indução e a twaia das

formes ... ... ... ... ... ... 35 Nota


bibliográfica, ... ... ... ... 44

QUINTA PARTE

FILOSOFIA MODERNA DOS SÉCULOS XVII E XVIII

1-DESCARTES ... ... ... ... ... ... 49

§395. Vida e Escritos ... ... ... ... 49 §396. A unidade


da razão ... ... ... 53 §397. - O M46-
todo ... ... ... ... ... 57 §398. @ O
Cogito .. . ... ... ... ... ... 62 §399.
Deus ... ... ... ... ... ... ... 69 §400. -0
Mundo ... ... ... ... ... ... 77 §401. O Homem .. .
... ... ... - 82

Nota bibliogTã£ica ... ... ... ... 93

241

11 - HOBBES

97

§ 402.

... ... ... ... ... ...

Vida e Obras ... ... ...

97
§ 403.

A tarefa da filosofia ... ... , ,

93

§ 404.

A natureza da razão ... ...

101

§ 405.

A Ciência ... ... ... ...

106

§ 406.

O corno ... ... ... ...

109

§ 407.

Os corpos naturais ...

113

§ 408

O Homem

115

§ 409.

O estado de guerra e o direlto

natural

119

§ 410.

... ... ... ...

O Estado ... ... ... ... ... ...

125

Nota bibliográfica ... ...

129
A LUTA PELA RAZÃO ... ... ... ...

131 1

§ 411.

Racionalismo e carteslanismo, ...

131

§ 412.

A escolástica c&rtesiana: o ocasionalismo ... ...

135

§ 413.

Malebranche: Razão e Fé ... ...

138

§ 414.

Malebranche: a visão em Deus ...

141

§ 415.

Malebranche: as verdades eternas

146

§ 416.

Arnauld e a lógica de Port-Royal

§ 417.

Gassendi ... ... ... ... ... ...

155

§ 418.

O Ilhertinismo ... ... ... ... ...

160

§ 419.

COnIPOsto e inipr,,,o. Para a EDITORIAL pRES.ENC4

na Tipografia N....
Porto

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