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TEMPO BRASILEIRO
142
JULHO - SETEMBRO DE 2000

Diretor: EDUARDO PORTELLA O LUGAR DO LIVRO HOJE

Conselho Consultivo Os textos aqui publicados são


BARBARA FREITAG comunicações apresentadas no
Ciências Sociais em Tempo Brasileiro CARLOS CHAGAS FILHO
EMMANUEL CARNEIRO LEÃO
Colóquio Internacional "O lugar
JORGE AMADO do livro: entre a nação e o mun-
• Crise de Legitimação no Capitalismo JOSÉ PAULO MOREIRA DA FONSECA do" , realizado no Auditório Ray-
Tardio l Jürgen Habermas NÉLIDA PINON mundo Magalhães Júnior, da
RAFAEL GUTIÈRREZ GIRARDOT
ROBERTO CARDOSO DE OLIVEIRA Academia Brasileira de Letras, de
• Estado e Capitalismo l Winfried Vogt, SÉRGIO PAULO ROUANET 28.08 a 31.08 de 2000.
Jürgen Frank e Clauss Offe Foi uma iniciativa conjunta da
Comissão Editorial UNESCO, da Fundação Biblioteca
• Política Econômica regional l Furst, CARLOS SEPÚLVEDA
Klemer, Zimmermann EDUARDO COUTINHO Nacional e do Colégio do Brasil.
FLÁVIO BENO SIEBENEICHLER Contou ainda com a cooperação da
• Problemas Estruturais do Estado GUSTAVO BAYER ABL e da Folha Dirigida.
MÁRCIO TAVARES D'AMARAL
Capitalista l Clauss Offe MUNTZ SODRÉ
O Colóquio programado pelo
PEDRO LYRA Comitê " Caminhos do Pensamen-
• Regime Econômico e Política Econômica RONALDES DE MELO E SOUZA to Hoje", da UNESCO, quis pen-
l Alfred Muller Armack A editoração desta Revista, desde o sar o livro na encruzilhada dos
número 80, está entregue ao Colégio do nossos dias, completamente divi-
• Mundialização: Ásia e América l Revista Brasil (ORDECC). dido entre o protagonismo amea-
Tempo Brasileiro, 125 Revista Trimestral de Cultura çado, a emergência de novos
• Relações Brasil-China: Impasses e Os artigos assinados são da inteira atores culturais, e o fortalecimento'
Perspectivas /Revista Tempo Brasileiro, 137 responsabilidade de seus Autores. precário e possível, do seu lugar
Direitos reservados às formador.
O compromisso básico da Revista EDIÇÕES TEMPO BRASILEIRO A reunião contou com a partici-
Tempo Brasileiro continua sendo pensar. LTDA. pação de personalidades nacionais
Pensar, repensando, reconstruindo e in- FRANCO PORTELLA
e internacionais, e teve como coor-
ventando caminhos. Diretor-Presidente denador geral Eduardo Portella e
coordenadora executiva Francês
Redação e Administração Albernaz.
RuãGago Coutinho, 61
22221-ff70 - Laranjeiras
Rio de Janeiro — RJ — Brasil
Telefax: (021) 205-5949
SUMARIO
EDUARDO PORTELLA/ O livro na encruzilhada 5

EMMANUEL CARNEIRO LEÃO / O livro da linguagem. 7

RAFAEL ARGULLOL / Cumplicidades 15

GIANNIVATTTMO / Livro - Liberdade 29

GERD BORNHEIM / A propósito da história


de uma vida: o livro 37

FRANCISCO DELICH / Parábola do Livro na Cultura Global 45

MAURICE AYMARD / As metamorfoses do livro e da leitura 51

Ficha Catalográfica elaborada pela Equipe SÉRGIO PAULO ROUANET / A cultura do fim de tudo: do fim
de Pesquisa da ORDECC da cultura ao fim do livro 67

Revista Tempo Brasileiro, jul.-set. - n° 142 - 2000 - Rio de Janeiro, ZYGMUNT BAUMAN / Os livros no diálogo global das culturas.... 87
Tempo Brasileiro, ed.
Trimestral BARBARA FREITAG / Era informacional e Uso do livro 103
1. Filosofia. 2. Ciências Sociais. 3. História. 4. Literatura. GLORIA LÓPEZ MORALES / O lugar do livro entre a nação
e o mundo 117
CDD 100
300 MILAGROS DEL CORRAL / O Livro tem futuro? A cultura
909 do livro na era da globalização 125
B 869
CLAUDIUS B. WADDINGTON / O livro e a invenção da
modernidade 135
Cena Aberta

EDUARDO PORTELLA / Juan Rulfo, a palavra murmurada 157

Créditos dos autores 163

O LIVRO NA ENCRUZILHADA

EDUARDO PORTELLA

Aqui estamos, intelectuais de diferentes ecologias, para saber das


condições de vida, do estado de saúde, para medir a temperatura ou a
pressão arterial do livro neste começo de milênio. Deixamos de lado a
ilusão fundamentalista, a crença na relíquia tombada, bem como a
antevisão apocalíptica, o diagnóstico do doente terminal. O livro, obje-
to-sujeito facilmente identificável, não é nem uma coisa nem outra. É
antes qualificado agente de transformação da história. Fica difícil acre-
ditar que "a civilização do livro", sobre a qual Peter Sloterdijk lança
hoje perturbadoras suspeitas, tenha concluído a sua derradeira volta.
Mais provável é que a "galáxia de Gutenberg" continue navegando,
com a obstinação de sempre. Aprendemos, com os nossos antepassados
portugueses, que "navegar é preciso". Com ou sem a Internet. A
internetização nem nos assusta nem nos pacifica. Mas de uma coisa
devemos estar razoavelmente certos: a história do livro não pode ser, de
modo algum, a crônica de uma morte anunciada.
O livro sabe que vive em uma sociedade simultaneamente complexa
e simplificadora, cercado de perigos por todos os lados, sitiado entre a
pressão do mercado e a impressão do mundo. Isto o identifica como um
ser profundamente humano - demasiado humano. Padece das dores
próprias de sua humanidade. Dentro dele estão guardadas, disponíveis
e protegidas, as percepções mais entranháveis da peripécia humana - a
lembrança, a ocorrência, a premunição.

* Palavras de abertura do Colóquio Internacional "O Lugar do Livro: entre a nação e


o mundo", pronunciadas por Eduardo Portella, no dia 28 de agosto de 2000.

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O livro vem a ser a entidade confluente, na medida em que reúne, no
mesmo projeto, a cultura e a educação. A cultura enquanto educação
não-formal, e a educação enquanto cultura basicamente formal. Todo
desempenho pedagógico, toda política pública de educação, passa ou
deve passar pela cultura, inevitavelmente pelo livro. Foi assim nas
sociedades desinformadas e nas sucessivamente formadas. Será cada
vez mais assim nas sociedades informatizadas, destinadas a rezar pelo
"evangelho digital", segundo a expressão cunhada por Hans Magnus O LIVRO DA LINGUAGEM
Enzensberger. Daí a necessidade da leitura poliglota, a urgência de
desmontar o dispositivo excludente do monolingüismo. EMMANUEL CARNEIRO LEÃO
A leitura logo se afirma como o encontro do alfabeto em dissídio,
palavra babelizada, enlace penoso com o cotidiano de cada um de nós
- a nossa esperança militante, dentro da qual coabitam a memória e o Vivemos, nesta última semana do mês, o primeiro centenário
esquecimento. A leitura no singular, como se praticava na época da da sobrevivência de Nietzsche na vida do pensamento. No Cre-
alfabetização à força, nunca se desfez da herança autoritária que estig- púsculo dos ídolos, de 1887, Nietzsche nos lembra que, sem
matizou grande parte da nossa história comum. No pólo oposto, ou na biblioteca, os livros morrem e desaparecem e, com e na biblioteca,
contracorrente, a leitura chega a ser o mais livre regime de parceria, os livros ressurgem e se transformam em vida, numa Vontade de
insolitamente regido por contratos abertos. É quando atinge o seu Poder. "Um livro, escreve ele, não é livro. O que têm os livros,
estágio mais avançado, e faz do leitor co-autor. essas tumbas e mortalhas? Pois o passado é o presente dos livros";
Tudo isso acontece por iniciativas ou com a cumplicidade de biblio- e como todo presente, não é apenas a presença, é também a
tecas cidadãs. É indispensável prestar muita atenção. Porque o poder ausência do espírito, a vitalidade, princípio de vida! "Mas neste
das bibliotecas é um poder silencioso. As bibliotecas não falam alto; aqui vive um eterno hoje" !
quase diria que simplesmente murmuram. E nem por isso deixam de ser E que livro é esse em que vive um eterno hoje? O que Nietzsche
ouvidas. Dentro do seu recinto, dos seus corredores, de suas paredes nos quer dizer e fazer pensar deste livro que ultrapassa um hoje
úmidas, fantasmas convictos e seres perplexos, procuram tenazmente determinado para a eternidade de todo hoje?
decifrar a incerta verdade dos homens. Disso sabia muito bem um certo O livro eterno é, sem dúvida alguma, o livro da biblioteca. Pois
diretor da Biblioteca Nacional de Buenos Aires: aquele inventor de fazer com que os livros deixem de ser tumbas e mortalhas de um
linguagens que nos acompanhará para sempre - Jorge Luis Borges. O passado morto e sem vida e ressuscitem para um eterno hoje, constitui
mesmo que, naquela biblioteca famosa, diante do saguão onde havia um o desafio de toda a biblioteca.
espelho, recusou a constatação predominante da finitude. "Eu prefiro - E o que é isso, um eterno hoje?
disse ele, e nós repetimos - sonhar que as superfícies polidas repre- Este hoje, o hoje eterno, que vive no livro de biblioteca, é a
sentam e prometem o infinito". Borges, ei hacedor, ei memorioso, nos concentração do tempo. Pois todo dia de hoje revela e recolhe em si
ensinava sobre livro, leitura e biblioteca. E sua lição persiste. a força de reunião de passado e futuro. Sem esta vigência sempre
presente, o tempo não poderia ser tempo. O hoje eterno torna-se
sempre a consagração do instante criador e assim de todos os outros
instantes com ele abraçados no abraço de um mundo sem fim, porque
temporal. É o in-finito do tempo, i. é, justamente por ter sempre um

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fim, o tempo nunca termina de passar. É a conjugação do tempo vigente de toda a Antigüidade. A idéia básica, que transmite o radical, tomado
em todo verbo de realização da realidade, nas palavras conjugadas da aumalíngua desconhecida do Mediterrâneo Oriental, é a idéiade colher
poesia de T. S. Elliot: " O tempo presente e o tempo passado estão e recolher, para acolher e escolher: da casca se colhia o miolo, a
ambos talvez vigentes no tempo futuro e o tempo futuro contido no entrecasca, que era, então, recolhida ao e no papiro para se acolher a
tempo passado. Se, pois, todo tempo está assim eternamente vigente, escrita e se escolher a escritura na leitura.
todo tempo não pode ser redimido". Pois bem, este tempo impossível São estes três verbos, recolher, acolher, escolher, todos derivados
de remissão é o livro de biblioteca. Pois seu tempo nunca deixa de de colher, que definem também as funções do relacionamento criado
passar, denunciando sempre toda pretensão da totalidade e desmas- com os livros. Originariamente, ler, como Aéyo), em grego, legere,
carando qualquer ilusão de simultaneidade. Cada vez se faz sua em latim e lesen, em germânico, diz, tanto na palavra como na ação,
primeira vez, tornando-se a invenção de uma temporalidade cintilan- reunir, conservar, proteger. Mas, então, que é que, ao ler um livro, a
te mas pontual, sem fim mas finita, com memória produtiva, a leitura escolhe para reunir, conservar e proteger?
memória das musas, mas sem desejo de imortalidade, o desejo de Evidentemente, o que foi acolhido na escritura pela escrita.
todo animado insatisfeito com sua animalidade, movido pela preten- E o que a escrita acolhe na escritura e o leitor colhe na leitura?
são de elevar-se acima da vida e da morte. - A esta pergunta responde 0r|'Kr|, o segundo étimo da palavra,
O livro de biblioteca já não sonha como vencer ou domar a morte, Biblio-teca.
ao contrário, evoca continuamente, com sua própria presença, e a 0TÍKT] se deriva de TÍGr^i, sem a reduplicação. É um dos
recebe, como pressuposto de uma constante inovação da vida. Trata- verbos irregulares em \i\, como t'v|ai, f arruai, ôíôü)|ai, ôÉKvufii.
se de uma transtemporalidade, i. é, de uma temporalidade sem ne- Trata-se em -rí6r\\ii de um verbo que nos fala de estabelecer e
nhuma pressuposição de imortalidade, seja retrospectiva seja pros- instituir, no sentido de guardar e cuidar, de promover e expandir.
pectiva. O livro de biblioteca celebra, assim, sem cessar, a aliança do Para integrar, numa dinâmica de plenitude, as funções de colher,
hoje com o sempre, na conjuração conjugada do tempo. É que não a saber, recolher, acolher, escolher, o livro necessita de cuidado
conserva apenas o já produzido, provoca o apelo de criar, evoca a e promoção, exige e requer um lugar instaurador de vitalidade,
necessidade de uma transformação ininterrupta e convoca as diferen- um lugar, i. é, que não apenas guarde e proteja, mas, sobretudo,
ças para um encontro de complementaridade. E, então, um outro dizer que acione todas as suas potencialidades de gerar transformações,
rompe os limites do discurso e prorrompe num dizer sem discurso. de induzir mudanças de estrutura. É isto o que nos diz o segundo
Uma outra fala se desenha: uma fala sem definição, uma proposição étimo e que define a função vital de toda biblioteca: um livro só
que só propõe o que já se impõe. É nesta direção, é para este endereço é livro em movimento de vida, quando mobiliza a tarefa de um
que o eterno hoje constitui o desafio e perfaz a provocação do livro desafio de crescimento.
de biblioteca. E que desafio é este em que consiste sua tarefa?
E por que biblioteca, Livro de Biblioteca? É o desafio da Linguagem e a tarefa de cultivá-la e preservá-la
Biblioteca é uma palavra formada de dois étimos, recolhidos numa em toda língua!
dinâmica de concentração e acolhimento: púpAoç e 6r|'Kr|. De certa feita, o mesmo Nietzsche do Crepúsculo dos ídolos,
BúpAoç é o nome que os gregos davam ao porto da Fenícia, donde disse num aforismo de 1888 que o filósofo vive "nas geleiras das
importavam a entrecasca de um arbusto, o Cypressus papyrii, uma altas montanhas", tendo por companhia o monte do vizinho, onde
espécie de cipreste. Era um arbusto muito comum no delta do Nilo. mora o poeta.
Por isso, antes de significar livro, púpAoç tinha o sentido apenas de Será mesmo que geleiras têm algo a ver com a vizinhança de
entrecasca. Pois da entrecasca deste cipreste se fazia o papiro, o papel filosofia e poesia? O que poderá ser?

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Sem dúvida, alimentando de vida uma e outra, tanto a poesia S abemos também, quando dispostas, desvendar a verdade em
como a filosofia, a Linguagem mantém vizinhos poetas e filósofos. formademitos!"
Poesia e filosofia são dois modos, embora diferentes, de ser e estar
na Linguagem. Um dos mistérios da Linguagem para toda a cultura e civilização
Sem dúvida, as muitas filosofias não são apenas maneiras Ocidental se tem concentrado na dinâmica de expansão e no poder
diferentes de se responder às mesmas perguntas legadas pela de transformação do livro de Biblioteca. Na raiz de todo é ou não
tradição do pensamento, e sim níveis diferentes de se perguntar e é , de todo é e não é age a força do livro, a força de gerar e induzir
aprofundar as respostas dadas pela experiência do pensamento tensões e conflitos. Nas vicissitudes e peripécias de realização de
e preservadas pelas diversas línguas da Linguagem. seu verbo, vive alvissareiro o poder criador e destruidor da Lingua-
Sem dúvida, "os limites da Linguagem são os limites do mun- gem de gerar posições e compor oposições.
do" , na formulação pregnante de Wittgenstein. Enquanto viver- Das constelações da biblioteca poderemos então colher quatro
mos, pensarmos e agirmos nesta Terra, só faz sentido mesmo o coordenadas para a estrutura de encaminhamento da Linguagem
que pudermos falar uns com os outros, o que puder receber uma na poesia e no pensamento.
significação na e da Linguagem. Não há verdade no singular, fora de 1° A Linguagem vive em toda força de reunião, como a conjuntura
toda envergadura de integração e convivência. A verdade nos é dada, de todo ordenamento das diversas ordens. Trata-se de uma conjugação
por existirmos sempre na Linguagem do plural, numa correnteza que ontológica que, de alguma maneira, perpassa e resguarda tudo que é e
nos arrasta para a conjugação das e com as diferenças. se realiza;
Sem dúvida, já se tornou um desafio do e para o pensamento a 2° Pertence à Linguagem coesão e consistência de estruturação das
seqüência lapidar da Carta sobre o Humanismo: "A Linguagem é a diferenças e suas tensões;
casa do Ser. No casa-mento de Ser e Linguagem, mora o homem. Os 3° Linguagem diz a realidade, como verbo e movimento de realiza-
poetas e pensadores são vigias e sentinelas deste casa-mento". ção, que rege a totalidade do real e impulsiona o universo das realiza-
Mas que tem a ver geleira com Linguagem? ções;
É que ambas, tanto as geleiras como sobretudo a Linguagem, têm 4° A Linguagem é a operação matricial nas línguas e nos discursos
o poder ou melhor são os poderes de preservação radicais da vida, de uma vinculação matinal que instaura mundo no imundo e faz
depondo o passado e dispondo o futuro para o presente. As geleiras nascer ordem da desordem.
conservam. Conservaram os mamutes da Sibéria e o Homem da Neve É preciso muita experiência nas peripécias do Pensamento,-
dos Alpes. E a Linguagem? A Linguagem preserva. Preservou nos TTOXAÒU aropaç - diz Heráclito, para se perceber que pensar é sempre
étimos das línguas as criações do passado e as entrega continuamente traduzir da Linguagem para as línguas. É o convite que faz o livro de
às gerações presentes para as criações futuras. Deste fluir e refluir da biblioteca, uma aprendizagem de tradução. Traduzir não é, então,
Linguagem vive toda a tradição e toda a história humana, recolhendo encontrar correspondências biunívocas entre vocábulos de duas ou
em suas correntes culturais Tcrr'èóvTa - o que é - T(rr'â55ò|i£va - mais línguas. Nenhuma tradução pode ser literal, para ser criadora.
o que será - TÒTTpóVéÓTa - o que foi antes. É o saber de integração Um tradutor literal não sabe o que faz. É impossível uma tradução
e acolhimento que, no dizer de Hesíodo (Teog. 27), Mnemosine, o eletrônica. Pois traduzir não está em trocar traços, traduzir é respon-
pensamento criador, passou, em nove noites de amor, para as Musas: der aos novos apelos, múltiplos e diversos, que, diferenciadamente,
nos chegam nas palavras da Linguagem. Linguagem não é língua. A
"Pastores rudes, más línguas, somente ventres, linguagem é a língua materna de todas as línguas e somente por
Sabemos recolher muitos mistérios ao seio das raízes; sermos e estarmos sempre em sua maternagem é que, na poesia,

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podemos traduzir de uma língua para outra. Nenhuma língua, seja e de volta ao caos retorna toda ordem e toda desordem, o mundo e o
verbal ou não verbal, pode dizer tudo que tem a dizer. E nenhuma imundo, tudo que está sendo e tudo que não está sendo.
lógica ou gramática do discurso, da sentença ou proposição con- A palavra caos tem o mesmo radical do verbo XÓCTKCJ, que nos
seguem suprir tal impossibilidade, antes a favorecem e reforçam. envia para a experiência de manter-se continuamente abrindo-se, de
Por um motivo bem simples. Pois é justamente esta impossibili- estar, portanto, sempre em aberto. Diz o hiato do ser, o abismo hiante
dade que constitui e perfaz a Linguagem, como língua materna de da realidade que é, no sentido transitivo de deixar ser e realizar-se.
toda língua. Somente esta impossibilidade cria as condições de Todo real se instala e sustem num advento desta realidade que se
uma maternagem que acolhe a diferenciação vigente nos dizeres abisma no hiato sem limites nem discriminações de um nada criador.
de uma língua. Dizer tudo seria a máxima redundância e uma pura A essência da Linguagem, mãe de todas as línguas, está neste poder
tautologia, pois saturaria o vazio da palavra e preencheria o matricial do caos, o poder em si indeterminado e indeterminável de
silêncio da fala com o alarido dos discursos. Grã, ambos os dois, toda determinação e indeterminação.
tanto o silêncio quanto o vazio, são indispensáveis a qualquer A Linguagem, portanto, envia no livro de biblioteca para a conju-
diferenciação. O solo de uma relação e de qualquer relacionamen- gação das três dimensões, os três poderes, da realidade:
to não está na repetição da igualdade mas no ruído da diferencia- 1° A realidade está aquém e/ou além de toda ordem e desordem de
ção das diferenças, que provoca o "eterno retorno de seu qualquer tipo, natureza ou nível;
igualar-se", no "pensamento absissal" de Nietzsche. Provocar 2° A realidade é a possibilidade, em sentido transitivo de possibi-
repetições é tudo que sabe e pode fazer uma tradução compu- litar, dar e/ou tirar o poder, de toda diferenciação e indiferenciação;
tacional. Ora, para traduzir criativamente, toda poesia tem de 3° A realidade é o princípio de transformação e manutenção para
fugir à literalidade e ser fiel às palavras da Linguagem nos diver- toda discriminação e/ou indiscriminação.
sos discursos das muitas línguas. Esta integração da Linguagem constitui de alto a baixo a existência
As línguas perfeitamente ordenadas são transparentes e imutáveis. humana em cuja força se inaugura a dinâmica histórica das culturas.
Ideais e clonadas são, contudo, desprovidas de vida e de morte, Nela mora tanto o silêncio da fala como o espanto da criação. Dela
tornando-se insensíveis para as diferenciações históricas e as diver- vive o estranho que atrai o Pensamento e o inesperado que alimenta
sidades culturais da humanidade. A linguagem real da vida dos de esperança as esperas. Com ela partilha o pensamento a ousadia de
homens não considera apenas as estruturas logicamente ordenadas suas aventuras e para ela recorre a insistência das tentativas de
que se podem compor com clareza e uma perfeição sem jaca. A transformação de cada ato criador. É nesta direção e neste sentido
Linguagem da vida real se mantém sempre em aberto e abrindo-se que o livro de biblioteca é sempre livro da Linguagem!
para usos sempre inesperados e jogos em contínua mutação de suas
regras. A fonte da vida histórica é o caos, no sentido originário da Rio de Janeiro, agosto de 2000
experiência e da palavra grega. Trata-se de uma experiência inaugu-
ral tão cheia e dinâmica que dela se origina tudo que é e nela se nutre
toda criação em qualquer área ou nível, tanto do real quanto do
possível, tanto do necessário quanto do contingente. Por isso todo
propósito de pensar ou falar, de conhecer ou agir sempre acena para
este vigor primordial de ser e realizar-se que a Linguagem propicia
numa infinidade de modos, entre eles, no seu livro, no livro de
biblioteca. Do caos provém, para o caos remete e no caos se mantém

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CUMPLICIDADES

RAFAEL ARGULLOL

Respondendo ao tema proposto neste colóquio, gostaria de referir-


me, muito especialmente, às cumplicidades que podemos entrever nes-
ses anos marcados pelo paradoxo e pela transição. Em conseqüência,
vou destacar três territórios de convergência nos quais permanece
implicada a cultura de nosso tempo, sem renunciar a expor meus
próprios desejos, na direção que, em seu momento, ítalo Calvino indi-
cou, conforme ouvimos nesta manhã. Estes territórios de cumplicidades
representam um cenário, uma proposta de hospitalidade e um apelo à
polifonia.

O Cenário
Considerando que a percepção do tempo, em princípio linear, é tão
significativa na mente ocidental, deveríamos primeiro entender como
ele se estrutura, uma vez que dificilmente a cotidianidade ocidental pode
ser pensada em outros termos que não sejam lineares. Estamos forte-
mente configurados no sentido de um tempo linear - passado, presente
e futuro. À margem, somente o tempo do sonho, que é um tempo
anárquico cujas leis desconhecemos, como desconhecemos os ritmos,
a legislação com que o tempo da memória atua, embora seja um tempo
que vai do presente para o passado.
Não sei até que ponto assim o era, na época clássica dos gregos. A
partir de algumas deduções que podemos fazer, desde os filósofos
pré-socráticos e do mundo da tragédia, é possível que ali atuasse uma
espécie de dupla dimensão do tempo. De um lado, um tempo efetiva-

Rev. TB, Rio de Janeiro, 142: 15/28, jul.-set., 2000 15


mente linear (passado, presente, futuro), porém, por outro lado, é tíssima presença da linearidade temporal, mais estrita ainda na
provável que esse tempo linear estivesse matizado ou vinculado época moderna, já que, se o que conhecemos como história é uma
dialeticamente a um tempo de dimensão circular. No Prometeu acor- disciplina antiga, fundada pelos gregos, a imbricação da história no
rentado, pude detectar uma das poucas passagens da literatura grega tempo, em forma de historicismo, é uma atribuição completamente
onde se diz que o destino está dirigido, tanto por algumas deidades moderna.
que representam o tempo linear, como por outras, que podiam repre- Ao longo do mundo antigo, da Idade Média e até do Renascimento,
sentar um tempo do retorno contínuo das coisas, embora eu não saiba não acontecia esta fusão entre tempo linear e historicismo, no sentido
se do "eterno retorno" como gostava Nietzsche. É provável, portan- que nós a concebemos, continuadamente. O homem moderno, oci-
to, que essas duas dimensões do tempo vieram combinadas, mas o dental, ao contrário, é fruto de uni poderosíssimo historicismo. Man-
certo é que o peso de "Cronos" no Ocidente é tremendo. O período temos uma visão que se traslada da escatologia teológica ao mundo
fundamental de um dos pintores cruciais da época moderna, as humano, secular, implicando, nesse avanço, um processo de progres-
Pinturas negras da Quinta dei Sordo, de Goya, é presidida pelo mito so que é paralelo ao tempo linear. Entendemos que existem algumas
de "Cronos", em quadros como Saturno devorando os filhos e A.y idades antigas e algumas idades modernas e existirão idades futuras
fiandeiras do tempo. O mito de "Cronos", que segue devorando os nas quais se irá cumprindo o progresso humano. O historicismo
homens, como o mito das tecedeiras do tempo, são dois mitos poten- ocidental acontece desde Giambatista Viço, Hegel, do grande discur-
tíssimos e, nesse sentido, poderíamos dizer que o homem, ao criar o so de Marx e do marxismo. Porém eu creio que houve, inclusive, uma
tempo, ao criar a consciência do tempo, criou, concomitantemente, aplicação mais universal do que aquela de Hegel ou de Marx; refiro-
um mito imediatamente destruidor e devorador e o assumiu como tal. me a Darwin. O evolucionismo se submete a uma espécie de histori-
Esse mito destruidor e devorador convida a uma espécie de continui- cismo biológico que supõe para o homem um processo de adaptação
dade estrita desde o nascimento, vida e morte, cuja herança é muito e aperfeiçoamento, um processo de evolucionismo contínuo que se
pesada para o Ocidente. Também a tradição judaico-cristã participa vincula com esse historicismo tornando, para o homem ocidental,
dessa herança, pois, diferentemente de outros sistemas metafísicos sumamente difícil pensar em termos temporais que não sejam linea-
que adotam uma imagem de círculo ou de transmigração, de reencar- res. Pois bem, o enorme peso que o tempo possui, como mito ou como
nações sucessivas, a tradição judaica, que influencia o cristianismo, dimensão individual, Kronos individualizado ou como mito de di-
aponta, no fim dos tempos, para o nascimento do mundo. O Gênesis mensão coletiva, fez - creio - despertar, muito cedo, a luta contra a
aponta para a queda do homem, para um processo de sofrimento e de consciência do tempo. Ao ser dotado da consciência do tempo, o
libertação e para um fim dos tempos. Há um fim dos tempos para homem reivindica também uma luta contra o tempo. A consciência
cada um dos homens, que significa a salvação ou a condenação, como do tempo é a consciência direta da morte. De modo geral, presumi-
há um fim dos tempos para a humanidade, que, no cristianismo, se mos que somos os únicos animais que têm consciência de sua morte
propõe em termos de ressurreição dos corpos. O esquema coletivo e atribuímos a outros animais a função instintiva, de reprodução e de
que se oferece à humanidade é um esquema linear, um esquema que sobrevivência, mas não a consciência da morte. Assim, a luta contra
parte da criação ao paraíso final, ou ao inferno final, passando pelas o tempo não deixa de ser, também, uma tentativa de luta contra a
etapas do mundo ou pelas etapas da vida humana. Ao corporificar morte.
Deus no Cristo, o cristianismo propõe uma figura que nasceria, Tenho a impressão de que, em termos históricos, no Ocidente
cresceria, morreria e ressuscitaria, obedecendo a uma visão linear. (como em outras culturas), esta luta contra o tempo se deu, parado-
Por conseguinte, tanto os mitos procedentes da herança grega, como xalmente, por meio do que poderíamos denominar tentativas de
os originários do judaico-cristianismo nos convocam para uma for- conquista de um espaço. Já que o tempo da morte era algo que nos

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escapava, nós nos iludimos com a possibilidade de conquistar um a luta da memória contra o fluir do tempo, contra a consciência
espaço que significasse a contradição do tempo, do passar do tempo; da morte. Por essa razão, na origem do que chamamos arte sempre
que contrariasse esse transcorrer do tempo. Enquanto produto da estarão presentes os monumentos funerários, e memória contra a
civilização e produtor de civilização, a cidade do homem não deixa morte. E daí, em todas as culturas conhecidas existe a épica que é,
de ser uma conquista do espaço, criando uma ilusão contra o passar do mesmo modo, a memória da morte, memória contra a morte. Por
do tempo. O homem, como construtor de cidades, como construtor isso, quando, no mundo secular, ocidental, moderno, tende-se a
de monumentos, como construtor de pontes, o homofaber, o homem recusar a esfera do divino, a esfera dos deuses, desaparece, então, a
dotado de uma dimensão técnica, cria uma perspectiva espacial que esfera dos heróis, porque, no sentido da épica, estava ela fortemente
o engana em face do passar do tempo. Em termos gerais, diríamos vinculada a essa inter-relação com o mundo do divino. Aparece,
que o espírito utópico é a criação de um topos, um lugar que não é o então, o herói moderno, que a poesia re-apresentou na literatura
lugar que efetivamente existe, mas o lugar que pode chegar a ficar à moderna e que estava mais ligado àquilo que Octavio Paz denominou
margem da condição humana, enquanto atributo mortal e temporal; a consagração do instante. O conceito de Paz se refere, não à
é .uma idéia, creio, que deve ser tão antiga, rudimentar, como a possibilidade de construir monumentos literários ou artísticos, retá-
própria consciência da morte e a consciência do tempo. As principais bulos, afrescos contra a morte, por meio de uma memória que tenha
manifestações do que agora chamamos arte ( a arte paleolítica, a arte capacidade de representação, que seja poética, pictórica ou escultó-
rupestre), ou as primeiras manifestações simbólicas do homem, aten- rica, mas à possibilidade de certos instantes que nos resgatem, ainda
dem, provavelmente, à necessidade de criar esse não-lugar que, que provisoriamente, de nossa condição de caídos no tempo; certos
contudo, não existe e é incapaz de erguer muralhas contra a passagem instantes que nos criem uma ilusão de superação do tempo, de atem-
do tempo. Portanto, grande parte do que vimos denominando civili- poralidade. Por essa razão, retomando uma questão anteriormente
zação, desde a arte até a técnica, passando por sucessivas expressões referida, de modo amplo, apontamos a atemporalidade, a eternidade,
simbólicas, está vinculada a esta luta contra o tempo que é, também, como plenitude, como imensidade. Obter a atemporalidade, subtrair-se
luta contra a morte que é, em grande medida, uma luta contra o tempo à consciência do tempo, supõe, para os ocidentais, sentirem-se plenos,
concebido através dessa gravidade linear do tempo. Naturalmente, o a plenitude, porém, o vazio absoluto também nos deixa à margem do
homem não luta unicamente contra o tempo, por meio de produtos curso do tempo. Portanto, uma das características da arte moderna, da
exteriores da civilização material, da técnica, inclusive a arte, mas, poesia moderna no Ocidente, tem sido esta espécie de aposta, aposta
também, através de toda uma série de realizações espirituais que, secular, suplemento do religioso e do mítico, a favor dessa consagração
igualmente, denominamos arte ou literatura. Creio que, no momento do instante que acaba sendo, sem embargo, mítica e sagrada. A melhor
mesmo em que o homem assume a consciência do tempo, dá-se conta expressão da arte e da poesia modernas emancipou-se do sagrado para
da dupla dimensão da memória como organismo dessa consciência acabar sendo, de novo, sagradas.
do tempo e como cenário da luta contra essa consciência. Isso é a Vivemos em um mundo onde o domínio tecnológico, do comuni-
memória. Para o homem primitivo, para o homem antigo e para nós cacional, do que se vem chamando globalidade planetária mais a
também, a memória é o veículo da morte e cenário legítimo contra a exigência de uma atualidade permanente, converteram-se em um
morte. Não é de estranhar que os antigos tivessem, como musa mítica convite planetário à amnésia. Nesse sentido, nosso mundo está for-
das artes, a memória, porque, afinal, essa outra vertente da arte, a arte temente marcado por um modelo de amnésia e de velocidade, de
como criação utópica que tenta erguer barreiras contra o passar do amnésia e de vertigem, embora, evidentemente, muitas vezes essa
tempo, atua por meio da memória, porque é ela que cria determinados vertigem se manifeste como no mito de Sísifo; manifeste-se como
jogos nos quais o superficial é o produto resultante, mas cuja raiz é uma vertigem imóvel, de voltas circulares, sobre um mesmo eixo.

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Parece-me muito significativo que o modelo linear, teleológico,
A Hospitalidade
de um paraíso religioso ou paraíso laico do progresso e da igual-
dade, tenha sido substituído, no Ocidente, por um modelo que pode- Creio que, no substancial, podem-se contemplar três tipos de
ríamos chamar de circular presentificado, de um presente circular, conhecimento: o conhecimento científico, o conhecimento artístico
permanente, como sugere o capitalismo de nosso tempo. Trata-se de e, para os devotos, o conhecimento religioso. O conhecimento cien-
um modelo de produção-consumo permanente, permanentemente se tífico nos transporta para um idéia de domínio objetivo da realidade
consumindo para a produção; produz-se como consumo, sem que exterior. É um conhecimento que está vinculado a um concepção
nada fique ao largo deste círculo totalitário, nem mesmo o ócio, o linear e progressiva do tempo, que permite assegurar que, o que hoje
qual se constitui como componente dessa produção ou desse consu- temos na conta de certeza, invalida o que tínhamos como certo há
mo. O mundo atual não parece propor um paraíso no final dos tempos, dois mil anos, como ocorre no terreno da astronomia, da medicina,
mas uma fantasmagoria de um paraíso permanente, sempre que se da botânica, etc. O segundo conhecimento, poderíamos chamar, em
produzir essa espécie de consumo do produzido. Portanto, a substi- largos traços, de artístico. E um terceiro conhecimento, o religioso,
tuição do paraíso como promessa do paraíso, como consumo acom- é o que diz respeito aos devotos, aos que crêem, implicando a relação
panhado da amnésia, e da vertigem imóvel marcam tão duramente dos homens com seus deuses ou a religião dos homens através de
nossa época contemporânea que chegam, inclusive, a destruir o distintos sistemas metafísicos. No caso da religião do Ocidente,
modelo historicista ocidental moderno. O cidadão que faz parte da tende-se a compreender esse conhecimento, fundamentalmente, em
globalização atual não pensa, nem em termos historicistas, nem em termos lineares e apocalípticos, em termos de um paraíso final.
termos de eterno retorno, mas exclusivamente através da visão de um Descartando este terceiro conhecimento que, como digo, é exclusivo
presente permanente em que o paraíso se consome e se autoconsome, dos que crêem, gostaria de manter-me no âmbito dos conhecimentos
permanentemente. científico e artístico.
Por isso, aparentemente, em nossa sociedade contemporânea, a O conhecimento artístico nos conduz a um tipo de conhecimento
utopia perdeu prestígio, não apenas em face das calamidades causa- circular ao qual não se aplica a percepção linear do tempo. As obras
das pelas utopias coletivas, a que já aludimos, mas também pelo fato de arte que hoje nos agradam não invalidam as obras de arte de dois
de que se, efetivamente, o presente é contínuo, um presente que se ou três mil anos atrás. As obras filosóficas que hoje se tornam
autoconsome, nele não cabe a utopia, não cabe o não-lugar, devido à apreciáveis não invalidam as obras filosóficas de Platão ou Aristóte-
ilusão de lugar permanente, embora esse lugar passe, rigorosamente, les. Este conhecimento circular teria relação com toda uma série de
pela produção e pelo consumo de bens. Não há lugar para a utopia cenários nos quais a visão da vida, da morte, das paixões, das
como não há lugar para o tempo, nem para a memória, que é contra- emoções humanas adquire caráter prioritário. Permite-nos uma apro-
ditada pela amnésia, sem perspectiva suficiente dentro deste processo ximação maior em relação às luzes e sombras de nossa existência. Se
da permanente atualidade, nem para a morte camuflada e submetida buscássemos resumir, por métodos cibernéticos, os temas da poesia
ao esquecimento, porque o morto não é, nem produtor, nem consu- universal, verificaríamos que não passam de uma dúzia os que per-
midor. Para se construir uma possibilidade de crítica em face do mitem essa circularidade. São temas que não favorecem qualquer
mundo atual, uma resistência, é totalmente imprescindível tratar de domínio colonizado. A poesia, a arte, a filosofia não nos permitem
se situar fora desse círculo infernal apresentado como paraíso. controlar, colonizar, dominar. Confirma um conhecimento inacaba-
do, que retorna para nós e que jamais permite atribuir-lhes um final.
Em algum momento eu disse que, em boa lógica, um poema nunca
deveria ter um último verso, nem uma pintura a última pincelada,

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porque, do ponto de vista da lógica interna da arte, não existe essa De modo geral, o conhecimento estético, simbólico, refere-se
última pincelada, nem a última palavra do último verso. Isso à esfera do sagrado, mas, eu diria que, inclusive no território do
expressaram Leonardo, Michelangelo ou Rodin, através do inacaba- que poderíamos chamar conhecimento científico, há um desejo de
do, porque este é mais perfeito do que o acabado e porque há nele transcendência, pois construir, por exemplo, uma teoria dos campos
algo profundamente astucioso. Este conhecimento se situa fora da unificados expressa o desejo de unidade. De Prometeu a Fausto, é
linearidade, fora do domínio e fora da colonização. possível identificar esse desejo de criação de vida, que implica uma
O destino próprio do conhecimento científico é o domínio objeti- espécie de desejo de absoluto. Naturalmente, essa ambição se mani-
vo, por isso seu prolongamento natural é o tecnológico, embora essa. festa com mais clareza no conhecimento de tipo estético, artístico,
relação possa ter dois sentidos, já que também a técnica pode induzir que supõe, como costumo dizer, uma contínua circularidade, ao
a novos avanços científicos. longo de toda a história da cultura ocidental.
Creio que, no homem, atuam, simultaneamente, esses dois planos Minha posição a esse respeito é de uma aposta na integração dos
do conhecimento. Podemos contemplar nosso corpo desde um ponto dois tipos de conhecimento. Parece-me imprescindível que não en-
de vista científico, como um conjunto de células, canais, nervos, caremos o conhecimento em termos absolutos ou exclusivistas, mas
músculos e órgãos que podem ser descritos por meio de técnicas que saibamos distinguir entre conhecimento e sabedoria. O conheci-
como a cirurgia. Esse mesmo corpo, porém, pode ser cantado, ex- mento nos conduziria a determinados momentos, algumas vezes
presso, através da emoção provocada por sua beleza, da repulsa, por grandiosos, outras vezes terríveis, enquanto a sabedoria seria aquilo
causa de sua feiúra; é o que poderíamos chamar de sentimentos que sugeriria uma alternância, um equilíbrio, entre o conhecimento
estéticos. O conhecimento científico não é melhor, nem superior, e o enigma. O saber demonstra que determinados aspectos da vida
nem inferior ao estético. O sol, por exemplo, tem sido, tradicional- humana, da relação do homem com o mundo, ou com a existência,
mente, um dos grandes símbolos da beleza para a maioria das cultu- não podem ser dominados ou colonizados, uma vez que sempre serão
ras, porém o Sol, em termos científicos, em termos da física, é uma incontroláveis, irredutíveis. Essa dialética entre o conhecimento e o
dos maiores cenários de violência cósmica jamais concebidos, por enigma, a dialética do saber, seria expressa pela coexistência entre o
suas imensas explosões termonucleares. Conhecermos esta informa- conhecimento de tipo científico e o do tipo simbólico-estético. Se me
ção sobre o Sol não impede que contemplemos sua beleza estética. fosse atribuído definir o homem, coisa que, em princípio, é melhor
Tanto o conhecimento que se vem chamando objetivo e que produz não fazer, nunca utilizaria a definição tradicional, ensinada em nos-
colonização e domínio, quanto o conhecimento estético circular, sas escolas, de que o homem é um animal racional, mas, sim, que o
aquele que Kant uma vez denominou "desinteressado", oferecem homem é um animal nostálgico, uma consciência de coerência, uma
seus ritos e seus mitos. De fato, quando falamos dessas verbalizações consciência de separação, de ser estrangeiro, de estar exilado em
- os mitos - e desses representações ou gestualizações - os ritos - relação a uma pátria que não é a sua pátria de nascimento. Essa pátria,
estamos falando de dois tipos de conhecimento em suas múltiplas em muitas tradições míticas e religiosas, foi povoada por deuses, mas,
manifestações. Cada um deles apresenta um tipo de rito e de mito: o quando os deuses são expulsos, o homem se torna um ser nostálgico,
conhecimento produtivo, técnico, colonizável, que pôde possibilitar defini-se a si mesmo como estrangeiro, como um exilado, um nôma-
o domínio objetivo na captura de uma presa de caça, como mistifica- de, que peregrina pelo mundo afora. A vida, desse modo, seria essa
ção e atualização, e o conhecimento simbólico, que se vincula ao que peregrinação, não exatamente sem sentido, mas que não se sabe o
vimos chamando de conhecimento artístico, isto é, o desejo de trans- sentido pleno. A partir daí se desenvolve uma ignorância que, muitas
cendência, de chegar a expressar uma harmonia, uma ordem, um vezes, implica dor e sofrimento; outras vezes, imagens de considerá-
cosmos. vel beleza. Para mim, o sagrado, na atualidade, está relacionado com

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L
esta nostalgia, não tanto com a definição religiosa do mundo, de tempo, uma superação, ainda que transitória, efêmera, provisória,
um deus, mas com a sensação de isolamento que essa nostalgia em relação a essa nostalgia, com que podemos sentir essa hospita-
produz, com a educação nessa nostalgia, com a aprendizagem do lidade essencial. Parece-me importante enfatizar que, embora este
estrangeiro nessa nostalgia. Pois bem, essa espécie de busca de algo tipo de conhecimento se produza, como disse antes, de maneira
perdido no horizonte desconhecido nos leva a desenvolver um senti- fulgurante, pode acontecer uma espécie de predisposição. Essa pre-
do de plenitude que é um sentido de hospitalidade. Desejamos alcan- disposição exige que se reconheça a dialética entre logos e enigma,
çar uma pátria que não se encontra em nosso berço natal, que não está entre conhecimento e enigma a que também já me referi antes. Quem
por detrás de nós. quer que se atenha exclusivamente à razão jamais viverá este tipo de
Paradoxalmente, ansiámos por uma pátria que está adiante de nós, experiência. Tampouco os pseudo-espiritualistas, que caem em uma
que é a que nos promete essa unidade, plenitude, inteireza e que não espécie de culto irracional do enigma.
pode ser atingida pela colonização, pela dominação. Sermos hóspe- Gostaria de enfatizar outro aspecto importante. O conhecimento
des dessa pátria é o que nos possibilita verbalizar, expressar a har- fulgurante acontece em experiências dialógicas, nunca monológicas.
monia e a beleza. O que chamamos beleza não seria tanto o produto Quem pensa que vai chegar a este tipo de conhecimento através do
de algumas leis, de alguns números, de alguns cânones, mas a forma monólogo recai num tipo de solipsismo, na melhor das hipóteses, ou
do momento em que se habita essa pátria, do sentir-se hóspede. Aí é de ilusão fantasmagórica. O conhecimento do enigma se produz
onde eu creio que se pode desenvolver um sentido plenamente atual sempre por via dialógica e assim sucede nos ritos eróticos, místicos
do rito e do mito. O fato de superar essa condição de exílio para e estéticos que implicam sempre um diálogo com o outro, um deixar-
alcançar essa pátria, ainda que provisoriamente, é o que nos trans- se tombar para o outro. Sem este diálogo, não é possível superar nossa
porta aos ritos mais profundos do ser humano em sua dupla dimensão: condição de estrangeiros. Por isso, no terreno das culturas, é tão
de ser nostálgico e de ser que deseja a hospitalidade. importante abrir-se para o outro e, no campo pessoal, é tão importante
Referi-me, antes, ao ritual estético que tem sido, desde o início, chegar a si mesmo sempre através do outro.
representação, jogo, máscara. Porém, o estético também tem sido
habitante dessa pátria e dessa hospitalidade: sentir-se habitante dessa A Polifonia
casa, sentir-se habitante de uma inteireza, de uma superação de cisão.
Este rito estético é o que eu chamaria arte, cuja definição incluiria Não sei se é possível um diálogo real entre culturas, mas sim entre
todas as máscaras, todos os jogos, todas as representações que per- interlocutores pertencentes a distintas culturas. Gosto de me referir,
mitem ao homem sentir a hospitalidade essencial. O mesmo podemos neste sentido, à noção de cumplicidade. Não acredito em projetos
dizer dessa outra ponte em direção à hospitalidade essencial que coletivos. Creio, sem dúvida, que se pode construir uma cumplicida-
venho chamando conhecimento fulgurante. Conhecimento que é de de intelectual que normalmente é conseqüência de uma amizade, não
fogo, que se produz muitas vezes sem que saibamos como, por meio só intelectual, mas também sensível. Se dois interlocutores não se
de labaredas. Assim acontece com nossos ritos eróticos nos quais se sentem, não se apalpam, não se percebem; se entre eles não se
identifica Eros como força nostálgica e força de unidade. Também estabelece cumplicidade de tato, dificilmente vai-se poder construir
com o êxtase místico que nos oferece visões fulgurantes dessa hos- uma conversação real, uma conversação que vai mais além dos
pitalidade essencial sem que, necessariamente, deva ser religioso, já arquétipos, dos tópicos, do politicamente correto. A paixão da inti-
que se pode tratar de rituais místicos de natureza laica. O que de midade deve estar equilibrada por um saber se desarmar cada um
fulgurante têm esses ritos - estéticos, eróticos e místicos - é que nos deles, porque, se alguém cultiva uma espécie de personalidade dog-
proporciona uma imagem congelada dessa nostalgia e, ao mesmo mática, de caráter dogmático, dificilmente se instala a amizade ínti-

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ma, embora possa acontecer de essa paixão esbarrar nas superfícies continentes e a recuperação progressiva dos patrimônios culturais
planas do dogmatismo. O mesmo acontece no diálogo entre culturas. de distintas tradições foram despertando, lentamente, um sentimento
A despeito de existir certa paixão por conhecer-se outra cultura, de respeito mútuo. Pois bem, para que essa cumplicidade produza
se não se estiver disposto a abrir-se, desarmar-se, romper as superfí- resultados, acho que é importante, por um lado, o desarmamento, a
cies demasiado lisas, dificilmente vai-se produzir essa interlocução capacidade, não tanto de armar-se, mas de desarmar-se mentalmente,
e cumplicidade. Um interlocutor ocidental tem os mesmos handicaps por outro lado, não tentar apreender falsos espiritualismos e, por
e as mesmas limitações que um interlocutor na índia ou de qualquer último, não refugiar-se em dogmas fechados. O desarmamento seria
outra tradição, porque também ele está afetado pelo tópico do politi- a aceitação, de certo modo, do relativismo, da flexibilidade e do
camente correto, do politicamente igualitário, da intolerância con- caráter irregular, inacabado e plural da verdade. Também me parece
vertida em discurso político, da mestiçagem convertida em discurso muito importante o rigor. Em face das conexões facilitadas que o
também político, etc. Não há maiores limitações de partida do que pseudo-espiritualismo produz e das conexões fáceis a que nos remete
outras tradições, incluindo sua defesa, produzida pela visão crítica e essa espécie de telecomunicação universal, que pretende um tipo de
autocrítica na modernidade (agora, lamentavelmente, bastante perdi- modelo único, fácil e superficial, é necessário o rigor intelectual. É
da) que é uma boa arma para ajudar neste diálogo. Pois bem, em seu preciso avançar numa tradução que não seja só lingüística, mas
desfavor atua o peso do colonialismo, pois, ainda que não haja dúvida também conceptual e lógica. É importante desarmar-se para se poder
de que o racismo e o egoísmo identitário sejam patrimônio de toda a armar o outro, sermos capazes de ver como se confrontam as idéias
humanidade e de todas as culturas, o Ocidente exerceu seu domínio do interlocutor, por intermédio desse rigor e dessa tradução lingüís-
sobre o resto do planeta. A herança do colonialismo (as seqüelas e as tica, lógica e conceituai.
dependências do colonialismo) é o primeiro elemento a considerar e Em nível superior, o desarmamento e a tradução lógica e concei-
se vincula ao exotismo que é o segundo dos perigos dessa relação. O tuai poderiam conduzir-nos à possibilidade de um intercâmbio míü-
exotismo seria o falso rendimento das contas do colonialismo que se co-simbólico que seria o grau mais elevado dessa cumplicidade. Seria
deixa fascinar, também falsamente, por outras mentalidades que o momento em que os interlocutores poderiam intercambiar figuras
costumam ser igualmente falsas. No terreno artístico, espiritual ou mítico-simbólicas; chegar a compartilhar territórios profundos dessa
filosófico, o exotismo integra uma série de costumes que muitas hospitalidade essencial a que antes me referi. Acredito, pois, que o
vezes foram captados superficialmente. Um terceiro fator de dificul- diálogo seja difícil, impossível mesmo entre culturas, entendido no
dade é o autismo e as endogamias culturais que afetam todas as terreno da política, mas excitante e possível, do ponto de vista da
tradições, as quais, quanto mais sólidas são, mais impermeáveis cumplicidade e da conversação entre interlocutores.
parecem. Nesse sentido, a tradição clássico-judaico-cristã-capitalista A globalização supõe certos perigos: o convite à amnésia, à uni-
do Ocidente é uma tradição muito sólida, embora, provavelmente, formização, a uma espécie de culto idolatrado da atualidade que
não se possa falar de uma única, mas de diversas tradições que sustenta toda a realidade, o convite à trivialidade, à banalização. Ao
convivem dentro dessa tradição. Há uma tendência natural à endoga- lado disto, uma suposta tolerância, uma mestiçagem politicamente
mia e, geralmente, é mais forte o racismo em nossas mentes do que correta que sempre sucumbe na superfície das coisas, naqueles fato-
em nossos bairros e cidades. Os fatores de limitação são, portanto, res que permanecem facilmente colados a esse discurso universal
evidentes. Por outro lado, sem dúvida, as circunstâncias do mundo plano. Não há, portanto, dúvida de que esta globalização inevitável
atual produziram vias de comunicação maiores do que em épocas e que tem apresentado aspectos também favoráveis, como a comuni-
anteriores. Por exemplo, a comunicação universal, a globalização, cação universal a que me referi, deve estar equilibrada pelo respeito,
com tantos efeitos negativos, a efetiva descolonização na maioria dos pelo aprofundamento. Com a globalização, pode acontecer algo pa-

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recido com a hybris da que falava no começo. Hybris vinculada
ao saber como colonização, aquela hybris que levou, afinal, a uma
contraconsciência ecológica, de defesa da biodiversidade. Defender
a comunicação e o diálogo entre todo o humano, entre todo o vital, é
um fator extraordinariamente criador, porém, ao mesmo tempo, de-
fender a diferença é um dos caminhos para defender a igualdade,
como defender a biodiversidade é um dos caminhos para defender a
universalidade. De novo, a idéia da metamorfose do uno e do múltiplo LIVRO - LIBERDADE
é a que nos convida a um certo tipo de equilíbrio que está sendo
GIANNIVATTIMO
saqueado pela globalidade, muitas vezes terrível.
Creio que vivemos num mundo de aldeia global, prognosticado por
McLuhan. Ao mesmo tempo, esta aldeia global gerou uma contrafigu- É difícil fazer um inventário completo do que devemos aos
ra: uma metrópole tribal. Algumas tendências centrípetas acontecem, livros. Não somente no sentido banal de que nossa educação
mas, por outro lado, permitem tendências centrífugas, como a busca individual se fundamentou em certos livros, que se tornaram
dessa biodiversidade, a busca de uma diferença que não deve ser a nossos educadores, com freqüência, permanentes, nossos textos
desigualdade. de referência, mas também a partir de dicionários, enciclopédias,
Por meio da técnica, o Ocidente tratou não só de colonizar a códigos, escrituras santas, clássicos. Se refletirmos sobre esta
natureza, o não-humano, mas de colonizar também o não-humano lista, nela encontraremos não apenas nossa biografia intelectual
não-ocidental. Produziu essa espécie de modelo global com elemen- individual, mas o esquema que sustenta a cultura ocidental. Fala-
tos extraordinariamente positivos e frutíferos, porém com fortes se geralmente de religiões do livro, para indicar o judaísmo, o
estalidos de violência. Em termos gerais, penso que, em face do cristianismo, o islamismo; mas se deveria falar de uma civilização
unidimensional, do monoteísmo, frente à unilateralidade da coloni- do livro para toda a cultura ocidental, mesmo a partir da época em
zação humana, frente a um pensamento que se constrói a partir do que o livro, no sentido moderno da palavra, ainda não existia.
monólogo, o de que realmente necessitamos é a polifonia. O polifô- Tudo isso nos é tão habitual que se tornou difícil captar a distinção
nico se relaciona com a sabedoria, tendo em conta que esse saber e a conexão entre o conteúdo de nossa educação e a forma "livresca"
deveria superar a separação entre a ética e o intelectualismo, a razão na qual ele nos foi comunicado; com a conseqüência de que tudo
prática e o intelectualismo. A polifonia é o meio para alcançar esse parece se reduzir, se resolver, ao conteúdo desta educação. Se o livro
saber viver que é também um saber sentir.
parece destinado a desaparecer, ou a ser substituído por outras formas
(Trad. Carlos Sepúlveda)
de transmissão, temos tendência a pensar que isto somente concerne
ao aspecto instrumental da educação. A ponto de a defesa do livro,
que freqüentemente nos engaja em discussões sobre as novas formas
de comunicação social, parecer o negócio de velhos senhores que não
conseguem imaginar uma Bildung* diferente da deles, e que serão,
fatalmente, superados pelo progresso etc. O debate se reduz, então,

* Em alemão no original.

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a uma luta entre gerações, marcada por traços puramente psicoló- possuem aspectos irredutíveis à forma livro enquanto tal. Sim e não,
gicos, e, no fundo, torna-se inútil.'O que seria útil fazer, ao direi: a complexidade destes fenômenos me parece somente mostrar,
contrário, seria um inventário, o mais completo possível, do uma vez mais, a dificuldade de separar a "forma" dos conteúdos. É
que, na educação, provém da forma livresca da comunicação; um pouco como dizer que não se poderia imaginar uma democracia
melhor, não somente na educação escolar ou pessoal, mas na sem imprensa e sem o sistema moderno de informação; certamente,
própria Bildung da nossa tradição. sem querer com isso reduzir a democracia à informação etc.
Começarei este inventário, recordando diretamente o elo entre Pode-se concluir que o indivíduo livre moderno se forma apren-
livro e liberdade: um elo que -jamais havia pensado nisso seria- dendo a ler e se referindo a textos? Não se excluem, assim, todos
mente - é denunciado pelos termos latinos que designam as duas os heróis analfabetos de nossas tradições populares, os Robins
coisas, liber em ambos os casos. Na tradição política moderna, dos bosques de Walter Scott, mas igualmente, por que não, Ulis-
um passo decisivo para uma sociedade mais livre foi dado quando ses de Homero? Poder-se-ia evidentemente tentar sair desta difi-
os reis aceitaram pôr por escrito suas leis. Um exemplo muito rico culdade, esclarecendo que a noção de liberdade é menos genérica
de significação, visto que foi sempre em torno da interpretação que a de revolta "imediata" de alguém contra a violência que
de certos textos de base que a liberdade se afirmou. Primeiro, sofre; ou que as revoltas "populares" têm sempre necessidade de
como é evidente, na grande revolta religiosa do século XVI, onde um chefe carismático. Sem nos voltarmos para problemas deste
se tratava de conquistar o direito de ler pessoalmente a Bíblia e gênero, notaremos que, em todo caso, também o nosso culto aos
de interpretá-la, contra toda restrição da tradição e do magistério heróis - clássico ou moderno e as ações que eles inspiraram na
da Igreja Católica. Por outro lado, também sobre o plano das história efetiva é "mediado", mediatizado, pelos textos literários
ciências exatas da natureza, o modelo do livro não foi apenas uma (o herói tem sempre necessidade do seu cantor?). Descobre-se
metáfora inocente: Galileu pensou concretamente a natureza talvez também que, numa certa medida, o livro, a transmissão
como um livro escrito em caracteres matemáticos; e Blumenberg escrita e vivida no silêncio da leitura privada, é um elemento
mostrou como, no seu caso e no de tantos outros, esta similitude constitutivo de nossa definição de liberdade; a ponto de, mesmo
desempenhou papel decisivo para a história da modernidade. uma revolta popular contra a injustiça somente poder aparecer sob
Aliás, as tábuas de Moisés são um livro, um texto que se tornou a luz do chefe carismático, o que é muito suspeito para o que
a base da ética judaico-cristã; não somente pelo seu conteúdo, chamamos de liberdade.
repito, mas por sua forma de texto escrito e comunicável. A lei Poder-se-ia desenvolver mais longamente as implicações desta
moral, mais tarde, foi imaginada como impressa em nossos cora- sugestão "etimológica" sobre o elo livro-liberdade. Mas mesmo se
ções. É bem verdade que, durante séculos, antes da invenção de deixamos de lado a sugestão verbal enquanto tal, parece-me bem
Gutenberg, o livro - a Santa Escritura, os códigos, os clássicos da claro que tudo, ou a maior parte, do que se encontra, se nos
literatura e da filosofia - eram acessíveis apenas através da co- inclinamos a analisar, enumerar simplesmente, os traços de nossa
municação verbal de alguma "autoridade". Mas foi certamente Bildung (conteúdo e maneira da educação) que dependem da forma
em torno da transformação de suas formas, até a possibilidade, livresca da transmissão, reencontra-se o elo em termos menos
inicialmente restrita às classes dominantes, de dispor de uma "sugestivos", porém totalmente concretos. A comparação entre
biblioteca, que se desenvolveu o processo moderno de liberação liberdade e revolta conduzida por um chefe carismático orienta-nos
individual, da conquista da liberdade de consciência etc. Poder- para um outro elemento decisivo da Bildung livresca: a inte-
se-á acrescentar que aqui não nos confrontamos apenas com li- rioridade, mesmo o que se poderia chamar de apropriação dos
vros, mas com fenômenos mais complexos, que provavelmente conteúdos da Bildung herdada, com toda uma série de relações

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entre liberdade e privacidade*, por exemplo. Poderia a liberdade modelo da experiência moderna, ou antes pós-moderna, da verdade.
moderna ser pensada sem a distinção entre público e privado, que Não se conhecem todos os livros da biblioteca, tudo o que ela contém
implica a constituição de um espaço "interior", também no sentido analiticamente; sabe-se onde procurar quando um problema se apre-
físico da palavra, o salão da casa burguesa (Benjamin). É verdade senta, nos reconhecemos nela, por assim dizer. É, como se vê, antes a
que aprendemos a ler na escola e, portanto, sob a direção de uma noção hermenêutica da verdade do que a noção metafísica. É preciso
voz presente e sonora; mas é justamente apenas o fato de aprender prestar atenção a isso, pois poderá se tornar decisivo para compreender
um meio que se utilizará depois por si mesmo. (Recordo a minha e se adaptar às novas formas de experiência determinadas pela infor-
dificuldade em preparar este texto sem os meus livros. Poderia mática. Esta experiência da verdade que se tem ao se habitar* a
usar a Biblioteca Nacional de Paris. Mas agora está toda conta- biblioteca tem a ver com a memória, evidentemente. Ora: a liberdade
minada pela eletrônica e só se pode pedir um certo número de que nos advém do fato de saber habitar a biblioteca depende
livros. Ao escrever, porém, precisamos de não poucos livros, e simplesmente do fato de ter à nossa disposição todos os "dados",
adequados. E depois nossos livros estão assinalados, marcados na as fichas do catálogo, digamos; ou há alguma coisa a mais, que não
primeira passagem, significando assim a nossa cultura. Pela voz e se reduz à memória objetiva e depositada no catálogo, mas tem
a leitura: que dizer da poesia que se lê em voz alta, e que precisa a ver com nossa memória orgânica, que se tornou uma parte de
do som?) O elo livro-liberdade se enriquece aqui de um elo ulterior: nós (penso aqui nos computadores de que se fala - somente em
o elo livro-liberdade-interioridade (talvez também privacidade bur- ficção científica? - utilizando proteínas...)? Poder-se-ia formular a
guesa). A recordação do salão burguês pode também não ser tão questão também desta forma: o fato de trabalhar numa biblioteca,
banal. Ela nos dirige a um outro cômodo do interior burguês, a podendo circular livremente nela, deixando-se levar pela sugestão
biblioteca. Mais ainda que a imagem do livro é a da biblioteca que das proximidades casuais, (com o sistema Dewey tudo isso já é mais
domina a própria forma da nossa cultura. Surpreendi-me freqüen- complicado, mas assim mesmo...) é exatamente o mesmo que dispor
temente ao pensar que daria plena confiança, a ponto de lhe entregar de um computador no qual procuramos textos, palavras etc? À
as chaves da minha casa, a alguém que tivesse passado sua vida primeira vista, o contato com o computador parece mais rígido e
numa biblioteca, independentemente do tipo de livro que tenha lido determinado: deve-se, desde o começo, escolher um percurso, que
ou gostado. Habitar a biblioteca é talvez, em vários sentidos, a é tanto mais rápido e funcional quanto mais delimitado. Por exem-
própria imagem da perfeição, do humanismo, da experiência da plo, ainda em termos de palavras latinas: poder-se-ia ainda chamar
verdade que nos liberta, segundo a palavra de um livro, o Evange- de otium o trabalho intelectual nos computadores? O que acontece-
lho. (A verdade tornará vocês livres, e também livros?...) Habitar ria se os amantes, Paolo e Francesca, de Dante, estivessem lendo
a biblioteca é ao mesmo tempo a plena realização do itinerário da as aventuras de Lancelot e Guenièvre no monitor de um computador
Fenomenologia do Espírito hegeliana e sua superação. Se, de um (que poderia, por exemplo, registrar a longa permanência dos aman-
lado, tornamo-nos, de fato, o perfeito habitante da biblioteca, que tes em certas passagens, a interrupção da leitura no momento em
se reconhece em sua complexidade, que sabe viver nela tendo que os dois caem um nos braços do outro...)? Todo otium, se não
assimilado seus conteúdos; por outro lado, esta "familiaridade" se tratar dos dois pobres amantes de Rimini, se apresenta aqui
com os conteúdos desta imensa coleção de saberes e de expe- como uma violação da ordem (do computador), um pouco como
riências não é absolutamente o espírito absoluto hegeliano, é a espera muito longa do empregado do banco quando ele aguarda a
uma forma de assimilação inteiramente especial, que, aliás, é o resposta no monitor.

Em inglês no original: prívacy. Em inglês no original: inhabitation.

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Deixe-me tentar um pequeno balanço do que se encontrou até de proteger contra os piratas de todo gênero, mas que, no presente, é
aqui, neste inventário provisório e totalmente incompleto. A Bildung colocada somente como questão financeira. Certamente não é impos-
que se transmite nos livros é caracterizada pela liberdade (que não sível preservar também, nas formas da comunicação informática, a
é simplesmente independência com relação ao outro); pela inte- integridade original de nossos textos; mas torna-se cada vez mais
rioridade, com todos os seus elos com a privacidade; por um fácil interpelar hipertextos, comentários, promover verdadeiras
tempo e um ritmo mais biológico-biográfico que estritamente transformações. Como concebo a tradição européia - e não somente
físico e material; pelo otium, que implica também a liberdade ela - como um negócio de comentários sobre textos basilares, em
enquanto possibilidade de seguir os vôos da imaginação e das torno dos quais se desenvolveu a própria experiência da liberdade
associações livres (a psicanálise estaria ela também implicada na moderna, nossa religiosidade, nossas artes, me pergunto o que seria
cultura do livro?...). Outrossim, a imagem da biblioteca, o fato de de tudo isso nas novas condições. Podemos observar que diante de
viver numa biblioteca, habitando-a mais como bibliotecário do um computador, com todas as suas possibilidades de interatividade,
que como pesquisador especializado, tornou-se o modelo da ex- nos sentiremos decididamente mais "livre", porque menos "livro".
periência da verdade pós-moderna: de uma verdade múltipla que Mas será ela uma liberdade acompanhada por uma interioridade
jamais se deixa possuir por um indivíduo, logo nem mesmo pelo rica, ou (somente?) antes uma independência no fundo vazia, aberta
espírito absoluto hegeliano, ao menos na medida em que esse é a toda forma de dominação carismática? (Isso já é visível nas
pensado como ato pontual, como o nós noeseos* de Aristóteles. classes juvenis de hoje, nas quais a capacidade de trabalhar em
A segunda parfe desta exposição - que infelizmente será muito computador é acompanhada de uma abertura à predicação de pro-
curta - deveria responder à questão: como retomar e realizar os fetas de todo o gênero.) É talvez neste ponto que nossa discussão,
mesmos "valores" de nossa Bildung numa situação onde o compu- e nossa pesquisa, deveria começar.
tador e a comunicação eletrônica substituem cada vez mais os livros?
Se nos colocamos uma questão parcial, poderemos também descobrir (Tradução do original francês de
que o pequeno balanço que acabamos de propor não tem apenas uma Claudius Bezerra Gomes Waddington)
saída catastrófica; poderíamos descobrir que existem perdas e ga-
nhos, e estamos, sobretudo, certos de que seria preciso refletir. Creio
que o aspecto mais difícil, porém igualmente mais "intrigante", do
que nos aguarda nas novas condições de transmissão da cultura, é
talvez o que se chama de interatividade das comunicações informá-
ticas. Os surrealistas anteciparam isso (conscientemente? não o
creio) em seus jogos dos cadáveres excelentes** Ao invés de propor
novas interpretações de textos, o leitor informático intervirá cada
vez mais nos próprios textos. A questão já se coloca hoje sob a forma
das leis de direito autoral, um direito que se torna cada vez mais difícil

Em grego no original.
O "jeu dês cadavres exquis' era praticado em grupo pelos surrealistas. Consistia em
cada participante escrever uma palavra num pedaço de papel que era dobrado e
passado adiante, compondo-se assim uma frase (Nota do tradutor).

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A PROPÓSITO DA HISTÓRIA
DE UMA VIDA: O LIVRO

GERD BORNHEIM

A constatação oferece todos os requintes da obviedade: para escri-


tores, pesquisadores, intelectuais, professores o livro vem se tornando,
já em sua própria forma física de ser, um problema, um objeto freqüente
de discussões. Justamente uma das principais, senão a mais importante
via da moderna forma de expressão, transforma-se agora em inusitado
alvo de inquietações. E é claro que esse alvoroço, em tudo novo, merece
o carinho da melhor consideração. Traço a seguir, e já que tanto se fala
em crise do livro, alguns tópicos sobre esse tema de relevância que nem
poderia ser exagerada.
O primeiro decorre justamente do fato de que sobre o livro tanto se
fale. Exatamente as pessoas menos suspeitas, as industriosas em sua
confecção, entregam-se com ardor à defesa do livro, elogiam o seu
caráter de perenidade, de excelência, de realidade insubstituível, e por
aí afora. Pois parece-me que o problema já começa neste ponto, e é que
todos esses falares, precisamente pela sua insistência, pela sua convic-
ção - convicção de gente que escreve -, pelo seu entusiasmo até,
terminam levantando essa gravíssima suspeita: e se tudo estiver acon-
tecendo sob o signo da morte, da decadência definitiva, como se o livro
estivesse deixando esvair as própria raízes de sua razão de ser? Por que
esse novo entusiasmo em sua defesa, tão total e entregue, e talvez
desavisado? A questão se revela até ardilosa: por que esse objeto, o
livro, cuja existência já parecia tão espontânea, em tudo tão natural,
veículo privilegiado e tão inconteste - por que é que o livro, de repente,
passou a exigir tanto encômio em seu resguardo?

R
ev. TB, Rio de Janeiro, 142: 37/44, jul.-set., 2000 37
Afigura-se até que são exatamente os vigores desse resguardo que passa a ser um objeto manipulável pelo homem. Pois todo objeto
terminam por tudo pôr a perder. E nem se duvide da autenticidade já não é mais que o resultado de uma manipulação humana destinada
dessa paixão de tantos e mesmo necessária a quem quer que escreva. ao consumo. E instaura-se por aí esse nosso novo mundo, no qual
Convém levar a sério as bases em que repousam essas inquietações produção e consumo se perfazem numa espécie de necessidade eter-
e, com elas, o entusiasmo pela defesa do livro, expresso, até mesmo na, a fundamentar a democracia, a investividade humana entrosando
de modo precípuo, como foi dito, pelos escritores, por aqueles que a ciência e a técnica, sempre com o fito de erradicar a pobreza e
têm o livro, por assim dizer, entre as suas mãos. Mas já aqui, de saída, estabelecer o homem neste mundo.
remeto-me brevemente ao âmbito da revolução gutenberguiana, Claro que este contexto todo, aqui tão sucintamente delineado, não
quando, pela primeira vez, passou-se a oferecer o livro na plenitude poderia deixar de afetar o livro. Pois o livro é, antes de tudo, um
de um objeto, e objeto manipulável, acessível, tudo já acontecendo objeto, inteiramente submisso às regras da revolução industrial. E,
nos albores da democracia e da expansão do mercado. Esses inícios como objeto, o livro não poderia fazer-se ausente às rígidas normas
foram realmente auspiciosos. Pense-se, por exemplo, em tomar nas que passaram a nortear a confecção dos objetos. Considere-se, pois,
mãos um livro da biblioteca de Erasmo, ou de Espinoza; de feições fundamental para o nosso tema o fato de que o livro passa a ser, como
ainda um tanto rudes, ofereciam - e oferecem ainda hoje - o esplen- todo objeto, uma realidade manipulável. Os processos se inserem,
dor de uma forma de objeto, um tom solene até, de coisa que se queria simplesmente, no contexto geral por que passam os avatares da
ver respeitada entre os seus ainda poucos pares, como acontecimento categoria do objeto. O livro disso em tudo participa, e disso também
único e inédito. O livro era então, em seus começos, essa oferta em sofre as conseqüências: o corolário intrínseco à própria idéia de
tudo generosa, promissora, satisfeita em sua suficiência. Sem dúvida, manipulação está em que o objeto se torna agora descartável, e isso
esse elemento impresso representava a própria glorifícação da nova se aplica a tudo o que constitui o nosso mundo manipulado: vale para
hegemonia que começava a afetar a categoria do objeto. a pedra, para a maçã, a energia solar, a casa, para a máquina e toda
Não há como iludir-se: a edição da Bíblia, feita por uma maquina- a parafernália das aparelhagens. Talvez o museu não passe de um
ria quiçá ainda estouvada, logo revelaria a inteireza de seus destinos. modo de tornar descartável até mesmo a obra de arte, desenraizada
De fato, aquela Bíblia não passava de madrasta de procedimentos que que ela agora se faz em relação a qualquer contexto. Entende-se logo:
os tempos modernos descartariam com facilidade, e é que os tópicos também o livro se transforma numa realidade que facilmente se dilui
bíblicos sobre a predestinação divina, como que por ironia, cedo no abraço de suas próprias entrelinhas. A história do livro percorre,
viram-se substituídos pelos impressos imperativos do assentamento então, em exatas linhas, a história da própria categoria do objeto - de
da dicotomia sujeito-objeto, e as coisas se fizeram rápidas. Nos uma certa soberania presidida pelo cálculo até alcançar os desloca-
momentos inaugurais, isto: o esplendor do sujeito e a ostentação do mentos e a incontinência do descartável.
objeto. De permeio, e de modos em tudo esclarecedores, o progres- Descartável quer dizer: substituível e perecível. Os países mais
sivo imbricamento das relações entre sujeito e objeto. De fato, a avançados do mundo vêm-se dedicando a editar a obra de tantos autores
revolução industrial, e com ela as transformações da técnica tipográ- quantos se quiser, em edições primorosas, as mais perfeitas que se
fica, tudo veio modificar. E isso a ponto de, em nosso tempo, tudo se possa imaginar, e o primor alcança as chamadas "edições de trabalho".
ter metamorfoseado em sujeito ou objeto, nada mais existindo que se E, no entanto, ao ler-se nelas uma página qualquer de Freud, o manu-
situe acima ou abaixo dessa dicotomia. Mais ainda: a partir do seio nem tão freqüente leva logo ao inesperado que já se fazia pressen-
envolvimento interno de sujeito e objeto, passa a desenvolver-se a tir: uma folha se destaca, remetida agora às mãos do leitor. Repito que
moderna sociedade de consumo, e nela, sujeito e objeto tornam-se as edições são perfeitas, mas a irônica substituição da costura da
realidades extensamente manipuláveis - o próprio planeta Terra lombada pela cola torna a dimensão material do livro simplesmente

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deplorável. Parece até que o destino do livro logo se emparelha com daquele saber totalizante pertence, por assim dizer, quase geneti-
o que a indústria vem chamando de xerox, ou seja, com essas camente à própria invenção do mundo ocidental; basta lembrar a
imensas pilhas de papéis avulsos que se acumulam, tudo destinado à edificação, já nos finares da grande maturidade do mundo grego,
desorganização do lixo - é assim que vem sendo feita a educação de da biblioteca de Aristóteles. Essa representação totalizante do saber
nossos estudantes em relação ao livro. E isso tudo ocorre justo agora construiu-se possivelmente de modo perfeito, pela última vez, no
em que qualquer professor de província pode alimentar o pequeno luxo ideário da Enciclopédia francesa do século XVIII - ela continha todo
de organizar talvez a sua nem tão pequena biblioteca particular. Será o saber, sistematicamente ordenado, e punha-se à disposição do
que os livros mais caros, os bem costurados em suas lombadas e com pesquisador que podia, então, dominar e criar a partir de uma totali-
capas solidamente encadernadas não se destinam à inutilidade decora- dade viva. São coisas que hoje já nem existem; ou existem apenas
tiva dos estoques dos colecionadores? franjas daquele ideal enciclopedista. Nossas bibliotecas desdobram-
Mas não se perverta o ócio dos colecionadores. O bibliófilo (e onde se agora em labirintos por assim dizer infinitos, que se deixam
o pesquisador que não se compraz em sê-lo?), tanto quanto vejo, deve vasculhar através de computadores que, também eles, não deixam à
ver os seus antecessores no deleite a que se entregavam, lá pelos idos sua maneira de oferecer caráter labiríntico.
do século XVIII, os fundadores dos famosos gabinetes de História Não há de ser por acaso que os tempos modernos souberam criar
Natural; colecionavam objetos raros, coisas como cobras embebidas dois meios de expressão: o sistema e o fragmento, ou o prolongamen-
em éter, pedras e areias estranhas, passando por esqueletos e o que quer to deste último que é o ensaio. O sistema oferece a transparência da
que fosse, mas sempre coisas de mundos distantes, a formar calidos- racionalidade enfim concretizada: o sistema tudo sabe e tudo trans-
cópios de alteridades. E nesses gabinetes destacavam-se os belos e mite. Já o fragmento vive de seus próprios tentames, de seus experi-
volumosos livros, não raro profusos em ilustrações, que relatavam as mentos, ele ensaia diversos caminhos, mas sempre nos meandros do
exóticas aventuras de tantos viajores por terras desconhecidas. A claro-escuro, das fainas inacabadas. E é importante observar, para
bibliofilia talvez não seja mais do que o prolongamento daquele espí- nosso assunto, que o sistema já não funciona, ou só funciona nas
rito aventureiro. ciências ditas formais, caso da lógica e da matemática, formalidades
Mas há de se averiguar também esse novo tópico, o do sentido das estas que, muito interessantemente, se fizeram plurais: hoje, coexis-
modernas bibliotecas. A questão não se poderia concentrar nas belas tem as lógicas e as matemáticas. E, mais importante ainda, está em
e adequadas dimensões, talvez ainda possíveis, da biblioteca do constatar que o meio de expressão como que universal de nossos dias
referido professor de província, nem na teimosia dos bibliófilos. está no fragmento, no ensaísmo. A biblioteca - e os livros dentro dela
Penso aqui nesses monumentos desvairantes, nos milhões de volumes não passa de ser apenas um amontoado de fragmentos, e fragmentário
que constituem as grandes bibliotecas e que hoje se erguem em tantos se faz até o indivíduo que disso tudo se aproxima. Na base de tudo,
lugares de nosso mundo. Elas são realmente deslumbrantes e soube- qualquer coisa como um ceticismo material, a desmantelar a própria
ram tornar-se em tudo insubstituíveis para qualquer tipo de pesquisa. realidade do livro. Ceticismo, no caso, quer dizer: o saber se faz
A ilusão concentra-se precisamente neste detalhe: o consultor pensa inacessível ao homem, ele só capta detalhes disso ou daquilo, posto
que, de repente, ele tem o livro concretamente entre as suas mãos; e, que a enciclopédia tornou-se inviável. Já não há mais espaço para a
de fato, assim é, e assim é necessário. Por que então falar em ilusão? cabeça de um Leibniz.
É que a grande biblioteca já não representa mais o saber, ou já não o De certo modo, a biblioteca passou a viver da impossibilidade de
faz de modo concreto em seu saber total; perde-se agora nas minu- seus próprios pressupostos, ela se desmente no ritmo mesmo de seu
dências, no escrúpulo da observação particular, do caráter tornado andamento. Mas isso tudo não afeta apenas a grande biblioteca como
incontrolável da visão fragmentária. E, no entanto, a transparência um todo - afeta, isso sim, e em primeiríssimo lugar, cada livro em

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particular. Cada livro é tão-somente, nesta perspectiva de consi- se a um mundo pretérito, já ultrapassado e que nem mais poderia
deração, o índice fundamental da crise de si mesmo, da inviabili- sustentar-se. Quero dizer que o que hoje se percebe está em que o
dade do projeto: tudo se confina em espécies de particularidades: o elogio da penúria deriva, antes, da exibição de uma extrema riqueza.
ensaio, o cálculo, o romance, a poesia, o fragmento que se quer modo Basta lembrar que até faz pouco tempo, nos idos de Kant, havia
de ensaio, o cálculo preso no enredo de sua imanência, a visão parcial apenas uma ciência bem estabelecida, que era a física de Newton;
que é o romance, as frestas da subjetividade que é a poesia. hoje, a multiplicação das ciências tornou-se por assim dizer incon-
Parece que esse contexto todo não deixa de provocar uma espécie trolável. E isso para não falar da dicotomia arvorada a partir da
de vertigem, como se o homem devesse estar condenado a caminhar segunda metade do século XIX, que distingue as ciências da natureza
sobre algo como a ausência de fundamento. Não estranha, por isso, desse outro ramo, constituído pelas ciências da cultura, ou históricas,
que haja autores que falam em penúria, nosso tempo seria de modo ou do espírito, como insistem em dizer os alemães. Sabe-se que essa
até essencial um tempo de penúria. E talvez assim se possa falar, mas imensa diversificação terminou por gerar uma crise correspondente
isso, se verdadeiro, possivelmente num plano mais remoto, que no campo das metodologias e das próprias raízes do saber - e, na
estaria enraizado numa certa distância a provocar a cisão da biblio- ponta disso tudo, mais uma vez, a presença do livro. O livro, agora,
teca em relação aos seus próprios desígnios originários ou, então, como que esquecido de suas origens, assume limites exteriores a si
naquele ceticismo material acima mencionado. Por aí, a penúria próprio, a alastrar-se em bibliotecas infinitas - mas existirá hoje coisa
decorreria do advento de certo hiato essencial: portanto, na origem, mais alheia ao homem do que o infinito?
a biblioteca era apenas a unificação do saber plenamente dominável Evidentemente, toda essa situação leva com facilidade e até justeza
pelo homem, e o homem tinha o saber; o gênio dos tempos modernos a reconhecer algo como a glorificação do livro. A multiplicação das
ainda convivia com a objetividade total do saber criador. Mais tarde, bibliotecas e a imensidão inscrita em seus propósitos insere-se agora
já em nosso tempo, surgiu a vez da falação sobre a penúria, ou seja, em destinos preconizados nas próprias origens da fabricação do livro.
entre outras coisas, uma forma de proliferação que tornou totalmente Acontece, entrementes, que toda essa pujança, não obstante a sua
impossível aquela unidade do saber que era a própria razão de ser da óbvia necessidade, não passa de ser, mais uma vez, o índice da
biblioteca. Algo de análogo, de resto, verifica-se também na evolução extrema fragilidade do livro. A riqueza imprescindível à condição
de nossas universidades. De fato, a universidade assenta as suas humana de expressar-se, isso desde os tempos das inscrições nas
raízes numa bem estabelecida classificação das ciências, garantindo paredes de cavernas primitivas ainda hoje existentes, seguidas por
por aí uma visão unitária do conjunto. Aconteceu, entretanto, que a múltiplas formas de proliferação subseqüentes (pense-se nas espan-
expansão das ciências conduziu a uma fragmentação intrínseca da tosa história dos alfabetos), certamente encontrou no livro a sua
Universidade, e ela vive, em nosso tempo, da impossibilidade de configuração mais perfeita e significativa. Mas recorde-se que o
reconhecimento da unidade essencial que determinava a sua própria livro, aliado à invenção da imprensa, vem se expandindo no breve
razão de ser originária. E os problemas, em nada descartáveis, já decurso de alguns poucos séculos. Pois não é que as coisas hoje
começam por aí: e é que esses complexos todos não podem ser parecem perscrutar novos rumos? Reconheçamos que, a despeito
considerados ingenuamente como negativos. E, de qualquer maneira, mesmo da desmedida de todas as paixões, não faria sentido algum
é dentro de todo esse entrevero que devemos procurar entender qual pretender que o livro devesse constituir-se em realidade por assim
possa ainda ser a identidade do livro. dizer eterna e estável. Veja-se, por exemplo, o que parece não passar
De imediato, convém acrescentar a tudo o que foi dito que a de simples acidente: na última Feira do Livro de Frankfurt, realizada
referida penúria em nada se assemelha à pobreza, ou mesmo à simples neste ano de 2000, considerada o evento mais importante do universo
ausência de sentido. Se tal pobreza existisse, ela só poderia reportar- letrado, aparece, como que de repente, a grande novidade: o primeiro

42 Rev. TB, Rio de Janeiro, 142: 37/44, jul.-set., 2000 ..TB, Rio de Janeiro, 142: 37/44, jul.-set., 2000 43
exemplar, fartamente premiado, de um livro eletrônico, e nem há
de ser tão difícil imaginar o que o novo rebento possa vir a significar.
Na era da tecnologia, os progressos revelam-se irreversíveis. Mas
talvez sobre um pequeno e nostálgico espaço para a extrema genero-
sidade dessa espécie de bibliófilos em que todos nós nos tornamos -
na medida em que o livro conseguir sustentar-se em nossas mãos.
Entretanto, advirta-se que a pior das saídas está sem dúvida, por
inútil, em alimentar qualquer forma de preconceito contra os avanços PARÁBOLA DO LIVRO NA CULTURA GLOBAL
da tecnologia. Mesmo porque não serão tais avanços que irão atra-
vancar os descendentes de Machado de Assis. FRANCISCO DELICH

A globalização, tão mentalmente elaborada na última década do


século passado*, não é produto recente. Isto está muito bem demons-
trado por Aldo Ferrer em sua Historia de Ia globalización (História
da globalização), cujo segundo volume acaba de ser editado pela
Fondo de Cultura Econômica. Em sentido estrito, a primeira ordem
mundial se instalou com o descobrimento e ocupação da América por
parte dos espanhóis e portugueses. Coincidiu com a invenção da
imprensa e o prenuncio da difusão em massa do livro, séculos depois.
Os livros - lembremo-nos - se escreviam e se ilustravam à mão,
eram produto da inteligência e habilidades individuais e manuais que
registravam e continham os códigos da vida e a memória dos povos.
De maneira que, com os espanhóis e portugueses, desembarcaram,
não apenas guerreiros e sacerdotes, mas também livros, objetos
estranhos aos nativos.
Na América do Sul, os jesuítas se instalaram e, como se sabe,
evangelizaram os índios no antigo vice-reinado, sem impor seu
idioma nem tampouco utilizando textos sagrados que traziam con-
sigo, em latim, na maior parte dos casos, mas também em castelha-
no. Ao fim de um século, advertiram que a consolidação da evan-
gelização (a propósito, nada fácil) requeria algo mais do que pala-
vra, disciplinas e organização teocrática da economia e da socieda-
de indígena. Sua tarefa ia mais além da conversão à nova fé;
propunha-se incluí-los para sempre na fé cristã. A nova moral

O autor se refere ao século XIX (NT).

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religiosa e o acesso à cultura ocidental requeriam algo mais doutrinadas em nossa santa fé. Com um confessionário e outras
permanente do que as homílias e os rituais. coisas necessárias para os que doutrinam, que se contém na página
A verdade estava no Livro Sagrado e este objeto - o livro - era seguinte composto por autoridade do Concilio este catecismo para
também sagrado e, por isso mesmo, inacessível aos profanos. O educação de curas, de índios e um terceiro para a expansão dos
Livro Sagrado não era acessível às tribos evangelizadas por serviços).
razões estritamente idiomáticas. Os jesuítas tomaram duas deci- Um Congresso Provincial dos jesuítas, celebrado em Lima, em
sões que hoje, quatro séculos depois, imprimem sua marca e suas 1583, fixou as bases teológicas deste excepcional catecismo.
conseqüências, merecendo o mais amplo reconhecimento. Deci- Estes livros iniciais, distantes e incompreensíveis para os índios, em
diram, em primeiro lugar, evangelizar no próprio idioma dos breve menos alheios, compreensíveis quando lidos na própria língua,
evangelizados, na língua aimará, quíchua e guarani. Conseqüen- contribuíram para consolidar uma rara parábola histórica. Seriam estes
temente, decidiram dispor os textos sagrados no próprio idioma livros - e outros - que legitimariam o protesto e a insurreição contra os
indígena. Necessitavam de uma prática de tradução para essas dominadores. Os Livros Sagrados, vulgarizados, seriam incluídos na
línguas e também de um espaço onde pudessem educar as elites identidade coletiva e se rebelariam contra a antiga ordem colonial,
locais que, cedo ou tarde, necessitariam ser cooptadas. Fundaram, sustentada no analfabetismo, e, claro, na coerção.
em 1613, a Universidade de Córdoba que, durante o século XIX, Os livros sagrados, quando o Estado moderno, no Ocidente, defi-
em seguida à independência nacional*, foi secularizada e incluída niu-se como uma instituição laica, foram confinados à privacidade
na jurisdição do Estado provincial, em primeiro lugar, e depois, dos crentes. Outros livros ocuparam seu lugar, porém não lograram
nacional. substituí-los. Novos livros contribuíram logo para definir a identida-
A Biblioteca Maior da atual Universidade Nacional de Córdoba de, não mais tribal, mas, sim, nacional.
tem sob guarda uma impressionante coleção de livros que acompa- Em todo caso, os livros e a palavra contribuíram, primeiro, para
nhou a expansão jesuítica, até sua expulsão das terras americanas, no a Independência e, em seguida, para a formação das cidadanias.
século XVIII. Ali se pode seguir, com relativa facilidade, a aventura O livro civilizador, na medida em que avançou a industrialização,
do Livro Sagrado em terras do novo mundo. O primeiro catecismo e, por outro lado, no momento em que as sociedades se conscien-
em aimará e quíchua, edição trilíngüe, se relaciona com países hoje tizaram da importância da educação universal, se difundiu entre
oficialmente bilíngües como a Bolívia e o Peru; logo a seguir em públicos dispostos a devorá-los ilimitadamente. Aqui, surgiram
guarani para o Paraguai, também bilíngüe, utilizados durante séculos os paradoxos de uma parábola desconcertante: por que motivo se
para facilitar a integração dos evangelizados com os evangelizadores. lê cada vez menos nas sociedades contemporâneas? Nos Estados
Em 1584 e 1585, publicou-se a Doctrina Christiana y Catecismo Unidos, segundo divulgam alguns jornais, os alunos passam
para instrucción de los índios e de Ias demás perfonas que han de 11.000 horas anuais na escola, contra 15.000 em frente da televi-
fer enfenadas en nuestrafantafe Con un confesionário y otras cosas são. Na Argentina, cálculos razoavelmente confiáveis assinalam
necefesarias para los que doctrinam, que fé contienem en Ia pagina que os alunos do ensino fundamental passam não menos do que
siguiente compuesto por autoridad dei Concilio este catecismo in- quatro horas diárias defronte de um televisor, mais do que dedi-
cluye un segundo catecismo para instrucción de curas, de índios y cam à escola.
un tercero para Ia expansión de servidos (Doutrina cristã e catecis- Assim, então, temos cada vez mais alfabetizados, tanto nos países
mo para educação dos índios e das demais pessoas que hão de ser avançados quanto nos emergentes, porém lendo menos. Por quê? Por-
que alfabetizamos mal, nos acomodamos em ensinar a ler e escrever,
na tradição antiga da recepção passiva em compreender os signos
* O autor se refere a seu país, a Argentina.

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para tornar óbvios os significados. Todos sabem ler e escrever, que jamais ocorreram. Um modo, entre tantos outros, de invadir a
dispõem de um instrumento formidável para a compreensão da vida, memória dos povos; os livros resistem à invasão de um estilo que não
da sociedade, dos códigos explícitos e implícitos. Porém a capacidade se relaciona com os países nem com suas histórias. A globalização da
para a leitura crítica e auto-estimulante continua adormecida. cultura avança, mas não é de ninguém. Os livros vacilam e os leitores
Enquanto se escrevem estas linhas, estamos recebendo mais de também.
duas mil resenhas críticas de livros, no marco da Primeira Olimpíada No entanto, a globalização, em sua etapa contemporânea, necessita
de Leitura para estudantes do ensino médio. São interessantes, algu- do livro, porque continuam sendo os livros, não importa como se leia,
mas fascinantes. Porém estamos nos reportando a 1% dos estudantes o suporte institucional do Estado. São os livros, livros canônicos, livros
em condições de participar. Em plena expansão industrial, posto ao de poesia, são os livros que identificam as nações e são os livros também
alcance de todos, no entanto, apenas discreta minoria sente a neces- que mobilizam as sociedades no sentindo de reconhecerem-se.
sidade de ler e de se expressar sobre os livros que lê. O segundo Quem são, então, os inimigos do livro? Provavelmente e em
paradoxo se refere ao Mercado. Os livros se compram e se vendem, primeiro lugar, a desvalorização da palavra e a fetichização do
em edições de bolso, em dignas edições populares acompanhando a gestual. A palavra fragilizou-se e não apenas em frente da gestuali-
edição dos jornais diários nacionais e regionais, em massa; estão ao dade, mas também como valor social.
alcance do poder de compra de setores da pequena classe média e Lentamente, as sociedades deixam de lado a distinção entre formas
ainda dos raros setores emergentes. Sem dúvida, compram-se menos e conteúdos, entre consciente e inconsciente, entre objetivo e subje-
livros. Certamente, a desigualdade social não ajuda em nada a con- tivo. Só vale a aparência primeira, sem antes nem depois, que se
solidar o mercado editorial. Porém não parece ser razão suficiente esgota em sua própria reiteração.
para esta apatia com a leitura. Em segundo lugar, um quase pragmatismo, correlato e vulgar,
Será então, como pensam alguns, que o avanço da vida digital é o empenhado em desterrar todo debate de idéias. No momento em que
inimigo que condiciona a vigência do livro e sua leitura? assomam as críticas discursivas, começa, de imediato, uma desvalo-
É verdade: a digitalização permite que cada qual disponha, em sua rização oblíqua. O que passa em branco não é a escrita em si mesma,
casa, de uma biblioteca virtual, assim acontecerá nos próximos anos, nem seu conteúdo, nem seu estilo. A idéia e o próprio conceito é que
mas muito além de toda nossa capacidade de consulta e absorção. Isto questionam a utilidade de qualquer discurso controverso. Argumen-
está e estará disponível, com certeza, ao redor do planeta. tar por si mesmo é considerado perigoso para o sentido comum
No entanto, existem duas restrições. A primeira é de ordem técni- estabelecido. Nestas condições, para que livros, se o que eles contêm
ca. É possível que os livros digitalizados, para proteger os direitos são os argumentos?
autorais e editoriais, não possam ser impressos. Poderão ser lidos e Finalmente, uma conseqüência necessária e infeliz derivada das
consultados, mas não copiados. A segunda é de ordem subjetiva. O duas anteriores: o pensamento único; a história ensina o suficiente
prazer estético que põe em relação de intimidade a mão, o olho e a sobre as conseqüências e destinos para a liberdade quando o pensa-
contemplação, ao correr das páginas, é irrepetível. Ninguém pode mento único se apossa das sociedades; ele que agora se difunde com
confundir o cinema com o teatro. Em ambos os casos, o prazer pode a globalização é provavelmente mais sutil. O pensamento único não
ser imensurável, mas são distintos. se diferencia dos outros pensamentos, mas conforma em si mesmo
O terceiro paradoxo refere-se ao avanço da globalização, também um gigantesco vazio, a que assistimos, entretanto, sem reagirmos.
no caso dos livros. Assimilam-se os gostos. O best-seller transcende
as fronteiras nacionais e regionais. Um estilo planetário privilegia (Tradução do original espanhol por Carlos Sepúlveda)
os relatos neo-históricos, quer dizer, uma invenção de histórias

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AS METAMORFOSES DO LIVRO E DA LEITURA

MAURICE AYMARD

A reflexão a que fomos convidados se deve situar na junção de


duas grandes interrogações: o futuro do livro na era eletrônica e
o lugar do livro entre a nação e o mundo, na era da globalização.
A inquietação levantada pela primeira não deixa de surpreender.
Ela afeta, com efeito, as regiões do mundo que são, ao mesmo
tempo, as mais alfabetizadas, as mais profundamente marcadas
pela cultura européia, e as mais tributárias, em seu funcionamento
cotidiano, da escrita sob forma impressa e de sua circulação. As
mesmas regiões em que a demanda em matéria de produção e de
circulação da informação não cessou de estimular a inovação e
seus aperfeiçoamentos cada vez mais rápidos.
Esta inovação respondia no começo, em suas aplicações civis
e não mais militares, às necessidades de comunidades científicas
restritas, em forma de clubes onde todos os membros se conhecem
e se cooptam. Ela se estendeu, pouco a pouco, a grupos cada vez
mais amplos, constituindo verdadeiras redes, ignorando frontei-
ras, e cuja formação e dinâmica de expansão são com freqüência
submetidas a outras práticas: é preciso atrair, incluir ou seduzir,
por todos os meios, parceiros que não se conhecem e não sabem
nada um do outro. Ela se limitou, em princípio, a textos que se
situavam freqüentemente no limite entre o oral e o escrito, e iam
da mensagem pessoal ao texto mais elaborado: a rapidez da
circulação repercutia sobre a redação, donde a procura de um
estilo mais direto, ignorando ou desviando as regras da correspon-
dência formal ou do texto acabado, pronto para ser impresso. Ela

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atinge hoje as fronteiras da edição: ela ameaça colocar em questão termhais de emissão e de recepção), a circulação é percebida pelo
todas as suas estruturas de produção, de distribuição e de consumo, usuário como instantânea (os únicos atrasos devendo-se aos pos-
assim como, mais profundamente ainda, o próprio estatuto do texto e a síveis engarrafamentos das auto-estradas da informação), e indi-
relação entre autor e leitor. Paralelamente, ela se enriqueceu de poten- ferente às distâncias, como se ela fizesse o mundo inteiro viver à
cialidades suplementares que lhe dão uma vantagem decisiva sobre o mesma hora. Ela permite, desta forma, ao impresso desempenhar
livro tradicional: a possibilidade de associar sobre o mesmo suporte, não papel igual ao do oral, que progride no mesmo ritmo, na
apenas o texto e a imagem, mas também o som, e dar a esta associação medida em que utiliza o mesmo instrumento de transmissão
um caráter dinâmico e móvel (e não mais estático) e interativo (o " leitor" codificada: um telefone que é, com freqüência cada vez maior, ele
dispondo de uma liberdade e de uma margem de iniciativa infinitamente também, digital.
maior de modos de consulta). Os limites precedentes, hoje esquecidos, tendem, é verdade, a
Fundamentalmente, portanto, a "era eletrônica" se situa ao ceder lugar a outros, ligados a problemas de saturação. Saturação das
menos tanto sob o signo da continuidade quanto da ruptura com memórias dos computadores, atulhadas, apesar do crescimento de sua
relação à era de Gutenberg. Ela libera, com efeito, o impresso da capacidade, por causa do fluxo das mensagens que não ousamos mais
maioria das limitações de que ele permanecia prisioneiro já há jogar fora, como se todo escrito devesse ser conservado. Saturação
cinco séculos, apesar dos progressos realizados particularmente da capacidade de leitura dos destinatários e a dificuldade cada vez
desde o começo do século XIX, mas se situa na mesma lógica. maior de mobilizar sua atenção. Sufocamento dos autores, incapazes
Fim dos limites do volume de informação circulando sob forma de fazer face à demanda de textos de que são alvo, e tentados a
impressa, ligados à capacidade e aos custos da composição e da construir, a custa de "copiar-colar", umpatchwork de fragmentos de
impressão por empresas especializadas: toda divisão de trabalho textos redigidos por eles mesmos ou por outros, que opõe à plurali-
é abolida, porque todo autor pode compor ele mesmo seu texto e dade das leituras possíveis a das reutilizações do mesmo texto.
escolher os destinatários, e todo leitor tem a escolha de ler no seu Paralisia das redes, cuja expansão por demais rápida suscita descon-
monitor ou de imprimir, de conservar, de transmitir a outrem ou fiança ou indiferença, e o desejo de retornar a círculos mais restritos
de jogar fora a informação recebida, e, certamente, de responder, de comunicação, protegidos de todo vírus e de toda indiscrição, logo
tornando-se por sua vez autor. A escrita de imprensa consegue de reconstituir hierarquias e espaços reservados ao interior de um
assim ocupar (o que ela vinha apenas ensaiando há um século com sistema julgado, doravante, muito aberto para todos. Saturação, en-
a máquina de escrever) uma larga parte do campo reservado até fim, dos acessos às bases de dados, vítimas de seu gigantismo, e das
aqui à escrita manuscrita, que a invenção da imprensa havia expectativas, tanto mais significativas quanto em parte utópicas, que
transformado, em contrapartida, no signo do individual e da inti- se alimentam de um saber (ou de uma simples informação) que seja
midade: o instrumento da correspondência pessoal e da criação realmente enciclopédica.
literária, mas também, através da assinatura (que havia substituí- O jogo, obviamente, permanece aberto e o balanço que se pode
do o selo) e da grafologia, a expressão mais profunda e a mais esboçar hoje pode ser rapidamente posto em questão por inovações
inimitável da personalidade. E esta vitória da escrita impressa técnicas e modificações práticas. A escrita manuscrita pode, a termo,
atinge também países como a China ou o Japão, onde os ideogra- encontrar seu lugar de pleno direito nos monitores, e pôr fim ao
mas haviam bloqueado o uso da máquina de escrever, ao passo reinado do teclado, de que o economista Paul David fez, em artigo
que se entendem perfeitamente bem com o computador. célebre, o modelo das escolhas técnicas de longo prazo, criadoras de
Fim, doravante, dos limites espaciais ou temporais à circu- rigidez e de irreversibilidade mais ou menos longas (uma duração,
n
lação do texto: desprendida de todo suporte material (além dos este caso, simplesmente secular, o que é pouco para um historiador

Re
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formado na escola de Fernand Braudel, cujas "prisões de longa Se o livro parece hoje posto em causa é que ele havia lentamente
duração" tinham ilustrado, vinte anos antes, a mesma intuição). conquistado, em nossa cultura, um lugar e um estatuto igualmente
A mediação de toda escrita pessoal faz parte do universo de privilegiados. Prestígio do texto, referência simultaneamente religio-
possíveis visualizados, o computador, transcrevendo ele mesmo sa e literária, que se deve reproduzir e transmitir para proteger contra
sob forma de texto o som da voz. O monitor, elemento atualmente o esquecimento, mas também ler para se apropriar e se identificar
insubstituível da cadeia, esquartejado entre a miniaturização (os com uma cultura e com um conjunto de saberes profissionais (direito,
computadores de bolso) e, ao contrário, o alargamento (que per- medicina, teologia) ou mais desinteressados (filosofia, poesia etc). A
mite justapor vários textos) pode ceder lugar a suportes de utili- imprensa não havia apenas permitido multiplicar o número de cópias
zação mais flexível e menos constrangedora. Da mesma forma, em circulação e colocar à disposição de uma clientela mais ampla um
podem evoluir as preferências dos usuários, que hesitam ainda número maior de obras (crescimento quantitativo), ela havia condu-
hoje entre a leitura direta ao monitor e a impressão dos textos zido ao desenvolvimento de um conjunto de disciplinas eruditas que
preparados (para uma correção mais atenta) ou recebidos (para concorreram para recuperar a pureza do texto original, para liber-
leitura n eventual classificação mais conformes com seus hábitos tá-lo de todas as adições voluntárias ou não e de todos os erros
ou com suas necessidades). E que preferem ainda as bibliotecas dos copistas, para estabelecer assim uma versão única de referência
(das quais consultam ao monitor os catálogos), como lugar de (mutação qualitativa). Mas, em nível dos modos de apresentação do
acesso aos livros, à leitura ao monitor das obras digitalizadas. texto, ela havia retomado a forma do codex, feito de folhas dobradas
Mas quaisquer que sejam as mudanças possíveis, elas se inscrevem e reunidas, de que a Idade Média havia confirmado a substituição ao
na perspectiva de uma generalização e de uma multiplicação dos usos rolo (volumeri) da Antigüidade Clássica - uma mutação que parece
do escrito como meio de comunicação, de circulação da informação, poder ser datada entre os séculos II e IV da nossa era, e na qual a
de transmissão dos conhecimentos e de acesso a eles. Que esta reprodução dos textos do início do cristianismo parece ter desem-
generalização e esta multiplicação se refiram ainda hoje apenas a uma penhado papel pioneiro. 1 Esta forma servia, particularmente bem,
minoria dos países e da população do planeta, e que somente uma aos usos religiosos do texto, associando as leituras das diferentes
parte dos alfabetizados tenha acesso ao universo eletrônico, não há passagens das Escrituras ao ritmo das horas, dos dias e dos meses.
dúvida. O computador exige, assim como a instalação e a manutenção Mas tinha também, entre outras vantagens, a de permitir, ao
das redes, pesados investimentos em material e em pessoal qualifi- mesmo tempo, a leitura cursiva, a identificação de um texto
cado, que contribuem para cavar novos e duradouros fossos entre preciso (graças à numeração das páginas e ao estabelecimento de
"pobres" e "ricos": a lógica da extensão do mercado, à procura de sumários e índices), e a comparação de diferentes páginas da
novos clientes, será suficiente para levar as instituições públicas e mesma obra ou de diferentes livros.
privadas, bem como os particulares, a fazerem os investimentos Se nossos computadores marcam, deste ponto de vista, uma
necessários, cuja amortização das despesas de pesquisa provocaria a volta ao passado, visto que eles rolam o texto diante de nossos
baixa dos custos? Um otimismo sem reserva seria, sem nenhuma olhos como um volumen antigo, eles procuram compensar este
dúvida, excessivo. Mas o livro e a carta não seguiram a mesma rota? defeito com a paginação, a indexação e as possibilidades de busca,
Produtos caros, reservados às elites, se "democratizaram" lentamen- por palavra ou frase, e de impressão, sempre possível, do texto
te. O importante é ver que as mudanças atuais constituem nova etapa que nos restitui a forma familiar do codex. Mas, sobretudo, eles
de sua história: e-boók e e-mail somente existem, se desenvolveram propõem, graças ao hipertexto, um modo de leitura radicalmente
e se impuseram em referência a esta história, mesmo se seus efeitos novo, infinitamente mais livre que o do livro, ao mesmo tempo
podem se revelar revolucionários a mais longo prazo. que se situam na mesma lógica, na medida em que o hipertexto

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permite generalizar ao infinito a comparação, ligando potencialmente dos países francófonos". Mas, por acaso, o mesmo programa me per-
cada ponto do texto com todos os outros, e autorizando, assim, leituras mite ignorar estas recomendações...
por encomenda, que jogam com as estruturas profundas e freqüente- Observando-se mais de perto, as línguas nacionais não são as únicas
mente ocultas do texto.2 a se saírem bem neste novo contexto: as línguas regionais ganham a
Mas os próprios computadores se encontram confrontados com o possibilidade e o direito de retomar o lugar que a imprensa lhes havia,
mesmo desafio que a imprensa havia encontrado em sua rota: o da durante muitos anos, recusado ou estritamente medido. A era eletrôni-
língua, ou antes, da ausência de uma língua comum. E isto, mesmo ca, atuando em favor da flexibilidade contra a produção em massa,
se as posições podem parecer, em 2000, exatamente opostas às de alarga e renova, com efeito, de maneira espetacular o "mundo dos
1500. A imprensa havia sido inventada num contexto em que os possíveis" :3 ela permite descentralizar a produção, a circulação e o
intelectuais europeus tinham o domínio de uma língua comum, o consumo, e de tornar rentáveis, na medida em que os custos são
latim, e ela devia servir para multiplicar edições de referência nesta bancados pelos autores e leitores, e não pelos editores, impressores,
língua. Rapidamente, contudo, as encomendas da clientela e as exi- divulgadores e bibliotecas de séries "curtas", criadores e organizado-
gências dos Estados colocaram-na a serviço da afirmação das línguas res de novos mercados sobre os quais a edição clássica poderá ulterior-
nacionais, a expensas tanto do latim, língua internacional, quanto dos mente se implantar, se sua rentabilidade parecer assegurada. A combi-
dialetos, relegados ao lado da oralidade. nação do global e do local pode, doravante, intervir mais facilmente
Hoje o inglês pode dar a impressão, num primeiro momento, de que em outras esferas, e recolocar em discussão a fronteira tradicional entre
poderia servir de língua comum da era eletrônica, na medida em que era línguas e dialetos, que passa, precisamente, pela existência de uma
a língua na qual haviam sido concebidos os computadores, seus progra- literatura escrita e de uma gramática.
mas e as redes sobre as quais os internautas surfam. Mas, se os Estados Podem-se assim precisar-se três níveis de produção e de circulação
intervém pouco, ou à margem, para impor seus idiomas a usuários de textos, em relação à língua utilizada: língua de comunicação inter-
preocupados em utilizar todas as novas liberdades que suas novas nacional (o inglês e, mais raramente, o espanhol, francês ou português),
máquinas lhe oferecem, as línguas nacionais se recuperaram rápido e língua nacional e língua regional. A estes três níveis correspondem
impuseram que os computadores e seus programas fossem adaptados às tantas definições de pertinência que ressaltam, como essencial, a deci-
necessidades dos usuários: mesmo se um número crescente de usuários são dos indivíduos e das organizações privadas, e que escapam, por sua
lêem e escrevem em várias línguas, elas permanecem línguas da comu- vez, daquelas relativas aos Estados: estes não têm outra escolha, em seu
nicação cotidiana e majoritária. É preciso, portanto, lhes adaptar as esforço por manter sua língua nacional, senão como língua central em
escritas disponíveis no computador (alfabetos, silabários ou ideogra- seu sistema de ensino e funcionamento da vida cotidiana, tanto quanto
mas), bem como os programas de correção ortográfica e gramatical. facilitar o aprendizado da língua internacional, nas escolas, (indispen-
Depois de ter, como meus antigos professores na escola, sublinhado com sável em todos os setores sujeitos a concorrência) e tolerar, quando elas
um traço vermelho, em sinal de protesto ou advertência, e-mail e e-book, não se sustentam, as línguas regionais, utilizada em ambiente familiar
mas também primavera e verano, para não falar de " Ia muerte", meu e promovida por autoridades locais. Entre estes níveis, nenhuma outra
computador acaba de assinalar que patchwork é um anglicismo e que mediação é possível senão a dos indivíduos sozinhos, obrigados buscar
eu deveria preferir o termo "mosaine" ou "arlequine" que propõe o sua expressão em meio a inúmeros registros lingüísticos, de modo que
Diário Oficial da República Francesa, do qual ignorava a existência, os programas de tradução automática não atingiram uma qualidade
assim como meu dicionário Larousse Lexis, editado, é verdade, em suficiente a ponto de garantir sua credibilidade. Inúmeros atores são,
1982, mas rico em 76000 palavras, cobrindo tanto a língua clássica e propriamente, capazes de multilingüísmo, esta superposição de níveis
literária quanto o vocabulário contemporâneo e os "termos regionais e nada tem de rígido, ela assegura uma margem de liberdade de escolha

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e a possibilidade de redefinir, de acordo com as circunstâncias e dos os livros foram convocados a mudar, por sua vez, de suporte, de forma
conteúdos de informação, as redes em fronteiras móveis. e de conteúdo, e se as definições de " autores" e de " leitores" concor-
Enfatizar, de modo exclusivo, a liberdade dos atores e as novas darem em modificar-se, bem como as relações que mantêm entre si e
possibilidades que oferecem aos atores, bem como aos leitores, a com os livros. Pois atribuir a estes três "objetos" inscritos na história
redefinição da cadeia de produção e distribuição do livro, oferecerá o uma estabilidade e uma permanência, que jamais tiveram, será um erro
risco, entretanto, de falsear as perspectivas. A importância dos investi- fundamentaldeperspectiva.
mentos exigidos pela informatização, a dimensão mundializada do Esta constatação acerca do universo da Internet marca, na verdade,
mercado da comunicação, que ultrapassam largamente as fronteiras do o primeiro e, sem dúvida, o mais profundo limite de nosso debate
mercado editorial, o contexto jurídico do direito autoral, a diversidade desses três dias. De que se trata, afinal? Trata-se da solitária minoria,
das formas sob as quais o mesmo texto é suscetível de ser apresentado expressa em porcentagem, e, além do mais, muito injustamente
a diferentes públicos (livro do CD-Rom, simples ou multimídia, filme distribuída em escala planetária, para a qual as novidades tecnológi-
ou programa televisivo, etc) tem favorecido a emergência de grandes cas foram colocadas na ordem do dia, a fim de responder às suas
empresas operando em escala internacional; que surgem, hoje, influen- necessidades crescentes em matéria de informação e de comunica-
ciando não somente, em razão de campanhas promocionais caríssimas, ção: uma minoria que tem também a vontade e os meios para fazer
a produção, a distribuição e a venda - em uma palavra: fabricação dos os investimentos necessários? Ou, de outro modo, a totalidade da
best-sellers - mas também a própria criação.4 Tudo se resume, mais do população do mundo ou mesmo apenas suas elites solitárias?
que nunca, a um problema de escala. Entre liberdade total, onde cada Entende Madame Gyoretti Kyomuhendo de nos falar do livro que,
um se tornará editor e difusor de seu próprio texto, selecionando os na África subsaariana, talvez seja percebido pelo leitor como exclu-
leitores, e a dominação sem limites desses grandes grupos, capazes de dente, em face da comunidade, na medida em que se tornou objeto
modelar e orientar os gostos do consumidor, o jogo está feito, mais do de uma leitura individual, solitária e silenciosa; nunca se pode pensar
que nunca. nisso senão em face da história da leitura no Ocidente europeu, na
Será melhor deixar de lado as fórmulas abusivas ou inutilmente época medieval e moderna: a leitura individual foi uma longa con-
apocalípticas acerca dessas três mortes associadas: morte do livro, quista (ou o produto de longa evolução, se se prefere, para evitar a
morte do autor (anunciada, em 1968, por Roland Barthes num outro conotação triunfalista do termo "conquista"), que se consolidou, no
contexto, é verdade, uma vez que o autor houvera sido vítima, não mínimo, ao longo de seis ou sete séculos. Houve, antes de tudo, a
da máquina, mas da onipotência do leitor), e morte do leitor. Uma presença dos monges, estes profissionais da leitura, cujas regras de
coisa, porém, sobrou disso tudo: a galáxia de Gutenberg, aquela da conduta os fazia, precisamente, viver desligados do mundo. Durante
generalização da comunicação escrita sob uma forma impressa (mas muito tempo, isto coexistiu com a prática da leitura em voz alta, às vezes
obrigatoriamente sob suporte de papel), está mais viva e sólida do individualmente, mas, na maioria dos casos, coletivamente, como os
que nunca, contrariamente às profecias pessimistas de Marshall Mc camponeses franceses no alvorecer do século XVIII, que não sabiam
Luhan, que anunciou seu fim, ligado ao triunfo da imagem; as novas ler, ou liam mal, ou, mesmo sabendo, preferiam esta forma de recepção
tecnologias foram recolocadas no centro de um sistema de comuni- e de apropriação do texto àquela que hoje nos parece superior e óbvia;
cação renovada, pois se abriram à participação ativa do leitor, e ora, esta forma preenche, pelo menos, duas necessidades: uma leitura
também ao texto, ao qual podem estar, doravante, associadas não rápida, permitindo a cada um assimilar mais rapidamente um fluxo
apenas a imagem, virtual ou real, estática ou em movimento, mas crescente de informações complexas e matizada - a leitura oral acaba
igualmente o som. O universo da Internet é um universo de leitores sendo, desde então, percebida como simplificadora -; por outro lado, a
e de autores. É também um universo de livros. E, mesmo assim, se leitura silenciosa foi também entendida como necessária à compreensão

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em profundidade, como se o som da voz constituísse um obstáculo. com o computador; também a distinção entre o saber acumulado por
Significativamente, a leitura de um texto escrito em voz alta, lá onde ele gerações e mesmo civilizações precedentes, simbolizadas pelos textos
persiste, no fundo, é claro, das cerimônias religiosas, tende a se disfarçar antigos, religiosos ou não, e a criação original - ou que procurava ser
por detrás da aparência de improvisação, da palavra falada: o jornalista ou parecer original - aplicadas aos gêneros novos ou renovados: a poesia
da televisão faz isto, parecendo nos olhar nos olhos, enquanto lê o texto, e a filosofia, a história, o romance, a novela, o ensaio, quer dizer: tudo
redigido previamente, e que se cola no " teleprompter" (mais um angli- o que chamamos hoje literatura, cuja afirmação impôs-se ao preço de
cismo que meu computador sugere substituir por " teleponto" ,* situado múltiplas "renascenças" e de não menos da querela dos "antigos e
por detrás da câmera. O ensino tende a relegar para segundo plano esta modernos", que visam legitimar as rupturas, daí o direito à inovação,
antiga prática de leitura de textos em voz alta, feita por um professor, em contrafação com simples respeito à tradição.
que há muito tempo vem se chamando "leitor", ou pelo aluno. Dentre essas renovações no campo da imprensa, convém fazer
A história, então, nos convida a pensar que a etapa do livro, e de tudo exceção à recuperação da tradição oral por parte da literatura oficial,
aquilo que o acompanha em matéria de relações restritas ou generaliza- que precede, freqüentemente, sua circulação por meio do livro,
das numa sociedade com uma cultura escrita, fixada e difundida sob ilustrado ou não, para um público mais amplo, graças a edições
forma manuscrita ou impressa, não pode, portanto, ser ignorada, pelo resumidas: percurso que simboliza os Contos de Perrault.
menos não inteiramente. Estamos hoje, efetivamente, numa situação Deste ponto de vista, Menocchio não deixa de ser particularmente
muito diferente da que foi criada há pouco mais de cinco séculos: a representativo das transformações que nc s prendem ao século XVI.
invenção da imprensa de tipos móveis, na Europa Ocidental. Sua passagem por uma escola pública cimentar não passa de uma
Isto interveio nas sociedades onde ler e ter acesso ao livro era, hipótese, deduzida por Cario Ginzburg do fato de ele sabar "ler,
ainda, privilégio de uma minoria. Permitiu, antes, produzir, em escrever e contar", mas que não se confirma.--A dúvida é reforçada
grande quantidade e custo menor, obras para o público habituado ao pelo fato de que ele não se preocupou, de modo algum, em transmitir
livro manuscrito. Porém, muito depressa, os editores se dedicaram a seu saber a todos os seus filhos, porque, pelo menos um deles,
diversificar sua produção e a baixar os custos, a fim de atingir novos Ziannuto, aquele que aparece com mais freqüência ao longo do
públicos, que não tinham ou não teriam nunca acesso ao livro processo, é analfabeto. A dezena de obras que ele parece ter lido, a
manuscrito. Eles foram beneficiados por um contexto favorável crer-se nas citações que faz, são, em sua maioria, textos anteriores à
de progresso na alfabetização pela escola, o que encorajou, na imprensa, religiosos (a Bíblia, a Lenda dourada de Jacques de Vora-
mesma época e por razões inteiramente diferentes, as Igrejas e os gine) e não religiosos (John Mandeville, Boccacio5). E, mesmo que
Estados - mas também as famílias desejaram e mantiveram - a tenha feito uma leitura individual, sobretudo não-crítica, apressa-se
levantarem financiamentos locais, nos burgos e nas pequenas cida- em partilhar a oralidade de suas leituras consigo mesmo, como se não
des, para pequenas escolas, da mesma maneira como financiavam os pudesse se contentar com um tête-à-tête pessoal com o texto e tivesse
estudos de seus filhos em faculdades e universidades. necessidade, ou de mediação, ou de confirmação da palavra, e compar-
Os mesmos editores, para atingir novos públicos, favoreceram tilhar com os outros o conteúdo da mensagem ou das idéias que se lhe
notável ampliação no campo da escrita, que conduziu à formalização inspirava: será preciso esperar mais de um século pela formulação, por
de dupla distinção: a distinção entre o texto, restaurado à sua forma Spinoza, do célebre Larvatus prodeo. A escola, com todos os processos
original, e o comentário ou a glosa, que a escritura manuscrita tendia de aprendizagem e de domesticação que propicia, mas também de
a integrar no próprio corpo do texto, como se pode fazer, de novo, hierarquia dos saberes e da perspectiva de sua utilização, não passou
por lá. Ora, o livro de que falamos hoje está indissoluvelmente ligado à
* O autor utilizou o termo francês télésouffleur.(tlota. dos tradutores). escola e, de modo mais geral, a todo um sistema de ensino por onde

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passa a reprodução organizada de nossos saberes. O lugar que os nível: o dos custos de difusão e de distribuição que duplicam ou
verdadeiros autodidatas construíram, no campo da cultura, não cessa de triplicam o preço, quando mantidos nos circuitos tradicionais da livraria,
se restringir. que nos parece, entretanto, essencial salvaguardar. E percebe-se bem
É-nos necessário, então, levar em conta esta força e esta presença que a ganância dos grandes grupos de comunicação, mesmo quando eles
institucionais do livro e não apenas a leitura, em nossas sociedades, pelo se apressam em defender os direitos de seus autores (que fundam seu
menos naquelas onde está assegurada a alfabetização majoritária ou próprio copyright) consiste em eliminar os intermediários na difusão e
generalizada. Esta força e esta presença vão muito além do prazer distribuição, para atender diretamente os leitores e aumentar mais ainda
estético que os intelectuais - que somos - podemos ter quando vemos, o rendimento de seus próprios investimentos, graças ao preço na trans-
quando manipulamos, quando acariciamos sua encadernação, quando missão do arquivo.
sentimos o cheko do papel e da tinta. Este prazer estético não será A concorrência da edição eletrônica é, então, convocada a transfor-
suficiente para assegurar a sobrevivência do livro, se este não estiver mar, em torno de certo número de pontos essenciais, as condições
sido inscrito no mais profundo de nossos hábitos mentais, a tal ponto mesmas da escrita, a formatação do texto, sua disponibilidade para o
que a forma do livro possa ditar a forma de todas as adaptações leitor, enfim, a leitura propriamente dita.
eletrônicas atuais: caracteres, formato, paginação, etc. Todos os Soft- Em face da proliferação da escrita e da "impressão", a leitura
books, Rocketbooks ou Eve ybooks, para melhor se parecer com livros, arrisca-se a tornar-se ainda mais individual e solitária, mais rápida e
são dotados de um dispositivo que permite passar de uma página a seletiva também, porém, do mesmo modo, mais interativa do ponto de
outra.6 Os mais aperfeiçoados apresentam o texto sob forma de uma vista do leitor, que reencontra o direito de interferir no texto que lhe é
página dupla e outros são até munidos de capa de couro. Será o livro proposto. Ele utilizará, também, cada vez com mais freqüência, os
eletrônico obrigado a se disfarçar ou se esconder para se afirmar? recursos de um hipertexto.
O livro dispõe, portanto, de todas as possibilidades de viver melhores A composição tipográfica passará, daqui até uns quinze anos, pelo
dias no futuro, não importa o que se diga. Ele se beneficia do prestígio embargo que a eletrônica exerce, bem como pela digitalização dos
e de todas as aquisições de seu passado. E, em termos de custo, continua textos, que tenderão a circular sob uma pluralidade de formas, em
perfeitamente competitivo, desde que os números das tiragens perma- proporções que variam conforme os tipos de textos. Hoje, parece
neçam num certo patamar. Mesmo no caso de um milhar de exemplares, legítimo pensar que a disponibilização e circulação dos textos, por meio
a impressão propriamente dita representa apenas a metade e um terço de procedimentos e com suportes eletrônicos, têm boas perspectivas de
dos custos reais (incompreensíveis, se queremos manter a qualidade serem válidas para diversas categorias de textos:
final do texto) de composição e de preparação do "pronto para impri- A informação cotidiana: quanto mais a rapidez é exigida, mais
mir" , e este percentual diminui rapidamente, quando a tiragem aumenta. iminentemente o texto é perecível; a maioria de nossos jornais nos
Para quem continua a preferir a leitura no papel, a partir de um texto propõe, já, edições on Une.
recebido pela Internet, o custo da impressão (em torno de dez ou A informação de tipo enciclopédico que poderá, desse modo, fazer
quinze cêntimos de franco por página por usuário) é definitivamente frente às necessidades de capacidade de armazenamento, de atualização
marginal, em relação ao custo da composição e da impressão de alta permanente e de consulta pontual para um número crescente de
qualidade de um texto fornecido em disquete, por parte do autor a seu usuários. Ou, ainda, sob o mesmo modelo, os manuais escolares,
editor (no mínimo 80 a 100 francos a página, muitas vezes mais). A propostos aos alunos; estes manuais serão acompanhados de materiais
verdadeira fragilidade do livro, como produto industrial em série, que, pedagógicos, cada vez mais atraentes e eficazes.
além do mais, se conserva, infinitamente melhor e por mais tempo do A consulta a distância de livros e revistas, através da alocação em
que todos os suportes eletrônicos existentes, situa-se, de fato, noutro redes de bibliotecas, e o acesso pela web a publicações digitalizadas.

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Não existe aqui o menor paradoxo em relação àqueles que, por profis-
são, se apresentam ou se percebem como os maiores defensores do livro,
1 Roger Chartier. "Lês représentations de 1'écrit", in Culture écríte et
uma vez se arriscam a ser, também, os principais usuários desta biblio-
société. L'ordre dês livres ((XlVe-XVIIIe siècle). Paris, Albin
teca universal com a qual sonham há tanto tempo.
Michel,'1996, pp. 33-35.
A publicação e circulação de textos complexos, especializados ou
raros, redigidos em língua de rara difusão, destinados a um número de 2 Umberto Eco, "De internet à Gutenberg", Debate (Institucio' Alfons
leitores muito restrito para poder passar pelos circuitos tradicionais de ei Magnànim, primavera/verano 2000), n° 69, "La muerte (incierta)
edição e da livraria. dei libro y su cultura", pp. 66-75.
As comunicações internas na República das Letras, já tão amplamen- 3 Charles F. Sabei e Jonathan Zeitlin (eds.). World of possibilities.
te transformadas pelo uso do telefone, ao fax, e da Internet de modo que Flexibility and mass production in western industrialization.
as correspondências em suportes tradicionais têm sido esvaziadas em Cambridge/Paris: Cambridge University Press/Maison dês Sciences
seu conteúdo essencial.
de l'Homme, 1977.
Pode-se também supor que a escrita de certos textos, não necessaria-
mente sua totalidade, tenderá a se transformar para levar em conta 4 Roger Chartier. Lê livre en révolutions. Paris, Lê Seuil, 1977, pp.
possibilidades novas, abertas no ambiente eletrônico da comunicação. 146-148.
A escrita tenderá então a tornar-se menos individual e mais coletiva, 5 Cario Ginzburg. II fromaggio e i vermi. Turin, Einaudi, 1976, pp. 4,
apelando para verdadeiros "cenógrafos" e especialistas de diferentes 10 e 35. (Trad francesa por Monique Aymard. Lê fromage etles vers.
mídias e de diferentes técnicas. Paris, Flammarion, 1980, pp. 34,40 e 65).
Possíveis ou verossímeis, todas estas escolhas, todas estas evolu-
ções, todos estes compromissos ou divisão de tarefas confirmam, 6 Steve Silberman. "Ex libris. La satisfacción de 'enrollarse' con un
plena e integralmente, o lugar atual, central, do livro como instru- buen dispositivo de lectura digital", in Debats, cit., pp. 94-103.
mento de um diálogo direto e sem intermediário entre um autor e um
leitor, através de qualquer coisa que continuamos a chamar de texto.
Um texto que não existe senão porque existe uma forma acabada
que lhe foi atribuída por seu autor, seja por um transcodificador,
mesmo desconhecido, seja pela tradição editorial. E porque há
leitores é que cada leitura -- diferenciada, individual e livre -
torna-se, a cada vez, viva.
Tudo nos permite pensar que esta relação esteja destinada a perdurar,
embora tudo esteja se transformando. Que ela seja "eterna"! Nenhum
historiador deixará de se aventurar em dize-lo, mesmo que, como é meu
caso, aconteça-lhe de apenas desejar.

(tradução do original francês de


Claudius Bezerra Gomes Waddington
& Carlos Sepúlvedá)

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A CULTURA DO FIM DE TUDO:
DO FIM DA CULTURA AO FIM DO LIVRO*

SÉRGIO PAULO ROUANET

Um poeta brasileiro deflagrou uma polêmica célebre, há alguns anos,


dizendo que vivíamos uma época "pós-tudo". Hoje estamos vivendo
uma síndrome conexa, que poderíamos designar como a época do " fim
de tudo", ou, se quiséssemos ser pedantes, a era do "pan-escatologis-
mo". Estaríamos vivendo o fim da ideologia, o fim da utopia, o fim da
geografia, o fim da história, o fim do estado nacional, o fim do homem
e o fim da modernidade, para não falarmos do fim do mundo, anunciado
pelas seitas apocalípticas, às quais pertence por direito de antigüidade
o riquíssimo tema do fim de todas as coisas. Só não está à vista,
aparentemente, o fim do próprio pan-escatologismo, o fim da época do
fim de tudo. Sem dúvida, esse estado de espírito é estimulado pela
mudança do século e do milênio, e talvez se dissipe quando passar a
atual vaga de excitação milenarista.
Entre as várias coisas que estão acabando, um lugar de honra é
reservado ao livro, em face da atual difusão de tecnologia digital, que
cria a figura do livro eletrônico. Bill Gates e outros agentes da
biblioclastia se alegram com isso, e se transformam nos profetas
inspirados da deusa Web e do seu esposo imortal, o deus Bit. Mas,
em geral, os intelectuais se horrorizam. Até nisso se demonstra o

* Palestra pronunciada no simpósio "O lugar do livro entre a nação e o mundo".


Biblioteca Nacional - Rio de Janeiro, 28 de agosto de 2000.

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caráter "milenarista", ou quiliástico, do clima atual, porque segun- forma, o da oposição entre cultura e civilização. A cultura desig-
do uma visão tradicional, agora desmentida pelos historiadores, a nava a esfera simbólica - religião, arte, literatura - enquanto a
passagem do ano mil teria sido acompanhada por fenômenos de civilização aludia ao mundo material - a economia e a técnica.
histeria de massa, que ora se manifestavam sob a forma do pânico, Desde o início, a polarização teve intensa carga ideológica. Na
ora sob a forma da esperança numa vida melhor, além das calamida- tradição do romantismo alemão, de Herder a Schiller e Hegel, a
des da vida presente. civilização exprimia a condição fragmentada do homem moderno,
Mas milenarismo à parte, pergunto-me se não haveria um equívoco que, por estar escravizado à máquina e aos valores comerciais, perdeu
de acento nessa angústia gerada pelo fim do livro. Seria, realmente, a visão do todo, da unidade original com a natureza. A cultura - a
a crise do livro que tanto preocupa nossos intelectuais, ou algo que alta cultura, a cultura clássica - era uma via para corrigir os males da
está por trás dessa crise, a crise de cultura, da qual a crise do livro civilização, contribuindo para a reconquista da totalidade perdida.
seria, senão um epifenômeno, pelo menos um sintoma? O problema Essa ideologia experimentou violenta guinada nacionalista a partir
é que só se lê hoje James Joyce em livro digital, ou que não se lê, de da primeira guerra mundial. Os alemães passaram a ver-se como o
todo, James Joyce, qualquer que seja o suporte dessa leitura? Se a povo da Kultur, associada à autenticidade, ao instinto vital, à tradi-
segunda parte da disjuntiva for verdadeira, então não é o livro que ção, e viram, nos franceses, os protagonistas da mera Zivilisation,
está em crise, e sim a cultura. Por isso é ela que convém interrogar que aceitava como inevitável o desmembramento do homem moder-
' primeiro, fazendo diagnósticos e vaticínios sobre seu futuro, som- no, substituía a história pela razão, baseava-se em valores materia-
brios ou otimistas, antes de interrogarmos o livro, cujo destino será listas e utilitários, e era pervertida por um refinamento excessivo, que
sempre solidário da cultura que ele contribui para formar, e da qual afastava o homem da sua verdade e da sua natureza. Os franceses
constitui o veículo mais prestigioso. aceitaram em parte essa atribuição, considerando-se, realmente, os
porta-vozes da civilização, mas a palavra tinha para eles um conteúdo
II positivo. A civüisation consagrava a hegemonia da moral e do direi-
to, e, nesse sentido, o país dos direitos do homem encarnava a
A angústia com relação ao desaparecimento da cultura vem de uma civilização em sua forma mais alta, enquanto a Kultur de além-Reno
velhíssima tendência, que os romanos já exteriorizavam, quando - os franceses usavam a palavra ironicamente, em alemão - era, na
deploravam a perda de prestígio da cultura grega, e que se manifestou verdade, o reino da barbárie.
nos vários avatares da "querela dos antigos e modernos", do século Com isso, o velho topos do fim da cultura (ou da civilização)
17 às vanguardas contemporâneas. De modo geral, os " antigos" viam sofreu uma transfiguração chauvinista. Vitoriosa a "civilização",
nas inovações culturais dos "modernos" investidas contra a cultura seria o fim da Kultur, segundo os alemães, ou, pelo menos, o fim do
clássica e, por extensão, contra a cultura em si. Os "modernos", por Ocidente, na linguagem de Spengler; vitoriosa a Kultur, seria o fim
sua vez, não se faziam rogar, e se esforçavam por confirmar esses da civilização, segundo os franceses, consagrando, assim, o primado
temores. O niilismo dos dadaístas, que queriam desarticular todas as da força e do instinto sobre a razão e o direito.
formas tradicionais de expressão artística, e dos futuristas, que que- A velha distinção foi retomada pela Escola de Frankfurt, agora
riam incendiar os museus, é apenas o avesso da velha angústia com numa ótica marxista. Marcuse usou a polaridade explicitamente: o
o fim da cultura. capitalismo seria hoje uma sociedade de massas, em que a esfera da
Com o advento da modernidade, que consagrou a hegemonia da civilização teria absorvido a esfera da cultura. Com isso, a sociedade
classe burguesa e pôs em circulação valores mercantis, ligados ao tornou-se unidimejisional, perdendo sua transcendência com relação
ganho e à utilidade, o fantasma do fim da cultura se difundiu sob nova ao existente. De modo menos direto, a velha nostalgia pela cultura

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perdida permeia a crítica à indústria cultural, feita por Adorno e substituída por culturas, no plural. Com isso, o tema do fim da
Horkheimer. Reduzido à mera "civilização", o Iluminismo passou cultura foi redefinido em termos particularistas, herderianos, em
a ser o culto do mundo tal como é, sem possibilidade de fazer apelo oposição ao tratamento universalista, marxista, que lhe dera Adorno.
aos valores ideais que outrora habitavam a esfera da cultura, e que O espectro que assombra o escritor pós-colonial não é o fim da alta
ofereciam tanto um padrão crítico como uma perspectiva utópica: cultura, e sim o fim da cultura nacional, entendida num sentido
uma "promesse de bonheur", nas palavras de Stendhal. A angústia antropológico amplo, e das várias culturas nacionais, ameaçadas pelo
com o fim da cultura assumia agora a forma do horror diante do rolo compressor de uma cultura ocidental hegemônica.
desaparecimento da única instância capaz de proporcionar uma exte- Essa redefinição experimentou um reforço desmedido com o tér-
rioridade com relação ao todo social. Todos os frankfurtianos eram mino da guerra fria, e o advento do tema da globalização. Agora não
suficientemente marxistas para saberem que a cultura era sofrimento se tratava mais de proteger a cultura nacional contra as investidas
sublimado, distilação ideal de relações de violência; mas sabiam descaracterizadoras que vinham da antiga metrópole, mas de prote-
também que, sem ela, o homem estaria entregue irremissivelmente à gê-la contra um verdadeiro cataclismo planetário, um capitalismo
facticidade bruta do que é. É por isso que Adorno disse que escrever mundializado que atravessava todas as fronteiras e arrasava todas as
poesia depois de Auschwitz era um ato de barbárie, mas acrescentou especificidades culturais. O velho tema adorniano da crítica da cul-
que deixar de escrever poesia seria igualmente bárbaro. tura de massas não estava ausente, porque, afinal, as mercadorias
É esse o sentido da crítica cultural de Adorno e Horkheimer. Eles culturais que invadiam os rincões mais longínquos dos nossos países
combatem a pseudocultura difundida pela indústria cultural, porque não eram sinfonias dodecafônicas e quadros abstratos, e sim filmes
ela não tem nenhum dos elementos de transcendência contidos na alta sobre artes marciais e discos de Madonna e Michael Jackson. Mas o
cultura. Em sua estereotipia, em sua banalidade, em sua unidimen- foco do horror provocado pela globalização cultural é claramente
sionalidade, a cultura de massas entroniza o mero entretenimento, outro. O que assusta é o fim, considerado iminente, da "nossa"
bloqueia qualquer reflexão crítica e substitui a utopia de um mundo cultura - festivais de bumba-meu-boi, rodeios, folhetos de cordel,
situado além do existente pelo mito do existente como realização da estatuetas do mestre Vitalino - e não o declínio da alta cultura. Antes
utopia. Nessa perspectiva, o fantasma do fim da cultura é, na verdade, o tema do fim da cultura tinha um conteúdo elitista; hoje tem um
o fantasma da substituição da alta cultura por uma cultura de massas conteúdo xenófobo. O que é considerado repulsivo na cultura de
que nada mais é que o lado lúdico da esfera da " civilização", o mundo massas global é o fato de ser global, e não o fato de ser cultura de
da economia e da técnica. massas.
Mas o topos do fim da cultura experimentou decisiva modificação Sob essa nova aparência, o fantasma do fim da cultura assusta, e
nos anos que se seguiram à publicação da Dialética do esclarecimen- com razão, porque o medo que ele evoca pertence ao domínio do que
to. Nesse período, que coincidiu com o movimento de descoloniza- Freud chamava de Realangst, o medo não-neurótico, que vem da
ção, a inimiga passou a ser a cultura metropolitana, e não a cultura realidade. É um fato que a diversidade cultural está sendo ameaçada
de massas. Paralelamente, houve um deslocamento no conceito de pelas pressões niveladoras que vêm da cultura global. E é também
cultura. Ela não designava mais um acervo de saberes, normas e artes, um fato, por mais que essa dimensão do tema do fim da cultura tenha
como a moral, o direito, a ciência, a filosofia, a literatura, a música, sido recalcada pelos ideólogos do nacional-populismo, que a globa-
a dança, o teatro, e sim, lato sensu, um conjunto de valores, crenças, lização acelerou a generalização da cultura de massas, em detrimento
símbolos, modos de agir, de fazer, de pensar. Em suma, o sentido da da alta cultura, qualquer que seja a sua nacionalidade, nisso consis-
cultura como culture cultivée foi sendo reprimido, e, gradativamente, tindo o que talvez seja o seu aspecto mais problemático. Mas seria
substituído pelo sentido antropológico. A cultura, no singular, foi outro fato, também, que o reforço das identidades locais, das tradi-

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ções locais, das raízes locais, seria o melhor exorcismo para Marx usa quase as mesmas palavras que Goethe. No trecho
expulsar a assombração? célebre do Manifesto comunista em que descreve, nos mínimos
A meu ver, todos esses particularismos são perigosos, porque pormenores, o que hoje chamamos de globalização, Marx afirma que
partem de uma visão ontológica do próprio grupo e absolutizam a "os produtos intelectuais das diferentes nações se transformam em
identidade do Outro, transformando-o numa essência inimiga e numa patrimônio comum. A unilateralidade e a estreiteza nacionais se
extraterritorialidade irredutível. São máquinas de fabricar estrangei- tornam crescentemente impossíveis, e uma literatura mundial (Wel-
ros. A proliferação desses particularismos está transformando nossa tliteratur) se constitui a partir das várias literaturas nacionais e
sociedade no que um autor já chamou de sociedade heterofílica, locais".
votada ao culto da diferença. Eles opõem ao pesadelo da homogenei- Tanto Goethe como Marx deixam claro que a "literatura mundial"
zação total o pesadelo da retribalização do mundo. Além de ética e - os dois usam a mesma expressão, Weltliteratur - funciona como
politicamente inaceitáveis, particularismos desse gênero são inefica- alusão metonímica à cultura como um todo. E ambos a descrevem
zes para conter o globalismo, que, por definição, cruza todas as como um fenômeno moderno.
particularidades e se evade a todas as jurisdições nacionais. É uma pista importante para compreendermos a natureza da cul-
Diante disso, o que fazer? tura global e explorarmos os meios que permitam superar suas
A resposta exige uma análise mais detida do que entendemos por perversões.
cultura global. Permito-me, para isso, retomar algumas idéias que Habitualmente, a modernidade é entendida na significação que lhe
desenvolvi em ensaios recentes. deu Max Weber, como o desfecho de processos cumulativos de
A internacionalização da cultura não é um fato inédito na história racionalização, ocorridos no Ocidente a partir da reforma protestante.
da humanidade. O fenômeno se deu no império alexandrino, quando Segundo essa acepção, numa sociedade moderna as instituições/ww-
a cultura grega se impôs; no império romano, em que o latim e o grego cionam melhor que numa sociedade pré-moderna. Por isso, podemos
se generalizaram; na Idade Média, unificada pelo uso do latim e por falar em uma concepção funcional de modernidade.
uma religião comum; e, no período das grandes navegações ibéricas, Mas existe um segundo vetor da modernidade, que não tem a ver
em que o uso do português e do castelhano interligou os vários com a eficácia e sim com a autonomia. Sua matriz é o projeto civiliza-
continentes. Ela conheceu novos impulsos, desde o século 17, com a tório da Ilustração, que não busca a funcionalidade das estruturas e sim
entrada em cena de outros atores, como a Holanda, a França e a a emancipação dos indivíduos. É a concepção emancipatória de mo-
Inglaterra. Mas foi a partir do século 19 que a expansão mundial do dernidade.
capitalismo gerou a consciência de que uma cultura mundial estava A modernidade é a coexistência contraditória desses dois vetores.
verdadeiramente surgindo. Ela é uma prisão, uma stahlhartes Gehause, na expressão de Weber,
Talvez a primeira referência a essa cultura esteja em Goethe. mas também uma promessa de autonomia, é o reino da racionalidade
Numa de suas conversas com Eckermann, ele disse que "se nós instrumental, que submete o homem a imperativos sistêmicos, mas
alemães não olharmos além do círculo estreito do nosso próprio também o prenuncio utópico de uma humanidade mais livre.
horizonte, cairemos facilmente num obscurantismo pedante. Por isso Pois bem, a modernidade tende à internacionalização - ou à
gosto de olhar para o que se faz nos países estrangeiros e aconselho mundialização - nesses dois vetores.
a todos que façam o mesmo. A literatura nacional não quer dizer Em seu vetor funcional, a modernidade percebe as barreiras locais
grande coisa hoje em dia. Chegou a hora da literatura mundial e nacionais como obstáculos para o pleno desdobramento da lógica
(Weltliteratur), e cada um de nós deve contribuir para acelerar o da eficácia e do rendimento. Conseqüentemente, a modernidade vai
advento dessa época". derrubando essas barreiras. Ela passa primeiro dos particularismos

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locais, que impunham limites à ação do capital, para o espaço dotada de estruturas que facultam a transformação de bens culturais
mais amplo criado pelo estado nacional, que punha à sua disposi- em mercadorias e permitem a difusão no mundo inteiro de produtos
ção um mercado integrado. Em seguida, os próprios estados nacio- culturais de massa, que tendem a expulsar as criações culturais
nais se tornam demasiado estreitos, e ela ultrapassa esses limites, "autênticas".
mundializando-se. É a globalização. Segundo a bela análise de Renato Ortiz, a cultura global corresponde
Mas a modernidade se mundializa, também, em seu vetor emanci- a uma nova fase, transnacional e não simplesmente internacional, da
patório, porque, sob esse aspecto, ela deriva de um projeto planetário, organização capitalista da produção e do consumo. A Disneylandia, o
o da Ilustração, que visa à autonomia de todos os seres humanos, blue-jeans e o McDonald não resultam de um projeto imperialista
independentemente de sexo, etnia, cultura ou nação. Podemos cha- norte-americano, e sim das características dessa nova fase. A nova
mar de universalização a esse movimento de extroversão da moder- realidade seria ofastfood, não o McdonakTs; ofastfood corresponde
nidade emancipatória. aos ritmos mais velozes da vida, neste final de século, e pouco importa
Os agentes da globalização são os executivos transnacionais, as a nacionalidade das empresas que encarnam essa realidade. Há outras
elites tecnoburocráticas, os especialistas da comunicação por satéli- firmas especializadas nofastfood - Brioche dorée, Quick e Free Time
tes, e, em geral, os "intelectuais orgânicos" do novo príncipe - a - todas três são francesas. O cinema se transnacionaliza cada vez mais:
"burguesia global". Os agentes da universalização são as organiza- um número cada vez maior de filmes é rodado na África, por um estúdio
ções não-governamentais, os partidos políticos, os sindicatos, os de Hollywood, com um diretor europeu, e financiamento japonês. O
parlamentos, os governos democráticos, os artistas, e os intelectuais western há muito deixou de ser privilégio americano. Hoje ele é produ-
críticos comprometidos com ideais universalistas. A globalização é zido na Austrália (Silveradó) e na Itália - o western spaghetti. Há alguns
a união dos conglomerados. A universalização é a união dos povos. anos, o público americano reagiu com choque à notícia de que os
Somos objetos da globalização. Somos sujeitos da universalização. japoneses tinham comprado companhias cinematográficas americanas.
A aceleração dos processos de mundialização, em seus dois veto- Não havia motivo para tanta surpresa. Afinal, o capitalismo global é
res, está levando, em nossos dias, a algo que poderíamos chamar de fundamentalmente cosmopolita. Isso foi perfeitamente expresso por um
sociedade mundial. É uma sociedade ainda relativamente amorfa, empresário japonês, para quem "antes da identidade japonesa, antes da
porque não dispõe, por enquanto, de estruturas políticas. Mas já filiação local, antes do ego alemão ou italiano, vem o compromisso com
dispõe de uma cultura própria, irredutível à soma das culturas nacio- uma missão global, única e unificada", o compromisso com os clientes.
nais. Assim como as sociedades nacionais geram culturas nacionais, Um documento da Brown Bovery deixa isso claro: "Não somos uma
a sociedade mundial gera uma cultura mundial. companhia sem teto; somos uma companhia com vários lares". Esse
Ocorre que, sendo, como é, produto dos dois grandes movimentos cosmopolitismo é especialmente evidente na esfera da cultura. Num
da mundialização moderna, a cultura mundial contém elementos, momento dado, a indústria dos bens culturais pode estar indiferentemen-
tanto do vetor funcional, como do vetor emancipatório da moderni- te monopolizada por conglomerados americanos, suíços, alemães ou
dade. Por isso, ela é ambivalente. A cultura mundial é a unidade japoneses, e o panorama pode mudar da noite para o dia, ao sabor das
antagonística de duas culturas: a cultura global, produzida pela glo- fusões e aquisições, que variam com estonteante velocidade. A indústria
balização, e a cultura universal, produzida pela universalização. fonográfica, por exemplo, é dominada por empresas de várias naciona-
No sentido antropológico a que me referi antes, em que o termo lidades, corao a Bertelsman, a Polygram, a Sony, a Virgin. Se a Sony
"cultura" designa um repertório de crenças, atitudes, representações absorvesse suas concorrentes, isso não bastaria para caracterizar um
e significados simbólicos, a cultura global privilegia valores ligados imperialismo musical japonês, porque, no momento seguinte, a alemã
ao ganho, à eficácia, à competição. Num sentido mais material, ela é Bertelsman poderia capturar o mercado.

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Embora menos visível que a cultura global, a cultura universal global, não devemos refugiar-nos em particularismos a contracorrente,
porque eles não nos permitiriam lidar com fenômenos que se sobrepõem
tem-se ampliado desde o tempo de Goethe e de Marx. No sentido
a todas as culturas, e sim agir no próprio terreno em que se dá a cultura
antropológico, ela é impregnada de valores humanistas, não-utilitá-
global: o da mundialização. O corretivo da mundialização pelo globalismo
rios, traduzindo a consciência de que pertencemos à mesma espécie,
é a mundialização pelo universalismo.
de que estamos expostos aos mesmos riscos, de que todos os homens
Com isso, nosso fantasma do fim da cultura começa a esvair-se. A
e mulheres, independentemente de etnia ou nação, constituem uma
cultura não precisa ser paciente terminal em nenhum dos dois senti-
comunidade de destino. A ciência, cada vez mais cosmopolita, se
dos. Não é necessário temer a extinção da cultura no sentido da alta
torna crescentemente sensível à dimensão ética e política do saber.
cultura, porque, como os processos de universalização serão condu-
A moral se universaliza, num sentido humanista, a partir de propostas
zidos, em tese, por cientistas, filósofos e artistas, ou por seus repre-
como a de Hans Küng, que pretende fundar uma ética ecumênica, de
sentantes autorizados, eles saberão evitar a trivialização de suas
Hans Jonas, que lançou as bases para uma ética da responsabilidade
mundial, e a de Jürgen Habermas, que concebeu uma ética discursiva criações. E o fim da cultura no sentido antropológico é igualmente
capaz de ser aceita universalmente. O direito se universaliza, através evitável. É certo que a globalização tende a nivelar todas as particu-
laridades, porque sua força motriz é a otimização do ganho, através
de instrumentos como a Declaração Universal dos Direitos Humanos,
de uma racionalidade de mercado que supõe a criação de espaços
de 1948, a Convenção para a Prevenção do Genocídio, do mesmo
homogêneos. Mas a universalização é pluralista, porque seus fins só
ano, a Declaração sobre a Abolição da Escravidão, de 1956, ou a
podem ser atingidos por uma racionalidade comunicativa, que supõe
Declaração contra a Tortura, de 1975, e, mais recentemente, através
o desejo e o poder dos sujeitos de defenderem a especificidade das
da fixação do conceito da jurisdição universal nos crimes contra a
suas formas de vida.
humanidade e da instituição do Tribunal Penal Internacional. No
sentido estético, limitado às chamadas "artes", a cultura se univer- É óbvio que os processos de universalização só poderão ser plena-
saliza rapidamente, graças à Bienal de Veneza e de São Paulo, no mente eficazes quando chegarem à sua culminação lógica, a implanta-
campo das artes plásticas, ao Pen Clube ou ao Parlamento de Escri- ção de uma democracia mundial, dotada dos mecanismos necessários
tores, no campo da literatura, a festivais como o de Avignon, no para corrigir os abusos da globalização, mas isso é assunto para outro
simpósio.
campo do teatro e da dança, ou aos festivais como o de Cannes e
Berlim, no campo do cinema.
Não há guerra de morte entre globalização cultural e universaliza-
ção cultural. Elas são opostas, mas dialeticamente complementares.
Podemos agora abordar a segunda questão, a idéia do fim do livro.
A mesma revolução técnica que viabilizou a globalização da cultura
Essa idéia encontra sólida confirmação na realidade: as estatísticas
pode ser usada pelos que pretendem universalizá-la. As duas culturas
mostram que as tiragens estão ficando cada vez menores, e que há
são partes da modernidade, indissociáveis uma da outra. Sem a
cada vez menos leitores.
cultura global, a cultura universal não teria os meios técnicos para
Mas a crise do livro não precisaria necessariamente indicar uma
implantar-se, e, sem a cultura universal, a cultura global careceria de
crise de cultura. Por exemplo, as tiragens podem ser pequenas, porque
conteúdo ético.
o alto preço de cada exemplar inviabiliza sua compra por parte de
Mas há uma relação hierárquica entre as duas. É da cullura univer-
camadas mais amplas da população. Essa explicação é, sem dúvida,
sal que vêm os impulsos para traçar seus rumos à cultura global,
decisiva no Brasil, onde o livro está entre os mais caros do mundo.
supervisioná-la, retificar seus desvios. E, com isso, encontramos uma
Medidas de ordem tributária provavelmente ajudariam a resolver esse
resposta à nossa indagação. Para combater os excessos da cultura

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problema. Ou podem ser pequenas, porque grande parte da popula- tou, severamente: "Jacques, qu'est-ce que c'est que ca?" O peque-
ção é analfabeta, ou não adquiriu na escola o hábito de ler. Também no vândalo respondeu: "C'est Ia révolution culturelle!"
aqui é um problema localizado; situadc na escola, e não precisa pôr em Sim, somos filhos da galáxia de Gutenberg, e não poderíamos
questão a cultura como um todo. aceitar facilmente a passagem para outra galáxia. Nisso, não somos
Mas não são esses fatores tópicos que assustam, e sim os sinais de muito diferentes de Claude Frollo, arquidiácono da catedral de No-
que o livro estaria sendo deslocado pelas novas tecnologias de infor- tre-Dame, no romance de Hugo: ele opunha o livro impresso à
mação e comunicação: em vez do livro, o CD Rom, e, em vez do livro catedral, dizendo que uma coisa mataria a outra, ceei tuera cela. Que
impresso, o livro digital. Por que nos assustamos? É preciso confes- seria de nós, se a Internet matasse o livro?
sar: em parte, por tradicionalismo. Levada às últimas conseqüências, essa atitude é, certamente,
Todos nós, intelectuais, vivemos dos livros e para os livros. Somos irracional. Só um cego negaria as extraordinárias contribuições
um pouco como aquele personagem de Eça de Queirós, que adormece trazidas pelas novas tecnologias para a preservação, difusão e até
no meio de milhares de livros, no palacete em que vivia, em Paris, e formulação do pensamento. Só por uma distorção ideológica mui-
sonha que tudo tinha se transformado em livros: as casas eram to profunda seria possível negar os enormes serviços que elas
construídas com livros, dos ramos dos castanheiros pendiam livros, prestaram ao próprio livro, e que vão desde a possibilidade de
e as mulheres usavam vestidos de papel impresso. Ele escala o consultar à distância os catálogos das principais bibliotecas do
obelisco da Concorde, evidentemente uma montanha de livros, e mundo até a de comprar livros raros com um simples clicar de
chega ao céu. Encontra Deus, sentado entre vetustíssimos fólios, mouse. Mas, mesmo que elas estivessem de fato deslocando o
lendo. O Eterno lia Voltaire, numa edição barata, e sorria. livro, não seria necessariamente uma tragédia. O livro é essencial-
Em nossa imaginação, somos todos diretores da Biblioteca de mente um instrumento, um instrumento valiosíssimo, mas um instru-
Babel, quando não da Biblioteca de Alexandria, uma biblioteca ideal, mento. Outros instrumentos podem surgir, capazes de coexistir com
incorruptível, que nunca foi destruída pelo fogo. Eduardo Portella o livro, sem expulsá-lo. Em si, a crise do livro não precisa indicar
tem sobre seus confrades a vantagem, ou a desvantagem, de estar uma crise de cultura. Não nos preocuparíamos tanto, se houvesse
vivendo na realidade o que para nós é uma fantasia. algum indício de que as novas tecnologias estariam realmente cum-
Como se isso não bastasse, somos incorrigíveis fetichistas, fasci- prindo o papel que lhes atribuem os seus propagandistas, e se captás-
nados pelos livros enquanto objetos, e não somente como depositá- semos algum sinal de que atrás dos conteúdos transmitidos por esses
rios de idéias ou informações. Não há prazer sensual comparável ao veículos houvesse uma cultura vigorosa e intacta, como existiu, na
de acariciar as páginas de um livro da Pléiade, virando as páginas de França, no século 18 e em parte do século 19, isto é, no apogeu da
papel couché como se fossem as etapas de um jogo amoroso. Folhear, cultura do livro. Nesse caso, haveria crise do livro, mas não crise de
no caso, eqüivale a desfolhar. É nisso que consiste, literalmente, o cultura. Com a invenção da imprensa, por exemplo, houve crise na
plaisir du texte. Essa atitude, meio perversa e meio religiosa, é quase tecnologia tradicional, pela qual os livros eram copiados nos mostei-
um convite à atitude oposta, antifetichista e dessacralizadora. Um ros, mas não houve crise de cultura, que, pelo contrário, floresceu
amigo meu, durante os acontecimentos de maio de 1968, tinha enco- como nunca, pois a imprensa tornou acessíveis autores modernos e
mendado as obras de Flaubert, na Pléiade, e passou o dia antegozando pôs à disposição de um público muito maior que no passado todos os
o momento em que chegaria em casa, depois do trabalho, para tesouros da sabedoria antiga.
examinar suas novas aquisições. Mas, em casa, encontrou os livros Mas, se nossa análise é verdadeira, existe, sim, uma crise de cultura,
profanados pelas unhas raivosas do seu filho Jacques, de 10 anos, e é ela que produz, em grande parte, a crise do livro. As pessoas não
com a palavra: "Merde!", escrita em toda parte. Meu amigo pergun- lêem, não por serem analfabetas, mas por serem vítimas do fenômeno

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social do "iletrismo", a recusa de ler, mesmo quando dominam a xote para a identidade espanhola, ou pelos Lusíadas para a identidade
técnica da leitura. É nisso, fundamentalmente, que a globalização é portuguesa.
fatídica, não por dissolver identidades, muitas das quais devem ser Mas, na fase da universalização, não se trata tanto de construir
mesmo dissolvidas, mas por planetarizar a massificação, levando o lixo identidades, como de desconstruí-las e reconstruí-las, substituindo o
cultural aos confins do universo, e demolindo, com isso, a curiosidade conceito de identidade única pelo de identidades múltiplas. Por exem-
intelectual, sem a qual não existe o prazer da leitura. É da cultura global, plo, Michael Walzer sugeriu que uma maneira de "civilizar" o nacio-
e dos canais utilizados para sua difusão, como a televisão por satélites nalismo seria integrá-lo em molduras pluralistas mais amplas. Num
e a cabo, que vêm as contratendências que inibem a leitura. O homem congresso sionista dos anos 30, David Ben-Gurion disse o seguinte:
não lê, porque foi condicionado para não ler, passando por uma "Pertencemos a vários círculos. Como cidadãos palestinos, estamos no
pedagogia da não-leitura. Não lê, porque a leitura exige esforço, e a círculo de uma nação que aspira a uma pátria; como trabalhadores, estamos
mídia lhe oferece uma gratificação instantânea; não lê, porque a leitura no círculo da classe operária; como filhos de nossa geração, estamos no
implica uma historicidade, um mergulho temporal na cronologia dos círculo do mundo moderno; e nossas companheiras estão no círculo do
personagens e da trama, enquanto a mídia o habituou a um presente movimento das mulheres trabalhadoras que lutam por sua emancipação".
eterno; não lê, enfim, porque passa por um aprendizado regressivo que No mundo contemporâneo, as identidades pessoais se estruturam cada vez
faz com que regrida do estágio do pensamento conceituai, sem o qual mais pelo cruzamento dessas identidades particulares.
nenhuma leitura é possível, para o estágio do pensamento por imagens, Podemos encontrar um prenuncio disso em nosso próprio passado.
efêmeras por natureza, sem ligações entre si, e que não podem fazer A figura do latino-americano "alienado", que sai do seu lugar de
outra coisa senão refletir um mundo também desconexo, por isso origem, europeizando-se, sempre foi vista como odiosa ou ridícula,
ininteligível, e, portanto, intransformável. E é óbvio que o contrário é e, de fato, em grande parte o foi. Mas, de outro ângulo, essa " aliena-
também verdadeiro: porque não lê, o homem não aprende a pensar ção" pode ter sido precursora de uma atitude epistemológica repre-
causalmente, historicamente e politicamente. sentativa dos novos tempos. É o topos do exilado lúcido, que, por ser
Mas, se a crise do livro é solidária da crise da cultura, um otimista exilado, percebe o que as evidências locais impedem que seja perce-
diria que a modificação da cultura segundo as exigências do processo bido. É o persa de Montesquieu, ou o pele-vermelha de Voltaire, que
de universalização levará à superação da crise do livro. Uma vez compreenderam muito melhor a França do século XVIII que todos
retificados os descaminhos da cultura global, principal responsável os sábios europeus juntos. Ora, foram os brasileiros que forneceram
pela resistência à leitura que hoje caracteriza todos os países, o livro aos europeus o modelo desse saber "de fora". Refiro-me aos três
poderia reassumir seu papel de guia, companheiro, magister vitae, canibais tupinambás que foram levados para a França, no reinado de
que sempre desempenhou no passado, sem que isso signifique o Carlos IX, e que, segundo Montaigne, observaram coisas sobre a
abandono das novas tecnologias, que continuariam cumprindo as França que nenhum francês tinha notado. Viram mais claro, porque
tarefas que lhes são próprias, sem tornar o livro redundante. seu olhar era um olhar estrangeiro: um olhar etnográfico.
Mas o livro não pode dar-se ao luxo de ser apenas um beneficiário Muitos intelectuais latino-americanos foram como esse tupinam-
passivo e automático da universalização da cultura. Ele pode contri- bás do século XVI: já não se sentiam bem em sua pátria e não
buir para a consolidação desse processo. chegaram a entrar na cultura européia. Eram forasteiros dos dois
Durante boa parte da história, o livro foi constitutivo para a lados do Atlântico. Ouçamos um trecho de Minha formação, a obra-
formação das identidades coletivas. A Ilíada e a Odisséia foram prima de Joaquim Nabuco. "Estamos condenados à mais terrível das
os fundamentos da identidade grega. O mesmo papel foi desem- instabilidades, e é isso o que explica o fato de tantos sul-americanos
penhado pela Divina Comédia para a identidade italiana, pelo Qui- preferirem viver na Europa Não são os prazeres do rastaquerismo,

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como se crismou em Paris a vida elegante dos milionários da sul manual didático para o aprendizado da areté grega. Hoje, pelo con-
América; a explicação é mais delicada e mais profunda. É a atração trário, devemos ler Homero para nos reculturalizarmos, para nos
das afinidades esquecidas, mas não apagadas, que estão em todos nós, descentramos de nossa cultura de origem, do século em que nasce-
da nossa comum origem européia. A instabilidade a que me refiro mos. Com isso, passamos a ser contemporâneos de Heitor e de
provém de que na América falta à paisagem, à vida, ao horizonte, à Ulisses, e nos identificaremos com várias culturas, a européia e a
arquitetura, a tudo o que nos cerca, o fundo histórico, a perspectiva asiática, que se digladiavam junto às muralhas de Tróia, e também
humana; e que na Europa nos falta a pátria, isto é, a fôrma em que com todas as figuras da alteridade que povoam a epopéia, os semi-
cada u-m de nós foi vazado ao nascer. De um lado do mar, sente-se a deuses, os semi-homens, as sereias e os ciclopes, Polifemo e Circe.
ausência do mundo; do outro, a ausência do país. O sentimento em No início da modernidade, surgiu um gênero novo, o do Bildungro-
nós é brasileiro, a imaginação, européia". man, o romance que narrava as vicissitudes de um herói que buscava
O que chama atenção, nessa passagem notável, é que a mentalida- formar-se, atingir a Bildung, no sentido dos iluministas do século 18,
de latino-americana é definida por uma dupla negação, pela intersec- como Kant, Lessing e Herder. Ao mesmo tempo, esse processo de
ção de duas ausências: na Europa, falta-nos a floresta tropical, e, no autoformação do personagem central envolvia o leitor, que deveria,
Rio, falta-nos o Sena. O que Nabuco descreve é a experiência de um pela identificação com o herói, chegar também à sua Bildung, à sua
desterro permanente. autoformação.
Mas um século depois, na era da universalização, talvez se possa O protótipo do Bildungsroman é o Wilhelm Meister, dividido em
negar essa negação dupla, e preencher, com uma dupla presença, o duas partes, os anos de peregrinação e os anos de aprendizado de
vazio das duas ausências. Nesse caso, não teremos mais o expatriado, Wilhelm Meister. São os dois momentos da Bildung contemporânea.
mas o cidadão de dois mundos, não o déraciné, no sentido de Barres, Por um lado, o homem pluriidentitário peregrina pelo planeta mun-
mas o homem descentrado, com uma identidade nômade, sempre se dializado, numa viagem real ou virtual, e, por outro lado, ele aprende,
fazendo, sempre se refazendo, sempre disposto a relativizar todas as nessa viagem, a reconhecer-se como habitante da cosmópole. Nesse
suas certezas culturais por sua capacidade de role-taking, de assumir sentido, qualquer grande romance, hoje em dia, pode transformar-se
incessantemente o ponto de vista do Outro. O exílio passou, de certo num Bildungsroman, porque, em todos, podemos chegar ao Outro, a
modo, a ser a experiência fundadora de uma nova epistemologia: a vários outros, e, no limite, a esse Outro generalizado que é o gênero
epistemologia do olhar excêntrico, porque o exilado é o homem que humano.
se desenraizou sem se reenraizar, o que se libertou de uma particula- Enquanto não chegarmos à utopia (ou ao pesadelo) da língua única,
ridade sem entrar em outra. o livro só poderá prestar-se a esse objetivo através da tradução. Se
Para a aquisição dessas identidades múltiplas, as novas tecnolo- Walter Benjamin tivesse razão, a principal tarefa do tradutor é a de
gias de informação podem, sem dúvida, desempenhar papel impor- liberar os ecos da língua pura, aprisionados no original, "tornando
tante. Mas só o livro permitiria que a aquisição fosse profunda e tanto o original como a tradução reconhecíveis como fragmentos de
duradoura. O livro sempre nos permitiu sair de nós mesmos, para uma língua maior, do mesmo modo que os estilhaços são reconhecí-
melhor nos reencontrarmos. Ele deveria permitir-nos, agora, sair de veis como fragmentos de um vaso ... A verdadeira tradução é trans-
nossa cultura, para vê-la de fora. Esse sair-de-si cultural foi prenun- parente; ela não recobre o original, não bloqueia sua luz, mas permite
ciado por Goethe, quando descobriu afinidades entre um romance que a língua pura, como que reforçada pela tradução, brilhe mais
chinês e as novelas de Fielding e Richardson. intensamente sobre o original". Mesmo sem esses motivos messiâ-
Um jovem grego aprendia a ser grego ao ler Homero. Era um nicos, não há dúvida de que a tradução permite à nossa língua
instrumento de socialização para a cultura grega, uma paidea, um transcender-se em direção às outras, e obriga as outras línguas a se

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transcenderem em direção à nossa. Pela tradução, nossa cultura a esse preço possamos constituir uma cultura universal. A escolha
se abre ao mundo, e nossa própria língua pode ser modificada. oposta é mais arriscada ainda. Na etapa da mundialização, não há
Pois, numa grande tradução, como também observou Benjamin, nada mais perigoso que a adesão obstinada a uma identidade única.
não se trata tanto de transformar a língua estrangeira na nossa, mas Se bósnios e croatas tivessem identidades múltiplas, além de suas
de deixar a nossa língua ser transformada pela língua estrangeira. Foi lealdades meramente nacionais e culturais, talvez tivéssemos evitado
o que fez Hõlderlin ao traduzir Sófocles: a literalidade da tradução o genocídio na antiga Iugoslávia.
violentou de tal maneira o alemão, que ele deixou de ser o que era, e Fim da cultura? Fim do livro? Talvez, mas não necessariamente.
converteu-se por assim dizer numa nova língua. As traduções de Não se trata de fim, e sim de Aufhebung, no sentido hegeliano. A
Shakespeare feitas por Wieland, Tieck e Schlegel o germanizaram de cultura pode sobreviver, ao transformar-se em cultura universal. E o
tal modo, que, para os alemães, ele deixou de ser um autor inglês, livro tem futuro, se renunciar a seu papel de instância formadora de
integrando-se, de modo indissolúvel, à tradição cultural alemã. Mas identidades coletivas homogêneas, transformando-se em instrumento
a tradução está também a serviço da língua estrangeira, não só no para a constituição de identidades múltiplas, segundo a lógica do
sentido trivial de que ela permite a difusão de uma obra fora das suas processo de universalização.
fronteiras lingüísticas de origem, como no sentido de que, numa
grande tradução, a obra chega à plenitude do seu sentido. A tradução
faz o original dizer o que ele não sabia que sabia. Não sei se Kant
realmente só compreendeu sua filosofia depois de ler a tradução
francesa, como juram os maledicentes, mas é incontestável que, ao
traduzir em francês a Fenomenologia do Espírito, Hyppolite deu a
Hegel uma clareza que certamente não havia no original. Ele demons-
trou, com isso, que não há textos que não possam ser transpostos em
outras línguas. Hegel não é intraduzível, apesar de sua vinculação à
língua alemã, como não é intraduzível Platão, apesar de sua vincula-
ção à língua grega.
Original ou traduzido, todo livro pressupõe uma transcendência,
porque sua leitura permite sempre escapar a nosso contexto espacio-
temporal imediato. Em nossos-dias, a leitura pressupõe uma trans-
cendência sui-generis, a que se dirige a todo o gênero humano, em
sua infinita variedade. O homem pluriidentitário aprende a ser judeu
com Proust, católico com Greene, irlandês com Joyce, colombiano
com Garcia Marquez, mulher com Virgínia Woolf, e, em cada um
dos seus livros, pode fazer o aprendizado da alteridade, identifican-
do-se, sucessiva ou simultaneamente, com cada personagem.
Estaríamos, com isso, propondo a esquizofrenia como ideal do
homem pós-moderno, um homem com tantas personalidades que
acaba não tendo nenhuma, transformando-se, por excesso de atribu-
tos, num "homem sem qualidades"? O risco é óbvio, mas talvez só

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OS LIVROS NO DIÁLOGO GLOBAL DAS CULTURAS

ZYGMUNT BA UM AN

No meu tempo de estudante em Varsóvia, o meu professor de


lógica era um defensor de uma rara linha de filosofia, que ele
chamava de "reísmo" (do latim rés, "coisa"). Significava, pelo
menos em intenção, um tipo realista de filosofia, ao modo do senso
comum, afastando-se da disputa culta - e, no geral, esotérica - entre
os partidários das visões de mundo "materialistas" e "idealistas".
Os "reístas" admitiam a óbvia e empiricamente dada factualidade
das coisas - mas nada além de coisas. Sentenças, os principais objetos
da investigação lógica, eram coisas como quaisquer outras, e isso era
tudo que se podia dizer sobre sua "realidade" ou "substancialidade"
- insistia o professor, quando eu o pressionava. "Elas existem", ele
dizia," tanto quanto uma camada de tinta ou grafite sobre a superfície
do papel, ou sulcos na pedra, ou uma corrente de ar". Eu me lembro
da minha dificuldade em aceitar isso -não só como jovem estudante,
mas, também agora, como professor aposentado... Havia, certamente,
algo mais numa sentença ou proposição do que alguns pingos de
tinta? Mais importante: uma proposição mudaria de acordo com a cor
do lápis usado por mim? Meu amigo erudito Leszek Kolakowski
insistia, por outro lado, que mitos não são coleções de palavras, mas
de personagens humanos e animais, suas relações e feitos: por isso,
eles podem ser contados e são contados e continuarão sendo contados
de muitas maneiras diferentes, repetidas vezes. Eles "permanecem
os mesmos", embora as histórias mudem. Achei essa opinião muito
mais aceitável, e não apenas no caso de mitos - muito embora o caso
dos mitos guarde particular importância: eles eram, não só mais

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antigos, como eram também a mais onipresente das matérias em que de visitantes, a situação da produção editorial argentina passou de fraca
foram constantemente moldadas as histórias contadas de homens para a mais fraca ainda: pequenos editores independentes são postos para
homens. Eu acreditei então - como acredito agora - que, por mais que fora do mercado dominado por alguns dos grandes produtos de fusões
o "significado" e a forma no qual esse significado é "comunicado" de empresas e de tomadas de controle tais como Prisa Santillana,
sujeitem, determinem ou influenciem intimamente um ao outro, eles Planeta ou Sudamericana, sucursal do império Bertelsmann. Pior
ainda conservam bastante autonomia, e cada significado pode ser ex- ainda, a demanda por produtos dos editores continua caindo. À
presso de várias maneiras. Há mais numa sentença do que apenas exceção das reedições de uns poucos imortais como Borges e
rabiscos sobre uma lousa ou manchas pretas sobre papel, e eles não Cortazar ou textos das poucos celebridades do nível de Garcia Mar-
mudam necessariamente, quando uma caneta substitui o gráfio... quez, os autores ficariam felizes (e teriam sorte) se a venda dos seus
Esse episódio num país distante e noutro século não mereceria ser livros ultrapassasse a barreira das 1.000 cópias (veja a reportagem
lembrado e recontado, se ele não tivesse saído do esquecimento, com no Lê Monde de Livres, de 26 de maio de 2000). Mais de 700
todo o seu frescor incorrupto e também com surpreendente atualida- representantes da indústria do livro de 70 países se reuniram na
de, quando li no Lê Monde, de 13 de maio de 2000, a reportagem de conferência da Câmara Argentina do Livro, e a maioria deles com-
Roger Chartier sobre a conferência internacional dedicada à situação partilhou das apreensões dos seus anfitriões argentinos. Parecia que
do livro e suas perspectivas hoje, realizada no começo deste ano em Dick Brass e seus assistentes puseram os dedos nas feridas que
Buenos Aires pela Câmara Argentina do Livro. Eu tive a estranha machucavam todos ou quase todos os presentes. Eles ofereciam uma
impressão de reencontrar meu professor de lógica há muito falecido, explicação digna de crédito sobre a doença - mesmo que o remédio
com sua canção familiaríssima, mas dessa vez transcrita para várias prometido parecesse a muitos ouvintes muito mais hediondo e desa-
vozes e cantada em coro por muitos clones... gradável do que a enfermidade que ele se propunha curar...
Primeiro, Dick Brass, vice-presidente da Microsoft, presenteou as Então, logo após Dick Brass, Jerome Rubin e Joseph Jacobson (do
pessoas ali reunidas com um programa detalhado da morte iminente Media Lab do Instituto de Tecnologia de Massachusetts - MIT)
do livro e do seu funeral. Até 2015, disse ele, todos os volumes da levantaram-se para informar a platéia de que os testes de uma " tinta
Biblioteca do Congresso Americano serão transcritos eletronicamen- eletrônica" e de um "papel eletrônico" - que juntos permitirão a
te. Em 2018, sairá o último número impresso de um periódico, ao transferência eletrônica de textos sem a mediação de computadores,
mesmo tempo que, de 2019 em diante, o verbete "livro" encontrado e farão com que os leitores tenham a sensação de estar virando a
nos dicionários deverá trazer a seguinte definição: "obra escrita página de um livro "verdadeiro" - tinham chegado às etapas finais
fundamental, geralmente disponível por meio de computador ou de e que poderiam, em breve, estar disponíveis no comércio. A expres-
equipamento eletrônico próprio". O seu pronunciamento, como es- são dos representantes da Microsoft converteu-se num estado de
perado, causou pânico entre os editores presentes, todos ocupados na profunda agitação: a vida póstuma do livro - de que eles esperavam
produção de objetos que agora - eles ouviram dizer - estavam prestes ter posse exclusiva - parecia estar escorregando de suas mãos. Depois
a ser descartados na lata de lixo da história, dentro de uma ou duas de pequena confusão e de muito exame de consciência, a Microsoft
décadas. O que tornou as notícias ainda piores foi que parecia haver sugeriu ao Media Lab do MIT que eles juntassem suas previsões e
alguma correspondência entre a mensagem trazida pelo pessoal da compartilhassem o espólio da implosão da Galáxia de Gutenberg por
Microsoft e a experiência mesma dos editores. Embora a 26a Feira meio da união de forças em favor do desenvolvimento de ambos os
do Livro de Buenos Aires (um dos maiores eventos deste gênero na projetos de substituição dos livros impressos.
América Latina, ao lado das feiras realizadas em São Paulo e Guada- A maioria das pessoas que compareceram à conferência de Buenos
lajara), realizada em maio de 2000, tenha atraído mais de um milhão Aires ficaram provavelmente com a impressão - assim como ficaria

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o meu professor de lógica, caso ele a tivesse presenciado - de que eles espécime de coleção de páginas encadernadas sob uma capa - que pode
haviam testemunhado um debate sobre o futuro do livro; de que esse ser assim descrito. Como sugeriu, há muito tempo, o fundador da
futuro está agora sendo embaralhado entre a Microsoft e a Media Lab, e moderna filosofia da ciência, Gaston Bachelard, a ciência nasceu quan-
que a sua forma depende, finalmente, de qual dos protagonistas/antago- do os livros científicos pararam de recuar diante do encantamento da
nistas sobre o palco se provará mais determinado, habilidoso ou inteli- experiência humana comum, como um trovão ou uma panela a vapor,
gente para levar a cabo suas idéias favoritas. e, em vez disso, partiram de uma referência a experimentos que não
Assim, qual das duas previsões - se é que alguma - deve prova- faziam parte da prática cotidiana dos leitores, ou da citação de uma
velmente suceder? Pessoalmente, estou inclinado a repetir o Rhett proposição feita por outra testemunha de acontecimentos semelhante-
Butler de E o vento levou...: "Francamente, eu não dou a menor mente misteriosos; noutras palavras, a ciência começou, quando o
importância..." O assunto pode ser de imenso interesse para Bill cordão umbilical que liga a experiência dos cientistas à experiência laica
Gates e todos aqueles que prefiram antes achar a mina de ouro foi cortado. Por essa razão, as publicações científicas e a experiência
pessoalmente do que deixar a satisfação para os seus concorrentes, comum foram separadas há muito tempo - e sua comunicação não
mesmo que isso significasse o risco de ser acusado pelas juntas está em jogo, o que quer que aconteça à tecnologia editorial). O
comerciais de prática monopolística. Mas, ao contrário do que eles relato de histórias alimentou-se da experiência compartilhada do
gostariam que o resto de nós acreditasse, o futuro do livro não será mundo ao mesmo tempo que lhe provia o sustento. Por isso, o cenário
determinado pelo que eles venham a fazer ou não. Não é a tecnologia da conversa terminaria por deixar sua marca profunda sobre a história
de publicação e distribuição que decidirá o papel do livro em reunir contada. Como sugeriu Franz Rosenzweig: diferentemente do pensa-
(ou separar, se for o caso) as comunidades humanas, o seu lugar em dor abstrato, que não pensa por ninguém e não fala para ninguém e
nossas culturas compartilhadas ou exclusivas, na forma e no conteú- que, por isso, "conhece de antemão seus pensamentos", o pensador
do de nossa humanidade. Não quero dizer que não há elementos que fala não pode antecipar nada e deve ser capaz de esperar, porque
preocupantes em todas essas coisas. O que quero dizer é que as "depende da palavra do outro", de "alguém que não tem apenas
questões calorosamente debatidas em Buenos Aires pelos chefes da ouvidos, mas uma boca também". A questão da conversa não é passar
Microsoft e da Media Lab, e por aqueles que fizeram eco às suas a verdade pronta de alguém que a conhece para alguém que não a
preocupações em muitas outras ocasiões, não são as verdadeiras conhece. Como propôs William James, "a verdade ocorre a uma
razões com que se preocupar. idéia ... Sua validade é o processo de comprovação". Podemos dizer
Desde o seu começo, e muito tempo antes de ele assumir a forma que o encontro entre locutor/leitor e entre leitor/locutor foi o lugar
que sustentou sua imagem nos séculos passados, o livro tem sido preciso daquela " verificação".
basicamente uma história contada num diálogo vitalício com a expe- O relato de histórias e a audição de histórias criaram um vínculo entre
riência humana. Como observou Walter Benjamin," uma experiência os dois protagonistas e os manteve amarrados durante a negociação
passada adiante de boca em boca é a fonte em que bebem todos os envolvendo a verdade da experiência humana. Foi o restabelecimento
contadores de história. E, entre os que escrevem contos, são grandes repetitivo daquele vínculo no ritual de reiteração que sustentou a base
aqueles cujas versões escritas diferem menos da fala dos muitos cognitiva para a idéia de continuidade e de parentesco - o " tear caseiro"
contadores de história anônimos... O contador de história narra o que da experiência, comumente herdada e usufruída por aqueles cujas
extrai da experiência - de sua própria experiência ou daquela repor- práticas de vida não haviam sido compartilhadas; foi confortante, trouxe
tada por outros. E ele, por sua vez, transforma o que conta numa reafirmação, minimizou ou encobriu as exasperantes incertezas da vida
experiência daqueles que o ouvem". (Permita-me notar, contudo, que (isto é, talvez, a razão por que as crianças - ainda lutando "para fazer
não são todos ou, para ser exato, nem qualquer livro - ou algum parte de", para encontrar o seu lugar seguro no mundo assustadora-

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mente estranho - adoram ouvir, repetidas vezes, as mesmas histórias contador fica bem distante, e, no momento em que somente os contadores
que sabem de cor). Enquanto o relato de histórias permaneceu oral, para cujas histórias são impressas, é que podem contar com um número signi-
cada grupo de pessoas havia também um número estritamente limitado ficativo de ouvintes transformados em leitores. O círculo de leitores e
de histórias a ser provavelmente contadas, bem como ouvidas, na o círculo de "parentesco" não precisam mais coincidir. Isso talvez
presença delas. Para usar a distinção de Walter Benjamin, podemos significasse uma bênção confusa para os contadores de histórias, uma
dizer que o tipo predominante, quase único, de história contada e ouvida vez que eles não poderiam continuar confiando na harmonia predeter-
era então a "história de camponês", a história de alguém "que ficava minada do diálogo, mas poderiam enfatizar - e enfatizaram - o destino
em casa, ganhando a vida honestamente, e que conhece os contos e um tanto desconcertante embutido numa estimulante oportunidade de
tradições locais" ; apenas ocasionalmente, a série de "histórias de cam- superação, ou de ir além daquele aspecto de suas experiências compar-
poneses" foi interrompida por "histórias de marujos" , contadas por ou tilhadas com os leitores. De agora em diante, as realidades sociais
ouvidas de "alguém que veio de longe". Podemos supor que esse surgiam com a tarefa que Hannah Arendt designou para os artistas: a de
desequilíbrio não desempenhou papel menor na manutenção da conti- " adicionar ao mundo". Adicionar - inserir no mundo alguma coisa que
nuidade e da identidade em separado do grupo. Na maioria das vezes, não estava lá antes e que não estaria lá a não ser que fosse inserido - é
"fazer parte conjuntamente" - "nós" como uma existência distinta um ato precisamente distinto de preservar, mais uma vez, o que já foi
de "eles" - significava ouvir as mesmas histórias, enquanto raramente, dito; é mais do que dar forma articulada ao que já foi vivido por
se é que alguma vez, se podia ouvir outra diferente. completo, embora não comentado.
Isso poderia ter mudado, ou pelo menos ter adquirido potencial de "Adicionar ao mundo" pôs em risco a continuidade e a separação
mudança, com o advento da "Galáxia de Gutenberg". Impressas e do grupo cujo mundo ele encarnava. O livro que adicionasse ao mundo
vendidas, as histórias poderiam agora viajar sem os contadores, e - em vez de exibir, uma vez mais, seu auto-retrato familiar - perturbaria
cruzar as fronteiras que separavam "nós" e "eles" mais facilmente a ordem das coisas em lugar de preservar intacta a forma que ela
do que os contadores de histórias em sua maioria: "histórias de assumira previamente. Ele poderia chocar-se com a sabedoria recebida
marujos" não seriam mais marginalizadas pelas "histórias de cam- do mundo ou, a qualquer custo, insuflar dúvida sobre sua exclusiva
poneses". Deve ter sido o começo do que mais tarde viria a ser pretensão à verdade. Ao invés de ser, como antes, um instrumento de
chamado de "comunicação transcultural" , embora o verdadeiro im- continuidade e separação, o livro se transformou num fermento de
pacto da mudança não viesse a ser completamente sentido após a auto-reflexão e mudança. Os guardiões da coesão do grupo e os
invenção da máquina impressora, mas, visivelmente, graças a uma sentinelas da ordem não poderiam senão perceber o perigo na livre
revolução social, não tecnológica: a difusão da alfabetização, logo circulação de histórias. As artes haviam se tornado subversivas - e não
seguida por impressões de baixo custo - como só se poderia esperar por escolha dos artistas (foi mais exatamente a decisão de conformar-
do que se conhece da esperteza do mercado. se, a submissão plácida ao sistema que tinha avocado a si o direito de
Uma das mais proféticas conseqüências da nova mobilidade das único intérprete da história e tradição popular, que veio a ser, agora
histórias foi a relativa emancipação da composição e narração em confessadamente, a escolha do artista). O tempo de construção da
relação à experiência vivida dos leitores. Na "era da comunicação nação com suas cruzadas culturais promovendo a unidade da língua,
oral" , com histórias tendo a não ser a memória humana como único tradição, panteão e visão de mundo tinha de ser também - e era, na
receptáculo e abrigo, cada ouvinte era um contador de histórias ou verdade, em quase todo lugar - o tempo de censura. Nem todas as
um recontador em potencial: os dois personagens envolvidos no "adições ao mundo" eram bem-vindas, e particularmente ressentida
diálogo eram intercambiáveis. Nem tanto agora, com as histórias era a seleção de adições feita por agentes sem plenos poderes para
saindo, na maior parte das vezes, de forma impressa, enquanto seu comandar o processo de construção da nação.

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Mas o que é que o livro - seja em conjunto com o resto das artes, a contingência, a ambivalência e o mistério, o romance é um aprendi-
ou sozinho, ou com seu jeito próprio e inimitável - adiciona ao mundo zado vitalício na difícil mas inevitável arte de viver sob condições de
precisamente, e ao Lebensweh do leitor mais particularmente? O que incerteza, na companhia da polivalência e entre uma variedade de
é isso que aparece no Lebenswelt do leitor, graças ao ato de ler, esse formas de vida.
algo que, do contrário, não estaria lá, mas ausente do mundo que Nem todos os pensadores contemporâneos concordariam com
precisa dele? Isso depende, outra vez, dos dois participantes do Kundera. Pode-se encontrar uma visão um tanto oposta nos escritos
diálogo entre contadores de histórias e seus ouvintes, e muda quando de Umberto Eco (ver, particularmente, o seu Seis Caminhos adentro
mudam os participantes. da Floresta Ficcional), para quem o verdadeiro valor da ficção
Entre os comentaristas que se manifestaram a respeito da sentença artística está em ser um antídoto contra a frágil clareza que a expe-
proferida pelo falecido aiatolá Khomeini contra o escritor Salman riência cotidiana produz: o romance é uma ilha de certeza tranqüili-
Rushdie, Milan Kundera foi um dos pouco a perceber, não só que um zadora entre os mares turbulentos da dúvida e da insegurança. Pode-
ataque à liberdade de expressão artística tinha avançado duramente se estar certo de que Scarlett O'Hara realmente casou com Rhett
sobre o prolongado esforço de oposição à censura, mas que se tratava Butler; Margaret Mitchell tem o controle incontestável do enredo e
de um crime muito mais profundo, alcançando as raízes da civiliza- podemos confiar em sua história com menos hesitação do que em
ção moderna. A sentença de Khomeini era particularmente abominá- quase todas as notícias que nos chegam, neste mundo de controvérsia
vel, porque o golpe não tinha como alvo apenas um escritor que ruidosa, polêmica e onipresente. Mesmo as afirmações feitas em
cometera um erro grave, mas também o romance - que, no modo de nome da ciência são dispostas numa enorme pilha de admissões,
ver de Kundera, significa a pedra angular do que é mais precioso, muitas das quais não conhecemos nem entenderíamos, se nos fossem
mais humano, no tipo de sociedade em que vivemos, aquela adição reveladas. Pode-se dizer que o valor do romance, de acordo com Eco,
particular sem o que este nosso mundo seria muito mais pobre, menos está no potencial curativo de um tranqüilizante abençoado, na prote-
humano, tolerável e digno de ser vivido - isto é, caso ele fosse capaz ção que ele oferece aos nervos dolorosamente postos à prova e
de existir sob qualquer condição. O romance traz ao mundo o mo- expostos...
mento de auto-reflexão, separação, ironia e riso que os poderosos Nessa controvérsia, de quem é a opinião correta? Talvez cada uma das
combatem e que condenariam ao exílio, com alegria, se não ficasse duas histórias conte parte da verdade, que precisa de ambas as histórias
o romance bem no meio do caminho deles. "A arte inspirada pelo para ser verdadeira. É tentador pensar na hipótese de que Kundera e Eco
riso de Deus não serve, por natureza, a convicções ideológicas, ela representam experiências de duas gerações diferentes, educadas em duas
as contradiz", nota Kundera em A Arte do Romance. "Como Pené- partes diferentes do mundo moderno: uma, como Kundera, crescendo à
lope, ela desfaz toda noite o tapete que os teólogos, filósofos e sombra da ameaça do totalitarismo e das pressões homogeneizantes, num
homens cultos teceram no dia anterior". Visto que ela não poderia mundo onde a liberdade era o mais cobiçado e o mais dolorosamente
senão fazer a mediação entre as diversas experiências humanas, ausente de todos os itens indispensáveis a uma vida humana dignificada
minando assim as certezas de cada uma delas, a ficção artística serviu - enquanto a outra, como Eco, deslumbrada, ensurdecida e iludida pela
como uma contracultura irônica e irreverente à cultura tecnocientífi- confusão da " cultura do cassino" com suas apostas em constante mu-
ca e burocrática da modernidade, que promoveu a obsessão pela dança e poucas regras, se é que havia alguma, num mundo que conseguia
ordem, por classificações concisas e hierarquias severas, pela con- sentir-se, ao mesmo tempo, incerto, inseguro e perigoso e no qual a
formidade à regra e pela disciplina rígida. A ficção artística defende liberdade era um "fato da vida", antes um fado do que uma vantagem,
a liberdade do homem, arduamente conquistada, e redime a imaginação enquanto a segurança e a autoconfiança eram, entre todos os valores
; a ousadia humanas; no mundo que trava uma guerra exaustiva contra humanos, aqueles cuja falta causava a dor mais lancinante. Cada uma

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das duas experiências salientou os diferentes aspectos do fenômeno enclaves territoriais, as civilizações vão se encontrar nos campos de
bifronte do livro; cada uma delas esperou, vislumbrou e encontrou no batalha - se muito.
romance histórias diferentes - tipos distintos de préstimos suprindo Não obstante suas diferenças, são visões de uma cisão irreversível e
diferentes faltas e redimindo tormentos diferentes. incurável. Enquanto Huntington põe em discussão o blefe da "globali-
Quais são os préstimos que o livro pode proporcionar ao nosso tipo zação" e sugere sua impossibilidade final em vista da divisão perma-
de sociedade? Que tipo de préstimos ele oferece mesmo, e que tipo nente da espécie humana, Lehman leva à sua conclusão lógica as atuais
de préstimos, se houver algum, tende a estar na expectativa dos seus tendências separatistas da globalização " tal qual nós a conhecemos" -
leitores? Para responder essas perguntas mordazes, precisamos tal- globalização dos poderes econômicos, financeiros e comerciais irrestri-
vez pensar na mudança da tecnologia de produção e distribuição do tos e desigualados pela planetarização das instituições políticas e do
livro bem menos do que os profetas da revolução eletrônica gostariam controle democrático (estes permanecem tão locais quanto antes). O
que fizéssemos, mas, em vez disso, olhar mais de perto para a maior efeito desse tipo de globalização é uma polarização agravante,
natureza mutante do mundo em que vivemos e para a experiência tanto das condições, como dos padrões de vida (Permita-nos notar que
mutante de viver dentro dele. as diferenças culturais e a fragmentação política do mundo parecem
No Lê Monde d'avenir, um suplemento extra do Lê Monde, publi- estar se desenvolvendo na direção oposta: enquanto, em 1850, o globo
cado no começo do novo século, Jean-Pierre Langellier justapõe duas estava dividido entre 44 estados, há 193 estados "soberanos" agora,
visões de nosso planeta tal como ele evoluiria nos anos que virão. A com aproximadamente outros 30 fazendo fila para promoção; enquanto
primeira é oriunda do romance F.A.U.S.T., de Serge Lehman, cuja se espera que - de 6.000 línguas usadas hoje em todo o globo -
ação ocorre em 2095. No mundo governado pelos "Grandes Pode- aproximadamente a metade seja extinta antes do fim deste século, 95%
res" dos impérios industriais e comerciais, uma série de "aldeias" delas são faladas por escassos 4% da população global). A cisão de
metropolitanas, ricas e confortáveis, se estende ao longo do " Sota- Huntington é causada por um colapso de comunicação que não tem
vento de Darwin" que circunda o globo. O estreito cinto de riqueza reparo. A ruptura de Lehman é induzida pelos ricos, que não fazem mais
é separado por um outro, o largo cinto sanitário da terra de ninguém, uso dos pobres e, por isso, não mais aliviarão o seu fado, e os pobres
abandonada, um matagal sem lei, o território da pobreza desesperan- não tendo mais ilusões sobre a boa vontade dos ricos para tomar um
çada, habitado por seis milhões de criaturas miseráveis, sofrendo atitude. É tudo a mesma coisa, uma cisão abissal, não é nenhuma
privação. Nesse mundo, os bem-sucedidos optaram por não fazer unidade ou universalidade da condição humana o que aparece ao fim cê
qualquer tipo de contato com o resto, tendo antes assegurado, para seu cada uma das duas estradas.
uso exclusivo, as melhores regiões do planeta: o que antes eram classes Lehman e Huntington produziram distopias, colocando lado a lado
que coabitavam transformou-se agora em sociedades separadas e de os receios declarados ou tácitos da nossa era de globalização. Suas
comunicação cortada entre si. A segunda visão é tirada das profecias visões são avisos, não vaticínios, muito menos "prognósticos cientí-
amplamente lidas e calorosamente debatidas de Samuel Huntington, ficos" (a assim chamada " futurologia" assume contrafactualmente
que não dá importância às desigualdades produzidas socialmente, ao a regularidade e a legitimidade da história do homem, a fim de se
mesmo tempo que vaticina um abismo profundo, intransponível, sepa- pronunciar sobre o futuro: mas futuro, por definição, não existe - é
rando "civilizações" que ele calcula chegar a sete ou oito (não está um "não-ser". Não tendo um objeto acessível empiricamente, a idéia
bem certo do futuro da África). Os universos ideológicos, políticos, de uma "ciência do futuro" é um oxímoro, uma contradição de
artísticos e tecnológicos seriam, na visão de Huntington, impotentes termos). O que os dois escritores previram pode realmente acontecer,
para transpor as fendas intercivilizacionais, quanto mais para vedá-las mas não estamos na posição de dizer, com algum grau de certeza, se
ou escondê-las. Fortificadas e sem muros dentro dos seus respectivos vai ocorrer ou não. A história é feita de atos humanos, e o futuro não

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está determinado até que ele se torne um outro presente. Tendências opus magnum, A Estrela da Salvação. Em si mesma, a mensagem
estatísticas podem permitir extrapolações, mas a história do homem desse livro não era " verdadeira". Ainda assim, ela poderia se tornar
prima por frustrar probabilidades estatísticas. Qual dos cenários imagi- verdadeira em suas conseqüências; ela poderia ser "verificada" na
náveis (ou inimagináveis, se for o caso - como uma sociedade sem vida e pelos vivos. Ela não teria, contudo, tal oportunidade, caso não
escravos foi inimaginável para Aristóteles, e um estado sem realeza, fosse escrita, publicada e lida.
para Bossuet) se converterá em presente futuro, não podemos dizer. O Correr o risco de verificação e então surgir como o verdadeiro
que nós podemos é tentar evitar que os homens encarnem os termos da sentido da experiência humana - em si mesma confusa, dispersa e
distopia. opaca, destituída de senso óbvio - é uma tarefa do livro que os nossos
Outros cenários afluem noutros debates. Há ewtopias ao lado de tempos talvez tenham tornado mais urgente do nunca; mas estes
í/z'.ytopias, visões da bem-aventurança universal, da emancipação mesmos tempos fizeram o cumprimento dessa tarefa ainda mais
final do potencial criativo do homem e da verdadeira autonomia do difícil do que antes. Colocar a culpa nas costas da nova tecnologia
indivíduo; e também das barreiras entre povos e seus tesouros cultu- editorial seria grave erro. A dificuldade em questão afeta o livro e,
rais sendo finalmente desmontados, de fronteiras sendo abolidas ou de maneira mais geral, o relato de histórias em toda a sua forma, quer
abertas, de idéias de uma vida saudável livremente trocadas, dispo- sobre o papel, sobre a tela ou escrito com "tinta eletrônica". A
níveis para todos e negociadas por todos com a intenção universal- dificuldade está intimamente relacionada com a natureza mutável de
mente compartilhada de chegar a um acordo. Há também esperanças nossa experiência, e, mais precisamente, com a mudança no modo
expressas de que, mais cedo ou mais tarde, chegaremos a um enten- como vivemos nossas vidas e, conseqüentemente, como percebemos
dimento sobre a pluralidade e a diversidade do mundo e de seus e relacionamos o mundo em que elas são vividas.
habitantes - que os veremos como uma oportunidade, não como uma Os dias de hoje diferem daqueles em que as formas clássicas do livro,
.ameaça, e talvez até acrescentemos à mera tolerância da variedade a e o romance em particular, prosperaram - e diferem deles em muitas
solidariedade ao outro e ao diferente. Se o futuro não está predeter- relações fundamentais. Penso que uma, entre essas muitas relações, seja
minado (e não está!), então ele está aberto; talvez não "bem aberto", de particular relevância para nosso problema: a saber, a marca registrada
não "sem fronteiras" - mas, provavelmente, mais aberto do que da atualidade, a fragmentação da vida numa série de episódios relativa-
estamos preparados para admitir. É nossa responsabilidade assegurar mente autosegregados ligados à percepção do fluxo do tempo como uma
que não seja ignorada ou negligenciada qualquer possibilidade de um sucessão de eventos relativamente autosegregados. A conseqüência
destino melhor para a humanidade, que possa passar ou ser conduzida dessa dupla fragmentação é o "encurtamento de período" que marca,
através dessa abertura. tanto a vida pública, quanto a individual.
O livro, o relato de histórias que "faz sentido" da experiência De acordo com o slogan lançado pelo canal francês RTL, " infor-
humana, tem um imenso papel a desempenhar nesse jogo de possibi- mação, assim como café, só é boa quando é quente e forte". Hoje em
lidades. Permita-me citar Franz Rosenzweig uma vez mais: "Hou- dia, há uma enchente de informação sobre nós, mas ainda servida
vesse Lutero morrido em 30 de outubro de 1517, toda a ousadia como café - bastante forte para anular o sabor da comida consumida
do seu comentário sobre a "Epístola dos Romanos" não passaria de no momento anterior e bastante quente para abafar todas as sensações
extravagâncias de um escolástico falecido". Sabemos, contudo, que experimentadas. Contudo, ela esfria rapidamente - desaparece
ele não morreu naquele dia, e, assim, no dia seguinte, ele pregou das manchetes de jornal e do noticiário de televisão antes que o seu
sobre a porta da igreja de Wittenberg as suas 95 teses. Foi graças a gosto possa ser saboreado por completo, muito menos avaliado. Se
esse ato, conclui Rosenzweig, que "a vida complementou a teoria e for, por acaso, informação sobre o mundo, servida como café, a
a tornou verdadeira". Sob a mesma luz, Rosenzweig viu o seu próprio velocidade da sua ida e vinda prediz o fim do entendimento: um bit

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de informação é caçado por outro antes mesmo que possa ser absorvido, guinte, a demanda por tais leituras pode apenas sofrer quedas. Os
e, uma vez que eles não são assimilados, não podem ser conectados a próprios livros mudam o seu lugar no mundo existente de nossos
uma cadeia de eventos significativa. Cada evento deve assim " sobrevi- contemporâneos; eles mudam do universo do esclarecimento para o
ver" por conta própria, e o senso de totalidade é deixado para trás pelos universo do entretenimento, mudam de valoresduráveisparaobjetosde
competidores já no início da caçada. consumo. Mais do que isso: no mundo que dividiu sua própria história
Os eventos - sincronicamente trombeteados pela mídia e sincro- em eventos, os livros podem confiar no seu poder de atração, caso eles
nicamente lançados por ela ao esquecimento - criam, por um breve mesmos se tornem eventos; daí o paradoxo do crescente aumento de
espaço de tempo, seu próprio "público", por sua vez tão efêmero que público das feiras de livros coincidir com a rápida queda do número de
se separa logo após juntar-se, sem aperfeiçoar sua coesão. Trata-se leitores. O culto às listas de best-sellers - os "livros quentes", lidos
também de um público guiado por influências externas, forjado de por " todo mundo" e que decoram a mesa de café de " todo mundo"
fora para dentro, não um "público orgânico", nascido de um diálogo apenas para que sejam jogados fora da sala de espera na semana
contínuo e mantido por ele. Fora dessa experiência singular do seguinte, quando saírem de moda empurrados pela listagem dos
"público", é extremamente difícil, não impossível, moldar a imagem próximos best-sellers - sinaliza essa transformação do livro em
do "interesse público" e de qualquer outra coisa relativa a ele, tal evento. Em vez de contra-atacar as pressões para fragmentação e
como a idéia de uma sociedade justa, de justiça social ou de ética da "episodiação" da visão de mundo e da vida humana, os livros
política - do mesmo modo que, fora dessa história da vida vivida transformados em eventos cooperam com o processo. É a transfor-
como uma série de episódios escassamente ligados, é difícil ao mação profunda do cenário da vida produzido socialmente que fez
extremo organizar um debate sobre o "projeto da vida", sem men- com que os livros se ajustassem à "realidade virtual" flexível,
cionar o projeto de " toda uma vida". O mundo nos é oferecido como caleidoscópica e multiforme da rede eletrônica - e não o contrário.
um contêiner cheio de eventos para consumo imediato, instantâneo, Os livros podem ter adicionado ao mundo - mas nunca o fizeram
de uma única vez. Num mundo assim, o breve espaço de tempo da de fora; eles sempre foram parte do mundo e esta é precisamente a
vida parece ser uma série de episódios, devendo cada um deles ser razão por que as adições que eles ofereceram puderam ser assimila-
consumido de modo similar e superficialmente. das. É natural que os membros do mercado editorial imaginem os
É a partir de tal entrelaçamento do mundo fragmentado e da vida seus produtos nos termos de problemas que venham a surgir no curso
fragmentada que o livro enfrenta seu maior desafio. Como pode o da produção. Mas o destino do livro, em nosso mundo globalizante,
livro ajudar, e pode ele realmente ser de ajuda, no corte deste nó não depende, nem pode ser explicado, pelas tecnologias de impressão
górdio particular? E enquanto o nó permanecer amarrado, como ou qualquer outra coisa restrita ao mercado editorial. Os livros estão
parece estar agora, pode o livro dar continuidade a um diálogo condenados a compartilhar o destino das sociedades das quais são
significativo com a experiência humana, essa condição sine qua non uma parte. Quando pensarmos em livros, vamos pensar primeiro em
de qualquer préstimo que ele possa vir a oferecer? sociedade. Quando nos preocuparmos com o futuro dos livros, vamos
A força do livro foi sua única habilidade para amarrar biografia e olhar mais de perto para a sociedade e suas tendências. Para produzir
história, o privado e o público, o indivíduo e a sociedade, momentos livros ajustados à sociedade em que vivemos, vamos tentar evitar que
vividos e o significado da vida. Esse trabalho de síntese é difícil de essa sociedade se torne inadequada para os livros...
compreender num mundo que pôs fim à duração e ao pensamento a
longo prazo; sua significação (na verdade, sua indispensabilidade)
tende a iludir os seus habitantes. Nossa atenção muda rapidamen-
te demais para nos permitir fazer uma pausa e refletir; por conse-

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ERA INFORMACIONAL E USO DO LIVRO

BARBARA FREITAG

Manuel Castells, o sociólogo espanhol e catedrático na Universidade


da Califórnia, pertence, ao lado de Anthony Giddens e Jürgen Haber-
mas, a um grupo de intelectuais contemporâneos que cercam e assesso-
ram os governantes no poder. Enquanto Habermas1 buscava o diálogo
com o novo Chanceler Schrõder da Alemanha e Giddens2 assumia o
papel de souffleur de Tony Blair, Manuel Castells3 passou a freqüentar
os Seminários internacionais organizados pelo governo de Fernando
Henrique Cardoso, para rediscutir as linhas mestras da condução do
Estado nacional brasileiro. Nesta ocasião, Castells também concedeu
entrevista ao programa "Em Aberto" da TV Cultura de São Paulo e
lançou, no Brasil, a sua trilogia, que tem como título geral "A era
informacional", publicada pela Paz e Terra. Em suma, Manuel Castells,
que FHC chama de "Manolo", tem algo a dizer sobre o mundo e o
Brasil. Mas teria ele algo a dizer sobre "o lugar do livro entre a nação
e o mundo?"
A tese central da trilogia de Castells pode ser resumida no slogan:
"Estamos vivendo na 'network society'" .4 Com o detalhamento dessa tese
em aproximadamente 1.500 páginas, amplamente recheadas com dados
dos grandes relatórios mundiais5 e uma bibliografia extensa, no final de
cada volume, aprendemos que já demos um passo além da " globalização"
da economia e entramos na "era informacional" .6
Na passagem do segundo para o terceiro milênio, já está consumada
a passagem da globalização para a informatização e da era industrial
para a informacional. Essas mudanças macroestruturais têm um impacto
jamais imaginado sobre a organização da sociedade mundial e sobre a

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mentalidade dos indivíduos nela inseridos. Castells lembra que esses de governos, empresas bancos, etc. Em verdade, Castells quis dizer:
processos de mudanças radicais aconteceram recentemente, nas últi- "Este livro não se inspira em teorias dos outros. Ele procura construir
mas duas décadas, alçando um quarto da humanidade a patamares de uma teoria própria: a teoria da era informacional". Para tal, tudo indica
riqueza jamais vista, somando aproximadamente dois bilhões de "opu- que pode "descartar" os livros com suas teorias, hoje obsoletas. (Cas-
lentos" . Em contrapartida, os mesmos processos deixam aproximada- tells, vol. I., pp. 25 ss.)
mente três quartos da humanidade à margem da era informacional. Esta Assim sendo, tentarei, num primeiro passo, expor, de maneira sinté-
população de mais de 4 bilhões de pessoas vive, como o autor admite, tica, a teoria da network society, desenvolvida por Castells. Em seguida,
em níveis de pobreza indignos, espalhados em continentes e países que procurarei "rastrear" os três volumes da "Era informacional" para
não ousaram ou não foram bem-sucedidos em sua tentativa de integrar- encontrar alguma referência ao lugar e papel do livro nesta sociedade
se no novo "modo de desenvolvimento informacional". Este repre- mundial calcada no "modo de desenvolvimento informacional". So-
sentaria o último estágio do capitalismo internacional, produzido por mente então, passarei a examinar o "lugar do livro entre a nação e o
uma quarta revolução tecnológica, que teve a sua origem em Silicon mundo, fazendo alguns empréstimos a teorias menos deslumbradas com
Valley, na Califórnia/USA. os dados e as tabelas da era informacional.
Ao escrever sua trilogia, Castells teve o objetivo de formular uma teoria O Castells da década de 90 está convencido de que o final do século
sistemática da sociedade informacional, capaz de analisar o impacto das XX representa, não somente o fim do marxismo, como também o fim
modernas tecnologias da informação sobre a nova divisão do trabalho, a da "era da razão". Ambos estariam sendo substituídos pela "era da
estrutura de emprego, o enfraquecimento do Estado e dos sindicatos, a informação". Para ele, é chegado o momento em que deveríamos
organização dos meios de comunicação no mundo globalizado e conectado desenvolver novos conceitos, capazes de exprimir as mudanças tecno-
em redes. Como reafirmou, em sua palestra no Brasil, Castells se propôs a lógicas ocorridas nas últimas duas décadas e sintetizadas no conceito de
" identificar os principais processos de âmbito mundial que transformaram " quarta revolução tecnológica". Em sua essência, essa revolução se deu
a economia, a cultura e a sociedade na última década, analisando o como graças um conjunto de tecnologias convergentes, integradas num bloco:
e o porquê do atual desmantelamento do Estado Nação, construído desde a microeletrônica, a computação (soft e hardware), a telecomunicação,
a idade moderna, e da crise de legitimação que sofrem suas instituições e a eletrônica baseada na fibra ótica e, ultimamente, até mesmo a bio- e
seus representantes?"7 engenharia genética. Mas tudo isso não teria gerado mudanças estrutu-
Neste novo contexto de "passagem", em que "tudo que é sólido rais nos mercados, Estados e nas sociedades do mundo inteiro, não fora
parece desmanchar-se no ar", mais precisamente, "em fluxos eletrôni- um feliz casamento entre essa tecnologia de ponta e um mercado ágil e
cos" , cabe a nós - reunidos neste Seminário Internacional, na Biblioteca flexível, que soube veicular e multiplicar os resultados da ciência (novos
Nacional, órgão do Estado - lhe perguntar, qual seria, em sua opinião, conhecimentos) e da tecnologia de ponta, desenvolvidos em Silicon
o lugar do livro no futuro? Valley, através das redes do " www".
,No prólogo de sua trilogia, Castells dá uma resposta (em termos): A característica dessa revolução tecnológica recente não é a centralidade
"Este livro não é um livro sobre livros", no que parece querer contra- do saber e da informação (que sempre já estiveram presentes nas revolu-
por-se a autores como Habermas, que antes de formular sua " teoria da ções anteriores), mas sim a comunicação imediata e fácil dos novos saberes,
ação comunicativa" revisitou, criticou e remanejou mais de dois mil conhecimentos, informações e tecnologias ao mundo inteiro pelas redes
livros e ensaios, buscando uma nova via teórica para compreender a globais, realimentando e integrando novas redes, associadas ao mercado e
sociedade do futuro. Castells, no entanto, diz que buscará suas informa- ao poder (econômico e político).
ções na "própria realidade", aliás em Relatórios do Banco Mundial, Castells admite que isso somente ocorreu em algumas partes do mundo,
estatísticas oficiais das Nações Unidas, relatórios técnicos e econômicos privilegiadamente nos Estados Unidos, na União Européia e em certos

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países Asiáticos, como o Japão e o Taiwan. Nesses países, também há Ao Estado, aos sindicatos, aos empresários e aos empregados não
áreas e segmentos populacionais que não foram atingidos pela revolu- resta outra alternativa senão adaptar-se aos novos paradigmas introdu-
ção em discussão, ficando excluídos e marginalizados da riqueza pro- zidos pela revolução tecnológica informacional. Por isso, cabe ao Esta-
duzida. do agilizar as estruturas de trabalho, flexibilizando a legislação traba-
O caráter "excludente" deste novo modo de desenvolvimento não lhista, dando uma educação mais atualizada e diversificada às novas
passa despercebido a Castells. Ele sabe que, no máximo, um quarto gerações, para que essas, por sua vez, tenham condições de adaptar-se,
da população global está sendo beneficiada, mas exprime a sua com maior rapidez, às exigências do mercado. Além de retirar-se do
"esperança" de que isso seja somente temporário. A longo mercado, o Estado contemporâneo faria bem em devolver a autonomia
prazo, ele espera que seja possível integrar frações cada vez maio- e responsabilidade aos governados, que passariam a velar por sua
res dos atualmente excluídos no seio da "sociedade informacional própria saúde e aposentadoria, assinando planos de saúde e convênios
favorecida". O caderno "Mais", de 20 de agosto 2000, publicou previdenciários particulares, educando melhor seus filhos para a
recente artigo de Castells, no qual este procura assessorar um chefe nova era. A ação do Estado deveria, pois, restringir-se a formular as
de Estado africano. A única saída para superar a pobreza na África o leis corretas e pôr à disposição certos serviços básicos, entre eles a
autor vê na adesão ao novo modelo da sociedade em redes. Isso requer moderna tecnologia das telecomunicações e das auto-estradas ciber-
grande esforço dos africanos de se modernizarem tecnologicamente néticas, para processar as mudanças, em benefício da internacionali-
e de educarem melhor as novas gerações de africanos. Requer ainda zação da network society.
uma compreensão e generosidade dos países ricos do planeta, já A mídia, até agora voltada para as massas, também teria de acom-
conectados em redes, para "perdoar dívidas" e facilitar a adesão dos panhar essas mudanças, incorporando a nova lógica informacional.
excluídos, dando sustentabilidade às estruturas geradas pela quarta Seus destinatários, receptores de mensagens, não seriam mais massas
revolução tecnológica. amorfas, mas "internautas" individualizados. Os "acoplados" à In-
Castells não culpabiliza a "era informacional" pelo desemprego. ternet são sujeitos isolados, que se relacionam em casa (na intimida-
Ao contrário, argumenta que, com as novas tecnologias, também de, e não no espaço da rua) com seu PC e os diferentes programas
foram criadas novas formas de emprego. Se houve novas ondas de software ao " www". O recurso aos meios de comunicação de massa,
desemprego, isso se deve à incapacidade dos trabalhadores vincula- rádio e televisão, estaria passando para o segundo plano. O sindica-
dos às velhas tecnologias de se adaptarem às novas condições de vida. lismo de massas, bem como atuações partidárias demagógicas, co-
Aponta para as mudanças estruturais da divisão do trabalho e do muns no século 20, teriam os seus dias contados, perdendo sua função
emprego dos países do leste europeu e da antiga Uniãc Soviética de mobilização coletiva. A mão-de-obra flexível "livre" estaria
depois da queda do muro de Berlim. disponível para ser (ré) utilizada de acordo com as demandas de um
A "flexibilização" das estruturas de emprego é inevitável, tornan- mercado voltado para a alta produtividade, o lucro (a médio e longo
do imperiosa a dissolução da estabilidade do emprego e do Estado de prazo), sem riscos, assegurando o acúmulo de riqueza para os conglo-
Bem-Estar que a garantia. Nem a profissionalização dentro de qua- merados internacionais. A mão-de-obra flexibilizada e facilmente reci-
dros rígidos, nem o emprego vitalício, ainda reivindicados pelas clável assume, ela mesma, os riscos, outrora repassados ao Estado de
organizações trabalhistas, teriam condições de "modernizar" a eco- bem-estar. É assim que o trabalhador de hoje passaria para a condição
nomia. Somente os novos paradigmas impostos pela globalização da de cidadão autônomo e responsável de amanhã.
economia e pela informatização generalizada da vida política, cultu- O modelo da sociedade informacional, aqui relatado, é, como admite
ral e social da sociedade podem mostrar novos caminhos para a Castells numa das entrevistas, a-moral (isto é, desprovido de moralida-
humanidade do terceiro milênio. de individual e eticidade coletiva) e neutro, nos melhores moldes

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néfico" da era informacional sobre suas vidas. A estrutura de emprego
advogados pelos positivistas do século XIX e parte do XX; sua função
se diferencia e flexibiliza, o desemprego se reduz, os salários crescem,
única e exclusiva é garantir a médio e longo prazo a lucratividade.
a sociedade como um todo se enriquece, apesar de uma apropriação
Se é verdade que o impacto da "era informacional" se traduz em
muito diferenciada (e por parte de uma fração reduzida da população).
aumento acelerado de riqueza para mais ou menos 1/4 de beneficiados, em
O impacto da sociedade organizada em redes sobre os 3/4 da população
detrimento do resto da população do globo terrestre, por sua vez excluído
não atingida pela quarta revolução tecnológica traduz-se em aumento
e pauperizado, precisamos retomar a questão do livro, levantada no início,
acelerado da pobreza (proporcional e absoluta). Apesar de excluídos da
para dois tipos potenciais de leitores: a minoria conectada às redes mundiais
economia e política informacional, esses mais de 4 bilhões de habitantes
da Internet, e a grande maioria não conectada.
do globo são duplamente atingidos, pois não existem mecanismos
Para os primeiros," os conectados", desenvolver-se-ão novas formas
capazes de inseri-los nem no mercado de trabalho tradicional, nem
de sociabilidade, como, por exemplo, a "virtualização das relações
mecanismos adequados para que os preparassem para o novo mercado
sociais" entre as pessoas. Elas, a rigor, não precisariam mais viajar,
de trabalho gerado pela sociedade informacional.
nem mesmo telefonar para seus pares do outro lado do globo, nem
Surge, assim, o que ficou conhecido como o desemprego estrutural,
sair de casa para trabalharem, irem ao banco, se encontrarem com os
isto é, um desemprego que atinge várias gerações de potenciais traba-
vizinhos ou fazerem suas compras. Como terão acesso fácil à "ama-
lhadores (avô, pai e filho). Esta grande maioria permanece fora do
zon@com", podem inclusive encomendar os livros que quiserem
gueto exclusivista dos beneficiados. Para tirarem proveito das vanta-
pela Internet, desde que tenham um cartão de crédito, do qual podem
gens, teriam de ter acesso às diferentes redes de informação e às
ser debitados o custo e o envio por correio. Graças ao acesso virtual aos
tecnologias da informação, que, por sua vez, garantem o acesso a redes
últimos lançamentos, à crítica e réplica do livro que os interessa, podem
(celular, computador, novas linguagens software, bem como o treina-
estar, potencialmente sempre a par de tudo que se publica no ramo de
mento adequado para poder lidar com essa tecnologia, entre outros).
sua especialização. As chances de emprego para esses beneficiados
Até pode ser verdade, como Castells insinua, que anetworksociety tenha
aumentam, já que têm igualmente acesso à tecnologia informacional e
dissolvido as classes sociais tradicionais, mas também é verdade que ela
a todas as alternativas de emprego geradas pela remodelação da produ-
criou nova hierarquia social, em cujo topo vivem os habitantes do globo
ção baseada nos fluxos imediatos de informação capitalizável. Essa
encerrados numa torre de marfim virtual, sustentada e viabilizada por um
população fica beneficiada. Independentemente do livro, se beneficiam
chão real, de trabalhadores "não conectados". São estes que verdadeira-
acima de tudo os setores do management privado e público, jogadores
mente sustentam a torre. Os "virtuais" muitas vezes perderam a noção de
nas bolsas financeiras, aplicadores de capitais voláteis que prometem
quem garante efetivamente a sua existência na base do sistema social.
altos lucros de risco, corretores de imóveis, vendedores virtuais, agên-
Nestes termos, a "sociedade informacional" de Castells lembra "Metro-
cias de informações, jornalistas, editores. Abrem-se, assim, novas pos-
polis", o filme expressionista de Fritz Lang, da década de 30, no qual essa
sibilidades de emprego e de enriquecimento fácil, rápido, tentador e
visão da sociedade em dois patamares já foi antecipada. O desenvolvimento
lucrativo. Como se pode ver, todos esses empregos pressupõem o uso
da era informacional, admitidamente "insustentável" a longo prazo, pode
do livro ou do jornal real ou virtual. Para não "perder tempo" e dinheiro,
terminar em revoltas operárias, como as encenadas no filme.
esses "privilegiados" podem estar lendo, diretamente no screen de seu
A sociedade informacional é indiferente ao risco que ela corre,
monitor, as últimas notícias, a situação da bolsa, o saldo da conta
bancária, dispensando a impressão. Mas trata-se de livros, jornais, negligenciando a população excluída dos "benefícios" que ela gera e
textos eletrônicos que, com um clique, podem materializar-se em folhas desrespeitando a natureza, da qual extrai boa parte de sua riqueza. Como
impressas, encadernadas ou não. Aqueles beneficiados pelo novo "modo é sabido, a sociedade informacional é alta consumidora de energia
elétrica e não pode existir sem ela. Esgotadas as reservas, essa sociedade
de desenvolvimento informacional" experimentam, pois, um "efeito be-

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desmoronaria como um castelo construído em areia ou como uma mão, surpreendi-me com a ausência do livro nos dois estratos principais
seqüência de peças de dominó em queda livre. Por ser indiferente à da sociedade (retratada). Nem os donos da fábrica nem seus operários
natureza e suas fontes de energia, ela também não respeita as regras de explorados e exauridos pareciam recorrer ao livro, seja para se divertir ou
sua preservação, como alertam os movimentos ecologistas. Por isso, ela distrair, no primeiro caso, seja para se informar e reorganizar, no segundo.
é hostil ao meio ambiente. Basta lembrar as pilhas tóxicas dos telefones Os donos da fábrica pareciam estar mais ocupados com seus livros de
celulares, walkie-talkies, rádios e CDs, TVs. contabilidade (perdas e ganhos; salários e custos da produção) que em
E, como foi admitido pelo próprio Castells, ela é a-moral, por não livros propriamente ditos (de filosofia, literatura, arte, ciência, economia,
preservar os valores herdados do humanismo dos séculos XIX e XX, como política). Ocupavam-se mais em controlar (através de uma espécie de
a defesa da integridade e da dignidade do homem, de todos os homens "panopticum-TV") os operários e verificar se estavam efetivamente traba-
(no sentido de humanidade). Defendendo a neutralidade da ciência, da lhando. Estes, por sua vez, colados as máquinas no subsolo e nas cavernas
tecnologia e do mercado, ela não introduz novos valores sociais, políticos de Metropolis, não unham como pensar ou pegar num livro, porque lhes
e morais capazes de encaminhar as novas gerações no sentido de integrar- faltava tempo e energia para investir em leitura, durante a dura jornada de
se, sustentar, preservar e ampliar a sociedade informacional em bases trabalho. Tampouco aMaria (boa) que prega solidariedade e fé na religião, nem
dignas para todos. Esses valores dificilmente podem ser gerados no espaço a Maria (má), o clone mecânico da Maria boa, consulta um Manual da
virtual do web, mas nele podem ser incorporados e veiculados. É aqui que Revolução que ela prega somente para desorientar a classe operária.
vejo novas chances para o livro, os livros escritos, lidos e relidos, No entanto, o livro aparece no filme, nas mãos do cientista judeu, que
debatidos e comentados, e até mesmo concretizados em valores e mora numa residência própria a meio caminho e à parte das duas classes
instituições (como a democracia, direitos humanos, alfabetização para antagônicas. É o cientista louco que termina sendo, na versão que
todos, liberdade de religião, sufrágio universal, etc.). chegou ao público, o culpado do desastre e curto-circuito que ameaça a
Em interessante artigo, escrito na década de 80, Vilém Flussèr, existência de Metropolis, quando os operários enfurecidos destroem as
filósofo tcheco-brasileiro8 já alertava para a necessidade de traduzir os máquinas e inundam a parte subterrânea da cidade em que viviam seus
velhos códigos, encerrados em livros e documentos (empoeirados) para filhos. Revoltam-se, assim, instigados pelo "clone" Maria, fabricado pelo
os novos códigos da era digital. Noutras palavras, não se trata de cientista, contra o falso inimigo - as máquinas - e não reconhecem, no
"descartarmos" os livros por haver a Internet, cabe preservá-los, incor- sistema monstruoso de exploração, concebido e realizado pelos donos da
porando-os, guardando-os - no sentido da Aufhebung - no interior das fábrica, o seu verdadeiro inimigo. Neste filme de ficção, que reflete o
linguagens eletrônicas e digitais da era informacional. Essa proposta de anti-semitismo e antiintelectualismo difuso já existente na Alemanha, até
Flussèr, lamentavelmente não faz parte do ideário e das receitas de mesmo antes da tomada de poder de Hitler, o livro da ciência e a tecnologia,
Manuel Castells, mas já está sendo colocada em prática, como nos em mãos do cientista judeu, assume papel perverso: "clonar" Maria. O
informam diariamente os nossos jornais.9 filme antecipa duas práticas abomináveis, posteriormente comuns durante
Se aceitarmos a nova divisão da humanidade em incluídos e excluí- o nazismo: a queima dos livros em plena praça em frente à Universidade
dos, estratificada nos "de cima" e "nos de baixo", qual o papel do livro de Humboldt e as experiências do doutor Mengele em Auschwitz, pesqui-
para os "de cima" conectados em rede? E qual o papel (se é que têm?) sador frio e monstruoso da biogenética.
e lugar do livro entre os "de baixo", os desconectados e excluídos, que Recorrendo à metáfora de "Metropolis, tentarei pensar o papel do livro
vivem na pobreza e no desemprego estrutural? na "sociedade informacional", seguindo o script que Castells nos deixou
Para melhor visualização deste problema, voltemos ao filme de Fritz em sua trilogia. Também no terceiro milênio, os detentores da riqueza estão
Lang, "Metropolis", que antecipou em imagens marcantes essa estratifi- mais preocupados com o acompanhamento dos valores das ações na bolsa,
cação do futuro. Revendo este "clássico" do cinema expressionista ale- a venda virtual de "ações", aplicações financeiras etc., do que com livros

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que pudessem ser virtualizados e divulgados pelo sistema eletrônico ministérios e até mesmo no Palácio do Planalto e no Buriti, isto é, no
da rede ou em CD-Rom, a versão tecnológica mais adiantada do livro. coração do poder institucionalizado.
Os que não manipulam (histericamente) os seus telefones celulares, Não se trata de uma peça do passado, guardada a sete chaves, mas de
suas agendas eletrônicas e calculadoras, "estudam" pela Internet, um material real que pode ser ativado a qualquer instante.
acoplados a um laptop na sala VIP de qualquer aeroporto mundial, ou O noticiário da semana passada mostrou um esforço feito no Congresso
a um PC instalado em casa, as últimas notícias e "informações" que de alfabetizar os serventes e faxineiros da casa, em sua maioria analfabetos.
possam ser úteis para novos investimentos, o home banking e novas O livro do qual um deles havia espanado o pó, durante duas décadas, sem
decisões econômicas. Raras vezes encontramos, em aeroportos ou saber do seu autor e conteúdo, era Os Lusíadas, de Camões.
dentro do avião, em restaurantes ou cafés, modernos/as profissionais Provavelmente o faxineiro recentemente alfabetizado desistirá de ler
da " era informacional" lendo um livro real e muito menos um virtual além das primeiras estrofes, mas o livro visível, palpável, "bonito",
downloaded no seu screen. existe e continua provocando, como tantos outros, o potencial leitor. Por
Por outro lado, acompanho há 6 meses, a partir da sacada do meu isso, ouso arriscar uma tese a ser confirmada: o livro " salvo" num texto
apartamento, o dia-a-dia e o movimento de 10 a 20 " sem teto/sem terra" virtual ou impresso, encadernado em Unho ou couro, papel de em-
que habitam embaixo de uma árvore (encobertos por uma plástico preto) brulho ou plástico, estabelece um elo entre os estratos extremos da
na entrequadra da Asa Norte em Brasília. Certamente trata-se da "raspa "sociedade em redes". Ele tem condições de humanizar aquele estrato
do tacho" dos excluídos da era informacional, dos quais nos fala dos excluídos que vive aparentemente no nível técnico da pré-história,
Castells. No caso deles, a preocupação primeira é a água, a comida, o como ele conferiu dignidade e alegria ao faxineiro (antes) analfabeto do
fogo. Seus filhos não vão à escola, seus pais não sabem ler nem escrever. Congresso brasileiro. Mas, antes de mais nada, ele tem condições de
Eles não têm eletricidade e muito menos "conexão internética". Vivem humanizar aqueles que atingiram riqueza e glória na sociedade infor-
do lixo acumulado nas grandes lixeiras dos blocos das superquadras e macional, manipulando seus computadores e telefones celulares. Em
comerciais mais próximas. Fazem a coleta de latas, garrafas e outros Brasília, a Biblioteca do Congresso é conhecida como uma das melhores
"restos" do lixo, não aproveitados pela classe social mais abastada da e mais atualizadas do Brasil. Isso nos dá esperanças de que deputados
sociedade de consumo e os revendem, estando vinculados ao merca- e senadores, vindos dos todos os cantos do Brasil, sigam o exemplo do
do monetário dessa forma "original". É óbvio que não têm livros e faxineiro e usem a biblioteca, mergulhando nos livros que ela abarca.
muito menos os lêem, mas gostam de receber os jornais velhos, para Em lugar dos personagens de "Metropolis" que estabelecem o con-
forrar o chão de terra em que dormem. tato entre em cima e embaixo (o filho do dono da fábrica, o operário
Caricaturei os dois extremos da estratificação social na " era infor- padrão que acata as ordens do patrão e as retransmite aos operários,
macional" , deixando claro que nos pólos extremos da hierarquia social como traduz o clamor destes ao dono insensível, a Maria autêntica, o
de hoje não há lugar para o livro. Contudo, o livro existe e persistirá. cientista judeu), temos na "era da sociedade em redes" batalhões de
Onde o encontrar? in-between. Trata-se dos mediadores entre os extremos, que somente
Na metáfora de Metropolis, ele esta vá na casa do cientista judeu, que têm de "loucos" o interesse pelo livro, dedicação em sua preservação
morava entre as duas classes. Na realidade da era informacional, ele se e transmissão, colaborando na formação de leitores. Acrescentem-se
encontra na casa dos pesquisadores, professores e alunos, em centros aqueles que escrevem livros, os editam ou encadernam, organizam
de pesquisa, bibliotecas, livrarias, editoras, nas estantes de muitos feiras nacionais e internacionais para divulgá-los. Mas são, antes de
leitores, ainda encantados pelo livro fisicamente materializado. Mas ele mais nada, os leitores do livro, que nele vêem seu amigo mais íntimo,
também se encontra - em meu campo visual, além dos sem teto/sem inspirador de idéias, diálogos, fonte de saber e prazer, alegria e lazer,
terra - nas bibliotecas da UnB, do Congresso, do Itamaraty e outros texto e pretexto para pesquisas científicas e descobertas tecnológicas.

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A "era informacional" é resultado do livro e do saber readquirido Vol. II: The Power of Identity (1997);
através dele por leitores inventivos, criadores. Associado à tecnologia Vol. III: End of Millenium (1998).
da informática, o livro pode ser "virtualizado" como nos ensinou Tradução para o português:
Flusser, transmitido por fibras óticas ao outro lado do globo e lá Título geral dos três volumes: A era informacional: Economia,
novamente materializado em papel impresso, costurado e encadernado. Sociedade e Cultura. São Paulo, Editora Paz e Terra.
O livro pode ainda ser fixado em disco CD-Rom, armazenando numa Vol. I: A sociedade em redes (1998);
pequena chapa de silicone brilhante, informações condensadas que Vol. II: O poder da identidade (1999);
antes enchiam prateleiras e bibliotecas. Vol. III: Fim de milênio (1999)
A "era informacional" não é inimiga do livro, ela dispõe da tecno- 5
Do Banco Mundial, das Nações Unidas (Desenvolvimento
logia para universalizá-lo, democratizá-lo. A tecnologia informacional
Humano), UNIDO, UNICEF, UNESCO, entre outros relatórios de
é, mais que qualquer outra (penso naquelas que Walter Benjamin tinha
economistas, sociólogos, comunicólogos, das últimas três décadas
em mente), a que garante a "reprodutibilidade técnica" da letra escrita,
do século XX, etc.
do som falado, da imagem ilustrada, separadamente .e em síntese. Há
aqueles que preferirão ler uma peça de Shakespeare, impressa em Vide entrevista dada por Castells no programa de televisão
papel machê, outros darão preferência a um vídeo obtido em Londres, "Roda Viva", em que é interpelado ao vivo por vários
no Globe Theater; terceiros, por sua vez, querem ouvir a voz de intelectuais, sociólogos, economistas e urbanistas brasileiros,
Lawrence Olivier, acompanhando as palavras sonoras com a leitura do em 1999, por ocasião do lançamento de sua trilogia pela Editora
texto. Mas também pode haver aqueles que querem sintetizar tudo isso Paz e Terra em São Paulo.
num CD-Rom tecnicamente perfeito em que todos os seus sentidos Vide também : "Castells - The Videos" (I Castells at Oxford/II
estarão ativados: os olhos, os ouvidos e sua mente. Castells the Interview/III Castells, org. por B. Dimitri), que podem
De minha parte, prefiro levar o King Lear para a cama, no exemplar ser solicitados pelo endereço: 3 Broadway Close, Woodford
de couro perfumado que herdei de minha avó materna. Green, Essex, IGH OHD - U.K.
A revista inglesa CITY: Information, Identity and the City, n° 7,
NOTAS de maio de 1997/Oxford-U.K. publica uma Introdução à trilogia
acima citada, feita pelo próprio Manuel Castells (pp. 6-17), bem
Vide Freitag, B. "Habermas como intelectual", in Habermas: 70 como uma entrevista feita por Bob Catterall, em Londres, com
anos. Número especial da Revista TB, Rio, 1999. Manuel Castells, em 1997.
7
Cf. Giddens, A. The Third Way. The Renewal of Social Democracy. Página introdutória de "Hacia ei Estado Red?"
Polity Press: Cambridge 1998. 8
Flusser, Vilhem. "Alte und neue Codes", in Prigge, Walter (org.).
3
Castells, M. "Hacia ei Estado de Red? Globalización econômica e Stãdteische Intelektuelle. Urbane Milieus im 20. Jahrhundert.
instituciones políticas en Ia era de Ia información. [Ponencia presentada Frankfurt/M.: Fischer Verlag, 1992 (o texto foi escrito originalmente
en ei Seminário sobre " Sociedade y Reforma dei Estado" ]. São Paulo, em 1988). Vide, também, do mesmo autor, Ficções filosóficas. São
março 1998. Paulo: EdUSP, 1998.
4
CASTELLS, Manuel (1996-1998). The Information Age: Um reflexão sobre o artigo de Flusser encontra-se em Freitag,
Economy, Society and Culture. Oxford: Blackwell Publisher/U.K. Barbara: "A cidade brasileira como espaço cultural", in Tempo
Social. Rev. Sociol. USP, São Paulo 12 (1): 29-48.
Vol. I: The Rise of Network society (1996);

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JL.
3
Cf. Piquer, Isabel. "Livro digital se firma na Internet", in Correio
Brasiliense, 12/8/2000, comentando o recente acordo firmado
entre a Microsoft e a Barnes & Nobel.

O LUGAR DO LIVRO ENTRE A NAÇÃO E O MUNDO

GLORIA LOPES MORALES

Quem são os novos alfabetizados da sociedade de redes?


Nas eleições presidenciais realizadas no México, em 2 de julho de
2000, Francisco Labastida, o candidato do PRI, arrolou, como uma
de suas principais promessas de campanha, a universalização do
ensino da língua inglesa e da computação para os estudantes do
ensino fundamental e médio. Oferecida a panacéia, ele deve ter
ficado muito decepcionado com a resposta tíbia e até mesmo irônica
do eleitorado, que não se deixou deslumbrar pelas duas mais impor-
tantes chaves de acesso ao progresso e à modernidade que se deseja
obter em nossos dias.
O certo é que o candidato Labastida foi o grande derrotado na
disputa e, com ele, a prolongada hegemonia do Partido Revolucioná-
rio Institucional no poder. Surgem interpretações em vários sentidos
perante a atitude dos eleitores mexicanos que, de maneira mais ou
menos consciente, deixaram manifesta uma sábia hieraquização dos
problemas que o país enfrenta, assim como das necessidades e prio-
ridades para livrá-lo de seus graves entulhos. O atraso imperante não
se mede apenas em termos quantitativos, embora estes sejam deter-
minantes. Em números redondos, existe algo em torno de 10% de
população analfabeta, embora o analfabetismo funcional alcance
proporções muito mais alarmantes. Estima-se em cerca de 60% o
número de mexicanos vivendo em níveis de pobreza e uns 30%
abaixo da linha da pobreza absoluta.
As estatísticas refletem baixos níveis nos serviços de saúde, água
potável e eletricidade, ausência de qualidade de vida no mundo rural

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e nas imensas áreas suburbanas das grandes cidades, com favelização, do livro sintam-se estranhos com relação a uma linguagem que os
moradia insuficiente e improvisada. Outro indicador pouco recon- impede de pensar, que inibe a emotividade e que enrijece a memória.
fortante é o desemprego no campo e na cidade, cujos efeitos mais Em todo caso, os vários gêneros de expressão escrita parecem mais
visíveis são a imigração e o aumento sensível da delinqüência. consubstanciais aos seus próprios padrões do que a linguagem dos
Nessas circunstâncias, parece quase irônico pensar num plano para computadores.
promover a entrada de milhões de analfabetos na modernidade, No planejamento das políticas e na elaboração de programas de
mediante a informática, que, como num passe de mágica, passariam governo, não se pode ignorar esse contexto cultural, tampouco as
a integrar as legiões de novos alfabetizados, profetas do mundo feliz. circunstâncias históricas herdadas. Nesse sentido, desde o início,
Parafraseando o provérbio: primeiro a comida, depois ser um espe- torna-se necessário eliminar o falso dilema entre o computador e o livro.
cialista em computação. Não se trata de escolher entre um e outro, porque ambos são necessários
É preciso pensar, por outro lado, que o baixo êxito do refrão e complementares. Talvez a exposição a esta disjuntiva seja a causa dos
político labastidista se deveu a que os eleitores, que, na maioria das excessos que, atualmente, provocam efeitos indesejáveis, devido à
vezes, ignoram números e estatísticas, manifestaram uma sabedoria informatização seletiva e elitista nos países com grandes desníveis de
primordial que os fez discernir entre o substantivo e o adjetivo, na desenvolvimento. De fato, o que se está conseguindo é a fragmentação
finalidade essencial e o meio para alcançá-la. É aqui onde entram as e a produção de uma ruptura cultural entre os diferentes segmentos da
considerações de índole qualitativa que, tanto a gente do povo, sociedade. Por outro lado, uma população informatizada não é, neces-
quanto as elites ilustradas levaram em conta para não se deixar sariamente, uma população culta. Para sê-lo, tem primeiro que ser
deslumbrar pelo inglês, a língua do sucesso, e pelos computadores. alfabetizada e aficionada à leitura.
Notaram, provavelmente, que, por trás desse atraente pacote didático, Voltando ao processo político mexicano, uma campanha eleitoral
se escondia todo um embate neocivilizatório que, se não lhes oferecia inteligente deveria ter embasado suas promessas no fomento da produ-
gato por lebre, estava muito perto de fazê-lo, posto que pretendia ção do livro e incentivo à leitura, complementado — e aqui não cabe
fazer passar o acessório como se, na verdade, fosse o essencial. dúvida — com uma boa dose de capacitação em informática. Desse
Notaram que se lhes oferecia um veículo supersônico para a imersão modo, sim, será possível que o mexicano se ponha em sintonia, através
numa globalidade amorfa, quando ainda não puderam territorializar- do ciberespaço, com o resto do mundo e passe a trocar conhecimentos
se, assumir e conhecer seu espaço vital. válidos com ele. Para conseguir isto e, sobretudo, para aprofundar o
No México, como nos demais países da América Latina, não é processo político, é preciso que o indivíduo seja capaz de penetrar o
possível lançar um convite à cidadania quando, por uma questão sentido de um texto, que possa exercitar-se na reflexão a fim de captar
social, isto é inviável ou, pelo menos, secundário, tendo em vista os matizes da realidade em que está imerso e assim poder analisá-la
outras urgências. Em adendo, há questões de contextura social que criticamente. Isto só se consegue mercê da paciência gregária das
parecerão contraditórias como as noções de tempo, espaço e utilidade palavras que se vão alinhando, umas após as outras, graças à fidedigni-
que a cibernética promove. É que, tradicionalmente, as pessoas nestes dade à mensagem que permanece sobre o papel, que se deixa compor e
países pertencem, em parte, por um de seus segmentos, à comunidade recompor gramatical e filosoficamente. (Alatriste)
que Roberto Cardoso de Oliveira chama de Comunidade da Argu- Ler é uma disciplina ligada ao tempo e os leitores se apropriam, com
mentação. E, como muitos teóricos afirmam, o que possibilita o ela, do instante e da eternidade. Para acercar-se da tela cibernética com
suporte informático é a capacidade de transladar e processar infor- capacidade seletiva, primeiro é preciso que se tenha sido um leitor.
mação a granel e em grande velocidade, sem permitir o raciocínio; é Desse modo, em face da sedução da imagem imediata, tornamo-nos
lógico que, em troca, os praticantes da linguagem oral e os adeptos capazes de transcendência.

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A formulação de políticas de comunicação, de políticas educativas são, em realidade, os verdadeiramente capazes de nos colocar na van-
açodadas e impacientes, nasce de expectativas errôneas no poder todo guarda do mundo. Pode ser que pareça muito complicado atrelar a
poderoso da informação. Não há que enganar-se, nada substitui o livro política fiscal à política educacional, porém sabemos ser possível con-
no sentido de satisfazer a necessidade de reflexão que subjaz a toda segui-lo e muitos países altamente desenvolvidos já o fizeram. Uma
função educativa, assim como nada substitui a Internet na necessidade política cultural correta pode fazê-lo e mais ainda se incentivar a leitura,
de tratamento rápido da informação. Em todo caso, o aprendizado da e, com ela, o exercício do pensamento, promovendo cidadãos conscien-
escrita e da leitura é a única ponte indispensável para empreender ambos tes, com grandeza espiritual e prontos para participar da coisa pública;
os caminhos. cidadãos capazes de fazer avançar os povos em direção a metas menos
Lá pelos anos cinqüenta, com o nascente desenvolvimentismo, confusas do que aquelas que a cibervida nos faz entender como condição
nossos países conceberam a leitura como o melhor instrumento para necessária e suficiente para adentrar o mundo feliz.
a decolagem. Imagine o que foi o ápice da produção editorial de Quantas coisas teriam os políticos de considerar quando contra-
então! A intuição foi certeira, só que os caprichos do mercado, as tam, para suas campanhas, os magos do marketing eleitoral!
crises econômicas generalizadas e recorrentes, do mesmo modo que Nada mais distante das mentes lúcidas em nossos países de in-
a falta de políticas adequadas para atribuir ao livro o papel de fluência luso-hispânica do que negar o avanço e a influência dos
protagonista indispensável, fizeram com que o advento da informá- meios eletrônicos e muito menos fechar os olhos a uma realidade
tica nos encontrasse sem ter preenchido os requisitos básicos para dar avassaladora. Bem sabemos o que pensa um Garcia Márquez acerca
a essa ferramenta o uso adequado. Vemos, assim, que o desamparo do apoio inestimável do que significa para ele o computador no seu
aos leitores faz com que eles se entreguem inertes às telas audiovi- processo de criação. Há pouco, um dos mais esclarecidos e consultados
suais com o conseqüente prejuízo para a formação e transmissão dos intelectuais mexicanos, Carlos Monsiváis, alinhavou, numas
valores individuais e coletivos que oferecem coesão ao corpo social. quantas frases, uma série de verdades desmitificadoras ao dizer
Em nosso meio, a reflexão está desvalorizada, não se nota sua que, com a Internet, dá-se o retorno à leitura ou ao afirmar que
utilidade, deixou de ter importância. O valor cultural da leitura está "a televisão tinha a última palavra antes que chegasse a web e
cedendo vez ao valor de consumo que o livro vem ganhando, inclu- que, agora, não há nada tão pouco concorrido do que uma confe-
sive em países onde há um número consistente de leitores. rência ao vivo e nada mais povoado do que um chat". Suposta-
Uma boa política para um povo educado, culto e informado deve mente, ele restabelece os equilíbrios, sinalizando a sobrevivência
passar pelo reconhecimento de que livro e leitura são pré-requisitos necessária da imprensa escrita e a permanência indispensável do
para tirar o melhor proveito da informática, que deveria ser conside- local frente ao global.
rada um meio para satisfazer necessidades complementares de infor- Parece, então, delinear-se um consenso no que se refere à profecia
mação e apoio técnico, porém nunca para substituir os verdadeiros de que o livro não morrerá e que, melhor ainda, dar-se-á a convivên-
elementos que forjam a cultura individual e coletiva. cia de vários suportes. Porém isto não acontecerá de modo espontâ-
Combater a ignorância, a corrupção, a falta de eqüidade e cultivar neo. Falta verificar como se comportará a política, como se formula-
a democracia só é possível usando a única arma a nosso alcance: a rão as políticas que, no momento, parecem entregues a correntes
cultura e seu enorme apetrecho que é a leitura. Há que aprender, além fatais e pragmáticas do devir cibernético. O tema deve ser analisado
do mais, a pensar, de maneira diferente, a cultura, caso queiramos em toda sua complexidade, complexidade esta que faz com que o
reformar as bases de nosso desenvolvimento e compreender que o social seja ecológico e o ecológico, ético; que faz com que a trans-
recurso cultural é, para isto, o melhor motor; há de reconhecer-se, missão do pensamento e do conhecimento não possa ser abordada
igualmente, que nossos artistas, nossos criadores, nossos pensadores apenas do ponto de vista do suporte ou do meio.

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Com este enfoque será mais fácil distinguir a função que deve ter A rede ibero-americana, utilizando as possibilidades do ciberes-
a leitura. Há que se pôr na perspectiva multifacetada da cultura, das paço, deveria poder conservar suas ferramentas próprias para poder
culturas, para acabar por concluir que talvez não seja o livro que se comunicar-se, entre si e com o resto do mundo. Nela, o livro, seja de
acha em situação crítica e talvez o que se encontre em crise seja a papel ou suporte eletrônico, desempenha papel insubstituível.
visão que temos da própria cultura, com parâmetros pouco adaptados
ao mundo em transformação. Há, também, que lançar o olhar sobre (Tradução do original em espanhol por Carlos Sepúlvedá)
o papel fundamental da educação para distinguir, eleger e hierarqui-
zar os meios e suportes transmissores de saberes.
Nesse sentido, as culturas formam uma polifonia, na qual, talvez,
a leitura não tenha o mesmo valor entre elas. O que acontece é que
todas as vozes precisam ser audíveis e que não se leve a esquecer que
o Estado existe e que há governos e estruturas de poder que não
podem desobrigar-se de formular políticas. Deixar o fomento do livro
e da leitura ao livre jogo da oferta e da procura, deixar que se instale
a predominância da informática ou de outros meios ou suportes,
apenas por razões de mercado, seria abdicar da capacidade de decisão
e condução de uma sociedade. Cabe, pois, a pergunta acerca de se
são, de algum modo, possíveis as políticas mais atentas às condições
culturais em escala local e regional. Podem-se concentrar os esforços
de reflexão sobre a crise da cultura ou das culturas nacionais e locais,
para que, longe de transcorrer de maneira cega pelas vias da globa-
lização, haja algum modo de incursionar por aquelas vias da univer-
salização a partir do próprio?
Assumindo que o livro não é um doente terminal, há de se concor-
dar, sem dúvida, que é preciso fazer intervir a vontade pública ou
privada para que sua sobrevivência não seja, quando muito, o prolon-
gamento da vida de um doente comatoso. A globalização não deve
paralisar a necessidade de pensar localmente, regionalmente, no
interior das famílias culturais amalgamadas ao longo da história.
Pode-se identificar a família latino-americana, ibero-americana,
pelo uso das línguas comuns e pela possibilidade próxima e concreta
de poder comunicar-se oralmente e por escrito através do castelhano
e do português. Esta circunstância abre possibilidades para que a
comunidade das nações, que conforma este espaço cultural, entre na
rede das redes, sem necessidade de perder suas características e,
melhor ainda, participando com elas na globalização que não tem por
que ser indiferenciada.

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O LIVRO TEM FUTURO?
A cultura do livro na era da globalização

MILAGROS DEL CORRAL

Os ciclos temporais se aceleram vertiginosamente (há três anos


não existia a Amazon.com) e eis-nos aqui reunidos, no Rio de
Janeiro, ainda fresco em nossa memória o lançamento do primeiro
e-book destinado ao grande público (Riding the bullet, de Stephen
King); ainda surpreendidos pelas 500.000 cópias digitais comercia-
lizadas em 48 horas, breve tempo que, não obstante, foi suficiente
para que um jovem hacker rompesse a segurança tecnológica, permi-
tindo a proliferação de clones da obra por toda a Internet. Esta
singular experiência deu, sem dúvida, o que pensar ao autor e, como
os senhores todos sabem, só faz algumas semanas o mesmo Stephen
King, que não sei se passará para a história da literatura de terror,
mas que, desde já, criou o terror entre os editores de livros de
literatura, decidiu "baipassar" seu editor - nada menos que Simon
& Schuster - e oferecer, em seu próprio site na rede web, a mais
recente de suas obras, com uma estratégia comercial nova: no dia 24
de julho estava disponível o primeiro capítulo de seu romance The
plant, que podia ser baixado com um único endereçamento no e-mail.
O autor popular solicitava de cada leitor que lhe enviasse um dólar
americano, assegurando-lhe que, se recebesse contribuições de pelo
menos 75% de seus leitores, continuaria escrevendo o romance; caso
contrário, não continuaria. 76% dos que baixaram o primeiro capítulo
(100.000, em apenas dois dias) responderam positivamente e os
capítulos 2 e 3 já estão anunciados para o dia 21 de agosto e 25 de
setembro, respectivamente. Esta iniciativa, aparentemente anedótica,

Rev. TB, Rio de Janeiro, 142: 125/134, jul.-set., 2000 125

i.
na qual o sr. King, com algumas poucas páginas, embolsou lado da demanda de bens e serviços culturais, num contexto mun-
100.000 dólares de jubilosa antecipação, busca propor um novo dial onde predominam as assimetrias, acrescidas pela globalização
paradigma para o direito autoral, sustentado no pagamento voluntário comercial e tecnológica.
de direitos, para uma edição sem editores, baseada na técnica de Nos países industrializados, aumenta sensivelmente o gasto com
folhetins a domicílio, revigorada pela malícia televisiva, com tempe- consumo cultural, e a oferta é também cada vez mais competitiva. O
ro tecnológico. O lançamento de The plant suscitou animado debate consumidor está mais consciente e mais sensível ao fator preço, luta
nos fóruns da Internet, com mais aderentes do que detratores, se bem contra o tempo e busca, por ele mesmo, um serviço personalizado em
que a maioria dos comentadores reconhecesse que o "sistema" só matéria de informação e cultura. A resposta da. indústria editorial, que
funciona para autores de grande popularidade. oscila entre a fascinação e a desconfiança com as novas tecnologias, tem
O que significa tudo isto para a comunidade do livro (autores, sido o incremento permanente da oferta em meio a uma crescente
editores, distribuidores, livreiros, bibliotecários, leitores), que insegurança jurídica no âmbito da proteção do direito autoral, o que
não havia conhecido transformações substanciais ao longo de configura um alto risco para o investimento e conduz a urna concentra-
seus mais de 500 anos de existência? Quais são suas implicações ção empresarial, tanto no âmbito da edição, quanto no da distribuição.
para o futuro do direito autoral, fundamento jurídico do negócio O corolário é a integração vertical em grandes holdings multimídia, com
editorial? Quando nenhum discurso parece possível sem mencio- freqüência financiados por capitais alheios ao setor e acostumados a
nar a globalização, quais podem ser as repercussões desses desen- uma rentabilidade maior para o investimento. No novo cenário, as
volvimentos para 80% da população planetária e para os mais decisões empresariais atendem a razões de mercado. Onde, porém, fica
de 1.200 milhões de pessoas que vivem com menos de um dólar a função cultural e educativa do editor? O que acontecerá com a
por dia? legendária pluralidade e diversidade do setor?
Nos países em desenvolvimento, a situação é bem diferente. As
Anatomia do livro condições necessárias para o decolagem do setor editorial não
acontecem. A demanda privada existe e é enorme, porém carece de
Sem dúvida, o setor editorial encontra-se confrontado com uma poder aquisitivo suficiente para satisfazer suas necessidades de
situação inédita em sua história. Até hoje, o capital cultural, esse educação, cultura e informação. As administrações públicas, por
conjunto, de elementos simbólicos e intelectuais criado pelo ser seu turno, esmagadas pela dívida externa e o crescimento demográ-
humano permanecia fixado em suporte de papel, decodificava-se por fico, socorrem-se de empréstimos internacionais para financiar a
meio da leitura e gerava rendimentos derivados de sua capacidade de compra de manuais escolares importados ou optam pelo texto
circulação. O editor era o último elo da cadeia do direito autoral, num único, editado e impresso pelo Estado, fechando, assim, aos edito-
esquema que soube superar, sem problemas, inclusive com vanta- res locais o acesso ao mercado do livro didático. Muitos países em
gem, o surgimento de sucessivos desenvolvimentos tecnológicos - desenvolvimento contam com modernas leis de direito autoral,
os jornais diários, o cinema, a televisão, as novas tecnologias de geralmente inspiradas por organizações internacionais e por pres-
impressão -, condenando ao ridículo os agourentos que anunciavam sões bilaterais, porém isto não impede que a pirataria e a reprografia
a morte do livro. Assistimos, agora, à desmaterialização do suporte ilegal façam estragos, ante a passividade - e às vezes a cumplici-
e ao questionamento dos direitos autorais por parte dos usuários da dade - dos governos, com prejuízo para as importações legais e
Internet, cujo interesse pela gratuidade dos conteúdos coincide com investimento estrangeiro, sobretudo, em claro detrimento da indús-
os novos atores e operadores de redes, que substituem o editor, no tria nacional. O impacto das novas tecnologias é, quase sempre,
final da cadeia produtiva. Importantes mudanças também ocorrem do irrelevante e de elevado custo, em razão da escassez de infra-es-

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trutura de eletricidade e de telefonia ou pela desconfiança que a Internet o que se produz em nossos dias. Com certeza, nos relembrariam que,
suscita em vários governos. Daí decorre que os internautas africanos nos seus primórdios, os livros impressos tiveram de afrontar a hosti-
representem apenas 0,8% dos usuários da rede. Por outro lado, Tuvalu lidade das bibliotecas universitárias e o menosprezo dos bibliófilos
decidiu vender seu mítico identificador de país (.tv) a uma empresa que os consideravam terrivelmente vulgares. Provavelmente, nos
ponto.com norte-americana. Esta minúscula ilha do Pacífico, com indicariam que os primeiros impressores tiveram de esforçar-se por
10.000 habitantes, cujo PIB era, até agora, dos mais baixos do mundo, imitar os manuscritos, com a finalidade de conquistar o já florescente
passou, com essa operação, a ocupar, nesse instante, o primeiro lugar mercado editorial universitário, baseado, então, no aluguel de manus-
em renda per capita. critos aos estudantes para permitir-lhes fazer copias (à mão, é claro),
O desafio - enorme, preocupante - consiste em assegurar o acesso um comércio que, inclusive, já estava regulamentado em Paris, Bo-
ao livro aos cidadãos de muitos países em desenvolvimento, confron- lonha, Oxford, Cambridge e Praga, bem antes do surgimento da
tados aos graves problemas econômicos e sociais, conflitos armados, imprensa. Poderia suscitar-se um apaixonante debate acerca do im-
analfabetismo e aos crescimentos demográficos difíceis de controlar, pacto da imprensa no conteúdo dos livros como resultado de sua
que afetam a consolidação de seus sistemas educativos. Ironicamen- retirada dos monastérios e das universidades em busca de público
te, quando o projeto E-Ink, do MIT, se propõe a lançar, brevemente, novo e mais amplo; ou ainda sobre a desconfiança que este revolu-
dois bilhões de exemplares de seu e-book, última palavra em tecno- cionário meio de difusão de idéias despertou nos governos... Contu-
logia, e solicita a colaboração da UNESCO para selecionar os 100 do, não é preciso ser um especialista na história do livro para avaliar
melhores títulos, apropriados ao âmbito escolar universal, a iniciativa o que isto causou na geração e difusão de novas idéias literárias,
do milênio, como nos sugere o Senegal, intitula-se prosaicamente científicas, filosóficas, religiosas, políticas, etc.
"giz para todos"!... Havemos de nos resignar pelo fato de estes países Limitar-me-ei a assinalar, aqui e agora, que nihil novum sub
continuarem seu desenvolvimento sem editores, sem conteúdos pró- solem* muito menos neste âmbito. Com efeito, as novas formatações
prios, sem livros? Será o destino deles o de meros consumidores de para a leitura dos e-books (Rocket, Cytale, Microsoft Reader, etc)
conteúdos eletrônicos de importação, supondo que seu desenvolvi- fazem esforços por parecerem, o mais possível, com o livro. O E-Ink,
mento econômico lhes permita chegar a adquiri-los algum dia? a que já me referi, utiliza, inclusive, páginas autênticas - em branco
O tempo de que disponho e a atenção que os Senhores podem, por - bastante parecidas com papel; vem encadernado e, à primeira vista,
ventura, estar me devotando, não me permitiriam sequer esboçar uma parece um livro convencional sem costuras nem ligaduras, dotado
resposta às múltiplas questões culturais, sociológicas ou éticas que apenas de dois discretos botõesinhos na lombada. A diferença está
fatos dessa natureza costumam suscitar e que aparecem, hoje, intrin- no fato de que, em sua memória oculta, há 100 livros de 400 páginas
secamente ligados ao futuro do livro, esta velha e impressionante que, como num passe de mágica, aparece "escrito" nas páginas, a um
tecnologia que, durante cinco séculos, vem acompanhando os seres toque de botão; e no fato de modificar-se, já que, nas mesmas páginas,
humanos como ferramenta insubstituível para se obter informações, vamos poder ler todos eles sucessivamente no tamanho de letra que
aproximando-nos das culturas, do conhecimento e do pensamento de melhor convier a nossa vista, mais ou menos cansada. Poderemos,
nossos semelhantes ou, mais modestamente, entretendo nossos ócios. também, sublinhar, acrescentar notas, recarregá-los com novos títu-
los da Internet, caso tenhamos em mão o conveniente cabozinho
Da imprensa ao e-book: a história se repete conector para ligá-lo ao computador ou ao nosso supertelefone celu-
lar WAP etc. E, claro, virar as páginas no ritmo que desejarmos. A
Os historiadores do livro saberiam, melhor do que eu, estabelecer
analogias entre o impacto que, em seu momento, causou a imprensa e Nada de novo sob o sol. (NT)

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esta altura, parece que não restará ao livro nem aquele prazer controvertida questão do direito autoral na Internet dê em nada,
sensorial do contato com o papel!... caso se confirme a tendência ao "controle vertical" das redes de
parte de alguns poucos atores, geralmente alheios ao mundo dos
O futuro do livro: mais perguntas do que respostas livros ( basta recordar, por exemplo, as recentes incorporações da
Time-Warner pela AOL, da Universal por Vivendi, da Endemol pela
- É, desde já, muito difícil predizer qual há de ser a acolhida que o Telefônica), segundo um modelo em que os conteúdos, previamente
grande público dedicará a estes "novos livros", porém os sintomas adquiridos por grandes grupos de multimídia, passam a ser um mero
são muito significativos, no que se refere aos investimentos em álibi, um simples pretexto para atrair novos assinantes - e mais
produção e distribuição. Todas as livrarias on-line, até agora dedica- publicidade - para seus serviços de telemática que geram o verdadei-
das a comercializar livros tradicionais, estão abrindo, em seus catá- ro negócio. Se isto chega a acontecer, que novos modos de remune-
logos, seções de e-books ou e-conteúdos, geralmente combinados ração ao autor seriam convenientes desenvolver a fim de promover
com a possibilidade de obter um exemplar impresso e personalizado, a criação de cultura e a autoria intelectual?
conforme a demanda. (As Edições UNESCO lançarão também, no Ninguém sabe ainda se estes novos desenvolvimentos chegarão a
próximo outono, os primeiros e-books em sua web, títulos que já não configurar a nova fisionomia do livro no século XXI, ou se, pelo
existirão mais em suporte papel... questão de economizar custos de contrário, acabarão logo no museu das tecnologias, como tantos outros
produção e de armazenamento, além de fazer um teste, a partir da gadgets. É impossível adiantar se as crianças em idade escolar chegarão
resposta de nossos leitores) a substituir suas pesadas mochilas por uma pequena quinquilharia
Cabe, sem dúvida, perguntar se a eventual generalização do e-book eletrônica e muito menos qual possa ser o impacto destas novas tecno-
no século XXI será favorável ou não à diversidade cultural e lingüís- logias no processo da aprendizagem. O que, sim, sabemos é que, nos
tica; se sua produção, em larga escala, irá contribuir para a democra- países industrializados, faz muito tempo, as crianças não aprendem mais
tização da cultura ou ao surgimento de novo elitismo; se, tendo em a tabuada, porque a calculadora eletrônica ganhou a parada, contra os
vista o desnível social entre ricos e pobres, o livro convencional professores da velha escola. E é por isso normal que os editores de livros
ver-se-á confinado em cobrir as necessidades de grupos sociais mais didáticos comecem a inquietar-se seriamente em face do anúncio da
desfavorecidos, ou se, pelo contrário, se converterá num objeto de chegada em massa de tais competidores, combinada, além do mais, com
luxo para colecionadores; se os e-books terão como pressuposto o o sacrifício do preço único do livro, no altar do liberalismo econômico,
fim da censura ou, quiçá, o princípio de nova e mais perversa com o beneplácito dos sofridos chefes de família.
"censura de mercado eletrônico"... mas também o que vai ser da
preservação do patrimônio literário do futuro, despojado de seu O impacto sobre os conteúdos ou como declinar o "global"
suporte material.
Por outro lado, os problemas mais sérios em relação aos conteúdos É sabido que as edições de livros didáticos constituem, em todos
que se oferecem na Internet se referem à fidelidade, à permanência os países, o segmento mais poderoso do setor editorial e como os
e à responsabilidade da mensagem ou do conteúdo. grandes grupos editoriais desenvolveram-se, quase sempre, em torno
Ligada a esta responsabilidade, encontra-se a questão do direito de livros de textos didáticos. Se este segmento se fragiliza, seus
autoral, das dificuldades tecnológicas para garantir sua proteção, em efeitos logo se farão sentir noutras linhas editoriais de maior prestí-
ambiente digital, e da resistência do público em pagar pelos conteú- gio, mas de menor rentabilidade. Esta indesejável, porém possível,
dos (a solução a que se chegue com o caso "Napster", originário do debilidade pode também acentuar-se, caso o paradigma "King" seja
domínio musical, é também relevante a esse respeito). Talvez a tão seguido por outros autores de êxito, cujas obras, de alta rentabi-

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lidade econômica, estão, na realidade, financiando indiretamente mento do leitor no processo cognitivo. Sem que se perceba, o proces-
muitas outras obras de difícil venda - experimentalismos literários, so da aprendizagem está passando do discurso linear, característico
novos gêneros, debate de idéias, etc. - que só interessam a públicos do texto escrito, para a percepção simultânea, geralmente adornados
reduzidos . Eis o primeiro impacto possível sobre os conteúdos. com imagens, que se apresentam numa tela, por meio de múltiplas
Um movimento, no entanto, subterrâneo de "editores inde- janelas. Esta nova forma de apreensão de mensagem é algo mais do
pendentes" ou alternativos, que apostam decididamente na edição que um método; é uma nova atitude e novo modo de concatenar o
tradicional e sua missão cultural, está emergindo e conta com toda pensamento, que afeta, de mais a mais, os mecanismos da memória.
nossa simpatia. Em junho passado, uma reunião convocada pela Com efeito, a técnica da leitura exige aprendizado metódico. Não se
UNESCO, o Banco Interamericano de Desenvolvimento e a OEA trata tanto de aprender a decifrar um código, mas de penetrar o sentido
promoveu estudos, em Gijón, sobre esta particular problemática, no de um texto, de exercitar a memória e a reflexão para captar todos os
contexto da tão oblíqua e inevitável globalização. Trata-se de editores seus matizes. Isto conduz ao desenvolvimento da análise crítica e à
por vocação que cultuam seu capital simbólico, não dependem de exaltação de comparar o que está escrito com a própria vivência
grandes conglomerados e, por isso, conseguem manter a autonomia de (sempre digo que não há nada mais interativo do que ler e, contra os
suas decisões editoriais, o que, unida a uma certa concepção de quali- que opinam que "uma imagem vale mais que mil palavras", sustento
dade, lhes permite atingir altos níveis de compromisso com a cultura. que "uma palavra vale mais que mil imagens"). Tudo isto é possível
Sua independência econômica - ainda que, de modo geral, precária, já graças à paciência gregária das palavras, que se alinham umas atrás das
que este tipo de edição é o oposto da busca compulsiva pelo best-seller outras, e à fidedignidade à mensagem que, embebida no papel, se deixa
- sua vocação e rigor levam-nos a resistir à banalização e à padronização ir e vir, se deixa folhear, decompor-se e recompor-se, gramatical e
do "produto editorial', concebido pelos grandes grupos apenas em função filosoficamente.
da demanda e da rentabilidade, constituindo o último baluarte do escritor Ler é uma disciplina relacionada com o tempo, porque requer
de temas de transcendência, de análises que recusam o facilitário e das prolongado esforço de concentração; porém sabemos que o tempo é,
expressões culturais portadoras de enfoques pouco convencionais. precisamente, o recurso mais escasso em nossa sociedade. A tela,
Sem dúvida, sem uma decisiva política de incentivo, por parte dos pelo contrário, qualquer tela, serve mais para mostrar imagens e, no
poderes públicos, estes editores, prontos a oferecer resistência ao máximo, textos curtos que não exigem esforço de compreensão, mas,
"comercialmente correto", em particular no campo da ficção, da simplesmente, reconhecimento e receptividade. A mensagem na tela
poesia e do ensaio, podem ser considerados "os últimos dos moica- apresenta-se como algo evidente que não requer fundamento racional
nos", como uma espécie rara em vias de extinção. Se se deseja evitar nem análise dos antecedentes, que - por outro lado - não dispõe de
o risco da monocultura e do pensamento único, é necessário avaliar, tempo para se tornar real. Daí a ruptura entre o livro e a tela, entre o
detalhadamente, o potencial estratégico que este movimento editorial espírito linear do discurso escrito e a percepção "matizada", simul-
alternativo oferece, a fim de restaurar o equilíbrio entre a importância tânea e rápida do multimídia por tela interposta.
atribuída ao significado e aquela concedida à comercialização desse A ação simultânea da tela (televisão e computador que, ademais,
objeto de dupla face - simbólica e econômica - que chamamos livro. se anunciam em convergência, na banda larga que nos prometem para
2005), a busca do mínimo esforço e a escassez crônica de tempo
Texto versus "zapping": o impacto sobre o intelecto podem fazer estragos na memória e na capacidade de análise das
gerações mais jovens, sobre o quê é preciso começar a refletir. Não
Mas não quero, nem posso encerrar esta intervenção sem mencionar, se trata, de minha parte, de satanizar as novas tecnologias, cujas
ainda que brevemente, o impacto das novas tecnologias no comporta- vantagens aprecio profundamente e cujos benefícios aproveito o mais

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que posso. Creio, isto sim, que é preciso começar a ensinar/aprender
uma gestão saudável dos recursos informatizados e, desde já, insistir na
importância fundamental da leitura linear.
Nossos não tão remotos bisavôs só podiam deslocar-se por terra a
pé ou a cavalo, isto antes da invenção da bicicleta. A generalização
do automóvel, do ônibus, do trem e do avião é, historicamente,
recente. Sem dúvida, o caminhar continua-se praticando com a fina-
lidade de cobrir pequenas distâncias; montar a cavalo é uma prática O LIVRO E A INVENÇÃO DA MODERNIDADE1
desportiva cada dia mais apreciada; a bicicleta voltou à moda por
razões ecológicas e, para se livrar do excesso de tráfego, os automó- CLAUDIUS BEZERRA GOMES WADDINGTON
veis são mais populares, mas, às vezes, o ônibus é mais prático; as
vantagens do trem são cada dia mais evidentes e o avião acabou Para Franco Portella
consagrado como o transporte adequado para as grandes distâncias.
Em nenhum momento, o setor aeronáutico pretendeu substituir todos
os outros, até o limite de fazer o ser humano esquecer que, em O livro como lugar de resistência do pensamento
dispondo de pernas, é para poder andar.
Do mesmo modo, superado o "efeito novidade", haverá de se Desmedido e estranho o poder que as elites conservadoras da
aprender a utilizar, de forma racional e combinada, os diversos Europa de quinhentos e seiscentos atribuíram ao livro. Justa ou
suportes do conhecimento disponível: livros, jornais, revistas, tele- injustamente? A indagação persiste. O fato é que pessoas, em
visão, Internet, e-books e o que mais se produza, porque cada um número expressivo, foram presas, torturadas e mortas pela sim-
deles desempenha um papel e é necessário que todos estes suportes ples posse de livros considerados proibidos. Qi^e diria escrevê-
coexistam e sobrevivam para alijar de nossas sociedades o risco da los, imprimi-los ou comercializá-los? Sintoma;icamente, na auro-
amnésia e da anestesia e dar lugar a um futuro que respeite a ra da modernidade, o livro, seu principal agente de transformação,
diversidade cultural, onde a liberdade de escolha e o desenvolvimen- era considerado tabu. Todo aquele que se aproximava dele, fosse
to do pensamento crítico, bases do pluralismo democrático, perma- leitor, escritor, editor, livreiro, todos colocavam a vida em risco.
neçam garantidos; porém, sobretudo, para assegurar a cada um dos Estranha modernidade, capaz de incriminar uma pessoa pela sim-
indivíduos que compõe nossas sociedades um futuro com memória, ples posse ou leitura, sem aferir sua concordância ou discordância
entendimento e vontade que são, precisamente, as faculdades da com o que foi lido.
alma. Superestimação do poder revolucionário do livro, menospre-
zando a inércia que entrelaça a trama social, das esferas de
(Tradução do original espanhol por Carlos Sepúlveda) produção ao espaço cultural? Nem tanto. Ao proporcionar em
ritmo, penetração social e qualidade, então inimagináveis, o aces-
so ao livro, a invenção da imprensa sublevou a intelectualidade e
as autoridades religiosas, políticas e educacionais. O que o livro
não transformou, abalou até as entranhas; nada permaneceu como
antes. Contudo, a reação foi tão violenta quanto a ameaça de perda
de poder. Em pouco tempo a reincidência de velhas práticas de

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controle e censura permitiu o retorno de um obscurantismo em nada rimentados. A insustentável asfixia do ambiente acadêmico, a que
inferior ao medievo. Nos habituamos a pensar as trevas do espírito conduziu a excessiva especialização dos campos do saber, não
como uma exclusividade medieva, da mesma forma que pensamos a poderia perdurar por muito tempo. Enquanto soçobram os siste-
iluminação como um privilégio moderno. Esta visão dicotômica impe- mas fechados de pensamento e o relativismo avança, a civilização
de-nos de perceber, tanto a busca de esclarecimento que germina de do livro é chamada a depor. Ela é intimada a declarar as causas
Boécio a Nicolau de Cusa, quanto a quota de sombra que atravessa a que abraçou e as alianças que selou. Desde a aurora da moderni-
modernidade, da Noite de São Bartolomeu a Auschwitz, passando pelo dade, a secularização foi sustentada pela civilização do livro
lento extermínio das populações ameríndias. como condição para a liberdade, ao mesmo tempo em que a
Se as pessoas não são mais incriminadas pela leitura, posse, aliança com as elites intelectuais imprimiu-lhe uma inflexão
escrita, edição ou comércio do livro, ou pelo menos não freqüen- paternalista utópica da qual ela jamais logrou se desvencilhar.
temente, será que a crença em seu poder transformador diminuiu? Agora que a baixa modernidade lança um severo olhar de descon-
Não faria este fenômeno parte da Entzauberung do livro? A fiança sobre os grandes valores da modernidade plena, o livro
modernidade tardia parece ter ultrapassado sua dessacralização, surge destituído de seus poderes insurrecionários. Talvez agora,
hoje ela se confronta com a sua banalização: qualquer um escreve, despido das ilusões em que se viu envolto por tantos anos, ele
qualquer um publica. Impossível conter a indiferença que toma consiga levar a cabo a tarefa de emancipação que é sua por opção,
conta tanto de intelectuais quanto dos derradeiros remanescentes direito e vocação. Emancipação que a renascença desencadeou e
do patrulhamento ideológico organizado. A ascendência político- o iluminismo resgatou e reformulou de forma mais consistente. O
social e cultural do livro se rarefez nas últimas décadas, a ponto projeto emancipador do livro persiste, confirmando sua função de
de podermos dizer que o intelectual, sobretudo o pensador, perdeu resistência à unidimensionalização da existência. Por isso, seria
irreversivelmente sua "aura", tomando emprestado o termo con- proveitoso revisitar o momento em que o livro assumiu o seu
sagrado de Benjamin. Para conferir, é suficiente atentar para compromisso cidadão. Acordo firmado entre o livro e a cidade
como os intelectuais vêm sendo preteridos pelos chamados "for- visando à reinvenção da vida.
madores de opinião". A cena tardo moderna não reconhece mais
as credenciais dos intelectuais para diagnosticar as mazelas da O desmantelamento do universo de certezas
civilização, nem para fazer a prospecção das mutações sociais. A
não ser que eles sustentem discursos que corroborem os interesses A incorporação pelo ocidente de três inovações tecnológicas
das megacorporações financeiras, do capital volátil e sem pátria, esteve na base das revoluções renascentistas: a pólvora, o com-
e não questionem a injustiça social embutida no processo de passo e a imprensa. Enquanto a primeira derrubava as muralhas
globalização. feudais, o segundo desbravava os caminhos marítimos. Ambas,
Mas cumpre indagar se este fenômeno não estaria igualmente somando violência e temeridade, supervalorizaram a ação e, com
contaminado pelo descrédito em que caiu o edifício de verdades, o auxílio da bússola, catapultaram o expansionismo e o colonia-
laboriosamente erigido pela metafísica ocidental, e de que o livro lismo europeus. Liberaram e ampliaram os espaços físicos e
foi o incansável arauto e o intrépido paladino. O espectro da crise imaginários para a nova modalidade de existência que a moderni-
que corrói os modelos clássicos de pensamento projeta-se sobre dade ia forjando. Por mais citadina que fosse, porém, esta nova
o livro. Talvez, a queda de prestígio do livro corresponda à busca forma de viver em sociedade não se mostrou apta a conviver com
de uma abertura do pensamento, enquanto novas modalidades de o não-europeu. Era antes uma ampliação, sem precedentes, de um
exercício crítico e de reformulação do conhecimento são expe- ideal de existência profundamente arraigado aos valores oci-

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dentais, europeus e cristãos, pouco ou nada flexível a uma abertura móveis, não modificaram apenas a produção do livro. Eles revolu-
para a diferença. Quando, graças às aventuras marítimas, a mo- cionaram a forma do ocidente se comunicar.
dernidade européia deparou-se com um horizonte desconcertante Para se ter uma idéia do impacto do invento, estima-se que o
de diferenças, deixou escapar a oportunidade de estabelecer mo- montante dos manuscritos produzidos durante os mil anos de
dalidades de convívio com o outro, preferindo as variadas estra- Idade Média não tenha ultrapassado algumas dezenas de milhares,
tégias de dominação, em defesa da fé, da coroa e da glória para um leque comparativamente limitado de títulos. Enquanto,
mundana. em apenas cinqüenta anos da era gutenberguiana, até 1500, cerca
Das três inovações, foi a imprensa que trouxe o fermento da de dez ou quinze mil títulos diferentes, estimando-se a tiragem
transformação do olhar e, sem ela, as profundas mudanças que se média a quinhentos exemplares, em cerca de trinta mil impressões,
desencadearam em todos os campos do conhecimento seriam produziram uns vinte milhões de exemplares!3 Para o século XVI,
impensáveis, e a convivência um desiderato ainda por muito imagina-se que cento e cinqüenta ou duzentas mil impressões,
tempo inexeqüível. Enquanto a pólvora, o compasso e a bússo- estimando-se a tiragem média de mil exemplares, elevaram a
la foram cedo arregimentados para as escaramuças do colonia- produção do livro à surpreendente cifra de duzentos milhões de
lismo, implicando a neutralização, senão a subjugação do outro, exemplares!4
a disseminação do livro desencadeou uma problematização do A intelectualidade européia foi tomada por uma enorme eufo-
cânone que a modernidade ia erigindo, facultando a instauração ria, gerada pelo crescimento sem precedentes do patrimônio cul-
de uma atmosfera propícia ao diálogo e, portanto, à auscultação tural impresso disponível e circulante. Não apenas a noção de
da voz discordante do outro. limite parecia evaporar do campo do saber, como também pareciam
Ultimamente a tendência tem sido de minimizar a importância infinitas as possibilidades de transformação que esse saber recém-
da contribuição de Gutenberg.2 Contudo, se o invento propria- conquistado poderia operar na sociedade moderna. Um dos emble-
mente dito pode eventualmente não ser dele, ou nem todo os mas mais eloqüentes desse aumento descomunal de informações e de
aspectos técnicos envolvidos, o certo é que foi Gutenberg quem conhecimento é a obra ciclópica de Rabelais. Seus gigantes encenam
primeiro realizou o que a junção de todas as inovações parciais a passagem do mundo medievo para o moderno. Com Thubal Holo-
na fabricação do livro poderia representar. Efetivamente, foi a ferne e Jobelin Bridé, satiriza os velhos métodos pedagógicos, sen-
soma destas mudanças na fabricação do livro com as novas pers- tenciando:
pectivas que o humanismo descortinava no campo do saber que
provocou uma mudança radical na relação que a cultura ocidental Mieulx luy vauldroit rien n'aprende que telz livres soulz
mantinha com o livro. Propulsado pela inovação gutenberguiana, telz precepteurs aprendre, car leur sçavoir n'estoit que
besterie et leur sapience n'estoit que moufles.5
o livro foi deixando a órbita da perpetuação do poder e do ente-
souramento do saber, para disseminar a contestação ideológica e A Sorbonne, como instituição, e a teologia, como campo do
o pensamento questionador, atuando iconoclasticamente em todas saber, são os alvos preferidos de sua crítica implacável. Janotus
as esferas sociais em que penetrou. de Bragmardo, da faculdade de teologia de Paris, encarna a de-
Quando Gutenberg começou sua incansável busca, o ocidente já crepitude de um saber extemporâneo, agora visto como uma
dominava a fabricação do papel. A técnica da pintura a óleo, que debilidade do espírito. Quando Ponocrates assume a educação de
vinha sendo desenvolvida pela escola flamenga já há muitos anos, Gargantua, depois de este ter-lhe mostrado como seus antigos
forneceria a tinta adequada à impressão. Johannes Gutenberg, preceptores o instruíam e recitado a longa lista de jogos alienan-
Johann Fust e Peter Schõffer, ao conceberem a prensa de tipos tes, além de uma total mudança de hábitos e de currículo,

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prescreve-lhe "elebore de Anticyre", droga usada no tratamento (Pierre Tartaret, teólogo da Sorbonne e comentarista de Aristóte-
da loucura. 6 Porém, mais eficaz que a terapia química, é o poder les) t Q De Optimitate Triparum, de Beda (Noel Beda, professor
regenerador do saber pertinente à vida; por isso não faltam, na no Colégio de Montaigu, um dos maiores adversários do huma-
utopia thelemita, "lês belles grandes librairies, en Grec, Latin, nismo e da Reforma) 11 a modernidade desconsidera o que a Idade
Hebreu, Françoys, Tuscan et Hespaignol, ..."7 Se a época de Média produzira de relevante. Mal principia a tarefa básica de
Gargantua caracteriza-se ainda por episódios que remetem para separar o joio do trigo e já dá a questão por encerrada. A invenção
um horizonte semifeudal, como a guerra pricocolina, a de Panta- da imprensa torna concebível o "abíme de science", mas desnor-
gruel é entusiasticamente renascentista, facultando a Gargantua teia a intelectualidade renascente com um dilúvio de livros. Tendo
afirmar, na célebre carta que envia a Pantagruel: que nadar por um revolto oceano de impressos, muitos leitores
naufragam, sem conseguir se orientar na avalancha de novos
Maintenant tout disciplines sont restituées, lês langues títulos, surpreendidos pela torrente de opiniões divergentes e
instaures - Grecque, [...] tout lê monde est plein de gens contraditórias, em que são conclamados a tomar partido. Neste
savans, de precepteurs três doctes, de librairies três amples, momento, a modernidade deixa-se seduzir pela excludente novi-
qu'il m'est advis que, ny au temps de Platon, ny de Ciceron,
ny de Papinian, n'estoit telle commodité d'estude qu'on y dade do antigo, sem preocupar-se em consolidar critérios de
veoit raaintenant, ...8 relevância, sem aferir-lhe a pertinência para a vida, sem tentar
reelaborar seu relacionamento com a tradição em outro patamar.
Este quadro extremamente positivo e auspicioso gera expecta- Não há como camuflar o deslumbramento que toma conta da
tivas e anseios que exorbitam a dimensão humana. Na mesma modernidade renascente, que, por outro lado, revela-se desprepa-
carta, Gargantua exprime o desejo humanista de um saber enci- rada para as conseqüências das inovações tecnológicas de que se
clopédico que se inicia pelas letras apropriava, promovia ou patrocinava, vendo-se posteriormente
obrigada a adotar medidas de força para conter os efeitos que não
Tentens et veulx que tu aprenes lês langues parfaictement: previra.
premierement Ia Grecque, comme lê veult Quintilian; A associação do papel, da tinta adequada à impressão e da
secondement, Ia Latine; puis 1'Hebraique pour lês sainctes
letres, et Ia Chaldaícque et Arabicque pareillement"9 prensa de tipos móveis não resultou apenas na aceleração da
produção - o que já representava um avanço significativo -, mas
no intuito de trilhar todos os caminhos do conhecimento - para igualmente colocou o livro ao alcance do poder aquisitivo de um
nunca mais ter fim. Ao afirmar "que je voy un abysme de scien- número vertiginosamente crescente de leitores. O saber passou
ce", Gargantua assume a desmedida sede de conhecimento que a circular na sociedade, escapando ao controle e ao privilégio
anima a aurora da modernidade, mas, ao mesmo tempo, trai a quase total da Igreja e da nobreza. Com a invenção da imprensa,
incapacidade ou impossibilidade de saciar essa voracidade sobre- a literatura, a história, a filosofia e a ciência da antigüidade
humana. clássica, redescobertas graças ao empenho da elite humanista,
Quando Rabelais impregna a descrição da "Librairie de Saint começaram, primeiro, a circular intensamente pelas cortes, para,
Victor", célebre biblioteca teológica parisiense,10 com sua ironia finalmente, penetrar nas mais variadas classes sociais, repercutin-
mordaz, torna patente o desprezo a que a intelectualidade renas- do nas formas mais diversas e fundamentando percepções e inter-
cente sentencia a tradição medieva. E junto com a Ars honeste pretações, senão Opostas, discordantes. Especialmente nas cortes
petandi in societate de M. Ortuinum (Hardouin, de Cologne, humanistas, a prática, então de regra, da leitura em voz alta
adversário de Erasmo), o De modo cacandi, de Tartaretus multiplicava pelo número de assistentes a existência de um

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único exemplar. Os comentários e debates que acompanhavam ou dora, despontava no cenário cultural renascente a figura do indi-
seguiam estas leituras eram freqüentemente retomados para a víduo, que começava a se rebelar contra a ordem do saber insti-
elaboração de cartas e outras obras, facultando a irradiação do tuída. A intimidade com a tradição, que a proliferação do livro
livro para além do recinto do salão. Incontáveis vezes, também, facultava e os deslizamentos que a leitura silenciosa e privada
os debates prosseguiam para além da corte, ganhando a praça proporcionava propiciaram a ruptura da interpretação com os
pública, a academia, as reuniões legislativas, os círculos delibe- cânones exegéticos institucionalizados. O humanismo logrará
rativos dá polis e até a arredia universidade. A leitura em voz alta romper com a percepção de mundo instalada, investindo o indiví-
fez o livro irradiar da corte humanista para toda a sociedade, duo de poderes sobre-humanos, a fim de viabilizar-lhe o sonho de
fazendo da cultura letrada coisa viva, dinâmica, e granjeando-lhe escapar à tutela intelectual e ao monitoramento do pensamento.
projeção social que raras vezes na história do ocidente poderá A erudição revelou-se uma das mais eficazes reservas de contes-
igualar. tação e crítica, fomentando a emancipação ao instruir os argumen-
Com a constituição das primeiras casas editoriais, baseadas no tos da dissidência. Este percurso em que o homem arriscava a
suporte tecnológico gutenberguiano, furou-se o monopólio da pro- própria vida, terrena e eterna, e que ia da criatura que reduplica
dução do livro retido pelos mosteiros e universidades, estas sob a o criado à criatura capaz de criação, e que não escapou às lentes
vigilante jurisdição do papado ou dos reis. Até então a produção do percucientes do Cassirer de Indivíduo e Cosmos,12 descrevia um
livro era meticulosamente calibrada para o atendimento preciso das trajeto emancipador que nosso tempo perdeu a capacidade de avaliar.
demandas do sistema educativo primário, intermediário e superior, A modernidade tardia revela-se sempre pronta a atacar a miragem do
ou então as encomendas da nobreza ou de algum outro mosteiro. A homem, do indivíduo, do sujeito, obliterando que, sem passar por ele,
produção não excedia à demanda e tinha destino certo e monitora- a modernidade não alcançaria a secularização do saber. E moderni-
do. Não havia espaço para o trabalho intelectual oriundo da inicia- dade sem secularização do saber já não é modernidade. A relevância
tiva do indivíduo, apenas para o exercício coletivo, prescrito e histórica desta entidade, na guinada do pensamento moderno, deveria
tutelado, de um saber reiterativo. Muito menos espaço ainda era ser reavaliada pela baixa modernidade. Forjado ou não, o indivíduo
conferido à erudição, que era tida como essencialmente perniciosa, foi um dos principais agentes da transformação do pensamento,
fosse ela religiosa ou não. Era institucionalmente desestimulada, promovida pela modernidade. Graças a esta entidade, que passou a
pois trazia à tona uma multiplicidade perturbadora de pontos de minar e a corroer as instituições e a mentalidade dominantes, alavan-
vista, perspectivas insuspeitadas e desconcertantes de abordagem, cando as revoluções renascentistas com um pé na fogueira e outro no
a ameaçadora relativização do saber. Foi cerceada ao longo do cadafalso, o acesso ao conhecimento deixaria gradativamente de
milênio medievo, mas agora a situação começava a escapar ao estar condicionado a uma adesão ideológica e as vozes discordantes
controle. se fariam cada vez mais ouvir.
Se ainda era por demais cedo falar em secularização do conhe- Não há como discordar: na manhã seguinte à conquista gutenber-
cimento, já se podia constatar sua disponibilização e circulação guiana, o livro permanecia sob o domínio de uma elite de editores-
em proporções e ritmo até então inconcebíveis. Este foi um pri- letrados e a erudição ainda restrita aos muros monacais ou senhoriais.
meiro passo; o segundo seria a mudança na forma de o homem Contudo, Hans Amerbach, Froben, Josse Bade não eram apenas
se relacionar com o conhecimento, com a tradição. Neste sen- empresários do livro, pois trouxeram para o ramo editorial todo um
tido, enquanto a secularização não chegava, mas preparando- projeto de propagação do saber fortemente laicizante e inspirado nos
lhe o caminho, assistimos ao advento do indivíduo. Se, por um melhores ideais humanistas. Mas quem pioneiramente realizou o
lado, a classe intelectual se mantinha, em boa parte, conserva- ideal do impressor humanista de que fala Febvre foi Aldo Manuzio.13

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Em Ferrara, ao aprender o grego com Guarini, Aldo bebeu de fonte bibliotecas públicas e leigas, um número crescente de letrados e
pura a essência do pensamento humanista em sua vertente mais radical. intelectuais de confissões religiosas e tendências filosóficas diferen-,
Por ocasião da chegada dos sábios gregos refugiados em Veneza, teve tes ganhou acesso à imensa tradição do saber ocidental que jazia
a idéia de fundar uma oficina tipográfica que, em pouco tempo, deu entesourada e morta nas penumbras das bibliotecas monacais.
origem à Academia Aldina. Por lá passaram Erasmo, Bembo, Geroni- Começou a se multiplicar, outrossim, uma modalidade de bi-
mo Aleandro, entre outros, escolhendo e discutindo os textos a serem blioteca cuja disseminação só se tornou possível graças à inven-
impressos e os manuscritos que serviriam de base às edições. Mandou ção da imprensa: a biblioteca particular dos humanistas. A multi-
cortar caracteres gregos e latinos de distinta elegância para suas edições plicação deste espaço foi fundamental para garantir a inde-
de Aristóteles, Aristófanes, Tucídides, Teócrito, Sófocles, Heródoto, pendência frente às instituições e a continuidade do trabalho, pois
Xenofonte, Demóstenes e Platão, entre os gregos; Virgílio, Horácio, a prática mais comum de controle e de censura, e a primeira de
Ovídio, Juvenal, entre os latinos, e Dante, Petrarca, Boccaccio e que se lançava mão, residia em vetar o acesso à biblioteca mona-
Erasmo, entre os modernos. Tudo com apuro filológico inteiramente cal, palaciana, real ou universitária. A tradição, uma vez exuma-
desconhecido para a época. O que tornou realmente revolucionária a da, foi alvo de uma seleção: o filão medievo, salvo raras exceções,
atuação de Aldo na imprensa renascentista, porém, foi sua idéia de caiu em ostracismo, enquanto a antigüidade clássica recém-res-
oferecer tudo isto em edições "de bolso", extremamente acessíveis, gatada recobrou velozmente a subversiva seiva e o vigor contest-
e, para manter o preço o mais baixo possível, fez tiragens de mil ador. A erudição humanista fez reviver a polifonia do saber e
exemplares, ao invés dos duzentos e cinqüenta exemplares então desencadeou a crítica da modernidade pela tradição. Eis por que,
padrão. O exemplo de Aldo foi imediatamente adotado pelos outros dentro em breve, a primeira modernidade, carecendo de argumen-
grandes impressores renascentistas, como Josse Bade, Sébastien tos mais consistentes, incapacitada de sustentar o debate e repli-
Gryphe e os Estienne, que asseguraram a continuidade da revolução car as contestações movidas pela tradição, optaria pelo silencia-
laicizadora, mantendo o formato compacto, barato e com o melhor mento desta, recorrendo ao estratagema do descarte da voz disso-
conteúdo que havia para se oferecer ao público. nante. Ela foi acometida não tanto de amnésia como de precon-
Sébastien Gryphe exemplifica o espírito que anima, nessa épo- ceito. Foi aí que ela enveredou pelo discurso monológico, que a
ca, os livreiros e impressores humanistas. Enquanto livreiro, foi fascinaria dentro em breve, e que daria origem a um exercício
o grande distribuidor das edições aldinas; como impressor, tendo recluso e sistemático do pensamento, desprezando o outro e o
começado a imprimir em gótico, logo adquiriu caracteres itálicos espaço público, na impassível frieza de suas articulações. A mo-
e romanos, adotando como linha editorial os clássicos latinos e as dernidade descurou de que não poderia ir muito longe ignorando
traduções latinas dos clássicos gregos, tudo no compacto e aces- o outro e a polis. Não por acaso ela veio a se constituir nesta série
sível formato aldino. Não menosprezou os modernos, tendo edi- de equívocos e tropeços, inaugurada pelas guerras de religião e
tado Budé, Erasmo, Poliziano, Jules-César Scaliger, Dolet e os pela Contra-reforma, protagonizadas pela intolerância mais infle-
trabalhos científicos de Rabelais. Como humanista, apesar de não xível e pela violência mais incivilizada.
legar obra escrita, reunia em sua casa intelectuais e eruditos,
propiciando fecunda troca de idéias e opiniões que imprimiu ao O papel do livro no processo de laicização
humanismo lionês inflexão especialíssima e distinta da pari- do conhecimento e de consolidação da cidade moderna
siense, que permaneceu sob o espectro da Sorbonne.
Não apenas a produção se descentrou, como também a guarda Enquanto a imprensa cuidou de saciar a voracidade leitora do
e o acesso à cultura impressa. Com a constituição das primeiras público emergente com matéria religiosa dentro da melhor ortodo-

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xia, a imprensa foi saudada pela Igreja. Além da Bíblia, em que se a qual o movimento jamais teria alcançado a força de pressão sobre
notabilizaram Gutenberg, Fust e Schõffer, os "Padres da Igreja" cons- as instâncias deliberativas do poder que conquistou. Não se trata de
tituíam o carro-chefe da linha editorial de alguns dos mais célebres minimizar a importância do sedimento popular e eminentemente
impressores e editores humanistas. Amerbach publicou Santo Ambró- campesino que se encontra na base do movimento, mas de sublinhar
sio, Santo Agostinho, São Jerônimo e, para tanto, contou com a nata que, se as várias ondas contestadoras não tivessem confluído para a
da intelectualidade da época: Reuchlin, Beatus Rhenanus, entre outros cidade e lá constituído seus porta-vozes e interlocutores, os conflitos
dos maiores eruditos da Alemanha, cooperaram neste trabalho. não teriam passado de escaramuças cedo ou tarde debeláveis, com
Ficou célebre o empenho de Erasmo em depurar o texto dos mais mais ou menos violência. O fenômeno que se deu, porém, foi de
antigos pensadores cristãos, Orígenes, Cipriano, Hilário e Jerôni- natureza bem diversa. Ao sedimento campesino associaram-se, por
mo, mas foi, nas sucessivas edições que deu do Novo Testamento motivações diversas, os mais variados segmentos sociais, que foram
grego, que desdobrou o melhor de seu labor. A Igreja teve tudo para consolidando sua adesão através da campanha que os reformistas
festejar o maior best-seller do século XV: De Imitatione Christi, deslancharam no coração da cidade, fazendo uso maciço da
que teve uma centena de edições, entre 1471 e 1500. Mas, quando imprensa. Era a primeira vez, na história do ocidente, que uma
Erasmo se torna o maior sucesso de livraria, com setenta e duas reivindicação social atingia estas proporções graças à instiga-
edições, entre 1500 e 1525, dos seus Adágios e sessenta edições ção do impresso, que, em pouquíssimas ocasiões, foi tão social-
para os seus Colóquios em apenas oito anos, entre 1518 e 1526, a mente participativo e assumira tão inteiramente seu compromisso
Igreja fica alarmada. Quando Lutero assume o primeiro lugar na cidadão.
lista dos mais vendidos, procurados e debatidos, ela monta cerco à A agitação sócio-política alastrou-se de tal maneira que acabou
imprensa. por exigir uma tomada de posição de todos os atores sociais - até
Em pouco mais de meio século, a imprensa havia esgotado o rachar irremediavelmente a cúpula do poder. A Reforma impôs uma
estoque de livros antigos a serem publicados e se voltava cada vez transformação na forma de se fundamentar, organizar, impor e
mais para os modernos, religiosos ou leigos, publicando avidamen- manter uma estrutura de poder. E isto, não só pelas altíssimas
te Erasmo, Lutero, Rabelais, cujos textos obtinham repercussão quotas de poder que transferiu da aristocracia e da Igreja para a
imediata e causavam impacto de proporções inusitadas. A Igreja, burguesia, mas pela forma com que colocou o poder em xeque, que
que jamais deixara de controlar a produção escrita européia, quer o interpelou e levantou pioneiramente a questão de sua legitimação.
retendo o monopólio da produção, guarda e acesso ao livro, quer Até aqui, o Estado europeu logrou sufocar revoltas e revoluções
através da censura, foi surpreendida, não apenas pelo conteúdo pelo massacre; com a Reforma, ele descobriu que não adiantava
contestador, mas igualmente, e talvez sobretudo, pela recepção matar, pois os sobreviventes retomavam a luta. E, mesmo que todos
destas obras no espaço público. Até aqui todo questionamento fora fossem dizimados, outro foco surgia e os conflitos renasciam ainda
minimizado ou neutralizado no espaço privado do mosteiro. Agora, mais acirrados. A petição de princípios que a Reforma fez ao
porém, a interpelação circulava e sublevava a sociedade desde suas Estado europeu, inquirindo sobre as formas de sua legitimação,
bases, era bradada em praça pública e impressa em volantes que foi a expressão mais contundente do ela emancipador que varreu
corriam pelas mãos de uma população cada vez maior de alfa- o século XVI. Isso ela o fez em sintonia com uma sociedade
betizados, leitora e participativa. que já não se deixava mais facilmente conduzir como massa
A velocidade e a intensidade de propagação do movimento de manobra. Essa massa, recém-alfabetizada e ávida leitora,
contestador, inteiramente desconhecidas para a época, bem como sedenta de emancipação, a elite, atônita, descobriu que pensa e
sua ampla penetração social, tiveram como cenário a cidade, sem que começa a ter opinião. Opinião política.

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Havia começado a se constituir o que Condorcet denominaria A partir de 1543, nenhum livro poderia ser impresso ou vendido
de "opinião pública". 14 Guardadas as devidas proporções com sem autorização da Igreja. Em 1559 é publicado o primeiro Index
o século XVIII, esta rede de intercâmbio intelectual que a pro- Librorum Prohibitorum, listando boa parte da produção humanis-
liferação do impresso facultava e que viabilizou a cientistas, ta, Erasmo entre eles. Inúmeros impressores foram perseguidos e
pensadores e letrados dos séculos XV e XVI tomar conhecimen- levados à fogueira. A punição não era apenas pública, era "exem-
to do trabalho uns dos outros, independentemente do respaldo plar" . Assumia aspectos ritualísticos em espetáculos de fanatismo
institucional ainda francamente tradicionalista e reacionário, raramente excedidos na história do Ocidente. Robert Estienne
criou um ambiente receptor que interpelava abertamente a auto- teve que abandonar a França e refugiar-se na Suíça, e Plantin, em
ritas instalada na universidade, na Igreja e na mentalidade da época. Antuérpia, para não serem supliciados como hereges. Segundo
Se ainda não nos é lícito falar com Condorcet em um "tribunal da Mézeray, previa-se neste suplício a purificação dos condenados
opinião pública", cujos julgamentos são temidos por reis e juizes, "erguendo-os bem alto, com o auxílio de uma polia e de uma
podemos perceber nitidamente a tribuna das idéias que surge então corrente de ferro, deixando-os, em seguida, cair numa fornalha,
e que, na virada do século XVI, ria com o Erasmo da Moira o que se repetia diversas vezes". 15 Mas o caso mais eloqüente de
Encomium, dos Adágia e Colloquia, satirizando a sociedade e a perseguição aos impressores humanistas é o de Étienne Dolet.
Igreja, mas que, com a deflagração dos confrontos, cobrou-lhe uma A Sorbonne de há muito zelava pela boa doutrina das publica-
posição e o condenou por não tomar partido. ções na França, tendo, reiteradas vezes, se pronunciado contra
O surgimento da opinião pública distinguiu definitivamente a obras de espírito irreverente e conteúdo duvidoso como Panta-
cidade medieval da cidade moderna. A cidade medieval orbitava gruel. Lês horribles et espouentables faietz et prouesses du três
o feudo, o castelo, o mosteiro ou a universidade. Constituía como renome Pantagruel Roy dês Dipsodes, publicado pela primeira
que a periferia, sem direito a voz, a voto ou veto. A única opinião vez em Lyon, em 1532. Não sem razão. Afinal, mestre Alcofribas
que contava era a da própria elite, dos habitantes do espaço recluso Nasier havia cometido a imprudência de, entre inúmeras outras
do centro. As diferenças internas que apareciam questionavam as ousadias, colocar como divisa da Abbaye de Theleme a máxi-
pessoas, não o sistema ou a ordem instituída. Já a cidade moderna, ma: "Fay cê que voudras". Esta imprudente profissão de fé do
que principia descentrando o espaço físico, instaurando uma plura- livre pensamento fica patente, quando afirma dos thelemitas:
lidade de pontos de referência com fundamentos diversos de poder; "toute leur vie estoit employée non par loix, statuz ou reigles,
que cria uma rede de comunicações que irriga e oxigena o espaço mais selon leur vouloir et franc arbiter" 16 e deve ter sido apenas
urbano, esta só se consolida em sua alteridade quando se constitui a gota dágua, no caso de um autor que não poupou sátiras nem
uma opinião pública sobre a rede de comunicação social que o ironias às instituições no poder e cuja irreverência bem poderia
impresso engendra. A possibilidade do princípio democrático mo- ter-lhe valido a fogueira num momento mais tenso. Este momento
derno surge deste espaço de reflexão, de articulação, de questiona- não tardou.
mento, de "turbulências fecundas", estruturado pelo impresso. Ele sobreveio, em 1534, ano de irreparáveis reveses para a
Mas, uma vez restaurada a Inquisição, a tribuna das idéias Igreja. Nele, Henrique VIII, contrariado pelo Papa não lhe haver
degenerou no Tribunal do Santo Ofício e o poder de pressão e de anulado o casamento infecundo com Catarina de Aragão, rompe
reivindicação da opinião pública enfraqueceu-se, tornando-se pra- com Roma. O episódio, a princípio particular, repercute nos assun-
ticamente irrelevante. A não ser nos casos em que uma delação tos de Estado. O rei apressa-se em apossar-se dos incontáveis
fraudulenta levava o suposto infrator à condenação, facultando a latifúndios da Igreja na Inglaterra, confiscando-lhe as imensas
apropriação indébita do seu patrimônio. riquezas, e funda a Igreja Anglicana, de que se declara chefe. Roma,

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além de ter de amargar este prejuízo substancial, teve que apagar o fomentaram a riqueza de seus cidadãos, ao passo que os católicos, a da
incêndio provocado pela publicação, no mesmo ano, da Instituição da Igreja e a do Estado. Conquanto o dissenso campeasse sobre qualquer
Religião Cristã, de Calvino, verdadeira bomba contra a supremacia outro tópico, houve consenso quanto à relevância da riqueza.
do dogma católico. O Calvinismo empenhou-se em conciliar a mais Enquanto os projetos reformadores, fossem católicos, lutera-
severa rigidez moral com o enriquecimento, afirmando, para con- nos ou calvinistas, seguiam seus virulentos caminhos, remen-
tentamento da burguesia, que a riqueza pessoal era sinal de proteção dando interesses financeiros com transformações religiosas, a
divina. Curiosamente, os reformistas não pesaram o enriquecimen- velha cosmovisão medieva, que mutava sob o efeito das idéias
to da Igreja Católica pela mesma medida, tendo feito da contes- humanistas, ia-se dissolvendo, ao mesmo tempo que uma nova
tação do fausto do clero e da escandalosa venda de indulgências cosmovisão se erigia dos seus escombros. As ruínas da antece-
uma de suas bandeiras. Graças a esta flexibilidade no trato com dente serviam de escora da que sucedia, ainda que provisória,
as coisas de César, o calvinismo aliviou o drama da consciência mas de uma provisoriedade persistente, renitente, indesejada.
burguesa, desculpabilizando-a. Os calvinistas prosperaram pela Dessa convivência forçada com a diferença, talvez tenha nasci-
Europa sob diversos nomes: presbiterianos, na Escócia, puritanos, do o fantasma da pureza como uma formação reativa. 17
na Inglaterra, e huguenotes, na França. O mundo católico, com- Não há dúvidas de que, entre os lugares privilegiados deste
balido pelos sucessivos golpes reformistas, teve que reagir. Não convívio entre cosmovisões, os mais eloqüentes são os textos de
havia mais como diferir a sua própria reforma e, neste mesmo ano Rabelais, Cervantes e Shakespeare. Atenhamo-nos, por questões
de 1534, surge em Roma a sua milícia da fé, a Companhia de cronológicas, ao texto rabelaisiano. Quando, neste mesmo ano de
Jesus. 1534, Rabelais publica, em Lyon, La vie três horrifique du grand
Este foi ainda o ano da descoberta do Canadá por Jacques Gargantua, onde a verve goliárdica e o espírito da feira e do
Cartier, relançando o sonho de uma nova terra onde as relações carnaval medievos fundem-se com o evangelismo e os ideais hu-
humanas seriam reinventadas sobre bases supostamente mais manistas, a miscigenação das cosmovisões atinge seu clímax. O
equânimes, porém sob um crescente recrudescimento moral, alto grau de impureza do texto rabelaisiano inviabilizaria qualquer
religioso e cívico. A descoberta ou a conquista de novas terras dogmatismo, qualquer intransigência e, exatamente por isso, foi
era invariavelmente percebida como a oportunidade de realiza- condenado tanto por Calvino quanto pela Sorbonne, porque ambas
ção de um projeto utópico pela constituição de uma comunidade as facções tinham em comum a irresistível compulsão à eugenia
isolada, onde uma facção se ressarciria da indesejada interpe- espiritual. A truculência da Inquisição tornou explícita a opção da
lação da outra, se resguardaria do questionamento de suas Igreja por uma vivência religiosa mediada, codificada e patrulhada,
idéias, se precataria da árdua tarefa da autocrítica. que salvaguardasse a pureza do dogma católico. Entre os reformis-
Por toda parte, a solução encontrada pela modernidade para a tas, o fascínio pela primitiva religião cristã, conquanto pregasse
convulsão econômico-político-social-religiosa que então sacudia uma comunicação direta com a divindade, não abria mão do
a Europa passava pela radicalização dos partidos, religiosos ou código severo e do controle férreo, ao mesmo tempo que
não, pela queda das quotas de tolerância às diferenças, pelo traduzia a mesma perquirição da assepsia da crença. Atraves-
fortalecimento dos dispositivos de combate às divergências de sando os percalços e os desentendimentos da fé, a modernidade
qualquer natureza, pelo enrijecimento moral. A promoção do seria conduzida a optar por formas supostamente puras de experi-
convívio entre as diferenças no espaço público recém-reconquis- mentação do existir e o exercício do pensamento seria moldado por
tado é preterida em favor do enfrentamento. Mas o reconhecimen- práticas excludentes onde reinaria soberana a razão, emancipada
to da importância da riqueza uniu todas as facções. Os reformistas dos sentidos, ou os sentidos, libertos da razão. A primeira moder-

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nidade caiu na armadilha metafísica, que previa, para o trabalho do tistas estimulavam, cedeu gradativamente lugar à leitura silenciosa e
pensamento, o imperativo da opção excludente entre racionalismo ou introspectiva, que, posteriormente, facultaria o desenvolvimento da
empirismo. Silenciou a crise cética do século XVI e a libertinagem defesa da liberdade de pensamento, com Voltaire, e da tolerância, com
erudita do início do século XVII. Kant. A cidade, que deveria ser o lugar por excelência do diálogo
Quando o " Affaire dês placards" estoura na França, no ano de com o outro, da aceitação recíproca das diferenças, tornou-se pro-
1534, a reação da Igreja e da facção católica francesa tinha como visoriamente uma praça entrincheirada, dominada pela intolerância
pano de fundo o descrédito crescente em que caía o diálogo como mútua, mas que, em breve, viu surgir os salões e os cafés, onde a
instrumento de negociação dos conflitos e a aposta no enfrenta- conversação e, em seguida, o pensamento voltariam a privilegiar o
mento como estratégia para solucionar a ameaça que a voz discor- espaço público. As sementes da secularização e da universalização
dante do outro parecia opor ao dispositivo sócio-político vigente. do saber, como instrumentos de emancipação do homem, haviam
A reação, desproporcional aos nossos, olhos, mas compreensível sido lançadas. Custariam a florescer pelas circunstâncias adversas.
no momento em que ocorrera, determinou a fuga de todos quantos Mas o livro permaneceu guardando o lugar da liberdade. Como se
não souberam conter a veia contestadora e mostravam-se simpa- instasse o leitor a se aventurar pela experiência da maioridade e
tizantes do evangelismo. Margueritte de Navarre protegeu quan- portasse a inscrição Sapere aude. Seu percurso, na primeira moder-
tos pôde e o quanto pôde, mas, em breve, nem Augerau, seu editor, nidade, fez dele este espaço de resistência, ensinou-o a lutar contra
escaparia da fogueira. todas as formas de tirania e de obscurantismo, e constituiu-o guar-
O humanista Étienne Dolet, que entrou para o ramo editorial ao dião dos sonhos da humanidade inteira, onde ela vai periodicamente
ingressar na empresa de Sébastien Gryphe, em Lyon, a princípio buscar a energia necessária para reinventar a existência.
não pretendia descer à arena dos conflitos religiosos, mas acabou
preso. Seu crime? Tendo recebido privilégio real para imprimir e NOTAS
comercializar livros, estabeleceu-se entre os grandes livreiros
lioneses, colocando à venda, em sua livraria, obras cristãs, porém Os conceitos de baixa modernidade, tardo moderno e modernidade
suspeitas: o Enchiridion, de Erasmo, alguns textos de Lefèvre, os plena são tomados da fecunda reelaboração crítica da modernidade
Salmos na tradução de Marot e um Novo Testamento em francês, empreendida por Eduardo Portella. Dentre seus trabalhos sobre o
entre outros. Uma busca em sua casa revelou que ele possuía a tema destaco: "As modernidades", in Revista Tempo Brasileiro,
tradução francesa da bíblia, feita por Olivetano, e a Institution [84]: 5/9. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1986; "Premissas e
chrétienne, de Calvino. É quanto basta. Após uma seqüência de promessas da modernidade", in Revista Tempo Brasileiro,
encarceramentos e libertações provisórias, termina na fogueira [130/131]: 5/10. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1997; "Qual
inalando a fumaça dos livros que ele mesmo publicara. modernidade?", in Revista Tempo Brasileiro, [111]: 109/112.
Quando os conflitos religiosos se generalizaram, as persegui- Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1992," A racionalidade aberta",
ções tornaram-se sistemáticas e freqüentes. Foi impossível con- in Revista Tempo Brasileiro, [135]: 217/220. Rio de Janeiro,
ter a debandada dos editores, que buscavam refúgio nos países Tempo Brasileiro, 1998, e "O começo da história", in Revista
mais tolerantes. A Contra-reforma interceptou o florescimento da Tempo Brasileiro, [136]: 117/123. Rio de Janeiro, Tempo
imprensa humanista e as guerras de religião redirecionaram a men- Brasileiro, 1999.
9
talidade e a intelectualidade européias, mas o homem já dera o Ver, a respeito, o capítulo "Lês représentations de 1'écrit", em
primeiro passo em direção à construção da liberdade. A leitura Roger Chartier. Culture écrite et société. L'ordre dês livres
em voz alta, extrovertida e multiplicadora, que as cortes renascen- (XlV-XVlf siècle). Paris: Albin Michel, 1996, pp.17-44.

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Lucien Febvre/Henri-Jean Martin. O Aparecimento do livro.
São Paulo: Editora Universidade Estadual Paulista - Hucitec,
1992, p. 356.
4
Ibidem, p. 374.
Rabelais. Gargantua, in Oeuvres completes. [Edição de P.
Jourda, volume 1]. Paris: Garnier Frères, 1962, p. 62. Cena Aberta
6
Ibidem, p. 88.
7
Ibidem, p. 193.
8
Ibidem, p. 259.
9
Ibidem, p. 260.
10
Rabelais. Pantagruel, in Oeuvres Completes. [Edição de P.
Jourda, vol. 1]. Paris: Garnier Frères, 1962, pp. 248-256.
li Ibidem, pp. 250 e 251.
12
Ernst Cassirer. Individu et cosmos dans Ia philosophie de Ia
renaissance. Paris: Minuit, 1983.
13
Lucien Febvre/Henri-Jean Martin. O Aparecimento do livro.
São Paulo: Editora Universidade Estadual Paulista - Hucitec,
1992, p.221-223.
14
Condorcet, na terceira época de seu Esquisse d'um tableau
historique dês progrès de Vesprit humain, apud Roger Chartier.
Culture écrite et société. L'ordre dês livres (XFV -XVlf siècle).
Paris: Albin Michel, 1996, pp. 22-23.
15
Wilson Martins., A palavra escrita: história do livro, da imprensa
e da biblioteca. São Paulo: Ática, 1996, p. 219.
16
Rabelais. Pantagruel, in Oeuvres Completes. [Edição de P. Jourda,
volume l, capítulo LVII]. Paris: Garnier Frères, 1962.
17
Remeto o leitor para o capítulo de abertura (intitulado " O sonho da
pureza") de O mal-estar da pós-modernidade, de Zygmunt
Bauman. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998, pp. 13-26.

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JUAN RULFO, A PALAVRA MURMURADA*

EDUARDO PORTELLA

O narrador mexicano Juan Rulfo nasceu no dia 16 de maio de


1918, em Apulco, Estado de Jalisco, e morreu a 8 de janeiro de
1986, na Cidade do México, Distrito Federal. Em toda a vida,
publicou apenas dois livros: El llano en llamas (1953) e Pedro
Paramo (1955). Logo se tornou, na América Latina das transições, e
de maneira inesperada para ele, desprendido e desambicioso, no
caso mais convincente de um clássico moderno. Na contracorren-
te da retórica de época, fez do comedimento, da parcimônia, da
economia verbal, a sua opção primordial. Sem contudo renunciar"
à cultura de origem, ao hispânico mesclado, americano e amerín-
dio a uma só vez.
Certo dia, depois de muito cobrado pelos amigos, pelos leitores,
pela imprensa, tentou justificar o seu laconismo, dizendo: "Porque
para escribir se sufre en serio". Apesar desse sofrimento, e do
perfeccionismo inibidor, escreveu textos para cinema, trechos in-
completos de relatos vários, fragmentos independentizados que, pelo
seu vigor narrativo, tornaram-se autônomos. É o que nos mostra Toda
Ia Obra (1992), de Juan Rulfo, que a Colección Archivos recolheu
cuidadosamente, acrescentando parte substancial da fortuna crítica
de Rulfo, sob a coordenação qualificada de Claude Fell. A essa obra
anteriormente conhecida se junta agora, saído há poucos dias, o
volume Aire de Ias Colinas. Cartas a Clara (2000). Poucos imagina-

* Palestra realizada na ABL, Rio de Janeiro, a 5 de setembro de 2000.

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riam que o lírico contido se deixaria explicitar, talvez enrubescido, na
correspondência amorosa. Mas eram cartas dirigidas à sua mulher,
Clara Aparício de Rulfo. Juan Rulfo, desde cedo, afastou-se da predicação. Em vez de expor
idéias ou vender ideologias, ele preferiu ser, tão-somente, e mais que
tudo, o narrador. Não o narrador metafísico, portador de verdades
irrefutáveis. O narrador que, embora envolvido, em quem predomina a
Filho dileto da designada " novela de Ia Revolución Mexicana", todo primeira pessoa, consegue evitar o autocentramento e abrir passagem
pressionado pela exacerbação dos "Cristeros" (1926-1928) de um para o outro. O narrador enraizado, perigosamente equilibrado entre a
lado, e do outro pela repressão do Governo, Juan Rulfo recusa a cartografia minada do campo e a sóbria desconfiança no progresso.
placidez dos retratos de família. Ultrapassa imediatamente a reprodu- É verdade que, entre humilhados e ofendidos, uns contingenciais,
tibilidade preguiçosa do realismo fotográfico. Os rostos crispados, outros fantasmais, toma corpo e se desenvolve o mandato dos justicei-
sobriamente arrancados de planícies e paramos, apenas murmuram. ros. O séquito danado de Pedro Zamora, no relato A planície em chamas
Pode-se surpreender uma espécie de estilística do murmúrio, em meio expõe, à visitação pública, a ferida aberta pela brutalidade humana. Mas
ao alarido ensurdecedor do discurso dominante. Não por acaso a versão sem melodramatizar. O corte vertical sobre o horizonte intersubjetivo
inicial de Pedro Paramo se chamou Los murmullos. "Ali — diz Rulfo, da linguagem promove a prescrição da lamúria e a prescrição do pranto.
em uma passagem de Pedro Paramo —, donde ei aire cambia ei color A austeridade simples de Juan Rulfo não admite concessões. Quando
de Ias cosas, donde se ventila Ia vida como si fuera un puro murmurar, muito, a ironia travada ou o impulso trágico, deixa passar pelas frestas
como se fuera un puro murmullo de Ia vida", ali, diria, moram "os do edifício narrativo, boa parte da dramaticidade inerente às migrações
remorsos", as obsessões, o mutismo programado, os intervalos comu- urbanas e aos campos abandonados. Os personagens, nessa hora, pade-
nicacionais carregados de significações - o sentido perpassado pelos cem de certa paranóia coletiva, plausível sobretudo para quem se
sentidos. Esses sentimentos constrangidos, e não raro constrangedores, encontra em estado de sítio ou pode se deparar, a qualquer instante, com
com que Juan Rulfo promove a união operosa e matricial de palavra, a emboscada fatal. A descrição precisa, a oralidade nunca banal, o apuro
espanto e silêncio. léxico, o sopro vivificador da linguagem, encarregam-se de repor as
O alargamento .imaginário do real, obtido mediante procedimentos coisas nos seus devidos lugares.
rigorosamente ficcionais, soube proteger-se das ingerências ou políti-
cas ou melodramáticas, freqüentemente políticas e melodramáticas,
que a história revolucionária cultivou até o limite da caricatura e, por
razões óbvias, da exaustão. O realismo sem adjetivos que identifica Não seria despropositado considerar a Juan Rulfo o tradicionalista
Rulfo recolheu a violência, a culpa, a fatalidade, do que modestamente moderno. Mais do que relembrar, ele registra a transformação. A vida
denominou "relato de aldeia", mas evitou a grandiloqüência dos dis- da cidade recupera, por entre a trepidação do asfalto, e certamente por
cursos edificantes. Ele soube interpretar a cólera dos despossuídos, a ela filtrado, o imaginário rural. Deixa, contudo, que se perca o que fora
indignação raramente contida e assiduamente explosiva dos oprimidos o eixo ético sedimentado. O rural cada vez mais pré-urbano e urbano,
pela ordem social injusta. Desde a narrativa breve "Nos han dado Ia sacudido pelo idioma da modernidade, recolhe mitologicamente os
tierra", ao começar A planície em chamas, até a descida aos infernos ícones e os fetiches, postos ou impostos à sua disposição pela voracidade
de Comala, em Pedro Paramo, a desigualdade e a opressão jamais são citadina. Rulfo conhece por dentro todos esses mal-entendidos dos
poupadas. Sem recorrer, porém, à estridência eleitoreira ou ceder à tempos modernos. Conhece o lugar e a errância, a raiz e mais ainda o
tentação da ênfase. desenraizamento.

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IV murmúrio, no centro da qual se encontra a eclosão da morte. Os
escritores verticais dispõem de mecanismos apropriados para tratar
Estamos nos aproximando de Comala, a divisa da morte, o território da morte. Os levianos, não. Estes preferem banalizar o sentimento
onírico de Juan Preciado. Aí se desenrola a peripécia vital, ou mortal, trágico da vida, e com isso retirar da morte o que ela tem ao mesmo
de Pedro Páramo. É a narrativa tenaz de ausências que são presenças, tempo de contingente e de extraordinário, de fatal e de perdurável.
de interlocutores desaparecidos, e nem por isso menos participantes. É Voltamos portanto ao cerne da linguagem. O que não se pode dizer
a parábola dos fantasmas, levada à cena por atores fantasmais ou, como por culpa das carências da língua, é possível murmurar com e pela
disse Rulfo, em certa ocasião, por "almas en pena". Nem assim os força da linguagem. A linguagem é uma prática amorosa. Só a
fantasmas de Juan Rulfo deixam de ser fantasmas de carne e osso, vitalidade da linguagem pode salvar o homem da morte, ou pode
tragicamente soterrados nas ruínas de Comala. fazê-lo ressuscitar. É a lição de vida e de literatura do escritor
Nesta direção Juan Preciado, atendendo à vontade da mãe, expressa exemplar Juan Rulfo.
na hora da morte, parte ao encontro do pai. Todos guardaram na
memória o começo emblemático de Pedro Páramo. Em várias univer-
sidades do mundo, colegas meus me repetiram de cor este parágrafo:
" Vine a Comala porque me dijeron que aqui vivia mi padre, un tal Pedro
Páramo". A desolada procura do pai foi uma missão impossível, porém
repleta de signos grávidos de vida. A vida que aflora e floresce no
diálogo dos mortos.
Comala era um povoado morto de morte morrida, como se dizia no
interior do Brasil. Comala era uma pequena cidade morta, e um grande
mausoléu, habitada por cadáveres enfurecidos. Somente o amor prome-
tido de Susana San Juan, uma sorte de Inês de Castro tropical, destoa
desse ambiente fúnebre. No mais, é a profunda solidão, que atravessa
Comala de ponta a ponta.
A revolução extraviada, e as representações estilhaçadas de um
mundo agonizante, pareciam alimentar a solidão. A solidão em Juan
Rulfo distingue-se da solidão em Gabriel Garcia Márquez. No segundo,
a solidão está ligada ou decorre, em maior ou menor escala, de estruturas
de poder em deperecimento. No primeiro, a solidão é antes conseqüên-
cia da errância cravada no coração do projeto humano. De qualquer
modo, persiste alguma coisa de becketiana em toda essa perplexidade.
Com uma diferença básica: aqui todos sabem de antemão que Godot
não virá.
"A gente não morre, fica encantado", disse uma vez outro escritor
radical, também João, João Guimarães Rosa. E essa revelação talvez
possa servir de legenda abrangente do percurso narrativo de Juan Rulfo,
de epígrafe à sua poética do encantamento ou à sua estilística do

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CRÉDITOS DOS AUTORES

BARBARA FREITAG

Professora Titular de Sociologia da Universidade de Brasília. Dou-


tora pela Universidade de Berlim. Publicou, entre outros, Teoria Críti-
ca: Ontem e Hoje (1994) e Itinerários de Antígona. A questão da
moralidade (1997).

EDUARDO PORTELLA

Ensaísta, Doutor em letras e Professor Emérito da Universidade Federal


do Rio de Janeiro. Foi Diretor Geral Adjunto da UNESCO e Presidente da
Conferência Geral desta mesma Instituição, onde atualmente coordena o
Comitê "Caminhos do Pensamento Hoje: Novas Linguagens no Limiar do
Terceiro Milênio". Preside, desde 1996, a Fundação Biblioteca Nacional.
É autor de vários livros e artigos publicados em periódicos especializados
nacionais e internacionais. Tem no prelo O começo da história. Fundou e
dirige, há 39 anos, a Revista Tempo Brasileiro.

EMMANUEL CARNEIRO LEÃO

Professor Titular de Filosofia da Universidade Federal do Rio de


Janeiro. Doutor pela Universidade de Roma. Membro da Academia
Brasileira de Filosofia e do Instituto Brasileiro de Filosofia. Ensaís-
ta, publicou entre outros Aprendendo a Pensar, volumes I e II
(2000, 19a ed.).

163
.Rev. TB, Rio de Janeiro, 142: 163/166, jul.-set., 2000
FRANCISCO DELICH MAURICE AYMARD

Professor de Sociologia Econômica da Universidade de Córdoba e Historiador, Diretor de estudos daÉcole dês Hautes Études en Sciences
de Teoria Social na Universidade Nacional de Buenos Aires. Atualmen- Sociales (Paris), Administrador da Maison dês Sciences de VHomme
te, dirige a Faculdade Latino Americana de Ciências Sociais e a Biblio- (Paris) e Secretário Geral do Conselho Internacional de Filosofia e de
teca Nacional da Argentina. Ciências Humanas da UNESCO. De suas publicações mais recentes res-
salta: Histoire économique de 1'Italie à Vépoque moderne (1991).

GERD BORNHEIM
MICHEL MAFFESOLI
Professor de filosofia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Livre-docente em Filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande Professor de sociologia na Universidade de Sorbonne, dirige o " Cen-
do Sul. Possui vasta obra publicada, da qual ressaltam: Dialética, Teoria tre d'études sur 1'actuel et lê quotidien" (Sorbonne) e o "Centre de
e Práxis; Sartre, Metafísica e existencialismo; Páginas de Filosofia da recherche sur 1'imaginaire" (Maison dês sciences de l'homme). De sua
Arte; O sentido e a máscara; e Metafísica e Finitude. vasta bibliografia destacam-se: La violence totalitaire, À Vombre de
Dionysos - contribution à une sociologie de l 'orgie, Lê temps dês tribus,
Éloge de Ia raison sensible.
GIANNIVATTIMO

Professor Titular de Hermenêutica Filosófica da Universidade de MILAGROS DEL CORRAL


Turim. Desenvolve uma perspectiva de análise da história da civilização
ocidental que denominou "pensiero debole". Seus inúmeros ensaios Diretora da Divisão de Criatividade, Indústria Cultural e Direitos do
abordam questões da sociedade contemporânea; dentre eles ressaltam: Autor da UNESCO, além de seu Departamento Editorial. Tem expe-
// soggetto e Ia maschera (1974), Al di lá dei soggetto (1981), La fine riência internacional em edição e em biblioteconomia.
delia Modernità (1985), La Società Trasparente (1989), Oltre Vinter-
pretazione (1994).
RAFAEL ARGULLOL MURGADAS

GLÓRIA LOPEZ MORALES Filósofo, autor de numerosos ensaios, é igualmente dramaturgo, roman-
cista e poeta. Professor Titular de Estética e de Teoria da Arte na Univer-
Possui considerável experiência internacional em gerenciamento de sidade Pompeu Fabra de Barcelona. Sua vasta bibliografia inclui: La
cultura e negócios culturais, destacando-se nas áreas de pluralismo atracción dei abismo; Aventura, un filosofia nômada; El cansando dei
cultural e diferença. Coordenou a participação da UNESCO na Celebra- Occidente; El cazador de instantes; El fin dei mundo como obra de arte;
ção dos 500 anos de Aniversário do Encontro de Dois Mundos (Euro- El afilador de cuchillos; El héroe y ei único; e La razón dei mal.
pa/América) e representou a UNESCO em seu Escritório Regional em
Havana (Cuba).

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SÉRGIO PAULO ROUANET

Embaixador do Brasil em vários países da Europa, foi Ministro da


Cultura. Fez cursos de pós-graduação em filosofia, economia e ciência
política nos Estados Unidos antes de doutorar-se em Ciência Política
pela Universidade de São Paulo. Membro da Academia Brasileira de
Letras, seus inúiiT.ros ensaios analisam as transformações do projeto
moderno, enfatizando a contribuição iluminista. Dentre eles destacam-
se: As razões do iluminismo', Mal-estar na modernidade', Teoria
Crítica e Psicanálise; A razão cativa - as ilusões da consciência; e A
razão nômade.

ZYGMUNT BAUMAN

Professor Emérito de Sociologia das Universidades de Leeds e Var-


sóvia. Dedica-se ao estudo dos complexos fenômenos da contempora-
neidade. Autor de obra numerosa, da qual mencionamos Modernity and
Ambivalence; Liquid Modernity; Globalization: itsHuman Consequen-
ces; The Individualized Society; Modernity and the Holocaust; Pos-
tmodernity and its discontents; Life in Fragments; e Freedom.

CLAUDIUS BEZERRA GOMES WADDINGTON

Ensaísta e Professor de Literatura Comparada, desenvolve, atual-


mente, projeto de tese de doutorado sobre a influência do ceticismo de
Montaigne na virada do pensamento ocidental, da segunda metade do
século XVI a meados do século XVII. Tem vários ensaios publicados,
dos quais destacam-se: "L'imaginaire celte et lê renversement de lordre
féodal chez Chrétien de Troyes."; "Entre o cânone e o anticânone, o
caminho apócrifo de Adélia Prado."; "As artimanhas do cânone"; "A
questão do sujeito na virada da modernidade".

166 Rev. TB, Rio de Janeiro, 142: 163/166, jul.-set., 2000


Publicamos no n° 141

• FRANCISCO FOOT HARDMAN


Morrer em Manaus: os avatares da
memória em Milton Hatoum

• RENATO CORDEIRO GOMES


De Ópera, cenas urbanas e outras burlas
na narrativa brasileira contemporânea

• BEATRIZ RESENDE
Imagens da Exclusão

• IVO LUCCHESI
Do flâneur ao voyeur: a crise da(s)
modernidade(s)

• ANA CLÁUDIA GIASSONE


São Miguel e o dragão. Cidade e violência
em O matador, de Patrícia Melo

• THEOTONIO DE PAIVA
Da desutilidade poética: um estudo
acerca do Livro sobre o nada

• ELEONORA ZILLER CAMENIETZKI


Três propostas para o próximo milênio:
Cidade de Deus, de Paulo Lins, A lição do
prático, de Maurício Luz e Trono da rainha
jinga, de Alberto Mussa

• JOSÉ ELIAS JR.


Jardim Brasil: conto; os lados do infinito

• CLÉA CORRÊA MELLO


O desafio crítico de Cidade de Deus

• CLÁUDIUS BEZERRA GOMES


WADDINGTON
Sérgio Sant'anna e a baixa modernidade
• EDUARDO PORTELLA
O ensaio como ensaio

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