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Unidade 4 — Ficha de avaliação

NOME: N.º: _ TURMA: DATA: ________

GRUPO I
Apresente as suas respostas de forma bem estruturada.

A
Leia com atenção o seguinte excerto d'O ano da morte de Ricardo Reis, de José
5Saramago.

São sete e meia, a chuva não parou. Ricardo Reis sentou-se na borda da cama
alta, olhou o triste quarto, a janela sem cortinas nem cortinados, lembrou-se de que os
vizinhos da frente talvez o estivessem espiando curiosos, segredando uns com os
outros, Vê-se tudo lá para dentro, e aguçam a bisbilhotice para o futuro desfrute de
10espetáculos mais estimulantes que este de estar um homem sentado na borda duma
cama antiga, sozinho, com o rosto escondido numa nuvem, mas Ricardo Reis
levantou--se e foi fechar as portadas interiores, agora o quarto é uma cela, quatro
paredes cegas, a porta, se a abrisse, daria para outra porta, ou para uma cave escura e
funda, dissemo-lo uma vez, esta se dispensava. Daqui a pouco, no Hotel Bragança, o
15maître Afonso vai fazer soar no irrisório gongo as três pancadinhas de Vatel, descerão
os hóspedes portugueses e os hóspedes espanhóis, nuestros hermanos, los hermanos
suyos, Salvador a todos sorrirá, senhor Fonseca, senhor doutor Pascoal, minha
senhora, Don Camilo y Don Lorenzo, e o novo hóspede do duzentos e um,
seguramente o duque de Alba ou de Medinaceli, arrastando a espada Colada, pondo
20um ducado na mão estendida de Lídia, que, como serva, faz genuflexão e suporta,
sorrindo, o beliscão na polpa do braço. Ramón trará a canja, Hoje está uma
especialidade, e não mente, que da profunda terrina sobe o rescendente perfume da
galinha, dos pratos covos evola-se o vapor capitoso, não deverá surpreender-nos que o
estômago de Ricardo Reis dê sinal, em verdade são horas de jantar. Porém, chove.
25Mesmo com as portadas da janela fechadas ouve-se o estalar da água caindo sobre os
passeios, dos beirais, dos algerozes rotos, quem aí haverá tão atrevido que saia à rua
com um tempo destes, se não for por obrigação extrema, salvar o pai da forca, por
exemplo, é uma sugestão para quem ainda o tiver vivo. A sala de jantar do Hotel
Bragança é o paraíso perdido, e, como paraíso que se perdeu, gostaria Ricardo Reis de
30lá tornar, mas ficar não. Vai à procura dos pacotes dos bolos secos, das frutas
cristalizadas, com eles engana a fome, para beber só tem a água da torneira, a saber a
fénico, assim desmunidos se devem ter sentido Adão e Eva naquela primeira noite
depois de expulsos do éden, por sinal que também caía água que Deus a dava, ficaram
os dois no vão da porta, Eva perguntou a Adão, Queres uma bolacha, e como
35justamente tinha só uma, partiu-a em dois bocados, deu-lhe a parte maior, foi daí que
nos veio o costume. […]
Ricardo Reis está sozinho, enjoou-o a doçura intensa da pera cristalizada, pera,
não maçã, é bem verdade que as tentações já não são nada do que eram dantes. Foi à
casa de banho lavar as mãos pegajosas, a boca, os dentes, não suporta esta dolceza,

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40palavra que não é portuguesa nem espanhola, apenas arremeda o italiano, mas é a
única que, propriamente falando, lhe sabe bem dizer neste momento. A solidão
pesa--lhe como a noite, a noite prende-o como visco, pelo estreito e comprido
corredor, sob a luz esverdeada que desce do teto, é um animal submarino pesado de
movimentos, uma tartaruga indefesa, sem carapaça. Vai sentar-se à secretária, mexe
45nos seus papéis com versos, odes lhes chamou e assim ficaram, porque tudo tem de
levar seu nome, lê aqui e além, e a si mesmo pergunta se é ele, este, o que os
escreveu, porque lendo não se reconhece no que está escrito, foi outro esse
desprendido, calmo e resignado homem, por isso mesmo quase deus, porque os
deuses é assim que são, resignados, calmos, desprendidos, assistindo mortos. De um
50modo confuso pensa que precisa de organizar a sua vida, o tempo, decidir que uso fará
de manhã, tarde e noite, deitar cedo e cedo erguer, procurar um ou dois restaurantes
que sirvam uma comida sã e simples, rever e emendar os poemas para o livro de um
futuro dia, procurar casa para consultório, conhecer gente, viajar pelo país, ir ao Porto,
a Coimbra, visitar o doutor Sampaio, encontrar por acaso Marcenda no Choupal, neste
55momento deixou de pensar em projetos e intenções, teve pena da inválida, depois a
pena transferiu-se para si mesmo, era piedade de si mesmo, Aqui sentado, estas duas
palavras escreveu--as como o princípio de um poema, mas logo se lembrou de que em
um dia passado escrevera, Seguro assento na coluna firme dos versos em que fico,
quem um tal testamento redigiu alguma vez não pode ditar outro contrário.

José Saramago, O ano da morte de Ricardo Reis,


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21.ª edição, Alfragide, Caminho, 2013.

1. Identifique o recurso expressivo evidenciado em «agora o quarto é uma cela» (l. 7),
65 referindo o seu valor.
2. Aponte o motivo por que a referência a Adão e Eva surge na descrição dos
sentimentos de Ricardo Reis na nova «casa».
3. Indique duas características da linguagem de José Saramago que constituem
desafios às normais gramaticais, exemplificando com passagens do texto.
70

B
Leia o seguinte excerto do capítulo XIX de Amor de perdição, de Camilo Castelo Branco.
Consulte o vocabulário apresentado.

A verdade é algumas vezes o escolho1 de um romance.


75 Na vida real, recebemo-la como ela sai dos encontrados casos, ou da lógica
implacável das coisas; mas, na novela, custa-nos a sofrer que o autor, se inventa, não
invente melhor; e, se copia, não minta por amor da arte.
Um romance que estriba na verdade o seu merecimento é frio, é impertinente, é
uma coisa que não sacode os nervos, nem a gente, sequer uma temporada, enquanto
80ele nos lembra, deste jogo de nora, cujos alcatruzes 2 somos, uns a subir, outros a
descer, movidos pela manivela do egoísmo.
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A verdade! Se ela é feia, para que oferecê-la em painéis ao público!?
A verdade do coração humano! Se o coração humano tem filamentos de ferro
que o prendem ao barro donde saiu, ou pesam nele e o submergem no charco da
85culpa primitiva, para que é emergi-lo, retratá-lo e pô-lo à venda!?
Os reparos são de quem tem o juízo no seu lugar; mas, pois que eu perdi o meu a
estudar a verdade, já agora a desforra que tenho é pintá-la como ela é, feia e
repugnante.
A desgraça afervora ou quebranta o amor?
90 Isto é que eu submeto à decisão do leitor inteligente. Factos e não teses é o que
eu trago para aqui. O pintor retrata uns olhos, e não explica as funções óticas do
aparelho visual.
Ao cabo de dezanove meses de cárcere, Simão Botelho almejava um raio de Sol,
uma lufada do ar não coada pelos ferros, o pavimento do céu, que o da abóbada do
95seu cubículo pesava-lhe sobre o peito. Ânsia de viver era a sua; não era já ânsia de
amar.
Seis meses de sobressaltos diante da forca deviam distender-lhe as fibras do
coração; e o coração, para o amor, quer-se forte e tenso, de uma certa rijeza, que se
ganha com o bom sangue, com os anseios das esperanças, e com as alegrias que o
100enchem e reforçam para os reveses.
Caiu a forca pavorosa aos olhos de Simão; mas os pulsos ficaram em ferros,
o pulmão ao ar mortal das cadeias, o espírito entanguido 3 na glacial estupidez dumas
paredes salitrosas, e dum pavimento que ressoa os derradeiros passos do último
padecente, e dum teto que filtra a morte a gotas de água.
105 Camilo Castelo Branco, Amor de perdição, Lisboa, Ulisseia, 1997.

(1) escolho: rochedo, recife; fig. obstáculo, perigo, dificuldade.


(2) alcatruzes: vasos que elevam a água na nora (engenho de tirar água de poços,
cisternas, etc.).
110(3) entanguido: tolhido de frio.

4. Explicite a relação entre o romance, a verdade e os leitores, segundo o narrador.


5. Explique o último parágrafo do excerto, relacionando-o com a grande mudança que
115 se verificara em Simão.

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GRUPO II
Nas respostas aos itens de escolha múltipla, selecione a opção correta.
Escreva, na folha de respostas, o número do item e a letra que identifica a opção
escolhida.
120Leia com atenção o texto de João Pedro Vala sobre o livro A doença, o sofrimento e a
morte entram num bar. Uma espécie de manual de escrita humorística, de Ricardo
Araújo Pereira.

O título do mais recente livro de Ricardo Araújo Pereira


125(RAP) é uma escolha muito feliz, uma vez que nele
encontramos aquele que me parece ser o resumo ideal de
alguns dos traços mais comuns tanto do humorista como do
livro que se acaba de publicar. Começamos com um tom sério
e pesado (A doença, o sofrimento e a morte) que é
130rapidamente deflacionado, transformando-se num início
famoso de um subgénero de anedotas tipicamente
anglo--saxónicas. Neste livro, RAP, sempre refugiado num
estilo autodeprecatório, vai procurar mostrar que o humor não
é uma parvoíce a ser remetida para programas televisivos
135ligeiros, mas uma forma literária respeitável que exige
trabalho e com uma linhagem que não pode ser
menosprezada (basta reparar que o índice remissivo do livro
ocupa cinco páginas povoadas de nomes como Pessoa, Wilde e
Jesus Cristo), enquanto se descreve indiretamente a si mesmo
140como um herdeiro do melhor humor inglês e americano. […]
Mal abrimos a primeira página, encontramos cinco diferentes epígrafes de
escritores muito respeitáveis como Shakespeare, Beckett, Camilo Castelo Branco,
Sartre e Chesterton, o que nos deixa à espera de um livro sofisticado e com altas
pretensões académicas, que são imediatamente descartadas pela epígrafe final de
145George Foreman sobre uma luta contra Muhammad Ali. Logo depois, viramos a página
e encontramos um poema sobre o caraças. E é desta tensão entre alguém que tem
coisas importantes para nos dizer mas que se recusa a ser encarado como algo mais do
que um palhaço que o livro (e, aliás, a carreira de RAP) vive. Em muitos momentos,
RAP alega que não sabe quase nada daquilo de que quer escrever, uma sugestão que
150não podemos levar muito a sério por ser rapidamente desmentida pela evolução do
texto. […]
RAP, com uma mestria e uma capacidade de síntese notáveis, acompanha o leitor
por inúmeras tentativas de resposta à pergunta «O que é o humor?», todas elas
ilustradas com exemplos claros e inteligentes que podem ser extraídos tanto de um
155quadro de Jacques-Louis David como de um episódio de Seinfeld. […]
Já no último capítulo (perspicazmente apelidado de «Últimas palavras»), RAP
invoca o mito de Deméter e um monólogo famoso de Hamlet para ilustrar a ideia de
que é o riso que nos separa dos animais e de Deus, propondo que «o homem é o único
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que ri porque também é o único que tem consciência da sua própria extinção» (página
160108). Sendo verdade que o homem é tanto a única criatura que ri (se excluirmos, claro
está, as hienas da equação) como a única com consciência da sua própria extinção, é
difícil encontrar uma relação de causalidade forte entre essas duas verdades, como
RAP sugere, tal como seria difícil argumentar que somos o único animal que tempera a
comida por sermos os únicos (se excluirmos, claro está, os outros primatas) a ter um
165polegar oponível que nos permite mergulhar um dedo na sopa sem grandes
consequências. Não é que não seja razoável achar que muitas vezes nos rimos para
conseguirmos lidar com o pânico da nossa finitude (tal como não é absurdo achar que
muitas vezes usamos o polegar para medir quão apurada está a canja); o problema é
que descartar todas as outras explicações para o humor que RAP tão argutamente
170apresentou em detrimento desta parece precipitado.
[…]
Quer isto dizer que o livro de RAP está assente num erro? Quer apenas dizer que,
como aliás o próprio alerta várias vezes, não devemos lê-lo à procura de uma resposta
definitiva ao que quer que seja. RAP é, essencialmente, um extraordinário humorista e
175um escritor muito talentoso […].
João Pedro Vala, http://observador.pt/2016/12/04/senhor-doutor-ricardo-araujo-pereira,
publicado em 4 de dezembro de 2016; consultado em 29 de março de 2016
(com supressões).

1801. Segundo o autor desta apreciação crítica, uma característica essencial do trabalho
de Ricardo Araújo Pereira enquanto humorista e da obra que este acaba de publicar é
(A) a preferência pelo tratamento de temas sérios.
(B) a procura de um tipo de humorismo totalmente original, capaz de abordar os
temas mais sérios.
185 (C) a combinação de um tom pesado com um tom ligeiro na abordagem de
determinados temas.
(D) a intenção de se desvincular do humor anglo-saxónico, abordando temas sérios.

2. A referência ao «poema sobre o caraças» (l. 23) justifica-se na medida em que o


autor da apreciação crítica procura
190 (A) demonstrar que Ricardo Araújo Pereira consegue dizer coisas importantes,
acrescentando sempre um tom leve, sem pretensões académicas.
(B) mostrar que as pretensões académicas de Ricardo Araújo Pereira justificam as
numerosas referências a textos literários.
(C) mostrar que a intenção de Ricardo Araújo Pereira é nunca ser levado a sério e
195 provar que o humor nunca poderá dizer coisas importantes sobre temas como a
morte.
(D) sublinhar que Ricardo Araújo Pereira é um humorista singular devido aos
conhecimentos literários que possui.

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3. De acordo com o penúltimo parágrafo do texto, a tese defendida por Ricardo Araújo
200Pereira no livro A doença, o sofrimento e a morte entram num bar
(A) relaciona o humor com a consciência da nossa finitude.
(B) afirma que precisamos de rir, enquanto humanos, porque receamos a nossa
morte.
(C) é apresentada com argumentos bastante convincentes.
205 (D) não pode ser defendida com argumentos válidos.

4. A oração «que não pode ser menosprezada» (ll. 13-14) é uma subordinada
(A) substantiva completiva.
(B) adverbial consecutiva.
(C) adjetiva relativa explicativa.
210 (D) adjetiva relativa restritiva.

5. O constituinte «elas» (l. 30) contribui para a coesão textual, sendo um exemplo de
(A) anáfora.
(B) catáfora.
(C) elipse.
215 (D) correferência não anafórica.

6. O constituinte «da sua própria extinção» (l. 36) desempenha a função sintática de
(A) complemento oblíquo.
(B) complemento do nome.
(C) modificador do grupo verbal.
220 (D) complemento do adjetivo.

7. As palavras «escritores» (l. 19), «epígrafe» (21), «página» (22) e «livro» (25)
(A) são termos que estabelecem entre si uma relação semântica de
hiponímia/hiperonímia.
(B) pertencem ao mesmo campo semântico.
225 (C) fazem parte do mesmo campo lexical.
(D) são termos que estabelecem entre si uma relação semântica de sinonímia.

8. Identifique o valor modal presente em «Não devemos lê-lo» (l. 50).

9. Identifique a função sintática do vocábulo «que», na passagem «uma sugestão que


não podemos levar muito a sério por ser rapidamente desmentida pela evolução do
230texto (ll. 26-28).

10. Identifique o antecedente do pronome «elas» (l. 30).

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25

GRUPO III

Neste momento entrou Lídia com a bandeja do café, pousou-a


235 na mesa baixa, perguntou se desejavam mais alguma coisa,
Marcenda disse, Não, muito obrigada, mas ela olhava para
Ricardo Reis que não levantara a cabeça e que cuidadosamente
puxava a sua chávena […]
José Saramago, O ano da morte de Ricardo Reis.

240Escreva uma exposição, com um mínimo de cento e trinta (130) e um máximo de cento
e setenta (170) palavras, explicitando as características das relações antagónicas que
Ricardo Reis estabelece com cada uma das figuras femininas que conhece no seu
regresso a Lisboa e indicando as principais diferenças entre essas duas figuras.
Planifique o texto antes de o redigir e reveja-o no fim.

245Observações:
1. Para efeitos de contagem, considera-se uma palavra qualquer sequência delimitada por espaços em
branco, mesmo quando esta integre elementos ligados por hífen (ex.: /opôs-se-lhe/). Qualquer número
conta como uma única palavra, independentemente dos algarismos que o constituam (ex.: /2016/).
2. Relativamente ao desvio dos limites de extensão indicados — entre duzentas e trezentas palavras —
250há que atender ao seguinte:
— um desvio dos limites de extensão indicados implica uma desvalorização parcial (até 5 pontos) do
texto produzido;
— um texto com extensão inferior a oitenta palavras é classificado com zero pontos.

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