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7€

N5 ABRIL 2014
N5
Colaboraram nesta edição
Revista política

40 Anos Depois de Abril


ADRIANO CAMPOS | BRUNO PEIXE | CONSTANTINO PIÇARRA
DIANA ANDRINGA | FABRICE SCHURMANS | HELENA ROMÃO
HUGO MONTEIRO | LUÍS TRINDADE | JOÃO CARLOS LOUÇÃ
e de ideias
JOÃO CURVÊLO | JOÃO MINEIRO | JORGE COSTA | JÚLIA GARRAIO
LEONOR FIGUEIREDO | MARIA JOSÉ ARAÚJO | MARIANA AVELÃS
ABRIL 2014 II série

40 Anos Depois
MIGUEL CARDINA | MIGUEL PEREZ | RITA CALVÁRIO

de Abril dossiê
FERNANDO ROSAS, ADRIANO CAMPOS,
JORGE COSTA, MIGUEL PEREZ, CONSTANTINO
PIÇARRA, LUÍS TRINDADE
25 de Abril | Mesa Redonda. Entrevista a PAULA
GODINHO, ANTÓNIO REIS E MANUEL LOFF por MIGUEL
CARDINA e LUIS TRINDADE
Alain Badiou: renovar a ideia comunista no despertar
da história BRUNO PEIXE

V
Porquê os poetas em tempos de aflição? LEONOR
FIGUEIREDO
+ ler, ver e ouvir

AF CAPA VIRUS #5.indd 1 4/15/14 12:04 PM


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7. As referências bibliográficas serão sempre feitas nas notas, seguindo o modelo dos exemplos a seguir
apresentados.
a) Livros:
AGLIETTA, Michel (1976). Régulation et crises du capitalisme: l´expérience des Etats-Unis. Paris: Calmann-Lévy.
b) Coletâneas:
FREIRE, João (org.) (2009). Trabalho e Relações Laborais – Atitudes Sociais dos Portugueses. 9. Lisboa: Imprensa de
Ciências Sociais.
ESTANQUE, Elísio (2004). “A reinvenção do sindicalismo e os novos desafios”, in SANTOS, Boaventura de Sousa (org.),
Trabalhar o mundo – os caminhos do novo internacionalismo operário. Porto: Edições Afrontamento, pp. 299-334.
c) Revistas:
COSTA, Hermes Augusto (2009a). “A flexigurança em Portugal: Desafios e dilemas da sua aplicação”. Revista Crítica de
Ciências Sociais, 86, 123-144.
d) No caso de publicações electrónicas é necessário indicar também a data da última consulta à página
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Projeto Editorial
1
A Vírus é uma revista com edição semestral iniciada em Junho de 2012. Tem tido, e continuará a
ter, uma edição online consultável agora no site: www.revistavirus.net

2
A nova série da Vírus, agora em edição impressa, define-se como um espaço de debate de ideias e
de intervenção direcionado para o entendimento crítico da realidade e para a construção de alter-
nativas democráticas e socialistas à violência predatória do capitalismo e à deriva autoritária dos
seus governos e do seu Estado.
Esse é o seu objetivo.

3
Com esse fim, a Vírus fomentará o concurso e o debate de todas as opiniões que, à esquerda,
queiram contribuir para uma consistente corrente contra-hegemónica e para a superação da (des)
ordem atual.
Esse é o seu campo.

4
A Vírus afirma-se como espaço de reflexão, discussão, formação e divulgação de apoio às ativistas
e aos ativistas nos terrenos da política, dos movimentos sociais, da intervenção cultural, científica
e cívica ou de uma cidadania informada e com opinião.
Simultaneamente, recebe do seu pulsar, das práticas sociais mais diversas, o influxo
inspirador para o seu trabalho.
Esse é o seu compromisso.

5
A Vírus pretende fazer eco e participar ativamente nos grandes debates do
internacionalismo, dar conta dos seus passos e desafios, uma vez que não há soluções
puramente nacionais ou autárquicas para a ação emancipatória.
Esse é o seu âmbito.

1
Editorial PÁG. 03 REVISTA
Fernando Rosas POLÍTICA E
DE IDEIAS
Dossiê: 40 anos depois de Abril PÁG. 04
Ser e não ser: Notas sobre a Revolução Portuguesa de 74/75
no seu 40º Aniversário revista semestral
por FERNANDO ROSAS
40 anos depois de Abril
Os Burgueses: 40 anos de poder e recomposição
por adriano campos e JORGE COSTA Diretor
O “Duplo Poder” na Revolução de Abril FERNANDO ROSAS
por MIGUEL PEREZ Edição Gráfica
Reforma e Contrarreforma agrária nos campos do sul RITA GORGULHO
por CONSTANTINO PIÇARRA
Conselho de redação
Os 3 D da Derrota Revolucionária. ANA BÁRBARA PEDROSA
Despolitização, desideologização, desmobilização ADRIANO CAMPOS
por Luís trindade ANDREA PENICHE
BRUNO GÓIS
CARLOS CARUJO
Entrevista a Paula Godinho, António Reis FABIAN FIGUEIREDO
e Manuel Loff . 25 de Abril - Mesa redonda PÁG. 43 HUGO DIAS
HUGO FERREIRA
por MIGUEL CARDINA E LUÍS TRINDADE IRINA CASTRO
JOSÉ SOEIRO
Pensar o Socialismo Hoje PÁG. 53 LUÍS TRINDADE
MIGUEL CARDINA
Alain Badiou: renovar a ideia comunista no despertar da história NUNO SERRA
por BRUNO PEIXE SOFIA ROQUE

Colaboraram nesta edição
Ler, Ver, Ouvir PÁG. 61 BRUNO PEIXE
Variações sobre a paternidade por FABRICE Schurmans CONSTANTINO PIÇARRA
Do self-hating Jew ao elogio da dissidência por JÚLIA GARRAIO diana andringa
FABRICE Schurmans
Al-Mutamid por HELENA ROMÃO fernando rosas
Azagaia: quando o poder não corta a língua por JOÃO MINEIRO HELENA ROMÃO
Um livro sem fronteiras por JOÃO CURVELO HUGO MONTEIRO
LUÍS TRINDADE
Os Mares do Sul por RITA CALVÁRIO JOÃO CARLOS LOUÇÃ
Tirar a Guerra da História por MARIANA AVELÃS JOÃO CURVELO
As Guerras de Libertação e os Sonhos Coloniais JOÃO MINEIRO
JORGE COSTA
por DIANA ANDRINGA JÚLIA GARRAIO
Edward Saïd e a importância das derrotas por JOÃO CARLOS LOUÇÃ LEONOR FIGUEIREDO
MARIA JOSÉ ARAÚJO
Vária PÁG. 83
MARIANA AVELÃS
MIGUEL PEREZ
As crianças e a educação, ou a construção de novos RITA CALVÁRIO
sujeitos políticos por HUGO MONTEIRO E MARIA JOSÉ ARAÚJO
REGISTO ERC - n.º 125486
Poesia e resistência. Porquê os poetas em tempos de aflição? ISSN: 2182-6781
por lEONOR FIGUEIREDO Proprietário/editor:
Bloco de Esquerda

Acontece PÁG. 95
Rua da Palma, 268 1100-394 Lisboa
Tiragem: 500 ex.
Agenda organizada por fabian figueiredo IMPRESSÃO:
A TRIUNFADORA, artes grafícas
lda., Rua D. Sancho I, 36-A ALMADA

2
Lembrar o 25 de Abril é refletir sobre o gesto fun-
dador da Revolução portuguesa de 1974/75 e sobre a
marca genética que deixou impressa na democracia que
dela sobrou. É a defesa desse património primacial e do
mais que a luta popular lhe acrescentou que ainda hoje
separa as águas entre a esquerda e a direita em Portu-

editorial
Fernando Rosas
gal. Por isso discutimos nesta edição os caminhos que
desbravou e os outros por que se perdeu a Revolução de
1974/75. Os avanços e recuos, as conquistas, as derro-
tas, a recomposição da burguesia, o regresso da despo-
Dedicamos este número
litização, a reforma e contra reforma agrária, o “poder
da Vírus aos 40 anos
popular” e os seus limites, e, por sobre tudo isso, o futu-
do 25 de Abril. Porque
lembrá-lo e discuti-lo não ro que temos pela frente. O Dossiê, onde recebemos as
é um suspiro de saudade contribuições de Jorge Costa, Adriano Campos, Miguel
nem uma nostalgia. Perez, Constantino Piçarra e Luís Trindade, passa este
conjunto de assuntos em revista.
A Entrevista, conduzida por Miguel Cardina e Luís
Trindade, recolheu, num debate de grande interesse,
as opiniões de Paula Godinho, António Reis e Manuel
Loff sobre o balanço e as representações das memórias
da Revolução. Pensar o Socialismo Hoje traz-nos a
perspetiva de Bruno Peixe sobre a obra de outro pensa-
dor sobre as revoluções e o comunismo, o filósofo Alain
Badiou.
Como habitualmente, a rúbrica Ver Ouvir e Ler,
reúne recensões críticas do cinema, ficção e do en-
saio da autoria Helena Romão, João Mineiro, Fabrice
Schurmans, Júlia Garraio, João Curvêlo, Rita Calvário,
Mariana Avelãs, Diana Andringa e João Carlos Louçã.
A Vária registou as colaborações de Hugo Monteiro,
Maria José Araújo e Leonor Figueiredo. Finalmente, a
Agenda fundamental do próximo semestre preparada
por Fabian Figueiredo.
A todas e todos que contribuíram para este quinto
número da VÍRUS o reconhecimento do Conselho de
Redação.

3
40 anos depois de Abril Dossiê

arquivo udp
1 de Maio de 1974: um imparável movimento popular saía à rua.

Ser e não ser


Notas sobre a Revolução Portuguesa
de 74/75 no seu 40º Aniversário
FERNANDO ROSAS

1. O movimento militar vitorioso a 25 de Abril e o controlo operário, impôs a nacionalização


de 1974 deu origem, desde o próprio dia, à da banca e dos principais setores estratégicos
explosão de um movimento revolucionário de da economia, saneou patrões e administrações,
massa, um verdadeiro abalo telúrico que sub- criou Unidades Coletivas de Produção para a
verteu a ordem estabelecida a todos os níveis Reforma Agrária e geriu a vida de milhares de
da sociedade. Ele tentou criar e articular no- moradores pobres de norte a sul do país. Um
vas formas democráticas de organização e ex- movimento que no seu ímpeto impôs na rua,
pressão da vontade popular em milhares de pela sua própria força e iniciativa, como con-
empresas, nos bairros populares das periferias quistas suas, as liberdades públicas, a demo-
das cidades, nos campos do sul, nas escolas, nos cratização política do Estado, a destruição do
hospitais, nos órgãos locais e centrais do Es- núcleo duro do aparelho repressivo do anterior
tado e até nas Forças Armadas (FA). Um mo- regime e a perseguição dos seus responsáveis, o
vimento revolucionário de massas que no seu direito à greve, a liberdade sindical, as bases de
processo, nos seus distintos períodos ofensivos, uma nova justiça social. Um mundo voltado de
ocupou fábricas, as terras do latifúndio, as casas pernas para o ar, os 19 meses em que o futuro
de habitação devolutas, descobriu a autogestão era agora, um curto e raro instante em que as

4
Dossiê
mulheres e os homens comuns, o povo do tra- ramente a consciência da necessidade de derru-

40 anos depois de Abril


balho e da exploração, sonhou poder tomar o bar o regime. Sem democratização não haveria
destino nas suas próprias mãos. A isso se tem solução política para acabar com a guerra.
chamado, e a meu ver bem, a Revolução portu-
guesa de 1974/1975. 3. A rápida extensão e politização da conspira-
ção dos oficiais intermédios, o seu controlo ou
2. Esta Revolução tem uma primeira e essencial neutralização da maioria das principais unida-
particularidade a que normalmente se dá pou- des operacionais dos três ramos das FA no país
ca atenção. É que ela é detonada por um golpe criava, assim, uma situação não imediatamente
militar de características singulares na longa percetível mas decisiva: privava drasticamente
história dos golpes militares dos séculos XIX e o Estado e a hierarquia de força militar, ou seja,
XX em Portugal. Um movimento militar fruto transformava-a, na realidade, e ao seu jura-
do cansaço da guerra colonial que se arrastava mento de obediência ao regime, numa patética
há 13 anos, sem vitória possível e com graves e inútil “brigada do reumático”. Numa cabeça
derrotas à vista, travada contra os ventos da sem corpo e sem consciência de o não ter. Mas
história, injusta e a prazo breve ruinosa. Num retirava esse poder operacional, também, aos
país impedido pela ditadura de se expressar e raros generais dissidentes convencidos que ti-

Um mundo voltado de pernas para o ar, os 19 meses em que o futuro era


agora, um curto e raro instante em que as mulheres e os homens comuns,
o povo do trabalho e da exploração, sonhou poder tomar o destino nas
suas próprias mãos.

decidir livremente sobre este assunto, o des- nham na mão um golpe militar. As primeiras
contentamento contra a guerra, numa dessas horas do 25 de Abril e do seu rescaldo foram
ironias em que a história é fértil, vai ser inter- uma amarga surpresa tanto para os comandan-
pretado pelos jovens oficiais que a conduzem tes hierárquicos como para o general Spínola e
no terreno, os capitães e majores que comanda- os oficiais que o seguiam.
vam as companhias, unidades matriciais da qua-
drícula da ocupação militar colonial. Ou seja, 4. Disto decorre uma segunda característica
não é um complô de generais, almirantes e co- central: a neutralização/anulação do papel tra-
ronéis (até ao fim fiéis ao regime e ao esforço de dicional das FA. A vitória do movimento dos
guerra, salvo raras exceções. É um movimen- oficiais intermédios, na realidade, rompe a ca-
to de oficiais intermédios a que, no processo, deia hierárquica de comando das FA, subtrai-as
aderirão oficiais subalternos e milicianos. Uma ao controlo tradicional do Estado e das chefias
conspiração que, no contexto de descontenta- por ele designadas, dessa forma paralisando a
mento popular crescente e no ambiente político função das FA como órgão central da violência
e ideológico da época, rapidamente evolui dos organizada do Estado. Nesse sentido, em rigor,
objetivos corporativo-profissionais (que, aliás, deixa de haver FA, sucedendo-lhe - o que era
o Governo satisfaz em outubro de 1973) para coisa bem distinta - o MFA, que a breve trecho
um propósito político subversivo: de setembro controlará o essencial do poder militar ope-
a dezembro de 1973, dos plenários de oficiais de racional mais relevante através do COPCON
Évora ao de Óbidos, o movimento assumira cla- (Comando Operacional do Continente).

5
arquivo udp
25 de Abril ao fim da tarde: a multidão tenta assaltar a sede da polícia política.

Neste inicial período spinolista, até à sua derro- 6. Finalmente, assunto que não desenvolverei
ta em 28 de setembro de 1974, quando muito, aqui, o processo que se vem descrevendo tem
há a luta desesperada dos restos da velha hie- um outro efeito: a cessação a curto prazo da
rarquia (aliás, largamente saneada na “noite dos guerra colonial nas três frentes e a formação,
generais” pelos oficiais do revoltosos, logo a 6 quer nos contingentes em África quer na opi-
de maio) para eliminar o MFA. A derrota do nião pública portuguesa, de um forte movimen-
spinolismo consagra assim essa espécie de anu- to recusando novos embarques de tropas para
lação das FA como espinha dorsal da violência as colónias, exigindo a litoralização do dispo-
do Estado. sitivo militar e o regresso das tropas, pressio-
nando pela imediata abertura de negociações
5. Convém acrescentar que essa circunstância com os movimentos de libertação nos termos
tem ainda uma outra consequência relevante: por eles apresentados, ou, nas zonas de guerra,
a paralisação, pulverização e enfraquecimento substituindo o combate pela confraternização
geral do poder e autoridade do Estado. O que com o “inimigo”. O exército colonial e a opinião
emerge do golpe militar é um poder poliédri- pública recusavam-se a continuar a guerra. A
co de competências conflituantes e debilitadas: descolonização irá ser negociada pelo MFA e o
uma Junta de Salvação Nacional sem poder real Governo Provisório, sem opinião pública, sem
nas FA, um Governo provisório sem poderes FA e sem apoio internacional para algo que não
sobre as FA e com as forças policiais e minis- fosse a autodeterminação e a independência
térios paralisados, um Conselho de Estado de para os povos das colónias.
competências largamente retóricas e, fora desta
lógica institucional (ainda que representada no 7. A conjugação dos fatores acima indicados
Conselho de Estado), a Coordenadora do Pro- (o apagamento da função das FA como garante
grama do MFA, única sede de poder efetivo, central da “ordem” e a deliquescência do poder do
mas em forte disputa com a fação spinolista nas Estado) com a forte tensão política e social acu-
FA e nos demais órgãos. O velho poder caíra, mulada no período final do regime marcelista,
já não ameaçava ninguém, e deixava um campo origina a explosão revolucionária. O movimento
indefinido e vulnerável a uma drástica alteração de massas, largamente espontâneo, por virtude
da relação de forças no plano social e político. de um desses “mistérios” que caracterizam as

6
Dossiê
situações revolucionárias mentais, a liquidação dos

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maduras para a ação, teve, órgãos de repressão e cen-

40 anos depois de Abril


na própria manhã do gol- sura política e das milícias
pe - o emblemático desen- fascistas, muito antes de
lace do confronto na Rua tudo isso ter consagração
do Arsenal terá tido nisso legal. A democracia polí-
o seu papel1 -, a dupla in- tica em Portugal não foi
tuição que podia e devia to- uma outorga do poder. Foi
mar a iniciativa. A intuição uma conquista imposta ao
do momento e a intuição poder. O mesmo quanto à
da força própria: “É agora, democratização social, o
porque agora somos mais direito à greve, a liberdade
fortes do que eles”. A com- Operários da Lisnave desfilam em Lisboa sindical, o salário mínimo,
preensão quase intuitiva de na jornada de 12 de Setembro de 1974 as férias pagas, a redução
que a correlação de forças, do horário do trabalho e os
naquele momento indesperdiçável, era favorá- fundamentos de um sistema universal de segu-
vel à iniciativa popular. E de espectador, o mo- rança social. O movimento de massas fez tudo
vimento de massas passa a ator principal. Antes isso enfrentando, com os seus órgãos de vontade
do golpe militar, por si só, não obstante a sua popular eleitos em plenários de fábricas ou em
força e radicalidade, não conseguiria derrubar assembleias de moradores, a oposição sistemá-
o regime. Mas agora agarrava a oportunidade tica da Junta de Salvação Nacional, do Governo
que esse particular movimento militar lhe fa- provisório e do PCP e da Intersindical nessa
cultava, entrando de rompante pelas “portas fase investidos em guardiões da “ordem demo-
que Abril abriu”. O golpe, ao contrário do que crática” contra o “esquerdismo irresponsável”
pretendeu a tentativa de Álvaro Cunhal recu- (ao jeito da I República, chegaram a convocar
perar para a velha narrativa do “levantamento manifestações contra as greves). No entanto,
nacional”2, não era a expressão armada da “in- foi a força desse movimento que se mostrou
surreição popular” (inicialmente quereria mes- decisiva na derrota da primeira tentativa con-
mo evitá-la), não era a explosão revolucionária, trarrevolucionária do spinolismo, em setembro,
todavia, pelas suas características particulares, de alguma forma impondo o MFA como força
contribuiria decisivamente para a desencadear. político-militar hegemónica no processo.

8. Na sua imparável dinâmica inicial, entre 9. A partir de outubro de 1974, a crise econó-
maio e setembro de 1974, o movimento popular mica, o encerramento ou a pilhagem de muitas
revolucionário conquista na rua, nas fábricas, empresas pelos patrões em fuga, o disparar do
nos bairros populares, nas escolas, nas zonas desemprego alteram e radicalizam os padrões
rurais, muito do essencial: os fundamentos da de ação: os trabalhadores ocupam as empresas
democratização política, as liberdades funda- e, a partir de janeiro, as herdades dos agrários

1 - Na manhã do dia 25 de abril de 1974, na Rua do Arsenal, em Lisboa, tanques da Escola Prática de Cavalaria, de Santarém, aderente
do movimento militar, enfrentaram os do Regimento de Cavalaria 7 (RC7), comandados pelo brigadeiro Junqueira dos Reis, fiel ao regime.
Depois de várias tentativas de conversações, o brigadeiro, que comandava a força do RC7, dá ordem de fogo contra o capitão Salgueiro Maia.
O alferes que chefiava a guarnição do tanque recusa-se a obedecer e recebe voz de prisão. O cabo que, em seguida, recebe ordem idêntica,
também desobedece. Parte da força passa-se para os revoltosos e os outros voltam para trás. Tornou-se claro que o regime não tinha força
militar que o defendesse.
2 - Cf. Álvaro Cunhal (1999), A Verdade e a Mentira na Revolução de Abril (a contrarrevolução confessa-se), Lisboa: Avante!, p. 101 e segs.

7
alentejanos e do Baixo Ri- A revolução não tivera nem

arquivo udp
batejo experimentam a a capacidade de as adiar/
autogestão ou exigem a anular como na Rússia de
intervenção do Estado ou 1917 (o que era difícil num
do MFA, ensaiam várias país onde a oposição fize-
formas de controlo operá- ra das eleições livres a sua
rio e fazem-no através de bandeira de sempre), nem
Comissões de Trabalhado- a força de as ganhar (como
res (CT) ou de Moradores o chavismo venezuelano
(CM) por si eleitas. Man- dos nossos dias). É pre-
ter as empresas a funcio- cisamente a partir daqui,
nar, derrotar a sabotagem desta crise de legitimidade
económica, assegurar o que nem a retórica tutelar
emprego, cedo coloca a O povo passa de espetador a ator principal do I Pacto MFA/Partidos
questão da nacionalização consegue minimizar, que
dos setores estratégicos da economia (a co- se inicia a rutura dos setores intermédios com
meçar pela banca). O propósito é conquistado o processo revolucionário, argumentando con-
no rescaldo da derrota da segunda tentativa tra a hegemonia totalizante que nele tendia a
contrarrevolucionária dos spinolistas, em 11 assumir o papel do PCP. Rompe-se o Governo
de março de 1975. Aprova-se a nacionaliza- Provisório com a saída do PS e do PSD (unicida-
ção da banca (na prática, dos grandes grupos de sindical, caso República) e explicita-se a cres-
financeiros) e legaliza-se a Reforma Agrária cente e já indisfarçável desagregação do MFA. A
já em curso. O controlo operário está na or- extrema-direita terrorista passa à ação em todo
dem do dia. O processo revolucionário pare- o país contra as sedes e militantes de esquerda
cia dar um passo em frente. Na realidade, era e a hierarquia católica distancia-se do PREC
o último. a pretexto da ocupação da Rádio Renascença.

Com o processo revolucionário em curso, deter as cúpulas do poder


político e até das chefias militares não era resolver a situação. Havia um
movimento de massas disposto a lutar pelo que tinha conquistado.

10. Efetivamente, o heteróclito campo da revo- Inicia-se a mobilização de massa contra o pro-
lução iria sofrer, nos meses seguintes, três der- cesso revolucionário com os grandes comícios
rotas sucessivas e determinantes. A primeira, e manifestações convocados pelo PS a favor de
com as eleições de abril de 1975 para a Assem- uma democracia parlamentar e “europeia” e as
bleia Constituinte. Não são só os modestos re- concentrações de apoio ao episcopado no nor-
sultados do PCP (12,5%), do MDP (4,1%) e da te e centro do país. Na realidade, em julho de
UDP (0,7%): é alteração do critério legitimador 1975, com a formalização do Grupo dos 9, está
do poder em redefinição. Na realidade, com as constituído, tendo como eixo os Nove e o PS,
eleições de abril 1975, a legitimidade eleitoral um campo político-militar de oposição e alter-
impõe-se definitivamente sobre a legitimidade nativo ao dividido campo revolucionário que
revolucionária. E a verdade é que o PS vencera lhe vai disputar, palmo a palmo, as posições-
as eleições constituintes com 37,8% dos votos. chave no aparelho militar e no Governo, como

8
Dossiê
40 anos depois de Abril
Na Ribeira das Naus e na Rua do Arsenal: enfrentamento decisivo entre forças da EP Cavalaria
comandadas por Salgueiro Maia e de Cavalaria 7 e lanceiros 2, fiéis ao regime.

primeiro passo para o derrotar no plano da militar: nas chefias e no Governo instalam-se
mobilização social. Um campo apoiado aberta- agora opositores ao curso revolucionário. Não
mente pela direita política e dos interesses, por era o fim, mas era o prefácio do fim.
setores maoistas que reificavam o perigo de um
regime tutelado pelo PCP e, mais na sombra, 12. Com o processo revolucionário em curso, de-
pelas, sabemos hoje melhor, largas ramificações ter as cúpulas do poder político e até das chefias
da extrema-direita fascista e terrorista do ELP/ militares não era resolver a situação. Havia um
MDLP e grupos afins. movimento de massas disposto a lutar pelo que
tinha conquistado. A “contraofensiva das lutas
11. Precisamente, a segunda derrota do campo populares”, como lhe chamará o PCP, será forte
da revolução socialista, em agosto/setembro e prolongada, mas representa já, não obstante a
de 1974, é o afastamento generalizado da “es- sua capacidade de mobilização entre setembro
querda militar”, sobretudo da mais próxima de e novembro, um processo claramente defensi-
Vasco Gonçalves e do PCP, não só da liderança vo contra o “avanço da reação” e a iminência de
do Governo provisório como das fortes posi- um golpe militar, na realidade, em preparação a
ções detidas no aparelho militar: é encerrada a partir do Grupo dos 9 e desde a” limpeza” desse
V Divisão, Vasco Gonçalves é afastado de Pri- verão. Considerar essa radicalização terminal,
meiro Ministro e impedido de assumir o cargo quase desesperada e sem orientação clara, como
de CEMGFA (Chefe do Estado Maior General o “momento insurrecional” ou o “assalto final”
das Forças Armadas), Eurico Corvelo é demi- ao poder do Estado3, parece-me ser uma abor-
tido da chefia do RMN, os “gonçalvistas” são dagem que nada tem a ver com a realidade. As
colocados em minoria no Conselho da Revolu- importantes mobilizações desse período, de uma
ção, perdendo 9 conselheiros, são readmitidos forma geral, não colocavam a questão da toma-
os conselheiros do Grupo dos 9, o VI Governo da do poder: reclamavam as posições perdidas
é uma clara guinada à direita. Sobram Otelo e o (demissão de Corvacho, desativação do CICAP
COPCON, mas o cerco a este último núcleo do (Centro de Instrução Auto do Porto), silencia-
revolucionarismo militar começa de imediato. mento à bomba da Rádio Renascença, atentados
O que sai deste embate é uma substancial alte- bombistas…), denunciavam os planos político-
ração da correlação de forças a nível político e militares, esses sim, ofensivos, do campo con-

3 - Cf. Raquel Varela (2014), História do Povo na Revolução Portuguesa (1974-1975), Lisboa: Bertrand, p. 421 e segs. e pp. 496-498.

9
arquivo udp
A sabotagem económica precipitou o processo de ocupação das empresas e a reivindicação das nacionalizações

trarrevolucionário, em suma, estavam à defesa pelas portas que novembro abrira. A 25 de no-
e tentavam segurar o que tinham obtido. Isso vembro o golpe ordena a prisão de 118 milita-
não é incompatível, na ausência de um movi- res, saneia da RTP e da EN 82 trabalhadores
mento de massas unificado e de uma direção e demite as administrações e direções da im-
política clara, com o deixar-se arrastar para a prensa estatizada, substituídas por gente do PS
aventura golpista incipiente protagonizada pe- e PSD ou militares afins. Ao contrário do que
los paraquedistas e as unidades do COPCON da pretendiam a extrema direita e certos setores da
Região Militar de Lisboa (RML) com o apoio direita, não houve prisões massivas de “verme-
de certos setores sindicais afetos ao PCP e da lhos”, anulação das liberdades públicas, dissolu-
militância da extrema-esquerda (ocupação das ção de partidos ou encerramento de sindicatos
bases aéreas, de alguns pontos estratégicos da ou das suas publicações. O PCP manteve-se no
capital, da RTP e da Emissora Nacional). A 25 Governo Provisório e a Constituição de 1976
de novembro, isso constituiu o pretexto há mui- consagraria o objetivo do socialismo, a irrever-
to esperado para se desencadear o contragolpe sibilidade das nacionalizações, a Reforma Agrá-
militar a sério. O que precisamente é revelador ria, o controlo operário e o papel das Comissões
neste contexto é a surpreendente facilidade com de Trabalhadores.
que, praticamente sem resistência (excetuando
o breve confronto na Polícia Militar), o Regi- 14. Na realidade, o Grupo dos 9 negociara dis-
mento dos Comandos subjugou, uma a uma, as cretamente com o PCP uma contenção pactuada
unidades rebeldes. As escassas centenas de pes- do processo revolucionário (o PCP travara no
soas que as “defendiam” dispersaram e os seus terreno os ativistas sindicais, os militantes civis
chefes, disciplinadamente, foram entregar-se ao e os militares arrastados para a aventura inicia-
Palácio de Belém. A terceira derrota era, agora, da pelos paraquedistas), o que resultaria num
definitiva para o processo revolucionário. processo obviamente distinto de uma clássica
e violenta resposta contrarrevolucionária. Um
13. O novembrismo está para a contrarrevolu- acordo que fazia a economia de uma contrarre-
ção como o movimento militar de 25 de Abril volução sangrenta, mas em que os vencedores
esteve para a revolução. Ele não era a contrarre- alteravam as regras do jogo em dois aspetos
volução, mas, a alteração da correlação de forças cruciais: impunham a consagração da legitimi-
que impôs, abriu o campo a que ela paulatina, dade eleitoral sobre a legitimidade revolucioná-
progressiva e constitucionalmente se instalasse ria e, sobretudo, liquidavam o MFA, repunham
como política dominante da situação pós-revo- a hierarquia tradicional das FA e, nesse senti-
lucionária. Dissimulada e prudente ela entrava do, anulavam a aliança essencial com esse braço

4 - Ibidem, pag. 482 e segs.

10
Dossiê
armado de que dispusera o movimento popular conselhista alemã de 1918/19, não há na revo-

40 anos depois de Abril


no processo revolucionário. Regressavam as FA lução portuguesa um “poder popular” paralelo
como espinha dorsal da violência legal do Esta- unificado, por isso se não colocou nunca, na prá-
do. É certo que a revolução terminava. Mas dei- tica, a questão de “todo o poder aos órgãos de
xava na democracia parlamentar que lhe sucedia vontade popular”. Até julho de 1975 o PCP e a
a marca genética das suas conquistas políticas sua estrutura sindical opõem-se às CT e, antes
e sociais, dos direitos e liberdades que arran- e depois disso, cada grupo político da esquerda
cara na luta revolucionária e cuja continuação radical tem as “suas” CT e CM, as “suas” estru-
impusera e defendia na nova situação política. turas de articulação parcial, guerreando-se fre-
É por isso que a equiparação esquemática que quentemente entre si e com as que o PCP cria,
por vezes se faz entre a contrarrevolução e a de- finalmente, nesse verão.
mocracia parlamentar4 desconhece que, no caso
português, ela é fruto do compromisso com um 17. Em segundo lugar, na revolução portuguesa
processo revolucionário que a marcou profun- os órgãos de vontade popular não estão arma-
damente. Ao contrário do que afirma a direita dos, novamente num contraste essencial com
política e historiográfica - em curiosa aproxima- as citadas experiências soviética e conselhista.
ção com o citado ponto de vista -, a democracia Eles são apoiados por um aliado externo a si
política não existe em Portugal apesar da revo- próprios, um movimento militar, ou parte dele,
lução, mas porque houve a revolução. ou até por algumas unidades dessa parte, à me-
15. Há, portanto, um ser e um não ser na revo- dida que a esquerda do MFA se vai dividindo e
lução portuguesa de 1974/75. Ela teve a força subdividindo. Não há operários, camponeses e
de subverter a ordem estabelecida, atingindo soldados em armas como alguns setores da es-
os fundamentos do próprio sistema capitalis- querda radical reclamavam. Aliás, o PCP e as
ta, mas não conseguiu segurar e, menos ainda, organizações radicais de esquerda mantiveram
aprofundar essas aquisições num poder socialis- organizações nas FA mais para influenciar os
ta durável. Foi travada a meio caminho e perdeu oficiais do MFA do que para promover o insur-
boa parte das suas conquistas mais avançadas na recionalismo dos soldados. Nestes termos, há
contrarrevolução mansa que se estabeleceu com um processo revolucionário dos trabalhadores
a “normalização democrática”. Ou seja, foi der- externamente apoiado, quando o foi, por um
rotada pelas formidáveis reações que despertou, movimento de oficiais crescentemente dividi-
tanto nacional como internacionalmente. O que do e debilitado. A vulnerabilidade era evidente:
conduz à necessidade de tentar analisar, ainda se e quando a reação ao processo revolucioná-
que sumariamente, algumas das suas principais rio lograsse reenquadrar o MFA na cadeia de
dificuldades de fundo. comando das FA, eliminando-o, o movimento
de massas, mesmo que se mantivesse, perderia
16. Em primeiro lugar, a situação de “duplo po- a sua indireta expressão armada e subversora,
der” criada pelos milhares de órgãos de vontade retomando a natureza de movimento reivindi-
popular eleitos nas empresas, nos bairros e nos cativo sem capacidade de colocar a questão do
campos do Sul pelos trabalhadores e moradores poder. Passava à defesa. Foi precisamente isso o
nunca se constituiu numa organização nacional que aconteceu.
una e articulada. Muito menos, na sua disper-
são, assumiu maioritariamente uma orientação 18. Em terceiro lugar, o campo político da re-
política clara ou se colocou a questão da to- volução estava profundamente dividido sobre
mada do poder. Ao contrário do que aconteceu a natureza do poder a construir e os caminhos
nos sovietes da Rússia de 1917 ou na revolução para lá chegar. E não houve nem uma força

11
claramente hegemónica suscetível de margina- força social e política suficiente para impedir
lizar as demais, nem a capacidade de encontrar a hegemonia político-ideológica do PCP no
uma plataforma mínima de ação comum (a pró- processo, sem, todavia, lograr impor um ca-
pria FUP, Frente de Unidade Popular, constituí- minho alternativo. Este impasse no campo da
da em 25 de Agosto de 1975 entre o PC e outros revolução abriu uma guerra no seu seio onde a
7 grupos, já com propósitos claramente defen- violência sectária, frequentemente, não foi só
sivos e sem parte dos maoistas, começa a des- verbal, dando lugar a agressões, saneamentos,
fazer-se três dias depois com a saída do PCP). manipulações e até a repressões massivas na
A divergência central seria entre a estratégia tentativa de eliminar politicamente o campo
cunhalista de progressiva ocupação do aparelho maoista mais hostil ao PCP5. Este conflitu-
civil e militar do Estado, do MFA, das direções oso bloqueio afastou, naturalmente, aliados
dos sindicatos e dos jornais/rádio/RTP, das sociais instáveis ou desiludidos, evidenciou
autarquias, etc… quase sempre à margem de impotência na resposta, exprimiu desunião e
qualquer escrutínio democrático, de “cima para fraqueza, isolou o campo em si mesmo e nele
baixo”, e a orientação comum à esquerda radical se hão de buscar algumas das razões que le-
de criar na luta de classes um “poder popular” vam à incapacidade de resistir com sucesso a
capaz de partir ao assalto revolucionário do contraofensiva no verão de 1975 e ao que se
Estado. Mas mesmo no subcampo da extrema- lhe seguiu.
esquerda, a guerra dos sectarismos em torno
da “pureza” revolucionária era generalizada. E 20. Concluindo, pode dizer-se, com segurança,
tudo isso, claro está, se reflete em cheio na coe- que a revolução portuguesa não foi um assun-
são do MFA mais à esquerda, já em rutura com to encerrado pelo novembrismo de 1975. A
o Grupo dos 9. força telúrica que explodiu nesse “dia inicial
inteiro e limpo” não bastou para vencer, mas
19. Na realidade, uma das singularidades da re- permitiu-lhe, todavia, recuar lutando e condi-
volução portuguesa que o preconceito ideológi- cionar fortemente o que se seguiu. É a partir
co de boa parte da historiografia sobre este pe- da defesa, consolidação e alargamento desse
ríodo tende a ocultar é que a extrema-esquerda, património que ainda hoje se define a esquer-
mesmo pulverizada e em guerra interna, teve a da portuguesa.

O campo político da revolução estava profundamente dividido


sobre a natureza do poder a construir e os caminhos para lá
chegar.

5 - A 28 de Maio de 1975, forças do COPCON, sob proposta dos oficiais mais próximos do PCP no MFA, atacam as sedes do movimento
maoista MRPP na Região Militar de Lisboa e prende várias centenas de militantes e ativistas, encerrados nas cadeias de Caxias e Pinheiro da
Cruz onde serão sujeitos a um tratamento brutal, denunciado pela opinião pública. Serão libertados progressivamente até 18 de Julho de 1975.

12
Dossiê
cory doctorou / FLICKR

40 anos depois de Abril


Os burgueses:
40 anos de poder e recomposição
Adriano Campos e jorge costa

“Nos primeiros tempos não havia tempo organizar a defesa da classe, partiam para o exí-
para pensar com muita profundidade o que se lio. Para compreender o regresso e a reconquis-
estava a fazer: era só uma certa intuição, talvez ta de Vasco de Mello, que viveu o desterro suíço
também uma certa dose de teimosia e perseve- com o seu pai, Jorge de Mello, é necessária mais
rança”. Assim lembra António Vasco de Mello, atenção à complexa dinâmica social e histórica
referindo-se à criação da Associação Industrial do que à “teimosia” do burguês.
Portuguesa (AIP) escassos dias após o 25 de
Abril de 1974. O pensamento e ação da burgue- A arte do possível: a burguesia e os caminhos para
sia portuguesa na voragem militar e popular o novo regime.
que aniquilou o marcelismo resultaram, como Francisco Louçã1 recorda uma ideia do-
sabemos, numa derrota de curto prazo. A apos- minante entre a esquerda radical durante o
ta perdida de Spínola e a polarização no seio PREC, sumarizada à data por César de Olivei-
do MFA, reflexo da agudização de contradições ra: “As classes dominantes em Portugal só têm
sob a crescente pressão popular, ditaram o novo uma saída: um regime autoritário, centralizado
cenário. As três maiores dinastias da burguesia e fortemente repressivo, capaz de garantir a es-
portuguesa, Mello, Champalimaud e Espírito tabilidade política e uma “paz social” que lhes
Santo, perante uma cúpula política incapaz de permita reconverter a estrutura económica de-

1 - LOUÇÃ, Francisco (1984), Ensaio para uma revolução, Lisboa: Cadernos Marxistas.

13
pendente da exploração colo- tradas e de grande dimensão.

jacinta lluch valero/flickr


nial, da divisão internacional O Estado assume a gestão do
do trabalho, da própria exis- sistema económico e o seu
tência de fascismo”. O deter- papel histórico de incubador
minismo económico coman- e protetor da burguesia por-
da assim uma análise onde tuguesa. É sob a direção es-
a solução do fascismo é uma tatal que se opera a reconsti-
sombra da própria estrutura tuição da burguesia.
produtiva, com o Estado à su- Tal como mostra a in-
perfície. Uma solução que se vestigação de Os Donos de
transforma ainda em mecâni- Portugal2, a recomposição
ca política perante o abalo do e o poder da burguesia em
poder - as liberdades de abril Portugal não se estabeleceu
à mercê da reação bombista. a partir de uma inflexão au-
Acontece que, com os úl- toritária do novo regime,
timos cartuchos de Spínola, antes partiu da instalação
não se queimou apenas o projeto de uma transi- de uma democracia parlamentar com ampla
ção bonapartista do antigo regime, mesmo que hegemonia do campo político e que conse-
intranquila. A ideia de que Portugal poderia guiu reivindicar as bandeiras da democrati-
manter o mesmo modelo económico e social es- zação e da modernização. A burguesia soube
farelou-se perante as próprias evidências políti- ainda abrir outras vias: a sinecura do Estado
cas: a sublevação de uma parte significativa do na gestão da economia. Esta solução contou
aparelho de Estado - as chefias intermédias do com uma legitimidade política que tem no
exército - e a súbita torrente popular de apro- complexo processo de conquistas populares
priação impossibilitavam uma manutenção dos a sua força e as suas principais contradições.
moldes de exploração e dominação. Daí que, O regime do pós-25 de Abril interrompeu e
para o determinismo económico, a burguesia digeriu as fugazes expressões do “poder po-
só tivesse como possibilidade o caminho do au- pular” do PREC - ocupação de casas, fábricas
toritarismo, assente num revigorado centro de e campos, auto-organização dos soldados e
repressão política e militar. democracia direta - inscrevendo-as na misti-
A reacomodação do Estado, abalado no seu ficação de uma democracia que foi afinal qua-
poder centralizador, exigia novas soluções. A se sempre alternância.
aposta no MFA como centro de uma transição De forma a avançarmos na compreensão
segura e respeitável mereceu o apoio do PS e dessa recomposição apresentamos, sob um
do PCP, num jogo de influências que ditaria o prisma particular, dois processos centrais des-
equilíbrio futuro. Exaurida esta via, o 25 de No- tes quarenta anos, que tiveram no Estado e no
vembro inaugura o novo período de estabiliza- seu aparelho o centro propulsor - o restabe-
ção. Ao longo de uma década e meia, o sistema lecimento do capital rentista pelos processos
económico permanecerá sob forte intervenção de privatização e a coerência da estratégia da
estatal, com uma classe dominante ainda dimi- classe dominante através da colonização da re-
nuída e sem condições políticas e financeiras presentação política pelo trânsito entre o poder
para tomar posse de empresas públicas concen- executivo e os negócios.

2 - COSTA, Jorge et al. (2010), Os Donos de Portugal. Cem anos de poder económico, Porto: Afrontamento.

14
Dossiê
Concentrar e privatizar: os rentistas Dez anos depois de terminado o período re-

40 anos depois de Abril


O rentismo é a marca do ciclo privatizador volucionário, tem início o longo consulado de
português das últimas duas décadas. A recons- Cavaco Silva. O ciclo privatizador inicia-se sob
tituição dos grupos económicos depois das o signo da diminuição da dívida pública. Cavaco
nacionalizações baseou-se em dois pilares es- e Cadilhe avançam cautelosamente, argumen-
senciais: a concentração bancária e o acesso a tando com a necessidade de receita e começan-
monopólios estratégicos convertidos em rendas do por setores não-estratégicos: a cervejeira
garantidas, na energia, nas telecomunicações, Unicer, o Diário de Notícias (DN), o Jornal de
em infraestruturas rodoviárias. Na definição Notícias (JN). Cá e lá fora, o ambiente políti-
dos setores com maior acumulação e poder, tem co (Portugal está na CEE desde 1986; a guer-
também relevo aquilo a que chamamos rendas ra fria termina em 1989) é favorável à ofensiva
especiais. A primeira é o negócio imobiliário, dos ideólogos do mercado, nomeadamente nos
um sistema de acumulação acelerada, baseado média. A boa procura registada nas primeiras
em capital fictício e protegido pelo resgate es- privatizações mostra que a marcha pode ser
tatal. Outra forms de rentismo é a que resulta acelerada.
das parceiras público-privado, que geram uma Na privatização de 20% do JN em 1991,
enorme dívida para várias gerações. Américo Amorim organiza uma “cooperativa
A presente fase do processo privatizador, de editores” para controlar a quota reservada a
em que a alienação de bens públicos se faz, so- profissionais do setor. Como o Expresso recor-

A reconstituição dos grupos económicos depois das nacionalizações


baseou-se em dois pilares essenciais: a concentração bancária e o acesso
a monopólios estratégicos convertidos em rendas garantidas, na energia,
nas telecomunicações, em infraestruturas rodoviárias.

bretudo, a favor do capital estrangeiro, liga-se da em reportagem, Cavaco comenta o assunto


precisamente às dificuldades geradas por estes e diz que não acredita que Amorim se envol-
dois tipos de rendas, nomeadamente pelo fim va num negócio tão pequeno nas vésperas de
da bolha do crédito fácil e pela insustentabili- privatizações grandiosas como a da Petrogal3.
dade das PPP. As teias pelas quais se teceu este Com efeito, Amorim perde o JN, mas será um
processo largo de transferência de proprieda- dos parceiros da sociedade Petrocontrol, vence-
de e redefinição das relações económicas estão dora da primeira fase de privatização da Petro-
detalhadamente identificadas em Os Donos de gal em 1992. Ali se encontram também, sob a
Portugal (capítulo VI). Neste breve apontamen- presidência de Freitas do Amaral, grande parte
to salientamos particularmente a metamorfose do capital de então: os Espírito Santo, Patrick
da propaganda governamental na apresentação Monteiro de Barros, Champalimaud, Belmi-
deste longo ciclo de privatizações, que nos diz ro de Azevedo e, claro, os teimosos Mello. Os
muito da capacidade de representação da bur- seus 25% da petrolífera serão vendidos oito
guesia portuguesa. anos mais tarde aos italianos da ENI, com

3 - Cf. Expresso, 02-02-2013.

15
Alfredo Cunha/Lusa
António Champalimaud

mais-valias de 520 milhões de euros, isentadas venda das seguradoras e bancos públicos. Em
de impostos por um favor especial do ministro mãos privadas, a entrega de seguradoras fun-
Pina Moura, do PS. cionou como reforço financeiro para capacitar
Ao longo de mais de quinze anos, a propa- os grupos portugueses para a fase seguinte, a
ganda governamental sobre as privatizações da compra dos bancos. Assegurado o músculo
assentou na retórica do “capitalismo popular” financeiro pela propriedade bancária, os gru-
e da “manutenção dos centros de decisão na- pos económicos vão depois lançar-se na apro-
cionais”. A primeira teve concretizações cari- priação de valiosas rendas e monopólios. Mas,
caturais - como as cooperativas de jornalistas ao fim de poucos anos, a grande “decisão” que
montadas por Amorim - mas tratou-se, sobre- muitos destes “centros” acabam por tomar é a
tudo, de uma fraude política concretizada de realização de grandes mais-valias através da
forma massiva. E se, nas primeiras privatiza- venda a grupos estrangeiros das mesmas em-
ções, nunca foi muito expressiva a parte efetiva- presas estratégicas cuja propriedade “nacional”
mente subscrita por pequenos investidores, tra- prometiam garantir para todo o sempre. Uns
balhadores ou emigrantes, este discurso atinge atuaram desde o primeiro momento como me-
o apogeu na primeira fase de privatização da ros testas-de-ferro daqueles interesses exter-
EDP por António Guterres, que mobilizou 800 nos, outros como proprietários intercalares,
mil compradores, ou 8% da população portu- enquanto se criavam as condições políticas e o
guesa, com os bancos a emprestar dinheiro a sistema se adaptava à estratégia de uma bur-
centenas de milhar de cidadãos. Enquanto as guesia com mais pressa em realizar proveitos
ações se valorizam, os seus titulares integram fáceis do que em desenvolver grupos empresa-
esquemas de procurações em massa, que criam riais. E todos beneficiaram destas operações.
maiorias acionistas dominadas pelos intermedi- Já o atual ciclo privatizador, como adiante
ários bancários deste “capitalismo popular”. Por assinalamos, distingue-se profundamente dos
fim, atingido o prazo em que os seus titulares as anteriores. Simplesmente desaparecem todos
podem vender, as ações dispersas rapidamente os vestígios da velha ideologia privatizadora,
se concentram nas mãos de grandes grupos. que evocava o “capitalismo popular”. A hege-
Quanto à retórica da preservação dos “cen- monia neoliberal do Consenso de Washington
tros de decisão nacionais”, ela apoiou um ob- reconverte-se depois da falência dos gigantes
jetivo muito concreto: garantir a boa proteção financeiros de Wall Street e da Europa e de-
dos grupos capitalistas portugueses no acesso pois do seu resgate pelos cofres públicos. Essa
às empresas em privatização. Desde logo, na hegemonia é mais dura e mais pesada e recorre

16
Dossiê
a temas obsessivos, como a ideia de que “vive- dências dominantes que nos ajudam a perceber

40 anos depois de Abril


mos acima das nossas possibilidades” ou de que os meios pelos quais se opera a reprodução do
é preciso “vender os anéis”, apresentando assim poder da burguesia no campo político.
a privatização como parte de um ajustamento 1. A ligação empresarial é a regra. Do
anunciado. universo total de governantes, mais de metade
(415) estabeleceram, antes ou depois de passar
Entre política e negócios: quem representa quem? pelo governo, um vínculo relevante às empre-
“Em tempos normais, a estabilidade do sis- sas e às suas administrações. Essa ligação é
tema é um dado adquirido (…) mas em tempos mais intensa no PSD e no CDS, mas o PS não
de crise, como este que vivemos (...) é preciso se distancia: metade dos governantes do PS e
diminuir a tensão, desanuviar o confronto e dois terços dos do PSD e CDS circularam entre
encontrar-se terreno comum para fazer o sis- os governos e lugares de direção em grandes
tema funcionar.” Esta declaração do chairman empresas. São, deste ponto de vista, redes orgâ-
do Banif4, banco que contou com os fundos nicas da burguesia.

Do universo total de governantes, mais de metade (415)


estabeleceram, antes ou depois de passar pelo governo, um
vínculo relevante às empresas e às suas administrações.

de recapitalização do empréstimo da troika, 2. A finança comanda. Estas ligações va-


é reveladora (mais pelo seu autor do que pelo riam em grau de responsabilidade dos gover-
seu conteúdo), do trânsito existente entre a po- nantes e na dimensão das empresas, mas há um
lítica e os negócios em Portugal. Luís Amado centro de comando: a finança. São 230 (um ter-
começou a sua carreira política na Assembleia ço de todos os governantes) que transitaram da
Legislativa Regional da Madeira, transitando finança para o governo ou que saíram do gover-
posteriormente para a Assembleia da Repúbli- no para a finança. O PSD lidera, uma vez mais,
ca. Foi depois Secretário de Estado nos gover- com 102 governantes, seguido pelo PS, com
nos de António Guterres e duas vezes Ministro 75. Para tal contribui o facto de os governos de
com José Sócrates. Após 27 anos de experiência Cavaco Silva, a era dourada das privatizações
política e executiva (pertenceu ao secretariado na finança, ter mais de metade dos seus Minis-
nacional do PS), assumiu as rédeas de um dos tros e Secretários de Estado neste trânsito. A
bancos portugueses. finança é o centro nevrálgico do capitalismo
O caso de Amado não é único, a assimila- português, onde a burguesia assenta a sua do-
ção de ex-governantes por parte da burguesia minação económica e produz os seus quadros
financeira constitui um dos traços definidores mais importantes.
do atual regime de dominação. Em Os Burgue- 3. PS e PSD não são iguais. Os dois
ses5 estudámos esses percursos um a um, tota- maiores partidos no seu conjunto ditam a
lizando um quadro geral dos 776 Ministros e tendência de recrutamento dos governantes.
Secretários de Estado dos 19 governos consti- Estes são originários, na sua maioria, de car-
tucionais. Dessa análise destacam-se três ten- gos públicos exercidos na esfera do Estado,

4 - Cf. Lusa, 04-03-2014.


5 - LOUÇÃ, Francisco; LOPES, João Teixeira; COSTA, Jorge (2014), Os Burgueses, Lisboa: Bertrand.

17
com grande ênfase para as empresas públicas, sos nacionais e na exploração do trabalho. Os
universidades e o parlamento. A cooptação impactos da crise financeira e o novo acordo de
de ex-governantes pelas empresas é mais fre- regime, a austeridade, vieram abalar esta dinâ-
quente do que a indicação pelos governos de mica combinada do domínio burguês.
quadros do setor privado. Mas dentro dessa A atual fase de privatizações corresponde a
tendência, PS e PSD diferenciam-se na consti- uma agenda determinada em grande medida
tuição das suas redes de influência. O PSD é o pelo capital financeiro do centro da Europa,
partido orgânico da burguesia portuguesa, pois credor dos bancos portugueses e cujos interes-
é hegemónico nas ligações aos grandes grupos ses são interpretados pela estratégia da troi-
económicos6 e às empresas do PSI20, com 90 ka, através da Comissão Europeia e do Banco
e 68 governantes, respetivamente. Em confor- Central Europeu. Em termos de disputa da
midade, o PSD recruta com mais intensidade propriedade, os grupos económicos nacionais
no setor privado do que o PS, privilegiando o são atores menos que secundários. E a própria
passado empresarial dos seus governantes. O receita das privatizações é escoada do país por
PS segue um padrão distinto, pois recruta mais dois canais: de forma imediata, pelo pagamento
quadros públicos e professores universitários, da dívida; no longo prazo, pela perda perma-
apresentando também um equilíbrio maior em nente pelo Estado de rendas monopolísticas
termos de governantes com e sem ligações nos (ANA, CTT) e de outros recursos importantes,
seus governos. Não obstante, o PS lidera a rede não só pela sua rentabilidade como pela sua
de influência em alguns setores da economia - presença internacional (Cimpor, EDP, TAP), a
sendo o caso do imobiliário e construção o mais favor de grupos estrangeiros,.

A cooptação de ex-governantes pelas empresas é mais frequente


do que a indicação pelos governos de quadros do setor privado.

notório (41 governantes) - e em grupos pode- Alguns dos grandes grupos económicos
rosos, como é o caso da PT (14 governantes). portugueses mantêm uma forte componente
bancária que os leva a favorecer o “resgate”,
Saber durar: a burguesia na era da troika dado que este converte dívida privada em dí-
Destacámos atrás dois processos funda- vida do Estado. Vários destes grupos bene-
mentais para a recomposição da burguesia ficiam da capitalização estatal direta (injeção
portuguesa. O rentismo como base para uma de capital) ou indireta (financiamento do BCE
organização parasitária do Estado que se ali- e especulação com a dívida pública). São, por-
menta pelos processos de privatização e mono- tanto, ganhadores, ainda que secundários, neste
polização dos setores de baixa produtividade, processo. Concomitantemente, a entrada de ca-
da construção, distribuição e imobiliário. Em pital estrangeiro, direcionado, sobretudo, para
segundo lugar, sublinhámos a assimilação de a finança, estabelece-se em aliança com setores
governantes de modo a manter uma coerência do capital nacional. O domínio de Isabel dos
política e estratégica na depredação dos recur- Santos na Zon e a entrega da EDP ao capital

6 - Mello, Champalimaud, BES, BCP, Santander, Mota-Engil, PT, BPI, CGD, SONAE, Jerónimo Martins e Amorim.

18
Dossiê
josé sena goulão / lusa

40 anos depois de Abril


Negociações do OE para 2011 entre o PSD e o Governo do PS

chinês são exemplos maiores desta partilha de- vencedoras nos dois processos. Luís Amado e
terminante para a burguesia portuguesa. Jaime Gama, destacados dirigentes socialistas,
O esforço político a que este processo obriga ocupam posições na banca em dificuldade, Banif
deixa ainda à vista uma intensificação do trânsi- e BES, respetivamente. Miguel Relvas perma-
to de influências. Em plena crise diplomática lu- nece na sombra, laborando para a prosperidade
so-angolana, Paulo Pereira Coelho, ex-secretá- do “triângulo dourado” entre Portugal, Brasil e
rio de Estado da Administração Local de Durão Angola.
Barroso e mais tarde administrador da Finertec Saber durar é a marca distintiva da burguesia
(já angolana), é enviado a Luanda como con- portuguesa na era da troika. Os laços com o ca-
sultor diplomático em sinal de apaziguamen- pital angolano, o apoio à austeridade como me-
to7. Eduardo Catroga, homem de confiança dos cânica da destruição dos salários e dos serviços
Mello e ex-ministro cavaquista, negoceia pelo públicos, a adesão aos novos ditames do poder
PSD o programa da troika que dita a privatiza- europeu formam a base sobre a qual se sustenta
ção restante da EDP para logo em seguida ser esta estratégia.
nomeado chairman da Companhia elétrica por- Uma transformação profunda nas suas rela-
tuguesa. José Luís Arnaut, ministro imediato de ções de reprodução, que continuará a decorrer
Barroso, assessora juridicamente as privatiza- nos próximos anos. Nestes tempos conhecer
ções dos CTT e ANA para de pronto alcançar este poder continuará a ser a primeira condição
lugares de destaque na Venci e Goldman Sachs, para o derrotar.

7 - LOUÇÃ, Francisco; LOPES, João Teixeira; COSTA, Jorge (2014), Os Donos Angolanos de Portugal, Lisboa: Bertrand.

19
Arquivo udp
Manifestação de trabalhadores no Verão de 1974

O “duplo poder”
na Revolução de Abril
MIGUEL PEREZ

O desenvolvimento de formas do chamado dagem global destes processos de desenvolvi-


“poder popular” e a questão da emergência de mento de um poder revolucionário e à indicação
um duplo poder no processo revolucionário de de pistas para o aprofundamento de alguns as-
1974-75 não é um assunto simples nem fácil de petos importantes.
ser analisado num texto tão breve como este. O conceito de poder revolucionário - um
Trata-se de um aspeto essencial da história do “duplo poder” que nasce em momentos de revo-
25 de Abril que carece ainda de estudos cientí- lução e que no decurso do processo revolucio-
ficos extensivos e que frequentemente é objeto nário tende a substituir o aparelho de Estado
de lugares-comuns e simplificações grosseiras tradicional - está solidamente fundamentado
que não ajudam em nada à compreensão da di- na tradição historiográfica de tradição marxis-
mensão e especificidade da própria Revolução. ta e inspira-se nas reflexões desenvolvidas pelo
É conhecido como estas formas de poder foram próprio Marx aquando da Comuna de Paris
qualificadas durante os acontecimentos por im- de 1871, em que refere características como a
portantes líderes políticos e responsáveis go- democraticidade e a “leviandade” desses novos
vernamentais. órgãos. O fundador do socialismo científico põe
Trataremos neste ensaio de proceder, na em destaque na sua análise o princípio da revo-
medida das nossas possibilidades, a uma abor- gabilidade dos eleitos da Comuna, a limitação

20
Dossiê
das remunerações no exercício da autoridade ao cias, um exercício de compreensão das novas

40 anos depois de Abril


nível do salário médio dos trabalhadores, que formas das lutas sociais e políticas.
foca como elementos de um poder de estado que Esta análise de matriz marxista é muito mais
deverá tender a autodestruir-se e desaparecer.1 do que um modelo explicativo. Em Portugal, na
Como dissemos no início deste texto, exis- altura do 25 de Abril, era o coração ideológico
te toda uma tradição política que analisou as de uma esquerda que, dadas as condições exis-
revoluções sociais do século XX atendendo ao tentes na altura, era a maioria social do país.
seu caráter anticapitalista, assinalando a ten- Efetivamente, o marxismo era o denominador
dência das mobilizações sociais revolucionárias comum dos militantes e ativistas de todas estas
para criarem os seus próprios órgãos de classe comissões, organizações e partidos. Um mar-
que, no decurso do processo revolucionário, se xismo com variadas nuances mas inspirado nas
transformam em órgãos do novo poder político suas versões mais clássicas e influenciado por
de natureza diferente. Este quadro de análise experiências políticas mais próximas, nomea-
nasce com a Revolução Russa de 1905-1917 e damente a revolução cubana.
é teorizado pelos próprios dirigentes daquela Nesse sentido, pensamos que uma aborda-
revolução2. No caso russo da mobilização so- gem nesta perspetiva pode ajudar a esclarecer
cial, e em particular do operariado, surgem os as dinâmicas e significado do “Processo Revo-
sovietes de deputados operários como órgão lucionário Em Curso” (PREC) num exercício
dirigente da luta da classe, e são estes comités analítico assim fundamentado, e que toma em
eleitos que vão receber o poder em novembro consideração o caráter variado e contraditório
de 1917 na insurreição dirigida pelos bolche- de muitos dos seus elementos, especificidades
viques. Nos acontecimentos revolucionários de uma revolução singular - a Portuguesa de
contemporâneos (Alemanha, Hungria, Áustria, 1974-75 -, mas com características comuns
Itália) aparecem organismos semelhantes aos com um determinado “modelo geral” - as revo-
da Rússia, o que se verifica na generalidade das luções anticapitalistas do século XX.
revoluções anticapitalistas posteriores. Nesse sentido, na nossa opinião, toda uma sé-
Segundo os líderes comunistas russos, os rie de fenómenos que se verificam em Portugal
sovietes eram formas de democracia proletária nos meses seguintes devem ser entendidos no
e tinham características específicas face às for- quadro do surgimento de formas de intervenção
mas da democracia burguesa. Os deputados dos política e social essencialmente novas, fortemen-
sovietes eram escolhidos em processos diretos te participativas e de um caráter democrático as-
e eram revogáveis a todo o momento. O poder sembleário4. Trata-se de uma realidade que nas-
dos sovietes distanciava-se ainda do princípio ce da profunda mobilização social que varre todo
da separação de poderes estabelecida pela revo- o país naquela altura. Das greves, das ocupações
lução francesa de 1789: nessa perspetiva, o so- de empresas, de terras e casas e de outras movi-
viete juntaria os chamados poderes legislativo mentações surgem, em processos de reuniões e
e executivo3. Mais do que uma teoria acabada, plenários, comissões eleitas e revogáveis, autó-
são apontadas características gerais e tendên- nomas (até que ponto?) dos partidos e do Estado.

1 - MARX, Karl (1987), A guerra civil em França. Lisboa: Avante!.


2 - Em obras que são clássicos do pensamento marxista, como O Estado e a Revolução, de V. I. Lenine (Lisboa: Avante! 1975) ou a História da
Revolução Russa, de L. Trotsky (São Paulo: Sunderman, 2006).
3 - Ver as teses dos dois primeiros congressos da Internacional Comunista. Manifestos, resoluções e teses dos quatro primeiros congressos da IC.
Lisboa: Maria da Fonte, 1976.
4- Parece-nos interessante aludir à conhecida canção de Fausto As comissões, que refere muitas destas características numa peça artística
notável.

21
Na indústria e nas empre- tos de ofício, uma das caracte-
sas em geral rebenta uma rísticas da estrutura sindical
onda de conflitos laborais sem corporativista que, depois do
precedentes na história social 25 de Abril, é dirigida por sin-
do país5. As primeiras greves dicalistas próximos do PCP. Ao
importantes começam nas lado das CT recém-formadas
grandes empresas industriais está presente um movimento
da margem sul do Tejo - Lis- sindical que ganha relevância
nave, Siderurgia Nacional, ao longo do processo revo-
CUF - e estendem-se pelo país lucionário, enquanto aquelas
fora nas semanas e meses se- dificilmente conseguem cons-
Manifestação operária em Lisboa
guintes. O recurso à greve e à no Verão de 1974 truir estruturas coordenadoras
ocupação do local do trabalho reconhecidas (em grande parte
é habitual. As reivindicações por causa da falta de interesse
de tipo económico são geralmente acompa- do PCP)7.
nhadas de outras exigências que extravasam Uma das dificuldades com que nos confron-
as questões salariais, nomeadamente a do “sa- tamos na investigação dos movimentos sociais
neamento” de empresários e quadros que são no pós-25 de Abril é a de tentar fornecer dados
considerados repressivos. Segundo um estudo quantitativos rigorosos dos mesmos. Apenas
do GIS de 1975 , a reivindicação do saneamen-
6
podemos fornecer algumas estimativas em se-
to atinge quase metade das empresas estudadas gunda mão de alguns investigadores e obser-
(cerca de 160), enquanto em mais de 20% dos vadores britânicos, que referem números entre
casos ocorre a ocupação das instalações ou for- as 2000 e as 4000, ou uma contagem realizada
mas de luta semelhantes. São dados que ajudam pelo PCP que Álvaro Cunhal refere no relató-
a compreender os desenvolvimentos posterio- rio ao VIII Congresso do partido já em 1976,
res, no final de 1974. que dá conta de cerca de 1000 CT no território
Dessa conflituosidade laboral nasce nas em- continental (excetuando o distrito de Braga)8.
presas uma vasta rede de Comissões de Traba- No outono de 1974 multiplicam-se os casos
lhadores (CT) que continua a desenvolver-se nos de empresas que vão entrando em autogestão
meses seguintes. De maneira geral as CT ema- face à chamada sabotagem económica, os des-
nam de processos de plenários e reuniões gerais pedimentos ou simplesmente o abandono da
de trabalhadores e respondem às necessidades empresa pela entidade patronal. Nessas situa-
objetivas do momento: uma representação dire- ções a CT da empresa assume o papel central
ta dos coletivos de trabalhadores em luta. As CT na gestão e organização da mesma, o que é ge-
conseguem ultrapassar o espartilhamento dos ralmente reconhecido pelo Estado. Assim, boa
trabalhadores nas empresas por vários sindica- parte das Comissões Administrativas nomea-

5 - Ver a minha tese de mestrado, disponível na internet: Miguel Pérez - Contra a exploração capitalista: Comissões de Trabalhadores e luta
operária na Revolução Portuguesa (1974-1975). Dissertação de Mestrado, FCSH-UNL, Lisboa, 2008. Ver ainda M. L. Lima Santos, M. Pires de
Lima. e Vítor Matias Ferreira, O 25 de Abril e as lutas sociais nas empresas. Porto: Afrontamento, 1977.
6 - Estudo publicado originalmente em 1975 na Análise Social e reimpresso como introdução a uma coletânea de documentos de diversas
lutas: M. L. Lima Santos, M. Pires de Lima. e Vítor Matias Ferreira, O 25 de Abril e as lutas sociais nas empresas. Porto: Afrontamento, 1977
(vol. 1).
7- As Interempresas de Lisboa e Porto, nos primeiros meses de 1975, são as primeiras coordenadoras de CT, mas não têm o suporte do
PCP. Em julho aparecerá uma primeira coordenadora próxima deste partido, na origem da atual CIL. Mas um primeiro encontro nacional de
CT só virá a acontecer em 1987.
8 - CUNHAL, Álvaro (1976), A Revolução Portuguesa: o passado e o futuro, Lisboa: Avante!, p. 346.

22
Dossiê
das pelo Estado nas empresas intervencionadas de agir dos patrões-proprietários no interior

40 anos depois de Abril


incluem representantes da CT respetiva. das empresas.
Neste ponto vale a pena fazer um esclare- O que foi dito acima sobre o número de CT
cimento. É sabido que durante o ano de 1975 também se aplica às empresas ocupadas. Como
importantes setores da economia foram nacio- dissemos, podemos ter a certeza de que a maior
nalizados, primeiro a banca e as companhias se- parte das empresas que sofreram intervenção
guradoras e, mais tarde, diversos setores indus- do Estado passou por alguma forma de ocupa-
triais de base, a energia e os transportes. Porém, ção e de participação radical dos trabalhadores.
ao lado destas empresas públicas há uma mirí- Mas a ocupação das empresas foi um fenóme-
ade de empresas de todos os setores produtivos no mais amplo - muitas empresas que foram
e tamanhos que passam a ser dirigidas por ad- ocupadas não foram intervencionadas. Dados
ministrações nomeadas pelo governo, ao abrigo da Confederação da Indústria Portuguesa, fun-
de legislação no sentido de proteger o normal dada depois do 25 de Abril, assinalam um mo-
funcionamento da economia nacional9. Entre mento alto nos primeiros meses de 1975 e, em
1974 e 1977 foram intervencionadas cerca de 1976, a mesma organização refere a existência
360 empresas, a grande maioria sob pressão de 3000 empresas ocupadas. São números que
dos seus trabalhadores, com cerca de 160 000 devem ser usados com atenção atendendo à sua
assalariados. Nesse importante setor da econo- procedência.
mia as CT têm um importante poder, e tam- À semelhança do que acontece no mundo do

Ao longo do processo revolucionário, a generalidade das CT


exercem um poder determinante em inúmeras empresas, cerceando a
capacidade de agir dos patrões-proprietários no interior das empresas.

bém nas empresas que, mantendo-se privadas, trabalho, verificam-se processos do mesmo tipo
conhecem mobilizações radicais e uma inter- em outros setores da sociedade portuguesa, que
venção quotidiana das suas CT. Nas empresas trataremos de maneira mais resumida. Neste
nacionalizadas durante 1975 (onde também se sentido, podemos assinalar a realidade desses
verifica forte pressão dos trabalhadores nesse meses no âmbito da educação, onde os aconte-
sentido), as CT e outros órgãos dos trabalhado- cimentos são em tudo semelhantes ao que refe-
res (como as Comissões de Controlo Operário) rimos sobre as empresas. Num grande processo
também se tornam elementos de poder, com ca- que ainda está por estudar, a generalidade das
pacidade para vigiar o funcionamento das em- escolas, liceus e faculdades vive formas de in-
presas. Ao longo do processo revolucionário, a tervenção radical de professores e alunos com
generalidade das CT (e outras formas organi- momentos extremamente acessos.
zativas como Comissões de Controlo Operário, A mobilização dos moradores das grandes
Comissões Sindicais em determinados setores e cidades é um movimento original e profunda-
ainda outras) exercem um poder determinante mente marcante na revolução portuguesa, acer-
em inúmeras empresas, cerceando a capacidade ca do qual existe uma razoável quantidade de

9 - DL 660/74 de 25 de novembro.
10 - Ver as obras de Chip Downs, Maria Rodrigues, José Manuel Bandeirinha, Jaime Pinho e João Baía.

23
Arquivo udp
Concentração popular nos Restauradores no dia 25 de Abril de 1974

estudos disponíveis10. No novo clima político As formas de coordenação de CM ao nível


aberto pelo movimento dos capitães, as enormes da cidade, da região e mesmo ao nível nacional
carências habitacionais do país tornam-se mo- foram variadas durante o processo revolucioná-
tivo para fortes movimentações populares. Se- rio e surgiram mais rapidamente do que as co-
gundo fontes diversas, apenas cerca de 40% das ordenadoras de outros tipos de comissões. Para
habitações do país disporiam de água canaliza- além das questões estritamente habitacionais, as
da e esgotos, enquanto nas periferias de Lisboa CM vão-se ocupar da resolução de todo tipo de
e Setúbal proliferavam bairros de barracas sem problemas que afetavam às comunidades, como a
as mais elementares condições. A precariedade educação, a saúde, o lazer (para os quais se ocu-
destas áreas de habitação em barracas foi posta pam espaços disponíveis na área) e os transpor-
a nu com toda a crueza nas inundações de 25- tes públicos. As suas ações mais relevantes têm
11-1967 na região da capital, que terão causa- a ver, porém, com o acesso à habitação condigna
do centenas de mortos. Na cidade do Porto o para as camadas sociais mais humildes. As for-
exemplo de habitação precária por excelência mas de luta mais habituais são a manifestação de
eram as ilhas11, uma forma tradicional de alo- rua e a ocupação de espaços (prédios e andares).
jamento das famílias mais humildes que existia São frequentes formas de auto-organização que
desde os primeiros tempos da industrialização confrontam os problemas com uma resolução
da cidade. Na generalidade dos casos, as Comis- direta por parte dos moradores mobilizados:
sões de Moradores (CM) terão uma expressão abertura de creches ou postos médicos ou a im-
territorial específica: o bairro, portanto, num posição de percursos às empresas de transportes
nível abaixo da freguesia. Seria impossível (como a Carris, que é obrigada, por uma mobili-
proceder a uma estimativa do número de CM zação popular, a alargar o serviço para a zona de
criadas, mas estará com certeza na magnitude Odivelas em julho de 1975).
dos números apresentados acima para as CT: As primeiras notícias de ocupação de casas
muitas centenas, seguramente, acima das mil. no pós-25 de Abril são de bairros de habitação

11 - Linhas de pequenas casas (geralmente de 4 X 4.5 m.) construídas nas traseiras dos prédios à face da rua, normalmente com serviços hi-
giénicos coletivos, destinadas à habitação de famílias operárias sem grandes recursos. Este tipo de habitação popular teve um enorme impacto
na cidade do Porto, alojando-se nelas cerca de metade da população da cidade no início do século XX.

24
Dossiê
social do Estado em Lisboa (Boavista, Ajuda) e deste tipo de órgãos no território da Reforma

40 anos depois de Abril


no Porto, onde também se desenvolve uma mo- Agrária resulta-nos muito sugestiva, mas a
bilização dos moradores dos bairros municipais abundante produção científica não parece ter
(camarários). Nas semanas seguintes, a onda de dado relevo a esta perspetiva. Sabemos bastante
mobilização estende-se nas duas grandes áreas do contexto social do processo, do desenvolvi-
urbanas, com realização de plenários e elabora- mento da luta dos assalariados agrícolas e a ló-
ção de cadernos reivindicativos em que são apon- gica das ocupações, e ainda dos ritmos da “con-
tadas as carências que sofrem as populações. tra-reforma agrária”, mas pouco da organização
Nas grandes cidades, como Lisboa, Porto e interna das novas unidades de produção coleti-
Setúbal, são criadas diversas formas de coor- vas e do seu papel no seu contexto territorial.
denadoras (Intercomissões de Moradores de De uma forma genérica, o processo de luta
Lisboa, Comissão Central das CM do Porto, nos campos do sul depois do 25 de Abril co-
Assembleia Geral de Setúbal)12 que funcionam meça com uma vaga de combatividade de re-
desde o princípio de 1975. No caso de Setúbal, a cém-fundados sindicatos dos trabalhadores
coordenação de comissões integra rapidamente agrícolas15, que leva à assinatura de contratos

As primeiras notícias de ocupação de casas no pós-25 de Abril são


de bairros de habitação social do Estado em Lisboa e no Porto, onde
também se desenvolve uma mobilização dos moradores dos bairros
municipais (camarários).

CT e CM13 e no Porto, no verão de 1975, forma- coletivos para o setor agrícola no início do ve-
se um Conselho Municipal indicado pelas CM rão de 1974. Esses novos contratos, para além
junto da Comissão Administrativa Militar da de muitas outras melhorias, previam a fixação
Câmara. No Porto, as CM, com destaque para de contingentes obrigatórios de trabalhadores
aquelas ligadas aos projetos SAAL14, têm um fora das épocas de maior atividade agrícola (co-
papel destacado, organizando-se em estruturas lheitas, sementeiras) conforme a dimensão das
específicas e desenvolvendo uma mobilização herdades. Tratava-se de uma das reivindicações
prolongada na defesa dos seus interesses. históricas dos trabalhadores rurais do Alentejo:
A abordagem da questão da emergência a segurança face ao desemprego sazonal endé-

12 - É uma lista não exaustiva e que se vai transformando no decurso dos acontecimentos, pois estas coordenadoras terão vida própria.
13 - Ver Chip Downs, Fernando Nunes da Silva, Helena Gonçalves e Isabel Seabra, Os moradores à conquista da cidade, Lisboa, Armazém
das letras, 1978.
14 - O SAAL foi um programa de apoio à construção de habitações condignas lançado em julho pelo arquiteto Nuno Portas, secretário
de estado da habitação. O programa estabelecia uma série de facilidades e apoios para o realojamento de populações mal alojadas e contará
com a colaboração de arquitetos portugueses de grande prestígio, como A. Siza Vieira. Entre outros aspetos do programa, são de destacar
a manutenção das populações a realojar no mesmo território, o chamado “direito ao local”, e a exigência de organização das populações em
associações ou comissões de moradores, sendo estas quem toma posse dos terrenos de construção. Predominava uma filosofia de favorecer a
participação dos moradores nas diferentes fases do projeto de construção e transmitir os saberes técnicos necessários à construção às popula-
ções interessadas. Sobre o SAAL, ver o livro de J. M. Bandeirinha, O Processo SAAL e a Arquitectura no 25 de Abril de 1974. Coimbra: Imprensa
da Universidade, 2007 e o filme As Operações SAAL, de João Dias (2007).
15 - No tempo da I República existiram fortes “Associações de Classe” (sindicatos) dos Trabalhadores Rurais no Alentejo, muito combativas
mas extintas pelo Estado Novo.

25
mico da região. prio desses órgãos?
As dificuldades na apli- Inspirados nestas lei-
cação prática desta norma, turas surgem no processo
as acusações de desinvesti- projetos de organização
mento e “sabotagem eco- baseados na leitura de
nómica” e o elevado nível acontecimentos similares,
de mobilização dos traba- muitas vezes profunda-
lhadores levam às primei- mente voluntaristas. Assim
ras ocupações de terras no nascem organismos como
final de 1974, que se pro- os Comités de Defesa da
logam por 1975 atingindo Revolução (inspirados pelo
cerca de 1.1 milhões de PCP com base na experi-
hectares - algo mais de um 25 de bril de 1974 - tropa ocupa a sede ência cubana) e os Comités
terço da área da região da da PIDE DGS em Lisboa Revolucionários de Traba-
reforma agrária16. O ritmo lhadores, Soldados e Mari-
das ocupações de propriedades agrícolas é afe- nheiros (defendidos e desenvolvidos por mili-
tado pelas realidades regionais e pela dinâmica tantes do PRP-BR17). Trata-se de modelos que
política geral. Em julho de 1975 é promulgada pretendem desenvolver a iniciativa e a auto-
uma lei de Reforma Agrária radical, mas que organização populares e que ainda não foram
já chega numa altura em que inúmeros prédios objeto de investigação aprofundada. Na nossa
rústicos estão na posse dos trabalhadores. opinião, terão sido iniciativas políticas identifi-
No final do processo terão existido cerca cadas com projetos políticos partidários e que
de 500 cooperativas ou Unidades Coletivas de não terão conseguido uma adesão social sólida.
Produção (UCP) na área ocupada, geridas por Com uma inspiração semelhante nascem as
Comissões de Trabalhadores eleitas em plená- Assembleias Populares (AP), reunindo diver-
rio e que terão exercido um poder social mui- sos tipos de comissões e com a participação de
to significativo nas comunidades envolvidas. É estruturas representativas das forças armadas.
relevante ter em conta que, no sul do país, o Estruturas deste tipo nascem na capital (Ben-
peso político do PCP sobressai, ocupando esse fica, Pontinha) já depois do golpe de Estado
partido um papel destacado no poder munici- falhado de 11 de março de 1975. Estas primei-
pal estabelecido depois do 25 de Abril e con- ras AP na cidade de Lisboa destacam-se pela
quistando, nas primeiras eleições autárquicas participação de unidades militares comanda-
em dezembro de 1976, a grande maioria das das por oficiais com posicionamentos políticos
câmaras municipais. O PCP tem ainda um pa- progressistas. No quadro do pós-11 de Março
pel dirigente nos sindicatos dos trabalhadores surgem no interior dos quartéis, e dinamizadas
agrícolas. Aqui levantam-se questões centrais pelo próprio MFA, Assembleias de Delegados
na nossa análise, às quais iremos tentando res- de Unidade (ADU) compostas por oficiais, sol-
ponder, mas que assinalamos: qual o caráter dados e praças.
dos órgãos que nascem na mobilização social No verão de 1975, e com a profunda crise
da revolução? Quem dirige politicamente essa que atinge o Movimento das Forças Armadas
mobilização? Existe um projeto político pró- é conhecido o Documento-Guia da Aliança Povo-

16 - Uma alteração legislativa de 1976 cria a ZIRA, Zona de Intervenção da Reforma Agrária, que abrangia aproximadamente todo o ter-
ritório entre o rio Tejo e as serras do Algarve. No resto do país, a Reforma Agrária não seria aplicável.
17 - Partido Revolucionário do Proletariado-Brigadas Revolucionárias.

26
Dossiê
MFA no início de junho de 1975, que expressa A questão das AP prende-se com a monu-

40 anos depois de Abril


o projeto político dos setores mais radicais do mental crise do Estado do processo revolucio-
MFA. Pretende-se que AP sejam uma estrutura nário e ainda com outras questões fundamen-
de poder alternativo e expressão de uma demo- tais da revolução que temos abordado neste
cracia direta de tipo novo assente em estruturas texto, como o caráter desta enorme vaga de
locais (freguesias e concelhos) e distritais, con- auto-organização e a necessidade intrínseca
formadas por ADU, Comissões de Trabalhado- dessa vaga de assumir as funções do Estado -
res e de Moradores. As AP reuniriam aqueles ser a autoridade reconhecida pela sociedade e
órgãos do poder popular nos concelhos e distritos exercer, ou pelo menos tentar, o monopólio do
e formariam, finalmente, uma Assembleia Na- uso da violência.
cional Popular como órgão legislativo supremo. É salientada por autores com perspetivas
Numerosas manifestações são realizadas nas divergentes, e não podemos aprofundar agora
principais cidades do país. A radicalização po- o assunto, a crise de autoridade do Estado de-
lítica de muitos militares no decurso da revolu- corrente do 25 de Abril18. Nos meses seguin-
ção, que tanto deslumbrou os correspondentes tes manifesta-se uma incapacidade do aparelho
de imprensa internacional na altura, é um pro- repressivo em cumprir as suas funções, num
cesso que deve ser analisado com distanciamen- quadro que já descrevemos como de enorme
to e atendendo à situação revolucionária que o mobilização social e auto-organização popular.
país atravessava. Na nossa perspetiva, muitas A radicalização política e social que atravessa

A radicalização política de muitos militares no decurso da revolução,


que tanto deslumbrou os correspondentes de imprensa internacional
na altura, é um processo que deve ser analisado com distanciamento
e atendendo à situação revolucionária que o país atravessava.

das análises que foram feitas acerca deles de- toda a sociedade vai atingir também as estrutu-
vem ser lidas com grande cautela. Assim como ras do exército, abaladas pelas contínuas crises
as considerações sobre o caráter bonapartista políticas, e vai acabar por fracionar o MFA. É
do MFA (objeto de um debate intenso nas or- nesse quadro que, cremos, devemos interpretar
ganizações trotskistas, como a LCI e o PRT) o apoio de setores de militares às formas de
que, sendo reflexões de valor, foram negadas poder popular que se manifesta no Documento-
pelo próprio decorrer do PREC e a anulação da Guia.
“esquerda militar” em novembro de 1975. Efetivamente, é neste quadro de radicali-
As AP serão constituídas em boa parte do zação de setores do exército que deve ser co-
país nos meses seguintes. Entre agosto e outu- locada a questão do armamento do movimen-
bro de 1975 são formadas as das zonas da pe- to revolucionário. Este debate, que existiu no
riferia de Lisboa (Sintra, Cascais, Vila Franca, processo revolucionário português, é inevitável
margem sul do Tejo) e estendem-se às regiões num dado momento de qualquer processo revo-
mais urbanas e mais a sul do país. lucionário. O novo poder que surge do processo

18 - Sobre a crise do aparelho estatal salientamos a obra de Diego Palacios Cerezales, O poder caiu na rua: crise de Estado e ações coletivas na
Revolução Portuguesa (1974-75), Lisboa: ICS, 2003.

27
revolucionário precisa de afirmar-se contra o processo revolucionário. A derrota das unidades
antigo, essencialmente no que respeita à capa- militares de esquerda implicará o restabeleci-
cidade de reprimir, ou seja, o monopólio do uso mento imediato da hierarquia, a disciplina nas
legal da violência. tropas e o reforço dos setores mais conservado-
Praticamente todos os agrupamentos políti- res na sociedade.
cos à esquerda do complexo PCP-MDP terão No quadro da recomposição do Estado tra-
advogado a necessidade do armamento das co- dicional, os órgãos do poder popular reconver-
missões, das massas. Mas esta questão central ter-se-ão com parâmetros diferentes. As CT
da revolução é distorcida por uma das peculiari- transformar-se-ão em estruturas representati-
dades do processo português: o papel das forças vas dos trabalhadores nas empresas, em formas
armadas no espoletar no processo (o golpe dos semelhantes às de outros países ocidentais. As
capitães) e numa determinada visão pura dos autarquias democráticas, eleitas em 1976, esva-
militares do MFA, quando não da adesão aberta ziarão as CM de muitas das suas reivindicações.
de muitos dos mesmos ao processo revolucioná- A Reforma Agrária recuará lentamente até me-
rio. Uma visão que será de facto desenvolvida ados dos anos 1980. Num processo lento e com
pelo PCP na denominada Aliança Povo-MFA19. contradições, a onda de mobilização social será
Podemos usar este conceito para compreen- finalmente derrotada.
der as semanas que vão do início de setembro A modo de conclusão, valerá a pena enume-
de 1975 ao 25 de novembro. É a queda de Vasco rar alguns dos raciocínios centrais sobre o po-
Gonçalves com a assembleia do MFA em Tan- der popular na revolução portuguesa:
cos (a última que o movimento realiza) que o - No quadro de uma crise do Estado aberta
recusa como Chefe do Estado-Maior das FA, com o golpe do 25 de Abril, verifica-se uma vaga
após ter abandonado o cargo de PM. Começa-se de conflituosidade social de caráter anticapita-
a desenhar um poder reconstruído, institucional lista, que se expressa na formação de comissões
e que assume os princípios da democracia bur- eleitas e revogáveis, que terão sido vários milha-
guesa do Ocidente. O VI Governo de Pinheiro res e em âmbitos diversos.
de Azevedo vai sofrer uma fortíssima contesta- - Estas comissões tenderão naturalmente a
ção social (greves dos metalúrgicos e o cerco a afirmar-se como uma forma de poder novo nos
São Bento dos trabalhadores da construção civil seus âmbitos, mas não conseguirão elaborar um
a 12 de novembro) e assistir à proliferação de projeto político próprio, unido e alternativo. A
comissões e ao aparecimento dos Soldados Uni- sua base social de apoio divide-se e acaba por ser
dos Vencerão (SUV) ao longo destas semanas. derrotada pela “contrarrevolução”.
Se bem que se trate dos episódios ainda mais - A questão do uso da violência, do armamen-
obscuros da Revolução portuguesa, não pode- to, aparece-nos como fulcral, como em todos os
mos deixar de assinalar que este movimento processos revolucionários em geral, mas no
de soldados rompe definitivamente a unidade caso português com características especiais,
e a operacionalidade do exército (um processo como a existência de um movimento de milita-
originado com o nascimento do MFA e o 25 de res progressistas e o desenvolvimento da crise
Abril20). O pronunciamento do 25 de novembro social no seio das Forças Armadas no outono
de 1975 é um ponto de inflexão claro, o final do de 1975.

19 - CUNHAL, Álvaro (1976), A Revolução Portuguesa: o passado e o futuro, Lisboa: Avante!, pp. 126-181.
20 - Carecemos de uma investigação rigorosa do movimento social dos soldados. Os principais textos dos SUV foram publicados em:
(s. a.) - Os SUV em luta (manifestos – entrevistas - comunicados), Lisboa: Antídoto, 1975.

28
Dossiê
40 anos depois de Abril
Estufas - UCP Terra de Catarina, Baleizão

Reforma e Contrarreforma agrária


nos campos do sul
constantino piçarra

1. O despontar da luta nomeadamente a existente no Alentejo, onde


Realizado o 25 de Abril de 1974, a política 2% das explorações ocupam 57% da superfície
agrária que o Estado vai seguir, em consonân- total da terra arável2, como componente do au-
cia com o Programa do MFA (Movimento das mento da produtividade pretendido, que se vai
Forças Armadas), consiste na concretização de confrontar com os trabalhadores agrícolas dos
medidas que “dinamizem a agricultura”, ou se- campos do sul que, organizados em sindicatos e
ja, que possibilitem um aumento da produção integrando a vaga revolucionária que se desen-
no contexto de uma “reforma gradual da estru- volve pelo país no seguimento do golpe militar
tura fundiária”1. Estes são os objetivos que se do 25 de Abril, lutam por melhores salários e
colocam à SEA (Secretaria de Estado da Agri- garantia de emprego.
cultura), liderada pelo Dr. Esteves Belo, a quem Numa conjuntura marcada pela vinda dos
é entregue a gestão da agricultura durante a vi- soldados das colónias, pela quebra da emigra-
gência dos três primeiros governos provisórios, ção, motivada pela crise petrolífera dos anos
o que, temporalmente, abarca o período que vai setenta do século passado, e pelo regresso ao
de abril de 1974 até março de 1975. campo de muitos homens que se encontram a
É esta política destinada a fazer aumentar trabalhar na construção civil na zona metro-
a produção agrícola, através da mecanização e politana de Lisboa, por força da crise vivida
da intensificação cultural, sem colocar a ques- por este setor da economia, os trabalhadores
tão da alteração da estrutura fundiária do país, agrícolas, que em 1970 são nos três distritos do

1 - Cf. Decreto-Lei n.º 203/74, de 15 de maio.


2 - Cf. BAPTISTA, Fernando Oliveira, “O Alentejo entre o latifúndio e a reforma agrária”, Arquivo de Beja, vol. I, II Série, 1984, p. 273.

29
Alentejo 98 480, ou seja, 82,2% da população de 1974 sindicatos e ALA assinam contratos
ativa nesta região3, avançam para a sua organi- coletivos de trabalho de base distrital, com
zação em sindicatos. a duração de um ano, no âmbito dos quais os
Tendo por âmbito geográfico o distrito, es- agricultores aceitam receber trabalhadores dis-
tes sindicatos constituem-se do topo para a ba- tribuídos pelos sindicatos nos casos em que as
se. Primeiro formam-se as comissões distritais, explorações se encontrem em estado de suba-
a partir de reuniões convocadas para esse efeito proveitamento.
por núcleos de trabalhadores agrícolas com li-
gações a lutas passadas e ao PCP (Partido Co- 2. A agudização dos conflitos e as primeiras
munista Português) e aprovam-se as reivindi- medidas de reformismo agrário
cações onde, para além de aumentos salariais Enquanto a SEA vai desenvolvendo uma
e melhores condições de trabalho, tem papel política destinada à modernização da agricul-
central a garantia de emprego. Depois, por ini- tura, inserida num quadro de racionalidade
ciativa das comissões sindicais distritais, e sob capitalista, tendo como pano de fundo vastas
a supervisão dos secretariados executivos que áreas do latifúndio subaproveitadas, os confli-
delas emergem, é que se constituem as estru- tos nos campos do sul agudizam-se de forma
turas sindicais locais, por freguesia, as quais se significativa. À pressão exercida pelos assala-
instalam nas casas do povo, onde obtêm o apoio riados rurais temporários, no sentido de verem

A política agrária que o Estado vai seguir, em consonância com


o Programa do MFA, consiste na concretização de medidas que
possibilitem um aumento da produção no contexto de uma “reforma
gradual da estrutura fundiária”

logístico necessário à ação sindical, fator decisi- garantido o emprego, responde a maioria dos
vo na organização rápida dos sindicatos. agricultores com a recusa em aceitar estes tra-
São estas estruturas locais que, com o apoio balhadores e com a realização de atos de sabo-
das direções, no verão de 1974 vão discutir com tagem económica.
os empresários agrícolas, organizados na ALA É neste contexto que surgem as primeiras
(Associação Livre de Agricultores), as reivindi- medidas de reformismo agrário, já na vigência
cações dos trabalhadores rurais, iniciando-se o do III Governo Provisório, que toma posse a
processo nos concelhos onde a estrutura sindi- 1 de outubro de 1974 no rescaldo do 28 de Se-
cal é mais forte, daqui resultando a assinatura tembro e da demissão de António de Spínola de
dos primeiros acordos de trabalho rural, que Presidente da República. Criam-se o IRA (Ins-
em alguns concelhos só foram possíveis depois tituto de Reorganização Agrária) e a CIC (Co-
do recurso à greve. missão de Intensificação Cultural), cuja tarefa,
Com o fim destas convenções de trabalho, com base num corpo técnico vindo do marce-
que resolvem conjunturalmente o problema lismo e ligado ao capitalismo agrário, é fazer
do desemprego nos campos do Sul, no outono o levantamento das terras subaproveitadas

3 - Cf. BAPTISTA, Fernando Oliveira (1993), A Política Agrária do Estado Novo, Porto: Afrontamento, p. 405.

30
Dossiê
e, a 22 de novembro de 1974, publica-se o DL ao abrigo do instrumento legal que permite o

40 anos depois de Abril


n.º 653/74 que confere poderes ao IRA para arrendamento compulsivo das terras subapro-
proceder ao arrendamento compulsivo das pro- veitadas, mas sim nos termos do Decreto-Lei
priedades subaproveitadas, assim consideradas n.º 660/74, nomeando um gestor público para
segundo os critérios da CIC. a exploração agrícola intervencionada.
A ALA que, ao preconizar a “função social da A primeira intervenção ao abrigo deste di-
terra” e medidas destinadas “a impedir que haja ploma legal acontece em janeiro de 1975, no
terras mal exploradas”4, sobrepondo com esta concelho de Beja, freguesia de Santa Vitória, na
posição a defesa dos empresários capitalistas herdade do Monte do Outeiro.
em relação aos proprietários fundiários, acolhe As repercussões desta intervenção do Esta-
positivamente o DL n.º 654/74, numa perceção do na grande propriedade são enormes. Desde
clara de que a política reformista do Governo logo na consciência dos trabalhadores agrícolas
pode servir para estreitar o espaço por onde temporários, onde a luta pelo pleno emprego
possa surgir uma reforma agrária antilatifun- surge cada vez mais ligada à expropriação do
dista e anticapitalista. latifúndio e à realização da reforma agrária, o
Em contraste com esta posição, pequenos que tem tradução imediata nos objetivos de luta
e médios agricultores, prejudicados pelos au- dos assalariados rurais que, a 26 de Jjaneiro de
mentos significativos do gasóleo, adubos e ra- 1975, na 2.ª Assembleia Distrital do Sindicato
ções para animais, decididos pelo Governo em dos Trabalhadores Agrícolas de Beja, aprovam
agosto de 1974, radicalizam posições e passam duas resoluções que vão marcar, de forma de-
a defender o acesso às terras incultas. cisiva, toda a estratégia de luta futura dos tra-
Sindicatos rurais, pressionados pelos traba- balhadores agrícolas: a exigência imediata da
lhadores eventuais, defendem, por seu turno, realização da reforma agrária, com a expropria-
o arrendamento compulsivo das explorações ção do latifúndio, e a ida dos trabalhadores de-
agrícolas onde os empresários se recusam a re- sempregados para as explorações agrícolas que
ceber trabalhadores e praticam atos de sabota- necessitam de mão-de-obra, dando-se aí início,
gem económica. independentemente da vontade dos patrões, aos
É, pois, num quadro de grande conflitualida- trabalhos agrícolas necessários ao aumento da
de e de forte pressão do movimento social dos produção5.
assalariados rurais junto do poder central que o Concomitantemente, com este salto quali-
Estado decide intervir nos campos do Sul, não tativo, em termos de radicalização da luta dos

UCP Terra de Catarina, Baleizão

4 - Cf. Diário do Alentejo, de 27/05/74.


5 - Cf. Diário do Alentejo, de 27/05/74.

31
assalariados rurais, e influenciado por ela, o PS 3. A reforma agrária
(Partido Socialista) endurece as suas críticas Quando no seguimento do 11 de março de
à política da SEA, defendendo abertamente o 1975 se dá um reforço dos setores de esquer-
lançamento de uma primeira fase de reforma da no aparelho político-militar do Estado e,
agrária assente na expropriação dos latifúndios pela primeira vez a seguir ao 25 de Abril, as
e das grandes propriedades situadas nos perí- Forças Armadas e o Governo assumem, sem
metros de rega construídos pelo Estado; o PCP ambiguidades, como seus objetivos a realização
reformula a sua proposta de reforma agrária, a da reforma agrária, já esta, no terreno, está a
qual, a partir da I Conferência dos Trabalha- ser concretizada pelos trabalhadores, através
dores Agrícolas do Sul, realizada em Évora, a da formação de unidades coletivas de produção
9 de fevereiro de 1975, passa a concretizar-se nas terras ocupadas.
na luta pelo pleno emprego, portanto com o de- É, pois, nestas circunstâncias que a equi-
saparecimento de referências à divisão da terra pa do Ministério da Agricultura dos IV e V
expropriada, e o MFA passa a advogar, em ja- Governos Provisórios, liderada por Oliveira
neiro de 1975, uma reforma agrária que elimi- Baptista6, avança para a concretização do seu
ne o latifúndio e limite as grandes explorações projeto de reforma agrária, o qual assenta nas
agrícolas capitalistas. seguintes três linhas de ação: a) definir e apli-
Neste novo quadro de radicalização de luta car um quadro legal destinado à concretiza-
dos assalariados rurais, o Programa Económi- ção da reforma agrária; b) constituir um novo
co e Social, redigido por uma equipa liderada aparelho de Estado que não obstaculize a re-
por Melo Antunes, aprovado a 4 de janeiro de alização da política agrária definida; c) apoiar
1975 pelo MFA e pelo Conselho de Ministros a a conquista da terra que os assalariados vêm
5 de fevereiro, perde espaço político para a sua realizando.
concretização. De facto, este programa, ao pre- A primeira linha de ação traduz-se na elabo-
ver a expropriação, nas terras de regadio, das ração de quatro diplomas legais que são apro-
propriedades com mais de 50 hectares, ao pre- vados na reunião de Conselho de Ministros de
conizar esquemas de ensaio de reforma agrária 4 de julho de 1975, embora só publicados a 11
nas herdades do Estado, ao defender uma lei de de agosto, onde não comparecem os ministros
arrendamento rural protetora dos rendeiros e Mário Soares e Salgado Zenha que integram
contemplando mecanismos de arrendamento o IV Governo Provisório em representação
compulsivo em relação às explorações agríco- do PS. Estes instrumentos legais são o DL
las subaproveitadas, embora sendo um avanço n.º 406-A/75, que fixa as normas a que deve
na resposta às reivindicações de assalariados obedecer a expropriação dos prédios rústicos
rurais e pequenos e médios agricultores, quan- de grande dimensão, o DL n.º 407-A/75, que
do comparado com a política desenvolvida pela nacionaliza a grande propriedade beneficiada
SEA, mostra-se, contudo, claramente ultrapas- pelos aproveitamentos hidroagrícolas, o DL
sado pelos acontecimentos. No início de 1975 n.º 407-C/75, que põe fim às coutadas, com
as reivindicações que se impõem nos campos do exceção das turísticas, e o DL.º 406-B/75, que
sul são a expropriação da grande propriedade e estabelece os requisitos necessários para que o
a realização de uma reforma agrária que garan- Estado reconheça as novas unidades de produ-
ta o pleno emprego. ção da reforma agrária.

6 - A equipa do Ministério da Agricultura do IV Governo Provisório transita para o V Governo, com exceção de Mário Ruivo, que é subs-
tituído por Ulpiano de Nascimento como Secretário de Estado das Pescas.

32
Dossiê
40 anos depois de Abril
Trabalhadores no período da Reforma Agrária

Subjacente a esta legislação, nomeadamente têm por missão dinamizar e propor medidas de
ao DL n.º 406-A/75, que admite indemnizações, concretização da reforma agrária e são consti-
bem como o direito de reserva para os proprie- tuídos por cincos membros em representação
tários que explorem diretamente a terra, existe dos sindicatos agrícolas, ligas de pequenos e
um modelo de estrutura fundiária para a zona médios agricultores, MFA, Ministério da Ad-
da grande propriedade de sequeiro, o qual, to- ministração Interna e Ministério da Agricul-
mando por referência um estudo realizado para tura, cujo representante, o diretor do Centro
o concelho de Beja, institui uma relação de 65% Regional, preside.
de terra para as novas unidades de produção A terceira linha de ação desenvolve-se em
geridas coletivamente pelos trabalhadores, 25% dois sentidos: a) apoiar as unidades de pro-
para os pequenos e médios agricultores e 10% dução da reforma agrária, o que se faz dando
para o setor do capitalismo agrário. poderes aos diretores dos Centros para requi-
A segunda linha de ação traduz-se na cria- sitarem maquinaria agrícola a fim de a disponi-
ção dos Centros e Conselhos Regionais de Re- bilizarem aos trabalhadores da reforma agrária
forma Agrária, concebidos como estruturas e criando uma linha de crédito, sob a forma de
destinadas ao acompanhamento e ao apoio dos fundo de maneio, destinada a facilitar a ativida-
assalariados rurais no processo concretização de produtiva e a subsistência dos trabalhadores
de reforma agrária. Os Centros Regionais, oi- das unidades coletivas de produção; b) dificul-
to no total, correspondendo aos distritos de tar as manobras de contrarreforma agrária dos
Beja, Évora, Portalegre, Faro, Setúbal, Santa- grandes proprietários intervindo nessas ex-
rém, Lisboa e Castelo Branco, são estruturas plorações ao abrigo do DL n.º 660/74, de 22
descentralizadas do Ministério da Agricultura, de novembro, nomeando gestor público, após
dotadas de um corpo técnico e administrativo inquérito, ou arrendando compulsivamente as
progressista, onde o diretor tem a chefia de to- ditas explorações.
dos os serviços do ministério na sua zona de Enquanto os IV e V Governos Provisórios
ação, que é o distrito. Os Conselhos Regionais tentam concretizar no terreno o seu projeto
de Reforma Agrária, ao contrário dos Centros de reforma agrária, o movimento de ocupações
Regionais, que executam a política do Governo, não cessa. Em 31de julho de 1975 estão ocupa-

33
dos, no território que mais tarde vem a ser de- 4. A contrarreforma agrária
signado por ZIRA (Zona de Intervenção da Re- A reforma agrária construída no terreno
forma Agrária)7, 156 353ha (13,5%) e em 30 de pelos trabalhadores, cuja arquitectura legal é
setembro de 1975 a área ocupada sobe para 465 definida na vigência dos IV e V Governos Pro-
871ha, 40,1% do total8. A grande vaga de ocu- visórios, é alvo de forte contestação que, aliada
pações só ocorre a partir de outubro, na vigên- às contradições, fragilidades e erros do próprio
cia do VI Governo Provisório, com Lopes Car- processo, conduz à sua derrota. Tanto assim é
doso como Ministro da Agricultura e António que no ano agrícola de 1985/86 as unidades de
Bica como Secretário de Estado da Reestrutura- produção da reforma agrária ocupam apenas
ção Agrária, facto a que não são estranhos três 360 000 ha.
fatores: a) a perceção por parte de trabalhadores A política gizada por Oliveira Baptista à
e dos sindicatos que o Governo chefiado por Pi- frente do Ministério da Agricultura é de imedia-
nheiro de Azevedo é o prenúncio de uma rutu- to contestada, quer na Assembleia Constituinte,
ra no processo revolucionário; b) a extensão do eleita a 25 de abril de 1975, quer fora do Parla-
crédito agrícola de emergência para pagamento mento. Na Assembleia, pela voz dos deputados
dos salários dos trabalhadores das unidades de do PS e do PPD (Partido Popular Democrático)
produção da reforma agrária; c) a convicção, por o que se critica não é tanto a legislação sobre a
parte dos assalariados rurais, de que os proprie- reforma agrária, mas sim a continuação do pro-
tários das terras alvo de expropriação, nos ter- cesso de ocupações a que chamam de “desordem
mos das leis da reforma agrária, não iriam fazer agrária”, dramatizando as situações em que são
as sementeiras de outono. tomadas terras a pequenos e médios agriculto-
Este processo de ocupações, que dá expres- res.
são e torna realidade a reforma agrária, e que o Fora da Constituinte, a ALA, que até finais
Ministério da Agricultura dos IV e V Governos de 1974 se mostra apoiante crítica do Governo,
Provisórios, sem deixar de apoiar, o tenta en- à medida que as ocupações progridem, ameaça
quadrar no seio de uma visão de reforma agrária com a constituição de sistemas de defesa priva-
que é sua, origina a formação de mais de meio dos, disponíveis nas herdades para o confronto
milhar de novas unidades de produção geridas com os trabalhadores11.
coletivamente pelos trabalhadores, ocupando A alteração da correlação de forças no plano
uma área de 1 162 434ha9, dando emprego, se- político e militar leva, em setembro de 1975, à
gundo dados de final de outubro de 1976, a 71 constituição do VI Governo Provisório, com a
776 assalariados rurais (46 257 homens e 25 tomada de posse de uma nova equipa no Minis-
529 mulheres)10, o que configura uma tão pro- tério da Agricultura, chefiada por Lopes Cardo-
funda alteração nas relações de produção até en- so. Este Governo, embora mantendo um discur-
tão dominantes nos campos do sul que se pode so progressista, inicia o que se pode considerar
falar de uma “revolução na revolução”. a primeira fase da contrarreforma agrária nos

7 - A ZIRA abrange os distritos de Beja, Évora e Portalegre, os concelhos do sul do distrito de Setúbal, os concelhos de Idanha-a-Nova e
Vila Velha de Ródão do distrito de Castelo Branco, os concelhos de Vila Franca de Xira e Azambuja do distrito de Lisboa, onze concelhos do
distrito de Santarém e treze freguesias do distrito de Faro.
8 - Cf. BARROS, Afonso de, Do Latifúndio à Reforma Agrária: o caso de uma freguesia do Baixo Alentejo (1986), Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian.
9 - Cf. Idem, Ibidem.
10 - Cf. CARVALHO, Lino de (2004), Reforma Agrária: da utopia à realidade, Porto: Campo das Letras.
11 - Cf. Diário do Alentejo, de 03/07/75.

34
Dossiê
campos do sul com a publicação do DL n.º 236- inviabilização da reforma agrária, tal como vinha

40 anos depois de Abril


A/76 de 5 de abril, que alarga o direito de reser- sendo construída pelos trabalhadores, sem que
va a todos os proprietários, independentemente isso se faça no quadro de um projeto alternativo
de explorarem diretamente a terra ou não e de e claro de transformação da agricultura do sul.
dela retirarem os meios de subsistência. Nesta Esta ofensiva no plano político de contrarre-
linha de cedência à direita, mas tendo como ob- forma agrária, apesar da forte oposição e resis-
jetivo a constituição nos campos do sul de um tência movida pelos trabalhadores, é coroada de
forte setor cooperativo ligado ao PS, formado a êxito, realidade a que não é estranho também,
partir de cisões produzidas nas unidades coleti- como é referido, fragilidades, contradições e er-
vas de produção cujas direções são próximas do ros que surgem no campo dos trabalhadores.
PCP, desarticulam-se as estruturas criadas pe- Na terceira fase de ocupações (1 de outubro
los dois governos anteriores de suporte às polí- a 31 de dezembro de 1975), por iniciativa dos
ticas de reforma agrária, casos dos Conselhos e sindicatos, inicia-se um processo destinado à
Centros Regionais de Reforma Agrária. concentração das herdades ocupadas em gran-
Contestado na rua pela CAP (Confederação des unidades de produção designadas por UCP
dos Agricultores de Portugal), que se forma a (Unidades Coletivas de Produção), as quais cor-
partir dos escombros da ALA, legalizando-se em respondem às terras envolvendo uma freguesia.
22 de janeiro de 1976, Lopes Cardoso, vivendo Este processo de constituição de UCP de gran-
da contradição entre o enunciado progressista do de dimensão, inspirado no modelo soviético, que

A reforma agrária construída no terreno pelos trabalhadores,


cuja arquitectura legal é definida na vigência dos IV e V Governos
Provisórios, é alvo de forte contestação que, aliada às contradições,
fragilidades e erros do próprio processo, conduz à sua derrota.

discurso e a ação concreta, é substituído por im- não é a opção natural dos trabalhadores, tem
posição do PS, já na vigência do I Governo Cons- a vantagem de facilitar o controlo político dos
titucional, por António Barreto, que toma posse sindicatos agrícolas e do PCP sobre elas, mas
a 5 de novembro de 1976. não favorece o seu funcionamento democrático,
Apesar de no mesmo dia em que António o que se revela uma fragilidade. A gestão con-
Barreto tomou posse, o CDS (Centro Democrá- centra-se num grupo restrito, às vezes numa só
tico Social) ter sido derrotado no Parlamento, na pessoa, a informação não circula e a participação
Comissão de Agricultura, ao ver chumbado pela dos trabalhadores nas assembleias gerais é re-
esquerda o seu projeto de suspensão das expro- duzidíssima.
priações que vinham sendo realizadas nos termos Uma segunda fragilidade em todo o processo
do edifício legal de reforma agrária definido pelos prende-se com a relação que se estabelece entre
IV e V Governos Provisórios, o novo ministério a reforma agrária e a pequena produção. A ocu-
acerta o passo entre o discurso e as medidas con- pação de terras de pequenos e médios agriculto-
cretas, desenvolvendo o Estado a partir daqui, e res, facto que não sendo significativo em termos
de forma mais acentuada depois da promulgação de área, cerca de 17 000 hectares, ao ser drama-
da Lei n.º 77/77, de 29 de setembro, mais conhe- tizado e ampliado por todos os que se opõem
cida pela Lei Barreto, uma ação determinada de às transformações nas relações de produção

35
nos campos do sul coloca a pequena produção Neste quadro, e no contexto das reformas da
contra a reforma agrária, retirando-lhe base de PAC (Política Agrícola Comum), duas realidades
apoio e isolando-a socialmente. Por outro lado, emergem na sociedade portuguesa. A primeira
o movimento revolucionário nos campos, ao não prende-se com a formação de um grupo de grandes
possibilitar o acesso à terra ocupada por par- proprietários, com os seus patrimónios reconstitu-
te dos pequenos produtores, que não possuem ídos, facto resultante da vitória da contrarreforma
força organizativa para a conquistar, cava o di- agrária, vivendo da renda recebida da União Euro-
vórcio entre a reforma agrária e os pequenos peia, sem que tal signifique qualquer esforço produ-
agricultores, aspeto reforçado pelas relações de tivo, o que não pode deixar de merecer uma crítica
afastamento entre UCP, pequena produção e se- veemente, uma vez que se está perante a obtenção
areiros, realidade que favorece o avanço da con- de rendimentos avultados derivados unicamente do
trarreforma agrária no plano político e social. facto de se ser proprietário. A segunda realidade
A conceção ideológica dominante no seio dos emergente tem a ver com a discussão em torno do
assalariados rurais, que os leva a apelar a uma rural e do seu desenvolvimento, a qual tem estado
aliança entre operários agrícolas e pequenos descentrada do incremento agrícola e, por maioria
agricultores, os quais, no entanto, não têm lugar de razão, de qualquer reestruturação fundiária, pa-
na sociedade que se está a construir, fragiliza ra se circunscrever às potencialidades do campo, tal
as forças da reforma agrária e reforça a base de como são valorizadas pelo imaginário urbano que,
apoio da contrarreforma agrária. no fundo, o reduz a um espaço depositário de tradi-
ções, cultura e estilos de vida, existindo à margem
5. A questão da terra, hoje da atividade produtiva que lhe conforma o perfil.
Com a reforma agrária liquidada, Portugal O desenvolvimento rural não tem futuro se
adere, em 1986, à Comunidade Europeia, espaço perspetivado à margem do incremento agrícola,
onde perde importância o contributo da agricultura o que pressupõe uma agricultura produtiva, capaz
para o desenvolvimento do país. A questão da terra, de garantir a independência alimentar do país, o
central no pós-25 de Abril, apaga-se em simultâneo que, aliado à irracionalidade económica em que
com o definhamento da agricultura em confronto vive a grande propriedade, coloca como uma ne-
com as outras economias da União Europeia, trans- cessidade do presente a realização de uma reforma
formando-se numa realidade cada vez menos pro- agrária que, no novo contexto em que se vive e na
dutiva, onde sobressai uma acentuada dependência aprendizagem dos erros do passado, possa reani-
do país em relação ao estrangeiro. mar a vida de vilas e aldeias dos campos do sul.

Trabalhadores da UCP Muralha de Aço, Marmelar, Vidigueira

36
Dossiê
40 anos depois de Abril
Os 3 D da Derrota Revolucionária.
Despolitização, desideologização,
desmobilização
luís trindade

É na terceira estrofe da canção Bem Bom, da estrutura moral da sociedade portuguesa


com que a banda Doce representou Portugal no oriunda do salazarismo. Quanto ao objeto cul-
Festival Eurovisão da Canção em 1982, que eu tural em si – o festival da canção – faríamos
encontro o exemplo mais dramático das rápi- ainda pior se o olhássemos como coisa menor:
das transformações culturais na sociedade por- não só porque, na sua estrutura competitiva e
tuguesa depois da revolução. A letra da canção no desenho (visual e sonoro) televisivo do seu
narra, de uma forma deliberadamente linear, a formato, se trata de um documento ímpar so-
sucessão das horas de uma longa noite de amor bre os horizontes de expectativa e as estruturas de
(da uma até às sete da manhã), pontuadas pela sentimento, enfim, a cultura e a ideologia no seu
interjeição bem bom. Faríamos mal em menori- sentido mais lato ao longo das últimas déca-
zar a relevância social e histórica deste acon- das do século XX, mas também porque foi em
tecimento: quatro mulheres celebrando uma Portugal um dos poucos espaços onde se pro-
noite de sexo em público (e ser essa a canção es- porcionou um encontro entre cultura popular
colhida para representar o país no estrangeiro) e cultura erudita, encontro de imenso signifi-
são sinal de uma transformação radical na base cado político. Estou aqui a pensar sobretudo,

37
mas não só, nos temas compostos por Ary dos ções para serem cantadas na televisão) e a forma
Santos, nomeadamente alguns vencedores do como as Doce são mostradas e a sua imagem é
festival como Desfolhada Portuguesa e Tourada. explorada procede a uma inversão de sentido,
É esse valor documental do festival que onde o sujeito feminino do prazer na canção é
mostra o desenrolar de uma verdadeira revo- transformado no objeto do desejo masculino no
lução cultural em Portugal na segunda metade espetáculo televisivo.
do século XX (que inclui a revolução dos costu- O significado histórico da canção podia en-
mes, mas não se esgota nela, e cuja cronologia tão resumir-se da seguinte forma: as Doce são
é mais extensa do que a da revolução política, um produto típico da cultura pós-revolucioná-
antecedendo-a e sucedendo-lhe), nomeadamen- ria porque incorporam algumas das formas de
te no que diz respeito à sexualidade e questões emancipação da revolução cultural que se esten-
de género. Assumir publicamente o prazer e o deu dos anos 1960 aos anos 1980, por um lado,

Faríamos mal em menorizar a relevância social e histórica deste


acontecimento: quatro mulheres celebrando uma noite de sexo
em público (e ser essa a canção escolhida para representar o país
no estrangeiro) são sinal de uma transformação radical na base da
estrutura moral da sociedade portuguesa oriunda do salazarismo.

desejo sexual feminino no festival da canção – enquanto por outro já se encontram submetidas
com tudo o que isso tem de subversivo numa à nova ordem da cultura audiovisual entretan-
sociedade patriarcal e moralista – é algo que já to emergente. É aqui que a tal terceira estrofe
fazia aliás parte da história do próprio festival de que falava no início se torna tão importante
da canção, do chocante verso “quem faz um fi- para assinalar a rapidez da transformação. Já
lho, fá-lo por gosto”, cantado por Simone de Oli- de madrugada, num momento de repouso, os
veira em 1969, até temas onde mulheres tomam amantes ouvem, num “disco antigo”, “hoje é o
a iniciativa na relação heterossexual (o que vai primeiro dia do resto da tua vida”. A referência
além do assumir que se tem prazer nessa mes- não podia ser mais sintomática, pois esse verso
ma relação) sem escândalo, como, por exemplo, organiza a temporalidade de um dos mais em-
os temas Eu Só Quero, de Gabriela Schaaf, e blemáticos manifestos da geração musical que
Qualquer Dia, Quem Diria, de Concha, segundo tinha há bem pouco tempo composto a banda
e sexto classificados no festival de 1979, respe- sonora da revolução: a canção Primeiro Dia, do
tivamente (e, em mais um encontro entre dife- álbum Pano-Cru, editado em 1978 por Sérgio
rentes níveis da hierarquia cultural, compostos Godinho. Nela, o cantor traça um percurso bio-
por António Pinho e Nuno Rodrigues, da Ban- gráfico que vai do momento da aprendizagem –
da do Casaco). Esta pré-história da canção das “a princípio é simples, anda-se sozinho” – passa
Doce complexifica o significado da noite de Bem pela rutura e desilusão – “Depois vêm cansaços
Bom: em 1982, qualquer potencial subversivo e o corpo fraqueja” – até ao ponto chave do ine-
da conquista do direito ao prazer e ao corpo já vitável recomeço cíclico, quando “o tempo fez
estava fortemente condicionado pela fortíssima cinza da brasa” e se pode então apontar a uma
mediação do objeto audiovisual (estas são can- nova “maré cheia que virá da maré vaza”. Ora, o

38
Dossiê
que é interessante nesta provocada pelas formas

40 anos depois de Abril


letra, o que a torna tão de exploração renova-
emblemática, é o modo das pelo capitalismo
como me parece possí- tardio e pelas novas
vel ler na estrutura nar- formas da cultura tele-
rativa do que parece ser visiva. Nesse sentido,
uma confissão íntima, o seu interesse deve-se
um verdadeiro sinal de em parte à forma como
transformação históri- relaciona diretamente a
ca. É como se o ciclo do crítica da exploração às
cantor militante – com- novas formas do merca-
bate político, derrota, do e do entretenimento.
regeneração – fosse o Por outras palavras, ar-
do próprio país revolucionário, crescendo para ticulando, no mesmo texto, a sobrevivência de
a revolução, sofrendo a derrota e procurando, traços da cultura política fascista, a dependên-
naquela passagem dos anos 1970 para os 1980, cia do país e da classe trabalhadora em relação
reencontrar um caminho entre o desencanto e às novas formas de globalização capitalista e o
uma réstia de esperança, agora já necessaria- papel desmobilizador de objetos culturais como
mente mais madura mas menos empenhada as telenovelas, o papel do anticapitalismo ganha
na transformação. O interesse da citação que a um novo peso no discurso do cantor antifascista.
canção das Doce fazem da letra de Sérgio Go- Esta relação, que eu gostava que não perdês-
dinho está assim no modo como, por um lado, semos de vista, já tinha sido articulada em 1976
apresenta um processo decisivo de transforma- em Fernandinho, Vai ao Vinho, de Júlio Pereira.
ção histórica ou, melhor ainda, como sinaliza Aí, mais explicitamente ainda do que em FMI,
que aquele já é um momento pós-revolucionário a narrativa do crescimento – de Fernandinho,
rigorosamente falando, e como, por outro lado, protagonista do álbum – parte de um panorama
nos dá a medida da rapidez cronológica dessa dos aparelhos ideológicos do fascismo (a família,
transformação: em apenas quatro anos, a músi- a escola, a religião, a fábrica, as forças armadas)
ca intimista do escritor de canções torna-se no e de um retrato de uma sociedade feita de opres-
“disco antigo” da canção pop. são, de conformismo e de pequena corrupção,
Há vários outros lugares onde esta mudança para um retrato da política e sociedade pós-re-
e a sua rapidez podem ser verificadas. Na longa volucionárias. É o que nos é dado no tema Vidas
performance-protesto FMI, José Mário Branco Sociais da Capital – um Café, onde o Portugal de
reproduz exatamente a mesma estrutura narra- 1976 surge feito de gente ociosa e sem desti-
tiva de Primeiro Dia. Após uma longa e deta- no, fútil ou depravada e, sobretudo, apostada em
lhada sátira ao país pós-revolucionário, Branco conquistar um lugar ao sol na nova sociedade
passa também por um momento catártico, de de consumo (enquanto, pelo meio, os trabalha-
derrota e desilusão, depois do qual é preciso re- dores ficam de fora). A afinidade narrativa com
aprender a viver. “Nasce um novo dia e no braço FMI não podia ser mais clara. Em primeiro lu-
outra asa”, ouve-se em Primeiro Dia, a que José gar, porque o único laivo de qualquer tipo de
Mário Branco acrescenta “e se inventássemos o subjetividade política nos chega pela figura do
mar de volta?”. A diferença entre Primeiro Dia e “revolucionário de café” (a canção é um rol de
FMI está em que, enquanto a primeira mantém o curtas intervenções de tipos sociais bem reco-
processo histórico no plano pessoal, já a segun- nhecíveis), muito semelhante ao “ó filho” que
da procede a uma funda crítica da despolitização serve com alvo da crítica de José Mário Branco

39
Gabriela Cravo e Canela, a primeira novela brasileira a ser transmitida em Portugal

em FMI à despolitização pós-revolucionária, e sileiras transmitidas pela RTP. Mais: ainda se-
pela boca do qual Paulo de Carvalho canta “já gundo os mesmos autores, é precisamente por
estou farto de cafés / merda de monotonia / estas formas despolitizadoras que as forças do
há que andar com a revolução / e acabar com a fascismo se prolongam pela democracia, agora
burguesia”. Em segundo lugar, o sentido deste em versão soft, e portanto muito mais insidiosa.
militante inútil e de toda a vida vazia do café é E, no entanto, a “imagem batida” da teleno-
enquadrado pelas vozes da sedução publicitária. vela a roubar militantes à revolução é uma sim-
Voz feminina (Ana Zanatti): “Se tem dinhei- plificação que temos forçosamente de matizar.
ro, não fique com ele em casa. Compre já qual- Como Isabel Ferin Cunha mostrou em “A Revo-
quer coisa”. lução da Gabriela: o ano de 1977 em Portugal”,
Voz masculina (Júlio Isidro): “Vá ao encontro a chegada da novela – que é aqui um aspeto es-
do sorriso dela com a pasta dentífrica Draculi- pecífico de um fenómeno mais geral, o da emer-
na”. gência da nova cultura audiovisual que inclui
O quadro é todo ele muito familiar, sobre- também o festival da canção – foi muito mais
tudo no âmbito desta retórica militante, mas do que um processo de despolitização. Lendo de
não deixa por isso de ser fundamental para perto o que se escreveu sobre Gabriela na crítica
perceber a mudança de paradigma político pós- de televisão de alguns jornais portugueses, Fe-
revolucionário. Numa imagem já muito glosada rin Cunha consegue identificar uma deslocação
sobre o que aconteceu à larga politização social das subjetividades políticas apresentadas pelas
após o PREC, os portugueses pareciam ter tro- personagens e narrativa da novela ao longo
cado as suas noites de militância pelos serões dos meses da transmissão. Durante este perío-
televisivos. As vozes publicitárias de Júlio Pe- do, críticos de esquerda, como Mário Dionísio
reira pertencem a figuras então bem conhecidas e Mário Castrim, passaram de uma leitura da
da rádio e da televisão e a lista de entreteni- exploração e desigualdade social num sistema
mentos do interlocutor de José Mário Branco dominado pelos coronéis (tratava-se, afinal, da
em FMI inclui todas as primeiras novelas bra- adaptação de um romance de Jorge Amado),

40
Dossiê
para uma leitura muito mais centrada em ques- nesse mesmo ano, é um dos sinais mais visíveis

40 anos depois de Abril


tões de género. Em poucos meses, aos proble- desta cultura emergente), entrevistou a atriz e
mas mais facilmente reconhecíveis no interior apresentadora Ana Zanatti, voz da curta e cíni-
da tradição da luta de classes, são adicionadas ca frase publicitária da canção de Júlio Pereira.
as questões da emancipação da mulher e da as- Zanatti era então uma estrela em ascensão no
sunção do desejo. A dado momento, portanto, a universo televisivo, e a entrevista, com referên-
telenovela podia ser vista como alargamento, e cias a um recente nu integral numa peça, à sua
não recuo, do campo de subjetividades políticas relação desprendida com a família («Não tenho
aberto pela revolução. laços de sangue com ninguém, a não ser com
Regresso aqui ao meu quadro inicial, quando as pessoas que escolho”) e aberta quanto à se-
sugeri que, por exemplo, pelo Festival da Can- xualidade (“Para mim, normal é cada um fazer
ção as formas emergentes da cultura do Portu- o que quer e lhe apetece. Contrariar tendências
gal pós-revolucionário, e muito em especial a (…) é que é uma anormalidade”) parecem colo-
nova cultura audiovisual organizada em torno cá-la no centro das transformações sociais que,
dos nomes, temas e géneros televisivos, devem naquele momento, estavam a levar a revolução
ser vistas politicamente, isto é, como instâncias mais longe aos campos do género, do desejo e do
onde se negoceiam subjetividades, por vezes em corpo. Ironicamente, Zanatti revela-se também
clara oposição, ou recuo, ao impulso emancipa- desconcertantemente próxima do consumismo
dor da revolução, outras vezes procurando levar que a sua participação no disco de Júlio Pereira
esse impulso mais além. Mas sugeri também era suposto denunciar: “Não sei viver sem di-
que, mais cedo ou mais tarde, da estética tele- nheiro. Não sei, nem gosto. E quase tudo o que
visiva à lógica da concorrência, tudo o que po- aprecio é caro”. Há nestas palavras uma vonta-
deria abrir o campo da política (Simone, Concha de evidente de provocar o leitor conservador.
ou Gabriela Schaaf assumindo o prazer e a ini- No essencial, porém, a conjugação entre a as-
ciativa) é rapidamente apropriado por uma esté- sertiva afirmação feminina e a nova sociedade
tica autoritária, onde corpos só aparentemente de consumo que aí vem (e de que audiovisual
muito emancipados como os das Doce são de será a expressão mais acabada) deita a perder
novo submetidos à lógica patriarcal da instru- o que na força da sua posição pudesse haver de
mentalização feminina e do olhar masculino. especificamente político: “Sou feminista sem
Este é um ponto central para a compreen- estar ligada a nenhum movimento organizado.
são da política pós-revolucionária, como procu- Dentro da minha organização pessoal luto pelos
rarei demonstrar antes de concluir. Em junho meus direitos (…)”. Numa palavra que sinteti-
de 1978, o semanário Se7e (jornal cuja criação, za tudo, do feminismo “organizado” à “minha

“Sou feminista sem es-


tar ligada a nenhum movi-
mento organizado. Dentro
da minha organização pes-
soal luto pelos meus direi-
tos (…)”.
Ana Zanatti

41
organização pessoal” perdeu-se, ou estava-se lução cultural da década de sessenta à década
naquele momento a perder, o sentido coletivo da de 1980 na sociedade portuguesa a partir da
política, ou até mais ainda a ideia de movimento. ideia de desfasamento. Fundamentalmente de-
De algum modo, parece ter-se perdido a opor- vido à estrutura da sociedade portuguesa – ní-
tunidade histórica de transformar esta energia veis de alfabetização e urbanização muito baixos
individual num movimento verdadeiramente li- até muito tarde, estreiteza da classe média (e a
bertador para além daqueles que, mulheres ou consequentemente massificação universitária
homens, pertenciam à classe média em ascensão. tardia, por exemplo) –, tudo se passa como se
É o individualismo da classe média, mais do que fenómenos estruturais do que foram os 1960
as mulheres, o que Ana Zanatti representa. E, em noutros países europeus só tenham ocorrido em
certo sentido, é ainda isto que as Doce nos mos- Portugal já bem dentro dos anos 1980, ou pelo
tram. Os campos da experiência alargaram-se menos no momento do refluxo revolucionário.

Parece ter-se perdido a oportunidade histórica de transformar esta


energia individual num movimento verdadeiramente libertador para
além daqueles que, mulheres ou homens, pertenciam à classe média
em ascensão.

a gestos até há pouco considerados inaceitáveis Mais especificamente, se os sixties foram esse
por obscenos na sociedade portuguesa, mas tudo momento explosivo de hibridez política (bran-
está agora desenhado para o prazer privado. cos e negros, mulheres e homens, estudantes e
Mais decisivamente, as catarses geracionais dos operários, mas também o público e o privado),
escritores de canções que haviam sido, mesmo um momento em que o radicalismo político
antes, os autores da voz coletiva da revolução, combinou grandes ideologias revolucionárias
não estão muito distantes deste enfoque no indi- coletivas com a emergência de inúmeros atores
víduo: Primeiro Dia e outras canções contempo- sociais (as mulheres, os jovens) e as suas causas
râneas de Sérgio Godinho (mas algo semelhante (o direito ao prazer e à autonomia), pode então
poder ser lido também no final de FMI) são um talvez sugerir-se que socialmente essas condi-
reencontro consigo próprio e, pelo menos provi- ções só se reuniram em Portugal a caminho dos
soriamente, não abrem qualquer perspetiva à ex- anos 1980. Esquematizando: a política portu-
pressão de formas coletivas. E é ainda, aflorando guesa está fortemente radicalizada a partir dos
apenas ao de leve outro fenómeno chave daquele anos 1960 até à revolução, quando ainda não
momento, a estrutura e o significado social do há fenómenos de massificação capazes de levar
novo rock Português, enquanto momento em que esse radicalismo além das formas mais tradicio-
a passagem do antifascismo para o anticapitalis- nais da lutas operárias e camponesas; quando a
mo se consuma na música popular portuguesa, sociedade urbana se massificou, ou pelo menos
mas apenas quando já não há sujeitos coletivos (a quando há uma cultura de massa que exprime
imagem da juventude, como a da nova mulher, já os anseios desses novos grupos emergentes, isso
estavam completamente colonizadas pelo merca- ocorre no interior do espírito individualista dos
do) para poder fazer da rebeldia revolta. anos 1980, quando a energia coletiva da trans-
Olhando para o período como um todo, pode formação revolucionária já não parecia mais que
talvez sugerir-se uma leitura histórica da revo- um disco antigo.

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25 de Abril - Mesa Redonda ENTREVISTA

Concentração - 25 de Abril de 1974, Lisboa | Fotógrafo: Estúdio Horácio Novais

Tomando como pretexto os 40 anos do 25 de Abril, decidimos convidar os historiadores


António Reis e Manuel Loff e a antropóloga Paula Godinho para uma conversa
sobre as tensões políticas e sociais que atravessaram esse período histórico, o modo
como a historiografia e outras ciências sociais o têm trabalhado e a forma como
o 25 de Abril tem vindo a ser lido e apropriado.
MODERADORES: MIGUEL CARDINA E LUÍS TRINDADE

Luís Trindade (LT) – Começaria com uma pergunta ção, organizando uma rede de oficiais milicia-
que nos remete para a dupla condição que assumi- nos que colaboraram com os oficiais do quadro
mos aqui, a de cientistas sociais empenhados na pro- permanente no desencadear do golpe. E depois
dução de conhecimento e a de cidadãos com ideias estive no 25 de Abril de armas na mão, ocu-
políticas. A minha primeira pergunta parte da no- pando as instalações da RTP no Lumiar. O meu
ção de que o conhecimento social que produzimos primeiro olhar sobre o 25 de Abril é o do parti-
é determinado pela natureza do acontecimento. O cipante ativo. Só depois disso é que refleti histo-
que é que para cada um de vocês foi a revolução e, ricamente sobre o que foi o 25 de Abril.
em consequência, que tipo de historiografia acham Nos anos 1980, mais do que os historiado-
que este acontecimento específico exige? res, são sobretudo os cientistas políticos e os
sociólogos que refletem sobre o episódio. Lem-
António Reis (AR) – Eu estou aqui numa bro-me do número especial da Revista Crítica de
posição singular em relação ao 25 de Abril. É Ciências Sociais, por ocasião do 10.º aniversário
que também fui ator e, portanto, é para mim do 25 de Abril, e a participação dos cientistas
um acontecimento também existencial, que me políticos e dos sociólogos aí é dominante. Será
marcou profundamente. Participei na conspira- sobretudo a partir dos anos 1990 que se começa

43
a refletir no plano historiográfico sobre o 25 1970 que o povo está nos campos. Os antropó-
de Abril e o PREC, já com base em memórias logos não vão à procura do povo nas cidades.
e num conjunto mais diversificado de fontes. É Só no final dos anos 1980 e já depois disso, na
nessa altura que publico Portugal Contemporâ- década de 1990, é que se vai em busca do povo
neo e, um pouco antes, José Medeiros Ferreira das cidades.
tinha feito o seu Ensaio Histórico sobre a Revo-
lução do 25 de Abril. É aqui, de certa maneira, Manuel Loff (ML) – Eu sou o mais novo dos
que se inaugura a historiografia do 25 de Abril. três, tinha 9 anos no 25 de Abril. Uma das pri-
Fomos pioneiros, mas hoje, naturalmente, es- meiras memórias políticas que tenho é a de,
tamos ultrapassadíssimos… Há uma nova ge- com essa idade, ver as ruas do meu país pejadas
ração de historiadores que se vem ocupando, e de magalas, como então se dizia, de soldados,
bem, do 25 de Abril. e a perspetiva da guerra ser discutida na famí-
lia. Lembro-me de os meus pais me dizerem, e
Paula Godinho (PG) – Eu tinha 13 anos e a ao meu irmão, “vocês não se preocupem, para a
única coisa que fazia era reunir-me com os ti- guerra não vão, se for preciso temos um contac-
pos no liceu, muito mais velhos do que eu, que to em França”. A minha memória individual é,
eram do MAEESL (Movimento Associativo portanto, a do fim da guerra colonial. Eu entro
dos Estudantes do Ensino Secundário de Lis- nesse ano de 1974/75 no ciclo preparatório e
boa). Para mim, apesar de muito nova, o 25 de lembro-me de sermos todos miúdos hiperpo-
Abril marca também uma rutura do ponto de litizados. Se depois, eventualmente a partir de
vista pessoal. É um corte no tempo, que traz 1978/79, as sociabilidades voltaram a ser mar-
novas condições de inteligibilidade. Por exem- cadas pelas rivalidades entre os clubes de fute-
plo, a Antropologia que existia anteriormente bol, durante esse período eram as rivalidades
era uma Antropologia virada para a constru- dos partidos políticos.
ção da nação, muito virada para dentro, e fa- Quanto ao 25 de Abril, a Paula falou de ru-
zendo também etnografias coloniais. A Antro- turas, eu gostaria de notar algumas continui-
pologia que não seguia essa linha só aparece dades. A primeira: o golpe militar é um episó-
nos anos 1960: é o caso de José Cutileiro, de dio perfeitamente inscrito na lógica da história
Joyce Riegelhaupt… O 25 de Abril vai tam- contemporânea portuguesa e sobretudo na
bém representar uma rutura a este respeito: lógica dos últimos trinta anos da ditadura. O
abrem-se novos terrenos e surge uma nova ge- 25 de Abril surge 29 anos depois do fim da II
ração, alguns deles até então no estrangeiro, Guerra Mundial. No caso português, o fim da
que olha para o país de outra maneira. Esse II Guerra Mundial é o arranque do processo de
país saído da revolução torna-se fascinante industrialização e de um conjunto de transfor-
para aqueles que descobrem fenómenos como mações sociais que, aliás, o próprio Salazar te-
o comunitarismo, que tinha sido estudado por mia. Feitas, não no final do século XIX, mas já
Jorge Dias, mas agora nos formatos da etno- depois da II Guerra Mundial, reúnem todas as
grafia do processo revolucionário. Parte-se à condições para que essa rutura possa ter aberto
descoberta do povo, uma ideia que atrai tam- um processo revolucionário. Neste sentido, eu
bém muitos antropólogos estrangeiros que não sei se as transformações que se operaram
vêm para Portugal estudar os limites da co- aí, se se tivessem operado em 1890, não terí-
munidade e as dimensões do conflito. É o caso amos tido no 5 de Outubro de 1910 um pro-
de Brian O’Neill. Há agora uma redescoberta cesso que mais ou menos tivesse antecipado o
do rural mas já não do rural do Estado Novo. Outubro soviético. Nesse sentido, o 25 de Abril
Ainda assim, continua a achar-se nos anos é perfeitamente lógico.

44
E o golpe também é lógico - por mais sur- AR – É sabido que temos três correntes na his-
preendente que seja, meses depois do que se toriografia portuguesa sobre o 25 de Abril. A

ENTREVISTA
passou no Chile de Pinochet, termos em Portu- corrente que privilegia a ação dos militares e
gal um exército que age num sentido comple- que tem em Medeiros Ferreira o seu principal
tamente diferente. Mas tínhamos a guerra. A representante. A corrente que privilegia a ação
média de idades dos jovens capitães é de 32/33 das massas populares e que terá em Boaventura
anos, com uma média de dez anos de sucessivas de Sousa Santos um dos seus representantes.
comissões em África, mesmo não consecutivas, E a corrente que dá mais atenção aos parti-

25 Abril - Mesa redonda


que cresceu com referenciais culturais, éticos e dos políticos. De certo modo, insiro-me nessa
até estéticos diferentes das gerações militares corrente. Mas ressalvo que os partidos políti-
que os antecederam, onde, no tédio tenso da es- cos atuam aqui sempre numa interação dialé-
pera do combate, se canta Zeca Afonso e outras tica com as massas populares, por um lado, e
canções proibidas. com os militares, por outro. E assim nasceram
O golpe é perfeitamente lógico e a revolu- três tipos de historiografia sobre o 25 de Abril.
ção que dali sai inscreve-se numa evolução de Qualquer delas tem bons argumentos para sus-
trinta anos da sociedade portuguesa, de poli- tentar a sua tese. Não vou aqui defender a mi-
tização de massas, da emigração, da guerra… nha dama, já o fiz noutras ocasiões, limito-me a
muitos dos processos sociais que o 25 de Abril anotar a sua existência. A historiografia do 25
desencadeia… é verdade que o 25 de Abril traz de Abril não pode prescindir de qualquer destes
a igualdade entre homens e mulheres, mas três elementos.
também esse é um processo que começa antes.
Portugal chega ao 25 de Abril com níveis de PG – Uma mulher do Couço, uma senhora
atividade feminina superior ao da Espanha e da analfabeta que conheci com cerca de 70 anos,
Itália e quase ao nível da França. E ninguém fez dizia-me que depois do 25 de Abril, depois de
aqui um Maio de 68… Simplesmente existiam terem sido ocupadas as terras e surgirem as
250 mil homens permanentemente em armas e, cooperativas, existiam reuniões onde votava e
dos 1 milhão e 400 mil que saem do país, a sua que se procedia a contagens. Ela dizia-me que
grande maioria são homens. só aí sentiu que verdadeiramente contava. O 25
Por outro lado, o 25 de Abril termina com a de Abril foi para este proletariado do sul que
velha discussão de saber se os regimes liberais ocupou terras abandonadas, para esta gente
em Portugal conseguiam ou não ser democrá- que havia crescido em ditadura, um passo im-
ticos. A democracia chegou a este país com o portante na invenção da democracia.
25 de Abril. Temos a evidente sensação que se Em relação aos trabalhos que vêm sendo
regride atualmente numa série de coisas mas é produzidos sobre esta “invenção da democra-
muito difícil voltar atrás. cia”, saliento o estudo de Sónia Vespeira de Al-
meida sobre as campanhas de dinamização do
LT – Foram aqui citados vários sujeitos históricos: MFA, que se deslocam pelo país - sobretudo
as mulheres, os capitães, o povo… Certamente que pelo país do norte, porque se entendia que o
estão de acordo que a revolução é pluriforme e norte é que precisava de ser “dinamizado”. A
muitos agentes contribuíram para ela. Gostava Sónia Almeida fez um trabalho multissituado,
de saber se consideram que se deva privilegiar em vários lugares onde passaram essas cam-
algum sujeito pela importância que adquiriu ao panhas, e recolheu as memórias “pastorais” e
longo do processo. E, consoante a vossa escolha, “contrapastorais” - para utilizar a dicotomia de
que tipo de narrativa sobre a revolução se pode fa- Raymond Williams - acerca do que era o país
zer a partir daí. rural nessa altura. Por um lado, os militares

45
António Reis. Historiador. Professor aposentado da FCSH/U.Nova de Lisboa

que participaram nessa campanha olhavam esse do os limites da propriedade comum. Mas a po-
país rural como dotado de uma grande pureza e pulação passou aos seus filhos, aos seus netos
onde se conseguiriam descobrir formas comu- e aos seus bisnetos os marcos originais. Com a
nitárias que poderiam ser uma espécie de alfo- revolução, repõem os marcos. O mais curioso
bre da democracia: aqui temos a visão pastoral, disto é que, quando a Inês Fonseca vai à Torre
que puro que tudo aquilo era… Depois temos a do Tombo, descobre que os marcos reivindica-
visão contrapastoral: o mundo rural como um dos pela população batiam certo com o registo.
espaço subdesenvolvido que era necessário “di- No que toca aos partidos políticos, os antro-
namizar”. Estas campanhas foram tão marcan- pólogos têm também feito trabalho. No meu
tes que eu, aqui há anos, a visitar uma aldeia caso, estudei a memória comunista no Couço.
de Bragança chamada Petisqueira, percebi que Há uma parte, que está no doutoramento mas
a estrada que ligava essa aldeia à estrada prin- não consta do trabalho publicado, que mostra
cipal se chamava Estrada das Forças Armadas, como a reforma agrária é o retomar de uma
precisamente porque foi construída nessa altu- memória continuada numa povoação que desde
ra e foi a primeira estrada a ligar à povoação. finais do século XIX tinha formatos de organi-
Em alguns casos, os militares tiveram mesmo zação em que uma classe se reconhecia como
de se socorrer de helicópteros no âmbito das tal, no caso uma classe de assalariados rurais.
campanhas de dinamização. Também viria a trabalhar mais tarde a memória
Por outro lado, temos as massas populares. A da extrema-esquerda. Se esta extrema-esquerda
Inês Fonseca e a Margarida Fernandes são an- teve uma grande visibilidade durante o processo
tropólogas que trabalharam o caso alentejano, revolucionário, como a história não se faz de ins-
a Margarida Fernandes a reforma agrária em tantaneidades, quando novos grupos transitam
Baleizão e a Inês Fonseca em Aivados, uma po- para o poder, esta memória aparece praticamen-
pulação com um legado comunitário forte. Am- te banida, por exemplo, dos manuais escolares.
bas mostram como o 25 de Abril foi uma rutura Eu estou a falar de trabalhos na área da An-
para aquelas populações. Num dos casos, na po- tropologia mas é claro que o acontecimento
voação de Aivados, a população foi no dia 25 de obriga a que nos movamos em zonas de fron-
Abril de 1975 repor os marcos da propriedade teira disciplinar.
comunitária que, desde o liberalismo do século
XIX, tinham vindo a ser alvo de apropriação LT – Eu estou inteiramente de acordo com a divisão
gradual por parte dos proprietários, encurtan- tripartida. Aliás, o António teve o cuidado de dizer

46
que deveria existir uma relação dialética entre eles ta que tinha até dimensões estéticas curiosas: a
e tu acabaste de o demonstrar, a partir de alguns recuperação do casamento tradicional, a rejeição

ENTREVISTA
casos. do 25 de Abril a partir de uma representação de
1793, que a burguesia fez, como se tivesse sido
Miguel Cardina (MC) – Eu gostaria de pegar numa o Terror. Para mim, no Porto, no norte, - e que
questão que há pouco ficou lançada e que tem a ver até nem vinha de famílias particularmente de
com as continuidades e descontinuidades que se- esquerda, tirando o meu pai -, o Terror tinham
riam observáveis na sociedade portuguesa tendo sido os assaltos às sedes do PCP, dos partidos de
como ponto de observação o 25 de Abril. Podemos

25 Abril - Mesa redonda


extrema-esquerda, dos sindicatos. Ali, se havia
encontrar continuidades: o recurso aos golpes mi- Terror, ele era exatamente o inverso.
litares, a figura de um certo povo rural, etc. E temos Quais são os atores? Os assalariados rurais
descontinuidades claras, que têm aqui sido evoca- do sul e do Douro. Os operários da cintura
das: a democracia, o reconhecimento ou a entrada industrial de Lisboa e do Grande Porto. Mas
na História de grupos sociais subalternizados. Que também, não esqueçamos, os novos profissio-
ruturas marcantes trouxe o 25 de Abril? nais dos serviços. (Eu penso que aí está o centro
do triunfo do Partido Socialista, que é o partido
ML – A minha leitura é a de que o 25 de Abril estruturador do regime. O PS é o único partido
se inscreve no processo de (mesmo que o termo em Portugal que se reconhece nas duas datas: o
não me agrade muito) modernização económi- 25 de Abril e o 25 de Novembro.)
ca e social do país. Faltava a modernização po- Por outro lado, a revolução obrigou a que a
lítica, que se dá com o 25 de Abril. burguesia portuguesa se assumisse quanto aos
Certamente que os atores daqueles anos tam- seus interesses. Como em todos os processos
bém não se davam conta de que a grande vaga revolucionários. Reagiram rápido aos aconteci-
do antifascismo, de uma certa leitura progres- mentos e rapidamente se articularam: escolhem
sista da História, estava a chegar ao fim. Pouco os militares que querem, articulam-se com a
depois, em março de 1979, Thatcher ganhava as Igreja Católica, etc.
eleições, em Portugal a direita ganha eleições, na Na verdade, a historiografia portuguesa
Índia a direita religiosa ganha eleições, os islami- tendeu a ler as ruturas – 1910, 1926, 1974…
tas tomam o poder no Irão, etc. A vaga progres- - a partir de um olhar lançado quase exclusi-
sista entra em crise no final dos anos de 1970. O vamente sobre o político. Quer se olhe para os
25 de Abril é a última tentativa revolucionária partidos, para os militares (adicionaria também
na Europa. uma outra dimensão, a de uma certa historio-
O momento acelera, obviamente, aspetos que grafia das relações internacionais, que está ob-
vinham de trás. A politização de massas não co- cecada com o papel das potências estrangeiras
meçou com o 25 de Abril mas foi acelerada com e com a Guerra Fria), julgo que com o passar
ele. É como se a onda batesse na praia e esse tsu- do tempo será necessário retomar uma histo-
mani agora tem tempo e tem espaço para se es- riografia mais centrada no social. Eu que venho
praiar. Eu entro na Universidade num processo mais da história política, acho que se deve co-
inverso, de despolitização. Lembro-me das mi- meçar a olhar para o elemento da espontaneida-
nhas primeiras férias, aos 17 anos, por Espanha, de dos vários atores sociais.
França, Escandinávia, e tinha a sensação que se
podia falar de política noutros países mas que PG – Eu gostaria de voltar ao povo… Sobre
em Portugal não se falava. Nesses anos há uma isso queria frisar três ideias. A primeira existe
autêntica recusa de tudo o que o 25 de Abril ha- ainda muito difundida e que é a ideia de que
via significado, uma fortíssima viragem à direi- povo somos todos nós, os portugueses, e que foi

47
esse povo-nação que fez o 25 de Abril. Depois, AR – O processo revolucionário em Portugal
uma segunda noção de povo é setorial: povo teve menos mortos que o processo de transição
são os dominados, os subalternos. Por fim, há em Espanha. Penso que os partidos políticos ti-
uma outra noção de povo, convocada durante o veram aí um papel muito importante como or-
processo revolucionário, que é a do povo como ganizações que vão contendo essa violência em
classe revolucionária. No livro da Sónia Almei- potência. Nessa medida, acabam por conduzir
da, de que há pouco falava, as três dimensões do a um desfecho pactuado da revolução, no 25 de
povo estão presentes. Novembro. Evitámos à última da hora o banho
Em 1982, muito jovem, fiz trabalho de cam- de sangue pela forma como as forças políticas e
po em Ifanes e ainda apanhei os estilhaços das também militares o conduziram. O contacto do
campanhas de dinamização cultural do MFA. General Costa Gomes com Álvaro Cunhal foi
Pela primeira vez naquela aldeia tinham visto determinante para evitar que a violência irrom-
um filme, um filme do Buster Keaton. Quando pesse descontroladamente.
chego à aldeia, todos os burros se chamavam
Pamplinas. Isto era de facto um outro país… ML – Eu penso que esta amplitude que esta-
mos a dar ao termo violência deriva, em boa
AR – Eu estou de acordo com o que o Manuel medida, de uma sociedade que desde 1931, em
Loff dizia. A rutura política é muito óbvia. É território metropolitano português, não co-
o fim de um Império de cinco séculos e é o fim nhece a irrupção mais ou menos legitimada
de uma longuíssima ditadura. É uma rutura e da violência (tirando a violência óbvia da di-
uma rutura violenta, que é o que nos distin- tadura) por parte de forças sociopolíticas não
gue do caso espanhol e é a marca genética da estaduais. Comparando o caso português com
nossa democracia. No plano social e no plano a quase totalidade dos casos europeus, Portu-
cultural é mais fácil encontrar linhas de con- gal é uma exceção. Isso pode ter a ver com o
tinuidade. facto de nós não termos guerra em território
metropolitano desde 1847. Ainda que o país
MC – O 25 de Abril marca de facto uma diferença se tenha metido na Primeira Guerra e que o
grande relativamente ao caso espanhol, que saiu período entre 1911 e 1931 tenha observado
do franquismo através de uma transição pactua- violência à esquerda e à direita. Basta pensar
da. E também sabemos que o 25 de Abril terminou que os grupos de luta armada de final da
com uma guerra colonial longa e sangrenta. Mas ditadura têm uma contabilidade de vítimas
também é verdade que frequentemente ouvimos evo- mortais nula. Habituado que estou a comparar
car o baixo índice de violência da revolução portu- com o caso espanhol, aí a diferença é evidente.
guesa. A ideia de que tivemos uma “revolução sem Em Portugal houve mais violência simbólica
sangue”, muitas vezes articulada com uma certa contra uma sociedade desigual, profundamente
ideia da psicologia coletiva ligada a um “povo de classista e intrinsecamente autoritária. No caso
brandos costumes”. Como veem esta questão? E espanhol foi exatamente o inverso. A contabili-
como veem esta leitura da violência associada ao dade final do número de mortos entre o Estado,
número de mortos, ao sangue, quando eventual- grupos armados que resultam dos serviços po-
mente seria necessário também pensarmos aqui no liciais e grupos de luta armada anda pelos 600.
que hoje se considera do domínio do interdito e que Em Portugal, até ao fim do processo revolucio-
foi uma “violência” no sentido em que se transgre- nário, em 1976, Sánchez Cervelló contabilizava
diu a legalidade ou a “normalidade”: as ocupações 16 mortos. E a proporção de um para quatro
de casas, de campos ou de fábricas, por exemplo… da população não dá nada disto, evidentemente.
O caso português é excecional, a esse nível. E

48
ainda mais o é porque saímos de uma guerra co- nomeadamente das superpotências, no que diz
lonial e há 250 mil homens em armas. O acesso respeito ao PREC. Não o vejo como comandado

ENTREVISTA
às armas era fácil, e há a ideia de que as forças a partir de Washington ou Moscovo. Pelo con-
sociopolíticas à época tinham possibilidade de trário. Aliás, a União Soviética sempre foi bas-
aceder às armas. Mas não as usaram. Não fa- tante prudente e os Estados Unidos, até deter-
rei nenhum discurso psicológico barato sobre o minado momento, tiveram uma posição que se
perfil pacífico dos portugueses. Mas há uma fal- poderia descrever como “capitulacionista” rela-
ta de legitimidade para o uso da violência. Num tivamente ao PCP. Mais intervenientes foram as

25 Abril - Mesa redonda


espectro do espaço político, no entanto, não potências da Europa ocidental. Neste particular,
houve essa contenção: na extrema-direita. O re- o PS beneficiou do apoio dos partidos socialistas
ceio do sangue não existiu na extrema-direita e social-democratas da Europa ocidental.
que produziu heróis que têm estátua em Braga, Sou também crítico das teorias que falam de
como o Cónego Melo. Foi a esquerda que não uma vaga de democratização que a revolução
usou da violência. portuguesa teria aberto, como se houvesse uma
relação causa-efeito. Eu não a vejo. E é uma lei-
PG – Claro. E faltam-nos estudos sobre essa tura revisionista, que tende a esvaziar a nossa
violência da extrema-direita. Eu também gos- revolução do seu lado mais avançado e socialista
taria aqui de chamar à colação a entrevista que colocando o enfoque apenas no lado democrá-
fiz com o António Monteiro Cardoso e Aurora tico.
Rodrigues, porque se lhe disséssemos que não
houve violência ela imediatamente diria “mas MC – E depois existe o tema da relação entre o 25
atenção que eu fiz parte de um grupo de mais de de Abril e os chamados “longos anos sessenta”, que
400 militantes do MRPP que foram presos…”. o Luís colocava. Parece-me que a questão pode ser
Que, em alguns casos, vão estar presos na ca- vista de duas formas. Por um lado, a politização no
deia com alguns pides que pouco tempo antes período final do Estado Novo não é imune a alguns
os tinham tido presos. É um número significati- dos acentos contestatários que podemos observar em
vo. Eu quando assinalo essas datas no facebook termos internacionais e, em certa medida, também
aparece-me sempre alguém que esteve preso e a alimenta – basta pensar na importância que o
que me relata aspetos dessa experiência… anticolonialismo, o terceiro-mundismo, a sedução
pelas lutas de libertação em África e na Ásia têm
LT – O Manuel Loff evocou há pouco uma certa leitu- para a juventude radical da época e como Portu-
ra da revolução que tende a subsumir o caso portu- gal está no centro disso. Por outro lado, também
guês às contingências da Guerra Fria. Eu gostaria podemos pensar o fechamento da revolução portu-
de convidar-vos a regressar a este tema, de pensar guesa – e, pouco tempo antes, o golpe de Pinochet
a revolução no contexto internacional, a partir de no Chile - como o “final de um ciclo”. Um aspeto
três linhas de enquadramento: em primeiro lugar, muito concreto disso é a vaga de intelectuais e de
a ideia de que Portugal inaugurou uma terceira revolucionários que vem na altura para Portugal em
vaga de democratização mundial, logo seguido por busca da promessa da revolução perdida e que um
Espanha e Grécia; em segundo lugar, a relação do filme como Outro País, de Sérgio Tréfaut, retrata.
caso português com os processos de descolonização;
e, por fim, a participação do PREC na rebelião gene- AR – Claro, é o lado romântico do 25 de Abril.
ralizada dos anos sessenta.
PG – Eu conheci um casal em Nantes que quan-
AR – Eu julgo que tem existido uma sobreva- do se deu a revolução pegou nas suas bicicletas
lorização das condicionantes internacionais, e e veio para Portugal. Correram o país de bici-

49
cleta. Eu gostaria de pegar nisto para dizer que Em termos práticos (mais do que em termos
muitas vezes se diz que o 25 de Abril esteve na legais, salvo o divórcio e a alteração do Código
génese do que se passou depois em Espanha, Civil), a revolução sexual no mundo urbano fez-
na Grécia e até na Europa de leste. Mas para se. Em 1974-75 os casamentos disparam, por-
muitas pessoas, como dizias, era a esperança de que há 250 mil homens que são desmobilizados
encontrar o que já não tinham nos seus países. e muitos milhares de emigrantes, sobretudo re-
Quando em França terminou o Maio de 68 e os fratários, que regressam. Mas também dispara
seus resquícios iam desaparecendo, surgiu Por- a percentagem de crianças nascidas fora do ca-
tugal. Por outro lado, o trabalho que estou a fa- samento, o que era uma manifestação evidente
zer com operários maoistas no final do Estado de laicidade.
Novo, da zona de Vila Franca, mostra que eles
viviam um período em que, de facto, a juven- AR – Em relação ao tema dos costumes, acho
tude se unificava, mesmo contra as classes. Era que houve uma descompressão, até porque já
possível, por exemplo, existirem pontes com a tínhamos interiorizado antes do 25 de Abril al-
juventude universitária lisboeta, coisa que uns gumas dessas mudanças. Mas é exagerado falar
anos antes seria absolutamente impensável. de uma “revolução nos costumes”.

LT – A historiografia crítica sobre o Maio de 68 pro- PG – Há um filme sobre uma modista de Lis-
cura resgatar o momento ao seu estereótipo de ter boa, A Candidinha, que fazia os fatos às senhoras
sido uma coisa meramente estudantil, urbana, liga- do regime. Com a queda da ditadura as costurei-
da aos costumes e à sexualidade, etc. Será que o in- ras deixaram de ter clientes, muitas delas foram
verso poderia ser feito em relação ao PREC? Haverá para o Brasil, e tinham de se adaptar à nova situ-
um PREC escondido onde há uma revolução dos ação. E vemos as mulheres a negociar dentro de
costumes e uma mobilização da juventude urbana? casa o novo papel que têm de ter no local de tra-
ML – Um dos estereótipos fortes sobre o as- balho. Os namorados e os maridos destas mu-
sunto é o que diz que, perante a urgência da luta lheres de 17, 18, 20 anos não encaravam nada
política, a extrema-esquerda e o PCP tendiam a bem que elas tivessem reuniões e elas tinham
considerar o campo dos afetos e da sexualidade de lidar com isso ao mesmo tempo que tinham
como algo quase “reacionário”. Eu não tenho a de gerir o seu local de trabalho. Chamo também
certeza se isto não é algo de anedótico ou se ti- a atenção para um outro filme, que está a ser
nha efetivamente expressão. Se olharmos para a trabalhado por uma orientanda minha, Nadejda
biografia “afetiva” de quem tinha ativismo polí- Tilhou. Os patrões franceses da Sogantal, uma
tico notamos que a liberdade sexual era muito fábrica de vestuário no Montijo, foram-se embo-
evidente. ra com a revolução. O filme revisita trinta anos
sergio rolando / flickr

Manuel Loff. Historiador. Professor da F. Letras/U.Porto

50
depois a memória daquelas mulheres e mostra da República já anunciou um programa próprio.
bem o que significou para elas a conquista do Mas estou convencido de que hoje há condições

ENTREVISTA
espaço público. para termos comemorações plurais, em que
Em relação à revisão de 1977 do Código Ci- cada corrente poderá evocar livremente a sua
vil, de que se falava, ele acabará por plasmar aí o memória do 25 de Abril. É isso que eu desejo
novo papel conquistado dentro dos casais pelas que aconteça.
mulheres. Hoje pode parecer um Código pacífi-
co mas assustou muita gente. Eu lembro-me de PG – Eu lia recentemente um livro de Roland

25 Abril - Mesa redonda


fazer pouco depois trabalho de campo em Trás- Castro e gostei particularmente de uma expres-
os-Montes e ver a quantidade de escrituras que são: “memória paraplégica”. Acho que teremos
então se fizeram para preservar a propriedade. neste 25 de Abril uma leitura em que apenas
E porquê? Essa revisão colocou o/a cônjuge na metade irá mexer. A outra será remetida para
primeira classe dos sucessíveis. Antes, não ha- o domínio das “causas perdidas”, às quais aliás o
vendo filhos, a propriedade passava para os pais Edward Said dedicou um belíssimo texto. Penso
do falecido, os irmãos do falecido, os sobrinhos que se procurarão difundir versões consensuali-
do falecido e só depois é que vinha o cônjuge. A zadas em torno de um certo 25 de Abril anódi-
anterior versão dava uma prevalência à linha do no. Não teremos desta vez a “evolução” a substi-
sangue; a nova revisão dá primazia ao amor, à tuir a “revolução” mas alguma coisa aí virá.
relação que um homem e uma mulher escolhe-
ram ter. Esta é uma alteração substancial. Na al- ML – É impossível discutir a memória do 25
tura deparei-me com tantas doações a sobrinhos de Abril sem discutir a memória da ditadura. É
nos casais que não tinham filhos, para evitar que impossível falar do 25 de Abril sem analisar o
passasse para a linha da esposa, que de facto vi o passado com o qual ele rompe…
abalo que essa mudança provocou. Para simplificar muito diria que temos três
tipos de memória. À esquerda, PCP, extrema-
MC – A leitura do 25 de Abril tem naturalmente esquerda e a parte do MFA que se sente repre-
sofrido mudanças ao longo das últimas décadas. sentada na Associação 25 de Abril reconhecem-
Gostaria de saber a vossa opinião sobre o modo se no 25 de Abril e não no 25 de Novembro (e
como tem evoluído a imagem do momento mas isto apesar de lá estarem militares que fizeram
também qual a perceção que têm sobre as comemo- o 25 de Novembro; mas que sabem que essa me-
rações que aí se aproximam. mória os divide). À direita, temos uma memória
que se reconhece no 25 de Novembro e coloca
LT – E eu acrescento outro elemento. Como pensar e aí o acento tónico. E depois no centro está o PS
recordar um acontecimento como o 25 de Abril e a que se reconhece nas duas datas.
revolução que, no fundo, durou 18 meses? É pouco Num primeiro momento, e isto prolonga-se
tempo, sobretudo se comparado com os 13 anos da até meados da década de 1990, a direita não fala
guerra colonial ou os 48 anos da ditadura. Coloca- da ditadura para falar da revolução. É um pouco
nos o problema da intensidade e isso, em termos da aquela imagem do tempo de antena de Freitas
memória, joga nos dois lados: ou temos os “excessos do Amaral, em 1985, quando diz que acordou
de Abril”, que é a leitura da direita; ou temos o dis- para a política com o 25 de Abril. E a campa-
curso dos “verdes anos”… nha do Soares faz um belíssimo tempo de ante-
na mostrando o que foram os anos sessenta, a
AR – De facto, tivemos azar… os vinte, os trin- guerra do Vietname, os Beatles, a campanha do
ta e agora os quarenta anos do 25 de Abril coin- Humberto Delgado, a campanha de 69, a guer-
cidem com governos de direita… A presidência ra colonial, a politização dos portugueses, etc.,

51
e com a frase de fundo “acor- PG – Eu tenho sugerido ul-
dei para a política com o 25 de timamente aos meus alunos
Abril”. Para a direita não havia que trabalhem utopias. Neste
passado, só havia a revolução e tempo em que nos dizem que
a revolução era má. não há futuro e que a História
acabou, apetece-me chamar a
LT – E isso começa bem cedo. atenção para isso. Até porque
Quando Eduardo Lourenço es- a utopia nos coloca em sinto-
creve O Fascismo nunca existiu nia com a esperança, com o
baseia-se num artigo de Marce- “ainda-não” de Ernst Bloch.
lo Rebelo de Sousa em que este Depois do cerco imenso em
descreve o 25 de Abril como uma que todos os cientistas se en-
sucessão inopinada de golpes, Paula Godinho. Antropóloga. Professora contram, em que é cada vez
como se não tivesse existido nada da FCSH/U.Nova de Lisboa. mais difícil investigar, quero
no passado… incentivar os jovens a pesqui-
sar e este é um dos caminhos que me parece
ML – Exato. Depois passa-se para uma fase relevante.
mais marcada pelos acontecimentos a leste. Ca-
vaco Silva diz logo em 1989-90 que a primei- ML – Eu estou a dirigir um projeto sobre Es-
ra pedra do muro de Berlim caiu em Portugal. tado e memória, sobre o modo como o Estado
Teria sido aqui a primeira batalha ganha con- português nos últimos 40 anos descreve a di-
tra o “totalitarismo soviético”, em 1975. Mais tadura e produz discursos sobre isso. Somos
do que comunismo, fala-se de totalitarismo. Com dos raros países com ditaduras até aos anos
um objetivo: é que se descreve assim a ditadu- 1970 que não tem museus nacionais sobre a
ra como um autoritarismo clássico e a revolução resistência – tem um museu municipal e ou-
como uma tentativa de impor um Estado totali- tro, também municipal, que será construído
tário. Fecha-se o ciclo e a direita já pode falar da em Lisboa – e também não tem forma de do-
ditadura, mostrando que existe diferença entre cumentar a memória da espontaneidade na
um momento e outro. E elogiando-se o marce- Revolução. Fomos habituados a pensar que
lismo como momento da transição, infelizmente existiam atores centrais da revolução e que
interrompido. depois as massas obedeciam. É a visão das
elites, impacientes com o povo desqualifi-
LT – Gostaria de vos convidar a um pequeno exercício cado, feio, pouco saudável, onde só se apro-
de imaginação. Existe alguma obra, algum proje- veitavam os emigrantes, contra o qual se es-
to, algum arquivo sobre o 25 de Abril, ou alguma tampam todas as reformas, etc… É evidente
dimensão da revolução que gostassem de ver tra- que os partidos, a igreja, os grupos determi-
balhado? naram muitas ações. Mas revela-se uma dose
grande de espontaneidade, de voluntarismo,
AR – O meu contributo nos 40 anos do 25 de nas ações em muitos casos desrotinizadas –
Abril será a edição, juntamente com Maria Inácia as costureiras de que falava há pouco a Paula,
Rezola e Paula Borges Santos, de um Dicionário por exemplo. E nós ainda não documentámos
do 25 de Abril que tentaremos que saia ainda no isso. Os mais jovens que participaram no pro-
primeiro semestre deste ano. Terá muito prova- cesso revolucionário estão agora a chegar aos
velmente dois volumes, cerca de 800 entradas, e 60 anos. Temos mais dez ou vinte anos para
que ficará como uma obra de referência. o fazer.

52
PENSAR O SOCIALISMO HOJE Alain Badiou

Alain Badiou:
renovar a ideia comunista
no despertar da história
bruno peixe

Hoje não estamos aqui para reclamar Existem alguns pensadores cuja obra, por
simplesmente o acesso ao crédito à vezes extensa, nos parece, à medida que com
ela nos confrontamos, resultar de um plano há
habitação ou para protestar por causa
muito estabelecido, em que cada texto é parte de
das insuficiências do mercado de uma arquitetura cuidadosamente estruturada
trabalho. ISTO É UM ACONTECIMENTO. e cujo sentido só se deixa captar plenamente
E, como tal, uma ocorrência capaz de quando temos presente o edifício na sua
dotar de novos sentidos as nossas ações e totalidade. Parece-nos ser esse, por exemplo,
discursos1. o caso de Giorgio Agamben, na série de livros
Décimo primeiro e último ponto do a que deu o título de Homo Sacer2. Outros
teóricos há em que parece que encontramos, ao
Manifesto plural redigido durante a
longo do tempo, a mesma ideia, aparecendo sob
madrugada de 18 de maio de 2011 pelo formulações distintas e a propósito de temáticas
coletivo de manifestantes acampados na e objetos muito diferenciados, numa recorrência
Puerta del Sol, em Madrid. tão insistente quanto produtiva. É esse, em

1 - http://manifiestoplural.blogspot.com/: “ Hoy no estamos aquí para reclamar sencillamente el acceso a hipotecas o para protestar por las
insuficiencias del mercado laboral. ESTO ES UN ACONTECIMIENTO. Y como tal, un suceso capaz de dotar de nuevos sentidos a nuestras
acciones y discursos.”
2 - Da série Homo Sacer estão, em Portugal, publicados Homo Sacer: O Poder Soberano e a Vida NuaI (1998), Lisboa: Presença [trad. António
Guerreiro] (orig. 1995) e Estado de Excepção (2010), Lisboa: Edições 70 [trad. Miguel Freitas da Costa] (orig. 2003).

53
nosso entender, o caso de Jacques Rancière3 e, contemporânea, principalmente no contexto
de forma mais problemática, também o de Slavoj francês pós-Maio de 685.
Žižek, se atendermos à estrutura ontológico- Esta duplo contexto, de produção intelectual
política da sua teoria, mais do que às tomadas de e de realidade política, é essencial para uma
posições concretas face à realidade sociopolítica, compreensão do pensamento badiouano da
de natureza mais variável4. política, uma vez que, a par da sua trajetória
No caso do pensamento da política de Alain académica, Badiou foi sempre um ativista. Esse
Badiou – cuja abordagem é o propósito do ativismo passou, no contexto que se seguiu
presente texto –, as coisas passam-se de forma às lutas estudantis e operárias do Maio de 68
bastante diferente. Se atentarmos ao conjunto francês, pela sua militância na organização
da sua obra ou, mais precisamente, à parte maoísta UCF-ML (União dos Comunistas
dessa obra que trata da política – que tem de França Marxista–Leninista) da qual foi
sido, de resto, a principal constante ao longo fundador e um dos principais dirigentes, até
da trajetória filosófica de Badiou, que conta já á sua dissolução em 1985 e à fundação, nessa
com perto de 50 anos –, saltam à vista, apesar data, com outros camaradas pós-maoístas,
de algumas temáticas e disposições teórico- como Silvayn Lazarus e Natacha Michel,
práticas recorrentes, as múltiplas formas que da Organisation Politique (OP). Em nenhum
esse pensamento da política assumiu, desde dos casos se pode falar de uma militância em
a breve aproximação a Louis Althusser, em organizações de massa, uma vez que tanto a
finais dos anos 1960, à recente proposta de uma UCF-Ml como a OP constituíam coletivos
renovação da ideia comunista. minoritários, mas podemos falar, em ambos
os casos, de organizações que procuravam
Uma trajetória militante a articulação política entre intelectuais e
Em nosso entender, o olhar sobre a trajetória operários, entendida como herança fundamental
teórico-política de Badiou permite-nos, de de 68.
forma bastante mais nítida do que noutros
casos, observar o filósofo na sua oficina, O esgotamento da revolução e a política à
atentando ao modo como os conceitos são distância do Estado
forjados para resolver determinados problemas Ao contrário de outros intelectuais que
postos pela articulação entre a filosofia e a também passaram pela experiência da militância
política, problemas esses que foram sendo em organizações de extrema-esquerda nos anos
colocados tanto pelo real político como pelo a seguir ao Maio de 68 francês, Badiou nunca
contexto específico da produção intelectual renegou essa militância nem o ideário político

3 - Vejam-se, entre outros, A Noite dos Proletários (2012), Lisboa: Antígona [trad. Luís Leitão] (orig. 1981), Nas Margens do Político (2014)
4 - A obra de Žižek, principalmente a sua produção mais recente, tem sido amplamente editada em Portugal (amplamente, entenda-se, para
os padrões portugueses de tradução e edição de obras teóricas na área das humanidades). Veja-se, entre outras, O Sujeito Incómodo: o Centro
Ausente da Ontologia Política (2009), Lisboa: Relógio d’Água [trad. Carlos Correia Monteiro de Oliveira] (orig. 1999).
5 - Ao contrário de outros teóricos contemporâneos da política, como Žižek, Rancière, Agamben e Peter Sloterdjik, Badiou não tem recebido
o favor dos editores portugueses e a sua obra continua largamente por editar em Portugal, o que não deixa de causar alguma surpresa, mesmo
para um meio editorial tão pouco favorável à publicação de obras teóricas no campo das humanidades como é o português, dado o sucesso
planetário do filósofo e o aumento, desde o fim dos anos 90 do século passado, do número de traduções para outras línguas. Há, no entanto,
algumas exceções, nomeadamente a publicação em 1967, um ano depois da sua edição em França, dos primeiros textos filosóficos de Badiou
na antologia de textos teóricos do estruturalismo editada por Eduardo Prado Coelho. Compêndio de Metapolítica, Manual de Inestética e Breve
Tratado de Ontologia Transitória foram publicados em 1999 pelo Instituto Piaget e traduzidos por Emílio Alexandre. Curiosamente, e apesar
da insuficiente atenção dos editores, não deixa de ser curioso que uma das primeiras monografias em livro inteiramente dedicadas à obra de
Badiou tenha aparecido em Portugal. Referimo-nos ao excelente livro de Carlos Vidal, Sombras Irredutíveis: Arte, Amor, Ciência e Política em
Alain Badiou (2005), Lisboa: Vendaval.

54
gaelx/flickr

PENSAR O SOCIALISMO HOJE


Acampada de Madrid - Maio 2010

que a animava6, isto é, o fim da militância Lazarus, assentou na ideia de que o propósito da
maoísta não significou para ele o abandono ação política emancipatória consistia na tomada
do ativismo político comunista, nem sequer do poder do Estado pelas classes dominadas,
um desistência da ação política junto à classe sob a orientação da organização de classe por
operária. A OP continuou a defender, na teoria, excelência que era o partido. O significado
formas de igualitarismo radical e, na prática, profundo da revolução cultural seria justamente
a desenvolver formas de luta em articulação o falhanço do partido em transformar a

Alain Badiou
com os operários, muito especialmente com os sociedade através do Estado e a constatação
trabalhadores imigrantes indocumentados dos de que foi o Estado a impor ao movimento a
subúrbios parisienses. Do que se tratou, para sua lógica, tal como teria acontecido na União
Badiou, foi de retirar as devidas consequências Soviética sob o estalinismo8.
do fim de uma sequência histórica determinada: O fim da sequência ditaria, então, o fim da
a sequência interna (i.e., francesa) inaugurada prática e da teoria política que lhe correspondem:
pelo Maio de 68 e que se estendeu anos 1970 o marxismo como filosofia da emancipação,
afora através das lutas operárias e estudantis a tomada do poder como objetivo, a classe
e, no plano internacional, a sequência operária industrial como sujeito privilegiado da
revolucionária inaugurada pela revolução russa emancipação humana e o partido de classe como
de 1917 e encerrada pela revolução cultural operador essencial dessa emancipação. As lições
chinesa. a extrair do esgotamento dessa sequência e do
O diagnóstico do falhanço da revolução modo histórico da política que lhe correspondia
cultural na China7, mais do que uma derrota (para usar a expressão de Silvayn Lazarus)
episódica do maoísmo representou, para exigiriam uma nova forma de pensar e de agir
Badiou, o fim da dita sequência revolucionária, politicamente, que passava, para Badiou, pelo
uma sequência que, segundo Badiou e Silvayn abandono da tomada do poder do Estado como

6 - A propósito da figura do ex-militante de extrema-esquerda convertido às virtudes do capitalismo e da democracia parlamentar, traduzido
muitas vezes no apoio à direita política e às intervenções militares americanas, veja-se : “Roads to Renegacy: Interview by Eric Hazam”, in
New Left Review 53, setembro-outubro, 2008, pp. 125-133.
7 - Badiou faz uma brilhante análise da Grande Revolução Cultural Proletária em “La Dernière Révolution?”, in L’Hypothèse Communiste.
8 - BADIOU, Alain, D’un Désastre Obscur: sur la fin de la vérité d’état (1998), L’Aube, Paris.

55
etapa fundamental para alcançar esse horizonte em que essa figura se tornou o alvo de inúmeras
último que seria o comunismo. E passava críticas e desconstruções, Badiou, pelo
também pela necessidade de desenvolver formas contrário, continuou a afirmar, como o tem feito
de ação política à distância do Estado, propósito até hoje, a sua indispensabilidade para qualquer
explícito da OP. entendimento da política.
Mas não era apenas a questão do Estado Bem pelo contrário, do que se tratava,
e do poder que o presente histórico exigia em meados dos anos 1980, era de criticar
repensar. A crítica de Badiou dirigia-se aos uma conceção objetivista e reducionista da
fundamentos teóricos e práticos do modo subjetividade política que, para Badiou, foi a
histórico revolucionário, nomeadamente no que de um certo marxismo, cuja substancialização
diz respeito à questão da subjetividade política. fixou a ação política como expressão de uma
Para ele, essa subjetividade militante, associada realidade social que a antecedia e da qual era, em
ao modo revolucionário, ao Estado e ao partido última instância, dependente. A política assim
de classe, teria desaparecido muito antes da entendida seria a expressão dos interesses de
queda dos estados socialistas da Europa de leste, classe, e o partido de classe seria o representante,

Esta substancialização da mediação social seria assim uma forma


de fixação do lugar da política e dos seus sujeitos e, portanto, de
delimitação, a partir do social, dos lugares que são próprios da
política: a fábrica, o campo, o parlamento ou o Estado.

como escreve em 1998 em D’un Désastre Obscur. na arena política, desses interesses, económicos
O que estava em causa, para Badiou, era o fim ou políticos. Esta substancialização da mediação
de uma conceção da política como dialética social seria assim uma forma de fixação do lugar
expressiva9, uma expressão que Badiou só virá a da política e dos seus sujeitos e, portanto, de
cunhar em 2010, mas que resume aquilo que, em delimitação, a partir do social, dos lugares que
meados dos anos 1980, para este autor e para os são próprios da política: a fábrica, o campo, o
seus camaradas da OP, se tratava de deixar para parlamento ou o Estado.
trás. Tal dialética expressiva, deixa-se resumir,
de forma exemplar, numa frase de Lénine: “As Acontecimento, fidelidade e sujeito
massas dividem-se em classes, as classes são Como repensar então uma política de
representadas ou exprimidas por partidos, e os emancipação fora da relação representativa e
partidos são dirigidos por chefes”.10 expressiva? Como repensar a política após o
Esta crítica ao entendimento da subjetividade falhanço da sequência revolucionária sem ceder
política tal como foi praticado ao longo do no pressuposto do universalismo igualitário
século XX pela teoria e prática revolucionárias de que deve ser portadora qualquer proposta
não significou, contudo, uma recusa liminar da política e mantendo a fidelidade ao marxismo,
figura do sujeito. Numa conjuntura intelectual entendido não como paradigma analítico ou

9 - BADIOU, Alain (2011), La Relation Énigmatique entre Philosophie et Politique. Paris: Germina, pp. 67-87.
10 - Cf. BADIOU, Idem, p. 70.

56
grande narrativa histórica, na medida em que a sua
mas sim como teoria da existência não assenta em
subjetividade antagonista, um qualquer garantia no real, mas
marxismo que é, antes de mais, sim na existência de sujeitos
prescrição e não descrição, dispostos a desenvolver, na
teoria do sujeito e não ontologia situação, as consequências
social? do acontecimento, a serem
Esse repensar da política os portadores dessas
só pode, para Badiou, dar-se consequências e a inscrevê-las

PENSAR O SOCIALISMO HOJE


fora da dialética expressiva na situação. O acontecimento
dos interesses de grupos ou é justamente o que se subtrai a
Queda do Muro de Berlim, 1989
classes sociais, mas evitando, todo o princípio organizador da
ao mesmo tempo, cair no polo sociedade, na medida em que a
oposto do voluntarismo subjetivista, de caráter sua ocorrência é a revelação da inconsistência
necessariamente idealista, que vê no sujeito fundamental em que assenta essa organização,
soberano e autónomo o fundamento de todo o as hierarquias que fazem parte dela, as
agir humano. Se a subjetividade é essencial para distribuições de poder e de visibilidade que a
qualquer entendimento da política, uma teoria sustentam.
que se queira chamar materialista terá de partir A impossibilidade de conhecer a priori
de um primado do real, sem que esse primado o acontecimento tem como consequência a
do real resulte numa forma de reducionismo subtração da política a um domínio fixável por um
histórico ou sociológico, em que o sujeito se vê conhecimento especialista, ao estabelecimento

Alain Badiou
reconduzido, mesmo que de forma tendencial de previsões e tendências que são o sustento
e não determinista, a um lugar objetivo na do discurso autorizado do especialista. Mais
estrutura social. O acontecimento [em francês importante, a política deixa de ser pensada
événement] será o operador essencial da dialética como realização de possibilidades encerradas
entre real e sujeito no pensamento badiouano no existente. Ultrapassando a dialética secular
da política. A política tem precisamente o seu da potência e do ato, trata-se de inscrever a
fundamento, para Badiou, nesta capacidade de impossibilidade da política no real, neste caso
acolher o acontecimento. no real de uma prescrição subjetiva, em que a
É importante ter em conta que lei do impossível (o acontecimento) ordena a
acontecimento e facto são, para Badiou, coisas intervenção possível no mundo (do sujeito).
distintas. Este último assenta num regime de O acontecimento é, portanto, o real do qual
visibilidade do real organizado a partir de uma o sujeito é uma das consequências, ou melhor,
distribuição consensual de sentido na qual o cujas consequências são inscritas na situação
facto, apresentando-se com o selo da novidade, pelos sujeitos que reconhecem no acontecimento
mais não é do que a reiteração dos dados que a verdade da situação. Como se pode entender,
organizam a situação. O facto aparece como sujeito e indivíduo são, para Badiou, coisas
expectável, como subordinado a uma regulação distintas. Nem todo o indivíduo se constitui em
probabilística a partir do qual o seu aparecer é sujeito, nem todo o sujeito é necessariamente
entendido. individual. Em política a forma mais comum do
O acontecimento, pelo contrário, é pura sujeito é o coletivo, no qual o indivíduo se decide
contingência, uma ocorrência imprevisível, (ou não) incorporar.
que não se deixa prever a partir do conjunto A subjetividade implica, pois, a adesão à
de conhecimentos adquiridos, e inverificável, perspetiva do acontecimento, ao ponto de vista

57
a partir do qual a inconsistência fundamental cena estática, com a consequência de espoletar
da situação comparece ao sujeito, e de onde trajetórias de transformação que rompem com,
ele vai procurar inscrever a verdade na e estilhaçam, as realidades estagnadas do estado
própria situação: essa adesão de um sujeito ao das coisas.
acontecimento e o compromisso de ser portador Esta dicotomia drástica separa os ritmos
das suas consequências na situação é o que dos processos sociopolíticos entre meras
Badiou chamará fidelidade. Esta inscrição ações envolvidas no fluxo contínuo de uma
é desde logo problemática, uma vez que a dada realidade estruturada e atos grandiosos
relação entre acontecimento e situação é de resultantes de acontecimentos. Resumindo, um
contradição, pois o acontecimento apresenta- gesto genuinamente transformador seria apenas
se como negação da situação e esta procurar- aquele que se subtrai à ordem da existência
lhe-á resistir com os meios que tem à disposição quotidiana11.
que, no caso da política, são usualmente os da Esta separação rígida entre as operações
repressão violenta. ligadas ao funcionamento dos mundos
Pode, então dizer-se que, do ponto de vista do quotidianos e aquelas ligadas a processos
indivíduo, a tradução política do acontecimento de verdade teria como consequência a
como negação da situação é a imposição de impossibilidade de se pensar as condições de
uma escolha: ou se está com a situação ou com rutura e de transformação política a partir de
a verdade que o acontecimento expõe. Mas se uma determinada situação, nomeadamente a
acontecimento e situação existem numa situação partir de uma situação pré-acontecimento. É
de contradição, como intervir numa situação em esta separação rígida que levou a críticas, como
termos da verdade de um acontecimento? Essa é a de Daniel Bensaïd, de que a política badiouana
uma das questões mais importantes da filosofia é uma nova teologia, com o acontecimento no
de Badiou e, porventura, a que mais tinta tem lugar do milagre ou do messias12.
feito correr no que toca especificamente ao Em entrevista concedida em 2005 a Bruno
seu pensamento da política, na medida em que Bosteels13, em resposta a objeções como a de
a incomensurabilidade entre ordem do ser Bensaïd, Badiou afirma que o que lhe interessa
e ordem do acontecimento parecem colocar é pensar o acontecimento a partir da situação,
problemas a uma intervenção consequente na é pensar justamente a articulação entre ordem
situação pós-acontecimento. e acontecimento, e não postular duas ordens
Como conceber então as possíveis mediações radicalmente divergentes. Numa fórmula
entre situação e acontecimento? Pode sustentar- sucinta, mas esclarecedora, Badiou afirma que,
se, e alguns críticos fizeram-no, que existe na expressão que dá título à sua obra mais
no pensamento badiouano uma discrepância importante - O ser e o Acontecimento - o mais
acentuada entre, por um lado, ações que se importante é a conjunção que une os dois
mantêm no movimento lento da inércia das termos, o e. Essa conjunção é operada na ação do
realidades de um estado da situação e, por outro sujeito de uma verdade política, nas operações
lado, acontecimentos que irrompem numa que consistem em trazer à situação a novidade

11 - Esta crítica é formulada, de forma particularmente brilhante, por Adrian Johnston no seu livro Badiou, Žižek and Political Transforma-
tions: The Cadence of Change (2009), Evanston: Northwestern University Press, pp. 5-36.
12 - Cf. BENSAÏD, Daniel, “Alain Badiou et le Miracle de L’Événement”, in Résistences: Essai de Taupologie Générale. Fayard, Paris, 2001,
pp. 143-70.
13 - Cf. BOSTEELS, Bruno, “Can Change be Thought?: A Dialogue with Alain Badiou”, in RIERA, Gabriel (ed.), Alain Badiou: Philosophy
and its Conditions, State University of New York Press, 2005, pp. 246-255.

58
PENSAR O SOCIALISMO HOJE
Os filósofos Žižek e Badiou numa conferência em Nova Iorque, 2010

introduzida pelo acontecimento, no forçar, na separação dos dois domínios da existência que é
situação, as consequências do acontecimento, necessariamente idealista.
resumindo, na fidelidade de um sujeito.
Badiou procura, na sua construção teórica, O comunismo como Ideia
pensar a política para além da dialética entre Às críticas de idealismo responderá Badiou –
potência e ato, entre possibilidades não no momento histórico que corresponde à crise
realizadas e realização dessas possibilidades, atual do capitalismo e, em termos biográficos,
de modo a que o novo não seja entendido como ao momento da sua projeção como intelectual
realização de possibilidades que o existente global – com a proposta de uma ideia. Mais
já encerrava em si. Mas fá-lo mantendo o precisamente a ideia de comunismo. Essa ideia

Alain Badiou
privilégio fundador do ato, o que pode resultar assenta, antes de mais, na constatação de que
numa absolutização da figura do acontecimento. existem constantes trans-históricas, ou axiomas,
A intenção de Badiou é clara: evitar as formas que se podem encontrar em todos os exemplos
de historicismo que reduzem o acontecimento de políticas emancipatórias. Esses princípios já
a variáveis sociais, explicáveis pelo jogo de tinham sido identificados em 1976, numa obra
posições num todo estratificado e portanto escrita com François Balmés, De l’Idéologie, e
assimiláveis ao tempo histórico contínuo e assentam sobre três axiomas: (i) a orientação
mensurável da cronologia oficial. Mas essa igualitária de toda a política comunista, contra
subtração ao tempo linear e cumulativo da o pressuposto de uma tendência antropológica
história é feita, de acordo com os seus detratores, para a desigualdade; (ii) a ideia de que a política
à custa de uma não-relacionalidade total entre se faz à distância do Estado e da representação
a ordem da existência, onde os homens vivem e não pressupõe a existência destes; (iii) o
e agem todos os dias, e um acontecimento desaparecimento das classes e de toda a forma
disruptor das coordenadas simbólicas que de hierarquia social, o que implica o fim da
regem essa ordem. Fora de uma dialética entre divisão do trabalho14.
acontecimento e situação, poderá haver alguma Estas invariantes, contudo, não compõem
eficácia política no próprio pensamento da um programa, mas antes um conjunto de
política? Para críticos como Daniel Bensaïd princípios que permite traçar uma linha de
e António Negri, entre outros, a falta de demarcação entre as diversas políticas, uma
determinações históricas e políticas leva a uma ideia reguladora que permite identificar, perante

14 - Cf. BADIOU, Alain (2007), De Quoi Sarkozy Est-il le Nom?, Circonstances 4. Paris: Lignes, pp. 130-132.and its Conditions, State
University of New York Press, 2005, pp. 246-255.

59
a multiplicidade concreta de ele mesmo criados, “um sinal

Robin Berkelmans / creativitea.org


políticas, aquelas que se podem histórico de rebelião”.18
chamar de emancipatórias. A Este momento negativo
ativação desta hipótese, a sua é, entenda-se, para Badiou,
operacionalização, realiza-se, essencial, pois é nele que
para Badiou, sob a forma de se expressa a rejeição do
uma Ideia15. estado presente das coisas,
A Ideia é, de acordo com mas tem necessariamente de
Badiou, a representação que ser acompanhado por uma
um indivíduo faz, de si mesmo proposta. Uma proposta
e do mundo, do ponto de vista que não vem sob a forma
de uma verdade – no caso normativa de um conjunto de
em questão, de uma verdade prescrições ditadas pela teoria.
política – ou seja, a partir do O momento afirmativo da
ponto de vista do seu devir- política, hoje como no passado,
sujeito, da sua incorporação numa verdade. Para passa necessariamente pela criação de um espaço
um indivíduo, a Ideia torna possível a orientação de existência autónomo, ao qual corresponde
da sua vida, ou da sua ação, no mundo que é uma nova forma de exercício do poder da qual
o seu, segundo a verdade16. Ela é, por isso, a a dominação está subtraída. É por isso que a
mediação essencial entre o indivíduo e o sujeito, figura essencial da política é hoje, para Badiou,
o operador a partir do qual o indivíduo, nas a subtração e não a destruição.
escolhas com que é confrontado, desenvolve, A filosofia de Badiou é, como quisemos
na situação que é a sua, as consequências de assinalar neste texto, uma obra em aberto, em
um acontecimento: por isso é ela que inscreve que o filósofo procura soluções, no campo da
as vidas individuais, ou os corpos particulares, teoria, que possam corresponder aos desafios
através de uma orientação, numa verdade concretos da política real e aos impasses da
universal: a Ideia é a imanência das verdades. teoria. O presente momento filosófico deste
Sem a orientação de uma ideia, a política autor aponta, de certa forma, com o papel
arrisca-se a ser dominada pela pura negação atribuído à Ideia, para uma conceção mais
e pela destruição, sem que seja discernível clássica da relação entre teoria e prática que
qualquer intenção universal17. É o caso, para corre, em nosso entender, o risco de resultar em
ele, das revoltas de Londres de 2011. Longe tomadas de posição meramente principiais, como
de as condenar, Badiou aponta antes a sua é o caso de algumas intervenções recentes19.
insuficiência, reconhecendo-lhes o mérito de Mas convém não esquecer que, já antes, a oficina
sinalizar que o Estado não possui os meios de deste filósofo soube estar à altura dos tempos
impedir que ocorram, nos espaços desolados por que corriam. Esperemos então para ver.

15 - Cf. BADIOU, Alain (2009), Seconde Manifeste pour la Philosophie. Paris: Fayard, pp. 119-130.
16 - Cf. BADIOU, op. cit., p. 119.
17 - Cf. BADIOU, Alain (2011), Le Réveil de L’Histoire. Circonstances 6. Paris: Lignes, p. 41.
18 - Idem, p. 43.
19 - http://www.versobooks.com/blogs/1547-true-communism-is-the-foreignness-of-tomorrow-alain-badiou-talks-in-athens

60
cinema ler, VER, OUVIR

Tal pai, tal filho, Hirozaku Koreeda, Japão, 2013

Tal pai, tal filho.


Variações sobre a paternidade
Fabrice Schurmans

Dois casais descobrem que os seus filhos de o contexto social de referência, mas a questão
seis anos foram trocados à nascença. Torna-se central não tem em si nada de especificamente
necessário tomar uma decisão: privilegiar os laços nipónico e, tal como as Variações, ultrapassa as
de sangue e voltar a trocar as crianças ou escolher fronteiras e significa, da mesma maneira, que
as ligações afetivas e deixar Keita e Ryusei nos seus comove para lá de Tóquio.
respetivos lares. Tudo parece opor as duas famílias, os Nono-
miya e os Saiki, desde os espaços de vida e de
Tal pai, tal filho funciona a partir de ligeiras lazer às relações intrafamiliares. Os Nonomiya
variações sobre o mesmo tema, o da nature- vivem no coração de uma metrópole japonesa,
za da paternidade, da ligação filial, da relação com uma vegetação rara, se não mesmo inexis-
com a família. Não causa assim surpresa que tente. A sequência da viagem de carro até aos
as Variações Goldberg de Bach ritmem o filme, subúrbios onde moram os Saiki é reveladora,
como se pretendessem enfatizar o seu conte- já que o que nos dá a ver em câmara subjetiva,
údo. No entanto, a interpretação das Variações numa escala de planos de semiconjunto, é a au-
por Glenn Gould ganha significado igualmente sência de perspetiva, a presença constante de
a um outro nível: o filme é japonês, tal como é muros, de autoestradas, como se, naquele ins-

61
tante, o realizador transformasse o espaço em está em causa num dos diálogos fundamentais
metáfora da cegueira do pai de Keita, com a sua do filme. A Ryoata Nonomiya, que explica que
obsessão pelo trabalho como o maior obstáculo nunca brincara com o pai aos papagaios de pa-
a impedir este pai de compreender a natureza pel para explicar por que razão ele nunca o fize-
da relação com o que fora durante seis anos o ra com Keita, Yudai Saiki responde que é possí-
seu filho. Não é surpreendente que, num filme vel romper com o peso da tradição, com a linha
com movimentos de câmara subtis e discretos, reta e aceitar os meandros.
os únicos travellings facilmente identificáveis Para além disso, é significativo que seja fre-
acompanhem a viagem de carro dos Nonomiya quentemente através da natureza, de uma rela-
até ao domicílio dos Saiki. Mas fazem-no através ção especial com a natureza, que Ryoata ganha
de uma escala de planos diferentes a fim de re- consciência de elementos essenciais. É o caso
alçar, por um lado, a mudança espacial - deixa- de uma outra sequência durante a qual a perso-

O tema que estrutura o filme de Hirozaku remete assim, antes


de tudo, para a natureza da paternidade; o filme é permeado pela
questão do elemento dominante na relação que une o pai ao seu
filho: o biológico ou a educação.

se o centro da cidade para os subúrbios - mas nagem deambula por uma floresta artificial na
também os cabos de alta-tensão que atravessam companhia de um entomologista, que em tem-
o céu. Estes ganham de facto outro significado, pos fora, como ele, arquiteto. Nonomiya parece
pois é possível interpretá-los como metáfora imerso num abismo de reflexão até descobrir
da existência humana: a procura das origens que, mesmo nesta floresta criada pela tecnoci-
numa distância inacessível, evoluindo em pa- ência, há lugar para o inesperado. É o caso, por
ralelo com outras existências, próximas umas exemplo, dos insetos vindos de fora, das cigar-
das outras, mas ao mesmo tempo distintas e a ras cujas ninfas vivem uma quinzena de anos
repercutirem-se noutras distâncias igualmente antes de atingirem a maturidade. Nonomiya,
inacessíveis. numa espécie de revelação, parece ganhar cons-
Quanto ao espaço familiar, este é construí- ciência do aspeto aleatório, por vezes incontro-
do de maneira não apenas antagónica (o apar- lável, da existência.
tamento luxuoso dos Nonomiya em oposição à O tema que estrutura o filme de Hirozaku
casa humilde dos Saiki), mas igualmente com remete assim, antes de tudo, para a natureza da
um significado num outro nível, mais uma vez paternidade; o filme é permeado pela questão
metafórico, pois o que se revela em Tóquio é a do elemento dominante na relação que une o
obsessão vã de um pai pela ordem, pela line- pai ao seu filho: o biológico ou a educação. A
aridade, pela legibilidade em contraponto ao problemática do sangue assombra inicialmente
outro pai, o que aceita os riscos do quotidiano, Nonomiya, uma vez que a personagem acredita
recusando a linearidade que supostamente liga poder explicar o que considera serem as fra-
as gerações. É revelador que um dos encontros quezas de Keita pela falta de ligação biológica,
entre as duas famílias tenha lugar nas margens enquanto a sua mulher, tal como a família Saiki,
de um rio longe da cidade, um espaço que re- privilegia a construção e a sedimentação dos
mete, através dos meandros do rio, para o que afetos a partir do nascimento.

62
Subtilmente, o realizador-guionista repre- são em parte as nossas vidas: caminhos parale-
senta a evolução complexa, feita de avanços e los, por vezes próximos, por vezes longínquos,
recuos, de Nonomiya, que, confrontado com a separados por obstáculos, mas, por não sermos
dolorosa verdade, assim como com uma expe- totalmente determinados pelo biológico, cami-
riência familiar radicalmente distinta, compre- nhos que nós podemos escolher fazer cruzar. É
ende o predomínio do afetivo sobre o biológico o que acontece neste caso, pois é na junção dos
(neste sentido, o título original transmite me- caminhos que se esboça uma reconciliação.
lhor o propósito do filme: A seguir, ele torna-se
pai). Uma das sequências finais consegue pôr em No final do percurso, Nonomiya parece finalmente
cena esta evolução através da metáfora, uma vez ter aceitado a possibilidade do meandro. Tal Pai,
mais. Keita e Ryoata caminham em vias paralelas Tal Filho é, como se terá percebido, um filme sobre
separados por um corredor vegetal, o pai a diri- a família, mas é simultaneamente um filme com
gir-se ao filho a fim de pedir desculpas pelo seu um forte teor social, que, ao tomar partido pela
comportamento até então. Como os cabos de alta família Saiki, remete o trabalho para o lugar que
tensão, estas vias paralelas remetem para o que lhe deve ser conferido na existência humana.

LER, VER, OUVIR


cinema

63
Hannah Arendt, Margarethe von Trotta, Alemanha-Luxemburgo-França, 2012

Do self-hating Jew
ao elogio da dissidência
Júlia garraio

Haveria numerosos caminhos e muitas mais construção, através do cinema, de uma Histó-
perspetivas para abordar a figura de Hannah ria alternativa da Alemanha com filmes sobre
Arendt, testemunha e pensadora de questões mulheres com um papel histórico de relevo.
e de momentos fundamentais do século XX. Hannah Arendt deve ser visto assim no segui-
Desde a relação com um nome que se tornou mento de obras da realizadora como Die bleierne
sinónimo da colaboração intelectual com o na- Zeit (1981), inspirado livremente na relação
zismo (Heiddeger), à experiência pessoal do an- entre a líder da organização terrorista RAF
tissemitismo alemão, passando pela reflexão in- Gudrun Ensslin e a sua irmã, Rosa Luxemburg
contornável sobre o totalitarismo, o sionismo, o (1986), um biopic da figura homónima, Rosen-
julgamento de Eichmann ou o conceito de mal, trasse (2003), melodrama que invoca o protesto
a vida, a obra e a personalidade de Arendt são em 1943 de algumas mulheres berlinenses pela
de uma tal riqueza que o projeto de realizar um libertação dos maridos judeus, ou Vision (2009)
filme sobre a filósofa surge, à partida, como ta- sobre a mística Hildegard von Bingen.
refa hercúlea. Qualquer que tivesse sido a abor-
dagem escolhida seria inevitável uma sensação Para o filme sobre Arendt, von Trotta escolheu
de simplificação, de silenciamento, de deturpa- o período de maior projeção pública da filósofa:
ção, tal a complexidade das questões inerentes as reações inflamadas à publicação dos seus
à vida de Arendt. artigos sobre o julgamento de Adolf Eichmann
Margaretta von Trotta optou por filmar a para a The New Yorker, posteriormente reunidos
filósofa a partir de prismas profundamente no livro Eichmann in Jerusalem (1963), que
enraizados no contexto sociocultural de refe- desencadearam uma espécie de “guerra civil”
rência da cineasta alemã, ainda que a ele não entre a comunidade intelectual nova-iorquina
se limitem. O primeiro tem a ver com o projeto da altura, onde se encontravam numerosos
feminista de von Trotta de contribuir para a judeus alemães exilados.

64
Arendt foi insultada, repudiada por amigos, nal - viu-se entretanto reforçado (lembremos
acusada de arrogância, insensibilidade e trai- o estudo de 1992 de Christhopher Browning
ção ao povo judeu, em suma, foi apelidada de Ordinary Men). A discussão do papel dos líde-
self-hating Jew. Este conceito tem as suas ori- res judeus na deportação tão pouco causa atu-
gens precisamente no espaço alemão (jüdischer almente tais reações inflamadas. O que move a
Selbsthass), onde foi aplicado a intelectuais de realizadora de Hannah Arendt não são os pontos
origem judaica como Otto Weininger (1880- centrais da polémica nem a questão da identi-
1903), cujas críticas ao judaísmo foram recupe- dade judaica (talvez por isso a crítica de Arendt
radas pelo antissemitismo alemão. Atualmente, ao sionismo ocupe um lugar marginal no filme).
o termo é recorrente contra figuras proeminen- O que interessa a von Trotta é a maneira como
tes de origem judaica que criticaram aspetos do os ataques a Arendt permitem à cineasta fazer
sionismo e certas políticas do Estado de Israel, a apologia do caminho de não compromisso, do

O que interessa a von Trotta é a maneira como os ataques


a Arendt permitem à cineasta fazer a apologia do caminho de não
compromisso, do intelectual que não submete o seu pensamento
às pressões do seu grupo.

como Noam Chomsky, Norman Finkelstein, intelectual que não submete o seu pensamento
Amira Haas ou Judith Butler. O conceito self- às pressões do seu grupo. A apologia da consci-

LER, VER, OUVIR


hating Jew é obviamente controverso: tratar- ência individual contra o coletivo seria fácil se
se-á de uma estratégia de retórica usada para não tivéssemos de lidar aqui com o espectro do
desacreditar e silenciar vozes de judeus discor- antissemitismo.
dantes ou estarão essas personalidades, com o
seu pensamento crítico, a dar munições para Oferecendo a história da Alemanha casos de
a perpetuação do antissemitismo, agora sob a apropriação de vozes de judeus para promover
máscara da defesa dos direitos humanos e do o antissemitismo e justificar o extermínio, tendo
anticolonialismo? em conta a sobrevivência do antissemitismo
Este pano de fundo é central para entender- aos campos de morte, a opção pela dissidência
mos o filme de von Trotta, mais importante torna-se tortuosa. cinema
talvez do que o teor da controvérsia em torno
do livro de Arendt. A questão da banalidade A moral do filme parece ser: por muito do-
do mal goza atualmente de um certo consenso. lorosa que seja a pressão coletiva, mesmo em
É certo que Arendt é por vezes acusada de ter situações em que os receios desse grupo se-
interpretado incorretamente Eichmann: não jam legítimos e os seus apelos à coesão com-
seria um mero burocrata a seguir ordens mas preensíveis, é função do intelectual não ceder
um convicto antissemita (mas uma tal formula- e manter-se fiel ao seu pensamento. Por isso,
ção não será uma simplificação da interpretação é tão importante no filme a focalização na “di-
que Arendt fez de Eichmann?). Porém, o argu- mensão pessoal” da filósofa: o profundo carinho
mento central da filósofa - os grandes crimes por amigos com quem não partilha opiniões po-
da humanidade podem ser cometidos por gente líticas e a dor de se sentir rejeitada por eles. A
que noutro contexto teria levado uma vida ba- dissidência de Arendt é assim filmada por von

65
Trotta como algo heroico que contém mes- a contar ao longo dos anos através de outras
mo uma vertente de sacrifício emocional. Por mulheres que resistiram à pressão e às
isso, também Eichmann tinha de ser retratado expectativas das sociedades em que estavam
segundo a imagem simplificada da interpreta- inseridas. Em suma, uma narrativa de apologia
ção popularizada de Arendt: como o burocrata, da dissidência no feminino que, neste filme,
o “zé-ninguém” que renunciou à capacidade de habilmente escamoteou ou abordou apenas
pensar e assim de julgar, ou seja, como o contra- ao de leve aspetos da vida e do pensamento
ponto da filósofa Arendt, para quem pensar le- de Arendt que pudessem surgir como mais
vava obrigatoriamente à crítica e ao juízo moral. controversos aos olhos do público alemão da
atualidade e que, por isso, pudessem tornar
Não será o retrato correto de Eichmann, como a dissidência da filósofa menos consensual
acusaram alguns críticos a par das últimas (os comentários problemáticos sobre os judeus
investigações históricas sobre o criminoso não alemães; as fortes objeções ao sionismo).
de guerra nazi, mas é o que serve a história E é aqui que se torna visível como uma
que von Trotta nos quer contar, uma história cineasta formada no “novo cinema alemão”
de elogio à dissidência, de celebração da dos anos 1970 se tem vindo a aproximar
resistência e do não conformismo. Trata-se, progressivamente do “cinema do consenso”
afinal, da narrativa que a cineasta tem vindo da Alemanha reunificada.

Ryohei Noda / flickr

Hannah Arendt

66
música ler, VER, OUVIR

Al-Mutamid, Cesar Carazo,  Eduardo Paniagua,  El Arabi Serghini,


Jamal Ben Allal, Janita Salomé e Quiné Teles, 2013

Al-Mutamid
Helena Romão

Na história portuguesa há um período obs- Almorávidas, uma tribo de guerreiros oriundos


curo, tratado com indiferença como se não fi- do Sahara. Al-Mu’tamid chamou-os como re-

LER, VER, OUVIR


zesse parte de nós e ao qual nos referimos ge- forços numa guerra com D. Afonso VI, Rei de
nericamente como “o tempo dos árabes”. Ora, Leão e Castela (avô de D. Afonso Henriques),
nem os “árabes” eram um grupo homogéneo, mas acabaria por ser traído por eles, acusado
nem, na sua diversidade, alguma vez deixaram de se desleixar com os valores do Corão. Pren-
de fazer parte de quem somos, desta mistura deram-no e tomaram o poder. Mais tarde, tam-
de celtas, iberos, fenícios, gregos e romanos… bém os Almorávidas viriam a ter igual sorte,
(tudo isto antes do séc. XV). mas isso já não cabe nesta história.
Não foi há muitos anos que começaram a sur- Al-Mu’tamid foi então levado para Aghmat,
gir os primeiros livros sobre esta época e as tra- a sul de Marraquexe, onde viveu na prisão o
duções de poemas dos muitos poetas algarvios e resto dos seus dias e escreveu sobre o seu des-
alentejanos do Al-Andaluz (veja-se, a título de tino e a sua terra. música
exemplo, a obra de Adalberto Alves). No Algar- Al-Mutamid junta músicos portugueses, es-
ve, algumas localidades começaram timidamen- panhóis e marroquinos, especialistas em música
te a assumir a sua história e herança artística. árabo-andaluz medieval (ou seja, do Al-Anda-
O projeto Al-Mutamid leva-nos a descobrir luz) e em música tradicional. Alguns deles têm
esta época, os seus períodos, as suas gentes e já trabalho conjunto na investigação e na inter-
a sua arte através do rei e poeta Al-Mu’tamid. pretação da música desta época.
Nascido em Beja (1040), no centro do então Depois de dois concertos, o primeiro em Lis-
chamado Al-Andaluz, foi príncipe em Silves e boa a 15 de Fevereiro de 2014 e, no dia seguin-
rei da Taifa de Sevilha. É dele a única presença te, em Beja, o projeto pretende produzir um CD
portuguesa nas Mil e Uma Noites. e um documentário.
O fim da sua vida corresponde também ao O concerto de Lisboa, no São Luiz Teatro
declínio do período das Taifas e à chegada dos Municipal, juntou em palco todos os músicos do

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projeto. A ordem das peças seguiu a cronologia importância na época. Ben Allal tocava o vio-
da vida do poeta, levando-nos a acompanhá-lo lino na vertical: com o instrumento apoiado
na longa viagem de Beja a Aghmat, passando sobre um joelho e o arco na horizontal, como
por Silves, Sevilha, Tânger e Marraquexe. Dos se de um pequeno violoncelo se tratasse. Entre
poemas de juventude, sobre o amor e a amiza- as percussões havia instrumentos semelhantes
de, evocativos de tardes descansadas no Palácio ao adufe, uma das nossas heranças diretas da
dos Balcões em Silves, o tom vai amadurecendo cultura árabe.
até aos poemas de profunda tristeza e desespe- Nos arranjos, o piano de Filipe Raposo - o
ro escritos na prisão. elemento estranho entre instrumentos antigos
A par da música, foi projetado um filme com - funde-se com os restantes, graças aos recur-
imagens atuais das estradas, mares e cidades sos harmónicos e rítmicos que realçam o cará-
percorridos, ao qual faltou apenas a indicação ter de cada canção e amplificam o volume geral.
de cada local. As três vozes, a portuguesa de Janita Salo-
Saltam à vista dois instrumentos de origem mé, a espanhola de Cesar Carazo e a marroqui-
medieval, o saltério (tocado por Paniagua) e a na de El Arabi Serghini, cada um ao seu estilo
fídula (tocada por Carazo), ambos representa- e na sua língua, mostram-nos que, apesar das
dos no Pórtico da Glória da Catedral de Santia- diferenças substanciais, é possível encontrar
go de Compostela, testemunho da sua grande uma sonoridade comum unificadora do projeto.

Al-Mu’tamid foi então levado para Aghmat, a sul de Marraquexe,


onde viveu na prisão o resto dos seus dias e escreveu sobre o seu
destino e a sua terra.

68
Cubaliwa, Azagaia, 2013

Azagaia:
quando o poder não corta a língua
João Mineiro

Já estávamos no ano de 2014 quando me absolutamente claro nos temas de que que-

LER, VER, OUVIR


apercebi que tinha perdido um dos grandes ria falar e nas denúncias que queria fazer, no
discos de rap e da música moçambicana do ano seguinte lançou a música Povo no poder
ano de 2013. É uma falha imperdoável. Não que lhe valeu uma ida à Procuradoria-Geral
apenas porque Azagaia é um dos mais inte- da República sob acusação de incitamento à
ressantes músicos da nova geração moçam- violência. A advogada de Edson, Maria Ali-
bicana, mas porque ele não é um rapper qual- ce Mabota, presidente da Liga dos Direitos
quer. É um rapper que, em 2007, sem pedir Humanos (LDH), afirmou ao semanário Sa-
autorização a ninguém, lançou um disco que vana que a acusação da Procuradoria “pre-
não deixou ninguém indiferente. Chamou-se tende amedrontar Azagaia”, feito que “não
Babalaze, desafiou as elites políticas e econó- vai lograr posto que ele não está sozinho”. A
micas moçambicanas e arrastou multidões de presidente da LDH confessou que gosta da
música
jovens. O álbum valeu-lhe várias formas de música Povo no Poder e “promete acompanhar
perseguição política. Nenhuma delas surtiu o jovem autor até ao fim da procissão”. Não
efeito e cá está, de novo, para a música e para o demoveram.
o resto. Em dezembro 2007 e de 2008, Azagaia
O músico é Edson da Luz. Mais conhe- lançou Obrigado Pai Natal e Obrigado de Novo
cido por Azagaia. Este segundo álbum é o Pai Natal, onde não se inibiu de criticar dura-
Cubaliwa e veio dar solidez e consistência mente o ano político, os governantes e a elite
aos trabalhos que tem vindo a desenvolver económica do país, e, em 2011, foi detido pela
nos últimos anos. Este é um disco que demo- polícia antes de chegar a um concerto onde
rou seis anos a suceder à verdadeira bomba iria apresentar o vídeo de A Minha Geração
atómica que tinha representado Babalaze. e onde ia também cantar Primeira carta para
Se nessa estreia em 2007 Azagaia tinha sido o Ministro da Cultura. O pretexto da deten-

69
ção foi a posse de marijuana. Foi um pretex- visão entre os negros. Em Maçonaria interpe-
to. Como qualquer outro. Não dava jeito que la-nos sobre as desigualdades que persistem
Azagaia continuasse a contaminar de insub- no mundo. Em Revolução já ou Começa em ti
missão os espíritos dos jovens moçambicanos instiga-nos a sermos atores das mudanças
que cantavam coletivamente e com convicção que queremos ver no mundo. Azagaia é um
as suas letras acompanhadas de beats impo- músico de combate e é impossível separar a
nentes. sua identidade musical da sua identidade de
Depois do sobressalto que significaram africano e da identificação política, social e
músicas como As mentiras da verdade, Ciclo de cultural que procura construir com as suas
Censura, As verdades ou A Marcha, este seu se- músicas.
gundo disco, o Cubaliwa, abre sem rodeios ao Essa ligação está presente provavelmente
som progressivo de uma marcha. É a marcha na melhor música do disco. Feita em parceria
de Azagaia. E é imparável. com um grande músico angolano, o MC K,
e com o rapper Valete, propõe uma narrativa
Achavam que eu não voltava? Achavam? a três escalas: a angolana, moçambicana e a
Bem-vindos ao Cubaliwa portuguesa. Para concluir sobre as dificulda-
Manos pensaram que cortaram a minha des, a história e os desafios dos povos destes
língua
três países. Valete é, como de costume, direto
Mas eu falo em Ronga, falo em Sena,
com as palavras:
falo em Chitswa
Eles não sabem bem qual é a minha língua
Zédu, sua filha Isabel e seus generais,
Disseram as más-línguas que eu era filho
Compram Portugal, branqueiam capitais
da oposição
Grandes acionistas da Galp, Zon, BCP
Que eu não sabia o que escrevia e que por traz
BPI, parcerias com a SONAE e a PT,
havia uma mão
Compraram o Carreio da Manhã, Sol, Diário
(...)
de Notícias, Sábado, TSF, Record, Jornal de
Isso inclui censurar, caluniar a minha música
Notícias, Portugal, lavandaria de dinheiro
Levar-me a Procuradoria da República.
Que não esconde o cheiro do imoralismo
Está lançado o mote para um disco de crí- financeiro.
tica e de algumas boas novidades. A começar
pelos beats que alimentam músicas mais di- A música chama-se Países do Medo e vai
versificadas e fluídas. Mantém o típicos beats ao essencial. Não para insistir no medo, mas
duros nas músicas mais discursivas e de in- para acompanhar a revolta. Azagaia é tam-
terpelação direta mas desenvolve beats mais bém assim: um músico que acompanha lutas,
trabalhados e melódicos em músicas como corações e inquietações várias. É dono de um
Miss e Mister Moçambique, Começa em ti, Carne flow inconfundível, agressivo quando tem que
para Canhão ou, num tom mais reggae, A mi- ser, melódico quando a música o exige mas
nha geração. Beats diversos e bem trabalhados sempre íntegro e fiel à música que quer fazer
com o conteúdo e a forma das letras. Já sobre e às pessoas que através dela quer represen-
os assuntos tratados não se podiam esperar tar.
desvios. É um músico de coerência. Começou em
Em Cão de raça junta a musicalidade do Babalaze, passou agora por Cubaliwa e sabe
Guto para traçar uma história dos percursos para onde vai. Ou melhor: sabe exatamente
do colonialismo, do neocolonialismo e da di- com quem caminha.

70
Livros ler, VER, OUVIR
Antonio Tabucchi
Viagens e outras viagens
D. Quixote, 2013

Um livro
sem fronteiras
João Curvêlo

Viagens e outras viagens está longe de se con- e usavam chapéu”1 à intransigência na urgência
fundir com um guia turístico. Nesta obra, An- de “desberlusconizar a Itália”2.
tonio Tabucchi leva-nos numa viagem por um Nas viagens, como na literatura e na polí-
mundo onde as identidades se impõem face às tica, o “nomadismo intelectual”3 de Tabucchi
bandeiras e interpela-nos sobre a pretensão de atravessou os cinco continentes e pisou o chão
apropriação do espaço e do tempo. É que, como de dezenas de países. As crónicas que o autor
adverte o autor na nota que precede as crónicas, reúne neste livro foram escritas com propósitos

LER, VER, OUVIR


“pousar os pés no mesmo chão durante toda a distintos e em tempos diferentes. Ainda que o
vida pode originar um perigoso equívoco, o de facto de as datas nem sempre estarem assinala-
fazer-nos crer que essa terra nos pertence”. das dificulte a leitura de alguns elementos cir-
Antonio Tabucchi nasceu na comuna de cunstanciais, a coerência estilística e a estrutu-
Vecchiano, na região italiana de Pisa, em 1943. ração da obra permitem-nos seguir uma lógica
Chegaria a Portugal mais de duas décadas de- que nos transporta das “viagens com objetivo”
pois, no verão de 1965, depois de ter ganho uma aos mais improváveis encontros de um “ima-
bolsa de estudo para o melhor aluno do cur- ginário construído por interposta pessoa”. As
so de português. Fez de Lisboa a sua morada, crónicas contêm, ao mesmo tempo, a crítica dos
vindo a falecer nesta cidade na manhã do dia percursos maquinais do turismo pré-formatado
25 de março de 2012. Pelo caminho, empres- e interrogações sobre as lógicas hierarquiza- livros
tou à política um pouco do seu desassossego. das de construção dos lugares (provavelmente,
Apoiou Mário Soares e foi candidato pelo Bloco com o sentido próximo daquele com que Brecht
de Esquerda ao Parlamento Europeu. Com ou questionara a paternidade da construção de Te-
sem atividade pública, utilizou a escrita como bas e Babilónia). Afinal, o que é um lugar sem
instrumento de um combate que não conhece a sua gente? Ou o que é um viajante sem “um
fronteiras: da crítica do salazarismo num Por- olhar afetuosamente atento ao quotidiano do
tugal atrasado em que “todos vestiam de preto povo miúdo da cidade”?

1 - “Antonio Tabucchi. Errante narrativa do desassossego”, jornal i (26 de março de 2012).


2 - “’Desberlusconizzare’ l’Italia” foi o título do último artigo de Tabucchi no jornal El País (12 de novembro de 2011).
3 - “Tem que me apetecer escrever como me apetecem pastéis de nata”, entrevista ao jornal i (4 de outubro de 2010).

71
As referências literárias, mesas d’A Brasileira e cuja
inteligentemente entrelaça- obra foi estudada e traduzida
das nas descrições do espaço, por Tabucchi. “Viajar! Perder
transformam as curtas cróni- países! / Ser outro constan-
cas em fotografias pormeno- temente”, começa assim um
rizadas dos lugares e dos seus poema escrito por Pessoa em
povos. É assim, por exemplo, 1933. É disso que tratam es-
quando deambulamos com tas crónicas de Tabucchi: do
Jorge Luis Borges pelas ruas que se ganha a cada chegada,
de Buenos Aires, onde “resta a mas também do que se perde
beleza imóvel e onírica de uma a cada partida.
cidade metafísica surpreendida Antonio Tabucchi “Sou um viajante que nun-
no seu mistério”. Ou quando, ca fez viagens para escrever
fugindo do Cairo prometido pelos catálogos sobre elas, o que sempre me pareceu estúpido.
comerciais, nos encontramos no souk do bair- Seria como se alguém quisesse apaixonar-se
ro de Naghib Mahfuz, escritor egípcio que re- para escrever um livro sobre o amor”, avisa o
cebeu o Prémio Nobel da Literatura em 1988. autor nas primeiras páginas. Viagens e outras
Mais tarde, na Lisboa que nos faz sentir uma viagens é um livro sobre os lugares e sobre as
“nostalgia do futuro”, tomamos um café ex- pessoas que Tabucchi conheceu. Mas é mais do
presso à italiana “na companhia daquele senhor que isso. É um mapa aberto, que depressa nos
de sorriso inefável”. O sorriso é o de Fernando faz perceber que “o mundo é mais do que este
Pessoa, cuja estátua de bronze ocupa uma das buraco em que vivemos”.

Ainda que o facto de as datas nem sempre estarem assinaladas


dificulte a leitura de alguns elementos circunstanciais, a coerência
estilística e a estruturação da obra permitem-nos seguir uma lógica
que nos transporta das “viagens com objetivo” aos mais improváveis
encontros de um “imaginário construído por interposta pessoa”

72
Manuel Vázquez Montalbán
Os Mares do Sul (1979)
Edições ASA, 2008

Os mares do Sul
Rita Calvário

Descobrir o que aconteceu a “um morto de- para comprar um buraco naquela cidade nova
saparecido” é como Pepe Carvalho descreve a para uma vida nova”. Mais vale uma pobreza
missão que lhe cabe ao longo deste romance. sórdida que medíocre, diz-nos Pepe.
Detetive privado em Barcelona, Pepe é contra- Mas Pedrell era “um homem rico com in-
tado em vésperas de eleições municipais pela quietudes”, dos que “esquiavam com o rei e
viúva de Stuart Pedrell para indagar sobre o fumavam charros com poetas de esquerda”.
seu desaparecimento um ano antes de o seu Uma “vítima do puritanismo franquista”, tinha
corpo ser encontrado “esfaqueado entre latas e amantes e dedicava-se às artes e literatura. O
cascalho”. seu sócio Planas descreve-o como um “empre-

LER, VER, OUVIR


Pedrell pertencia aos ricos que os “ricos des- sário nihilista” que havia lido demasiada litera-
te país respeitam” por ter “feito dinheiro sem tura e convertido o trabalho em paródia. Nada
esforçar-se demasiado”. De fortuna feita pelos como ele, candidato às eleições em nome dos
negócios coloniais de família e a importação de empresários que “foram, são e serão empresá-
caseína durante o bloqueio económico porque rios em qualquer regime político” e símbolo do
ao “Ministério do Comércio lhe pareceu muito novo capitalismo em ascensão. O outro sócio,
patriótica a coisa”, durante o “milagre económi- marquês de Munt, é um excêntrico de linha-
co do regime franquista” (1959-1975) dedicou- gem que crê que “os ricos têm de demonstrar
se a “especular com o único que em realidade que o são” e apenas se atemoriza que “a possibi-
[os burgueses] tinham: o solo”. É assim que lidade de gozar a vida desapareça”. livros
nasce o bairro de San Magín, local do crime É assim, e no meio de uma crise de idade, que
e refúgio de Pedrell na sua fuga aos mares do nasce o fascínio de Pedrell pelos mares do sul.
sul. Neste bairro de dez a doze mil habitantes, “Também ele queria ser Gauguin, deixar tudo
“maioritariamente habitado por proletariado e ir-se aos mares do sul”. A esse sul “símbolo
migrante”, faltam serviços, ocorrem “inunda- de calor e da luz, da vida, do renascer do tem-
ções quando transbordam as canalizações” e po” e que buscou em San Magín à distância de
“as casas parecem feitas de papel”. Nesta “feia várias paragens de metro. “Recuperar o metro
pobreza prefabricada por especuladores prefa- foi recuperar a sensação de jovem fugitivo que
bricados prefabricadores de bairros prefabrica- contempla com menosprezo o gado vencido”,
dos”, estamos perante o “logro do progresso”. recordando a “sua própria singularidade e ex-
Aqui nem os seus moradores “podem autodes- celência contra a náusea que parecia envolver
truir-se até que paguem as dívidas que devem a medíocre vida dos passageiros”. Mas mais do

73
que isso, estava disposto a ser “castigado por a definir quem é quem. Com ele caminhamos
todos os pecados de classe dominante que havia os espaços, hábitos e ambiguidades desta gente.
cometido” no seu “safari emocional”. É então Não fosse a “ambiguidade moral” a “chave da
que vive um ano como contabilista, envolve-se novela negra”.
com uma operária fabril de esquerda, vai com Amante da boa cozinha, alcoólico, ex-comu-
frequência a reuniões sindicais onde “era dos nista, típico anti-herói com o papel de “descon-
moderados”. Numa desavença em que o choque fiar sempre da moralidade das pessoas”, queima
social e cultural é evidente, é esfaqueado e bus- livros para se vingar da “cultura que o isolou
ca ajuda no seu antigo mundo, ao qual nunca da vida”. Pepe não é um idealista, mas sim um
deixou de pertencer. Morre, mas é um morto desiludido sem que seja um resignado. Antes
incómodo para um mundo burguês de relações de mais está a desilusão com uma transição de-
amorosas submersas, negócios especulativos e mocrática que, afinal, pouco ou nada alterou as
em período eleitoral num contexto difícil para relações de poder que vinham de trás. Mas esta
a burguesia. desilusão não busca a resignação de um escape
Revelado o responsável do crime à viúva, “a um lugar donde não queira regressar”, um
não há culpados. Uma gravidez incómoda que lugar que também ele busca. “Há quem tenha

É assim, e no meio de uma crise de idade, que nasce o fascínio


de Pedrell pelos mares do sul. “Também ele queria ser Gauguin,
deixar tudo e ir-se aos mares do sul”.

não será revelada por uma “rapariga moderna, léxico para expressar essa necessidade e quem
trabalhadora, de esquerdas”, justifica-o. Uma tenha dinheiro para satisfazê-la. Mas milhões
viúva que apenas se realiza ao assumir os ne- e milhões de pessoas querem ir até ao sul”.
gócios do marido também. Tudo poderia então Afinal, o caso de Pedrell mostra que “fugir da
continuar como sempre. Burguesia de um lado, própria idade, da própria condição social, leva
gente trabalhadora do outro, sem incomodida- à tragédia”.
de. Até porque, afinal, em “nenhum programa
eleitoral se prometia derrubar o que o franquis- O retrato que nos traça Montalbán da sociedade
mo havia construído”. catalã no período pós-franquista traça as raízes
Pepe é um condutor de todo este enredo. É e atualidade da sociedade espanhola, marcada
ele que nos leva, entre refeições, a conhecer as por uma transição que pouco mudou o poder
personagens da burguesia catalã, do operariado de classe. Hoje a burguesia continua a ser a de
e da pobreza medíocre dos bairros periféricos, antes e a gente trabalhadora, pobre, prostituída,
da prostituição e da pobreza sórdida do centro endividada só alargou em diversidade.
de Barcelona, durante o período da transição A sociedade reconfigurou-se mas não perdeu
democrática após a morte de Franco. Leva-nos a sua estrutura. A fuga não é possível sem que
também a sindicalistas e polícias descontentes se alterem as relações deste poder económico,
por razões opostas. E a artistas “ainda no parti- social e cultural. Só aí se encontrará esse lugar
do” que se vendem à burguesia. Com ele somos que “busca todo o mundo” sem se refugiar no
transportados ao passado da Guerra Civil e do imaginário nem no capital. Os mares do sul
regime franquista e como esse continua ainda afinal estão aqui.

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Colum McCann
TransAtlântico
Civilização, 2013

Tirar a Guerra
da História
mariana avelãs

Colum McCann é um dos muitos irlandeses corpos e mentes de quem a usa: a fusão do piloto
a viver nos Estados Unidos. Escreveu sobre os com o engenho das primeiras aeronaves, violen-
habitantes dos túneis do metro de Nova Iorque ta, dolorosa e arriscada, pode ser uma simbiose
(em Deste Lado da Luz) e sobre a vida e obra de tão intrínseca ao ato de voar que o conforto e
um bailarino russo (O Bailarino). TransAtlântico a segurança de hoje só geram incredulidade em
é o primeiro romance traduzido em Portugal em quem foi pioneiro a atravessar os ares. Quando,
que a Irlanda é assunto, mesclando personagens anos mais tarde, um passageiro, para quem voar
e eventos históricos reais com personagens fic- é apenas o meio mais rápido e eficaz de per-
tícias, numa teia de relações, espaços, símbolos correr longas distâncias, recusa um telemóvel

LER, VER, OUVIR


e eventos que dispensa grandes conhecimentos para contactar a família, rejeitando um conceito
prévios (embora a informação complementar emergente de comunicação em que a mobilidade
seja francamente escassa e fraquinha) para ser é redundante, está, igualmente, a escolher qual
um desafio deveras interessante. é o “seu tempo”, e onde é que o tempo deixa de
ser “seu”, pela tecnologia que (não) absorve. Os
TransAtlântico remete, desde logo, para a próprios modos de representação da realidade
imagem de uma massa de água que separa e definem e são definidos pela interação pessoa-
une dois continentes, cuja travessia contém em máquina: uma máquina fotográfica do início do
si um prefixo de transformação: as viagens século XX reproduz menos imagens do que o
humanas alteram a paisagem, as histórias fluxo contínuo de uma câmara atual, mas a ba- livros
individuais e coletivas, a consciência e os corpos. nalidade cria uma espécie de obsolescência da
imagem, insuportável para alguém que se habi-
O oceano Atlântico é atravessado várias ve- tuou a medir a complexidade do mundo através
zes ao longo da obra, e cada meio de transporte de uma sabedoria técnica agora desnecessária (e
define um período histórico, seja o dos barcos- que acaba por trocar a fotografia pela pintura).
caixão em que um terço da população irlandesa Do ponto de vista do espaço, o mosaico
fugiu à fome no século XIX, os aviões precários complexo de lugares, que opera não só entre a
dos primórdios da aviação de longo curso ou os América e a Irlanda, mas também com os eixos
navios e jumbos comerciais mais recentes. A re- norte-sul dentro de cada uma delas, representa
lação entre pessoas e tecnologia vai para além um mundo em perpétuo movimento. A viagem
do utilitarismo e da conquista da natureza pelo não é, então, o meio para ir de um porto a outro,
engenho humano, porque ela inscreve-se nos mas a maneira de ser os dois ao mesmo tempo.

75
Olhar para a diáspora irlandesa nesta perspetiva interessante com a ideia de que a viagem é o des-
permite enquadrar, não só os modos de espalhar tino, e a “nação” não mais do que um algoritmo
o verde pelo planeta, mas também a forma como de viagens entrelaçadas.
o verde nativo é matizado no processo. E o que Existe, portanto, toda uma conceção da histó-
TransAtlântico sugere é que esta coisa da nação- ria como uma máquina de gerar ciclos. Se os que
em-viagem começou ainda antes da grande vaga descrevi até agora são genéricos, quase forçados,
migratória causada pela famina, e vai para lá da é porque deixo para o fim a cicatriz mais óbvia,
forte comunidade irlandesa nos EUA, porque, o emplastro que assombra todos os capítulos do
afinal, a viagem de um escravo ativista pela abo- livro: a guerra. Seja na Europa em 1914 ou 1939,
lição em 1845 está de alguma forma presente na na secessão americana ou na Irlanda do Norte,
do senador americano que vai mediar o acordo ela está presente, a semear a terra de cadáveres e
de paz na Irlanda do Norte em 1999. a matar filhos sem que as mães alguma vez sai-
Mas é ao nível do tempo que toda esta manta bam em nome de que combate. Na verdade, as
de retalhos, em que as coisas se tocam mais do viagens também são exercícios de exorcismo do
que se encaixam, é mais percetível. O maior en- absurdo da guerra, tirando a memória das bom-
canto da obra reside, precisamente, na estrutura: bas de um bombardeiro numa viagem épica ou
cada capítulo corresponde a um determinado lo- cruzando o Atlântico de cá para lá várias vezes
cal/tempo, organizados de forma aparentemen- por semana, para dar forma ao Acordo da Sexta-
te aleatória, em que, progressivamente, se vai Feira Santa, que consubstanciou o processo de
tornando mais fácil encontrar o filamento que paz, ainda em vigor, na Irlanda do Norte.
o une ao(s) anterior(es). São geralmente pesso-
as, representadas ora na infância, ora no fim da Porém, se tudo é movimento e transformação, a
vida, cujo olhar retrospetivo permite ir cons- paz que outros nos deixaram em legado poderá
truindo um fio condutor no meio de todo este muito bem transformar-se na guerra de amanhã.
tremendo caleidoscópio. Mas também objetos, Não será por acaso que a crise de 1929 em Nova
nomeadamente uma carta, que acaba por acom- Iorque é revisitada na Irlanda em 2011 no fim do
panhar toda a narrativa, mais pela expectativa livro, e que ele até tem nome de um tratado que é
que gera, do que pelo conteúdo - num paralelo sinónimo de guerra sobre os povos.

Library of Congress

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Maria Paula Meneses
e Bruno Sena Martins (org.)
As Guerras de Libertação
e os Sonhos Coloniais
Almedina, 2013

As Guerras
de Libertação e os
Sonhos Coloniais
Diana ANdringa

A poucos meses do quadragésimo aniversá- e que continuará a dar-lhe inspiração no futuro,


rio do 25 de Abril de 1974, este livro organi- será sempre necessário onde a ordem, a paz e o
zado por Maria Paula Meneses e Bruno Sena progresso são desejados.” (p. 50)
Martins vem somar-se ao (também recente) Mas, sob o manto diáfano do “fardo do
Alcora O Acordo Secreto do Colonialismo, de Ani- homem branco” - de acordo com a visão de
ceto Afonso e Carlos de Matos Gomes, para Rudyard Kipling - o que, para lá de todas as

LER, VER, OUVIR


nos revelar como, sem deixar de proclamar a críticas ao appartheid sul-africano, à indepen-
“multirracialidade” portuguesa – esse “colonia- dência unilateral e branca rodesiana, à teimo-
lismo cordial” (p. 12) ironicamente referido por sia colonial portuguesa, preocupava o Ocidente
Boaventura Sousa Santos no Prefácio – Salazar era – como escreve Maria Paula Meneses – “a
e Caetano se aliaram aos governos racistas de manutenção dos seus interesses nesta zona do
Pretória, primeiro, e Salisbúria, depois, em de- Mundo” (p. 56). As revelações sobre o Exercício
fesa de um bastião branco na África Austral. Alcora mostram a Guerra Colonial portuguesa
“Nós estamos quase sós em África a defen- “como parte de um conflito regional – luta con-
der a civilização do Ocidente”, escrevia Salazar tra independências negras na África Austral – e
em Agosto de 1963 ao primeiro-ministro sul- como parte de um conflito gobal – parte do sis- livros
africano, Hendrik Verwoerd, continuando: “A tema da Guerra Fria na África Austral.” (p. 21)
guerra está longe das vossas fronteiras se Por- E esse enquadramento permite-nos compre-
tugal puder resistir. (...) Todas as formas de co- ender melhor alguns episódios subsequentes,
operação com Portugal são muito úteis à nossa como o retorno ou a vinda para Portugal de
resistência e à vossa defesa própria.” (p. 111) milhares de portugueses que viviam nas coló-
Três anos depois, a defesa da civilização oci- nias africanas, as prolongadas guerras civis em
dental servia também de leit-motiv a Verwoerd: Angola e Moçambique e a violência exercida,
“Esta república é parte do domínio do homem nos novos países, sobre militares africanos in-
Branco no mundo, [...] e esta parte do conti- tegrados nas tropas coloniais.
nente africano é, também, uma âncora da civili- Em “Regressos? Os retornados na (des)co-
zação Ocidental. O homem Branco, e o espírito lonização portuguesa”, Maria Paula Meneses e
que o ilumina, atributo que o trouxe até este dia Catarina Gomes propõem a análise da política

77
de povoamento promovida por Portugal em guerra colonial há um que se rompe de quando
relação a Angola e Moçambique, o desenvolvi- em vez, para acusar os que governavam Por-
mento de uma população de origem colona que tugal no período da descolonização – o tema
desenvolve idiosincrasias próprias e distintas dos militares africanos das Forças Armadas
das da Metrópole, nomeadamente, reivindica- coloniais que, nos pós-independência, foram
ções nacionalistas independentistas, que levam tratados como “inimigo interno” e, em muitos
a que o 25 de Abril comece por ser visto com casos, executados. No documentário As duas
entusiasmo, até que se tornem manifestas as faces da guerra, comentando essas mortes na
contradições “entre a população branca que Guiné, Pedro Pires, então Presidente da Re-
[...] deseja assegurar os privilégios detidos, e pública de Cabo Verde, foi claro em apontar
os ideais dos mvimentos de libertação“ (p. 87). a responsabilidade à “africanização da guerra”,

Entre esses silêncios acumulados sobre a guerra colonial há um que


se rompe de quando em vez, para acusar os que governavam Portugal
no período da descolonização – o tema dos militares africanos
das Forças Armadas coloniais que, nos pós-independência, foram
tratados como “inimigo interno” e, em muitos casos, executados.

As autoras recordam que, segundo dados levada a cabo por Portugal. E é esse o tema do
do INE, dos 505.078 “retornados” que chegam artigo de Carlos de Matos Gomes, “A africani-
a Portugal, 206.110 (cerca de 40%) tinham zação na guerra colonial e as suas sequelas.
nascido nas então províncias ultramarinas. E Tropas locais – os vilões nos ventos da His-
“para estes, a descolonização terá implicado tória”. Descrevendo os três tipos de unidades
mais uma ‘partida’ que um ‘retorno’” (p. 97), em que assentou essa africanização – unida-
sendo descrita como “geradora de uma espé- des regulares do Exército, unidades especiais
cie de amputação” (p. 99). Assim, escrevem, “a e unidades de milícias – Matos Gomes centra
questão da identidade de retornado, enquanto a questão da violência nas “forças especiais
situação dilemática produzida pela dissonância africanas” que conjugavam “capacidade opera-
entre a construção política de uma categoria cional” e “identificação político/ideológica [...]
que se quer unívoca e entre processos identi- com uma possível solução de tipo que seria con-
tários complexos, multidireccionais, posicio- siderado neocolonial” e nota que “a amplitude
nais e ambivalentes, constitui-se como uma das da africanização das forças portuguesas atingiu
mais centrais interrogações a que uma análise proporções únicas nos conflitos coloniais” (p.
futura deverá responder.” (p. 107) Até porque, 127) Recorda que quando se deu o 25 de Abril,
como escreveu Benjamin Stora, citado noutro “a tendência da africanização das forças ia no
passo, “as sociedades acumulam silêncios para sentido de transformar a Guerra Colonial em
que todos os cidadãos prossigam a sua vida em três conflitos internos nos três teatros de ope-
conjunto. É somente depois que as memórias rações” (p. 132).
dolorosas retornam à superfície. E então, às ve- Nada mais natural, portanto, que haver
zes, conflitos começam.” da parte dos dirigentes dos movimentos de
Entre esses silêncios acumulados sobre a libertação o temor de que esses militares

78
pudessem representar uma efectiva ameaça cício Alcora. E concluem que “foram também
militar. E se os africanos que integravam as resultado de algo que esteve, até muito re-
unidades regulares ou pertencentes à milícias centemente, enterrado em arquivos e relató-
foram tratados, diz-nos Matos Gomes, “sem rios secretos: o nascimento de um projeto po-
particular violência”, as unidades de “tropas lítico branco para a África Austral, um mapa
especiais africanas” “passaram de vitoriosas e imaginado onde coubessem, ainda, os sonhos
portadoras de um projecto político a vencidas coloniais.” (p. 177)
e a traidoras de ‘raça’ e de ‘classe’” (p. 133)
Terão sido, afinal, “vítimas de um processo Em resumo: um livro a ler, até para que
político que os ultrapassou.” (p. 140). não se corra o risco, como alerta Miguel
Não admira, assim, que no capítulo final, Cardina, citando Enzo Traverso, de que
“Estilhaços do Exercício Alcora: o epílogo a realidade colonial se transforme numa
dos sonhos coloniais”, Maria Paula Meneses, “memória fraca”, esmagada pela “memória
Celso Braga Reis e Bruno Sena Martins refi- forte” , “desmemoriada, feita de lacunas,
ram uma “ligação estrutural” entre as “guer- silêncios e lugares-comuns” (p. 38/39)- ou,
ras civis” nas ex-colónias portuguesas e o parafraseando Boaventura de Sousa Santos,
conflito anterior a que esteve ligado o Exer- “activa produção de não existência”(p. 15).

LER, VER, OUVIR


livros

Porto de Alcântara, Lisboa, 1975. Os caixotes dos “retornados” amontoam-se no cais.

79
Edward W. Saïd
Reflexiones sobre el exilio
Debolsillo, 2013

Edward Saïd
e a importância
das derrotas
João Carlos Louçã

A escrita é necessariamente um exercício política - existirá uma sem a outra? - do diálo-


de reflexão crítica sobre o mundo. Pelo menos go com os maiores pensadores do século XX,
a escrita que vale a pena. E se isto parece na filosofia e na história, a antropologia e os es-
demasiado óbvio para começar qualquer texto tudos da cultura como âncora de uma forma de
que mereça a pena ser lido, os critérios em que abordar o mundo que nunca desistiu de o trans-
consideramos o “valer a pena” e mesmo o que formar. Saïd foi académico e pensador, militante
significa “crítica”, são mais que variáveis. também. Em primeiro lugar da causa palestinia-
Acresce à subjetividade da apreciação o tempo na, do exílio forçado de um povo a que pertencia,
que tudo transforma. Como algum vinho, contra o senso comum e o paternalismo muito
a literatura de cordel, por exemplo, ou o mau norte-americano dos direitos humanos. Mas a
jornalismo, podem ser fascinantes lidos 50, 100 sua militância na OLP esbarrou com a realidade
ou 200 anos depois de escritos. de uma direção que traiu todas as expectativas
de um povo massacrado e perseguido, da pro-
O que se dirá do Nel Monteiro ou da Mar- messa de terra e paz ainda por cumprir. Na ra-
garida Rebelo Pinto em 2250? Melhor, o que dicalidade intelectual, em todas as batalhas per-
dirão os seus textos às pessoas do futuro sobre didas, o autor encontra o fio condutor para dar
a sociedade em que vivemos hoje e onde estes sentido à continuidade da resistência. E no título
autores têm sucesso? Não estaremos cá para ver, desta coletânea de textos, uma declaração incon-
mas podemos antecipadamente sentir a vergo- tornável, o autor escreve a partir do exílio, neste
nha inevitável de sermos seus contemporâneos e caso novairoquino, que, mesmo 30 anos depois é
por isso uma espécie de cúmplices. onde que se encontra porque é um exilado que
No caso do livro que aqui se recomenda, o se sente. E no seu primeiro texto, que serve de
tempo que passou sobre a escrita de cada um introdução ao livro, adverte contra o rancor e o
dos textos pode ser um argumento suplemen- pesar que são condições naturais do exilado, mas
tar para a sua leitura. Trata-se de 31 ensaios procura o olhar mais agudo da crítica que tam-
que Edward Saïd publicou entre 1968 e 1998, bém o acompanha. O exílio e a memória de mão
a sua maior parte em revistas de crítica literá- dada, como afirma. A forma como se recorda o
ria. O autor de Orientalismo, obra de referência passado é que determina como se vê o futuro.
fundamental para se olhar para a sociedade dita Nessa afirmação simples reside toda a comple-
ocidental, também escreveu sobre temas banais xidade do pensamento do autor neste Reflexiones
e deles fez artigos fascinantes. Da cultura e da sobre el Exilio.

80
E também escreve sobre as suas memórias ocidental, Edward Saïd reflete sobre os mecanis-
encontradas na arte de uma bailarina de dan- mos significantes das causas perdidas e como es-
ça do ventre, sobre Foucault e Lukács, Orwell tas podem ser vistas afinal como ganhadoras de
e Nietzsche, Hemingway e Hobsbawm, sobre algo, como tendo prevalecido apesar de derrota-
Moby Dick e o Tarzan de Johnny Weissmul- das, como virtuosas e fundamentais, capazes de
ler. Escreve, escreveu e isso é suficiente para ser deixar muito mais rastos para o futuro coletivo
lido. Porque, na escrita, Saïd transporta o mundo do que as forças que as derrotaram e que exter-
através do seu olhar cosmopolita, radical e ter- minaram os seus protagonistas. Saïd lembra-nos
no em simultâneo. Sem a pretensão de encontrar o exemplo de Sócrates, utilizado pela cultura
categorias para aquilo de que fala. Por vezes, oficial, para explicar que quando as virtudes
quase parece escrever ao ritmo que pensa. permanecem intactas, a morte devido a estas
Pode bem ser do formato do livro. Uma cole- virtudes é uma vitória. Claro que neste exemplo
ção de textos feitos para não serem livro e sim tudo dependeria daquilo que fossem considera-
objetos perecíveis em revistas periódicas que das virtudes, ou os exemplos virtuosos, dito de
cada nova edição parece querer apagar as ante- outra forma. Seria nesse sentido a Comuna de
riores, cada novo texto, crónica também, só lá Paris um exemplo de virtude que perdura nos
está para enfeitar a página e servir de mancha tempos contrariando a sua derrota pelas forças
ao grafismo que faz vender. Não faz mal, cada conservadoras da França imperial? Estará intac-
novo texto dirá outras coisas, às vezes as mes- ta a sua capacidade de servir de exemplo? Se-
mas a partir de pontos diferentes. Cada texto, rão os seus ensinamentos capazes de inspirarem
com a capacidade para nos agarrar até ao fim, gerações que hoje sejam capazes de transportar
sem contemplações à etiqueta ou conveniências as raízes desta experiência e libertá-la assim do
de circunstância, sem medo do futuro nem nos- peso infame das pedras do Sacré Coeur? A res-

LER, VER, OUVIR


talgia do passado, cada texto capaz de nos fazer posta não será fácil para ninguém e pode estar
pensar. E não é isso que torna o tempo da leitura sempre dependente de quem a dá. Para todos
um tempo útil? aqueles para quem as lutas anticapitalistas são
Escolho um dos 31 possíveis para viajar. fundamentais para pensar as realidades sociais,
Abordando exemplos na literatura e na cultura para quem o presente que vivemos transporta

Aline Flor / flickr

livros

81
sempre consigo o passado das sociedades e de Voltando a Saïd e à sua própria capacidade
todos os conflitos que estas atravessaram a res- de se olhar no centro de um processo político
posta só pode ser positiva. A Comuna de Paris cheio de causas perdidas, parece que opta
foi exemplo da primeira tentativa moderna de por uma espécie de resistência individual
uma sociedade sem classes onde os produto- perante os becos sem saída ou as derrotas
res organizavam a produção e a distribuição de anunciadas. Socorrendo-se de Adorno, Saïd
bens. Olhando à distância segura de quase dois afirma a possibilidade da esperança devida à
séculos podemos achá-la ingénua, demasiado
intransigência do pensador individual, capaz
frágil, imersa em contradições que a perderam.
de resistir e manter o desafio face à hegemonia
Com muitos outros exemplos poderemos fazer o
das lógicas vitoriosas, contrapondo-a com
exercício de imaginar o que teria sido se não se
o silêncio dos “ativistas derrotados”. Nessa
tivessem cumprido determinadas condições, se
não tivessem decorrido certos acontecimentos e capacidade de resistência, as causas encontram
se o curso da história fosse o que não foi, mas na formas de subsistir através de outros em outros
verdade o que aqui nos interessa é a força simbó- lugares, as ideias sobrevivem às realidades
lica deixada pelos milhares que estão soterrados opressoras, os seres humanos voltarão a
nas campas anónimas dos comunards, exemplo encontrá-las, mesmo que por breves momentos,
de coragem no sentido palpável e mais físico do mesmo quando estas foram caladas à baioneta.
termo, mas sobretudo da capacidade de imaginar Os textos também sobrevivem aos seus autores.
novas regras para um mundo mais justo. No caso de Saïd, ainda bem.

Edward Saïd

82
Some girls are bigger than others – Carlos Barradas
VÁRIA

As crianças e a educação,
ou a construção de novos
sujeitos políticos
Hugo Monteiro e Maria José Araújo

Tentemos, num esforço de memória ou de têm jardim, os parques são das autarquias ou
simples empatia, pensar os espaços em que nos dos centros comerciais e até os brinquedos dei-
movemos na perspetiva de uma criança. xaram de ser para brincar, pois compram-se já
Deparamo-nos com contextos e percursos feitos e destinam-se a escaparate. Tal cenário
de direitos limitados: não se pode correr à von- exige uma resposta capaz de conjugar prerro-
tade, gritar, escrever nas paredes, saltar, cantar gativas educacionais - cujo debate se deve re-
alto, fazer barulho, subir às árvores, saltitar, animar, contra os consensos artificiosamente
nem sequer procurar um esconderijo para pen- assumidos no atual espaço público - com uma
sar. Na verdade os lugares de brincadeira e de missão democratizadora, que importa pensar e
resguardo, lugares que estimulam a exploração perspetivar de modo afirmativo tendo em conta
e a transgressão de todo o tipo de limites, possi- a criança na sua voz própria.
bilitando formas de transformar o mundo, estão Adotamos, na reflexão que se segue, um
em extinção. As ruas não são para brincadeiras, pressuposto concreto: é necessário reconside-
as casas dos pais ou dos avós cada vez menos rar politicamente o discurso da criança. Mas

83
porquê politicamente? Qual o motivo da aceção idades, nas mais repressivas instituições e nas
política dada a um exercício que, principalmente mais austeras organizações. “Amigas”, na con-
no quadro do radicalismo ideológico que carac- dição de que nunca se revele ou manifeste a sua
teriza a atualidade da Educação, se torna urgen- diferença, que é justamente a sua condição mais
te em todas as aceções possíveis? infantil.
A resposta, não sendo simples, tem uma pri- Torna-se necessário que os/as amigos/as e
meira formulação na hipótese seguinte: a criança as amizades não sejam meras parcelas de negó-
é um sujeito político particularmente menospre- cio ou simples componentes de sistema. O pro-
zado, arredado, com requintes de docilizadora cesso de partilha supõe um contexto que favo-
malvadez, de todas as ágoras do mundo. As reça os encontros, as trocas, as iniciativas e as
políticas de cidade, de escola, de educação, mas práticas conjuntas, assim como a apropriação de
também dinâmicas familiares e discursos tradi- espaços, que permita a livre e equitativa expres-
cionalmente amigos das crianças1 constituem são de todos/as os/as participantes: no direito
formas de propiciar e de ampliar tal docilização, a uma casa que também seja sua, de uma cida-

Qual o motivo da aceção política dada a um exercício que,


principalmente no quadro do radicalismo ideológico
que caracteriza a atualidade da Educação, se torna urgente
em todas as aceções possíveis?

que afasta as crianças, que as silencia, desconsi- de onde não se ande escondido/a, uma escola
derando o seu discurso e capacidade decisória. onde se brinque... um lugar onde se seja reco-
A declaração de amizade pelas crianças, como nhecido como “senhorio/a” e não somente como
tudo, contextualiza-se e argumenta-se. “inquilino/a”.
É paradoxal a forma como os modelos e ins-
Amigos, amigos… negócios à parte? tâncias de atendimento para crianças (jardins
Não é na verbalização da amizade, como bem de infância, parques infantis, hospitais, museus,
sabemos, que reside a sua virtude. Vulgarizam- centros comerciais ou mesmo os MacDonalds
se expressões de uso corrente que, em última ou IKEA), com os seus desenhos nas paredes,
análise, denunciam com uma acutilância verda- revistas e brinquedos, mobiliário e equipamen-
deiramente política o risco da banalização da tos adequados ao seu tamanho, são reveladores
palavra: temos os “amigos da onça” e do “alheio” de como o espaço foi/é colonizado e marketiza-
- e quando desses estamos fartos, perguntamos do, geralmente olhado como horizonte de bem-
sem originalidade mas com toda a justiça por- estar mas que, como sabemos, é mais um espaço
que precisaríamos, então, de inimigos? É que, de negócio. Um local organizado em função da
como por demais sabemos, temos “amigos das necessidade de existir e não em função da exis-
crianças” nas mais adultas vozes de todas as tência das crianças.

1 - Reapropriamos a expressão, saudando o convite de a virar ao contrário, ou não tivesse sido sob o mote “Porto, cidade amiga das crianças”
que uma recente campanha autárquica (“E se virássemos o Porto ao contrário?”), levada a cabo pelo Bloco de Esquerda e por forças ativistas
portuenses, se propôs reconsiderar as dinâmicas da cidade a partir das crianças, como agentes de cidadania ativa.

84
elisa greco / flickr

Ideias de (anulação de) infância mas também do investigador que não é só um


Convém lembrar que infância não é apenas reprodutor, como de todo/a aquele/a que se as-
uma fase da vida biológica, nem se apresenta sume como autor/a de uma história por fazer.
linguisticamente como tal. Qualifica-se fre- Giorgio Agamben, por exemplo, numa longa e
quentemente por “infantil” o comportamento particular apropriação do conceito de infância,
irrefletido, a atuação insensata, escavando um fala da necessidade do lugar da infância como
fosso moral entre um comportamento “adulto”, forma de fuga à autoridade da palavra, da pre-
que se encoraja independentemente da idade visão e da objetividade, fatores que capturaram
biológica, e uma atitude “infantil”, que se cono- a noção moderna de experiência2.
ta negativamente, para lá de qualquer critério Não foi esta, todavia, a tendência dominante
etário. É, aliás, o cumprimento de uma sentença nos discursos que regeram a educação. O dis-
já etimologicamente traçada, quando constata- curso educacional preponderante, ao contrário,
mos que “infância”, na sua raiz latina, é origi- foi amplamente alicerçado numa construção
nariamente o ser que não tinha acesso a lin- sólida e exclusiva da vida adulta como idade da
guagem, estando como tal condenado a não ter razão. A idade adulta pensa-se, neste seguimen-
razão. Daí a aliança entre infância e silêncio, que to, como negação e recalcamento da infância,
nos possibilita denunciar uma injustiça que ain- assim como a infância é tida como anteposta
da se não venceu, mas que é ao mesmo tempo a transgressão da idade adulta, com a educação VÁRIA
chave para uma reabilitação crítica já em curso. como móbil desta superação.
É que a língua, na sua criatividade insubmissa, O adulto é visto como evolução da infância,
precisa do silêncio sem condicionamentos que evolução esta gerada, acelerada e possibilitada
só uma infância, persistente em não se deixar pelos processos de educação. A educação pro-
condicionar no discurso pré-estabelecido, ver- duziria o adulto, num processo de humanização
dadeiramente acalenta. E é a possível aliança que arranca o ser humano do estado de natu-
entre infância e criação, arte e invenção, ou o reza, concretizado na criança que começa por
que na infância de um dia por inventar é reduto ser. E assim se inventa o “ofício do aluno”. O
revolucionário. A partir da insanável rebeldia aluno é uma espécie de estatuto profissional
da infância giza-se o gesto do artista e do poeta, que recai na criança e que quase a substitui. Vai

2 - Agamben, Giorgio (2002), Enfance et histoire. Paris: Payot, pp. 7-27.

85
ganhando terreno, progressivamente, à criança Um discurso que seja seu…
em nome de uma responsabilidade que a esco- E o que se propõe é uma inversão clara nes-
lariza de forma total. Veja-se a representação te pressuposto de desigualdade, recolhendo de
do/a “bom/boa aluno/a”, cuja definição está Rancière a abordagem do mestre ignorante,
longe de se confinar ao critério generosamen- pela exploração do exemplo do pedagogo Jo-
te mensurável, oferecido com candura paternal seph Jacotot.
pela vulgata da atual equipa governativa. Ser-se Jacotot, nos inícios do século XIX, era um
“bom/boa estudante” excede o plano académi- modesto professor exilado nos Países Baixos,
co, para se estabelecer mais propriamente num onde lhe confiaram a missão de ensinar língua
plano moral e político: francesa a crianças que apenas dominavam o
- No plano moral, o/a “bom/boa aluno/a” holandês. O problema residia no facto de Jaco-
cumpre cabalmente as instruções do/a tot, por seu turno, não ter luzes mínimas de ho-
professor/a, comporta-se docilmente com cole- landês, o que tornaria a comunicação um pro-
gas (o que não quer dizer, de maneira nenhuma, blema. Como ensinaria, se não havia plataforma
que veicule atitudes colaborativas ou solidárias) de base? Está vedado a Jacotot a transferência
e perante as normas institucionais. Espelha, no de conhecimento ou o processo assimétrico da
plano escolar e não escolar, uma espécie de tá- explicação… mas estará comprometida a fun-
bua de comportamento impoluto. ção de se gerar uma competência? A resposta a
- No plano político, esta pessoa assume uma esta questão suscetibiliza previsível crise neu-
cadeia hierárquica em que o adulto, que imita, rasténica a todo um discurso educativo domi-
é modelo e produtor de normas, sendo ao mes- nante e ministeriável.

E assim se inventa o “ofício do aluno”. O aluno é uma espécie de


estatuto profissional que recai na criança e que quase a substitui.

mo tempo o legitimador do poder. Daí que o/a O que sucederá é que, não sem escândalo e
bom/boa aluno/a obedeça, muito mais do que achaque de consciências – num processo cujo
negoceie. Daí que se isente, em submissão vo- desenvolvimento vale a pena seguir de perto,
luntária, de ser agente político3. no processo argumentativo de Rancière –, o
Não se estranha, pois, que este/a estudante professor terá êxito na função de fornecer com-
virtuoso/a assuma o que, para o filósofo Jac- petências linguísticas sem transmissão, sendo
ques Rancière, se caracteriza como consubstan- assim “mestre ignorante” de alunos que terão
cial desigualdade da pedagogia mais tradicio- sucesso na aquisição de competências numa lín-
nal4. Parte-se da desigualdade entre o adulto e gua com que contactaram, mas que não lhes foi
a criança, desigualdade esta que, na versão mais transmitida.
generosa (e menos infantil), será reduzida e eli- O ‘caso Jacotot’ permite-nos partir da igual-
minada… pela anulação da criança no adulto. dade, no sentido diametralmente oposto ao da

3 - Principalmente ao entendermos a política, à maneira de Daniel Bensaïd, como “arte estratégica das mediações”, pressupondo, então, não
apenas ausência de fundamento inquestionável (como é, na maioria das vezes, o argumento da autoridade do adulto) no modo como se de-
libera, como um registo de interlocução permanente no processo de negociação, que é uma aprendizagem. Bensaïd, Daniel (2009), “Le scandale
permanente”, in AAVV, Démocratie, dans quel état?. Paris: La Fabrique, pp. 27-58.
4 - Rancière, Jacques (2010), “On ignorant schoolmasters”, in Biesta, Gert & Bingham, Charles, Jacques Rancière: Education, truth, emancipation.
Londres: Continuum, pp. 1-24.

86
brad flickinger/flickr

pedagogia tradicional, que parte da superiori- reproduzir. Ao contrário, todo o conhecimen-


dade de um ente sobre o outro. Os alunos de to inventa as formas da sua expressão, e todo
Jacotot ou, melhor dizendo, as crianças de Jaco- ele negoceia com todos/as os/as outros/as
tot são convidadas a reconhecer e a responder agentes de conhecimento a sua maior e menor
a signos que não dominam, que deverão des- adequação. Não que não haja verdades, medi-
cobrir, exatamente como o seu mestre, movido das do correto, critérios de falso ou verdadeiro,
por vontade e não pela autoridade do saber. O mas sempre emergindo de um fundo relacional,
problema coloca-se a uma vontade e a uma re- num plano de confrontação a que é preciso dar
lação igual de inteligências; a atitude correlati- tradução institucional.
va é a resposta “como respondemos a qualquer Veja-se, a título de exemplo, o jogo do salto
pessoa que nos fale e não a alguém que nos faz à corda coletivo. Este jogo coletivo da corda,
um exame: sob o signo da igualdade”5. que simboliza a brincadeira, o recreio, a ativi-
Rancière oferece-nos um modelo que inver- dade física e o ato de aprender, não é um jogo
te a tradicional visão adultocêntrica. A criança, qualquer, é um jogo em que cada um dos joga-
tratada como inteligência e vontade em ação, já dores é responsável pela decisão de entrar, mas
VÁRIA
não é encerrada num estado de menoridade, do também de sair. É um jogo que exige que as
qual teria que sair através da educação e seus crianças tomem consciência da sua capacidade
poderes. A igualdade em ação na experiência da de participação enquanto a corda se movimen-
criança é, aqui, cumprida através da sua ação ta. Um jogo que exige atenção, confiança no ou-
concreta e livre. A criança é um agente de co- tro e perícia que, podendo ser individual, tem
nhecimento, uma detentora de vontade gerado- muito mais graça praticado com os/as amigos/
ra de saberes, o que nos obriga a um reconhe- as. Não é um jogo que se repete e reproduz. É
cimento epistemológico, apenas levado a bom um jogo que para os/as mais atentos/as, reve-
porto se politicamente concretizado: conhecer la a competência das crianças nos assuntos que
deixa de ser apenas representar, mimetizar ou lhes dizem respeito. Põe em cena uma gestão

5 - Rancière, Jacques (2010). O mestre ignorante. Cinco lições sobre a emancipação intelectual. Mangualde: Pedagogo, p. 17.

87
autónoma, autossuficiente, numa organização É aqui que ser “amigo das crianças”, a nosso
do coletivo e da inscrição do singular no coleti- ver, adquire uma aceção verdadeiramente cida-
vo: uma política em ação. dã, quebrando o silêncio de outras vozes “ami-
Para lá do exemplo concreto, atente-se na gas”, apenas sentidas em escolhidas ocasiões e
necessidade, tão frequentemente recalcada – por sábias e adultas preleções. Acrescente-se,
mas tão “amiga”, no sentido disruptivo permi- intensificando sem medo esta amizade:
tido ao conceito de amizade – de politização de Ser-se amigo das crianças é saber-se que na
uma infância que tão ludicamente se politiza. E voz de cada um/a há uma capacidade de cons-
é preciso que estejamos à altura da construção trução e de crítica que é preciso acolher, inda-
de novos agentes políticos, desde logo resig- gando e acarinhando o seu potencial de inven-
nificando a amizade pelas crianças como ideia ção;
política em si mesma. Ser-se amigo das crianças é deixar que as pa-
lavras, as coisas, as realidades se transformem
Conclusão: política de amizade na liberdade que lhes é própria e devida;
Precisemos, então. Ser-se amigo (das crian- Ser-se amigo das crianças é deixar fluir essa
ças) passa por se saber acolher o risco do des- dose de incalculável que nelas habita, e que ex-
propósito, por se aceitar a ameaça do que não cede desde logo qualquer intenção domestica-
se legisla… passa, precisamente, por se estimar dora e qualquer posição subalterna;
a diferença absoluta do amigo, em todo o seu Ser-se amigo das crianças é, em suma, deso-
potencial de discordância, de intransigência, de bstruir a sua participação em tudo o que está
reivindicação. Radical, no radicalismo que per- por fazer, por inventar e por construir de novo.
mitimos – com amizade, de resto! – a toda a pa- Tal amizade passa, claro está, por assumir
lavra poética, William Blake insta a que se seja a criança como (novo) sujeito político, num
inimigo, em nome da amizade6, isto é, que se processo tão potencialmente disruptivo quanto
salve a amizade em nome de uma celebração do qualquer processo político verdadeiramente sé-
que, no Outro, não é nem dócil nem pacificável. rio e democrático.

Ser-se amigo (das crianças) passa por se saber acolher o risco do


despropósito, por se aceitar a ameaça do que não se legisla… passa,
precisamente, por se estimar a diferença absoluta do amigo, em todo
o seu potencial de discordância, de intransigência, de reivindicação.

6 - “Do be my Enemy for Friendships sake” é o verso de Blake citado pelo filósofo Jacques Derrida, na reconsideração da amizade para lá
da fusão, do consenso ou da docilização na coincidência – antes, no signo de uma disrupção como urgência (política). Cf DERRIDA, Jacques
(2003), Políticas da amizade. Porto: Campo das Letras.

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maria jesus/flickr

Poesia e resistência.
Porquê os poetas em tempos
de aflição?
Leonor Figueiredo

No contexto de uma entrevista recente (…) é importante fazer a análise ao que veio acon-
o responsável por uma das grandes editoras tecendo na poesia portuguesa desde a década
portuguesas afirmava que dentro de dez anos de setenta do século passado até ao momento VÁRIA
ninguém editaria poesia em Portugal, e que que vivemos. Importa em último caso perce-
esta estaria confinada a edições marginais, em ber em que medida a poesia que hoje se produz
tiragens de quarenta ou cinquenta exemplares. pode afigurar-se como um ato de resistência (se
Por que falar, então, da poesia como exercício é que alguma poesia não o é). Na verdade, re-
de contrapoder? A resposta é: por isto mesmo. sistência é por definição apenas uma força que
(Rosa Maria Martelo) se opõe a outra, e esta força pode tomar várias
formas. Sabemos que é comum associar-se a po-
A questão lançada no título foi roubada a Jac- esia de resistência a uma poesia comprometida
ques Rancière que, em Politique des Poètes, ques- com a realidade social por via de uma temáti-
tiona: “Pourquoi des poètes en temps de détres- ca política óbvia, por vezes mesmo ao serviço
se?” Passados quarenta anos da revolução que de um programa ideológico, mas a essa prefiro
em Portugal terminou com o regime fascista, atribuir a designação de poesia de intervenção,

89
v.h.hammer/flickr
mais restrita do que a de poesia de resistência, geração de outras realidades possíveis (dentro
apesar de poder (ou não, é discutível) incluir- da arte, de quase toda a arte) por contraponto
se no campo desta. Importante reter, e é ace- a uma realidade potencialmente angustiante.
ção mais ou menos generalizada, é que toda a Não é necessariamente uma fuga, mas um en-
arte (e particularmente toda a poesia) que de saio de mudança.
alguma forma é produzida fora do instituído Em Portugal, respirando também do proces-
(na sociedade ou na própria arte) é uma forma so democratizador que ocorria à época, cresce a
de resistência, intencional ou não. É Gilles De- partir dos anos 1970 um novo olhar da poesia
leuze quem diz numa entrevista que “o homem sobre o mundo, e a busca de novas estratégias
criou a arte para libertar o que o homem tinha de resistência a algumas novas dinâmicas que
encarcerado. (…) A arte é a produção do exa- também começavam já a surgir. No começo
geramento da vida. E a própria existência da de uma época de globalização, de acentuação
arte é resistência”1. Esta perspetiva que alar- da mercantilização de tudo e da consequente
ga o conceito de resistência a toda a produção violência do dia a dia, surgem temáticas asso-
artística e, consequentemente, a toda a poesia, ciadas à experiência urbana, ao nomadismo, ao
vai encontrar eco na teoria de vários autores, consumismo, e surge a necessidade de se re-
de Adorno (em Comitment, Teoria Estética e ou- cuperar um certo comprometimento recusado
tros) a Derrida (com Che Chos’è la poesia?). Em na década anterior pelos movimentos que for-
2014 a poesia resiste porque, por exemplo, não çavam uma autonomização da poesia. Sem re-
tem utilidade num mundo onde tudo deve ser gressar, ainda assim, a um comprometimento
prático, produtivo e eficiente; porque insiste em como ele foi concebido em finais dos anos 1930
existir opondo-se ao movimento da sua cres- com o neorrealismo (por vezes panfletário, na
cente desvalorização; porque cria novas coisas, sua vertente mais ortodoxa). O poeta Joaquim
novas realidades, ao seu ritmo, e sem quaisquer Manuel Magalhães descreveu este momento
limites. Ou simplesmente porque cria. Podí- como um “voltar ao real”. Significa isto o vol-
amos encontrar um sem número de motivos. tar a um contrato expressivista, de comuni-
Desta forma, para além de as artes terem na cação da experiência vivencial, ainda que com
sua origem uma clara vocação de rutura com uma acentuada visão melancólica, disfórica,
o que existe, o que leva à sua produção é, mais desencantada (“Voltar ao real, sim, mas toda a
que um desagrado, uma vontade associada de gente se esquece que lhe chamei desencanto”,

1 - Deleuze, Gilles (1988), “R comme Résistance”, L’Abécédaire de Gilles Deleuze [entrevistado por Claude Parnait].

90
diria mais tarde), para a qual é necessária essa de noventa (Ana Paula Inácio, Carlos Alber-
lírica de tensão emocional. Talvez faça sentido to Machado, Carlos Luís Bessa, João Miguel
atendermos por agora ao conceito de autono- Queirós, José Miguel Silva, Nuno Moura, Rui
mia porosa proposto por Cornelia Gräbner e Pires Cabral, Vindeirinho). Lembremos o pre-
David Wood. Como a própria combinação de fácio à antologia, no qual se dita que “a um
termos sugere, a autonomia porosa da poesia tempo sem qualidades, como aquele em que vi-
não fica apenas num ponto intermédio e inde- vemos, seria no mínimo legítimo exigir poetas
finido de comprometimento, mas é como que sem qualidades”.2 Esta ausência de qualidades
uma fusão dos dois conceitos, que afirma a sua assenta essencialmente no não investimento
autonomia sem se fechar ao exterior e mantém numa retórica explícita, pela atmosfera disfóri-
uma atitude de colaboração estética com os mo- ca e alegórica que se pretende criar, e não deve
vimentos sociais e políticos sem se colocar ao ser confundida com uma ausência de qualida-
seu serviço. A condição porosa é algo que pres- de, como critica Pedro Mexia quando afirma
supõe uma barreira mas que simultaneamen- que nesta antologia “abundam poemas des-
te permite a passagem de alguma coisa, como mazelados e caceteiros”3. Pelo contrário, o que

É claro que a desesperança e a incapacidade de se propor a mudar


efetivamente alguma coisa torna esta poesia um pouco frágil nesse sentido.

uma porta entreaberta. Se no sentido conven- pode tomar-se como desmazelo é a superfície
cional autonomia contempla um fechamento, de uma poesia que não pretende de facto evi-
o adjetivo porosa vem neste contexto oferecer denciar a forma, não sendo a atitude caceteira
uma hipótese de comunicação com o exterior, mais do que uma visão do mundo angustiada,
de estetização de uma atitude política, embora a busca de um confronto com essa realidade
autónoma. Foi esta abertura de poros na cama- e, consequentemente, a procura de um encon-
da de defesa da condição inútil da poesia que tro com um leitor cada vez mais afastado pela
permitiu que este paradigma iniciado nos anos sociedade do mercado e da imagem.
1970 se arrastasse pelas décadas seguintes, ain- No contexto regressivo de perda dos valores
da que com as suas particularidades. que levaram à construção de várias dinâmicas
Já em 2002, e acentuadas muitas das lógicas assentes na solidariedade e na igualdade, como VÁRIA
económicas, sociais e políticas que se faziam já foi sendo dito, o sentimento presente nestas
sentir já na década de 1970, a editora Averno poesias de viragem de século (poetas da an-
lançava Poetas Sem Qualidades, pequena anto- tologia e outros) é de constante perplexidade
logia que veio pela primeira vez coligir textos perante o indescritível, o que contribui na cons-
de um conjunto de poetas não necessariamente trução de uma visão absolutamente disfórica do
envolvidos na criação de um novo movimento mundo. Afetada por esta disforia, esta poesia
literário, mas pertencentes a uma mesma ge- recupera por vezes o uso da alegoria, essencial
ração que começou a editar a partir da década na sua estruturação como forma de resgatar

2 - Freitas, Manuel (2002), “Prefácio”, Poetas sem Qualidades, Lisboa: Averno.


3 - Mexia, Pedro (2004), “Poetas sem qualidades e poemas sem qualidades”, in http://www.dn.pt/inicio/interior.aspx?content_id=593058

91
de algum modo partes que se perdem desse os leram.// É inegável que um churro ou uma
mundo, apesar de as asfixiar na impossibilida- imperial/ são muito mais necessários do que
de da sua recuperação. As imagens alegóricas qualquer soneto”4. Estas palavras carregam um
surgem-nos sempre em forma de destroços, e quanto de sarcasmo, é claro, mas este deriva de
nunca de aparição de algo que é restaurável. um sentimento de angústia assente numa cla-
Não existe uma efetiva vontade de recuperar ra consciência da realidade. Esta realidade da
a sua essência, mas de fazer da sua essência a poesia, não incapacitante mas claramente insu-
sua condição irrecuperável. Neste sentido, a ficiente, é declarada da seguinte forma por José
alegoria pode ser compreendida como uma Miguel Silva, num inquérito sobre poesia e re-
experiência de passagem do tempo, na medida sistência: “numa era de comunicação de massas,
em que se estrutura num tempo cronológico, essa sua guerra [da poesia] é tão desigual, e
histórico, apresenta uma continuidade, tradu- portanto tão caricata, como a guerra que uma
zindo-se assim irremediavelmente em perda. E, sardinha (zangada) decidisse mover a um pe-
neste período, a derradeira perda é a da crença troleiro (de aço)”5. É claro que a desesperança
na capacidade da própria poesia, no seu impac- e a incapacidade de se propor a mudar efetiva-
to e força na mudança, numa sociedade em que mente alguma coisa torna esta poesia um pouco
há cada vez menos espaço para a cultura alter- frágil nesse sentido. Para além de mais sujeita
nativa, ou mesmo para qualquer alternativa. a ser absorvida por uma sociedade onde mes-
Existem na poesia casos flagrantes desta visão, mo a alternativa parece cada vez mais avessa ao
como em Manuel de Freitas: “(…) pensar que/ compromisso político. Não podemos esquecer,
os poetas não passam de estátuas inúteis num ainda assim, os seus antecedentes quando, no
jardim/ concebido por bestas que nem sequer final da década de 1990, surgiam os movimen-

4 - Freitas, Manuel (2007), Terra sem Coroa. Vila Real: Teatro de Vila Real, p. 28.
5 - Silva, José Miguel (2012), Inquérito Poesia e Resistência [org. Ana Luísa Amaral, Joana Matos Frias, Pedro Eiras e Rosa Maria Martelo],
http://www.lyracompoetics.org/pt/poesia-e-resistencia/

92
tos alterglobais, que se opunham à globalização tinção numa sociedade inundada pela imagem,
como fenómeno do capitalismo e às suas con- reforçando cada vez mais e de várias formas
sequências, e que juntavam milhões de pessoas a estratégia de integração da própria imagem
com diversas preocupações e propostas de fu- (quer ilustrativa, quer ecfrástrica – poesia que
turo sob o mote Um não, muitos sins. Se estas remete diretamente para filmes, pinturas e ou-
poesias, que surgem em simultâneo com estas tras artes visuais). Numa sociedade em que os
movimentações do final do século XX, não têm indivíduos se encontram cada vez mais atomi-
a proposta de um sim, elas reforçam também zados, em que cada um tem responsabilidade
esse não, afirmando uma consciência clara da- pela sua própria condição, esta poesia inútil
quilo que rejeitam: o neoliberalismo, a cruelda- empreende uma tentativa de chegar a um leitor
de, a desumanização, a supremacia dos números cada vez mais afastado, e de criar um espaço
e a mercantilização de tudo, inclusive da arte e de comunidade. Por outro lado, se esta poesia
do próprio ser humano. Por isso, ainda que frá- é na sua génese um combate ao individualis-

Esta poesia inútil tem humor, ensina-nos a rir de nós próprios


e da nossa condição humana. Um riso que é maior do que o choro
e que deixa um sabor amargo ao passar pela boca, mas que,
aparentemente brincando, nos deixa com a garantia de que,
no mínimo, nada passará em branco.

gil, esta é uma poesia reflexiva, desconcertante, mo na construção de um coletivo, ela é uma
por vezes cáustica, e se não é capaz de reverter busca pela singularidade no combate à indife-
o processo de perda, ela empreende no mínimo renciação, que muitas vezes também tematiza.
uma denúncia, que é um sufoco mais do que um Esta poesia inútil tem humor, ensina-nos a rir
grito, mas que fala, “comunica, em suma” (como de nós próprios e da nossa condição humana.
diria Manuel de Freitas). Um riso que é maior do que o choro e que dei-
Esta poesia inútil, ao contrário da modernis- xa um sabor amargo ao passar pela boca, mas
ta, constrói-se de forma lenta - nos processos que, aparentemente brincando, nos deixa com VÁRIA
editoriais (com várias edições feitas à mão), na a garantia de que, no mínimo, nada passará em
temática que permite o ócio e o silêncio (na ta- branco. Porquê os poetas em tempos de aflição?
berna, em casa, no campo) e nos mecanismos Porquê Manuel António Pina, Fernando Assis
formais – tentando forçar uma desaceleração de Pacheco, Al Berto, João Miguel Fernandes Jor-
um mundo onde time is money e onde existe ge, Joaquim Manuel Magalhães, António Fran-
cada vez menos o direito a parar. Esta poesia co Alexandre, Hélder Moura Pereira, Alberto
inútil faz a luta pelas palavras (como lhe cha- Pimenta, Ana Luísa Amaral, José Miguel Silva,
ma Manuel Gusmão), denuncia os mecanismos Rui Miguel Ribeiro, Luís Quintais, Rui Pires
retóricos utilizados para produzir consenti- Cabral, Adília Lopes, e tantos outros? Porque
mento, apropria-se deles por vezes, subverte o se a sua guerra é dura e desigual, ela é também
discurso dominante e gera contradiscurso. Esta legítima e, sem dúvida alguma, necessária.
poesia inútil procura resistir à sua própria ex- Foi Sophia de Mello Breyner quem escreveu:

93
“Porque busca a inteireza do homem a/ poesia Em 2010, o mesmo poeta escreve que “tem
numa sociedade como aquela em que vivemos piada/ estar aqui, abrir os olhos, conferir/ ainda
é necessariamente/ revolucionária - é o não- e sempre, na vitrina da manhã,/ a produção da
aceitar fundamental”6. Assim, se esta poesia não Primavera”9.
propõe nem muda radicalmente, ela é recusa, é E assim, se a passagem do tempo se vai sempre
esse não-aceitar fundamental, é denúncia num traduzindo em perdas trazendo consigo
contexto de alienação, é procura de encontros a assunção irremediável da morte de tudo,
num contexto de individualismo, e é uma po- também é esta que proporciona invariavelmente
esia que, nas certeiras palavras de Rosa Maria o advento de novas coisas. E se um mundo não
Martelo, “procura, por entre ruínas, um rasto transcendente traz consigo uma sensação
de beleza que nos possa salvar. Sem otimismo de orfandade e desamparo, também é essa visão
nenhum. E, todavia, procura. Se assim não fosse do mundo que oferece ao ser humano
não seria poesia”7. a capacidade de o reinventar com as suas mãos.
“Ainda não é tarde, foi agora anunciado/ pela Ainda que contra todos os petroleiros de aço,
rádio, são dezoito e vinte cinco”8, lemos num po- ainda que tantas vezes sem esperança, não há
ema de José Miguel Silva, num diálogo (inten- como fugir a que a história, o mundo, as cidades,
cional ou não) com o título de Manuel António as sociedades e a vida são como as estações
Pina de 1974 – Não é o fim nem o princípio do do ano. Tudo se perde, mas tudo regressa ou,
mundo, calma é apenas um pouco tarde. no limite, se reinventa.

jeroimo sanz/flickr

6 - Andresen, Sophia de Mello Breyner (1977), O Nome das Coisas. Lousã: Moraes, p. 77.
7 - Martelo, Rosa Maria (2007), Vidro do mesmo vidro, Porto: Campo das Letras, p. 105.
8 - Silva, José Miguel (2002), Ulisses já não mora aqui, Lisboa: & etc, p. 30,
9 - Silva, José Miguel (2010), Erros Individuais, Lisboa: Relógio D’Água, p. 13.

94
ACONTECE POR fabian figueiredo

22 de abril a 31 de maio 3 de maio


Tenho a cabeça espetada entre a noite e madrugada Colóquio/debate: “O desastre de Lampedusa - a
{Fragmentos} - Exposição audio-vídeo barbárie europeia contra os imigrantes”
Departamento de Antropologia da Universi- Com: Mamadou Ba.
dade de Coimbra Organização: SOS Racismo
Bar do Teatro da Cerca de São Bernardo (Cer-
29 de abril a 9 maio ca de São Bernardo), Coimbra, 15h00
Diálogos fotográficos da luta pela terra: Brasil-
Portugal 5 de maio
Inauguração na Faculdade de Economia da Colóquio SAAL # arquitetura Porto
Universidade de Coimbra, 29 de abril, 15h00 Museu de Serralves, Porto, 9h30
(estará apenas patente neste dia). Local: Hall
de entrada da FEUC. Mostra fotográfica de 6 de maio
30 de abril a 9 de maio no CES-Coimbra. Lo- Seminário: “MARCAS DO IMPÉRIO. Colonia-
cal: Corredor do CES (2º andar) lismo e Pós-Colonialismo na Época Contemporâ-
nea”
2 de maio José Manuel Fernandes (FA-UL) e Eduardo
Seminários de Leitura Crítica Ascensão (CEG-UL) tratam o tema: Arquitec-
Organização: grupo de História Global do tura em contexto colonial
Trabalho e dos Conflitos Sociais. Coordenação: FCSH/UNL, Edifício I&D, Sala 0.05 (anfitea-
Profª Doutora Sara Granemann (UFRJ e IHC- tro), Piso 0, Bloco 1, Lisboa, 18h00 - 20h00
UNL). O debate centrar-se-á na análise critica
do livro O Capital de Karl Marx 7 de maio
Instituto de História Contemporânea, Lisboa Documentário: “Cenas da luta de classes”, de Ro-
bert Kramer e e Philip Spinelli
Class Polarization and Fragmentation in Britain: Organização: A Escola da Noite / Centro de
Some Results from the Great British Class Survey Documentação 25 de Abril da Universidade de
with the BBC Coimbra. Apoio: Casa da Achada - Centro Má-
Orador: Fiona Devine - University of Man- rio Dionísio.Teatro da Cerca de São Bernardo
chester (Cerca de São Bernardo), Coimbra, 21h30
Sala Polivalente, ICS, Lisboa, 15h00

95
7 de maio Orador: Miguel Avillez (Departamento de
Transgressão ou subalternidade? Género, corpo e Matemática, Universidade de Évora; Zentrum
poder entre as mulheres do funk e do hip hop: um für Astronomie und Astrophysik, Technische
estudo comparativo entre Brasil e Portugal Universität Berlin)
Oradora: Marina Pereira de Almeida Mello Organização: Universidade de Évora e Dele-
(CES) gação Regional do Sul e Ilhas da Sociedade
CES, Sala 2, Coimbra, 15h30 Portuguesa da Matemática
Colégio Luís António Verney da Universidade
8 – 10 de maio de Évora (sala a definir), 15h00
II Congresso Internacional Marx em Maio
Anfiteatro I da Faculdade de Letras da Uni- 14 de maio
versidade de Lisboa Documentário: “Setúbal Ville Rouge”, de Daniel
Edinguer
Palestra “Livros e leituras na Antiguidade” Organização: A Escola da Noite/Centro de
Biblioteca Municipal Álvaro de Campos, Ta- Documentação 25 de Abril da Universidade
vira de Coimbra. Apoio: Casa da Achada - Centro
Mário Dionísio
IX Congresso Nacional Cientistas em Ação Teatro da Cerca de São Bernardo (Cerca de
Organização: Centro Ciência Viva de Estre- São Bernardo), Coimbra, 21h30
moz
16 de maio
Conferência Internacional: “40 anos após o 25 de “Pensar os livros e as bibliotecas femininas no sé-
Abril de 1974: a crise das democracias liberais” culo XVIII através da biblioteca do Palácio Fron-
ISCTE-IUL (Instituto Universitário de Lis- teira”, 4ª palestra do ciclo “Livro: passado, presente
boa) e futuro”
Oradora: Vanda Anastácio, Organização: Bi-
9 de maio blioteca Álvaro de Campos de Tavira, Biblio-
“Livros e leituras na Antiguidade”, 3ª palestra do teca da Universidade do Algarve e Centro de
ciclo “Livro: passado, presente e futuro” Investigação em Artes e Comunicação (CIAC)
Oradora: Adriana Nogueira, docente da Uni- Campus de Gambelas, Universidade do Algar-
versidade do Algarve ve, 16h00
Organização: Biblioteca Álvaro de Campos de
Tavira, Biblioteca da Universidade do Algarve Rooted Futurism: The Modernist Aesthetics of
e Centro de Investigação em Artes e Comuni- Fascism
cação (CIAC) Orador: Roger Griffin - Oxford Brookes Uni-
Biblioteca Municipal Álvaro de Campos, Tavi- versity
ra, 18h00 Sala Polivalente, ICS, Lisboa, 15h00

10 de maio 19 de maio
Tardes de Matemática: O que há de comum entre o Seminário Internacional: Debates desde la Antro-
fumo de um cigarro e as regiões onde nascem estre- pología y La Sociología del Derecho. Experiencias
las? - Usando a Matemática para compreender o comparadas entre África y América Latina
Universo Sala 1, CES-Coimbra, 11h00-18h00

96
20 de maio 28 – 29 de maio
Apresentação do livro: “Os Burgueses” de Fran- Teatro: “Autos da Revolução”, CENDREV/ACTA
cisco Louçã, Jorge Costa e João Teixeira Lopes Teatro da Cerca de São Bernardo (Cerca de
Comentários de José Manuel Mendes (CES) e São Bernardo), Coimbra, 21h30
Daniel Francisco (CES)
Sala 2, CES-Coimbra, 17h30 29 - 30 de maio
“III Congresso de História e Desporto”
O Trabalho nos Centros Comerciais: as adversida- Por ocasião do centenário da Grande Guerra
des metodológicas como oportunidades de interro-
(1914-1918), que constituiu uma rutura pro-
gação sociológica
funda no percurso da história contemporânea
Oradora: Professora Dra. Sofia Cruz
portuguesa, europeia e mundial, o III Con-
Sala 308, Faculdade de Letras do Porto, 13h30
gresso de História e Desporto será dedicado à
temática Desporto e Guerra.
21 de maio
Documentários: “A Luta do Povo: Alfabetização FCSH | UNL, Lisboa
em Santa Catarina”, Grupo Zero, “Assim Começa
uma Cooperativa”, Grupo Zero, e “Revolução”, de 2 de junho
Ana Hatherly O tráfico de escravos e o comércio do álcool: a ge-
Organização: A Escola da Noite / Centro de rebita nas relações entre Angola-colónia e o Reino
Documentação 25 de Abril da Universidade de Kasanje
de Coimbra. Apoio: Casa da Achada - Centro José C. Curto (Universidade de York - Toron-
Mário Dionísio to)
Teatro da Cerca de São Bernardo (Cerca de Sala 1, CES-Coimbra, 17h00
São Bernardo), Coimbra, 21h30
5 - 7 de junho
21 - 23 de maio III Congresso Anual de História Contemporânea
Conferência: “A Transformação das Relações La- Universidade de Coimbra, Coimbra
borais em Portugal e o Memorando de Entendi-
mento” 6 de Junho
Organização: FCSH-UNL, ISCTE-IUL e
“Literatura e edição digital: que revolução”, 5ª
CES-Lisboa
palestra do ciclo “Livro: passado, presente e futuro”
Oradora: Sandra Boto, Organização: Biblioteca
22 - 23 de maio
Álvaro de Campos de Tavira, Biblioteca da
International Conference: “the carnation revolu-
Universidade do Algarve e Centro de Investi-
tion. Between african anticolonialism and europe-
an rebellion” gação em Artes e Comunicação (CIAC)
ACONTECE

Birkbeck, University Of London Biblioteca Municipal Álvaro de Campos, Tavi-


Conferência Internacional ra, 18h00

27 de maio Juventude, precariedade e envolvimento político e


Interseções entre género e direito cívico
Comentário: Virgínia Ferreira (CES) Orador: Nuno Almeida Alves - ISCTE-IUL
Sala 1, CES-Coimbra, 16h30 Sala Polivalente, ICS, Lisboa, 15h00

97
2 - 5 de setembro 11 - 13 de setembro
I Fórum Internacional de Violência e Maus- Jornadas Internacionais: Memórias do Carvão |
Tratos (FIVMT) e VII Fórum Internacional de Jornadas Internacionais
Saúde Envelhecimento e Representações Sociais
(FISERS) Batalha, Leiria
Organização: Escola Superior de Enfermagem
S. João de Deus da Universidade de Évora 30 de setembro a 1 de outubro
International Seminar: “Small Power is a Power?
5 - 6 de setembro The role and resilience of small and medium po-
1º Congresso Português de Filosofia
wers during the Great War 1914-1918”
Organização: Sociedade Portuguesa de Fi-
losofia, em colaboração com a Associação Instituto da Defesa Nacional, Lisboa
Portuguesa de Filosofia Fenomenológica, a
Associação Portuguesa de Teoria do Direito, 16 - 18 de outubro
Filosofia do Direito e Filosofia Social, o Insti- “Collection Day” na Assembleia da República. As
tuto de Filosofia Luso-Brasileira, a Sociedade memórias daqueles que combateram na I Guerra
de Ética Ambiental e a Sociedade Portuguesa
de Filosofia Analítica Mundial
Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa Assembleia da República, Lisboa

30 de setembro a 3 de outubro
XII Simpósio Luso-Espanhol de Relações Hídricas
das Plantas, Água para Alimentar o Mundo
Organização: Universidade de Évora, ICAAM
- Instituto de Ciências Agrárias e Ambientais
Mediterrânicas e Sociedade Portuguesa de
Fisiologia Vegetal

V
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Normas para apresentação dos artigos
1. O Conselho de Redação da Vírus aceita colaborações de quem queira nela participar, reservando-se o
direito de publicar ou não os trabalhos propostos e de determinar o prazo e o espaço da sua divulgação.
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rados relevantes pelo seu Conselho de Redação e conformes com as presentes normas.
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7. As referências bibliográficas serão sempre feitas nas notas, seguindo o modelo dos exemplos a seguir
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AGLIETTA, Michel (1976). Régulation et crises du capitalisme: l´expérience des Etats-Unis. Paris: Calmann-Lévy.
b) Coletâneas:
FREIRE, João (org.) (2009). Trabalho e Relações Laborais – Atitudes Sociais dos Portugueses. 9. Lisboa: Imprensa de
Ciências Sociais.
ESTANQUE, Elísio (2004). “A reinvenção do sindicalismo e os novos desafios”, in SANTOS, Boaventura de Sousa (org.),
Trabalhar o mundo – os caminhos do novo internacionalismo operário. Porto: Edições Afrontamento, pp. 299-334.
c) Revistas:
COSTA, Hermes Augusto (2009a). “A flexigurança em Portugal: Desafios e dilemas da sua aplicação”. Revista Crítica de
Ciências Sociais, 86, 123-144.
d) No caso de publicações electrónicas é necessário indicar também a data da última consulta à página
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N5 ABRIL 2014
N5
Colaboraram nesta edição
Revista política

40 Anos Depois de Abril


ADRIANO CAMPOS | BRUNO PEIXE | CONSTANTINO PIÇARRA
DIANA ANDRINGA | FABRICE SCHURMANS | HELENA ROMÃO
HUGO MONTEIRO | LUÍS TRINDADE | JOÃO CARLOS LOUÇÃ
e de ideias
JOÃO CURVÊLO | JOÃO MINEIRO | JORGE COSTA | JÚLIA GARRAIO
LEONOR FIGUEIREDO | MARIA JOSÉ ARAÚJO | MARIANA AVELÃS
ABRIL 2014 II série

40 Anos Depois
MIGUEL CARDINA | MIGUEL PEREZ | RITA CALVÁRIO

de Abril dossiê
FERNANDO ROSAS, ADRIANO CAMPOS,
JORGE COSTA, MIGUEL PEREZ, CONSTANTINO
PIÇARRA, LUÍS TRINDADE
25 de Abril | Mesa Redonda. Entrevista a PAULA
GODINHO, ANTÓNIO REIS E MANUEL LOFF por MIGUEL
CARDINA e LUIS TRINDADE
Alain Badiou: renovar a ideia comunista no despertar
da história BRUNO PEIXE

V
Porquê os poetas em tempos de aflição? LEONOR
FIGUEIREDO
+ ler, ver e ouvir

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