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UNIVERSIDADE DE CABO VERDE

FACULDADE DE CIÊNCIAS SOCIAIS, HUMANAS E ARTES

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

DOUTORAMENTO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

A TERRA, A ÁGUA E O PODER NA ILHA DE


SANTO ANTÃO DE CABO VERDE:
Um olhar a partir do Tarrafal de Monte Trigo

José Silva Évora

Linha de Pesquisa: Estado, Políticas Públicas e Desenvolvimento

Praia, 2019
UNIVERSIDADE DE CABO VERDE
FACULDADE DE CIÊNCIAS SOCIAIS, HUMANAS E ARTES

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

DOUTORAMENTO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

A Terra a Água e o Poder na Ilha de Santo Antão de Cabo Verde:

Um olhar a partir do Tarrafal do Monte Trigo

José Silva Évora

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação


em Ciências Sociais da FCSHA/Uni-CV, como
requisito parcial para a obtenção do grau de
Doutor em Ciências Sociais, sob a orientação do
Prof. Doutor Cláudio Alves Furtado.

Praia, novembro de 2019

2
A Terra a Água e o Poder na Ilha de Santo Antão de Cabo Verde: Um olhar
a partir do Tarrafal do Monte Trigo

José Silva Évora

JÚRI

Prof. Doutor Cláudio Alves Furtado (Orientador)

……………………………………………………….

……………………………………………………….

………………………………………………………..

…………………………………………………………

…………………………………………………………

…………………………………………………………

3
Aos meus Pais: Joana Peregrina Silva Évora
e José Manuel Évora (in memoriam).

A todos os agricultores do Tarrafal de Monte


Trigo que, com altruísmo, souberam resistir
às vicissitudes de um tempo marcado por
uma dupla subordinação.

4
AGRADECIMENTOS

Um projeto como este, por mais pessoal que seja, tem sempre colaborações, pessoais e
institucionais, sem as quais seria difícil a sua materialização. Uma colaboração efetiva
primeiramente dada pelo Professor responsável pela sua orientação. Por este contributo,
sou grato ao Prof. Doutor Cláudio Alves Furtado, que, durante estes quatro anos, pôs ao
meu serviço a sua experiência e o seu rigor intelectual. Um muito obrigado pelas leituras
meticulosas e por me ter encaminhado para uma nova forma de lidar com as fontes, sejam
elas de que natureza forem.

A todos os meus professores do curso de doutoramento em Ciências Sociais, cujas


contribuições foram fundamentais no quadro da preparação da longa caminhada de
aprofundamento de conhecimentos teóricos, indispensáveis para quem pretenda rasgar
novos horizontes na senda do saber.

Especial reconhecimento aos meus interlocutores em Tarrafal de Monte Trigo, que, com
muita amizade, me abriram as suas portas e os seus corações, durante as missões de
pesquisas de campo ali realizadas. Por uma questão de ética que se impõe à pesquisa, e
por respeito às suas vidas privadas, não me é possível agradecer-lhes nominalmente. A
eles e aos outros agricultores que, entretanto, não consegui ouvir, é dedicada esta tese.

Aos meus colegas do curso, pela cumplicidade desenvolvida, em especial ao Silvino


Batalha e ao Paulo Veríssimo, com quem passei três meses em França, no Instituto de
Estudos Políticos de Bordeaux.

Ficam registados os meus agradecimentos à Iva Cabral, historiadora cabo-verdiana, por


quem tenho muita simpatia, e cujas sugestões e orientações me têm dado o ânimo
necessário para estudar a História de Cabo Verde.

Ao Miguel Suarez Bossa, historiador da Universidade de Las Palmas, Canárias, que, no


Colóquio Internacional Sociedades Rurais Africanas, promovido pelo CEAUP, em
Lajedos - Santo Antão, em 2009, desafiou-me a estudar a relação Terra, Água e Poder em

5
Cabo Verde, a partir da ilha de Santo Antão, sugestão que, seis anos depois, acabou por
servir de mote ao título desta tese.

Ao Dr. Benfeito Mosso Ramos, pelas conversas mantidas e pelo apoio concedido na
identificação da legislação, particularmente a mais recente. Ao Doutor Leão Lopes, pelas
frequentes e profícuas conversas sobre a ilha de Santo Antão e as suas gentes,
particularmente sobre o Tarrafal de Monte Trigo, de ontem e de hoje.

Aos Professores Michel Cahen e Pierre Blanc, pelo incentivo e disponibilidade


demonstrados durante a minha estada em França. Realço, aqui, o apoio dos colegas
doutorandos do Instituto de Estudos Políticos de Bordeaux - França, em particular Sina
Shlimmer e Moustapha Cissé Fall, pelas longas e frequentes conversas sobre as questões
fundiárias em África e no Mundo.

Aos colegas de trabalho, Vital de Pina e Roberto Lopes, um muito obrigado pela amável
disponibilidade que sempre demonstaram, apoiando-me, nomeadamente na digitalização
de documentos e no tratamento do espólio fotográfico inserto no trabalho.

À Maria José Lopes, à Cláudia Correia e à Ana Mafalda Pereira, historiadoras do Arquivo
Nacional de Cabo Verde, com quem ao longo dos anos tenho discutido muitas matérias
referentes à história deste país.

Muitos colegas e amigos, em Cabo Verde e no estrangeiro, incentivaram-me a levar


adiante este projeto. Não poderei nomeá-los a todos, mas entre tantos outros, realço os
seguintes: Germán Perez, Alexander Keese, Beatriz Contrevas, Rui Figueiredo, Roberto
Zaugg, Eurídice Monteiro, Ana Dias, Mariana Neves, Francisca Pires, Joana Lopes,
Cândido Domingues, João Chantre, Euclides Furtado, Carla Martins, António Duarte,
Hélida Freire, Neusa Rocha, Lionilde Nogueira, Cristina Ferreira, Nélida Brito, Lourenço
Gomes, Octávio Nascimento, Elter Carlos, João Lopes Filho, Tica Barreto, Adilson
Monteiro, Nildo Vasconcellos.

Finalmente, mas não menos importante, ao Jonathan, ao Rui, ao Edmir, ao Mozer, à


Aleida e à Isa, um muito obrigado por me terem proporcionado o aconchego familiar,
indispensável numa caminhada como esta.

6
Ao nível institucional, os meus agradecimentos são dirigidos:

À Universidade de Cabo Verde, através da Coordenação do Curso de Pós-Graduação em


Ciências Sociais, pela forma esclarecida e atenta como conduziu o Curso de
Doutoramento. Especial agradecimento ao Prof. Doutor Crisanto Barros e a Dra. Manuela
Furtado.

Ao Arquivo Histórico Nacional, instituição que me acolhe há mais de duas décadas, e, na


qual aprendi a estudar a História de Cabo Verde.

Ao Governo de Cabo Verde, através da FICASE, pelo apoio financeiro, que me permitiu
custear as propinas referentes ao curso.

Às Câmaras Municipais da Ribeira Grande e do Paúl, que, amavelmente, me receberam,


sempre que tal foi solicitado, e criaram as condições necessárias para a socialização do
meu trabalho, nas diferentes fases da sua construção. Os inputs e os questionamentos dos
participantes das respetivas sessões de socialização, foram fundamentais para o
encaminhamento da tese.

À Embaixada da França, por me contemplar com uma bolsa de mobilidade doutoral para
três meses de estágio no Instituto de Estudos Políticos de Bordeaux, no quadro da
Cooperação com a Universidade de Cabo Verde.

À Universidade de Genève, Suiça, através do Département d’Histoire Générale, que me


proporcionou a possibilidade de discutir a minha proposta de tese, nos seminários ali
realizados, no âmbito do projeto, Decolonisation a regional experience and global trend,
coordenado pelo Professor Doutor Alexander Keese. De igual modo, os meus
agradecimentos por me ter permitido, recentemente, participar no Colóquio Internacional,
Viver as independências: experiências, conflitos e oposições nas sociedades africanas
descolonizadas (1960-1990), no Paúl – Santo Antão, com uma comunicação sobre as
desigualdades fundiárias e as assimeterias sociais no Cabo Verde independente: o caso
do Tarrafal de Monte Trigo na ilha de Santo Antão.

7
Ao ISCTE-IUL, por me ter acolhido durante um mês, na qualidade de Investigador
Visitante, participando nos eventos científicos ali realizados, designadamente no Ciclo de
Seminários – Novas Perspetivas em História Moderna - sob a orientação do Prof. Doutor
José Vicente Serrão, durante o qual tive a ocasião de socializar e discutir a minha proposta
de trabalho.

Do mesmo modo, ao Max-Planck Institute for European Legal History (MPIeR), em


Frankfurt am Main, Alemanha, pelo acolhimento como Investigador Visitante e pela
oportunidade que me foi concedida para participar no Workshop, Diálogos entre História
e Direito na África, organizado pela Doutora Mariana Dias Paes, e no Sympósio
Internacional, Resistance, Religion and justice, organizado pela Doutora Benedetta
Albani. Os inputs recebidos na sequência das comunicações ali apresentadas, Das
sesmarias à apropriação privada da terra no Cabo Verde colónia: transplante da
legislação agrária portuguesa para o arquipélago e Cenários de resistência camponesa
em Cabo Verde: questões teóricas e historiográficas, respetivamente, foram
enriquecedoras, metodológica e epistemologicamente.

Ao Projeto RESISTANCE- H2020-MSCA-RISE 2017 - Rebellion and Resistance in the


Iberian Empires, 16th-19th centuries, por me ter proporcionado a realização de duas
missões de trabalho, em Portugal e na Alemanha, sem as quais não seria possível as
atividades desenvolvidas no ISCTE-IUL e no MPIeR. Integrar a equipa de investigadores
neste projeto, estudando cenários de resistência camponesa no Cabo Verde oitocentista,
permitiu-me criar uma rede de contactos importante e participar em várias atividades
académicas, fundamentais na consolidação de muitos aspetos tratados ao longo da tese.

8
RESUMO

Ao longo da história, a questão de como organizar as formas de uso da terra e da água


tem sido um constante desafio, mormente nas sociedades rurais africanas, e, muito
particularmente em países de escassos recursos naturais, como é o caso de Cabo Verde.
Nesses países, a relação terra, água e poder constitui um meio interessante de se analisar
as dinâmicas sociais subjacentes às comunidades rurais, sendo indicadores fiéis do
prestígio social e do poder ligado à sua propriedade. Proponho, neste trabalho, analisar a
trilogia - Terra, Água e Poder em Santo Antão, a segunda maior ilha cabo-verdiana e de
matriz essencialmente agrária, pelas suas particularidades nesta matéria.

Faço esta análise a partir de uma das suas comunidades rurais, Tarrafal de Monte Trigo,
no Concelho do Porto Novo. Trata-se de um olhar histórico relativamente longo sobre
esta comunidade rural, que conheceu uma trajetória marcada por acentuadas
desigualdades fundiárias que se manteriam até o início dos anos oitenta do século XX,
altura em que foi beneficiada de um programa do governo de então, que distribuiu em
regime de posse útil (mais tarde, nos anos noventa, transformado em posse plena) algumas
dezenas de parcelas de terras irrigadas a parceiros da família Ferro, proprietária das terras
e gestor da água do povoado.

Um estudo aprofundado da história de qualquer país exige que, além das fronteiras do
quotidiano urbano (imprescindível, mas insuficiente), se lance um olhar complementar
sobre as vivências rurais, onde os problemas fundiários são candentes, nomeadamente em
matéria da gestão de terra e água, o que contribui sobremaneira para a construção da
personalidade coletiva de qualquer comunidade. Com este estudo, pretende-se tão-
somente contribuir para uma visão mais alargada da história de Santo Antão.

Palavras-chave: Cabo Verde, Santo Antão, Terra, Água, Poder, Sesmaria, Parceria,
Arrendamento, Desigualdade fundiária.

9
RESUM

Kestãu de organizá menera de uzá térra y ága é un grande dezafiu na Istória,


prinsipalmente na kes sosiedade rural afrikane y partikularmente na peis de poke rekurse
netural, móda é kaze de Kabe Verde. Relason térra, ága y puder na kes peis é un mei
interesante de analizá dinámika susial de kumunidades rural y es é indikador fiel de
prestije sosial y de puder ligode a se propriedade. Nes traboi N ta prupô analizá triolojia
térra, ága y puder na Sintonton, segunde ilha más grande de Kabe Verde y de matris
isensialmente agrare pur kauza de ses partikularidade nes matéria.

N ta fazê es analize a partir de un de ses kumunidade rural, Tarrafal de Monte Trige, na


konselhe de Porte Nove. É un olhar istóriku relativamente longue sobre es kumunidade
rural, ke konxê un trajete morkode pa asentuôde dezigualdade fundiarea ke mantê até
inise de ones 80 de Sekle XX, altura k’el foi benefesiode pa un prugrame de governe ke
destribuí na rejime de pose útil (más tarde, na ones 90, transformode na pose plene) uns
dizena de térra de regadiu a parseres de família Ferre, proprietária de kes térra y jestor de
ága na kel povoôde.

Stude aprofundode de Istória de kalker peis te ezijí, alen de frontera de dia dia na sidade
(inportante mas insufisiente), ser lansode un olhar konplementar sobre kes vivénsia rural,
onde é ke prubemas fundiare é grande, prinsipalmente na keston térra y ága, ki ta kontribuí
bastante pe konstrusãu de personalidade kuletiva ki kalker kumunidade. Es stude ta
pretendê kontribuí apenas pe un vizãu mas alargode de istória de Sintonton.

Palavras-pase: Kabe Verde, Sintonton, térra, ága, puder, sesmeria, parseria,


arrendamente y dezigualdade sosial.

10
ABSTRACT

Throughout history, the issue of how to organize forms of land and water use has been a
constant challenge, all the more in African rural societies, and particularly in countries
with scarce natural resources, such as Cabo Verde. In these countries, the connection
between earth, water and power is an interesting way of analysing the social dynamics
underlying rural communities, being faithful indicators of the social prestige and the
power associated to their property.

I propose, in this work, to analyse the trilogy - Earth, Water and Power in Santo Antao,
Cabo Verde’s he second largest island and essentially of an agrarian matrix, due to its
particularities in this matter. I make this analysis from one of its rural villages, Tarrafal
de Monte Trigo, in the Municipality of Porto Novo.

It is a relatively long historical look over this rural village, which has experienced a
trajectory marked by severe land inequalities that would continue until the early eighties
of the twentieth century, when it benefited from a program of the then government which
distributed under a Useful Possession regimen (later, in the 1990s, transformed into
Complete Possession) a few dozen parcels of Ferro family’s irrigated land to partners, the
family owned the land and water in the village.

An in-depenth study of the history of any country requires that – beyond the boundaries
of urban everyday life ( indispensable but insufficient) - a complementary look should be
given to rural experiences, where land problems are pressing, especially in land and water
management, which contributes greatly to the construction of the collective personality
of any community. With this study, it is intended to contribute to a broader view of the
history of Santo Antão.

Key words: Cabo Verde, Santo Antão, Land, Water, Power, Sesmaria, Partnership,
Lease, Land inequality.

11
RÉSUMÉ

Au cours de l’histoire, la question de l’organisation de l’utilisation de la terre et de l’eau


a été un défi permanent, surtout dans les sociétés rurales africaines et, plus
spécifiquement, dans des pays caractérisés par une pénurie de ressources naturelles
comme le Cap-Vert. Dans ces pays, le lien terre-eau-pouvoir représente une perspective
intéressante pour étudier les dynamiques sociales subjacentes aux communautés rurales
et offre un indicateur pour étudier le prestige des acteurs sociaux. Dans mon travail
j’analyse la trilogie terre, eau et pouvoir dans le cadre de Santo Antão, la deuxième île de
l’archipel capverdien, marquée par une structure essentiellement agraire.

J’entame cette analyse en adoptant un regard historique relativement longue et en


focalisant sur la communauté rurale do Tarrafal de Monte Trigo, dans le district de Porto
Novo, qui vécut une trajectoire caractérisée par des inégalités accentuées. Celles-ci
perdurèrent jusqu’aux années 1980, quand le gouvernement distribua – d’abord en termes
de droits d’usage et, à partir des années 1990, comme propriété pleine – quelques dizaines
de parcelles de terres irriguées aux métayers de la famille Ferro, propriétaire des terres et
gérante des eaux du village.

Étudier de façon approfondie l’histoire d’un pays exige que, au-delà d’étudier la vie
quotidienne urbaine, implique qu’on examine la vie des campagnes. Dans l’espace rural,
les questions fondiaires sont brûlantes, tout particulièrement par rapport à la gestion de la
terre et de l’eau, et influencent la constitution collective des commauntés. Du coup, cette
étude contribuira à développer une vision élargie de l’histoire de Santo Antão.

Mots-clés: Cap-Vert, Santo Antão, Terre, Eau, Pouvoir, Sesmaria, Métayage, Location,
Inégalité.

12
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

ANCV Arquivo Nacional de Cabo Verde


ANTT Arquivo Nacinal da Torre do Tombo
AHU Arquivo Histórico Ultramarino
BO Boletim Oficial
BTETH Brigada Técnica de Estudos e Trabalhos Hidráulicos
CCRA Comissões Concelhias de Reordenamento Agrário
CNRA Comissão Nacional da reforma Agrária
CEAUP Centro de Estudos Africanos de Universidade do Porto
CODESRIA Conseil Pour le Développement de la Recherche en Sciences
Sociales en Afrique
CEI-IUL Centro de Estudos Africanos – Instituto Universitário de Lisboa
Cx. Caixa
FICASE Fundação Caboverdiana de Acção Social e Escolar
INE Instituto Nacional de Estatística
INIDA Instituto Nacional de Investigação e Desenvolvimento Agrário
IEP Instituto de Estudos Políticos
ICL Instituto Cabo-verdiano do Livro
ISCTE-IUL Instituto Superior de Ciências do Trabalho- Instituto Universitário
de Lisboa
LBRA Lei das Bases da Reforma Agrária
LEC Laboratório de Engenharia Civil
Lv. Livro
MDE Museu de Documentos Especiais
MDR Ministério do Desenvolvimento Rural
M_EIA Mindelo Escola Internacional de Arte
MIT Ministério de Infraestruturas e Transportes
MST Movimento dos Trabalhadores Sem Terra
MPIeR Max-Planck Institute for European Legal History
PPGCS Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais

13
RPSAC Repartição Provincial dos Serviços da Administração Civil
SEHA Seminário de História Agrária
SGG Secretaria-geral do Governo
TMT Tarrafal de Monte Trigo
Uni-CV Universidade de Cabo Verde

14
ÍNDICE DAS FIGURAS

Figura 1. Tarrafal de Monte Trigo – Santo Antão.......................................................... 37


Figura 2. Ilha de Santo Antão......................................................................................... 81
Figura 3. Divisão administrativa da ilha de Santo Antão ............................................. 105
Figura 4. Vista parcial da atual cidade da Ribeira Grande ........................................... 106
Figura 5. Ribeira da Torre ............................................................................................ 106
Figura 6. Atual cidade de Ponta do Sol ........................................................................ 107
Figura 7. Coculi ............................................................................................................ 107
Figura 8. Vale da Garça................................................................................................ 108
Figura 9. Planalto Leste (Pinhão) ................................................................................. 108
Figura 10. Ribeira Grande (entre Agriões e Manuel de Joelho)................................... 109
Figura 11. Paços do Concelho da Câmara Municipal da Ribeira Grande .................... 111
Figura 12. Vista parcial da cidade de Pombas – Paúl................................................... 111
Figura 13. Vista parcial do interior do concelho do Paúl ............................................. 112
Figura 14. Pico da Cruz ................................................................................................ 112
Figura 15. Topo de Coroa – Planalto Norte ................................................................. 113
Figura 16. Atual cidade do Porto Novo........................................................................ 114
Figura 17. Percurso Porto Novo - Lajedos – Ribeira das Patas.................................... 116
Figura 18. Ribeira da Cruz – Interior do Porto Novo................................................... 116
Figura 19. Martiene- Interior do Porto Novo ............................................................... 116
Figura 20. Vista parcial do Planalto Sul ....................................................................... 117
Figura 21. Vista parcial do Planalto Norte ................................................................... 117
Figura 22. Um aspeto do vale da Ribeira de Jorge - Paúl ............................................ 131
Figura 23. Campo agrícola no interior do concelho do Porto Novo ............................ 132
Figura 24. Aspeto de uma propriedade agrícola na Ribeira de Janela – Paúl .............. 132
Figura 25. Fontenário. Vila da Ribeira Grande ............................................................ 134
Figura 26. Boca de entrada da galaria de Fonte Correia - Ribeira Grande................... 135
Figura 27. Levada de Fonte Correia – Ribeira Grande................................................. 135
Figura 28. Levada de Boca de Cosco – Ribeira Grande............................................... 136
Figura 29. Levada de Chã de Pedras ............................................................................ 136
Figura 30. Coletor de ligação da galaria de Bica de Cosco à levada do serrado .......... 137

15
Figura 31. Levada de Paul de Baixo............................................................................. 138
Figura 32. Troço de levada de comandante na Ribeira de Jorge.................................. 138
Figura 33. Levada de Carlos – Paúl.............................................................................. 139
Figura 34. Túnel aberto para passagem da levada de Carlos – Paúl ............................ 139
Figura 35. Aspeto de uma levada em Tarrafal de Monte Trigo ................................... 140
Figura 36. Aspeto de um reservatório de água em Tarrafal de Monte Trigo ............... 140
Figura 37. Vista parcial do Tarrafal de Monte Trigo ................................................... 151
Figura 38. Vista parcial de Monte Trigo ...................................................................... 151
Figura 39. Ponta do Atum – Tarrafal de Monte Trigo.................................................. 153
Figura 40. Zona ribeirinha (praia grande) - Tarrafal de Monte Trigo .......................... 153
Figura 41. Agostinho Pereira - Tarrafal de Monte Trigo ............................................. 153
Figura 42. Varanda - Tarrafal de Monte Trigo............................................................. 153
Figura 43. Ladeira - Tarrafal de Monte Trigo .............................................................. 154
Figura 44. Vista parcial do Covão - Tarrafal de Monte Trigo...................................... 154
Figura 45. Lombo de Cal - Tarrafal de Monte Trigo.................................................... 155
Figura 46. Cultura de inhame ....................................................................................... 157
Figura 47. Reservatórios de água destinada ao abastecimento dos navios-cisternas ... 159
Figura 48. Largo do Tarrafal – Ilha de São Vicente..................................................... 161
Figura 49. Vestígio do cais do Tarrafal de Monte Trigo .............................................. 168
Figura 50. Vaporim d´ága- Vascónia – São Vicente .................................................... 168
Figura 51. Antigas residências em Tarrafal de Monte Trigo........................................ 175
Figura 52. Penha de França- Casa onde funcionou a Igreja do Tarrafal de Monte Trigo
...................................................................................................................................... 176
Figura 53. Casa onde funcionou o Posto Sanitário do Tarrafal de Monte Trigo.......... 176
Figura 54. Vista parcial da casa onde funcionou o posto sanitário do Tarrafal de Monte
Trigo ............................................................................................................................. 177

16
LISTA DAS TABELAS

Tabela 1. Relação dos proprietários de escravos na ilha de Santo Antão em 1856........ 89


Tabela 2. Santo Antão - Auxílios e Subsídios concedidos pela Assistência em 1948 ... 97
Tabela 3. Mapa Geral dos fogos da população do Concelho da Ribeira Grande (1880)
...................................................................................................................................... 109
Tabela 4. Dados respeitantes a rendeiros e/ou parceiros com contrato verbal – Tarrafal
de Monte Trigo ............................................................................................................. 180
Tabela 5. Lista de cultivadores com contratos escritos (1967)..................................... 184
Tabela 6. Distribuição de parcelas de terra e horas de água para a rega aos cultivadores
...................................................................................................................................... 189
Tabela 7. Relação da produção média anual dos lavradores do Tarrafal de Monte Trigo
...................................................................................................................................... 198
Tabela 8. Número de rendeiros e parceiros existente em Cabo Verde em 1976.......... 211
Tabela 9. Relação dos cultivadores que receberem o título da posse útil .................... 242
Tabela 10. Composição dos agregados familiares dos agricultores ............................. 244
Tabela 11. Beneficiários da posse útil e respetivos familiares ..................................... 248
Tabela 12. Situação demográfica em Tarrafal de Monte Trigo em 2018..................... 263

17
SUMÁRIO

Dedicatória........................................................................................................................ 4
Agradecimentos ............................................................................................................ …5
Resumo ............................................................................................................................. 9
Resum ........................................................................................................................ … 10
Abstract........................................................................................................................... 11
Résumé ........................................................................................................................ .. 12
Lista de Abreviaturas e Siglas ....................................................................................... 13
Índice das Figuras......................................................................................................... . 15
Índice das Tabelas…………………………………………………………………...... 17

Sumário ………………………………………………………………………………..18
Introdução....................................................................................................................... 21

Capítulo I – Quadro Teórico-Metodológico................................................................... 36


1.1. O interesse pelo objeto de pesquisa ............................................................... 37
1.2. A problemática e o referencial teórico ........................................................... 45
1.3. O estado da arte.............................................................................................. 53
1.4. A metodologia................................................................................................ 70

Capítulo II – Santo Antão de Cabo Verde: o espaço e as gentes.................................... 80


2.1. Enquadramento histórico: gestão do espaço e processo de povoamento....... 81
2.2. Santo Antão sob os auspícios da Companhia do Grão-Pará e Maranhão: as
crises, as fomes e o ambiente escravocrata ........................................................... 85
2.3. A tensão social no Santo Antão dos séculos XIX e XX ................................ 98
2.4. A dinâmica administrativa da ilha entre os séculos XVIII e XX................. 100
2.4.1. O Concelho da Ribeira Grande........................................................ 106
2.4.2. O Concelho do Paúl ......................................................................... 111
2.4.3. O Concelho do Porto Novo.............................................................. 113

18
Capítulo III – O panorama fundiário e a questão dos recursos hídricos em Cabo Verde:
o caso da ilha de Santo Antão....................................................................................... 119
3.1. O desafio de transformar espaços vazios em terra produtiva....................... 120
3.1.1. A ocupação das terras em Santo Antão ........................................... 124
3.2. Os recursos hídricos ..................................................................................... 128

Capítulo IV – Tarrafal de Monte Trigo ........................................................................ 150


4.1. O povoado e as suas potencialidades naturais ............................................. 151
4.2. A ocupação do Tarrafal de Monte Trigo e a sua exploração efetiva ........... 162
4.3. Do conforto dos arquivos à pesquisa de campo - Ouvir pessoas, (re)visitar
lugares, evocar histórias do Tarrafal de Monte Trigo ......................................... 172
4.4. O contrato de parceria de 1967 e os seus contornos .................................... 184
4.5. As relações rendeiro/lavrador e a distribuição das parcelas......................... 191
4.6.A situação económica e social adveniente do contrato de parceria .............. 197

Capítulo V - A Lei de Bases da Reforma Agrária (LBRA) em Cabo Verde e o seu


impacto em Tarrafal de Monte Trigo…………………………………………… …..208
5.1. Nota introdutória ……………………………………………………… … 209
5.2. A questão da água no quadro das reformas pós-independência................... 226
5.3. A LBRA em Tarrafal de Monte Trigo – Uma proposta vinda de “baixo”…229
5.4. Da posse útil à posse plena ……………………………………………………………………………….. 253

5.5. Tarrafal de Monte Trigo: elementos para uma análise prospetiva ............... 263

Considerações Finais .................................................................................................... 269


Referências bibliográficas e fontes............................................................................... 277

19
As políticas públicas precisam de ser elucidadas pelos
resultados e contribuições do ramo das ciências que mais
directa e imediatamente afectam a vida da sociedade-as
Ciências Sociais e Humanas (Cardoso, C., 2012:142).

20
INTRODUÇÃO

Terra e Água, dois recursos que acompanham a história da humanidade desde a noite dos
tempos. Estes dois recursos abrem um leque de questões a serem exploradas, sendo a
relação Terra, Água e Poder uma delas. Desde logo, porque a sua acessibilidade é a
medida mais apropriada da desigualdade, particularmente no meio rural. Por outro lado,
são meios que produzem e reproduzem os bens básicos necessários ao sustento, pelo que
o prestígio social e o poder estão diretamente ligados à sua propriedade e/ou posse. São
fundamentais para quem se propõe estudar a história agrária de um país.

Em Cabo Verde, quando olhamos para o cenário historiográfico, constatamos um certo


viés que consiste em ver a história deste arquipélago a partir dos centros urbanos,
negligenciando, não raras vezes, o meio rural, onde os problemas fundiários também
existem e os conflitos à volta da água são maiores, mais profundados e, quiça, mais
conformadores da cosmogonia e cosmovisão que enformam a cultura cabo-verdiana.
Desde o início da ocupação efetiva deste arquipélago, 1 a posse da terra, símbolo de
distinção social e de poder, constituiu privilégio reservado a poucos eleitos.2 Foi assim na
ilha de Santiago, distribuída a dois capitães-donatários, e assim foi nas ilhas agrícolas de
povoamento posterior - São Nicolau, Santo Antão e Brava.3

Em Santo Antão, “onde o vigor do relevo tornava difícil a comunicação, por isso tinha de
ser servida por uma abundante e barata mão-de-obra,”4 o prestígio e a distinção,

1 Sobre este assunto, sugiro a leitura de Albuquerque, Luís de (1991). O Descobrimento das Ilhas de Cabo Verde. In
Albuquerque, Luis de & Santos, Maria Emília Madeira (Coords.). História Geral de Cabo Verde, Vol. I. Lisboa/
Praia: Centro de Estudos de História e Cartografia Antiga-Instituto de Investigação Científica Tropical e Direção
Geral do Património Cultural de Cabo Verde, pp. 23- 39.
2 Cfr.Domingues, Ângela (1991). Administração e Instituições: Transplante, Adaptação, Funcionamento. In
Albuquerque, Luis de & SANTOS, Maria Emília Madeira (Coords.). História Geral de Cabo Verde, Vol. I, Lisboa/
Praia: Centro de Estudos de História e Cartografia Antiga-Instituto de Investigação Científica Tropical e Direção
Geral do Património Cultural de Cabo Verde, pp. 41- 120.
3 Sobre o processo de povoamento destas ilhas, sugiro a leitura de Baleno, Ilídio (1991). Povoamento e Formação da
Sociedade. In Albuquerque, Luis de & Santos, Maria Emília Madeira (Coords.). História Geral de Cabo Verde, Vol.
I, Lisboa/ Praia: Centro de Estudos de História e Cartografia Antiga-Instituto de Investigação Científica Tropical e
Direção Geral do Património Cultural de Cabo Verde, pp. 125-178).
4 Matos, Teodoro de (1997). Santo Antão de Cabo Verde. Gente, Recursos e Organização do poder nos séculos XVI e
XVII. In “História das Ilhas Atlânticas (Arte, Comércio, Demografia, Literatura), Vol. II, Governo Regional da
Madeira, p. 190.

21
associados à riqueza produzida à custa do trabalho escravo, num primeiro momento, e do
meeiro, num segundo momento, foi proeza de poucos.

Pertencente a uma única pessoa, o capitão- donatário, até 1759, a terra e a água, em bom
rigor, indicadores do poder e da riqueza, continua por muito tempo pertences de muita
pouca gente, uma minoria que, à dimensão da ilha, acaba por angariar a projeção social,
para si e para os seus.

Durante muito tempo, os poucos proprietários de Santo Antão foram os únicos que
tinham, por exemplo, condições financeiras para proporcionar aos seus filhos uma
educação, primeiro na vizinha ilha de São Vicente e, depois, na metrópole, dotando-os
da“possibilidade de obter títulos académicos, habilitando-os a entrar no universo dos
servidores do estado.”5 Os mesmos que depois viriam a fazer parte da elite administrativa
e política do país recém-independente.

Se é evidente que, numa primeira fase, são os descendentes das grandes famílias
cabo-verdianas que se apropriam em larga medida de novas centralidades que
surgem com a gradativa expansão do estado e da escolarização, não é de se descurar,
entretanto, que essas vias de mobilidade se tornam vitais para a sobrevivência de
uma pequena burguesia (classe média) em crescendo desde finais do século XIX.
Essa pequena burguesia urbana e rural que emerge dominantemente nas ilhas do
Norte, de povoamento mais tardio, constitui a primeira etapa do alargamento da base
social de onde são recrutados os indivíduos que integram a elite administrativa cabo-
verdiana. A par dos estratos mais favorecidos da sociedade cabo-verdiana, essa
pequena burguesia se beneficia de instrução em resultado do acesso privilegiado à
escolarização (Barros, 2013: 57).

O círculo do poder dificilmente se abriu, por mais que a sociedade tendesse a se


complexificar, no pós-independência. Se é verdade que a emigração dos primeiros anos
pós-independência veio dar uma nova vida à sociedade cabo-verdiana e com ela a
santantonense, tendo surgido como alternativa, com impactos positivos na reabilitação
económica de muitas famílias, não é menos verdade que a figura da família proprietária
de terras de regadio continua a manter o seu lugar na ilha de Santo Antão, e, com isso, a
manutenção da sua clientela e do seu grupo de sociabilidade.

5 Correia e Silva, António (2001). O Nascimento de Leviatã Crioulo. Esboços de uma Sociologia Política. In
Cadernos de Estudos Africanos. Lisboa: ISCTE, p.7.

22
Terra, Água, Mundo Rural, Prestígio Social, Exclusão, Pobreza, entre outras questões,
estiveram na minha mente, quando entrei para o curso de doutoramento em Ciências
Sociais. Tinha passado muitos anos a estudar aspetos da história local, da cidade da Praia
e da ilha de Santo Antão, maioritariamente, apoiando-me exclusivamente em fontes
escritas, mais ainda, oficiais.6

Quis investir em algo novo, sem com isso deixar a História de lado, pela paixão que nutro
por esta ciência, na qual me formei. Ciências Sociais veio a calhar.

Pelas contribuições que a Sociologia e a Antropologia têm dado para o estudo destas
matérias, pareceu-me possível aliá-las à História, num trabalho a que intitulei, A Terra, a
Água e o Poder. Sobre todo o Cabo Verde seria ousado demais. Pensei na ilha de Santo
Antão, pelas suas particularidades nesta matéria.

Nos primeiros dois anos, as pesquisas bibliográficas, os contactos 7 e as reflexões foram à


volta dos três concelhos que hoje compõem a ilha. Lembro-me, ainda, de uma sessão de

6 A minha atividade profissional no Arquivo Histórico Nacional, lidando com as fontes primárias oficiais relativas à
História deste arquipélago, estudando realidades históricas de determinados locais, separadas do seu contexto, a partir
destas fontes, levou-me a nunca pensar na necessidade de ir ao terreno, auscultar as pessoas, intentar outras vias de
conhecimento, por me parecerem suficientes as informações auridas dos textos, facilmente acessíveis no meu lugar
de conforto.
7 Desde a minha entrada no curso de doutoramento, os meus contactos têm incidido com investigadores e instituições,
direta ou indiretamente, afetos às questões fundiárias. Em todas as atividades académicas, as minhas reflexões foram
acerca da terra, da água e do poder na ilha de Santo Antão de Cabo Verde, pelo que tive a oportunidade de discutir
versões da tese, ainda em construção, em diferentes instituições: No Seminário realizado no Instituto de Estudos
Políticos de Bordeaux, em novembro de 2016, apresentei uma comunicação, Terra, Água e Poder- Estrutura
Fundiária e Dinâmica Social na Ilha de Santo Antão de Cabo Verde ( C. 1880 C. 1970), a convite do Professor
Michel Cahen, a quem agradeço; No grupo do RAJA ( Réseau Aquitaine des Jeunes Africanistes) no mesmo Instituto,
em janeiro de 2017, discuti o mesmo texto, que contou com a arguência de Sina Schlimmer e Sérgio Conrado, a
quem agradeço pelas críticas e pelas diversas sugestões bibliográficas e de fontes. O mesmo texto foi ainda discutido
no Seminário “Decolonisation: a regional experience and global trend”- organizado pelo Departamento de História
Contemporânea, Universidade de Genéve (Suiça), em dezembro de 2016, a convite do Professor Alexander Keese, a
quem também sou grato. Versões da tese foram ainda discutidas no Ciclo de Seminários - Novas Perspetivas em
História Moderna, promovido pelo Departamento de História do ISCTE-IUL e Grupo de História Moderna e
Contemporânea do CIES-IUL, em outubro de 2018, no âmbito do Projeto RESISTANCE (Rebellion and Resistance
in the Iberian Empires, XVI-XIX Centuries). A comunicação apresentada, A Terra, a Água e o Poder no Cabo Verde
Colonial, beneficiou dos comentários, sugestões e críticas dos participantes, em especial do Professor José Vicente
Serrão a quem deixo registado os meus agradecimentos, extensivos à equipa por ele liderado, pelo meu acolhimento
no ISCTE-IUL, na qualidade de Investigador Visitante. Devo ainda agradecer ao Pôle Foncier de Montpellier, pela
facilidade que me foi concedida na mobilização de um acervo bibliográfico relativamente vasto sobre as questões
fundiárias. Ao Professor Pierre Blanc, da Universidade de Bordeaux, deixo os meus agradecimentos pelas sugestões
bibliográficas, pelas longas conversas sobre as questões fundiárias em África e no Mundo.

23
socialização do projeto na Cidade da Ribeira Grande,8 em Santo Antão, e dos muitos
inputs então recebidos do público presente, do entusiasmo das gentes de Santo Antão,
que, tão ávidos, anseiam por questões que têm que ver com a terra e com a água.

À medida que ia avançando com as pesquisas, parecia-me cada vez mais difícil abarcar
toda a ilha para um projeto de doutoramento que, afinal, tem prazos. Foi com esta
inquietude que fui para o exame de qualificação. As discussões ocorridas durante o
mesmo foram esclarecedoras, quer relativamente ao espaço de pesquisa, quer no que
concerne à baliza cronológica. Fui aconselhado a circunscrever a tese à comunidade do
Tarrafal de Monte Trigo, no Concelho do Porto Novo, seguindo o seu percurso até a
atualidade. Após muitos reajustes, estava, doravante, definido o título do trabalho: A
Terra, a Água e o Poder na ilha de Santo Antão de Cabo Verde – Um olhar a partir do
Tarrafal de Monte Trigo.

Alicerçada na matriz histórica, a pesquisa que culminou nesta tese consiste num
demorado olhar sobre a particularidade desta aldeia rural localizada no sudoeste da ilha,
procurando estabelecer, analisar, cruzar e descortinar a trilogia, Terra, Água, Poder - no
contexto da ilha de Santo Antão.

O primeiro grande desafio foi o de mobilizar a História, a Sociologia e a Antropologia,


para tal empreitada. Senti a necessidade de revisitar alguns dos autores que marcaram o
pensamento antropológico contemporâneo, nomeadamente, Malinowski (1978), Evans-
Pritchard (1978), Ruth (1934, 2013), Mead (1928), Geertz (1989), Lévis-Strauss (1949),
Goldman (2006), Boas (1932/2004), Clifford (2008). Todos eles fornecem luzes
interessantes relativamente às temáticas da contemporaneidade, facultando-nos os
instrumentos teórico-metodológicos indispensáveis à problematização de matérias no
domínio das Ciências Sociais e Humanas, particularmente da Antropologia.

Investi bastante na leitura de Bronislaw Malinowski,9 referência incontornável,


nomeadamente por ter introduzido a etnografia com base na observação participante,

8 Aproveito para agradecer o Presidente da Câmara Municipal da Ribeira Grande, Eng. Orlando Delgado e sua equipa,
que, não só criaram as condições necessárias para a minha ida ao Concelho, como empenharam diretamente na
mobilização de pessoas para o encontro, possibilitando uma participação expressiva de interessados nestas questões.
9 Reconhecido antropólogo (Antropologia Social), constantemente referenciado pelo Trabalho de Campo que
desenvolveu nas ilhas Trobriand, na Nova Guiné, entre 1914 e 1918.

24
como método essencial para a produção de conhecimento sobre o Outro.10 Dele aprendi
que o método etnográfico de pesquisa, através do trabalho de campo intensivo e da
descrição densa em Tarrafal de Monte Trigo, seria o caminho a seguir para contornar os
muitos silêncios que existem na documentação escrita11 sobre matérias relacionadas com
o meu objeto de pesquisa.

O trabalho de campo realizado em Tarrafal de Monte Trigo, a partir de 2017, foi baseado
na etnografia, sabendo que as descrições etnográficas “não estão materializadas em
documentos fixos e concretos, mas sim no comportamento e na memória dos homens
vivos.”12

Sempre que possível, cruzei o método da Etnografia com o da História, porquanto, quer
a primeira, quer a segunda, “estudam sociedades que são outras em relação àquela em
que vivemos,”13 ainda que, na contemporaneidade, nem a história, nem as demais ciências
sociais não se limitem ao estudo de sociedades outras. O ponto fundamental foi assegurar,
no trabalho etnográfico, realizado em Tarrafal de Monte Trigo, uma relação de
proximidade e de estranhamento, de intimidade e de reflexibilidade de modo a não se
subsumir no campo (Defreyne & Outros, 2015).

Quanto à ligação com a História, a interdisciplinaridade é hoje apontada para reconstruí-


la, particularmente a História de África, para a qual, a tradição oral torna-se essencial.
Daí ter mobilizado, ao longo do trabalho, autores africanos e africanistas como, Vansina,
Ki-Zerbo e Hampate Ba. Deste autor, fui beber na inspiração e nos elementos que o
levaram a escrever a História do Império Peul de Macina no século XVIII, como nos
explica em A Tradição Viva.

Pertencendo à família de Tidjani, chefe da Província, tive, desde a infância,


condições ideais para ouvir e reter. A casa de Tidjani, meu pai, em Bendiagara,
estava sempre cheia de gente. Noite e dia havia grandes reuniões onde todos falavam

10 Cfr. Malinowski B. (1978). Os Argonautas do Pacífico Ocidental. Introdução, São Paulo: Abril Cultural, pp. 12-38.
11 Infelizmente, grande parte da documentação sobre Cabo Verde, no período em apreço, expressa a voz da elite
administrativa, porquanto muitos aspetos da história da grande maioria populacional das ilhas são ignorados pelas
fontes escritas.
12 Malinowski, B. (1978). Op. Cit. p. 19.
13 Lévi-Strauss, Claude (1949). História e Etnologia. In Antropologia Estrutural, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, p.
3.

25
sobre uma grande variedade de assuntos tradicionais. Estando a família do meu pai
muito envolvido nos acontecimentos da época, os relatos eram normalmente sobre
história, e cada pessoa narrava um episódio bem conhecido de alguma batalha ou de
outro acontecimento memorável. Sempre presente nessas reuniões, eu não perdia
uma palavra sequer, e minha memória, como cera virgem, gravava tudo (Ba, 2010:
206).

Como é natural, não disponho do vigor intelectual deste que é considerado um dos
maiores especialistas africanos nesta matéria. Por esta razão, e porque o contexto é outro,
ainda que nele inspirado, não me era possível sequer pensar em fazer o que fez, registando
narrativas de “pelo menos mil informantes, entre Futadjalon (Guiné) a Kano (Nigéria),
durante quinze anos de trabalho” (Ba, 2010:207). Porém, em devida proporção, fui
tentado a seguir o mesmo caminho metodológico, aproveitando da minha ligação ao
espaço de análise e de informações advenientes das relações familiares e da vivência em
Tarrafal de Monte Trigo. Ao longo do trabalho fui mobilizando as minhas próprias
memórias, memórias essas tantas vezes reavivadas, cruzadas, complementadas, negadas,
reajustadas por altura das conversas mantidas com os meus informantes.

O trabalho foi também baseado na análise iconográfica, encarada cada vez mais como
fonte importante, rica em informações e significados, por nos colocar em contacto
privilegiado com os personagens e com as épocas históricas. Consegui mobilizar um
acervo fotográfico relativamente vasto, capaz de proporcionar informações relevantes
sobre diferentes aspetos da vivência na aldeia do Tarrafal de Monte Trigo, em épocas e
em contextos diferentes.

Esta etnografia local permitiu-me não apenas observar mas também auscultar as pessoas
comuns, que, afinal, nos dão conta de fenómenos, quantas vezes despercebidos aos atores
políticos e económicos e/ou às elites administrativas produtoras das fontes documentais
oficiais, bem como os prórios investigadores.14

Foi, no fundo, uma forma de ancorar as teorias à realidade local, evitando, na medida do
possível, explicações não adequadas (Furtado, 2016:28). O desafio foi, pois, se não uma

14 Cfr.
A este propósito, Habermas, Jurge (1997). Direito e Democracia. Entre facticidade e Validade, Vol. II. Tradução:
Flávio Beno Siebeneichler – UGF, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro.

26
rutura epistemológica, pelo menos um lidar com diferentes campos epistémicos,
obedecendo a uma vigilância epistemológica permanente.

Devo realçar as relações familiares e as minhas memórias relativamente ao passado


recente do Tarrafal de Monte Trigo. Se é verdade que tenho consciência de uma eventual
falta da objetividade desejável na análise de factos históricos recentes,15 e do
distanciamento necessário que se impõe ao pesquisador, não é menos verdade que a
vivência pessoal de acontecimentos que marcaram a história da minha vida, enquanto
natural do Tarrafal de Monte Trigo que sou, ajudou-me em muitos aspetos. Em todos os
momentos do trabalho de campo, aproveitei a minha relação de proximidade (e até de
familiaridade), quando não de intimidade, com as pessoas, enquanto condições principais
de uma comunicação não violenta (Bourdieu,1993:706).

Desde o início, foi minha intenção explorar a história vista “de baixo,”16 a partir das
narrativas que ia recolhendo em Tarrafal de Monte Trigo, ousando, com isso, contrariar
a agenda de investigação de matriz colonial, e, a um só tempo, abrir novas perspetivas de
pesquisas e explorar as vivências de quem experimentou, vivenciou e co-construiu na
pele e na memória a história.

Foi, no fundo, uma tentativa de “resgatar à História acontecimentos que tendem a ser
abandonados ao mais perfeito esquecimento,17” seguindo, deste modo, a tradição da
historiografia social inglesa, nomeadamente E.Thompson na produção de uma história
dos silenciados, e a sua proposta de uma história que tenta estudar os movimentos sociais,
os desfavorecidos, os sem-parte, atendendo “(…) às vozes subalternas e renunciar ao tom
autoritário que, silencia os diálogos informais e as incontáveis transacções mantidas por
aqueles e aquelas que os historiadores, frequentemente, apenas vislumbram a cumprir o
papel de espectadores.”18

15 Ciente, porém, de que a objetividade não está nem na distância física, como a antropologia clássica sustentou, nem
na temporal, como a tradição historiográfica positiva defende, mas antes nos instrumentos teóricos e metodológicos
adotados tanto na recolha quanto no tratamento e análise das informações.
16 Aquela que Hobsbawn convencionou chamar-se “história das pessoas comuns.”
17 Thompson, E.P. (2008). A Economia Moral da Multidão na Inglaterra do Século XVIII. Tradução: Frederico
Ágoas e José Neves, Lisboa: Antígona, p. 6.
18 Thompson, E.P. (2008). Op. cit. p. 7.

27
Foi um trabalho no sentido de examinar as relações dos subalternos, não apenas com as
elites, mas também, deles ente si, como recomenda o historiador indiano Ranajit Guha
(1999), no quadro da sua crítica pós-colonial.

As teorias sociológicas contemporâneas também foram mobilizadas, na medida do


possível, e sempre que tal se justificou. Foucault (1972, 1979, 2008), Bourdieu (1993/99,
2003;2008), Agamben (2007), Boltanski (2013), Giddens (1998), Archer (2011),
Habermas (1997), levaram-me a tomar consciência da necessidade de clarificar, quando
não desconstruir e reconstruir muitos dos conceitos trabalhados e o necessário
enquadramento teórico-metodológico que abre a tese, iniciando o caminho para os
capítulos que a compõem.

A leitura de Bourdieu (2003, 2008), chamou-me a atenção para a necessária abertura


relativamente a outros procedimentos metodológicos, nomeadamente todas as faculdades
de observação, consubstanciadas, por exemplo, em trabalhos de campo o quanto
demorado possível. Foi o que procurei fazer em Tarrafal de Monte Trigo, saindo um
pouco do arquivo, que, afinal, não é descritível em sua totalidade (Foucault, 2008:153).

Este procedimento metodológico, aliado às pesquisas arquivísticas levadas a cabo no


Arquivo Nacional de Cabo Verde, no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, em Portugal,
no Ministério da Agricultura, nas Câmaras Municipais do Paúl e da Ribeira Grande,
permitiram-me elaborar a tese, estruturada em cinco capítulos.

O primeiro capítulo é dedicado ao quadro teórico-metodológico. Está dividido em quatro


tópicos fundamentais: o interesse pelo objeto de pesquisa, a problemática e o referencial
teórico, o estado da arte e a metodologia.

Entendi ser pertinente abrir a tese explicando as motivações que me levaram a escolher o
assunto. Afinal, determinar e construir o objeto de pesquisa não é obra do acaso, pelo que
entender as razões da sua escolha constitui o fio condutor para o melhor entendimento a
um só tempo do processo de pesquisa e da produção do texto que condensa esse processo.
Neste caso em concreto, a escolha do local, apresentado aqui como um caso de estudo, a
postura metodológica e o longo olhar histórico sobre o espaço, são entendidos quando
mostro os meus percursos de vida e profissional, aliados à minha formação básica.

28
A problemática e o referencial teórico foram apresentados em diálogo. Foi a melhor forma
que eu encontrei para trabalhar estes dois aspetos, ambos importantes para qualquer
estudo que se queira fazer no domínio das ciências sociais e humanas. A mobilização de
teorias do campo das ciências sociais foi a mais difícil, superado, o quanto possível, na
inserção do assunto no debate, colonial e pós-colonial.

Relativamente ao estado da arte, foi necessária muita pesquisa e revisão da literatura


científica de referência, tão exaustiva quanto possível e pertinente para a temática retida.
Não foi a minha intenção, nem podia ser, no quadro deste trabalho, fazer o ponto de
situação das Ciências Sociais e Humanas em Cabo Verde. Tão-somente o levantamento
dos trabalhos publicados até hoje referentes às questões fundiárias e ao mundo rural, em
geral, e, a um só tempo, ver até que ponto a jovem historiografia cabo-verdiana é capaz
de dialogar com outras historiografias, mais antigas e consideradas pelo cânone como
sendo mais consolidadas nesta matéria.

Após um breve olhar pelo panorama historiográfico em diferentes paragens do mundo,


debrucei-me sobre Cabo Verde. Para o efeito, remontei ao período colonial, com a
indicação dos pouquíssimos trabalhos sobre esta matéria, para, no período pós-
independência, fazer um levantamento, o mais completo possível, nos domínios da
História, da Sociologia e da Antropologia.

Termino o capítulo, com reflexões acerca do caminho metodológico. A minha primeira


tarefa foi desconstruir, na medida do possível, muitas ideias preconcebidas relativamente
às fontes, pelas razões já apontadas. Ao longo do curso, os caminhos foram sendo
desbravados, relativamente à minha postura metodológica, tendo finalmente ficado
convencido da necessidade de um procedimento mais plural.19

Como referido páginas atrás, desenvolvi o trabalho de campo em Tarrafal de Monte Trigo,
com a recolha, o tratamento e a análise de dados, sobretudo através da mobilização da

19 Afinal, nas Ciências Sociais, todas as versões deverão ser chamadas no sentido de esclarecer os fenómenos, o quanto
possível.

29
etnografia, a aplicação de entrevistas e a definição de grelhas de análise e sua
implementação, criando conhecimento, partindo da realidade presente no campo.20

Por que a história se ocupa do que ficou documentado, e a documentação escrita se refere
geralmente à vida das camadas dominantes, lancei mão, por isso, numa multiplicidade de
documentos históricos.21Além de outros trabalhos, inspirei-me bastante na obra,
Trabalho, Sociabilidade e Geração de Rendimento no Espaço Lusófono,22 que coloca
ênfase na observação do quotidiano enquanto elemento importante para estudar os
fenómenos sociais. A partir de observações participantes, procurei levar a cabo
entrevistas abertas ou não-estruturadas, optando por aquilo que Minayo chama história
de vida tópica (Neto, 2000: 59).

O livro, “Os Parceiros do Rio Bonito. Estudo sobre o caipira paulista e a transformação
dos seus meios de vida,” da autoria de António Cândido,23 veio-me às mãos um pouco
tarde, mas ainda a tempo para me ajudar a trabalhar os meus dados de terreno.24 A leitura
do capítulo referente ao problema dos meios de vida do caipira com base “em
investigações realizadas no município de Bofete, nos anos de 1948 e 1954,”25 levou-me
a revisitar o meu diário de campo, procurando elementos que me permitiram inserir na
tese informações relativas, por exemplo, ao quotidiano das camponesas do Tarrafal de
Monte Trigo, e outros pormenores que, de início, considerava irrelevantes. Outrossim,
percebi, que, afinal, como diz este autor,

a existência de todo o grupo social pressupõe a obtenção de um equilíbrio relativo


entre as suas necessidades e os recursos do meio físico, requerendo, da parte do

20 Neto, Octávio (2000). O Trabalho de Campo como Descoberta e Criação. In Minayo, C. (org.) Pesquisa Social.
Teoria, método e criatividade, (16ª ed) Petrópolis, Rio de Janeiro: Editora Vozes, p. 51.
21 Entendo aqui, por documentação histórica, não apenas os documentos escritos, por muitos considerados oficiais,
produzidos por instituições como o Estado e Igreja, mas sim a documentação no seu sentido abrangente, ou seja, tudo
o que possa testemunhar a vivência das pessoas, desde os vestígios materiais como as ruinas das casas, quer da família
proprietária, quer dos agricultores parceiros, as cisternas de água, vestigios do cais a partir de onde os navios- cisternas
eram abastecidos, etc, a memória, a oralidade, a iconografia, sem esqucer a etnografia realizada em Tarrafal de Monte
Trigo.
22 Organização: João Estêvão e Iolanda Évora, II Série, nº 23, Lisboa: Almedina, Coleção Económicas, 2014.
23 Cândido, António Os Parceiros do Rio Bonito. Estudo sobre o caipira paulista e a transformação dos seus meios de
vida, (11ª ed.), Rio de Janeiro: Ouro sobre azul.
24 Agradeço ao Professor Cláudio Furtado não só por me ter recomendado a leitura da obra, como também por me ter
facultado uma cópia digitalizada da mesma.
25 Cândido António (2005).op. Cit. p. 21.

30
grupo, soluções mais ou menos adequadas e completas, das quais depende a eficácia
e a própria natureza daquele equilíbrio” (Cândido, 2005: 21).

Tive, por isso, o cuidado de, no capítulo quarto, ao propor falar da situação económica e
social adveniente do contrato de parceria em Tarrafal de Monte Trigo, iniciar um dos
subcapítulos com uma narrativa que nos mostra a solidariedade entre os parceiros, numa
das comunidades (Covão), no sentido de contornarem determinadas situações
existênciais, designadamente em matéria de alimentação, porque afinal “a fome se
caracteriza por exigir satisfação constante e requerer organização social adequada.”26

Na minha última pesquisa de campo, priorizei as mulheres. Fui falar com algumas
mulheres do Tarrafal de Monte Trigo, “ouvir quem nunca é ouvido,”27de entre os não
ouvidos, os mais não ouvidos, no intuito de dar voz a esta categoria social, segregada,
dominada e “de baixo,” àquela raramente ouvida em Santo Antão, em matérias que têm
que ver com a agricultura, reconhecendo os limites “heurísticos e éticos” do dar a voz
assumindo os questionamentos e inquietação tão bem apontados por Gayatri Spivak em
“Pode o subalterno falar?”28

As narrativas recolhidas permitem-nos encontrar elementos reveladores da violência


simbólica de que foram vítimas durante muitos anos, como se constata no capítulo quarto.
Neste mesmo capítulo, ainda que em menor proporção, encontramos a voz de algumas
dessas mulheres na documentação oficial, através de depoimentos recolhidos acerca da
posse útil sobre as parcelas de terra irrigada, distribuída nos anos oitenta pelo então
governo, o que nos leva a admitir a possibilidade de este grupo sem voz começar a ser
considerado enquanto agente protagonista da mudança societal no passado recente do
Tarrafal de Monte Trigo.

No segundo capítulo, Santo Antão: o espaço e as gentes, faço o enquadramento histórico


e geográfico da ilha, da sua ocupação efetiva nos primeiros anos do século XVII, “o

26
Idem, ibidem, p. 33.
27
Goldenberg, Miriam (2004). A Arte de Pesquisar. Como fazer pesquisa qualitativa em Ciências Sociais,
(8ª ed.), Rio de Janeiro/ São Paulo: Editora Record, p. 85.
28
Spivak, Gayatri (2010). Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: UFMG.

31
século de guerra,” como o definiu Frédéric Mauro,29 seguindo, em linhas gerais, o seu
percurso até ao século XX. Uma rasa abordagem, naturalmente, imposta por uma baliza
cronológica tão ampla. Falo das vicissitudes por que passou ao tempo dos primeiros
donatários, da escravocracia, do impacto da Companhia do Grão-Pará e Maranhão, entre
outros momentos, sem esquecer as fomes. As tão faladas fomes que fatalmente
acompanharam a história desta ilha, mas tão pouco trabalhadas na historiografia cabo-
verdiana.

As revoltas, tão presentes na memória coletiva das gentes de Santo Antão, mereceram
algum destaque quando propus falar da situação social na ilha durante o período balizado.
Destaco as duas principais revoltas ocorridas no século XIX. A de 1886, adveniente da
pressão fiscal, a questão da décima e do dízimo, mas também da rivalidade entre as duas
primeiras povoações, Ribeira Grande e Paúl. A de 1894, que, para além da tradicional
rivalidade entre as duas povoações principais, foi buscar inspiração nas disputas políticas,
protagonizadas por uma elite local que foi capaz de mobilizar populares para perfilharem
a dianteira da revolta que acabou por assumir contornos preocupantes.

Termino o capítulo com a administração da ilha. Remonto ao ano de 1731, altura em que
Santo Antão “se compõe de mais de trezentos fogos, todos dentro na povoação appelidada
da Ribeira Grande,”30como atesta a carta dirigida a Sua Majestade pelo Desembargador
e Ouvidor Geral, José da Costa Ribeiro, na sequência da visita efetuada àquela ilha.

Disserto sobre o município da Ribeira Grande que, até finais do século XIX (1870), se
manteve como a única estrutura de poder municipal em Santo Antão, “tarefa difícil tendo
em conta a localização de núcleos populacionais nos recantos mais distantes e os parcos
recursos de que dispunha o concelho.”31 Não obstante, assumiu a liderança no conjunto
da ilha, e, até à segunda metade do século XIX, também sobre a vizinha ilha de São

29 Mauro, Frédéric (1988). Portugal, o Brasil e o Atlântico (1570-1670). Lisboa: Ed. Estampa, p. 251.
30 ANCV-SGG, Lv. 01. Ordens das cartas copiadas a mando do desembargador syndicante Custódio Correa de Mattos.
Inclui correspondência com autoridades internas e externas, provisões, traslados, provimentos, entre outros (1674-
1698), fl. 101.
31 Lopes, Maria José (1998). A Câmara Municipal de Santo Antão: Criação e Evolução (1732-1870). In Africana,
Número Especial 5 (1998), Porto: Universidade Portucalense/ Arquivo Histórico Nacional, p. 112.

32
Vicente.32 Sigo o percurso administrativo até a década de sessenta do século XX, altura
que Santo Antão ficou dividida em três concelhos, Ribeira Grande, Paúl e Porto Novo,
para todos os efeitos administrativos.

No capítulo 3, O panorama fundiário e a questão dos recursos hídricos em Cabo Verde:


o caso da ilha de Santo Antão, faço o enquadramento da questão fundiária que se inicia
com a ilha de Santiago, a primeira onde foi montada uma estrutura, transplantada depois
para as outras ilhas agrícolas, designadamente a de Santo Antão, com os necessários
reajustes e adaptações. Discuto o sistema de sesmaria, fonte de propriedade no Santo
Antão colonial, consistindo na concessão de terra a quem a requeresse, com a condição
de lavrá-la dentro de tempo previamente estabelecido. Falo também de outras formas de
apropriação de terras ao longo dos tempos, que acabariam por contribuir para a formação
de classes rurais abastadas, e a um só tempo, de classes menos privilegiadas, os parceiros
e meeiros.

O capítulo termina com reflexões acerca dos recursos hídricos. Um recurso cada vez mais
escasso, consistindo, por isso, um enorme problema a ser gerido nos próximos tempos.33
Falo destes aspetos em Cabo Verde, da difícil gestão da pouca água existente,
particularmente a destinada à irrigação no mundo rural, dos regulamentos da água para a
rega, nos períodos colonial e pós-colonial, incidindo, sempre que possível, sobre a ilha de
Santo Antão.

Os dois últimos capítulos foram dedicados ao Tarrafal de Monte Trigo, enquanto espaço
privilegiado de análise. Após apresentar as potencialidades naturais daquela região de
Santo Antão, lanço um demorado olhar sobre a sua história, dos primeiros séculos da sua
ocupação à década de noventa do século XX.

Como disse anteriormente, mais do que os arquivos, mobilizei as narrativas, fui falar com
as pessoas, (re)visitar os lugares, intentar uma história mais pragmática, numa perspetiva
“de baixo,” sempre ciente de que nenhuma fonte é isenta de dificuldades e de

32 Cfr. Évora, José Silva (1998). Separação Jurídico-administrativa da ilha de São Vicente da Comarca de Santo Antão.
In Africana, Número Especial 5 (1998), Porto: Universidade Portucalense/ Arquivo Histórico Nacional, pp. 81- 90.
33 Grande parte deste problema deve-se ao processo de ampliação do adensamento humano em territórios nos quais a
escassez absoluta ou relativa da água cria não só problemas de abastecimento, mas, e principalmente, problemas
relacionados com a reposição.

33
subjetividades. Cruzei-as, na medida do possível, e fui tirando ilações que incorporam,
enformam e conformam o texto.

Do Tarrafal de Monte Trigo em situação irregular em 1889, e, em estado de abandono em


1917, “conheci” a opulência da ribeira de Santo Antão a partir de onde era transportada a
água para abastecer a ilha de São Vicente, desde 1919, ano em que foi constituída a firma
Ferro & Companhia,34assim como “conheci” um dos ancoradouros mais frequentados do
Santo Antão do início do século XX.35

Segui o percurso de uma família que, da cosmopolita cidade do Mindelo, veio parar na
pacata localidade do Tarrafal de Monte Trigo. Alí construiu os sobrados da Varanda e da
Penha de França, Casas Grandes a contrastarem com os núcleos de povoamento que
foram nascendo ao redor, de Agostinho Pereira ao Lombo de Cal, passando pela Ladeira,
pela Chã de Preguiça, pelo Cavouco de Tarrafe e pelo Covão, nos quais miseravelmente
viviam os parceiros dos herdeiros de José Augusto Pinto Ferro.36

De subalternos que não podiam falar, descobri a voz de homens e de mulheres, dispostos
a opinarem, no início dos anos oitenta do século XX, quando José Ferreira Ferro, tutor
dos restantes herdeiros de José Augusto Ferro, exausto, vai à capital propor ao Governo
que comprasse a propriedade para os efeitos julgados necessários, como procuro explicar,
com algum detalhe, no capítulo quinto.

Enfim, de uma propriedade agrícola cujas matrizes anteriores a 1896 perderam


irremediavelmente na sequência do incêndio que destruiu a Repartição de Fazenda do

34 Esta Companhia constituiu-se em 1919 e pertencia principalmente à família Ferro, que era proprietária de grandes
terrenos na ilha de São Vicente já nos anos de 1880. Cf. Linhas Gerais da História do Desenvolvimento Urbano da
Cidade do Mindelo (1984). Praia: Edição do Fundo de Desenvolvimento Nacional- Ministério da Economia e das
Finanças, p. 132.
35 Os livros de termos de entradas das embarcações de cabotagem da Repartição provincial dos Serviços das
Alfândegas, mostram que de todos os portos de Cabo Verde, os de Santo Antão eram os menos frequentados, até o
início do século XX (Cfr. Évora, José Silva (2015). Os Navios de Cabotagem nos mares de Cabo Verde: algumas
reflexões. In O Futuro da Arqueologia em Cabo Verde & algumas reflexões sobre a História e o Património das ilhas,
Praia: IAHN, pp. 153-169.
36 Natural da freguesia de São João Baptista, Concelho da ilha Brava (registo de óbito de José Augusto Ferro, nº 219
de 25 de julho de 1920, Lv. 13, fl. 2f. Nossa Senhora da Luz – São Vicente).

34
extinto e antigo concelho do Paúl,37 descobri parcelas de terras em condições de serem
registadas na conservatória do registo predial, a partir de anos noventa do século XX,
quando o então governo transformou em posse plena estas parcelas de terra irrigada aos
antigos parceiros dos herdeiros de José Augusto Ferro.

Ainda assim, os problemas fundiários existem em Tarrafal de Monte Trigo e em Santo


Antão em geral, a pobreza persiste nesta ilha eminentemente rural,38 que tende a perder a
sua população.39

Tarrafal de Monte Trigo, por muito tempo considerado intransponível, é hoje uma das
localidades mais visitadas da ilha de Santo Antão por pessoas provenientes de diferentes
paragens do mundo, pelas potencialidades que apresenta a nível do turismo.

Se o seu percurso histórico aqui apresentado vier a contribuir para o incremento das suas
potencialidades turísticas, e se as suas particularidades em matéria fundiária, vierem a
incentivar estudos mais aprofundados sobre o processo da Reforma Agrária em Cabo
Verde, e, em particular, na ilha de Santo Antão, que tanta polémica suscitou e ainda
suscita, considerarei ter sido pertinente a feitura desta tese.

37 Lembremos que até meados do século XX, todo o espaço que compõe o atual Concelho do Porto Novo, estava
incluído no Concelho do Paúl, para todos os efeitos administrativos.
38 O meio rural de Santo Antão aglomera cerca de 62% da população total da ilha, e mais de 45% das pessoas que nele
vivam são pobres (Cfr. Jesus, António de (2016). Desenvolvimento Local. As dinâmicas dos actores sociais no
contexto Cabo-verdiana, Praia: Livraria Pedro Cardoso, p. 241).
39 Segundo os dados do último RGPH realizado em 2010, a ilha de Santo Antão contava nesse período com 43.915
efetivos, menos 3.255 do que em 2000, o que representa uma Taxa de Crescimento Médio Anual negativa, isto é,
menos 1,3%. (Cfr. Jesus, António de (2016). Op. Cit. p. 32).

35
CAPÍTULO I.

QUADRO TEÓRICO-METODOLÓGICO

36
1.1. O interesse pelo objeto de pesquisa

Refuser au paysan africain ce travail de


l´histoire, c’est lui dénier la civilisation comme cela ce fut à l’indigène
aux premiers temps de la colonisation (Bernard, 2014:5).

Cresci em Tarrafal de Monte Trigo, na ilha de Santo Antão, ouvindo dos mais velhos que
a água para a rega pode gerar desavenças e que mesmo no seio familiar poderá causar
mortes. Os exemplos apresentados eram sempre reais e envolvendo pessoas da
comunidade. A terra também. Mas não tanto como a água. Lembro-me ainda de situações
conflituosas e de expressões como: se não for com água será com sangue, mas hoje hei-de
regar a minha horta. Situações tão frequentes que pareciam corriqueiras nessa aldeia que
me viu nascer.

Figura 1. Tarrafal de Monte Trigo, Santo Antão


Fonte: Acervo pessoal

Na adolescência, ouvia relatos sombrios sobre o 31 de agosto de 1981 40 no Concelho da


Ribeira Grande, Santo Antão, e embora não entendesse os meandros dos mesmos, sabia

40 Levantamento popular ocorrido no dia 31 de agosto de 1981 no Concelho da Ribeira Grande, mais concretamente
nas localidades de Coculi e Chã de Pedras. Um grupo de camponeses, segundo consta, incitado por alguns

37
que se relacionavam com a terra, com a água e com o poder. Fui estudar História numa
Universidade estrangeira. Chamavam-me sempre a atenção as reflexões relacionadas com
a questão da água e da terra e a forma como foram analisadas por historiadores de todas
as épocas e em diferentes paragens e contextos. O próprio Heródoto, nas suas reflexões
sobre o Egito, indiretamente realça a importância da água, ao afirmar que aquele País foi
uma dádiva das águas do Nilo (Ki-Zerbo, 1972: 80) realçando o valor da terra, quando,
em referência à demarcação da mesma, diz que nas margens do Nilo foi necessário medir
esta preciosa “terra-negra” palmo a palmo (Ki- Zerbo, 1972:80).

Deste então, tenho investido bastante em leituras que, de uma ou de outra forma, estejam
direcionadas às questões fundiárias. Breve nota referente a três textos lidos nos últimos
tempos e que, pretendo aqui destacar: (i) O Homem e a Terra no Brasil, assinado por
Edgar Rodrigues;41 (ii) L’homme et la terre. Droits fonciers coutumiers et droits de
propriété en Afrique Occidentale, de Guy-Adjété Kouassigan; (iii) La Terre et l´eau au
coeur des stratégies de pouvoir, de Pierre Blanc. Três autores, em três paragens diferentes
e recobrindo épocas históricas também elas distintas a convergirem para uma mesma
problemática, também ela muito presente na sociedade cabo-verdiana, nomeadamente na
ilha de Santo Antão. Entre tantas outras leituras, estas contribuíram para incrementar o
desejo de estudar esta matéria no Arquipélago de Cabo Verde, a partir da sua ilha mais
ao norte.

No primeiro texto, o autor remonta aos primórdios da humanidade para dizer que:
Embora seja bastante conhecida a forma como os homens apoderaram-se (ainda se
apoderam!) da terra a dividem entre uns poucos à sombra protetora do Estado, que
também criara e fortalecera para garantir o domínio de uns poucos sobre a maioria,
originando a exploração do homem pelo homem, gerando e acentuando
desigualdades, a pobreza, as classes, as hierarquias profissionais, políticas e sociais
e seus reflexos extrapolam previsões e geram conflitos até hoje sem solução
(Rodrigues, 2001:15)

proprietários, perturbou a ordem numa reunião referente à socialização da LBRA, o que provocou um morto, alguns
feridos e a prisão de muitas pessoas. Este acontecimento, que tanta polémica suscitou na História do Cabo Verde
independente, continua ainda por estudar em todos os seus contornos e numa base realista e científica, pelas Ciências
Sociais e Humanas. Sobre este ocorrido, sugiro a leitura de Monteiro, César (2001). A outra face do 31 de agosto. In
Recomposição do Espaço Social Cabo-verdiano. Mindelo: Edição do autor, pp.199- 298.
41 Pseudónimo pelo qual ficou conhecido o historiador português, António Fancisco Correia, nascido em Portugal e
radicado no Brasil a partir de 1951, na sequência da perseguição ditatorial de Salazar.

38
As notas que acompanham o texto,42 particularmente, levaram-me a pensar no caso de
Cabo Verde, território que, aquando da sua descoberta/achamento, foi descrito como
sendo deserta de gente. Consequentemente, a terra e a água não eram pertenças de
ninguém, como, em muitas sociedades, elas são um bem-comum e não de apropriação
privada.

No segundo texto, “L’homme et la terre. Droits fonciers coutumiers et droits de propriété


en Afrique Occidentale,” que consistiu numa tese de doutoramento em Direito, Guy-
Adjété Kouassigan, traz à colação a questão fundiária nos países da África Ocidental,
onde reinam, segundo ele,
deux conceptions totalement opposées des droits fonciers. D’un coté la terre est un
bien collectif, inaliénable et souvent divinisé, et de l’autre elle ne peut appartenir qu’
à un individu qui en fait l’usage dont il est seul à pouvoir apprécier l’opportunité, et
ne peut avoir aucune signification ontologique (Kouassigan, 1966:10).

Em relação ao princípio da terra enquanto bem coletivo e inalienável, em Cabo Verde,


embora não haja estudos sobre isso, podemos pensar nos fujões, 43 que a partir do século
XVI, ocupavam terrenos no interior da ilha de Santiago, numa espécie de comunidades
quilombolas, longe do alcance dos senhores, iniciando timidamente um tipo de
povoamento nos cocurutos das montanhas e zonas de difícil acesso, e, mais
contemporaneamente, nos rabelados,44 também na ilha de Santiago. Em relação ao
princípio defendido pelo autor, segundo o qual a terra acaba por pertencer a uma única
pessoa que dela se apropria, ainda que sem documento que legitima a posse, parece fazer
sentido em Cabo Verde. Os casos do Concelho de São Salvador do Mundo na ilha de

42 Deus, ao criar o mundo, não retalhou o planeta Terra, não doou pedaços a ninguém e /ou assinou escrituras de venda,
até porque na época não existiam os tabeliões vitalícios. Foram, portanto, uns poucos espertalhões que astuciosamente
se apoderaram das terras como se proposto fossem do “Criador” e dividiram entre si aquilo que seria de todos.
43 Ilídio Baleno estudou o fenómeno dos fujões, chegando a afirmar “(…) a via mais eficaz que quase todos os escravos
usam para conquistar a liberdade é a fuga, e em Cabo Verde tal prática foi usada também correntemente.” Cf. Baleno,
Ilídio (1991). Povoamento e Formação da Sociedade. In Albuquerque Luís de e Santos, Maria Emília Madeira (orgs.).
História Geral de Cabo Verde, Vol. I;. Lisboa-Praia: Instituto de Investigação Científica Tropical – Direção Geral
do Património Cultural, p. 164.
44 Sobre os contornos destas comunidades existentes nalgumas localidades do interior da Ilha de Santiago, a melhor
sintese é o trabalho de Monteiro Júnior, Júlio (1974). Os Rebelados da Ilha de Santiago. Lisboa: Centro de Estudos
de Cabo Verde.

39
Santiago45 e Tarrafal de Monte Trigo na ilha de Santo Antão, são disto dois exemplos,
entre tantos outros em Cabo Verde.

Finalmente, um texto muito atual, “La Terre et l´eau au coeur des stratégies de pouvoir,”
da autoria de Pierre Blanc. Ao analisar a problemática da terra e da água no Próximo-
Oriente de hoje, marcado por acérrimos conflitos, o autor afirma que:
le combat pour la terre (et aussi pour l´eau) se poursuit pour les Kurdes,
même si l´ennemi a changé. Si elle a été un facteur d´émergence de la
révolution néolithique dans la région, la maîtrise de la terre et de l´eau
demeure un soubassement de l´histoire du pouvoirs au Kurdistan
mésopotamien (Blanc, 2015:71).

A última afirmação chamou-me particularmente a atenção pela evidente analogia


relativamente a uma das minhas hipóteses de pesquisa: a terra e a água são reveladores
de relações de poder, numa ilha como Santo Antão marcada por uma história de
desigualdades fundiárias.

Vale ainda dizer que, para além do percurso académico e das leituras acima referenciadas,
o interesse por esta matéria advém da minha atividade profissional no Arquivo Histórico
de Cabo Verde, há mais de duas décadas. Trabalhando sempre com o século XIX cabo-
verdiano, desde o início interessei-me pelos relatórios das administrações locais, pelas
atas emanadas das Câmaras Municipais e pelas posturas municipais, 46 entre outras razões
pela curiosidade em confirmar documentalmente o que ouvi por via da oratura. Com o
tempo, fui-me apercebendo que, afinal, os relatos que marcaram a minha infância e que
me eram transmitidos pelos mais velhos, por via da oralidade, também aparecem nas
fontes documentais oficiais, a partir das quais os académicos, numa tradição também ela
euro-ocidental e que, não raras vezes, obnubilou outras formas de conhecimento, naquilo
que muitos denominam de epistemicídio,47 elaboram os seus trabalhos científicos.

45 Sobre a situação fundiária neste Concelho, sugiro a leitura de Borba, Carolina dos Anjos de (2013). Terras Negras
nos dois lados do Atlântico: quem são os proprietários? Estudo comparado - Cabo Verde–Brasil, Universidade
Federal do Rio Grande do Sul. Tese.
46 Estas são particularmente interessantes, porquanto regulam todos os pormenores da vida local, dando um quadro
completo da situação económica, social e administrativa dos muncicipios, acompanhando o seu evoluir histórico. São
leis que, pela sua abrangência, permitem ver como as instituições locais se organizam e regulam os diversos domínios
da sua administração ao longo dos tempos.
47 Destruição de conhecimentos não validados pelos critérios do cânone científico moderno.

40
Talvez não seja esta a melhor forma de iniciar uma tese de doutoramento em Ciências
Sociais. Tenho consciência disto, mas o desejo de assumir a fala autoral a partir do meu
lugar de pertença, antes de me debruçar sobre as questões epistemológicas que enformam
um trabalho desta natureza, falou mais alto. Devo, a isto, agradecer à Professora Carolina
dos Anjos Borba, que, numa conversa informal, desafiou-me a iniciar a minha tese com
uma narrativa pessoal, ancorada na memória que tenho dos acontecimentos que marcaram
Tarrafal de Monte Trigo nas décadas de setenta e oitenta do século XX.

Este desafio foi instigante, nomeadamente ao longo do trabalho de campo realizado em


Tarrafal de Monte Trigo, durante o qual pûde perceber que “le terrain est avant tout une
experience humaine incroyable, une chance inouie de voir tant d´histoires se deposer dans
nos cahiers et nos mémoires.”48

Com efeito, durante as longas conversas mantidas com os meus interlocutores, fui
remomorando muitos acontecimentos ali vivenciados. Ancorado nestas memórias e nas
informações decorrentes da pesquisa de campo, quantas vezes, fui tentado a ousar uma
descrição densa e pormenorizada do Tarrafal e das suas gentes, à semelhança do que
fizeram Bernard Charlier e Nathalie Brunay (2015),49para apenas citar estes dois
exemplos.

Aliás, os excertos dos diários de campo, insertos em toda a obra coletiva acima
mencionada, não só me fascinaram como me levaram a pensar na possibilidade de, no
futuro, fazer o mesmo relativamente à pesquisa que desenvolvi em Tarrafal de Monte
Trigo, desembocando em trabalhos outros, porquanto,“ la production de connaissance est
un parcours sinueux, une trajectoire, une chaîne de transformation où sujet et objet ne
sont pas des entités inertes dans le monde, mais des étapes dans le processus même de sa
production.”50 Através da observação participante enquanto “processus qui entraîne
progressivement le chercheur vers un basculement, c´est-à-dire vers l´ouverture

48 Mazzocchetti, Jacinthe (2015).Basculements sensibles, implication et écritures. In Vuillemont, Anne- Marie (dir).
Intimité et Réflexivité. Itinérances d´anthropologues, Louvain-la-Neuve: Academia, p.106.
49 Des Chasseurs ou pas de chasseurs, des loups ou pas de loups en Mongolie de l´Ouest? Retour sur le trajet d´um
“ratage” etnographique (pp. 15-36) e Du devoilement de l´ intime à l´ intimité du dévoilement (pp. 65-82),
respetivamente, insertos em Defreyne, Elizabeth & Outros (2015). Intimité et Réflexivité. Itinérances
d´anthropologues; Louvain – La-Neuve: Academia.
50 Charlier, Bernard. Op. Cit. p. 32.

41
progressive d´une autre vue,”51pûde perceber o valor de outras epistemes, porquanto, “le
chercheur en sciences humaines doit précisément remettre en question les procédures
scientifiques de production de vérité, notamment grâce à l´éclairage d´autres systèmes de
production des savoirs, d´autres manières de douter, de valider et de mettre à l´épreuve la
pensée.”52

Estes aspetos, aliados ao desejo de cruzar as fontes documentais oficiais acima referidas
com as vozes de pessoas que, não tendo poderes de enunciação, têm, contudo, saberes,
acabaram por aguçar o meu interesse por este objeto de pesquisa: A questão fundiária no
arquipélago de Cabo Verde a partir do Tarrafal de Monte Trigo na ilha de de Santo Antão,
onde a água a e a terra apresentam-se como dois elementos identitários muito fortes,
marcando indubitavelmente a idiossincrasia das suas gentes.

Por altura da elaboração do anteprojeto, era a minha ideia abarcar um período muito vasto,
com início em 1759, ano em que a ilha de Santo Antão reverteu à Coroa Portuguesa após
ter sido hipotecada aos ingleses por um dos donatários, e término em 1980, ano em que
inicia o processo da reforma agrária em Cabo Verde, cujas consequências foram
profundas nesta ilha. Porém, após muita reflexão, a cautela científica aconselhou-me a
progredir devagar, eliminando ambições incomportáveis, situando a minha pesquisa num
horizonte temporal entre os séculos XIX e XX, por reconhecer que uma baliza
cronológica tão alargada como a inicialmente proposta não coadunaria com um exercício
académico deste tipo, por exigir um investimento tão grande que decerto ultrapassaria o
tempo disponibilizado para o efeito.

Outrossim, o projeto viria a sofrer ligeiras alterações após a realização do exame de


qualificação, levado a cabo em fevereiro de 2018, na sequência das recomendações do
Júri de avaliação.53 Assim, em relação ao espaço, o trabalho ficou circunscrito ao Tarrafal
de Monte Trigo como foco privilegiado de análise, procurando nomeadamente

51 Laurent, Pierre-Joseph (2015).Conséquences personnelles et collectives de l´intimité et de la réflexivité sur la


demarche anthropologique. In Vuillemont, Anne- Marie (dir). Intimité et Réflexivité. Itinérances d´anthropologues,
Louvain-la-Neuve: Academia, p. 152.
52 Defreyne, Élisabeth; Mesturini, Silvia; Hagdad Mofrad, Ghazaleh; Vuillemenot, Anne-Marie - Intimité er réflexivité.
Une introspection du divers. In Vuillemont, Anne- Marie (dir)- op. cit. p. 7.
53 O Júri recomendou circunscrever a tese na comunidade do Tarrafal de Monte Trigo pelas suas peculiaridades em
relação à ilha de Santo Antão em matéria fundiária, e que a baliza cronológica fosse alargada à contemporaneidade.

42
reconstituir o percurso histórico da propriedade fundiária neste território, a sua
configuração entre os séculos XIX e XX, as dinâmicas familiares, o mapeamento do
território, entre outros aspetos, conciliando, para o efeito, os arquivos e as narrativas dos
principais interlocutores da presente investigação.

Relativamente à baliza cronológica, o ponto de partida desta análise será o último quartel
do século XIX, altura em que Tarrafal de Monte Trigo aparece referenciado na
documentação oficial.54Em contrapartida, a análise final centrar-se-á no nos anos noventa
do século XX, altura em que Tarrafal de Monte Trigo foi beneficiado de um programa do
Governo de então e que transformou em posse plena, algumas dezenas de parcelas de
terra irrigada da antiga família proprietária.55

Trata-se, pois, de um olhar histórico relativamente longo sobre as questões fundiárias em


Cabo Verde, a partir do Tarrafal de Monte Trigo na ilha de Santo Antão, durante o período
balizado. Propõe-se estudar a gestão da terra e da água pelas autoridades coloniais
portuguesas numa ilha maioritariamente rural, marcada por condições socio-económicas
significativamente precárias, adveniente dos grandes desequilíbrios fundiários.

O principal objetivo é analisar, a partir da trilogia Terra, Água, Poder, a estrutura


fundiária e, na medida do possível, demonstrar até que ponto ela influenciou a dinâmica
social e económica que Tarrafal de Monte Trigo conheceu durante o período balizado.
Mais especificamente, procurar-se-á encontrar respostas para as seguintes questões: (i).
Como conceber a relação terra, água e poder naquela comunidade? (ii). Como a posse da
terra e da água contribuiu para a sua configuração social? (iii). Qual o retrato social da
comunidade, nas vésperas da independência nacional? (iv). Que impacto teve a reforma
agrária levada a cabo em Tarrafal de Monte Trigo nos anos 80 do século XX?

54 A escassez de documentos referentes aos primeiros séculos, impede-nos de esclarecer por completo as circunstâncias
em que decorreu a ocupação do Tarrafal de Monte Trigo. No entanto, a partir do século XVI, existem referências de
determinados sítios, próximo do atual assentamento, nomeadamente Curral de Praia Formosa onde haveria um poço
para garantir água ao gado de uma fazenda aí existente, bem como três algodoais e uma horta de laranjeiras e pereiras
(Matos, 2003:262-263). Este documento esclarece que a propriedade do Tarrafal de Monte Trigo estava inscrita na
matriz organizada em 1896 e que relativamente às matrizes anteriores a essa data, nada se podia dizer, porquanto se
queimaram no incêndio que destruiu a Repartição de Fazenda do extinto e antigo Concelho do Paúl.
55 Cfr. Portaria nº 26/92, Boletim Oficial nº 23 de 6 de junho de 1992.

43
O tratamento desta questão deverá permitir a abordagem das políticas fundiárias pós-
coloniais,56 nomeadamente a avaliação dos debates sobre o campo no seio dos
movimentos pelas independências, assim como aliar a questão fundiária à da construção
do Estado. Deverá ainda questionar, em que medida a análise da evolução dos problemas
fundiários e da gestão da terra em Cabo Verde permite estudar as transformações do
estado colonial assim como o projeto da construção de um estado pós-colonial.

A atualidade desta temática advém do facto de, ainda hoje, existir na ilha de Santo Antão
condicionalismos vários que afetam a sua estrutura fundiária, nomeadamente “a
concentração das propriedades, a exploração agrícola baseada fundamentalmente em três
modalidades, isto é, exploração por conta própria ou exploração directa, em regime de
parceria e em regime de arrendamento” (Jesus, 2016:33).

Outrossim, à semelhança de outros pontos do país, designadamente algumas regiões da


ilha de Santiago, também em Santo Antão, coloca-se, ainda hoje, a questão do registo das
propriedades, tanto os de regadio quantos os de sequeiro, porquanto, muitos dos atuais
agricultores não dispõem de qualquer tipo de documento que assegure o direito de
propriedade ou permita a legalização da posse das terras, criando situações de embaraços
a todos os níveis. Refiro-me particularmente ao Tarrafal de Monte Trigo, onde nos
últimos anos assiste-se a um crescente aumento de procura de lotes, particularmente por
parte de estrangeiros. As vendas vêm sendo feitas, na maior parte das vezes, sem
documentação formal do processo de compra e venda, com todas as implicações daí
advenientes. Sem contar, ainda, com situações de atritos entre muitos dos descendentes
dos antigos usufrutários da posse útil sobre estas mesmas terras.

“Se as políticas públicas precisam de ser elucidadas pelos resultados e contribuições do


ramo das ciências que mais directa e imediatamente afectam a vida da sociedades, as
ciências sociais e humanas,”57 este trabalho poderá ser uma contribuição neste sentido.

56 Gostaria apenas de referir que, neste contexto específico, “pós-coloniais” deve ser entendido como marcador
temporal e não como se inscrevendo nos denominados “estudos pós-coloniais.”
57 Cardoso, Carlos (2012). Da possibilidade das Ciências Sociais em África. In Cruz e Silva, Teresa; Borges Coelho,
João Paulo; Neves de Souto, Amélia (Orgs.). Como fazer Ciências Sociais e Humanas em África. Questões
Epistemológicas, Metodológicas, Teóricas e Políticas. Textos do Colóquio em Homenagem Aquino de Bragança,
Dakar: CODESRIA, p. 142.

44
1.2. A problemática de pesquisa e o referencial teórico

A evolução e o dinamismo do mundo dito rural obrigam-nos a repensar de maneira


permanente este universo e renegociar o conteúdo de alguns conceitos que procuram
explicá-lo. Para o trabalho em apreço, conceitos como capitania-donataria, sesmaria,
rendeiro, meeiro, parceria, entre outros, foram analisados a partir de algumas definições
utilizadas em Ciências Sociais. Além de renegociar os conteúdos atrelados a tais noções,
baseei-me numa etnografia do quotidiano da comunidade rural apresentado aqui como
um estudo de caso, procurando mostrar como uma realidade social representa um caráter
dinâmico a ser apreendida pelas Humanidades, das quais a História, apropriando-se das
contribuições das outras pelas Ciências Sociais, designadamente da Sociologia, pelo seu
carácter sintético e teórico.

Relativamente às aproximações teóricas, a minha principal preocupação foi no sentido de


inserir o meu objeto de estudo nos debates relativos à dominação colonial. Porém,
procurei mobilizar os principais autores que marcaram o pensamento contemporâneo,
nomeadamente Michel Foucault e Pierre Bourdieu, ainda que em muitos aspetos sejam
inconciliáveis. Do primeiro, o seu desconstrutivismo e a sua microfísica do poder,
associados aos estudos subalternos, particularmente asiáticos, foram úteis,
particularmente ao procurar um link com a historiografia social inglesa. Quanto ao
segundo, foi mobilizado, ainda que subsidiariamente, ajudando-me, nomeadamente, na
construção do meu modelo de análise.

Assim, ainda que fiel à História enquanto matriz disciplinar, a mobilização de cientistas
sociais dos domínios da sociologia e da antropologia foi feita, admitindo o postulado de
Jean-Pierre Olivier de Sardan, segundo o qual, “Sociologie, Anthropologie et Histoire
partagent une seule et même épistemologie,”58justificando esta afirmação, dizendo que
“les procédures interprétatives, les problématiques théoriques, les paradigmes et les
modalités de construction de l´objet leur sont pour l´essentiel comuns ou transversaux.”59

58 La politique du terrain sur la production des données en anthropologie. In http//enquete.revues.org/document 263.


Html. Format=print, p. 2.
59 Idem, ibidem.

45
Como disse anteriormente, ancorei a análise a partir na minha matriz disciplinar – a
História - dando, para o efeito, uma especial atenção à historiografia do século XX,
particularmente a História Social Inglesa, com enfoque nos trabalhos de E. P.
Thompson,60 o historiador que acabou por influenciar profundamente o panorama
historiográfico britânico na contemporaneidade. Os seus trabalhos exerceram uma
influência profunda na (re)feitura da História Contemporânea, particularmente no seio
dos historiadores indianos dos anos setenta61 e as suas reflexões sobre os subalternos. Do
mesmo modo, no continente africano, a sua influência é notória, ainda que, de certa forma,
ambígua:
S´il a largement contribué à légitimer les travaux sur le monde ouvrier, les
chercheurs se reconnaissant de lui sont en revanche très loin d´avoir repris ses
propositions théoriques et méthodologiques, Thompson a donné aux historiens des
anciennes puissances coloniales les ressources pour contester les récits historiques
dominants issus de l´heritage imperial (Thompson, 1988:17).

Ao avançar com a proposta de uma história que tenta estudar os movimentos sociais, os
desfavorecidos ou denominados sem-parte, chamou a atenção para a necessidade de” (…)
renunciar ao tom autoritário que silencia os diálogos informais e as incontáveis
transacções mantidas por aqueles e aquelas que os historiadores, frequentemente, apenas
vislumbram a cumprir o papel de espectadores.”62

Embora tenha circunscrito o seu estudo na Inglaterra as questões que analisa são
importantes para se fazer uma análise em paragens outras que não apenas a Europa. Boa
parte da sua obra foi vinculada a questões e discursos dos próprios trabalhadores. Este
aspeto elucidou-me relativamente ao seu contributo teórico e em como os seus estudos
impactaram a teoria da História, provocando, de certa forma, uma mudança
paradigmática.63

60 Edward Palmer Thompson, Historiador britânico da conceção teórica marxista, considerado um dos maiores
historiadores ingleses do século XX. Em muitos dos seus estudos interroga o neoliberalismo e o marxismo ortodoxo,
destacando-se particularmente no campo da história social.
61 Entre outros, refira-se, por exemplo, ao historiador Ranajit Guha, idealizador do grupo dos Estudos Subalternos
asiáticos surgido nos anos setenta na Índia, que propôs uma revisão da história daquele país, a partir de uma perspetiva
subalterna e pós-colonial, com o objetivo de romper com a perspetiva eurocêntrica tanto da historiografia
euroocidemtal quanto da própria historiografia indiana, (re)lendo criticamente a contribuição de E. Thompson.
62 Thompson, E. P. (2008). A Economia Moral da Multidão na Inglaterra no Século XVIII. Lisboa: Antígona. “Nota
de Apresentação” (F. Agoas, J. Neves), p. 7.
63 Não obstante ser de esquerda, a sua proposta teórica critica e ultrapassa a erspetiva marxista clássica de se concentrar
a análise nas classes sociais que emergem com a ordem social e económica burguesa.

46
No fundo, a minha intenção foi no sentido de, menos do que dar voz aos agricultores da
comunidade do Tarrafal de Monte Trigo, ouvir e fazer as suas vozes relativamente à sua
situação fundiária antes da reforma agrária levada a cabo após a independência nacional.
Desta forma, estaria minimizando os riscos que o “dar voz,” comporta, com todas as
implicações, complexidades, dificuldades e deslizes implica, como bem demonstrou
Gayatri Chakravorty Spivak em “Pode o Subalterno falar?” A par dela, outros autores
foram mobilizados, nomeadamente, Eric Hobsbawm (1990, 1995), o historiador marxista,
britânico, reconhecido como um importante nome da intelectualidade do século XX 64 e
Terence Ranger,65 também britânico, reconhecido pelos seus estudos sobre a História de
África com enfoque sobre o Zimbabwe, numa perspetiva pós-colonial.

Relativamente à Eric Hobsbawm, “que se inseriu no movimento da história de baixo para


cima,”66 chamou-me particularmente a atenção o seu trabalho, A Era dos Impérios,67 o
qual foi iniciado com a história dos seus próprios pais. Como disse anteriormente,
procurei ao longo deste trabalho ancorar-me na minha própria memória, enquanto natural
do Tarrafal de Monte Trigo que sou, para, sempre que possível e necessário, narrar facetas
de uma história vivida na própria pele, e, principalmente, na dos meus pais.68 No fundo,
o trabalho de Hobsbawm aqui referenciado serviu-me como fonte de inspiração e ponto
de ancoragem, teórico e metodológico.

Por outro lado, os historiadores dos Annales69 foram bastamente mobilizados pelas
enormes ferramentas fornecidas pelos seus estudos, particularmente no domínio da

64 Sobre este historiador e as linhas gerais do seu pensamento, sugiro a leitura de Pereira, Miriam (2012). Em memória
de Hobsbawm. In Ler História, nº 62, Lisboa: ISCTE-IUL, pp. 103-108; Melo e Sá, Fátima Ferreira (2012). O dom
da teoria: Eric Hobsbawm e os movimentos sociais. In Ler História, nº 62, Lisboa, ISCTE-IUL, pp. 109-112;
Maurício, Carlos (2012). Hobsbawm, ou quando o nacionalismo inventa a nação. In Ler História, nº 62, Lisboa,
ISCTE-IUL, pp. 113-116; Rollo, Maria Fernanda (2012). Hobsbawm, verdadeiramente um grande historiador. In
Ler História, nº 62, Lisboa, ISCTE-IUL, pp. 117- 121.
65 Africanista, especialista da História do Zimbabwe.
66 Pereira, Miriam (2012). Em memória de Hobsbawm. In Ler História, nº62, Lisboa: ISCTE-IUL, p. 104.
67 Hobsbawn, Eric (1987).The Age of Empire (1875-1914). London: History of Civilization.
68 Pela vivência pessoal de acontecimentos que marcaram a história da minha vida, é provável que não tenha conseguido
atingir a objectividade desejável na análise de factos históricos recentes. Que me seja perdoada a limitação de um
analista de História que viveu na pele a própria História.
69 A criação em 1929 dos Anais de História Económica e Social (Annales D`Histoire Economiques et Sociale), por
Lucien Febvre e March Bloch, acelerou o combate à história tradicional, iniciado em períodos anteriores. Lucien
Febvre e March Bloch utilizaram a referida revista para promoverem uma história nova que despreza a história
factual, episódica e simplista. Em seu lugar procuraram construir uma história total, abrangendo todas as

47
História Económica e Social e pela importância atribuída à interdisciplinaridade. Assim,
recorri, por exemplo, ao Marc Bloch enquanto figura de proa da História Económica e
Social. Les Caractères Originaux de L´Histoire Rurale Française, publicado pela 1ª vez
em 1931 e reeditado em 1952, foi um dos seus trabalhos no qual procurarei subsídios.
Um trabalho que, citando Lucien Febvre, no prefácio, marca
l´avenement d´une histoire rurale, qui, mitoyenne entre l´ histoire de la technique
agricole, du régime domanial et de l´évolution comparée des peuples européens, va
devenir pour longtemps un des champs d´études les plus féconds du domaine
historique, - un de ce lieux de choix où pourront les plus aisément s´entendre pour
collaborer les historiens sociaux de réalités et les géografes curieux d´origines
(Bloch, 1931:7).

Ao dar conta do estado da arte relativamente ao estudo das questões agrárias na França
do seu tempo, Marc Bloch coloca em cima da mesa problemas e questionamentos ainda
hoje atuais, nomeadamente no que diz respeito à documentação existente sobre esta
matéria. Diz-nos Bloch que
L´historien est toujours l´esclave de ses documents; plus que tous autres, ceux qui se
voulent aux études agraires, sous peine de ne pouvoir épeler le grimoire du passé, il
leur faut, le plus souvent, lire l´ histoire à rebours (Bloch, 1931:13).

Além de Marc Bloch e Lucien Febvre, procurei contributos nos trabalhos dos seus
seguidores,70 particularmente Braudel (1976), Ferro (1996) e, Le Goff (1977, 1996),
autores que problematizam a associação da estrutura com a permanência e a continuidade.
Ciente de que muitos aspetos relacionados com esta matéria, nomeadamente alguns
pormenores de relacionamentos entre os proprietários e os camponeses não são
percetíveis nas fontes documentais, fiz uma aposta na história oral,71recorrendo, para o
efeito, ao uso da prosopografia,72a juntar a utilização crítica e desconstrutiva da
documentação existente sobre esta matéria, numa perspetiva processual como propõe a
historiografia social inglesa, por um lado, e uma abordagem longitudinal e de longa

manifestações politicas, económicas, sociais e culturais. Simultaneamente, procuraram o contributo de outras ciências
humanas para melhor apreenderem as diversas manifestações do homem.
70 Após a morte de Lucien Febvre, em 1956, a direção dos Annales é confiada a Fernand Braudel, para, a partir de
1969, os Annales serem confiados a uma nova equipa constituída por André Burguière, Roy Ladurie, Jacques Revel
e Jacques Le Goff.
71 Uma metodologia de pesquisa que consiste em realizar entrevistas com pessoas que podem testemunhar sobre
acontecimentos, conjunturas, modos de vida, entre outros aspetos da história contemporânea.
72 A pesquisa prosopográfica tem por objetivo desvendar os padrões de relações e atividades por via do estudo da
biografia da coletividade.

48
duração, na tradição da École des Annales, por outro. Neste sentido, os trabalhos de
Hampatê Ba (1955, 2010) e Vansina (2010) constituiram referências importantes.

O objeto deste estudo consiste numa realidade que não é de todo específica da ilha de
Santo Antão e do Arquipélago de Cabo Verde, mas que se insere num campo mais amplo.
Compreender este campo para depois ver como o fenómeno acontece em Cabo Verde, e
em Santo Antão em particular, foi, pois, um dos desafios colocados. Por esta razão, a
ancoragem em teóricos de diferentes campos epistémicos foi fundamental por me
permitirem, por exemplo, clarificar o meu campo de pesquisa.

O meu foco privilegiado, como já disse, é a comunidade do Tarrafal de Monte Trigo,


hoje, com um pouco mais de 900 habitantes, segundo o censo de 2010,73 e onde, até ao
século passado, a concentração de terras esteve nas mãos de uma única família que em si
incorporava o símbolo do poder.

As primeiras pesquisas exploratórias, realizadas por altura da elaboração do projeto de


pesquisa, me permitiram perceber que, na década de sessenta do século XX, toda a aldeia
pertencia a esta família, conforme se depreende do Contrato de Sociedade ou Parceria
entre herdeiros de José Augusto Ferro e todos os lavradores, 74no qual os primeiros
aparecem como proprietários, enquanto os segundos assinam como parceiros.

Num universo de noventa e quatro contratos que analisei, constata-se que grande parte
possuía várias parcelas, que variavam de 0,040 a 4,144ha, numa área que totalizava mais
de 60 hectares, configurando-se uma espécie de pirâmide social de que falarei mais à
frente. Como disse anteriormente, a minha intenção foi no sentido de levar a cabo uma
pesquisa que me permitisse explicar as possíveis relações de compadrio ou outras razões
que justificariam tal pirâmide, procurando, nomeadamente encontrar respostas para as
seguintes questões, complementares àquelas já colocadas anteriormente: Que relações
existiam ou que relações se pretendiam construir? Que lógicas familiares, de compadrio
e outras estiveram por detrás de tudo isto?

73 Instituto Nacional de Estatística. Cabo Verde. Relatório dos resultados definitivos do censo 2010. (www.ine.cv)
74 Relação de Proprietários do Tarrafal de Monte Trigo, 1983 - Arquivo do MDR. Praia: Ministério do Desenvolvimento
Rural/ Direção Regional de Santo Antão.

49
De forma concreta, os autores acima referenciados, ajudaram-me não só na construção da
problemática da tese como na própria análise dos capítulos referentes ao Tarrafal de
Monte Trigo. A leitura de Hampatê Ba (2010), por exemplo, levou-me a constatar, in
loco, em como “nada prova a priori que a escrita resulta em um relato da realidade mais
fidedigna do que o testemunho oral transmitido de geração em geração.”75

A leitura dos depoimentos, insertos ao longo dos capítulos, não só coincidem com o que
encontramos nos relatórios oficiais, como, não raras vezes, nos dão pormenores mais
esclarecedores do que os encontrados na documentação escrita. Segui, por isso, a
orientação de Vansina (2010), colocando lado a lado, a escrita e a oralidade, antes de tirar
as ilações, com a necessária vigilância epistémica que se impõe num exercício como este.

A pluralidade de fontes e a interdisciplinaridade, na perspetiva de recuperar o


conhecimento histórico por meio de novos problemas e novas interrogações sobre o
passado, foram uma estratégia metodológica utilizada neste sentido, fazendo ponte com
os historiadores da Escola dos Annales, de que Marc Bloch, Lucien le Febvre, Jacques
Le Goff e Fernand Braudel, foram os principais representantes.

A leitura de Braudel (2005), por exemplo, levou-me a, num determinado momento, querer
introduzir a vida quiotidiana das gentes do Tarrafal de Monte Trigo na minha agenda de
pesquisa, articulando-se perfeitamente com a tradição antropológica de assentar a
etnografia na radiografia da vida quotidiana dos interlocutores de pesquisa.

Para este autor, “quando mais se encurta o espaço da observação, mais aumentam as
oportunidades de nos encontrarmos no próprio terreno da vida material.”76 Fui sentindo
isto à medida que ia penetrando no campo com alguma profundidade. A título de
exemplo, em conversa com uma das minhas interlocutoras, a dado momento fez o
seguinte desabafo:
Bo sêb nhe fi, mim m´tive treze fi, e nuna h´um sub o ké era un fralda, k bo sêb ne
kel temp, era essim: kond un d´nós m´lher táva fká k ingrevidez, tud nos k´lega
m´lher táva k-mesá de ranjá tróp, rest d´loncol vei, ou kosa essim, ne fim kes kosa

75 Hampatê Ba, A. (2010). A tradição viva. In História Geral da África, Ki-Zerbo, J. (2ª ed.), Brasília: UNESCO, p.
168.

76 Braudel, Fernand (2005). Civilização Material, Economia e Capitalismo. Séculos XV-XVIII, Vol. I - As estruturas
do Cotidiano: Do Possível ao Impossível, São Paulo: Martins Fontes, p. 17.

50
la k no tava usa como se fosse fralde de nós fi…77( Dona Filipa, TMT, agosto de
2017).

Ante narrativas como esta, por algum momento, fui tentado a querer estudar outras
dimensões do quotidiano das pessoas, nomeadamnte a forma de solidariedade na luta pela
sobrevivência, como tão bem fez António Cândido, em Parceiros do Rio Bonito,
referenciado no trabalho. Não tendo a possibilidade de fazer este exercício no cômputo
deste trabalho, ficará o desafio para uma outra oportunidade de pesquisa.

Porém, porque “a vida material são homens e coisas” (Braudel, 2005: 19), lancei um olhar
sobre as habitações da família proprietária e as de alguns parceiros, procurando mostrar
o enorme contraste existente a este nível. As fotos insertas no capítulo quarto são disto
reveladoras.

Gayatri Chakravorty Spivak (2010), não obstante debruçar sobre um campo específico,
num território também ele diferente, a leitura do seu trabalho, Pode o Subalterno Falar?
ajudou-me a encontrar o caminho para chegar às mulheres do Tarrafal de Monte Trigo,
em posição ainda mais periférica relativamente aos homens.

Falei com algumas viúvas e com alguns dos seus filhos, assim como com mulheres que,
por nunca terem tido companheiros, não foram contempladas com parcelas de terras
ficando, consequentemente, desprovidas de qualquer meio de subsistência, situação que
se arrastou para a atualidade, porquanto, como mostro no capítulo quinto, a reforma
agrária levada a cabo no início dos anos oitenta, apenas legitimou a desigualdade
fundiária concebida e implementada pela família proprietária.

Pude constatar como a comunidade do Tarrafal de Monte Trigo foi sempre comandada e
dominada por homens. A única vez que uma mulher tenta posicionar-se para liderar a
propriedade foi em 1889, quando Theodora Ferreira Martins, por morte do marido, João
António Martins, enceta diligências junto às autoridades competentes, no sentido de

77 Sabes meu filho, eu tive treze filhos e nunca soube o que significa uma fralda, porque naquele tempo, era assim:
quando uma de nós mulheres engravidava, todas as colegas mulheres começavam a arranjar “trapos,” restos de lençóis
velhos ou coisas do género e por fim eram esses que usávamos como fralda para os nossos filhos. (Tradução livre do
autor).

51
normalizar a situação de dívida e assim assumir a propriedade. A documentação analisada
não deixa dúvidas relativamente ao fracasso da sua tentativa.

Quando, no século XX, a propriedade passa para as mãos da família Ferro, o seu promotor
José Augusto Ferro, institui o filho varão, José Ferreira Ferro, tutor dos restantes
herdeiros, no caso, herdeiras, todas mulheres. As narrativas apresentadas ao longo do
texto, mostram-nos como estas mulheres nunca foram ouvidas relativamente ao destino
da propriedade, portanto, em bom rigor, foram mulheres que não podiam falar, apesar de,
materialmente, não serem consideradas subalternas no contexto daquela comunidade.

Assim como sustenta Bhubaneswari Bhaduri para, “ a mulher indiana cujo ato de rebeldia
é suprimido da história da nação por jamais ter sido reconhecido e aceito, razão pela qual
ela não pode ser ouvida e seu nome é apagado da memória familiar e histórica,” 78 as
herdeiras de José Augusto Pinto Ferro, senão apagadas da memória histórica do Tarrafal
de Monte Trigo, no mínimo suas vozes nunca ou raramente foram ouvidas relativamente
ao destino desta propriedade que também a elas pertencia.

Quando uma das minhas interlocutoras, diz-me que a parcela da sua família lhe foi
atribuída pessoalmente, pelo tutor da família proprietária, seu padrinho, sendo a mesma
para todos os efeitos, administrada pelo marido, no fundo, o facto de a pertencer, não
significa ter alguma voz, não constituem um pertencimento autónomo, mas sim mediado
pela autoridade do marido, um autêntico cabeça do casal e pater família. Foi preciso
esperar pelos anos oitenta do século XX, para que a mulher começasse a ser ouvida, como
nos mostram os relatórios apresentados e analisados no capítulo quinto. Mesmo assim, é
uma voz bastante minoritária, em relação à dos homens.

Como Spivak, nascida na Índia, sociedade na qual se inspira para a feitura do seu trabalho,
também eu, nascido em Tarrafal de Montre Trigo, aproprio-me das minhas memórias,
para tentar reconstituir a evolução daquele território e o percurso das suas gentes.

Relativamente a E. Thompson, para quem “entender um processo histórico é buscar por


meio de evidências históricas, apreender como as pessoas agem dentro de determinadas

78 Almeida Goulart, Sandra (2010). Prefácio – Apresentando Spivak. In Spivak, Gayatri Chakravorty - Pode o
Subalterno Falar? Tradução: Marcos Pereira Feitosa, André Pereira Feitosa, Belo Horizonte: Editora UFMG, p. 16.

52
condições,”79 os seus ensinamentos permitiram-me chegar a evidências esclarecedoras
relativamente à vida material da esmagadora maioria das gentes do Tarrafal de Monte
Trigo. Os vestígios materiais das residências dos parceiros e da família proprietária,
apresentados no trabalho, espelham as enormes assimetrias sociais, para tomar apenas
este exemplo. Outrossim, quando proponho, no capítulo quarto, indagar a violência
simbólica de que as mulheres do Tarrafal de Monte Trigo foram vítimas, no fundo, foi
fruto de um diálogo com Edward Palmer Thompson.

1.3. O estado da arte

Um breve olhar pela produção historiográfica leva-nos a constatar que o debate sobre a
evolução do campo (particularmente das estruturas fundiárias) e as valências da
agricultura no mundo moderno remonta ao século XVIII, altura em que o fisiocratismo80
elegeu a terra como a principal fonte de riqueza, considerando, por isso, o cultivo agrícola
a única forma de trabalho produtivo. Desde então, tem havido em muitas paragens do
mundo, estudos à volta de questões fundiárias e dinâmica social no espaço rural,
particularmente em África, e, em menor escala, na Ásia Tropical, onde os poderes
coloniais introduziram frequentemente tecnologias, normas de propriedade e de
organização fundiária que alteraram o anterior tecido rural.

A atualidade desta questão é percetível quando em muitas universidades se vêm


desenvolvendo linhas de pesquisa sobre as questões fundiárias, ao mesmo tempo que
estas mesmas questões emergem no espaço público através de iniciativas internacionais
como foi o caso do Fórum Mundial da Reforma Agrária 81realizado em 2004 na Cidade
de Valência, Espanha.

79 Thompson, Ed. P. (1981). A miséria da teoria ou um planetário de erros. Rio de Janeiro: Zahar, p. 111.
80 Doutrina económica que surgiu na Europa na segunda metade do século XVIII, segundo a qual a verdadeira riqueza
dos países encontra-se na agricultura. Para os Fisiocratas, dos quais se destacaram os economistas franceses, François
Quesnay e Jacques Turgot, é da agricultura que dependem todas as restantes atividades económicas porquanto o
estado deveria estimular o trabalho da terra.
81 Este fórum decorreu entre os dias 5 e 8 de dezembro de 2004 e contou com a participação de 500 delegados de
organizações camponesas, organizações indígenas, instituições académicas, organismos públicos e organizações não
governamentais de mãos de setenta países dos cinco continentes. O objetivo fundamental refletir sobre os grandes
desafios para a gestão do espaço e o acesso aos recursos hídricos no século XXI, ao mesmo tempo a problemática da
terra, a influencia das reformas agrárias nos processos sociais e económicos, a soberania alimentar na perspetiva de

53
O crescimento da pesquisa universitária, com os programas de pós-graduação,
proporcionou a divulgação de novos recursos teóricos e metodológicos concernentes a
esta matéria no quadro das ciências sociais e humanas. O Brasil, por exemplo, é um dos
países da América Latina onde as políticas fundiárias têm suscitado amplo debate,
mobilizando muitos cientistas sociais, cujos trabalhos sobre a problemática da terra, os
movimentos sociais como o MST,82 de entre outros, são variados. Com efeito, o panorama
editorial relativamente a esta matéria é enorme naquele país, pelo que um balanço
exaustivo sobre o mesmo seria de todo impossível no escopo deste trabalho. Realçar
apenas que, um rápido olhar pelos bancos de teses em qualquer Universidade brasileira83
permite-nos constatar uma diversidade de trabalhos, particularmente referentes à
Fronteira Sul do País, compreendendo as regiões Oeste dos estados de Paraná, Santa
Catarina e Rio Grande do Sul. Por ora, vou-me deter apenas em quatro trabalhos que mais
chamaram a minha atenção e que mais me inspiraram, no âmbito das pesquisas
preliminares referentes ao ponto de situação relativamente a trabalhos existentes sobre a
questão fundiária. A começar pela Tese de doutoramento de Carolina dos Anjos de Borba.
Sob o título, “Terras Negras nos dois lados do Atlântico: quem são os proprietários?
Estudo comparado - Cabo Verde - Brasil,”84a autora faz um estudo comparado entre duas
realidades distintas que partem de um escopo histórico comum: o mundo rural de matriz
colonial português.
Partindo de uma base comum, isto é, a colonização portuguesa sustentada pelo
sistema de escravidão, escolheu-se duas realidades impregnadas por esta vivência:
Cabo Verde (Picos) esteve entre as primeiras experiências de exploração lusitana,
enquanto no sul do Brasil (Canguçu) este modelo perdurou por mais tempo (Borba,
2013: 20).

Trazendo para o debate o caso de São Salvador do Mundo na ilha de Santiago e a região
de Canguçu no Sul do Brasil, a autora leva a cabo uma investigação que, segundo diz,
surgiu da necessidade de compreender os processos sociais que permeiam o mundo rural,
no que diz respeito às possibilidades de ascensão dos descendentes de escravos como
proprietários de terra em contextos pós-coloniais (Borba, 2013:26).

criação das condições necessárias para o desenvolvimento sustentável da população mundial.Cf. WWW.
Fmra2004.files. Wordpress.com/2014/02/abstract_fmra-espac3b 10l.pdf.
82 Cf. Www.mst.org.br.
83 Cf. Biblioteca Digital da questão agrária brasileira.
84 Borba, Carolina dos Anjos de (2013). Op. Cit.

54
“Memórias e Histórias de Trabalhadores em Luta pela Terra: Fernandópolis-SP, 1946-
1964,”85 da autoria de Vagner José Moreira, é um trabalho interessante que problematiza
o processo histórico e social de construção de memórias sobre o movimento social dos
trabalhadores em Fernandópolis-Brasil, numa altura em que estes se mobilizaram e
organizaram-se em diversos movimentos sociais de luta contra a exploração e dominação
vividas no campo e na cidade (Vagner, 2009:8). Trata-se de um estudo ancorado numa
metodologia qualitativa, através da análise de narrativas e fontes orais, problematizando
o processo das entrevistas, a relação entrevistador/entrevistado, a subjetividade dos
sujeitos, assim como a produção de enredos, atos interpretativos, procedimentos
narrativos e simbólicos (Vagner, 2009:18) na região de Fernandópolis-SP. Ao colocar em
evidência os trabalhadores em suas lutas pela terra, contra a exploração e violências das
relações de trabalho (arrendamento, meia, colonato, assalariamento, entre outras),
(Vagner, 2009:29), o autor deixa pistas importantes relativamente a propostas
metodológicas a seguir quando se propõe estudar aspetos que têm que ver com as
dinâmicas fundiárias e os conflitos sobre a terra.

Erivaldo Fagundes Neves é autor do trabalho “Posseiros, Rendeiros e Proprietários:


Estrutura Fundiária e Dinâmica Agro-Mercantil no Alto Sertão da Bahia (1750- 1850),”86
no qual apresenta-nos o panorama fundiário da Península Ibérica e do Portugal Imperial
em particular, fundamental para quem se aventura em estudar a situação fundiária nas
então possessões ultramarinas portuguesas.87 O trabalho em referencia é incontornável
para a clarificação de muitos pormenores históricos relativos às estruturas agrárias no
então Império Português, ao mesmo tempo que nos permite compreender os conflitos pela
posse da terra no Brasil, país que herdou do período colonial português, práticas
concentradoras de terras, e que até hoje apresenta problemas relacionados com a
distribuição das mesmas.

85 Vagner, José Moreira (2009). Memórias e Histórias de Trabalhadores em Luta pela Terra: Fernandópolis-SP, 1946-
1964. Tese.
86 Neves, Erivaldo Fagundes (2003). Posseiros, Rendeiros e Proprietários: Estrutura Fundiaria e Dinâmica Agro-
Mercantil no Alto Sertão da Bahia (1750- 1850). Tese.
87 Relativamente ao Portugal metropolitano, no período em apreço, sugiro a leitura de Fonseca, Helder Adegar (1989).
A propriedade da terra em Portugal, 1750-1850: alguns aspetos para uma síntese. In Costa, Fernando Marques da;
Domingues, Francisco Contente; Monteiro, Nuno Gonçalves. (Orgs.). Do Antigo Regime ao Liberalismo, 1750-1850.
Lisboa: Vega, pp. 213-240.

55
Outro trabalho que incide sobre estes aspetos é o texto de José Luiz Alcântara Filho e
Rosa Maria Oliveira Fontes, “A Formação da propriedade e a concentração de terras no
Brasil”88 que analisa as grandes disparidades sociais provenientes da estrutura fundiária
por todo o território brasileiro. Finalmente, mas não menos importante, o trabalho de
Gabriela Carames Beskow, “A Pátria é a terra:” As representações sobre o campo e o
homem rural construídas pelo Estado Novo”,89 que analisa as representações construídas
sobre o campo e o homem rural pelo Estado Novo “brasileiro,” altura em que foi montado
um eficiente aparato de propaganda de censura, capaz de assegurar legitimidade ao
regime pela criação de uma nova forma de identidade nacional – a identidade nacional
coletiva (Beskow, 2010:9). Discute a existência de políticas voltadas para o campo,
particularmente no período do primeiro governo Vargas (1930-1945), altura em que a
economia rural manteve a sua importância não apenas pelo peso que ainda possuía na
economia brasileira, mas também pela possibilidade de uma economia baseada na
complementaridade entre atividades agrícolas e industriais (Beskow, 2010:12). Entre
outros aspetos, a grande pertinência deste trabalho advém do facto de o autor, na
perspetiva de um amplo espectro de comparação e refletindo a própria complexidade e
abrangência da máquina de propaganda ideológica do Estado Novo, (Beskow, 2010:13)
ter mobilizado um conjunto de fontes, quer sejam as representações produzidas ou
difundidas pelo Estado, como as imagens, os discursos, as fotografias, o cinema, entre
outras, traduzindo-se no que tenciono denominar por fontes extraoficiais 90 ao longo do

88 Publicado na Revista de História Económica & Economia Regional Aplicada, Vol. 4, Nº 7 (Jul-Dez 2009).
89 Beskow, Gabriela Carames (2010). “A Pátria é a terra:” As representações sobre o campo e o homem rural construídas
pelo Estado Novo. Tese.
90 Por fontes extra-oficiais, entende-se, aqui, aquelas que não foram produzidas pela elite administrativa colonial, a que
estou a chamar fontes oficiais. Estas, não obstante a sua importância, não deixam de trazer consigo alguma
desvantagem, o facto de, não raras vezes, ignorarem a voz das classes menos privilegiadas, dificultando uma análise
transversal de fenómenos que incluem todos os protagonistas da história. Assim, na linha do que defendeu a Escola
dos Annales, seguindo a tendência que rompe com visões estáticas e conceitos colonialistas, especialmente na
conceção francesa da Nouvelle Histoire, outras fontes que não as oficiais deverão ser mobilizadas, nomeadamente os
objetos, as narrativas, as fotografias, enfim as fontes íntimas a que alguns ainda insistem em chamar fontes não
verificáveis, mas que são sumamente importantes, quando se propõe reconstruir pormenores no universo das histórias
pós-coloniais. Penso designadamente na literatura, através da qual, não raras vezes as linhas do pensamento
intelectual nacional se revelam, na medida em que o autor, em pleno domínio e responsabilidade sobre o que diz, ou
faz as suas personagens dizerem, acaba por dar voz àqueles que são colocados à margem da voz oficial. Acho que, o
texto literário, como representação artística do imaginário cultural, poderá, por isso, ser considerado uma fonte
privilegiada na construção da imagem das sociedades, na medida em que, ainda que o estético seja a sua característica
essencial, a narrativa literária poderá fornecer pistas interessantes, relativamente, por exemplo às histórias silenciadas
e às vozes subalternas. Por exemplo, em relação à ligação do homem rural da ilha de Santo Antão à terra e à agua,
objeto de análise deste trabalho, e todo “o simbolismo que a terra possui para o trabalhador rural cabo-verdiano”
(Furtado, 1993:93), creio fazer todo o sentido mobilizar, entre outros, Os Flagelados do Vento Leste de Manuel
Lopes, entre outras razões, pela forma como o assunto é tratado ao longo do texto. Mas também as narrativas. Quando,

56
meu trabalho. Como disse anteriormente, os trabalhos aqui apresentados91 constituem tão
só a ponta de um grande iceberg sobre a bibliografia publicada no Brasil relativa à questão
fundiária.

Em relação ao continente africano, a par das obras gerais referentes à História da África,
nomeadamente de Ki-Zerbo (1972), M´bokolo (2003), Iliffe (1999), Fage (1997),
Davidson (1961,1981), ao longo das quais encontramos informações dispersas referentes
às questões fundiárias, existem referências importantes de autores de diferentes
disciplinas, desde a História, a Geografia, a Sociologia e até em domínios como o Direito
onde esta matéria é tratada com muita profundidade. Entre outros, o nome de Catherine
Coquery-Vidrovitch é muito sonante na historiografia da África contemporânea. As suas
reflexões sobre as questões fundiárias testemunham o seu profundo conhecimento da
História da África Negra e apontam linhas de pesquisa sobre a questão, assim como
caminhos metodológicos a quem se propõe aventurar neste empreendimento. Para esta
historiadora,
(...) dans une communauté qui vit de l’agriculture, le droit à la terre est à la fois une
nécessité et une évidence: exclure un paysan de la terre, c’est le condamner à la mort.
L’essentiel est donc de cultiver la terre, et non de la posséder (Coquery-Vidrovitch,
1980: 67).

Uma afirmação que nos incentiva a estudar esta problemática no sentido de trazer à luz
do dia muitos pormenores ainda obscuros no mundo rural africano. Pese embora os seus
trabalhos e as suas reflexões incidirem particularmente sobre a África Francófona e a
política fundiária francesa relativamente às suas colónias neste continente, não deixam de
fornecer pistas importantes para quem pretenda estudar o assunto em outras paragens da
África. Outrossim, para quem pretenda estudar aspetos como o poder e o prestigio social
no mundo rural africano, a obra acima referida é fundamental, ao colocar em evidência

por exemplo, o Sr. Apolinário, conta-me, com o máximo de detalhe possível, os contornos que levaram o tutor da
família priprietária das terras do Tarrafal de Monte Trigo a propor ao Estado a compra da propriedade, referido no
capítulo quarto, creio que que esta narrativa, mercece no mínimo, ser colocado em cima da mesa, e estudado em pé
de igualdade com os relatórios oficiais do então Ministério do Desenvolvimento Rural, relativemente ao mesmo
assunto. Não se trata de estabelecer hierarquia e valorização de uma em detrimento de outra, tão-somente, uma leitura
crítica relativamente às duas fontes.
91 Além de teses de doutoramento existem muitas dissertações de mestrado sobre esta matéria, das quais, podia-se citar,
entre outras, Políticas Públicas e Desenvolvimento da Agricultura na ilha de Santiago, de Nelida Teresa Silva
Rodrigues (2010), Universidade Federal Rural de Pernambuco, e que analisa as políticas públicas direcionadas ao
desenvolvimento do sector agrícola em Cabo Verde a partir da ilha de Santiago.

57
que “dans une société paysanne, en effet, la seule richese est l’exploitation de la terre”
(Coquery-Vidrovitch, 1980: 69).

No domínio da geografia, a produção existente é também relativamente vasta, e muitos


trabalhos nesta área do conhecimento deverão ser chamados no âmbito de reflexões no
campo da História. Entre outros, pode-se destacar o recente trabalho do geógrafo Bernard
(2014). Nele, o autor introduz a sua reflexão a partir do chamado discurso de Dakar,
proferido pelo então Presidente da República Francesa, Nicolas Sarkozy, em julho de
2007 na Universidade Cheick Anta Diop de Dakar, que suscitou aceso debate no seio das
academias, francesa e africanas92 pelo conteúdo que encerra.93 Introduziu a sua reflexão
com este discurso, precisamente para desconstruir a ideia segundo a qual o camponês
africano continua à margem da história.

Num tempo como o nosso, em que as Ciências Sociais e Humanas não inscrevem na lista
das suas prioridades estudos sobre o mundo rural, este trabalho que congrega aportes de
diferentes disciplinas, desde a Geografia até a História, passando pela Ciência Política e
pela Sociologia, revela-se pertinente, ao chamar a atenção para a necessidade de se
incorporar os estudos agrários africanos nas pesquisas históricas, porquanto, “refuser au
paysan africain ce travail de l’histoire, c’est lui dénier la civilisation comme cela ce fut à
l’indigène aux premiers temps de la colonisation” (Bernard, 2014:5).

Bessaoud, (1980, 2004, 2013) é um outro autor que trabalha esta questão, trazendo para
a análise a situação fundiária na região da África do Norte, com incidência sobre a
Argélia, país que conheceu uma trajetória fundiária marcada por sucessivas revoluções
agrárias a partir dos anos sessenta do século XX.

Trabalhos de autores como Adamczewski (2014), Demaison (1956), Durand-Lasserve;


Le Roy (2012), Delville (1998, 2000), Rochegude; Verdier (1986) e Weber (1998), são

92 Sobre este assunto, sugiro a leitura de Makhily, Gassame (Dir.), (2008). L’ Afrique Répond à Sarkozy – Contre le
discours de Dakar. Paris: éditions Philippe Rey.
93 “Le drame de l’Afrique, c’est que l’homme africain n’est pas assez entré dans l’histoire. Le paysan africain, qui
depuis des millénaires, vit avec les saisons, dont l’idéal de vie est d’etre en harmonie avec la nature, ne connait que
l’éternel recommencement du temps rythmé par la répétition sans fin des memes paroles. Dans cet imaginaire ou tout
recommence toujours, il n’y a de place ni pour l’aventure humaine, ni pour l’idée de progrés. Dans cet univers ou la
nature commende tout, l’homme échappe à l’angoisse de l’histoire qui ternaille l’homme moderne mais l’homme
reste immobile au milieu d’un ordre inumable ou tout semble être écrit d’avance.” (Bernard, C. (2014). Penser la
question paysanne en Afrique intertropicale, Paris : Presses Universitaires du Mirail, p.14.

58
importantes para quem procura mobilizar diferentes disciplinas e diferentes olhares sobre
os problemas fundiários no continente africano, desde os investimentos internacionais em
matéria fundiária até às legislações locais e os direitos fundiários, passando pelas políticas
fundiárias para a África rural, assim como as dinâmicas fundiárias e as intervenções
públicas no continente.

Mesmo trabalhos da área do Direito poderão e deverão ser mobilizados. Caso, por
exemplo, do já citado Kouassigan (1966). Ao iniciar o texto dizendo que “les civilisations
negro-africaines sont avant tout des civilisations agraires (Kouassigan, 1966:7) o autor
incita-nos a repensar a forma como tradicionalmente os historiadores têm direcionado as
suas pesquisas sobre a África, regra geral privilegiando os espaços urbanos.

Na linha do que referi anteriormente, este autor afirma que “tout ce qui est création de la
nature existe dans l’intéret de tout le monde et ne saurait faire l’objet d’un droit de
propriété privée individuelle” (Kouassigan, 1966:9), para, perentoriamente, dizer que “si
la terre ne peut etre considérée comme un bien personnel et exclusif, tout ce qu’elle porte
et qui est le fait du travail appartient à son auteur” (Kouassigan, 1966:9). As suas reflexões
vão no sentido de que, na África Ocidental, a terra não constituiu objeto de um direito de
propriedade individual antes da sua colonização por via da qual
en matière foncière s’est introduite progressivement l’idéee d’appropriation privée
de la terre, à mesure que l’individu se détache de son groupe, que la production
marchante augmente et que les croyances traditionnnelles sont reléguées au rang des
superstitions (Kouassigan, 1966:12).

Se é verdade que as análises feitas por este autor se aplicam às sociedades africanas pré-
coloniais, que, aquando da chegada dos europeus, tinham as suas estruturas fundiárias e
societárias próprias, não é menos verdade que não deixam de fornecer elementos de
análise referentes à sociedade colonial cabo-verdiana, onde, aquando da chegada dos
primeiros colonos portugueses a terra não era pertença de ninguém, consequentemente a
noção de propriedade individual da terra não podia existir.

A partir dos anos oitenta do século XX, as políticas fundiárias começam a suscitar amplos
debates na maior parte dos países da África ocidental francófona. Nessa altura, é
publicado o trabalho de Niang (1964), consubstanciado em reflexões sobre a reforma
fundiária senegalesa de 1964. Trata-se um uma referência a se ter em conta

59
particularmente para quem pretenda estudar a reforma agrária levada a cabo pelo primeiro
governo do Cabo Verde independente. Aqui, como no Senegal,
dans le domaine économique la loi devait contribuer, dans le cadre de la
planification, à définir une stratégie de développement rural intégré, assurant une
meilleure mise en valeur des terres, la décentralisation des décisions et la
participation des collectivités de base à la gestion et à l’exploitation des terres
(Niang, 1964:221).

Realçar ainda os trabalhos de Sam Moyo (2008), sobre a realidade fundiária africana,
particularmente os dedicados à reforma agrária no Zimbabwe, para a qual deu a sua
contribuição.94

Mais recentemente, investigadores africanos têm-se dedicado a esta matéria, com


publicações vindas à luz do dia graças ao CODESRIA, uma organização independente
cujo principal objetivo é facilitar e promover uma agenda endógena de trabalhos sobre a
África, permitindo aos pesquisadores africanos a troca de opiniões e de informações,
ações de formação, intercâmbio bem como de realização de projetos de pesquisa. Neste
sentido, produz regularmente um instrumento de informação, consubstanciado num
Catálogo de Teses e Memórias que visa divulgar os trabalhos académicos realizados.
Relativamente às questões fundiárias, são de destacar trabalhos de autores como Bakary
(2015), Babo (2003), Biaou (1991), N’gaide (1990), Ndiath (1991), Sow (1989). São
trabalhos que apontam caminhos metodológicos e revelam-se sobretudo importantes ao
trazerem à colação aspetos fundiários tão transversais como sejam as dinâmicas sociais e
as mutações no sistema da gestão fundiária, os conflitos fundiários, as práticas fundiárias,
as relações entre o homem e a terra, entre outros.

Outrossim, muitos investigadores africanos e não africanos, em outras paragens que não
no continente africano vêm desenvolvendo pesquisas sobre o continente, nomeadamente
sobre as questões fundiárias. A título de exemplo refiro-me à equipa do Pôle Foncier de
Montpellier em França,95 uma linha de pesquisa sobre o mundo rural nos países do Sul,
que propõe dinamizar a colaboração entre pesquisadores, consubstanciado numa linha
internacional de pesquisas sobre as questões fundiárias. As suas atividades principais

94 Em 1998, Sam Moyo chefiou a equipa técnica que esteve à frente da reforma agrária levada a cabo pelo Governo do
Zimbabwe.
95 Pôle de recherche sur le foncier rural dans les pays du sud.

60
consistem na promoção de jornadas temáticas, jornadas doutorais e a publicação dos
Cadernos du Pôle. Aberta a todas as disciplinas, o Cahiers du Pôle Foncier Montpellier
constitui um meio privilegiado de análises empíricas e informações teóricas relativamente
a questões fundiárias dos países do Sul. No seio da vasta publicação sobre as questões
fundiárias referentes a estes países, são de destacar os trabalhos de Seignobos (2012),
Leonard (2012), Colin (2013), Jacob (2013), Delville (2014), Gay (2014), Boué (2015),
Saian (2016), de entre outros.

Em Portugal, país que a partir dos finais de 1975, viveu um pouco sob o signo da Reforma
Agrária, existem alguns trabalhos neste domínio, dedicados particularmente à região do
Algarve. Destacam-se, por exemplo, os trabalhos de Barreto (1983), Varela & Peçarra
(2016), Palla (2014).

Por outro lado, no seio de algumas Universidades, é possível encontrar publicações sobre
esta temática relativos ao continente africano. Entre outras, deve-se destacar o Instituto
Superior de Ciências do Trabalho e Empresa-Instituto Universitário de Lisboa, através do
Centro de Estudos Internacionais (CEI-IUL) e a Universidade do Porto, através do Centro
de Estudos Africanos (CEAUP-UP). No primeiro, publicam-se, desde o ano 2001, os
Cadernos de Estudos Africanos, uma revista especializada em temáticas africanas no
domínio das Ciências Sociais e Humanas.

Embora especificamente sobre a questão fundiária exista um relativo vazio, é possível


encontrar textos referentes ao mundo rural no continente africano. Destacam-se também
os trabalhos referentes aos cursos de mestrado e de doutoramento em Estudos Africanos
do ISCTE-IUL, do Centro de Estudos Sociais da Faculdade da Economia da Universidade
de Coimbra, assim como as dissertações e Teses do Instituto Superior de Agronomia da
Universidade de Lisboa, de entre outras.

De realçar ainda os trabalhos de Durães (2002, 2003), Serrão (2002), Atri (2002), Fonseca
(2002), Radich (2006), Baiôa & Fernandes (2001). Por sua vez, na Revista Africana
Studia do CEAUP, encontamos trabalhos sobre questões fundiárias, nomeadamente os
textos de Bosa & Morales (2009), Évora (2009), Ferreira (2009). Os trabalhos de Santos
(2012, 2013), merecem destaque no âmbito das questões rurais africanas, no período
colonial português, altura em que “as necessidades orçamentais levaram todas as

61
administrações coloniais a tributar as populações camponesas africanas que tutelavam”
(Santos, 2012:13). Se o autor se refere particularmente a Moçambique, deve-se considerar
que, no caso de Cabo Verde, e muito particularmente à ilha de Santo Antão, por exemplo,
os impostos sobre a terra despoletaram o aumento da tensão social desde o século XIX e
estiveram na origem de grandes revoltas camponesas de que falarei um pouco mais à
frente.

Em Espanha, além de trabalhos como os de Villares (1998), deve-se destacar os referentes


ao arquipélago das Canárias, onde a história agrária é um campo de estudo muito
privilegiado. Além dos trabalhos acima referidos da autoria de Miguel Suarez Bosa e
Alejandro Gonzalez Morales, é de se destacar algumas publicações espanholas nas quais
as ilhas que compõem o arquipélago das Canárias aparecem referenciadas. Caso, por
exemplo, da Revista Trimestral - Derecho Agrário y Alimentário, - publicada em Madrid,
pela Associação Espanhola do Direito Agrário desde 1985 e outra quadrimestral – A
História Agrária - dedicada aos estudos históricos do mundo rural, produzida pelo
Seminário de História Agrária (SEHA), em colaboração alternada com as universidades
de Múrcia e de Zaragoza, circulando regularmente desde 1991.

Sem esquecer ainda que, nas últimas décadas do século XX, produziram-se, em Espanha,
muitas teses de doutoramento sobre a história agrária, focalizando, quase sempre, os
séculos XVIII, XIX e XX, tendo como característica fundamental, a conceção de história
articulada com a ideia de progresso, com três etapas encadeadas: crise do antigo regime,
reforma agrária liberal, e revolução agrícola orientada para a industrialização, como
sintetizou Rosa Gongost (1995:33-46).

Relativamente a Cabo Verde, infelizmente ainda hoje o mundo rural constitui um espaço
pouco explorado no campo historiográfico, pese embora a importância que teve e
continua a ter na história do arquipélago. Nos primeiros séculos do período colonial, no
cômputo geral, a história do arquipélago de Cabo Verde foi um campo bastante marginal
nos estudos e atenções da historiografia ultramarina portuguesa.

Numa época em que, “alguns intelectuais e líderes políticos questionaram não apenas a
produção científica sobre a África como a dimensão ideológica de que se revestiam os

62
modelos teóricos e epistemológicos que legitimavam tais produções,”96 sobre a história
de Cabo Verde, pouco ou quase nada se escreveu, por lhe ser negado a historicidade, à
semelhança de outras colónias africanas. Entre outras razões, o prestígio de áreas
geográficas do Império português, como a Índia e o Brasil, por exemplo, ofuscou outras
regiões cuja evolução foi mais discreta, como foi o caso de Cabo Verde. 97 Nessa altura,
sobre o campo e sobre os camponeses de Cabo Verde o silêncio é total.

No final do século XIX surgiu a primeira grande síntese sobre a totalidade da história de
Cabo Verde, empreendimento que nos foi legado por Christiano José de Senna Barcelos98
(1899). Mesmo assim, uma leitura cuidada dos seis volumes que compõem a obra permite
constatar que, sobre o mundo rural, muito pouco foi aflorado pelo eminente historiador
da ilha Brava.

No século XX, a partir de 1949 publica-se, em Cabo Verde, de forma intermitente, a


Revista Cabo Verde – Boletim de Propaganda e Informação. Nela, não raras vezes,
encontramos artigos que direta ou indiretamente incidem sobre o mundo rural, ainda que
mais circunscrito à ilha de Santiago. Porém, a de Santo Antão também mereceu algum
destaque particularmente por parte de Félix Monteiro, que, por exemplo, num texto
intitulado A decadência da ilha de Sto. Antão, afirma ser mais acentuada nos meios rurais
onde “o trabalhador ganha de vez em quando um dia de serviço a três ou quatro escudos,
para comer, vestir, sustentar mulher e filhos” (Monteiro, 1954:4).

Um outro articulista assíduo deste Boletim foi Amílcar Cabral, que, na qualidade de
engenheiro agrónomo, escreve textos interessantes sobre a terra e a água, explorando
matérias como a erosão e os problemas da agricultura em Cabo Verde. Muitos destes

96 Furtado, Cláudio (2015). A pertinência teórica e a relevância social do conhecimento em Ciências Sociais em Cabo
Verde: Desafios para uma agenda endógena e autónoma de investigação. In Furtado, Cláudio; Laurent, Pierre-Joseph;
Évora Iolanda (orgs.). As Ciências Sociais em Cabo Verde – Temáticas, Abordagens e Perspetivas Teóricas. Praia:
edições Uni-CV, p. 29.
97 Num primeiro momento, todas as descrições de carácter histórico-geográfico-etnográfico centralizaram-se na região
dos rios da Guiné referindo às ilhas de Cabo Verde de modo abreviado.
98 Num primeiro momento, todas as descrições de carácter histórico-geográfico-etnográfico centralizaram-se na região
dos rios da Guiné referindo às ilhas de Cabo Verde de modo abreviado.
98 Em 1899 Christiano José de Senna Barcelos, um capitão-tenente da armada, natural de Cabo Verde, apresentou à
Academia Real das Ciências uma memória exaustiva, composta por 6 partes, que cobria a totalidade da história de
Cabo Verde, atribuindo-lhe um título sem pretensões – Subsídios para a História de Cabo Verde e Guiné.”

63
textos foram recentemente publicados no livro Amílcar Cabral - Cabo Verde - Reflexões
e Mensagens, organizado por Luís Fonseca, Olívio Pires e Rolando Martins (2015).

As décadas de cinquenta e sessenta do século XX trouxeram mudanças na perspetiva de


encarar a história de Cabo Verde. O Padre António Brásio iniciou a publicação da mais
notável coletânea de fontes para o estudo dessa região: “Monumenta Missionária
Africana, 2ª série (1958)”. Numa obra cujo título sugere um enfoque religioso, transcreve-
se uma vasta documentação de origem variada que permite uma abordagem
administrativa, económica, social e cultural da história de Cabo Verde e da costa da
Guiné, do século XV a meados do século XVIII. Paralelamente a esta obra começam a
surgir os trabalhos interdisciplinares história-geografia-antropologia, de Orlando Ribeiro
(1954, 1962) e de Ilídio do Amaral (1964) que abriam novas pistas para o estudo desta
área geográfica, fomentando o interesse para Cabo Verde, ainda que sob os auspícios de
uma epistemologia ocidental própria da época.

É a partir dessa altura que começamos a encontrar referências mais aprimoradas sobre o
mundo rural cabo-verdiano com mais incidência sobre as ilhas de Santiago e do Fogo, as
mais antigas em termos de ocupação e exploração efetiva. Em “A Ilha do Fogo e as suas
erupções” do Prof. Orlando Ribeiro encontramos informações sobre o mundo rural desta
ilha, particularmente ao longo do Capítulo IV intitulado A Vida Rural (1997:105- 142),
no qual fala-nos do património agrário, do arranjo do campo, das culturas alimentares, da
criação de gado, entre outros aspetos que enformam o mundo rural foguense. Por sua vez,
Ilídio do Amaral (1964) dedica parte substancial da sua obra, “Santiago de Cabo Verde -
A Terra e os Homens,” ao universo rural santiaguense, com enfoque sobre a agricultura
e a pastorícia.

Merece uma nota de destaque o notável investigador das coisas cabo-verdianas, António
Carreira, estudioso de grande envergadura, com uma respeitável bibliografia, cuja
publicação iniciou ainda no período colonial (1966, 1969), com estudos sobre Cabo Verde
e a costa da Guiné.

Iniciando a sua produção no final da década de sessenta, nas duas décadas seguintes, já
no Cabo Verde independente, António Carreira publica obras de maiores dimensões
(1977, 1979,1982,1983, 1984, 1985, 1986, 1987, 1988), com uma abrangência temporal

64
que se estende desde o século XV à contemporaneidade, acompanhando uma diversidade
temática importante, designadamente a economia, a administração, a antropologia, a
demografia, linguística, entre outros, tornando-se uma referência obrigatória para todos
quantos queiram debruçar-se sobre a história do Arquipélago, ainda que, em dados
momentos, constata-se uma tendência eurocêntrica nalguns dos seus trabalhos,
adveniente, provavelmente, das suas atividades profissionais, enquanto administrador
colonial.

Relativamente ao mundo rural, a leitura de trabalhos como “Cabo Verde – Formação e


Extinção de uma Sociedade Escravocrata (1460-1878),” ou “Panaria Cabo-verdeano-
Guineense (Aspetos históricos e socioeconómicos),” pela abrangência e particularidades
das temáticas abordadas trazem elementos sobre o espaço rural nas primeiras ilhas
ocupadas, Santiago e Fogo.

A par da vasta produção de António Carreira acima referenciada, após a independência


nacional, surgiu em Cabo Verde um conjunto de estudos sobre a história da ex-colónia.
Mas, ainda não é desta vez que os historiadores colocam o universo rural na linha
prioritária de investigação, pese embora ter iniciado, por essa altura, o aceso debate sobre
a reforma agrária que acabou por assumir contornos peculiares particularmente na ilha de
Santo Antão. Neste aspeto destacam-se os vários relatórios produzidos pelo Gabinete da
Reforma Agrária e pelo INIDA, em parceria com a Universidade do Arizona, assim como
os trabalhos de João Pereira e Silva (s/d), Pierre Laurent e Cláudio Furtado (2011).

Nos meados da década de oitenta iniciou o projeto da História Geral de Cabo Verde
(1991, 1995, 2002).99 O I Volume abarca o século XV e a primeira metade do século XVI,
o II, a centúria que decorre entre 1560 e 1650, e o III, o período de grandes mudanças e
de uma longa crise que se prolonga até ao século XVIII.

99 Este projeto, cujo objetivo central foi a elaboração de uma História Nacional, partiu da iniciativa de Cabo Verde,
recém-independente. Resultou da cooperação entre investigadores cabo-verdianos (Iva Cabral, Ilídio Baleno, Zelinda
Cohen, Antonio Leão Correia e Silva) e portugueses (Maria João Soares, Ângela Domingues, Ilídio do Amaral, Maria
Manuel Torrão), sob a orientação do Professor Doutor Luís de Albuquerque e da Investigadora Coordenadora Maria
Emília Madeira Santos, do Instituto de Investigação Científica Tropical de Lisboa. A sua feitura ocorreu em Portugal,
através desta equipa mista que procedeu à definição e delimitação das áreas de investigação, atribuindo a
responsabilidade de cada uma delas a diferentes membros da equipa, de acordo com formações e vocações próprias.

65
Nesta obra coletiva, no que ao mundo rural diz respeito António Leão Correia e Silva foi
o que mais investiu. No I volume assinou o texto, “Espaço, Ecologia e Economia Interna”
(pp. 179-236); No II vol. “A Sociedade Agrária Gentes das Águas: Senhores, Escravos e
Forros”, (pp. 275- 354) e no III Vol., “Dinâmicas de decomposição e recomposição de
espaços e sociedades,” (pp. 1-65), nos quais ao propor falar dos ciclos históricos de
povoamento do arquipélago, incide, por exemplo, sobre os camponeses das ilhas de Santo
Antão, S. Nicolau e Brava no quadro do chamado segundo ciclo de povoamento das ilhas.

Na esteira da História Geral de Cabo Verde, Elisa Andrade (1996) escreveu uma obra
também de carácter generalista, ao propor estudar a História de Cabo Verde desde a sua
“descoberta” à independência nacional, abordando áreas diversificadas desde a economia,
a sociedade, a política, passando pelos aspetos culturais.

Deve-se destacar trabalhos de investigadores não cabo-verdianos que se aventuraram em


trazer o mundo rural para as discussões, como foi o caso de Stockinger (1990), nas suas
Crónicas de Campo relativas às ilhas de Santiago e de Santo Antão e do Professor Artur
Teodoro de Matos. Os seus trabalhos sobre Santo Antão (1996, 1997, 2003), trazem
reflexões pertinentes sobre o mundo rural nesta ilha, onde “o vigor do relevo tornava
difícil a comunicação, por isso tinha de ser servida por uma abundante e barata mão de
obra.” (Matos, 1997:190).

Mais recentemente começa-se a assistir no panorama historiográfico cabo-verdiano uma


tendência em privilegiar a história local e regional100 e, consequentemente, o mundo rural
começa a ganhar o seu lugar na historiografia nacional. Certamente porque aqueles que
se dedicam a esta matéria não só se consciencializaram de que a história é feita de
pormenores, como também se aperceberam que a História Local ou Regional ajuda a
tomar consciência da comunidade em que estamos inseridos e, através dela, a tomar
consciência de nós próprios como seus membros ativos, aceitando como conhecimento
de causa, o seu comportamento coletivo.

Esta tendência traduz-se numa série de estudos de historiadores cabo-verdianos que têm
centralizado as suas atenções em áreas muito especificas direcionadas para as diferentes

100A História Local e Regional propõe estudar atividades de grupos sociais historicamente constituídos, assentes numa
base territorial delimitada, identificando as suas interações exteriores na perspetiva da totalidade histórica.

66
ilhas que compõem o arquipélago ou pormenores da história do país. Eduardo Adilson
Camilo Pereira publica um trabalho sobre as revoltas ocorridas na ilha de Santiago e para
tal mobilizou fontes diversificadas nomeadamente o cortejo da tabanca, do batuco e das
próprias festas religiosas que, segundo diz, “podem ser compreendidas enquanto locais
de confrontação política” (Pereira, 2013:441).

À semelhança de outros países africanos, a interdisciplinaridade é a condição essencial


para se poder pensar a história de Cabo Verde. Não uma interdisciplinaridade marcada
pela visão escolástica de que a história é a ciência e as outras são auxiliares, mas sim uma
interdisciplinaridade efetiva graças à qual as outras ciências são chamadas para a feitura
da história do Arquipélago. E nesta matéria as Ciências Sociais e Humanas têm dado uma
grande contribuição. Na sua obra “Recomposição do Espaço Social Cabo-verdiano,”
César Monteiro (2001) apresenta um conjunto de textos com reflexões muito pertinentes
sobre diferentes aspetos da vida nacional, como sejam, a economia, as migrações, a
justiça, a questão fundiária em Cabo Verde. Cláudio Furtado e José Carlos dos Anjos têm-
se revelado dois sociólogos atentos à sociedade cabo-verdiana e cujos trabalhos têm
servido de fontes de inspiração para a feitura de outros, nomeadamente no domínio da
história.

O primeiro vem dedicando parte das suas reflexões à questão fundiária no mundo rural
cabo-verdiano, particularmente à reforma agrária, sobre a qual publicou, “A
Transformação das Estruturas Agrárias numa Sociedade em mudança – Santiago, Cabo
Verde (1993).” Ao colocar em diálogo as narrativas oficiais com as dos camponeses
beneficiários, o autor abriu caminhos para uma leitura mais abrangente sobre a reforma
agrária na ilha de Santiago, ao mesmo tempo que serviu de inspiração para outros
trabalhos do género que vieram à luz do dia, nomeadamente os dedicados à ilha de Santo
Antão. Refiro-me, por exemplo, “A Terra, a Água e o Poder na comunidade do Tarrafal
de Monte Trigo, Porto Novo, Santo Antão” da minha autoria, publicado em 2009 na
Revista Africana Studia.101

101Revista Internacional de Estudos Africanos, nº 13, 2º Semestre, Centro de Estudos Africanos da Universidade do
Porto, pp. 39 51.

67
O texto de José Carlos dos Anjos e Carolina dos Anjos de Borba intitulado “Questão
Fundiária em Cabo Verde: Posse Tradicional X Propriedade da Terra em São Salvador
do Mundo”, publicado na Revista Conjuntura Austral102 sobre o caso paradigmático de
São Salvador do Mundo na ilha de Santiago serviu também de inspiração para a
elaboração do trabalho acima referido.

Zenaida Delgado parece também ter-se inspirado nestes trabalhos quando escreveu “A
Reforma Agrária em Cabo Verde: estudo de caso no Concelho da Ribeira Grande de
Santo Antão”, publicado na obra coletiva “Desigualdades Sociais e Dinâmicas de
Participação em Cabo Verde,” organizada por Cláudio Furtado e Miriam Vieira (Furtado
& Vieira, 2016). As narrativas que ilustram o texto são interessantes para quem, como a
própria autora, pretende fazer um estudo comparativo sobre o processo da reforma agrária
que desencadeou paixões desencontradas e tomadas de posição mais ou menos radicais
na ilha de Santo Antão.103

Outra obra de referência é “As Ciências Sociais em Cabo Verde-Temáticas, Abordagens


e Perspetivas Teóricas” (2016), cuja publicação contou com a organização de Cláudio
Furtado, Pierre-Joseph Laurent e Iolanda Évora. O livro incorpora um conjunto de textos
de autores cabo-verdianos e não cabo-verdianos, que, imbuídos de diferentes olhares,
propõem reflexões múltiplas sobre Cabo Verde e suas gentes.
No que ao mundo rural diz respeito, destacam-se os textos de Elizabeth Drefeyne,104
António de Jesus105 e Vladimir Silves Ferreira.106 Os trabalhos insertos na obra “Ensaios
Etnográficos na ilha de Santiago de Cabo Verde-Processos Identitários na

102 Revista Conjuntura Austral, Vol. 3. nº 11, abril-maio 2012, pp. 39-57.
103 A este propósito parece-me pertinente um confronto das narrativas descritas pela autora relativamente à Ribeira
Grande, com as trazidas à colação por Cláudio Furtado na obra acima referenciada e com os depoimentos dos
lavradores do Tarrafal de Monte Trigo insertos no texto da minha autoria acima apontada. Na minha opinião, uma
análise destas narrativas poderá contribuir para um estudo comparativo do processo da reforma agrária nestas duas
ilhas, contribuído, a um só tempo, para encontrar respostas a muitas questões que ainda se colocam, como sejam:(i)
até que ponto a LBRA foi suficientemente socializada nas comunidades rurais do país? (ii) terão sido auscultadas
todas as partes envolvidas no processo? (iii). Que estudos preliminares antecederam a materialização da LBRA? (iv).
Terá sido levada em conta a especificidade fundiária de cada uma destas ilhas?
104 Partir: quando a mobilidade é uma história de família e de sociedade. Retóricas e práticas da partida de migração

desde a ilha de Santo Antão (pp. 233-251).


105As lógicas das dinâmicas dos actores sociais endógenos e a transformação do espaço social rural em Santo Antão
(pp. 349-367).
106 A modernização da agricultura em Cabo Verde como assunto público: arenas de disputa com espaço de
(re)construção de mitos (pp. 431-442).

68
Contemporaneidade,” organizada por Maria Elizabeth Lucas e Sérgio Baptista da Silva
(2009), contém reflexões interessantes sobre o mundo rural, nomeadamente os textos
assinados por Carla Carvalho,107 Maria Madalena Veiga Correia108 e Maria de Lourdes
Silva Gonçalves.109 Nesta mesma linha, “As Mulheres em Cabo Verde - Experiências e
Perspetivas,” organizado por Carmelita Silva e Celeste Fortes (2011).

Nela, o mundo rural é analisado de forma bastante transversal, com temáticas variadas
desde a política com o texto de José Carlos dos Anjos,110 a educação e formação
profissional com Maria Venúcia de Sousa Melo, 111 a mulher, a produção agrícola e o
capital social, por Carmen Rodríguez Artiles,112 passando pela emigração com o texto de
Carla Carvalho.113

Muito recentemente, António de Jesus (2016), ancorado numa sociologia e antropologia


do desenvolvimento, publicou um trabalho que põe em evidência as relações entre os
poderes central, local e a sociedade civil, com enfoque sobre a ilha de Santo Antão a partir
de três unidades rurais de análise: Lagoa, Ribeirão e Cruzinha, no Concelho da Ribeira
Grande. Este cientista social, procurou, com este estudo,
compreender a trajetória, as dimensões, os sentidos e as vicissitudes das dinâmicas
de actores sociais no processo de desenvolvimento local em Cabo Verde, bem como
a lógica de interação entre os actores nesse processo, no período após à instituição
do regime democrático em Cabo Verde, (Jesus, 2016: 24).

Faz este percurso a partir de Santo Antão, uma ilha onde, segundo nos diz, “cerca de 62%
da população vive no meio rural; mais de 45% das pessoas são pobres;conta com a mais
elevada taxa de pobreza, particularmente no meio rural.”114

107 Carvalho, Carla . Fornadja, campo e casa – espaços em transformação: o caso da Ribeira do principal (pp. 141- 181).
108Correia da Veiga, Maria Madalena. Txoru falado e txoru cantado: representações sociais da morte no espaço rural
de Achada Falcão - (pp. 183-227).
109Gonçalves Silva, Maria de Lourdes. Rebelados no Bacio e no Espinho Branco: pontes e portas na (re) formulação
identitária do grupo( pp 229-262).
110 Da Revolta de Ribeirão Manuel ao devir-Mulher de um Povo (pp. 49-65).
111Educação, Formação e Qualificação Profissional da Mulher Rural Cabo-verdiana: Presupostos Básicos para o
desenvolvimento. (pp. 125-139).
112 La Mujer Rural Cabo-verdiana: Producción Agrícola y Capital Social (pp. 189-205).
113 Emigração das Mulheres Rurais em Cabo Verde: O caso da Ribeira de Principal (pp. 207-221).
114Jesus, António (2016). Desenvolvimento Local- As dinâmicas dos actores sociais no contexto Cabo-verdiano. Praia:
Pedro Cardoso Livraria, p. 50.

69
É sobre esta ilha que a minha tese de doutoramento será dedicada, a partir do Tarrafal de
Monte Trigo no concelho do Porto Novo.

1.4. A metodologia

Como disse inicialmente, a minha proposta metodológica consistiu numa conciliação


entre a voz dos arquivos e a das narrativas recolhidas no espaço de análise. As fontes
arquivísticas existentes sobre esta matéria no Arquivo Nacional de Cabo Verde e nos
Arquivos do Ministério da Agricultura, sobre as quais recaiu grande parte da pesquisa,
são ricas em informações da mais variada ordem. Porém, mais do que a interpretação dos
dados, impõe-se sobretudo a vigilância epistemológica porquanto apresentam uma visão
– a oficial – dos acontecimentos.115

Por esta razão, e porque pesquisar é fazer perguntas daquilo que se silencia,
nomeadamente a documentação oficial, o método etnográfico, baseada “numa ética de
interação, de intervenção e de participação,”116 foi chamado para este empreendimento,
evitando, assim, uma história que fosse baseada exclusivamente nos arquivos produzidos
por uma elite administrativa, e, que, ainda que sujeito ao crivo do método histórico,117
encerra-nos no universo construído por esta mesma elite, agentes de poder coercitivos,
criando dificuldades quando se propõe ultrapassar as margens das histórias oficiais, para
dar e fazer emergir a voz das camadas menos privilegiadas da população.

115 Mais do que a mera crítica das fontes, recurso historiográfico fundamental para a determinação da fidedignidade
interna e externa do documento, impôs-se-me, de um lado, situar o (s) interlocutor (es) por detrás dos documentos e,
por outro, enunciando-os, como forma de explicitar os limites intrínseco, a um só tempo, ao documento e às narrativas
nele insertas.
116Eckert, C.(1994). Questões em torno do uso de relatos e narrativas biográficas na experiência etnográfica. In XVIII
Encontro Anual da ANPOCS- Caxambú, MG, 23 a 27 de novembro de 1994. GT 11: Historia Oral e Memória, 3ª
Sessão: Memória, Trabalho e Poder, p. 21.
117O método histórico compreende o conjunto de técnicas e procedimentos usados pelo historiador para investigar o
passado do homem. Baseia, fundamentalmente, em operações como a heurística que consiste na recolha das fontes
de informação necessária para a análise histórica, a Crítica que avalia a validade ou não das versões contraditórias e
a hermenêutica que consiste na interpretação dos documentos com vista a determinar em que medida as informações
fornecidas respondem ou não às questões incialmente colocadas pelo historiador.

70
Por isso, e porque não devemos esquecer outra das regras do método histórico que é o
cruzamento de vários tipos de fontes, ampliando a nossa conceção documental,118
procurei mobilizar outros olhares e saberes das ciências sociais, designadamente a
Sociologia e a Antropologia119 e seus respetivos métodos de trabalho, pretendendo, por
um lado, uma discussão mais crítica relativamente às fontes disponíveis e, por outro, a
mobilização de outras fontes estribadas, por exemplo, na oralidade e nos métodos
etnográficos, procurando, deste modo, a abertura do diálogo entre as ciências sociais e
humanas, porquanto “o buscar saber não pode ser filho de uma única disciplina.”120

Se a história representa “um recurso ao tempo passado definidor de realidades


presentes,”121 ela deverá entrosar, nomeadamente, com a sociologia, que visa “ estudar
como as sociedades continuam funcionando ao longo do tempo e as mudanças que
sofrem.”122 Por sua vez, a antropologia, com o seu caráter constitutivo “do olhar, do ouvir
e do escrever, na eleboração do conhecimento próprio das disciplinas sociais,”123 não
deixa se ter a sua importância na reconstituição da história, porquanto ela “pré-estrutura
o nosso olhar e sofistica a nossa capacidade de observação.”124

Durante a textualização dos fenómenos observados, “estando lá” (Oliveira, 2000: 25),
pûde perceber a real importância da etnografia e que, de facto, “não há o aqui, sem antes
se ter estado lá.” Outrossim, fiquei ainda mais convencido de que,“ a memória constitui
provavelmente o elemento mais rico na redação de um texto, contendo ela mesma uma
massa de dados cuja significação é melhor alcançável quando o pesquisador a traz de
volta do passado, tornando-a presente no ato de escrever.”125 Percebi que, tanto na

118 Barros, José d´Assunção (2005). Os Campos da História no século XX. In Ler História, nº 49, p. 87.
119Sobre esta matéria, sugiro a leitura de Pereira, Miriam Halpern (2005). A História e as Ciências Sociais. In Ler
História, nº 49, pp. 5-30.

120Dias, Netanias Dormundo, Silva, Erevaldo da (2007). Sociologia, História e Economia: um diálogo promissor, In
Em TESE. Revista Electrônica dos Pós-Graduandos em Sociologia Política da UFSC, Vol. 3, nº 2(2), janeiro-
julho/2007, p. 195.
121 Schwarcz, Lilia Moritz, (2009). Repertório do tempo. In Revista USP, São Paulo, nº 81, março/maio, p. 27.
122 Dias, Netanias Dormundo & Silva, Erevaldo, op. cit. p. 184.
123 Oliveira, Roberto Cardoso de (2000). O trabalho do antropólogo, 2ª edição, Brasília: UNESP, p. 18.
124 Idem, ibidem. p. 21.
125 Idem, ibidem, p. 34.

71
etnografia como na pesquisa histórica será importante, também, considerar as ausências,
considerando que a realidade não pode ser reduzida ao que existe ( Santos, 2013: 9).126

A problematização destas ausências, permitir-nos-á perceber e apreender as lógicas de


poder intrínsecas à inscrição unívoca da história. E dar-nos-á pistas para cartografarmos
criticamente o que tem sido dito ou o que foi dito e o que foi guardado em oposição ao
que foi silenciado, isto é, remetido para o ausente. Assim, a mobilização de tradições
disciplinares e propostas metodológicas distintas revelou-se fundamental para os desafios
propostos.

As minhas primeiras pesquisas foram bibliográficas, que me permitiram desenhar o


estado da arte relativamente às questões fundiárias e as dinâmicas sociais no mundo rural.
Foram levadas a cabo quer em Cabo Verde, particularmente nos acervos bibliográficos
do Arquivo e da Biblioteca Nacionais, quer em França, na Biblioteca do Instituto de
Estudos Políticos de Bordeaux (IEP-Bordeaux) e no Centro de Documentação de La
Maison des Suds, Bordeaux, no período compreendido entre outubro de 2016 e janeiro
de 2017, durante um estágio realizado naquele Instituto, no quadro da cooperação entre a
Universidade de Cabo Verde, a Cooperação Francesa e a Universidade de Bordeaux.127

Num segundo momento, dediquei-me a pesquisas arquivísticas. No Arquivo Nacional de


Cabo Verde existe uma documentação relativamente vasta referentes às três Câmaras
Municipais da ilha de Santo Antão. Vão desde relatórios, papéis avulsos, posturas
municipais, testamentos, inventáriso post-mortem, passando por correspondências
diversas que permitem ilações importantes referentes ao assunto em estudo. Do mesmo
modo, nos arquivos de outras instituições foram encontrados elementos não menos
importantes, designadamente nos do INIDA e do Ministério do Desenvolvimento Rural
(MDR). Neste, foi particularmente importante os processos relativos à Reforma Agrária
na ilha de Santo Antão. Foi nesta documentação que encontrei um processo sobre os
lavradores do Tarrafal de Monte Trigo128 que se revelou de suma importância para a

126Santos, Boaventura de Sousa (2013). Prefácio. In Meneses, Maria Paula & Martins, Bruna Sena (orgs.). As Guerras
de Libertação e os sonhos coloniais. Coimbra: edições Almedina, p. 9.

127Devo a isto, agradecer a Universidade de Cabo Verde através da Coordenação do Laboratório de Pesquisas em
Ciências Sociais e a Embaixada da França, por terem criadas as condições necessárias para a realização do estágio.
128 Ministério do Desenvolvimento Rural, Gabinete da Reforma Agrária. Praia, 1983.

72
orientação do que viria a ser o meu trabalho de campo levado a cabo naquela localidade.
Trata-se de um documento precioso, que me permitiu tirar ilações importantes
relativamente à estrutura social vincada naquela comunidade e o exercício de dominação
então vigente.

Do total de cerca de quarenta e oito narrativas que analisei, constata-se que as parcerias
variavam entre 2 a 75 anos e que cerca de 80% dos agricultores perfizeram mais de 30
anos de parceria. As informações vão desde o posicionamento dos agricultores
relativamente à política da reforma agrária até às novas perspetivas de diversificação das
culturas, passando pela relação hostil com o antigo proprietário.

Assim, para o século XIX e as primeiras décadas de XX, procurei mobilizar fontes
documentais no sentido de extrair conhecimentos possíveis a partir das mesmas,
permitindo investigar, compreender, explorar os documentos (Marrou,1974:139).

Consciente de que estes registos relatam a versão oficial dos acontecimentos, foi minha
preocupação, como reiteradas vezes sublinhado, utilizar outro tipo de fontes
particularmente para as primeiras décadas da segunda metade do século XX, para as quais
recorri ao trabalho de campo, procurando “uma aproximação com as pessoas da área
selecionada para o estudo” (Neto, 2000) e, assim, criar conhecimento, partindo da
realidade presente no campo, “num exercício interativo/refexivo onde sujeitos, objeto e
contexto são pensados como uma totalidade relacional.”129

Este exercício foi feito em Tarrafal de Monte Trigo, suportado na realização de


observações participante e não-participante e entrevistas, optando por aquilo que Minayo
(1992) chama “história de vida tópica, que focaliza uma etapa ou um determinado setor
da experiência em questão.” Para o efeito, adotei a premissa da etnografia do próximo
(Ela, 2013), salvaguardando a importância das suas vozes como potenciadores daquilo
que Viveiros de castro (2012) considera de continuidade epistémica. Nessa altura,
pesquisador e sujeitos pesquisados vivenciaram “uma experiência interativa de

129 Eckert, C. op.cit. p. 30.

73
negociação de interesses, onde informações são trocadas como também afetividades,
angústias, tensões, frustrações etc.”130

As informações recolhidas nesta comunidade131 fornecem elementos variados que


contribuem para a feitura de uma história vista de baixo, aquilo que se poderia chamar a
história dos subalternos no Tarrafal de Monte Trigo. Para tal, o método etnográfico é
mobilizado, enquanto
instrumento epistemológico coerente para construir as tramas e redes de relações nas
quais transparecem as ações dos homens e para conhecer a maneira, ao mesmo tempo
individual e coletiva, de os entrevistados pensarem, interpretarem e exprimirem as
continuidades e descontinuidades de um tempo vivido, reelaboradas e
ressemantizadas no presente, tanto quanto suas aspirações e projetos de vida, sem
perder de vista as circunstâncias históricas em que emergem essas categorias e
conceitos (Eckert, 1994:31).

132
Porque “tudo pode ser histórico para o historiador atento,” procurei seguir as
orientações de Lucien Febvre para quem, a “história faz-se com documentos escritos,(…)
mas pode fazer-se, deve fazer-se com tudo o que o engenho do historiador lhe consinta
utilizar. Com palavras, portanto. Com sinais. Com paisagens e telhas (…),”133 “atento a
todos os tipos de procedimentos de análise,fundamentando-se num vasto conjunto de
conhecimentos,”134enfim, fazendo a história numa perspetiva mais pragmática, como
diria o filósofo e historiador francês, Michel de Certeau (Certeau,1982:69).

Os testemunhos vivos que “contêm mais história total do que todos os manuais, mesmo
os mais eruditos,”135 foram amplamente mobilizados, atendendo que “a oralidade é uma
atitude diante da realidade e não a ausência de uma habilidade.”136A minha intenção foi
no sentido de dar voz aos agricultores desta comunidade relativamente à situação

130 Idem, ibidem.


131 Serão analisadas com mais pormenor no capítulo V.
132 Ki-Zerbo, Joseph (1999). História da África Negra, Vol. I; (2ª ed.). Lisboa: Publicações Europa-América, p. 17.
133 Febvre, Lucien (1952). Combats pour l’histoire. Paris: Librairie Armand Colin, p. 428.
134Obenga, T. (2010) - Fontes e técnicas específicas da história da África – Panorama Geral. In Ki-Zerbo, J. (ed).
História Geral da África I, (2ª ed.), Brasília: UNESCO, p. 63.
135 Ariés, P. (1986). Le Temps de l’Histoire. Paris: étitions du Seuil, p. 17.
136Vansina, J. (2010). A tradição oral e sua metodologia. In Ki-Zerbo (ed.). História Geral da África I, J. (2ª ed.),
Brasília: UNESCO, p. 140.

74
fundiária, numa “tentativa de penetrar a história e o espírito das gentes do Tarrafal, como
recomenda Amadou Hampatê Ba, para quem,
“(…) nenhuma tentativa de penetrar a história e o espírito dos povos africanos terá
validade a menos que se apoie nessa herança de conhecimentos de toda espécie,
pacientemente transmitidos de boca a ouvido, de mestre a discípulo, ao longo dos
séculos. Essa herança ainda não se perdeu e reside na memória da última geração de
grandes depositários, de quem se pode dizer são a memória viva da África (Ba,
2010:167).

Porque,“o sujeito subalterno é irremediavelmente heterogéneo,”137 nas últimas pesquisas


de campo procurei recolher narrativas das mulheres do Tarrafal de Monte Trigo,
inspirando-me, particularmente, no trabalho de Spivak (2010).

Num meio particularmente dominado por homens, “chegar à fala” com a mulher
sobretudo em matérias que têm que ver com o considerado trabalho masculino é
particularmente difícil. “Sêb, h´um Sêb! ma kes kôsa ei kem pode flá dês é nhe merid!”138
foi-me repetido sempre que questionei às senhoras da relação entre a família proprietária
e os lavradores. Por várias vezes fui tentado a admitir que as mulheres ditas e tidas como
subalternas do Tarrafal de Monte Trigo não podem falar, para tomar de empréstimo o
posicionamento de Spivak relativamente à mulher subalterna indiana.139

A pesquisa de campo realizada na ilha de Santo Antão, consubstanciou-se em cinco


missões, sendo as duas primeiras ocorridas nos concelhos da Ribeira Grande e do Paúl.
Em Ribeira Grande, além do (re)conhecimento do seu espaço rural, tive a oportunidade
de fazer a apresentação da minha proposta de estudo a um público, direto ou
indiretamente, interessado nas questões fundiárias, no intuito de estabelecer uma relação
de troca, esclarecendo sobre aquilo que pretendia investigar e as possíveis repercussões
favoráveis advindas do processo da pesquisa.

No Paúl, o meu trabalho consistiu no início de pesquisas nos arquivos da Câmara


Municipal, facilitada, pouco tempo depois, com a transferência de grande parte da

137Spivak, Gayatri Chakravorty (2010). Pode o Subalterno Falar? Tradução: Sandra Regina, Goulart Almeida, Marcos
Pereira Feitosa, André Pereira Feitosa, Belo Horizonte: Editora UFMG, p. 57.
138 Saber, eu sei! Mas dessas coisas quem poderá falar é o meu marido (Tradução livre do autor).
139 Cf. Spivak, Op. Cit.

75
documentação mais antiga para o Arquivo Nacional de Cabo Verde, na Praia.140
Consistiu, por outro lado, na observação e no conhecimento do meio rural paulense, de
que desconhecia até então. Percorri o concelho, de Pombas à Pico da Cruz, passando pela
ribeira de Janela, entre outros assentamentos do concelho, todo ele verdejante e com muita
água, como se pode constatar em algumas fotos exibidas ao longo deste trabalho.

As restantes três missões foram realizadas em Tarrafal de Monte Trigo, entre fevereiro
de 2017 e agosto de 2018. Conversei com dezoito pessoas, sendo oito do sexo feminino
e dez do sexo masculino, com idades compreendidas entre 56 e 98 anos. Com três das
cinco mulheres e quatro dos oito homens, falei por três vezes, em todas as três missões
ali realizadas. As conversas ocorreram na língua cabo-verdiana, sendo que no texto os
extractos aparecem nessa língua, variante da ilha de Santo Antão, com a respetiva
tradução em língua portuguesa em nota de rodapé, feita por mim.

Para além das conversas, um intenso trabalho de observação e convivência com os


moradores, acompanhando tanto as atividades laborais quanto de recreação, permitiu um
registo permanente de notas de campo, fundamentais para o descortinar de muitas
informações conseguidas nos diálogos encetados.

Usei pseudónimos para todos os meus interlocutores, para preservar o anonimato, por um
lado, por uma questão de ética, e por outro, por se tratar de um campo polémico, onde
ainda hoje existem questões não totalmente resolvidas, agravadas com os tabus ainda
existentes na história recente de Cabo Verde, particularmente em matérias que têm que
ver com a questão fundiária no meio rural.

Cada missão foi refletida e avaliada com base nos objetivos pré-estabelecidos. A primeira
consistiu na aproximação com algumas pessoas, facilitada através do conhecimento dos
moradores e até das relações familiares, referidas anteriormente. Na segunda vez fui ao
Tarrafal com objetivo de precisar algumas questões decorrentes da análise do material
recolhido durante a primeira missão, ouvir, dialogar e conviver novamente com alguns
dos meus primeiros interlocutores, e mobilizar outros. Finalmente, uma terceira investida

140Trata-se de uma documentação relativamente vasta, da mais variada natureza, abarcando documentos produzidos
pelo Secretariado Administrativo do Paúl, pela Comissão Municipal e pela Administração do Concelho, já
devidadmente tratada, a espea apenas do respetivo instrumento de pesquisa que facilite os potenciais utilizadores.

76
de campo, desta feita, com um objetivo muito concreto: conviver e ouvir as mulheres,
numa altura em que já tinha começado a pensar na possibilidade de uma violência
simbólica de que foram particularmente vítimas durante muito tempo.

Atendendo que as fotografias se apresentam também como recurso de registo e, por


conseguinte, como fonte de informações, aos quais podemos recorrer, em todas as
missões efetuadas à ilha de Santo Antão, aproveitei para fotografar muitos sítios por onde
passava, e que me suscitavam algum interesse, pelas suas relações com o meu objeto de
estudo.

As fotos por mim seleciondas, a juntar com outras, entretanto, encontradas durante a
pesquisa documental realizada no Arquivo Nacional de Cabo Verde, acabaram por
constituir uma fonte iconográfica interessante, enquanto método de pesquisa. “Esse
registo visual amplia o conhecimento do estudo porque nos proporciona documentar
momentos ou situações que ilustram o cotidiano vivenciado.” 141O objetivo, foi, assim,
mostrar o processo da pesquisa, cruzada entre os arquivos, as narrativas, as fontes
literárias (às vezes) e a análise da paisagem, através destas fotos.

Assim, as cinquenta e quatro fotos insertas no trabalho, retratam a ilha de Santo Antão na
sua diversidade e adversidades, o contraste entre o norte/nordeste e o sul da ilha,
consubstanciado, por um lado, pelo imenso vale da Ribeira Grande, e, de outro lado, a
paisagem lunar dos campos do Porto Novo que se prolongam no horizonte até ao Tarrafal
de Monte Trigo.

Desde os campos áridos dos Planaltos Norte e Sul, à floresta do Planalto Leste, passando
pelas ribeiras férteis dos vales do Paúl, da Ribeira da Torre, do Coculi, da Ribeira das
Patas, Lajedos, Martiene, ribeira da Cruz, Figueiral do Paúl, Cabo de Ribeira, Boca de
Ambas-as-ribeiras, Garça, Monte Trigo, entre outras localidades, as imagens justificam a
afirmação de Chelmicki, segundo a qual, Santo Antão constitui a “ilha mais pitoresca de
todas.”142

141Neto, Otávio Cruz (2000). O trabalho de Campo como descoberta e criação. In Minayo, C. (org). Pesquisa Social.
Teoria, método e criatividade, (16. ed). Petrópolis, Rio de Jnaeiro: Editora Vozes, p. 63.
142 Chelmicki, José Conrado (1841). Corografia Cabo-verdiana ou Descrição Geographico-Histórica da Província das
ilhas de Cabo Verde e Guiné, Tomo I. Lisboa: Typ. de L. C. da Cunha, p. 13.

77
Muitas destas fotos, permitem-nos constatar a relação do homem com o solo e a luta tenaz
para se conseguir o cultivo em muitas das encostas da montanhosa ilha de Santo Antão.
Se se pode considerar a paisagem como documento, as dos planaltos Norte e Sul, por
exemplo, mostram-nos o quão a agricultura nestas regiões, desprovidas de qualquer
nascente de água, dependem exclusivamente da chuva, tão rara na ilha e no arquipélago.
Se a terra impõe determinadas condições a que o homem tem de se submeter, mas também
recursos que ele pode aproveitar, as fotografias referentes ao sistema de canalização da
água, através das levadas, construídas nos anos cinquenta do século XX, pela Brigada
Técnica de Estudos e Trabalhos Hidráulicos, não deixam dúvidas neste sentido.

Algumas das fotos são imagens dos centros urbanos da ilha de Santo Antão, as cidades
de Pombas, Ribeira Grande, Ponta do Sol e Porto Novo, com destaque para algumas
infraestruturas, designadamente o emblemático Paços do Concelho da Ribeira Grande,
construída na então Vila Maria Pia (atual Ponta do Sol), ainda no século XIX, após ter
funcionado, por muito tempo, em casas alugadas na então Povoação de Santa Cruz.143

As fotos referentes ao Tarrafal de Monte Trigo são em maior quantidade. Estão


distribuídas, ao longo do texto, procurando, na medida do possível, uma certa harmonia
com o mesmo. Sempre que tal se justifique, em lugar oportuno, procuro explorá-las,
descritiva e analiticamente juntamente com as outras fontes utilizadas, de modo a se
complementarem com as mesmas.

Além de mostrarem o panorama atual da comunidade, apresentam alguns pormenores,


desde o sistema de rega por alagamento, de que os tanques e as levadas de água
evidenciam, até o atual sistema de rega gota-a-gota, destinada, por exemplo, ao cultivo
do inhame,144 passando, pelas empresas de água, em tempos destinadas ao abastecimento

143Por volta de 1839, a Câmara dispunha de uma pequena casa a que chamava Paços do Concelho) no sítio do Terreiro)
onde realizava as suas actividades e tinha no pavimento inferior um casebre térreo que servia de cadeia. Na época a
casa começou a deteriorar-se e depressa arruinou-se. A partir daí a Câmara passou a alugar espaços para as suas
actividades, e algumas vezes utilizou a casa de residência do Presidente. (Lopes, Maria José (1998). A Câmara
Municipal de Santo Antão: Criação e Evolução (1732-1870). In Africana, nº Especial, 5, Porto: Universidade
Portucalense /Arquivo Histórico de Cabo Verde, p. 112.
144A produção de inhame (700 toneladas/ano) suportada numa revolucionária tecnologia local introduzida há alguns
anos no vale é a mais expressiva. Mantém cerca de 130 agricultores ativos com duas colheitas/ano (Lopes L. (2018).
PDI Tarrafal_ Monte Trigo 2018/2021, Mindelo: M_EIA, p. 8.)

78
dos navios-cisternas para a ilha de São Vicente. O estado de abandono destes edifícios,
obriga-nos a refletir sobre as interligações existentes entre os bens patrimoniais e o
ambiente envolvente, quer numa perspetiva histórica, quer numa perspetiva mais atual da
sua preservação.

A utilização da imagem fotográfica como fonte histórica para a reconstituição do Tarrafal


de Monte Trigo dos meados do século XX, passará pelas imagens das casas assobradadas
pertenentes à família Ferro, muitas já em estado profundo de degradação. Passará também
pelas imagens de habitações de alguns dos então parceiros da mesma família, possíveis
ainda de serem captadas, como se constata em algumas fotos exibidas no capítulo quatro.

O procedimento metodológico aqui explicitado e as contribuições teóricas atrás referidas


é que me permitiram abrir o caminho para a história agrária da ilha de Santo Antão, cujo
início remonta aos primeiros anos do século XVII, conforme indicado nos capítulos que
se seguem.

79
CAPÍTULO II.

Santo Antão de Cabo Verde: o espaço e as gentes

80
2.1. Enquadramento histórico: gestão do espaço e processo de
povoamento

Figura 2. Ilha de Santo Antão


Fonte: Garcia de Orta (Lisboa), Vol. 12 (nº 4), 1964.

Vulgarmente conhecida por ilha das montanhas, Santo Antão é formada por uma cadeia
de montanhas, constituída de rochas escarpadas e vales profundos. Sendo uma ilha de
origem vulcânica, possui uma variedade de paisagens, que contrastam entre si, e que vai
desde o descampado de rochas negras, entremeadas de pozolanas brancas, até as terras
castanhas e soltas.

Localizada no extremo oriental de Cabo Verde, é a segunda maior ilha do arquipélago,


comportando uma área de 779km2, cuja orografia condicionou e condiciona o percurso
histórico das suas comunidades.

Não me cabe aqui debruçar exaustivamente sobre a história da ilha de Santo Antão, nem
narrar todas as vicissitudes por que passou ao longo do seu itinerário histórico. Tão
somente proponho um breve enquadramento histórico desta ilha, mostrando, em linhas
gerais, as vicissitudes por que passou ao longo do seu itinerário temporal.

A sua “descoberta,” segundo consta no ano de 1462, insere-se na lógica da denominada


expansão ultramarina portuguesa, ditada tanto por motivos de ordem material, como

81
ideológico-missionário: o alargamento das atividades comerciais e a pretensão de alargar
a fé cristã.
foi assim, que, lançando-se decididamente, desde o segundo decénio do século XV
à devassa do Atlântico, os navios de Portugal, iniciaram uma tarefa de larga
expansão, depois seguida por outros povos, abrindo em águas até então não saldadas
os caminhos por onde se difundiu a civilização europeia cristã, num conjunto de
progressos económicos, científicos e morais e se estabeleceu no mundo uma
vivificante convivência de gentes até então mutuamente desconhecidas (Peres,
1959:23).145

À semelhança do que aconteceu com as demais ilhas de Cabo Verde, após a sua
“descoberta,” impunha-se a ocupação e o povoamento visando a sua administração de
facto e consequente domínio efetivo.

A sua ocupação remonta ao século XVI, pese embora existirem algumas contradições
relativamente ao processo do seu povoamento. Ao que tudo indica, a ilha foi povoada
muito tempo depois da sua “descoberta” e, possivelmente, com escravos provenientes da
costa africana, mas também por brancos, embora em número reduzido, que terão vindo
desde o início ou ainda mestiços oriundos de outras ilhas já então povoadas,
nomeadamente das de Santiago e do Fogo, as mais antigas em termos de povoamento e
domínio efetivo.146
A abundância de água e carne, fizeram dela local de acolhimento de piratas que,
protegidos pela quase inexistência de vigilância, aqui faziam aguada e resgatavam
alguns produtos, ao mesmo tempo que se relacionavam, muitas vezes com os
naturais, chegando aí a estabelecer-se. Ao aumento natural da população residente
juntou-se-lhe, de quando em vez, alguns degredados remetidos pela autoridade
eclesiástica para aí espiarem o castigo dos seus pecados, quase sempre de ordem
sexual. Também os magistrados para aí despachavam delinquentes para cumprirem
as penas dos seus desacatos. Neste ambiente de certa liberdade terá vivido a ilha de
Santo Antão, sob a jurisdição do donatário, aqui representado por um feitor,
recebendo da Fazenda Real os quartos e a dízima (Matos, 2003:264).

Relativamente ao seu processo de povoamento, existem algumas contradições. Por


exemplo, uma carta datada de agosto de 1606 diz o seguinte: “ao nordeste estam as ilhas

145 Peres, Damião (1959). História dos descobrimentos portugueses. Lisboa, p. 23.
146Cf. Matos, Teodoro de (1996). Santo Antão de Cabo Verde (1724-1732): da ocupação inglesa à criação do regime
municipal. In A Dimensão Atlântica da África – II Reunião de História da África, Rio de Janeiro.

82
de S. Antão, S. Nicolau e a da Boa Vista, nas quaes não há maes que gado.”147 Quer dizer
que um século e meio depois da sua “descoberta” Santo Antão ainda era deserta de
presença humana.

Mas a Carta de doação de 1593 reconcedida a D. Francisco Mascarenhas, remete-nos para


outra interpretação quando diz, “que tome posse do gado, escravos e de todos os móveis
existentes na ilha, pertencentes a Beatriz de Távora mulher do Gonçalo de Souza, a qual
ficarão somente as que o seu marido e seus sucessores tinham e compram nas ilhas.” 148

O conteúdo desta carta dá-nos a ideia de que o povoamento de Santo Antão tinha iniciado
ainda no século XVI. Mas também a criação de um lugar de vigário na ilha em 1589, traz
suspeitas de indícios da presença humana, possivelmente iniciada desde finais do século
XVI.

Apesar destas incongruências e das adversidades do meio, foi, juntamente com a ilha de
São Nicolau,149 das primeiras ilhas do Norte do arquipélago a serem ocupadas.

Marginalizados nas terras pobres das encostas e cumeadas, onde a tentativa de


praticar a agricultura abre ciclos de erosão, agravando ainda mais as condições de
vida, os forros iniciam, a partir dos alvores do século XVII, uma lenta, persistente e
silenciosa emigração para as ilhas-donatarias do Norte do arquipélago,
nomeadamente S. Nicolau e Santo Antão. Ali acedem à terra a troco do pagamento
do foro aos feitores dos donatários. Mas cedo os conflitos entre este recém-instalado
campesinato foreiro e os donatários se estalam. A estes últimos interessava confinar
os agricultores em zonas restritas, reservando grande parte do património fundiário
das ilhas nortenhas para a prática já secular da pecuária extensiva, ao passo que aos
agricultores convinha, ao inverso, o alargamento das terras de sementeira (Silva,
2004:110).

Uma vez incluído no Património régio, desde o seu “descobrimento,” o sistema


administrativo nas ilhas de Cabo Verde foi o das Capitanias-donatarias, entregues aos

147Brásio, António (1963). Monumenta Missionária Africana; África Ocidental, Vol. II, 2ª Série (1500-1568). Lisboa:
Agência Geral do Ultramamar.
148Gonçalo de Sousa da Fonseca herdou a casa de seu pai e foi também senhor da ilha de Santo Antão. Foi casado com
Brites de Távora, a quem deixou a sua fazenda com a condição de esta vir deixar ao seu sobrinho Bernardim de
Távora (ANTT, Registo Geral de Mercês, Mercês da Torre do Tombo, liv. 9, f. 284v-297v).
149Sobre a ilha de São Nicolau, sugiro a leitura de Teixeira, André Pinto de Sousa (2004). A Ilha de São Nicolau de
CaboVerde nos séculos XV a XVIII. Lisboa: Faculdade de Ciências Sociais e Humanas/Centro de História de Além-
mar, UNL.

83
capitães donatários.150 Tal sistema passava pela existência de dois documentos entre os
quais uma carta de doação feita pelo monarca a um familiar seu ou nobre próximo da
Casa reinante.151

Assim, integrada no sistema de doações que vigorava na época, Santo Antão esteve
durante mais de dois séculos, 1548-1759, na posse de donatários que usufruíam de direitos
de exploração económica. A ilha passou por momentos difíceis desde o inínio da sua
ocupação, a começar pela ação dos póprios donatários.
Os donatários e, depois deles, os próprios feitores da Fazenda real viam-se tentados
a levantar arbitrariamente o valor dos foros, enquanto que os foreiros tinham por
objetivo pagar foros módicos e quando não mesmo sonegar o pagamento. Este
conflito atinge o paroxismo em Santo Antão nos meados do século XVIII, onde o
donatário tinha monopolizado as ribeiras de Janela e do Paúl e circunscrito a
população livre em áreas restritas, obrigando-a a engenhos para cultivar as encostas
(Correia e Silva, 2004:111).

No século XVIII, a situação foi particularmente difícil, altura em que se acentuou a sua
decadência, na sequência da crise de comércio ocorrida em Cabo Verde, manifestada na
“ausência absoluta de navegação comercial e com tudo isso a progressiva fuga de capitais
e de homens brancos, mestiços e pretos.”152
Só no início do segundo quartel setecentista que de novo se depara com informação
que permite inteirarmo-nos da situação económica e social desta ilha periférica do
Barlavento caboverdiano e da sua evolução desde os finais do século XVI. E, se não
fora os apuros financeiros por que passou em Londres o donatário D. João de
Mascarenhas em 1724, após a fuga com D. Maria Paula de França, mulher de D.
Lourenço de Almada, que o levou a arrendar a ilha a um consórcio inglês e a reacção
que tal acto provocou, talvez a cortina de silêncio que cobriu por longo tempo a
história de Santo Antão, se tivesse prolongado ainda por mais tempo (Matos,
2003:264).

150 Sobre a atuação e atribuições dos capitães donatários, Cf. Domingues, Ângela (1991). Op. Cit. pp. 41-123.
151Foi o caso de D. Afonso V que, no ano de 1462, fez doação das ilhas de Cabo Verde ao Infante D. Fernando. Este,
como já dispunha de um património extenso e ocupações várias a que tinha de dar resposta, acaba por dividir o
território em capitanias, nomeando, para os respetivos lugares, pessoas da sua confiança, designados correntemente
por Capitães Donatários, a quem eram delegados todos os poderes necessários ao governo e administração em matéria
de justiça, bem assim como na faculdade de arrecadar todos os direitos e rendas, entre os quais o trato de mercadorias,
direito à distribuição de terras, imposição e arrecadação de impostos.
152Carreira, António (2000). Formação e Extinção de uma Sociedade Escravocrata (1460-1878), 3ª edição, Praia: IPC,
Estudos e Ensaios, p. 196.

84
Após tais vicissitudes, em 1759 a ilha reverteu para a Coroa,153 numa altura em que o
pombalismo procurou reorganizar a administração do território, pondo fim às donatarias
em Cabo Verde, sendo a última a da ilha de Santo Antão.154 Porém, pouco tempo depois,
o arquipélago viria a mergulhar numa profunda crise, entre outros fatores, devido ao
impacto da fundação da Companhia do Grão-Pará e Maranhão.

2.2. Santo Antão sob os auspícios da Companhia Grão-Pará e


Maranhão: as crises, as fomes e o ambiente escravocrata

No século XVIII, o arquipélago sentia os efeitos do agravamento de uma crise, que


entravava o seu desenvolvimento económico, financeiro e comercial. Aliás,
o fenómeno não era uma novidade, antes era conhecido, pelo menos, desde a centúria
anterior, e nem mesmo as sucessivas medidas lançadas pela Coroa lograram dar
solução ao problema da falta de numerário e reanimar o trato esclavagista. A
bancarrota da Companhia de Cabo Verde e de Cacheu 155 e a reduzida afluência de
embarcações portuguesas aos portos das ilhas, pouco estimulando a sua economia e
remetendo-as para um isolamento ainda maior do que aquele que já derivava da
distância geográfica relativamente ao Reino, constituíam outras faces da delicada
situação (Pinheiro, 1997:124).

Situação que agudizará com a instalação da Campanhia do Grão Pará e Maranhão.156 Esta
companhia, “representa um grau elevado de maturação das ideias emanadas do

153A ilha de Santo Antão foi vendida aos ingleses por um dos donatários, D. João de Mascarenhas, filho do IV Conde
de Santa Cruz, na altura homiziado na Inglaterra. No entanto, antes de se fixarem de facto na ilha os ingleses foram
expulsos, ficando a mesma na posse da Coroa Portuguesa.
154Entre as décadas de 50 e 70 do século XVIII, o governo português ficou marcado pela ação do Marquês de Pombal,
ministro de D. José, e repercutiu-se num intenso reformismo económico fortemente inspirado pelo ideário das luzes.
As medidas reformistas então tomadas tiveram ampla implementação quer no território da metrópole, quer nos
territórios ultramarinos, designadamente no de Cabo Verde.
155De 1680 a 1706, Cabo Verde e Guiné pertenceram para todos os efeitos à recém-criada Companhia de Cabo Verde
e de Cacheu, que recebeu o monopólio do comércio em ambas as partes e que conseguiu um monopólio ainda melhor,
o da exportação de escravos para a América Espanhola. Este monopólio não durou mais que seis anos e oito meses
(1693-1703) e nunca foi tomado muito a sério, conquanto tivesse originado um curto período de prosperidade.
Quando a Companhia faliu, tanto o arquipélago como a costa guineense caíram de novo no sono interrompido, apesar
de alguns esforços para desenvolver a agricultura mediante a introdução de novas plantas, utilizadas como matérias-
primas industriais.
156Sobre esta Comapanhia e seu impacto em Cabo Verde, sugiro a leitura de Carreira, António (1969). As Companhias
Pombalinas de Navegação, Comércio e Tráfico de Escravos entre a Costa Africana e o Nordeste Brasileiro, Lisboa:
Centro de Estudos da Guiné Portuguesa/Centro de Estudos de Antropologia Cultural.

85
fisiocratismo que, nos inícios do século XVII, informaram as políticas do ministro de
Pedro II, Luís de Meneses(…) e com elas ferindo outros interesses instalados(…).”157
Com efeito,
com a entronização de D. José e a chamada ao poder do que veio a ser Marquês de
Pombal, (…) veio novamente à baila a ideia da criação de uma companhia através
da qual fosse possível acudir o estado caótico da economia do Grão-Pará e
Maranhão, derivado da falta de braços e, por forma a assegurar o abastecimento em
mercadorias essenciais, por meio de carreiras regulares de navios com Portugal. Para
atingir esse objetivo era necessário possuir capitais, estar na posse de uma navegação
eficiente e criar recursos e condições para o desenvolvimento da agricultura, da
indústria e do comércio. Foi a esse empreendimento que Marquês de Pombal se
lançou (Carreira, 1969:31).

Instituída em junho de 1755 (Carreira, 1969:32), pelo alvará de 28 de novembro de 1757,


a Companhia ficou com o comércio exclusivo das ilhas de Cabo Verde e suas anexas, e
da Costa da Guiné, desde o Cabo Branco até ao Cabo das Palmas inclusivamente, para
um período de vinte anos,158 colocando “a classe terratenente e todo o resto da sociedade
cabo-verdiana sob o controlo sugador da burguesia comercial metropolitana.”159 Cabo
Verde conhecerá momentos verdadeiramente difíceis durante a vigência desta
companhia.
Tendo o monopolio da importação de escravos, vendia estes pelo dobro do preço,
resultando d´isto uma grande falta de escravos, e como consequência o abandono
completo da cultura do algodão, que por eles era feita, e a morte da industria de
pannos, que constituia uma das principaes riquezas do povo das ilhas (Barcellos,
Parte III, 1899:54).

Em relação à ilha de Santo Antão, em agosto de 1759 lavrou-se o auto de posse do


Capitão-mór Pedro Cardoso,
na qualidade de administador geral da Companhia do Grão-Pará e Maranhão, d´estas
ilhas de Cabo Verde, Terra firme da Guiné, de tudo o que pertencra a D. José
Mascarenhas, sendo a posse dada pelos juízes ordinários, que consistiu em entregar-
lhe nominalmente a ilha e o mais que administrara D. José, em vista de uma carta
régia mandada passar pelo juiz de Inconfidencia,e por elle assignada,o
desembargador Pedro Gonçalves Cordeiro Pereira, porque tudo ficava pertencendo

157 Rebocho, Nuno (2018). Histórias da História de Santiago (Cabo Verde). Praia: Livraria Pedro Cardoso, pp. 53-54.
158Para além da bibliografia existente sobre a ação desta Companhia em Cabo Verde, nomeadamente a de António
Carreira referenciada neste trabalho, sugiro a leitura da documentação disponível no Arquivo Nacional de Cabo Verde
(doravante ANCV), designadamente as ordens, as cartas régias e as cartas patentes da Companhia Grão-Pará e
Maranhão e Provisões – Lv. 0010, Secretaria Geral do Governo (doravante SGG).
159 Correia e Silva, António (2004). Combates pela História. Praia: Spleen edições, p. 121.

86
á fazenda de sua majestade. Tendo falecido o ouvidor geral n´este anno de 1759, foi
nomeado em 1760 para esse cargo o dr. Carlos José de Souto e Mattos,
desembargador e cavaleiro professo na Ordem de Christo, (Barcellos, Parte III,
1899:27-28).

Nesta ilha, a administração da Companhia foi desastrosa, porquanto, os administradores


exerciam “grandes vexames, obrigando à força o povo a trabalhar e não lhe dando de
comer.”160 Em face a esta situação, o Bispo D. Fr. Jacintho Valente161 solicitou à Sua
Majestade “para lhe conceder uma embarcação para ir fazer a sua visita às ilhas,
independente da Companhia do Grão-Pará e Maranhão, pelas vexações que encontrou no
administrador da de Santo Antão” (Barcellos, Parte III, 1899:44).

Esta Companhia, em Santo Antão vulgarmente chamada Companhia de logração, foi


finalmente extinta em agosto de 1777 (Barcellos, Parte III, 1899:58 e 78), extinção
oficializada em 1778, por decreto da rainha D. Maria I162 (Cunha Saraiva,1938:36),
deixando as ilhas de Cabo Verde e particularmente a de Santo Antão, exaustas, com
enormes problemas a serem resolvidos.

160Barcellos, Christiano José de Senna (1899). Subsídios para a História de Cabo Verde e Rios da Guiné, Parte III,
Lisboa: Academia Real das Ciências, p. 44.
161 Com a morte, em 1747 do bispo D. Frei João de Moreira, o bispado de Cabo Verde ficou vago. Situação que
prolongou até a eleição para o cargo de D. Frei Pedro Jacinto Valente, em 29 de janeiro de 1753, Freire da Ordem de
Avis, natural de Évora. Após a sua eleição, seguiu para a sede da sua diocese em Ribeira Grande na Ilha de Santiago,
em abril de 1754. Em maio do mesmo ano, chega a ilha de Santiago, e na solene entrada na diocese, aconteceu uma
série de incidentes que provocou algum incómodo ao bispo. Também determinou fazer o primeiro pontifical no dia
da Ascensão, altura em que havia indulgência plenária por concessão pontifícia. Entretanto, à sua casa foram muitos
Cónegos pedir-lhe para adiar essa festividade, dando tempo de se mandar divulgar nas várias freguesias da Ilha de
Santiago para que o povo pudesse participar no evento. Concordando com esse adiamento, o bispo foi no entanto
dissuadido pelo Dr. Sindicante Custódio Correia de Matos, com o pretexto que os Cónegos o queriam fazer demorar
para que o mesmo pudesse adoecer e morrer (dada a insalubridade da Ribeira Grande, propício para doenças
mormente para uma pessoa como Pedro Jacinto Valente que de per si tinha uma saúde frágil e, numa altura em que
se sentia uma certa urgência na mudança de capital devido a insalubridade e a presença constante dos piratas que
criavam uma certa instabilidade em Santiago). Custódio Correia de Matos, que se encontrava em Cabo Verde em
sindicância às ilhas do Sal, S. Nicolau e Santo Antão, ofereceu diligenciar no sentido de transportar na sua companhia,
o então bispo de Cabo Verde, D. Frei Pedro Jacinto Valente para a ilha de S. Nicolau, por ser uma ilha mais saudável
do que Santiago. Concordando, o bispo decidiu não alterar a data da festividade e ultimar a sua viagem para S.
Nicolau, onde permaneceu até 1755, ano em que partiu para Santo Antão. Aqui passou a residir, daqui governou o
bispado, de 23 de fevereiro de 1755 até 19 de janeiro de 1774, ano em que veio a falecer. Após a sua morte, foi
sepultado em frente da Ermida de Nossa Senhora da Penha de França por assim o ter determinado no seu testamento.
Pedro Jacinto Valente viveu, pois em Santo Antão, 19 anos, sem nunca sair dela deixando arruinar completamente
os Paços Episcopais na cidade da Ribeira Grande, ilha de Santiago. (Barcellos, 1899, Parte III, p.44).
162Filha primogénita de D.JoséI, foi aclamada raínha em 1777. Por motivos de saúde foi afastada dos negócios públicos
em 1792, tendo o príncipe D. João tomado conta do governo em nome da sua mãe até 1799, ano em que passou a
governar em seu próprio nome, com o título de Regente.

87
A Companhia do Grão-Pará e Maranhão cumpriu integralmente o seu papel. Nos
seus vinte anos de vigência extorque das ilhas lucros fabulosos à custa da ruína da
classe terratenente, do lançamento do campesinato livre na indigência e da
submissão do aparelho burocrático existente. A fome, a terrível fome de 1773-1775,
facilita a tarefa. Os cabo-verdianos, sejam quais forem a sua classe social, cor ou
ilha, sentir-se-ão doravante discriminados e de alguma forma espoliados pela
metrópole. O ressentimento enraíza-se relativamente ao Rei e ao Reino. O
sentimento de rejeição à relação colonial está já instalado (Correia e Silva,
2004:121).

Por outro lado, ainda nessa altura a ilha de Santo Antão convivia com a escravidão, num
triste estado de servidão, chegando ao ponto de serem excluídos dos empregos públicos,
civis e militares, o que já não se verificava em muitas das outras ilhas do arquipélago.
Face à situação, foi dirigida à sua Majestade uma representação concebida nos seguintes
termos:
Tendo os habitantes das outras ilhas a incomparável felicidade de nascerem seus
vassallos, livres de toda a escravidão, só elles, havendo passado em tempos
anteriores o domínio dáquellas ilhas ao poder dos donatários délla, se viram ligados
a uma escravidão predial sem se saber nem constar qual fosse o titulo e auctoridade,
ou o poder legal, que os pudesse privar da sua natural liberdade para os reduzir a
uma esquecida escravidão desconhecida n´este reino e seus domínios, e nunca
praticada n´elles, excepto com os infelizes supplicantes, e por isso recorriam á
piedade de sua majestade para os livrar da servil condição com que depois da
extinção do ultimo donatário d´esta ilha passaram ao seu domínio, e se conservam
ainda até ao presente como escravos da real fazenda (Barcellos, III, 1899:85-86.)

A este pedido, Sua Majestade respondeu com o decreto de 8 de janeiro de 1780,


declarando os referidos moradores da ilha de Santo Antão livres e isentos de toda a
sorte de escravidão, qualquer que ella seja; que da data d´esta em deante sejam
reconhecidos, tidos e havidos por vassallos meus livres, sem differença alguma dos
habitantes das mais ilhas de Cabo Verde, e gosem como taes dos meus privilégios,
isempções e liberdade, concedidas pelas minhas leis aos referidos habitantes, sem
que possa servir de obstáculo aos da ilha de Santo Antão, para occupar os empregos
públicos, postos militares e outros logares de honra, a condição de escravos em que
até agora viveram, a qual hei por abolida, extinta e acabada, como se nunca houvesse
existido ( Barcellos, III, 1899: 86).

Porém, mesmo depois deste decreto, foram introduzidos novos escravos pelos
proprietários rurais como mão-de-obra necessária, porquanto a escravatura continua uma
realidade na ilha. Em 1841, por exemplo, Chelmicki escreve que Santo Antão,“terá
quinze mil habitantes entre pretos, brancos e mulatos, todos livres, pois não chega a

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duzentos o numero d´escravos.”163 Entretanto, o número de escravos tendia a aumentar,
conforme se constata no quadro abaixo indicado.

Tabela 1. Relação dos senhores proprietários de escravos na ilha de Santo Antão, em 1856
Nº Nome de proprietário Residência Nº de escravos

1 António José de Oliveira Boca Figueiral 1


2 Eliseu Manuel da Silva Chão de Boca 3
3 Luís Bento Silva - 2
4 Pedro G. Teixeira - 2
5 João Baptita Barros Leite Paúl 1
6 Pedro José de Morais - 5
7 António Manuel dos Santos - 2
8 António José da Conceição - 1
9 António Manuel Pinto - 1
10 José António Serrão - 2
11 Hrdeiros de Margarida Leite - 1
12 Manuel Graça Silva Chã da Banda 5
13 Pedro Miguel da Fonseca - 1
14 Cristóvão António dos Santos - 1
15 Simão António Ramos - 2
16 Pedro Manuel António - 1
17 Inácio Manuel de Melo Campo do Cao 1
18 Serafim José de Oliveira Boca de Figueiral 5
19 Teresa Sofia - 1
20 Vicente Pires Ferreira Lisboa 3
21 Joaquim Barros Pires _ 3
22 Serafim Pires Ferreira - 1
23 Zacarias Luís de Melo - 1
24 António José da Costa Garça 1
25 Clara Francisca Barros - 2
26 Padre Paulo Rodrigues de Sousa - 1
27 Maria Monteiro da Graça - 1
28 António Pedro Silva - 2
29 Barbosa da Graça Jesus Silva - 2
30 Joaquim António Ramos - 1
31 Ana Monteiro Ramos - 1
32 Luís António de Melo - 4
33 Doroteia Spencer Melo - 2
34 Maria Doroteia Melo - 8
35 Francisca Maria de Lima - 1
36 Joaquim José Silva - 1
37 Manuel Luís Lima Melo - 1
38 António Pires Ferreira - 3

163 Chelmicki, op. cit. p. 12.

89
39 António Lopes da Fonseca - 1
40 Maria Patrocínio Lima - 2
41 António Joaquim de Barros Paúl 9
42 Júlio Cândido Ferreira - 14
43 Maria Laurentina da Graça - 5
44 Júlio Cândido Martins - 4
45 Matilde Rosa Silva - 3
46 Teófilo José Medina - 1
47 L. Pedro de Lima - 8
48 Antão Pedro de Lima - 2
49 Padre Joao de Deus Monteiro - 1
50 José Carlos de Lima e Maria dos - 1
Satos Oliveira
51 Joaquim José de Oliveira - 1
52 José Boaventura Leite - 5
53 Carlos António Gomes d´Afonseca - 6
54 Maria Josefa Silva - 3
55 Manuel Bento Silva - 1
56 Maria Oliveira Lima - 1
57 Violante Maria da Costa - 2
58 Joaquim dos Santos Livramento - 1
59 António Gonçalves da Rosa - 4
60 Vicente Pedro Chantre - 1
61 Ludovina Francisa da Graça - 1
62 Narciso Martins - 1
63 Manuel Ferreira Nobre - 2
64 Inocêncio Manuel de Melo - 3
65 Vicente Chantre - 4
66 Francisco Mª Bau - 2
67 J.J.e Silva - 2
68 Carlos José de Morais - 1
Total 169
Fonte: ANCV-SGG. Lv. 871 - Administração do Concelho da Ilha de Santo Antão.

As informações contidas no livro de registo de escravos acima referenciado, dão-nos


conta de cento e sessenta e nove escravos existentes na ilha, “dos quaes oitenta e nove
pertencem ao sexo masculino e oitenta ao sexo feminino.”164As informações vão desde
o sexo dos escravos às observações sobre os mesmos, passando pela naturalidade e os
ofícios por eles desempenhados. Interessante observar que no tocante à naturalidade
apenas dezassete são referenciados como naturais da Guiné, sendo os restantes das outras
ilhas do arquipélago de Cabo Verde. No capítulo observações, consta que cincoenta e

164 ANCV- S.G.G. Lv. 871 - Administração do Concelho da Ilha de Santo Antão, 29 de Março de 1857.

90
quatro escravos foram libertados pelos respetivos senhores, entre 1856 e 1857, vinte
foram mortos, nove terão falecido.

Uma leitura atenta deste livro permite-nos ainda constatar outros fenómenos,
nomeadamente a resistêncis escrava nesta ilha, consubstanciada em fujas, conforme se
depreende dos exemplos que a seguir se enunciam:
 “Cândida Rofina, escrava de António José da Costa, morador na freguesia de São
Pedro Apóstolo, 21 anos, tem algumas cicatrizes de bexigas, trabalhadora, anda
fugida desde 2 do corrente mês de Maio, foi registrada por lembrança em 24 do
mesmo mês de Maio.”165
 Boaventura Thomazia, masculino, escravo de Pires Ferreira, morador na freguesia
de Santo António das Pombas, nascido na Boa Vista, 22 anos, cor preta,
trabalhador, anda fugido desde 2 de Maio corrente, registrado por lembrança em
26.”166
 José Narcizo, escravo de Luís Pedro de Lima, morador na freguesia de Santo
António das Pombas, 26 anos, cor preta, estatura alta, tem uma cicatriz na barba,
trabalhador, anda fugido desde 1º de Maio corrente, foi registrado por lembrança
em 28. Recolheu a casa de seu senhor em 5 de Junho de 1856. Livre pelo seu
senhor.”167

Como disse anteriormente, outro problema não menos bicudo e que persistentemente
acompanhou a história desta ilha foram as fomes, “a pior manifestação da pobreza,” como
diria Josué de Castro.168Santo Antão foi fustigada por esta calamidade, particularmente
durante os anos de dominação pela Companhia do Grão-Pará e Maranhão, referida
anteriormente.169 A mais conhecida foi a iniciada em 1773.
Em abril de 1773 enviou o governador 20 moios de milho para Santo Antão para a
socorrer, sendo 6 do governador e os 14 restantes dos capitulares e mais pessoas que
os deram como esmolas. A grande miséria de Santo Antão atribuiu-a o governador
ás regalias da Companhia-do-Grão-Pará, que elle considerava como contrabandista

165 ANCV- SGG. Lv 871, Registo de escravos de Santo Antão, 1856, fl. 5v-6f.
166 Idem, ibidem, fl. 8v-9 f.
167 Idem, ibidem, fl. 12 v- 13 f.
168 Castro, Josué de (1960). O Livro Negro da Fome. São Paulo: Editora Brasiliense, p. 27.
169Durante o período da administração a Companhia do Grão-Pará e Maranhão, foram muito frequentes, sendo a maior
a de 1773-1775, que atingiu todas as ilhas do arquipélago.

91
de pannos, de urzella e de tudo mais. A ilha estava entregue á companhia, á sua
população, de 11.000 almas, restava apenas uma ribeira livre para colher fructos; as
outras estavam incultas na maior parte e só eram concedidas por arrendamentos pela
citada companhia, cujas rendas consttiuiam receita da fazenda real. Ao povo não
convinha arrendamentos pela pouca seriedade da companhia, que sem mais fórmula
de processo tirava, para dar a outros por qualquer interesse e paixões a particulares,
os terrenos ao arrendatário, depois d´este ter dispendido trabalho e capital para os
cultivar. Os abusos da companhia estendiam-se também até aos foreiros e não tinham
fim. O governador pediu para que alguns terrenos fossem concedidos de aforamento,
pois que julgava ser o único meio de se precaver contra as fomes n´aquella ilha e
indicava que se poderia conceder as ribeiras: Alta, de que se utilizava um único
arrendatário; do Paul, quasi toda inculta e que apenas servia de regalo à companhia,
onde tinha uma casa; da Janella, que estava em poder dos escravos da fazenda real;
e as terras incultas e bravias da Corda e Pico da Cruz (Barcellos, Parte III, 1899:57).

No início dos anos noventa, o arquipélago é de novo assolado por uma grande fome que
só na ilha de Santo Antão deixou cerca de 800 vítimas (Carreira, 2000:201). E foi sob o
espectro da fome que a ilha entrou no século de oitocentos.

Sem a pretensão de fazer o mapeamento das fomes ocorridas no século XIX, realço
aquelas que foram tidas como as mais expressivas:
 A de 1804 que durou dois anos, conhecida em Santo Antão por fome de tôco,
pelo facto de a falta de alimento “obrigar o povo a comer o tronco das bananeiras,
ali mais conhecido por tôco.”170
 A de 1824, também de dois anos, provocada essencialmente pela iregularidade
das chuvas a partir desse ano.
 A de 1830-1833, a mais calamitosa do século XIX. “Nenhum outro período das
fomes anteriores matara tanta gente nas ilhas. Calcula-se que morreram, durante
esses anos, trinta e três mil e seiscentos pessoas, das quais quatro mil eram
escravos.”171

Francisco Lopes da Silva afirma que, “de todas as ilhas, parece ter sido a de Santo Antão
a mais atingida, que viu a sua população reduzida a metade. Dos 20.000 habitantes que

170 Carreira, op. Cit., p. 202.


171 Barreno, Maria Isabel (1994). O Senhor das Ilhas. Lisboa: Editorial Caminho, p. 271.

92
tinha, apenas 11.000 sobreviveram no ano de 1832.”172 Por sua vez, Senna Barcellos, nos
informa que
a crise alimentícia de 1830 a 1833, que, n´esta ilha levou á sepultura mais de 16:000
habitantes, moveu o governador a crear alli companhias de pesca, aproveitando
alguns elementos que encontrou para a realização do seu projecto. Estes elementos
encontrara elle em cinco ribeiras, que, pelas suas riquezas agrícolas, embora
estivessem em perfeito abandono, ofereciam todas as vantagens para
estabelecimentos de pesca, demais que n´ellas se contavam 27 embarcações
aproveitáveis para o exercício d´essa industria. Calculava o governador que as 27
embarcações empregavam immeditamente 336 homens, que podiam sustentar, a 3
pessoas cada um, 1:008 almas (Barcellos, 1899, Parte IV: 111).

Numa compilação de dados sobre a evolução da população cabo-verdiana que António


Carreira efetuou a partir de estimativas, contagens e recenseamentos, estimou que em
1832 a população de Santo Antão era de 18.000 habitantes, para, em 1867 ver-se reduzida
para 14.643.173 Esta fome, que atingiu todas as ilhas, deixou marcas profundas em Santo
Antão, onde dizimou cerca de 13.000 pessoas (Carreira, 2000:105). Ela, a seca, coincidiu
com o período em que Manuel Antóno Martins174 foi Perfeito das ilhas de Cabo Verde.
Nesta qualidade, em 1833, apresentou uma proposta que consistia em substituir as
culturas da vinha por cereais e legumes, no sentido de remediar o cenário da fome severa.
Meu pai mandou recado a Gustavo de que era necessário convencer os agricultores
a substituir a vinha por plantações de milho, para sustento das populações. Ou por
café, nos locais propícios, pois que o café era uma riqueza explorável, enquanto o
vinho não. Gustavo nada fez; não quis, ou não conseguiu. Meu pai foi então à ilha
(…) (Barreno, 1994:270).

Assim, em março de 1833, reunido o Senado da Câmara da ilha de Santo Antão e outras
autoridades competentes, Manuel António Martins apresentou a proposta de reformar a
cultura dos terrenos da ilha em benefício da agricultura em prol do bem das suas gentes
massacradas pela fome.

172Silva, Francisco Lopes da (1989). Repercussões da fome de 1830 1833 na imprensa estrangeira da época.In Tribuna,
16 de março de 1989. p. 4.
173Carreira, António (1969). A Evolução demográfica de Cabo Verde. In Boletim Cultural da Guiné Portuguesa, nº
XXIV, pp. 475-500.
174Um reinol que se enraizou em Cabo Verde, um dos maiores escravocratas da 1ª metade do século XIX, fez fortunas
em quase todas as ilhas, sendo os maiores feitos nas Ilhas da Boa Vista e do Sal da qual foi promotor de povoamento
e exploração efectivos. Desempenhou vários cargos, chegando a ser Prefeito de Cabo Verde. Morreu em 1845 e foi
sepultado no Cemitério da Povoação de Santa Maria. Os seus feitos foram eternizados no romance O Senhor das
Ilhas, acima referido.

93
1º. Todo o lavrador ou proprietário de vinhas, que quizer receber alguma porção de
milho para imediatamente o semear ou fazer plantar em terrenos que tenham vinhas
ou em outros que de donde com a mesma certeza se possa esperar a colheita certa;
elle se obriga a suprir gratuitamente em beneficio do plantador além da semente que
cada hum quizer receber dobrada quantia de mantimentos para auxilair a sua lavoura.

2º. Que todo o lavrador que em proporção das vinnhas que tiver se esmerar em fazer
huma boa plantação seja em logar das vinhas, ou em outro qualquer terreno, e que
em resultado da sua plantação mostre hum bom êxito na produção, ficará isento dos
Direitos do vinho, que colher em suas vinhas, estabelecido no artigo 4º das
Providencias, que a Junta da Real Fazenda manda dar a execução.

3º. Que para se verificar a boa ou má diligencia do lavrador, serão suas plantações
de milho examinadas pelo dito comendador Manuel Antonio Martins, ou pessoa de
sua muito particular aprovação em fins de julho, e quando se conheça que nada
trabalhou, e o resultado da sua plantação é nenhuma, ficará o lavrador obrigado ao
pagamento dos mantimentos que receber, e a colheita das suas vinhas sujeitas aos
direitos estabelecidos.

4º. Deverá á distribuição das sementes e mantimentos para auxiliar a lavoura, assistir
o Juiz ordinário com seu escrivão para conhecer as pessoaos a quem dá, se são, ou
não, das que teem vinhas ou terras e que possam semear, fazendo-se hum termo, e
assignando cada hum de per si a verba da quantidade que receber (Barcellos, Parte
IV, 1899:17).

A proposta foi aceite e para a sua materialização foi solicitada ao Governador um homem
“capaz para servir de inspector da agricultura a fim de vigiar e fazer cumprir as condições
do acordo” (Barcellos, Parte IV, 1899:17).Outrossim, Manuel António Martins enviou
para Santo Antão “cem moios de milho para alimentação e sementeira dos que
arrancassem as vinhas.”175

outras adversidades naturais apoquentaram a ilha de Santo Antão ao longo da segunda


metade do século XIX, agudizando as fomes, na sequência dos maus anos agrícolas
provocadas pela seca e/ou pelas cheias decorrentes das chuvas torrenciais.
Num relatório datado de 13 de outubro de 1881, enviado ao Secretário Geral do Governo,
o Administrador do Concelho da Ribeira Grande, informa que naquele ano “as águas
tinham sido abundantes e as enchentes, por vezes, ainda que momentaneamente,
interromperam as comunicações entre os três bairros que compõem a vila.”176 No mesmo
relatório pormenoriza uma situação preocupante vivida pelos moradores entre os dias 4 e
6 de agosto de 1881.

175 Barcellos, Christiano José de Senna (1899). Parte IV, p. 17.


176ANCV-SGG.Papéis avulsos. Correspondência recebida da Administração do concelho da Ribeira Grande – janeiro
/ dezembro de 1881.

94
Choveu continuamente até as 4 horas da tarde, começando a esta hora a chuva a ser
torrencial. As duas ribeiras foram engrossando e às sete horas da noute já se tinham
transformado em caudalosos rios. As oito horas ouviram-se alguns gritos de socorro,
e eu e alguns cavalheiros, tivemos de sahir para a rua já completamente inundada.
(...) mulheres desgrenhadas bradavam pela protecção divina! Creanças corriam como
loucos pelo meio da água! (...) a ribeira galgava pelas ruas, penetrando na villa e
arrastando pedras e fructos.177

Trata-se de um relatório minucioso, suficiente para percebermos o grau de prejuízos que


as chuvas torrenciais e outras intempéries traziam e trazem para uma ilha adversa como
Santo Antão. Em 1850 encontramos informações referentes a um temporal que vitimou
pessoas e animais, devastando a ilha, causando “grandes estragos nas casas e nos campos
cultivados.”178

Estas calamidades, designadamente as fomes, se arrastaram para o Santo Antão do século


XX, provocando reações no seio da população. Por exemplo, em 1903, no concelho da
Ribeira Grande, os habitantes da Freguesia de Santo Crucifíxo fizeram uma petição para
a aberura de trabalhos públicos devido à fome179 e, em 1911, “bandos de famintos se
concentram nos pontos principais à procura de recursos.”180

Mais tarde, em 1913, no Concelho do Paúl, mais de uma centena de cidadãos da ribeira
de Janela, freguesia de Santo António das Pombas, através de um abaixo
assinado,181pediram ajuda às autoridades para debelar a fome que afetava quase a
totalidade da população, e, também, em Ribeira das Patas. Nesta sequência, foram
tomadas medidas par atenuar a fome nesse concelho, isto é, “abriram-se postos para a
distribuição de cachupa e esmolas.”182
A fome n´esta freguesia atingiu as maiores proporções se não for acudido a tempo
morrerá muito dos nossos irmãos (…) os famintos roubam tudo, era conveniente V.

177ANCV-SGG, Cx. 124. Correspondência recebida da Administração do concelho da Ribeira Grande –


janeiro/dezembro de 1881.
178ANCV- SGG, Cx. 124. Correspondência recebida da Administração do concelho da Ribeira Grande –
janeiro/dezembro de 1881.
179ANCV- SGG, Cx. 451. Petição dos habitantes da freguesia de Santo Crucifixo para a abertura de trabalhos públicos
devido à fome (1903).
180ANCV-SGG, Cx. 263. Informação sobre o estado da ilha de Santo Antão no mês de agosto de 1911, papéis avulsos.
181ANCV- SGG, Cx 454. Medidas para atenuar a fome no Paúl (Janela): criação de postos para a distribuição de
cachupa e esmolas no Paúl (Janela) 1913.
182 Idem, Ibidem.

95
Exª, mandar abrir obras publicas onde o povo achar que ganhar para manter a vida
(…) estes trabalhos devem ser pagos com géneros alimentícios e uma piquena parte
a dinheiro para comprarem roupa.183

Foi nestes termos que o administrador do Concelho da Ribeira Grande se dirigiu ao então
Governador da Província de Cabo Verde, relativamente à situação vivida na ilha em 1916.

No ano seguinte, informa o Governador que “a crise se apresentava assustadora. (…) Há


poucos dias visitei o SW desta ilha, onde a miséria é grande, vendo-se algumas povoações
e varias casas isoladas, abandonadas por completo”.184 Situação que se agravou nos anos
que se seguiram, de tal modo que em 1921, a crise era tão intensa em Santo Antão, que,
“até as classes mais abastadas passavam dificuldades. A pobreza envergonhada já era uma
realidade na ilha (…).”185 Uma pobreza que se acentuará nos anos subsequentes, entre
outros fatores, devido ao aumento dos preços dos produtos de primeira necessidade. 186

Nos anos quarenta, Cabo Verde mergulhou numa das maiores crises que conhecerá no
século XX, sem se sarar ainda das anteriores. De novo, Santo Antão é assolada por uma
fome sem precedentes no Cabo Verde do século XX, a de 1947.
Sem poder de compra, devido ao desemprego e sem crédito, muitos acabavam por
morrer vítimas de inanição. A fome continuaria a fazer as suas vítimas na ilha ao
longo dos anos e em 1945 foi proposto a abertura de trabalhos públicos no Concelho
do Paúl para debelar a crise.187

Nessa altura, Santo Antão enfrentara uma das maiores fomes do século XX ocorrida em
Cabo Verde.188
O povo cabo-verdiano enfrentou, durante toda a sua existência, períodos cíclicos de
crises sociais e económicas provocadas pelas secas, em proporções tais que se
traduziam por vezes em muitos milhares de mortos. O último período de seca com

183 ANCV- SGG, Cx. 454. Oficio de 8 de abril de 1916 par ao Govevernador Abel Fotoura da Costa.
184 ANCV- SGG, Cx 455. Relatório do Governador sobre o estado da Província, datado de 10 de maio de 1917.
185 ANCV- SGG, Cx 689. Relatório sobre o estado do concelho da Ribeira Grande no mês de abril de 1921.
186ANCV-SGG, Cx. 273. Relatório sobre o estado do concelho da Riberia Grande, no qual divulga-se, entre outros, a
grave situação de crise alimentícia então vivida, devido à falta de chuvas, com impactos na subida de preços dos
produtos de primeira necessidade (1926).

187ANCV-RPSAC, Cx. 109 . Proposta para a abertura de trabalhos públicos nas diversas freguesias do Paúl, para
debelar a grave crise que o concelho vivia (1945).
188Sobre as fomes durante esse período e os seus efeitos sociais, para além da bibliografia indicada, sugiro a leitura de
Lopes, Manuel (1985). Os Flagelados do Vento Leste, Lisboa: edições 70.

96
essas proporções verificou-se entre 1947 e 1948 e é vulgarmente tratatado por fomi
47 (Jesus, 2016:49-50).

Num comunicado divulgado no decurso de uma conferência de imprensa em Estocolmo


no dia 14 de abril de 1971,189 Amílcar Cabral diz o seguinte:
Em 223 anos (1747-1970) o povo de Cabo Verde viveu mais de meio século de fome,
com um número total de vítimas superior à população actual do arquipélago. Só no
século XX, Cabo Verde já sofreu 21 anos de fome, tendo perdido, em cada uma das
“grandes fomes,” entre 15 e 35% da sua população. Em cada 4 anos dos últimos dois
séculos de dominação portuguesa, o homem cabo-verdiano, que vive em permanente
estado de “fome específica,” sofreu um ano de “fome total” (1971:140).

Em relação à ilha de Santo Antão, as fomes foram desastrosas, com impactos profundos
sobre o comportamento demográfico. E nem mesmo as diligências no sentido de
minimizar a situação190 foram capazes de impedir a elevada taxa de mortandade.191
Estas crises colocaram a nu as debilidades financeiras do governo da colónia que se
achou sem recursos para tomar medidas de fundo. A realização de obras que
passavam pela construção e reparação de estradas e edifícios ou a abertura de poços,
para as quais eram abertos créditos extraordinários era o expediente a que o governo
da colónia recorria para pagar salários a todos aqueles que estivessem em condições
físicas para trabalhar (Pereira, 2004:64).

Na sequência da fome de 1947-1948, que desgraçadamente assolou Santo Antão, o


governo da colónia pautou-se igualmente pelo lançamento de trabalhos públicos, como
nos dá conta a tabela abaixo.

Tabela 2.Santo Antão - Auxílios e subsídios concedidos pela Assistência em 1948


Natureza dos subsídios Paúl Ribeira Grande
Total 549.508$56 650.511$90
Alimentação 500.224$66 611.584$00
Vestuário 49.283$90 35.327$90
Subsídios -$- 3.660$00
Fonte: Anuário Estatístico-Praia: Serviço de Estatística, 1948, Ano XVI, p. 88. (adaptado).

189Cabral, Amílcar (1971). Sobre a situação de fome nas ilhas de Cabo Verde, comunicado divulgado no decurso de
uma conferência de imprensa em Estocolmo (Suécia), no dia 14 de Abril de 1971. In Fonseca, Luís; Pires, Olívio;
Martins, Rolando (orgs). ( 2015). Cabo Verde – Reflexões e Mensagens. Praia: Fundação Amílcar Cabral, p. 140.
190ANCV- RPSAC, Cx. 109 . Proposta para a abertura de trabalho públicos nas diversas freguesias do Paúl, para
debelar a grave crise que o concelho vivia (1945).
191Nessa altura “morreram cerca de 29.789 pessoas em todo o país, sendo que só em Santo Antão terão sucumbido
cerca de 4.245 pessoas, 2.932 só no ano de 1948” (Carreira, 1984).

97
Uma fome que terá deixado marcas profundas na psicogénese de quem a vivenciou, de
tal modo que falar do passado para muita gente de Santo Antão implica necessariamente
falar das fomes, cujo impacto na personalidade coletiva certamente, no futuro, contribuirá
para marcar os arquétipos do povo cabo-verdiano.

Ante situações de escravocracia, injustiças, calamidades naturais e fomes vividas na ilha


ao longo do seu itinarário temporal, o impacto social seria de se esperar, como se
descreverá a seguir.

2.3. A tensão social no Santo Antão dos séculos XIX e XX

Nas últimas décadas do século XIX, a ilha de Santo Antão encontrava-se, por força de
vários factores, numa difícil situação económica, e, consequentemente, numa tensão
social crescente. Situações que viriam provocar tumultos populares, numa altura em que
Cabo Verde convivia com as consequências de uma crise política e institucional ocorrida
quer em Portugal quer em toda a Europa,varridas pela mundividência do liberalismo e
respetivas revoluções liberais.192

Em relação à Santo Antão, no último quartel do século de oitocentos mergulhou-se num


clima de instabilidade social que culminou em verdadeiras revoltas populares cujas
dimensões causaram uma certa preocupação às instituições judiciais, quer nacionais quer
metropolitanas. O sentimento pró-liberal manifestava-se nesta ilha, onde se assistia a um
aumento progressivo de focos insurrecionais cuja causa remota baseava-se nos protestos
populares contra as arbitrariedades das autoridades. O cenário era de
um ambiente minado pela fome e sufocado por uma sobrecarga tributária
incomportável para a exploração agrícola, por sua vez depauperada pela crise que se
projectava de anos anteriores. A economia estava paralisada decorrente da escassez
da moeda em circulação (Ferreira, 1999:31).

192Em Portugal, o regime liberal inicia-se em agosto de 1820 quando um movimento, protagonizado por militares e no
qual esteve implicada uma organização secreta na qual pontificavam civis, o instaura sem derramamento de sangue.
Os acontecimentos ocorridos na metrópole vieram a repercutir-se nas suas possessões ultramarinas, sendo a
independência do Brasil, ocorrida em 1822, a mais notória dessas repercussões.

98
Em 1886, despoletou uma grande revolta, que se traduziu num grito de descontentamento
de uma sociedade rural ameaçada nas suas bases económicas e na sua organização social,
bem como na estruturação do poder político que caracterizaram Cabo Verde nos anos
difíceis de implementação do liberalismo em Portugal.

Esse grito de descontentamento viria a culminar na grande revolta despoletada em 1894.


Esta não consistia propriamente no dilema Monarquia ou República, como monárquicos
e republicanos pretendiam, nessa altura (1890-1910), fazer crer. Era muito mais profunda
do que isso e muito anterior à formulação desse dilema. Foi o reflexo da conturbada
situação do arquipélago nas últimas décadas do século XIX, em parte, responsável por
momentos de crispação social traduzida em dissensões populares, agravada ainda pelas
rivalidades crescentes entre os dois concelhos vizinhos, Riberia Grande e Paúl, que
dificilmente chegariam a um entendimento em matéria de administração, de que falarei
mais à frente.

Na viragem do século XIX para o seguinte, iniciou uma nova realidade em Cabo Verde.
A monarquia portuguesa aproximava-se do seu fim, a República anunciava-se. Situação
que, naturalmente, não podia deixar de repercutir no ultramar português onde, no caso de
Cabo Verde, há muito aspirava-se uma mudança de regime, na expetativa de uma
melhoria das condições de vida, designadamente em matéria de justiça social.

Em relação à ilha de Santo Antão, os reflexos desta conjuntura surgiram com maior
incidência nas conturbadas décadas de oitenta e noventa de 1800, com reflexos evidentes
na viragem para o século XX. Uma leitura muito atenta da realidade, mostra-nos que, nos
recônditos dos concelhos do Paúl e da Ribeira Grande, jogava-se um embate entre os
reflexos do antigo regime rural, agarrado a costumes seculares e os ideais republicanos,
protagonizados pelo liberalismo português.

Relativamente à tradicional rivalidade entre Ribeira Grande e Paúl, se é verdade que no


século XX não temos notícias de confrontos diretos, o mesmo não se pode dizer em
relação à vila Ribeira Grande e a de Maria Pia (Ponta do Sol). Após a transferência da
sede do concelho para esta vila, iniciou uma crescente rivalidade entre as duas vilas, de
tal modo que qualquer motivo podia servir para atritos entre os residentes.

99
A título de exemplo, cito um caso ocorrido em 1917. Numa representação dirigida ao
Ministro das Colónias, os habitantes da vila da Ribeira Grande solicitaram a transferência
da sede do concelho para esta vila, alegando ser “(…) mais agradável, e o povo entender
que assim devia ser tendo em consideração, o mesmo povo, também, o bem geral dos
seus interesses, e das suas comodidades, aduzindo razão de o concelho já ter existido
naquela Vila da Povoação, há muitos anos.”193

Situação que causou alguma efervescência de ânimos, ao ponto de ser averiguado através
de um inquérito levado a cabo pela Câmara Municipal. Foi nesse clima de instabilidade
e de exaltação popular que as ilhas de Cabo Verde entraram no século XX, nos dez
primeiros conturbados anos que culminaram com o derrube da monarquia pelo partido
republicano português, a 5 de outubro de 1910, para, quatro anos depois, eclodir o
primeiro conflito mundial (Primeira Guerra Mundial) que acabou por dilacerar as
fracturas da sociedade e da política portuguesas, com efeitos perversos nas colónias
ultramarinas.

2.4. A dinâmica administrativa da ilha entre os séculos XVIII e XX

Como disse anteriormente, à semelhança do que aconteceu com as outras ilhas, o sistema
de doações precipitou uma política administrativa que obedeceu à implantação na ilha de
Santo Antão do sistema de donatarias-capitanias concedidas a capitães donatários. Até
1732 a ilha esteve, para efeitos de justiça e administração, sob a alçada da ilha de
Santiago. Situação alterada a partir do mesmo ano, altura em que devido a problemas que
afetavam os moradores, Sua Majestade ordenou que o desembargador geral, José da Costa
Ribeiro, visitasse Santo Antão e o informasse da situação do governo nessa ilha.

Concluída a visita, o desembargador, prestou informações ao Rei “ sobre o estado do


governo da ilha e liberdade que viviam os seus moradores, a que era preciso dar-se
remédio, assim em do espiritual como do temporal, propondo o que se deveria fazer.” 194

193ANCV- SGG, Cx. 517. Processo de inquérito a fim de averiguar os motivos da exaltação de ánimos na Ponta do Sol
e na Povoação, bem como das causas que originaram um latente conflito entre oadministrador efetivo e o Secretário
da Câmara da ilha de Santo Antão, Fevereiro de 1917.
194 Barcellos, Senna (1899). op. cit.; Parte II; p. 265.

100
Na sua carta dispunha que a ilha da Santo Antão possuía mais de trezentos e sessenta
fogos só na povoação da Ribeira Grande (Santa Cruz), a de São Nicolau mais de duzentos
e sessenta,
ambas com capacidade suficiente para se criarem villas com juizes ordinários,
veriadores e mais oficiais da Câmara e outros a ella concernentes pois em o número
dos moradores de cada uma destas villas não é possível deixarem de haver vinte
quatro pessoas capazes de servirem doze em cada três annos e se tirarem delles os
mais officiais.195

O monarca absorveu as propostas do desembargador e, por carta de 27 de agosto de 1731,


autorizou-lhe que pusesse em prática, na parte aplicável, as leis do Reino. Dando
cumprimento às ordens régias, em maio de 1732, Costa Ribeiro visitou a ilha de Santo
Antão e, apoiando-se nos poderes que lhe foram concedidos pela carta régia, elevou à
categoria de Vila a Povoação de Santa Cruz com a denominação de Ribeira Grande e,
criou a Câmara Municipal com juízes oficiais competentes segundo as ordenações régias.
Assim sendo, Santo Antão passou a contar com uma administração e justiça próprias,
numa altura em que a vila mantinha um ritmo de crescimento satisfatório, a crescer em
número de habitantes, com repercussões positivas na vida económica e social da ilha.

Em matéria de justiça, o concelho de Santo Antão, criado em 1732, constituía um julgado


ordinário abrangendo a ilha vizinha de São Vicente. Até 1851 não foram introduzidas
alterações no figurino judicial da Província de Cabo Verde, e só a partir dessa data, a
mesma ficou dividida em duas comarcas, denominadas de Barlavento e Sotavento. Cada
comarca ficou sob a jurisdição de um Juiz de direito e um procurador régio. A sede da
comarca de Barlavento permaneceu na ilha de São Nicolau até 1874, data em que foi
ordenada a sua transferência, (decreto de 9 de dezembro), para a ilha de Santo Antão.
Situação que só viria a inverter no início do século XX, (1901) altura em que a comarca
de Santo Antão foi integrada na de São Vicente.196

Dificuldades de vária ordem continuam persistindo em Santo Antão, como aliás também
aconteciam nas outras ilhas do arquipélago e que só viriam a inverter no século de
oitocentos, ao tempo do liberalismo. Com efeito, o liberalismo oitocentista pôs mãos à

195 ANCV-SGG, Lv. 02.Ordens, Bandos, Cartas patentes, Provisões, Regimentos (1676-1747).
196Em termos judiciais, passou por um julgado municipal especial, com juiz nomeado, sob a jurisdição da comarca do
Barlavento, com sede em S. Vicente.

101
obra no sentido de acabar com o caos que imperava na administração metropolitana, com
reflexos negativos na política ultramarina e é evidente que Cabo Verde não fugia à
regra.197

Em relação à posterior legislação administrativa, é de destacar o Código Administrativo


de 1842 que, de modo geral, inverteu o ciclo descentralizador assistindo-se ao reforço do
poder central. Esta legislação
vai vigorar nas províncias Ultramarinas até finais do século XIX, e a razão desta
vigência, é exactamente o seu prudente carácter centralizador que permitirá à
metrópole manter uma prudente tutela sobre os poderes provinciais distantes e
sempre ciosos de maior autonomia (Diário do Governo, Nº 167, 19 de março de
1842).

Se é verdade que o Código Administrativo de 1842 conduziu a algumas alterações


expressivamente reveladoras das preocupações e anseios do poder local ultramarino, não
é menos verdade dizer que este código não estava adaptado à realidade das colónias
portuguesas no além-mar.198

A reforma administrativa recaída sobre a Província de Cabo Verde repercutiu fortemente


sobre a ilha de Santo Antão. Pela portaria de 3 de abril de 1867 esta foi dividida em dois
concelhos sendo um sedeado na Vila da Ribeira Grande e, posteriormente, transferida
para a Vila D. Maria Pia (atual Ponta do Sol), e outro com sede na Povoação das Pombas,
no Paúl.199 Esta divisão terá suscitada sérias divergências, como referi anteriormente.

O Concelho da Ribeira Grande integrava as freguesias da Nossa Senhora do Rosário,


Santo Crucifixo e São Pedro Apóstolo, enquanto o do Paúl as de Santo António das
Pombas e São João Batista, numa altura que a população total, nas principais freguesias,

197 Pretendia-se opor à arbitrariedade e despotismo dos capitães-generais e buscar o equilíbrio e a equidade
administrativa e política, garantidas por adequadas regulamentações legislativas. Assim, pelo decreto de 7 de
dezembro de 1836, a questão da administração dos domínios ultramarinos foi tratada por carta orgânica,
determinando que os domínios africanos formassem três governos-gerais e um particular, ficando Cabo Verde
constituído pelo arquipélago propriamente dito e pela Costa da Guiné e suas dependências.”197 À testa do governo
ficou um Governador-Geral com jurisdição sobre todas as autoridades existentes. Este, reunia simultaneamente as
atribuições administrativa e militar com absoluta exclusão de toda e qualquer ingerência direta ou indireta nos
negócios judiciais.
198No que diz respeito ao arquipélago de Cabo Verde, o decreto que aprova a organização administrativa da Província,
declara expressivamente que em Cabo Verde era regulada pelo código administrativo de 1842, naquilo que não tinha
sido alterado por legislação posterior.
199 Decreto de 23 de dezembro de 1885.

102
Nossa Senhora do Rosário, Santo Crucifixo, São Pedro Apóstolo, rondava os 14.270
habitantes distribuídos nas mais diversas atividades.

Anos mais tarde, em 1892, o concelho do Paúl foi extinto (decreto de 24 de dezembro)
ficando a ilha de Santo Antão reduzida a um concelho de primeira classe, com sede na
Vila D. Maria Pia. Ter-se-ão iniciado, a partir de então, atritos entre os paulenses e os
habitantes da Ribeira Grande? A julgar pelas diferentes interpretações a propósito da
criação do concelho do Paúl, tudo leva a crer que sim.

O administrador do concelho do Paúl, manifestando a sua discordância em relação à sua


criação, alegara que tal situação tinha trazido resultados negativos porquanto os principais
serviços administrativos continuaram na vila da Ribeira Grande e, logo, não justificariam
as despesas feitas com os funcionários no Paúl. Contrariamente, houve opiniões que
consideraram que no estado de desenvolvimento em que se encontrava a ilha, tornaram-
se extraordinárias as exigências do serviço, aumentou o trabalho, e, que, portanto, seria
bastante difícil prover ao mesmo tempo às necessidades de todos e desenvolver uma
administração que assegurasse garantias a uma população tão grande como a de Santo
Antão. Esses posicionaram-se, pois, contra a extinção do concelho do Paúl.

Os administradores da Ribeira Grande, queriam impedir a criação do concelho do Paúl,


alegando que a divisão pressupunha um acréscimo de despesas com empregados
administrativos e a comissão municipal e ao mesmo tempo a redução dos rendimentos do
concelho da Ribeira Grande, cuja área ficou muito reduzida sem que para isso lhes
diminuíssem os encargos. Além disso, diziam, “os munícipes não ganharam em
comodidade porque muitas vezes os do Paúl tinham de atravessar o da Ribeira Grande
para chegarem a sede do seu concelho.”

Num relatório de 1881, o administrador do Concelho da Ribeira Grande, João Simões


Affra, dizia o seguinte:
O decreto de 3 de Abril de 1867 dividiu a ilha em dois concelhos esperando-se dessa
medida grandes resultados para o bem-estar dos povos. Infelizmente a pratica tem-
nos mostrado que o resultado foi negativo. A Alfândega, Correio, Recebedoria,
Delegação de Fazenda e todos os principais ramos da administração publica,
continuam a ter por sede a Vila da Ribeira Grande havendo unicamente no Paul um
administrador do concelho e uma comissão municipal, isto a dez quilómetros de
distância da Vila residência do Juiz de Direito. Fica o Paúl a distância de 10
103
quilómetros da Vila da Ribeira Grande, enquanto que este tem povoações ou aldeias
a muito maior distância acrescendo que a freguesia de São João Baptista pertencente
ao Concelho do Paul não tem povoação alguma que não seja mais próximo da Vila
da Ribeira Grande. (...) A junção dos dois concelhos parece-me, pois, uma medida
administrativa de subido alcance para comodidade dos povos, facilidade ou pelo
menos maior regularidade na administração da justiça e augmento da receita
disponível do município para melhoramentos locaes (ANCV-SGG, Cx. 269, 1880).

Mesmo a contragosto dos administradores da Ribeira Grande, assistiu-se à instalação do


Concelho do Paúl. Pese embora ser uma das regiões mais produtivas da época, o
Concelho, por várias vezes, foi condicionado pelos interesses de Ribeira Grande que
procurou sempre subalternizar a sua congénere. Passados, porém, menos de dez anos foi
extinto o concelho.

Houve ainda quem defendesse que a ilha de Santo Antão podia ser dividida em dois
concelhos, ainda que a sede do segundo não se situasse no Paúl, mas sim no Porto dos
Carvoeiros,200 que, devido à sua localização, daria melhores benefícios. Esta ideia não
teve aceitação tendo por base a justificação de que não existiam condições orçamentais
para a sua materialização.

Face à constante pressão por parte das autoridades de Santo Antão, particularmente de
Ribeira Grande, foi expedida uma portaria pelo Governo Geral da Província (1893)
através da qual foi extinto o concelho do Paúl passando a ser gerido pelo concelho da
Ribeira Grande que regulou a Câmara até o fim do ano económico pelo orçamento
aprovado pelo município extinto.

Em resposta à portaria que mandou extinguir o concelho, forças vivas e populares do Paúl
reagiram, pedindo a conservação do mesmo.Numa representação dirigida à Sua
Majestade, proprietários, comerciantes e lavradores do Paúl fizeram um abaixo assinado
“pedindo a graça de mandar que seja alterada a organização administrativa d´esta

200Situado na Costa Sudeste da ilha de Santo Antão, o povoado foi designado, Porto dos Escraveiros - Porto dos
Carvoeiros-Porto Novo-designações relacionadas com as principais atividades que, em épocas diferentes,
desempenhou. Primeiramente, foi o principal porto de entrada e escoamento de escravos em Santo Antão, razão pela
qual se chamou porto dos Escraveiros. Após a abolição da escravatura na ilha, no intuito de tentar apagar qualquer
vestígio relacionado com o tráfico negreiro o topónimo foi mudado para Porto dos Carvoeiros. Com a construção do
cais acostável, que foi em Cabo Verde o segundo na ordem de primazia, acabou por se justificar plenamente a
mudança do nome do Porto dos Carvoeiros para Porto Novo.

104
província na parte que pelo decreto de vinte e quatro de dezembro do anno findo de mil
oitocentos e noventa e dois extinguiu o mesmo concelho do Paúl (...).”201

O pedido foi, no entanto, rejeitado por Sua Majestade, não obstante a insistência dos
munícipes paulenses. A ilha acabou por ficar dividida em dois concelhos: o regular da
Ribeira Grande e o irregular do Paúl, sendo que nos anos 40 do século XX além desses
dois concelhos denominados de segunda classe, foi criado o posto administrativo 202 do
Porto Novo, abrangendo as freguesias de São João Baptista e Santo André.

Fig. 3. Divisão administrativa da Ilha de Santo Antão


Fonte: Recenseamento Agrícola das Ilhas de Sto Antão e S. Nicolau (1980/81). Gabinete de Inquéritos
Rurais, Ministério do Desenvlvimento Rural, p.22.

201 Ata da Sessão da Câmara do dia 21 de janeiro de 1893.


202Em 1962 o posto administrativo foi extinto e a povoação do Porto Novo foi elevada à categoria de Vila passando
esta a integrar a sede do Concelho do Porto Novo.

105
2.4.1. O Concelho da Ribeira Grande

Figura 4: Vista parcial da atual cidade de Ribeira Grande


Fonte: Acervo pessoal

Inicialmente chamada Povoação de Santa Cruz,203 a atual cidade da Ribeira Grande situa-
se na latitude 17º2” e longitude ocidental 16º39,” assente em terreno pedregoso no
confluente de duas ribeiras, Grande e da Torre, num vale cercado de altas montanhas.

Figura 5. Ribeira da Torre


Fonte: Acervo pessoal

203 Designação dada pelo então donatário da ilha, D. Francisco Mascarenhas, Conde de Santa Cruz.

106
Constituído por três freguesias, Nossa Senhora do Rosário, Santo Crucifixo, S. Pedro
Apóstolo, o Concelho da Ribeira Grande recebeu o primeiro assentamento humano na
ilha de Santo Antão, contribuíndo para isso, a existência de “águas abundantes e de bons
terrenos propícios à practica agrícola.”204 Incorporou núcleos populacionais importantes,
nomeadamente Maria Pia (atual Ponta do Sol),205 Coculi, Sinagoga, Chã de Igreja, vale
da Garça, entre outros, designadamente nas zonas altas como Pinhão, Monte Joana,
Lombo Branco.

Figura 6. Atual Cidade de Ponta do Sol


Fonte: Acervo pessoal

Figura 7. Coculi
Fonte: Acervo pessoal

204Maurício, António Joaquim (2019). Vila da Ribeira Grande de Santo Antão (1732-1975): Percurso Histórico e
Dinâmica Administrativa. Ribeira Grande: Woodmatter Unipesoal, Lda, p. 16.
205Ascendeu à categoria de vila, com a designação D. Maria Pia, em 1885, pelo decreto de 23 de dezembro, Boletim

Oficial da Província de Cabo Verde, nº nº 3, 1886.

107
Figura 8. Vale da Garça
Fonte:Acervo pessoal

Figura 9. Planalto Leste (Pinhão)


Fonte: Acervo pessoal.

Estima-se que no último quartel do século XIX, a ilha de Santo Antão contava com cerca
de 20.507 indivíduos,206 distribuídos pelos dois concelhos, cabendo o da Ribeira Grande
cerca de 6.397.207 A população foi-se aumentando consideravelmente, como se pode notar
pela leitura da tabela que se segue.

206Estatística de 31 de dezembro de 1878, considerada a mais perfeita até então realizada no arquipélago. In Carreira,
António (1985). Demografia Caboverdiana - Subsídios para o seu estudo (1807-1983). Praia: edição do Instituto
Caboverdiano do Livro.
207ANCV- SGG, Cx. 269. Correspondência recebida da Administração do Concelho da Ribeira Grande, janeiro/
dezembro de 1880.

108
Tabela 3. Mapa geral dos fogos da população do Concelho de Ribeira Grande - Administração do
Concelho de Ribeira Grande da ilha de Santo Antão, 24 de fevereiro de 1881

Total por Freguesias


Homens Mulheres
Numero de fogos

Solteiros Maiores

Solteiros Maiores
Menores de 14

Menores de 14

de 14 annos
de 14 anos
Freguezias

Casados

Casados
Viúvos

Viúvas
annos

annos
Total

Total
Nossa
Senhora 1509 1569 681 783 61 30 1580 1043 882 121 3626 6720
do Rosário
Santo
Crucifixo
S. Pedro 1165 1203 548 640 30 94 1223 726 862 55 2866 5287
Apóstolo 509 496 271 248 19 2421 475 370 352 32 1229 2263
1034
Somma 3183 3268 1500 1671 110 3278 2139 2096 208 77 14270
6549
Fonte: ANCV-SGG.Cx. 269. Correspondência recebida da Administração do Concelho da Ribeira Grande,
janeiro/dezembro de 1880.

Embora a agricultura e a criação de gado dominassem a vida económica em todas estas


povoações, a documentação oficial dá-nos conta de algum movimento comercial. No
início da década de oitenta do século XIX, as três freguesias albergavam 104
estabelecimentos comerciais, assim distribuídos: Nossa Senhora do Rosário, 94 lojas,
Santo Crucifixo, 6 lojas e São Pedro Apóstolo, 4.208 A orografia do concelho mostra-nos
o quão o isolamento constituiu um problema enorme, entre outras razões, adveniente da
falta de adequadas vias de comunicação, dificultando o seu desenvolvimento.

Figura 10. Ribeira Grande (entre Agriôes e Manuel de Joelho)


Fonte: Acervo pessoal

208 Boletim Oficial do Governo-geral da Província de Cabo Verde, 1881.

109
Para além do omnipresente problema de escassez da água, tal orografia dificultou e ainda
dificulta avanços no domínio da agricultura, devido à difícil acessibilidade dos pequenos
espaços arroteados nos escarpados declives das arribas, ou nas íngremes encostas onde
os terrenos aráveis se prolongam até elevadas altitudes.

Em relação ao isolamento das comunidades, imposta em parte pela orografia do concelho,


impunham-se medidas concretas no sentido de dotar o concelho de infra-estruturas
mínimas capazes de minimizar o problema. Neste sentido, ainda no século XIX foi
inaugurado o cais de Sinagoga, concluído o melhoramento no caminho que dá acesso ao
referido cais e da estrada que liga Ponta do Sol à vila “consideravelmente melhorada
devido as sábias medidas e dedicação do atual chefe da província,”209 assim como a
construção do caminho que ligou São Pedro Apóstolo à vila Maria Pia.

A falta de pessoas qualificadas para o desempenho de certas funções no concelho,


constituiu um outro problema. Na segunda metade do século XIX, o administrador deu
conta das dificuldades em encontrar pessoas capazes para desempenhar as funções
camarárias.

(…). Pela nossa legislação actual o número das autoridades electivas é intenso e com
dificuldades se acham hoje neste concelho cidadãos que tinham a precisa aptidão e
conhecimento para bem desempenhar as funções desses cargos, aqueles que possuem
algumas habilitações e que os poderiam servir, ou se empenham na ocasião das
eleições para não serem votados ou são aqueles que exercem lugares de nomeação
do Governo, de onde lhes resulta algum interesse.” (ANCV-SGG. Cx. 265).

Em relação à instalação própria da Câmara Municipal, o problema acabou por se resolver


em 1892, altura em que foi inaugurado o edifício do Paços do Concelho, ficando a sede
administrativa definitivamente instalada na vila D. Maria Pia.

209 ANCV-SGG. Cx. 270. Correspondência recebida da Administração do concelho da Ribeira Grande-
Janeiro/dezembro de 1882.

110
Figura 11. Paços do Concelho da Câmara Municial da Ribeira Grande
Fonte: ANCV- MDE. Álbum nº 4.

2.4.2. O Concelho do Paúl

O Município do Paúl, está localizado na costa de Santo Antão, 25º130 de longitude, Oeste
de Greenwich e a latitude Norte de 17º8, sendo o mais pequeno dos municípios da ilha de
Santo Antão. Apresenta uma área de 54,3 km2, fixando o seu centro na atual cidade das
Pombas.

Figura 12. Vista parcial da atual cidade das Pombas


Fonte: Acervo pessoal.

111
Estende-se ao interior do vale, no qual se destacam localidades como Janela, Eito,
Figueiral, entre outras. Dispõe de zonas altas relativamente importantes em termos
agrícolas, das quais Pico da Cruz é um exemplo.

Figura 13. Vista parcial do interior do concelho de Paúl


Fonte: Acervo pessoal.

Figura 14. Pico da Cruz


Fonte: Acervo pessoal.

Paúl é um concelho essencialmente rural, tradicionalmente agrícola, considerado o mais verde


da ilha e rico em recursos hídricos, com características peculiares ao nível de Santo Antão e de
Cabo Verde. O índice de pobreza insiste em acompanhar a história deste município tido, ainda
hoje, como um dos mais pobres do país.

112
Relativamente à sua dinâmica administrativa, como dito anteriormente, passou por vicissitudes
adversas ao longo de muito tempo, disputando com o concelho da Ribeira Grande. Com a
criação do concelho da ilha de Santo Antão em 1732, Paúl ficou na dependência administrativa
da Ribeira Grande e só em 1867 a ilha se desdobra em dois concelhos, Ribeira Grande e Paúl,
este último englobando duas freguesias: a de Santo António das Pombas e a de São João Batista,
cobrindo povoados tão díspares e longínquos como Ribeira das Patas, Tarrafal de Monte Trigo,
Monte Trigo, Ribeira da Cruz, albergando uma superfície de cerca de 2/3 da total da ilha de
Santo Antão. Porém, em 1893, por portaria do Governador-geral, o concelho do Paúl é extinto
e anexado à Ribeira Grande. Situação que, como disse anteriormente acabou por causar uma
onda de descontentamento e uma das causas dos tumultos de 1894 já referenciados.

Só no início do século XX, em 1917, pela portaria nº 317 de 11 de outubro, o concelho do Paúl
é reimplantado, na qualidade de concelho irregular. Em 1962 perde mais de metade do seu
território, aquando da criação do concelho do Porto Novo no qual ficaram integradas as
freguesias de São João Batista e Santo André.

2.4.3. O Concelho do Porto Novo

Não obstante constituir o concelho menos acidentado da ilha, Porto Novo apresenta
pontualmente declives extremamente acentuados, com uma paisagem de natureza vulcânica
ímpar. Aloja uma das maiores altitudes da ilha e a segunda do arquipélago, o Topo de Coroa,
com cerca de 1.979 metros. Ali, as nuvens parecem morar eternamente, envolvendo-o num anel
que flui constantemente e se expande pelas acentuadas elevações que formam o lado norte da
ilha.

Figura 15. Topo de Coroa - Planalto Norte


Fonte: Acervo pessoal

113
Apresenta um clima desértico e semi-árido com predominância de ventos quentes e secos
e, consequentemente, sofre de secas prolongadas, apresentando paisagens secas e áridas,
de uma forma geral pouco favorável á prática da agricultura.
Ocupa 2/3 do território da ilha de Santo Antão, 557 km2, confinando com os
concelhos da Ribeira Grande e do Paúl. Quase 2,5 vezes maior que a ilha de S.
Vicente; quase do tamanho da ilha de Boa Vista; um pouco mais de metade da ilha
de Santiago. Um território com mair potencialidade de crescimento a curro prazo, na
ilha de Santo Antão (Lopes, 2018:1).

O seu povoamento verificou-se relativamente tardio, “devido a escassez de recursos


naturais (água) e a dispersão geográfica.”210 Ao que tudo indica, “os seus primeiros
povoadores fixaram nas zonas de Alto Mira, Ribeira da Cruz, Martiene e Tarrafal de
Monte Trigo, devido a existência nestas localidades de algumas potencialidades
agrícolas.”211 A urbe que viria a dar nome ao concelho situa-se na costa sudeste da ilha.
Nasceu como uma pequena aldeia piscatória localizada no litoral,212 atravessada por duas
grandes ribeiras, desembarcadouro e corujinha, que a divide em três grandes áreas: leste,
centro e oeste. A aldeia foi crescendo, impulsionada pelo êxodo rural, atraído por alguma
possibilidade que o porto podia oferecer.

Figura 16. Atual cidade de Porto Novo


Fonte: Acervo pessoal.
Inicialmente integrado no Concelho do Paúl, ainda no início do século XX, Porto Novo
não era mais do que uma freguesia, designada São João Baptista, cuja sede localizava-se
em Ribeira das Patas, no interior do concelho.

210Monteiro, César (2004). Sociologia Urbana, uma Cidade-Porto em Construção: A Questão Urbana na Perspectiva
do Desenvolvimento Integrado. Mindelo: Editora Separata Direito e Cidadania, p. 98.
211 Idem, ibidem. p. 20.

114
A partir dos anos quarenta, passou a contar com um posto administrativo, como forma de
descentralizar os serviços municipalizados e servir melhor as populações das freguesias
de Santo André e São João Batista.213 Quando em 1917, reentrou em funcionamento o
concelho do Paúl, a Freguesia de São João Batista passou a pertencer ao referido
concelho.

Em 1928, ao lado de São João Batista com sede em Ribeira das Patas, aparece a freguesia
de Santo André, sedeada em Ribeira da Cruz, também no interior. Assim sendo, surgem
dois regedores, cada um com a incumbência de administrar uma dessas freguesias.

A partir da segunda metade do século XX, a indústria da extração da pozolana214


desempenhou um papel de capital importância para o desenvolvimento económico dessa
região, passando a ser produto de exportação designadamente para as outras colónias
portuguesas. Na década de cinquenta, Porto Novo tornou-se num centro comercial
importante, transformando-se num ponto de encontro dos comerciantes que vinham de
todos os recantos da ilha de S. Antão e os que vinham da ilha vizinha de São Vicente.

Esta dinâmica contribuiu, em parte, para que na década seguinte, Porto Novo adquirisse
a categoria de vila, 1962,215 ao mesmo tempo que se criou o concelho do Porto Novo,
adquirindo a sua autonomia para todos os efeitos administrativos.

Porto Novo é um concelho de adversidades e diversidades. Saindo da cidade, um dos


caminhos nos conduz ao verdejante vale da Ribeira das Patas, passando por Lajedos,
também verdejante. Dalí, seguem Ribeira da Cruz, Martiene, Altomira, localidades
vocacionadas para a agricultura irrigada.

213 Cf. o Suplemento do Boletim Oficial de 2 de setembro de 1962.


214Tendo em conta a origem vulcânica da ilha, este concelho é formado por uma quantidade de minerais comuns
principalmente o basalto, os fonolitos, os piroclásticos, e uma grande riqueza em pozolanas. Assim, com a descoberta
deste produto em Porto Novo houve a possibilidade de abertura de postos de trabalho que consistiam na extração da
pozolana das jazidas, destindas a exportação.
215 A sua ascensão à categoria de Cidade aconteceu em 2005, pelo decreto-lei n.º 78/VI/2005, de 29 de agosto.

115
Figura 17. Percurso Porto Novo - Lajedos-Ribeira da Patas
Fonte: Acervo pessoal

Figura 18. Ribeira da Cruz- Interior do Porto Novo


Fonte: Acervo pessoal

Figura 19. Martiene - Interior do Porto Novo


Fonte: Acervo pessoal
Mais a sudoeste, outro caminho nos conduz ao Tarrafal de Monte Trigo, cujo percurso
histórico e fundiário constituirá o cerne deste trabalho. No percurso, encontram-se os
planaltos Sul e Norte, vocacionados fundamentalmente à agricultura de sequeiro.

116
Figura 20. Vista parcial do Planalto Sul
Fonte: Acervo Pessoal.

Figura 21: Vista parcial do Planalto Norte


Fonte: Acervo pessoal.

Com uma densidade populacional significativamente baixa (cerca de 33 habitantes por


km2), Porto Novo é mesmo assim
o único concelho da ilha que cresceu em termos populacionais nos últimos 10 anos,
com 17.926 habitantes e que detém a mais elevada taxa de urbanização (53%).
Mantendo-se os actuais padrões de crescimento demográfico registados na última
década no município, em 2020 o concelho de Porto Novo poderá atingir cerca de
10.000 habitantes. (Lopes, 2018:1).

Elevada à categoria de Cidade em 2005,216 Porto Novo conheceu nos últimos anos
algumas transformações socioeconómicas, em parte, graças à ligação marítima com a

216Decreto-lei n.º 78/VI/2005 de 29 de agosto.

117
vizinha ilha de São Vicente, a avaliar por algumas inovações introduzidas, por um certo
tipo de turismo interno e externo que demanda, paulatinamente, essa região de Santo
Antão.

Com efeito, tido há algum tempo atrás como de pouco interesse, com a melhoria dos
transportes marítimos e a reconstrução do cais acostável de Porto Novo, o concelho é hoje
procurado por visitantes que, atraídos pela decoberta de região mais árida da ilha de Santo
Antão, ganham uma experiência diferente daquela da região norte da ilha.

Por outro lado, é notório o avanço da região semi-árida noutros setores designadamente
na agricultura de regadio, em aldeias como Tarrafal de Monte Trigo, de que falarei mais
à frente, em capítulo próprio.

118
CAPÍTULO III.

O PANORAMA FUNDIÁRIO E A QUESTÃO DOS RECURSOS


HÍDRICOS EM CABO VERDE:
O CASO DA ILHA DE SANTO ANTÃO

119
3.1. O desafio de transformar espaços vazios em terra produtiva

De início era o espaço natural desabitado. A colonização subverte esta paz ecológica,
apropriando-se da terra, tornando-a objecto cativo da vontade dos homens. Recorda-
se que a colonização implica direção e ordem, a despeito da multiplicação dos
agentes nela participantes. Existe uma centralidade directiva que é o rei. A
apropriação humana da terra e dos demais recursos anturais, ao invés de franca,
individual e anárquica, é regulada por um sistema integrado de normas, isto é, um
regime. Este, por sua vez é concebido em função das estratégias inerentes à
colonização (Correia e Silva, 1991:198).

Este excerto de António Leão Correia e Silva é elucidativo relativamente à situação da


ilha de Santiago de Cabo Verde, no momento tido como zero do seu percurso histórico.
Um percurso iniciado, segundo consta, nos primeiros anos da segunda metade do século
XV (1460), data dos primeiros contactos dos navegadores portugueses com as ilhas.
Segundo documentos da época, ao serem “descobertas,” não eram povoadas de seres
humanos. Portanto, foi necessário transplantar tudo de outras paragens, desde pessoas,
instituições e demais recursos indispensáveis à organização do novo espaço então
descoberto.
A pobreza dos solos e a inclemênia do clima217 são duas realidades inelutáveis que
marcaram a história de Cabo Verde desde o seu descobrimento até aos dias de hoje.
As ilhas de Santiago e Fogo foram as primeiras a merecer a atenção dos colonos
portugueses, tendo sido ocupadas segundo um modelo de povoamento similar ao
seguido na ilha da Madeira e dos Açores. Porém, a aridez dos solos e a extrema
irregularidade das chuvas, a que se juntam os fortes ventos de leste, apresentaram
sérios limites ao desenvolvimento de uma agricultura economicamente atractiva. Os
períodos de seca, causadores de falta de alimentos para homens e animais,
sucederam-se de uma forma cíclica, conduzindo a crises de fomes causadoras de
elevadas taxas de mortalidade. (Pereira, 2004:6).

As ilhas de Cabo Verde foram palco de uma ocupação territorial e, por extensão, agrícola
seguindo o modelo português, na base das doações régias. 218 Após a morte do

217A localização do arquipélago na zona tropical do hemisfério Norte determinam uma época de chuvas situada emtre
Agsto e outubro. As zonas de altitude mais elevada, situadas no Nordeste do arquipélago, Santiago, Santo Antão,
Fogo e S. Nicolau, são regiões de clima mais húmido, mais propicias á prática da agricultura, que é prativcamente
inexistente em ilhas de relevo menos acentuado como S. Vicente, Sal, Boa Vista ou Maio. A erosão constitui uma
ameaça constante sobre os terrenos agrícolas, sujeitos que estão á acção dos ventos fortes de leste, chuvas torrenciais
e ainda à acção de animais e homens que devastam a vegetação em busca de pasto e de lenha.
218 Uma vez descobertas, as ilhas eram doadas a pessoas da confiança do Rei, surgindo deste modo a capitania donatária,
uma unidade territorial suporte da estrutura administrativa, tendo como responsavel o Capitão donatário. No caso de
Santo Antão, passou por vários donatários, até a sua integração na administração da Coroa, em 1759, aquando da
condenação do seu donatário, o Duque de Aveiro.

120
beneficiário, “as terras voltavam a Coroa, podendo a partir daí serem doadas a um
membro da família do morto ou simplesmente a outrem.”219

Assim, a apropriação das terras teve as suas raízes no processo da colonização da ilha de
Santiago, baseada fundamentalmente nas atividades agro-pecuária e comercial, pois esta
era a ilha que melhores condições oferecia para a prática destas atividades.

Ela foi dividida em duas capitanias, distribuídas entre dois donatários com posses
inalienáveis sobre as mesmas, com o objetivo de promover a colonização, marcando,
deste modo, o início de uma estrutura agrária em que apenas um grupo restrito de
indivíduos detinha a posse das terras, exploradas com base na utilização da mão-de-obra
escrava.
Sempre que o rei doava vastos domínios a um particular, atribuía ao donatário as
funções de capitão, criando uma espécie de circunscrição territorial. Criava-se assim,
uma Capitania-donataria. O Estado português viu, no estabelecimento das capitanias
donatarias um meio de povoar e de tornar produtivas as terras descobertas, sem
despesas de tesouro público, e ao mesmo tempo uma possibilidade de emepregar a
nobreza, que a longa desvalorização da moeda havia empobrecido (Andrade,
1986:94).

Deve-se dizer que, além da possibilidade de dispor grandes extensões de terras, à


dimensão da ilha, ao donatário eram disponibilizados outros recursos, designadamente a
utilização dos cursos de água.220

Na ilha de Santiago, a agricultura foi caraterizada pela concentração das melhores terras
na posse de um reduzido número de proprietários, que as exploraram, nos primeiros
tempos, recorrendo só a trabalho escravo e mais tarde num regime de parceria221 e
arrendamento,222 muito próximo da servidão.

219Furtado, Cláudio (1993). A Transformação das Estruturas Agrárias numa Sociedade em Mudança – Santiago de
Cabo Verde, Praia: Instituto Cabo-verdiano do Livro e do Disco, pp. 27-28.
220 Esta é uma das razões, que me levou a definir a trilogia Terra, Água e Poder como título desta tese.
221Relação jurídica, ainda que sem título escrito, pela qual o proprietário ou outrem com poderes legais para o efeito,
entrega a terceiro, para exploração, um ou mais prédios rústicos ou suas parcelas, recebendo do parceiro, em
contrapartida, uma quota-parte da produção dos mesmos ou a prestação de qualquer forma de trabalho.
222Relação jurídica, ainda que sem título escrito, pela qual o proprietário ou outrem com poderes legais para o efeito
entrega a terceiro, para exploração, um ou mais prédios rústicos ou suas parcelas, recebendo do rendeiro em
contrapartida, uma renda de valor fixo, em dinheiro ou em espécie, seja qual for o resultado da exploração.

121
Uma exploração de tipo feudal que perdurou durante muito tempo. No entanto, a
impossibilidade dos donatários explorarem as terras na sua totalidade, fez com que
optassem por outros meios, nomeadamente pelo arrendamento a outros colonos.223 E,
mesmo assim, tudo indica que muitas terras ficariam por explorar, as consideradas
devolutas, por isso ocupadas em sistema de sesmarias.”224

Este sistema, “criado em fins do séc. XIV, em Portugal, com vista a solucionar o problema
do abastecimento do país, pondo fim à grave crise de géneros alimentícios,”225 acabou
por constituir-se no principal meio de promoção da colonização e do aproveitamento dos
territórios do além-mar português.

Assim, em Cabo Verde, desde o início da sua ocupação efetiva, séculos XV-XVI, a posse
das terras, constituiu privilégio reservado a poucas pessoas, que as ocupavam em regime
de sesmarias, transformados com o tempo, em títulos legítimos de propriedade particular,
de facto e de direito. Estas, funcionaram como mecanismo de diferenciação social e
manutenção do poder dos grandes proprietários rurais, gerando e acentuando a
desigualdade fundiária, que se arrastou por muito tempo.
A sesmaria era um recurso jurídico-institucional que enquadrava os movimentos de
expansão territorial e económica e constituía um importante instrumento de que a
Coroa se valia para integar novos espaços, fixando neles os seus vassalos. Por isso
ela representava um meio de alargamento a um tempo espacial, económico,
demográfico e político (Correia e Silva, 1991:200).

Em bom rigor, a lei das sesmarias tinha por objetivo fixar os trabalhadores rurais nas
terras, promovendo, desta forma, a lavoura dos terrenos incultos, ao mesmo tempo que
promove o povoamento destas mesmas regiões.
Em Cabo Verde, tratava-se de atribuir os terrenos baldios aos colonos que
acompanhavam os capitães-donatários, favorecendo a sua fixação no país. Ao
receberem as terras, os colonos deviam lavrá-las num prazo de três a cinco anos,

223Os colonos vieram em companhia dos donatários desde o começo do povoamento das ilhas. Tendo recebido as terras
em regime de sesmarias, não tinham, efetivamente, direito de propriedade. Essas terras deviam ser cultivadas num
prazo de cinco anos, findos os quais eram retomados pelos donatários, se não tivessem cumprido o prazo de
valorização das mesmas.
224Terras que os concelhos distribuíam pelos seus moradores com a condição de serem obrigatoriamente cultivadas
dentro de certo prazo, além de solverem as prestações consignadas pelo costume ou pelo foral. (Cf. Dicionário de
História de Portugal. Serrão, Joel (dir.).Porto: Livraria Figueirinhas, s/d, p. 542.
225Motta, Márcia Maria Mendes (2003). Sesmarias no Brasil: história e conflito em oitocentos. In Ler História, 45
(2003), Lisboa: ISCTE-IUL, p. 137.

122
findos os quais eram expropriados pelso donatários em caso de incumprimento do
prazo estipulado (Andrade, 1986:94).

Segundo Ilídio do Amaral, a total ocupação do solo na ilha de Santiago, “só se efectua
após as investidas dos piratas ingleses à Cidade da Ribeira Grande,”226 quando o então
sistema de donatários é substituído pelas grandes propriedades denominadas capelas227 e
morgadios.228
A fuga para as regiões montanhosas do interior da grande Ilha, dos foros, escravos
e, mesmo colonos, uns em busca de liberdade, outros fugindo das invasões dos
piratas, permitiu a ocupação das terras devolutas para o cultivo agrícola. Outras
vezes trabalhavam como assalariados dos morgados ou então como rendeiros.229

A introdução dos sistemas de morgadio e capelas, válidos mediante confirmação régia,


nas ilhas de Santiago e Fogo, permitiu que as terras se convertessem em propriedades
efetivas dos senhores. Com efeito, “este sistema tornava-os verdadeiros donos da terra,
contrariamente ao sistema de capitanias-donatarias cujos donatários só tinham o
usufruto.”230

A partir do século XVIII, assistimos à apropriação privada da terra, “concentrada,


fundamentalmente, em mãos dos colonos portugueses e, em menor grau, nas dos mulatos
e forros nativos.”231
O segundo século da história cabo-verdiana continua ainda dominado pelo
movimento de constituição e consolidação da grande propriedade fundiária em

226A partir de 1585, os saques à Riberira Grande e à vila da Praia, e as tomadas de sal na ilha do Maio, a incursão de
estrangeiros na Guiné e nos ilhéus fronteiros, o ataque de corsários em pleno mar, tudo isto se tornou frequente na
vida deste arquipélago, cf. Ferreira, Clarisse (1964). A História de Cabo Verde durante o período Filipino. Faculdade
de Letras Universidade de Lisboa, Dissertação de Licenciatura em História pp. 1-148.
227Certos bens eram dados ou doados a um pároco, mosteiro ou igreja pelo serviço de cantar responsos, dizer missas
ou repartir esmolas pela alma do doador. Esses bens dados as mãos mortas ficavam sempre, segundo Viterbo, na sua
administração, quando não fossem do seu domínio, e eram sempre dos adquiridos, para que se não ofendesse o direito
da linhagem.( Cf. Dicionário de História de Portugal. Serrão, Joel (dir.), Porto: Livraria Figueirinhas, p. 461.
228 A instituição dos morgados alargou-se e desenvolveu-se imenso em Portugal a partir do século XIII. Na sua essência,
e historicamente, consistiu numa forma institucional e jurídica destinada a defender a base económica territorial da
nobreza. De acordo com o sistema dos morgados, os domínios senhoriais eram inalienáveis, indivisíveis e
insusceptíveis de partilha por morte do seu titular, transmitindo-se nas mesmas condições ao descendente varão
primogénito; na falta de filho do sexo masculino, podiam passar à linha feminina; porém, logo que houvesse
descendente varão, o conjunto de bens do morgado pertencia-lhe, tomando a sua posse desde os 18 anos( Cf.
Dicionário de História de Portugal. Serrão, Joel (dir.), Porto: Livraria Figueirinhas, p. 345).
229 Furtado, Cláudio (1993). Op. Cit.
230Andrade, Elisa (1996). As ilhas de Cabo Verde- Da Descoberta à Independência Nacional (1460-1975). Paris:
L’Harmattan, p. 94.
231 Idem, ibidem, p.31.

123
Santiago e no Fogo. Aqui, os principais proprietários rurais possuem grandes
extensões de terra, geralmente compostas por parcelas descontínuas, que albergam,
no seu interior, uma rica variedade de actividades e culturas, um capital fixo
complexo e uma mão-de-obra volumosa. A posse da terra apresenta-se altamente
concentrada (Correia e Silva, 1995:298).

Assim, de terra desabitada, logo inculta, as ilhas de Santiago e do Fogo conheceram, entre
os séculos XVI e XVIII, quatro formas de atribuição das terras-doação, sesmarias,
morgadio e capelas - fundamentalmente em mãos de uma classe provilegiada – os
senhores brancos- depois integrada pelos rendeiros,232cuja condição fundiária falarei mais
à frente.
O modelo de colonização, monopolizador das terras aráveis, engendrou desde os
seus primórdios a separação entre possuidores e não possuidores de terra, escravos,
inicialmente, parceiros e rendeiros semi-servos, mais tarde, explorados por senhorios
da vária índole, com a figura do morgado como explorador-modelo durante séculos.
Dentro desta estrutura de classes estava sempre coexistindo uma camada de
pequenos camponeses pobres, trabalhando por conta própria, funcionando como
reserva de mão-de-obra para os senhorios da região que habitavam, pois era a sua
própria terra insuficiente para viverem (Stockinger, 1990:9).

Apesar de, já no século XIX, as autoridades se aperceberem de que os problemas da


exploração das terras residiam na própria estrutura agrária, nenhuma medida de política
foi implantada no sentido de transformar esta mesma estrutura. Os grandes morgados
pressionam no sentido de manter o seu poder, ao mesmo tempo que a ausência de vontade
política por parte do governo metropolitano, deixa praticamente inalterada a estrutura
agrária vigente.

3.1.1. A ocupação das terras em Santo Antão

La terre prodigue ses ressources et confère la puissance à ceux qui se


l´approprient (Blanc, 2018: 374).

232 Um outro fenómeno definidor da prática agrícola no arquipélago prende-se com o regime de propriedade. Verifica-
se o predomínio do minifúndio, em resultado da divisão dos terrenos em fracções após a morte do seu proprietário e
a sua distribuição pelos herdeiros. A proliferação da pequena propriedade propicia o estabelecimento de contratos de
arrendamento ou de parceria entre proprietários e camponeses durante períodos que não excediam os três anos,
ficando estes com o dever de pagar uma renda em géneros ou em dinheiro.

124
As duas ilhas mais antigas de Cabo Verde, em termos de ocupação e exploração efetivas,
Santiago e Fogo, conheceram uma trajetória fundiária diferente das restantes, localizadas
ao norte do arquipéago, designadamente a de Santo Antão, onde o donatário foi, por muito
tempo, proprietário de toda a ilha pelo que todos os ocupantes dela eram seus dependentes
e subalternos.

Se, nas primeiras, os possuidores de terras investiam, na medida do possível, “criando


uma paisagem rural altamente densa em capitais e trabalho,” 233 o mesmo não aconteceu
em realção à de Santo Antão onde “o campo é caracterizado por uma ocupação escassa,
débil e descontínua dos recursos produtivos.”234 Naturalmente, esta situação acabaria por
ter implicações nas formas de exploração económica.
Enquanto o proprietário absentista (donatário) tende a transferir para o reino, sem
contrapartida, os excedentes e os lucros da actividade económica gerada na sua ilha
cabo-verdiana, os proprietários rurais de Santiago, pelo contrário, aplicam na própria
ilha de residência os seus lucros, fazendo ampliar reprodutivamente o processo
produtivo e alargar o povoamento (Correia e Silva, 1991:203).

Assim, em Santo Antão, inicialmente na posse de um donatário, único proprietário de


toda a ilha, a história agrária confunde-se com a do poder vinculado à terra. O seu
isolamento tornou-a menos atrativa para os colonos, que se instalaram principalmente em
Santiago, sendo, por isso, essa ilha gradualmente ocupada por pequenos grupos de
proprietários.

Com o tempo, as crises causadas pelas secas periódicas originaram uma emigração em
massa, o que fez com que muitas terras fossem abandonadas ou vendidas, altura propícia
para os comerciantes ricos e os grandes proprietários conseguirem, assim, adquirir muitas
terras.

Num relatório do governador Marinho, datado de 1841, e citado por Sena Barcellos,
encontramos uma informação segundo a qual, na ilha de Santo Antão, “não havia

233Correia e Silva, António (1991). Espaço, Ecologia e Economia Interna. In Albuquerque, Luís & Santos, Maria
Emília Madeira (Coords.). História Geral de Cabo Verde, Vol. I. Lisboa/ Praia: Centro de Estudos e Cartografia
Antiga/Instituto de Investigação Científica Tropical - Direção Geral do Património, p. 202.
234 Idem, ibidem.

125
governo, nem justiça; o mais poderoso era quem dictava a lei, e por isso se enriquecia,
furtando terrenos aos outros.”235

Não me cabe neste capítulo, analisar as diferentes conjunturas por que passou a situação
fundiária na ilha de Santo Antão, cuja adversidade territorial parece ter exercida a sua
influência sobre as diferentes formas de ocupação das terras e distribuição da água, nem
tão pouco procurar compreender a sua estrutura por meio de um resgate histórico,
confrontando-o com os dados da atualidade para explicitar o grau de desigualdade, ainda
existente, na distribuição das terras.

Este aspeto será analisado mais à frente, a partir de um caso específico, referente ao
Tarrafal de Monte Trigo. Por ora, procuro, tão-somente, lançar um breve olhar
relativamente à forma como as terras irrigadas foram apropriadas nesta ilha
iminentemente agrícola.

À semelhança das outras anteriormente referidas, na de Santo Antão, deserta na sua


génese, os recursos naturais, as terras e a água, foram doadas aos primeiros representantes
da Coroa, pelas razões também já referidas. Porém, por não ser tão atrativa aos colonos,
por muito tempo as terras ficaram incultas, num cenário que tendia a configurar-se
deserta. A leitura da Carta de José da Costa Ribeiro,236 Ouvidor Geral das lhas de Cabo
Verde, ao Rei, sobre o estado do governo das ilhas de Santo Antão, São Nicolau, Boavista,
Brava e Maio, datada de 16 de abril de 1731, leva-nos a constatar o estado de abandono
em Santo Antão, nomeadamente no que ao trabalho da terra dizia respeito. Informa o
Ouvidor que
os senhores das fazendas e das terras estão hoje pobres e não tem escravos para a
fábrica delles, ficao perdidas e fazem pastos de gados o que erao canaviais e outras
lavoiras, pois ainda que pelo jornal de um dia se de a um preto foro dois tostões, não
há de ir trabalhar, nem servir e antes querem andar nus e roubar que sujeitar se ao
trabalho (ANCV-SGG. Lv. 2, fl.223).

235 Barcellos Christiano, José de Sena (1899). Op. Cit., Parte IV. Volume I, p. 109.
236 ANCV-SGG, Livro nº 2 - Ordens, Bandos, Cartas patentes, Provisões, Regimentos(1676-1747) fls. 221-223.

126
Outrossim, frequentemente assolada pela seca, com todas as suas consequências, desde
muito cedo a ilha conviveu com o fenómeno de emigração em massa,237 fazendo com que
muitas terras fossem abandonadas ou vendidas. Ao que tudo indica, foram nesses
períodos que residentes com alguma posse, nomeadamente comerciantes, mas também
proprietários, conseguiram acumular muitas terras designadamente nas zonas irrigadas,
fomentando assim uma concentração fundiária cada vez mais crescente.238
O desmoronamento das condições ecológicas encarregaram-se, ao longo dos tempos,
do subparcelamento extremo, mesmo de certas propriedades antigamente grandes,
não compensado pela concentração das terras em tempos de crise, quando os mais
ricos açambarcaram pequenas propriedades, a preços “de banana”, sobretudo nas
ilhas de Barlavento, nomeadamente em Santo Antão, onde o morgadio nunca teve
expressão em escala social (Stockinger, 1990:10).

Com a apropriação de terras, apropriavam-se também da força de trabalho do tipo servil,


primeiramente a mão-de-obra escrava, para, posteriormente, ser substituída pelos
criados.239 Na melhor das hipóteses, estes recebiam das mãos dos donos das terras, através
da concessão, pequenas parcelas, trabalhadas em regime de parceria. Mas também,
existiram aqueles que conseguiram terras através da aquisição, que, por sua vez, vinha
acompanhada da apropriação da força de trabalho, consubstanciado em relações semi-
feudais, a parceria e o assalariamento. Deve-se ainda realçar o facto de terem existido
situações de apropriação de terras por meio de fraude, nomeadamente por parte de
funcionários régios que se aproveitavam da sua posição na hierarquia da dominação
colonial, para estes fins. É sobretudo no concelho do Paúl que encontramos essa forma
de apropriação.
Neste, colonizado a partir do norte da ilha (Ribeira Grande), constituíam-se no século
passado pequenos e médios proprietários, cada um com um número reduzido de
lavradores, baseados na cultura quase exclusiva do café. A deterioração deste
produto (secas, pragas, concorrência mundial), a partir de 1900, arruinou a maioria
dos proprietários menos afortunados, que caíram nas maõs de uma minoria mais
abastada (Stockinger, 1990:46).

237Sobre este assunto sugiro a leitura de Carreira, António (1983). Migrações nas ilhas de Cabo Verde. Praia: Edição
do Instituto Cabo-verdiano do Livro.
238Existem muitas narrativas sobre esta questao, com pormenores interessantes de que daremos conta mais a frente
quando estivermos a tratar do estudo de casos.
239Ainda no século XX, a figura do criado era corriqueira na ilha de Santo Antão. Desprovido de qualquer meio de
subsistência, sujeitava se a trabalhar em casa dos mais poderosos, nomedamente, grandes proprietários, sem que
necessariamente recebesse qualquer salário, contentando se com a alimentação e ou outro produto necessário a sua
sobrevivência. Em caso de criadas, muito pejorativamente, nalgumas regiões nomeadamente em Tarrafal de Monte
Trigo, eram denomindadas “guetchas,” entendendo alquelas que serviam quase que em regime de escravidão.

127
O autor segue afirmando a existência de uma classe senhorial na ilha de Santo Antão, que
se afirmou ao longo da sua história, por força de três tipologias:

Tipo 1. A apropriação da terra e da força de trabalho através da concessão de


aforamentos. Estas são terras aráveis ou potencialmente cultiváveis,
relativamente vastas, entregues a qualquer pessoa que pudesse delas tirar o
rendimento necessário para pagar determinadas contribuições à Coroa e tirar,
em consequência, um excedente comercializável de interesse para a
circulação colonial. Assegurava o monopólio da terra necessário para a
apropriação de trabalho alheio, cujo motor eram uma força de trabalho de tipo
servil (criado), ligado ao dono da terra através de concessões, por parte deste,
de pequenas parcelas de terra, trabalhada em qualquer regime de
arrendamento em espécie; ou, ainda, tratava-se mesmo de escravidão, negra,
embora com pouca predominância.
Tipo 2. A aquisição da terra por conta própria e subsequente apropriação da
força de trabalho em relações semifeudais(parceria) ou capitalistas
(assalariamento). A acumulação prévia para tal fim provém usualmente de
actividades não agrícolas, como são a navegação marítima, o comércio ou a
transformação fabril de determinados produtos (aguardente, panos, etc). Esta
forma pressupõe a colonização efectiva da ilha e, também, o pleno
funcionamento dos mecanismos mercantis, de tipo colonial ou até baseados
na circulação interna.
Tipo 3. A apropriação da terra por fraude, inclusivamente pelo uso da força,
bruta e/ou política/social. Em geral trata-se de funcionários, administradores
e elementos afins, que se aproveitam da sua posição na hierarquia da
dominação colonial. Esta forma pressupõe, no entanto, a existência de uma
campesinato previamente constituído, composto por pequenos proprietários,
camada económica e socialmente fraca, mais sujeita à dominação colonial e
às iniquidades da natureza. A sujeição semifeudal dos elementos
expropriados constitui a fonte principal de força de trabalho explorável
(Stockinger, 1990:45-46).

Foi este o caminho que conduziu a uma excessiva concentração fundiária na ilha de Santo
Antão, que se prolongou até aos nossos dias, porquanto, “a mudança de gerações e mesmo
a substituição de velhas famílias por novas, não afetou em nada a estrutura social
vigente.”240

3.2. Os recursos hídricos

(…) A história tem mostrado que os habitantes das regiões escassas em recursos em
solo e água, preferem aceitar o desafio de gerir os fracos recursos que lhes são postos

240 Stockinger, Gottfried (1990). Crónicas de Campo I. Ilha de Santo Antão. Praia, ICL: Estudos e Ensaios, p. 47.

128
à disposição a terem de viver em regiões que lhes são estranhas (SABINO,
2018:120).

A antiga perceção da abundância de água no mundo provocou na consciência humana o


desenvolvimento do conceito de que ela, a água, seria um recurso inesgotável e o mais
barato, de tal modo, que, em muitas regiões, era gratuita, uma das razões que levava ao
seu desperdício.

A irrigação era feita de forma excessivamente generosa, pela técnica de alagamento, até
ao ponto do encharcamento dos solos. Com o passar do tempo, a consciência foi-se
mudando e, atualmente, a água é considerada um recurso económico do mesmo valor dos
minerais, devendo ser administrada racionalmente.

Concernente à agricultura, setor que utiliza a maior parte deste recurso em todo o mundo
e no qual as práticas rotineiras empregues no uso da água costumam ser ineficientes, o
desafio consiste em zelar para que a sua gestão seja a mais equitativa, racional, eficiente
e harmoniosa possível. A descoberta dos velhos métodos de gestão e de exploração, os
erros muitas vezes repetidos, têm conduzido a grandes fracassos, como a deteriorização
progressiva dos recursos em solo e água, de que são exemplos, a intrusão salina nos
lençóis freáticos, a salinização dos solos, a sobre-exploração e a erosão, que, num
ecossistema frágil como o de Cabo Verde, por exemplo, conduz necessariamente ao
fenómeno de desertificação, à degradação do nível de vida e ao êxodo rural das
populações afetadas.241

Assim, a água constitui, hoje, um recurso cada vez mais escasso, consistindo, por isso,
um enorme problema a ser gerido nos próximos tempos. Grande parte deste problema
deve-se ao processo de ampliação do adensamento humano em territórios nos quais a
escassez absoluta ou relativa deste Bem, não só cria problemas de abastecimento, mas, e
principalmente, problemas relacionados com a sua reposição.

241Os resultados dos trabalhos de conservação do solo e água no mundo vêm demonstrando que terrenos degradados
podem de novo tornar-se produtivos, desde que se conheça perfeitamente a totalidade do sistema dos recursos em
solo e água tanto a montante como a jusante das bacias hidrográficas e se apliquem as tecnologias mais apropriadas
a cada situação concreta.

129
Esta não é uma questão que incite uma mera reflexão de cunho técnico, na qual são
buscadas as soluções de engenharia, mas é também legítima para uma reflexão histórica
e sociológica. Afinal, “a água está tão intimamente ligada ao desenvolvimento
económico-social que as quantidades consumidas podem constituir verdadeiros índices
desse mesmo desenvolvimento.”242

Num país como Cabo Verde, onde a água é um recurso particularmente escasso, 243 o
problema tende a ser maior, pelas razões apontadas anteriormente. Neste arquipélago, a
questão da água, ou mais especificamente, os conflitos que envolvem o seu uso e a sua
gestão, entrelaça fatores culturais, sociais, económicos e ambientais, que se influenciam
mutuamente.

Apesar de Santo Antão ser uma das poucas ilhas, onde a quantidade de água é maior, em
termos médios nacionais, não significa não haver problemas com relação ao
abastecimento deste recurso. Entre outras razões, porque, também aqui, reinam
condições climáticas de aridez e semiaridez, na dependência de fenómenos que
acompanham as migrações anuais e seculares da convergência intertropical e seus
efeitos desastrosos quando, nos movimentos para norte, tal faixa pluviogénica da
circulação atmosférica não alcança as ilhas (Amaral, 1991:1).

Sendo assim, os
ventos que sopram a maior parte do ano, de Novembro a Junho, são responsáveis
pela grande estação seca. As chuvas provocadas pelas depressões ciclónicas das
latitudes médias são raras, por isso são os ventos de monção de sudoeste que
determinam de Julho a Outubro numa pequena estação húmida. Nos meses de
inverno a secura da época seca é acentuada pelo harmatão que sopra do Sahara
(Sabino, 1984:7).

A documentação disponível leva-nos a constatar que dificuldades relacionadas com a


escassez da água existiram desde o início da colonização da ilha de Santo Antão.
Ao tempo dos primeiros donatários remontava também a abertura do denominado
caminho da corda, que se estendia por uma légua, todo lavrado na rocha viva e
indispensável acesso à costa Sul, onde se localizava o porto dos Carvoeiros, o melhor
da ilha. Pedro da Fonseca mandara abrir um poço, empedrado no interior, para

242 Braz,
Isabel (1989). A importância das disponibilidades da água no desenvolvimento económico e social. In Tribuna,
2 de março de 1989, p. 7.
243 O problema da água em Cabo Verde apresenta, por conseguinte, aspetos dos mais graves, não só para as necessidades
agrícolas como para o próprio uso doméstico, sendo raras as regiões que não estejam sujeitas a esse condicionalismo.

130
garantir água ao gado da fazenda e seu filho promovera a construção do curral da
Praia Formosa, na costa Sul (Matos, 2003:262).

Vulcânica, a ilha é caracterizada pela existência de grandes maciços montanhosos, a partir


dos quais irradiam vales profundos por onde, de queda em queda, descem ribeiras. “ A
multidão de ribeiras que regam a ilha, faz os valles tão férteis, que ella é de todas a mais
productiva de fructos, plantas e vegetaes, apezar de que vista de fora, parece árida,
excepto nas bocas das ribeiras.”244

O sistema de rega por alagamento, o único, até recentemente utilizado, num território
dominado por acentuados declives, exigia esforços avultados no sentido de irrigar os
campos agrícolas. As imagens que se seguem são disto elucidativas. A primeira, mostra-
nos uma área de regadio, criada pela Brigada Técnica de Estudos e Trabalhos Hidráulicos
(B.T.E.T.H.),245 no concelho do Paúl, enquanto as duas seguintes, mostram-nos dois
campos agrícolas, recentes, sendo uma no interior do Concelho do Porto Novo e a outra
em ribeira de Janela no concelho do Paúl.

Figura 22. Um aspeto do Vale da Ribeira de Jorge – Paúl


Fonte: ANCV-MIT, Cx. 53, setembro, 1954.

244 Chelmicki, (1841). op. Cit. p. 14.


245 Na sequência da concessão, em 1948, do empréstimo de 50 mil contos à Colónia de Cabo Verde, foi criada a Brigada
Técnica de Estudos e Trabalhos Hidráulicos (B.T.E.T.H.) que se desenvolveu a sua actividade na ilha de Santo Antão,
a que oferecia maior riqueza de recursos hídricos, onde se construiu diques, galeria e levadas na zona nordeste da
ilha (Cfr. Pereira, José Augusto (2004). A Economia de Cabo Verde no Contexto do Estado Novo (1940-1960). In
Ler História, nº 47, Lisboa: ISCTE-IUL, p. 70. (Mais informações sobre esta brigada, sugiro consultar o fundo
documental da RPSAC, In ANCV- RPSAC, cx. 220).

131
Figura 23. Aspeto de um campo agrícola numa das encostas do interior do Concelho de Porto Novo
Fonte: Acervo pessoal

Figura 24. Aspeto de uma propriedade agrícola na Ribeira de Janela- Paúl


Fonte: Acervo pessoal

Dotada de condições geológicas que não permitem a existência de grandes reservas de


água, foi necessário, desde o início da sua ocupação, apostar na construção de levadas
(canais de irrigação) um pouco por todas as zonas irrigadas.Construídas não raramente
por homens suspensos por cordas sobre abismos de centenas de metros, as levadas de
Santo Antão surgem-nos, por vezes, como simples riscos traçados no dorso de colossais
montanhas, em desafios que muito dificilmente se admite serem obras humanas.

132
Na década de cinquenta do século passado, Maria Helena Spencer 246 fez uma longa
entrevista ao engenheiro Brandão Calhau, do Gabinete da B.T.E.T.H.,referido
anteriormente. Nesta entrevista, o engenheiro justifica a finalidade das obras, como uma
“necessidade de se aproveitar a terra, tirando o maior rendimento possível.”247
Cabo Verde, infelizmente, tem sofrido bastante com a escassez das chuvas. Temos
bem presente a última crise, o número de vidas que se perderam, quantos lares se
desfizeram e o estado em que ficaram os sobreviventes que a ela resistiram. Se o
arquipélago já tivesse um regadio eficiente estamos convictos que não andaríamos
tão sobreassaltados com a ideia de que as chuvas faltem e estamos certos de que as
crises não se fariam sentir com tão grande violência (Cabo Verde, Boletim de
Informação e Propaganda, nº 49, out. 1953:18).

Foi assim que elencou um conjunto de obras de cariz hidro-agrícolas, a serem inciadas
em Santo Antão para posteriormente também serem realizadas em Santiago. Para além
das levadas, de que exibirei mais à frente algumas amostras, foram ainda contemplados
outros dispositivos como os diques,248 as galerias249 e os tanques.250

O abastecimento de água aos centros urbanos, foi preocupação desta instituição, sendo
elucidativa a imagem que se segue, referente à vila da Ribeira Grande, sendo que, para
tal, foi necessária a “exploração de uma nascente, denominada “Bica” e a construção de
um pequeno caminho de acesso ao depósito.”251

246 Maria Helena Branco Freire de Andrade Salazar d’Eça Spencer nasceu a 3 de abril de 1911 na cidade da Praia.
Funcionária dos Correios, Telégrafo e Telefones (C.T.T), na Praia, Maria Helena Spencer foi também repórter e
jornalista por mais de uma dezena de anos, com crónicas, reportagens e entrevistas, no período regular e mensal
publicado na Imprensa Nacional, na Praia, de 1949 a 1964, o já célebre Boletim “Cabo Verde.”
247 Boletim Cabo Verde de Informação e Propaganda, nº 49, out. 1953, p. 17.
248 Os diques são estabelecidos quando os leitos e margens dos cursos de água apresentam condições propícias,
tornando-se possível o represamento das águas para o que deverão ficar encastrados no fundo e nas superfícies
laterais, de modo a garantirem uma perfeita impermeabilização, evitando-se fugas que poderiam pôr em jogo a sua
eficácia. Forma como que uma cortina de retenção onde esses materiais se vão depositando, até ao nível
correspondente ao seu coroamento. Mas isto verificar-se-á logo às primeiras cheias e por isso dizemos que a vida
do dique é, praticamente, nula. Formando-se esta camada aluvionária, as águas infiltram-se perdendo assim a energia
de que vinham animadas e as lançaria, desesperadamente, pelo leito abaixo – e vão ser represadas no dique e deste
encaminhadas para os canais de irrigação. As tomadas de água serão feitas á cota conveniente, função e início das
condutas.
249 Com elas, pretendia-se captar as águas que circulavam a certa profundidade nas camadas aluvionárias que
constituíam os leitos das ribeiras, formamndo os vastos lençóis que corriam, despercebidamente, para o mar. Além
das águas de infiltração, contemplavam também as resultavamm das condensações diretas.
250 Os tanques permitiam, segundo o técnico responsável, armazenar os caudais que se desperdiçariam durante o período
em qu não se regava.
251Relatório relativo ao período de 1 de janeiro a 31 de agosto. B.T.E.T.H.C.V., elaborado pelo engenheiro Chefe da
Brigada Técnica de Estudos e Trabalhos de Hidráulica de Cabo Verde, 1951, p. 18.

133
Figura 25. Fontenário. Vila da Ribeira Grande
Fonte: ANCV-MIT.Cx53. setembro de 1951.

Diz o relator que,


O débito da galeria eleva-se a 60 m3 diários quando o consumo não excede, em
média,13m3. Era de prever que o excedente fosse-nos solicitado pelos proprietários
para irrigação dos quintais que se encontram nas proximidades, mas assim não
sucedeu. A água, durante a noite, é armazenada no tanque existente no depósito e
com a capacidade de 30 m3, quando cheio, descarrega para a levada da água nascida,
aproveitando-se na irrigação dos terrenos adjacentes.252

No campo, os maiores investimentos foram para as construções das levadas. A boca de


entrada da galeria, abaixo exibida, alimentou algumas delas, designadamente a de Fonte
Correia e da Boca de Cosco, Chã de Pedras, Serrado, para citar apenas estes exemplos.

252Relatório relativo ao período de 1 de janeiro a 31 de agosto. B.T.E.T.H.C.V. elaborado pelo Engenheiro Chefe da
Brigada Técnica de Estudos e Trabalhos de Hidráulica de Cabo Verde, 1951, p. 19.

134
Figura 26. Boca de entrada da galaria de Fonte Correia- Ribeira Grande
Fonte: ANCV- MIT.Cx53. setembro de 1951

Figura 27. Levada de Fonte Correia- Ribeira Grande


Fonte: ANCV- MIT.Cx53. setembro de 1951

135
Figura 28. Levada de Boca de Cosco, Ribeira Grande
Fonte: MIT-ANCV.Cx53. setembro de 1951.

Figura 29. Fibeira de Chã de Pedras


Fonte: MIT-ANCV.Cx53. setembro de 1954.

136
Figura 30. Colector de ligação da galeria de Boca de Côsco a levada do Serrado
Fonte: ANCV- MIT.Cx53. setembro de 1951.

No concelho do Paúl, também foram levados a cabo trabalhos de construção de levadas,


com destaque para as de Paúl de Baixo e de Pombas. Para o efeito, construiu-se uma
galeria de captação, “obra que se impunha porquanto as levadas que irrigavam toda a zona
que se estende na margem direita da ribeira do Paúl, e desde o sítio denominado Campo
de Cão até á chamada Boca do Figueiral, se encontravam sem água.”253

253Relatório relativo ao período de 1 de janeiro a 31 de Agoto. B.T.E.T.H.C.V., elaborado pelo Engenheiro Chefe da
Brigada Técnica de Estudos e Trabalhos de Hidráulica de Cabo Verde, 1951, p. 33.

137
Figura 31. Levada de Paúl de Baixo
Fonte: ANCV- MIT.Cx53. setembro de 1951

Figura 32. Levada de Pico da Cruz, Concelho do Paúl


Fonte: ANCV, MIT, Cx. 53, Setembro, 1954.

138
Figura 33. Levada de Carlos – Paúl
Fonte: ANCV- MIT.Cx53. setembro de 1951

Figura 34. Túnel aberto para a passagem da levada do Comandante


ANCV- MIT.Cx53. setembro de 1951

139
A última imagem mostra-nos um túnel, a partir do qual vê-se uma pequena câmara de
decantação da água para a levada do comandante.

Constata-se que, ainda hoje, na sua grande maioria, a irrigação em Santo Antão faz-se
atráves do sistema de alagamento, porquanto as levadas continuam a ser construídas,
como elucidam, por exemplo, as duas imagens seguintes.

Figura 35. Aspeto de uma levada em Tarrafal de Monte Trigo


Fonte: Acervo pessoal

Figura 36. Aspeto de um reservatório de água em Tarrafal de Monte Trigo


Fonte: Acervo pessoal

140
Além da sua secular função de transporte de água ao longo de centenas de quilómetros,
as levadas constituem hoje, também, um importante fator de promoção turística, por
amantes do deslumbramento e das emoções fortes que, anualmente, percorrem os seus
caminhos e as estreitas plataformas que, com cerca de meio metro de largura e, por vezes,
a centenas de metros de altitude, apenas os mais afoitos se atrevem a transpor.

Foi nestes cenários que, ao longo de séculos, foram construídas estas artérias do sistema
verdadeiramente vital para a ilha e que, progressivamente, foram canalizando as mais
abundantes águas para as menos irrigadas terras.

Relativamente à regulamentação da utilização desse bem que a tais sacrifícios exigiu, as


primeiras disposições sobre a sua distribuição foram transplantadas das outras ilhas
atlânticas do então dito Império Português e remontam aos primórdios da ocupação da
ilha, com a nomeação de funcionários régios que se encarregavam da repartição das
águas. Embora reajustadas à realidade do arquipélago e de cada ilha em particular, tais
disposições prevaleceram durante séculos.

Em 1884, por exemplo, foi aprovado um novo regulamento para o uso das águas públicas
ou comuns de irrigação254 no Concelho da Ribeira Grande, Santo Antão,255 considerando
que o antigo regulamento “se acha deficiente em alguns pontos e pouco explícito em
outros.”256

No mesmo ano, sob proposta da Câmara Municipal do Concelho do Paúl, o Conselho da


Província determinou que “no mesmo concelho seja posto em execução o regulamento
para uso das águas públicas de irrigação do concelho da vila da Ribeira Grande.”257

Entre outros aspetos, o regulamento determinou que:


 Têm direito a usar das águas públicas ou comuns os donos ou possuidores de
prédios rústicos situados no referido concelho, para irrigação dos mesmos

254 Correntes de água e a água de presas que não constituíam propriedade particular.
255 Boletim Oficial da Província de Cabo Verde, nº 11, 6 de março de 1884.
256 Idem, ibidem.
257Acordo do Conselho da Província, nº 47, 1 de julho de 1884, B.O. nº 28.

141
prédios, nas circunstâncias e sob as condições prescritas no Código Civil
Português.
 Podem ser utilizadas as ditas águas como força motriz em benefício da
indústria, mas sem prejuízo da agricultura dos prédios que se acharem no uso
das mesmas águas.
 Os possuidores de prédios podem aproveitar-se da indispensável quantidade
d´aquelas águas para ser aplicada aos alambiques durante o fabrico de
aguardente, contanto que tenham os necessários tanques.
 Nos pontos legalmente acessíveis ao publico, é livre o uso das mencionadas
águas com aplicações domésticas.
 Os donos ou possuidores de prédios reunir-se-ão em assembleia em um dos
dias do mez de janeiro de cada anno designado pelo Presidente da Câmara,
para acordarem acerca da quantidade de água que periodicamente deve ficar
competindo a cada prédio, lavrando-se termo subscripto por um d´aqueles, e
assignado por todos, que será archivado na secretaria da Câmara Municipal,
para serem extrahidas as certidões que os interessados pedirem. 258

O regulamento determinou as atribuições e competências de figuras importantes em


matéria de gestão da água, tais como o Fiscal e o Levadeiro. Ao primeiro competia, por
exemplo:
 Fiscalizar o serviço dos levadeiros podendo, conforme o caso, aplicar-lhes alguma
das multas estabelecidas neste regulamento.
 Mandar proceder aos reparos ou concertos.
 Fazer distribuição proporcional e equitativa das águas.259

Por sua vez, o levadeiro sujeitava-se a certas obrigações, nomeadamente:


 Fazer conduzir a água aos prédios a que ella se destina.
 Tapar as levadas e entornadores convenientemente, e fornecer a água suficiente para
os alambiques.
 Proceder à desobstrução das levadas e ribeiras a seu cargo, convocando para esse
serviço os interessados, por meio de editais ou avisos.

258 Boletim Oficial da Província de Cabo Verde, nº 11, 6 de março de 1884.


259 Idem, ibidem.

142
 Assistir aos reparos ou concertos das levadas.
 Dar parte ao fiscal de todas as ocorrências extraordinárias.260

Tive a curiosidade de analisar as considerações sobre as regas, para inteirar melhor dos
trâmites da distribuição da água para o efeito. Entre outras considerações, as regras diziam
que os caudais empregues nas regas não obedecem a quaisquer preceitos de ordem
técnica. Quando se pretende determinar o caudal para uma zona de regadio, regam-se as
propriedades beneficiadas uma por uma, avaliando-se os dias de que necessita cada uma
delas. Uma vez estabelecido esse número, ele manter-se-á e vigorará como “Uso e
Costume,” transmitindo-se de geração em geração. Daqui dizer-se que “a propriedade x
tem y dias de água.“Esta operação é feita pelo “meirinho,261 “fiscal das águas,”a quem
cabia a tarefa de arbitrar questões relacionadas com a água e sua distribuição para rega.

Em relação ao século XX, em 1954, por exemplo, a Comissão Municipal do Concelho da


Ribeira Grande aprovou um regulamento,262 anexo ao Código de Posturas aprovado pela
portaria do Governo da Província, nº 181 de 25 de Janeiro de 1928, que definiu os
parâmetros da sua utilização. O referido regulamento estabelece que tinham direito a usar
as águas acima referidas, os donos ou possuidores de prédios rústicos situados no referido
concelho, para irrigação dos mesmos prédios, nas circunstâncias e sob as condições
prescritas no Código Civil Português e no regulamento aprovado, prevendo ainda que:
 Podem as mesmas águas serem utilizadas como força motriz em beneficio da
indústria, mas sem prejuízos da agricultura dos prédios que se acharem no uso delas.
 Os donos ou possuidores de prédios podem aproveitar-se da indispensável quantidade
daquelas águas para ser aplicada aos alambiques durante o fabrico de aguardente,

260 Idem, ibidem.


261 Meirinhos são os indivíduos que levam a água até às diferentes tomadas ou entornadores existentes, distribuindo-a
de acordo com o número de horas pertencente a cada propriedade. Tem também por missão aplicar multas aos
transgressores do “Código de Posturas.” Para esse efeito, o meirinho chama três testemunhas, leva-as perante o fiscal
a quem, verbalmente, confirmam a transgressão. Este, por sua vez, comunica o ocorrido à Câmara Municipal ou Junta
Local, que levanta o respetivo auto, o pagamento é feito na tesouraria desta Repartição e a importância, depois de
deduzido 1/3 que é entregue ao meirinho, entra nos seus cofres. Normalmente estas sanções são aplicadas pelos
referidos meirinhos, o que não quer dizer que qualquer outra pessoa não o possa fazer, mas os trâmites seguidos são
sempre os mesmos.
262 Regulamento para o uso das águas públicas e comuns de irrigação no concelho da Ribeira Grande da Ilha de Santo
Antão, cf. ANCV-RPSAC, Cx. 547, março/abril 1956.

143
contanto que tenham os necessários depósitos e levadas convenientemente cuidados,
de modo a não desperdiçar a água.
 Nos pontos legalmente acessíveis ao público é livre a utilização das mencionadas
águas para uso domestico.263

Nesse regulamento, foram especificadas as atribuições dos fiscais e dos lavadeiros,


figuras importantes no funcionamento das regras da rega. Assim, aos fiscais foram
estabelecidas atribuições como:
 Fazer executar o presente regulamento na parte respectiva, o que for competentemente
resolvido em assembleias ou determinações da Comissão Municipal:
 Distribuir e fiscalizar o serviço dos lavadeiros aplicando-lhes, conforme os casos, as
multas estabelecidas neste regulamento;
 Mandar proceder aos reparos ou concertos referidos na alínea b) do art.º 20 e que lhe
forem ordenados pela Comissão Municipal, quando não tiver sido nomeado
encarregado especial da direcção dos trabalhos;
 Determinar os reparos e consertos urgentes nas levadas, depósitos e tanques, à custa
de todos os interessados, fazendo-os avisar por meio de bando a tambor para
concorrerem aos trabalhos;
 Alterar, por motivos extraordinários, e ponderosos, o acordo a que alude o art 6º
fazendo distribuição proporcional e equitativa das águas, sempre que não for possível
adiar a alteração até a convocação da assembleia, anunciando aos interessados, que
comunicará logo ao corpo administrativo;
 Resolver as dúvidas ou incidentes que se suscitarem entre lavadeiros ou entre estes e
proprietários ou qualquer indivíduo, aplicando a correspondente multa ao que houver
prevaricado;
 Comunicar à Secretaria Municipal a recusa do pagamento das multas que impuser ou
lhe forem denunciadas, afim de, pelos meios competentes, serem efectivadas, bem
como quaisquer ocorrências extraordinárias,sobre que seja necessário providenciar
superiormente.264

263 Regulamento para o uso das águas públicas e comuns de irrigação no concelho da Ribeira Grande da Ilha de Santo
Antão. In RPSAC, março/abril,1956, Cx. 547-ANCV.
264 Regulamento para o uso das águas públicas e comuns de irrigação no Concelho da Ribeira Grande da Ilha de Santo
Antão, ANCV- RPSAC. março/abril, 1956, Cx. 547.

144
Quanto aos lavadeiros, as suas competências foram, entre outras:
 Conduzir a água aos prédios a que ela se destina conforme acordo tomado pelos
interessados, ou como for ordenado pelo fiscal no caso do nº 5 do art.º 26º ou pelo
corpo administrativo nos casos em que este, o fizer, e vigiá-la durante o tempo da rega
para que não seja distraída e se não desperdice;
 Tapar as levadas, entornadores e tanques convenientemente, e fornecer água
suficiente para aos alambiques, nos termos do art.º 4º;
 Fazer a limpeza normal das levadas e tanques;
 Comunicar ao fiscal a necessidade de se proceder à limpeza em reparações nas levadas
e tanques;
 Assistir aos reparos ou concertos das levadas;
 Cumprir as ordens e determinações do Corpo Administrativo e do fiscal;
 Participar ao fiscal todas as ocorrências extraordinárias que se dêm. 265

As disposições especiais do regulamento determinaram que:


 Todas as levadas e presas de águas públicas ou comuns deste Concelho deverão ser
descarregadas, para reforço das nascentes a jusante, em beneficio dos prédios e
depósitos inferiormente colocados, todos os sábados às 18 horas até a mesma hora
de Domingo imediato, não podendo as mesmas águas ser aproveitadas durante esse
período para irrigação de prédios, sob pena de multa de 100$00.
 Quando se trate de água pública ou comum, regando de entornador para entornador,
e algum interessado não desejar permanecer na divisão da água e pretender que lhe
seja designado o tempo que lhe deva pertencer e a cada interessado, solicitará a
divisão ao Presidente da Comissão Municipal.
 No mesmo regime de rega referido no artigo antecedente, quando se verifique que,
devido ao mau estado do prédio, por falta de trabalho ou outras causas que dificultem
ou demorem a rega, se consome nesta mais tempo que seria lícito esperar-se, em
detrimento dos demais da comunidade, a reclamação de qualquer interessado ao
presidente da Comissão municipal, será claculado o tempo de rega que deveria
pertencer ao prédio convenientemente cuidado.266

265 Regulamento para o uso das águas públicas e comuns de irrigação no Concelho da Ribeira Grande da Ilha de Santo
Antão. In ANCV- RPSAC, março/abril 1956, Cx. 547.
266Idem, ibidem.

145
Até a década de setenta do século XX foi basicamente este regulamento que ditou o
funcionamento do uso da água para a rega, sendo que mudanças substanciais só viriam a
surgir após a independência nacional. Nessa altura, o novo Governo de Cabo Verde
procurou disciplinar a exploração da pouca água existente, por forma a assegurar às
gerações vindouras uma agricultura liberta da contingência das chuvas.
Neste sentido, procedeu-se à nacionalização da água, pelo decreto-lei nº 18/75, de 27 de
setembro. Por este decreto foi determinado que:
 As Águas subterrâneas constituem propriedade do Estado.
 A distribuição das águas subterrâneas, após a sua captação, deve obedecer aos planos
de desenvolvimento socioeconómico do País, visando satisfazer os interesses de toda
a população.
 O Ministro da Agricultura e Águas, sob proposta da Direcção Nacional de Águas,
determinará a constituição de uma comissão encarregada de elaborar uma lei de
utilização da água.267

Para a efetiva materialização desta medida, foi criada a Direcção Nacional de Águas,
integrada pelos seguintes departamentos e serviços:
 Departamento de Águas Subterrâneas
 Departamento da Dessalinização
 Departamento de Obras Hidráulicas
 Departamento de Outros recursos Naturais
 Serviços Administrativos
 Serviços regionais
 Brigada de Águas Subterrâneas
 Junta Autónoma das Instalações de Dessalinização de Água.268

Entre outras atribuições, esta direção estava habilitada para:


 Realizar estudos necessários à definição da quantidade de água disponível em zonas
determinadas à escala local e regional.
 Estudar e efectuar trabalhos específicos para a recarga das toalhas.
 Realizar estudos e trabalhos de captação de águas de escoamento sub-superficial.

267 Decreto-lei nº 18, 1975, de 27 de setembro. Boletim Oficial nº 13 de 27 de setembro de 1975.


268 Decreto-lei nº 23/75 de 27 setembro.

146
 Redigir um código mineiro regulamentando a abertura de furos, poços, galerias,
túneis ou outros trabalhos subterrâneos.
 Definir as normas de exploração de água subterrânea, à escala regional ou local.
 Planificar a utilização de água subterrânea, tendo em consideração todos os dados
físicos e económicos.
 Planificar a exploração da água subterrânea à escala de toda uma ilha ou de toda uma
zona com as características hidrogeológicas semelhantes.269

Nessa altura, a distribuição da água nos arredores das cidades assemelhava-se ao


abastecimento da água potável no meio rural, por via da construção de fontenários,
alimentados pelos furos equipados com motobombas.270
O processo de nacionalização das águas acabou por
determinar o encerramento das empresas privadas ainda em funcionamento,
como a Ferro & Cª que teve um papel essencial na vida e desenvolvimento de
S. Vicente. Contudo, para impedir ruturas no abastecimento de água o
Governo deixa a situação arrastar-se até início dos anos 80 e permite que os
pequenos negócios de venda e distribuição de água em camiões cisterna
continuem a funcionar (Cordeiro, 2019:23).

O Governo de Cabo Verde, ao nacionalizar o setor da água, confiou a sua exploração e


distribuição às suas instituições, nomeadamente o Ministério da Agricultura e Águas, que,
por sua vez, ao nível nacional, fazia essa gestão através das suas direções especializadas.
Algumas tiveram a importante tarefa de, num país recém-independente e com um enorme
déficit de recursos hídricos, explorar o máximo de água compatível com a conservação
dos recursos, optimizar a utilização da mesma, primar pela equidade na sua distribuição.

De realçar, as funções relativas à conservação dos recursos, um órgão designado por


Gabinete de Água, a quem, entre outras tarefas, cabia executar estudos de base dos
recursos, análise de água, elaboração de cartas hidrogeológicas.

Relativamente à produção e a distribuição da água no meio rural, o Gabinete ocupou-se


fundamentalmente da manutenção do material de elevação da água, suportada por uma

269 Cf. Relatório da Direcção Geral da Conservação e aproveitamento dos Recursos Naturais (1982). Praia: Direcção
de Exploração e Gestão de Águas Subterrâneas.
270 Cf. Gomes, Alberto da Mota (1982). Direcção de Exploração e Gestão de Águas Subterrâneas. Praia: Direcção
Geral da Conservação e Aproveitamento dos Recursos Naturais.

147
estrutura central que ajudava, por exemplo, na formação e na reciclagem do pessoal das
brigadas.

Para a irrigação, o Ministério da Agricultura e Águas teve um papel importante por


intermédio dos seus delegados e de suas equipas, nomeadamente na abertura de furos um
pouco por todas as ilhas agrícolas, nomeadamente a de Santo Antão.

Ao longo dos dois últimos capítulos, procurei seguir o percurso histórico da ilha de Santo
Antão, iniciado de forma efetiva a partir dos primeiros anos do século XVII, com enfoque
em matérias que têm que ver com a terra e com a água, passando naturalmente pela
estrutura do poder local e pelas dinâmicas, social e institucional.

A sesmaria, enquanto lei agrária de fomento da produção agrícola e do cultivo das terras,
instituído no Portugal medieval e transplantado para o império português na idade
moderna, em Santo Antão, merece ser destacado, como procurei fazer ao longo do
terceiro capítulo, com um olhar sobre a propriedade fundiária, a forma como era
adquirida, constituíndo esta o principal suporte da riqueza e do poder.

Funcionando como mecanismo de diferenciação social e manutenção do poder dos


grandes proprietários rurais, gerando e acentuando a desigualdade fundiária, este sistema
terá contribuído para o aprofundamento da tensão social verificada no século de
oitocentos, de que as revoltas populares ocorridas no final desse século são disto um
exemplo.

Se nos primeios séculos da história de Santo Antão, a dinâmica social e institucional


concentrou-se fundamentalmente nos territórios localizados mais ao norte da ilha, a partir
dos anos sessenta do século XX, a região sul entrará numa dinâmica mais visível. Lajedos,
Ribeira das Patas, Martiene, Jorge Luís, Manuel Lopes, Ribeira da Cruz, Altomira,
Bolonha, Chã de Norte, Chã de Feijoal, Pascoal Alves, Mourrinho de Égua, Água
Margosa, Chã de Praça Larga, Água das Patas,(Planatlo Norte), Lombo das Lanças,
Lombo da Torre, ribeia de Cabeçadas, Queimado, (Planalto Sul), Tabuga, Monte Trigo,
Tarrafal de Monte Trigo, constituem, entre outros, os principais povoados que compõem
o concelho do Porto Novo que, nesse século ganhou, finalmente, a sua autonomia
administrativa em relação ao concelho do Paúl.

148
Não sendo possível abarcar todos estes povoados, os capítulos que se seguem reportam
ao Tarrafal de Monte Trigo, pelas particularidades que encerra em matéria fundiária,
eleita, por isso, como um estudo de caso, no âmbito deste trabalho.

149
CAPÍTULO IV.

TARRAFAL DE MONTE TRIGO

150
4.1. O povoado e as suas potencialidades naturais

Figura 37. Vista parcial do Tarrafal de Monte Trigo


Fonte: Acervo pessoal

Figura 38. Vista parcial de Monte Trigo


Fonte: Arquivo pessoal

Tarrafal e Monte Trigo são dois povoados localizados no extremo sul da ilha de Santo
Antão, entre as montanhas e o mar no sudoeste, protegidos dos ventos predominantes do
noroeste do concelho do Porto Novo.

Só muito recentemente começaram a ser vistas como duas comunidades


gémeas. Aliás, a identidade toponímica dos dois lugares não ilude. Irmanadas
pela sua cultura socioeconómica, protogonizando interessantes factos
históricos, comuns, pouco esudados, pouco conhecidos, desafiam e suscitam

151
a ideia de um novo modelo de desenvolvimento local que reforce a sua
incontornável e genuina cumplicidade humana e cultural (Lopes, 2018:3).

Quer Tarrafal, quer Monte Trigo,271 despertam hoje um novo interesse pelas suas
características paisagísticas. “As duas povoações, enquadradas pela imponência de Topo
de Coroa pelo lado norte e pelo oceano a sul, oferecem ao visitante uma experiência
inédita, por isso muito procuradas por visitantes de várias origens nos últimos anos, apesar
de difícil acesso.”272

A dimensão histórica destas duas povoações é marcante no Cabo Verde contemporâneo.


Foram baluartes das grandes fomes na ilha, acolhendo os famintos deslocados
dos planaltos; cenário de confrontos na II Guerra Mundial salvando náufragos
de navios bombardeados por submarinos alemães estacionados na
proximidade de suas baías. Monte Trigo, colado a Tarrafal a 45 minutos de
bote e 4 horas de caminho a pé, é o povoado mais ocidental de Cabo Verde,
próximo à Ponta de Chão de Mangrade,273 referência histórica que serviu há
cinco séculos atrás para “dividir” o mundo” (Lopes, 2018:3-4).

Localizado “na costa sudoeste da ilha de Santão Antão, junto à foz de uma ribeira,”274 a
entrada ao Tarrafal pode-se fazer por terra, ou por mar, a partir da Ponta do Atum.

271Monte Trigo, com 75 famílias, é uma zona piscatória electrificada a 100% com energia solar, uma expeiência que,
segundo as autoridades locais, tem despertado grande interesse pelas soluções inovadoras que apresenta, mas também
pelo impacto que teve na persecução dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS). Uma experiência bem-
sucedida em termos de integração das populações no meio rural com o impacto significativo na localidade( LOPES,
L. (2018). O Concelho do Porto Novo. In PDI Tarrafal_ Monte Trigo e Monte Trigo 2018/2021; Mindelo: M_EIA,
p. 2).
272 Lopes, L. (2018). Op. cit. p. 2.
273“(…) Is the westermost point of not only Cape Verdde but all Africa, i tis located nearly 5 Km northwest of Monte
Trigo in the Island of Santo Antão and has no accessible roads. (…) Some 25-30 Km northwest in the Nola Seamount
and over 230 Km northwest is the Santo Antão Ridge. Also in the point´s location, it is the closest land area from
Cape Verde to one of the Caribbean Islands which is Barbados, being 3,681Km from the point near Stroude Land,
About 2 Km northwest at another poit is the closest to the North American mainland being 4,548 Km from Little
Dover at a point near Canso, Nova Scotia and all North America being about 4, 146 Km from the Abvalon Peninsula”,
Cf. https://en.wikipedia.org./wiki/Ponta de Mangrande.
274Lereno, Álvaro (1952). Dicionário Corográfico do Arquipélago de Cabo Verde. Lisboa: Agência Geral do Ultramar,
p. 538.

152
Figura 39. Ponta do Atum Figura 40. Zona ribeirinha (praia grande)
Fonte: Acervo pessoal

A zona ribeirinha, localmente conhecida por praia ou Tarrafal de baixo, é uma confluência
do azul do mar275 e o verde, exibindo a pesca e a agricultura, as duas atividades
económicas do povoado, hoje, com o acréscimo do turismo em franco crescimento.
Agostinho Pereira é a comunidade mais próxima, a menos íngreme em todo o Tarrafal,
no lado oposto à Varanda, a antiga residência da família Ferro, de que falarei mais à
frente.

Figura 41. Agostinho Pereira Figura 42: Varanda


Fonte: Acervo pessoal

275 A praia grande, é a maior, e, considerada por muitos a mais bela praia de areia negra de Santo Antão.

153
A partir da Varanda, sobe-se pela Ladeira, bastante íngreme, mas com muitas áreas de
regadio.

Figura 43. Ladeira


Fonte: Acervo pessoal.

A próxima paragem é o Covão. Um assentamento importante, dos mais densamente


povoados em Tarrafal de Monte Trigo.

Fonte: Acervo pessoal.

Figura 44. Vista parcial do Covão


Fonte: Acervo pessoal

154
O próximo assentamento é Lombo de Cal, a partir de onde ruma-se à nascente - a mãe de
água276 - como localmente é chamada, no sopé do Topo de Coroa.

Figura 45. Lombo de Cal


Fonte: Acervo pessoal

Assim, Tarrafal de Monte Trigo desenha-se na encosta de uma montanha bastante


íngreme estando o terreno cultivável disposto em socalcos. Como acontece em Santo
Antão, a ânsia de conquistar terrenos para a agricultura, levou os camponeses a
dominarem mais da metade da encosta, aproveitando os lençóis de água, escondidos nas
montanhas, sendo que a área irrigada totaliza mais de 61.789 ha277

Tarrafal de Monte Trigo pode ser dividido em três zonas distintas:


I. Agostinho Pereira.

II. Covão Chã de Preguiça


Cabouco de Tarrafe
Ladeira.

276Vulgarmente chamado pelas gentes do Tarrafal por “Ziélv,” provavelmente do José Alves, em português.
Desiganção desafiante para quem, porventura, venha se interessar em estudar as toponímas desla localidade de Santo
Antão, muito conotada com nomes de pessoas.
277Relação de Proprietários do Tarrafal de Monte Trigo (1983).Arquivo do MADR. Praia: Ministério do
Desenvolvimento Rural/Direção Regional de Santo Antão.

155
III. Lombo de Cal Covoada de Inglês
Cinta de Pau
Serra
Praça Larga
José Alves.

Todas estas zonas são bastante íngremes, à exceção de Agostinho Pereira, na foz da
Ribeira de Tapume. Na sua grande parte, o terreno é muito rochoso, impróprio para
qualquer tipo de exploração agrícola.
Alí, no entanto, pratica-se a agricultura, sob um eforço tenaz e qualquer trabalho é
árduo e pouco compensativo. As plantas estão em autênticas células, ocupando cada
planta uma célula. O solo é quase inexistente e a sua profundidade efetiva é menor
do que 20 cm; a estrutura é solta, fazendo com que a permeabilidade seja muito
elevada e a capacidade de armazenar a água no solo seja muito baixa. Noutras partes
de Covão já a percentagem de limo e argila é mais elevada e a capacidade de reteção
de água é maior.278

Na sua essência os solos são muito arenosos, a pedregosidade é elevada e o teor da matéria
orgânica é baixa. No entanto, pelo seu potencial de desenvolvimento económico, Tarrafal
foi desde sempre considerado uma das melhores comunidades da ilha de Santo Antão,
pela abundância de água disponível para a agricultura.
A água cahe por uma pequena torrente poren he de cima das montanhas, e a um
tanque em um socalco, que recebe a água, donde é conduzida por um canno a travez
da área. Há na vizinhança do Tarrafal, bannannaes, papaiaes, algodoaes com algumas
arvores – e he junto a praia um poço que recebe a agoa do tanque (Chelmicki,
1841:15).

É das poucas localidades do Concelho do Porto Novo com água de nascente para a
agricultura com custos de distribuição, por gravidade, quase zero. “A água neste povoado
nunca é problema, pois existe em grande quantidade, o problema é a exiguidade de
terreno, para tanta água.”279A abundância deste recurso é, em parte, responsável pela
produção do inhame,280fazendo do Tarrafal uma referência nacional, em matéria da
produção deste tubércole.

278 Ministério do Desenvolvimento Rural- Relatório- I Semiário Nacional sobre a Reforma Agrária, pp. 1.2.
279Relação de Proprietários do Tarrafal de Monte Trigo (1983). Arquivo do MDR. Praia: Ministério do
Desenvolvimento Rural/ Direção Regional de Santo Antão, p. 3.
280 Nome mais comum do tubércule da do género Dioscorea.

156
A produção de inhame (700 toneladas/ano) suportada numa revolucionária
tecnologia local introduzida há alguns anos no vale é a mais expressiva. Mantém
cerca de 130 agricultores activos com duas colheitas/ano. A seguir vem a cana
sacarina:500 garrafões (10.000 litros); mandioca, manga, batata doce. A cultura do
inhame ultrapassou a da cana sacarina, outrora a mais importante no Tarrafal. De
uma maneira geral o produtor de grogue é o mesmo de inhame (Lopes, 2018:4).

Figura 46. Cultura de inhame


Fonte: Acervo pessoal.

O Curral de Trapiche, propriedade da antiga família Ferro, constitui um outro ex-libris do


Tarrafal. Exemplar único durante o consulado da família Ferro, altura em que era o
proprietário quem determinava a política de produção, logo, os tipos de cultura que
deviam ser praticados em cada área. Sobre este aspeto falarei mais à frente. De momento,

157
gostaria de realçar a dimensão histórico-cultural do Trapiche, ainda em uso, à espera de
ser dada a sua devida projeção.
(…) H´um ti te bem de trepitche! Hoje turistas en d’tchém trebaiá! Te perguntém
kosa de kel trepitche! Principalmente sobre kel motor (…) Ogó ne mês de mórze el
te feze 200 ón! Pké la ne kel inscrison tá 17 de morze de 1817. Nhé pei comprel ne
Sr. Tuta ne S. Vicente, e Sr. Tuta tinha el compróde ne kes inglês k’tava bem pe S.
Vicente...281 (Diário de campo. TMT. Fevereiro de 2017).

Foi dessa forma natural que Firmino entrou em conversa, enquanto falava com um dos
meus interlocutores, Sr. Apolinário, durante a minha primeira pesquisa de campo. A data
me intrigou. Os 200 anos do trapiche da família Ferro merece comemoração, pensei! Uma
peça da 2ª Revolução Industrial ainda em plena função! Uma relíquia, que merece a
devida projeção, dentro da ideia do museu que o próprio Firmino ventilou. “M’eh tá gostá
de fezé um museu dente déss k’rral de trepicthe! Pe kónd es turistas te bem. Tud turista
te gostá d’entrá ness K’rral de trepitche pes bé oiá, principalmente kel mutor.” 282 Um
motor, que segundo diz, foi comprado pelos ingleses que em tempos passavam por São
Vicente.283 Outro aspeto interessante a se ter em conta, quando se procura entender a
ligação Tarrafal de Monte Trigo-São Vicente, de que falarei em momento próprio. Se o
motor ainda está em pleno funcionamento, não obstante os seus 200 anos de fabrico, o

281 “Venho do Trapiche! Hoje os turistas não me dixaram trabalhar! Perguntatavam muito sobre o trapiche!
Pricuipalmente s acerca do motor…. Agora no mês de março fará 200 anos. Porque na sua inscrição está 17 de março
de 1817! O meu pai o comprou no senhor Tuta em São Vicente, e o senhor Tuta o tinha comprado ns ingleses que
vinham a São Vicente…”. (Tradução livre do autor).
282 “Eugostaria de fazer um museu dentro do Curral do Trapiche! Para quando os turistas vêm. Todos os turistas gostam
de entrar no curral do trapiche para irem ver, principalmebnte aquele motor.” (Tradução livre do autor).
283 As condições naturais adversas da ilha de São Vicente, nomeadamente a aridez e a falta de reucursos hídricos,
dificultaram a sobrevivência do pequeno núcleo populacional comprometendo assim o seu povoamento e
desenvolvimento, até a década de 30 do século XIX. Em 1819, hidrógrafos ingleses chegaram a Cabo Verde à procura
de um porto que servisse como ponto de abastecimento para o seu tráfico Atlântico e serviço postal entre a Inglaterra,
América do Sul, África e Ásia, numa altura em que a Inglaterra estava interessada em aumentar o seu mercado
comercial para colocar os produtos industriais noutros países e continentes e trazer matérias primas das colónias. O
navio a vapor tinha revolucionado o sistema de transporte e entrado nos mares do mundo. É neste contexto que o
Porto Grande de S. Vicente vai surgir como ponto importante no Atlântico. A dinâmica interna da ilha irá
desenvolver-se em função do seu porto. Assim, em 1838, foi instalado um depósito flutuante desse combustível pela
companhia inglesa EAST Índia. O número de barcos entrados no porto era cada vez maior e, a partir de 1850, novas
companhias inglesas foram instaladas: Steam Packet (1850); Patent Fuel (1851); Visger & Miller (1873); Cory
Brothers & Cª (1875); Wilson Sons & Cº (1885); Companhia S. Vicente (1896). A povoação do Mindelo vai
crescendo, assim, em função do movimento portuário. A população aumenta, pois, S. Vicente começa a receber
contingentes de habitantes oriundos das ilhas, sobretudo de S. Nicolau e S. Antão, que viram essa ilha como um
refúgio às calamidades resultantes dos maus anos agrícolas. Sobre estes e outros aspetos sugiro a leitura de Linhas
Gerais da História do desenvolvimento Urbano da Cidade do Mindelo, Praia: Edição do Fundo de Desenvolvimento
Nacional - Ministério da Economia e das Finanças, e/ou Correia e Silva, António (2005). Nos Tempos do Porto
Grande do Mindelo, Colecção “Documentos para a História de Cabo Verde,” Praia-Mindelo: Centro Cultural
Português.

158
mesmo não acontece em relação aos reservatórios de água, a partir dos quais a ilha de São
Vicente foi durante muito tempo abastecida pela Ferro & Companhia, L. da, sobre o qual
também debruçarei também mais à frente.

Figura 47. Reservatórios de água destinada ao abastecimento dos navios-cisternas


Fonte: Acervo pessoal

Em relação ao ancoradouro do Tarrafal de Monte Trigo, já no século XIX foi considerado


“o melhor logar no Archipelago para fazer aguada, e refazer-se de refrescos.”284 Sena
Barcellos, faz a seguinte descrição do mesmo:

Este porto, ou antes bahia, está exposto aos ventos do O; mas fica abrigado da brisa.
Pela sua disposição, não é muito incomodado pelo SO;e é bastante espaçoso. Os
navios grandes fundéam perto da terra, em fundos de 15 braças, e em menos os
pequenos. Sendo a costa O muito calmosa, torna-se difícil, que os navios de vela
alcancem o ancoradouro, o que só podem fazer quando se declara a vivação de O.
Tanto com o SO; como as maresias do NO, entra n´esta bahia mar de grossa vaga.
Ali vae desaguar uma das ribeiras mais importantes da ilha, a que fornecia a agua
para o consumo da cidade do Mindello, antes da canaisação das nascentes da ilha de
S. Vicente.Tem algumas casas, próximo da beiramar, e o ancoradouro fica a E.O. da
casa que está construída mais ao S. Na parte N. da foz da ribeira está a bahia de
Antonio Pereira, com bons ancoradouros, a qual é bom abrigo quando há muita
maresia. É um dos melhores portos d´esta ilha (Barcellos, 1892:65-66).

Por ora não incidirei sobre a importância da baía do Tarrafal e do seu ancoradouro. Tão-
somente realçar o papel deste povoado e a sua ligação à ilha de São Vicente. Uma ligação

284Chelmicki (1841). op. Cit. p. 15.

159
inciada na sequência do abastecimento de água áquela ilha, transportada em pequenos
navios-cisternas, Vaporins d´Água,285 como o povo os crismou.

Ora, “se os lucros desse tipo de comércio em nada beneficiaram os camponeses do


Tarrafal que só viam os Vaporins d´Água a encher os tanques, subtraíndo
permenentemente a água das suas terras,”286 este negócio acabou por projetar o povoado,
minimizando, de certa forma, o seu isolamento no contexto de Santo Antão e de Cabo
Verde, ao ponto de ser referenciado pelos cânones da literatura cabo-verdiana.
(…) que constraste com a secura de São Vicente, aquela concha verdejante do
Tarrafal do Monte Trigo! Era sempre um espectáculo, uma sensação de frescura,
quando se demandava a enseada e o fundeadouro. Desde a praia até quase ao topo
da montanha espalhavam-se as manchas verdes, bananeiras, papaeiras, figueiras,
palmeiras, cana-sacarina. De Janeiro a Dezembro, o cenário era quase igual, aparecia
até estranho haver assim aquele oásis no meio de tanta aridez (Sousa: 1998:109-110).

E se dermos crédito aos textos literários,287 pode-se dizer que a baía do Tarrafal nas
primeiras décadas do século XX não só era conhecida como referenciada a nível
internacional. “Os alemães são levados da breca. Sabiam que ali havia água potável
abundante e boa. Sabiam que Tarrafal é que fornecia água para o Porto Grande. E sabiam
que o transporte dessa água era feito por barco.”288

O abastecimento de água à ilha de São Vicente, a partir do Tarrafal de Monte Trigo,


acabaria por estreitar de forma profunda a relação entre essa ilha e o Tarrafal, percetível,
por exemplo, na designação de algumas toponímias mindelenses, como essa exibida na
figura que se segue.289

285Os últimos que trabalharam até à extinção da Companhia, na década de 70, foram baptizados com os nomes do
Tarrafal, Sagres e Porto Grande. Este último foi abatido e substituído por um outro navio, o mesmo que se desgarrou
anos atrás, em dia de grande ventania, acabando por encalhar ali para os lados da Cova d`Inglesa, onde ainda se pode
ver, completamente deteriorado, por quem circular pela estrada que leva a S. Pedro (Matos, 2003: 19).
286 Nôs Luta, Ano I, nº 9, 31/05/1975.
287A ficção poderá ser também mobilizada, porquanto nos textos literários, não raras vezes as linhas do pensamento
intelectual nacional se revelam, na medida em que os autores, em pleno domínio e responsabilidade sobre o que
dizem, ou fazem as suas personagens dizerem, acabam por dar voz àqueles que são colocados à margem da voz
oficial.
288 Sousa, Teixeira Henrique (1998). Capitão-de Mar-e-Terra. Lisboa: Publicações Europa-América, p. 180.
289Na foto apenas aparece a designação largo do Tarrafal. A partida, poder-se-á pensar na possibilidade de se tratar
não necessariamente do Tarrafal de Monte Trigo, mas também de outras localidades como o Tarrafal de povoação da
Ribeira Grande ou mesmo o Tarrafal de São Nicolau. Porém, pela frequente ligação - São Vicente – Tarrafal de
Monte Trigo, na sequência do abastecimento de água, a partir dali, induz-nos a pensar tratar do Tarrafal de Monte
Trigo, com a devida ressalva que se impõe uma situação dessas.

160
Figura 48. Largo do Tarrafal – Ilha de São Vicente.
Fonte: Iconografia de Cabo Verde. MDE- ANCV.

São evidências que revelam não apenas a importância do Tarrafal de Monte Trigo no
abastecimento de água a um dos maiores centros urbanos de Cabo Verde, como a ligação
entre esse povoado de Santo Antão e a ilha de São Vicente, numa altura em que esta ilha
se encontrava em plena fase de construção, à volta e por força do seu Porto Grande.

Apresentadas as potencialidades naturais do Tarrafal de Monte Trigo, com realce para as


suas valências quer no domínio da agricultura, quer no domínio do mar,290 no tópico que
se segue incidirei sobre a ocupação efetiva do povoado e a sua evolução ao longo dos
tempos.

290Além de constituir, por muito tempo, a única porta de saída e de entrada ao Tarrafal de Monte Trigo, o mar teve e
continua a ter uma importância grande na vida das suas gentes pelo contributo no domínio da pesca. Esta, cosntitui
“o sector económico mais expressivo do Tarrafal. Todavia, não consegue sair de um estado quase letárgico para anahr
novo fôlego. Os constrangimentos são vários, são da ilha no seu conjunto. O Tarrafal, com cerca de 90 pescadores,
apenas 20 trabalham regularmente. A frota é artesanal, contam-se 32 botes de boca aberta de 6 a 7 metros, apenas 21
com registo (…) A associação de pescadores do tarrafla de Monte Trigo gera a unidade de produção de gelo e acaba
de integrar uma iniciativa no domínio do processamento de pescado… (Lopes, 2018: pp. 8-9).

161
4.2. A ocupação do Tarrafal de Monte Trigo e a sua exploração efetiva

Pósse de Pó, Pósse de Pédra, fim do mundo, kóbe d’vida!.291

Este adágio, que entrou na memória coletiva das gentes do Tarrafal de Monte Trigo,
constitui a forma metafórica de explicar, a um só tempo, a antiguidade e o isolamento do
povoado. Passáro de Pau é um topónimo importante relativamente às referências da orla
marítima entre Porto Novo e Tarrafal de Monte Trigo. Artur Teodoro de Matos faz
menção à praia formosa, nos arredores dessa localidade, nos seguintes termos:
Ao tempo dos primeiros donatários remontava também a abertura do denominado
caminho da corda, que se estendia por uma légua, todo “lavrado na rocha viva” e
indispensável acesso à costa Sul, onde se localizava o porto dos Carvoeiros, o melhor
da ilha. Pero da Fonseca mandara abrir um poço, empedrado no interior, para garantir
a água ao gado da fazenda e seu filho promovera a construção do cural da Praia
Formosa, na costa Sul, “feito todo de parede” (Matos, 2003:262-263).

Ao falar do tempo dos primeiros donatários, o autor leva-nos a pensar na possibilidade


dessas localidades serem conhecidas desde os finais do século XVI, início de XVII.
Questionado sobre o significado do adágio acima referido, tão conhecido em Tarrafal, um
dos meus interlocutores explica:
Um bark k’encalhá nesse mar de T´rrafal, ne kel temp inting. Enton um de kes
tripulentes consegui nadá eté posse de pó, la pe kes banda de praia formosa. Ma el
m’rrê de sêd la ne kel praia. E entes del m’rre el escrevé num pedra: Pose de Pó,
Posse de pedra, fim do mund kobe dé vida, non foi mon de home é k métem mês sim
falta d’ága. Essim k kmeçá estória de Trrafal.292 (Diário de campo. TMT, agosto de
2018).

O fim do mundo leva-nos a pensar no isolamento do Tarrafal do resto de Santo Antão,


tão longe dista dos restantes povoados, com exceção do de Monte Trigo, cujo acesso,
contudo, era possível apenas por mar e através de pequenas embarcações, os botes a remo.
A simbologia do local tem também que ver com o encalhe do navio John Schmeltzer nos
anos da fome da década de 40 do século XX, referida mais à frente. Co-relaciona ainda

291 Pássaro de pau, pássaro de pedra, fim do mundo, tormento da vida! (Tradução livre do autor).
292Um barco que encalhou nesse mar do Tarrafal naquele tempo antigo. Então, um dos tripulantes conseguiu nadar até
o pássaro de pau, lá para aquelas bandas da praia formosa. Mas, acabou por morrer a sede naquela praia. E ante de
morrer, escreveu numa pedra: Pássaro de pau, pássaro de pedra, fim do mundo, cabo da minha vida, não foi mão de
homem que me matou, mas sim, falta de água. E foi assim que começou a história do Tarrafal! (Tradução livre do
autor).

162
com os naufrágios, omnipresentes na baía do Tarrafal, lembrando que a história desta
região se confunde também com a epopeia do mar e dos constantes naufrágios.

No âmbito deste trabalho, interesso-me, porém, com o campo, mais especificamente a


forma como as terras e a água foram exploradas em Tarrafal de Monte Trigo. Um
contributo à agro-história de uma das regiões mais agrícolas do extremo sul do Concelho
do Porto Novo.

Como disse anteriormente, Artur Teodoro de Matos dá-nos conta de sítios, como o cural
da Praia Formosa, serem conhecidos desde o século XVI. Pela sua proximidade da ribeira
do Tarrafal, podemos admitir a possibilidade de também ela ser conhecida por essa altura.
Porém, o documento mais antigo que analisei e no qual Tarrafal de Monte Trigo aparece
explicitamente referenciado foi um relatório datado do séc. XIX, no qual se faz uma
descrição da ilha de Santo Antão, de uma forma geral.

Referindo-se às ribeiras do Monte Trigo e Tarrafal, diz “ser notável a ribeira do Tarrafal,
pelo estabelecimento agrícola que ali está organizando o seu proprietário João António
Martins, cuja atividade é digna de ser auxiliada.”293

A leitura desta informação permite-nos constatar que, nessa altura, as terras pertenciam a
João António Martins. Que era um homem envolvido em negócios, as informações dadas
por Barcellos não deixam margens para dúvidas.294Este apelido não deixa de ser
instigante, porquanto indicia-nos a pensar na possibilidade de ser descendente de Manuel
António Martins.295 Aliás, Chelmicki (1841) nos informa sobre a presença de Manuel
António Martins na ilha de Santo Antão:

Manuel António Martins tem as maiores fazendas n´esta ilha e deu o primeiro
exemplo que seguiram alguns que tinham raciocínio: elle então como prefeito n´este

293 ANCV-SGG. Cx. 269. Correspondência recebida da Administração do Concelho da Ribeira Grande, 1881.
294 “O governador em 4 de Outubro de 1849 enviou para o Ministério uma proposta do negociante João António Martins
que, debaixo de certas condições se comprometia a fazer na ilha de São Vicente os edifícios necessários para o
definitivo estabelecimento do Governo Provincial” (Barcellos, 1899, Parte IV, p. 144.)
295Um reinol que se enraizou em Cabo Verde, um dos maiores escravocratas da 1ª metade do século XIX, fez fortunas
em quase todas as ilhas, sendo os maiores feitos nas Ilhas da Boa Vista e do Sal da qual foi promotor de povoamento
e exploração efetivos. Desempenhou vários cargos, chegando a ser Prefeito de Cabo Verde. Morreu em 1845 e foi
sepultado no Cemitério da Povoação de Santa Maria, na ilha do Sal.

163
tempo, mandou arrancar algumas vinhas para aproveitar o terreno a géneros mais
uteis, e necessários para combater a fome ainda sensível (Chelmicki, 1841:155).

Relativamente à propriedade do Tarrafal de Monte Trigo, ao afirmar que “ a ribeira do


Tarrafal, que pela maior parte pertence ao Sr. Martins (…),”296 o autor deixa claro o facto
de pelo menos uma boa parte dela pertencer a Manuel António Martins.

Em 1889, o Conselho de Província de Cabo Verde publica um acórdão, no qual informa


sobre a situação de irregularidade da propriedade do Tarrafal de Monte Trigo sobre a qual
recaía uma dívida à Fazenda Nacional, respeitante aos anos de 1882 a 1885, durante os
quais o proprietário, João António Martins, não pagara as quotas de décima.
(…) Mostra-se que, sendo João António Martins devedor á fazenda nacional da
quantia de 270$161 réis, proveniente da contribuição predial respeitante aos anos de
1882 a 1885, e que extrahido em 3 d´agosto de 1888 o mandado de citação repetivo,
foi a mesma citação feita no dia seguinte na pessoa de D.Theodora Ferreira Martins,
viúva do executado (…); Mostra-se que, apresentando-se a referida viúva, a 20 de
novembro do mesmo anno, a pagar as quotas de decima, relativas a diversas
propriedades inscriptas na matriz predial primordial em nome do executado João
António Martins, deixou em dívida a quota relativa á propriedade denominada
Tarrafal de Monte Trigo.297

A leitura deste excerto permite-nos constatar que, nessa altura, João António Martins já
era falecido e que, além do Tarrafal de Monte Trigo, dispunha de outras propriedades na
ilha de Santo Antão, porquanto teria sido um dos gandes proprietários de terras na ilha.
O acórdão permite-nos ainda constatar um relativo abandono dessa propriedade pelo
agora representante de João António Martins, Theodora Ferreira Martins, viúva do
mesmo, e a dificuldade de se encontrar alguém que se interessassse pelos seus
rendimentos.
Mostra-se que, mediante mandado respectivo, foram no dia 3 de dezembro
penhorados os rendimentos da aludida propriedade do Tarrafal de Monte Trigo, -
que, no dia 11 de fevereiro do corrente anno de 1889 foram aquelles rendimentos
postos em praça por 100$000 réis-preço de avaliação-; e que, não tendo aparecido
licitantes na primeira e segunda praça – esta effectuada no dia 18 do mesmo mez -
foram a final os rendimentos arrematados em 3ª praça, no dia 25 do referido mez,
por Adolpho Pires Ferreira, que por eles ofereceu a quantia de 8$000 réis por cada
anno, devendo o arrendamento durar por trinta e quatro anos. Mostra-se finalmente,
que nem no acto de arrematação, nem posteriormente, a ella apareceu embargo

296 Chelmicki, (1841). op. Cit. p. 20.


297 Acórdão nº 17 Conselho de Província, Sessão de 25 de abril de 1889, Boletim Oficial nº 17 de 27 de abril de 1889.

164
algum á penhora; que as praças foram sempre anunciadas por editaes com
antecedência, que á primeira, segunda e terceira praça esteve presente o subdelegado
do respetivo julgado.298

Porém, o processo de execução administrativa, levado a cabo pela administração do


Concelho do Paúl contra João António Martins para a cobrança coerciva da contribuição
predial referente à propriedade do Tarrafal de Monte Trigo, acabaria por ser anulado pelo
Conselho da Província de Cabo Verde, que entendeu não haver trâmites legais para o
efeito.
Considerando, porém, que os rendimentos ou rendas das propriedades rústicas ou
urbanas, que,nos termos das leis vigentes, podem ser penhoradas e arrematadas
administrativamente para pagamento das dívidas á fazenda nacional, são só as rendas
ou alugueis que constem de contratos de arrendamento de um ou mais anos, feitos
pelos donos das propriedades;Considerando que do processo respectivo não consta
que a propriedade em questão estivesse arrendada quando foram penhorados os seus
rendimentos e postos em praça, sabendo-se antes-por outros documentos presentes a
este tribunal-que o não estava;Considerando que do aludido processo não se conhece
se o executado só possuía bens de raíz, pois que possuindo elle bens moveis,
semoventes, rendimentos ou rendas de propriedades rústicas ou urbanas e dívidas
activas, é n’esses bens que devia effectuar-se a penhora administrativa;
Considerando que quando o devedor de impostos á fazenda nacional não tenha bens
moveis ou semoventes, nem dívidas activas ou rendas de propriedades rústicas ou
urbanas, mas possua bens de raiz que não estejam arrendados, não pode haver
execução administrativa.299

Nestes termos, foram dadas instruções ao Administrador do Concelho do Paúl no sentido


de
fazer lavrar auto d´onde conste que o devedor só possue bens de raiz-não tendo
effectivamente outros sobre que recaia a penhora – e remeter o processo
administrativo ao agente do ministério publico, para continuar a execução no poder
judicial, por ser incompetente a execução adminisitativa sobre rendas que não
existem.300

Não me foi possível, até agora, encontrar elementos que me permitissem ver o desfecho
do processo, desta feita, no Ministério Público. Porém, sete anos depois do sucedido
acima referido, a propriedade do Tarrafal de Monte Trigo aparece inscrita em nome de

298 Idem, ibidem.


299 Acórdão nº 17 Conselho de Província, Sessão de 25 de abril de 1889 (BO nº 17 de 27 de abril de 1889).
300 Idem, ibidem.

165
João Burnay.301 “Esse prédio achava-se inscrito na anterior matriz, organizada em 1896,
em nome de João Burnay, residente em Lisboa.”302

É o próprio escrivão da Repartição de Fazenda a informar que, relativamente às matrizes


anteriores a 1896, nada se pode dizer, porquanto se queimaram no incêndio que destruiu
a Repartição de Fazenda do extinto e antigo concelho do Paúl.303

No início do século XX, em dezembro de 1911, a Repartição Superior de Fazenda da


Província de Cabo Verde, informa que
o prédio rústico de regadio e sequeiro, situado na ribeira do Tarrafal de Monte Trigo,
Freguesia de S.João Baptista, que se diz pertencer a Apolónia Burnay Martins, está
inscrito na actual matriz d´aquella freguesia, organizada em 1906, em nome de
Fernando Burnay Martins, residente em Lisboa.304

Quando, em 1917, o Governo da Província de Cabo Verde propõe comprar a propriedade,


“por esta se encontrar em estado de abandono,” surge um outro nome dizendo-se co-
proprietário. António Vicente Fialho reage, numa exposição dirigida ao Governador da
Província, dizendo que, na condição de co-proprietário “em seu nome e no da sua mulher
Beatriz Burnay Martins Fialho,”305 informa que
a propriedade do Tarrafal de Monte Trigo pertence aos indivíduos acima e o usufruto
à Exma. Senhora D.Apolónia Burnay Martins, que por falta de capital não tem
explorado a referida propriedade, mas para que não fosse considerada abandonada
concordaram colocar lá um guarda que garantisse o direito dos proprietários.306

Dois anos depois, em 1919, Tarrafal de Monte Trigo é referenciado, pela primeira vez,
como a ribeira de Santo Antão, “a 20 milhas do Porto Grande,” 307 a partir de onde é

301No Arquivo da Torre do Tombo, em Portugal, encontrei o processo de requerimento de passaporte de João Burnay,
datado de 18 de junho de 1886, no qual é identificado como natural de Cabo Verde e filho de Fernando Burnay
(Governo Civil de Lisboa, Processo de requerimento de passaporte, Cx. 2. Doc.70).
302ANCV-SGG. Cx. 768. Documentos relativos a compra da propriedade denominada Tarrafal de Monte Trigo em
Santo Antão para gafaria.
303 Lembremos que até meados do século XX, todo o espaço que compõe o atual concelho do Porto Novo, estava
incluído no Concelho do Paúl, para todos os efeitos administrativos.

304ANCV-SGG. Cx. 768. Documentos relativos a compra da propriedade denominada Tarrafal de Monte Trigo em
Santo Antão para gafaria.
305 Idem, ibidem.
306 Idem, ibidem.
307Sousa, Teixeira de (2018). Abastecimento de Água à Cidade do Mindelo. In História de abasteciemento de Água à
Cidade de Mindelo. Fontes, Nascentes e Dessalinização. Mindelo: Aganos Vida & Electra, p. 52.

166
transportada a água para abastecer a ilha de São Vicente, altura em que foi constituída a
firma Ferro & Companhia. Nota-se, porém, que o transporte de água a partir do Tarrafal
de Monte Trigo remonta ao início dos anos oitenta do século XIX, através “dum
Clarimundo Martins.”308
Em 1882 foi feito o contrato entre o Governo Provincial e Clarimundo Martins, que
durante 10 anos importaria água de Santo Antão, sem concorrência, livre de direitos,
com a condição de fornecer a população até 12 litros por dia e por habitante, e vender
água aos navios pelo preço máximo de 3,5 reis por litro, fornecer os navios do Estado
e distribuir certas quantidades de água gratuitamente ao Hospital, Câmara,
Alfândega, Polícia e Capitania.309

Mais tarde, o transporte desta água, “ de muito boa qualidade”310 aparece associado à
família Ferro. “Dizem os mais antigos que o Sr.José Augusto Ferro começou a trazer a
água em veleiros contendo tanques improvisados para, mais tarde, dada a muita procura,
comprar navios a vapor.”311

Inicialmente a Companhia Ferro, cuja escritura foi assinada em 27de junho de 1906,
veio a transformar-se em Ferro & Companhia, Lda., por escritura de 2 de junho
de1908, Sociedade esta que englobava vários sócios, incluindo companhias inglesas
sediadas em São Vicente. Teve um papel importante no desenvolvimento do Porto
Grande, visto que, sem essa água, o porto teria morrido, tendo em conta que S.
Vicente não tem nem nunca teve nascentes e água doce que permitissem o
abastecimento em quantidade e qualidade à navegação que demandava o seu bem
situado e conhecido Porto Grande. Por outro lado, as nascentes do Tarrafal tinham
água em abundância, o que levou a fundação da Companhia e permitiu que o Porto
Grande continuasse a ser frequentado pela navegação internacional, cujos navios
preferiam esperar algumas horas pela água, do que fazer desvio para Dakar ou Las
Palmas gastando mais horas de navegação e, consequentemente, mais combustível.
(Matos, 1996:19).

Atendendo o crescente aumento da população e a demanda de navios que ali aportavam,


“e que não eram poucos,”312 “a empresa adquiriu barcos-tanque movidos a vapor ( como

308 Boletim Oficial da Província de Cabo Verde, nº26/1883. Relatório do Administrador do Concelho, 1880-1882.
309 Boletim Oficial da Província de Cabo Verde, nº 7, 1883.
310Morais, João (2018). Água em S. Vicente. In História de abasteciemento de Água à cidade de Mindelo: Fontes,
Nascentes e Dessalinização. Mindelo: Aganos Vida & Electra, p. 28.
311 Matos, Mário (1996). Contos e Factos. Vaporim d’Agua. In Jornal A Semana, 22 de janeiro de 1996, p. 19.
312Matos, Mário (2018). Ága D´Madeiral. In História de abastecimento de Àgua à cidade de Mindelo: Fontes,
Nascentes e Dessalinização, Mindelo: Aganos Vida & Electra, p. 33.

167
o Tarrafal, com capacidade para 350 toneladas, o Sagres com 250 toneladas e o Porto
Grande com 200 toneladas).313”

Figura 49. Vestígios do cais do Tarrafal de Monte Trigo


Fonte: História de Abastecimento de Água à Cidade de Mindelo. Fontes, Nascentes e Dessalinização.
Mindelo: Edição Aga Nos Vida & Electra, p. 47.

Figura 50. “Vaporim d´aga” – Vascónia- São Vicente


Fonte: Morais, João (2018). Água em S. Vicente. In História de Abastecimento de Água à Cidade de
Mindelo. Fontes, Nascentes e Dessalinização, Mindelo: Edição Aga Nos Vida & Electra, p. 28.

Nota-se que a referida família dispunha de bens outros, nomeadamente “grandes terrenos
na ilha de São Vicente já nos anos de 1880, em Fonte do Francês, Lameirão, Ribeira de
António Gomes, Ribeira do Norte, toda a encosta Norte e Noroeste do Monte Verde até

313 Cordeiro, Ana (2018) Apontamentos para uma História do abastecimento de água a Mindelo. In História de
abasteciemento de Água à cidade de Mindelo: Fontes, Nascentes e Dessalinização. Mindelo: Aganos Vida & Electra,
p.20.

168
à Baía das Gatas, e parte da Matiota.”314 Que Augusto da Silva Pinto Ferro315 tinha
conexões com os ingleses radicados na cidade do Mindelo, nomeadamente em negócios
de água, não existem dúvidas. Em novembro de 1889, a Secretaria de Estado dos
Negócios da Marinha e Ultramar dirige uma exposição à sua Majestade nos seguintes
termos:
Senhor! É a questão do abastecimento de águas na cidade do Mindello e seu porto
uma das mais vitaes para o progresso e prosperidade d´aquelle importante centro de
população e comércio. Grato é, portanto, ao governo de Vossa Magestade ter ensejo
de concorrer para que ella se resolva por forma a tornar ali garantido, abundante,
barato e bom o fornecimento de água potável ao consumo da cidade e da
navegação.Por decreto com força de lei de 4 de dezembro de 1884 foi dada a Jorge
Rendall, Manuel Gomes Madeira e Aleixo Justiniano Socrates da Costa, mediante
determinadas condições, licença para construir aquedutos, chafarizes e outras obras
necessárias á canalização das águas potáveis das propriedades Madeiral e
Madeiralzinho, para abastecimento da cidade do Mindelo e fornecimento dos navios
que procuram o porto de São Viente de Cabo Verde.(…).E como esta empresa se
propunha satisfazer uma urgente necessidade publica e realizar um importante
melhoramento para aquella cidade e seu porto, valiosas concessões acompanharam
aquella licença, que em todo o caso não importou privilégio de fornecimento
exclusivo, pois que, segundo o art. 11º d´aquelle decreto, as aguas de que se serviam
os habitantes da cidade do Mindelo continuaram a ficar de uso público ou particular
como até então, bem como outras quaisquer que de futuro se decobrissem,
aproveitassem ou derivassem;(…) Acertada foi esta reserva, pois que uma nova
empresa, constituida por Augusto da Silva Pinto Ferro, John Visger Miller e John
Holoway, residentes n´aquella cidade, vieram em 22 de março d´este anno, requerer
concessão igual para as aguas de varias nascentes de quatro propriedades que o
primeiro dos requerentes possui no sitio denominado Norte, da referida ilha,
obrigando-se a fornecel-as ao público em condições mais vantajosas e por preços
mais baixos do que os concessionários actuaes (…).316

Nesta sequência, no mesmo ano foi permitida a canalização das águas potáveis das
nascentes das propriedades pertencentes a Augusto da Silva Pinto Ferro, no sítio
denominado Norte, da ilha de São Vicente.
Visto o que me representaram Augusto da Silva Pinto Ferro, John Visger Miller e
John Holloway, residentes na ilha de São Vicente, pedindo permissão para
começarem os trabalhos de abertura da valla e o assentamento de tubagem, que deve
ser importada, para a canalização, pedida pelos requerentes ao governo de Sua
Magestade, das aguas das nascentes denominadas do “Norte” d´aquella ilha para a

314Linhas Gerais da História do Desenvolvimento Urbano da Cidade do Mindelo (1984). Praia: Ministério das
Finanças, p. 132.
315Natural da freguesia de São João Baptista, Concelho da ilha Brava (Registo de óbito de José Augusto Ferro, nº 219
de 25 de julho de 1920, Lv. 13, fl. 2f. Nossa Senhora da Luz – São Vicente).
316 Boletim Oficial da Província de Cabo Verde, nº 51, 21 de dezembro de 1889.

169
cidade do Mindelo, obra cuja concessão está ainda dependente de resolução do dito
governo; e tendo em consideração que nenhum prejuízo resulta da execução imediata
dos trabalhos de que se trata, como informaram as autoridades locaes competentes;
visto que o traçado da dita canalização está projectado sobre terrenos não
particulares, e que os requerentes se sujeitam a pagar os direitos de importação
relativos ao material que é destinado áquella obra, enquanto não for resolvido de
outro modo superiormente sobre a concessão por eles requerida; Hei por conveniente
permitir que os ditos Ferro, Miller e Holloway, procedam à abertura da valla para a
projectada canalização, e bem assim ao assentamento da tubagem, que será
despachada nas condições geraes da pauta, ficando porém obrigados os requerentes
a restituir o terreno ao anterior estado, se por qualquer circumstancia o governo de
Sua Magestade não lhes fizer a concessão acima referida.317

A comercialização da água parece ter crescido nesta ilha, e tendia a ser monopolizado por
Augusto da Silva Pinto Ferro.
Uma das constuções feitas foi o depósito de água situado no topo da colina, que desta
maneira passou a designar-se Lombo de Tanque. A arquitectura do depósito, idêntica
à do depósito do Monte, propriedade da Empresa das Águas de Madeiral, mostra que
foi essa empresa que de facto veio a explorar as águas do Norte. Provavelmente
Augusto Ferro não teve outra alternativa de exploração das águas, senão usando o
depósito da cidade da Empresa das Aguas de Madeiral e aproveitando a técnica já
conhecida por essa mesma empresa e até talvez o seu capital, pelo que se ligou a um
dos sócios dessa companhia. Nota-se que os ingleses, inicialmente envolvidos na
canalização das águas, deixaram de constar no decreto publicado no ano de 1889. 318

Esta constatação é reforçada quando em referência a água da Vascónia, 319 encontramos


uma informação segundo a qual,
o prédio do Quintal da Vascónia inicialmente propriedade dos ingleses, que o
venderam à Companhia Ferro (cadastro das propriedades da Millers & Cory, 1923).
Era essa água que Ferro & C.ª, Lda. vinha vender para abastecimento da cidade e
navios fazendo escala no Porto Grande. A venda de água aos habitantes que antes
tido lugar na Pontinha, passou para o Quintal da Vascónia.320

317 Portaria nº 139. Boletim Oficial da Província de Cabo Verde, nº 16, 20 de abril de 1889.
318Linhas Gerais da História do Desenvolvimento Urbano da Cidade do Mindelo (1984). Praia: Edição do Fundo de
Desenvolvimento Nacional, Ministério da Economia e das Finanças, publicação do Ministério da Habitação e Obras
Públicas, p. 182.
319A desiganção Quintal da Vascónia é muito antiga. No século passado um barco incendiou-se no porto, e o que foi
possível salvar do incêndio foi posto no quintal da Cory Brothers. O barco tinha o nome de Vascónia, nome que,
portanto, também foi dado ao quintal depois dos aconteciemtnos dramáticos, Cf. Linhas Gerais da História do
Desenvolvimento Urbano da Cidade do Mindelo (1984). Praia: Edição do Fundo de Desenvolvimento Nacional.
Ministério da Economia e das Finanças, publicação do Minsitério da Habitação e Obras Públicas, p. 132.
320Linhas Gerais da História do Desenvolvimento Urbano da Cidade do Mindelo (1984). Praia: Ministério das
Finanças, p. 132.

170
A notícia segundo a qual, “Augusto da Silva Pinto Ferro, reassumiu no dia 1 do corrente
mês, as funções de Cônsul Argentino e de Agente Consular de França n´esta ilha,”321 não
deixa dúvidas de que fazia parte da elite administrativa da ilha de São Vicente.

Embora não tenha encontrado qualquer testamento a este respeito, a partir de uma certa
altura, os bens de Augusto Pinto Ferro, pelo menos, os referentes a Tarrafal de Monte
Trigo, serão geridos por José Ferreira Ferro, filho de Augusto da Silva Pinto Ferro.

Este médico-cirurgião, residente na cidade do Mindelo morreu com 48 anos, a 25 de julho


de 1920.322 Dos seus filhos, consta José Ferreira Ferro, nascido a 25 de agosto de 1915
em São Vicente, filho ilegítimo, viria a ser perfilhado por José Augusto Ferro, no seu
testamento de 21 de junho de 1920,323 cujo averbamento foi feito em 1953.324 Tudo indica
que é a partir dessa altura que José Ferreira Ferro assume a tutela dos restantes irmãos, ao
mesmo tempo que assume a gestão da propriedade do Tarrafal de Monte Trigo.

Iniciei este tópico com um adágio muito corrente em Tarrafal de Monte Trigo,
relativamente ao seu povoamento. Com isto, quis chamar a atenção para a importância da
oralidade325 que, continua a ser uma fonte indispensável para matérias que têm que ver
não apenas com a alma das pessoas, como para a própria descrição, análise e, por
conseguinte, a feitura da história.

Com efeito, a oralidade, “atitude diante da realidade e não a ausência de uma


habilidade,326” particularmente no continente africano, foi a forma privilegiada de
conservação e de transmissão dos conhecimentos, porquanto, todo o património literário,
histórico, os pensamentos e a sabedoria popular, entre outros, foram ensinados e
transmitidos de geração em geração, através dela.

321 Boletim Oficial da Província de Cabo Verde, nº 47, 23 de novembro de 1889.


322 Cfr.Registo de óbito, Lv. 13. fls 2 f. Conservatória do Registo Civil de São Vicente.
323Averbamentos, Registo nº 414, Registo de Nascimento de filhos legítimos ou ilegítimos. In livro 3, registo nº 414,
Nossa Senhora da Luz-Concelho de São Vicente.
324Averbamentos, registo nº 414, registo de Nascimento de filhos legítimos ou ilegítimos. In livro 3, registo nº414,
Nossa Senhora da Luz-Concelho de São Vicente.
325No passado, a oralidade tinha uma grande força: era uma técnica que se aprendia e se cultivava. As diversas formas
de cultura oral moldavam-se para serem retidas facilmente pela memória.
326Vansina, J. (2010). A tradição Oral e sua metodologia. In Ki-Zerbo, Joseph (ed.). História da África I:
Metodologia e Pré-História da África, 2ª ed.; Brasília: UNESCO, p. 139.

171
Talvez seja por isso que, em África, diz-se que “cada velho que morre é uma biblioteca
que se queima” (Ba, 2010). Durante a pesquisa de campo, de que falarei mais à frente,
sempre que falava com as pessoas mais velhas do Tarrafal de Monte Trigo, sobre o que
sabiam em relação ao momento zero da sua ocupação, “declamavam” partes do adágio
referido no início deste subcapítulo.

Atendendo que quase todos os povos possuem o seu mito das origens (FILHO, 2017:
107), cada vez mais ficava convencido de que, para o entendimento o mais completo
possível da história de Cabo Verde, somos obrigados a nos apoiar em mitos, “até
encontrarmos algo de documentativo registado pela História.”327

Em relação ao Tarrafal de Monte Trigo, os documentos registados pela história, só


aparecem nos finais do século XVII, e, mesmo assim, de forma muito tímida. Apoiei em
dados fornecidos por alguns historiadores, nomeadamente Artur Teodoro de Matos, aqui
referenciado, para, do século XIX para, a partir do século XIX, basear-me na
documentação existente nos arquivos referenciados ao longo deste trabalho.

4.3. Do conforto dos arquivos à pesquisa de campo - Ouvir pessoas,


(re)visitar lugares, evocar histórias do Tarrafal de Monte Trigo

As palavras são testemunhas que muitas vezes


falam mais alto que os documentos (Hobsbawn, 1961:2).

Em fevereiro de 2017, rumei ao Tarrafal de Monte Trigo com um objetivo muito concreto:
estar e ouvir pessoas, (re)visitar lugares, evocar histórias e estórias. Outrossim, procurar
elementos, através de narrativas de ex-lavradores da família de José Augusto Ferro, que
me permitissem apreender a existência de possíveis relações de compadrio ou outras
formas de relações, relativamente à maneira como as terras e a água eram distribuídas aos
agricultores, por parte da família proprietária, situação que terá contribuído para as
assimetrias sociais, económicas e de poder, ainda hoje existentes naquela povoação.

327Filho, João Lopes (2017). Cabo Verde as ilhas hesperitanas. In Clabedotche-Tchapa-Tchapa, Praia: Acácia
Editora, p. 123.

172
Habituado a pesquisar no conforto do Arquivo Histórico Nacional, pela primeira vez,
tinha-me aventurado em seguir uma outra metodologia de pesquisa, consubstanciada em
trabalho de campo e ao método etnográfico.328

O facto de conhecer a terra e as gentes diminuía a minha apreensão, não obstante estar
convencido de eventuais barreiras, impostas pela própria natureza do meu objeto de
pesquisa, agravadas pelas minhas relações familiares e afetivas na e com a comunidade,
com todos os inconvenientes que isto coloca ou pode colocar ao pesquisador,
demandando a construção de uma relação de estranhamento, condição importante para
assegurar a qualidade das informações e, por conseguinte, da análise.

Procurei, o quanto possível, o estranhamento necessário, com o ojetivo de, a um só tempo,


apreender o outro na sua diferença e particularidade, como recomenda os teóricos da
antropologia,329 e descer aos detalhes (Geertz,1989), relativamente às minhas
preocupações.

Pela primeira vez fiz o percurso – Porto Novo -Planalto Sul-Tarrafal de Monte Trigo –
com um outro olhar: mais atento ao espaço e às gentes, durante o longo caminho que me
orientaria à baía do Tarrafal, após uma breve paragem no Cabo frio – a grande
propriedade de sequeiro, também ela pertencente à família Ferro e redistribuída em
tempos, aos agricultores do Tarrafal de Monte Trigo, ainda que tão pouco valorizada,
certamente por faltar o outro ingrediente, a água para a rega, não sendo a da chuva, tão
rara, à semelhança do resto do país.

O meu trabalho de campo iniciaria no dia seguinte, com um encontro previamente


marcado com o Senhor Apolinário, “niscid e criód ne Trrafal,330” como faz questão de
dizer, em 1919.
Ex-agricultor da Família Ferro, profundo conhecedor da terra e das gentes, a sua lucidez
é extraordinária, uma verdadeira biblioteca viva, dessas, que, em África, são

328Este método surgiu da necessidade de distinguir a antropologia dos etudos desenvolvidos por amadores. Em finais
do século XIX, antropólogos já realizavam trabalho de campo, nomeadamente Boas e os seus discípulos, mas foi
Malinowski quem sistematizou o método etnográfico de pesquisa.
329Cf.Geertz (1989). A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro:Editora Guanabara; Malinowski (1978). Introdução,
In Os Argonautas do Pacífico Ocidental, São Paulo: Abril Cultural.
330 Nascido e crescido em Tarrafal de Monte Trigo (Tradução livre do autor).

173
fundamentais, devido ao papel da tradição oral e da oralidade, na qual “o objeto de estudo
do historiador é recuperado e recriado por intermédio da memória dos informantes.” 331

Aliás, a memória, citando Amadou Hampaté Ba (2003, 2010) é a própria história,


porquanto, “o historiador deve aprender a trabalhar mais lentamente, refletir, para
embrenhar-se numa representação coletiva, já que o corpus da tradição é a memória
coletiva de uma sociedade que se explica a si mesma.”332

No caminho que me conduziria à sua atual residência, fui encontrando pessoas com quem
ia conversando de forma descontraída, sempre que possível, focalizando a minha prosa
no meu objeto de estudo: as questões fundiárias no Tarrafal de Monte Trigo.

E lá fui obtendo informações interessantes, umas já conhecidas pela documentação


estudada, outras nem por isso: que a família Ferro tinha vindo da Brava, que a
emblemática casa pertencente a esta família, onde outrora funcionou a Igreja, chamava-
se Penha de França, enfim, pormenores que me foram dados por Mateus, enquanto
destilava aguardente no seu trapiche.

Estava descobrindo uma outra forma de fazer história: olhando para os lugares, e,
sobretudo, ouvindo pessoas, que ainda que não tenham poderes de enunciação, possuem
saberes que encaminham determinados olhares sobre os nossos conhecimentos.
O meu propósito foi seguir as orientações de Lucien Febvre para quem, “a história faz-se
com documentos escritos, com certeza que sim. Mas pode fazer-se, deve fazer-se com
tudo o que o engenho do historiador lhe consinta utilizar…. Com palavras, portanto. Com
sinais. Com paisagens e telhas.”333 Enfim, fazendo a história numa perspetiva mais
pragmática, como diria o filósofo e historiador francês, Michel de Certeau (1982:69),
através de testemunhos vivos que, citando Philippe Ariès, “contêm mais história, e mais
história total do que todos os manuais, mesmo os mais eruditos”(1986:17).

331
Amado, Ferreira (2006). Usos e abusos da história oral, (8 ed.). Rio de Janeiro: Editora FGV, p. 15.
332
Vansina, Jan (2010). Op. Cit. p. 140.
333
Febvre, Lucien (1952). Combats pour l´histoire. Paris: Librairie Armand Colin, p. 428.

174
Particularmente interessado pela história do Tarrafal, o meu interlocutor lá ia falando das
suas preocupações: que as antigas empresas de água, Tanques-Cisternas, a partir dos quais
se abasteciam os navios para a ilha de São Vicente, estavam em avançado estado de
degradação; que a Varanda (residência oficial de José Ferreira Ferro) já não é o jardim
que era; que os sobrados estavam caindo aos pedaços, enfim, que era preciso mobilizar
quem de direito para inverter tais situações.
Após longa conversa, decidi revisitar os lugares supracitados, muito atento às ruínas,
nomeadamente das casas, estes documentos autênticos da vida do homem, “documento
de pedra e cal, mas de extraordinária importância para estudarmos os costumes, e
evolução do gosto e da vida social” (Azevedo, 1969:13).

Figura 51. Antigas redidências em Tarrafal de Monte Trigo


Fonte: Acervo pessoal

As casas rurais, não são apenas construções onde se aloja o grupo familiar, porquanto a
maior parte das vezes abrigam também os animais que lhes pertencem, as reservas
alimentares, as colheitas e os instrumentos de trabalho. No fundo são, simultaneamente,
unidades de residência e unidades económicas de produção.
Assim, devido à existência de muito pouco material disponível que possa ser considerado
testemunho direto da vida dos camponeses, a materialidade rural334 também poderá ser
mobilizada para quem pretenda explorar o mundo mental e material destes protagonistas
que marcaram a história do Tarrafal de Monte Trigo, na perspetiva da história das pessoas
comuns, para tomar de empréstimo o conceito utilizado por Eric Hobsbawn (1961:15).

334
Entende-se aqui por materialidade rural, o conjunto de estruturas, objetos e demais vestígios materiais
distribuídos na paiagem que refletem a cultura material do universo camponês, que subordinados a
produção rural, resultou em elementos específicos materiais e que uma vez abordados pela arqueologia,
por exemplo, podem fornecer subsídios para o entendimento deste mesmo universo.

175
Seguindo as recomendações do Mateus fui aos Tanques-cisternas, às Empresas, como
dizíamos na época. Na mesma imediação, fui à Penha de França, que reavivou as minhas
reminiscências, nomeadamente das missas solenemente assistidas quando os padres
capuchinhos lá conseguiam chegar no então isolado Tarrafal de Monte Trigo.

Figura 52. Penha de França - Casa onde funcionou a Igreja


Fonte: Acervo pessoal.
À frente, a antiga residência de Nhe Pidrin Ferro e sua irmã, a mesma casa onde
funcionava o Posto Sanitário, a Farmácia, como então se dizia, e onde outrora viviam as
co-proprietárias, irmãs de José Ferreira Ferro, a respeito de quem um dos meus
interlocutores fala com algum pormenor, como mostro um pouco mais à frente.

Figura 53. Casa onde funcionou o Posto Sanitário do Tarrafal de Monte Trigo
Fonte: Acervo pessoal.

176
A dois passos, a Casa que foi a minha primeira escola, a Varanda, assim conhecida por
todos. Funcionou na parte traseira da residência oficial de José Ferreira Ferro. Entendi a
nostalgia do Mateus.O estado completamente degradado e desolador do espaço que, no
passado foi, o verdadeiro jardim do Tarrafal de Monte Trigo, ao tempo em que tudo girava
à volta da família Ferro.

Figura 54. Vista parcial da Casa onde funcionou a Escola Primária do Tarrafal de Monte Trigo
Fonte: Acervo pessoal.

Fiz um exercício de memória e vi que, afinal, à volta desta família girava tudo: a terra, a
água, a escola, a igreja, as mercearias, o posto sanitário, sem falar dos barcos de pesca,
únicos meios de transporte que então asseguravam, na medida do possível, o
desencravamento do Tarrafal, fazendo com que fosse mais fácil ir a São Vicente do que
a qualquer outro ponto de Santo Antão.

Este exercício de memória levou-me a pensar no que poderia ser o título de uma tese: A
Terra e a Água no Centro das Estratégias do Poder. Em Tarrafal de Monte Trigo, o poder
seria entendido no sentido de tutela, controlo do espaço e dominação das gentes,
dependentes a todos os níveis da família proprietária, com a qual se desenvolveu um
“feixe de relações mais ou menos organizado, mais ou menos piramidalizado, mais ou
menos coordenado” (Foucault, 1979:138), fazendo ponte com Wolf para quem,
o camponês pobre ou o trabalhador sem terra, que depende de um senhorio quanto à
maior parte ou mesmo à totalidade da sua subsistência, não possui poder tático: está

177
completamente dominado pelo seu empregador e desprovido de recursos propícios
suficientes que lhe sirvam na luta pelo poder (Wolf, 1984: 348).

Finalmente, o encontro com o Senhor Apolinário. Estando à minha espera, conforme


combinado no dia anterior, sabia que íamos conversar sobre Tarrafal de Monte Trigo, o
Tarrafal d´outrora. A vontade de falar parecia tanta que não esperou minuto sequer.

Começa a falar da fome. “Kel fom desgroçóde.”335 Logo percebi tratar-se da fome dos
anos 40 do século XX que, como disse anteriormente, de forma impiedosa assolou Cabo
Verde. Subtilmente, tentava desviar336 a conversa para o assunto que me interessava: a
terra, a água e a forma como foram distribuídas aos agricultores pela família proprietária.
Ele insistia em falar da fome e em como, na sequência desta, Tarrafal de Monte Trigo foi
recebendo pessoas oriundas de toda a ilha de Santo Antão, por ser mais fácil nele escapar
à fome, graças ao muito peixe então existente.

Naturalmente, falou-me do “John.” Referia-se ao navio John Schmeltzer que, em 1947,


vindo da Argentina carregado de milho, e que naufragou em Ponta Canjana – Praia
Formosa – nas imediações do Tarrafal de Monte Trigo. Acontecimento que escapou à
fome a centenas de pessoas que ali permaneceram enquanto milho houve.337

Terá percebido que, de momento, eu não estava particularmente interessado naquele


assunto não obstante a pertinência que em si encerra, pediu-me que ouvisse um episódio
que tinha acabado de lembrar: “um senhor que bem d’ês fóra pe praia de Canjana, pe tentá
escapá de fóm. El bem k sê búrre, n’ote dia kel cuitóde voltá pe sê kasa, k kêl sêla de se
búrre nó mon.”338

335 “Aquela fome desgraçada.” (Tradução livre do autor).


336Por altura da textualização do material recolhido em Tarrafal de Monte Trigo, e da tese ela mesma, dei conta do erro
que cometi em não deixar o meu interlocutor falar avontade, sobre qualquer assunto que lhe viesse à mente. Como
disse anteriormente, foi a minha primeira experiência de pesquisa etnográfica, e talvez isto terá contribuído para esta,
e outras situações entretanto ocorridas. Nessa altura, tentava “forçar” a construção de uma narrativa referente a
matéria que particularmente me interessava, sem se preocupar com as consequências desta postura, nomeadamente o
não deixar “o subalterno” falar.
337
A minha impaciência ou vontade de entrar no cerne das minhas preocupações denotam, reflexivamente
e a posteriori a minha condição de debutante em trabalhos etnográficos. Pois, a paciência em ouvir, em
integrar-se, em construir relações de cumplicidade são o cerne da imersão no campo etnográfico. E claro,
é o terreno que nos encaminha e faz caminhar as nossas preocupações da pesquisa tais quais formuladas
no projeto. Uma autêntica aprendizagem do fazer etnografia, mas também do fazer história.
338
Um senhor que chegou em Canjana, vindo do interior da ilha, tentando escapar a fome. Veio com o seu
burro, e no dia seguinte, o coitado regressou à sua casa, com a sela do burro na mão. (Tradução livre do
autor).

178
Refletindo por alguns minutos, entendi a forma metafórica como queria me dizer que do
burro só ficou a sela, que o animal foi comido por famintos instalados em Ponta Canjana.
Enfim, matérias instigantes para quem se interessar para um estudo da história e da
sociologia das fomes em Cabo Verde, ainda por fazer.

Finalmente, a família Ferro. “(…) bo sêb prei era tud d’ês Férre, tud ês térra e tud ês ága.
Ês é k táva mandá.339 Foi assim que ele introduziu a sua prosa acerca da família Ferro.
Aliás, em todas as conversas tidas com as gentes do Tarrafal de Monte Trigo esta
afirmação foi sempre realçada e sistematicamente reinscrita nas conversas.

Esta situação levou-me a admitir a possibilidade de considerar que, simbolicamente, a


Família Ferro consubstancia, encerra e, eventualmente, confunde-se não só com a história
daquela comunidade, como também com os poderes políticos e administrativos ausentes.
Assim, em bom rigor, é na relação com esta família que cada um dos residentes se definem
e se constituem.

Para eles, a memória histórica relevante tem a Familia Ferro como marco. Porém, quando
deixamos os arquivos “falarem,” retrocedemos para uma outra temporalidade, como tive
oportunidade de mostrar nas páginas anteriores.

Porém, a partir da segunda metade do século XX é, de facto, esta família a proprietária


do Tarrafal de Monte Trigo, conforme se depreende do Contrato de Sociedade ou
Parceria340 entre os herdeiros de José Augusto Ferro e os agricultores, datado de 1967, no
qual os primeiros aparecem como proprietários, enquanto os segundos assinam como
parceiros.

339
Sabes, aqui tudo pertencia à família Ferro, todas as terras e toda a água. Eles é que mandavam. (Tradução
livre do autor).
340
Relação de Proprietários do Tarrafal de Monte Trigo, 1983- Arquivo do MDR. Praia: Ministério do
Desenvolvimento Rural/ Direção Regional de Santo Antão.

179
A leitura da documentação produzida pelo Ministério da Agricultura e Águas, criado após
a Independência Nacional, leva-nos a constatar que a maioria dos contratos existentes em
Tarrafal de Monte Trigo eram verbais.

Tabela 4. Dados respeitantes a rendeiros e/ou parceiros com contratos verbais


Nº de ordem Nome do parceiro Tipo de exploração
1 Paulo Lorenço Delgado Regadio
2 Germano António Delgado Regadio
3 Gregório Manuel Silveira Regadio
4 Rosa Antónia Fortes Regadio
5 Quirino Pedro David Regadio
6 Marino Basílio Fortes Regadio
7 José Teodoro Pedro Regadio
8 João Gomes Silveira Regadio
9 Maria Conceição Rodrigues Regadio
10 Zacarias Lourenço da Luz Regadio
11 Antónia Teresa Gomes Regadio
12 Júlio Jorge Évora Regadio
13 Manuel Jorge Évora Regadio
14 Alfredo Pedro Dias Regadio
15 Augsuto Joaquim Évora Regadio
16 João Baptista Évora Regadio
17 Isabel Joana Lima Regadio
18 Manuel Luís Évora Regadio
19 Emídio Luís Évora Regadio
20 Lourenço Alfred Dias Regadio
21 Ana Marcelina Ramos Regadio
22 Miguel Maria Gomes Regadio
23 Joana Peregrina Silva Évora Regadio
24 Filipe Júlia dos Reis Regadio
25 José Joana Rocha Regadio
26 Francisca Júlia dos Reis Regadio
27 Manuel Júlio Fortes Regadio
28 Pedro Manuel Delgado Regadio
29 Gaudêncio Joaquim Medina Regadio
30 José Maria Rocha Regadio
31 José Manuel dos Santos Regadio
32 José Joaquim Delgado Regadio
33 João Jaquim Delgado Regadio
34 Manuel Leando Morais Regadio
35 José João Maocha Regdio
Fonte: Relação de Proprietários do Tarrafal de Monte Trigo (1983) -Arquivo do MDR, Praia, Ministério
do Desenvolvimento Rural/ Direção Regional de Santo Antão.

Situação que contrariava os dispositivos normativos coloniais, nomeadamente o decreto


nº 962, de 21 de outubro de 1914, no qual o Governo da Província de Cabo Verde

180
determinara que a partir dali os contratos fossem feitos por escrito, na presença de duas
testemunhas, e autenticados por notários,341 estabelecendo, ainda, o seguinte:
 Os contractos de arrendamento de terrenos para exploração agrícola ou
para construção de moradias dentro das propriedades rústicas, cuja renda
anual não seja superior a 200$, serão regulados pelo presente decreto e,
nos casos omissos, pelo Codigo Civil.

 Nos contractos serão estabelecidos a obrigação, por parte do arrendatário,


de continuar, pelo menos, com o cultivo e exploração dos géneros que a
propriedade costuma produzir ou tenha produzido até a data do começo
do contracto.

 A faculdade do arrendatário, de acordo com o proprietário, fazer todas as


benfeitorais de evidente utilidade e valorização da propriedade.

 A duração do tempo do contracto nunca será inferior a três anos agrícolas


completos, com a indicação daquele em que o contracto começa a
vigorar.

 A faculdade do contracto poder ser renovado, findo o prazo da sua


duração, se ambas as partes assim o quiserem (B.O. nº 47 de 21 de
novembro de 1914).

Com relação aos contratos de parceria, também ficou explicitamente regulamentado,


entre outros aspetos, nos seguintes termos:

 Os contractos de parceria agrícola serão regulados, em tudo quanto possa


ser-lhes aplicável pelas disposições do presente decreto que regulam o
contracto de arrendamento, e ainda pelas disposições não modificadas do
Código Civil.

 Nestes contratos especificar-se-ao a duração dc contracto, contada


sempre em anos agrícolas completos e com a indicação expressa daquele
em que o contracto começa a vigorar; a indicação precisa de percentagem
dos diversos produtos do terreno que caibam ao proprietário, e a
especificação e perventagem que pertença ao parceiro; o valor médio
presumível dos produtos que venham a pertencer ao proprietário e ao
parceiro na partilha; as condições em que devem encontrar-se os produtos
no acto de partilha, isto é, se verdes ou secos, debulhados ou não limpos,
ou em casca, etc.

 É vedado ao parceiro transferir para outrem, no total ou em parte, a


parceria, sem prévia autorização escrita do proprietário; efetuar
benfeitorias, modificar as já existentes, ou efectuar quaisquer culturas
não previstas no contracto, sem prévia autorização escrita do
proprietário; colher antecipadamente quaisquer produtos compreendidos
na parceria.

341
Cfr. Boletim Oficial do Governo da Província de Cabo Verde, nº 47, 21 de novembro de 1914.

181
 Competem ao parceiro todos os trabalhos e despesas de cultura e
colheitas dos produtos até sua final partilha, e bem assim a limpeza e
tratamento das árvores e arbustos que não sejam usufruidos pelo
proprietário em virtude de condições especiais do contracto.

 É do usufruto exclusivo do parceiro a erva e mato que espontaneamente


se desenvolver e que não seja prejudicial às culturas e bem assim a lenha
proveniente da limpeza das árvores e arbustos a que se refere o número
anterior.

 Se considera como compreendido na parceria, e na proporção de 50 por


cento para cada uma das partes contratantes, o usufruto das árvores e
arbustos e culturas existentes anteriormente ao contracto.

 A partilha será feita no local da cultura, logo depois de colheita, que será
efectuada em tempo próprio e sempre na presença do proprietário ou seu
representante.

 Quando a percentagem da perceria for de 50 por cento, poderá sempre


uma das partes exigir que qualquer delas proceda a partilha e a outra
escolha a metade que preferir (B.O. nº 47 de 21 de novembro de 1914).

Estes dispositivos foram reforçados pela lei dos contratos de arrendamentos rurais, de 23
de dezembro de 1916.342 Nessa altura, e pelo decreto nº 2 637, de 21 de setembro, o
Ministro das Colónias estipulou um conjunto de medidas relativas a estes contratos,
nomeadamente:
 Estes contratos e seus duplicados, depois de lavrados, serão autenticados no prazo de
trinta dias, a contar da data da sua celebração, pelos adminstradores dos concelhos e
chefes administrativos nas sedes dos muncípios e pelos seus delegados nas restantes
localidades.
 Os administradores dos concelhos regulares, chefes administrativos dos concelhos
irregulares e respectivos delegados nas diferentes localidades, depois de verificarem
que não existem nos contratos quaisquer cláusulas ou obrigações contrárias a este
regulamento e à lei geral que por este não for modificada, deverão ler em voz alta os
contratos e seus duplicados, e explicá-los, procedendo à sua autentificaçao só depois
de se garantirem de que ambos os contratantes aceitaram livre e conscientemente as
cláusulas e obrigações impostas.
 Esta autentificação consistirá numa nota lançada tanto nos originais como nos
duplicados dos contratos, em que as referidas entidades certificarão que o respectivo

342
ANCV-SGG, Cx. 776. Lei dos contratos de arrendamentos rurais.

182
contrato está conforme a lei, que não contém cláusulas e obrigações que a contrariem
e que ambas as partes livre e conscientemente manifestaram expressamente o seu
acordo e a sua sujeição às clausulas do contracto.
 Feita a autentificação entregará a autoridade administrativa o original do contracto ao
proprietário ou o seu representante e o duplicado ao arrendatário ou parceiro. Todos
os triplicados dos contractos autenticados, devidamente colecionados por
proprietários de prédios rústicos, serão enviados pela mesma autoridade
administrativa ao escrivão da Fazenda do concelho, no prazo de trinta dias, a contar
da sua autentificação.
 A polícia rural receberá instruções a fim de exercer a conveniente fiscalização sobre
o modo como são observadas pelos proprietários e rendeiros ou parceiros as
disposições contidas neste artigo e seus parágrafos, e idênticos serviços será exercido
pelos fiscais da Fazenda.
 Nos contractos serão consignadas a indicação das culturas adequadas ao terreno que
devem ser aproveitadas e exploradas pelo arrendatário, com a indicação da área,
expressa como na clausula 1ª que este deve destinar a cada uma das culturas, cuja
rotação poderá ficar exarada.343

No caso do Tarrafal de Monte Trigo, foi só a partir de 1967 que surgem os primeiros
contratos escritos, no mesmo ano em que a “metrópole portuguesa intentará sem sucesso
regulamentar o problema dos arrendamentos rurais.”344

Neste ponto, procurei elucidar sobre a pesquisa de campo realizada em Tarrafal de Monte
Trigo, durante três missões, intercaladas. Foi nessa altura que percebi o quão a etnografia
é importante, nomeadamente para a feitura da história local e regional,345 cujo
conhecimento “é indispensável para a construção de uma confiável história nacional,
visto interpretar com mais fidelidade as realidades, as aspirações e os quotidianos das
populações, ajudando a explicar o sentido profundo das culturas e os comportamentos
dos grupos.346

343 Decreto nº 2 637, de 21 de setembro, 1916.


344 Borba, Carolina, op. cit. p. 51.
345 A História Local e Regional propõe estudar atividades de grupos sociais historicamente constituídos, assentes numa
base territorial delimitada, identificando as suas interações exteriores na perspetiva da totalidade histórica.
346 Filho João Lopes (2017). História Local. In op. Cit. p. 133.

183
Foi uma oportunidade ímpar para reavivar as minhas próprias memórias, e revisitar sítios
interessantes, eles mesmos Lugares de Memória, conceito histórico posto em evidência
pela obra, Les Lieux de Mémoires, editada em 1984, sob a coordenação de Pierre Nora,347
historiador francês associado à Nova História348 e que se tornou referência incontornável
para o estudo da história cultural, da memória e das identidades. Diz-nos aquele
historiador do tempo recente, como convencionalmente é chamado por muitos, que os
lugares de memória são locais em todos os sentidos do termo, que vão do objeto material
e concreto ao mais abstrato, simbólico e funcional.349

Sempre que possível fui fazendo ponte com a documentação utilizada, nomeadamente ao
abordar aspetos relativos aos contratos de parceria, objeto do subcapítulo seguinte.

4.4. O contrato de parceria de 1967 e os seus contornos

O contrato foi celebrado entre os herdeiros de José Augusto Ferro e os lavradores do


Tarrafal de Monte Trigo. Nele, os primeiros aparecem como proprietários, enquanto os
segundos assinam como parceiros. Ajusta-se uma sociedade que também se designa por
parceria agrícola, pecuária ou florestal entre dois grupos ligados por estreitos laços de
dependência: por um lado, o dos proprietários, detentores da terra, da água e do poder, e,
por outro, o dos seus dependentes, camponeses, sem terras.

Tabela 5. Lista de cultivadores com contrato escrito (1967)


Proprietário Cultivador

Herdeiros de José Augusto Ferro António Joaquim Medina


Herdeiros de José Augusto Ferro António Manuel Évora
Herdeiros de José Augusto Ferro Alfredo Manuel Évora
Herdeiros de Jsé Augusto Ferro António Rodolfo Fortes
Herdeiros de José Augusto Ferro Carlos José Évora

347 Le Goff, Jacques & Nora, Pierre (1985). História: novos objectos. Rio de Janeiro: Francisco Alves, p. 76.
348 Corrente historiográfica surgida nos anos de 1970, correspondente à terceira geração
da chamada Escola dos Annales
e cujos principais representantes foram dois historiadores franceses, Jacques Le Goff e Pierre Nora.
349 Nora, Pierre (1981).Entre Memória e História: A problemática dos Lugares. Tradução: Yara Aun Khoury. In Projeto
História: Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em História e do Departamento de História da PUC-SO,
São Paulo: Pontíficia Universidade Católica, pp. 21-22.

184
Herdeiros de José Augusto Ferro Filipe Júlio Violante
Herdeiros de José Augusto Ferro Gegório dos Santos
Herdeiros de José Augusto Ferro João Lourenço Dias
Herdeiros de José Augusto Ferro Joaquim Joao Lima
Herdeiros de José Augusto Ferro Joaquim Manuel Évora
Herdeirs de José Augusto Ferro Joaquim Manuel Silva
Herdeiros de José Augusto Ferro José Joaquim Évora
Herdeiros de José Augusto Ferro José Manuel Dias
Herdeiros de José Augusto Ferro José Manuel dos Santos
Herdeios de José Augusto Ferro José Spencer
Herdeiros de José Augusto Ferro Lourenço José Évora
Herdeiros de José Augusto Ferro Manuel João da Cruz
Herdeiros de José Augusto Ferro Pedro Manuel Evora
Herdeiros de José Augsuto Ferro Guilherme Joaquim Medina
Total 19
Fonte: Construída a partir dos contratos encontrados no documento referente a Relação de
Proprietários do Tarrafal de Monte Trigo (1983) – Arquivo do MDR, Praia: Ministério do
Desenvolvimento Rural/ Direção Regional de Santo Antão.

O contrato estabeleceu um conjunto de dispositivos dos quais se destacam:

 A indicação clara do prédio rústico ou do terreno arrendado e número da inscrição


matricial. A indicação do arrendatário ser ou não cultivador directo.
 O tempo de duração do contrato.
 A data do início do contrato.
 O direito do arrendatário às três primeiras renovações do contrato sem que o
proprietário possa opôr-se.
 O quantitativo da renda anual em dinheiro ou em géneros normalmente produzidos
pela propriedade, com a declaração expressa de que a escolha foi feita pelo
arrendatário.
 Data do vencimento da renda anual e lugar do seu pagamento.
 Faculdade do arrendatário poder fazer benfeitorias úteis ou voluptuárias sem
consentimento do proprietário.
 Faculdade do arrendatário findo o contrato ser pago pelas benfeitorias úteis que não
levantar e a que o senhorio tenha dado consentimento por escrito ou este tenha sido
suprido pela comissão arbital ou no caso de se tratar de cultivador directo,
independentemente do consentimento.
 Faculdade do senhorio poder fazer as benfeitorias que sejam consentidas pelo
arrendatário ou autorizadas pela comissão arbitral desde que não alterem a exploração
do prédio.

185
 Faculdade do arrendatário ser indemnizado pelo senhorio pelos prejuízos que as obras
lhe causarem.
 Faculdade do arrendatário poder levantar até ao termo do contrato a benfeitorais úteis
ou voluptuárias que tenha feito desde que o possa fazer sem detrimento do prédio ou
sem que o nível da sua productividade fique prejudicado e para tal seja autorizado
pela comissão arbitral.
 Faculdade do arrendatário que não seja cultivador directo manter-e na posse do
prédio enquanto não estiver paga as benfeitorias a cuja indemnização tem dieito ou o
seu pagamento não estiver garantido por meio de hipoteca ou execução.
 Obrigação do arrendatário assegurar para o futuro, no caso de não haver renovação
do contrato, a productividade normal do prédio com excepção da pratica dos actos
que para ele já não possam trazer qualquer proveito.
 Faculdade do senhorio promover os trabalhos necessários para garantir a
productividade do prédio, quando não se dê a renovação do contrato, desde que o faça
sem prejuízo para o arrendatário ou o indemnize dos danos que lhe causar.
 Obrigação do arendatário fazer uma exploração conveniente do prédio, não
prejudicando a productividade do mesmo e velar pela boa conservação dos bens que
não sendo objecto do contracto nele existente.
 Faculdade do arrendatário pedir a redução proporcional da renda na hipótese de perda
total dos frutos ou de mais de metade deles, por motivo impevisivel ou fortuito.
 A exclusão dos meios coercivos ou de garantia que não sejam estabelecidos neste
diploma.
 O direito de preferência concedido ao cultivador directo, no caso de venda do prédio
que não se destine a pôr termo a uma indivisão.
 A sujeição das partes às comissões arbitrais em todas as questões emergentes dos
respectivos contratos, sem prejuízo do direito de recurso.350

Relativamente à rescisão do contrato, ficou estabelecido que o senhorio só podia fazer o


despejo imediato do prédio arrendado, sem prejuízo do direito à reparação por perdas e
danos, nos seguintes casos:

350Arquivo do MDR. Praia: Ministério do Desenvolvimento Rural/ Direção Regional de Santo Antão.
Relação de Proprietários do Tarrafal de Monte Trigo, (1983).

186
 Se o arrendatário tiver faltado ao cumprimento de alguma obrigação contratual ou
legal.
 Se o arrendatário prejudicar a produtividade do prédio.
 Se o arrendatário não tiver velado pela boa conservação dos bens ou tiver causado
prejuízos graves nos que, não sendo objecto do contrato, existam nos prédios
arrendados.351

Constata-se que, apenas dezanove parceiros foram abrangidos com contratos escritos.
A leitura do contrato, permite-nos constatar que, na prática, o sistema funcionou como
que em regime de colónia,352 à semelhança do que existiu no arquipélago da Madeira.353

À luz do contrato, a divisão do rendimento das terras era a 50%. Porém, ao que tudo
indica, dificilmente tal se verificava. “Non dáva dês nada de metéde ke séb tróboi te cansá
gente,”354 adiantou-me a certa altura o Sr.Apolinário. Chamou-me particularmente a
atenção esta afirmação, porquanto, à partida, pode-se pensar que a família proprietária,
conseguia fazer valer o estipulado no contrato, nomeadamente: “(i) a divisão dos frutos e
produtos na proporção de 50% para o proprietário e 50% para o cultivador,”355 ainda que
para tal fosse necessária alguma repressão. Sobre este aspeto, existe um silêncio na
documentação oficial.

Mas como pesquisar é, acima de tudo, fazer perguntas e prescrutar daquilo que se silencia,
fui procurar outras narrativas a este respeito. Conversando com outras pessoas, esta ideia

351Idem, ibidem.
352Esse regime consistiu num contrato em que uma das partes, o colono, tem a obrigação de tornar agricultável um
terreno por desbravar, ficando com o direito aos melhoramentos que resultam da sua acção. Em contrapartida, o
colono deverá entregar ao proprietário uma parcela da produção, não contribuindo este (ou contribuindo muito
limitadamente) para as despesas de exploração e detendo a possibilidade de rescindir o contrato a todo o tempo sem
necessitar de qualquer justificação e com a única obrigação de pagar ao colono o valor dos melhoramentos (Lizardo,
João Palla (2014). A exploração da terra sob o regime da colónia no arquipélago de Madeira, In Serrão, José Vicente,
Direito, Bárbara; Rodrigues, Eugénia; Miranda, Suzana (eds). Direitos de Propriedade, Terra e Territórios nos
Impérios Ultramarinos Europeus, Lisboa: ISCTE-IUL, p.146.)
353 Cfr. Palla (2014). Op. Cit. pp. 145-154.
354 “Nós não os dávamos nada da metade, porque sabes, trabalho cansa, não é?” (Tradução livre do autor).
355 Cfr. Contrato de Sociedade ou Parceria. In Relação de Proprietários do Tarrafal de Monte Trigo, 1983 – Arquivo do
MDR. Praia: Ministério do Desenvolvimento Rural/ Direção Regional de Santo Antão.

187
não só foi repetida como reforçada, com mais detalhes. Foi o caso do Senhor Isaías, 79
anos de idade, filho de ex-agricultor da família Ferro a quem substituiu.

Na conversa tida sobre se existia repressão neste aspeto, falou dos fiscais, facilmente
enganados pelos agricultores, que desafiavam os próprios donos, não raras vezes: “mute
gente tava trá kosa na horta, sem kolker oterisoson de Nhe Djê, passa lá ne barba cara de
Nhe Djé Ferro, bé vendé ne veporim d’Aga. e bo pé era um dés.”356

A naturalidade como falava comigo, deixava-me mais confortável relativamente aos


factos narrados. As informações relativas ao exercício de repressão sobre os lavradores,
por parte da família proprietária, me conduziram ao pensamento de Foucault, para quem,
o que faz com que o poder se mantenha e que seja aceite é simplesmente que ele não
pesa só como uma força que diz não, mas que de fato ele permeia, produz coisas.
Deve-se considerá-lo como uma rede produtiva que atravessa todo o corpo social
muito mais do que uma instância negativa que tem por função reprimir (Foucault,
1979:6).

A leitura do contrato permite-nos constatar que, embora sujeitos a um mesmo acordo, que
os colocava numa situação de total dependência do proprietário, dono absoluto de todo
aquele espaço, a distribuição das terras e da água aos camponeses não foi feita de forma
equitativa, pelo que se estabeleceu uma espécie de pirâmide social, no topo da qual
aparecem os herdeiros de José Augusto Ferro, seguidos dos camponeses com mais área
de terras e horas de água e finalmente aqueles que menos os possuíam. A que se pode
agregar aos que, na comunidade, estavam despojados de acesso a este importante meio
de produção e de subsistência para os quais os contratos de arrendamento nada dizem
porque nada poderiam dizer.

O contrato, previa aspetos pertinentes, nomeadamente o direito do segundo outorgante a


instalar-se com a sua família no imóvel que cultiva, em condições de bem-estar e higiene,
e a resolução de possíveis fricções entre as partes pelos tribunais arbitrais.357 Porém

356Muita gente tirava produtos nas parcelas, sem qualquer autorização de Sr. Djê, passavam em frente do Sr. Djê Ferro,
e íam os vender no vaporinho de água. e o teu pai era um deles. (Tradução livre do autor).
357
Haverá na sede de cada concelho e de cada freguesia, que não seja sede de concelho, um tribunal arbitral
destinadoa julgar e decidir, sumariamente, todas as questões entre proprietários e arrendatários ou
parceiros, relativas ao cumprimento das claúsulas dos respetivos contractos, a interpretar, em caso de
dúvida, os mesmos contactos, e a exercer as demais atribuições que lhe são dadas por este decreto. Os

188
existem aspetos que merecem alguma reflexão, nomeadamente a distribuição não
equitativa da terra e da água. A tabela que se segue é disto elucidativo.

Tabela 6: Distribuição das parcelas de terras e da água para rega aos cultivadores

Número de Ciclo de regas


Nº Nome do lavrador Área
parcelas (horas mensais)
1 António Cerilo Lopes 1 1,388 ha 9 horas
2 Germano António Delgado 2 1,28 ha 8 horas
3 Gregório Manuel Silveira 2 2,368 9 horas
4 Joaquim Manuel Silva 2 0,92 12 horas
5 Rosa Antónia Fortes 3 1,076 ??
6 Qurido Pedro David 1 0,344 5 horas
7 Marino Basílio Fortes 1 0,216 ??
8 José Teodoro Pedro 1 0,572 6 horas
9 José Joaquim Évora 4 1,572 12 horas
10 Filipe Júlio Violante 2 2,188 20
11 Manuel João da Cruz 1 0,288 9 horas
12 João Gomes Silveira 1 0,328 ??
13 Maria Conceiçao Rodrigues 3 0,548 8 horas
14 Zacarias Lourenço da Luz 1 0,308 4 horas
15 Domingos João dos Santos 2 0,756 6 horas
16 Antónia Tereza Gomes 1 0,38 39 horas
17 Júlio Jorge Évora 6 2,076 54
18 Manuel Jorge Évora 1 0,576 9 horas
19 António Manuel Évora 3 1,596 18
20 Alfredo Pedro Dias 8 2,62 12 horas
21 Pedro Manuel Évora 2 4,944 21 horas
22 Augusto Joaquim Évora 2 0,616 13 horas
23 Joaquim Manuel Évora 5 1,72 36 horas
24 Alfredo Manuel Évora 2 1,708 18 horas

tribunais serão clectivos e compostos de três membros. Nas sedes dos concelhos o tribunal será composto
pelo administrador do concelho, como presidente, por um vogal, propritário, proposto em lista tríplice
pelas câmaras municipais e por um outro vogal, arrendatário ou parceiro, proposto também em lista
tríplice pela juntas de paroquias; nas sedes da freguesais o regedor será o presidente, e os vogais, um
proprietário e o outro arrendatário ou parceiro, serão propostos da mesma forma pelas câmaras muncipais
e juntas de paróquia. Quando as juntas de paróquia tenham dificuldade em escolher de entre os
arrendatários ou parceiros, indivíduo idóneo para exercer as funções de membro do tribunal, poderão
escolher e propor qualquer indivíduo idóneo para exercer as funções de membro do tribunal, poderão
escolher e propor quelaqier indivíduo que reúna as necessárias condições de idoneidade. (B.O. nº 47, de
21 de novembro de 1914).

189
25 João Baptista Évora 3 0,468 9 horas
26 Isabel Joana Lima 2 0,78 6 horas
27 Manuel Luís Évora 2 0,38 6 horas
28 Emídio Luís Évora 3 0,808 6 horas
29 Lourenço José Évora 1 0,624 12 horas
30 João Lourenço Dias 3 0,748 16 horas
31 Lourenço Alfredo Dias 3 1,516 12 horas
32 Ana Marcelina Ramos 1 1,416 ??
33 José João Spencer 2 1,54 9 horas

34 Gregório Joaquim dos Santos 2 1,572 45 horas

35 Miguel Maria Gomes 1 0,4 11 horas


36 José Manuel Dias 1 0,468 9 horas
37 Carlos José Évora 2 0,193 12 horas
38 Joana Peregrina Silva Évora 4 0,924 10
39 Filipe Júlia dos Reis 3 1,104 6 horas
40 José Maria Rocha 2 0,276 3 horas
41 Joaquim João Lima 1 1,196 14 horas
42 Francisca Júlia dos Reis 1 0,34 ??
43 Manuel Júlio Fortes 1 0,284 12 horas
44 Pedro António Delgado 1 0,34 4 horas

45 Her. Gaudêcio Medina (falecido) 1 2,892 6 horas

46 António Joaquim Medina 2 1,012 6 horas


47 José Manuel dos Santos 3 2,746 ??
48 José Joaquim Delgado 4 1,608 12 horas
49 João Joaquim Delgado 2 0,524 ??
50 Manuel Leando Morais 3 0,956 16 horas
51 José João Maocha 1 0,16 ??
52 António Rodolfo Fortes 1 3,94 6 horas
53 Her. De Guilherme Medina 1 2,188 ??
Total Geral 114 61,791 576
Fonte: Construída a partir da relação dos lavradores do Tarrafal de Monte Trigo, In Relação de Proprietários
do Tarrafal de Monte Trigo (1983). Arquivo do MDR, Praia: Ministério do Desenvolvimento Rural/
Direção Regional de Santo Antão.

Os 61.791 hectares de terreno de regadio, redistribuídos em 114 parcelas, e pouco mais


de 576 horas mensais de água para a rega foram distribuídos para 53 cultivadores,

190
maioritariamente do sexo masculino. As sete mulheres contempladas tinham acabado de
ficar viúvas, conforme informações recolhidas durante as pesquisas de campo. Apenas
em dois casos as parcelas foram atribuídas a herdeiros. O número de parceiros beneficiado
varia ente 0,160 a 4,944 hectares, cada, sendo o total de horas de água para rega mensal,
entre 3 a 45 horas. Diz o relatório sobre as regas358 que
em geral, rega-se uma vez por mês, às vezes de 30-35 dias, em todo o Tarrafal,
excepto nos prédios existentes no leito da ribeira onde não há horário de rega. A água
utilizada não é comprada, mas sim grátis. Queixa-se muito da má partilha e
distribuição da água, ficando uns beneficiados.359

As regras relativas à rega foram aquelas apontadas anteriormente, sendo que o figurino
do “meirinho” continuou presente em Tarrafal de Monte Trigo. E o facto de existir muita
água para pouco terreno cultivável, não significa não existir atritos entre os agricultores
em matéria de horas de água para a rega, porquanto, dificilmente o camponês cedia as
suas horas de água, mesmo quando delas não precisasse em totalidade, preferindo antes
alagar as suas terras, com manifesto prejuízo para as próprias culturas e desperdiçá-la.

Até aqui, analisei o contrato de parceria assinado em 1967, entre o tutor dos herdeiros de
José Augusto Ferro, e os parceiros do Tarrafal de Monte Trigo. Após apresentar os pontos
essenciais do contrato escrito, apresentei a lista dos parceiros, assim como uma tabela
referente à distribuição das parcelas de terras e horas de água para a rega, feita de forma
não equitativa. A seguir, continuarei a falar do contrato, desta feita, incidindo sobre as
relações entre as partes, e as consequências advenientes destas mesmas relações.

4.5. As relações rendeiro/lavrador e a distribuição das parcelas

A documentação oficial não esconde esta distribuição não equitativa das terras e da água,
como tenho vindo a dizer. Como disse anteriormente, já na minha primeira investida de
terreno procurei saber o que os meus interlocutores tinham a dizer sobre o assunto.

Faustino péi de Isaías! El tive bêsténte porque ne kel temp el era impregôde d’es
Férre. Kom el era impregôde d’ês Férre el tmá terra de Nhe Gercia e Nhe Ovídio.

358 Relação de Proprietários do Tarrafal de Monte Trigo, (1983), Arquivo do MDR. Praia: Ministério do
Desenvolvimento Rural/ Direcção Regional de Santo Antão.
359 Idem, ibidem.

191
cuitódes fká sem nada…. Ke séb mim h’um séb de tud… el tmá kel óte de Djêdjê la
ne ledera de Ténk, demenera essim tude bé te krescê…360 (Diário de Campo. TMT,
agosto de 2017).

Foi com esta narrativa que o Sr. Apolinário, numa segunda conversa ocorrida seis meses
após a primeira, deu-me explicações, em como as parcelas tinham sido repartidas aos
agricultores, pelos herdeiros de José Augusto Ferro. Falava, agora, mais à-vontade, dando
exemplos concretos, não obstante saber da minha relação familiar com as pessoas de
quem apresentava como exemplos. Fui confrontar esta narrativa com os dados
encontrados nos arquivos do Ministério do Desenvolvimento Rural. As parcelas por ele
referidas, cuja posse útil foi passada para o nome de Isaías, por falecimento do pai,
Faustino, foram seis, totalizando 2,076 hectares. Muito, se comparado com os restantes
lavradores.

“Graças é Déus, mim ma nhe merid no tem nós pércélas graças a nhe pedrin, nhé pé, élhés.” 361
(Diário de Campo. TMT, agosto de 2017).

Foi nestes termos que Dona Micaela terminou uma longa conversa comigo, contando-me
em como tinha sido marginalizada pelos irmãos do lado paterno, aquando da “partilha”
da propriedade do pai, pelo facto de não ser filha de casamento. Ainda que as narrativas,
em bom rigor, não estejam dissociadas dos poderes vinculados a elas mesmas, percebi
uma relação de compadrio, e, a um só tempo, o porquê da atribuição de 0,920 hectares de
terreno a este casal, cujo marido sequer era natural do Tarrafal de Monte Trigo,362 coisa
que raramente ou quase nunca acontecera.363 Neste caso, pode-se pensar na possibilidade
de a relação de compadrio ter interferido de forma positiva na relação económica que a
distribuição da parcela dá corpo.

Porém, convém não esquecer que tal relação poderá ser mais complexa.

360 O Faustino, … pai do Isaías… Ele teve muito porque era empregado da família Ferro. E como era empregado da
família Ferro, tomou a terra do Sr. Garcia e a do senhor Ovídio. Os coitados ficaram sem nada. Porque sabes, eu sei
de tudo! Tomou a outra do Djedje na Ladeira de Tanque, de maneira que foi que tudo foi-se crescendo….”(Tradução
livre do autor).
361 Graças à Deus, eu e o meu marido, temos as nossas parcelas, graças ao meu padrinho, aliás, o meu pai, (Tradução

livre do autor).
362 O meu marido era originário do Planalto Sul e só se instalou em Tarrafal após o nosso casamento.
363 Salvo esta exceção, todos os lavradores foram pessaos nascidas e crescidas em Tarrafal de Monte Trigo.

192
O ser-se compadre, padrinho ou afilhado de alguém, sacralizava a relação, dada a
extrema religiosidade das populações mais humildes (…). Porque o lavrador partia
do princípio - “ele é o proprietário, mas é, sobretudo, meu comapdre, padrinho do
meu filho/filha. (Delgado, 2015:231).

“Bo sêb mim kel senhor tava gostá mut de mim. Mim era um afilhada kel tava gostá
demés. Mim tembem m´en dinha brinkedera kel eh!”364

Esta narrativa vai de encontro com as reflexões de Stockinger, para quem, “o tipo
patriarcal das relações predominantes da produção, que fazia aparecer o lavrador como
fazendo parte da família do proprietário, constituiu e continua a constituir um modelo
social aceitável mesmo para as relações entre parentes consaguíneos.”365

Deve-se, neste sentido, realçar que, ser padrinho/ser compadre, resulta de uma escolha, e,
toda a escolha implica uma rejeição. Assim, no caso em apreço, torna-se legítimo
questionar, porque entre tantos agricultores, muito poucos eram escolhidos? Por outro
lado, no caso do Tarrafal de Monte Trigo, em se tratando de um proprietário, José Ferreira
Ferro, vindo de São Vicente e cujos familiares eram originários da ilha Brava, pelo lado
paterno366 e do Paúl367 pelo lado materno, não se constatou nenhuma relação
consanguínea, entre a família Ferro e os parceiros. Trata-se, neste caso, de uma relação
social, traduzida numa certa cumplicidade desenvolvida com alguns lavradores, caso, por
exemplo, da interlocutora acima referida. Ao longo da nossa conversa, confessou o facto
da sua mãe ter desenvolvido uma grande cumplicidade com o proprietário, ao ponto de a
apadrinhar, situação que acabou por estreitar ainda mais as suas relações.

É possível que o poderio do padrinho tenha atingido o “seu corpo, suas atitudes, seus
discursos” (Foucault,1979:61), mas era preciso ver nos olhos da minha interlocutora para
notar o entusiasmo e a franqueza como referia ao padrinho, pai, como fazia sempre

364 Sabes, aquele senhor gostava muito de mim. Eu era uma afilhada a quem ele gostava demais. Eu também não tinha
brincadeira com ele! (Tradução livre do autor).
365 Stockinger, op. cit., p. 55.

366Cfr.ANCV- Registo nº 414, (Averbamentos). Registo de Nascimento de filhos legítimos ou ilegítimos. In livro 3,
registo nº 414, Nossa Senhora da Luz-Concelho de São Vicente.
367A mãe, Maria da Encarnação Ferreira, natural do Paúl, residente na cidade do Mindelo, conforme cosnta o registo
de nascimento de José Fereira Ferro.

193
questão de dizer. Notava-se, na conversa, “des aires de famille,”para tomar de empréstimo
a expressão de Pierre-Joseph Laurent.368

“In kom lá pé ríba, pe kes lod de mén d´gá, bo sêb kes m´lhor bókôdes foi dôd pe Isekiel, ké bô
sêb el era impregôde de loja de Kes Fêrr.”369 (Diário de Campo. TMT, agosto de 2017).

Este desabafo, leva-nos a pensar que, em certos casos, relações outras, nomeadamente as
entre patrão/empregado, acabaram por influenciar na forma como as parcelas foram
atribuídas aos camponeses, e, consequentemente, um dos fatores que terá contribuído para
as desigualdades nessa distribuição.

Dona Gertrudes, que não chegou a ser contemplada com parcela nenhuma e
consequentemente com nenhuma hora de água, afirma perentoriamente que “tud era d’ês
Férre: Nhe Djê, Nhe Pidrin, dona Mélia, ês é k tava mandá... tud gente tinha k respeité
ma gente ta gostá dés.”370

Sou tentado a dizer que estamos perante alguém, socialmente submisso a uma autoridade,
não porque recebeu dela um bem, uma parcela de terra, mas, certamente, porque faz parte
de um grupo social ele próprio submisso a esta autoridade. Talvez, estejamos perante uma
das múltiplas consequências das desigualdades intrínsecas na sociedade cabo-verdina,
(Laurent, 2018:250), desde a sua génese, ao ponto das pessoas não se darem conta delas.
As desigualdades sociais, económicas e políticas se naturalizam, são incorporadas.

Em contrapartida, na documentação que tenho vindo a citar, encontro uma narrativa


curiosa, a este respeito. “Sou compadre do ex-dono, mas agora somos inimigos porque
tentou tirar-me produto da terra e eu quixei-me dele às autoridades.371

368Laurent, Pierre-Joseph (2018). Amours pragmatiques. Familles, migrations et sexualité au Cap-Vert aujourd´hui.
Paris: Éditions Karthala, p. 249.
369 Lá para lado de cima, arredores da “mãe de água” (nascente), sabes, as melhores parcelas foram atribuídas ao Sr.

Isaquiel, porque sans, ele era empregado na loja da família Ferro. (Tradução livre do autor).
370Todos eles: Sr. Djê, Sr.Pedrinho, Dona Amélia, eles é que mandavam… toda a gente tinha de os respeitar, mas
gostávamos deles.” (Tradução livre do autor).
371Relação dos proprietários do Tarrafal de Monte Trigo (1983). Arquivo do MDR. Praia: Ministério do
Desenvolvimento Rural/ Direção Regional de Santo Antão.

194
Trata-se de alguém, que à data de entrega da posse útil sobre as terras, tinha vivido 21
anos de parceria, exterioriza, agora, a sua indignação relativamente à forma como achava
ter sido explorado durante 21 anos pelo proprietário, não obstante as suas relações de
compadrio.

Na verdade, a concentração fundiária em Tarrafal de Monte Trigo que tenho vindo a falar
ao longo do texto, acabou por provocar situações de injustiças sociais,372 de que
dificilmente, grande parte dos parceiros podiam ficar indiferentes. Se, por muito tempo,
o decontentamento não podia ser revelada de forma explícita, no contexto da reforma
agrária, é manifestado de forma menos dissimulada, como foi o caso que acabei de referir.
Se, nas entrelinhas das narrativas de muitos dos meus interlocutores, é possível notar que
a realção entre os próprios parceiros (os possuidores de mais parcelas versus possuidores
de menos parcelas) nem sempre era das melhores, ainda que não demonstrada de forma
aberta, com relação aos parceiros e a família proprietária, algumas narrativas são
esclarecedoras de uma conflitualidade latente.
“Tud gente sebia k Zekiel era preferid de Kes Férre. Sêb el era ses mnine de
mondôde. El tava vendê ne ses loja durente é dia, tud dia de semana, e kolker
mondôde el tava fezes… amoche el era prope um guetche de kes Férre… Ma
tembem, el tinha se bom bokóde de terra e de kes m´lhor….”373(Diário de Campo.
TMT, agosto de 2017).

“Bo sêb Simplis era melondron! L´en dáva gostá de trebaiá ne gricultura…. Ma el,
kes Férre n´en dáva mexé kel pe trêl ses bokódes, nem pensar, peké el é k táva bé
dês tud recôde fora dei… La po Port, o própe ne Soncent! Kes kosa lá el táva fezes
dret, enton nunca es meésel em trel sis percelas, imbora j´era mut mal treboíôde! E
bô sêb el tinha més ora d´ ága k nôs tud…”374 (Diário de Campo. TMT, agosto de
2017).

Estas duas narrativas suscitam alguma reflexão relativamente às relações entre a família
proprietária e os parceiros. Nos mostram como a referida família, de acordo com a sua

372Desde logo a meação constituiu o cerne principal dessa injustiça social, porquanto, a família proprietária só entrou
com um dos fatores de produção – a terra -, ao contrário do meeiro que, além do seu trabalho, comportava todas as
despesas do processo produtivo, sem esquecer os riscos inerentes à atividade agrária, para, no final, a divisão do
lucro, ser meio a meio, na melhor das hipóteses.
373Todo o mundo sabia que Isaquiel era o preferido da família Ferro. Sabes, ele era o menino de recado deles. Vendia
na loja deles durante o dia, todos os dias da semana, e qualquer recado ele é que fazia. Era mesmo um criadinho dos
Ferro…. Mas também ele tinha um bom bocado de terra, e das melhores. (Tradução livre do autor).
374Sabes, o Simplício era muito preguiçoso. Não gostava de trabalhar na agricultura. Mas a ele, a família Ferro não
mexia nas suas parcelas, nem pensar, porque era ele quem ia fazer todos os recados da família, fora dqui. Lá para
Porto Novo e até em São Vicente. Coisas do género ele fazia muito bem, e então nunca ele foi ameaçado de perder
as suas parcelas, não obstante serem muito mal trabalhadas! E sabes, ele tinha mais horas de água do que nós.
(Tradução livre do autor).

195
visão individualista, conferia à propriedade o uso que lhe fosse conveniente. Quanto mais
conveniência, maior/melhor era a parcela concedida, contribuíndo, desta forma, para o
crescimento da desigualdade na distribuição da propriedade da terra. A segunda narrativa
aponta-nos, ainda, para uma exceção que, afinal, aplicava-se a poucos. Em regra, se o
parceiro não cultivasse “convenientemente” a(s) sua(s) parcela(s), corria o risco de a (s)
perder, o que não foi o caso do parceiro referenciado pelo meu interlocutor, pelos serviços
que, afinal, prestava à família proprietária.

Em jeito de conclusão, resta-me realçar que, a forma como as parcelas foram distribuídas
pela família proprietária não foi de todo equitativa. As narrativas aqui exibidas, são
bastante esclarecedoras neste sentido. Elas evidenciam claras relações de compadrio.
Porém, pelo menos até o início do processo da reforma agrária, não encontramos reações
de decontentamento e fricção, de forma explícita por parde dos parceiros, em relação à
família proprietária, particularmente entre esses e o tutor da famíla, quem, em última
análise, devia responder pela distribuição tendenciosa das parcelas.

Um caso que me pareceu curioso, foi o relato de uma mulher, que, pelo simples facto de
ser mulher e de não conviver com nenhum homem, com o agravante do seu agregado
familiar ser constituído apenas pelas suas três filhas, não foi contemplada com qualquer
parcela de terra, vivendo, como ela mesma me confidenciou, de favores por parte dos
vizinhos. Porém, foi esta mesma mulher quem me confidenciou que tinha boas
recordações da família Ferro, particularmente do tutor, que, segunda ela, era uma “boa
pessoa.” São aspetos que não deixam de suscitar alguma reflexão, relativamente à uma
família cujo domínio sobre aquele território era total, logo, com uma grande possibilidade
de dominação a todos os níveis.

Uma segunda nota, tem que ver com o depoimento extraído da documentação emanada
do Ministério do Desenvolvimento Rural, quando o interlocutor afirma “ser inimigo do
ex-dono, não obstante serem compadres.” Recorda-se que tal afirmação foi feita no
contexto da reforma agrária, numa altura em que as parcelas foram atribuídas aos ex-
parceiros, mediante a posse útil sobre as mesmas, consequentemente num contexto em
que o tutor da famíla Ferro deixa de ter qualquer autoridade sobre a propriedade e sobre
os camponeses. Nessa altura, os ex-parceiros estariam mais avontade para exprimirem
as suas opiniões relativamente à família e à época em que com ela trabalharam. A este

196
nível pode-se falar de uma relativa rutura em relação ao passado, pese embora, em termos
de desigualdade social, constata-se uma situação de continuidade, como terei
oportunidade de explicar um pouco mais à frente.

Se é verdade que, deverá existir alguma vigilância perante esta fonte, de onde a afirmação
foi recolhida, nomeadamente devido à sua proveniência, não é menos verdade que a
afirmação não deixa de ser instigante, sobretudo se fizermos a ponte com a afirmação de
Zenaida Delgado, acima referida, que, ancorada em narrativas recolhidas no concelho da
Riberia Grande, diz-nos que a“estória” do compadrio era uma forma do proprietário
dominar melhor o lavrador e deste se submeter àquele mais facilmente.”375

Tenho consciência que, seria também interessante explorar melhor as relações entre os
que menos parcelas e menos horas de água de rega possuíam, eventuais conflitos e até
mesmo se tará havido algum mecanismo de dividir para reinar. Nem a pesquisa nos
arquivos, nem a etnografia levada a cabo, me permitiram encontrar respostas para estas
questões, que, ficam, por isso, abertas.

Por ora, centremos nas condições económicas dos parceiros com contratos com a família
proprietária.

4.6.A situação económica e social adveniente do contrato de parceria

“Bo sêb ne kel temp, e kom prei pe Kovón gente era tud unid k kumpenher! Ningém
n’dáva dermí sem seá! Ti Zekeria, tava sei te andá de kasa em kasa pe espiá kem k
n’en dinha jantar, kem k’endivésse no táva perti pe tud gente dá ses fi k mé!... K bô
sêb s’en fosse essim mut kotode tava m’rrê de d’fom!”376 (Diário de Campo. TMT,
março de 2018).

375Delgado Zenaida (2015). A Reforma Agrária em Cabo Verde : estudo de caso no concelho da Ribeira Gande de
Santo Antão. In Furtado C. & Vieira, M. (orgs). Desigualdades Sociais e Dinâmicas de Participação em Cabo Verde,
Praia: Edições Uni-CV, p. 231.
376 “Sabes, naquele tempo, sobretudo aqui no Covão, as pessoas eram unidas ente si! Ninguém dormia sem jantar! O
tio Zecarias saía de casa em casa, a ver quem não tinha jantar, e quem não tivesse, nós dividíamos para que toda a
gente dêsse aos seus filhos de comer. Porque sabes, se não fosse assim, muitos coitados morriam à fome!” (Tradução
livre do autor).

197
Foi assim que o Sr. Isaías terminou uma longa conversa comigo, enquanto recordava o
Tarrafal d´outrora. Pela primeira vez alguém me tinha falado da fome nestes termos e
naquele contexto. Das outras vezes, a fome era conotada com o ano de 1947, altura em
que Tarrafal de Monte Trigo acolheu famintos de outras localidades que ali escaparam
àquela calamidade. Alguns, ainda vivos, sequer sabem de onde vieram e como vieram
parar nas praias do Tarrafal nos anos 40 do século XX, por altura “de kel fom vermei,”377
como quase todos os meus interlocutores a classificaram.

Esta narrativa suscitou em mim alguma estranheza. Passar fome numa zona rural de
regadio, implicava procurar as suas causas mais profundas. Aliás, já antes, tido lido um
texto, publicado nos alvores da independência que dizia o seguinte:
Apesar da extensa área agrícola, da fraca densidade populacional, a região do
Tarrafal de Monte Trigo, é afectada pela fome permanente. Isso é devido ao
sistema de monocultura da cana sacarina que não dá lugar ao aparecimento
de culturas de subsistência como o milho, o feijão, a mandioca e a batata, se
não numa proporção bastante reduzida e destinada ao proprietário e do seu
círculo social378 (Nôs Luta, 1975:5).

Fui revisitar a fonte oficial que tenho vindo a citar, a partir do qual construí o quadro
abaixo, relativo à produção média anual dos lavradores do Tarrafal de Monte Trigo.

Tabela 7. Relação da produção anual dos lavradores do Tarrafal de Monte Trigo


Nome do agricultor Produção média ( anual)
Ricarda Júlia Pires 3 Garrafões de aguardente, 1 saco (50kg) mandioca
António Joaquim Medina 8 garrafões de aguardente, 2 sacos(50kg) mandioca
Pedro Manuel Évora 5 garrafões de aguardente, 1 saco mandioca, 300/400 kg
banana por ano.
Joaquim João Lima 18 garrafões de aguardente, 4 sacos ( 30 kg) de
mandioca e 3 sacos (90 kg) de inhame
Lourenço Évora 3 garrafões de aguardente, 2 sacos (30 kg) mandioca e
cerca de 200/300 kg banana anual.
Joaquim Manuel Évora 2 garrafões de aguardente e 3 sacos (50kg) mandioca e
400 a 500 kg banana anual
Alfredo Pedro Dias 4 garrafões de aguardente, 3 sacos (50kg) mandioca e
400 a 500 kg banana anual
Lourenço Alfredo Dias 4 garrafões de aguardente e 3 sacos (50 kg) mandioca

377 “Aquela fome vermelha!” (Tradução livre do autor).


378 Tarrafal de Monte Trigo – Santo Antão ou São Vicente? In Nôs LUTA – Ano I, nº 9, 31/05/1975, pp. 4-5.

198
João Lourenço Dias 2 garrafões de aguardente e 2 sacos (50kg) mandioca
Carlos José Évora 2 garrafões de aguardente e 2 sacos (50kg) mandioca.
Gaudêncio Joaquim Medina 3 garrafões de aguardente e 5 sacos (30kg) mandioca
Gregório J. Dos Santos 8 garrafões de aguardente e 4 sacos (50kg) mandioca
Quirino David 2 garrafões de aguardente, 2 sacos (30kg) mandioca
António Rodolfo Fortes 6 garrafões de aguardente, 3 sacos (50kg) mandioca
Isabel Joana Évora 8 garrafões de aguardente, 2 sacos (30kg) mandioca e
500 a 600 kg banana anual
Manuel Luís Évora 2 garrafões de aguardente, 2 sacos (30kg) mandioca
Joaquim Manuel Silva 4 garrafões de aguardente, 2 sacos (30kg) mandioca
Joaquim Manuel dos Santos 6 garrafões de aguardente, 2 sacos (50kg) mandioca
Emídio Luís Évora 8 garrafões de aguardente, 2 sacos (30kg) mandioca
José Manuel Dias 2 garrafões de aguardente, 3 sacos (30kg) mandioca
António Rodolfo Fortes 6 garrafões de aguardente, 3 sacos (50kg) mandioca
Isabel Joana Évora 8 garrafões de aguardente, 2 sacos (30kg) mandioca e
500 a 600 kg banana anual
Manuel Luís Évora 2 garrafões de aguardente, 2 sacos (30kg) mandioca
Joaquim Manuel Silva 4 garrafões de aguardente, 2 sacos (30kg) mandioca
Joaquim Manuel dos Santos 6 garrafões de aguardente, 2 sacos (50kg) mandioca
José Manuel Dias 2 garrafões de aguardente, 3 sacos (30kg) mandioca
Manuel Jorge Évora 2 garrafões de aguardente, 3-4 sacos (50kg) mandioca
Antónia Teresa G. Évora 4 garrafões de aguardente, 10 sacos (30kg) mandioca e
300kg banana
Alfredo Manuel Évora 4 garrafões de aguardente, 2-3 sacos (30kg) mandioca
António Círilo Lopes 2 garrafões de aguardente, 2-3 sacos (30kg) mandioca
Manuel J. Fortes 2 garrafões de aguardente, 1-2 sacos (50kg) mandioca
Joana Peregrina 8 garrafões de ag. 7 sacos (50kg) mandioca, 200 –
300kg banana
Júlio Évora 24 garrafões de aguardente, 7 sacos de mandioca 200 –
300kg banana
José A. Évora 13 garrafões de aguardente
2 sacos de mandioca 50kg
António M. Évora 13 garrafões de aguardente
2 – 3 sacos de mandioca
Filipe J. Violante 20 – 25 garrafões de aguardente, 3 – 4 sacos mandioca,
200 – 300kg banana
José Maria Évora 2 garrafões de aguardente,
2 – 3 sacos 30 kg mandioca
Augusto J. Évora 4 garrafões de aguardente
2 sacos 30 kg mandioca e 300kg banana
Manuel J. Da Cruz 7 garrafões de aguardente
2 – 4 sacos 30 kg mandioca
Gregório M. Silva 8 garrafões de aguardente
4sacos 30 kg mandioca e 200 – 400kg banana
José J. Évora 2 - 3 garrafões de aguardente
1 - 2 sacos 30 kg mandioca
José J. Spencer 4 garrafões de aguardente
2 – 3 sacos 30 kg mandioca

199
Maria S. Rodrigues 3 garrafões de aguardente
1 – 2 sacos 30 kg mandioca
Domingos J. Santos 2 garrafões de aguardente
2 sacos 30 kg mandioca, 1500kg banana anual
Miguel M. Gomes 3 garrafões de aguardente
2 sacos 30 kg mandioca, 200 – 300kg banana
Filipe J. dos Reis 2 garrafões de aguardente
4 sacos 30 kg mandioca
Manuel L. Morais 8 garrafões de aguardente
2 - 4 sacos 30 kg mandioca, 800kg banana
Pedro A. Delgado 2 garrafões de aguardente
2 sacos 50 kg mandioca
José J. Delgado 3 garrafões de aguardente
2 – 3 sacos 30kg mandioca
Germano A. Almeida 6 garrafões de aguardente
5 sacos 30kg mandioca
Hugo B. Fortes 6 garrafões de aguardente anual
Zacarias L. Da Cruz 2 garrafões de aguardente
3 sacos 50kg mandioca
João B. Évora 2 garrafões de aguardente
1 - 2 sacos 30 kg mandioca
José Teodoro Pedro 2 garrafões de aguardente, 2 sacos (30kg) mandioca
Fonte: Relação de Proprietários do Tarrafal de Monte Trigo, (1983) - Arquivo do MDR, Praia: Ministério
do Desenvolvimento Rural/ Direcção Regional de Santo Antaõ

Deve-se, fazer, no entanto, uma ressalva, no sentido em que a tabela foi construída a partir
de dados recolhidos pela equipa do Ministério do Desenvolvimento Rural(MDR), no
quadro do processo da reforma agrária em Cabo Verde, pelo que deve ser levada em conta
o contexto em que os mesmos foram apresentados e a entidade produtora. Ao que tudo
indica, não se tratou exatamente de um inquérito à produção, mas sim, estimativas
realizadas para o efeito dos relatórios a que as comissões concelhias deveriam elaborar,
após visitas curtas às comunidades.

Nos relatórios a que tive acesso, não encontramos indicações da metodologia aplicada
relativamente à quantificação dos produtos aqui apontados, assim como não encontramos
informações concernentes a qualquer inquérito baseado no interrogatório aos cultivadores
que eventualmente terá sido feito. Outrossim, não tive acesso a qualquer dado da família
proprietária relativamente a este assunto.

E quando perguntados alguns dos parceiros sobre esta matéria, nenhum foi capaz de
lembrar ter sido questionado alguma vez sobre a quantidade da produção e os tipos de

200
produtos cultivados. Esta situação induz-me a pensar na possibilidade das estimativas
terem sido feitas aleatoriamente, eventualmente a partir de avaliações e de observação
dos técnicos do MDR.

Outrossim, existem implicações metodológicas a este respeito. A falta de elementos das


outras partes envolvidas no assunto, quer da família proprietária, quer dos parceiros,
impede-nos de fazer o necessário cruzamento de dados, fundamental num trabalho desta
natureza.

Seja como for, a leitura desta tabela permite-nos constatar que as produções se resumiam
à cana de açúcar, mandioca e banana, com predominância da primeira, de que porventura
ao proprietário mais se interessava.

(…) os lavradores, por falta de recursos económicos e por estarem amplamente


divididos, são obrigados a canalizar as colheitas da cana sacariana para a única
fábrica local de aguardente e que é propriedade da família latifundiária. Uma vez
fabricada a aguardente, o proprietário do alambique retira a “quinta, “isto é, cada 20
litros de aguardente pagam 4 litros de fabrico; os restantes 16 litros são divididos
entre o dono da terra e os camponeses lavradores, deduzindo-se, deste modo,que em
cada 20 litros cabe ao proprietário 12.379

Relativamente aos outros produtos, nomeadamente a mandioca e a banana, convém não


esquecer que à luz do Contrato de Sociedade ou Parceria, anteriormente referido, “a
divisão dos frutos terá lugar depois das colheitas (no caso de se tratar de produtos
arvenses) ou de terminados os trabalhos agrícolas (nas restantes culturas). ”380

Assim, em bom rigor, o cultivador, à luz desse contrato, só teria produto disponível para
consumo no (s) dia(s) em que a divisão devia ser feita, ficando no ar a questão que consiste
em saber como se alimentavam nos restantes dias. Mais do que “má distribuição das
riquezas e dos produtos,”381 a fome, no caso em apreço, deverá ser encarada como uma
das consequências dos dispositivos contratuais. Porém, uma ressalva se impõe. As
narrativas de algumas mulheres, apresentadas mostram como estes dispositivos

379 Tarrafal de Monte Trigo – Santo Antão ou São Vicente? In: Nôs Luta- Ano I, nº 9, 31/05/1975, pp. 4-5)
380Nº 9, Contrato de Sociedade ou Parceria; in: Relação de Proprietários do Tarrafal de Monte Trigo (1983) - Arquivo
do MDR. Praia: Ministério do Desenvolvimento Rural/ Direcção Regional de Santo Antão.
381 Castro, Josué de, Op. Cit. p. 28.

201
contratuais eram contornados quanto ao controlo do administrador da família proprietária.
Colocar produtos agrícolas dentro de feixes de pasto ou em latas com água constituía, ao
que parece, uma prática frequente. As duas narrativas abaixo, são disto reveladoras.

“ H´um táva levantá medreguedinha, cambá Ziélve, trá nhe bokóde de nhém, fejón, batata, tud
kel k percesse, lhés bnitim ne mei de páia, de cana, quónd plemnhá tá mensé, jám táva estóde ei
na casa, chei de kmida.”382 (Diário de Campo. TMT. Agosto de 2017).

“ Bô sêb ninguém en né dód nem! Mim ne kada kuate lata d´ága k´um táva treze pa kása tud dia
sêd, dôs tava bem kués chei de mendióka k´um táva trá log la mém ne funtinha383.” (Diário de
Campo. TMT, agosto de 2017).

Por outro lado, convém não esquecer do isolamento do Tarrafal de Monte Trigo e da
dificuldade enorme dalí se sair, mormente com algum produto destinado à venda, caso
existisse. O único transporte existente era assegurado pelos vaporins d´água, atrás
referidos, e os barcos de pesca, também eles pertencentes à família Ferro. Em qualquer
um deles, a possibilidade para viajar a São Vicente – a urbe mais acessível de se chegar
a partir do Tarrafal de Monte Trigo era ínfima, e, impossível, em caso de algum cultivador
ousar transportar algum produto para vender naquela ilha. Porém, também neste aspeto,
muitos eram os agricultores que conseguiam contornar a situação, vendendo produtos
no ancoradouro do Tarrafal de Monte Trigo aos tripulantes dos Vaporins d´Água, como
mostrei, através das narrativas insertas no capítulo quarto, ao abordar o contrato de
parceria de 1967 e os seus contornos.

Assim, em tese, e à luz dos contratos, atendendo à natureza destes produtos, o único que
podia ser consumido racionalmente, até à próxima colheita, era a aguardente.384 Os
restantes, deviam ser de uma só vez. Perante estes dados, o discurso de ocorrência de
fome e privações é frequente em algumas narrativas recolhidas pelas instituições oficiais.
Talvez não seja por acaso, que, quando perguntados quais eram suas opiniões, acerca da

382 Eu levantava de madrugada, ía para José Alves, tirava um bocado de inhame, feijão, batata, tudo o que aparecesse,
embrulhava-os em palha de cana, com o romper da manha, já estava em minha casa, cheia de comida. (Tradução
livre do autor).
383Sabes, ninguém é doido, nem! Eu, em cada quatro latas de água que trazia para a casa todos os dias de manhã, dois
eram quase cheias de mandioca que eu tirava la mesmo em fontinha (Tradução livre do autor).
384Não será esta uma das razões que justificam o elevado consumo da agurddente naquelea locailidade com efeitos
nefastos na saúde pública, que tende a agravar atualmente?

202
LBRA, levada a cabo no início dos anos oitenta do século transacto, de que falarei mais
à frente, muitos dos ex-lavradores da família Ferro são bastante peremptórios:
 Com ela em vigor, poderei plantar qualquer planta de acordo com as condições do
terreno e a ajuda técnica do MDR (29 anos na parcela).
 Assim que tiver as terras em minhas mãos definitivamente, hei-se diminuir a cana e
pôr um bocado de hortaliças, de acordo com a LBRA do Governo (60 anos na
parcela).
 Com esta lei, penso fazer um bocado de hortaliças (em 1º lugar) para ter de comer e
diminuir a área da cana, sem vergnha do ex-dono (25 anos na parcela).
 Já fiz muito trabalho na parcela e no entanto passava fome e a família também. De
hoje em diante, não (20 anos na parcela).
 Com esta lei em vigor poderei estar na parcela a fazer comida à vontade para toda a
família poder viver (46 anos na parcela).
 Estou contente com isso porque já estava farto de ser chamado ladrão e de comer o
produto da terra às escodidas do dono (32 anos na parcela).
 Já estava farto de comer às escondidas e servir de criado ao dono da parcela (34 anos
na parcela).385

A leitura do quadro acima, referente aos contratos de parceria, permite-nos constatar uma
clara predominânica da presença masculina na gestão das explorações agrícolas. Numa
das minhas pesquisas de campo, decidi indagar sobre a situação das camponesas do
Tarrafal de Monte Trigo. Das outras vezes tinha conversado com três mulheres, sendo
duas lavradoras e outra cuja família nunca chegou a receber qualquer parcela de terra seja
no âmbito dos contratos de arrendamento com a família Ferro, seja no quadro da Reforma
Agrária. Queria, agora, saber o olhar das esposas relativamente à vivência diária no
Tarrafal da época. Embora, regra geral, em Tarrafal de Monte Trigo existiu, e existe ainda,
uma divisão social e sexual de trabalho, porquanto, as mulheres não participavam, e ainda
não participam, diretamente nos trabalhos de exploração agrícola de regadio, tarefa
reservada aos homens e aos filhos, queria ouvir as suas vozes enquanto pessoas que
labutavam com as tarefas domésticas, nomeadamente nas lides da cozinha.

385 Arquivo do MDR. Praia: Ministério do Desenvolvimento Rural/ Direcção Regional de Santo Antão.

203
“Kond ta perce um mendiokinha pe feze olmosse, gente tava f’ka k méd de Bicha
percesse prei. Bo sêb es tava mendel sei te andá pa kasa de gente, sempre na ora
d’olmoce. E como tud gente tava gostá dela, no tavá del olmoce, ma kond el voltesse
es tava bé perguntél k’si k’kel k’mé ne cada kasa. Sel d’zesse que foi algum kosa
tróde no orta gente pudia f’kesse k’preblema!”386 (Diário de Campo. TMT, março de
2018).

Bicha era a alcunha pela qual era conhecida uma das irmãs do tutor da família de José
Augusto Ferro. Não obstante apresentar problemas de saúde, deambulava pelo povoado
do Tarrafal, onde era acarinhada por todos.

Segundo a minha interlocutora, acima referida, e outras com quem falei sobre o assunto,
coincidência ou não, pelo menos na localidade do Covão, ela aparecia sempre à hora do
almoço, porquanto, as senhoras receavam-na muito, porque, como dizem, ela levava
informações à família Ferro, descrevendo os ingredientes dos almoços em cada uma das
casas frequentadas.

Como, em tese, e à luz do contrato de parceria, os produtos agrícolas só deviam ser


colhidos com a devida autorização e em presença do representante da família Ferro, tais
produtos não deviam constar do cardápio da casa dos lavradores, a não ser nos dias da
colheita e respetiva partilha. No entanto, sempre havia maneiras de se escaprem a este
controlo. Questinada sobre a relação com a família proprietária, disse-me, de forma
cómica, a dona Etelvina:

“Basta gente prestésse tensón ne Bícha, o rest n’era preblema. P’ké même M`keel, era de
vez ek’el tava perce prei e bo sêb, léra um hom dret!”387

Mais uma narrativa a reforçar a situação descrita acima. Mais uma vez, estamos perante
uma das herdeiras da famíla proprietária, logo, e à partida, detentora do poder, porquanto
suscita algum receio ou mesmo medo, como se denota da narrativa acima, mas, ao mesmo
tempo, gostavam dela. Em se tratando de uma mulher, o seu poder, neste contexto, não

386“Quando aparecia uma mandioca para o almoço, ficávamos com medo que a Bicha aparecesse por aqui! Sabes,
mandavam-na sair de casa em casa, sempre à hora do almoço. E como toda a gente gostava dela, convidávamos para
om almoço, mas quando regressava iam perguntá-la o que comeu em cada uma das casas. Caso dissêsse que fosse
qualquer coisa tirada dos hortos, podíamos ter problemas.”(Tradução livre do autor).
387Desde que a gente tivesse cuidado com a Bicha, o resto não era problema. Porque mesmo o Micael era de quanto
em vez que aparecia por aqui e sabes, ele era um homem bom. (Tradução livre do autor).

204
deixa de ser matéria instigante para reflexão, assim como não deixa de ser interessante
como as mulheres conseguiam contorná-la, escapando-se do controlo da família
proprietária ela mesma.

Esta violência simbólica, vivenciada particularmente pelas mulheres, que lidavam


diretamente com esta situação em concreto, mostra-nos o quão a configuração fundiária
descrita ao longo deste texto interferia com o quotidiano das gentes do Tarrafal de Monte
Trigo.
Sobre as demais mulheres do Tarrafal de Monte Trigo, e, relativamente às suas trajetórias
fundiárias, particularmente áquelas cujos maridos faleceram, correndo o risco de
perderem as parcelas, identifiquei algumas com quem falei, mas também fui falar com
filhos destas mulheres. Um deles deu-me o seguinte depoimento:
Nós pé m’rrê ne 1969. De répez mim era més vei. Hu’m tinha 10 óne. Nhé mém tive
k trebaiá moda um óm. El tava levantá medregada, pé po orta, regá, cová, feze tud.
Mim ma ela. Porqué kond nhe pé m’rré alguns de ses subrin k já era home grend, f
ká te tentá feze kébesa de Nhe Djê Férre, pe tmá kes percelas de nhe pei pe dés pes
trebaiá. Coitade de nha mé jan dáva dermi denote, tinha k trabaia pa garanti cultive
de tud kes percelas se non es tava tmés e no táva m’rre de fom. Konde hu’m bem te
fká més grindim hu’m kmesá te infrentá diretemente nhes primos e eté uns tios de
meu k tembém tava tentá tmá kes percelas de nhe péi. Essim, bé te bé, eté k ne 83
posse útil bem ser dode á nhe menhe!388 (Diário de campo, TMT, agosto de 2018).

Esta narrativa põe a nu a vulnerabilidade das mulheres do Tarrafal de Monte Trigo quando
desgraçadamente perdiam o marido. Em bom rigor, perder o marido equivalia a perda das
parcelas, em caso de não disporem de filhos com idade suficiente para trabalhar na
lavoura capaz de honrar os compromissos estipulados no contrato de que tenho vindo a
falar.

Ainda a este propósito, uma senhora, cujo marido falacera, deu-me um depoimento neste
sentido:

388 O nosso pai morreu em 1969. De rapazes, eu era o mais velho. Eu tinha 10 anos de idade. A minha mãe tinha de
trabalhar como se fosse um homem. Levantava de madrugada, ia para o horto, cavava, regava, fazia tudo. Eu e ela.
Porque quando o meu pai morreu, alguns dos seus sobrinhos, que já eram homens adultos ficaram a tentar convencer
o senhor Djê Ferro para tomar as parcelas do meu pai e entregar-lhes para trabalhar. Cuitada da minha mãe já não
dormia a noite, tinha de trabalhar para garantir o cultivo das parcelas, caso contrário, tomavam-as e nós morríamos a
fome. Quando fui ficando mais crescido, comecei a enfrentar diretamente os meus primos e até alguns tios meus, que
também tentavam tomar as parcelas do meu pai. Assim, foi-se andando, até que em 83 a posse útil veio a ser atribuída
à minha mãe.” (Tradução livre do autor).

205
“Oh nhé fi, oíá mim passá més mal foi k kes irmón de nhe merid k déos tem! Kond
el m´rrê, fká btóde no tchón ma nhes fi pknin, es fezé tud per tud pé trem kes pdécin
de tchón….Se mim era um m´lher mólondre, no táva fka sem nada, bo sêb no tinha
era k m´rrê de fóm! Oiá, h`um táva levantá medregada, tud dia k dóes ptá no cruz, te
terbaiá moda um hom! K bô sêb basta es oiésse k táva k l´gum kósa sem feze, es
mem táva bê dezé kes Férre, pe tmese mim es pe entregues pes trebaiá… graças é
déos h´um consegui kria nhes fi, ma tud ne kel secrefis k jam kontóbe.”389 (Diário
de Campo. TMT, agosto de 2018).

Numa comunidade onde a ânsia para se conseguir parcelas de regadio era grande, era
preciso muita mestria à uma mulher nessa situação, para conseguir manter a parcela em
vida trabalhada pelo marido. Certamente, mais do que sensibilizar o proprietário neste
sentido, era necessário saber lidar com as artimanhas de pessoas próximas, entretanto de
olhos nas referidas parcelas, tanta era a ânsia pela terra e pela água.

Ao longo deste capítulo, analisei seis tópicos, através dos quais foi-me possível seguir
Tarrafal de Monte Trigo durante cerca de cento e quarenta e dois anos. A viagem iniciou
em 1841 ano em que comecei a tentar desvendar o embrólio, relativamente à esta
propriedade, pertencente, por essa altura, na sua grande parte, a Manuel António Martins,
“proprietário da maioria das fazendas na ilha de Santo Antão.”390

Terá passado para as mãos de familiar seu, João António Martins,391 que acabou por
contrair uma dívida à Fazenda Nacional, relativamente ao pagamento das quotas de
décima à esta Fazenda, entre 1882 e 1885, como referenciado anteriormente.392

Com a sua morte, Teodora Ferreira Martins, viúva do malogrado, residente no Paúl, tenta
resolver a situação, entretanto, não conseguida, pelo que em 1889 os rendimentos da

389 Oh meu filho, olhe eu passei mais mal, foi com os irmãos do meu marido, que Deus o tenha! Quando ele morreu,
eu fiquei com os meus filhos ainda pequenos, e fizeram tudo por tudo para nos tirar os bocados de terras. Se eu fosse
uma mulher preguiçosa, nós ficaríamos sem nada, e sabes, íamos era morrer a fome! Olhe, eu levantava de
madrugada, todos os dias que Deus pôs na cruz, trabalhando que nem um homem! Porque sabes, era só verem que
alguma coisa estivesse sem fazer, eles mesmos iam dizer a família Ferro, para me tomas as terras e os entregar para
trabalharem. Graças a Deus, consegui criar os meus filhos, mas sempre com este sacrifício que já te contei (Tradução
livre do autor).
390 Chelmicki (1841). Op. Cit.
391 Boletim Oficial da Província de Cabo Verde, nº 17, 27 de abril de 1989.
392 Idem, ibidem.

206
propriedade foram para a praça pública,393 acabando por serem penhorados, e
arrematados por Adolfo Pires Ferreira, em arrendamento, para um período de 34 anos.

Em 1906 aparece inscrita em nome de Fernando Burnay Martins, residente em Lisboa e


em 1911 no de Apolónia Burnay Martins, também residente em Lisboa. Seis anos depois,
em 1917, o Governo da Província de Cabo Verde propõe comprar a propriedade, alegando
se encontrar em estado de abandono, e, nessa altura, António Vicente Fialho, esposo de
Beatriz Burnay Martins Fialho, reage, alegando terem colocado um guarda em Tarrafal
de Monte Trigo, porquanto não considerarem a ter abandonado.

Não foi possível encontrar elementos que me permitissem ver o desfecho da situação, se
terá ou não o governo da Província comprado a propriedade. No entanto, dois anos depois,
em 1919, a família Ferro aparece conotada à propriedade, na sequência da criação da
Firma Ferro & Companhia, representado por José Augusto Ferro, para o abastecimento
de água à ilha de São Vicente a partir do Tarrafal de Monte Trigo.

A partir dessa altura, entrei numa outra fase de análise, referente à propriedade do Tarrafal
de Monte Trigo durante o consulado desta família, que iria prolongar até os primeiros
anos da década de oitenta do século XX, altura em que ela conhecerá um processo de
reforma agrária, de que falarei no capítulo que se segue.

393 Idem, ibidem.

207
CAPÍTULO V.

A LEI DE BASES DA REFORMA AGRÁRIA (LBRA) EM CABO


VERDE E O SEU IMPACTO EM TARRAFAL DE MONTE TRIGO

208
5.1. Nota introdutória

Os programas das reformas agrárias, cujo objetivo central consistiu na substituição dos
arranjos institucionais relativamente à posse, ao uso e à alteração da distribuição das
terras, acabaram por ter impactos diferentes nas sociedades camponesas, em paragens e
contextos também eles diversos.394

Acontece que estas reformas foram feitas de maneira díspar, desde a transferência de
direitos à propriedade da terra até à transferência de terras de propriedade individual para
fazendas coletivas controladas pelos governos. Consequentemente, foram reformas que
acabaram por alterar de forma diferente o grau de controlo sobre o uso da terra por
agricultores, comunidades rurais locais, corporações ou órgãos governamentais. Porém,
qualquer reforma agrária, regional, nacional ou colonial, acaba por ser um processo
intensamente social e político, com impacto nas relações entre as comunidades rurais e
entre estas, o estado e outros atores económicos e políticos.

Neste capítulo, procurarei analisar o impacto da reforma agrária levada a cabo pelo
governo do Cabo Verde independente, lançando um olhar sobre o caso do Tarrafal de
Monte Trigo, na ilha de Santo Antão, pelas especificidades que encerra nesta matéria.

A questão central consistirá em avaliar como o programa da reforma agrária foi recebida,
observada, percebida e vivenciada pelos atores locais, numa comunidade onde, ao
contrário de muitas outras do outro lado da ilha, não houve resistências relativamente ao
programa, tanto no momento de sua socialização quanto de execução e implementação.
Pelo contrário, mais do que passivamente aceite, informações existentes apontam para o
facto de que ela tenha sido aplaudida pela comunidade que a recebeu como um alívio,
como terei a oportunidade de elucidar, mais à frente, a partir de depoimentos dos
agricultores daquela comunidade.

394Diferentes regimes utilizaram e utilizam esta expressão para definir a política de redistribuição de terras públicas,
privadas, ou ainda para modificar o regime de ocupação do solo. Se é verdade que, geralmente, fala-se da reforma
agrária, referindo-se a um fenómeno social, que se traduz por uma transformação socioeconómica de natureza brusca,
por vezes violenta, parece não ser menos verdade que, no caso em apreço, tal não se verificou.

209
Devo, ab initio, dizer que, não constitui objeto deste capítulo, debruçar sobre os contornos
da Reforma Agrária em Cabo Verde. Apenas uma rasa contextualização se mostra,
contudo, necessária, no intuito de melhor clarificar o estudo de caso, eleito no quadro
desta tese.

À data da Independência Nacional, 1975, a estrutura agrária de Cabo Verde constituiu um


factor de instabilidade para a vida de uma importante parte da população. 39% dos
camponeses (com um máximo de 51% em Santiago e um mínimo de 19% em São Nicolau
e Brava)395 não possuíam terra própria, cultivando terra de outrem em regime de
arrendamento396 ou de parceria.397 Os restantes eram proprietários mas destes, 50%
também parceiros ou rendeiros, ou ainda rendeiros e parceiros ao mesmo tempo. Sendo
assim, tal estrutura não servia, do ponto de vista das políticas públicas agrárias de então,
nem os objetivos de produção e da produtividade agrícolas, nem os objetivos
socioeconómicos da política do novel Estado de Cabo Verde.

Entre outras limitações ao desenvolvimento da produção destacaram-se:


 O regime indirecto de exploração das terras398 que incidia sobre prédios
grandes, médios e pequenos;
 A sobreposição da titularidade de várias formas indirectas e de regime
direto399 num mesmo indivíduo;
 O minifúndio.

395Lei das Bases da Reforma Agrária. Lei nº 9/II/82 de 26 de março. Ministério do Desenvolvimento Rural, Gabinete
da Reforma Agrária.
396Relação jurídica, estabelecida por determinação legal ou por contrato ainda que não escrito, pela qual alguém cede
a outrem o gozo e a fruição de um ou mais prédios rústicos de que é proprietário ou sobre os quais detem poderes de
cedência onerosa, mediante o pagamento de uma retribuição fixa em dinheiro ou em espécie, Cf. Silva, João
Pereira(s/d). A reforma das estruturas agrárias de Cabo Verde. Ante-Projecto de Lei das Bases da Reforma Agrária,
Edição do Gabinete da Reforma Agrária.
397Contrato, ainda que não escrito, segundo o qual alguém, com legitimidade para tal, entregue a outrem, para
exploração, um ou mais prédios rústicos, recebendo em troca uma quota-parte da respectiva produção ou a prestação
de qualquer forma de trabalho, Cf. Silva, João Pereira, op. Cit. p. 37.
398Aquele em que o proprietário, ou quem suas vezes faça, cede a outem o gozo e a fruição do prédio rústico por
arrendamento, aprceria ou outro titulo oneroso, limitando-se a receber a respectiva retribuição, Cf. Silva, João Pereira,
op. Cit. p. 37.
399Aquele em que o produtor X é proprietário do prédio rústico. O mesmo que exploração por conta própria. (Cf. Silva,
João Pereira, op. Cit. p. 37).

210
Tabela 8. Número de rendeiros e parceiros existentes em Cabo Verde em 1976
Ilhas Rendeiros Parceiros Total

Santiago 22 387 12 615 35 002

Fogo 299 8 490 8 789

Brava 724 1 301 2 025

São Nicolau - 1860 1 860

Boa Vista 1 51 52

Santo Antão 175 3.314 3 489

Total de todas as 23 586 27 631 51 217


ilhas

Fonte: Construída a partir dos textos de apoio do Gabinete da Reforma Agrária, In I Seminário Nacional
Sobre Reforma Agrária, Documentos de Apoio, MDR, p. 56.

Do total das nove ilhas habitadas, apenas seis foram contabilizadas, por serem aquelas
consideradas pelas autoridades governamentais como sendo de vocação essencialmente
agrícolas. Nas restantes, Sal, São Vicente, Maio, a questão agrária não é relevante por
terem outras vocações económicas que não a agricultura. Santiago, a maior do
arquipélago, possui o maior número de rendeiros e parceiros, totalizando 35.002
camponeses, seguida da ilha do Fogo. Das ilhas do Norte, São Nicolau tem a
particularidade de não possuir nenhum rendeiro, contando com um número de 1.860
parceiros. Finalmente, a ilha de Santo Antão, com 3.489 camponeses, sendo 175 rendeiros
e os restantes 3 314, parceiros.

Assim, logo após a independência, independência essa que marca “uma ruptura jurídica
e político-institucional, mediante o aparecimento de um novo Estado e uma nova
concepção de desenvolvimento económico, social, político e cultural” (Furtado,
1993:105), o governo buscou criar as condições mínimas para uma ampla campanha de
sensibilização à volta dos objetivos políticos, económicos e sociais da Reforma Agrária.

211
Nessa altura, o novo governo do Cabo Verde independente publicou diversos diplomas
legislativos, visando nomeadamente:

 Dar mais estabilidade ao cultivador direto;


 Evitar a subida galopante do valor das rendas;
 Proibir novos contratos de parceria e de subarrendamento;
 Impedir os despejos arbitrários dos camponeses sem terra;
 Regulamentar os contratos de arrendamento rural e de parceria.

O Governo entendeu que a Reforma Agrária deveria ser um processo global de


transformação da estrutura agrária do país que, no quadro do desenvolvimento social e
económico da Nação, visava aumentar a produção e a produtividade na agricultura,
libertar os que trabalhavam a terra da dependência de relações sócio-económicas de
exploração arcaicas e melhorar a sua situação económica, social e cultural. Para a
realização destes objetivos, o Estado realizaria progressivamente:
 A transformação das estruturas fundiárias;
 A garantia da posse útil da terra e dos meios de produção utilizados na sua
exploração àqueles que a trabalham;
 O estabelecimento de medidas e mecanismos eficazes de fomento agrário;
 O associativismo rural, especialmente sob a forma cooperativa;
 O redimensionamento das explorações agrícolas privadas;
 O reordenamento agrário e a valorização sociocultural e económica das
comunidades rurais.400

O processo da reforma agrária encaixa-se nos objectivos de uma política agrária mais
ampla, baseada numa perspectiva de segurança alimentar do País a longo prazo. O
aumento da produção e da produtividade, a transição para culturas alimentícias (já
que mais de 60% do solo irrigável está ocupada com cana sacarina para o fabrico de
aguardente) e a superação da exploração individual familiar pela introdução de
formas cooperativas de produção, constituem as expectativas principais. Uma nova
estrutura socioagrária, correspondendo melhor às exigências da modernização da
agricultura, pensa-se, é a base para realizar tais expectativas (Stockinger, 1990:11).

400 Lei nº 9/II/82 de 26 de março de 26 de março.

212
Não obstante ser um processo complexo, suscetível de contornos adversos, obrigando a
necessária cautela, porquanto, o problema da Reforma Agrária, “se, por um lado, estimula
os que não têm terra, desencoraja, por outro lado, os proprietários,”401 o governo começou
por criar medidas legislativas a respeito. Foi deste modo que pelo decreto nº 8/76 de 17
de janeiro, foram criadas as Comissões Concelhias de Reordenamento Agrário
(CCRA),402 com vista à execução das determinações legais respeitantes ao processo de
reordenamento agrário.

A sua criação justificou-se pela necessidade de um organismo que atuasse junto à


população e permitisse maior flexibilidade e eficácia de intervenção na resolução dos
problemas ligados ao processo de reordenamento agrário, de acordo com as
características específicas de cada ilha.

Estas comissões, cujo Presidente era designado pelo Ministro da Agricultura e Águas,
apresentavam a seguinte composição:
 O respectivo delegado da Administração Interna,
 Um membro do Concelho deliberativo,
 Um agente do Ministério da Agricultura e Águas,
 Um número variável de representantes da população concelhia, de idoneidade
reconhecida no meio local, designados pela Comissão Nacional do Partido no
governo.403

As comissões tinham competências para:

401 Cabral, Amílcar. Reunião de quadros do Partido Sobre a Luta em Cabo Verde, realizada em Dakar, de 17 a 20 de
julho de 1963, In Fonseca, Luís; Pires, Olivio & Martins, Rolando (org.) (2015). Cabo Verde – Reflexões e
Mensagens, Praia: Edição da Fundação Amílcar Cabral, p. 101.
402 Na ilha de Santo Antão, as CCRA foram criadas nos três concelhos e eram supervisionados por uma Comissão
regional, com competência para coordenar as atividades de reordenamento agrário ao nível de toda a ilha. Este serviço
remonta a 1976, altura em que foi instalado no concelho do Porto Novo uma Comissão Concelhia de Reordenmento
Agrário, presidida pelo delegado da adminsitração interna. Posteriormente, o decreto nº 41/83, de 4 de junho e
publicado no Suplemento ao boletim oficial nº 23, mudou-lhe o nome para Comissão da Reforma Agrária” (Relatório
de Actividades referentes ao 1º semestre do ano de 1988. Comissão de Reforma Agrária do Porto Novo. Conselho de
Reforma Agrária. Minsitério do Desenvolvimento Rural e Pescas, p. 1.
403 Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC). Sobre o surgimento, ideologia e atuação
deste Partido em Cabo Verde, sugerimos a leitura de Cardoso, Humberto (1993).O Partido Único em Cabo Verde -
Um Assalto à Esperança. Praia: Imprensa Nacional de Cabo Verde.

213
 Representar o Gabinete de Reforma Agrária, na respectiva área, em tudo o que não
contrariasse a sua competência específica, definida por lei;
 Propor ao Gabinete de Reforma Agrária a realização de estudos socioeconómicos
requeridos pelas necessidades de cada zona;
 Propor ao mesmo medidas que facilitassem a execução das tarefas inerentes ao
desempenho das suas atribuições;
 Cumprir e fazer executar as determinações legais e as resoluções do Governo em
matéria de reordenamento agrário, bem como as instruções escritas emanadas do
referido Gabinete;
 Decidir por arbitragem as questões relativas aos contractos de arrendamento e de
trabalho rural.

Uma vez criadas, as CCRA deram início à organização dos processos, com vista à
conversão dos contratos de parceria em contratos de arrendamento, processo esse que
levaria a implementação da Lei das Bases da Reforma Agrária,
enquanto processo global de transformação da estrutura agrária do país
que, no quadro do desenvolvimento social e económico da Nação, visa
aumentar a produção e a produtividade na agricultura, libertar os que
trabalham a terra da dependência das relações socioeconómicas de
explorações arcaicas e melhorar a sua situação económica, social e
cultural.404

Aliás, a própria Constituição da República, 405 no seu artigo 10º referente à organização
económica e social, estabeleceu como objetivo, “a promoção contínua do bem estar do
povo, a liquidação da exploração do homem pelo homem e a eliminação de todas as
formas de sujeição humana a interesses degradantes, em proveito de indivíduos, de grupo
ou classes.”406

Neste sentido, o governo deu especial atenção aos problemas no mundo rural, com vista
a um melhor aproveitamento dos recursos agrícolas e ao desenvolvimento do setor agro-
pecuário, bem como à necessidade de aplicação racional dos recursos humanos e técnicos,

404 Boletim Oficial da República de Cabo Verde, nº 18 (Suplemento nº 2), 5 de maio de 1982, p. 3.
405 Aprovada em 5 de setembro de 1980, na IX Sessão Legislativa da I Legislatura da Asssembleia Nacional (Cfr.
Suplemento ao Boletim Oficial nº 41 de 13 de outubro de 1980).
406 Art. 10º Constituição da República de Cabo Verde.

214
e na grande obra da reconstrução nacional.407 Manifestou o governo uma tomada de
posição clara, no sentido de resgatar as terras dos absentistas408 em proveito da Nação,
responsabilizando-se pelos destinos dessas mesmas terras.
(…) A transformação das formas como o homem cabo-verdiano organiza as suas
relações com a terra com o objetivo de tirar dela os meios de subsistência de que
necessita, e ainda as relações que neste processo se estabelecem entre os homens
empenhados na exploração da terra, é uma exigência vital para o êxito do objectivo
de construção duma economia nacional independente, entendida esta como a
possibilidade de acesso de cada cidadão cabo-verdiano à generalidade dos bens e
serviços indispensáveis a uma vida sã e digna.409

Considerando que algumas dessas terras se encontravam hipotecadas à Caixa de


Crédito,410
considerando ainda que, no geral, as mesmas terras apresentavam solos muito
degradados e estavam subdivididas em centenas de minúsculas parcelas de
arrendamento e parceria, economicamente inviáveis; atendendo a necessidade de
criar condições para que os cultivadores cumprissem a missão de tirar da terra o justo
produto do seu trabalho, transmitindo às gerações vindouras um solo com potencial
produtivo não degradado, o governo decretou a nacionalização dos prédios rústicos
e afins já ocupados pelos cultivadores indirectos.411

Entendia o Governo que a política agrária deveria ser no sentido de fornecer as linhas
gerais que assegurassem a justiça social aos camponeses, ao mesmo tempo que
rentabilizava ao máximo a produção agrícola, por forma a diminuir a dependência do
exterior relativamente aos bens da primeira necessidade. O objetivo, de fundo, era no
sentido de transformar as relações sociais no campo, alterar a estrutura fundiária

407 O Art. 10º, alínea f)


defende a realização da Reforma Agrária tendo em vista o desenvolvimento da produção agrícola
e como condição indispensável para a cosntrução de uma sociedade sem exploração.

408O proprietário rural que, tendo voluntária e definitivamente transferido o centro da sua vida pessoal e do seu
agregado doméstico para o estrangeiro, tenha abandonado o prédio ou prédios rústicos que lhe pertencem, não os
explore directamente (por conta própria) ou não contribua para o normal aproveitamento, melhoramento e aumento
da capacidade produtiva dos mesmos.
409 Silva, João Pereira, Op. Cit. p. 1.
410Em 1865 foi criado em Cabo Verde, o Banco Nacional Ultramarino, instituição de crédito que facilitou empréstimos
com garantia hipotecária. Por essa altura, muitos proprietários encontravam-se com enormes dificuldades em custear
as explorações agrícolas, recorreram ao Banco. Lavraram-se, a partir de então, sucessivas escrituras de concessão de
empréstimos garantidos pela hipoteca de propriedades, e, passado algum tempo, o Banco era detentor das melhores
propriedades, particularmente na Ilha da Santiago, porquanto, os ex-proprietários, não tiveram possibilidades de
amortizar o capital e os juros. Entre 1920 e 1940 o Banco Nacional Ultramarino executou por via judicial muitas das
hipotecas sobre imóveis, depois de se instituir por certo tempo administrador de muitas propriedades.
411 Cf. Boletim Oficial nº 3 de 23 de agosto de 1975. Decreto-lei nº 6/75.

215
considerada injusta e permitir o acesso efetivo à posse útil a todos os camponeses que
viviam do trabalho da terra.

Os regimes ou explorações indiretas412 constituíram as limitações principais a serem


suprimidas por forma a inverter o rumo das coisas. No entanto, a supressão desta principal
limitação jamais poderia efetuar-se por meio de mera disposição de lei que obrigasse os
então proprietários que exploravam as suas terras em regime indireto, a fazê-lo por conta
própria.

Foi prevista a transferência para a posse do Estado das terras exploradas em regime
indireto que ultrapassem o limiar de intervenção. 413 Tal transferência efetuar-se-ia por
expropriação dos prédios em questão, com uma indemnização real e efetiva dos respetivos
proprietários. As terras assim transferidas seriam entregues em posse útil 414 aos
camponeses que no momento de transferência as ocupassem legal e efetivamente.
Para dar corpo a estas medidas, foram tomadas outras mais profundas, concernentes ao
problema de arrendamento das terras que, por altura da independência, careciam de uma
profunda análise e medidas ponderadas, com vista a uma nova legislação adequada à
realidade do novo país, recém-independente.

Assim, pelo decreto-lei nº 7/75 de 23 de agosto, o Governo determinou a proibição de


qualquer forma de arrendamento da propriedade rural, assim como a celebração de novos
contratos415 de parceria, sem prejuízo da renovação dos já existentes. Em 1979, pelo
decreto nº 44 de 2 de junho (BO nº 22), foi diferido para 31 de julho de 1981 o termo dos
contratos de arrendamento rural e de parceria agrícola, inicialmente previsto para o final
de 1979. No desenvolvimento desta agenda de intenções, nesse ano, foi criada a Comissão

412Aquelas em que o proprietário ou outrem com poderes legais para o efeito entrega a exploração de prédio rústico a
terceiro por arrendamento, parceria ou outro título oneroso, limitando-se a recebermos a respectiva retribuição.
413A área, referenciada ao somatório dos prédios rústicos ou suas parcelas pertencentes a um mesmo proprietário, a
partir da qual os terrenos explorados indirectamente ficam sujeitos a transferência imediata para o Estado nos termos
da lei.
414 O Governo optou pela posse útil da terra em vez da posse plena, por entender ser necessário, para além da
transferência e da concessão da posse das terras, garantir outras transformações como sejam, a aplicação de novas
técnicas e de novos processos de cultivo, que fossem capazes de garantir a conservação do capital fundiário, a
efectivação da luta contra a desertificação e uma melhor utilização da água.
415 Os últimos contratos de arrendamento rural e parceria agrícola tinham sido celebrados em 1967 com base no
regulamento de arrendamento rural posto em vigor pela portaria nº 7873 de 24 de maio do mesmo ano.

216
Nacional para a elaboração do projeto de Lei de Bases da Reforma Agrária,416
abreviamente designada por CNRA.417 Integrou a Comissão os seguintes organismos:
 Conselho Nacional de Cabo Verde do PAIGC,
 Ministério da Coordenação económica,
 Ministério do desenvolvimento Rural,
 Ministério da Justiça,
 Secretaria de Estado da Administração Interna, Função Publica e do Trabalho,
 Secretaria de Estado da Cooperação e Planeamento,
 Instituto Nacional das Cooperativas - União Nacional dos Trabalhadores de
Cabo Verde – Central Sindical, podendo ainda integrar quadros do Estado e
de outras entidades públicas ou individualidades de competência e formação
adequadas.

Finalmente, em 1982, é aprovada as Bases Gerais da Reforma Agrária.418 Com a


aprovação desta lei foram legalmente definidos os princípios fundamentais da Reforma
Agrária e instituídas as bases gerais da sua organização e realização. Entretanto, deu-se
continuidade ao processo de explicação do conteúdo político da Lei das Bases da Reforma
Agrária, com vista à mobilização e organização dos camponeses. Outras importantes
medidas legislativas foram decretadas pelo Governo, nomeadamente através dos
decretos-leis nºos 37-A, 38/83, 40/83, 41/83, 42/83, publicados no Boletim Oficial
nº23/83 de 4 de junho e que regulamentam diversos aspetos da Lei de Bases da Reforma
Agrária.

Como foi dito anteriormente, o Estado de Cabo Verde propôs como uma das metas
essenciais, criar as condições necessárias para uma melhoria da produtividade no campo,
e “reestruturar em bases sérias e justas a exploração das propriedades agrícolas.”419

416 Processo global de transformação da estrutura agrária do País que, no quadro do desenvolvimento social e
económico, visa aumentar a produção e a produtividade na agricultura, libertar os que tabalha a terra da dependência
das relações sócio-económicas de exloração arcaicas e melhorar a sua situação económica, Cf. Silva, João Pereira,
Op. Cit. p. 36.
417 Boletim Oficial nº 23 de 9 de junho de 1979, Portaria Nº 49/79.
418 Boletim Oficial nº 18, de 5 de maio de 1982 (2º Suplemento). Lei Nº 9/II/82 de 26 de março.
419Presidência da República. Declaração. In I Seminário Nacional Sobre Reforma Agrária. Documentos de Apoio.
Minitério do Desenvolvimento Rural, p. 67.

217
Entendeu o Governo que esta meta passaria pela construção de uma economia nacional
independente e que um dos setores privilegiados dessa construção seria o agrícola,
porquanto,
um dos grandes obstáculos ao aproveitamento racional dessas terras tem sido o
abandono de facto das propriedades pelos seus legais proprietários, e a sua entrega,
para exploração, a terceiros. Esses legais proprietários nada fazem para o
melhoramento, aproveitamento ou aumento de produtividade das propriedades,
contentando-se única e simplesmente com os rendimentos das mesmas. E os
terceiros que exploram directamente, ou porque a sua situação económico-financeira
é débil, ou porque não se sentem verdadeiramente motivados, já que a terra não lhes
pertence, assistem impotentes ou indiferentes à deterioração contínua das
propriedades ou ao seu deficiente aproveitamento.”420

Neste contexto, dinamizou-se a implantação e consolidação de várias cooperativas de


consumo, a fim de promover o desenvolvimento do espírito associativo no campo.
Relativamente ao envolvimento dos camponeses nesse processo, na definição e execução
da Reforma Agrária, seria assegurada a sua participação, nomeadamente através das
cooperativas agrícolas e outras formas de exploração coletiva da terra.

No quadro desta Reforma, foi abolida a parceria sob qualquer forma.421 Neste sentido, os
contratos de parceria até então vigentes, mesmo que não escritos, foram obrigatoriamente
convertidos em arrendamento rural, com efeito à data da entrada em vigor da lei, por
acordo das partes ou, na sua falta, por intermédio dos organismos competentes da
Reforma Agrária.

A exceção abrir-se-ia tratando-se de proprietário de área inferior ao limiar de intervenção,


idade igual ou superior a 60 anos, ou inválidos e que não possuíam no seu agregado
doméstico outra fonte de rendimento, o parceiro que expressamente declarar desejar
permanecer na situação de parceria. Nestes casos, a sua abolição ocorreria
automaticamente com a morte do proprietário. No sentido da conversão dos contratos de

420 Idem, ibidem.


421 A parceria para o proprietário gerava lucros fabulosos, na medida em que sem trabalhar (limitando-se apenas a
policiar o parceiro), recebe 50% da produção, que o leva a ter uma vida parasitária, vivendo em abundância, onde até
os burros, cavalos, etc, comem milho. (…) Como facto significativo, durante a seca nem um grande proprietário teve
de recorrer a algum trabalho. Para o parceiro, significa uma brutal exploração, estando em desvantagem perante o
rendeiro (porque uma renda por mais elevada que seja, nunca atinge 50% da produção), e é obrigado a procurar
trabalho assalariado durante o ano para subsistir. Realizações levadas a cabo no domínio da Reforma Agrária. In I
Seminário sobre a Reforma Agrária. Praia: Ministério do Desenvolvimento Rural, pp.161-162.

218
parceria em contratos de arrendamento, as Comissões Concelhias de Reordenamento
Agrário deram início à organização dos processos.

Deve-se dizer que a reforma agrária, com as suas medidas sociopolíticas e institucionais,
encontrou em Cabo Verde pontos de partida diferentes nas diversas regiões agrícolas do
arquipélago. A título de exemplo, pode-se citar os casos de Santiago e de Santo Antão.
(…) O interior da ilha de Santiago, concelho de Santa Catarina, famigerado pelas revoltas
camponesas do século passado e início do actual, apresenta condições políticas mais
favoráveis do que, por exemplo, a ilha de Santo Antão, onde a unidade patrão-servo existente
desde o início da colonização, baseado em laços pseudofamiliares não deixou lugar para o
desenvolvimento autónomo de uma consciência campesina de rebeldia. (….) Santo Antão
conheceu certas situações particulares, como aquela que desembocou em conflito social, nos
fins de agosto de 1981. Um grupo de “ideólogos” anti-reforma agrária levou um punhado de
seus camponeses dependentes a perturbar uma das discussões públicas do anteprojecto da
Lei de Bases da Reforma Agrária (LBRA). Foram exactamente as relações específicas
patrão-lavrador santo-antonenses que constituiram o solo fértil par a criação deste “barulho”
(Stockinger, 1990:12).

Apesar das dificuldades encontradas em Santo Antão, uma vez criadas as condições
institucionais e jurídicas fundamentais, em junho de 1984 foram empossadas, em Ribeira
Grande, as primeiras Comissões da Reforma Agrária,
cuja composição, competência e funcianamento foram regulamentados
no decreto-Lei nº 40/83, um passo importante no processo da liquidação
da parceria. Nessa altura, foram realizados 596 contratos de
arrendamento rural, assim distribuídos: Ribeira Grande-475
contratos;Porto Novo – 27 contratos; Paúl - 94 contratos, numa altura em
que neste concelho foi iniciado o processo de distribuição em posse útil
das propriedades estatais de Covão, Chã de Manuel Santos e Figueiral.422

Em relação ao processo de expropriações, pretendia-se que seriam expropriados os


prédios rústicos de regadio ou mistos, de regadio e sequeiro, quando pertencentes a
proprietário com área igual ou superior ao limiar de intervenção. Tal disposição não se
aplicaria, porém, aos prédios ou parcelas de propriedades exclusivas de viúvas, menores
ou indivíduos sem outra fonte de rendimento que não a terra, os quais só seriam
expropriados após a morte, ou, tratando-se de menores, a maioridade dos respetivos
proprietários ou, havendo mais do que um, do primeiro que falecer ou atingir a
maioridade.

422 I Seminário sobre a Reforma Agrária, Praia: Ministério do Desenvolvimento Rural, pp.161-162.

219
Em relação às terras pertencente à Igreja Católica,423 a lei ressalvou-as, conforme se
depreende da leitura do artº 12º relativamente à transferência das terras: “O disposto no
presente artigo não se aplica à transferência das unidades de produção agrícola que sejam
propriedade das Igrejas legalmente reconhecidas, a qual será objecto de negociação entre
os representantes das mesmas em Cabo Verde e o Governo.”424

O mesmo acontece em relação às terras dos emigrantes: “Tendo em conta, porém, os


interesses dos nossos emigrantes que, forçados pela circunstâncias, saíram para terras do
estrangeiro à procura do pão de cada dia e de uma vida melhor, ficarão preservados os
seus direitos e não serão expropriados os seus prédios.”425

Assim, o art.7º da mesma lei, estabelece que “os limiares de intervenção serão fixados
tendo em conta a conveniência de não expropriar as terras pertencentes a camponeses
emigrados,”426 realçando, porém, que “em caso algum serão considerados camponeses
emigrados os altos e médios funcionários,os grandes e médios proprietários rurais, os
profissionais liberais e bem assim os empregados por conta de outrem com funções de
chefia ou de direcção.”427

Também ficarão preservados os direitos e não serão expropriados os prédios dos


pequenos e médios proprietários que embora não explorando directamente todas as
suas terras, vivam da agricultura e nela depositaram e depositam o melhor do seu
esforço e interesse, dela retirando o sustento da sua casa e a educação dos seus
filhos.428

Assim, em bom rigor, não se pode falar de uma nacionalização de todas as terras em Cabo
Verde, apenas a expropriação de alguns proprietários e consequente indenização, lá onde
se justificasse.

423 Desde o início do povoamento de Cabo Verde, as Igrejas foram-se fixando “à volta dos vales de regadios e de solos
aluviais (Correia e Silva, 1995: 285), transformando-se, pouco a pouco, em grandes proprietários de terras de regadio,
através, nomeadamente, do sistema vincular das capelas, “encargo pertétuo de missas ou quaisquer obras pias,
imposto por um instituidor sobre determinados bens, para ser satisfeito com o seu rendimento” (Filho, 2005: 27).
424 Nº 3, Art- 12º. Lei nº 9/II/82 de 26 de março (Lei de Bases da Reforma Agrária).

425Presidência da República. Declaração, In I Seminário Nacional Sobre Reforma Agrária. Documentos de Apoio.
Minitério do Desenvolvimento Rural, p. 67.
426 Nº 3, Art- 12º. Lei nº 9/II/82 de 26 de março (Lei de Bases da Reforma Agrária).
427 Idem, ibidem.
428Presidência da República. Declaração. In I Seminário Nacional Sobre Reforma Agrária. Documentos de Apoio.
Minitério do Desenvolvimento Rural, p. 67.

220
Inspirada pelos ideais de limitação aos latifundiários e socialização da terra, a Lei de
Bases da Reforma Agrária determina a expropriação das propriedades com
dimensões superiores a 2 ha, mediante justa indenização negociada com o Estado,
sendo estas expropriações incidentes propriamente sobre os grandes latifúndios dos
absentistas. Também foi distribuída a posse-útil da terra aos rendeiros, parceiros e
alguns trabalhadores assalariados que ocupavam os campos desde a idependência
nacional, bem como foi promovido o confisco estatal de alguns territórios (Borba
&Anjos: 2012, 48).

Os prédios rústicos, propriedade de absentistas429 deveriam ser completamente


expropriados, seja qual fosse a sua superfície e natureza. Em caso de o cultivador direto
de um prédio rústico ou parcela a expropriar fosse parente em linha recta ou até ao 4º grau
da linha colateral e declarasse, por escrito, aos organismos competentes da Reforma
Agrária desejar adquirir a propriedade da terra que cultivava, a expropriação não se faria,
salvo se, no prazo de 90 dias a contar da declaração, não tivesse sido feito o registo da
aquisição a favor do cultivador.

O âmbito da expropriação abrangia além de terreno com arvoredo e demais vegetações


nele existentes, todas as coisas nele implantadas ou presas. Abrangia igualmente os
edifícios e construções existentes no terreno, que não possuíam autonomia económica
desde que não fossem habitados pelo proprietário ou sua família ou necessários para a
exploração agrícola direta. Uma vez expropriados, os prédios ou parcelas passam para a
propriedade do Estado, livres de quaisquer direitos, ónus ou outros encargos anteriores à
data da expropriação.

A partir daí, os cultivadores diretos dos prédios ou parcelas expropriadas ficam isentos
de pagamento de qualquer renda ou forma de retribuição.

Relativamente às indemnizações, incumbia-se exclusivamente ao Estado, através do


Fundo da Reforma Agrária, salvo disposição expressa em contrário. Teria por base o
rendimento anual dos prédios ou parcelas expropriadas e, em certos casos, deveria
considerar igualmente o valor dos investimentos não amortizados. A indemnização

429 a) O proprietário rural que, tendo voluntária e definitivamente transferido o centro da sua vida pessoal e do seu
agregado doméstico para o estrangeiro, tenha abandonado o prédio ou prédios rústicos que lhe pertencem, não os
explore directamente (por conta própria) ou não contribua para o normal aproveitamento, melhoramento e aumento
da capacidade produtiva dos mesmos, podendo fazê-lo; b) o proprietário rural que residindo habitualmente em Cabo
Verde tenha abandonado o prédio ou prédios rústicos que lhe pertencem não os explorando quer directa, quer
indirectamente há mais de um ano (Artº 2. Lei nº 9/II/82 de 26 de agosto (Lei de Bases da Reforma Agrária, p. 10).

221
incluiria sempre a compensação pelos edifícios e construções expropriadas. Foi previsto
ser paga em prestações, total ou parcialmente, em numerário ou em títulos de dívida
pública.430

No que diz respeito à posse útil, as terras, uma vez expropriadas, seriam entregues aos
camponeses, que, no momento da expropriação, os explorassem efetiva e legalmente.
Atribuía-se aos respetivos produtores agrícolas a posse útil dos prédios rústicos
explorados indirectamente pelo Estado, pelos municípios ou por outras pessoas coletivas
públicas, salvo na parte que o Estado e cada um dos municípios entendessem reservar
para a realização das respectivas atribuições.

Ressalvou-se, no entanto, que a posse útil dos prédios rústicos de sequeiro ou suas
parcelas expropriadas só seriam atribuídas aos respetivos produtores agrícolas quando a
sua exploração se justificasse em termos económicos e ecológicos e sob a condição de
que tal exploração se realizasse em conformidade com as normas e técnicas estabelecidas
pelos organismos competentes do Ministério do Desenvolvimento Rural.

Quando, pelo funcionamento normal das regras de atribuição da posse útil, deveria ser
atribuída ao beneficiário terra irrigada que, acrescida da que o mesmo já possuísse,
ultrapasse o limiar de intervenção,431 incumbia aos organismos competentes da Reforma
Agrária, confrontando as necessidades do beneficiário e do antigo proprietário, decidir da
superfície a ser atribuída. A parte excedente reverter-se-ia para o antigo proprietário, no
caso de este pretender explorá-la diretamente, ou atribuída a outro cultivador direto, no
caso contrário.
A lei estabeleceu que só poderiam beneficiar da atribuição de posse útil os produtores
agrícolas que faziam da exploração por conta própria da terra o seu principal modo de
vida. Para efeitos de atribuição da posse útil, os cônjuges não separados de facto foram

430 Silva, João Pereira, Op. Cit. P. 40.


431 O Limiarde intervenção é variável e será fixado pelo Governo para cada etapa da Reforma Agrária, de conformidade
com as exigências do Plano de Desenvolvimento Económico e Social e tendo em conta as especificidades das diversas
regiões do País. Sem prejuízo dos dispostos no número antecedente, é fixado em um hectare o limiar de intervenção
nos prédios rústicos irrigados. Para o efeito de determinar a situação dos predios rústicos relativamente ao limiar de
intervenção, tomar-se-á em consideração não só as partes exploradas em regime de arrendamento como também as
exploradas por conta própria pelos respetivos proprietários, Cf. Art. 13,º Anteprojeto da Lei de Bases da Reforma
Agrária.

222
considerados um único beneficiário, salvo se explorassem prédios ou parcelas
perfeitamente diferenciadas.

Relativamente ao seu conteúdo, a posse útil conferiu ao seu titular o direito de exploração
e fruição a título gratuito e perpétuo da unidade de produção. Contudo, estava sujeito a
algumas restrições:
 Proibida a alienação ou oneração, por qualquer forma, dos bens atribuídos
em posse útil,
 Proibido o fraccionamento, por qualquer forma, os bens atribuídos em
posse útil, salvo autorização especial dos organismos competentes da
Reforma Agrária,
 Só era permitida a troca de terrenos atribuídos em posse útil, quando
autorizada pelos organismos competentes da Reforma Agrária, com vista
a eliminar a fragmentação e dispersão dos prédios rústicos e a promover o
seu emparcelamento.

Quanto a transmissão da posse útil, por herança, a lei estipulou que:


 O titular da posse útil pode transmiti-la por testamento para o cônjuge,
para a pessoa com quem vivia em união de facto judicialmente
reconhecível ou para os filhos.
 Na falta de testamento, a posse útil seria atribuída pelo Estado ao familiar
do titular que dêsse mais garantias de realizar eficazmente a exploração
directa do prédio rústico ou parcela.
 Se ao titular sobrevivessem filhos juridicamente incapazes, a posse útil
poderia ser atribuída ao respetivo representante legal desde que fosse
capaz de realizar a exploração directa do prédio ou parcela, ou a um
curador especial, designado pelo Tribunal de menores.
 O familiar, representante ou curador a quem fosse atribuída a posse útil
ficaria com a obrigação de prestar alimento, na medida em que os
rendimentos obtidos do prédio ou parcela permitissem.
Na falta de pessoas nas condições acima referidas, a posse útil caducar-se-ia, revertendo-
se para o Estado, que, por sua vez, a atribuiria a outro produtor agrícola. O titular da posse
útil, perdia-a

223
se não se ocupar, regular eficazmente e segundo as disposições estabelecidas pelo
Ministério do Desenvolvimnto Rural, da unidade de produção transferida; se praticar
qualquer dos actos interditos referidos no artigo 35. A declaração de perda da posse
útil implica a sua reversão automática ao Estado que a atribuirá a outro produtor
agrícola. A declaração de perda da posse útil terá efeito a partir da sua publicação no
boletim oficial e será oficiosamente comunicada ao registo predial para
cancelamento do registo da atribuição. A lei regulará o processo de declaração de
perda de posse, garantindo ao interessado amplas possibildiades de defesa.432

No quadro da Reforma Agrária pretendida, foram ainda contempladas outras medidas


complementares de desenvolvimento rural:
 A criação e o aperfeiçoamento de infra-estruturas de transporte,
armazenagem, conservação e distribuição;
 A regulação e a racionalização dos circuitos de distribuição, com vista ao seu
encurtamento e a assegurar o escoamento da produção e o funcionamento
regular do mercado;
 O desenvolvimento de instituições, estruturas e atividades destinadas a
proteger e a elevar o nível social e cultural dos camponeses;
 A organização e o desenvolvimento da extensão rural, do ensino e formação
profissional agrícola e da investigação científica ao serviço do
desenvolvimento rural.

Para o efeito, o Estado procurou promover gradualmente, o estabelecimento de incentivos


à produção agrícola, nomeadamente:
 A criação de um sistema de crédito agrícola;
 Uma política de preços compensadores para o produtor;
 A concessão de condições preferenciais na aquisição de produtos e no
fornecimento de fatores de produção e no uso de equipamentos;
 A concessão de apoio na elaboração, avaliação e implementação de projetos
de investimento e na realização de estudos;
 A celebração de contratos-programa;
 O lançamento de seguros inerentes à atividades agrícolas;

432Cfr. Silva, João Pereira, Op. Cit. p. 36.

224
 Incentivos fiscais.

Em relação à ilha de Santo Antão, foram materializadas algumas ações, designadamente:


 As Comissões de Reforma Agrária da Ribeira Grande e do Paúl, por terem
sido consideradas zonas prioritárias, passaram a ser dirigidas por
profissionais a tempo inteiro, dispondo, para o efeito, de orçamento
próprio, cujo duodécimo era mensalmente distribuído pelo Conselho
Nacional da Reforma Agrária.
 Criadas as condições institucionais e jurídicas fundamentais, em junho de
1984 foram empossadas em Ribeira Grande as primeiras comissões da
Reforma Agrária, cuja composição, competência e funcionamento estão
regulamentadas no citado decreto-Lei nº 40/83.
 Início do processo de expropriação no concelho do Porto Novo com
fundamento nos pressupostos legais estabelecidos na Lei de Bases da
Reforma Agrária.
 Início do processo de reversão para a posse do Estado de um terreno de
regadio com a área de 15 hectares situado em Alto Mira (Concelho do
Porto Novo), terreno esse que fora concedido em 1971 em regime de
aforamento para fins de exloração agro-pecuária.
 Organização de 114 processos respeitantes a pedidos de autorização para
alienação por negócio de prédios rústicos, de acordo com o estipulado no
decreto nº 132/81 de 21 de novembro.
 A formação de agentes de exensão rural e montagem dos respetivos
serviços na propriedade florestal de Afonso Martinho (Concelho da
Ribeira Grande).
 A organização de um serviço de crédito agrícola, junto das delegações do
BCV, cuja concessão viria a servir de experiência-piloto para a criação do
sistema nacional de crédito agrícola em Cabo Verde.
 O fornecimento em condições preferenciais de fatores de produção
(sementes, inseticidas, etc) pela Delegação da Empresa de Fomento Agro-
Pecuário.
 O prédio rústico denominado Lajedos, situado na Freguesisa de São João
Batista, Concelho do Porto Novo, passou a constituir propriedade do

225
Estado, nos termos do decreto-lei nº 121/77 de 29 de novembro, prédio
este que foi posteriormente distribuído a um camponês sob a forma de
posse útil.
 Deu-se continuidade à celebração dos contratos de arrendamento nos três
concelhos da ilha, importante no processo de liquidação da parceria.
 Mediante contrato de compra e venda, foram adquiridos três prédios
rústicos de regadio por 16.500.000$ correspondente a uma área de 71.101
hectares como a seguir se discrimina: Afonso Martinho- 4,296 hectares,
4.000.000$00; Chã de Manuel Santos- 5,016 hectares, 3.500.000$00;
Tarrafal de Monte Trigo, 61.789 hectares, 9.000.000$00.
 Atribuição de 54 títulos de posse útil, a 16 de abril de 1983 aos parceiros
do prédio rústico aquirido pelo Estado em Tarrafal de Monte Trigo,
concelho do Porto Novo, sobre o qual falarei com mais pormenores mais
à frente.433
 Início de estudos sobre o processo de distribuição em posse útil das
propriedades estatais de Covão, Chã de Manuel dos Santos e Figueiral, no
concelho do Paúl.434

5.2. A questão da água no quadro das reformas pós-independência

Após a independência, com relação ao problema da água, a preocupação foi no sentido


de disciplinar a exploração da pouca água existente, por forma a assegurar às gerações
vindouras uma agricultura liberta da contingência das chuvas.

Não é o simples facto do camponês dispor do seu trabalho que faz que ele produza
mais, quer para si, quer para o mercado, quando lhe faltam os meios necessários para
realizar tal produção. Um destes meios, o mais essencial nas condições actuais, é a
água para irrigação, já que esperar pela chuva se tornou um acto mais religioso que
racional. Faltando a água pluvial, mas existindo reservas subterrâneas, é necessário
transportar este líquido precioso até à superfície, uma actividade custosa, mas nem
por isso um gasto governamental supérfluo (Stockinger, 1990:11).

433Dossier da 4ª Reunião Ordinária do Conselho Nacional da Reforma Agrária. Praia: Instituto Nacional das
Cooperativas, 20 e 21 de outubro de 1986. Dossier destinado a Francisco Barbosa - Director dos Serviços de
Reflorestação (documento de circulação restrita).
434 Gabinete da Reforma Agrária, na Praia, 9 de junho de 1987 (O Director, Ovídio Gomes Fernandes).

226
Neste sentido, procedeu-se à nacionalização da água, pelo decreto-lei nº 18/75, de 27 de
setembro. Por este decreto foi determinado que:
 As águas subterrâneas constituem propriedade do Estado.
 A distribuição das águas subterrâneas, após a sua captação, deve obedecer aos
planos de desenvolvimento socioeconómico do País, visando satisfazer os
interesses de toda a população.
 O Ministro da Agricultura e Águas, sob proposta da Direcção Nacional de Águas,
determinará a constituição de uma comissão encarregada de elaborar uma Lei de
utilização da água.435

Para a efetiva materialização desta medida, foi criada a Direcção Nacional de Águas,
integrada pelos seguintes departamentos e serviços:
 Departamento de Águas Subterrâneas
 Departamento da Dessalinização
 Departamento de Obras Hidráulicas
 Departamento de Outros recursos Naturais
 Serviços Administrativos
 Serviços regionais
 Brigada de Águas Subterrâneas
 Junta Autónoma das Instalações de Dessalinização de Água.436

Entre outras atribuições, esta direção estava habilitada para:


 Realizar estudos necessários à definição da quantidade de água disponível em
zonas determinadas à escala local e regional.
 Estudar e efetuar trabalhos específicos para a recarga das toalhas.
 Realizar estudos e trabalhos de captação de águas de escoamento sub-superficial.
 Redigir um código mineiro regulamentando à abertura de furos, poços, galerias,
túneis ou outros trabalhos subterrâneos.
 Definir as normas de exploração de água subterrânea, à escala regional ou local.

435 Decreto-lei nº 18, 1975, de 27 de setembro. Boletim Oficial nº 13 de 27 de setembro de 1975.


436 Decreto-lei nº 23/75 de 27 de setembro.

227
 Planificar a utilização de água subterrânea, tendo em consideração todos os dados
físicos e económicos.
 Planificar a exploração da água subterrânea à escala de toda uma ilha ou de toda
uma zona com as características hidrogeológicas semelhantes. 437

Nessa altura, a distribuição da água nos arredores das cidades assemelhava-se ao


abastecimento da água potável no meio rural, por via da construção de fontenários,
alimentados pelos furos equipados com motobombas.438

O Governo de Cabo Verde, ao nacionalizar o setor da água, confiou a sua exploração e


distribuição ao Estado, representado pelo Ministério da Agricultura e Águas, que, por sua
vez, ao nível nacional, fazia essa gestão através das suas direções especializadas.

Algumas tiveram a importante tarefa de, num país recém-independente e com um enorme
déficit de recursos hídricos, explorar o máximo de água compatível com a conservação
dos recursos, otimizar a utilização da água, primar pela equidade na sua distribuição.

De realçar, as funções relativas à conservação dos recursos, um órgão designado por


Gabinete de Água, que, entre outras tarefas, cabia executar estudos de base dos recursos,
análise de água, elaboração de cartas hidrogeológicas.

Relativamente à produção e distribuição da água no meio rural, o Gabinete ocupou-se


fundamentalmente da manutenção do material de elevação da água, suportada por uma
estrutura central que ajudava, por exemplo, na formação e na reciclagem do pessoal das
brigadas. Para a irrigação, o Ministério da Agricultura e Águas teve um papel importante
por intermédio dos seus delegados e de suas equipas, nomeadamente na abertura de furos
um pouco por todas as ilhas agrícolas, nomeadamente na de Santo Antão.

437Cf. Relatório da Direção Geral da Conservação e aproveitamento dos Recursos Naturais (1982). Praia: Direção de
Exploração e Gestão de Águas Subterrâneas.
438Cf. Gomes, Alberto da Mota (1982). Direção de Exploração e Gestão de Águas Subterrâneas. Praia: Direção Geral
da Conservação e Aproveitamento dos Recursos Naturais.

228
5.3. A LBRA em Tarrafal de Monte Trigo – Uma proposta vinda de
“baixo?”
 Se não fosse essa lei penso que ainda morreria escravizado na terra onde
trabalho desde tenra idade.439

 Ês Férre, bem te m’rrê, bem te m’rrê, e Nhe Dje k era ses tutor… el bem bé pe
Praia, bé encontra ma Pedro Pires El bé propol alugá es terra porque jál tava
konsóde… mim jam te contobe segunde Nhe Dje contéme! Bo pode escrevé o
kê k te dzeb! Enton, Pedro Pires dzel:lugá non, enton é comprá… você é que
sabe kual parte ker vender, se quizer tira aquela parte k você pode trabalhar e
vende para o estado o resto! E como Maria Alice tava kasôde kel, Maria Alice
dzel: preveitá gora! preveitá gora! Eu pago pela parte de regadio 9 mil. Te dzeb
consciente, bo pode escrevé eh! Porque nhe ma zel conversá sobre tud isso. Ne
kel temp era muit d´nher. Enton, Estóde bem tmá empresa pe riba e Nhe Dje
bem fká d’impresa pro bóche. Ker dizer, Estode en mexé ninguém ne kél kel
tinha eh! Cada um fká k kel kel tinha. Então, es bem dá nôs posse útil. Então
depôs es levá es lei pe Assembleia, foi aprovôde es lei k kada um tmá posse
plena (….) agora sêb, posse plena já le bossa. De modo k kada um tmá se pérte,
paga décima... já bo sêb ess estóra… 440 (Diário de Campo, TMT, agosto de
2017).

As duas narrativas acima transcritas, põem em evidência a situação fundiária vivida em


Tarrafal de Monte Trigo até a década de oitenta do século XX, altura em que foi feita uma
reforma agrária e com ela uma recomposição das relações de poder na comunidade.
Doravante, a terra, a água e o poder deixam de estar concentradas nas mãos da família
Ferro, sem com isto querer dizer que a desigualdade fundária deixou de existir, como terei
oportuniudade de explicar mais à frente.
Se, na primeira narrativa, extraída da documentação oficial, o interlocutor enaltece a
importância da lei de bases da reforma agrária, sem a qual, diz, podia-se morrer à fome,
na segunda, recolhida durante as habituais interlocuções realizadas no terreno, o
interlocutor olha, com um relativo distancimento, para a realidade por ele vivida, na

439Relação de Proprietários do Tarrafal de Monte Trigo, (1983). Arquivo do MDR. Praia: Ministério do
Desenvolvimento Rural/ Direcção Regional de Santo Antão.
440Então, foram-se morrendo, morrendo e Sr. Djê que era o tutor deles, foi para a Praia, encontrar com Pedro Pires.
Foi-lhe propor o aluguel dessas terras, porque já estava cansado. Estou-te a contar segundo o Sr. Dje me contou.
Podes escrever o que estou a dizer-te. Então Pedro Pires disse-lhe: alugar não, então é comprar. O senhor é que sabe
qual que vender, se quiser fica com a parte que quer trabalhar e venda o resto para o Estado. E como a Maria Alice,
estava casada com ele, disse-lhe: aproveita agora, aproveita agora! Eu pago para a parte de regadio 9 mil. Estou-te a
dizer consciente, podes escrever porque eu cheguei a conversar com ele sobre isto tudo. Naquele tempo era muito
dinheiro. Mas, o Estado não mexeu em nada do que as pessoas já tinham. Cada um ficou com a parte que lhe tinha
sido atribuída anteriormente. Então deram-nos a posse útil. Depois levaram essa lei para a Assembleia, a lei foi
aprovada, cada um tomou a posse plena. Já sabes, posse plena, a terra já é tua. De modo que cada um fica com a sua
pare, paga décima …. já sabes esta história! (Tradução livre do autor).

229
qualidade de parceiro, durante os anos do consulado dos herdeiros de José Augusto Ferro.
O seu relato dá-nos pistas interessantes relativamente à particularidade do Tarrafal de
Monte Trigo quanto à questão da reforma agrária, cuja iniciativa, segundo o meu
interlocutor e outros com quem tive a oportunidade de falar, partira do próprio tutor dos
herdeiros da família Ferro.

“Nhe Djê,” como é chamado por todos, tutelava o grupo de seis irmãos, com ele incluído,
em última instância, era quem governava, distribuía parcelas e decidia, sobre o destino da
propriedade, cujo desfecho acabou por ser a venda ao Estado da sua quase totalidade,
como veremos mais à frente.

As narrativas recolhidas durante a pesquisa de campo permitem-nos chegar a ilações


interessantes relativamente à esta família cujos herdeiros, vindos de São Vicente,
instalam-se em Tarrafal de Monte Trigo, sob a tutela de José Ferreira Ferro. Será ele, a
conduzir os destinos das terras e da água do Tarrafal de Monte Trigo, oficialmente a partir
de 1967, data dos primeiros contratos de arrendamento, referidos anteriormente. Ele, e
mais os irmãos a que tutelava permanecem muito vivos na memória dos “tarrafalenses.”
No final de uma tarde de agosto de 2017, contava-me de forma descontraída o Sr. Rafael:

“(…) kel tempo des Férre já bo seb é de diazá… Menina Kempina, menina Nuna, dona Mélia,
Bícha, Nhe Pidrin e nhe Djê…. Ma kem k táva mandá era Nhe Djê p ké bo sêb kes ote tud tinha
preblema de sóude (…).441

Indagado se todos, como disse, tinham de facto problemas de saúde, provavelmente, a


causa pela qual eram tutelados pelo irmão, o meu interlocutor foi peremptório:

“Amóche tud es sim, e bô é képez de lembrá de Bícha, pké percem quond el m´rrê já bo era
grindim (…)!.442

441 O tempo da família Ferro, já sabes que é de há muito… menina Campina, menina Nuna, dona Amélia, Bicha, Sr.
Pedrinho e Sr. Djè…, mas quem mandava era o sr. Djê, porque sabes, que os outros tinham todos problemas de
saúde” (Tradução livre do autor).
442 Todos sim! E tu ês capaz de lembrar da Bicha, porque me parce que quando ela morreu tu já eras crescido!”

(Tradução livre do autor).

230
De facto, não me foi preciso fazer qualquer esforço de memória para lembrar em como
na década de 70 conhecera muito bem a senhora a quem referenciava, como deambulava
pela aldeia, “fujida” de casa como dizíamos na época. Lembrei-me do ano em que fui à
escola pela primeira vez, escola essa que funcionava na residência da família Ferro, como
disse anteriormente, e em como nós íamos espreitar na casa de cima, onde a senhora
sempre se encontrava, em companhia do irmão, Nhe Pidrin. As crianças mais ousadas
ainda acariciavam os seus finos cabelos e a tez branca que, no nosso imaginário, parecia
a de uma boneca.

As minhas recordações foram interrompidas quando o meu interlocutor, calmamente foi


dando pormenores da família, para a qual disse-me ter trabalhado a sua mãe na qualidade
de lavadeira durante muitos anos quando levava-o sempre consigo, porquanto considera
ter crescido naquela casa, onde também fora um “guintchim,”443 desabafou em tom
irónico.

“Nhé mén era levedera de casa Férre, mim m’kria lá... mim era um gitchim… H’um táva recebé
era ferinha de pó e depós konde h´um bem te fká mês grindim es táva dém brelhentina pam po ne
kébesa!”444

Por isso, contava com toda a segurança sobre o estado de saúde das irmãs, a quem ele
próprio prestava auxílio sempre que necessário.
“(…) Amóche mim táva brazá k lidá kes kond es táva doensé, principalmente menina
Nuna e menina Kempina! Oh répez es tinha uma força de boi! Bícha era més kalma
e dona Mélia non, ela éra dret! Bó sêb léra kósode k Nhe Néné Riber!”445

Fiquei elucidado relativamente a esta figura, Nené Ribeiro, que chegou a ser professor
em Tarrafal de Monte Trigo, referenciado de quando em vez por outros interlocutores,
quando falavam da família Ferro. Afinal, tinha entrado nesta família a partir do casamento

443 Diminuitivo de criado, cujo contorno está referido ao longo do texto.


444A minha mãe era lavadeira na Casa Ferro… eu acabei por criar lá. eu era um criadinho… Eu recebia era farinha de
mandioca e depois quando fui ficando mais crescido, pagavam-me com brilhantina que eu colocava na cabeça
(Tradução livre do autor).
445Sim, eu cansei-me de lidar com elas quando ficavam doentes, principalmente a menina Nuna e a menina Campina!
Rapaz, elas tinham uma força de boi! A Bicha era mais calma, e a dona Amélia não era doente! Sabes, ela era casada
com o sr Néné Ribeiro! (Tradução livre do autor).

231
com a dona Amélia, uma das herdeiras da família Ferro, precisou o meu interlocutor,
antes de prosseguir com outros detalhes sobre a casa onde diz ter crescido.

“(…)Lá tinha levedera, lizedera, cuzenhera e carreguedera… “k bo séb es táva kmé so o que táva
bem de lá de mém d´ága, enton tinha kém ses tróboi era so K´rregá kmida!” 446

Este depoimento levou-me a duas reflexões. A primeira, sobre o imaginário à volta da


mãe de água. De novo, recorri às minhas próprias memórias relativamente à “Mém
d´ága!” A mãe de Água! Lá onde havia muita água. Água em toda a parte! A melhor, em
quantidade e em qualidade.

Das entranhas do vulcão do Topo de Coroa, o vulcão de água, como os mais velhos nos
diziam, brotavam lençóis inesgotáveis de água que, em força, galgavam pelas pedregosas
ribeiras de lá de kes konude,447 no longo percurso que a conduzia aos assentamentos do
Tarrafal de Monte Trigo. Ter uma parcela de terra numa das encostas de Jon Kestióne448
e de Ziélve,449 constituía um privilégio, tanta era a água, que, sequer, entrava na
contabilidade das horas distribuídas aos agricultores.

A segunda reflexão tem que ver com os nomes das terras e/ou as relações que se
estabelecem com as mesmas. Um estudo mais aprofundado sobre a história agrária do
Tarrafal de Monte Trigo, quiçá, permitiria descortinar e explicitar o significado formal e
o conteúdo real dos nomes dados às terras.450

Covoada, Ladeira, ou mesmo os nomeados como, Cruz, Chã de Preguiça ou Lascado,


que, em si mesmas, não refletem nenhuma vocação agrícola. Com relação às de José
Alves e João Caetano, referidos anteriormente, nas quais a água era abundante, remete-
nos para a possibilidade de pertencerem a dois homens, a respeito dos quais, não consegui
mais informações. Apenas evidências a indicarem, mais uma vez, a presença masculina

446Lá tinha lavadeira, engomadeira, cozinheira e carregadeira… Porque sabes, só comiam o que vinha da mãe da água,
então tinha pessoas cujo trabalho era só carregar comida (Tradução livre do autor).
447 Lá para o lugar reverso, de difícil acesso, muito longe.
448 João Caetano.
449 José Alves.
450Sobre a questão dos nomes dados às terrras, sugiro a leitura de Serrão, José Vicente (2002). Os Nomes da Terra:
sobre o Padrão Predial dos Campos de Lisboa no século XVIII. In Ler História, nº 43, Lisboa: ISCTE, pp. 85-124.

232
no domínio e na gestão da água, no qual, regra geral em Cabo Verde, “é destinado à
mulher um papel de reduzido protagonismo.”451

Instado a explicar-me o porquê da preferência pelo consumo de produtos hortícolas


provenientes apenas da mãe d´água, o meu interlocutor precisou:

“Bo sêb la ne kel r’béra deboje de casa Ferre ne Varanda onde es tava vivé, tinha mute kmida,
por exemplo, ma preblema é k kes m’lher leprosas k tava morá ne kel banda, tava bé lavá ropa
pra lá, enton gen dava kre kmé kmida dód prá lá!”452

Estes e outros pormenores me pareciam interessantes, enquanto fontes de conhecimento,


para quem pretender um dia fazer a prosopografia do Tarrafal de Monte Trigo a partir da
família Ferro.

Por ora, e no quadro deste trabalho, centralizar-me-ei na questão fundiária e muito


particularmente na da reforma agrária levada a cabo nos anos oitenta do século XX que
tanto deu que falar na ilha de Santo Antão.

No outro lado da ilha, nomeadamente no Concelho da Ribeira Grande, os seus contornos


foram mais visíveis, sendo que ali, “a reforma agrária funcionava como um Tribunal
Interno, que mediava conflitos entre as partes (proprietários e lavradores ou
meeiros),”453tendo suscitado acesas polémicas, particularmente no seio de certos grupos
sociais, e que as manifestações e os conflitos ocorridos nalgumas paragens do concelho
são prova disto.454

451 Furtado,
Cláudio e Pires António (2008). Relatório. Estudo diagnóstico sobre a dimensão Género na gestão Integrada
dos Recursos Hídricos em Cabo Verde. Relatório Preliminar, In Género e Gestão Integrada de Recursos Hídricos,
LEC, p. 7.
452Sabes, lá naquela ribeira abaixo da casa Ferro na Varanda onde eles viviam, tinha muita comida, por exemplo, mas
o problema é que aquelas mulheres leprosas que moravam do outro lado, iam lavar roupas lá, então eles não comiam
o que vinha de lá (Tradução livre do autor).
453Delgado, Zenaida (2015). Op. Cit. p. 211.
454Refiro-me, por exemplo, às localidades do Coculi e Chã de Pedras, no Concelho da Ribeira Grande, onde, um grupo
de opositores da reforma agrária levou alguns dos seus camponeses dependentes a perturbarem uma das discussões
públicas do anteprojeto da Lei de Bses da Reforma Agrária, provocando os tumúltos a que referi no início do trabalho.

233
No Paúl, o relatório da Comissão da Reforma Agrária, datado de outubro de 1986 a junho
de 1987,455 dá-nos conta que no período compreendido entre 1982 e 1986 foram
celebrados trinta contratos de arrendamento e iniciados dois processos de expropriação,
sendo um referente às terras de D. Hermínia Serra e outro do Sr. Júlio César de Oliveira
e Silva, explorados indirectamente.456
Em relação ao pocisionamento dos camponeses relativamente ao projeto, o relator diz o
seguinte:
No Paúl, os camponeses não têm ainda uma noção exacta do que se pretenda com a
Reforma Agrária e quais as vantagens que ela lhes poderá trazer. Nota-se que têm
em relação aos proprietários uam espécie de temor reverencial e a parceria está tão
arreigada no seu espírito que o consideram uma coisa normal. Tanto assim é que
muitos contratos de arrendamento até agora celebrados são apenas formais, na
práctica continua a vigorar a parceria.457

No concelho do Porto Novo, a situação foi mais serena. Em Lajedos, na freguesia de São
João Baptista, foi nacionalizado, ainda em 1977, um prédio rústico, “considerando o
passado colonial do seu proprietário, Mário Marques Gomes dos Santos, e as suas
atividades reacionárias contra a independência de Cabo Verde.”458 O artº 3º da lei 121/77,
estabeleceu que “o prédio rústico ora nacionalizado será organizado em Empresa
Agrícola Estatal economicamente viável e dotado do competente estatuto, nos termos
legais.”459

Nas restantes localidades, com condições para o cultivo de regadio, Ribeira das Patas,
Ribeira da Cruz, Matiene e Altomira, as terras pertenciam a pequenos proprietários que
as explorava de forma direta, consequentemente, não foram contempladas pela reforma
em curso. Situação diferente se passou em Tarrafal de Monte Trigo, pelas razões
apontadas ao longo deste trabalho.

Os elementos decorrentes das pesquisas, quer nos arquivos, quer no campo, não nos
permitem dizer que houve algum conflito direto relativamente ao assunto. Não dispomos

455Relatório da Comissão da Reforma Agrária do Paúl, datado de outubro de 1986 a junho de 1987, In Comissão
Concelhia de Reordenamento Agrário do Paúl, Arquivos do MDR, p. 6.
456 Idem, ibidem.
457 Idem.ibidem, p. 7.
458 Decreto-Lei nº 121/77 de 29 de dezembro.
459 Idem, ibidem.

234
de elementos que nos permitem seguir o caminho que conduziu a esta reforma,
nomeadamente se existiu algum processo negocial entre o governo e a família
proprietária, como foi costurado, se foi ou não discutido, e se houve ou não alguma tensão
no processo da venda da propriedade ao Estado.

Porém, atendendo que essa possibilidade apenas se dá no contexto da reforma agrária e


não antes, levemos em consideração o seguinte: “(…)alguns proprietários sujeitos a serem
intervencionados, teoricamente segundo a lei, seguem um apelo semi-oficial, colocando
as suas terras à disposição do Estado, mediante compra-venda.”460

Ora, atendendo que, embora residente em Tarrafal de Monte Trigo, a família proprietária
desenvolvia uma exploração indireta das terras, com todas as implicações referidas
anteriormente e relativas a este aspeto, e, atendendo ainda que, a mesma família,
dedicava-se essencialmente ao negócio da água para o abastecimento de São Vicente,
aqui referido, e ao comércio, com estabelecimentos, maioritariamente na cidade do
Mindelo na ilha de São Vicente, é provável que tenha antecipado, antevendo que seria
expropriada por indemnização, de acordo com a política do então governo. Atendemos
para a seguinte narrativa:
Bo sêb, Nhe Djê já táva estode kosôde d´véra. E enton, sima um tava te dzêb, e
segunde el própe kontém, ne kel conversa kel tive k Pedre Pires, sobre venda de
T´rrafal, Meria Elice tava lá tembé. E foi ela k intchusi Nhê Djê pe vendé… el dzem
k ela f´ká só te dzel: preveitá…, preveitá…preveitá!... ké bô sêb Meria Elise n´en era
espérta pe brinkedéra eh !!461(Diário de Campo. TMT, março de 2018).

Maria Alice foi uma professora do ensino básico, natural da ilha de São Vicente que
foi leccionar em Tarrafal de Monte Trigo entre os finais da década de sessenta, início
de setenta. Casou com o tutor da família proprietária, José Ferreira Ferro (Sr. Djê),
cuja primeia mulher tinha falecido. A partir dessa altura, praticamente é ela a assumir
a liderança, não só do agregado como sobretudo dos bens da família, nomeadamente
a propriedade do Tarrafal de Monte Trigo.
Oh nhê fi, kel lá era um m´lher de fér ne verdéde! Tud gente tinha med dél! Táva
premété eté pancada! El táva mandá eté espiá o ké k kada um táva cuzenha ne se

460 Stockinger, . Op. Cit. p. 14.


461Sabes, o Sr. Djê andava cansado na verdade. E então, conforme eu estava dizendo, e segundo ele próprio me contou,
na conversa que teve com Pedro Pires relativamente à venda do Tarrafal, Maria Alice estava lá também. E foi ela que
o incitou o Sr. Djê para vender… disse-me que ela ficou a dizê-lo: aproveite, aproveite, aproveite! Porque, sabes,
Maria Alice era muio esperta! (Tradução livre do autor).

235
kása! Consegui vendé um kósa, gotchôd, ne kes vepurim d´ága era um secréfice!462(
Diário de Campo. TMT, março de 2018).

A forma ríspida como a dona Lúcia falou da mulher, consubstanciada na narrativa acima,
não deixa dúvidas o quão exercia um controlo sobre os parceiros. De igual modo, as
narrativas referentes à forma como controlava os barcos de pesca, únicos meios de
transporte a partir dos quais a população podia sair do Tarrafal, não são abonatórias.

A título de exemplo, a dona Hélida lembra:”Konde um cuitôde táva doensé ness l´gar, se
foss um kôse de bé pe Semcent, era um grénd preblema, k bo sêb, kel m´lher nem sempre
táva dá utrisoson pes levesse gente ne ses bark…463( Diário de Campo. TMT, março de
2018).

Mais jovem do que o marido, provavelmente mais instruída e mais atenta relativamente
ao que se passava, e com as características que podemos induzir a partir das narrativas
acima, é natural que tenha não só influenciado, como pressionado o marido a adiantar
com uma proposta da venda da propriedade, após a qual a ela foi atribuída a posse útil
sobre as parcelas aos antigos parceiros. Daí eu ter designado a situação do Tarrafal de
Monte Trigo, de uma proposta vinda “de baixo.”

Independentemente das razões que estariam por trás desta iniciativa da família
proprietária, o certo é que, não há evidências concretas que nos apontam para situações
semelhantes às ocorridas no concelho da Ribeira Grande.

Ao que tudo indica, houve, de certa forma, uma interseção dos desejos de todas as partes
envolvidas no processo: os da família proprietária, os dos detentores do poder do Estado,
os agora ex-parceiros, a quem foram atribuídos a posse útil. Esses, que passaram,
doravante, a ter a posse efetiva das parcelas e das horas de água para a rega, aplaudem o

462Oh meu filho, aquela lá, era uma mulher de ferro, na verdade! Todo o mundo tinha medo dela! Ela mandava até
vigiar o que cada um cozinhava em sua casa! Conseguir vender alguma coisa, às escondidas, nos vaporins d´Água,
era um sacrifício! (Tradução livre do autor).
463 Quando um coitado ficava doente neste lugar, se fosse um caso para ir a São Vicente, era um grande problema,
porque sabes, aquela mulher, nem sempre dava autorização para levarem as pessoas nos seus barcos… (Tradução
livre do autor).

236
acontecimento de forma peremtória, como se constata, da leitura dos depoimentos464 que
se seguem, encontrados na documentação produzida pelo então Ministério do
Desenvolvimento Rural:
 “Tudo o que vier da parte do nosso Governo é bom.” – 45 anos na parcela.
 “Devia-se despachar o mais rápido possível com essa lei, a fim de nos livrarmos
definitivamente da dependência do patrão.” – 52 anos na parcela.
 “Estou muito satisfeito, porque assim poderei trabalhar directamente a parcela
com maior vontade e alegria.” – 42 anos na parcela.
 “Penso que esta medida é boa para nós, porque nunca fomos ajudados pelo dono
e agora seremos ajudados pelo Governo.” – 50 anos na parcela.
 “Tenho acompanhado a discussão da LBRA e compreendo bem que ela vai me
tirar desta miséria, depois de tantos anos a trabalhar de graça para o dono da terra.”
– 42 anos na parcela.
 “Acho que é uma boa medida, porque assim poderei trabalhar a terra mais à
vontade e com maior dinamismo.” – 8 anos na parcela.
 “Pelo que vejo, apesar de ser analfabeto, é a melhor coisa que o Governo tem feito
até agora, de entre as outras coisas boas.” – 30 anos na parcela.
 “Coisa boa como essa jamais apareceu e, por esta razão, espero poder desfrutar
desta realidade muito brevemente, apesar da minha avançada idade.” – 75 anos na
parcela.
 “Estando eu nessa idade, não hei-de gostar muito desta lei. Mas os meus filhos
serão beneficiados de certeza.” – 45 anos na parcela.
 “Pouca coisa tenho a dizer. Só sei que deverá ser boa coisa porque o Governo
sempre nos ajudou e neste caso continua a ajudar-nos mais.” – 25 anos na parcela.
 “Pelo que estou vendo é a única coisa ou forma de podermos trabalhar à vontade
na parcela, para produzir mais e melhor.” 40 anos na parcela.
 “Para mim é boa coisa, porque anteriormente era obrigada a trabalhar com o meu
ex-marido na parcela para o patrão e agora trabalharei somente para mim e meus
filhos”. – 50 anos na parcela.
 “Fico contente com isso, porque já posso tirar fruto da terra totalmente para mim,
sem que seja obrigado a dividir com o dono” – 18 anos na parcela.

464Todos os depoimentos a seguir estão publicados em Relação de Proprietários do Tarrafal de Monte Trigo (1983).
Arquivo do MDR. Praia: Ministério do Desenvolvimento Rural/Direcção Regional de Santo Antão.

237
 “Esta lei é uma esperança para mim, a qual me deixa prever um futuro melhor na
vida económica familiar.” 24 anos na parcela.
 “Depois de tantos anos de exploração estou feliz com esta lei a qual há-de me
livrar da dependência do patrão.” 57 anos na parcela.
 “Com a lei da R. Agrária poderei fazer o que quiser na parcela sem ter que estar a
dividir o produto da colheita com o dono.” – 10 anos na parcela.
 “Esta lei é boa coisa, principalmente no tocante à abolição da parcela a qual vai-
me permitir produzir mais e com maior dinâmica.” - 30 anos na parcela.
 “Ainda que não tenha percebido muito bem essa lei, penso que ela vai ser o factor
decisivo da nossa vida futura.” – 25 anos na parcela.
 “Como militante do Partido, deixo o critério da minha opinião dentro do contexto
da reconstrução nacional.” – 39 anos na parcela.
 “Ela vai ser boa para mim porque não dividirei o suor do meu trabalho com o dono
da parcela, como fazia anteriormente.” 32 anos na parcela.
 “Fico feliz com esta ideia porque já estou trabalhando mais duro na parcela com
o objectivo de produzir mais.” – 35 anos na parcela.
 “A princípio não compreendia bem esta lei. Mas agora sou daqueles que tentam
mostrar aos outros que não querem compreendê-la, as grandes vantagens que
vamos ter brevemente quando que ela entrar em vigor.” – 23 anos na parcela.
 “Como militante do Partido, é escusado exibir o que penso da R. Agrária – mais
uma etapa na consolidação da nossa soberania.” – 14 anos na parcela.
 “Depois de tantos anos de abusos e de injustiças, vejo claramente que o nosso
Governo através da L.B.R.A. pretende melhorar a nossa situação socio-económica
em todos os seus aspectos.” 29 anos na parcela.
 “Percebo pouco de leis mas esta, segundo o meu entender, vai ajudar-me a morrer
com satisfação por poder ver com os meus próprios olhos as injustiças terminadas
nos campos da agricultura.” – 60 anos na parcela.
 “Estou satisfeito com a L.B.R.A. porque assim poderei produzir o que bem
entender sem ter de estar sujeito às ordens do dono. Além disso, poderei tirar toda
a produção para mim e minha família sem que tenha obrigatoriamente de dividir
com o dono.” – 47 anos na parcela.
 “Não compreendo muito de política, mas o que o Governo quer para nós tudo é
bom, porque nunca nos enganou após a independência.” – 39 anos na parcela.

238
 “Para mim é boa coisa porque fazíamos as nossas moradias pequeninas, sem o
mínimo de conforto possível com medo do patrão nos pôr fora da parcela a
qualquer hora, apesar de estarmos a trabalhar como burros sem rendimentos.” – 5
anos na parcela.
 “Depois de tantos anos abusos e de sofrimento passados é um alívio.” – 38 anos
na parcela.
 “Apesar do meu marido ter falecido e não poder ver com os seus próprios olhos
esta novidade, estou muito contente por assim poder viver bem.” – 30 anos na
parcela.
 “Já estava perto de comer às escondidas e servir de criado ao dono da parcela.
Agora estou muito feliz por poder trabalhar directamente o terreno.” – 34 anos na
parcela.
 “Para mim apesar de ser um analfabeto é uma coisa boa a qual vai resolver-me
grande parte dos meus problemas pessoais e de família.” – 20 anos na parcela.
 “Já estava perto de dar sangue para o dono e agora chegou a vez de eu abrir os
olhos e trabalhar por conta própria.” – 36 anos na parcela.
 “Fico feliz com essa lei porque assim poderei trabalhar com mais coragem e
dinamismo a fim de obter um certo bem-estar familiar.” – 10 anos na parcela.
 “Não tínhamos direito nenhuns de dispor da parcela mas com a L.B.R.A. as coisas
tornar-se-ão diferentes porque confio na palavra do Governo.” 23 anos na parcela.
 “Antes trabalhava a terra para duas panelas mas agora poderei trabalhar para uma
só mas sem ter que dividir o fruto.” – 33 anos na parcela.
 “É a coisa mais linda que eu já tenho ouvido no ramo da agricultura e desejaria
ser mais novo para trabalhar.” – 33 anos na parcela.
 “Penso que a minha situação vai mudar muito no campo económico e social.” 8
anos na parcela.
 “Antes trabalhava como burro na parcela para o dono, mas agora não. Vou
trabalhar com mais energia, agora pior do que burro, mas para mim a minha
família, dentro da L.B.R.A. – 39 anos na parcela.

Estas narrativas foram encontradas nas fontes produzidas pelo então Ministério do
Desenvlvimento Rural, que tenho vindo a referenciar e a citar ao longo deste trabalho.
Assim, estamos perante informações por detrás das quais, existe uma instituição

239
veiculadora da versão oficial dos acontecimentos relativos ao processo da reforma
agrária. Compreende-se, portanto, que, para uma análise histórica mais abrangente e
concludente das mesmas, será necessária à sua confrontação, nomeadamente com outras
narrativas, como as resultantes da interação que desenvolvi com os meus interlocutores,
durante as pesquisas de campo ali realizadas.

Elas não trazem, por exemplo, as vozes das camponesas, que, por não terem tido maridos,
não foram contempladas com parcelas pela família proprietária e, consequentemente, não
receberam terras em posse útil nem depois a posse plena, ficando, definitivamente
excluídas desta fonte de subsistência, pelos dias de hoje.

Pela leitura das respostas, constata-se não ter havido qualquer questão relativamente à
distribuição bastante desigual das terras e da água, pela então família proprietária e agora
legitimada pelo próprio governo.

Não há depoimentos da parte de camponeses que, por altura da distribuição das parcelas,
pela família proprietária, não podiam ser contempladas por serem menores, mas que, na
década de oitenta já eram adultos e chefes de família que, entretanto, ficaram sem
qualquer parcela de terra, numa comunidade onde esta é a fonte fundamental de
subsistência.

O facto de terem sido encontrados nas fontes aqui citadas, e não ouvidos diretamente pelo
pesquisador, não nos é possível, através deles, indagar eventuais tensões, através,
nomeadamente, dos não-ditos, dos silêncios, das pausas ou de possíveis gaguejares, e por
esta via, ver se, porventura, os próprios beneficiários tiveram, a mesma percepção
relativamente ao projeto.

No entanto, estes questionamentos não inviabilizam a importância destas narrativas


enquanto fontes de informação. A partir delas, podemos tirar algumas ilações
nomeadamente o número de pessoas contempladas pela posse útil, o número de anos que
trabalharam nas parcelas e as poucas mulheres beneficiadas com a posse.

240
Em relação à forma efusiva como o projeto é visto pelos beneficiários, a partir destas
narrativas, é preciso, ainda, ter em conta, o facto de estarmos perante pessoas que, durante
muito tempo, viveram numa situação de total dependência do proprietário, dono absoluto
das terras e da água e terem visto no projeto de reforma a possibilidade de, finalmente,
poderem usufruir do seu trabalho em plenitude.

Devo, ainda, realçar, o facto de serem narrativas encontradas nos registos que relatam
uma versão – a oficial – dos acontecimentos. Tenho a consciência de que uma análise
histórica mais abrangente implicaria necessariamente a auscultação de outras partes
envolvidas no processo, designadamente os membros da família proprietária, impossível
no escopo detse trabalho, não obstante as diligências empreendidas neste sentido.465

Outrossim, a opinião de pessoas que, não foram contempladas com a posse útil, por não
lhes terem sido atribuídas em tempo, qualquer parcela por parte da família proprietária.

No que diz respeito às diferenciações de quantidade de parcelas de terras e horas de água,


atribuídas pela família proprietária e agora legitimada através da posse útil, que terão
conduzido às desigualdades económicas e sociais na comunidade, relembremos uma
passagem da narrativa do Sr. Apolinário, citado no início deste subcapítulo:
Estôde en mexé ninguém ne kél kel tinha eh! Cada um fká k kêl kel tinha. Enton, es
bem dá nôs posse útil. Enton, depôs es levá ess lei pe Assembleia, foi aprovôde ess
lei, k kada um tmá posse plena.”466( Diário de Campo. TMT, agosto de 2017).

Esta frase foi-me repetida, várias vezes, seguida de pausas e de alguma apreensão. Não
tendo tido a oportunidade de ouvir outras narrativas a este propósito, fica difícil chegar a
uma conclusão, concernente ao posicionamento dos beneficiários da posse.

465 José Ferreira Ferro, faleceu em 2008 (Cf. Registo de óbito já referenciado), o último descendente direto de José
Augusto Ferro. Dos seus filhos, apenas tive a oportunidade de conversar com o Firmino referido ao longo do trabalho.
Dele não me foi possível qualquer informação referente ao processo da reforma agrária, tão pouco da vivência da
família Ferro no Tarrafal dos anos oitenta, dizendo-me sempre nessa altura não ter muita ligação com o Tarrafal
porquanto vivia em São Vicente. Só nos últimos anos passou a viver ali, ocupando-se quase que exclusivamente do
trapiche de que falei ao longo do texto.
466O Estado não mexeu em nada do que as pessoas já tinham. Cada um ficou com a parte que lhe tinha sido atribuída
anteriormente. Então deram-nos a posse útil. Depois levaram essa lei para a Assembleia, a lei foi aprovada, cada um
tomou a posse plena…” (Tradução livre do autor).

241
No entanto, não deixa de ser curiosa a postura do meu interlocutor, o mesmo que, com
igual apreensão e a gaguejar, tinha-me explicado as estratégias usadas por alguns
parceiros a quem foram atribuídos mais parcelas e mais horas de água, no passado, pela
família proprietária.

Em abril de 1983, foram distribuídos 54 títulos de posse útil aos parceiros do prédio
rústico adquirido pelo Estado pelo valor de 9.000.000$00,467 acabando o Estado por
legitimar a desigualdade fundiária iniciada pela família proprietária.

Para uma leitura mais completa desta medida, iniciemos com o levantamento dos
agricultores, agora beneficiários da posse útil sobre as parcelas que trabalhavam.

Tabela 9. Relação de cultivadores que receberam títulos de posse útil


Nº de Nome Residência Área de Nº do
ordem regadio em levantamento
m2 cadastral da
parcela
recebida
1 Alfredo Manuel Évora Ladeira Covão 17.080 34,88
2 Alfredo Pedro Dias Covão 26.200 28,40,37,60,6
4,68,69,74
3 Ana Marcelina Ramos ? 14.160 52
4 Antónia Tereza Gomes Ladeira Covão 3.800 22
5 António Cirilo Lopes Ladeira Covão 13.880 1
6 António Joaquim Medina Lombo de Cal 10.120 90, 92
7 António Manuel Évora Covão 15.960 27,32,109
8 António Rodolfo Fortes Lombo de Cal 39.400 105
9 Augusto Joaquim Évora Covão 6.160 31,42
10 Carlos José Évora Covão 1.930 59,79
11 Dmingos João dos Santos ? 7.560 18,21
12 Emídio Luís Évora Covão 8.080 46,62,76
13 Filipe Júlia dos Reis Covão 11.040 65,67,71
14 Filipe Júlio Violante Ladeira Covao 21.880 12,78
15 Francisca Júlia dos Reis ? 3.400 82
16 Germano António Ladeira Covao 12.800 2,8
Delgado
17 Gregório Joaquim dos Agostinho Pereira 15.720 54,56
Santos
18 Gegório Manuel Silveira Ladeira Covão 23.680 3,20
19 Herd. Gaudêncio Medina Agostinho Pereira 28.920 86

467 Gabinete da Reforma Agrária, Praia, 9 de junho de 1987.

242
20 Herd. Guilherme Medina ? 21.880 110
21 Isabel Joana Lima ? 7.800 44,75
22 Joana Peregrina Silva Covão 9.240 61,112,113,1
Évora 14
23 João Baptista Évora Covão 4.680 39,41,49
24 João Gomes Silveira Ladeira Covão 3.280 14
25 João Joaquim Delgado ? 5.240 96,102
26 João Lourenço Dias Covão 7.480 48,50,93
27 Joaquim João Lima Cabouco Tarafe 11.960 81
28 Joaquim Manuel Évora Covão 17.200 33,35,43,108,
111
29 Joaquim Manuel Silva Ladeira Covão 9.200 4,85
30 José João Maocha ? 1.600 104
31 José João Spencer Chã de Preguiça 15.400 53,57
32 José Joaquim Delgdo Cabouco Tarafe 16.080 95,99,101,10
3
33 José Joaquim Évora Covão 15.720 11,25,30,89
34 José Manuel Dias Covão 4.680 58
35 José Manuel dos Santos ? 27.460 91,94,108
36 José Maria Rocha Covão 2.760 73,87
37 José Teodoro Pedro Agostinho Pereira 5.720 10
38 Júlio Jorge Évora Covão 20.760 23,36,38,72,7
7,80
39 Lourenço Alfredo Dias Covão 15.160 51,66,70
40 Lourenço José Évora Covão 6.240 47
41 Manuel João da Cruz Ladeira Covão 2.860 13
42 Manuel Jorge Évora Covão 5.760 26
43 Manuel Júlio Fortes Cabouco Tarafe 2.840 83
44 Manuel Leandro Morais Cabouco Tarafe 9.560 97,98,100
45 Manuel Luís Évora Covão 3.800 45,63
46 Maria Conceição Agostinho Pereira 5.480 15,17,19
Rodrigues
47 Marino Basilio Forts ? 2.160 8
48 Miguel Maria Gomes Cabouco Tarafe 4.000 55
49 Pedro Manuel Delgado Cabouco Tarafe 3.400 84
50 Pedro Manuel Évora Lombo de Cal 49.440 29,107
51 Quirino Pedro David Agostinho Pereira 3.440 6
52 Rosa Antónia Fortes ? 10.760 7,5,24
53 Zacarias Lourenço da Ladeira Covão 3.080 16
Luz
54 Paulo Lourenço Delgado ? 13.880 20

Fonte: Relação de Proprietários do Tarrafal de Monte Trigo (1983). Arquivo do MDR, Praia: Ministério do
Desenvolvimento Rural/Direcção Regional de Santo Antão.

243
Não constitui o meu objetivo, nem tal seria possível, no âmbito deste trabalho, uma
análise da demografia histórica468 do Tarrafal de Monte Trigo, no período considerado,
nem tão pouco da sua estrutura familiar. Porém, para o visionamento mais completo do
número de pessoas que, direta ou indiretamente, dependiam da família proprietária,
apresento, no quadro que se segue, uma amostra parcial a partir de dados recolhidos no
processo da reforma agrária em Tarrafal de Monte Trigo nos arquivos do então Ministério
do Desenvolvimento Rural.

Tabela 10. Composição dos agregados familiares dos agricultores


Nome do agricultor Anos de Agregado familiar Total de
trabalho na elementos
parcela
António Joaquim Medina 52 Nora e dois netos 4
Pedro Manuel Évora 42 Esposa e três filhos 5
Joaquim João Lima 50 Esposa, três filhos e três 8
netos
Lourenço José Évora 42 Esposa e três filhos 3 5
Joaquim Manuel Évora 29 Esposa e dois filhos 4
Alfredo Pedro Dias 8 Esposa e sete filhos 9
Lourenço Alfredo Dias 30 Esposa e três filhos 5
João Lourenço Dias 60 Esposa e um filho 3
Carlos José Évora 75 Esposa e quatro filhos 6
Gaudêncio Joaquim Medina 45 Dois filhos 3
Gregório Joaquim dos 21 Esposa e cinco filhos 7
Santos
Quirino Pedro David 25 Esposa e dois filhos 4
José Teodoro Pedro 20 Esposa e seis filhos 8
António Rodolfo Fortes 40 Esposa e seis filhos 8
Isabel Joana lima 50 Dois filhos 3
Manuel Luís Évora 18 Esposa e cinco filhos 7
Joaquim Manuel Silva 24 Esposa, sogra e cinco filhos 8
Emídio Luís Évora 10 Esposa e quatro filhos 6
José Manuel Dias 30 Esposa e seis filhos 8

468Introduzido no vocabulário comum há pouco mais de um século, o termo demografia significa, em sentido lato, a
história natural das populações, nomeadamente a sua distribuição geográfica e sócio- profissional. Dirigida para o
quantitativo das massas humanas não descura, todavia, a explicação de um determinado quadro populacional. Ao
englobar a função qualitativa e quantitativa, este ramo das ciências humanas e sociais assume, na atualidade, um
carater prospetivo, como indicador das tendências demográficas, isto é, da sua previsível evolução.

244
Manuel Jorge Évora 25 Esposa e quatro filhos 6
Antónia Teresa Gomes 39 Cinco filhos 6
Alfredo Manuel Évora 32 - 1
António Cirilo Lopes 2 Esposa e 5 filhos 7
Manuel Júlio Fortes 35 Esposa e cinco filhos 7
Joana Peregrina Silva Évora 23 Seis filhos 7
Júlio Jorge Évora 14 Esposa e oito filhos 10
António Manuel Évora 60 Uma neta 2
Filipe Júlio Violante 47 Esposa e seis filhos 8
Augusto Joaquim Évora 39 Esposa 2
João Baptista Évora 5 Esposa e três filhos 5
Manuel João da Cruz 21 Esposa e oito filhos 10
Gregório Manuel Silveira 46 Esposa, três filhos e um 6
neto
José Joaquim Évora 48 Esposa e dois netos 4
José João Spencer 38 Esposa e dois filhos 4
Maria Conceição Rodrigues 30 Seis filhos 7
Domingos João dos Santos 34 Esposa e seis filhos 8
Miguel Maria Gomes 8 Esposa, mãe e um filho 4
Filipe Júlia dos Reis 36 Esposa e quatro filhos 6
Manuel Leandro Morais 10 Esposa e sete filhos 9
Pedro António Delgado 23 Esposa e seis filhos 8
José Joaquim Delgado 33 Esposa e sete filhos 9
Germano António Delgado 33 Esposa e um neto 3
Zacarias Lourenço da Cruz 39 Esposa e cinco filhos 7
TOTAL 374

Fonte: Relação de Proprietários do Tarrafal de Monte Trigo (1983) - Arquivo do MDR, Praia: Ministério
do Desenvolvimento Rural/ Direção Regional de Santo Antão.

A tabela nos mostra uma clara dominação masculina relativamente à posse das terras.
Com efeito, dos quarenta e três agricultores aqui referenciados, apenas quatro são
mulheres, significando apenas 9,3%, contra 91,7% dos homens.

245
A pesquisa de campo permitiu-me constatar que todas elas eram viúvas e que as parcelas
de terras tinham sido atribuídas inicialmente aos respetivos maridos pela família
proprietária.

A conclusão é que em Tarrafal de Monte Trigo apenas aos homens foram atribuídas
parcelas de terras e apenas a estes foram atribuídos a posse útil, depois a posse plena sobre
as mesmas. Às poucas mulheres, agora proprietárias, receberam-as em representação dos
maridos defuntos. Significa, pois, que em termos das relações de género, o processo da
reforma agrária reproduziu as desigualdades que vinham do período colonial.

Estamos, assim, perante uma estrutura patriarcal a marcar a estrutura económica, ainda
que a centralidade da mulher na educação e na economia doméstica seja relevante. No
caso em apreço, ao que tudo indica, casos houve em que a mulher assumia a liderança
não apenas do agregado como da própria exploração agrícola. A narrativa que se segue é
bastante esclarecedora neste sentido.
Bo sêb, es terras era de nhê merid pké el recebes d kes Férr e depôs estôde pessel
posse utel…. já bo sêb j´éra del! Ma kem k táva tmá conta era mim, m´en táva trebaiá
k nem kolker hommm… k nho mon prob! Nhe mérid el tinha més gêt era pe se
negocin, la pe veporim d´ága, sencent, la ne póul kond lera mês nov. Enton, es zorta
mim é k bê te tmá conta e essim nô bé te criá nhos fi.469”
(Diário de Campo. TMT, março de 2018).

Embora tenha consciência ser ela a liderar as lides agrícolas, parece estar também
consciente de que as terras só podiam ser do marido.

Provavelmente, reflexo de uma sociedade patriarcal institucionalizada nas próprias


estatísticas, tanto no contexto colonial quanto durante muito tempo pós-independência,
considerando como chefe, nos agregados familiares e nas explorações agrícolas, o
homem, ainda que a mulher fosse a verdadeira titular na liderança, como foi o caso que
acabei de descrever. Aliás, os dados do recenseamento agrícola de 1988, apontam a
predominância da população agrícola feminina em Cabo Verde, desde 1963, com uma

469Sabes, estas terras eram do meu marido, porque ele as recebeu da família Ferro, e depois o Estado deu-lhe a posse
útil sobre as mesmas… Já sabes, então eram dele! Mas, quem tomava conta era eu …. eu trabalhava que nem qualquer
homem… com as minhas próprias mãos! O meu marido, tinha mais jeito era com o seu pequeno negócio, nos
Vaporins d` Água, em São Vicente e no Paul quando era mais novo. Então, as hortas, eu é que tomava conta, e assim
fomos criando os nossos filhos (Tradução livre do autor).

246
tendência a crescer, em cerca de 53% de mulheres no conjunto do país, em 1988, 55%
ilha de Santiago.470

Voltando a tabela 10, constata-se que os anos de trabalho nas parcelas variam entre setenta
e cinco e dois anos, sendo que pelo menos quatro agricultores tinham trabalhado, até
então, mais de cinquenta anos nas respetivas parcelas.

O tamanho dos agregados familiares varia entre dez e um elemento, sendo, por isso, um
número elevado de pessoas, em bom rigor, a depender da família proprietária. Um total
de 374 indivíduos, direta ou indiretamente beneficiados com a posse útil, sendo cinquenta
e dois beneficiários diretos, enquanto os restantes beneficiados indiretamente, porquanto
membros dos agregados familiares. Nove desses beneficiários diretos foram filhos dos
agricultores que, já crescidos, vinham ajudando nas lides agrícolas, por altura da
atribuição das posses e que, acabariam por ser contemplados.
Bo sêb, kond nhe pei m´rrê, mim era fi motche més vei… enton mim é k fká te tmá
conta, te j´dá nôs menhe ne troboi. Enton, kond bem kont de posse útil, nhe mei be
f´ze renion ma nôs tud fi, el dá oterizoson de dem posse num bkóde de térra, ma, no
fká combinóde entre irmon k de algum dia nos mei faltá m´den direit na dnada de
kes bokode de tera que fká de se nom…. ke sêb mim jam tmá nhe pért471…..( Sr.
Simplício, agosto de 2017).

O confronto desta narrativa com os dados da tabela 10, permite-nos constatar, mais uma
vez, a exclusão das mulheres ao direito de qualquer parcela.

Da mesma família, constavam filhas, e, mais velhas do que o meu interlocutor e por essa
altura a viverem por conta própria. Entretanto, por serem mulheres, não foram
beneficiadas pela própria mãe. Sou tentado a admitir a possibilidade de uma situação a
funcionar “como uma imensa máquina simbólica que tende a ratificar a dominação
masculina sobre a qual se alicerça” (Bourdieu, 2002: 12).

470Recenseamento agricola 1988 Volume 1: dados globais, janeiro,1990. Ministerio do Desenvolvimento Rural e
Pescas. Gabinete de Estudo e Planeamento, p. 163.
471Sabes, quando o meu pai morreu, de rapazes, eu era o mais velho. Então, eu é que fiquei a tomar conta ajudando a
nossa mãe no trabalho. Então, por altura da posse útil, a minha mãe fez uma reunião com todos nós, e deu autorização
de me dar a posse de um bocado de terra, mas, ficamos combinados, entre os irmãos, de que se algum dia a nossa
mãe faltasse (morresse), eu não teria direto em nada das terras que ficaram em nome dela, . .. porque sabes, eu, já
tomei a minha parte (Tradução livre do autor).

247
Parece-me que às mulheres do Tarrafal de Monte Trigo, nesta matéria, não só foram
retiradas o seu papel de agentes históricos, como, ao mesmo tempo foram vítimas de uma
violência simbólica, porquanto, “a divisão entre os sexos parece estar na ordem das
coisas, (…) incorporado nos corpos e nos habitus dos agentes, funcionando como
sistemas de esquemas de percepção, de pensamento e de acção” (Bourdieu, 2002: 11).

A tabela seguinte é mais explícita, relativamente aos beneficiários da posse útil em


Tarrafal de Monte Trigo e respetivos agregados familiares de que tenho vindo a referir.

Tabela 11. Beneficiários da posse útil e respetivos familiares


Titular da Posse Agregado familiar Total
Útil
Quirino Pedro David Mulher: Paula Micaela Delgado 5
Filhos: Maria dos Santos David, Augusto Delgado
David.
Neto: Euclides Pires David
Marino Basílio Mulher: Antónia Isabel Lima 5
Fortes Filhos: Natalino Lima Fortes, Jairson Lima Fortes,
Adnilson Jorge Lima Fortes
José Teodoro Pedro Mulher: Clementina Maria Pires 7
Filhos: Marcos Pedro Pires, Idalina Pedro Pires,
Herculado Teodoro Pires, Jaqueline Pedro Pires, João
Damasceno Pires
José Joaquim Évora Mulher: Francisca Delgado Évora 6
Netos: Eduino Delgado Évora, Zusete Fortes Évora,
Marlene Gomes Évora, Reinaldo Gomes Évora
Filipe Júlio Violante Mulher: Rosa Firmina da Luz 8
Filhos: Odorico Filipe Violante, Maria de Lourdes da
Luz, Josefa Rosa da Luz, Albertina Rosa da Luz,
Justino Filipe Violante, Iolando Filipe Violante
António Cirilo Lopes Mulher: Firmina Francisca Almeida 8
Filhos: Raimundo António Lopes, Rosa Firmina A.
Lopes, Arlindo Almeida Lopes, Jorge António Lopes,
Ana Almeida Lopes, Ineida Almeida Lopes
Germano António Mulher: Maria Antónia Almeida 4
Delgado Netos: Ana Paula Delgado, Nilton César Delgado
Gregório Manuel Mulher: Francisca Antónia Pires 6
Silveira Filhos: Margaria F. Pires Medina, Hilário Manuel
Silveira, José Pires Brito, Danísio Lourenço P. Brito
Joaquim Manuel Mulher: Senhorinha Lima Silva 7
Silva Filhos: Crisanto Joaquim Silva, Neusa Senhorinha
Silva, Luís Victor Silva, Nelson Lima Silva
Sogra: Aurora Senhorinha Silva

248
Rosa Antónia Fortes Filhos: Hugo Basílio Fortes, Antónia Rosa Fortes, 6
Ermelinda Rosa Fortes,
Neto: Basílio Fortes, João Baptista Fortes
Emídio Luís Évora Mulher: Teresa Francisca Gomes 6
Filhos: Nídio Gomes Évora, Maiza Ivone Gomes
Évora, José Carlos Gomes Évora, Adalberto Gomes
Évora.
Lourenço José Évora Filhos: João Lourenço Évora, Simão Lourenço Évora, 5
Margarida Gregória Delgado, Rosa Gregória Delgado
João Lourenço Dias Mulher: Ana Maria Delgado, 3
Neto: Odorico Baptista Lopes
Lourenço Alfredo Mulher: Maria da Luz Pires 6
Dias Filhos: Sónia Pires Dias, Paulo Sérgio Dias, Alcides
Pedro Dias, Zenaida Pires Dias
Ana Marcelina Filhos: João Mateus Medina, 5
Ramos Netos: Celso Medina, Amílcar Medina Pires, Samira
Medina Pires
José João Spencer Mulher: Inês Nicolaia Pires, 4
Filhos: T
omás Severino dos Santos,
Sobrinha: Maria Paula Jesus
Gregório Joaquim Mulher: Júlia Isabel Delgado 7
dos Santos Filhos: Joaquim Gregório dos Santos, Manuel Gregório
dos Santos, Jorge Gregório dos Santos, Arminda
Delgado dos Santos
Neto: Nelson Marcelina Delgado
Miguel Maria Gomes Mulher: Maria Rosa Delgado 5
Filhos: Manuel Jesus Gomes, Maria Jesus Gomes,
Mãe: Maria Francisca Gomes
José Manuel Dias Mulher: Maria Mercelina C. Dias 8
Filhos: José Operário Dias, Ilídio José Dias, Ana Maria
Dias, Manuel José Dias, Tito Lívio José Dias, Mónica
Maria Dias
Carlos José Évora Mulher: Rosa Dionisia Santos 3
Filhos: Libánia Rosa Santos
Joana Peregrina Filhos: António Silva Évora, Graciano Silva Évora, 8
Silva Évora Antónia Silva Évora, José Silva Évora, Andreza Joana
Rodrigues
Netos: Jaques Odílio Évora Silveira, Rony Jorge Évora
Dias
Joaquim Manuel Mulher: Maria Júlia dos Reis 6
Évora Filhos: Alfredo dos Reis Évora, Helena dos Reis Évora,
Rosa dos Reis Évora, Júlia dos Reis Évora
Alfredo Manuel - 1
Évora
João Baptista Évora Mulher: Maria do Rosário Gomes 5
Filhos: Isaurinda Gomes Évora, Adilson Gomes Évora,
Amarilda Gomes Évora
Isabel Joana Lima Filhos: Maria Conceição Évora, Amadeu Nascimento 3
Évora
249
Manuel Luís Évora Mulher: Francisca Lima Évora 5
Filhos: Fernando Gomes Évora, Paulo Jorge Évora,
Isabel Medina Évora
Alfredo Pedro Dias Mulher: Ermelinda Rosa dos Santos 15
Filhos: Suzana da Cruz Dias, Osvaldo Alfredo Dias,
Justino Alfredo Dias, Orlando Alfredo Dias, Francisca
da Cruz Dias, Pedro Alfredo Dias, José Santos Dias,
Antónia da Cruz Dias, Helena dos Santos Dias, Sofia
Matilde da Cruz, Elsa dos Santos Dias, Herculado dos
Santos Dias, Olinda Santos Dias
Pedro Manuel Évora Mulher: Francisca Tereza Gomes, 5
Filhos: Severino pedro Évora, Maria da Luz Gomes,
Joaquim Pedro Évora
Augusto Joaquim Mulher: Joana Oliveira Évora 2
Évora
Manuel João da Cruz Mulher: Francisca Maria Rosa 13
Filhos: Vencislau Manuel da Cruz, Lígia Filomena da
Cruz, Balbia Francisca da Cruz, Crisolita Francisca da
Cruz, António Manuel da Cruz, Carlita Francisca da
Cruz, Lúcia Francisca da Cruz, Aldina Francisca da
Cruz, Dilma Francisca da Cruz, Manuela Francisca da
Cruz, Carlos Manuel da Cruz
João Gomes Silveira Mulher: Tereza Maria Gomes 7
Filhos: Maria Elizabeth Almeida Silveira, Gizela Maria
Gomes Silveira, Sheila Ivandra A. Silveira, Agripino
Gomes Silveira, Maurino Gomes Silveira
MariaConceição Filhos: Carlos Rodrigues, David Carlos Rodrigues, 7
Rodrigues Ana Maria Sousa, Herminio Sousa Rodrigues, Raquel
Sousa Rodrigues, Alexandre Sousa Rodrigues
Zacarias Lourenço Mulher: Justina Delgado da Luz 7
da Luz Filhos: Humberto Zacarias da Luz, Lídia Delgado da
Luz, Alcinda Delgado da Luz, José Zacarias da Luz,
Júlio Zacarias da Luz
Domingos João dos Mulher: Alice Clara Pires 7
Santos Filhos:JoãoDomingos Santos, Aldina Pires dos Santos,
Maria de Fátima P. Santos, Rita Pires dos Santos,
Alcinda Pires dos Santos
Antónia Teresa Filhos: Eulália Gomes Silveira, Manuel Gomes 3
Gomes Silveira
Júlio Jorge Évora Mulher: Victória Delgado Évora 12
Filhos:Amindo da Virgem Évora, Arlindo da Pina
Évora, Nelson Sena Évora, Vasco Mendes Évora,
Agostinha Júlia Pires Évora, Alcides Isac Évora,
Otelinda Delgado Évora, Cecília Delgado Évora,
Tónico Bastos Delgado Évora, Arselindo Delgado
Évora
Manuel Jorge Evora Mulher: Rosa Francisca Évora 6
Filhos: Jorge Nascimento Évora, Vicência Rosa Évora,
Joana Rosa Évora, Maria Rosa Évora

250
António Manuel Neta: Maria Auxiliadora Delgado 2
Évora
Filipe Júlia dos Reis Mulher: Marcelina Joana Delgado 6
Filhos: Julieta dos Reis Delgado, Joana Delgdo dos
Reis, João Delgado dos Reis, Audília Delgado dos Reis
José Maria Rocha Mulher: Rosa Maria Gomes 8
Filhos: Arminda da Virgem Costa, Hugo Gomes
Rocha, Aleixo Gomes Rocha, Silvestra Rosa Gomes,
Amarante Gomes Rocha, Ivanilda Gomes Rocha
Joaquim João Lima Mulher: Rosa Francisca Lima 9
Filhos: Maria Conceição Santos Lima,
Netos:Alberto Santos Lima, Francisco Xavier da Cruz,
Ilídio António Lima, Cristina Maria da Cruz, Osvaldina
Lídia da Cruz, Zaida Lídia da Cruz
Francisca Júlia dos Filhos: Silvino dos Reis Delgado, Fortunato dos Reis 4
Reis Delgado, Basílio dos Reis Delgado
Manuel Júio Fortes Mulher: Maria Nicolaia Pires 8
Filhos: Maximiano Nascimento Fortes, Boaventura
Jesus Fortes, Manuel Jesus Fortes, Nicolaia Maria
Pires,
Netos: Patrícia Helena Medina, José dos Reis Pires
Fortes
Pedro António Mulher: Guilhermina Maria Santos 11
Delgado Filhos: Maria Santos Delgado, Marcelina Santos
Delgado, Alcinda Santos Delgado, Lúcia Santos
Delgado, Lina Santos Delgado, Arlindo Santos
Delgado, Flávia Santos Delgado, Mónica Santos
Delgado, José Santos Delgado
António Joaquim - 1
Medina
José Manuel dos Mulher: Maria Rosa Pires 7
Santos Filhos: Manuel José dos Santos, Rosa Maria Pires,
Antão José dos Santos, Nuna Maria Pires, Vicente
Pires dos Santos
José Joquim Delgado Mulher: Maria Francisca Pires 10
Filhos: Manuel Jesus Delgado, Maria Páscoa Pires,
Idalina Maria Pires Delgado, Maria da Luz Pires
Delgado, Luís Pires Delgado, Adilson Maria Pires
Delgado, Joana Maria Pires Delgado, Vitoriana Maria
Pires Delgado
João Joaquim Filhos:Iolanda Maria Delgado, Ana Maria Delgado, 6
Delgado Lívio Fortes Delgado, António Fortes Delgado, Lúcia
Maria Delgado
Manuel Leando Mulher: Maria Alice Delgado 11
Morais Filhos: Autolindo Delgado Morais, Aldina Delgado
Morais, Valdevino Delgado Morais, Natalina Delgado
Morais, Regina Delgado Morais, Lino Delgado Morais,
Joana Baptista Delgado Morais, César de Jesus
Delgado Morais
José João Maocha Mulher: Joana Maria Sousa 7

251
Filhos: João José Maocha, IIídio José Maocha, Justino
José Maocha, Adelino José Maocha, António Sousa
Maocha
António Rodolfo Mulher: Escolástica S. Gorás 6
Fortes Filhos: Pedro António Fortes, Guilherme António
Fortes, Feliciano António Fortes, Amíllcar Gorás
Fortes
Herdeiros de Viúva: Ricarda Júlia Medina 1
Guilherme J. Medina
Fonte: Relação de Proprietários do Tarrafal de Monte Trigo (1983) -Arquivo do MDR, Praia: Ministério
do Desenvolvimento Rural/ Direção Regional de Santo Antão.

Se é verdade que, a posse beneficiou uma grande parte da população desta comunidade,
não é menos verdade que, com ela, não houve mudanças substanciais na sua pirâmide
social. Apenas o topo deixa de ser ocupado pela família Ferro, no qual se coloca o Estado
enquanto proprierário das terras acabadas de serem compradas. Consubstancia-se, assim,
novas relações de poder, agora nas mãos do Estado, para todos os efeitos, proprietária da
terra e da água em Tarrafal de Monte Trigo. Em rigor, o estado ocupa o lugar antes
ocupado pela família proprietária, seguidamente, os agricultores com mais parcelas e
mais horas de água, e, por fim, os com menos parcelas e menos horas de água, sem
esquecer os segmentos que nunca tiveram parcelas e que assim continuaram.Estes foram
fundamentalmente constituídos por mulheres, que, pelas razões apontadas anteriormente,
não forma contempladas pela família proprietária aquando da distribuição das parcelas, a
juntar com muitos homens, que, antes adolescentes, ajudavam os pais nos trabalhos
agrícolas, agora, adultos, camponeses, não contemplados pelo Estado, porquanto não
houve uma redistribuição das parcelas.

Assim, a medida não significou o fim da desigualdade fundiária e o consequente fim de


assimetrias sociais. Ao atribuir a posse útil sobre as parcelas aos ex-parceiros dos
herdeiros de José Augusto Ferro, o Governo de Cabo Verde acabou por legitimar a
desigualdade fundiária, iniciada pela família proprietária, porquanto não foi feita uma
redistribuição das terras aos camponeses do Tarrafal de Monte Trigo, ou seja, não foi feita
uma reforma agrária no seu sentido clássico (Filippi, 2005), visando em última instância
o bem-estar social naquela comunidade. Assim, em bom rigor, em Tarrafal de Monte
Trigo não se pode falar numa rutura na política fundiária. Consequentemente, ali, a
reforma agrária “vecteur de changement social dans le sens plus égalitaire,” (Blanc,
2018:179) não foi uma realidade.

252
E a forma serena como ela foi recebida pelos beneficiários, a meu ver, não contraria a
afirmação acima referida. Tem que ver, do meu ponto de vista, com uma das seguintes
razões: (i) consequências do resultado de uma violência simbólica estrutural, vivida
durante décadas, de tal modo que as pessoas se acostumaram e não se deram conta dela,
(ii) e/ou pelo facto de estarem, de momento, mais preocupadas em se apropriarem das
parcelas, recebendo a posse útil sobre as mesmas, pelo que a desproporção em termos de
hectares de terras e horas de água para a rega tornou-se secundária.

Foi esta a situação por que passaram os camponeses do Tarrafal de Monte Trigo, ao longo
do seu itinerário temporal e, que nem mesmo os ventos de mudança verificados nas
últimas décadas do século XX foram capazes de contornar e/ou contrariar. O processo de
legitimação da posse sobre as terras consolidar-se-á no início da década de noventa, altura
em que a posse útil é substituída pela posse plena, e com isso a legitimação da secular
desigualdade fundiária em Tarrafal de Monte Trigo.

5.4. Da posse útil à posse plena

Porquê a posse útil e não a posse plena das terras transferidas? Porque a nós parece-
nos que, ou melhor, deriva da análise da nossa situação, que será necessário, para
além da transferência e para além da concessão da posse útil das terras transferidas,
garantir outras transformações. Por exemplo, garantir a aplicação de novas técnicas,
de novos processos, por tanto, que garantam a conservação do capital fundiário, que
garantam a efectivação da luta contra a desertificação, que garantam a melhor
utilização da água, que garantam a orientação no sentido de novas formas de
organização da produção. Isso só pode ser conseguido, só se poderá garantir a
rentabilidade dos enormes investimentos que o Estado faz neste momento na
agricultura, se ele poder intervir, e essa intervenção poderá ser feita de forma muito
mais fácil se a Nação, através do Estado, for, de facto, o proprietário das terras
transferidas(…)472

472Intervenção do Ministro do Desenvolviemnto Rural, João Pereira Silva, na segunda sessão da segunda Legislatura
da Assembleia Nacional Popular. In II Seminário Nacinal Sobre a Reforma Agrária. Documentos de Apoio, 1981, p.
6.

253
Foi nestes termos que, no início da década de 80, o então governo, justificou a opção pela
posse útil sobre as terras em detrimento da posse plena. A política desse governo, nesta
matéria, foi no sentido de intentar uma reforma por etapas, numa altura em que a situação
do país recém-independente, inspirava medidas assertivas, nomeadamente em matéria da
agricultura, num país
Saeliano com apenas seis anos de independência, que debate-se com problemas
grandes no que diz respeito a produtos agrícolas, para a alimentação, uma vez que
nossa capacidade de produção pouco representa relativamente às necessidades reais
do consumo, mesmo nos anos de “boas-águas.473”

Daí a necessidade, segundo o governo de então, de uma intervenção direta em setores


considerados chaves, e de acordo com as especificidades do país, reafirmando, que “ (…)
a reforma agrária não é uma questão de números e fórmulas científicas de utilização
universal, mas sim algo que se faz sobre o terreno, e que, são as condições concretas de
cada país que devem, para se ter êxito, dotar quais as medidas a tomar.”474

Pouco tempo depois, o programa económico do governo foi revisto,475 ao mesmo tempo
que o país seguiu uma nova trajetória histórica, crescendo em direção à abertura política,
materializada em 1991. A partir dessa altura,
o novo governo eleito adotou uma nova estratégia de desenvolvimento económico
que preconizava uma economia de mercado e a integração dinâmica de Cabo Verde
na economia mundial. Tal estratégia implicava a criação e condições capazes de
atrair o investimento externo e garantir a livre circulação de pessoas, capitais,
mercadorias e tecnologia. Os objetivos eram assim melhorar a participação do país
no comécio internacional e ainda a promoção da iniciativa empresarial privada
nacional. (…) (Ferreira Silves, 2015:96).

Cabo Verde caminhava-se para um quadro do (neo)liberalismo, político e económico


“que transfere para a sociedade as responsabilidades do Estado (Ferreira Silves,

473 Desenvolvimento Agrário, In Voz di Povo, Ano VI/nº281, 26 de novembro de 1981, p. 3.


474 Idem, ibidem, p. 9.
475Entre outras razões, se destaca a crise do sistema socialista e consequentemente um certo descrédito relativamente
ao sistema. Por outro lado, uma autoavaliação feita pelo PAIGC/CV reconheceu a necessidade de se fazer uma
mudança estratégica, numa altura em que o sistema socialista caiu, em consequência das reformas politicas na URSS
e na sequência, cada Republica Federativa Soviética reivindicou a sua independência da Rússia, o que veio a
acontecer, acabando por adoptar o modelo democrático liberal, como também aconteceu nos diferentes países do
bloco comunista. Os reflexos fizeram-se sentir em Cabo Verde, onde o Partido no Governo deixou de contar com a
preciosa ajuda do bloco de leste e sentiu a necessidade de fazer uma abertura ao exterior; internacionalizar a sua
economia e atrair investimentos externos para os sectores considerados prioritários.

254
2015:133). Em relação à questão agrária, “desenvolveu-e uma política de
desenvolvimento rural suportado no princípio da integração da economia rural na
economia do mercado e no alargamento das atividades económicas do campo.”476

Neste sentido, impunham-se medidas legislativas. Já em 1990, foi revogada a Lei de


Bases da Reforma Agrária,477 considerando a necessidade de nessa altura se proceder a
alguns ajustamentos. Nesta sequência foram tomadas algumas medidas:
 É abolida a parceria sob qualquer forma, salvo tratando-se de proprietário
de área inferior ao limiar de intervenção com idade igual ou superior a 60
anos ou inválido e que não possua no seu agregado doméstico outra fonte
de rendimento que lhe garanta o nível de vida familiar médio, em relação
às condições locais;478
 Os contratos de parceria, mesmo que não escritos, serão obrigatoriamente
convertidos em arrendamento rural, com efeito a partir da data da entrada
em vigor da presente lei, por acordo das partes ou, na sua falta, por
intermédio dos organismos competentes da Reforma Agrária podendo a
renda ser efectivada em espécie;479
 A expropriação em caso algum se aplicará à transferência das unidades de
produção agrícola que sejam propriedade das Igrejas legalmente
reconhecidas, a qual será objecto de negociação entre os representantes
das mesmas em Cabo Verde e o Governo;480
 A expropriação confere ao proprietário do prédio expropriado uma
indemnização segundo critérios estabelecidos por lei.481
 Os prédios rústicos que sejam propriedade de absentistas serão
transferidos para o Estado, seja qual for a sua superfície e natureza;482

476 Ferreira Silves (2015). Op. Cit. p. 96.


477 Lei nº 78/III/90 de 29 de junho Suplemento ao B.O. nº 25 de 29 de junho de 1990.
478 Artº 8º Lei nº 78/III/90 de 29 de junho Suplemento ao BO nº 25 de 29 de junho de 1990.
479 Artº 9º Lei nº 78/III/90 de 29 de junho Suplemento ao BO nº 25 de 29 de junho de 1990.
480 Artº 12º Lei nº 78/III/90 de 29 de junho Suplemento ao BO º 25 de 29 de junho de 1990.
481 Idem, ibidem. Artº 13º.
482 Idem, ibidem, Artº 16º.

255
 Os prédios ou parcelas expropriadas passam para a propriedade do Estado,
livres de quaisquer direitos, ónus ou encargos desde a data da publicação
no boletim oficial do acto de expropriação;483
 O contracto de arrendamento rural relativo à prédio ou parcela que não
deva ser transferida pra o Estado nos termos desta lei renova-se
automaticamente no fim do prazo ou das suas prorrogações, salvo se o
rendeiro o denunciar, não podendo, em qualquer caso, o senhorio rescindi-
lo salvo tenha fundamentado para despejo imediato ou quando pretenda
explorar o prédio ou parcela directamente e faça prova de não possuir
outras fontes de rendimento que lhe garantam um nível de vida familiar
médio em relação às condições locais;484
 Quando o proprietário do prédio ou parcela arrendada seja emigrante,
poderá rescindir o contrato com pré-aviso de seis meses em relação ao
termo do prazo originário ou de qualquer das suas renovações, desde que
declare ter regressado definitivamente ao país e pretender fazer da
exploração directa da terra o seu principal modo de vida;485
 Se nos primeiros cinco anos posteriores à entrega do prédio ou parcela o
proprietário não fizer ou deixar de fazer da exploração directa da terra o
seu principal modo de vida, será o respectivo prédio ou parcela
expropriado imeditamente;486
 Fica proibida a celebração de novos contratos de arrendamento rural pelo
proprietário cuja área total do respectivo prédio ultrapasse o limiar de
intervenção fixado nos termos da presente lei.487

Relativamente à posse útil, foi determinado o seguinte:

 Quando o titular da posse útil tenha atingido 65 anos de idade ou se mostre


fisicamente incapacitado para o exercício da profissão de agricultor pode

483 Idem, ibidem, Artº20.º


484 Idem, ibidem, Artº24º, nº1.
485Idem, ibidem, Artº244, nº 3.
486 Idem, ibidem, Art. 244, nº 5.
487 Art. 25º Lei nº 78/III/90 de 29 de junho, Suplemento ao boletim oficial, nº25 de 29 de junho de 1990.

256
ceder gratuitamente o gozo da área possuída ao cônjuge ou a qualquer um
dos seus herdeiros legitimados, mediante documento escrito exarado na
Comissão de Reforma Agrária da área da situação da parcela;
 O beneficiário da transmissão a que se refere o número antecedente
constituir-se-a na obrigação de atribuir ao transmitente uma pensão anual
vitalícia equivalente no mínimo, à terça parte do rendimento líquido da
parcela transmitida;
 O beneficiário da posse útil, pode ceder o seu direito a qualquer dos seus
descendetes que tenha contraído matrimónio ou que se tenha constituído
em unição de facto legalmente reconhecida.488

Meses depois, em novembro do mesmo ano, na 10ª Reunião Ordinária do Conselho


Nacional de Reforma Agrária, realizada na Praia, decidiu-se:
 Pela revogação do carácter gratuito da posse útil;
 Revogação da obrigatoriedade das partes em manter os contratos de arrendamento
nos casos de compra ou herança de forma a incentivar o investimento particular
em prédios rústicos;
 Criação de um tipo de crédito agrícola mais consentâneo com a nossa realidade e
a pobreza da maioria dos agricultores;
 Revogação do artigo que atribui ao Estado o direito de preferência na compra de
prédios rústicos;
 Criação de um cadastro nacional de todas as terras do estado em poder de
particulares;
 Integração das CRA, com outra designação, nos Tribunais Comuns numa secção
independente para tratar exclusivamente dos assuntos agrários. 489

Finalmente, em 1991, pela Lei nº 5/IV/91 de 4 de julho, foram extintas as Comissões de


Reforma Agrária, ficando o governo autorizado a legislar em matéria processual, de
organização judiciária e de transferência de pessoas e bens, no prazo de 60 dias,
procedendo à:

488 Lei nº 9/II/82.


489 CRA do Porto Novo. In Dossier da 4ª Reunião Ordinária do Conselho Nacional da Reforma Agrária, pp. 9-10.

257
 Atribuição de competências aos tribunais, designadamente em sede recurso e
de poderes jurisdicionais de todos pelas comissões Concelhias de Reforma
Agrária e à reformulação da cobertura judiciaria do país;
 Transferência do pessoal, equipamentos, objectos e verbas que se mostrarem
necessários, para a tutela do Minsitério da Justiça, Adminsitração Publica e
Trabalho.490

Nesta sequência, em 1992 foram distribuídas pelos diferentes serviços do Ministério das
Pescas, Agricultura e Animação Rural as competências não jurisdicionais anteriormente
atribuidas às Comissões de Reforma Agrária, 491 sendo que a partir de então, a Direcção
Geral de Agricultura, Silvicultura e Pecuária, passou a ter competências para:
 Propor a expropriação e bem assim a atribuição e a declaração de
caducidade e de perda de posse útil, nos termos da lei, oficiosamente ou a
solicitação de interessados legítimos, organizando e instruindo os
respectivos processos;
 Promover a conversão da parceria, nos termso dos artigos 8º e 9º da Lei nº
9/II/82 de 26 de março, na redacção dada pela lei nº 78/III/90 de 29 de
julho;
 Receber a Declaração ou comunicação a que se refere os artigos 17º nº 1,
50º, nº 1, A, da Lei nº 9/II/82 de 26 de março, na redação dada pela lei
78/III/90 de 29 de julho;
 Exarar o documento a que se refere o artigo 31º A, da Lei nº 9/II/82 de 26
de março, na redacção dada pela lei 78/III/90 de 29 de julho;
 Autorizar o fracionamento da terra e a troca de parcelas nos termos do
artigo 35º da Lei nº 9/II/82 de 26 de março;
 Receber o contrato ou cópia do contrato de arredamento rural e aprceria,
nos termos doa rtigo 7º do decreto-Lei nº 38/83 de 4 de julho, na redação
dada pelo artigo nº 6º do Decreto ei nº 98/91 de 24 de agosto.492

490 Lei nº 5/IV/91, de 4 de julho, Suplemento ao boletim oficial, nº 26, 4 de julho de 1991.
491 Boletim Oficial, nº 23 de 6 de junho de 1992, portaria nº 26/92.
492 Boletim Oficial, nº 23 de 6 de junho de 1992, portaria nº 26/92.

258
Assim, com a revogação da LBRA a posse útil passa para titularidade plena. Porém, essa
titularidade não foi devidamente registada no Cartório Notarial, com todos os problemas
daí advenientes.493

Acontece que, nas vésperas da Independênia Nacional, foi publicado em Portugal o


Decreto-Lei nº 576 de 24/11/70, denominado Lei dos Solos, o qual fora estendido a Cabo
Verde em 1972. Entretanto, o regulamento que de facto normalizava os domínios
fundiários em termos de definições era o de Ocupação e Concessão de Terrenos nas
Províncias Ultramarinas, aprovado pelo Decreto nº 43.894 de 06/09/1961 e aplicado a
Cabo Verde desde 1969.

Assim, no ato de revogar a LBRA, automaticamente voltaram a vigorar as leis coloniais


antes rejeitadas e que serão, por fim, substituídos somente em 2007, quando se publica a
atual Lei dos Solos pelo decreto-legislativo nº 02 de 19/07/2007.

Para a regularização das terras existem dois diplomas: o Decreto nº 132/71, de 6 de abril,
mas que praticamente não foi aplicado, e a lei nº 25/VII/2008, de 3 de março,494 alterado
pela Lei nº 45/VII/2009, de 24 de agosto.495

É a Lei nº 25/VII/2008, com as alterações já referidas, que veio permitir aos possuidores
de terrenos, por longos anos, ou até por gerações, obterem a sua regularização. Em muitos
casos as pessoas socorrem-se também daquilo que se chama a escritura de justificação
notarial,496 pela qual fazem a inscrição dos terrenos nas conservatórias no respetivo nome.
Esta tem sido uma forma de regularizar a posse.

Acontece, porém, que a não formalização das posses e “ a não sedimentação de uma
legislação fundiária competente às intencionadas mudanças no pós-independência
fomentaram a situação de insegurança fundiária(…),”497 um pouco por todo o mundo

493 A não sedimentação de uma legislação fundiária competente às intencionadas mudanças no pós-independência
fomentaram a situação de insegurança fundiária que será explorada na troca de poder na década de 90 (Borba, Op.
Cit. p. 69).
494 Boletim Oficial nº 9, I Série de 3 de março, 1982.
495 Boletim Oficial nº 34, I Série, de 24 de agosto, 1982.
496 Pode servir para suprir a falta do título necessário para a primeira inscrição no registo predial.
497 Borba, Carolina, Op. Cit. p. 69.

259
rural cabo-verdiano,498o que significa que “a escassez de legislação específica ao domínio
agrário durante todo o período colonial”(Furtado, 1993:89), em bom rigor, não conhecerá
as melhorias que se esperava ainda hoje, com todos os embaraços daí advenientes.

Em relação a Tarrafal de Monte Trigo, ao receberem a posse plena sobre as parcelas, os


beneficiários podiam, doravante, conseguir, por exemplo, vender pequenas parcelas e,
deste modo, investir em setores considerados importantes em prol da melhoria das suas
condições de vida.
kom nha Kása tava prei moda um berrokon, quês pe kei deriba de mim, premer kósa
kem fezé foi vendé um bkedim de tchon, h´um kompó nha kasa.499 (Diário de
Campo.TMT, março de 2018).

Explicava-me, assim o Sr. Morais, quando questionado sobre as vantagens da posse plena
sobre a sua parcela. A possibilidade de vender foi realçada por quase todos os meus
interlocutores, para, assim, resolver questões concretas, como as das moradias ou para
ajudarem os filhos a emigrarem, como afiançou a dona Josefina:
Bo sêb nôs 3 fia fema bé pe estrenger, graças a pepel k nhe irmã mandá, ma tembem
graças a uns pódóce de tchon k no vendé pe estrétés e pe comprés passaja …. Sen
fóse essim es táva prei chei de fi no tchon.500 (Diário de Campo. TMT, março de
2018).

Outrossim, foi essa posse que deu a possibilidade de transmissões inter geracionais destas
parcelas, isto é, a de serem partilhadas entre os herdeiros. Se, por um lado, esta
possibilidade é apontada como uma vantagem, por outro, tem sido motivo de muitos
atritos, particularmente nos últimos anos.

“Oh répez, oiá inkom kes fi de Mourício, es te estôde kués pe matá kumpenher, per kósa
de estóra d´ irança de kes zorta k era d´ sis péi.501 Explicava-me um dos meus
interlocutores, com exemplos concretos, em como a disputa da herança das terras tem

498O caso mais paradigmático é o concelho de São Salvador do Mundo na ilha de Santiago (Cfr. Borba, Carolina, Op.
Cit.).
499Como a minha casa estava como que um barracão, quase a cair em cima de mim, a primeira coisa que eu fiz foi
vender um bocado de terra, trabalhei a minha casa. (Tradução livre do autor).
500 Sabes, as nossas três filhas foram para o estrangeiro, graças à minha irmã que lhes enviaram documentos, mas
também graças a uns bocados de terreno que vendemos, para custear as despesas e os bilhetes de passagem… Se não
fosse assim estariam aqui carregados de filhos (Tradução livre do autor).
501 Rapaz, os filhos do Maurício, andam quase que a matarem-se uns aos outros, por causa da herança das hortas que

eram do pai deles (Tradução livre do autor).

260
provocado situações tensas e conflituosas no seio de muitas famílias do Tarrafal de
Monte Trigo. Fui ouvir outras pessoas, e, com uma certa mágoa, a dona Lucrécia, contou-
me como tinha sido enganada pelo próprio filho, que, sem autorização sua, vendeu a
parcela que lhe tinha sido atribuída, após a morte dos pais.
Mim, nhe fi vendé nhe pért pe 100 kont pe uns estrenger…. Nem m´en sêb k sik´el
feze k kel d´nher…Kes zotes nhes irmon vendé kes ses tembem, tud pe estrenger…
ma sem estóra de passa pepel… ogora es te pra lá k preblema ma es, per kósa de
pepel!502( Diário de Campo. TMT, março de 2018).

Esta narrativa suscitou-me algumas curiosidades. Após a morte dos pais, parte da parcela
lhe tido atribuída por quem e como?
Nhé péi era levrodor de casa Férr. Kond el m´rrê nós ménhe fká k kes percelas. Ma,
uns ónes étrés ela m´rrê, enton kes irmons motche més grénd decidí k nó táva pertis
pe nós tud sét irmóns… essim, kada um tmá se p´decin!”503( Diário de Campo. TMT,
março de 2018).

Se, por um lado, esta resposta da dona Lucrécia dissipou as minhas dúvidas relativamente
ao contexto em que lhe tinha sido atribuída uma parcela de terra, não deixou, por sua vez,
de me levar a duas outras reflexões: (i)os irmãos, mais velhos é que decidiram que deviam
partilhar a herança, o que nos indicia a pensar em resquícios de uma estrutura patriarcal
referida anteriormente;(ii) a ausência da figura do Estado, consubstanciada em
instituições competentes em matéria da partilha de bens.

A narrativa de um outro interlocutor, não deixou dúvidas relativamente à minha reflexão,


no concernente à forma como as partilhas vêm sendo feitas.
Prei bo sêb, pertilha é essim: é tchemá um ó dós hóm deche més grend, es te reuní,
es te bé te ptá sorte, kada um te bé te tmá se pódóce, conforme calhá! 504 ( Diário de
Campo. TMT, março de 2018).

Enfim, de forma aleatória e sem qualquer formalização junto às instituições competentes,


as terras vêem sendo “partilhadas,” e também “vendidas” aos estrangeiros,

502O meu filho vendeu a minha parte por cem mil escudos a uns estrangeiros. Nem sei o que ele fez com o dinheiro.
Os outros meus irmãos também venderem as suas partes aos estrangeiros. Mas, sem passar documento nenhum.
Agora andam com problemas com aqueles estrangeiros que andam a pedir documentos (Tradução livre do autor).
503 O meu pai era lavrador da Casa Ferro. Quando ele morreu, a nossa mãe ficou com as parcelas. Mas, há uns anos
atrás ela morreu, então, os meus irmãos, homens, mais velhos, decidiram que devíamos p reparti-las entre nós os sete
irmãos. E assim cada um ficou com o seu pedacinho! (Tradução livre do autor).
504 Por aqui, já sabes, a partilha é assim: É chamar um ou dois homens dos mais velhos, reúnem, vão jogando a sorte,

e a cada um vai tomando o seu pedaço conforme a sorte calhar. (Tradução livre do autor).

261
particularmente, em Tarrafal de Monte Trigo de hoje, com todos os embaraços que isto
possa vir a acarretar no futuro.
Porém, tem havido exceções.
Bo sêb, mim m´vendé um bom pért de kel minha, ma, k pepel possôd eh… M´vendé,
pertí kel d´nher pe mim ma nhes fi… pké sêb mim kel k nem d minha m´n de f´ ka
kel. H´um devdí dnher ne mei… metéde pe mim e kel ote metéd k era de nhe m´lher
k déus tem, foi devdid pe nhes fi!505( Diário de Campo. TMT, março de 2018).

Confidenciou um dos meus interlocutores, realçando três aspetos que me pareceram


interessantes: (i) vendeu apenas uma parte das suas terras; (ii), a venda seguiu os
contornos legais; (iii), o dinheiro foi repartido ao meio, sendo metade que devia pertencer
à esposa, já falecida, foi redistribuída aos filhos.

Tendo em atenção determinadas situações verificadas em Cabo Verde, nomeadamente no


Concelho de São Salvador do Mundo, na ilha de Santiago, onde
a falta de formalização de posses-úteis em Picos e a não sedimentação de uma
legislação fundiáia competente às intencionadas mudanças no pós-independência
fomentaram a situação de insegurança fundiária (…) sendo que
documentantalmente, as terras em Picos voltaram para o domínio dos antigos
proprietários coloniais (Borba, 2013:69).

tive a preocupação de diligenciar junto à Conservatória dos Registos Prediais, na Praia,


no intuito de averiguar se as posses plenas relativas às parcelas em Tarrafal de Monte
Trigo estão devidamente formalizadas. Infelizmente, não me foi possível. A informação
que me foi dada é que não conseguiram encontrar informações, convidando-me a me
dirigir à Conservatória do Porto Novo, em Santo Antão o que, à partida, me pareceu
estranho, atendendo que estamos perante um registo central. Não obstante, fui à
Conservatória do Porto Novo, onde, apesar de muitas diligências e insistências, não
consegui tal informação. Fui encaminhado para a Câmara Muncipal, no sentido de
conseguir informações acerca dos registos prediais, também sem sucesso.

505 Sabes, eu vendi uma boa parte das minhas, mas, com papel passado! Vendi e reaprti o dinheiro entre eu e os meus
filhos! Porque sabes, eu, aquili que não é meu, eu não fico com ele. Dividi o dinheiro ao meio: metade para mim e a
outra metade que seria da minha mulher, que Deus a tenha, foi repartida entre os meus filhos! (Tradução livre do
autor).

262
5.5. Tarrafal de Monte Trigo: elementos para uma análise prospetiva

Sem querer entrar numa discussão aprofundada e densa sobre o Tarrafal de Monte Trigo
de hoje, deixo apenas alguns elementos que, porventura, venham a servir para reflexões
mais aprofundadas sobre o percurso histórico desta comunidade, levantando a ponta do
véu sobre a história rural do arquipélago de Cabo Verde, e com ela a da propriedade, em
bom rigor, ainda por fazer, entre outros fatores, devido “a um olhar urbano centrado das
fontes, que quase deixam em silêncio o mundo rural.”506

Os dados referentes ao ano de 2018, indicam que Tarrafal de Monte Trigo “ conta com
900 habitantes,”507 distribuídos conforme a tabela abaixo.

Tabela 12. Situação demográfica em Tarrafal de Monte Trigo em 2018


Sexo População Agregados Idade Idade Idade
residente por sexo do Menos 15 Entre 15 e Mais de 65
representante anos 64 anos anos
Total 841 188 215 541 85
Masculino 473 130 107 330 36
Feminino 368 58 108 221 49
Fonte: In Doc. PDI Tarrafal_ Monte Trigo 2018/2021, Mindelo: M_EIA,2018.

À semelhança de outras regiões de Santo Antão, também aqui, a população tende a


diminuir, não obstante o aumento do número de estrangeiros que, nos últimos anos
tendem a fixar residência na sua zona ribeirinha.

Se é verdade que essa zona possui boas atrações paisagísticas, não é menos verdade ser a
que mais inspira preocupações relativamente à sua situação urbanística, entre outros
motivos pelo avanço da fúria do mar em determinadas épocas do ano.

Esta situação já levou, por exemplo, à destruição quase total do cais, a partir de onde os
navios-cisternas eram abastecidos de água para a ilha de São Vicente, a única porta de

506Soares, Maria João (2014). Capelas e terras de Ónus de missa na ilha do Fogo, Cabo Verde (séculos XVI-XVIII).
In Serrão, José Vicente; Direito; Bárbara; Rodrigues, Eugénia; Miranda, Suzana (eds). Op. Cit. p. 115.
507 Dados atuais, de junho de 2017 fornecidos pelo Delegado Municipal.

263
saída, por mar, do Tarrafal e das outras localidades do interior do concelho do Porto Novo,
num tempo que os seus habitantes “táva k´ntecé m´lhor era gente de sul ma norte pké
kond táva dá tchuva nó tava bé semiá pra lá, e tembem gent k´tá bem de kes lóde de
R´bera d´Ocruz, Mertién, e Elt´mira, pe panhá bark pe pe sencent, 508 como confidenciou
uma das minhas interlocutoras.

Ao longo do texto, falei bastamente do isolamento do Tarrafal de Monte Trigo, num


tempo em que se chegou a considerar que
“a região do Tarrafal e outras vizinhas como Monte Trigo, Altomira, Martiene, etc,
pertencem a Santo Antão, mas ficam a 12 horas de caminho, no mínimo da vila mais
próxima que é o Porto Novo, com a agravante de não ter com ela ligação rodoviária.
Paradoxalmente, as ditas regiões pertencem a São Vicente na medida em que esta
ilha está separada delas cerca de três horas de viagem por mar. Todavia, a ausência
de uma carreira marítima regular mergulha aquelas regiões no isolamento.
Isolamento em relação à subssitência, ao comércio agrócola e piscatória, à
asssitência social e sanitária, educação, etc. 509

Situação que hoje já não se coloca, porquanto, os 12 Km de estrada pavimentada que


ainda faltam concluir, e que, ao que tudo indica, poderá ser finalizada nos próximos
tempos. A ligação terrestre com o resto da ilha, que, em parte, tem contribuído para o
aumento de turistas em Tarrafal de Monte Trigo, constituiu um dos fatores fundamentais
para a quebra do seu isolamento, referido ao longo deste trabalho.

No que diz respeito ao abastecimento da água, Tarrafal de Monte Trigo continua sendo
uma das poucas localidades do Concelho de Porto Novo com água de nascente para
agricultura com custos de distribuição, quase zero, sendo que “a água neste povoado
nunca é um problema, existe em grande quantidade.”510O que, porém, constitui um
problema “é a exiguidade do terreno, para tanta água.”511

Porém, isto não significa que não existam ainda hoje, conflitos por causa da água. Na
sequência da recente introdução do cultivo do inhame, referido anteriormente, suportado

508Conhecíamos melhor as pessoas dos planaltos Sul e Norte porque quando chovia nós íamos lá fazer a sementeira,
e também pessoas que vinham dos lados da Ribeira da Cruz, Martiene e Alto-mira, para conseguir o barco para a ilha
de São Vicente. (Tradução livre do autor).
509 Tarrafal de Monte Trigo – Santo Antão ou São Vicente? In Nôs Luta - Ano I, Nº 9, 31/05/1975, p. 5
510 Doc. PDI Tarrafal_ Monte Trigo, 2018/2021 M_EIA 2018.
511 Idem, ibidem.

264
por uma nova tencologia de mobilização da água, não só tem sido motivo de reclamação,
como potenciador de conflitos entre a nova geração de agricultores.

Este novo modelo de cultivo, associado a novos modelos de gestão da água para a rega
gota-a-gota, traduziu no uso, não raras vezes, das encostas, antes impróprias para o
cultivo. Para o efeito, de algum lugar, a água deve ser mobilizada, ainda que espaços
outros venham a pedecer de água, convertendo-se em zonas de sequeiro.
“Oiá, inda bone passá lá ne Varanda? Ê um tristéza oiá kel l´gar! Sék russ! Quem a
vi d´zé, um l´gar dekel, ton bnit, virdim, virdim, virdim, eté lá mês non, ne kel temp
deche Férr… ogora, diskon k´mesá es estora de nhém la pró bôje, kel l´gar bé te
seká, bé te seká… eté f´ka ne kel finoson k bô te oiel lá… um tristeza!”512
(Diário de Campo, TMT, março de 2018).

Foi assim que o Sr. Isaquiel exprimiu o seu desencanto em relação a Varanda, o ex-libris
de Tarrfal de Monte Trigo, como referi logo no início do trabalho. Hoje, além de
arruinado, transformou-se num campo de terras e pedras secas, como se fizesse parte das
zonas áridas dos planaltos, norte e sul, do concelho do Porto Novo, que só vêm água
quando chove.

As insinuações de um possível desvio da água, destinada à rega gota-a-gota, dos campos


de inhame, não deixa de ser instigante para quem, no futuro, venha fazer uma antropologia
da água daquela região sudoeste de Santo Antão.

O tempo disponibilizado para o trabalho de campo em Tarrafal de Monte Trigo, não me


permitiu uma etnografia da rega o suficiente para explorar tais insinuações e
possibilidades analíticas. Foi, porém, o suficiente para constatar problemas referentes ao
uso da água, ainda que ela seja abundante, como disse inicialmente, no contexto de Santo
Antão e particularmente no do concelho do Porto Novo.

Existem também constrangimentos advenientes, por exemplo, do facto de, em regra,


ainda o sistema de rega continuar sendo a forma tradicional de alagamento. As
informações prestadas pelo delegado do Ministério da Agricultura e do Ambiente, são

512Olhe, ainda não passastes lá na Varanda? É uma tristeza ver aquele lugar! Seco russo! Quem diria um lugar daquele,
tão bonito, verdinho, verdinho, verdinho, até não poder mais, no tempo da família Ferro… agora, desde que começou
esta história de inhame lá para baixo, aquele lugar foi secando, foi secando… até ficar naquela situação que agora
o vês…. Uma tristeza! (Tradução livre do autor).

265
bastante esclarecedoras neste sentido, quando diz que “embora ninguém paga água em
Tarrafal é, contudo, necessário investir-se nas infraestruturas de adução, estocagem e
distribuição para melhorar o sistema.”513

Em relação à agricultura, apesar da falta de políticas locais de diversificação da produção


agrícola,514 da orografia declivosa do vale e dos limites de acesso a terrenos para o cultivo,
existem hoje, alguns avanços nomeadamente na produção de inhame, suportada numa
tecnologia local ali introduzida, resultando em cerca de (700 toneladas/ano), e mantendo
cerca de 130 agricultores activos com duas colheitas/ano.”515

Um outro problema que se coloca hoje tem que ver com a penetração da estrada no interior
da comunidade, por exigir, não raras vezes, a obstrução/destruição de algumas parcelas
de regadio, com todos os constrangimentos que isto acarreta para os seus donos. Entre
outras possíveis razões, talvez o desconhecimento da expropriação por utilidade pública
(Almeida, 2002:40), tem levado a uma certa resistência por parte de alguns donos de
parcelas, relativamente a este assunto, quando confrontados com a possibilidade de verem
reduzidas as terras disponíveis para a agricultura.
Amoche, inkom kes fi de Fermine, gen kris de nenhum menera!… depos de mute
tempo es aceitá ma kond tróboi kmesá, kes oiés te mete maquina na orta, es kaská
grit, kes tive k pará troboi…Durent mute temp tróboi fká pórod e so há pok temp
kués kes foi obrigóde a dtchá passa estrada lá!516 (Diário de Campo. TMT, março de
2018).

Esta narrativa mostra-nos o quão o apego à terra é grande, de modo tal, que ainda que
para um benefício coletivo, as pessoas suportam dilemas difíceis, quando a possibilidade
de perder algum pedaço de terra de regadio é visível. O destruir um pedaço de terra, por
mais pequeno que seja, é vivenciado como uma afronta a quem ela pertence, ao ponto de
desatar aos gritos como vemos na narrativa acima, ou esta a seguir, que embora tenha

513 Doc. PDI Tarrafal_ Monte Trigo, 2018/2021 M_EIA 2018.


514Um dos pontos fracos do setor reside essencialmente na fraca motivação dos agricultores para o associativismo
empresarial, ……
515 Doc. PDI Tarrafal_ Monte Trigo, 2018/2021 M_EIA 2018.
516 Olhe, os filhos do Firmino, não permitiam de nenhuma meneira! Depois de muto tempo, acabaram por aceitar, mas,
quando iniciaram os trabalhos, viram as máquinas metidas nas hortas, gritaram de tal forma que os trabalhadores
tiveram de parar. Durante muito tempo, os trabalhos ficaram parados e só há pouco tempo atrás, quase que foram
obrigados a deixar a estrada passar lá (Tradução livre do autor).

266
autorizado, o agricultor diz quase morrer quando viu as máquinas a passarem pela sua
horta.
Oh nhe fi, mim h´um dá por bem pes passá um pódoce de estrada ness trevesedim…
kond h´um oiés meté maquina ne kel urtinha, dême um meriement, k´um pensá k´em
táva te bé sinti um mal……. H´um tive k mendés pará, pké h´um pensá k h´um táva
bé m´rrê… Ma depôs h´um tive de comfortá, h´um torna dés orda pe continuá
trobói!517 (Diário de Campo. TMT, março de 2018).

Mais do que uma fonte de rendimento, a terra parece ser sagrada, e motivação para
desacato. Começei a explicar o meu interesse por este objeto de pesquisa, dizendo que
cresci em Tarrafal de Monte Trigo assistindo desavenças entre as pessoas, motivadas por
disputas à volta da água para a rega, sobretudo.

Terminei a pesquisa de campo, com anotações sobre os conflitos e as tensões à volta da


terra de regadio, sendo que, tenho de reafirmar o sentido que deu mote ao título desta tese,
A Terra, a Água e o Poder em Tarrafal de Monte Trigo, Santo Antão, Cabo Verde.

Numa altura em que tanto se fala nas potencialidades do turismo rural no concelho do
Porto Novo, com incidência em Tarrafal de Monte Trigo, consubstancidas na promoção
da cultura, da paisagem e das tradições, termino este trabalho, dizendo que existe uma
potencialidade a explorar e se consubstancia no facto de que a história desta comunidade
também possa vir a ser contemplada e utilizada como instrumento de promoção do
Tarrafal de Monte Trigo de ontem, nos mais variados domínios, como sejam a gestão da
terra e da água, a epopeia do mar, as individualidades “de cima” e “de baixo” que fizeram
desta região de Santo Antão aquilo que é hoje.

Da minha parte, e no quadro deste trabalho, segui o percurso do povoado do Tarrafal de


Monte Trigo, do seu momento zero à atualidade, as suas adversidades, até se transformar
no que é hoje, uma “cidade,” no ideário de quem vivenciou parte substancial desta mesma
trajetória, como o Sr. Apolinário, que, numa tarde de agosto de 2017, após uma longa
prosa sobre o Tarrafal dos anos quarenta do século XX, altura em que a praia grande

517 Olhe, meu filho, eu concordei que passassem com a estrada neste bocado de terra aqui perto. Quando os vi a meter
máquinas naquela hortinha, deu-me uma tontura que pensei que ia me sentir mal! Tive de os mandar parar, porque
pensei que ia morrer… Mas depois tive de me confortar e dei ordens para que contuassem os trabalhos (Tradução
livre do autor).

267
encheu-se de famintos vindos dos planaltos da ilha, disse-me, repetidas vezes: “Bo sêb pe
mim Tarrafal ogora é um cidéd.”518

Quem analisou a documentação referente a Tarrafal de Monte Trigo da época, e ouviu as


diferentes narrativas sobre a vivência naquele povoado, perceberá o quão faz sentido ser
hoje vista como uma cidade, no ideário de quem, como o senhor Apolinário, nunca teve
uma vivência em outras paragens de Cabo Verde e do mundo. Talvez tenha sido por esta
razão que, por três vezes, fez questão de me dizer, de forma perentória, que, para alguém
como ele, Tarrafal de Monte Trigo é hoje, sim, uma cidade.

Se é verdade que não foi possível esmiuçar todos os meadros da história deste espaço,
particularmente nos primeiros tempos da sua existência, não é menos verdade que, a partir
do século XX, altura em que se torna percetível o facto de os camponeses locais serem
vistos como fornecedores de mão-de-obra e parceiros para terem acesso à terra e a água
para a rega, ela foi trazida para o centro do debate.

O problema estrutural adveniente do predomínio de uma propriedade latifundiária, com


o peso assinalado na estrutura económica e social dessa comunidade agrária, foi trazido
para a academia, através desta tese de doutoramento.

Num tempo como o nosso, em que o continente africano, considerado por muitos “comme
um grand réservoir foncier par um monde en appétit de terres,” 519 resta esperar que este
apetite pela terra não venha a afetar ainda mais a situação fundiária em Tarrafal de Monte
Trigo, marcado por uma procura frequente de lotes, particularmente por parte de
estrangeiros que, de diferentes paragens do mundo, tendem a fixar residência naquela
comunidade rural de Santo Antão, cuja paisagem natural, conjugando o azul do mar com
o verde, das encostas e do vale, no qual a água ainda é abundante, faz do local um ex-
libris, não obstante a distância que a separa do centro urbano mais próximo – a Cidade
do Porto Novo.

518Sabes, para mim, hoje, Tarrafal é uma cidade (Tradução livre do autor).
519Blanc, Pierre (2018). Op. Cit. p. 16.

268
CONSIDERAÇÕES FINAIS

O mundo rural cabo-verdiano, nasceu, para os seus principais atores e protagonistas (o


campesinato, primeiro na condição de escravo e, mais tarde, na de semi ou proto-
servidão), sob o signo da pobreza, da exclusão e da resiliência. Salvo raras exceções em
algumas ilhas, designadamente na do Fogo, onde a ocupação efetiva terá iniciado no meio
rural, ainda nos finais do século XV, motivado pelas necessidades sentidas por abastados
proprietários oriundos de Santiago de dar resposta às crescentes solicitações do algodão,
em bom rigor, o povoamento do espaço rural neste arquipélago foi feito, inicialmente, por
grupos segregados e “de baixo.”

Foi assim em Santiago, ocupada inicialmente por fujões, que, na sequência das
vicissitudes por que passaram na cidade da Ribeira Grande, nomeadamente o facto de
terem de “fugir da cadea” (ANCV, SGG, Lv.05, fl. 33 v), a partir do século XVI começam
a instalar-se nos lugares de difícil acesso no interior da ilha, “vivendo na condição de
foragidos e à margem da sociedade” (Baleno, 1991:164).

Foi assim na Brava onde “se ensaiou, no início de Quinhentos, a cultura do algodão, por
iniciativa de Francisco da Fonseca, rendeiro da ilha, que ali introduziu escravos” (Baleno,
1991:164), e assim foi nas ilhas agrícolas do Norte, nomeadamente em São Nicolau, onde
ainda no século XVIII as terras ficavam por cultivar “(…) porque os pretos forros que
vivem pelos campos e montanhas não querem trabalhar e vivam como gentios furtando
muitos o que os poucos trabalhão (…), (ANCV- SGG. Lv.01, fl.104), como nos dá conta
o Ouvidor José da Costa Ribeiro, em carta dirigida a Sua Majestade, em 1731.

Santo Antão, “por todas as partes inacessível por causa dos altos rochedos que tem em
toda a sua circunferência,”(Santos, 2017:107), menos atrativa em relação, por exemplo,
à ilha de Santiago, foi gradualmente ocupada por pequenos grupos de proprietários de
terras e de escravos, criando, na sua fase inicial, o fermento de diferenciação que se iria
acentuando, não apenas pela superioridade económica desse grupo, como pela formação,
na sua estrutura demográfica, de um elemento desqualificado socialmente, o escravo ou
descendente deste, e, mais tarde, o criado, que viria posteriormente a se transformar em
parceiro/meeiro dos donos das terras de regadio, na sua maioria.

269
A documentação analisada permitiu-me constatar que em Santo Antão, a gestão da terra
e da água e todos os embaraços à volta destes dois recursos estiveram sempre na base dos
momentos particularmente difíceis por que passou a ilha a partir do século XVII, período
da consolidação da sua estrutura social. Assim, no século XVIII, conheceu momentos
particularmente críticos, pelo impacto desastroso da Companhia do Grão-Pará e
Maranhão e, que acabou por se apropriar dos seus bens ; no século XIX, a tensão social
agudizou-se, com as revoltas populares de 1886 e 1894, para no século XX, em agosto de
1981, vivenciar acontecimentos dramáticos, particularmente nos povoados de Figueiral e
Coculi - Concelho da Ribeira Grande- na sequência dos acontecimentos referentes à
socialização da Lei de Bases da Reforma Agrária.

Se é verdade que, no atual século, não temos assistido a conflitos abertos advenientes dos
problemas fundiários ainda existentes nesta ilha, não é menos verdade que existem,
todavia, intrincadas relações a este nível, designadamente problemas que se prendem com
o cadastro, com as partilhas, os direitos fundiários, o direito à água, entre outros.

Em relação aos recursos hídricos, desde sempre, este mesmo universo rural cabo-verdiano
conheceu adversidades, impostas pelas condições climáticas, por um lado, e, por outro,
pela forma como estes poucos recursos foram equacionados ao longo dos tempos. Foi
assim no passado e assim o é ainda hoje. Volta e meia, assistimos na comunicação social
a reportagens que têm que ver com a pobreza no campo, entre outras razões, pelos efeitos
da seca, também eles persistentes na história deste arquipélago, com marcas indeléveis
sobre as ilhas ditas e tidas de vocação agrícola, designadamente a de Santo Antão.

Quando, em janeiro de 2016, durante uma sessão de socialização do meu projeto de


doutoramento na cidade da Ribeira Grande, em Santo Antão, um dos muitos jovens
presentes no evento desafiou-me, abertamente, a estudar a reforma agrária, “sem medo,
de forma técnica e nunca política” fiquei ainda mais convencido de que o estudo, de forma
serena, da estrutura fundiária em Santo Antão pelas Ciências Sociais e Humanas é uma
necessidade do presente.

270
Foi o que procurei fazer ao longo deste trabalho, apoiando-me no passado e olhando para
a história recente desta ilha, com o distanciamento necessário que o assunto requer,
trazendo essa discussão para o campo académico, onde “ainda persiste uma certa
resistência em abordar o tema” (Delgado, 2015:192).

Fi-lo a partir do Tarrafal de Monte Trigo, o povoado durante muito tempo isolado do resto
da ilha, hoje, uma das mais procuradas comunidades rurais de Santo Antão, por parte de
turistas das mais variadas proveniências. Vocacionada, essencialmente, para a
agricultura, a sua configuração fundiária afigura-se interessante no contexto de Santo
Antão e de Cabo Verde. Uma configuração cuja marca foi profunda nas suas gentes,
particularmente na região mais ao norte, toda ela destinada à agricultura de regadio.

Devido ao meu viés profissional, inicialmente, o meu olhar esteve mais inclinado para os
arquivos. Com o tempo, e particularmente após o início das pesquisas de campo, a minha
postura metodológica foi-se alterando. Para além das entrevistas ali realizadas, fui
mobilizando as minhas próprias memórias que não deixam de ser um elemento e um
agente da história (Ferro,1996:17). Assim, ao contrário do que acontecia na antropologia
clássica, o “pesquisador” e o “nativo” partilhou, aqui, a mesma origem social e
geográfica.

Porque “a pesquisa científica exige criatividade, disciplina, organização e modéstia,


baseando-se no confronto permanente entre o possível e o impossível, entre o
conhecimento e a ignorância,” (Goldenberg, 2004:13), a feitura deste trabalho constituiu
um desafio a diferentes níveis. Desde logo, a impossibilidade material de o fazer
baseando-se exclusivamente na etnografia. A realidade insular do País e a este nível tem
os seus inconvenientes. A opção por fontes exclusivamente documentais seria possível,
assumindo-se, à partida, as abordagens maioritárias, inerentes às fontes documentais, que
excluem os minoritários.

Assim, o grande desafio foi a clara necessidade de conciliar as duas perspetivas


metodológicas e, por conseguinte, com implicações epistemológicas e teóricas,
procurando, sempre que possível, colocar lado a lado as fontes oficiais e as não oficiais,
tentando, neste sentido, cruzar a voz dos poderosos encontrada nos arquivos e a dos sem

271
voz, através da etnografia, propondo, a um só tempo, mapear os silêncios, tão frequentes
na história de Cabo Verde, e lançar as bases para a feitura de uma história vista “de baixo.”

A pesquisa de campo desenvolvida em Tarrafal de Monte Trigo não foi uma mera recolha
de dados, mas sim uma interação, na qual a empatia foi fundamental. Pude ver como as
pessoas com quem dialogamos não estão isoladas e como fazem parte de um mundo social
que devemos compreender. São representativas de um determinado grupo social, que, por
vezes, escondem informações por razões pessoais e/ou familiares. Por isso, não me
contentei com uma única versão sobre o que me diziam, procurando, ao mesmo tempo,
reforçar laços concretos e particulares com cada uma das pessoas com quem falei.

A partir do meu campo priviligeado de análise - Tarrafal de Monte Trigo- trabalhei sobre
três variáveis: terra, água e poder, colocando a questão fundiária no centro da pesquisa,
numa sociedade agrária como a de Santo Antão, onde o poder a este nível deixa de ser
simbólico para ganhar uma dimensão económica concreta.

O trabalho procurou trazer para a discussão as relações de poder e de dominação numa


comunidade rural, cuja terra irrigada foi distribuída a algumas dezenas de parceiros, com
base em critérios clientalistas, gerando as assimetrias sociais, ainda hoje bastante
evidentes.

A medida que ia adiantando nas pesquisas, fui vendo como os parceiros do Tarrafal de
Monte Trigo, sem terras, sem dinheiro, nem meios de subsistência, iam-se degradando,
enquanto a família proprietária ia enriquecendo de várias formas: com a venda da água,
no negócio da aguardente, no comércio, no monopólio dos transportes, sem contar com
as meias recebidas dos respetivos meeiros, consoldidando, desta forma, a consagração do
seu poder.

Assisti como, em Tarrafal de Monte Trigo, um grande proprietário de terras – tutor da


família proprietária – estendeu o seu domínio por tudo o que abrangia o seu território e
como foi contornando as sucessivas legislações relativamente aos contratos de parceria,
até 1967, altura em que, finalmente, celebra os primeiros contratos escritos com os
parceiros, e mesmo assim, nem todos foram contemplados.

272
O objetivo principal que norteou a realização deste trabalho, consistiu em analisar a
estrutura fundiária desta comunidade, - a partir da trilogia- terra, água, poder, -
permitindo-me concluir que, numa sociedade iminentemente rural como a de Santo
Antão, onde a agricultura constitui a principal fonte de rendimento, o monopólio da terra
permite aos seus detentores um certo poder sobre os que dela dependendiam para a
sobrevivência. Assim, a categoria poder, por mim construída, ganhou sentido no cômputo
deste trabalho. O mesmo acontece em relação à água para a rega. Também aqui,
“controlar o uso da água significa deter poder” (Ferreira Silves, 2015:9), como procurei
demonstrar na tabela 6, inserta no capítulo quarto. Ao mesmo tempo, encontrei resposta
para uma das questões de pesquisa, como conceber a relação terra, água e poder naquela
comunidade?

Até que ponto a posse da terra e da água contribuiu para a configuração social do
Tarrafal de Monte Trigo, foi outra questão de pesquisa colocada, e um dos objetivos
específicos desenhados. Os dados insertos no capítulo quarto, com a indicação da
distribuição das parcelas de terras e horas de água para a rega aos cultivadores, por parte
da família proprietária, assim como a relação da produção anual destes mesmos
cultivadores, evidenciam uma espécie de pirâmide social, encabeçada, num primeiro
momento, pela família Ferro, seguida dos camponeses, com mais ou menos áreas de terras
e horas de água atribuídas. São dados que apontam para uma sociedade rural
desiquilibrada, e que as narrativas recolhidas ao longo da pesquisa de campo não
desmentem, conforme se constata nos excertos do diário de campo, insertos no capítulo
quinto. Foi neste quadro de desigualdades sociais que Tarrafal de Monte Trigo chegou à
Independência Nacional, em 1975. Num segundo momento, com a reforma agrária,
porque não houve uma redistribuição das parcelas, o Estado acabou por legitimar a
desigualdade fundiária, iniciada pela família proprietária, desigualdade essa que se
mantem pelos dias de hoje.

É também no capítulo quinto que procurei mostrar o retrato social desta comunidade nas
vésperas e nos primeiros anos pós-independência para, finalmente, procurar encontrar a
resposta para a seguinte pergunta de pesquisa: que impacto teve a reforma agrária levada
a cabo em Tarrafal de Monte Trigo nos anos 80 do século XX?

273
Se é verdade que a posse útil sobre as terras, atribuída aos camponeses pelo governo, no
quadro da reforma agrária, em 1983, contribuiu para uma relativa tranquilidade dos 54
beneficiários diretos, com a possibilidade de aumentar a produção e consequente melhoria
das condições de uma população de cerca de 374 pessoas, como se nota pela leitura dos
dados insertos na tabela nove, não é menos verdade que, essa mesma reforma não
contemplou todos os segmentos sociais, legitimando, desta forma, a desigualdade social,
inciada pela família proprietária.

Se, por um lado, as relações de compadrio, por via das quais, foram atribuídas parcelas e
horas de água para a rega aos camponeses, por parte da família proprietária, evidenciadas
quer através da documentação utilizada, quer através de narrativas exibidas ao longo dos
capítulos quarto e quinto, foram, de certo modo, legitimizadas pelo governo, ao não
redistribuir as terras, por outro, a exclusão de determinados segmentos sociais,
designamente a grande parte das camponesas, continua a ser a dura realidade destes
mesmos fragmentos.

Além destas respostas, o trabalho permitiu-me chegar a algumas conclusões


realtivamente à história desta propriedade, conhecida, ao que tudo indica, desde os
primeiros séculos da ocupação da ilha de Santo Antão:

 Na memória das gentes do Tarrafal de Monte Trigo está a família Ferro, a grande
proprietária d´outrora. Porém, quando deixamos os arquivos “falarem,” outras
famílias aparecem ligadas àquela propriedade, nomeadamente a família Martins,
de que Manuel António Martins fora o protagonista (Chelmicki, 1841: 20), e, mais
tarde, a família Burnay, também ela pertencente a uma classe abastada do Cabo
Verde do século XIX (Cfr. ANCV-SGG.Lv.870).

 No século XX, a propriedade acabará nas mãos de uma outra família abastada e
com alguma ligação à elite administrativa da ilha de São Vicente. Trata-se da
família Ferro, cujo protagonista foi o então médico-cirurgião, José Augusto Pinto
Ferro, natural da Brava, residente em São Vicente.

 Da Brava a Santo Antão (Tarrafal de Monte Trigo), passando por São Vicente,
onde angariou bens e reconhecimento social, esta última família marcaria
274
profundamente a história recente desta comunidade. O perscrutar sobre a sua vida
e a sua mobilidade pelas três ilhas acima referenciadas, oxalá venha a ser o
levantar da ponta do véu sobre a mobilidade da elite cabo-verdiana entre as ilhas,
trabalho ainda por fazer pelas ciências sociais e humanas.

 A partir dos primeiros anos do século XX, a então família proprietária, além do
domínio sobre a terra e sobre a água, controlava o transporte marítimo (único
então existente), o pequeno comércio, a comercialização da aguardente e, em bom
rigor, a gestão da educação, da saúde e até da assistência religiosa (se atendermos
que estas funcionavam nas casas cedidas pela família).

 “Kes Déus de T´rrafal de kel temp” (aqueles deuses do Tarrafal de Monte Trigo),
como perentoriamente a classificou o senhor Vitorino, emigrante em férias,
quando lhe perguntei de que se lembrava daquela família e do Tarrafal d´outrora,
entre outras narrativas do género, permitirm-me perceber o quão a famíla Ferro
foi vista como a entidade suprema daquele povoado, reverenciada por alguns,
desdenhada, por outros.

 Foi esta família, representada por um dos herdeiros, José Ferreira Ferro, que viria
a conduzir os destinos da propriedade do Tarrafal de Monte Trigo até os anos
oitenta do século XX.

 No início dos anos oitenta desse século, Tarrafal de Monte Trigo conhecerá uma
reforma agrária sui generis, partindo de uma proposta vinda da própria família
proprietária, pelas razões apontadas num dos tópicos do capítulo quinto.

 Nessa altura, ao atribuir a posse útil sobre as parcelas aos ex-parceiros dos
herdeiros de José Augusto Ferro, o Governo de Cabo Verde acabou por legitimar
a desigualdade fundiária, iniciada pela família proprietária, porquanto não foi feita
uma redistribuição das terras aos camponeses do Tarrafal de Monte Trigo, visando
em última instância o bem-estar social naquela comunidade.

 Assim, em bom rigor, apesar do Governo de então ter colocado a agricultura


irrigada no cerne das políticas públicas, e ter trazido a reforma agrária para o

275
centro destas mesmas políticas, em Tarrafal de Monte Trigo não se pode falar
numa rutura na política fundiária. Consequentemente, ali, a reforma agrária
“vecteur de changement social dans le sens plus égalitaire,” (Blanc, 2018:179)
não foi uma realidade.

 A forma serena como ela foi ali recebida, a meu ver, não contraria a afirmação
acima referida. Tem que ver, do meu ponto de vista, com uma das seguintes
razões: (i)consequências do resultado de uma violência simbólica estrutural,
vivida durante décadas, de tal modo que as pessoas se acostumaram e não se
deram conta dela, (ii) e/ou pelo facto de estarem, de momento, mais preocupadas
em se apropriarem das parcelas, recebendo a posse útil sobre as mesmas, pelo que
a desproporção em termos de hectares de terras e horas de água para a rega tornou-
se secundária.

 Quando, na década de noventa do século XX, o então Governo transforma a posse


útil em posse plena sobre estas mesmas parcelas, a desigualdade fundiária parece
ter ficado consolidada nesta comunidade ainda hoje marcada por acentuadas
assimetrias sociais.

276
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conflito entre o administrador efectivo e o Secretário da Câmara da ilha de Santo Antão
(fevereiro de 1917), papéis avulsos.

ANCV-S.G.G., Cx. 124. Correspondência recebida da Administração do Concelho da


Ribeira Grande (janeiro/dezembro de 1881), papéis avulsos.

ANCV-S.G.G, Cx. 451. Petição dos habitantes da freguesia de Santo Crucifíxo para a
abertura de trabalhos públicos devido a fome (1903), papéis avulsos.

ANCV-S.G.G., Cx. 263. Informação sobre o estado da ilha de Santo Antão no mês de
agosto de 1911, papéis avulsos.

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para a distribuição de cachupa e esmolas no Paúl (Janela) 1913, papéis avulsos.

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da Costa, papéis avulsos.

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10 de maio de 1917, papéis avulsos.

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de abril de 1921, papéis avulsos.

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qual divulga-se, entre outros, a grave situação de crise alimentícia então vivida, devido a

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falta de chuvas, com impactos na subida de preços dos produtos de primeira necessidade
(1926), papéis avulsos.
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ANCV-S.G.G., Cx. 263.Informação sobre o estado da ilha de Santo Antão no mês de


agosto de 1911, papéis avulsos.

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mês de abril de 1921, papeis avulsos.

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administração e uso dos recursos hídricos.

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Decreto n.º 82/87 de 1 de Agosto - Estabelece as normas destinadas a evitar a obstrução,


esgotamento, inutilização, contaminação ou poluição dos recursos hídricos.

Lei nº 78/III/90 de 29 de junho- Suplemento ao boletim oficial,nº 25, de 29 de junho de


1990.

Lei nº 5/IV/91, de 4 de julho - Suplemento ao boletim oficial nº 26, 4 de julho de 1991.


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Decreto-Legislativo n.º 5/99 de 13 dezembro - Altera alguns artigos do Código deÁguas.

Decreto-Lei n.º 75/99 de 30 de dezembro - Define o regime jurídico de licenças ou


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