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NOKẽ MEVI REVÕSHO SHOVIMA AWE ‘O QUE É TRANSFORMADO PELAS PONTAS DAS NOSSAS MÃOS' O TRABALHO MANUAL DOS MARUBO DO RIO CURUÇÁ
NOKẽ MEVI REVÕSHO SHOVIMA AWE ‘O QUE É TRANSFORMADO PELAS PONTAS DAS NOSSAS MÃOS' O TRABALHO MANUAL DOS MARUBO DO RIO CURUÇÁ
Museu Nacional
Aprovada por:
____________________
Profª Bruna Franchetto (orientadora)
________________
Profº Carlos Fausto (PPGAS/UFRJ)
____________________
Profª Lydie Oiara Bonilla Jacobs (UFF)
____________________
Profª Luiza Elvira Belaunde Olschewski (PPGAS/UFRJ, suplente interna)
____________________
Profª Elsje Maria Lagrou (IFICS/UFRJ - suplente externo)
Mia vana yoã shomãivo aska akῖ yoãvõ yoãrivi ikῖ keme mῖ chinãi mai, yoã vana
aa mamẽ kasma. Ãtoro anopa akῖ ã yoã mῖ ikitῖpa. Mῖ kokavo aska matsawã, shõ
ikiyavõ vana, romeyavõ vana, aka mẽkῖ, atona asho atõ ikima. Askai yoãna
rivara ikῖro mῖ akῖ, atoivo vosh aska vana ã yoãrinki aweskin yoãrai ikn
onãtakin koῖro min akῖ, ninkãki.
Você tem que escutar as palavras que são contadas do jeito que elas são. As
histórias nunca são iguais; você nunca deve dizer: “Foi ele que contou a
verdadeira história”. Como dizem seus tios (koka-vo, irmãos da mãe), nem a fala
dos pajés (shõ ikiya-vo) e dos xamãs (romeya-vo) pertence a eles mesmos. Você
deve compreender a forma específica pela qual a pessoa interpreta os
acontecimentos. Preste atenção em quem é a pessoa que narra.
Agradecimentos
Quero agradecer primeiramente o meu avô João Tuxaua (Niwa Wani) que desde
a minha existência esteve presente nos meus pensamentos, protegendo-me através dos
seus peshoti-akaivo (guia) e pela inspiração e pela força que me motivaram a seguir
nesta pesquisa. Agradeço os meus familiares, amigos, colegas, professores. Agradeço as
aĩvo-rasĩ (mulheres) marubo, as principais idealizadoras deste trabalho, que além de
confiarem em mim, me deram a responsabilidade de registrar suas falas e pensamentos,
ajudando no desenvolvimento desta pesquisa; sem elas, nada teria sido possível.
A minha orientadora, Bruna Franchetto que me recebeu de braços abertos e
compreendeu os momentos de dificuldade e provação pelos quais passei. Sem o
trabalho dela nas pontas das mãos, eu não teria chegado a concluir em tempo esta
dissertação.
Sem a bolsa concedida pelo CNPq e sem a dedicação da coordenação e dos
funcionários do PPGAS, não teria saído do lugar do começo. O Museu do Índio
(FUNAI-RJ), seu diretor – José Carlos Levinho – e todos os que lá trabalham foram
incentivo e porto seguro.
A todos os professores do curso de Mestrado em Antropologia Social do PPGAS
(Museu Nacional, UFRJ): Marcio Goldmam, Edmundo Pereira, Luiza Elvira Belaunde,
Carlos Fausto, que nos ensinaram esforçando-se para nos fazer entender qualidade e
teorias.
A todos os colegas, em especial aqueles que me auxiliaram de alguma maneira
no desenvolvimento da pesquisa com suas sugestões, e aos demais pelo convívio
durante nossa temporada no curso, com debate e discussões teóricas e metodológicas.
Aos meus amigos Aline Moreira e João Rezende pela paciência de ter me
aturado durante meus refúgios nas suas residências, haja vista a necessidade de buscar
paz para a elaboração desta dissertação. Também agradeço meu grande amigo Irmão
Nilvo que sempre esteve presente para me encorajar nos momentos de fraqueza da
jornada acadêmica. Ao meu querido colega Gustavo Godoy e às demais pessoas que me
ajudaram na formatação e na correção ortográfica deste texto.
Finalmente, agradeço a todas as pessoas que considero importantes nessa
empreitada, de coração; desculpem-me em não citar os nomes, pois são muitos, além do
que, acho, seria injusta com os demais. Espero que todos se sintam incluídos, os que me
ajudaram na construção do pensamento durante minha estadia na universidade e fora
dela, na multidisciplinaridade, no diálogo de saberes e na constituição coletiva de
conhecimentos para melhores condições de vida em sociedade.
RESUMO
O objetivo desta dissertação é apresentar os relatos dos Marubo do rio Curuçá sobre a
importância do trabalho manual, com foco nas palavras de sete mulheres marubo, que
são as principais inspiradoras desta pesquisa e que vivem nas aldeias de Boa Vista e
Nazaré do rio Ituí e nas aldeias Maronal e São Sebastião do rio Curuçá, na Terra
Indígena do Vale do Javari (Amazônia ocidental). Enfatizo os contextos dos
conhecimentos tradicionais de modo geral e a continuidade da memória que cada artesã
traz dos seus ascendentes clânicos. Para tanto, desenvolvo uma explicação sobre os
diversos subgrupos clânicos Marubo, de forma a apresentar e ressaltar, a partir do
próprio ponto de vista das mulheres Marubo, as distinções no trabalho dos artesões de
cada subgrupo clânico e a diferenciação entre mevĩsho shovima awe, ‘trabalho das
mãos’, e mevi revõsho shovima awe, ‘produção das pontas das mãos’. Sendo assim, nas
falas das minhas protagonistas, a diferenciação na execução do trabalho manual
(‘trabalho das mãos’ e ‘produção nas pontas das mãos’), com base no pertencimento
clânico, serve para explicar e especificar o modo de ser de cada clã. A dissertação inclui
um inventário dos adornos marubo femininos e masculinos, com descrição dos
processos de produção, desde a coleta das matérias-primas, seus valores e significados,
a imbricação de tradição e inovação.
Palavras chave: Marubo; cultura material; clãs marubo; mulheres indígenas; artes
indígenas.
ABSTRACT
The aim of this dissertation is to present the stories and explanations told by the Marubo
of the Curuçá River on the significance of manual labor, focusing on the words of seven
Marubo women, who are the main inspirers of this research and who live in Boa Vista
and Nazaré villages on the Ituí river and in Maronal and São Sebastião villages on the
Curuçá River, in the Indigenous Land of the Javari Valley (Western Amazon). I
emphasize the contexts of traditional knowledge in general and the continuity of
memory that each artisan brings from her clan ascendants. I develop an explanation of
the various Marubo clans, in order to present and highlight, from the Marubo women's
point of view, the distinctions in the work of the artisans of each clan and the
differentiation between mevĩsho shovima awe, 'work of the hands' and mevi revõsho
shovima awe, 'production with the tips of the hands'. Thus, in the speeches of my
protagonists, the differentiation in the execution of manual labor ('work of the hands'
and 'production with the tips of the hands'), based on the clanic membership, serves to
explain and specify the way of being of each clan. The dissertation includes an
inventory of male and female marubo adornments, with a description of the production
processes, from the collection of raw materials, their values and meanings, the
imbrication of tradition and innovation.
Foto 1: Encontro do Projeto de Extensão ‘Diólogo Femenino’ com mulheres indígenas do Vale
do Javari na cidade Atalaia do Norte-Am, 2008 (foto de Lenice Tikuna) ..................................23
Foto 2: Meus dois professores (Gilse e Rafael) apoiadores do Projeto de extensão 'Diálogo
feminino' na CASAI de Atalaia do Norte-AM, 2008 (Foto: Nelly B. D. Dollis).............................23
Mapa 1: Terra Indígena do Vale do Javari (CTI 2011)..................................................................31
Mapa 2: Vale do Javari apud Welper (2009:89)..........................................................................35
Mapa 3: Sui Waka (Rio Curuçá, desenho de minha autoria)......................................................39
Figura 1. Esquema do parentesco clânico da autora..................................................................49
Figura 2: Exemplo de esquema de parentesco clânico apresentado por Xavier Ruedas (2013:
227)............................................................................................................................................50
Tabela 1: Os pretendentes das mulheres pertencentes aos clãs...............................................41
Tabela 2: abaixo, ‘mostra o sistema da geração clânica’............................................................46
Foto 3: Ino Tamashavo...............................................................................................................53
Foto 4: Satã Sheta.......................................................................................................................2
Foto 5: Sata Mashe.....................................................................................................................54
Foto 6: Tamasai...........................................................................................................................55
Foto 7: Koron Meto.....................................................................................................................55
Foto 8: Iskõ Tama.......................................................................................................................56
Foto 9: Varin Vãti........................................................................................................................57
Foto 10: Shanen Tome ................................................................................................................58
Foto 11: Artefados expostos na Exposição “O caminho da miçanga”, Museu do Índio , FUNAI-
RJ, 2015.....................................................................................................................................69
Tabela 3: Adornos tradicionais e materiais usados para a sua confecção................................70
Foto 12: Maiti (coroa masculina; hoje é usada por ambos os sexos, tem grafismos próprios
para adornos)................................................................................................................... ........72
Foto 13: Maiti (coroa masculina; hoje é usada por ambos os sexos, tem grafismos próprios
para adornos)...........................................................................................................................72
Foto 14: Papiti (pingente de coroa feito de aruá; nas pontas, dentes molares de macaco)....73
Foto 15: Tewea (gargantilha de miçangas de varias voltas e amarrada nas pontas; usada por
ambos os sexos)........................................................................................................................73
Foto 16: Paoti (bandoleira de miçangas, de cor vermelha a masculina, amarela a feminina)..74
Foto 17: Poyã-kiri oshe (braçadeira de PVC, modelo tradicional).............................................74
Foto 18: Mevi-oshe (pulseira feminina em PVC)........................................................................75
Foto 19: Txiviti õpia (cinto feminino com varias voltas de miçangas)........................................75
Foto 20: Txiwiti mashken ikitaya (cinto feminino de miçangas).............................................76
Foto 21: Vatxi (saia feita de crochê)...........................................................................................76
Foto 22: Raneshti (jarreteira de miçangas com varias voltas)....................................................77
Foto 23:Tae-kiri-oshe (tornozeleira de tucum)..........................................................................77
Foto 24: Tae-kiri-oshe (tornozeleira de algodão com grafismo sheta aka ‘imitando dente’ e one
aka ‘imitando movimento’)........................................................................................................78
Foto 25: Tae-kiri-oshe (tornozeleira de algodão com grafismo sheta aka ‘imitando dente’ e one
aka ‘imitando movimento’)........................................................................................................78
Foto 26: Maiti (coroa com três pingentes; nas pontas, dentes molares de macaco prego)......79
Foto 27: Maiti (coroa de PVC sem pingentes)............................................................................79
Foto 28: Papiti (pingente nas pontas com dentes de molares de macaco prego).....................80
Foto 29: Tewea (gargantilha masculina de varias voltas, mas não tanto quanto a feminina)....80
Foto 30: Paoti (bandoleira masculina amarrada em forma de cruz nas costas).........................81
Foto 31: Paoti (bandoleira de PVC).............................................................................................81
Foto 32: Poyã-kiri-oshe (braçadeira de miçangas)......................................................................82
Foto 33: Mevin-oshe (pulseira de PVC).......................................................................................82
Foto 34: Txiwiti (cinto de miçangas pretas e brancas)................................................................83
Foto 35: Txiwiti (cinto de PVC)....................................................................................................83
Foto 36: Shãpati (tanga masculina).............................................................................................84
Foto 37: Raneshti (jarreteira de PVC)..........................................................................................84
Foto 37: Tae-kiri-oshe (tornozeleira de PVC)...............................................................................95
Foto 38: Coleção da autora de colares masculinos (PVC, miçangas, disco vinil).........................85
Foto 39: Da esquerda para direita o primeiro colar feito de lascas de coco de tucum, colar de
osso e colar de dentes de porcão e de macacos.......................................................................85
Foto 40: Seke tewea (colares masculinos de uma volta com cores alternadas).........................87
Foto 41: Menshte (pulseiras masculinas de uso coditiano)........................................................87
Foto 42: Tewea tetxõka (colares com várias voltas)...................................................................88
Foto 43: Novo isisi-paka keo-naya (aruá enfileirado com cipó)..................................................88
Foto 44: Novo txitxã nanea (aruá dentro de um cesto de tucum)..............................................89
Foto 45: Da esquerda para direita: novo inteiro, txaro-kitaya, tsosa-taya, michpo para o
preparo do branqueamento, osho-taya, ota-taya...............................................................95
Foto 46: Novo inteiro, txaro-kitaya, michpo para preparo do braqueamento, osho-taya, palito
de tucum com agulha ou arame amarrado na ponta, contas furadas e linha de tucum para
enfileirar contas........................................................................................................................96
Foto 47: Novo (aruá inteiro)......................................................................................................97
Foto 48: Txaro-kitaya (lasca de aruá).........................................................................................97
Foto 49: Tsosaya (fazendo contas de aruá)............................................................................. 98
Foto 50: Txitxã ne nanea novo (aruá inteiro em cesto feminino)................................................98
Foto 51: Novo tsosaya, michpo, novo-oshoya (contas de aruá, cinzas e contas de aruá branco) . 99
Foto 52: Novo otama, sheo txiriya, novo otaya (contas de aruá não furadas, palito de pupunha
com arame na ponta, contas de aruá furadas).........................................................................100
Foto 54: Pani maia, novo otaya (novelo de tucum e contas de aruá furadas)........................100
Foto 55: Novo keõ-naya (aruás enfileirados)............................................................................101
Foto 56: Shakia (aruá após o polimento)...........................................................................101
Desenho 1: Homem com conjunto completo de adornos (desenho da
autora)......................................................................................................................................101
Foto 56: Pane-eshe (caroço de tucum)...............................................................................103
Foto 57: Tovoin txaro-kitaya (lascas de tucum)....................................................................103
Foto 58: Pĩtxo eshe (caroços de murumuru).......................................................................104
Foto 59: Pĩtxo tsosaya (contas de murumuru)..........................................................................104
Foto 60: Pĩtxo txaro-taya (lascas de murumuru)................................................................105
Foto 61: Wanin eshe (caroços de pupunha)........................................................................105
Foto 61: Pĩtxo eshe (caroços de murumuru)........................................................................106
Foto 63: Da esquerda para direita: caroços de tucum inteiro, contas prontas para serem
enfileiradas. linha de tucum para enfileirar as contas, contas já enfileiradas e já no formado de
colar..................................................................................................................................106
Foto 64: Pane txaro-ka (fazendo lascas de caroço de tucum)...................................................107
Foto 65: Pane eshe txaro-kita shasho matxi (fazendo lascas de caroço de tucum em cima da
pedra)........................................................................................................................................107
Foto 66: Tsosa-taya (contas cortadas)......................................................................................108
Foto 67: Ota-taya (contas furadas)...........................................................................................108
Foto 68: Pane ota (contas sendo furadas).................................................................................109
Foto 69: Pane keõ-naya (contas de tucum enfileiradas)...........................................................109
Foto 70: Shakiya (feito o polimento).........................................................................................110
Foto 71:Da esquerda para direita: Echta sem casca, txaro-taya, tsosa-taya e já com furos....111
Foto 72: Echta txaro-ka (echta em lascas)................................................................................111
Foto 73: Tsosa-taya (echta em contas).....................................................................................112
Foto 74: Echta ota-ya (contas de echta furadas)......................................................................112
Foto 75: Contas de echta enfileiradas......................................................................................113
Foto 76: Shakiya (feito o polimento).........................................................................................113
Foto 77: Shata wesha (raspando o plástico).............................................................................115
Foto 78: Shata shatea (cortando o plástico em contas)............................................................115
Foto 79: Shata ota (furando as contas de plástico)...................................................................116
Foto 80: Shata tsista-ka ou txishoa (cortando o biquinho criado com furo de agulha)............116
Foto 81: Shata tsista-ka ou txishoa (cortando o biquinho criado com furo de agulha)............117
Foto 82: Shata otaya (contas furadas prontas para serem enfileiradas)..................................117
Foto 83: Shata keõ-naya (contas enfileiradas)..........................................................................118
Foto 84: Shata shakia (contas enfileiradas sendo polidas).......................................................118
Foto 85: Toati-rasĩ (peneira).....................................................................................................120
Foto 86: Txitxã (cesto de folha nova de tucum)........................................................................120
Foto 87: Txitã-rasin (cestos de folhas de tucum de vários tamanhos)......................................121
Foto 88: Wekoti e pichin (abanador e esteira feitos de folha nova de palmeira).....................121
Foto 89: Varin Vãti fazendo esteira com grafismo one-ka........................................................122
Foto 90: Fibras de tucum e três novelos de tucum...................................................................122
Foto 91: Rede de tucum............................................................................................................123
Foto 92: Saia feminino feito de crochê (kene sheta aka ‘grafismo imitação de dente’)...........124
Foto 93: Saia em processo.........................................................................................................124
Foto 94: Tornozeleira unissex...................................................................................................125
Foto 95: Tornozeleira unissex com grafismos ‘formato de dentes’ e ‘calango’........................125
Foto 96: Wachmen resisi teriska (fiando algodão)...................................................................126
Foto 97: Resisi pani (rede de algodão).....................................................................................126
Foto 98: Resisi shoko, tirik-kitaya (novelos e linha de algodão enrolada no fuso)..................127
Foto 99: Mapo yoa-aka (prepando as panelas de barro).........................................................128
Foto 100: Recepção pelo diretor do Museu do Índio, José Carlos Levinho (13/09/ 2011).......129
Foto 101: Viagem de pesquisa de campo em 2016..................................................................136
Foto 102: Viagem de pesquisa de campo no rio Curuçá, 2016..............................................136
LISTAS DE SIGLAS
2.1 A região.................................................................................................................................31
2.3 Os “Marubo”.........................................................................................................................39
Capítulo 3: OS ARTEFATOS...................................................................................................59
3.2 Tradição.................................................................................................................................62
3.3 Inovação................................................................................................................................64
Considerações Finais................................................................................................................133
Capítulo 1
O título deste trabalho, Nokẽ mevi revõsho shovima awe, é uma das expressões que
escutei várias vezes das mulheres quando comentavam sobre seu trabalho manual1:
Uma tradução para o português poderia ser a seguinte: ‘O que é transformado pela
ponta das nossas mãos’, embora o verbo desta frase signifique, entre outras coisas, ‘criar’ e
‘fazer existir’.
1
O leitor precisa saber que há diferença entre os sentidos de duas frases. Mevῖ shovima awe significa ‘trabalho
das mãos’, como o trabalho da roça, a construção da maloca, a fabricação da canoa, capinar ao redor da casa,
todas tarefas masculina. Mevi revõsho shovima awe significa ‘trabalho das pontas das mãos’, como, para os
homens, arco e flechas, cestaria, pentes, chapéus de penas e, para mulheres, os cestos feitos de tucum, peneiras,
abanadores, esteiras, saias de algodão, redes de tucum, redes de algodão e indumentárias ou adornos.
16
Outra frase que poderia servir de título seria Nokẽ mevĩsho shovia awe.
Se tomarmos cada palavra desta frase, chegamos a uma aproximação: nukẽ (pronome
pessoal) é uma marca de primeira pessoa plural, ‘nós’ ou ‘nosso’; mevĩ-sho, palavra com dois
morfemas, ‘mão-movimento’, ou seja, fazer/trabalhar com as mãos em movimento;
surgir/começar, surgimento/começo; awe, tudo aquilo que alguém faz e lhe pertence; sho
(sufixo genitivo); shovi-a (verbo transitivo), criar, fabricar, produzir 2.
O problema está na tradução da frase inteira, onde se conectam as palavras. Fazer é
saber, saber fazer as coisas, conhecimento que faz com que as coisas sejam feitas. Fazer é
com as mãos, é o saber das mãos. É um saber-fazer total, incorporado, para cada pessoa que
sabe-faz. É um saber-fazer que ‘pertence’ a quem sabe-faz, assim como as coisas que passam
a existir pelo seu trabalho. Das mãos o saber entra na pessoa, é interiorizado e é exteriorizado.
E o saber pela escrita, escrevendo, escrito, que é o meu caso? A mesma frase se aplicaria
quase naturalmente, já que escrever passa pelas mãos, ou, melhor, é conhecimento que a mão
faz existir, materializa, conhecimento que se move sempre de fora para dentro e vice-versa, e
que faz crescer a pessoa.
Para entender um pouco melhor este ‘saber fazer’, costumo lembrar o que ouvi
muitas vezes do segundo irmão mais velho da minha mãe – Ivinipapa, pai de Ivini, conhecido
como Alfredo ou Alfredão. Perguntou-me, uma vez: “O que o médico faz para ele ter o seu
conhecimento?”. Respondi: “No estudo ele busca determinadas situações sobre as quais ele
quer aprender.” Meu tio comentou: “Enquanto faço uma maloca ou um cesto, eu tenho todo o
conhecimento que está na minha cabeça, não estou fazendo somente uma maloca ou um cesto;
cada contexto, cada objeto, é um saber total, não é somente fazer uma coisa e deixá-la
pronta”.
Isso é importante para compreender o que vou dizer. Produzir com as mãos e é um
conhecimento total. O leitor verá que escolhi traduções, traduções atalho, que sempre deixam
um amargo na boca: ‘trabalho manual’, ‘artesanato’, ‘artesãs’, ‘artesão’. Daqui em diante,
2
Meu avô, João Tuxaua, dizia: “ẽa shovima yora”, ‘eu fiz gente’, já que ele se definia como responsável das
‘novas gerações’, através da fertilização xamânica de mulheres que não podiam mais ter filhos por ter sido
vítimas também de ações ou eventos xamânicos. João Tuxaua se dizia responsável pela ‘criação’ de um povo,
que seria denominado de ‘Marubo’. Voltarei a esses momentos mais adiante, neste mesmo capítulo.
17
cada uma destas palavras em português deve ser pensada como tendo atrás dela tudo o que
tentei explicar anteriormente.
As mulheres dizem “nokẽ mevi revõsho shovima awe” com um tom de satisfação
diante de suas próprias ações e feitos. Os bens que manufaturam são a base sobre a qual se
eleva a sua autoestima, como prova do seu valor e de seu conhecimento.
Para as mulheres, o que se transfoma nas pontas das mãos são cestas de folhas novas
de tucum (txitxã), abanadores (wekoti), peneiras (toati), saias (vatxi) e pintura corporal (kene).
Cada um destes ‘objetos’ tem um grafismo específico, chamado de kene, mesmo nome da
pintura corporal. Não se produzem estas coisas à toa, apenas para fins utilitários, mas para
conseguir realizar o desenho e conhecer a história dos objetos. Há uma grandeza em saber
transformar algo em padrões de desenhos.
com isso; gostava de contar histórias, estando ali no meio de adultos, e de ouvir o que as
freiras e os padres contavam.
Todas as vezes que eu voltava para a aldeia, nas férias, tinha que contar aos meus
pais o que tinha feito. Até uma música que ouvida na cidade e cantarolada por mim sem
querer, tomando banho, meu pai pedia para eu cantar na frente de todo mundo. Sentia muita
vergonha. Tudo o que eu aprendia, meus pais cobravam e queriam que eu expusesse na frente
da comunidade. Ele queria que eu me tornasse uma liderança, porque não teve filho homem.
Como eu era quem estava aprendendo a vida de duas sociedades, seria uma porta-voz.
Comecei a sentir que tanto na minha família, como na sociedade nawa, não poderia
viver normalmente. Ficava me perguntando o tempo todo quem eu era (porque me sentia
estrangeira na minha própria família): “e aí, vocês gostam de mim ou me fizeram só para eu
ter essa responsabilidade? Por que as minhas irmãs não podem ter essa mesma
responsabilidade?”. Depois, sai do convento e terminei o ensino médio em Manaus. Dei um
tempo sozinha, sem ter contato com ninguém da aldeia, por dois anos. Neste período, fiz
curso de auxiliar de administração, trabalhei na empresa Panasonic, da Zona Franca. Sentia-
me livre de cobranças, não precisava explicar quem eu era.
Dei-me conta que deveria voltar. Meu pai não precisou me chamar, eu mesma senti a
necessidade de retomar o contato com a minha família. Voltaram as cobranças: “O que você
vai fazer, vai voltar, não vai voltar?”, Acabei voltando, aceitando uma proposta para trabalhar
na UNIVAJA, uma ONG, a União dos Povos Indígenas do Vale do Javari. Após mais uma
fuga para Manaus, voltei de novo para trabalhar na FUNASA, no estoque de remédios, depois
como auxiliar de dentista. Não via nada que eu pudesse fazer além disso.
Soube de um curso de Antropologia Aplicada em Manaus, organizado pelo CIMI
(Conselho Indigenista Missionário). Não consegui fazer o curso; o coordenador, que tinha que
dar uma declaração, falou um monte de coisas absurdas para minha família, disse que eu tinha
fugido e que estava indo “atrás de macho”, coisas assim.
Acabei ficando doente, três meses no hospital com tuberculose. Não sabia o que
tinha, nunca tinha ouvido falar. Nesse tempo, meus dois irmãos morreram de hepatite delta
(uma menina de 14 anos e um menino de 10 anos). Senti naquele momento que tinha que
ajudar meus pais, mergulhados numa crise profunda. Voltei para Manaus para trabalhar de
novo na Panasonic, mas logo pedi demissão e voltei para Atalaia do Norte. Comprei casa na
cidade e acolhi meus pais que estavam sem condições emocionais e mesmo materiais de
sobrevivência e sem saber viver na cidade. Convivi com eles em depressão, mãe e pai dos
19
meus próprios pais. Chegaram quatro crianças, meus sobrinhos, trazidos por minha mãe para
que estudassem na cidade, apesar de ter escola na aldeia. A responsabilidade foi aumentando.
Comecei a trabalhar com os Maristas que davam palestras nas escolas. Em 2006, vim
para o Rio de Janeiro, onde os Maristas têm uma escola, na Barra da Tijuca. Em 2008, entrei
na Universidade Federal do Amazonas, campus de Benjamin Constant.
Escolhi estudar Antropologia. Minha mãe teve a terceira recaída de câncer, cuidei
dela mesmo fazendo curso e consegui acabar. Naquela época, conheci as mulheres marubo da
aldeia Boa Vista, do Rio Ituí. Elas trabalham com artesanato e se queixavam por ninguém
querer mais aprender essas artes. Eu trabalhava na FUNAI de manhã e de tarde estudava. Um
dia cheguei em casa à noite e as mulheres estavam lá, querendo falar comigo.
Pediram a minha ajuda como “antropóloga”, não só materialmente: “Queremos a
história do nosso artesanato no papel; como somos as autoras das nossas falas, nós queremos
que você conte do jeito que a gente contar para você”. Até então, eu estava querendo
pesquisar os antropólogos, como é que os antropólogos brancos atuam nas aldeias, conversar
com eles e escrever sobre eles. Já que os antropólogos estudam indígenas, eu queria estudar os
antropólogos. Esse pedido das mulheres foi mais forte. Tentei fugir porque essa cobrança era
tão forte quanto as cobranças da minha família e as conversas eram sempre bem emotivas: “já
estamos morrendo, já estamos acabando e você não pode fugir, seu avô foi responsável pelo
povo, você tem que ter essa responsabilidade também”. Os Marubo mais velhos acham que a
pessoa que sai da aldeia, quando aprende com outra sociedade, tem obrigação de retornar com
aquilo que aprendeu. Não tem como fugir. Minha mãe faleceu em maio de 2015, disseram:
“ela morreu, mas você não vai desistir, você está viva! O estudo não é só para você, como
Branco faz”.
Agora, estou reaprendendo e aprendendo a viver com a ausência da minha mãe.
Quase desisti do mestrado, mas antes de morrer minha mãe segurou minha mão e disse:
“Quando você for para qualquer lugar, é como se eu fosse você, e você fosse eu. Você está
fazendo algo pelo seu povo. Estou morrendo, mas você não vai desistir por isso. Ficarei muito
triste se você não for. Quero que você mostre para o seu pai que você não precisou ser homem
para ser liderança.” Eu vim e é por ela que estou aqui.
É comum as mulheres indígenas não receberem apoio das lideranças das aldeias,
quando elas procuraram estudar na cidade por seu próprio interesse. Podem receber apoio de
seus parentes próximos, embora eles possam ser os primeiros a não aprovar uma decisão
dessa natureza, pois concebem as mulheres como não sendo capazes e como sendo fracas para
resistir ao envolvimento com homens não indígenas. Muitas fases dos meus estudos não
20
foram fáceis. Nunca tive apoio dos meus parentes ou do meu povo. Quase sempre acharam
que eu não teria a mesma competência dos homens. Meu povo costuma falar que as mulheres
só pensam em namorar, são fáceis para os homens nawa e “se estragam rápidas”. Assim, não
se pode confiar muito no seu aprendizado escolar, já que logo ficam grávidas.
De qualquer maneira, meus pais me salvaram nesta busca incessante de estudar; eles
mesmos diziam que, ainda que não gostassem do longo caminho de estudo que escolhi, o que
importava era me ver feliz, acreditando que algum dia seria alguma coisa na vida. A trajetória
dos meus estudos foi minha teimosia em focar meus objetivos, “mesmo sendo estragada”.
Alguns dos meus parentes me acusavam de não gostar dos meus próprios parentes e essas
acusações ocorriam por eu não me contentar só de querer aprender a falar, ler e escrever.
Porém, diante dessas criticas depreciativas da estudante mulher indigena, nas minhas idas e
vindas também comecei a ouvir pressões e cobranças, já que sempre me diziam: “você não é
nawa-shavo (branco-feminino), olhe, nunca se esqueça da importância dos seus avôs, eles são
yora kuῖ (gente de verdade)”. Muitas vezes os meus interlocutores faziam questão de me
contar como eram meus avôs e suas vidas no meio dos Marubo. Era para eu valorizar meu avô
João Tuxaua, por ele ter sido importante, pois ele tinha o dom especial de ajudar a sua gente
por meio dos seus peshoti-akaya, seus ‘guias’, cujas orientações ele seguia fielmente.
Compreendo as cobranças dos meus interlocutores; meu avô fez o que fez graças ao dom que
recebeu dos yovevo (guias dos xamãs) a favor de seu povo. Agora é minha vez de fazer algo
para o meu povo, através dos conhecimentos adquiridos dos nawa.
Um grupo de mulheres marubo oriundas das Aldeias Boa Vista, Maronal, Nazaré e
São Sebastião, amigas da minha mãe, foram as protagonistas da minha pesquisa. A maneira
de elas entenderem o trabalho dos pesquisadores despertou o desejo de colaborarem com uma
pesquisa acadêmica para transmitir seus conhecimentos acerca do que se faz com as mãos.
Mulheres de outras aldeias manifestaram interesse em participar da pesquisa.
Ao expressarem o descontentamento sobre como os funcionários tratam os pacientes
na Casa de Saúde Indígena-CASAI, quando são removidos para o municipio de Atalaia do
Norte-AM, onde permanecem para fazer tratamento de determinadas enfermidades, surgiu a
ideia de me pedir para que falasse do “trabalho manual e da produção nas pontas das mãos”
(mevisho shovima awee e mevi revõsho shovima awe), para que seus filhos e netos pudessem
21
ter acesso, mais tarde, ao que foi contado por elas. Condividem com os mais velhos o medo
de que instituições como a FUNAI e a SESAI logrem em fazer desaparecer seus costumes e
tradições: “china keyoã”, ‘diluem o pensamento’.
Há dois mundos relacionados ao ‘trabalho manual’, chamado de ‘artesanato’ pelos
nawa. Como diz Lagrou (2013: 11):
Fazer ‘artesanato’ faz parte do que é ser uma mulher mevi yosika ou mevi revo yosika,
‘que tem saber nas mãos ou tem saber nas pontas das mãos’ e conhece a história daquilo que é
produzido com as mãos ou nas pontas destas. Além disso, depois da morte, este trabalho faz
com que uma mulher (ou um homem) seja preparada para voltar para o lugar de origem. Na
sociedade marubo, o espírito se prepara - espiritual e fisicamente - desde o nascimento, então
tudo o que fazemos tem a ver com preparar a alma para que não se perca neste mundo. Não
posso ser sovina com minha irmã, porque se eu negar uma fruta (um mamão, por exemplo) ou
qualquer outra coisa, quando eu morrer, o espírito do mamão vai fazer minha alma ter uma
morte eterna. Vivemos neste mundo uma realidade de mundo de morte; depois da morte do
corpo vivemos na outra vida eternamente voltando para a origem de onde viemos. Cada clã
tem um local de origem, ao qual os seus membros voltam, numa viagem, depois da morte. Há
vários caminhos de retorno dos clãs. Um deles viaja pela água, outro pelo ar (por cima das
árvores, caminhando). Temos uma cosmologia que é transmitida na educação. Quando
furamos um aruá ou um coquinho (para fazer um colar), que é a primeira coisa que
aprendemos quando pequenos, nossa mãe fala: “olha, fure direitinho e não deixe espalhar, se
não o pássaro vem e come”. Não é um pássaro visível, não é um espírito, é a forma de ensinar
às crianças como ter cuidado com suas coisas, já que se não cuidar, o que ela estiver fazendo
não rende. Para render, você tem que guardar tudo direito no recipiente, ou seja, tendo
orientação e sabendo disso, nada deixará espalhado quando levantar.
Assim, a criança aprende a ser organizada, responsável com seu trabalho, com forma
perfeita. Esse ensinamento está ligado ao trabalho manual, à arte e ao preparo da comida. As
mulheres ensinam como educar os filhos e é por isso que elas têm essa ligação forte com o
22
‘trabalho manual’ ou artesanato, que é onde encontram a fonte do respeito como mulheres.
Aprender histórias de trabalho manual é ter sabedoria nas mãos e na alma, para a pessoa se
tornar preparada e equilibrada. A importância do ‘artesanato’, quase sempre considerado uma
espécie de ‘arte menor’ pelos nawa, nunca deve ser menosprezada.
As mulheres marubo são tímidas, não têm momento de voz. As mais velhas até que
algumas vezes têm espaço. A tradição sempre dá a voz ao homem. O homem tem que estar na
reunião, tem que falar em pé, e as mais velhas tentam ter voz, mas a mulher mais nova não
tem esse momento por ter medo de poder ser objeto de comentários negativos pelos txai-rasῖ -
filhos do irmão da mãe e filhos da irmã do pai. Quando eu trouxe as mulheres marubo para
participar da Oficina de Miçangas no Museu do Índio do Rio de Janeiro, o irmão mais velho
da minha mãe disse: “Para quê que você levou as mulheres? Elas não sabem de nada”. As
mulheres marubo, contudo, querem falar de seus conhecimentos. Como minha mãe dizia,
cada um tem uma forma de contar história, não há uma história verdadeira, a verdade é
sempre “a história que minha mãe me contou”, “a história que minha avó me contou”. Os
homens não são donos das ‘verdadeiras’ histórias.
A partir das explicações que ouvia das mulheres em cada encontro, de como
concretizavam seus pedidos, comecei a elaborar um projeto de pesquisa, ainda na graduação.
Confesso que fiquei temerosa de enfrentar um assunto e um contexto tão complexos. Com a
inquietação causada pelos pedidos das mulheres marubo, procurei meu professor Rafael
Pessôa São Paio, para perguntar o que achava da ideia. Ele mais do que depressa me
respondeu entusiasmado: é uma ideia ótima, eu farei questão de ser seu orientador. Ao longo
do curso, procurei compartilhar meus pensamentos com as colegas com quem mais convivia.
As cobranças das mulheres marubo foram aumentando para que visibilizasse suas falas na
universidade. Sem saber por onde iniciar, um dia a professora Gilse Eliza Rodrigues me
indicou uma oportunidade para me aproximar de outras mulheres indígenas, através do
Projeto de Extensão da universidade: o projeto “Diálogo Feminino”. Essa experiência me
levou a ter certeza de que eu tinha que falar sobre o que as Marubo estavam propondo: o
‘trabalho manual’ (mevῖ shovia awe), que está em suas mãos.
Nos encontros realizados durante o projeto, eu ouvia e via os depoimentos queixosos
e sensíveis das mulheres, comentando sobre seus filhos estar desvalorizando sua cultura, pois
o estudo na cidade não incentivava e nem valorizava suas culturas.
Sensibilizada com a questão, resolvi atender aos pedidos das mulheres, apesar de sentir o peso
de uma imensa responsabilidade. Por estar ciente do tamanho da confiança que estas mulheres
estavam depositando em mim e sabendo como eu serei cobrada constantemente, por ter
23
Foto 2: Encontros do Projeto de Extensão ' Diálogo Feminino' com mulheres indígenas do Vale
do Javari na cidade do Atalaia do Norte-AM, 2008 (foto de Lenice Tikuna)
Foto 2: Meus dois professores (Gilse e Rafael) apoiadores do Projeto de extensão 'Diálogo
feminino' na CASAI de Atalaia do Norte (foto de Nelly B. D. Dollis)
3
A Coordenação Regional do Juruá (AM) foi restruturado como Coordenação Regional do Vale do Javari,
(Decreto n.º 7.778 de 27 de julho de 2012), para atender a reivindicação das lideranças que queriam a criação de
uma coordenação regional que pudesse atender somente as demandas do Vale do Javari. Esta é a segunda maior
terra indígena do país, com uma extensão de 8,5 milhões de quilômetros quadrados e com uma população
estimada em aproximadamente 5 mil pessoas.
25
de Atalaia do Norte, junto com minha mãe Tamã Sheta (Nazaré), antes dela falecer. Assim,
minha casa foi escolhida como sede provisória da futura associação. Mesmo tendo
permanecido distante e em silêncio, com a morte da minha mãe, ao fazer trabalho de campo,
em fevereiro 2016, elas pediram que não parasse o que havia começado, já que elas sempre
estariam comigo.
Esta dissertação tem a finalidade de falar de tudo àquilo que minhas interlocutoras e
meus interlocutores tentaram transmitir sobre a importância do trabalho manual e do trabalho
feito com as pontas das mãos (mevi shovima awe e mevi revõsho shovia awe) marubo,
valorizando o conhecimento tradicional para novas gerações. Filhos e netos estão no processo
de aprendizagem do mundo ocidental e acabam não priorizando ou deixando os conteúdos e
os modos de ensinamento que levam a incorporar a cultura de seus antepassados.
Para os mais velhos, deixar de valorizar os detalhes das tradições, ou seja, deixar de
respeitar os interditos associados à cultura é deixar de seguir o “verdadeiro” jeito de existir. É
frequente ouvir nas reuniões e conversas marubo a seguinte frase dirigida aos jovens: nõ anõ
eseya tavama, nokẽ ese keyosho nõ shoko rivi, “se deixarmos de praticar aquilo que é nosso,
vivemos sem passado”. Na maioria das vezes, ouvimos a frase em português: “estamos
perdendo a cultura”.
Diante de todo esse questionamento, as mulheres me propuseram trazer a descrição e
as explicações dos seus costumes, tais como relatadas pelos mais velhos e pelas protagonistas,
escritas por mim, pois, por eu se yora shavo (mulher marubo), parente e falante da língua,
teria facilidade para compreender o que elas (mulheres marubo) falam. Os nawa-rasῖ não
podem ter a mesma perspectiva com relação a relatos e narrativas contados pelas mulheres
marubo: anõ pakῖ yoã tῖpa,‘não contariam de modo adequado’ (como uma roupa que veste
bem ou como um homem que combina com sua esposa).
Os nawa-rasῖ não têm a mesma vivência; nawã meki akῖ noke nõ yoã natõ akatῖpa,
‘os nawa não fariam a mesma reflexão correta como nós fazemos’. Isso fará uma grande
diferença para filhos e netos, hoje estudantes na escola, no momento em que poderão
compreender nokẽ na ese, ‘o contexto que faz parte da gente’ (cultura?), no futuro, ao terem
acesso aos resultados desta pesquisa.
Em termos gerais, meus interlocutores apresentam seus relatos enfatizando que eles
são ditos a partir do seu verdadeiro ponto de vista, para que a sociedade não indígena entenda
26
4
Wicha significa traçar/traçado, riscar/riscado. É um termo usado, por exemplo, para se referir ao traçar/traçado
dos grafismos da pintura corporal.
27
De tudo isso deriva o meu modo de apresentar o trabalho manual das mulheres
marubo, numa conjugação de perspectivas tradicionais com a maneira pela qual as
protagonistas entendem a pesquisa realizada por antropólogos. Procurei ressaltar o dilema
vivenciado por elas no cotidiano das aldeias, particularmente, quanto às mudanças de práticas
e de concepções a respeito de um tema tão íntimo quanto difuso dentro do próprio povo
marubo. Daí surgiu o convite e a confiança para que fosse realizada uma etnografia por uma
aĩnvo marubo.
Nesse sentido, fica evidente o afeto que atravessa a prática e os ensinamentos
envolvidos no trabalho manual marubo, que faz parte do cotidiano das aĩvo-rasĩ shavo
yomemavo-rasĩ (mulheres mais idosas), descritos pelas histórias de vida, onde aparecem as
memórias dos seus antepassados, ao mesmo tempo em que buscam uma desconstrução de
certas visões diante da atual realidade, trazida pela sociedade nawa, implicando num
redimensionamento intelectual. As novas gerações constroem outras perspectivas da cultura
material, a partir da uma experiência de convívio com a sociedade não indígena e até mesmo
com as aĩvo-rasĩ kanivena-rasĩ (mulheres mais jovens) de outras etnias.
A contribuição da minha dissertação vem de minha aceitação das propostas das
mulheres marubo, para serem autoras desta pesquisa. A razão foi dada por elas, uma vez que
não têm total liberdade para se expressarem em público, fazendo com que seu valor
(feminino) fique em segundo plano, o que se reflete nas etnografias feitas por pesquisadores
nawa. Qualquer exposição perante os txai-rasῖ (os filhos dos irmãos da mãe e os filhos das
irmãs do pai), segundo elas, é o risco dos txai-rasῖ ficarem de olho em qualquer ato falho que
elas possam cometer, gerando chacotas nas brincadeiras das festas (txai-võ anõ waka anea,
‘seu ato servirá para dar nomes aos igarapés’).
Vale a pena dar um exemplo. Imaginemos que uma jovem mulher tenha a coragem
de falar publicamente diante de seus txai-rasῖ anunciando que ela irá para a cidade de Atalaia
estudar, argumentando retoricamente, em seu discurso, que ela será diferente dos homens, que
vão para a cidade estudar e acabam fazendo tudo menos estudar (casam, por exemplo). A
jovem irá para a cidade, mas, ao invés de estudar, acaba casando. A chacota a espera na
primeira festa da qual ela participará. Numa pantomima de caça, o txai falará: “eu fui caçar
queixada no igarapé ‘disse que ia estudar, mas casou’”. As mulheres morrem de medo dessas
chacotas.
Aῖvorasῖ rake veyasma, yoini anipa rake china kima veya yavoma, pasnã
chtavo venẽ kasma ashõki yoῖni yama mashoῖ, ato weta shoῖ, ato wai ashoῖ,
askakῖ kashma ashõki yoma nai ewe mesteã ivoro vene ato kashama
ashõrivi.
‘As mulheres não enfrentam o perigo, são vistas como não capazes de agir
sem medo diante dos animais ferozes, são frágeis e dependentes dos homens
na caça, na pesca, na roça, tudo o que exige esforço maior é dos homens, que
precisam facilitar para elas’.
narrativa ao longo de gerações; o que importa não é a diferença entre as histórias das
diferentes famílias/clãs, o importante da história é a consciência de fazer parte da família/clã
do qual faço parte”. Em outras palavras, não existe uma narrativa ou uma versão maior e
melhor de uma narrativa. Cada contador produz uma única narrativa, herdada e elaborada, que
desaparece com ele, com o desaparecimento do narrador. Não consegui realizar registros
audiovisuais consistentes e completos, infelizmente, por causa da minha própria timidez, das
condições da pesquisa, de minha identidade como pesquisadora marubo, entre outros fatores
condicionantes.
Entendo que a contribuição da minha dissertação vem de um esforço para explicar a
importância do trabalho manual feminino, que engloba conhecimentos complexos materiais e
imateriais, trabalho cotidiano que precisa registrar para entender a sociedade marubo.
Ouvindo os relatos das minhas protagonistas, eu pude constatar que cada contexto narrado
traz explicações sobre a existência de tudo aquilo que faz parte da cultura. Sem eu saber, os
conhecimentos marubo fizeram e fazem parte da minha vida, desde que comecei a ouvir meus
pais que queriam que eu tivesse alguma noção das lembranças de relatos da memoria de seus
próprios pais, mas nunca havia imaginado que um dia eu ia ajudar a descrever parte disso em
nawã wicha (‘nos riscos dos nawa’), o que me levou a pensar nas dificuldades da tradução e à
preocupação por não saber distinguir e organizar os diversos assuntos trazidos pelas mulheres.
Nos relatos que contextualizam o trabalho manual, meus protagonistas quase sempre
começavam realçando a importância do clã na vida da pessoa que procura obter os
conhecimentos pertinentes (materiais e imateriais), para depois passar ao processo de
aprendizado por parte das crianças desses conhecimentos, nos quais estão em primeiro plano
as histórias das relações de parentesco clânico, como pressuposto para entender a perfeição
dos padrões e as discussões atuais na interface entre tradição e inovação.
As mulheres com as quais convivi diziam que o conhecimento é importante por ser
herdado dos clãs principais, sem maiores explicações. Logo comecei a procurar saber sobre
esses clãs, que elas afirmavam ter existido, e sobre os vene-pavo (clãs maiores) e os poto-pavo
(clãs menores). Formulei a pergunta: “o que e como são, hoje, estes clãs?”. Era evidente a
centralidade dos clãs para os casamentos, o parentesco, os comportamentos, os modos de
relatar histórias e os trabalhos ‘com as (pontas das) mãos’. Ao trazer para a etnologia e a
etnografia sobre os Marubo uma análise dos conhecimentos relativos ao trabalho manual, esta
dissertação traz junto os argumentos das mulheres que recolocam questões acerca do
parentesco e dos clãs. Afinal, nenhum relato, mesmo o mais aparentemente simples, ocorria
sem incluir, desde o começo, as referências clânicas.
30
Quando uma mulher marubo me dizia que a razão de ser do meu trabalho era mostrar
“o que realmente somos”, ela queria dizer “o que sou por pertencer a um determinado clã,
lugar de origem do meu conhecimento”. Nesta dissertação apenas arranho o tema dos clãs
marubo, no segundo capítulo.5
Na minha leitura dos autores que pesquisaram os Marubo, averiguei que todos
oferecem descrições e análises da estrutura de parentesco e dos clãs, para entender a
organização social marubo. Tudo isso me trouxe inquietações, a vontade de aprofundar a
perspectiva dos Marubo, como protagonistas, acerca da importância dos clãs e das relações
(de parentesco) tecidas através deles. É exatamente esse tema que precisa ser desenvolvido e
aprofundado, o que pretendo fazer no doutorado.
5
Outros temas entram, hoje, nas discussões entre as mulheres, como, sobretudo, a mistura de ideias de outros
povos, que, segundo elas, traz problemas mentais e físicos, bem como o impacto cultural (o distanciamento dos
mais jovens da “cultura”).
31
Capítulo 2
2.1 A região
tributário do roe ene waka (rio Javari), era considerado, antigamente, pelos Marubo, como
local proibido para se morar. Segundo os mais velhos, não se podia explorar o Sui Waka, por
ser um rio em que não se podia tomar banho, o que causaria febres. Era chamado de ino-
nawavõ waka, isto é, ‘rio do clã dos jaguares’.
Encontramos mais informações na introdução da tese de Welper (2009:13):
Para enriquecer os dados oferecidos por Welper, relato a seguir uma narrativa mítico-
histórica marubo, contada para mim pelos meus avôs (minha avó paterna Iraci e meu avô
materno, João Tuxaua) e pelos meus pais, de modo a compreender os processos de maea dos
meus antepassados e a origem dos diversos povos que aconteceu em noa tava. O significado
de maea é de um processo-deslocamento do ponto de surgimento noa tava, ‘rio abaixo’, onde
o rio fica grande, Manaus, Rio de Janeiro, entre outras grandes cidades na beira do mar, para
as cabeceiras dos rios, noa revo.
O povo Marubo foi adquirindo sua sabedoria ao longo dessa caminhada, que
atravessou as moradas de diversas gentes-animais, onde descobriram e aprenderam as artes de
se alimentar, de plantar, de colher o que plantam, do xamanismo, entre outras sabedorias que
foram aprimoradas na viagem até a cabeceira dos rios. Contam que, assim, foram
responsáveis por rate-ni-tivo (acordar.assustado-conhecer-fazer existir) outros povos;
conforme suas descobertas, fizeram existir outras espécies de seres.
As narrativas sobre maea falam de deslocamentos no espaço, que continuaram, como
os que aconteceram na década de 1940. Ao longo de toda a trajetória dos Marubo, sempre
houve a divisão de um rio para outros rios. Os mais velhos dizem que, antes da década de
1940, os Marubo habitavam próximos uns aos outros, que cada maloca ou oca era
representada por um cacique (kakaya) importante. O princípio do desmembramento do povo
Marubo ocorreu na época dos seringueiros e quando houve o rapto de quatro mulheres pelo
33
povo Mayoruna. Os Marubo, numa vingança xamânica, amaldiçoaram o rio Curuçá, além de
massacrar os Mayoruna. Os pajés haviam falado que essa maldição provavelmente podia
afetar aquele que frequentasse o rio, de modo que, para evitar a maldição, os Marubo
passaram a frequentar menos as suas margens e mais os seus igarapés. Além disso, houve
desentendimentos e conflitos internos por causa de mulheres, o que levou ao deslocamento
definitivo de alguns Marubo para o rio Ituí. Missionários evangélicos (Novas Tribos)
acompanharam a mudança para o Ituí e lograram converter parte destes Marubo.
Os velhos do Curuça comentam intensamente que os jovens de Ituí daquela época
foram e ficaram afastados de suas origens, e são considerados pessoas sem sabedoria na alma
e mais ainda sem sabedoria nas mãos. Até hoje, os Marubo do Ítui são vistos como tendo
incorporado ou misturado pensamentos dos missionários com conhecimentos marubo.6 Não
são estas apenas acusações ou críticas dos do Curuça direcionadas aos do Ituí; observei
atitudes de vergonha ou silenciamento dos segundos na presença dos primeiros quando se
trata da transmissão de conhecimentos tradicionais.
6
Um exemplo de revisão cultural missionária: para os Marubo é proibido comer carne e em seguida mamão (o
mamão amolece a carne e causa tumores ou inchaços). Uma mulher marubo evangelizada, digamos, diz para
seus filhos que pode comer mamão depois da carne se beber água pensando em Yose (Deus ou Jesus). Já
exixtem traduções de partes do Velho e do Novo Testamento para o Marubo, em diferentes suportes.
34
Quando casei com teu pai e conheci a família dele, que fazia parte dos clãs rane-
nawavo e ni-nawavo, considerados em constante contato com os nawa-rasῖ, eu tive
a oportunidade de ver de perto outro aspecto da vida marubo: as suas mulheres
acordavam mais tarde, tomavam banho em plena luz do dia, se preocupavam
menos com as refeições do dia, produziam confecções sem se preocupar com as
horas do dia. Tudo isso era o contrario da minha vida na maloca dos meus pais,
onde cresci com minha mãe me acordando cedo, quando aparecia a estrela d’alva
ela já me chamava para sentar no chão e esfriar o traseiro, acabar de acordar e
pentear os cabelos. Em poucos minutos, meu pai começava a chamar meus irmãos
e as noras com os nomes mais carinhosos que ele achava, e ela mesma começava a
preparar os alientos. Depois saiamos para tomar banho, quando começava a clarear
o dia; meu pai, os filhos e outros meninos saiam para tomar banho juntos. Assim
que chegavam do banho, faziam a primeira refeição do dia e, enquanto comiam,
meu pai perguntava sobre a terefa de cada um dos homens que viviam na mesma
maloca. Conforme a resposta, meu pai os orientava. Minha mãe fazia o mesmo
com as mulheres, mas ela não era muito de dar ordens, gostava mais de dar
exemplos.
Assim como você, sua avó era filha de rane-nawavo e casou-se, ainda criança, com
meu pai (João Tuxaua), considerado um kakaya muito importante entre os Marubo.
A primeira mulher do meu pai foi a irmã do pai de minha mãe. Portanto, a irmã do
pai da minha mãe ensinou minha mãe sobre as tarefas que são responsabilidades
domesticas e sobre o comportamento adequado para uma mulher de chefe. Por isso
que te digo, as famílisa marubo não são todas iguais; é claro que não tem como
você perceber logo ao chegar numa aldeia, já que quem não tem conhecimento não
entende como somos realmente.
Essa fala da minha mãe aconteceu quando eu mostrei a ela a tese de Welper (2009),
que trata de João Tuxaua. Naquele momento, ela pediu para que eu incluísse nesta minha
7
Em “Chaquira, el inka y los blancos: las cuentas de vidrio en los mitos y en el ritual kaxinawa y ameríndio”,
Lagrou (2003) mostra o sentido das mudanças nos processos de produção como consequência do contato com o
mundo não indígena, o que me lembra o argumento oferecido por Tamã-Sheta.
35
dissertação um pouco do dia a dia vivido por ela, complementando as informações sobre a
chegada dos Marubo à margem do rio Curuçá.
Os do clã tama-ua-vo, antes de morar na aldeia Maronal, viviam todos juntos na
aldeia Kapi-vana-wai e outro clã vivia na aldeia Mãse-matxi. Eram duas aldeias que ficavam
uma na frente da outra, sendo que na aldeia Kapi-vana-wai viviam, além de outros clãs, os
tama-ua-vo com o kakaya Itxã-papa, e na aldeia Mãse-matxi vivia a família do clã ino-nawa-
vo com o kakaya Kẽshõ-papa. Os moradores de Kapi-vana-wai mudaram para a nova aldeia
chamada Shavẽwãi-shovo, enquanto algumas famílias do clã Txona-vo construíram sua nova
aldeia chamada Orõ-Manã. Com a morte da matriarca Isa-pei- Maia, os Tama-ua-vo fizeram
uma nova aldeia chamada Txanã-Matxi no encontro do igarapé Vaῖ-ya com o rio Curuçá. Os
dois irmãos mais novos tama-ua-vo, casados com as mulheres do clã sata-shavovo,
construíram sua nova morada Iskõ-Matxi abaixo do igarapé Voῖ-tekõya, um braço do rio
Curuçá.
Incluo aqui o mapa feito por Welper (2009: 89) para mostrar as localizações citadas
nos relatos anteriores; a autora detalha as andanças dos grupos marubo na época de João
Tuxaua.
Segundo Alfredinho (o filho mais velho de Alfredo com a sua terceira esposa), a
atual aldeia Maronal, em que ele reside, foi construída pelo pai em 1982, com a chegada dos
funcionários da Fundação Nacional do Índio-FUNAI na região, dada a necessidade de erguer
um novo local que facilitasse a entrada dos nawa que iriam trabalhar no meio deles. Assim,
surgiu também uma pista de pouso e foi chamado José Nunes, membro da Missão Novas
Tribos, com a finalidade de alfabetizar os jovens marubo. O desejo de Alfredo, chefe de
Maronal, era de formar uma geração para que, no futuro, a presença dos nawas nas aldeias
não fosse tão necessária, para os filhos, netos e sobrinhos não precisassem viver na cidade
com o que aprenderam com os nawa-rasῖ, minimizando os impactos culturais.
Alfredinho disse no dia 27 de abril de 2016:
Conversando com os mais velhos, eu os escuto falar que nosso povo não é mais o
mesmo: está ficando doente e deprimido (chinã pãchῖ-kavo), era saudável (nami tono-kavo),
as mulheres e os homens eram chinã keska-pavo, mas hoje os filhos estão ficando raquíticos
(chinã keska-mavo), tudo mudou, a educação, a forma de cuidar do corpo, a preocupação que
havia com o ambiente em que vivíamos não é mais a mesma. Não seremos os mesmos; uma
das consequências por permanecer mais do que o tempo necessário em um só lugar é que uma
aldeia habitada por mais tempo atrai energias negativas, as cultivações de plantas ficam sem
vida por causa da terra que está ficando sem nutrientes.
37
Voltemos aos Marubo do rio Curuçá, entre os quais se move esta dissertação.
Apresento, abaixo, o mapa do rio Curuçá, desenhado por mim com a ajuda da minha tia (meia
irmã da minha mãe, uma das protagonistas desta pesquisa) Ino Tamã Shavo (Ilda) e da minha
irmã mais velha Isa Pei Maia (Natividade), enquanto elas contavam para mim sobre a via de
acesso ao rio Curuçá a partir da cidade de Atalaia do Norte, até as aldeias deste rio, sobre os
principais igarapés (tributários) do rio Curuçá, os igarapés denominados na língua, a
distribuição das aldeias nas margens, o número de malocas em cada aldeia, a quantidade de
pessoas que moram em cada maloca e os clãs aos quais as pessoas pertencem. Trata-se de
informações que retomarei na parte que se segue (Os “Marubo”).
Isapei-Maia (comunicação pessoal, 23 de agosto 2016):
Atalaia nawã shava nõ anõ pokeka ivo, nokẽ shenirasῖ ipawatõ iki nokẽ
shavapas noke shoko shokosma, atiãro nawa askakῖ oῖyarivi kai apawavo,
ramaro noke ichnavis voi nawa oῖnõ inã amiska, Sui revõka kãtxiya, rawe
nokẽ shenirasῖ ipawãtõ iki enema, Cruzeiro kiri taẽ võvõ matsawã, txeshẽ
avo askasivi, Atalaia kiri vei, Cruzeiro kiri voi amiska, vevõ motore yamasho
wetsa winakarã matsawã ipawa. Ramaro, noke motore ãtsaka aya, rama
yorashavo rasῖ kopῖmati yawã kavo, askasho pokei enesmavo, vevoro nõ anõ
kẽã westichtase viarivi ipawa. Atalaia namã iwãi kaa oshe westsase ipawa,
winaa tiãro, ramaro yora osha kaya ivoro, revoka ã nokoika oito shavakaiã,
vestika ikiya quatro shavapa quatro yame aka matsawã.
Atalaia é uma cidade nawa que visitamos com frequência, hoje não
somos iguais aos de antigamente, de ficar mais tempo nas nossas
aldeias, não víamos os nawas com tanta frequência como fazemos
hoje, agora até nós estamos sempre por aqui na cidade deles. São os
que moram na cabeceira do rio Curuçá que continam fazendo como
antigamente, deslocando-se para Cruzeiro a pé. Os que moram no rio
Ítui visitam tanto a cidade de Cruzeiro como a cidade de Atalaia do
Norte. Quando não tinham motor de rabeta, iam para a cidade
remando; hoje todos possuem motor, as mulheres tem dinheiro para
sacar na cidade, então eles não descem mais para comprar o que
necessitam como antes. Quando vinham para Atalaia era uma viagem
de um mês, hoje com motor, aquele que faz parada para dormir, leva
oito dias de dormida até a última aldeia, enquanto aquele que viaja dia
a noite faz quatro dias e quatro noites.
Atalaia namã itaῖ nõ vẽvẽã neska, Suῖ oma nisho katxiyavo yora Kanamari,
Sui nakika kãtxiyavo Mayoruna, Kulina e Marubo. Roe enẽ wakã karo
nawarasῖ nõ oῖ võvõa rasῖ katxia, nõ oῖ võvõtika shavapa anero Atalaia,
anosho nõ oῖ võvõka shava wetsaro Benjamin Constant, Tabatinga kopi mati
tsekai nõ anõ shokoa ẽ yoãvre, vevõ tiã atovõ rãtxa (lancha recadão) awe
38
vivani tachi nana matsawã ipawa, arose (arroz), avo, avo poto (sabão, sabão
em pó), sheo (agulha), resisi (linha de costura), vatxi (tecido saia), piarasῖ
vatakavo (comidas doces), pia õsi-õsipa (alimentatos de diversos tipos),
maneyoa-raῖ (panelas), tsano-rasῖ (talheres), kẽtxarasῖ (pratos), senotirasῖ
(facas), richkiti (facões), roerasῖ (machados), õpo pani (rede), tipi
(espingarda), mara eshe (cartucho), wetati (anzóis), resisi anõ wetati (linha
de pesca), atõ awe wetsarasῖ aka vivarãi tachi mãtsawã ipawavo. Roe enesh
(rio Javari) oi, Itaquai, tavania ano osha rave vakῖ karã, roe enẽ nawa vô
keyakavo akavo tavaniro, Kanamari rasῖ kãtxiaya tavani oiro, suῖ ikoa ano
waka teaya shokoa tavania, nawa awestichta nia shava Caroço, Suῖ titai teã
Pardo nokonia anõ moka nawa rasῖ kãtxia shava rave vakῖ Nova Esperança,
Terrinha aka, Todos os Santos anõ ichna toῖyavo shokoa iva vainavo,
Bananeira, São Salvador, Volta Grande, São Sebastião, askavai Tashaya,
Yoraya, Txona-Anãya, Shoriya, Kaῖ-tekãya, Kariya, Morada nova, Yovῖya,
Kapeya, Inῖtiaya, Matxi Keya-waiya, Yawaya, Shawẽwaya, Kari-Oshoya,
Vekotapãya, Vaῖya, Maronal, Tsainamãpa, Vari-nawavo, Machi-Matxi,
Ranõya, Kereya, Voῖ-Vakõya, Voreya, Txashoya, Komãya.
2.3 Os “Marubo”
Antes de tudo, quero ressaltar que a palavra ‘Marubo’ nada significa para o povo
chamado pelos não índios de ‘marubo’, a não ser o fato dele ser, exatamente, um exônimo que
ficou congelado nos registros e documentos oficiais. Na realidade, os Marubo não existem
para os Marubo, já que eles se identificam internamente pelos nomes dos clãs ou subgrupos
ou famílias (a ivo nawa-rasῖ). Certa vez, eu perguntei para minha mãe porque aceitamos ser
chamados de ‘marubo’. Ela me disse: “as pessoas que falam português aceitam ser chamadas
de ‘marubo’. Acho que eles têm dificuldade de explicar como a gente se denomina, porque os
não indígenas (nawa-rasῖ8) não conseguiriam nos chamar pelos nomes dos clãs”.
Como dizia meu avô João Tuxaua: “quem denominou nosso povo de ‘Marubo’ são
os nawa-rasῖ Txami Koro, eles falavam língua kastilhiano” (na pronuncia do meu avô, se
referindo ao castelhano). Quando chegaram à nossa terra explorando pae (látex), ao deparar-
8
A palavra nawa denomina um grupo diferente do grupo ao qual o falante pertence: um colombiano, um
brasileiro, todos os que “surgiram depois do povo yora”, como dizia meu avô. Por isso, os Marubo a utilizam
com dois significados: (1) para designar um clã em relação ao outro; e (2) para designar os não indígenas em
relação aos indígenas. Estes últimos são chamados yora. O morfema {-rasĩ}, na palavra nawarasĩ, é uma das
formas para indicar o plural na língua marubo.
40
se com a gente, nos deram esse nome, talvez a gente parecia Marubo. Eu perguntei para
Keyashini (Carlos Vargas)9, que sabia falar kastilhiano, e ele me respondeu que esses nawa
disseram que a gente era yochin10”.
Ao que consta na pesquida de Melatti (1977:92);
No mito de origem dos Marubo, narrado por kẽchῖtso-rasῖ11, os surgimentos dos clãs
têm características que identificam as personalidades ruins, boas, festeiras, afetivas,
fofoqueiras, entre outras. Por exemplo: os shane-nawa, para outros clãs, por sua origem ser o
pássaro azulão, costumam ter filhos deficientes; os homens não temem guerrear e com isso
tem costume de bater nas mulheres com a justificativa de que assim serão respeitados e
temidos pelas suas mulheres. Os shawã-nawa são homens de boa fama, mas as mulheres são
causadoras de intrigas que podem resultar em guerra. Os pais repassam essas histórias a seus
filhos, para que saibam como serão seus futuros esposos ou esposas, de modo a se preparar
para o tipo de personalidade que os filhos herdarão.
Ao narrar histórias, na sociedade Marubo, o narrador, seja mulher ou homem, no
começo da narrativa, sempre deixa claro que não há semelhanças de conhecimentos já que a
sociedade é dividida em clãs ou subgrupos e cada subgrupo é dividido em famílias. O povo
Marubo entende que, quando ocorre união de dois clãs, a responsabilidade pela educação dos
filhos é essencial para não denegrir a reputação da família. Por exemplo: se um homem matar
anta e não convidar ninguém para compartilhar a sua caça, as pessoas com quem ele convive
irão questionar seu pertencimento clânico por ter aquela atitude egoísta. A sociedade em que
está espalha a sua má fama de mesquinho, seu nome será citado como exemplo negativo para
9
Keyashini significa ‘velho alto’, era marubo, primo de João Tuxaua, e recebeu o nome em português do
caucheiro Carlos Vargas, que o tinha adotado. Seu pai foi assassinado por parentes, que entregaram a esposa,
mãe de Keyashini, ao próprio Carlos Vargas. Keyashini-Carlos Vargas aprendeu o castelhano da região de
fronteira entre Brasil e Peru. Estamos, aproximadamente, nos anos 50 do século passado.
10
yochĩ é um termo de difícil tradução. É o duplo das coisas; televisão passa yochĩ, o que vejo numa foto é yochĩ,
minha sombra é yochĩ.
11
A palavra kẽchi-tso designa o ‘curandeiro’, um dos dois tipos de xamã, aquele que faz o ritual de pajelança
sobre o doente, não entra em transe. O morfema {-tso} indica a velhice da pessoa.
41
alertar as crianças no futuro. Assim, o indivíduo nunca deverá esquecer de que clã ele foi
gerado para preservar os nomes dos clãs.
Ser ‘marubo’, então, é uma ficção interna e uma necessidade externa. A não-ficção
interna são os clãs.
jaguar, ino-shavo. Outros três filhos de Sabá vivem na cidade de Atalaia do Norte, dois
casados com nawa-shavo e um casado com uma marubo do clã rovo-shavo, clã- macaco-de-
cheiro. Todos os filhos de Saba trabalham em instituições indigenistas.
A aldeia São Sebastião, composta por seis malocas, é considerada a segunda aldeia
principal dos Marubo do rio Curuçá e está mudando pela segunda vez. A maloca de Iskãpa
(João Batalha), do clã rovo-nawa, abriga Iskãpa e sua esposa Itxa-Maia, do clã ino-shavo,
seus oito filhos e seu sobrinho Panã/Wasi-nawa (Fernando) casado com sua filha mais velha,
com a qual tem um filho. A segunda maloca tem como kakaya Nãkẽ-pa (Américo), do clã-
colar (rane-nawa). Nela mora a esposa Ravẽ-ewa (Ilda), do clã rovo-shavo (clã macaco-de-
cheiro, e eles tem seis filhos que são do clã satã-nawavo (clã-lontra). O velho mais filho de
Nãkẽ-pa é Vina/Kayã-sheni (Alciney), com duas esposas, Vena e Vô, do clã shane-isko-
shavovo (japim azulão); o segundo filho só tem uma esposa, Rovo-shavo, do clã shane-isko-
shavo (clã japim azulão); o terceiro filho tem duas esposas, Chori do clã koro-shavo (clã-
cinza) a e a outra é nawa-shavo, peruana da comunidade de Limoeira. Das filhas de Nãkẽ-pa,
uma é mãe solteira de cinco filhos, outra têm dois filhos e vive junto com o pai destes, mas
sempre nega ter marido e a ultima filha tem apenas 12 anos.
A terceira maloca é do chefe Maiã-papa (Said), do clã rane-nawa (clã-colar), viúvo
de duas mulheres do clã rovo-shavovo (clã-cinza), com quem teve sete filhos; casou se
novemente com duas irmãs também do clã rovo-shavovo e com elas vive nesta maloca. A
quarta maloca é liderada por Penῖ-papa-pai do Penῖ (João Macaquinho), do clã tama-
iskovo/tamawa (clã-árvore-japim), casado com Penῖ-ewa, mãe da Penῖ (Rosa), do clã rane-
shavo (clã-colar), com cinco filhos, que são do clã ni-nawavo (clã-mato); nesta maloca vivem
filhos e netos de Penῖ-papa. A quinta maloca da aldeia São Sebastião é liderada por Teka, do
clã sata-nawa (clã-lontra), cuja mãe é do clã rovo-shavo (clã-cinza), viúva de shane-nawa
(clã-azulão) e que se casou novamente com Américo, tornando-se sua segunda esposa; por
não ter filhos com Américo, ela vive na maloca dos seus filhos. Na sexta maloca vivem os
dois irmãos de Said, Peῖ-pa (Lauro) casado com Peῖ-ewa, do clã rovo-shavo (macaco-de-
cheiro), e Romeya, casado com uma kanamari com quem teve sete filhos e que abandonou
para casar com Vonchi-Tama-shavo, com quem teve três filhas. Ainda nessa maloca vivem os
filhos do finado Vanẽ-pa (José Rufino, irmão do Clóvis Rufino, ex-coordenador do Conselho
Indígena do Vale do Javari-CIVAJA, hoje chamada de UNIVAJA). Vanẽ-pa era do clã ni-
nawavo (clã-mato), tinha três esposas do clã sata-shavo (clã-lontra), sendo as duas primeiras
filhas de Said e a terceira filha da Tekã-ewa. Ainda na sexta maloca, mora a irmã de Vanẽ-pa,
Kenẽ-ewa (Marelene Rufino, do clã ni-shavo, clã-mato), casada com o filho de Said
43
(Mene/Waka-nawa, Manoel Reis), com quem ela teve três filhos; seu pai é nawa (Antonio
Rufino), casado com sua mãe (Tamã-ewa (Rita), que faleceu em 2015) e criou Tama e Vimi.
Com Tamã-ewa, Antonio Rufino teve quatro filhas (Peko, Txoko, Kama e Wã-Maia). Outro
filho de Said, Koa/Yochῖ-pa (Raimundo, do clã sata-nawa) é casado com uma Tikuna e
Rava/kevã-pa (Ivan Manoel Batalha) é casado com Vãti, filha de Lauro e do clã vari-shavo
(clã-sol). Algumas famílias dessa maloca vivem na cidade de Atalaia do Norte.
A aldeia Morada Nova é liderada pelo kakaya Vamã-pa (Alberto), do clã sata-nawa,
casado com duas mulheres. Com a primeira esposa, Sinã-ewa do clã shono-shavo, teve sete
filhos; com a segunda esposa, Vô do clã ni-shavo, teve seis filhos. Na mesma aldeia mora o
casal Yoati-Võchῖ-pa e Pasha-Aῖvo/Mashe.
Ronῖ-pa (Manelão), do clã rovo-nawa, filho de nawa fugitivo da polícia por ter
matado um sargento, é o kakaya da aldeia Matxi-Keyawai. Sua mãe se chamava Rave e era
do clã sata-shavo (clã-lontra). Manelão casou se com Peko do clã sata-shavo (clã-lontra); este
casamento é considerado pelos Marubo como “casamento que não presta”, por Manelão ter
casado com uma mulher da mesma linha do clã da mãe, o que fez com que seus filhos fossem
considerados irmãos dele mesmo, de Manelão, já que sua esposa seria a sua sobrinha. Ainda
nessa aldeia vivem mais três casais e seus filhos, com duas mulheres casadas com homens
mayoruna.
A aldeia Maronal é composta por sete malocas. A primeira maloca é do principal
kakaya Ivinῖ-papa (Alfredão), do clã tama-uavo (clã-flor-árvore). Aqui vivem os filhos mais
velhos de João Tuxaua (Ni-ua Wani/Itsã-papa), sendo o segundo deles o principal kakaya e
fundador da aldeia. Ivinῖ-papa teve três mulheres, todas do clã shane-shavo (clã-azulão), as
duas primeiras já falecidas, e vive somente com a terceira. Com as três esposas teve doze
filhos. A segunda maloca é a do seu filho mais velho, Chorῖ-pa do clã shane-iskovo (clã-
azulão-japim), da esposa deste Panã-ne-ewa, e seus filhos. Na terceira maloca vive Tamã-pa
do clã sata-nawa (clã-lontra) e o genro de Memῖ-papa (Sacarias, o irmão mais velho de
Alfredão). O kakaya da quarta maloca é o patriarca da família Pekõ-pa, do clã tama-uavo
(flor-árvore); nela vivem shono-nawavo (clã-samauma), rovo-nawavo (clã macaco-de-cheiro,
sata-nawavo (clã-lontra). A quinta maloca é de Chinῖ-pa do clã rovo-nawa (clã macaco-de-
cheiro) casado com Pani do clã shono-shavo (clã-samauma) e seus filhos ainda pequenos. Ao
lado, a sexta maloca é de Rave, do clã sata-shavo (clã-lontra), uma mãe solteira que resolveu
viver sozinha junto com seus filhos. A sétima maloca é dos dois irmãos mais novos de
Alfredão, o kakaya da aldeia. Tama-Saῖ-pa (Pedro) assumiu, em 2015, após a morte de seu
irmão Vanẽ-patxo (José), o papel de kakaya da maloca. Vanẽ-patxo era casado com duas
44
irmãs, Venẽ-ewa e Peῖ-ewa, do clã sata-shavovo (clã-lontra), e com elas teve onze filhos,
todos do clã rovo-nawavo (clã macaco-de-cheiro). Estes já são adultos casados, sendo que três
vivem na cidade de Atalaia do Norte com suas famílias: Manoel Chorῖ-pa é vereador, casado
com uma nawa-shavo; Kenã-pa (Paulo), coordenador da UNIVAJA, é casado com Vo/Tama-
Saῖ-wa (Sônia) do clã vari-shavo (clã-sol); Vane/Vinã-wa (Amélia, pedagoga) trabalha na
Secretaria Municipal da Educação Indígena – SEMDI e é casada com o Panã/Ramῖ-pa
(Walcerley) do clã vari-nawa (clã-sol).
12
Pajé e xamã são duas categorias distintas entre os Marubo. Pajé, segundo a explicação dos meus
interlocutores, é aquele que viaja no mundo dos seres não humanos cujas forças ele traz e une. Xamã interpreta
as falas sabias dos seres não humanos e destes recebe as suas forças.
45
os pretendentes das mulheres pertencentes ao clã sata-nawavo13 provêm dos clãs ni-
nawa, isko-nawa, txonavo, ino-nawa/kama-nawa e koro-nawa, mas seus filhos serão
sempre do clã rovo-nawa:
os pretendentes das mulheres do clã ni-nawavo provêm dos clãs satã-nawa, shawã-
nawa e vari-nawa, mas seus filhos serão do clã rane-nawa:
13
O termo Sata-shavo é singular e é usado para se referir a uma mulher do clã Sata-nawa. O plural ou coletivo é
Satashavovo. Satanawa é singular e é usado para se referir a um homem, sendo que o coletivo é Sata-nawavo.
Todas as denominações de clãs que terminam com {-shavo} referem-se às mulheres do clã. Sata-nawavorasĩ se
refere a uma aldeia, um ‘povo’, do clã Sata-nawa.
46
os pretendentes das mulheres do clã isko-nawavo provêm dos clãs satã-nawa, shawa-
nawa, vari-nawa e tsona-nawa/txonavo, mas seus filhos serão do clã shane-nawa:
os pretendentes das mulheres do clã kana-nawavo provêm dos clãs satã-nawa, shawa-
nawa e vari-nawa, mas seus filhos serão do clã ino-nashavo/kama-shavo:
os pretendentes das mulheres do clã vari-nawa provêm dos clãs isko-nawa, ni-nawa e
kama-nawa, mas seus filhos serão do clã do tama-oavo:
os pretendentes das mulheres do clã Shawã-nawa provêm dos clãs ni-nawa, isko-
nawa, txonavo, ino-nawa/kama-nawa e koro-nawa, mas seus filhos serão do clã
txashko-nawavo:
os pretendentes das mulheres do clã shane-shavo provêm dos clãs satã-nawa, shono-
nawa, tama-nawa e txashko-nawavo/anakashkavo, mas seus filhos serão do clã isko-
nawavo:
os pretendentes das mulheres do clã tama-shavo provêm dos clãs shane-nawa, rane-
nawa e ino-nawa/kama-nawa, mas seus filhos serão do clã do vari-nawa:
os pretendentes das mulheres do clã txona-shavo provêm dos clãs shawa-nawa, isko-
nawa, ni-nawa e koro-nawa, mas seus filhos serão do clã shono-nawa:
os pretendentes das mulheres do clã wani-shavo provêm dos clãs rovo-nawa, rane-
nawa e shane-nawa, mas seus filhos serão clã do koro-nawa:
os pretendentes das mulheres do clã rane-shavo provêm dos clãs rovo-nawa, Shawa-
nawa e tama-oavo, mas seus filhos serão clã do ni-nawa:
os pretendentes das mulheres do clã koro-shavo provêm dos clãs satã-nawa, ni-nawa e
isko-nawa, mas seus filhos serão clã do wanivo:
Formulei a figura abaixo para dar um exemplo a partir das minhas relações
clânicas14: Como vari-shavo (rane-vari-shavo), baseado no casamento dos meus pais, simulei
o esquema de casamento padrão, como se tivesse me casado com meu primo cruzado (o que
não é o meu caso, de fato).
14
Os sufixos -vo e -rasῖ são pluralizadores.
50
Figura 2: Exemplo de esquema de parentesco clânico apresentado por Xavier Ruedas (2013: 227)
15
Segundo a professora Vinawã (Amélia Barbosa da Silva), o antropólogo Ruedas foi recebido na aldeia
Maronal do alto rio Curuçá na maloca dos dois filhos mais novo de João Tuxaua (Welper, 2009), quando foi
fazer sua pesquisa de campo. Ruedas chamava a atenção pela sua dedicação ao trabalho e pela facilidade em
aprender a língua marubo. Vanẽ-papa (José Barbosa) e sua cunhada Satã-Nake (Luzia Domingos) recordaram as
palavras de João Tuxaua, que dizia que em algum momento da vida deles na aldeia Maronal iria aparecer um
nawa viajante de um lugar muito distante guiado pelo rovo chai (pássaro japim do rovo-nawa, o japim associado
ao clã-macaco-de-cheiro). Imaginando que Ruedas seria o viajante, deram a ele o nome Pekõpa do clã rovo-
nawa (clã-macaco-de-cheiro). Ruedas chama os clãs de ‘povos’.
51
povo), que enfatiza as mudanças ocorridas nas últimas cinco décadas (ou mais): “Os Marubo
de hoje não fazem mais casamento desse tipo; por causa da mistura de casamentos clânicos,
não há mais verdadeiros panõ-anevo. Isso só acontecia no inicio da geração dos Marubo, mas
hoje não é mais assim, a partir da geração da família de João Tuxaua16, que casou com sete
mulheres pertencentes a clãs diferentes. Hoje, os Marubo explicam o casamento panõ ane
aĩka como sendo aquele entre primos cruzados de modo geral (de qualquer clã)”.
Um clã será chamado de txaitso por uma mulher quando seus membros são seus
primos cruzados, filhos dos tios maternos (irmãos da mãe). Os demais clãs são chamados de
txais; a eles pertencem os filhos das irmãs do pai e outros que não são considerados primos
cruzados. Se houver casamento com outra etnia ou com nawa (não indígena), a pessoa “de
fora” será considerada txai, no reconhecimento do parentesco por parte dos irmãos/irmãs do
esposo/a marubo, assim como os primos cruzados do esposo/a “de fora” são considerados ave
iki-yavõ pelos primos cruzados do esposo/a marubo. Ave iki-yavõ quer dizer ‘que compartilha
o mesmo homem que ela ou a mesma mulher que ele’.
17
Cacicus cela cela
18
Ara macao
52
19
Panõ anevo é traduzido como ‘casamento correto ou reto’.
53
Isko Tama é homem. É preciso explicar a razão pela qual ele está aqui, junto com
as mulheres. Se as mulheres são responsáveis pela parte ‘material’ da cultura (fazer os
artesanatos a partir dos conhecimentos que cada uma herdou e acumulou), são os
homens que podem falar desses conhecimentos. A voz é dos homens; o saber do fazer é
das mulheres. Por isso, as mulheres dizem que elas criam os homens, dão conhecimento
a eles. E dizem que são elas que controlam o jeito de ser dos homens, fazendo com que
eles gostem da família da qual suas esposas gostam. E são elas que incentivam sem
parar, em todas as situações, para que os homens ensinem aos seus filhos. Afinal, faz
sentido a expressão delas: os homens não crescem. As mulheres comuns vivem o
dilema entre o forte desejo de dar, elas mesmas, voz aos seus conhecimentos e o temor
de desafiar o poder dos homens que monopolizam essa voz. O medo de desafiar é o
medo de se tornar objeto de comentários nas festas em que mensagens de crítica são
lançadas publicamente, cantando ou falando. São as brincadeiras chamadas de waka
anea, onde essas mensagens não mencionam diretamente o alvo da crítica, mas quase
todos entendem quem é. Homens e mulheres têm medo de waka anea.
20
Sata Venepavo (considerado como clã surgido pela verdadeira rovonawa casamento sem mistura, aquele clã
surgido junto para casar nanko-sh = metáfora do utero vênia = surgir) e Sata Potopavo (considerado como clã
surgido pela mistura de casamentos de vários clãs e outros povos wã-sh = metáfora de pessoas de nova geração
no sentido de flor vênia = surgir) são subgrupos de clã; a narrativa da origem do clã contém algo que fez surgir o
clã menor a partir do clã principal. É uma explicação de como a população Marubo dar a origem de parentescos
e a justificação dos casmentos entre clãs.
57
21
As narrativas míticas muitas vezes são usadas para justificar a atribuição a uma pessoa, homem ou mulher, de
determinadas características. Vou dar um exemplo, tomando uma narrativa reproduzida por Pedro Cesarino
(2013: 129-161). Shetã Veka era uma mulher do clã varishavo/varinawavo que teve amantes fora do grupo
Marubo, com isso não pretendia casar seus txai. Ela teve relações com outras pessoas-gentes (Niro Kaso, Niro
58
Washmẽ, Shanen Rono, Yora Noĩ). Ela gerou vários animais e a estrela cadente. Depois, ela casou com quem não
poderia casar, com seu ‘tio Ranen Tupane’ descendente de ranenawa. Por ser considerada uma mulher
desobediente, ela não podia ter filhos-gente-de-verdade: a sogra comia os filhos para eles não dar continuidade a
casamentos inapropriados. Por isso uma mulher do clã varinawavo pode ser chamada de Shetã Veka com a
implicação de que ela tem vários amantes e casou com quem não deveria ter casado.
59
Capítulo 3
Os artefatos
Rama kani venarasῖ vevõ ipawa keska ese rakeshoa yavo marivi, aska akaya
anõse nõ anõ anõ iki yama, aska timaki noke yorã eserivi iki marivi, aska
sivish atõ anõ ayama keskai awe sawesmavo, vevõ tiãro ravῖkaki kaya chero
nia, ramaro roaserivi nawashavõ tanati atõ ikiki, vevõ tiãro nõ seya-shoke
nẽkãi, atovõ rama oῖro roase.
Sempre ouço essas conversas entre os mais velhos, quando querem admoestar as
mulheres que ficam andando sem adornos, citando as explicações de xamãs (kenchitxo) e
pajés (rumeya).22 As mulheres que não enfeitam seus corpos são chamadas de ‘mulheres-
minhoca’ (noin-shavo), como as que, férteis, circulam em qualquer ambiente (escuros e
húmidos) e com qualquer homem, engravidam e concebem almas de minhocas que serão
seres gerados em forma humana. Pois, essas mulheres que andam raro-ati-yama ‘sem
protetores’, sempre são vulneráveis a acontecimentos ruins; os adornos são importantes como
proteção e não são somente as mulheres que correm esse risco, os homens também. Os filhos
gerados por mulheres sem proteção dos rane-awe, ‘adornos’, são criaturas que vêm ao mundo
22
Para pensar a importância dos enfeites para o povo Marubo, foi sugestiva a tese de Miller (2007), onde ela
interroga “as coisas” entre os Mamaindê (Nambiquara), as relações entre os enfeites corporais e a noção de
pessoa, o que me ajudou a entender minhas protagonistas quando dizem que os enfeites são produzidos para
harmonizar o corpo e que eles representam a pessoa-família. Os enfeites são ‘guias’ protetores - raro-akaya - de
quem os recebe e os usa, não podendo ser passados adiante. Todo xamã tem seus raro-akaya.
60
com outra perspectiva de vida, comportamentos e atitudes, mesmo que para os pais sejam
filhos normais; são pessoas que têm dificuldades de compreender e de aprender os
ensinamentos dos seus pais acerca do mundo em que ingressam.
Elas não agem como verdadeiras mulheres marubo (shavo kaya-pavo chinã
keskama), mas, sim, como mulheres sem sabedoria e sem habilidades nas pontas das mãos,
mulheres sem vida que não dão importância à sabedoria, não tem interesse em respeitar ou
praticar os conhecimentos tradicionais. Não são ‘verdadeiras’ - shavo koῖ-rasῖ - já que não se
preocupam com o odor da pele e com a beleza, são mulheres sem cor (ainvo-koro-rasĩ),
cinzas, preparam os alimentos sem vitalidade e energia, comem para viver, são impacientes,
se irritam com facilidade e, ao querer imitar shavo koῖ, só conseguem fazer fofoca. É muito
comum ouvir estas falas no dia a dia, uma estratégia dos mais velhos diante da nova geração
marubo.
Não poucas vezes, os irmãos de minha mãe chamavam minha atenção – a de uma
antropóloga que chegou para pesquisar - para que observasse a vida das mulheres e dos
homens:
Oῖ ewa, noke venerasῖ marubo shavanã yoῖni aniti china, wai-aka, shava wenẽka
china, askavai noke vene meeti aka. Aῖvorasῖ meetiro ãtsaka keskaro, yora
vestsarasῖ oῖ ã awe onisa keska, atõ vake vesoi, atõ vene vesoi, askavai wai
matxikai, pitiki aka. Meeti ãtsakatõ imaiya waia sheni, shava venero keskama
oraka kakash mani vikai aka tõsho, meeiko kõisma aῖorasῖ, shovo vseoi atõ vari
vãkeskai.
‘Olhe mãe, no nosso cotidiano, os homens têm rotinas para caçar, fazer roças,
manter limpo o terreno ao redor da casa, fazer seus artesanatos nas horas vagas. As
mulheres têm o dobro de preocupação com a responsabilidade com os seus
afazeres, o que fica parecendo que são as mais exploradas, nos cuidados dos filhos,
esposos, vão para roças trazer alimentação e preparam comida. Quando a aldeia é
nova, a rotina dos afazeres é mais fácil, mas quando a aldeia vai ficando mais
velha, as roças vão ficando mais distantes para as colheitas das mulheres que
acabam gastando mais tempo já que têm também as tarefas da casa.’
Com a minha presença como pesquisadora na aldeia, junto com minha família, meus
tios sempre me alertavam para observar os processos de mudanças ao longo do tempo, a falta
de interesses dos jovens para com a ‘cultura’. Devo dizer que, apesar de ter vivido pouco
tempo na aldeia, testemunhei muitas mudanças, tanto na forma de pensar, no cotidiano, na
forma de se enfeitar. Para os velhos Marubo, todavia, o trabalho manual ainda é habilidade e
maturidade; os artefatos feitos para enfeitar os corpos ainda representam o corpo feliz e sadio.
61
23
A leitura da SUMA Etnológica Brasileira, de Berta Ribeiro (Ribeiro, 1987:16) me trouxe uma citação
interessante de Deez (1967): “Artefato, tal como palavras, são produtos da atividade motora humana, produzida
través da ação de músculos guiados mentalmente sobre a matéria-prima envolvida”. Observei a semelhança com
a ideia marubo de fazer-pensamento. Lembrei também do “ensinar as mãos”, presente nas falas dos meus
protagonistas, nos modos de aprendizado do trabalho manual, já que as crianças aprendem a trabalhar de forma
correta com a mão direita, são corrigidos para não se acostumar a trabalhar com a mão esquerda.
24
Forma de tirar a sabedoria, o conhecimento foi tirado da mão.
62
PVC, baldes brancos, frascos brancos e máquinas de lavar roupa inutilizadas, que catam para
aproveitar as partes que podem ser reaproveitadas para fazer adornos corporais
(indumentárias). Algumas delas ainda buscam tucum ao redor da cidade para fazer bolsas,
redes, pulseiras e tiaras. Às vezes, simplesmente catam sacos de fibras para poder substituir o
tucum. Para essas mulheres, a cidade não faz bem para a recuperação dos doentes e elas se
sentem mais debilitadas. Quando estamos conversando, minhas protagonistas me dizem que
quem fica parada é aquela pessoa que não tem saber nas mãos, muito menos tem saber na
alma. Uma pessoa assim é apontada com vergonha e como mau exemplo para seus filhos.
3.2 Tradição
No dia 08 de julho de 2010, conversando com Koro Metu (Nair Cruz), da aldeia Boa
Vista, no médio rio Ituí e pertencente ao clã Koronawavo, ouvi o que ela me contou:
Koro Metu (Nair Cruz), vevõ tiã noke ãivo anõ meipawa, shasho, nawa
oimakash, awen koro roeparo pani rerai, awen sapa anika ivon sheki renei,
wanin renei ati waka anusho inã, matximasõshoro nuvo txaroki, pani tseshe
txaroki aka, mevi napash tio ivoro ano nuvo tsosati, pani tseshe, tovoin
tseshe, chini tseshe aka. Sheo yamashro, nõ anõ otapawaro mashashe.
Mashashe, aĩvo katsekase onãti aka marivi, aivorisini non anon nuvo
otanoshon, tea revo pompo iki machin meki mera ipawavo. Tseshe anõ
otatiro, kapa sheta ipawa.
No dia 10 de março de 2012, Tamã Shëta, da Aldeia São Sebastião no Médio rio
Curuçá e pertencente ao clã Tama-oavo, e Satã Mashe, oriunda da aldeia Maronal no alto rio
Curuçá e pertencente ao clã Sata-nawavo, me contaram o seguinte:
25
Mashashe é um tipo de pedra esverdeada encontrada nas pequenas cachoeiras dos igarapés.
63
yura yosin tsikika. Washmen yoshan vaná, a yosi ivosho, washmen vatxi
anun askash noke aivo anũ awe onis pawavo, vatxi aki yosimasho.
Antigamente nossos antepassados se envenenavam entre eles, não viviam
muito tempo em um lugar, que não dava nem tempo de ver as plantas
crescerem. As mulheres que sabiam trabalhar nas pontas das mãos diziam:
“eu sei fazer, então eu não vou ensinar as outras”. Os que aprendiam eram
somente os parentes próximos, para não enfraquecer o saber e o
conhecimento da artesã. Hoje nós somos muito fáceis de ensinar as outras.
As plantações de algodão eram feitas pelas mais velhas e só elas sabiam
fazer as saias de algodão. Outras mulheres sofriam por não saber fazer saias,
porque as que sabiam fazer não facilitavam para ensinar.
No meu caso, os Matses pegaram minha mãe. Minha avó, por ser velha e
para eu não ficar andando sem fazer nada, me ensinava frequentemente tudo
o que se podia fazer com coco, tucum, algodão, como fazer peneira, cesto,
esteira, abanador, grafismos e trabalho com cerâmica. Nessa época nós não
conhecíamos direito nawã awe (as coisas dos nawa) e, para ter nawã awe,
tínhamos que extrair caucho, couro de onça e couro de porcão.
Tamã Sheta: En ewa kakaya shavosho awen meiti piti kashma akis niavre
ipaowa, mania, atsa, kari, sheki, pia wetsarasin aka, yora pimakayash, vake
an vene ninivaransh awen ave tsawa an natxi awen papani naneya ton
kashma ashon pawa, peti aki yosika ipawa en ewa. Kene, toati, pichin,
wekoti, mapo mea, panika, tseshe, nuvo aka en vavawã ea yosirivi.
Nishavovo pitiakaton txikichka menkin, meti yaõkavo ipawavo, askasho vene
pima chinasmavo, aton meti shovimaro atonavriki. Vevun tian, aĩvorasin
katsekase awe antsãwama ipawa, aĩvo meti yaõka an vene via, awen ave
nikaton, peshe kashmashon vaiki enevai-ya, awen venen nokush peti
kashmavai pari tsaush, awen vene anun neshati kashmawaki, ainvo
ruapasho an iki.
O trabalho de minha mãe, por ser kakaya shavosho (mulher chefe), era
preparar a comida com banana, mandioca, milho e outros tipos de alimentos.
O esposo a trouxe para perto dele quando ela era ainda criança e quem lhe
ensinou a preparar comida foi a primeira mulher do esposo, irmã do seu pai.
Minha mãe era talentosa em preparar comida. Grafismos, peneira, esteira,
abanador, trabalho com cerâmica, fazer rede, coco e fazer aruá, eu aprendi
com minha sogra que era ni-shavovo. As mulheres deste clã eram
consideradas preguiçosas no preparo da comida, mas habilidosas no trabalho
na ponta das mãos. Antigamente, as mulheres não tinham muita quantidade
de trabalho. O homem que casava com uma mulher habilidosa, antes de ir
caçar improvisava um tapiri para que ela continuasse o seu trabalho. Então,
ela primeiro preparava a comida do esposo e depois fazia adornos. Esta era
considerada uma mulher perfeita.
kashma akaya, anõ tsaotichinash, vevo vana ikitaya aĩvo westi akĩ chinãsma,
esetaya kanish, aĩvos en yoãma vene askasivi.
Andar sem enfeite para nossos ancestrais era desrespeito, agouro, querer a
morte de algum parente. Não podia andar sem cuidar da pele e ter vergonha
do cheiro ruim. Cera com urucum não era para ser usada só nas festas; andar
sem enfeite atrai tudo que não presta. Para nós temos muitos conhecimentos:
só por ser mulher yora, não sentamos em qualquer lugar do chão; a mulher
que tem habilidade já preparava a esteirinha no caminho para poder sentar
quando chegasse ao lugar. As mulheres de antigamente, por receberem
vários ensinamentos, eram sabias de pensamentos e isso não acontecia só
com as mulheres, os homens eram iguais.
Nos relatos das mulheres, chamou minha atenção a minúcia do processo de como
aprenderam os diversos modos de ensinamentos das suas famílias, o tanto que elas valorizam
o que para elas é o modo de vida que faz da pessoa um exemplo de vida para os jovens. Como
elas dizem: “é assim que funciona”. A família traz para cada pessoa a responsabilidade de ser
um bom exemplo na sua sociedade; a pessoa que não valoriza o conhecimento tradicional não
é considerada uma pessoa boa para se espelhar nela. Para os Marubo, o que se espera dos
filhos é que eles possam dar continuidade aos seus clãs, no futuro como chefe da sua aldeia,
se tornando filho, pai, esposo, sogro, avô. O mesmo pode ser dito das mulheres.
Essa forma de ensinamento, continuamente repetido pelas mulheres, é explicada
como conhecimento clânico. Um trecho do texto “Trançados indígenas norte-amazônicos:
fazer, adornar, usar”, de Velthem (2003: 117), me fez pensar: “A atividade humana deixa
traços materiais, de diferentes sortes. Alguns são involuntários, outros intencionais e,
portanto, artefatuais, possuindo a forma de objetos, os quais informam sobre as necessidades
de expressão e de perpetuação de determinada sociedade”. Foi isso que procurei escrever a
partir do que minhas protagonistas tentaram transmitir, quando me escolheram para falar de
seu ‘trabalho manual’, que anda junto com seu saber tradicional, e onde a explicação precisa
considerar a diferenciação dos distintos ‘trabalhos clânicos’. No processo de produção de
‘coisas’ através do trabalho manual, acontecem variadas formas, pois, entre as mulheres
marubo, as criatividades vão se aprimorando tendo como base as descobertas de todas as
artesãs, sendo que as técnicas de trabalho revelam estilos em que estão os traços da
descendência de cada subgrupo clânico, herdados pela artesã.
3.3 Inovação
No dia 09 de junho de 2010, conforme o costume ensinado por minha mãe desde
pequena de receber as visitas com lanches, na tarde ensolarada de uma quarta feira, as
65
mulheres das aldeias Boa Vista e Maronal apareceram na minha casa em Atalaia do Norte-
AM. Após o lanche, conversando com as mulheres sobre as novidades das produções de
artesanatos, elas me contaram o seguinte:
Nõ nawa nin mera nananin, aton anõ meiti, atõ vivaran noken anõ
meiti, noke yomen ashõ-keti.Nõ anoash nawatsõti, richkiti, senoti, roe,
sheo aka; vevo nõ meiki westsarisῖ, anõ chinã tanai pakesho china
txiwakointeki meiti.
E ainda:
furo e para furar tinha que ficar afiando constantemente. Usar agulhas
era melhor, mas as agulhas mais novas davam trabalho ao fazer furos
nos disquinhos”.
Shata rasin ota iki naman askasivi, ainvo wetsaro novu aka tana
tinisen ota maiapakea ato amiska, na askamaino wetsan oivaiki txinti
arame tirivaiki ravosh akaton aki orumatsawan, aton askamaino
wetsaro sheo ioro arame shana avaikin orui, oi panteti shao ramparin
ketivaiki orua. Ainvo raveton askai meke roa akasma, roakaimisma
inan, txareka, awe yoimaka. Askamaino, onatiki taa askash aton anon
aka ramaro, resisi papagaio ano teeaka ivo, anosho shakia roaka
tesesma, inoimase teses, ave resisi keskama.
“Não pense que nossas descobertas pararam por aí. Nossas meninas
têm descobertas absurdas, exageradas, (rindo) elas não querem saber
do trabalho perfeito, a criatividade delas está voltada para descobrir
como chegar ao produto mais rapidamente. Nós mais velhas, a maioria
das vezes, não concordamos, não pela descoberta delas, mas por elas
fazerem o trabalho de qualquer jeito, sem valorizar. Elas são agitadas,
são diferentes da nossa realidade de juventude, elas não temem pelos
seus erros e nem pensam nas consequências dos erros. Nossas jovens
não se dedicam aos seus trabalhos. Para nós mais velhas, o que
diferencia o aruá, que é o nosso trabalho tradicional, do PVC, dos
frascos, é o fato de não sabermos as origens desses novos materiais.
Qualquer tipo de shata, trazido para nossa casa e usado para fazer
colar, tem sua importância, a gente sabe que é material do nawa,
mesmo que não saibamos da sua origem. O valor da peça em PVC ou
plástico está na forma da nossa produção e da criação que sai das
nossas mãos. Mesmo que meus enfeites não sejam de aruá, não vou
alterar seus desenhos; por exemplo, não vou pegar os desenhos do
68
corpo para fazer nos meus enfeites. Para nós mais velhas, as pinturas
de saias, das peneiras, do corpo, do rosto e dos colares não se devem
misturar. Sempre pensamos nas harmonizações das coisas; hoje os
nossos jovens misturas as coisas, nosso mundo está de cabeça para
baixo”.
Vevon tia nuukë ãivake, vënë vakë këska marivi, aivake tëris imati-ma
iki nuken txichtso askatosho nukẽ ëwã anũ txitaki yusĩki tsawã tsëshë,
chini tsëshë, wanĩ tsëshë.
Nos relatos das anciãs Marubo, o que mais elas destacam das diferenças entre elas e
as mais jovens é a questão da valorização da produção do trabalho manual. Todos os Marubo
mais velhos acreditam na multiplicidade das produções dos artesanatos dependendo da
relação que a pessoa tem com a sua produção. Porém, eles acreditam que o rendimento do
trabalho manual sempre gera a reciprocidade para quem está produzindo.
Principalmente no que concerne os materiais extraídos da natureza, o processo de
preparo e produção exige o pensamento positivo ao extrai-los para que tragam energias boas
na casa ou na vida. Segundo minhas protogonistas: awe shovi manosho inã oῖkaki china
marivi pani-shãkô sanaka oῖnarvi vivakῖ oshõ ichna namãse õtxima, nuvo vitãi oshõ ikotῖse
õtxisho nõ enema, mapô vivaikῖ ichakῖse motsa motsa vaiki enetima, awe katsese anõ eseya
tirivi, ‘a iniciativa de produzir não se pensa só porque viu o material, por exemplo, trazer o
tucum e deixar jogado, trazer aruá e larga-lo em qualque lugar da casa, retirar barro, amassá-
lo com a mão e abandoná-lo. Se a matéria prima é extraída sem necessidade, a sabedoria nas
mãos da artesã vai empobrecendo. As retiradas, preparações e produções dessas matérias
precisam ser protegidas e bem cuidadas na hora de fazê-las e de usar as matérias. Assim, elas
terão a obrigação de se sentirem aliadas, para ajudar a artesão nesta vida e, após a morte, na
passagem de retorno ao destino.
Alguns Marubo mais velhos acham que, com a influência da sociedade não indígena,
as novas gerações estão mudando suas perspectivas, por não ver a realidade como viam os
26
A tradução da palavra tëris como ‘agitado/a’ dá conta só de uma parte de seu significado; tëris é dito de uma
menina que esquece seus compromissos e passa o tempo vagabundando, que não liga para aprender, não presta
atenção, fica com os meninos fazendo o que fazem os meninos.
69
Na tabela 3, estão os adornos tradicionais marubo com os materiais usados para a sua
confecção: 27
27
A nomenclatura, os números dos ‘tipos’ e a numeração na última coluna estão sendo usados na organização do
acervo de peças de cultura material marubo localizado no Museu do Índio (FUNAI-RJ).
70
A tabela acima foi elaborada para mostrar quais são os tipos de materiais usados para
fazer adornos. Estes, hoje, encontram-se no acervo do Museu do Índio (FUNAI-RJ), tendo
sido trazidos pelas mulheres marubo (as protagonistas desta pesquisa) para a oficina realizada
em setembro 2011 na mesma instituição.
Descrevo, a seguir, as peças da indumentária feminina:
Maiti (coroa): antigamente as mulheres não usavam; se tivessem que usar, faziam
várias voltas de colares de aruá PVC ou miçangas, na medida da cabeça, que depois
72
amarravam com o papiti (pingente longo que fica sobre a coroa nas laterais da cabeça
e na nuca).
Foto 12: maiti (coroa masculina, feita com miçangas nas laterais, desenhos dos grafismos
corporais)
Foto 13: maiti (coroa masculina; hoje é usada por ambos os sexos, tem grafismos próprios para
adornos)
73
Foto 14: Papiti (pingente de coroa feito de aruá; nas pontas, dentes molares de macaco)
Tewea (gargantilha): era usada tanto por homens como por mulheres. Estas, para dar
charme, ainda usavam tewiti (um colar com formato de dégradé em cada ponta e
entrelaçado com osso); outras mulheres usavam, além da tewea, o tewea tetxonka, um
colar longo com varias voltas. Há diversidade de informações oferecidas pelas
mulheres: umas falam que para o homem a gargantilha não tem muito volume e que
para a mulher é com mais volume, outras falam que para a gargantilha não há regras.
Foto 15: tewea (gargantilha de miçangas de varias voltas e amarrada nas pontas; usada por ambos
os sexos)
74
Foto 16: Paoti (bandoleira de miçangas, de cor vermelha a masculina, amarela a feminina)
poyã-kiri oshe (braçadeira): seu uso é obrigatório pela mulher e pelo homem, para
tornear o ombro, para não ficar com ombro reto, “parecendo poraquê (koni)”.
Mevin oshe (pulseira): as mulheres a usam dando varias voltas no pulso, depois se joga
por cima uma outra cor só para realçar.
75
Txiwiti (cinto): as mulheres o usam sobre a medida do quadril, com varias voltas, e
não inclui os pingentes.
Foto 19: txiviti õpia (cinto feminino com varias voltas de miçangas)
76
Vatxi (saia): as mulheres usavam tecido de algodão feito manualmente por elas
mesmas; para aplicar grafismos na saia, tingiam as linhas com pigmentos extraídos de
plantas; nos dias atuais usam um tecido de algodão industrial, comprado, de um metro
e meio. A saia da manequim na foto 12 é tradicional marubo, porém feita de linha de
crochê.
Vene maiti (coroa masculina), feita na medida da cabeça do dono, para permanecer
larga e com o acabamento de grafismos na parte frontal, em cada lateral e na nuca.
Foto 25: maiti (coroa com três pingentes; nas pontas, dentes molares de macaco prego)
79
Foto 27: papiti (pingente nas pontas com dentes de molares de macaco prego)
80
Foto 28: tewea (gargantilha masculina de varias voltas, mas não tanto quanto a feminina)
Paoti (bandoleira): usada cruzada no peito e nas costas, com amarração em forma de
cruz.
Foto 29: paoti (bandoleira masculina amarrada em forma de cruz nas costas)
81
Poyã-kiri oshe (braçadeira): nos extremos, são fixados acabamentos com grafismos.
mevin oshe (pulseira): se for para festa, as voltas nos extremos são diferenciadas por
cor e material e as pontas são fixadas com acabamento de grafismos.
Txiwiti (cinto), feito na medida do quadril, com largura de três ou quatro dedos, fixado
com acabamentos de grafismos na frente, atrás e nas laterais;
raneshti (jarreteira): com largura de dois ou três dedos, fixada com acabamento de
grafismos nas pontas;
Os colares masculinos de uso cotidiano são aqueles que as mulheres fazem com as
sobras das indumentárias (conjuntos completo de adornos) e que chamam de meeti revo.
Quando estão fazendo as indumentárias, precisam deixar pedaços para poder concertar no
caso dos adornos arrebentarem, e, assim, não ter prejuízo. A artesã não deve disperdiçar o
85
material no momento em que esta preparando, já que aproveitar tudo significa possuir
habilidade e adquirir sabedoria no mundo da arte (mevi revõsho china vana yosia).
Vejam os colares, nas fotos abaixo. Na foto 38, o primeiro colar à esquerda é feito de
PVC, sua divisão preta é de disco vinil; o segundo é feito de miçangas brancas e pretas; o
terceiro é feito de disco vinil e PVC; o quarto é feito de aruá (caramujo) e sua divisão preta é
de coco de tucum; o quinto é feito usando pedaços de plástico de máquina de lavar roupa e a
cor preta é dada por pedaços de balde de pedreiro. Os colares na foto 39 são feitos de cacos de
coco e de contas de tucum, ossos, dentes de macacos e de queixadas.
Foto 38: coleção da autora de colares masculinos (PVC, miçangas, disco vinil)
(Os Marubo) aproveitam seus dentes para fazer colar, que é enfeite
masculino. Há alguns anos os Marubo não matavam oncas, mas com os
seus dentes faziam um colar que era muito usado. Provalmente, obtinham
os dentes nos esqueletos de onça ou por meio de troca intertribal. Hoje só
homem velho ultiliza o colar, mas raramente. O colar de dentes de
cachorro é um adorno de homem adulto... É comum encontrar-se menino
enfeitado com colar de dentes de macaco barrigudo (txona) ou preto (iso).
Vevõ shenirasῖ tῖã tewea apawavo iso sheta, kapa sheta atise. Iso sheta awẽ
vimi tosha-ti, vivaikῖ tewea naki shokõ vaiki awẽ sheta mãtõ-paro revo aῖni
vakῖti. Vene vake kamã sheta ma nitxῖ tima inã,aῖvake keska kacta misi inã
iso sheta mato avaikῖ sawe mati. Kapa sheta vake vene vakecta sawe mati
sheta roa-ka, sheta mestẽka aka ave kanino inã. Wapa sheta vene wetsã-se
sawe tima, vene chinãyatõ saweti, kakaya-tõ sawe-ti aka. Kamã sheta ikiro
aro anerivi, kamã yama mashõ ã sheta sawea inã iki marivi, yoini wetsarasῖ-
se sheta anerivi. Kamã-ro nõ ano eseyarivi mee tima, tsoka tsoka imaya.
28
Kamã- onça, sheta – dente.
87
Foto 40: seke tewea (colares masculinos de uma volta com cores alternadas)
29
Kenchĩ um pequeno animal terrestre difícil de ser visto, que cava buracos no chão sem o cuidado de terminar o
buraco, me disseram que tem aparência de tatu.
89
Dedico esta seção a uma descrição bastante detalhada do novo, conhecido como
‘aruá’, um caramujo cujo nome científico é Pomacea canaliculata (Montaigne, 1988: 187). O
novo como rane awe (indumentária/enfeite) é extremamente importante, dados os valores
associados a sua produção e a forma como o novo enfeita e traz harmonia ao corpo. É
considerado como sendo o trabalho “original” dos ancestrais. Descrevo, de acordo com as
minhas interlocutoras, a origem da água relacionada ao novo, a origem do novo como enfeite,
a forma como busca-se a matéria-prima, o espaço onde é encontrado, os cuidados na coleta, o
novo como alimento e a partir de qual idade pode ser consumido.30
30
Consultei a obra de Ribeiro (1988), Dicionário do Artesanato Indígena, para ver o trabalho de outras etnias
com caramujos e conchas, como, por exemplo, entre os povos karib do Alto Xingu, os Xikrin, Borôro e Karajá.
Assim como os Marubo, também os Matis usam auriculares (paosti) e estilete nasal (romoshe), feitos com o
mesmo caramujo (novo). Seria preciso realizar uma documentação comparativa com outros povos pano.
90
Yoã vana sheni aya, marubo yora shovia namã nã, china vana anipa yoã yavõ
shovõ katxivarãsh yoã paoa ivo, kenane sete vakῖsho.
“Há uma história antiga, que vem desde o inicio do povo marubo, e que os grandes
contadores de história costumam narrar quando estão reunidos em suas malocas,
sentados nos longos bancos masculinos”.
Neskaki kẽchῖtxorasῖ vevo yoã tivo, yora shovia namãsh, Kanavoã, wakapasha
yama oῖnã, chinãki: wakapasha ayaima tῖparivi, aweshõ txipo kaniyavo anõ china
matsi ati, a ayama nõ shokoi?Askainã, Kanavoã matsi awa shavã, vivaikῖ nuvowã
shovi mavaikῖ waka revõ tsaoῖ, waka netsomisi inã. Askavaikῖ aoki matsi yawa
mapo vivaikῖ novowã wetsa shovi mavaikῖ waka revo wetsarasῖ setẽ aῖti, wakarasῖ
netso misi, nashaimai ano kesosho a rakanõ inã. Waka vene pavose shovi mashõ
rakã misi inã ã teã rasῖ shovi makῖ rotsẽ, matsi awa ovo vivaikῖ nuvo shovi mawaikῖ
tsaoῖ, matsi yawa ovo vivaikῖ teã revõarasῖ seteῖ, teãrasῖ netso maima ave setenovo
inã. Nuvõ akaki waka matsika akῖ tsaõki, nasha mama mestẽkῖ põpo imaya.
Assim contam os kẽchῖtxo-rasῖ. Muito tempo atrás, nos primórdios dos Marubo,
Kanavoã31, ao ver o mundo sem água, pensou: se a água é tão importante para os
homens se refrescarem e se ela dá a vida, como podemos viver sem ela? Então,
Kanavoã pegou matsi awa shavã, o tórax da anta, transformando-o num grande
caracol, dando-lhe uma nova vida, dando uma nova forma ao tórax da anta, e
colocou este caracol gigante nas cabeceiras dos rios, para que nunca faltasse água,
para que não deixasse o rio secar.
Repetindo o mesmo gesto, pegou a cabeça de uma queixada (matsi yawa voshka) e a
transformou em outro caracol gigante, colocando-o nas cabeceiras dos outros rios, garantindo
assim que todos os rios ficassem cheios, caudalosos. Como não existem apenas os grandes
rios, temendo que o mundo se tornasse sem graça, ele usou os testículos da anta (matsi awa) e
da queixada (matsi yawa) para transformá-los em pequenos caramujos, colocando-os nas
cabeceiras dos igarapés para que nunca secassem e continuassem sempre cheios. O caracol
ajuda a manter o frescor da água, faz o rio ficar mais farto, aumentando a sua potência.
31
Kanavoã é o nome do que seria, para nós Marubo, o criador do mundo.
91
Como tudo tem mito de origem, perguntei para meu pai e para os kẽchῖ-txorasῖ,
‘xamãs’, qual seria novo awe chinãne aka vana, a ‘explicação do aruá nas palavras de
pensamento’. Queria ouvir também a explicação dos kẽchῖ-txorasῖ sobre os adornos feitos de
aruá’. Eu havia recebido um convite do Museu do Índio para participar da Primavera no
Museu, no mês de abril de 2015, para que contasse um mito ou uma história do meu povo.
Tinha tanta coisa para contar, mas como não sabia o que poderia contar, resolvi pedir ajuda ao
meu pai pelo celular e imediatamente ele me respondeu: “Filha, porque não contas o mito da
origem da água através do aruá e o surgimento do enfeite de aruá?”. Gostei muito da
narrativa e ela tinha tudo a ver com a minha pesquisa. Segue, então, um resumo do mito do
aruá contado pelo meu pai, um exemplo de mito associado ao trabalho manual.
Kẽchῖtxorasῖ askakῖ shõti vana, china vana aka yoshovia yoã yavosho, nuvo
rane awe chinayavo rane-yawavo atõ pia keska kῖ chinai maivã, aska akῖ
atõpiarivi ikῖ chinatõ.
32
O curso “Antropologia da Paisagem: teoria e paisagem ameríndia”, ministrado pela professora Luiza Elvira
Belaunde no PPGAS-MN, primeiro semestre de 2015, me deu a oportunidade de ter acesso ao texto de Berque
(2013) intitulado “El pensamiento paisajero”, que me ajudou a pensar o que as mulheres contavam sobre vei
vai mai, ‘o caminho de acesso à terra-morte’, visto como retorno à origem após a morte.
92
vaiki rane-yawvõ atõ aῖ potani shoa voki ave atõ nesheti rane awe ave
shovimanõvo inã, anõ kaya yoi ati china vanayai shokosho, txipo kaniyavo
shavo atõ mevi yosima shokosho, shero shokoi chinã yosima shokoi amisvo
inã.
Shovia kiri askai anõ meiti ivo iki yona yosina kai karã, aska aka keskaki
aῖvo rasῖ nuvo vishõ rane awe shovi maoa. Marubo yorasho, anõsho a ivovo
yora ikῖ, anõsho onãti westipaki, marubo narivi, iri ashkãyasho saweti,
marubo sho askakῖ onãtakῖ, vei kaῖki ã saweti. Nuvo awe aῖvo mevi revõsho
shoviya, vene anõ meiki marivi, awẽ yoã vanaro askai ã shovia inã vene
kẽchῖtxo, romeya isῖteneya mẽ ã ikarã mainõ ã onãti nasho.
Com respeito a sua origem e a forma como tiveram conhecimento dos seus adornos,
as mulheres marubo seguem um conjunto de regras na coleta do nuvo e no preparo dos
adornos. Para o povo marubo, o novo awe (indumentária marubo) é uma forma de
“certificação”, uma característica estética única, pertencente somente aos Marubo, que tem
uma função de diferenciação tanto na vida real, como também, acreditam os Marubo, na vida
após a morte. O aruá é um conhecimento feminino, não é produzido pelos homens, apesar de
fazer parte dos conhecimentos cosmológicos dos homens xamãs e pajés para contrastar
doenças que o nuvo pode causar.
Conversando com Tamasai (Dionizia), oriunda da aldeia Boa Vista no rio Ituí
(2010), a importância do novo, para as mulheres, já pode ser observada quando apenas se
pensar em ir buscá-lo. Por não existir em qualquer ambiente, a procura do novo é intensa.
Além disso, ele é um ser vivo que se desloca, mesmo que não seja por grandes distâncias.
Quando alguém encontra um nicho de aruá, coleta-se grandes quantidades. Aqueles que vão
depois, seguindo as indicações do pioneiro, coletam uma quantidade menor. Como já sabem
que os novo-rasĩ gostam de viver em áreas alagadas (como nos lagos, nos igarapés e nos
93
buritizais), quando acompanham seus maridos nas caçadas, as mulheres aproveitam para
vasculhar estes locais por onde passam.
Os humanos competem com os animais que se alimentam do aruá, como pacas e
porcos. Ao se alimentarem, estes animais destroem a parte que as mulheres utilizam para
fazer o colar. Quando uma mulher marubo sai para coletar aruá, já deve ter em mente qual
adorno (ranë awë) pretente preparar: pulseira, cinto, gargantilha, narigueira, coroa, enfeite de
coroa, brinco de narigueira, entre outros.
Quando irmãs, primas e tias se encontram, as conversas se enriquecem quando
mostram e comentam seus ranë awë-rasĩ (conjuntos completos de enfeites), contando
pequenas narrativas de como buscaram o novo para produzir cada par de colares. Estas
estórias pontuam as pequenas atividades do cotidiano marubo: nas andanças de caçada, nas
pescarias, nas coletas de frutos, sementes, entre outras atividades. São sempre dadas
explicações sobre a estação do ano e na companhia de quem foram encontrados os novo-rasĩ,
para produzir aqueles pares de colares.
Lembro, por exemplo, a história que Mashe me contou sobre quando ela era bem
nova e estava aprendendo a produzir adornos com o aruá. Sua irmã e seu tio viajaram para
txanawaka (região do Acre), pois nesta época os nawa (não indígenas) compravam peles de
animais. Mashe ficou com a avó na aldeia e as duas foram coletar o fruto itxivi (sapota). Em
suas andanças para pegar as sapotas, elas acharam aruás: a avó fez questão de ajudar a neta a
trazer os caramujos, para ela fazer o colar. A pequena Mashe fez uma gargantilha para si
própria, um paoti para sua avó e uma narigueira (reshpĩ) para presentear a irmã quando ela
retornasse. Quando a irmã retornou, trouxe um pente dos nawa e um tecido. Mashe deu a
narigueira, que foi o maior presente que poderia dar na época com o seu apredizado. A irmã
guardou o presente e, quando se reencontravam, relembravam daquela época, em que foram
criadas sem mãe (que tinha sido sequestrada pelos Mayoruna/Matsés).
Mashe ressalta:
Vene awen wetsamavorasin anon noika, anon kakaya akinpa askash
oi an ivo, na wetsa maton, awe roapa em inan non na iki chinan ton
ashomatsawa, na askamaino an aini ari rivi txitxã ashovaiki tin asho
tiki, anto inantikin an yoanti tanasho.
Segundo Mashë, oriunda da aldeia Maronal no Rio Curuçá, para se coletar o nuvo
deve-se agir com todo o cuidado. Quando as pessoas se preparam para procurar o nuvo, têm
que ter pensamento positivo, para não atrair coisas ruins33 e para não ouvir o presságio de
algum animal. Conta-se que uma mulher chamada Shëtã Vëka (Cesarino, 2013: 129) deu à luz
alguns animais e que cada um deles teve sua função em noticiar algum presságio.
Quando alguém estiver preparando algo e ouvir um animal dando um aviso, deve-se
abandonar imediatamente a atividade de produção ou a coleta que estiver realizando. Esta
paisagem sonora, formada pelos animais do ambiente, que têm como ancestral a mulher Shëtã
Vëka, pode ser comparada com o conceito de ambiente de Barreto Filho (2012), citado por
Veronica Aldè (2013: 53):
33
Quando amanhece com o ceu nublado, os Marubo não costumam sair para o mato.
95
As duas fotos reproduzidas abaixo explicam o preparo de enfeite de aruá. Na foto 43,
da esquerda para direita, temos: 1- três novo-rasῖ inteiros, 2 - prato de barro txaro-ikitaya, 3 –
tsosa-taya, 4 - michpo para o preparo do branqueamento das contas que ainda estão com as
películas pretas, 5 - osho-taya foi feito o branqueamento, 6 – ota-taya prontinhos para ser
enfileirados com linha de tucum ou linha de pipa. Na foto 44, temos: 7 – sheo-txiri-taya palito
de tucum com agulha ou arame amarrado na ponta; 8 – pani-maia-taya um novelinho de
tucum para enfileirar as contas de aruá.
2 3 4
1 5 6
96
Foto 45: Da esquerda para direita: novo inteiro, txaro-kitaya, tsosa-taya, michpo para o preparo do
branqueamento, osho-taya, ota-taya.
4> michpo
2> Txaro-ikitaya 7> sheo txiri-taya
1>três nuvo
6> ota-taya
8> pani-maia-taya
5>osho-taya
Foto 46: novo inteiro, txaro-kitaya, michpo para preparo do braqueamento, osho-taya, palito de
tucum com agulha ou arame amarrado na ponta, contas furadas e linha de tucum para
enfileirar contas.
34
VBLZ = verbalizador.
98
de cerâmica, e este numa fogueira com fogo baixo. As continhas são misturadas com as cinzas
que resultam da queima de shẽwẽ karo (‘espécie-de-árvore lenha’). Quando estão ao fogo,
mexe-se com uma espiga de milho sem parar, sempre observando a película saltar das
continhas. Deve-se tomar cuidado para não deixar esquentar demais, para não queimar as
contas. Quando estas estão quentes o suficiente, é dado um choque térmico com água fria. De
leve, se esfregam as contas com as mãos até ir retirando, pouco a pouco, toda a película preta
da concha. Então, para enxaguar, espreme-se limão por cima e deixam-se as contas sob o sol,
até ficarem bem branquinhas. Atualmente, as mulheres marubo utilizam água sanitária em vez
de limão.
Foto 51: novo tsosaya, michpo, novo-oshoya (contas de aruá, cinzas e contas de aruá branco)
Foto 52: novo otama, sheo txiriya, novo otaya (contas de aruá não furadas,
palito de pupunha com arame na ponta, contas de aruá furadas)
(5) Këwã (verbo): depois de furadas, as continhas são enfileiradas uma por uma
utilizando linha de tucum ou linha de pipa.
Foto 53: pani maia, novo otaya (novelo de tucum e contas de aruá furadas)
(6) Shakia (verbo): polimento em cima de uma tora de madeira pequena com
pedra/esmeril e água para não levantar poeira e facilitar o acabamento.
35
Chamo de “destino de origem” os lugares para onde vão as “almas” (vaká) das pessoas após a morte. Estes
destinos variam de acordo com o pertencimento clânico da alma/pessoa: cada clã tem seu lugar específico no
pós-morte.
103
Entre los criterios que, según el autor, permiten diferenciar las culturas en donde el
paisaje ya es un objeto del pensamiento, destaca la existencia de una o varias
palabras para decir “paisaje” y el planteamiento de una reflexión explícita sobre “el
paisaje”.
Discorri sobre o novo, o caramujo do qual são produzidos muitos dos enfeites
marubo, pelas palavras dos meus protagonistas: nokẽ shenirasῖ rane awe, nõ aya shovia rane
awe (nosso trabalho de enfeite dos antepassados, o trabalho para enfeite desde o tempo que
surgimos). Passo agora a outra matéria-prima e outros produtos do saber artesão das mulheres.
Pani é o tucum (Bactris setosa), tucunzeiro, ticum, nomes derivasdos do tupi tu'kum,
uma palmeira que cresce formando touceiras densas. Atinge de 10 a 12 metros de altura. Tem
caules coberto por espinhos, muito ornamental. Seus frutos – os coquinhos txeshe - são
esféricos, com cerca de 2 centímetros de diâmetro. Quando verdes, contêm pequena polpa e
água no interior, como o coco-da-baía.
36
Ni-shava: habitat ou morada na floresta.
104
Outras palmeiras que irei descrever como chini e pĩtxo palmeira chamado murumuru
que fornece matéria-prima. O chini-rasĩ crescem formando touceiras densas e tem caules
finos e cobertos de espinhos. É encontrada na região de terra várzea. Atinge de 1 a 4 metros
de altura. Seus frutos pequenos têm o tamanho de bolinhas de gude. Quando verdes, contêm
alguma polpa e água no interior, como o côco. Pĩtxo ‘palmeira muru-muru’, de caules
robustos e cobertos de espinhos. Atinge de 1 a 4 metros de altura. Seus frutos são
coquiunhos com forma de pingo d’água, que, quando verdes, contem polpa e água no
interior, como o côco.
105
elas usavam dentes incisivos de esquilo (paka), enfileirados com linha de tucum. Na hora do
polimento, as mães ajudavam suas filhas, de modo a incentivar a sua produção de colares.
Uma vez o colar pronto, a mãe escolhia uma pessoa mais velha com notória agilidade e
habilidade na produção de artefatos, para ela doar o primeiro colar feito por sua filha. Este ato
era uma deferência que honrava as pessoas dentro da sociedade marubo.
Foto 63: Da esquerda para direita: caroços de tucum inteiro, contas prontas para serem
enfileiradas. linha de tucum para enfileirar as contas, contas já enfileiradas e já no formado de
colar.
Os materiais de coco de tucum que estão na foto acima foram trazidos pelas
mulheres marubo oriunda das aldeias Paraná, Boa Vista e Carneiro do alto rio Itui e, como
acompanhante das mulheres, por Paulo Marubo, Coordenador Geral da União dos Povos
Indígenas do Vale do Javari-UNIVAJA. Todos participaram da exposição “No caminho da
miçanga”.
Os principais passos no processo para txeshe ranë awë shovi-ma - produção dos
enfeites de côco de tucum - são cinco:
Foto 65: pane eshe txaro-kita shasho matxi (fazendo lascas de caroço de tucum em cima da
pedra)
Segundo Fátima (Toro Vane), oriunda da aldeia Pentiaquino no médio rio Ituí, echta
é um fruto bem amargo que dá numa trepadeira muito alta, visado por esquilos e araras
vermelhas. Não pode ser pego diretamente com a mão; para descascá-lo com facilidade, é
preciso deixá-lo de molho no igarapé em um cesto, de modo a amolecer a casca e, uma vez
descascado, é deixado secando ao sol. Há mulheres que deixam a casca amolecendo até
apodrecer, para poder iniciar txaro-ka, tsosa, keoa e shakia. Disse Toro Vane: “Minha mãe
contou que antigamente as mulheres faziam colar de echta para os meninos, para que a
criança pudesse crescer forte e impedido de adoecer. Perguntei a ela se o echta não pode ser
usado por adulto. Ela respondeu: “sim, pode, ele pode ser usado como colar de complemento
no pulso e no pescoço, não é igual a aruá e nem a PVC” ”.
Cito novamente o texto de Aldè (2013), “Sustentando o Cerrado na Respiração do
Maracá: conversas com os Mestres Krahô”, sobretudo na parte em que é citado o trabalho de
Barreto Filho (“Meio ambiente em perspectiva”; Barreto, 2012), ao observar o trato com os
materiais extraídos da natureza, tomando o ponto vista das mulheres para lidar com o mundo
humano e o mundo não humano. Para qual finalidade faço para meu filho um colar de dentes
molares de macaco prego? Quero que a criança cresça tendo facilidade e habilidade em matar
animais que vivem na copa das árvores. Das frutas da trepadeira denominada em Marubo de
echta é feito um colar, usando o mesmo processo pelo qual são feitos os colares de coco de
tucum: ao dar esse colar para uma criança, o amargor da fruta fará com que ela não tenha
febre.
112
Foto 71: Da esquerda para direita: Echta sem casca, txaro-taya, tsosa-taya e já com furos.
Os principais passos no processo de produção dos adornos feitos com o fruto echta -
echta ranë awë shovi-ma - são cinco e são os mesmos vistos anteriormente:
(5) Shakiya (verbo): depois de enfileirar as contas, fazer polimento com esmeril e
água para evitar não levantar a poeira.
FUNAI nawarasῖ Posto shovimanõ inã vekῖ, noke yora rasῖ vesoni vekῖ atõ
vivarã venerasῖ anõ meiti awe, aska naneyarasῖ, balderasῖ, canecorasῖ,
mosquiteirorasῖ, rouparasῖ, raorasῖ, piarasῖ, nõ oῖmarasῖ akarasῖ. Askaki,
atõ awe wetsarasῖ mã nõ vevo oῖya. Atoma nõ vevo oῖya nawarasῖ atõ anõ
meiki kẽsh, tepirasῖ, askamainõ aῖvo rasῖro, vatxi õpo, sheo,resisi akarasῖ.
Para começar a despertar o interesse de outras mulheres, a sua bisavó (avó materna
do meu pai) Erminia Maia - Raneshavo, por ser sogra do Chãti Tiako, quebrou espelhos com
moldura de plástica cor de laranja e fez gargantilha para seu bisneto. (Chãti Tiako é a maneira
em que é pronunciado na língua o nome San Tiago, um homem que na década de 40 veio no
meio do povo Marubo, ainda criança, descendente de peruano seringueiro, e se tornou esposo
da Ino/Iracy – Nishavo, filha mais nova da Erminia Maia).
Outras mulheres começaram a usar frascos de xarope (conhecido como shata patĩ
para niki), e avançaram mais quando os funcionários da FUNAI construíram uma casa de
alvenaria na aldeia trazendo PVC para fazer pias e privadas. Algumas delas mandavam
adornos de PVC para seus parentes (irmãs, sobrinhas, tias, avós, mães), que estavam ainda nas
cabeceiras dos rios Ituí e Curuçá. Eram presentes vistos como sendo os melhores possíveis
para as suas famílias. Enquanto no rio Ituí as mulheres marubo eram exploradas pelos
missionários das Novas Tribos, produzindo novo awe em trocadas quantidades miseráveis de
miçangas, no rio Curuçá corria a notícia da descoberta de como usar PVC.
116
(2) Shatea (verbo): cortar com a faca e martelar com pedaço de ferro para obter a
espessura ideal para cortar em tirinhas e depois cortar em quadradinhos.
(3) Ota (verbo): furar as continhas quadradas com agulha ou arame grosso ou com
armação de guarda-chuva.
(4) Txista-ka e txishoa (verbo): cortar biquinho criado pela agullha na hora de
furar.
Foto 80: shata tsista-ka ou txishoa (cortando o biquinho criado com furo de agulha)
118
Foto 81: shata tsista-ka ou txishoa (cortando o biquinho criado com furo de agulha)
(5) Keoã (verbo): depois de terminar txista-ka e txishoa, enfileirar as contas com
linha de pipa.
Foto 82: shata otaya (contas furadas prontas para serem enfileiradas)
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(6) Shakia (verbo): fazer polimento com esmeril, depois de enfileirar as contas,
com movimento circular da mão, até o colar ganhar seu formato tubolar.
Shata awe nõ titaki aka, awẽ patxi pari rivi, aῖvo kane vena vakῖsho Mãtxã
Txichtxo atõ aka ẽ papã aῖ aka nawa oῖno inã voshõ, vene rasῖni nawa merasho,
mara eshe vivaikῖ,roa kachta akῖ shate vaiki mevῖ-osõti amaivo, ato võro roakachta
akῖ shate shate vaiki, otai, keõi, shaki avaikῖ atõ tewe varã mainõ, aῖvo vetsarasῖ
kẽi, nawã awe ravãki, awẽ mevi-revõsho atõ shovi mavairi mekῖ, askaka. Anosho
askakῖ onati ashõ, aῖvorasῖ shata pati aki shovia, na rão shaka, ene-shaka aka.
Aska asho, shata ã kavimapa akῖro naa nawa rasῖni vivarã, anõ shovo ati shata
mõti revo vivaikῖ, wa ẽ takẽ shate shate, otai,keõi avaiki ãwẽ oῖrotsẽ awẽ tsista
akama ivai tõsho oraka rono kawãã, aska oῖnã ẽ õtxivai ikῖ, wa Noma-shavõ-ewa
Txi-shavo aka yoãshoatῖ, awẽ askaka atovõ vivaikῖ, weshai,
shatei,otai,tsishaki,keõi, avaikῖ atõ shakia tovo awe keskase, aska tõsho
wetsarasῖti.
Nosso fazer de shata iniciou com os plásticos, quando levaram duas moças para
visitar os nawa-rasῖ viram uns frascos de cartucho, os homens pegaram e cortaram
para fazer anel, e as mulheres por sua vez pegaram cortaram formado de continhas
enfileiram e poliram para fazer gargantilha. Quando outras mulheres viram,
gostaram muito e acharam que duas mulheres haviam comprado dos nawa-rasῖ. A
partir dali descobriram que podiam fazer colares de plásticos de outras cores. Mais
tarde chegaram entre nós os nawa-rasĩ fazendo sua casa trazendo o tubo para
encanamento da casa, vendo isso minha irmã pegou pedaço de tubo de PVC cortou
em formatos de contas, furou com arame, enfileirou e polio. Mas não fico satisfeito
com estética, pois as contas tinham ficado todas afastadas uma das outras no
enfileiramento. Mostrou para outras duas mulheres Noma-shavõ-ewa e Txishavo.
E elas vendo foram tentar fazer o mesmo processo, mas antes de enfileirar
contaram biquinho feito pela agulha e assim o colar ficou perfeito, dali foi copiado
por outras mulheres.
As mulheres marubo dizem que a sua própria natureza não as deixa ficar paradas sem
fazer nada: “melhor ter as mãos ocupadas do que vazias”. Assim, comentam o trabalho
considerado por elas como recreativo, do seu cotidiano. Há muito mais a dizer sobre o que
criam com as pontas de suas mãos, há mais artefatos a serem descritos:
Txitxã (cesto), pani shãko ikita, feito de folha nova de tucum, para guardar
adornos, e pequenos objetos. Seus kene-rasῖ, ‘grafismos’, são: one-aka (formato de
movimento) e sῖki-ka (formato circular).
Foto 88: wekoti e pichin (abanador e esteira feitos de folha nova de palmeira)
123
Pani (rede de tucum): para tirar as fibras de pani, as mulheres falaram que
tem que tirar as folhas novas de tucum, fazer as folhas se soltarem do talo, tirar os
espinhos das folhas laterais, abrir uma por uma as pontas das folhas com pequenos
golpes na superfice das folhas que ajude a tirar as fibras.
Nas duas fotos abaixo, vemos vatxi (saia) feita com linhas de crochê, com os
grafismos kene sheta-aka (‘imitação de dente’), vinõ ranõ-aka (imitação de desenhos
de frutas de buriti) e sheta-aka (imitação de dentes). Como pode se observar na foto
85, a saia é tecida usando um tear feito com quatro seções de tronco de árvore e dois
caules de pupunha em formato de espátula. A saia tem medida de braço aberto como
comprimento e dois palmos de largura.
125
Foto 92: Saia feminino feito de crochê (kene sheta aka ‘grafismo imitação de dente’)
As fotos abaixo, oshe (tornozeleira), a primeira feito de linha de crochê com kene
sheta aka ‘grafismo imitação de dente’, com cores alternadas; a segunda é feita de linha de
costura, com kene sheta aka ‘grafismo imitação de dente’ no meio shavo ina kene ‘grafismo
imitando desenhos de rabo de calango’.
126
37
Tiris-ka (fiar) é o processo transformação do algodão em fio. O fuso é feito de talo de palmeira (o palito
denominado pelos Marubo de kõta), que tem comprimento de dois palmos; o disco de apoio é de cerâmica (a
partir do barro) e é chamado ivi (foto 91).
127
Foto 98: resisi shoko, tirik-kitaya (novelos e linha de algodão enrolada no fuso)
Foto 100: Recepção pelo diretor do Museu do Índio, José Carlos Levinho (13/09/ 2011)
Segundo a explicação da Tamã Sheta, o nome wakaia vem da forma como são
servidos os convidados da festa: as mulheres levam alimentos nos potes (pintados para
impressionar os convidados), como waká de milho, waká de banana, waká de mamão e waká
131
de mandioca38 e, nos cestos, carnes de diversos tipos e também bananas, batatas, e mandioca
cozidas.
Tanamëa é a forma como o organizador faz seu convite: anuncia com antecedência
avisando a todos que ele irá realizar a festa, para que os convidados possam preparar seus
adornos, sendo que as noticias correm por conta dos visitantes. Depois de alguns dias, antes
do wakaia, o organizador da festa vai ao solene encontro dos convidados, para avisar que
iniciem a se organizar. Nessa sua chegada, em uma das aldeias, ele é carregado, faz seu tsaῖka
(fala em forma cantada) justificando sua presença.
A festa wakaia/tanamëa é realizada pelo homem kakaya como encontro geral do
povo Marubo, onde todos possam mostrar suas artes: colares, cerâmicas, lanças, flechas,
chapéus. Os sobrinhos do anfitrião fazem seus enfeites mais engraçados para impressionar as
filhas do anfitrião. Para realizar esta festa, o kakaya prepara uma grande roça com a ajuda dos
outros homens das aldeias próximas, homens que vão ajudá-lo na organização e recebem o
tratamento kãpoki (injeção de ‘veneno’ de sapo) para expulsar o desânimo e a fraqueza, bem
como tomar rome waká (mingau de tabaco) e shoko waka (espécie de planta do mato) para
limpar o estômago e vetxeshkita (vestxeshti é uma espécie de folha do mato) para ter rapidez
na visão quando estiver no mato. Também preparam suas lanças, flechas, chapéus de pena e
cestos, e são pintados pelas suas mulheres com jenipapo e urucum.
As mulheres fazem grandes potes de cerâmica onde preparam alimentos para as
pessoas que estarão presentes na festa, fazem também peneiras e vatxi (saia de algodão) e
colares. Segundo Felipe e as mulheres mais velhas, que estavam presentes na oficina no
Museu do Índio - RJ, a preparação inicia no inverno e o evento acontece no verão. As mais
jovens que participaram da ultima festa wakaia/tanamea disseram que foram necessários seis
meses para realizar todos os processos preparatórios.
Segundo Cherompapa, Shapompa e Tupane, quem deu origem à festa
wakaia/tanamëa é o ser chamado Ni Shopa. A história conta que Ni Shopaera era o mais novo
de dois irmãos. Ao se tornar jovem, virou kakaya por ser espírito festivo, do clã ni-nawavo.
Antes de realizar o tanamëa, Ni Shopa falou para seu irmão, Wasa: “como você pode me
ajudar se nasceu alejado, sem poder andar? Wa vai wetsã miã oῖ oῖ vãta aavãtῖpase txãto tsao
kawãti?. “Não podemos dividir as tarefas, você é alejado e só fica ai sentado”. Assim saiu
rumo à estrada para fazer tanamea e, desse modo, cumprir seu compromisso de chefe.
38
waká é mingau de milho, banana, mamão ou batata; passa por fervura por um bom tempo e, em seguida, é
peneirado.
132
seguinte, vão à caça, que dura mais ou menos uma semana, dependendo da quantidade de
caça que eles conseguirem.
A chegada dos caçadores é anunciada por gritos, por sons produzidos por
instrumentos de sopros feitos com pedaços de bambu de mais ou menos 50 cm e, também,
percutindo ako (tora de madeira). Segundo Isa Pëi Maia e Varin Vanti (esposas de Felipe), as
mulheres que chegaram ajudam na preparação da comida, waka, enquanto outras ajudam a
pintar os corpos de homens e de jovens. Depois de alguns dias de wakaia, o organizador,
antes de sair da sua casa, dança e canta, e vai ao solene encontro dos convidados, para avisar
que iniciem a organização da viagem de suas aldeias para o grande evento. Nessa chegada em
uma das aldeias, ele é carregado e faz seu tsaῖka (fala em forma cantada), justificando sua
presença, enquanto na sua casa seu ajudante dança e canta dizendo como os bens do anfritrião
sentem falta de seu dono e como os amigos e, principalmente, a casa do anfitrião sentem falta
deste. Esse ritual protege o anfitrião em seu retorno à aldeia.
Assim que ele chega à primeira maloca, ele explica ao dono da maloca o motivo da
sua visita em tsaintῖ (outra forma de fala cantada), depois segue sua jornada de caminhada de
tanamëa (convite). Terminando seu tanamëa (convite), ao retornar para sua aldeia, o kakaya
anuncia sua chegada através do ako (tora de madeira), e tdos os que lá moram se reúnem para
ouvir as noticias que ele está trazendo consigo.
A festa wakaya/tanamea é muito importante para o povo marubo, porque o kakaya a
realiza para rever os familiares que moram em outras aldeias distantes e também para ele
provar a sua importância como líder, bem como o afeto e o carinho que irá receber por
realizar uma festa que contagiará o povo desde o momento em que a notícia começará a
circular entre os taname-katsavo (convidados). São seis meses de preparação durante os quais
a expectativa cresce a cada dia. Enquanto esperam, os que vão ser taname-katsavo
(convidados) preparam os adornos que serão apreciados pelo dono da festa e pelos outros
taname-avo (convidados).
134
CONSIDERAÇÕES FINAIS
39
Chinã vana-rasin significa ‘falas dos pensamentos-vidas’
40
yoã vanasho iraviki nanan = se acusam de não saber contar falas das vidas.
135
Minha mãe me dizia que a questão não é não saber contar história, mas a forma como
cada família recebe o ensinamento, o modo da pessoa receber o preceito do trabalho perfeito
com uma artesã, tendo o prestigio de manter consigo o ensinamento do saber tradicional.
Assim, na maioria das vezes, a falha no padrão de fazer é culpa de quem ensinou. O ponto
relevante, o que faz a diferença, é a origem dos anciãos que repassam o conhecimento
tradicional, seu pertencimento clânico, o papel dos clãs para os comportamentos e as atitudes
do individuo na sociedade.
Após nove anos sem ir a minha aldeia de origem, São Sebastião, a aldeia dos meus
parentes paternos, me senti deslocada ao querer fazer qualquer pergunta, pois ‘agora ganhei o
rótulo de fazedora de projetos no mundo ocidental, enquanto antes eu era apenas uma
estudante’. Para as mulheres com as quais fiz o projeto Aῖvo-rasῖ meti, eu estava chegando nas
aldeias como compradora de miçangas ou ajudante de compras de artefatos para aqueles que
fazem artesanatos.
Para minha pesquisa acontecer, tive que correr atrás do recurso financeiro necessário
para os deslocamentos até as aldeias, pois, depois que os Marubo se acostumaram a viajar
com os meios de transporte fluvial do nawa, o acesso à terra indígena passou a custar muito
caro. Como mestranda, estudante mulher indígena, mas sem o apoio de uma organização
indígena, pedi ajuda ao Museu do Índio/FUNAI-RJ e fui atendida.
No dia 12 de abril de 2016, consegui combustível para subir o rio Curuçá, tributário
do rio Javari, viajando rumo às aldeias para encontrar meus parentes, pegando carona com
meu primo, professor Alciney, da aldeia São Sebastião. Fazia dez anos que não aparecia por
lá, por conta dos meus estudos, sem a presença da minha mãe (Tamã Sheta/Nazaré filha de
João Tuxaua com sua segunda esposa). Fiz uma viagem não tão otimista, estava preocupada
pelo que iria perguntar aos meus consultores e parentes, até porque eu não sou nawa-shavo.
Pensei em não fazer perguntas para não me distanciar tanto deles.
Precisava me concentrar na minha pesquisa para atender ao pedido das mulheres,
para coletar os relatos sobre o trabalho que educa e ensina a sabedoria tradicional no mundo
marubo, pois minha mãe e os seus pais são considerados marubo tradicionais (shavo yomemã
136
vake e sheni wetsã vake41). Não poderia estar tão desvinculada da cultura do meu povo, mas
por ter me ausentado enquanto ainda era criança, por mais que meus pais tivessem se
esforçado para me transmitir o conhecimento do meu povo, contando oralmente a cada
oportunidade, eu não tenho a mesma experiência cotidiana que distingue as minhas irmãs,
criadas na aldeia. Não estava convencida de que poderia fazer uma boa pesquisa, agradando o
meu povo e adequada à academia, no padrão da universidade na qual estudo.
Mesmo com toda a insegurança que carrego, enfrentei uma viagem não tão
inspiradora, no clima amazônico da Terra Indígena do Vale do Javari sempre cheia de
surpresas. Às 7 horas da manhã o sol estava forte, escaldante. Além disso, nosso transporte
estava sem cobertura para se proteger do sol e da chuva. Apesar de ter vínculo clânico com o
sol, não estava disposta a me expor a ele, preferindo receber seu calor estando na sombra da
floresta.
Apesar da dificuldade, insegurança, pessimismo e estranhamento que carreguei
comigo nessa viagem, tive a certeza de que estava com minha família, senti que precisava
voltar muitas vezes, para que eu pudesse amadurecer e compreender aquilo que queriam me
passar sobre o conhecimento tradicional, o que exigia compreender o sistema dos clãs e sua
relação com o trabalho manual, o comportamento, o modo de ser de cada artesã.
Usei basicamente meu caderno de campo, pois não conseguia fazer com que minhas
interlocutoras colaborassem comigo na hora de gravar suas vozes. Quase sempre, ao acionar
meu gravador, surgiam outros assuntos menos os que queria ouvir. Senti muita falta da minha
mãe. Era ela que explicava as conversas tidas com meus interlocutores e me fazia entender
melhor as questões em jogo. As falas das mulheres eram, para mim, repetitivas, mas, depois,
lembrava as palavras de minha mãe: “contando uma história, queremos sempre ter certeza de
que o ouvinte se lembra do que falamos”.
41
shavo yomemã mulher mais velha e sheni wetsã palavra que se refere homem mais velho.
137
Por eu ter nascido no auge da luta do meu povo pela demarcação da terra e do
processo de construção do movimento indígena/indigenista, meu pai pensou em me preparar
no mundo dos nawa-rasῖ para estar à frente da organização tendo conhecimento entre dois
mundos, pois não há possibilidade de recuarmos diante dos não indígenas. Nossas sociedades
confrontam uma espada de dois gumes: se pensarmos em permanecer no nosso mundo
ignorando a existências dos nawarasῖ, sempre verão nossa cultura como atrasada, outras
sociedades não darão valor ao nosso conhecimento, a nossa história, ritos. Pensando dessa
forma, hoje em dia os pais mandam seus filhos para a cidade com a finalidade de estudar para
que no futuro eles ajudem a protegê-los da sociedade não indígena, aprendendo a falar, ler e
escrever.
Voltei do mundo marubo para o mundo nawa e vice-versa, muitas vezes, mesmo sem
sair da cidade de Atalaia ou de Manaus ou de Benjamin Constant ou do Rio de Janeiro, mas
foi a necessidade de realizar uma pesquisa ‘em campo’ para produzir uma dissertação e
concluir o mestrado que me fez voltar, de fato, a uma aldeia marubo, minha aldeia. Aprendi a
valorizar os chamados ‘trabalhos manuais’, surgidos nas mãos dos artesãos, por começar a
entender um pouco o mundo de conhecimentos e história(s) que está neles.
Restou o desafio de entender os modos de fazer e de ser nas origens clânicas. Meus
protagonistas comentavam continuamente sobre os clãs descendentes de wãsho-weneyavo
(wãsho, ‘fonte de flor’; weneyavo, ‘surgidos’) e de nãkõsho-weneyavo (nãkõsho. ‘fonte de
néctar’; weneyavo, ‘surgidos’), como base para uma classificação dos clãs. Comentavam
relatos históricos como vindo dos clãs vene-pavo e poto-pavo. Procurava manter o foco no
Nukẽ Mevĩsh Shovia Awe, no ‘saber-fazer das mãos entre os Marubo do rio Curuçá’, mas todo
um conjunto de dados e informações só fez aumentar minha curiosidade e minhas dúvidas.
Precisava pensar na ligação entre parentesco, clãs e o ser/destino do artesão. É isso que
pretendo retomar e aprofundar no curso de doutorado, entre os Marubo das duas calhas dos
rios Ituí e Curuçá.
139
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
______. Quando a Terra deixou de falar: cantos da mitologia marubo. São Paulo: Editora
34, 2013.
DEETZ, James. Invetion to archeology. Garder City, NY, The Nat. History. 1967.
MONTAGNER MELATTI, Delvair. Simbolismo dos adornos corporais Marúbo (*), Revista
do Museu Paulista, Nova Série, São Paulo, v. 31, p. 7-41. 1986.