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Universidade Federal do Rio de Janeiro

Museu Nacional

Nelly Barbosa Duarte Dollis

NOKẽ MEVI REVÕSHO SHOVIMA AWE


‘O QUE É TRANSFORMADO PELAS PONTAS DAS NOSSAS MÃOS’
O TRABALHO MANUAL DOS MARUBO DO RIO CURUÇÁ

Rio de Janeiro- Fevereiro 2017


Nelly Barbosa Duarte Dollis

NOKẽ MEVI REVÕSHO SHOVIMA AWE


‘O QUE É TRANSFORMADO PELAS PONTAS DAS NOSSAS MÃOS’
O TRABALHO MANUAL DOS MARUBO DO RIO CURUÇÁ

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa


de Pós-graduação em Antropologia Social, Museu
Nacional, da Universidade Federal do Rio de
Janeiro, como parte dos requisitos necessários à
obtenção do título de Mestre em Antropologia
Social.

Bruna Franchetto - Orientadora

Rio de Janeiro – Fevereiro 2017


CIP – Catalogação na Publicação

Dollis, Nelly Barbosa Duarte


D665n Noke Mevi Revôsho Shovima Awe. ‘o que é
transformado pelas pontas das nossas mãos’: o
trabalho manual dos Maubo do rio Curuça / Nelly
Barbosa Duarte Dollis. -- Rio de Janeiro, 2017.
139 f.

Orientador: Bruna Franchetto.


Dissertação (mestrado) - Universidade Federal do
Rio de Janeiro, Museu Nacional, Programa de Pós
Graduação em Antropologia Social, 2017.

1. Etnologia indígena. 2. Marubo. 3. Artes


indígenas. 4. Clã marubo. 5. Mulheres indígenas.
I. Franchetto, Bruna , orient. II. Título.
Elaborado pelo Sistema de Geração Automática da UFRJ com os
dados fornecidos pelo(a) autor(a).
Nelly Barbosa Duarte Dollis

NOKẽ MEVI REVÕSHO SHOVIMA AWE


‘O QUE É TRANSFORMADO PELAS PONTAS DAS NOSSAS MÃOS’
O TRABALHO MANUAL DOS MARUBO DO RIO CURUÇÁ

Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-graduação em Antropologia


Social, Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, como parte
dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Antropologia Social.

Aprovada por:

____________________
Profª Bruna Franchetto (orientadora)

________________
Profº Carlos Fausto (PPGAS/UFRJ)

____________________
Profª Lydie Oiara Bonilla Jacobs (UFF)

____________________
Profª Luiza Elvira Belaunde Olschewski (PPGAS/UFRJ, suplente interna)

____________________
Profª Elsje Maria Lagrou (IFICS/UFRJ - suplente externo)

Rio de Janeiro - Fevereiro de 2017


Para Tamã-Sheta, minha mãe, que me disse as seguintes palavras, em algum
momento no final de 2014:

Mia vana yoã shomãivo aska akῖ yoãvõ yoãrivi ikῖ keme mῖ chinãi mai, yoã vana
aa mamẽ kasma. Ãtoro anopa akῖ ã yoã mῖ ikitῖpa. Mῖ kokavo aska matsawã, shõ
ikiyavõ vana, romeyavõ vana, aka mẽkῖ, atona asho atõ ikima. Askai yoãna
rivara ikῖro mῖ akῖ, atoivo vosh aska vana ã yoãrinki aweskin yoãrai ikn
onãtakin koῖro min akῖ, ninkãki.

Você tem que escutar as palavras que são contadas do jeito que elas são. As
histórias nunca são iguais; você nunca deve dizer: “Foi ele que contou a
verdadeira história”. Como dizem seus tios (koka-vo, irmãos da mãe), nem a fala
dos pajés (shõ ikiya-vo) e dos xamãs (romeya-vo) pertence a eles mesmos. Você
deve compreender a forma específica pela qual a pessoa interpreta os
acontecimentos. Preste atenção em quem é a pessoa que narra.
Agradecimentos

Quero agradecer primeiramente o meu avô João Tuxaua (Niwa Wani) que desde
a minha existência esteve presente nos meus pensamentos, protegendo-me através dos
seus peshoti-akaivo (guia) e pela inspiração e pela força que me motivaram a seguir
nesta pesquisa. Agradeço os meus familiares, amigos, colegas, professores. Agradeço as
aĩvo-rasĩ (mulheres) marubo, as principais idealizadoras deste trabalho, que além de
confiarem em mim, me deram a responsabilidade de registrar suas falas e pensamentos,
ajudando no desenvolvimento desta pesquisa; sem elas, nada teria sido possível.
A minha orientadora, Bruna Franchetto que me recebeu de braços abertos e
compreendeu os momentos de dificuldade e provação pelos quais passei. Sem o
trabalho dela nas pontas das mãos, eu não teria chegado a concluir em tempo esta
dissertação.
Sem a bolsa concedida pelo CNPq e sem a dedicação da coordenação e dos
funcionários do PPGAS, não teria saído do lugar do começo. O Museu do Índio
(FUNAI-RJ), seu diretor – José Carlos Levinho – e todos os que lá trabalham foram
incentivo e porto seguro.
A todos os professores do curso de Mestrado em Antropologia Social do PPGAS
(Museu Nacional, UFRJ): Marcio Goldmam, Edmundo Pereira, Luiza Elvira Belaunde,
Carlos Fausto, que nos ensinaram esforçando-se para nos fazer entender qualidade e
teorias.
A todos os colegas, em especial aqueles que me auxiliaram de alguma maneira
no desenvolvimento da pesquisa com suas sugestões, e aos demais pelo convívio
durante nossa temporada no curso, com debate e discussões teóricas e metodológicas.
Aos meus amigos Aline Moreira e João Rezende pela paciência de ter me
aturado durante meus refúgios nas suas residências, haja vista a necessidade de buscar
paz para a elaboração desta dissertação. Também agradeço meu grande amigo Irmão
Nilvo que sempre esteve presente para me encorajar nos momentos de fraqueza da
jornada acadêmica. Ao meu querido colega Gustavo Godoy e às demais pessoas que me
ajudaram na formatação e na correção ortográfica deste texto.
Finalmente, agradeço a todas as pessoas que considero importantes nessa
empreitada, de coração; desculpem-me em não citar os nomes, pois são muitos, além do
que, acho, seria injusta com os demais. Espero que todos se sintam incluídos, os que me
ajudaram na construção do pensamento durante minha estadia na universidade e fora
dela, na multidisciplinaridade, no diálogo de saberes e na constituição coletiva de
conhecimentos para melhores condições de vida em sociedade.
RESUMO

O objetivo desta dissertação é apresentar os relatos dos Marubo do rio Curuçá sobre a
importância do trabalho manual, com foco nas palavras de sete mulheres marubo, que
são as principais inspiradoras desta pesquisa e que vivem nas aldeias de Boa Vista e
Nazaré do rio Ituí e nas aldeias Maronal e São Sebastião do rio Curuçá, na Terra
Indígena do Vale do Javari (Amazônia ocidental). Enfatizo os contextos dos
conhecimentos tradicionais de modo geral e a continuidade da memória que cada artesã
traz dos seus ascendentes clânicos. Para tanto, desenvolvo uma explicação sobre os
diversos subgrupos clânicos Marubo, de forma a apresentar e ressaltar, a partir do
próprio ponto de vista das mulheres Marubo, as distinções no trabalho dos artesões de

cada subgrupo clânico e a diferenciação entre mevĩsho shovima awe, ‘trabalho das
mãos’, e mevi revõsho shovima awe, ‘produção das pontas das mãos’. Sendo assim, nas
falas das minhas protagonistas, a diferenciação na execução do trabalho manual
(‘trabalho das mãos’ e ‘produção nas pontas das mãos’), com base no pertencimento
clânico, serve para explicar e especificar o modo de ser de cada clã. A dissertação inclui
um inventário dos adornos marubo femininos e masculinos, com descrição dos
processos de produção, desde a coleta das matérias-primas, seus valores e significados,
a imbricação de tradição e inovação.

Palavras chave: Marubo; cultura material; clãs marubo; mulheres indígenas; artes
indígenas.
ABSTRACT

The aim of this dissertation is to present the stories and explanations told by the Marubo
of the Curuçá River on the significance of manual labor, focusing on the words of seven
Marubo women, who are the main inspirers of this research and who live in Boa Vista
and Nazaré villages on the Ituí river and in Maronal and São Sebastião villages on the
Curuçá River, in the Indigenous Land of the Javari Valley (Western Amazon). I
emphasize the contexts of traditional knowledge in general and the continuity of
memory that each artisan brings from her clan ascendants. I develop an explanation of
the various Marubo clans, in order to present and highlight, from the Marubo women's
point of view, the distinctions in the work of the artisans of each clan and the
differentiation between mevĩsho shovima awe, 'work of the hands' and mevi revõsho
shovima awe, 'production with the tips of the hands'. Thus, in the speeches of my
protagonists, the differentiation in the execution of manual labor ('work of the hands'
and 'production with the tips of the hands'), based on the clanic membership, serves to
explain and specify the way of being of each clan. The dissertation includes an
inventory of male and female marubo adornments, with a description of the production
processes, from the collection of raw materials, their values and meanings, the
imbrication of tradition and innovation.

Key-words: Marubo; material culture; marubo clans; indigenous women; indigenous


arts.
LISTA DE FIGURAS e ILUSTRAÇÕES (mapa, tabelas e fotos)

Foto 1: Encontro do Projeto de Extensão ‘Diólogo Femenino’ com mulheres indígenas do Vale
do Javari na cidade Atalaia do Norte-Am, 2008 (foto de Lenice Tikuna) ..................................23
Foto 2: Meus dois professores (Gilse e Rafael) apoiadores do Projeto de extensão 'Diálogo
feminino' na CASAI de Atalaia do Norte-AM, 2008 (Foto: Nelly B. D. Dollis).............................23
Mapa 1: Terra Indígena do Vale do Javari (CTI 2011)..................................................................31
Mapa 2: Vale do Javari apud Welper (2009:89)..........................................................................35
Mapa 3: Sui Waka (Rio Curuçá, desenho de minha autoria)......................................................39
Figura 1. Esquema do parentesco clânico da autora..................................................................49
Figura 2: Exemplo de esquema de parentesco clânico apresentado por Xavier Ruedas (2013:
227)............................................................................................................................................50
Tabela 1: Os pretendentes das mulheres pertencentes aos clãs...............................................41
Tabela 2: abaixo, ‘mostra o sistema da geração clânica’............................................................46
Foto 3: Ino Tamashavo...............................................................................................................53
Foto 4: Satã Sheta.......................................................................................................................2
Foto 5: Sata Mashe.....................................................................................................................54
Foto 6: Tamasai...........................................................................................................................55
Foto 7: Koron Meto.....................................................................................................................55
Foto 8: Iskõ Tama.......................................................................................................................56
Foto 9: Varin Vãti........................................................................................................................57
Foto 10: Shanen Tome ................................................................................................................58
Foto 11: Artefados expostos na Exposição “O caminho da miçanga”, Museu do Índio , FUNAI-
RJ, 2015.....................................................................................................................................69
Tabela 3: Adornos tradicionais e materiais usados para a sua confecção................................70
Foto 12: Maiti (coroa masculina; hoje é usada por ambos os sexos, tem grafismos próprios
para adornos)................................................................................................................... ........72
Foto 13: Maiti (coroa masculina; hoje é usada por ambos os sexos, tem grafismos próprios
para adornos)...........................................................................................................................72
Foto 14: Papiti (pingente de coroa feito de aruá; nas pontas, dentes molares de macaco)....73
Foto 15: Tewea (gargantilha de miçangas de varias voltas e amarrada nas pontas; usada por
ambos os sexos)........................................................................................................................73
Foto 16: Paoti (bandoleira de miçangas, de cor vermelha a masculina, amarela a feminina)..74
Foto 17: Poyã-kiri oshe (braçadeira de PVC, modelo tradicional).............................................74
Foto 18: Mevi-oshe (pulseira feminina em PVC)........................................................................75
Foto 19: Txiviti õpia (cinto feminino com varias voltas de miçangas)........................................75
Foto 20: Txiwiti mashken ikitaya (cinto feminino de miçangas).............................................76
Foto 21: Vatxi (saia feita de crochê)...........................................................................................76
Foto 22: Raneshti (jarreteira de miçangas com varias voltas)....................................................77
Foto 23:Tae-kiri-oshe (tornozeleira de tucum)..........................................................................77
Foto 24: Tae-kiri-oshe (tornozeleira de algodão com grafismo sheta aka ‘imitando dente’ e one
aka ‘imitando movimento’)........................................................................................................78
Foto 25: Tae-kiri-oshe (tornozeleira de algodão com grafismo sheta aka ‘imitando dente’ e one
aka ‘imitando movimento’)........................................................................................................78
Foto 26: Maiti (coroa com três pingentes; nas pontas, dentes molares de macaco prego)......79
Foto 27: Maiti (coroa de PVC sem pingentes)............................................................................79
Foto 28: Papiti (pingente nas pontas com dentes de molares de macaco prego).....................80
Foto 29: Tewea (gargantilha masculina de varias voltas, mas não tanto quanto a feminina)....80
Foto 30: Paoti (bandoleira masculina amarrada em forma de cruz nas costas).........................81
Foto 31: Paoti (bandoleira de PVC).............................................................................................81
Foto 32: Poyã-kiri-oshe (braçadeira de miçangas)......................................................................82
Foto 33: Mevin-oshe (pulseira de PVC).......................................................................................82
Foto 34: Txiwiti (cinto de miçangas pretas e brancas)................................................................83
Foto 35: Txiwiti (cinto de PVC)....................................................................................................83
Foto 36: Shãpati (tanga masculina).............................................................................................84
Foto 37: Raneshti (jarreteira de PVC)..........................................................................................84
Foto 37: Tae-kiri-oshe (tornozeleira de PVC)...............................................................................95
Foto 38: Coleção da autora de colares masculinos (PVC, miçangas, disco vinil).........................85
Foto 39: Da esquerda para direita o primeiro colar feito de lascas de coco de tucum, colar de
osso e colar de dentes de porcão e de macacos.......................................................................85
Foto 40: Seke tewea (colares masculinos de uma volta com cores alternadas).........................87
Foto 41: Menshte (pulseiras masculinas de uso coditiano)........................................................87
Foto 42: Tewea tetxõka (colares com várias voltas)...................................................................88
Foto 43: Novo isisi-paka keo-naya (aruá enfileirado com cipó)..................................................88
Foto 44: Novo txitxã nanea (aruá dentro de um cesto de tucum)..............................................89
Foto 45: Da esquerda para direita: novo inteiro, txaro-kitaya, tsosa-taya, michpo para o
preparo do branqueamento, osho-taya, ota-taya...............................................................95
Foto 46: Novo inteiro, txaro-kitaya, michpo para preparo do braqueamento, osho-taya, palito
de tucum com agulha ou arame amarrado na ponta, contas furadas e linha de tucum para
enfileirar contas........................................................................................................................96
Foto 47: Novo (aruá inteiro)......................................................................................................97
Foto 48: Txaro-kitaya (lasca de aruá).........................................................................................97
Foto 49: Tsosaya (fazendo contas de aruá)............................................................................. 98
Foto 50: Txitxã ne nanea novo (aruá inteiro em cesto feminino)................................................98
Foto 51: Novo tsosaya, michpo, novo-oshoya (contas de aruá, cinzas e contas de aruá branco) . 99
Foto 52: Novo otama, sheo txiriya, novo otaya (contas de aruá não furadas, palito de pupunha
com arame na ponta, contas de aruá furadas).........................................................................100
Foto 54: Pani maia, novo otaya (novelo de tucum e contas de aruá furadas)........................100
Foto 55: Novo keõ-naya (aruás enfileirados)............................................................................101
Foto 56: Shakia (aruá após o polimento)...........................................................................101
Desenho 1: Homem com conjunto completo de adornos (desenho da
autora)......................................................................................................................................101
Foto 56: Pane-eshe (caroço de tucum)...............................................................................103
Foto 57: Tovoin txaro-kitaya (lascas de tucum)....................................................................103
Foto 58: Pĩtxo eshe (caroços de murumuru).......................................................................104
Foto 59: Pĩtxo tsosaya (contas de murumuru)..........................................................................104
Foto 60: Pĩtxo txaro-taya (lascas de murumuru)................................................................105
Foto 61: Wanin eshe (caroços de pupunha)........................................................................105
Foto 61: Pĩtxo eshe (caroços de murumuru)........................................................................106

Foto 63: Da esquerda para direita: caroços de tucum inteiro, contas prontas para serem
enfileiradas. linha de tucum para enfileirar as contas, contas já enfileiradas e já no formado de
colar..................................................................................................................................106
Foto 64: Pane txaro-ka (fazendo lascas de caroço de tucum)...................................................107
Foto 65: Pane eshe txaro-kita shasho matxi (fazendo lascas de caroço de tucum em cima da
pedra)........................................................................................................................................107
Foto 66: Tsosa-taya (contas cortadas)......................................................................................108
Foto 67: Ota-taya (contas furadas)...........................................................................................108
Foto 68: Pane ota (contas sendo furadas).................................................................................109
Foto 69: Pane keõ-naya (contas de tucum enfileiradas)...........................................................109
Foto 70: Shakiya (feito o polimento).........................................................................................110
Foto 71:Da esquerda para direita: Echta sem casca, txaro-taya, tsosa-taya e já com furos....111
Foto 72: Echta txaro-ka (echta em lascas)................................................................................111
Foto 73: Tsosa-taya (echta em contas).....................................................................................112
Foto 74: Echta ota-ya (contas de echta furadas)......................................................................112
Foto 75: Contas de echta enfileiradas......................................................................................113
Foto 76: Shakiya (feito o polimento).........................................................................................113
Foto 77: Shata wesha (raspando o plástico).............................................................................115
Foto 78: Shata shatea (cortando o plástico em contas)............................................................115
Foto 79: Shata ota (furando as contas de plástico)...................................................................116
Foto 80: Shata tsista-ka ou txishoa (cortando o biquinho criado com furo de agulha)............116
Foto 81: Shata tsista-ka ou txishoa (cortando o biquinho criado com furo de agulha)............117
Foto 82: Shata otaya (contas furadas prontas para serem enfileiradas)..................................117
Foto 83: Shata keõ-naya (contas enfileiradas)..........................................................................118
Foto 84: Shata shakia (contas enfileiradas sendo polidas).......................................................118
Foto 85: Toati-rasĩ (peneira).....................................................................................................120
Foto 86: Txitxã (cesto de folha nova de tucum)........................................................................120
Foto 87: Txitã-rasin (cestos de folhas de tucum de vários tamanhos)......................................121
Foto 88: Wekoti e pichin (abanador e esteira feitos de folha nova de palmeira).....................121
Foto 89: Varin Vãti fazendo esteira com grafismo one-ka........................................................122
Foto 90: Fibras de tucum e três novelos de tucum...................................................................122
Foto 91: Rede de tucum............................................................................................................123
Foto 92: Saia feminino feito de crochê (kene sheta aka ‘grafismo imitação de dente’)...........124
Foto 93: Saia em processo.........................................................................................................124
Foto 94: Tornozeleira unissex...................................................................................................125
Foto 95: Tornozeleira unissex com grafismos ‘formato de dentes’ e ‘calango’........................125
Foto 96: Wachmen resisi teriska (fiando algodão)...................................................................126
Foto 97: Resisi pani (rede de algodão).....................................................................................126
Foto 98: Resisi shoko, tirik-kitaya (novelos e linha de algodão enrolada no fuso)..................127
Foto 99: Mapo yoa-aka (prepando as panelas de barro).........................................................128
Foto 100: Recepção pelo diretor do Museu do Índio, José Carlos Levinho (13/09/ 2011).......129
Foto 101: Viagem de pesquisa de campo em 2016..................................................................136
Foto 102: Viagem de pesquisa de campo no rio Curuçá, 2016..............................................136
LISTAS DE SIGLAS

FUNAI Fundação Nacional do Índio


MI Museu do Índio
CIVAJA Conselho Indígenas do Vale do Javari
CNPQ Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico
PPGAS Programa de Pós-graduação em Sociologia e Antropologia
UFRJ Universidade Federal de Rio de Janeiro
CTI Centro de Trabalho Indigenista
TI Terra Indígena
SUMÁRIO

Capítulo 1: UMA INTRODUÇÃO AO TRABALHO-CONHECIMENTO DAS MÃOS......................15

1.1 Um conhecimento e o trabalho manual...............................................................................15

1.2 Quem sou eu?.......................................................................................................................17

1.3 As mulheres Marubo protagonistas (a voz das mulheres)....................................................20

1.4 Natureza e objetivos desta dissertação (e além dela)...........................................................25

Capítulo 2: OS MARUBO DO RIO CURUÇÁ.............................................................................31

2.1 A região.................................................................................................................................31

2.2 Deslocamentos e mudanças..................................................................................................33

2.3 Os “Marubo”.........................................................................................................................39

2.4 As aldeias, as malocas as familias e os clãs ..........................................................................41

2.5 Os sistemas de clãs................................................................................................................44

2.6 As mulheres se apresentam..................................................................................................53

Capítulo 3: OS ARTEFATOS...................................................................................................59

3.1 Valorizar as descobertas do trabalho....................................................................................61

3.2 Tradição.................................................................................................................................62

3.3 Inovação................................................................................................................................64

3.4 Criatividade: Uso de novos materiais no trabalho manual...................................................66

3.5 Os adornos ou indumentários: levantamento......................................................................69

3.6 Os colares masculinos...........................................................................................................84

3.7 Os colares femininos ............................................................................................................88

3.8 Tudo sobre novo (aruá – pomacea canalicultura)................................................................89

3.8 1 Origem da água relacionado ao novo (aruá)................................................................89

3.8.2 A origem do novo (aruá)..............................................................................................91


3.8.3 A forma como se procura o aruá e o espaço onde encontra-lo....................................92

3.8.4 O cuidado que deve ter na arte de coleta do aruá........................................................94

3.8.5 Os passos para fazer novo rane awe.............................................................................96

3.8.6 O aruá como alimento.................................................................................................102

3.9 Os processos de transformação do txeshe (Coquinho de tucum).......................................103

3.9.1 Passo a passo do processo de produção dos enfeites de côco de tucum....................107

3.10 Os processos de transformação de echta (coquinho).......................................................123

3.10.1 Passo a passo do processo de produção de echta....................................................111

3.11. Os processos transformação do PVC................................................................................114

3.11.1 Passo a passo do processo de produção de adornos de PVC....................................115

3.12.Mais sobre o trabalho nas pontas das mãos.....................................................................119

3.13 A Festa wakaya/tanamea.................................................................................................128

Considerações Finais................................................................................................................133

Referências Bibliográficas ........................................................................................................139


15

Capítulo 1

UMA INTRODUÇÃO AO TRABALHO-CONHECIMENTO DAS MÃOS

Neste primeiro capítulo, descrevo os antecedentes, a natureza e os objetivos do meu


projeto e de minha pesquisa de mestrado. No segundo capítulo, apresento o contexto geral da
área e do povo conhecido como ‘os Marubo’, com uma discussão desta denominação e da
auto-denominação; em seguida percorro as aldeias marubo para conhecer um pouco da sua
organização social, em particular do sistema de clãs, e falo das mulheres que motivaram
minha pesquisa com suas falas sobre as limitações que cercam a voz pública feminina. No
terceiro capítulo, passo, finalmente, à descrição dos artefatos produzidos majoritariamente
pelas mulheres (mas não somente), abordando vários aspectos: a valorização das descobertas,
a tradição (os objetos ‘antigos’), a inovação (os ‘novos’ objetos), a criatividade. Cada seção
dedicada a cada artefato se organiza em tópicos: coleta da matéria prima, origem (narrativas),
processos de produção e transformação, posturas e valores. Uma breve descrição da festa
wakaia/tanamea, quando diversas comunidades aldeãs se encontram e quase todos os adornos
são exibidos por mulheres e homens dos diferentes clãs, conclui o terceiro e último capítulo,
antes das considerações finais.

1.1 O conhecimento e o trabalho manual

O título deste trabalho, Nokẽ mevi revõsho shovima awe, é uma das expressões que
escutei várias vezes das mulheres quando comentavam sobre seu trabalho manual1:

noke-N mevi revo-N-sho shovi-ma awe


12-N mão ponta-N-GEN criar-CAUS pertence

Uma tradução para o português poderia ser a seguinte: ‘O que é transformado pela
ponta das nossas mãos’, embora o verbo desta frase signifique, entre outras coisas, ‘criar’ e
‘fazer existir’.

1
O leitor precisa saber que há diferença entre os sentidos de duas frases. Mevῖ shovima awe significa ‘trabalho
das mãos’, como o trabalho da roça, a construção da maloca, a fabricação da canoa, capinar ao redor da casa,
todas tarefas masculina. Mevi revõsho shovima awe significa ‘trabalho das pontas das mãos’, como, para os
homens, arco e flechas, cestaria, pentes, chapéus de penas e, para mulheres, os cestos feitos de tucum, peneiras,
abanadores, esteiras, saias de algodão, redes de tucum, redes de algodão e indumentárias ou adornos.
16

Outra frase que poderia servir de título seria Nokẽ mevĩsho shovia awe.

noke-N mevĩ-sho shovi-a awe


12-N mão-GEN criar-PRES pertence

Se tomarmos cada palavra desta frase, chegamos a uma aproximação: nukẽ (pronome
pessoal) é uma marca de primeira pessoa plural, ‘nós’ ou ‘nosso’; mevĩ-sho, palavra com dois
morfemas, ‘mão-movimento’, ou seja, fazer/trabalhar com as mãos em movimento;
surgir/começar, surgimento/começo; awe, tudo aquilo que alguém faz e lhe pertence; sho
(sufixo genitivo); shovi-a (verbo transitivo), criar, fabricar, produzir 2.
O problema está na tradução da frase inteira, onde se conectam as palavras. Fazer é
saber, saber fazer as coisas, conhecimento que faz com que as coisas sejam feitas. Fazer é
com as mãos, é o saber das mãos. É um saber-fazer total, incorporado, para cada pessoa que
sabe-faz. É um saber-fazer que ‘pertence’ a quem sabe-faz, assim como as coisas que passam
a existir pelo seu trabalho. Das mãos o saber entra na pessoa, é interiorizado e é exteriorizado.
E o saber pela escrita, escrevendo, escrito, que é o meu caso? A mesma frase se aplicaria
quase naturalmente, já que escrever passa pelas mãos, ou, melhor, é conhecimento que a mão
faz existir, materializa, conhecimento que se move sempre de fora para dentro e vice-versa, e
que faz crescer a pessoa.
Para entender um pouco melhor este ‘saber fazer’, costumo lembrar o que ouvi
muitas vezes do segundo irmão mais velho da minha mãe – Ivinipapa, pai de Ivini, conhecido
como Alfredo ou Alfredão. Perguntou-me, uma vez: “O que o médico faz para ele ter o seu
conhecimento?”. Respondi: “No estudo ele busca determinadas situações sobre as quais ele
quer aprender.” Meu tio comentou: “Enquanto faço uma maloca ou um cesto, eu tenho todo o
conhecimento que está na minha cabeça, não estou fazendo somente uma maloca ou um cesto;
cada contexto, cada objeto, é um saber total, não é somente fazer uma coisa e deixá-la
pronta”.
Isso é importante para compreender o que vou dizer. Produzir com as mãos e é um
conhecimento total. O leitor verá que escolhi traduções, traduções atalho, que sempre deixam
um amargo na boca: ‘trabalho manual’, ‘artesanato’, ‘artesãs’, ‘artesão’. Daqui em diante,
2
Meu avô, João Tuxaua, dizia: “ẽa shovima yora”, ‘eu fiz gente’, já que ele se definia como responsável das
‘novas gerações’, através da fertilização xamânica de mulheres que não podiam mais ter filhos por ter sido
vítimas também de ações ou eventos xamânicos. João Tuxaua se dizia responsável pela ‘criação’ de um povo,
que seria denominado de ‘Marubo’. Voltarei a esses momentos mais adiante, neste mesmo capítulo.
17

cada uma destas palavras em português deve ser pensada como tendo atrás dela tudo o que
tentei explicar anteriormente.
As mulheres dizem “nokẽ mevi revõsho shovima awe” com um tom de satisfação
diante de suas próprias ações e feitos. Os bens que manufaturam são a base sobre a qual se
eleva a sua autoestima, como prova do seu valor e de seu conhecimento.
Para as mulheres, o que se transfoma nas pontas das mãos são cestas de folhas novas
de tucum (txitxã), abanadores (wekoti), peneiras (toati), saias (vatxi) e pintura corporal (kene).
Cada um destes ‘objetos’ tem um grafismo específico, chamado de kene, mesmo nome da
pintura corporal. Não se produzem estas coisas à toa, apenas para fins utilitários, mas para
conseguir realizar o desenho e conhecer a história dos objetos. Há uma grandeza em saber
transformar algo em padrões de desenhos.

1.2 Quem sou eu?

Meu nome é Varῖ-Mema, sou da etnia Marubo, mas, na verdade, eu sou


varinawavo/vari-shavovo que é o nome do meu clã. Sou filha de Ranẽ-Tupane do clã rane-
nawavo e de Tamã-Sheta do clã Tama-shavovo/Tama-isko-shavo. No mundo dos nawa, meu
nome é Nelly Barbosa Duarte Dollis. Sou neta de João Tuxaua, que teve sete mulheres. A
minha avó, sua segunda esposa, ele criou desde pequena. Minha mãe tem quatro irmãos e é a
única filha mulher. Nasci na aldeia, erguida em 1977 pela Fundação Nacional do Índio-
FUNAI, conhecida antes como ‘Frente de Atração’ e denominada depois de Posto Indígena
Curuçá, no vale do rio Javari, Amazonas. Sempre tive na minha vida a presença dos nawa,
pescadores, madeireiros, indigenistas e, principalmente, pesquisadores. Assim, essa presença
tão forte dos nawarasῖ (nawa-rasῖ, branco-PL) fez com que meu pai se convencesse de que eu
deveria estudar na cidade. Fiz o ensino fundamental e o ensino médio em quatro cidades do
Amazonas: Atalaia do Norte, Benjamin Constant, São Paulo de Olivença e Manaus. Cursei
Bacharelado em Antropologia na Universidade Federal do Amazonas (UFAM, 2008/2014) e
estou agora terminando o curso de mestrado no Programa de Pós-Graduação em Antropologia
Social do Museu Nacional/UFRJ.
Ainda pequena, fui morar com Dom Alcimar Caudas Magalhães, bispo da Pastoral
Indigenista, que me chamou para estudar na cidade. Ele e meu pai fizeram um acordo: “você
vai levar ela para que aprenda a ler e para ela ensinar a outras crianças que estão esperando
aqui na aldeia”. Para ele, eu podia fazer qualquer cursinho para atuar dentro da comunidade.
Meu pai tinha o sonho que eu virasse professora ou alguém na área da saúde. Eu nunca sonhei
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com isso; gostava de contar histórias, estando ali no meio de adultos, e de ouvir o que as
freiras e os padres contavam.
Todas as vezes que eu voltava para a aldeia, nas férias, tinha que contar aos meus
pais o que tinha feito. Até uma música que ouvida na cidade e cantarolada por mim sem
querer, tomando banho, meu pai pedia para eu cantar na frente de todo mundo. Sentia muita
vergonha. Tudo o que eu aprendia, meus pais cobravam e queriam que eu expusesse na frente
da comunidade. Ele queria que eu me tornasse uma liderança, porque não teve filho homem.
Como eu era quem estava aprendendo a vida de duas sociedades, seria uma porta-voz.
Comecei a sentir que tanto na minha família, como na sociedade nawa, não poderia
viver normalmente. Ficava me perguntando o tempo todo quem eu era (porque me sentia
estrangeira na minha própria família): “e aí, vocês gostam de mim ou me fizeram só para eu
ter essa responsabilidade? Por que as minhas irmãs não podem ter essa mesma
responsabilidade?”. Depois, sai do convento e terminei o ensino médio em Manaus. Dei um
tempo sozinha, sem ter contato com ninguém da aldeia, por dois anos. Neste período, fiz
curso de auxiliar de administração, trabalhei na empresa Panasonic, da Zona Franca. Sentia-
me livre de cobranças, não precisava explicar quem eu era.
Dei-me conta que deveria voltar. Meu pai não precisou me chamar, eu mesma senti a
necessidade de retomar o contato com a minha família. Voltaram as cobranças: “O que você
vai fazer, vai voltar, não vai voltar?”, Acabei voltando, aceitando uma proposta para trabalhar
na UNIVAJA, uma ONG, a União dos Povos Indígenas do Vale do Javari. Após mais uma
fuga para Manaus, voltei de novo para trabalhar na FUNASA, no estoque de remédios, depois
como auxiliar de dentista. Não via nada que eu pudesse fazer além disso.
Soube de um curso de Antropologia Aplicada em Manaus, organizado pelo CIMI
(Conselho Indigenista Missionário). Não consegui fazer o curso; o coordenador, que tinha que
dar uma declaração, falou um monte de coisas absurdas para minha família, disse que eu tinha
fugido e que estava indo “atrás de macho”, coisas assim.
Acabei ficando doente, três meses no hospital com tuberculose. Não sabia o que
tinha, nunca tinha ouvido falar. Nesse tempo, meus dois irmãos morreram de hepatite delta
(uma menina de 14 anos e um menino de 10 anos). Senti naquele momento que tinha que
ajudar meus pais, mergulhados numa crise profunda. Voltei para Manaus para trabalhar de
novo na Panasonic, mas logo pedi demissão e voltei para Atalaia do Norte. Comprei casa na
cidade e acolhi meus pais que estavam sem condições emocionais e mesmo materiais de
sobrevivência e sem saber viver na cidade. Convivi com eles em depressão, mãe e pai dos
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meus próprios pais. Chegaram quatro crianças, meus sobrinhos, trazidos por minha mãe para
que estudassem na cidade, apesar de ter escola na aldeia. A responsabilidade foi aumentando.
Comecei a trabalhar com os Maristas que davam palestras nas escolas. Em 2006, vim
para o Rio de Janeiro, onde os Maristas têm uma escola, na Barra da Tijuca. Em 2008, entrei
na Universidade Federal do Amazonas, campus de Benjamin Constant.
Escolhi estudar Antropologia. Minha mãe teve a terceira recaída de câncer, cuidei
dela mesmo fazendo curso e consegui acabar. Naquela época, conheci as mulheres marubo da
aldeia Boa Vista, do Rio Ituí. Elas trabalham com artesanato e se queixavam por ninguém
querer mais aprender essas artes. Eu trabalhava na FUNAI de manhã e de tarde estudava. Um
dia cheguei em casa à noite e as mulheres estavam lá, querendo falar comigo.
Pediram a minha ajuda como “antropóloga”, não só materialmente: “Queremos a
história do nosso artesanato no papel; como somos as autoras das nossas falas, nós queremos
que você conte do jeito que a gente contar para você”. Até então, eu estava querendo
pesquisar os antropólogos, como é que os antropólogos brancos atuam nas aldeias, conversar
com eles e escrever sobre eles. Já que os antropólogos estudam indígenas, eu queria estudar os
antropólogos. Esse pedido das mulheres foi mais forte. Tentei fugir porque essa cobrança era
tão forte quanto as cobranças da minha família e as conversas eram sempre bem emotivas: “já
estamos morrendo, já estamos acabando e você não pode fugir, seu avô foi responsável pelo
povo, você tem que ter essa responsabilidade também”. Os Marubo mais velhos acham que a
pessoa que sai da aldeia, quando aprende com outra sociedade, tem obrigação de retornar com
aquilo que aprendeu. Não tem como fugir. Minha mãe faleceu em maio de 2015, disseram:
“ela morreu, mas você não vai desistir, você está viva! O estudo não é só para você, como
Branco faz”.
Agora, estou reaprendendo e aprendendo a viver com a ausência da minha mãe.
Quase desisti do mestrado, mas antes de morrer minha mãe segurou minha mão e disse:
“Quando você for para qualquer lugar, é como se eu fosse você, e você fosse eu. Você está
fazendo algo pelo seu povo. Estou morrendo, mas você não vai desistir por isso. Ficarei muito
triste se você não for. Quero que você mostre para o seu pai que você não precisou ser homem
para ser liderança.” Eu vim e é por ela que estou aqui.
É comum as mulheres indígenas não receberem apoio das lideranças das aldeias,
quando elas procuraram estudar na cidade por seu próprio interesse. Podem receber apoio de
seus parentes próximos, embora eles possam ser os primeiros a não aprovar uma decisão
dessa natureza, pois concebem as mulheres como não sendo capazes e como sendo fracas para
resistir ao envolvimento com homens não indígenas. Muitas fases dos meus estudos não
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foram fáceis. Nunca tive apoio dos meus parentes ou do meu povo. Quase sempre acharam
que eu não teria a mesma competência dos homens. Meu povo costuma falar que as mulheres
só pensam em namorar, são fáceis para os homens nawa e “se estragam rápidas”. Assim, não
se pode confiar muito no seu aprendizado escolar, já que logo ficam grávidas.
De qualquer maneira, meus pais me salvaram nesta busca incessante de estudar; eles
mesmos diziam que, ainda que não gostassem do longo caminho de estudo que escolhi, o que
importava era me ver feliz, acreditando que algum dia seria alguma coisa na vida. A trajetória
dos meus estudos foi minha teimosia em focar meus objetivos, “mesmo sendo estragada”.
Alguns dos meus parentes me acusavam de não gostar dos meus próprios parentes e essas
acusações ocorriam por eu não me contentar só de querer aprender a falar, ler e escrever.
Porém, diante dessas criticas depreciativas da estudante mulher indigena, nas minhas idas e
vindas também comecei a ouvir pressões e cobranças, já que sempre me diziam: “você não é
nawa-shavo (branco-feminino), olhe, nunca se esqueça da importância dos seus avôs, eles são
yora kuῖ (gente de verdade)”. Muitas vezes os meus interlocutores faziam questão de me
contar como eram meus avôs e suas vidas no meio dos Marubo. Era para eu valorizar meu avô
João Tuxaua, por ele ter sido importante, pois ele tinha o dom especial de ajudar a sua gente
por meio dos seus peshoti-akaya, seus ‘guias’, cujas orientações ele seguia fielmente.
Compreendo as cobranças dos meus interlocutores; meu avô fez o que fez graças ao dom que
recebeu dos yovevo (guias dos xamãs) a favor de seu povo. Agora é minha vez de fazer algo
para o meu povo, através dos conhecimentos adquiridos dos nawa.

1.3 As mulheres marubo protagonistas (a voz das mulheres)

Um grupo de mulheres marubo oriundas das Aldeias Boa Vista, Maronal, Nazaré e
São Sebastião, amigas da minha mãe, foram as protagonistas da minha pesquisa. A maneira
de elas entenderem o trabalho dos pesquisadores despertou o desejo de colaborarem com uma
pesquisa acadêmica para transmitir seus conhecimentos acerca do que se faz com as mãos.
Mulheres de outras aldeias manifestaram interesse em participar da pesquisa.
Ao expressarem o descontentamento sobre como os funcionários tratam os pacientes
na Casa de Saúde Indígena-CASAI, quando são removidos para o municipio de Atalaia do
Norte-AM, onde permanecem para fazer tratamento de determinadas enfermidades, surgiu a
ideia de me pedir para que falasse do “trabalho manual e da produção nas pontas das mãos”
(mevisho shovima awee e mevi revõsho shovima awe), para que seus filhos e netos pudessem
21

ter acesso, mais tarde, ao que foi contado por elas. Condividem com os mais velhos o medo
de que instituições como a FUNAI e a SESAI logrem em fazer desaparecer seus costumes e
tradições: “china keyoã”, ‘diluem o pensamento’.
Há dois mundos relacionados ao ‘trabalho manual’, chamado de ‘artesanato’ pelos
nawa. Como diz Lagrou (2013: 11):

Um texto que esboçar o quadro da arte indígena brasileira não senão


começar com um paradoxo: trata-se de povos que não partilham nossa noção
de arte. Não somente não têm palavra ou conceito equivalente aos arte e
estética de nossa tradição ocidental, como parecem representar, no que
fazem e valorizam, o polo contrário do fazer e pensar do Ocidente neste
campo. Dois problemas centrais e interligados ressaltam desde o começo da
discussão: a tradicional distinção entre e artefato e o papel na inovação na
produção selecionada como “artistas”.

Fazer ‘artesanato’ faz parte do que é ser uma mulher mevi yosika ou mevi revo yosika,
‘que tem saber nas mãos ou tem saber nas pontas das mãos’ e conhece a história daquilo que é
produzido com as mãos ou nas pontas destas. Além disso, depois da morte, este trabalho faz
com que uma mulher (ou um homem) seja preparada para voltar para o lugar de origem. Na
sociedade marubo, o espírito se prepara - espiritual e fisicamente - desde o nascimento, então
tudo o que fazemos tem a ver com preparar a alma para que não se perca neste mundo. Não
posso ser sovina com minha irmã, porque se eu negar uma fruta (um mamão, por exemplo) ou
qualquer outra coisa, quando eu morrer, o espírito do mamão vai fazer minha alma ter uma
morte eterna. Vivemos neste mundo uma realidade de mundo de morte; depois da morte do
corpo vivemos na outra vida eternamente voltando para a origem de onde viemos. Cada clã
tem um local de origem, ao qual os seus membros voltam, numa viagem, depois da morte. Há
vários caminhos de retorno dos clãs. Um deles viaja pela água, outro pelo ar (por cima das
árvores, caminhando). Temos uma cosmologia que é transmitida na educação. Quando
furamos um aruá ou um coquinho (para fazer um colar), que é a primeira coisa que
aprendemos quando pequenos, nossa mãe fala: “olha, fure direitinho e não deixe espalhar, se
não o pássaro vem e come”. Não é um pássaro visível, não é um espírito, é a forma de ensinar
às crianças como ter cuidado com suas coisas, já que se não cuidar, o que ela estiver fazendo
não rende. Para render, você tem que guardar tudo direito no recipiente, ou seja, tendo
orientação e sabendo disso, nada deixará espalhado quando levantar.
Assim, a criança aprende a ser organizada, responsável com seu trabalho, com forma
perfeita. Esse ensinamento está ligado ao trabalho manual, à arte e ao preparo da comida. As
mulheres ensinam como educar os filhos e é por isso que elas têm essa ligação forte com o
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‘trabalho manual’ ou artesanato, que é onde encontram a fonte do respeito como mulheres.
Aprender histórias de trabalho manual é ter sabedoria nas mãos e na alma, para a pessoa se
tornar preparada e equilibrada. A importância do ‘artesanato’, quase sempre considerado uma
espécie de ‘arte menor’ pelos nawa, nunca deve ser menosprezada.
As mulheres marubo são tímidas, não têm momento de voz. As mais velhas até que
algumas vezes têm espaço. A tradição sempre dá a voz ao homem. O homem tem que estar na
reunião, tem que falar em pé, e as mais velhas tentam ter voz, mas a mulher mais nova não
tem esse momento por ter medo de poder ser objeto de comentários negativos pelos txai-rasῖ -
filhos do irmão da mãe e filhos da irmã do pai. Quando eu trouxe as mulheres marubo para
participar da Oficina de Miçangas no Museu do Índio do Rio de Janeiro, o irmão mais velho
da minha mãe disse: “Para quê que você levou as mulheres? Elas não sabem de nada”. As
mulheres marubo, contudo, querem falar de seus conhecimentos. Como minha mãe dizia,
cada um tem uma forma de contar história, não há uma história verdadeira, a verdade é
sempre “a história que minha mãe me contou”, “a história que minha avó me contou”. Os
homens não são donos das ‘verdadeiras’ histórias.
A partir das explicações que ouvia das mulheres em cada encontro, de como
concretizavam seus pedidos, comecei a elaborar um projeto de pesquisa, ainda na graduação.
Confesso que fiquei temerosa de enfrentar um assunto e um contexto tão complexos. Com a
inquietação causada pelos pedidos das mulheres marubo, procurei meu professor Rafael
Pessôa São Paio, para perguntar o que achava da ideia. Ele mais do que depressa me
respondeu entusiasmado: é uma ideia ótima, eu farei questão de ser seu orientador. Ao longo
do curso, procurei compartilhar meus pensamentos com as colegas com quem mais convivia.
As cobranças das mulheres marubo foram aumentando para que visibilizasse suas falas na
universidade. Sem saber por onde iniciar, um dia a professora Gilse Eliza Rodrigues me
indicou uma oportunidade para me aproximar de outras mulheres indígenas, através do
Projeto de Extensão da universidade: o projeto “Diálogo Feminino”. Essa experiência me
levou a ter certeza de que eu tinha que falar sobre o que as Marubo estavam propondo: o
‘trabalho manual’ (mevῖ shovia awe), que está em suas mãos.
Nos encontros realizados durante o projeto, eu ouvia e via os depoimentos queixosos
e sensíveis das mulheres, comentando sobre seus filhos estar desvalorizando sua cultura, pois
o estudo na cidade não incentivava e nem valorizava suas culturas.
Sensibilizada com a questão, resolvi atender aos pedidos das mulheres, apesar de sentir o peso
de uma imensa responsabilidade. Por estar ciente do tamanho da confiança que estas mulheres
estavam depositando em mim e sabendo como eu serei cobrada constantemente, por ter
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assumido esta responsabilidade, mantive a coragem para poder simplificar a complexidade do


assunto, que me complicava na hora da tradução para a língua portuguesa.

Foto 2: Encontros do Projeto de Extensão ' Diálogo Feminino' com mulheres indígenas do Vale
do Javari na cidade do Atalaia do Norte-AM, 2008 (foto de Lenice Tikuna)

Foto 2: Meus dois professores (Gilse e Rafael) apoiadores do Projeto de extensão 'Diálogo
feminino' na CASAI de Atalaia do Norte (foto de Nelly B. D. Dollis)

Ainda na graduação, as mulheres Marubo, com o argumento de que não conseguiam


ficar sem fazer nada, pediam material dos nawa que facilitassem a produção de artesanatos no
tempo em que se encontravam na CASAI, fazendo algum tratamento de saúde. Mesmo não
podendo ajudar em muita coisa, comecei a anotar tudo o que elas falavam comigo. No curso
de graduação não coube nenhuma pesquisa de campo e houve pouco aprofundamento.
24

Em nossas conversas, as mulheres marubo enfatizavam continuamente que nõ anõ


noi-pa ikivo (‘aquilo que tenho como valioso, precioso, importante’), aquilo que mais sabem
fazer, são os artesanatos, parte em relevo do ‘trabalho manual’ tradicional. Decidiram que as
ações do grupo deveriam começar pela seara de seus domínios: o artesanato. O respeito de
seus homens e de outros indígenas, assim como a organização de movimento incipiente,
deveria ser atingido por meio do fortalecimento de seu trabalho. Queriam que as ajudasse,
dentro da Associação batizada por elas pelo nome de Ainvoras M , que significa, na língua
marubo, ‘trabalho de mulheres’. Foi neste contexto que souberam em 2010, do edital do
Museu do Índio para projetos na Ação de Promoção do Patrimônio Cultural dos Povos
Indígenas. Reuniram-se para formular uma proposta, que se transformou no Projeto
Ainvorasin Meti, elaborado por mim. Em termos gerais, o projeto visa estimular a confecção
de artesanatos tradicionais nas aldeias e, a partir disso, fazer surgir um movimento de
transmissão de saberes das mais velhas para as mais jovens. Para tanto, as mulheres
elaboraram uma lista de materiais necessários à produção des artesanatos. O projeto foi
aprovado e o recurso descentralizado para a Coordenação Regional da FUNAI de Juruá
(AM)3, com a minha orientação e a de Shawa Shavo Shëta (Marta Comapa, filha do irmão
mais novo do meu pai), para acompanhar a CRVJ na aquisição dos materiais e na sua
distribuição.
Estava para entrar no curso de mestrado. Em função do projeto mencionado, as
mulheres, com os materiais em mãos, partiram para a produção nas aldeias. Com base na
compreensão delas mesmas, aproveitaram o material para criar uma coleção a ser apresentada
ao Museu do Índio como prova do resultado do projeto e como reciprocidade ou gratidão pela
confiança depositada nelas. É importante destacar que a exibição desta coleção era
considerada pelas mulheres como uma questão de honra. À medida que o dialogo do MI com
as mulheres foi se estreitando, nasceu a oportunidade de conciliar as atividades de registro
com uma exposição no MI, respeitando iniciativas e pretensões das mulheres.
Ainda que a associação das mulheres marubo não tenha se concretizado legalmente,
o movimento suscitou uma grande união entre as mulheres, criando um espaço político nas
discussões relativas ao Vale do Javari. As mulheres se reuniam regularmente na minha casa

3
A Coordenação Regional do Juruá (AM) foi restruturado como Coordenação Regional do Vale do Javari,
(Decreto n.º 7.778 de 27 de julho de 2012), para atender a reivindicação das lideranças que queriam a criação de
uma coordenação regional que pudesse atender somente as demandas do Vale do Javari. Esta é a segunda maior
terra indígena do país, com uma extensão de 8,5 milhões de quilômetros quadrados e com uma população
estimada em aproximadamente 5 mil pessoas.
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de Atalaia do Norte, junto com minha mãe Tamã Sheta (Nazaré), antes dela falecer. Assim,
minha casa foi escolhida como sede provisória da futura associação. Mesmo tendo
permanecido distante e em silêncio, com a morte da minha mãe, ao fazer trabalho de campo,
em fevereiro 2016, elas pediram que não parasse o que havia começado, já que elas sempre
estariam comigo.

1.4 Natureza e objetivos desta dissertação (e além dela)

Esta dissertação tem a finalidade de falar de tudo àquilo que minhas interlocutoras e
meus interlocutores tentaram transmitir sobre a importância do trabalho manual e do trabalho
feito com as pontas das mãos (mevi shovima awe e mevi revõsho shovia awe) marubo,
valorizando o conhecimento tradicional para novas gerações. Filhos e netos estão no processo
de aprendizagem do mundo ocidental e acabam não priorizando ou deixando os conteúdos e
os modos de ensinamento que levam a incorporar a cultura de seus antepassados.
Para os mais velhos, deixar de valorizar os detalhes das tradições, ou seja, deixar de
respeitar os interditos associados à cultura é deixar de seguir o “verdadeiro” jeito de existir. É
frequente ouvir nas reuniões e conversas marubo a seguinte frase dirigida aos jovens: nõ anõ
eseya tavama, nokẽ ese keyosho nõ shoko rivi, “se deixarmos de praticar aquilo que é nosso,
vivemos sem passado”. Na maioria das vezes, ouvimos a frase em português: “estamos
perdendo a cultura”.
Diante de todo esse questionamento, as mulheres me propuseram trazer a descrição e
as explicações dos seus costumes, tais como relatadas pelos mais velhos e pelas protagonistas,
escritas por mim, pois, por eu se yora shavo (mulher marubo), parente e falante da língua,
teria facilidade para compreender o que elas (mulheres marubo) falam. Os nawa-rasῖ não
podem ter a mesma perspectiva com relação a relatos e narrativas contados pelas mulheres
marubo: anõ pakῖ yoã tῖpa,‘não contariam de modo adequado’ (como uma roupa que veste
bem ou como um homem que combina com sua esposa).
Os nawa-rasῖ não têm a mesma vivência; nawã meki akῖ noke nõ yoã natõ akatῖpa,
‘os nawa não fariam a mesma reflexão correta como nós fazemos’. Isso fará uma grande
diferença para filhos e netos, hoje estudantes na escola, no momento em que poderão
compreender nokẽ na ese, ‘o contexto que faz parte da gente’ (cultura?), no futuro, ao terem
acesso aos resultados desta pesquisa.
Em termos gerais, meus interlocutores apresentam seus relatos enfatizando que eles
são ditos a partir do seu verdadeiro ponto de vista, para que a sociedade não indígena entenda
26

os processos de aprendizagem e o modo de saber tradicionais. Segundo eles, falar da


produção manual e da cultura em geral do seu povo não é simplesmente ‘história’, mas tudo
aquilo que engloba os conhecimentos que dão sentido a sua existência, o que tem a ver com o
contexto histórico dos seus antepassados, a importância deste contexto para poder identificar a
memória e a herança dos clãs nos processos do trabalho manual. Dessa forma, é possível
conduzir “a conhecimentos acerca de contextos e, portanto, as produções indígenas devem ter
uma apreciação que não se retrinja às formas concretas, mas que englobe igualmente outras
expressões culturais que compartilham de um mesmo modelo de experiência coletiva”, nas
palavras de Van Velthem (2003:44).
Para meus protagonistas, isso remete aos padrões de trabalho manual dos clãs, o
modo como vêm sendo desenvolvidos ao longo da trajetória de cada clã. Portanto, eles acham
necessário exigir da pesquisadora um olhar atento dirigido aos trabalhos manuais de cada
artesã e sua relação com cada clã, já que é assim que é avaliado o produto, com referência a
um ‘protótipo’ do fazer bem feito ou mal feito.
Dessa forma, a exigência imposta a uma pesquisadora marubo faz com que sejam
explicitados os modos de ensinamento para filhos e filhas: a pesquisadora é necessariamente
aprendiz. Se eu estivesse presente na aldeia durante esse percurso de aprendizagem, teria
recebido esses conhecimentos, através das minhas avós e de minha mãe, praticando junto com
elas todos os trabalhos manuais, e não seria uma pesquisadora recebendo os ensinamentos
tradicionais através do nawa wicha, ‘riscos do branco’4.
Tio Alfredo contava que ao mesmo tempo em que se aprendem as coisas com as
pontas das mãos, apreendem-se com o chinã, o pensamento localizado no peito-coração.
Quando se ensina o chinã, ensina-se também a alma (vaka), preparando-a para o percurso no
caminho dos mortos (veivai). Perguntei a ele se isto funciona. Ele retrucou a minha pergunta:
“Como alguém faz para virar médico?” Expliquei que ele aprende através dos livros, depois
escrevem, essa escrita são avaliados pelos seus chefes (kakaya-rasĩ), para se tornar médico.
Ele disse: “Essas coisas que você segue não estão longe do que estamos falando,
principalmente você, que está tendo o conhecimento do nawa-rasĩ e através dos riscos
incorporados. Você usa o objeto de trabalho deles (laptop) para criar a nossa fala, faz isso
com seus dedos, fazendo seus dedos aprenderem você incorpora nosso conhecimento”.

4
Wicha significa traçar/traçado, riscar/riscado. É um termo usado, por exemplo, para se referir ao traçar/traçado
dos grafismos da pintura corporal.
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De tudo isso deriva o meu modo de apresentar o trabalho manual das mulheres
marubo, numa conjugação de perspectivas tradicionais com a maneira pela qual as
protagonistas entendem a pesquisa realizada por antropólogos. Procurei ressaltar o dilema
vivenciado por elas no cotidiano das aldeias, particularmente, quanto às mudanças de práticas
e de concepções a respeito de um tema tão íntimo quanto difuso dentro do próprio povo
marubo. Daí surgiu o convite e a confiança para que fosse realizada uma etnografia por uma
aĩnvo marubo.
Nesse sentido, fica evidente o afeto que atravessa a prática e os ensinamentos
envolvidos no trabalho manual marubo, que faz parte do cotidiano das aĩvo-rasĩ shavo
yomemavo-rasĩ (mulheres mais idosas), descritos pelas histórias de vida, onde aparecem as
memórias dos seus antepassados, ao mesmo tempo em que buscam uma desconstrução de
certas visões diante da atual realidade, trazida pela sociedade nawa, implicando num
redimensionamento intelectual. As novas gerações constroem outras perspectivas da cultura
material, a partir da uma experiência de convívio com a sociedade não indígena e até mesmo
com as aĩvo-rasĩ kanivena-rasĩ (mulheres mais jovens) de outras etnias.
A contribuição da minha dissertação vem de minha aceitação das propostas das
mulheres marubo, para serem autoras desta pesquisa. A razão foi dada por elas, uma vez que
não têm total liberdade para se expressarem em público, fazendo com que seu valor
(feminino) fique em segundo plano, o que se reflete nas etnografias feitas por pesquisadores
nawa. Qualquer exposição perante os txai-rasῖ (os filhos dos irmãos da mãe e os filhos das
irmãs do pai), segundo elas, é o risco dos txai-rasῖ ficarem de olho em qualquer ato falho que
elas possam cometer, gerando chacotas nas brincadeiras das festas (txai-võ anõ waka anea,
‘seu ato servirá para dar nomes aos igarapés’).
Vale a pena dar um exemplo. Imaginemos que uma jovem mulher tenha a coragem
de falar publicamente diante de seus txai-rasῖ anunciando que ela irá para a cidade de Atalaia
estudar, argumentando retoricamente, em seu discurso, que ela será diferente dos homens, que
vão para a cidade estudar e acabam fazendo tudo menos estudar (casam, por exemplo). A
jovem irá para a cidade, mas, ao invés de estudar, acaba casando. A chacota a espera na
primeira festa da qual ela participará. Numa pantomima de caça, o txai falará: “eu fui caçar
queixada no igarapé ‘disse que ia estudar, mas casou’”. As mulheres morrem de medo dessas
chacotas.

Para não expor os conhecimentos femininos, os homens, em geral, justificam:


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Aῖvorasῖ rake veyasma, yoini anipa rake china kima veya yavoma, pasnã
chtavo venẽ kasma ashõki yoῖni yama mashoῖ, ato weta shoῖ, ato wai ashoῖ,
askakῖ kashma ashõki yoma nai ewe mesteã ivoro vene ato kashama
ashõrivi.

‘As mulheres não enfrentam o perigo, são vistas como não capazes de agir
sem medo diante dos animais ferozes, são frágeis e dependentes dos homens
na caça, na pesca, na roça, tudo o que exige esforço maior é dos homens, que
precisam facilitar para elas’.

Algumas mulheres marubo me contaram que os discursos em publico são somente


para o sexo masculino. Assim, para valorizar a sua importância, o homem dis que só ele
desempenha o papel de representante da família, ou seja, em outras palavras, que só ele tem
poder de chefia entre os seus. As mulheres, mesmo assumindo diversos papéis, são chamadas
de sheta mavo, ‘sem dentes’ (para dizer que não tem coragem), ou ravῖ yavo,
‘envergonhadas’. Elas são, contudo, as principais responsáveis pela educação dos filhos, são
as que conhecem os trabalhos manuais e os contextos históricos dos conhecimentos
tradicionais, opinam sobre as posturas masculinas nas falas públicas, principalmente quando
elas são casadas com chefes.
Nesta dissertação, tento dar voz às mulheres marubo que querem expressar seus
conhecimentos, contando aquilo que elas não têm oportunidade de fazer ouvir. Segundo elas,
os homens tem papel importante na aldeia, possuem ‘palavra pensamento/pensante” (chinã
vanã yavo), mas não são detalhistas como elas quando ensinam seus filhos. São elas as
responsáveis para mostrar aos filhos os conhecimentos relativos a como se deve agir na vida
em sociedade. O aprendizado marubo é, ao mesmo tempo, com as mãos e com o chinã
(pensamento-conhecimento), para dominar os saberes tradicionais.
As idealizadoras desta pesquisa foram sete mulheres oriundas de diferentes aldeias
das duas calhas dos rios Itui e Curuça, incluindo minha mãe, que atuou como minha
orientadora. Contudo, conforme foi ocorrendo ao longo das conversas entre elas, ao tratar da
necessidade de trocas de saberes, os conhecimentos ‘imateriais’ dos homens também
passaram a fazer parte do contexto do desenvolvimento da pesquisa. A pesquisa está focada
no estudo das falas ou narrativas desses progonistas marubo, aquilo que eles próprios
entendem da sociedade a qual eles pertencem.
Para trazer as falas originais (nokẽ vana koῖ, ‘nossa fala verdadeira’), o melhor
método de pesquisa deveria ser o registro audiovisual das narrativas dos próprios falantes
(autores das falas). Isso tem a ver com o que dizia minha mãe: “das histórias orais dos nossos
antepassados cada família/clã traz a versão que ouviu e da forma como recebeu e elaborou a
29

narrativa ao longo de gerações; o que importa não é a diferença entre as histórias das
diferentes famílias/clãs, o importante da história é a consciência de fazer parte da família/clã
do qual faço parte”. Em outras palavras, não existe uma narrativa ou uma versão maior e
melhor de uma narrativa. Cada contador produz uma única narrativa, herdada e elaborada, que
desaparece com ele, com o desaparecimento do narrador. Não consegui realizar registros
audiovisuais consistentes e completos, infelizmente, por causa da minha própria timidez, das
condições da pesquisa, de minha identidade como pesquisadora marubo, entre outros fatores
condicionantes.
Entendo que a contribuição da minha dissertação vem de um esforço para explicar a
importância do trabalho manual feminino, que engloba conhecimentos complexos materiais e
imateriais, trabalho cotidiano que precisa registrar para entender a sociedade marubo.
Ouvindo os relatos das minhas protagonistas, eu pude constatar que cada contexto narrado
traz explicações sobre a existência de tudo aquilo que faz parte da cultura. Sem eu saber, os
conhecimentos marubo fizeram e fazem parte da minha vida, desde que comecei a ouvir meus
pais que queriam que eu tivesse alguma noção das lembranças de relatos da memoria de seus
próprios pais, mas nunca havia imaginado que um dia eu ia ajudar a descrever parte disso em
nawã wicha (‘nos riscos dos nawa’), o que me levou a pensar nas dificuldades da tradução e à
preocupação por não saber distinguir e organizar os diversos assuntos trazidos pelas mulheres.
Nos relatos que contextualizam o trabalho manual, meus protagonistas quase sempre
começavam realçando a importância do clã na vida da pessoa que procura obter os
conhecimentos pertinentes (materiais e imateriais), para depois passar ao processo de
aprendizado por parte das crianças desses conhecimentos, nos quais estão em primeiro plano
as histórias das relações de parentesco clânico, como pressuposto para entender a perfeição
dos padrões e as discussões atuais na interface entre tradição e inovação.
As mulheres com as quais convivi diziam que o conhecimento é importante por ser
herdado dos clãs principais, sem maiores explicações. Logo comecei a procurar saber sobre
esses clãs, que elas afirmavam ter existido, e sobre os vene-pavo (clãs maiores) e os poto-pavo
(clãs menores). Formulei a pergunta: “o que e como são, hoje, estes clãs?”. Era evidente a
centralidade dos clãs para os casamentos, o parentesco, os comportamentos, os modos de
relatar histórias e os trabalhos ‘com as (pontas das) mãos’. Ao trazer para a etnologia e a
etnografia sobre os Marubo uma análise dos conhecimentos relativos ao trabalho manual, esta
dissertação traz junto os argumentos das mulheres que recolocam questões acerca do
parentesco e dos clãs. Afinal, nenhum relato, mesmo o mais aparentemente simples, ocorria
sem incluir, desde o começo, as referências clânicas.
30

Quando uma mulher marubo me dizia que a razão de ser do meu trabalho era mostrar
“o que realmente somos”, ela queria dizer “o que sou por pertencer a um determinado clã,
lugar de origem do meu conhecimento”. Nesta dissertação apenas arranho o tema dos clãs
marubo, no segundo capítulo.5
Na minha leitura dos autores que pesquisaram os Marubo, averiguei que todos
oferecem descrições e análises da estrutura de parentesco e dos clãs, para entender a
organização social marubo. Tudo isso me trouxe inquietações, a vontade de aprofundar a
perspectiva dos Marubo, como protagonistas, acerca da importância dos clãs e das relações
(de parentesco) tecidas através deles. É exatamente esse tema que precisa ser desenvolvido e
aprofundado, o que pretendo fazer no doutorado.

5
Outros temas entram, hoje, nas discussões entre as mulheres, como, sobretudo, a mistura de ideias de outros
povos, que, segundo elas, traz problemas mentais e físicos, bem como o impacto cultural (o distanciamento dos
mais jovens da “cultura”).
31

Capítulo 2

OS MARUBO DO RIO CURUÇÁ

2.1 A região

Mapa 1: Terra Indígena do Vale do Javari (CTI 2011)

A Terra Indígena do Vale do Javari é localizada no extremo oeste do estado do


Amazonas, na região de tríplice fronteira - Peru, Colômbia e Brasil - onde vivem os povos
indígenas Marubo, Mayoruna, Matis, Kanamari, Kulina e Korubo, com uma extensão
terretórial de 8.544.444 hectares, sendo a segunda maior Terra Indígena do país. A TI do Vale
do Javari também concentra, no seu interior, o maior número de índios isolados do mundo
(em torno de 27 grupos), segundo informações da Coordenação de Índio Insolados da
Fundação Nacional do Índio – FUNAI. Mantém ainda grande quantidade de biodiversidade
preservada em sua área. A TI do Vale do Javari foi demarcada e homologada em 2001 pelo
Governo Federal.
Os Marubo vivem nas margens do rio Curuçá em nove aldeias: São Salvador Volta
Grande, São Sebastião, Morada Nova, Matxi Keyawai, Maronal, Jaburo, Machi Matxi e
Komãya. Antes de apresentar as aldeias do rio Curuçá, ressalto que Sui Waka (o rio Curuçá),
32

tributário do roe ene waka (rio Javari), era considerado, antigamente, pelos Marubo, como
local proibido para se morar. Segundo os mais velhos, não se podia explorar o Sui Waka, por
ser um rio em que não se podia tomar banho, o que causaria febres. Era chamado de ino-
nawavõ waka, isto é, ‘rio do clã dos jaguares’.
Encontramos mais informações na introdução da tese de Welper (2009:13):

As aldeias marubo (constituídas por um número bastante variável de


malocas) estão localizadas nos médios e altos cursos dos rios Ituí (12
aldeias) e Curuçá (9 aldeias), afluentes do rio Javari (marco natural da
fronteira entre o Brasil e o Peru), mas há também um significativo núcleo
populacional na área urbana do Município de Atalaia do Norte, sede do
poder administrativo e executivo da política municipal e indigenista (ver
anexo 36 e mapaaldeias 2008). Embora os Marubo informem que ambos os
rios (Ituí e Curuçá) eram territórios de seus antepassados, a ocupação do
primeiro rio, tal como hoje se configura, resultou de uma fissão ocorrida em
meados da década de 60, estando a população antes disto concentrada nas
cabeceiras dos rios Arrojo e Maronal, afluentes do rio Curuçá.

Para enriquecer os dados oferecidos por Welper, relato a seguir uma narrativa mítico-
histórica marubo, contada para mim pelos meus avôs (minha avó paterna Iraci e meu avô
materno, João Tuxaua) e pelos meus pais, de modo a compreender os processos de maea dos
meus antepassados e a origem dos diversos povos que aconteceu em noa tava. O significado
de maea é de um processo-deslocamento do ponto de surgimento noa tava, ‘rio abaixo’, onde
o rio fica grande, Manaus, Rio de Janeiro, entre outras grandes cidades na beira do mar, para
as cabeceiras dos rios, noa revo.
O povo Marubo foi adquirindo sua sabedoria ao longo dessa caminhada, que
atravessou as moradas de diversas gentes-animais, onde descobriram e aprenderam as artes de
se alimentar, de plantar, de colher o que plantam, do xamanismo, entre outras sabedorias que
foram aprimoradas na viagem até a cabeceira dos rios. Contam que, assim, foram
responsáveis por rate-ni-tivo (acordar.assustado-conhecer-fazer existir) outros povos;
conforme suas descobertas, fizeram existir outras espécies de seres.
As narrativas sobre maea falam de deslocamentos no espaço, que continuaram, como
os que aconteceram na década de 1940. Ao longo de toda a trajetória dos Marubo, sempre
houve a divisão de um rio para outros rios. Os mais velhos dizem que, antes da década de
1940, os Marubo habitavam próximos uns aos outros, que cada maloca ou oca era
representada por um cacique (kakaya) importante. O princípio do desmembramento do povo
Marubo ocorreu na época dos seringueiros e quando houve o rapto de quatro mulheres pelo
33

povo Mayoruna. Os Marubo, numa vingança xamânica, amaldiçoaram o rio Curuçá, além de
massacrar os Mayoruna. Os pajés haviam falado que essa maldição provavelmente podia
afetar aquele que frequentasse o rio, de modo que, para evitar a maldição, os Marubo
passaram a frequentar menos as suas margens e mais os seus igarapés. Além disso, houve
desentendimentos e conflitos internos por causa de mulheres, o que levou ao deslocamento
definitivo de alguns Marubo para o rio Ituí. Missionários evangélicos (Novas Tribos)
acompanharam a mudança para o Ituí e lograram converter parte destes Marubo.
Os velhos do Curuça comentam intensamente que os jovens de Ituí daquela época
foram e ficaram afastados de suas origens, e são considerados pessoas sem sabedoria na alma
e mais ainda sem sabedoria nas mãos. Até hoje, os Marubo do Ítui são vistos como tendo
incorporado ou misturado pensamentos dos missionários com conhecimentos marubo.6 Não
são estas apenas acusações ou críticas dos do Curuça direcionadas aos do Ituí; observei
atitudes de vergonha ou silenciamento dos segundos na presença dos primeiros quando se
trata da transmissão de conhecimentos tradicionais.

2.2 Deslocamentos, mudanças

Segundo meus protagonistas, esses deslocamentos mexeram com o mundo dos


Marubo. Conheceram (e fizeram existir) - ato nĩ oĩ nãnã niki shovi mati - outros clãs, outras
etnias e os nawa-rasĩ, que transformaram as novas gerações em ‘más gerações’ (ichna revo
shovi mati), dando como exemplo os filhos que não obedecem aos pais e não valorizam a sua
própria cultura. Antigamente evitava-se que crianças e jovens tivessem acesso a visões ou
informações prejudiciais. Assim, por exemplo, a família impede que a criança coma frutas
“gêmeos” (frutos duplos ou geminados), apenas mostrando medo através de gestos ou da
expressão do rosto; o que é ouvido, visto, ingerido faz existir uma espécie de ‘cópia’ em quem
vê, ouve, ingere. Para explicar verbalmente para as crianças aquilo que é proibido, tem que
esperar a idade certa; se não tiver idade para entender, não se explica, só se proíbe. Antes de
explicar para uma criança que tem idade para entender o porquê ela não pode comer algo, a
mãe pede para que ela cuspa como sinal de desgosto e se tiver com vontade de engolir a
saliva, que não a engula, mas a cuspa.

6
Um exemplo de revisão cultural missionária: para os Marubo é proibido comer carne e em seguida mamão (o
mamão amolece a carne e causa tumores ou inchaços). Uma mulher marubo evangelizada, digamos, diz para
seus filhos que pode comer mamão depois da carne se beber água pensando em Yose (Deus ou Jesus). Já
exixtem traduções de partes do Velho e do Novo Testamento para o Marubo, em diferentes suportes.
34

Como toda sociedade indígena, os Marubo também mudaram e continuam mudando.


Com isso as ‘proibições’ se diluem e enfraquecem. Segundo a minha mãe (Tamã Sheta),
quando os Marubo moravam nas cabeceiras dos rios, com os poucos contatos que tinham com
os nawa-rasῖ suas vidas foram se modificando em pequenas coisas, os homens começaram a
fazer roças grandes com artefatos dos nawa-rasῖ, adquirindo facas, facões, enxadas,
machados, e as mulheres ficaram sem tempo para fazer panelas de barros e saias de algodão
por quererem acompanhar os maridos nas cidades dos nawa-rasῖ, quando começaram a dar
importância às panelas de alumínio, canecos, pratos, agulhas, tecidos industrializados, rede de
tecido, até o omomento em que começaram a gostar de consumir sal.7
Tamã Sheta fez um relato da sua vida, no dia 6 de maio de 2014:

Quando casei com teu pai e conheci a família dele, que fazia parte dos clãs rane-
nawavo e ni-nawavo, considerados em constante contato com os nawa-rasῖ, eu tive
a oportunidade de ver de perto outro aspecto da vida marubo: as suas mulheres
acordavam mais tarde, tomavam banho em plena luz do dia, se preocupavam
menos com as refeições do dia, produziam confecções sem se preocupar com as
horas do dia. Tudo isso era o contrario da minha vida na maloca dos meus pais,
onde cresci com minha mãe me acordando cedo, quando aparecia a estrela d’alva
ela já me chamava para sentar no chão e esfriar o traseiro, acabar de acordar e
pentear os cabelos. Em poucos minutos, meu pai começava a chamar meus irmãos
e as noras com os nomes mais carinhosos que ele achava, e ela mesma começava a
preparar os alientos. Depois saiamos para tomar banho, quando começava a clarear
o dia; meu pai, os filhos e outros meninos saiam para tomar banho juntos. Assim
que chegavam do banho, faziam a primeira refeição do dia e, enquanto comiam,
meu pai perguntava sobre a terefa de cada um dos homens que viviam na mesma
maloca. Conforme a resposta, meu pai os orientava. Minha mãe fazia o mesmo
com as mulheres, mas ela não era muito de dar ordens, gostava mais de dar
exemplos.
Assim como você, sua avó era filha de rane-nawavo e casou-se, ainda criança, com
meu pai (João Tuxaua), considerado um kakaya muito importante entre os Marubo.
A primeira mulher do meu pai foi a irmã do pai de minha mãe. Portanto, a irmã do
pai da minha mãe ensinou minha mãe sobre as tarefas que são responsabilidades
domesticas e sobre o comportamento adequado para uma mulher de chefe. Por isso
que te digo, as famílisa marubo não são todas iguais; é claro que não tem como
você perceber logo ao chegar numa aldeia, já que quem não tem conhecimento não
entende como somos realmente.

Essa fala da minha mãe aconteceu quando eu mostrei a ela a tese de Welper (2009),
que trata de João Tuxaua. Naquele momento, ela pediu para que eu incluísse nesta minha

7
Em “Chaquira, el inka y los blancos: las cuentas de vidrio en los mitos y en el ritual kaxinawa y ameríndio”,
Lagrou (2003) mostra o sentido das mudanças nos processos de produção como consequência do contato com o
mundo não indígena, o que me lembra o argumento oferecido por Tamã-Sheta.
35

dissertação um pouco do dia a dia vivido por ela, complementando as informações sobre a
chegada dos Marubo à margem do rio Curuçá.
Os do clã tama-ua-vo, antes de morar na aldeia Maronal, viviam todos juntos na
aldeia Kapi-vana-wai e outro clã vivia na aldeia Mãse-matxi. Eram duas aldeias que ficavam
uma na frente da outra, sendo que na aldeia Kapi-vana-wai viviam, além de outros clãs, os
tama-ua-vo com o kakaya Itxã-papa, e na aldeia Mãse-matxi vivia a família do clã ino-nawa-
vo com o kakaya Kẽshõ-papa. Os moradores de Kapi-vana-wai mudaram para a nova aldeia
chamada Shavẽwãi-shovo, enquanto algumas famílias do clã Txona-vo construíram sua nova
aldeia chamada Orõ-Manã. Com a morte da matriarca Isa-pei- Maia, os Tama-ua-vo fizeram
uma nova aldeia chamada Txanã-Matxi no encontro do igarapé Vaῖ-ya com o rio Curuçá. Os
dois irmãos mais novos tama-ua-vo, casados com as mulheres do clã sata-shavovo,
construíram sua nova morada Iskõ-Matxi abaixo do igarapé Voῖ-tekõya, um braço do rio
Curuçá.
Incluo aqui o mapa feito por Welper (2009: 89) para mostrar as localizações citadas
nos relatos anteriores; a autora detalha as andanças dos grupos marubo na época de João
Tuxaua.

Mapa 3: Vale do Javari apud Welper (2009:89)


36

Segundo Alfredinho (o filho mais velho de Alfredo com a sua terceira esposa), a
atual aldeia Maronal, em que ele reside, foi construída pelo pai em 1982, com a chegada dos
funcionários da Fundação Nacional do Índio-FUNAI na região, dada a necessidade de erguer
um novo local que facilitasse a entrada dos nawa que iriam trabalhar no meio deles. Assim,
surgiu também uma pista de pouso e foi chamado José Nunes, membro da Missão Novas
Tribos, com a finalidade de alfabetizar os jovens marubo. O desejo de Alfredo, chefe de
Maronal, era de formar uma geração para que, no futuro, a presença dos nawas nas aldeias
não fosse tão necessária, para os filhos, netos e sobrinhos não precisassem viver na cidade
com o que aprenderam com os nawa-rasῖ, minimizando os impactos culturais.
Alfredinho disse no dia 27 de abril de 2016:

Meus parentes tiveram um pouco de conhecimento da leitura e da escrita, não tanto


como nawa-rasῖ, mas assim como meu pai sonhou para mim, eu penso em captar
os conhecimentos dos nossos ancestrais aproveitando o pouco de aprendizado que
tivemos da escrita nawas. Com isso, pretendo estimular os estudantes a escrever as
histórias de como surgimos, como surgiram nossos alimentos, como contam os
mais velhos, ritos, plantas medicinais, como eram nossos antigos rome-yarasῖ
(pajés), como era a educação dos nossos ancestrais.

Olhando para mim, acrescentou:

Mema, eu me preocupo muito com nosso futuro. Os pesquisadores estudam a nossa


realidade, mas não estão preocupados com o futuro da nossa sociedade. Eles
fazem pesquisas sobre a forma como eles acham que somos, mas nossos jovens de
hoje já não estão mais dando importância, só querem aprender o modo de vestir
dos nawas, assim como eles disperdiçam o conhecimento dos nossos ancestrais,
também percebo que não estão apredendo nada que preste para se defender, não
estão aprendendo da forma certa como verdadeiros nawa-rasῖ. Nossos irmãos,
filhos e netos só querem aprender o modo de ser dos veio nawa-vo chinãsho
shokoyavo, ‘os nawa inúteis que não se importam com o saber’.

Conversando com os mais velhos, eu os escuto falar que nosso povo não é mais o
mesmo: está ficando doente e deprimido (chinã pãchῖ-kavo), era saudável (nami tono-kavo),
as mulheres e os homens eram chinã keska-pavo, mas hoje os filhos estão ficando raquíticos
(chinã keska-mavo), tudo mudou, a educação, a forma de cuidar do corpo, a preocupação que
havia com o ambiente em que vivíamos não é mais a mesma. Não seremos os mesmos; uma
das consequências por permanecer mais do que o tempo necessário em um só lugar é que uma
aldeia habitada por mais tempo atrai energias negativas, as cultivações de plantas ficam sem
vida por causa da terra que está ficando sem nutrientes.
37

Voltemos aos Marubo do rio Curuçá, entre os quais se move esta dissertação.
Apresento, abaixo, o mapa do rio Curuçá, desenhado por mim com a ajuda da minha tia (meia
irmã da minha mãe, uma das protagonistas desta pesquisa) Ino Tamã Shavo (Ilda) e da minha
irmã mais velha Isa Pei Maia (Natividade), enquanto elas contavam para mim sobre a via de
acesso ao rio Curuçá a partir da cidade de Atalaia do Norte, até as aldeias deste rio, sobre os
principais igarapés (tributários) do rio Curuçá, os igarapés denominados na língua, a
distribuição das aldeias nas margens, o número de malocas em cada aldeia, a quantidade de
pessoas que moram em cada maloca e os clãs aos quais as pessoas pertencem. Trata-se de
informações que retomarei na parte que se segue (Os “Marubo”).
Isapei-Maia (comunicação pessoal, 23 de agosto 2016):

Atalaia nawã shava nõ anõ pokeka ivo, nokẽ shenirasῖ ipawatõ iki nokẽ
shavapas noke shoko shokosma, atiãro nawa askakῖ oῖyarivi kai apawavo,
ramaro noke ichnavis voi nawa oῖnõ inã amiska, Sui revõka kãtxiya, rawe
nokẽ shenirasῖ ipawãtõ iki enema, Cruzeiro kiri taẽ võvõ matsawã, txeshẽ
avo askasivi, Atalaia kiri vei, Cruzeiro kiri voi amiska, vevõ motore yamasho
wetsa winakarã matsawã ipawa. Ramaro, noke motore ãtsaka aya, rama
yorashavo rasῖ kopῖmati yawã kavo, askasho pokei enesmavo, vevoro nõ anõ
kẽã westichtase viarivi ipawa. Atalaia namã iwãi kaa oshe westsase ipawa,
winaa tiãro, ramaro yora osha kaya ivoro, revoka ã nokoika oito shavakaiã,
vestika ikiya quatro shavapa quatro yame aka matsawã.

Atalaia é uma cidade nawa que visitamos com frequência, hoje não
somos iguais aos de antigamente, de ficar mais tempo nas nossas
aldeias, não víamos os nawas com tanta frequência como fazemos
hoje, agora até nós estamos sempre por aqui na cidade deles. São os
que moram na cabeceira do rio Curuçá que continam fazendo como
antigamente, deslocando-se para Cruzeiro a pé. Os que moram no rio
Ítui visitam tanto a cidade de Cruzeiro como a cidade de Atalaia do
Norte. Quando não tinham motor de rabeta, iam para a cidade
remando; hoje todos possuem motor, as mulheres tem dinheiro para
sacar na cidade, então eles não descem mais para comprar o que
necessitam como antes. Quando vinham para Atalaia era uma viagem
de um mês, hoje com motor, aquele que faz parada para dormir, leva
oito dias de dormida até a última aldeia, enquanto aquele que viaja dia
a noite faz quatro dias e quatro noites.

Ino Tama-Shavo (19 de abril de 2016):

Atalaia namã itaῖ nõ vẽvẽã neska, Suῖ oma nisho katxiyavo yora Kanamari,
Sui nakika kãtxiyavo Mayoruna, Kulina e Marubo. Roe enẽ wakã karo
nawarasῖ nõ oῖ võvõa rasῖ katxia, nõ oῖ võvõtika shavapa anero Atalaia,
anosho nõ oῖ võvõka shava wetsaro Benjamin Constant, Tabatinga kopi mati
tsekai nõ anõ shokoa ẽ yoãvre, vevõ tiã atovõ rãtxa (lancha recadão) awe
38

vivani tachi nana matsawã ipawa, arose (arroz), avo, avo poto (sabão, sabão
em pó), sheo (agulha), resisi (linha de costura), vatxi (tecido saia), piarasῖ
vatakavo (comidas doces), pia õsi-õsipa (alimentatos de diversos tipos),
maneyoa-raῖ (panelas), tsano-rasῖ (talheres), kẽtxarasῖ (pratos), senotirasῖ
(facas), richkiti (facões), roerasῖ (machados), õpo pani (rede), tipi
(espingarda), mara eshe (cartucho), wetati (anzóis), resisi anõ wetati (linha
de pesca), atõ awe wetsarasῖ aka vivarãi tachi mãtsawã ipawavo. Roe enesh
(rio Javari) oi, Itaquai, tavania ano osha rave vakῖ karã, roe enẽ nawa vô
keyakavo akavo tavaniro, Kanamari rasῖ kãtxiaya tavani oiro, suῖ ikoa ano
waka teaya shokoa tavania, nawa awestichta nia shava Caroço, Suῖ titai teã
Pardo nokonia anõ moka nawa rasῖ kãtxia shava rave vakῖ Nova Esperança,
Terrinha aka, Todos os Santos anõ ichna toῖyavo shokoa iva vainavo,
Bananeira, São Salvador, Volta Grande, São Sebastião, askavai Tashaya,
Yoraya, Txona-Anãya, Shoriya, Kaῖ-tekãya, Kariya, Morada nova, Yovῖya,
Kapeya, Inῖtiaya, Matxi Keya-waiya, Yawaya, Shawẽwaya, Kari-Oshoya,
Vekotapãya, Vaῖya, Maronal, Tsainamãpa, Vari-nawavo, Machi-Matxi,
Ranõya, Kereya, Voῖ-Vakõya, Voreya, Txashoya, Komãya.

O deslocamento que fazemos para a cidade de Atalaia do Norte é


assim: antes de entrar no Curuçá mora o povo kanamari do Vale do
Javari, dentro do Rio Curuçá moram os povos Kulina, Mayoruna e
Marubo. No rio Javari moram os nawarasῖ e a cidade mais visitada é
Atalaia. Outras cidades que visitamos para tirar dinheiro são Benjamin
Constant e Tabatinga; as populações dessas cidades vinham até onde
morávamos, trazendo suas mercadorias, como arroz, sabão, sabão em
pó, agulha, linha de costura, tecido para saia, comidas doces,
alimentação de diverso tipo, panelas, talheres, pratos, facas, facões,
machados, rede, espingarda, cartucho, anzois, linha de pesca e outras
mercadorias para troca. O deslocamento ocorre assim, saindo de
Atalaia passa pelo Itaquai, só neste rio são quatro dias, sendo que dois
dias e duas noites, passa pelos não índios conhecidos na região como
povo cabeludo (os Israelitas), passa pelos Kanamari que moram no
Javari, depois passa pela Frente de Proteção aos Índios Isolados –
FPVJ, já dentro do Curuçá mora um homem não indígena chamada de
Caroço, ai chega ao primeiro tributário do rio Curuçá, o igarapé Pardo
onde vivem os Mayoruna, nas aldeias de Nova Esperança e Terrinha.
Chega-se a outro igarapé, Todos os Santos, onde, segundo as pessoas
que conhecem este rio, vivem índios isolados plantadores de maconha
clandestinos, depois vem os igarapés Bananeira e São Salvador, com a
primeira aldeia marubo, então a segunda aldeia marubo, Volta Grande,
a terceira aldeia, São Sebastião, outros igarapés denominados na
língua Tashaya, Yoraya, Txona-Anãya, Shoriya, Kaῖ-tekãya, Kariya, a
aldeia Morada Nova, os igarapés Yovῖya, Kapeya, Inῖtiaya, aldeia
Matxi Keya-waiya, os igarapés Yawaya, Shawẽwaya, Kari-Oshoya,
Vekotapãya, Vaῖya, as aldeias Maronal e Tsainamãpa, Vari-nawavo,
Machi-Matxi, os igarapés Ranõya, Kereya, Voῖ-Vakõya, Voreya e
Txashoya, e a aldeia Komãya.

Elaborei o mapa abaixo para ilustrar os relatos de Isapei-Maia e de Ino Tama-Shavo.


39

Mapa 4: Sui Waka (Rio Curuçá, desenho de minha autoria)

2.3 Os “Marubo”

Antes de tudo, quero ressaltar que a palavra ‘Marubo’ nada significa para o povo
chamado pelos não índios de ‘marubo’, a não ser o fato dele ser, exatamente, um exônimo que
ficou congelado nos registros e documentos oficiais. Na realidade, os Marubo não existem
para os Marubo, já que eles se identificam internamente pelos nomes dos clãs ou subgrupos
ou famílias (a ivo nawa-rasῖ). Certa vez, eu perguntei para minha mãe porque aceitamos ser
chamados de ‘marubo’. Ela me disse: “as pessoas que falam português aceitam ser chamadas
de ‘marubo’. Acho que eles têm dificuldade de explicar como a gente se denomina, porque os
não indígenas (nawa-rasῖ8) não conseguiriam nos chamar pelos nomes dos clãs”.
Como dizia meu avô João Tuxaua: “quem denominou nosso povo de ‘Marubo’ são
os nawa-rasῖ Txami Koro, eles falavam língua kastilhiano” (na pronuncia do meu avô, se
referindo ao castelhano). Quando chegaram à nossa terra explorando pae (látex), ao deparar-

8
A palavra nawa denomina um grupo diferente do grupo ao qual o falante pertence: um colombiano, um
brasileiro, todos os que “surgiram depois do povo yora”, como dizia meu avô. Por isso, os Marubo a utilizam
com dois significados: (1) para designar um clã em relação ao outro; e (2) para designar os não indígenas em
relação aos indígenas. Estes últimos são chamados yora. O morfema {-rasĩ}, na palavra nawarasĩ, é uma das
formas para indicar o plural na língua marubo.
40

se com a gente, nos deram esse nome, talvez a gente parecia Marubo. Eu perguntei para
Keyashini (Carlos Vargas)9, que sabia falar kastilhiano, e ele me respondeu que esses nawa
disseram que a gente era yochin10”.
Ao que consta na pesquida de Melatti (1977:92);

“Chegou o momento de alertar o leitor de que “Marubo” não é uma


autodenominação do grupo indígen que estamos examinando. Aliás, na
região, mais de um grupo é assim denominado pelos funcionários da
FUNAI. Na maior parte dos casos, os chamados Marubo que aparecem nas
notícias de jornais não pertencem ao grupo de que estamos tratando, mas a
outros, em fase de atração. Além disso, os índios focalizados neste trabalho
não reconhecem nenhum laço com os demais grupos denominados Marubo.”

No mito de origem dos Marubo, narrado por kẽchῖtso-rasῖ11, os surgimentos dos clãs
têm características que identificam as personalidades ruins, boas, festeiras, afetivas,
fofoqueiras, entre outras. Por exemplo: os shane-nawa, para outros clãs, por sua origem ser o
pássaro azulão, costumam ter filhos deficientes; os homens não temem guerrear e com isso
tem costume de bater nas mulheres com a justificativa de que assim serão respeitados e
temidos pelas suas mulheres. Os shawã-nawa são homens de boa fama, mas as mulheres são
causadoras de intrigas que podem resultar em guerra. Os pais repassam essas histórias a seus
filhos, para que saibam como serão seus futuros esposos ou esposas, de modo a se preparar
para o tipo de personalidade que os filhos herdarão.
Ao narrar histórias, na sociedade Marubo, o narrador, seja mulher ou homem, no
começo da narrativa, sempre deixa claro que não há semelhanças de conhecimentos já que a
sociedade é dividida em clãs ou subgrupos e cada subgrupo é dividido em famílias. O povo
Marubo entende que, quando ocorre união de dois clãs, a responsabilidade pela educação dos
filhos é essencial para não denegrir a reputação da família. Por exemplo: se um homem matar
anta e não convidar ninguém para compartilhar a sua caça, as pessoas com quem ele convive
irão questionar seu pertencimento clânico por ter aquela atitude egoísta. A sociedade em que
está espalha a sua má fama de mesquinho, seu nome será citado como exemplo negativo para

9
Keyashini significa ‘velho alto’, era marubo, primo de João Tuxaua, e recebeu o nome em português do
caucheiro Carlos Vargas, que o tinha adotado. Seu pai foi assassinado por parentes, que entregaram a esposa,
mãe de Keyashini, ao próprio Carlos Vargas. Keyashini-Carlos Vargas aprendeu o castelhano da região de
fronteira entre Brasil e Peru. Estamos, aproximadamente, nos anos 50 do século passado.
10
yochĩ é um termo de difícil tradução. É o duplo das coisas; televisão passa yochĩ, o que vejo numa foto é yochĩ,
minha sombra é yochĩ.
11
A palavra kẽchi-tso designa o ‘curandeiro’, um dos dois tipos de xamã, aquele que faz o ritual de pajelança
sobre o doente, não entra em transe. O morfema {-tso} indica a velhice da pessoa.
41

alertar as crianças no futuro. Assim, o indivíduo nunca deverá esquecer de que clã ele foi
gerado para preservar os nomes dos clãs.
Ser ‘marubo’, então, é uma ficção interna e uma necessidade externa. A não-ficção
interna são os clãs.

2.4 As aldeias, as malocas, as famílias e os clãs

Como a dissertação trata da importância dos ‘trabalho manual e trabalho produzido


nas pontas das mãos’ (mevῖsho shovima awe e mevi revõsho shovima awe) marubo e, ao
mesmo tempo, de sua relação com a distinção entre os clãs, de acordo com a proposta das
colaboradoras de minha pesquisa, introduzo, a seguir, as famílias e os clãs de cada maloca de
cada aldeia ao longo do rio Curuça. O leitor pode ficar confuso ao ler o que se segue, confuso
diante do quebra-cabeça dos clãs marubo. Voltarei a tratar deste tema complexo mais adiante
(2.5). A descrição que segue pode ser cansativa e de difícil compreensão, mas responde a uma
das exigências das mulheres Marubo, minhas consultoras: falar dos Marubo habitantes do rio
Curuça, hoje, e de seus clãs.
A aldeia São Salvador já mudou três vezes de localização e é liderada pelo chefe
Aldelino (Washa-kamã-Washa clã onça), do clã-jaguar (ino-nawa ou kamã-nawa) e que vive
com sua esposa Yene-shavo Mashe, do clã-araras-vermelhas (shawã shavo), com quem tem
cinco filhos, que são do clã-japó (mai-iskovo). Metõpa, tio viúvo de Adelino, é do clã-jaguar.
Ravẽ-pa ‘Pai da Rave’ (Vina) é filho do finado João Kulina, que foi casado com a mãe de
Aldelino; a mãe de Ravẽpa é não índia (nawa shavo-mulher não índia), mas ele foi criado
entre os Marubo como membro da família de Aldelino e casou com Memi-Tama-shavo (Emã-
ewa/mãe de Ema), uma mulher marubo do clã shane-shavo, ‘clã-azulão’, e com ela tem três
filhos, que são do clã-japim, isko-nawavo; o resto da família dessa aldeia vive na cidade de
Atalaia do Norte.
A adeia Volta Grande têm duas malocas e seu chefe principal é Sebastião, mais
conhecido como Saba, sendo que entre os Marubo seu nome é Shetã-papa (pai de Sheta, do
clã rane-nawa, clã-colar). Ele é viúvo da primeira esposa e casou-se novamente com duas
irmãs do clã tama-shavo, clã-árvore, assim como a primeira esposa falecida. Saba teve sete
filhos com sua primeira esposa; seu filho mais velho Kãῖpa (ou Nilo, do clã-sol, vari-nawa) é
o segundo kakaya da aldeia, também casado com duas mulheres, sendo a primeira da etnia
Mayoruna e a segunda filha de Alfredo da aldeia Maronal e do clã-azulão, shane-shavo. O
quinto filho do Saba Vimi/Võpa (Josiney) tem apenas uma esposa, Peko/Tapõwã, do clã-
42

jaguar, ino-shavo. Outros três filhos de Sabá vivem na cidade de Atalaia do Norte, dois
casados com nawa-shavo e um casado com uma marubo do clã rovo-shavo, clã- macaco-de-
cheiro. Todos os filhos de Saba trabalham em instituições indigenistas.
A aldeia São Sebastião, composta por seis malocas, é considerada a segunda aldeia
principal dos Marubo do rio Curuçá e está mudando pela segunda vez. A maloca de Iskãpa
(João Batalha), do clã rovo-nawa, abriga Iskãpa e sua esposa Itxa-Maia, do clã ino-shavo,
seus oito filhos e seu sobrinho Panã/Wasi-nawa (Fernando) casado com sua filha mais velha,
com a qual tem um filho. A segunda maloca tem como kakaya Nãkẽ-pa (Américo), do clã-
colar (rane-nawa). Nela mora a esposa Ravẽ-ewa (Ilda), do clã rovo-shavo (clã macaco-de-
cheiro, e eles tem seis filhos que são do clã satã-nawavo (clã-lontra). O velho mais filho de
Nãkẽ-pa é Vina/Kayã-sheni (Alciney), com duas esposas, Vena e Vô, do clã shane-isko-
shavovo (japim azulão); o segundo filho só tem uma esposa, Rovo-shavo, do clã shane-isko-
shavo (clã japim azulão); o terceiro filho tem duas esposas, Chori do clã koro-shavo (clã-
cinza) a e a outra é nawa-shavo, peruana da comunidade de Limoeira. Das filhas de Nãkẽ-pa,
uma é mãe solteira de cinco filhos, outra têm dois filhos e vive junto com o pai destes, mas
sempre nega ter marido e a ultima filha tem apenas 12 anos.
A terceira maloca é do chefe Maiã-papa (Said), do clã rane-nawa (clã-colar), viúvo
de duas mulheres do clã rovo-shavovo (clã-cinza), com quem teve sete filhos; casou se
novemente com duas irmãs também do clã rovo-shavovo e com elas vive nesta maloca. A
quarta maloca é liderada por Penῖ-papa-pai do Penῖ (João Macaquinho), do clã tama-
iskovo/tamawa (clã-árvore-japim), casado com Penῖ-ewa, mãe da Penῖ (Rosa), do clã rane-
shavo (clã-colar), com cinco filhos, que são do clã ni-nawavo (clã-mato); nesta maloca vivem
filhos e netos de Penῖ-papa. A quinta maloca da aldeia São Sebastião é liderada por Teka, do
clã sata-nawa (clã-lontra), cuja mãe é do clã rovo-shavo (clã-cinza), viúva de shane-nawa
(clã-azulão) e que se casou novamente com Américo, tornando-se sua segunda esposa; por
não ter filhos com Américo, ela vive na maloca dos seus filhos. Na sexta maloca vivem os
dois irmãos de Said, Peῖ-pa (Lauro) casado com Peῖ-ewa, do clã rovo-shavo (macaco-de-
cheiro), e Romeya, casado com uma kanamari com quem teve sete filhos e que abandonou
para casar com Vonchi-Tama-shavo, com quem teve três filhas. Ainda nessa maloca vivem os
filhos do finado Vanẽ-pa (José Rufino, irmão do Clóvis Rufino, ex-coordenador do Conselho
Indígena do Vale do Javari-CIVAJA, hoje chamada de UNIVAJA). Vanẽ-pa era do clã ni-
nawavo (clã-mato), tinha três esposas do clã sata-shavo (clã-lontra), sendo as duas primeiras
filhas de Said e a terceira filha da Tekã-ewa. Ainda na sexta maloca, mora a irmã de Vanẽ-pa,
Kenẽ-ewa (Marelene Rufino, do clã ni-shavo, clã-mato), casada com o filho de Said
43

(Mene/Waka-nawa, Manoel Reis), com quem ela teve três filhos; seu pai é nawa (Antonio
Rufino), casado com sua mãe (Tamã-ewa (Rita), que faleceu em 2015) e criou Tama e Vimi.
Com Tamã-ewa, Antonio Rufino teve quatro filhas (Peko, Txoko, Kama e Wã-Maia). Outro
filho de Said, Koa/Yochῖ-pa (Raimundo, do clã sata-nawa) é casado com uma Tikuna e
Rava/kevã-pa (Ivan Manoel Batalha) é casado com Vãti, filha de Lauro e do clã vari-shavo
(clã-sol). Algumas famílias dessa maloca vivem na cidade de Atalaia do Norte.
A aldeia Morada Nova é liderada pelo kakaya Vamã-pa (Alberto), do clã sata-nawa,
casado com duas mulheres. Com a primeira esposa, Sinã-ewa do clã shono-shavo, teve sete
filhos; com a segunda esposa, Vô do clã ni-shavo, teve seis filhos. Na mesma aldeia mora o
casal Yoati-Võchῖ-pa e Pasha-Aῖvo/Mashe.
Ronῖ-pa (Manelão), do clã rovo-nawa, filho de nawa fugitivo da polícia por ter
matado um sargento, é o kakaya da aldeia Matxi-Keyawai. Sua mãe se chamava Rave e era
do clã sata-shavo (clã-lontra). Manelão casou se com Peko do clã sata-shavo (clã-lontra); este
casamento é considerado pelos Marubo como “casamento que não presta”, por Manelão ter
casado com uma mulher da mesma linha do clã da mãe, o que fez com que seus filhos fossem
considerados irmãos dele mesmo, de Manelão, já que sua esposa seria a sua sobrinha. Ainda
nessa aldeia vivem mais três casais e seus filhos, com duas mulheres casadas com homens
mayoruna.
A aldeia Maronal é composta por sete malocas. A primeira maloca é do principal
kakaya Ivinῖ-papa (Alfredão), do clã tama-uavo (clã-flor-árvore). Aqui vivem os filhos mais
velhos de João Tuxaua (Ni-ua Wani/Itsã-papa), sendo o segundo deles o principal kakaya e
fundador da aldeia. Ivinῖ-papa teve três mulheres, todas do clã shane-shavo (clã-azulão), as
duas primeiras já falecidas, e vive somente com a terceira. Com as três esposas teve doze
filhos. A segunda maloca é a do seu filho mais velho, Chorῖ-pa do clã shane-iskovo (clã-
azulão-japim), da esposa deste Panã-ne-ewa, e seus filhos. Na terceira maloca vive Tamã-pa
do clã sata-nawa (clã-lontra) e o genro de Memῖ-papa (Sacarias, o irmão mais velho de
Alfredão). O kakaya da quarta maloca é o patriarca da família Pekõ-pa, do clã tama-uavo
(flor-árvore); nela vivem shono-nawavo (clã-samauma), rovo-nawavo (clã macaco-de-cheiro,
sata-nawavo (clã-lontra). A quinta maloca é de Chinῖ-pa do clã rovo-nawa (clã macaco-de-
cheiro) casado com Pani do clã shono-shavo (clã-samauma) e seus filhos ainda pequenos. Ao
lado, a sexta maloca é de Rave, do clã sata-shavo (clã-lontra), uma mãe solteira que resolveu
viver sozinha junto com seus filhos. A sétima maloca é dos dois irmãos mais novos de
Alfredão, o kakaya da aldeia. Tama-Saῖ-pa (Pedro) assumiu, em 2015, após a morte de seu
irmão Vanẽ-patxo (José), o papel de kakaya da maloca. Vanẽ-patxo era casado com duas
44

irmãs, Venẽ-ewa e Peῖ-ewa, do clã sata-shavovo (clã-lontra), e com elas teve onze filhos,
todos do clã rovo-nawavo (clã macaco-de-cheiro). Estes já são adultos casados, sendo que três
vivem na cidade de Atalaia do Norte com suas famílias: Manoel Chorῖ-pa é vereador, casado
com uma nawa-shavo; Kenã-pa (Paulo), coordenador da UNIVAJA, é casado com Vo/Tama-
Saῖ-wa (Sônia) do clã vari-shavo (clã-sol); Vane/Vinã-wa (Amélia, pedagoga) trabalha na
Secretaria Municipal da Educação Indígena – SEMDI e é casada com o Panã/Ramῖ-pa
(Walcerley) do clã vari-nawa (clã-sol).

2.5 O sistema de clãs

Na apresentação das aldeias do Sui Waka (rio Curuçá), descrevi o número de


malocas onde as pessoas residem; acho que o leitor teve dificuldade de entender a
complexidade dos clãs em que as pessoas se incluem. Chegou a hora de dar alguma
explicação sobre os subgrupos clânicos marubo, na perspectiva das minhas interlocutoras.
Conversando com os mais velhos, estes relataram sobre diversos processos de surgimento dos
clãs principais e dos que surgiram a partir de casamentos entre eles. Os pajés e os xamãs12
marubo dizem que no principio os clãs nãkosh wenia-rasῖ - útero brotar-PL - ‘brotaram do
útero (de uma mulher de um dos clãs principais)’.
Os clãs nãko-sho wenia-rasῖ passaram a existir, com suas denominações, com o
propósito de definir regras rígidas de casamento, quem pode casar com quem. Por isso, os
filhos dos clãs principais são considerados wãsho wenia, o que significa o processo de
geração de filhos de casamentos realizados entre subgrupos clânicos. Na maioria das vezes,
nãkosh wenia é explicado como sendo vene-pavo (vene-pavo, ‘grande-passado’, os clãs
maiores), para dizer que são os primeiros clãs, ou seja, os principais. Por outro lado, wãsh
wenia (flor-brotar, ‘brotar das flores’), é explicado como poto-pavo (pequeno-passado, os clãs
menores), continuidade de gerações produtos de casamentos ocorridos entre os clãs. Hoje,
com a aproximação de outras sociedades não indígenas, há casamentos entre mulheres
marubo e homens não marubo, e vice-versa. Os mais velhos, pajés e xamãs, me contaram o
que acontece com esses casamentos. Quando as mulheres geram filhos de homens não
Marubo, surgem clãs como vari wa ichnatõsh wenia, ‘vari de flores estragadas’ (vari ‘sol’ é
nome de um clã, wa ‘flor’, ichnatõsh ‘movimento-de-esperma-estragado’, wenia ‘brotar’):

12
Pajé e xamã são duas categorias distintas entre os Marubo. Pajé, segundo a explicação dos meus
interlocutores, é aquele que viaja no mundo dos seres não humanos cujas forças ele traz e une. Xamã interpreta
as falas sabias dos seres não humanos e destes recebe as suas forças.
45

‘flor’ é a genitália, masculina ou feminina, ‘estragado’ é o esperma de um homen que não


pertence a nenhum clã.
Se acontecer o inverso, no caso de um homem marubo ter filhos com uma nawa-
shavo (não índia), os clãs que surgem são, por exemplo, vari-wa rechõ tsipa – sol-flor
secreção resto, ‘resto de secreção de flor-sol’. Assim, se uma mulher do clã vari-shavo tiver
filhos com um nawa (não índio) ou com outra etnia, por ele não pertencer a nenhum clã, eles
são considerados surgidos ou gerados da secreção podre da flor-sol. No caso de um homem
do clã vari-nawa ter filhos com uma nawa-shavo (não índia), seus filhos são considerados
surgidos ou gerados do ‘resto da secreção da flor-sol’.
A sociedade marubo é formada por clãs ou subgrupos; os casamentos são regrados
por essa organização em clãs. Tentei organizar uma visualização do sistema dos clãs Marubo
nas tabelas abaixo, que explico em sequência.

os pretendentes das mulheres pertencentes ao clã sata-nawavo13 provêm dos clãs ni-
nawa, isko-nawa, txonavo, ino-nawa/kama-nawa e koro-nawa, mas seus filhos serão
sempre do clã rovo-nawa:

MÃE PAI FILHOS


ni-nawa
isko-nawa
satã-shavo Txonavo rovo-nawa
ino-nawa/kama-nawa
koro-nawa

os pretendentes das mulheres do clã ni-nawavo provêm dos clãs satã-nawa, shawã-
nawa e vari-nawa, mas seus filhos serão do clã rane-nawa:

MÃE PAI FILHOS


sata-nawa
ni-shavo shawã-nawa rane-nawa
vari-nawa

13
O termo Sata-shavo é singular e é usado para se referir a uma mulher do clã Sata-nawa. O plural ou coletivo é
Satashavovo. Satanawa é singular e é usado para se referir a um homem, sendo que o coletivo é Sata-nawavo.
Todas as denominações de clãs que terminam com {-shavo} referem-se às mulheres do clã. Sata-nawavorasĩ se
refere a uma aldeia, um ‘povo’, do clã Sata-nawa.
46

os pretendentes das mulheres do clã isko-nawavo provêm dos clãs satã-nawa, shawa-
nawa, vari-nawa e tsona-nawa/txonavo, mas seus filhos serão do clã shane-nawa:

MÃE PAI FILHOS


sata-nawa
shawa-nawa shane-nawa
isko-shavo vari-nawa
tsona-nawa

os pretendentes das mulheres do clã kana-nawavo provêm dos clãs satã-nawa, shawa-
nawa e vari-nawa, mas seus filhos serão do clã ino-nashavo/kama-shavo:

MÃE PAI FILHOS


sata-nawa
kana-shavo shawa-nawa ino-nashavo/kama-shavo
vari-nawa

os pretendentes das mulheres do clã vari-nawa provêm dos clãs isko-nawa, ni-nawa e
kama-nawa, mas seus filhos serão do clã do tama-oavo:

MÃE PAI FILHOS


isko-nawa
vari-shavo ni-nawa tama-oavo
kana-nawa

os pretendentes das mulheres do clã Shawã-nawa provêm dos clãs ni-nawa, isko-
nawa, txonavo, ino-nawa/kama-nawa e koro-nawa, mas seus filhos serão do clã
txashko-nawavo:

MÃE PAI FILHOS


ni-nawa
isko-nawa
shawã-shavo Txonavo anakashka-nawa/txashkõ-
ino-nawa/kama-nawa nawavo
koro-nawa
47

os pretendentes das mulheres do clã txashkõ-nawavo/Anakash-kashavo provêm dos


clãs rane-nawa, shane-nawa, shono-nawa, kananawa e wanivo, mas seus filhos serão
do clã do shawã-nawa:

MÃE PAI FILHOS


rane-nawa
shane-nawa
anakash-kashavo shono-nawa shawã-nawa
txashkõ-nawavo
kana-nawa
Wanivo

os pretendentes das mulheres do clã shane-shavo provêm dos clãs satã-nawa, shono-
nawa, tama-nawa e txashko-nawavo/anakashkavo, mas seus filhos serão do clã isko-
nawavo:

MÃE PAI FILHOS


sata-nawa
shono-nawa isko-nawa
shane-shavo tama-nawa
anakashkavo/txasko-nawavo

os pretendentes das mulheres do clã tama-shavo provêm dos clãs shane-nawa, rane-
nawa e ino-nawa/kama-nawa, mas seus filhos serão do clã do vari-nawa:

MÃE PAI FILHOS


shane-nawa
tama-shavo rane-nawa vari-nawa
ino-nawa/kama-nawa

os pretendentes das mulheres do clã txona-shavo provêm dos clãs shawa-nawa, isko-
nawa, ni-nawa e koro-nawa, mas seus filhos serão do clã shono-nawa:

MÃE PAI FILHOS


shawa-nawa
txona-shavo isko-nawa shono-nawa
ni-nawa
koro-nawa
48

os pretendentes das mulheres do clã wani-shavo provêm dos clãs rovo-nawa, rane-
nawa e shane-nawa, mas seus filhos serão clã do koro-nawa:

MÃE PAI FILHOS


rovo-nawa
wani-shavo rane-nawa koro-nawa
shane-nawa

os pretendentes das mulheres do clã shono-shavo provêm dos clãs rovo-nawa,


anakashka-nawa e Shane-nawa, mas seus filhos serão clã do txona-nawa:

MÃE PAI FILHOS


rovo-nawa
shono-shavo anakashka-nawa txona-nawa
shane-nawa

os pretendentes das mulheres do clã kama-shavo/ino-shavo provêm dos clãs tama-


nawa, rovo-nawa e shawa-nawa, mas seus filhos serão clã do kana-nawa:

MÃE PAI FILHOS


tama-nawa
kama-shavo/ino-shavo rovo-nawa kana-nawa
shawa-nawa

os pretendentes das mulheres do clã rane-shavo provêm dos clãs rovo-nawa, Shawa-
nawa e tama-oavo, mas seus filhos serão clã do ni-nawa:

MÃE PAI FILHOS


rovo-nawa
rane-shavo shawa-nawa ni-nawa
tama-oavo
49

os pretendentes das mulheres do clã koro-shavo provêm dos clãs satã-nawa, ni-nawa e
isko-nawa, mas seus filhos serão clã do wanivo:

MÃE PAI FILHOS


sata-nawa
koro-shavo ni-nawa wanivo
isko-nawa

Formulei a figura abaixo para dar um exemplo a partir das minhas relações
clânicas14: Como vari-shavo (rane-vari-shavo), baseado no casamento dos meus pais, simulei
o esquema de casamento padrão, como se tivesse me casado com meu primo cruzado (o que
não é o meu caso, de fato).

Meu pai é rane-nawa


Minha mãe é tama-sha-vo
Os homens deste clã são rane-
As mulheres deste clã são tama-
nawa-vo e são meus epa-vo
shavo-vo e são minhas ewa-rasῖ
(tio paterno-irmão do pai).
(mãe/tia materna-irmã da mãe).
As mulheres deste clã são
Os homens deste clã são tama-
rane-shavo-vo e elas são
oavo e eles são meus koka-vo
minhas natxi-rasῖ (tia paterna-
(tio materno-irmão de minha
mãe) irmã de meu pai)

Eu sou vari-sha-vo Meu esposo (ou minha esposa)


Os homens deste clão são vari- é ni-nawa.
nawa-vo e são otxi-vo (meus As mulheres deste clã são ni-
irmãos). As mulheres deste clã shavo-vo e são minhas pano-rasῖ
são vari-shavo-vo e elas são (primas cruzadas). Os homens
minhas txitxo-rasῖ (minhas deste clã são ni-nawa-vo e eles são
irmãs) meus txai-rasῖ (primos cruzados)

Figura 1. Esquema do parentesco clânico da autora

14
Os sufixos -vo e -rasῖ são pluralizadores.
50

Outro exemplo, que me inspirou para elaborar a figura acima, é o esquema de


parentesco clânico apresentado por Ruedas (2013:227) e reproduzido abaixo, baseado no
exemplo do clã vari-nawa (clã-sol) com o clã isko-nawa (clã-japó)15.

Figura 2: Exemplo de esquema de parentesco clânico apresentado por Xavier Ruedas (2013: 227)

A figura 2, baseada no clã-sol (vari nawa), apresenta a forma de casamento


denominado panõ ane aĩka,. Esta frase descreve o casamento de um homem com a neta da
avó paterna (prima cruzada do clã com o qual é permitido casar). O sentido desta antiga frase
é: alguém está dando continuidade ao seu clã (o clã da avó paterna).

pano-N ane aĩ -ka


afim-N nome mulher-ASP
‘tem o nome das mulheres com as quais eu posso casar (=afins)’

Complemento estas observações sobre os padrões de casamento com a explicação


dada por Alfredo Filho (Ako-Txanõpa da aldeia Maronal, pesquisador voluntário do seu

15
Segundo a professora Vinawã (Amélia Barbosa da Silva), o antropólogo Ruedas foi recebido na aldeia
Maronal do alto rio Curuçá na maloca dos dois filhos mais novo de João Tuxaua (Welper, 2009), quando foi
fazer sua pesquisa de campo. Ruedas chamava a atenção pela sua dedicação ao trabalho e pela facilidade em
aprender a língua marubo. Vanẽ-papa (José Barbosa) e sua cunhada Satã-Nake (Luzia Domingos) recordaram as
palavras de João Tuxaua, que dizia que em algum momento da vida deles na aldeia Maronal iria aparecer um
nawa viajante de um lugar muito distante guiado pelo rovo chai (pássaro japim do rovo-nawa, o japim associado
ao clã-macaco-de-cheiro). Imaginando que Ruedas seria o viajante, deram a ele o nome Pekõpa do clã rovo-
nawa (clã-macaco-de-cheiro). Ruedas chama os clãs de ‘povos’.
51

povo), que enfatiza as mudanças ocorridas nas últimas cinco décadas (ou mais): “Os Marubo
de hoje não fazem mais casamento desse tipo; por causa da mistura de casamentos clânicos,
não há mais verdadeiros panõ-anevo. Isso só acontecia no inicio da geração dos Marubo, mas
hoje não é mais assim, a partir da geração da família de João Tuxaua16, que casou com sete
mulheres pertencentes a clãs diferentes. Hoje, os Marubo explicam o casamento panõ ane
aĩka como sendo aquele entre primos cruzados de modo geral (de qualquer clã)”.
Um clã será chamado de txaitso por uma mulher quando seus membros são seus
primos cruzados, filhos dos tios maternos (irmãos da mãe). Os demais clãs são chamados de
txais; a eles pertencem os filhos das irmãs do pai e outros que não são considerados primos
cruzados. Se houver casamento com outra etnia ou com nawa (não indígena), a pessoa “de
fora” será considerada txai, no reconhecimento do parentesco por parte dos irmãos/irmãs do
esposo/a marubo, assim como os primos cruzados do esposo/a “de fora” são considerados ave
iki-yavõ pelos primos cruzados do esposo/a marubo. Ave iki-yavõ quer dizer ‘que compartilha
o mesmo homem que ela ou a mesma mulher que ele’.

A tabela 2, abaixo, mostra o sistema da ‘geração clânica’, que tentarei explicar em


seguida:
MÃES FILHAS PORTUGUÊS NETAS PORTUGUÊS
satã-nawa rovo-nawa clã macaco-de-cheiro sata-nawa
clã ariranha (sata)
satã-shavo rovo-shavo (rovo) sata-shavo
ni-nawa rane-nawa ni-nawa
clã enfeite (rane) clã floresta (ni)
ni-shavo rane-shavo ni-shavo
shawã-nawa txashkõ-nawavo shawã-nawa clã arara vermelha18
clã japim17 (txashko)
shawã-shavo txashkõ-shavo shawã-shavo (shawa)
shane-nawa isko-nawa shane-nawa
clã japó (isko) clã azulão (shane)
shane-shavo isko-shavo shane-shavo
tama-oavo vari-nawa tama-oavo
clã sol (vari) clã flor-da-árvore
tama-shavo vari-shavo tama-shavo
(tama-ua)
kamã-nawa
kamã-shavo kana-nawavo clã arara amarela kama-nawa
clã onça (kamã-ino)
ino-nawa/ino- kana-shavo (kana) ino-nawa
shavo
shono-nawa txona-vo clã macaco-barrigudo shono-nawa
clã samauma (shono)
shono-shavo tsona-shavo (txona) shono-shavo
koro-nawa wani-vo koro-nawa
clã popunha (wanῖ) clã cinzas (koro)
koro-shavo wani-shavo koro-shavo

17
Cacicus cela cela
18
Ara macao
52

A sucessão clânica na sociedade Marubo é definida por descendência matrilinear. Os


homens só multiplicam o clã da esposa. As mulheres identificam, hoje, dezesseis clãs.
Segundo elas, havia mais clãs no passado, mas no decorrer do tempo alguns clãs foram
desaparecendo. Por exemplo, as mulheres do clã do meu avô, João Tuxaua, só geraram filhos
homens; já que os filhos homens, de acordo com a tradição, só ajudam a multiplicar outros
clãs, mas não multiplicam seu próprio clã, como não havia tias maternas e primas, João
Tuxaua foi o ultimo remanescente do seu clã wanivo.
Vimos que dentre os casamentos possíveis (ver a sequência das tabelas acima),
existem “casamentos retos” - panõ anevo19. Por exemplo, as mulheres do clã tama-uavo,
deveriam casar com homens do clã shanenawa para realizar casamento como eles dizem que
tem que ser.
Melatti (1998:86) comentou sobre os clãs - que ele chama de ‘seções - marubo:

Dizem os Marúbo que o casamento preferível é com a filha do koka,


categoria que inclui os tios maternos ou os sobrinhos sororais mais velhos do
que aquele que emprega este termo. Os koka de um homem "da "Saracura"
pertencem à "Gente da Arara Vermelha", e as filhas desses koka são de
outras seções.
Há dois aspectos que devem ser ressaltados no casamento marúbo:
a) um homem, ao casar-se com uma mulher, se torna pretendente também
das irmãs dela, que vêm a se tornar suas esposas ou dos irmãos dele; a
intromissão de algum outro que não faça parte desse grupo de irmãos, ou de
sua seção, é vista com hostilidade;
b) parece haver uma certa ascendência de um homem sobre os irmãos mais
novos de sua esposa, o que por vezes contribui para constituir o núcleo em
torno do qual se forma um grupo doméstico - o dono da casa com sua(s)
esposa(s), secundado pelo irmão dela(s) e sua(s) esposas(s) - ou equipes de
extração de madeira.

Todo conhecimento e a atribuição a ele de algum valor são associados ao sistema de


clãs. É muito comum ouvir nas conversas entre mulheres reunidas em grupos comentários
sobre a relevância dos clãs para a avaliação de um trabalho manual, trabalho produzido nas
pontas das mãos, bem como das diferentes versões de relatos e estilos de narrativas míticas,
dos ritos e ensinamentos dos conhecimentos tradicionais, também para compreender
comportamentos e atitudes de uma pessoa.

19
Panõ anevo é traduzido como ‘casamento correto ou reto’.
53

2.6 As mulheres se apresentam

As mulheres Marubo protagonistas da minha pesquisa sobre o trabalho manual e


idealizadoras desta pesquisa, para dar importância à confirmação do relato do que cada uma
traz da sua família ou da sua sociedade, fazem questão de se apresentar sempre ressaltando os
nomes dos seus pais e os clãs dos pais.
Ino Tamashavo assim se apresenta:
En papan ea anea Ino Tamashavo, en Ewan ea anea
Txonãni, ea pavo Rovonawavo. En papan anero
Niwa Wani waninawavosh an iki. En ewa anero
Satã Vo, Satanawavosh an iki. Askata akin mia yoan
shoirivi, Waninawavo vopia tama shavapa ikiyavo,
Satanawavoro ene oke ikiavo. Ea pavro, en ewavo
mesho en kokavo vai ikia ea. An ane atikarkin, ea
min amisi inan mia yoashoiro, papa vakemen
noikaya ivosh an iki, an ewan an ewavo shoko
amaino, ari an vakerasin mesho an takevo shoko
akai papa. Noken tanatirivi, an ane ayas menkin
askakin ane onsi onsipaton aka an kanimaino an
anon ewati ayasvi, ã vake ewa iki aya ea nã oῖ
Ravemẽ Ravẽ-ewa.

Meu pai me chamava de Ino Tamashavo, minha mãe


me chamava de Txonã Ani, pertenço ao clã Rovo-
nawavo. Meu pai se chamava Niwa Wani por Foto 3: Ino Tamashavo
pertencer ao clã Wanivo. Minha mãe se chamava
Satã Vo, pertencente ao clã Satanawavo. Quero
ressaltar que o destino de quem é do clã Wanivo,
depois da morte, é viajar de volta para a sua origem
por cima da copa das arvores tama shavapa. O destino
da alma de quem pertence ao clã Sata-nawavo, por
sua vez, depois da morte, é viajar de volta para a sua
origem de baixo da água. O meu clã faz parte da
origem do clã de minha mãe; o destino é retornar,
após a morte, à origem de baixo da água. Essa questão
de recebermos vários nomes enquanto crianças
depende muito do pai que tem carinho pelos seus
filhos, que dá o nome das suas irmãs às suas filhas.
Antes que você faça perguntas sobre o porquê eu
possuo tanto nomes, vou lhe responder: o nosso
costume é dar o nome principal para nossas crianças e,
conforme elas vão crescendo, irão receber vários
nomes dos seus pais, antes de se tornarem adultas. Em
seguida, passarão a ser chamadas pelos nomes de seus
futuros filhos, por exemplo, eu me chamo agora Ravẽ-
ewa significa mãe da Rave.
54

Assim Satã Sheta se apresenta:


En anero Satã Sheta, ea Satanawavo shavo. En papan
anero Txona Tae, aton anepawa Wanõpapa, awen ano
papaki, awe vakeya naman ikia askai anea,
Txonanawavosh an iki. En ewan anero Tamasai an anon
ewa ikiro Wanõewa, Rovonawavo shavosh an iki. Ea en
take aka tanamase noken ewa noke mokanawan viãti,
noken txichtxo shavo yomematon noke kanima. Rama
noke yosin non yoan aton noke aka yosinki.

Eu me chamo Satã Sheta, faço parte do clã Satanawavo,


meu pai se chamava Txona Tae, mas era conhecido pelo
nome de Wanõpapa (que significa ‘pai de Wano’), nome
que ele recebeu depois de se tornar adulto, por pertencer
ao clã Txonanawavo. A minha mãe se chama Tamasai,
mas é conhecida pelo nome de Wanoewa (que significa
‘mãe da Wano’), por pertencer ao clã Rovonawavo.
Minha mãe foi raptada pelo povo Matses/Mayoruna,
enquanto eu e a minha irmã ainda éramos pequenas. Foto 4: Satã Sheta
Fomos criadas pela nossa avó e recebemos dela tudo o
que sabemos hoje.

Assim Sata Mashe, irmã de Satã Sheta, se apresenta:


En anero Satã Mashe, ea satanawavosh en iki. Ea
Satã Sheta take, tosma oinã ea aton anea Pasha
Ainvo, yoshan kanimasho, noken me iti katsese yosi
en kania. Awe onisi em kania ewamasho, en veneya
namansho, vene aska vene atikin en iki keskase en
merarivi en vene, en aska keskaki en meitin ea
revanya en vene, katse ea kasma ashon matsawan.

Eu me chamo Satã Mashe, pertenço ao clã


satanawavo. Sou a irmã mais nova da Satã Sheta.
Por não poder engravidar, por não ser mãe, as
pessoas me chamam de Pasha Ainvo, que significa
‘Mulher Crua’. Por ser criada pela pessoa mais
velha, me dediquei ao ensinamento dela para
aprender todas as produções que faço hoje. Sofri
muito na minha infância, a minha vida só melhorou
depois que casei; meu esposo é o homem que
sempre sonhei para mim, me ajuda muito nos meus Foto 5: Sata Mashe
trabalhos de artesanato.
55

Assim Tamasai se apresenta:


En anero ea Tamasai, ea Rovonawavo
shavo. En papan anero Cheoya,
Waninawavosh an iki. En ewan anero
Satã Ino, satanawavosh an iki. Neskai
en yoan nanan, neskai wicha maino
oinsho askarasirivi ikin chinanovo,
nokemen eseyanovo inan en ikivre,
askai merarivira ikin tipokaniayavo
tananovo inan en iki, noke yoran yoan
aa mamenkasma, yoan vana noke
meraya noke toaya akarasin sheni
wetsan vanan non ikivre nanan.

Eu me chamo Tamasai, pertenço ao


clã Rovonawavo. Meu pai se chamava
Cheoya por fazer parte do clã
Waninawavo. Minha mãe se chamava
Satã Ino, por fazer parte do clã
Satanawavo. Através da minha
apresentação faço questão de mostrar Foto 6: Tamasai
os variados relatos que dão importância
e valor a minha cultura, que é trazida
pela minha família. Quero que essa
escrita faça o leitor entender que
mesmo fazendo parte de um povo, na
realidade não somos todos iguais, cada
família faz a sua historia de geração
para geração, de acordo com o
conhecimento herdado.

Assim Koron Meto se apresenta:


En anero Koron Meto, en anon ewa ikiro
Vimiwã, eapavro Koronawavo. En Papan
anero Mispa, anevoro Raon Kochi
apawavo, Inonawavosh an iki. En ewan
anero Panteni Vena, Waninawavosh an iki.
Askarivira inan min chinanon inan em
yoanro, min txaitxo Waninavo ivomavre,
min txaitxoro awesti tipo niakeshon noke
eneti. Aaivo nawavo iki, noke westichtase
marivi antsa ipawa menkin noke keyoa, as
naro-naro aka keskai awen potopavo awen
venepavo aka aya ipawa.

Eu me chamo Koron Meto, meu nome de


adulta é Vimiwa, pertenço ao clã
Koronawavo. Meu pai se chamava Mispa;
era conhecido como Raon Kochi,
pertencente ao clã Inonawavo. Minha mãe
se chamava Panteni Vena, pertencente ao
clã Waninawo. Quero ressaltar que não é o
mesmo clã do seu avô, o clã da minha mãe Foto 7: Koron Meto
56

tem outra historia. O seu avô foi o ultimo


vivente do clã Waninawavo. Nosso povo tem
muitos clãs. No começo, existiam vários clãs
repetidos. Por exemplo, Satanawavo ainda
tem Satanawavo ‘maior’ ou principal, que
chamamos de Sata Venepavo, e Sata
Potopavo20, que seria Satanawavo ‘menor’.

Isko Tama é homem. É preciso explicar a razão pela qual ele está aqui, junto com
as mulheres. Se as mulheres são responsáveis pela parte ‘material’ da cultura (fazer os
artesanatos a partir dos conhecimentos que cada uma herdou e acumulou), são os
homens que podem falar desses conhecimentos. A voz é dos homens; o saber do fazer é
das mulheres. Por isso, as mulheres dizem que elas criam os homens, dão conhecimento
a eles. E dizem que são elas que controlam o jeito de ser dos homens, fazendo com que
eles gostem da família da qual suas esposas gostam. E são elas que incentivam sem
parar, em todas as situações, para que os homens ensinem aos seus filhos. Afinal, faz
sentido a expressão delas: os homens não crescem. As mulheres comuns vivem o
dilema entre o forte desejo de dar, elas mesmas, voz aos seus conhecimentos e o temor
de desafiar o poder dos homens que monopolizam essa voz. O medo de desafiar é o
medo de se tornar objeto de comentários nas festas em que mensagens de crítica são
lançadas publicamente, cantando ou falando. São as brincadeiras chamadas de waka
anea, onde essas mensagens não mencionam diretamente o alvo da crítica, mas quase
todos entendem quem é. Homens e mulheres têm medo de waka anea.

En anero Iskõ Tama, en anon epa ikivo anero


ea Pekompa, Iskonawavosh en iki. En Papan
anero Satã Ako, Satanawavosh an iki. En
ewan anero Shane Kena, Shanenawavosh an
iki. Ea sheni wetsasho oinki yosi masteya ea
min aka yosiro mashtesmarivi, noken sheni
rasin yoan antsaka rave yosimas non
voporivi. En anon aska akin en vakerasin ano
ato vesonosho inan en yosia ivo vana mia en
yoanshoa, venesho en anon iki yosi shon iki,
noke vene anon meiti rasin, min kokavo sheni
wetsarasin yosinka ivokama, sheni wetsa Foto 8: Iskõ Tama

20
Sata Venepavo (considerado como clã surgido pela verdadeira rovonawa casamento sem mistura, aquele clã
surgido junto para casar nanko-sh = metáfora do utero vênia = surgir) e Sata Potopavo (considerado como clã
surgido pela mistura de casamentos de vários clãs e outros povos wã-sh = metáfora de pessoas de nova geração
no sentido de flor vênia = surgir) são subgrupos de clã; a narrativa da origem do clã contém algo que fez surgir o
clã menor a partir do clã principal. É uma explicação de como a população Marubo dar a origem de parentescos
e a justificação dos casmentos entre clãs.
57

nishon anon askatimaran inan anon iki ea aya,


vevo kaniya ipawaton ikivo.

Eu me chamo Isko Tama, meu nome de adulto é


Pekompa, pertenço ao clã iskonawavo. Meu pai
se chamava Satã Ako, por pertencer ao clã
shatanawavo. Minha mãe se chamava Shane
Kena, por pertencer ao clã shanenawavo. Pela
idade que tenho dá para entender que já tenho
muitos conhecimentos, mas na verdade não, na
maioria das vezes morremos sem saber a
metade do que gostaríamos de saber. Eu, sendo
homem, trago os conhecimentos dos artesanatos
para minhas necessidades e para saber da
cosmologia (sou pajé), conhecimentos que
busquei com meu esforço para me proteger dos
seres invisíveis, que nos fazem mal. Não fui
treinado pelos mais velhos assim como seus tios
foram treinados.

A primeira mulher de Isko Tama se apresenta agora:


En anero ea Varin Vati, varinawavo shavosh en
iki. Em papan aa westi oinki an ewanish an
papan ane antsan ipawa Ranen Ako, Txano,
Toati ane wetsa ea petxiai, Ranenawavosh an
iki. En ewan anero Taman Roni, tamanawasho
shavosh an iki. Varinawavo venia shavovosh
onsi onsi pai yoanaya, ravero osantiroaka,
ninkantiroaka, aka. Askarivi akin non shovikain
yoarimenki, nonken txairasin anoi ikikeskakin
noke men wesi mantawavo noke varishavo.

Eu me chamo Varin Vãti, pertenço ao clã


varinawavo. Os pais do meu pai deram a ele, na
sua infância, vários nomes, por ele ser o único
menino; o chamavam de Rane Ako, Txano,
Toati, e muitos outros que não me lembro. Ele
pertencia ao clã ranenawavo. Minha mãe se
chamava Tama Roni, pertencente ao clã
tamanawavo. Meu clã é conhecido como aquele
do qual outros clãs, gentes e animais surgiram.
Na maioria das vezes, tem historias engraçadas,
interessantes, atrapalhados, relacionadas às
Foto 9: Varin Vãti mulheres. Com isso, nosso txairasin (aquele com
quem podemos casar, pretendente, primo
cruzado) nos confundem e não entendem que são
apenas histórias para justificar a existência do
que fazemos e do que vivemos.21

21
As narrativas míticas muitas vezes são usadas para justificar a atribuição a uma pessoa, homem ou mulher, de
determinadas características. Vou dar um exemplo, tomando uma narrativa reproduzida por Pedro Cesarino
(2013: 129-161). Shetã Veka era uma mulher do clã varishavo/varinawavo que teve amantes fora do grupo
Marubo, com isso não pretendia casar seus txai. Ela teve relações com outras pessoas-gentes (Niro Kaso, Niro
58

Shanen Tome se apresenta:


En anero Shanen Tome, en anon ewakiro Rosãewa,
shanenawavosh en iki. En papan anero Tama,
txonanawavosh an iki. En ewan anero Iskõ Kana,
iskonawavosh an iki.

Eu me chamo Shanen Tome, meu nome de adulta é


Rosãewa, pertenço ao clã shanenawavo. Meu pai se
chamava Tama, pertencente ao clã txonanawavo.
Minha mãe se chamava Iskõ Kana, pertencente ao clã
iskonawavo.

Foto 10: Shanen Tome

Essas formas de apresentação das mulheres marubo mostram a riqueza da


construção de diferentes modos de conhecimento de execução na produção do artesanato
pelos subgrupos ou clãs. Sempre me solicitaram para que observasse com atenção de modo a
reconhecer as peculiariadades de como é produzido o artesanato, pela diferenciação do
subgrupo, sempre ressaltando a origem clânica como responsável pela produção. É
interessante ver os membros de uma família trabalhando juntos, prestando atenção às histórias
que fazem parte do ensinamento, apreendendo a se concentrar, a ter habilidade e disciplina.
Neste momento, filhas e netas não aprendem somente o padrão de fazer artesanatos
tradicionais, mas são envolvidas em todo o contexto de narrativas dos antepassados e da
formação e legado das famílias de cada um. Tudo depende e está vinculado aos clãs.

Washmẽ, Shanen Rono, Yora Noĩ). Ela gerou vários animais e a estrela cadente. Depois, ela casou com quem não
poderia casar, com seu ‘tio Ranen Tupane’ descendente de ranenawa. Por ser considerada uma mulher
desobediente, ela não podia ter filhos-gente-de-verdade: a sogra comia os filhos para eles não dar continuidade a
casamentos inapropriados. Por isso uma mulher do clã varinawavo pode ser chamada de Shetã Veka com a
implicação de que ela tem vários amantes e casou com quem não deveria ter casado.
59

Capítulo 3

Os artefatos

No dia 19 de abril de 2016, como fazem costumeiramente as mulheres marubo na


hora das refeições, comentando algum assunto de interesse comum, ouvi de minha tia (irmã
de minha mãe) Ilda, matriarca da família da maloca onde estava hospedada, um comentário a
mim dirigido, para que eu pudesse captar, enquanto observava as mulheres, o que seriam as
trocas de conversas entre mulheres mais velhas:

Rama kani venarasῖ vevõ ipawa keska ese rakeshoa yavo marivi, aska akaya
anõse nõ anõ anõ iki yama, aska timaki noke yorã eserivi iki marivi, aska
sivish atõ anõ ayama keskai awe sawesmavo, vevõ tiãro ravῖkaki kaya chero
nia, ramaro roaserivi nawashavõ tanati atõ ikiki, vevõ tiãro nõ seya-shoke
nẽkãi, atovõ rama oῖro roase.

‘As jovens de hoje não são como as de antigamente, quando se valorizavam


e se respeitavam os costumes tradicionais, temendo o que realmente poderia
acontecer se não se acreditasse no que os mais velhos dizem. Tanto é que,
hoje, eles e elas não ligam muito em andar sem os adornos, enquanto antes
era motivo de vergonha exibir o corpo nu, hoje se tornou normal para eles,
como moda de nawa-shavo. Do nosso ponto de vista, como mais velhos,
seria um corpo sem vida, que causa nojo, o que para eles é normal hoje’.

Sempre ouço essas conversas entre os mais velhos, quando querem admoestar as
mulheres que ficam andando sem adornos, citando as explicações de xamãs (kenchitxo) e
pajés (rumeya).22 As mulheres que não enfeitam seus corpos são chamadas de ‘mulheres-
minhoca’ (noin-shavo), como as que, férteis, circulam em qualquer ambiente (escuros e
húmidos) e com qualquer homem, engravidam e concebem almas de minhocas que serão
seres gerados em forma humana. Pois, essas mulheres que andam raro-ati-yama ‘sem
protetores’, sempre são vulneráveis a acontecimentos ruins; os adornos são importantes como
proteção e não são somente as mulheres que correm esse risco, os homens também. Os filhos
gerados por mulheres sem proteção dos rane-awe, ‘adornos’, são criaturas que vêm ao mundo

22
Para pensar a importância dos enfeites para o povo Marubo, foi sugestiva a tese de Miller (2007), onde ela
interroga “as coisas” entre os Mamaindê (Nambiquara), as relações entre os enfeites corporais e a noção de
pessoa, o que me ajudou a entender minhas protagonistas quando dizem que os enfeites são produzidos para
harmonizar o corpo e que eles representam a pessoa-família. Os enfeites são ‘guias’ protetores - raro-akaya - de
quem os recebe e os usa, não podendo ser passados adiante. Todo xamã tem seus raro-akaya.
60

com outra perspectiva de vida, comportamentos e atitudes, mesmo que para os pais sejam
filhos normais; são pessoas que têm dificuldades de compreender e de aprender os
ensinamentos dos seus pais acerca do mundo em que ingressam.
Elas não agem como verdadeiras mulheres marubo (shavo kaya-pavo chinã
keskama), mas, sim, como mulheres sem sabedoria e sem habilidades nas pontas das mãos,
mulheres sem vida que não dão importância à sabedoria, não tem interesse em respeitar ou
praticar os conhecimentos tradicionais. Não são ‘verdadeiras’ - shavo koῖ-rasῖ - já que não se
preocupam com o odor da pele e com a beleza, são mulheres sem cor (ainvo-koro-rasĩ),
cinzas, preparam os alimentos sem vitalidade e energia, comem para viver, são impacientes,
se irritam com facilidade e, ao querer imitar shavo koῖ, só conseguem fazer fofoca. É muito
comum ouvir estas falas no dia a dia, uma estratégia dos mais velhos diante da nova geração
marubo.
Não poucas vezes, os irmãos de minha mãe chamavam minha atenção – a de uma
antropóloga que chegou para pesquisar - para que observasse a vida das mulheres e dos
homens:
Oῖ ewa, noke venerasῖ marubo shavanã yoῖni aniti china, wai-aka, shava wenẽka
china, askavai noke vene meeti aka. Aῖvorasῖ meetiro ãtsaka keskaro, yora
vestsarasῖ oῖ ã awe onisa keska, atõ vake vesoi, atõ vene vesoi, askavai wai
matxikai, pitiki aka. Meeti ãtsakatõ imaiya waia sheni, shava venero keskama
oraka kakash mani vikai aka tõsho, meeiko kõisma aῖorasῖ, shovo vseoi atõ vari
vãkeskai.

‘Olhe mãe, no nosso cotidiano, os homens têm rotinas para caçar, fazer roças,
manter limpo o terreno ao redor da casa, fazer seus artesanatos nas horas vagas. As
mulheres têm o dobro de preocupação com a responsabilidade com os seus
afazeres, o que fica parecendo que são as mais exploradas, nos cuidados dos filhos,
esposos, vão para roças trazer alimentação e preparam comida. Quando a aldeia é
nova, a rotina dos afazeres é mais fácil, mas quando a aldeia vai ficando mais
velha, as roças vão ficando mais distantes para as colheitas das mulheres que
acabam gastando mais tempo já que têm também as tarefas da casa.’

Com a minha presença como pesquisadora na aldeia, junto com minha família, meus
tios sempre me alertavam para observar os processos de mudanças ao longo do tempo, a falta
de interesses dos jovens para com a ‘cultura’. Devo dizer que, apesar de ter vivido pouco
tempo na aldeia, testemunhei muitas mudanças, tanto na forma de pensar, no cotidiano, na
forma de se enfeitar. Para os velhos Marubo, todavia, o trabalho manual ainda é habilidade e
maturidade; os artefatos feitos para enfeitar os corpos ainda representam o corpo feliz e sadio.
61

3.1 Valorizar as descobertas do trabalho

As mulheres marubo habilidosas e conhecedoras de seus trabalhos enfatizam que


seus conhecimentos lhes foram transmitidos pelas suas avós e mãe da forma “correta”. As
mulheres que criam novos artefatos guardam suas descobertas como um grande segredo
especial; somente a família da artesã tem acesso a tais descobertas, que poderão ser
aprendidas somente por filhas, netas e noras. Assim, dizem que o que é ensinado com
facilidade não é valorizado; por essa razão, os mais velhos só ensinavam aqueles(as) que se
dedicavam a aprender, aquele(a) que mostrava habilidade e paciência para capturar os
ensinamentos das anciãs.
O bom aprendiz tem quem ouvir e observar para não aprender errado; se quiser fazer
perguntas, só tem que fazer as perguntas essenciais. Ensinar a trabalhar com as pontas das
mãos é também aprender a pegar com a mão correta; antigamente, os Marubo não admitiam
que criança se acostumasse a trabalhar com a mão esquerda, era ichna-ka ‘feio’23. No
ensinamento das artes tem que praticar junto com as pessoas mais velhas. Se ensinar sem
praticar junto, a aprendiz prejudica a mestre artesã, ao tirar (mepachi-ikita24) dela
conhecimentos e habilidades já adquiridos, paralisando seu aprendizado até ficar com
preguiça e esquecer o que aprendeu ao longo da vida.
Como as mulheres Marubo têm distintos conhecimentos em relação a sua produção,
aproveitei para conversar - no dia 11 de novembro de 2010 - sobre quais artefatos são feitos
pelas mulheres marubo com Korõ Meto (clã Koro-nawavo), Tamasai (clã Rovo-nawavo) e
Wanisai (clã Wanivo), todas da aldeia Boa Vista do médio rio Ituí, e com Tama-saiwã (clã
sata-nawavo), oriunda da aldeia Maronal no alto rio Curuçá. A conversa aconteceu na minha
casa, na cidade de Atalaia do Norte (AM), por ocasião de uma visita a minha mãe, Tamã
Sheta (clã Tama-oavo). Ouvi elas narrando do aprimoramento da produção usando PVC, da
descoberta de ferramentas que melhor se adequam a uma boa produção.
Já que as mulheres não devem ficar paradam, quando elas vêm à cidade para fazer
tratamento na Casa de Saúde Indígena – CASAI, nas ruas da cidade encontram pedaços de

23
A leitura da SUMA Etnológica Brasileira, de Berta Ribeiro (Ribeiro, 1987:16) me trouxe uma citação
interessante de Deez (1967): “Artefato, tal como palavras, são produtos da atividade motora humana, produzida
través da ação de músculos guiados mentalmente sobre a matéria-prima envolvida”. Observei a semelhança com
a ideia marubo de fazer-pensamento. Lembrei também do “ensinar as mãos”, presente nas falas dos meus
protagonistas, nos modos de aprendizado do trabalho manual, já que as crianças aprendem a trabalhar de forma
correta com a mão direita, são corrigidos para não se acostumar a trabalhar com a mão esquerda.
24
Forma de tirar a sabedoria, o conhecimento foi tirado da mão.
62

PVC, baldes brancos, frascos brancos e máquinas de lavar roupa inutilizadas, que catam para
aproveitar as partes que podem ser reaproveitadas para fazer adornos corporais
(indumentárias). Algumas delas ainda buscam tucum ao redor da cidade para fazer bolsas,
redes, pulseiras e tiaras. Às vezes, simplesmente catam sacos de fibras para poder substituir o
tucum. Para essas mulheres, a cidade não faz bem para a recuperação dos doentes e elas se
sentem mais debilitadas. Quando estamos conversando, minhas protagonistas me dizem que
quem fica parada é aquela pessoa que não tem saber nas mãos, muito menos tem saber na
alma. Uma pessoa assim é apontada com vergonha e como mau exemplo para seus filhos.

3.2 Tradição

No dia 08 de julho de 2010, conversando com Koro Metu (Nair Cruz), da aldeia Boa
Vista, no médio rio Ituí e pertencente ao clã Koronawavo, ouvi o que ela me contou:

Koro Metu (Nair Cruz), vevõ tiã noke ãivo anõ meipawa, shasho, nawa
oimakash, awen koro roeparo pani rerai, awen sapa anika ivon sheki renei,
wanin renei ati waka anusho inã, matximasõshoro nuvo txaroki, pani tseshe
txaroki aka, mevi napash tio ivoro ano nuvo tsosati, pani tseshe, tovoin
tseshe, chini tseshe aka. Sheo yamashro, nõ anõ otapawaro mashashe.
Mashashe, aĩvo katsekase onãti aka marivi, aivorisini non anon nuvo
otanoshon, tea revo pompo iki machin meki mera ipawavo. Tseshe anõ
otatiro, kapa sheta ipawa.

Antigamente, quando ainda não conhecíamos nawa, as mulheres usavam, na


produção de seus artefatos, a pedra para cortar, o pé de tucum, pedras
maiores para triturar milho e pupunha para fazer mingau, e sobre essas
pedras faziam lascas do aruá e do coco de tucum. A pedra de tamanho da
palma da mão servia para lixar colares e para ajudar a esmagar aruá, coco de
tucum e outras espécies de cocos. Quando não tínhamos agulha, furávamos
com mashashe25. Não eram todas as mulheres marubo que sabiam catar
mashashe; quando queriam furar o aruá, iam catar nas areias das cabeceiras
dos igarapés. E para furar os cocos usávamos os dentes de esquilo.

No dia 10 de março de 2012, Tamã Shëta, da Aldeia São Sebastião no Médio rio
Curuçá e pertencente ao clã Tama-oavo, e Satã Mashe, oriunda da aldeia Maronal no alto rio
Curuçá e pertencente ao clã Sata-nawavo, me contaram o seguinte:

Tamã Sheta Satã Mashe: vevõ tiã, nuken sheniwetsarasin arimame


yamamaki nanayasho, shava inui anun ninisma ipawavo, askatonsho vaná
vana oinkeansh nekan apawavo, aivorasin yosikavo askasivi, ea yosika inan
ave ainvo wetsas yosin marvi, ea mepach misi ikiya, rama noke yomenka,

25
Mashashe é um tipo de pedra esverdeada encontrada nas pequenas cachoeiras dos igarapés.
63

yura yosin tsikika. Washmen yoshan vaná, a yosi ivosho, washmen vatxi
anun askash noke aivo anũ awe onis pawavo, vatxi aki yosimasho.
Antigamente nossos antepassados se envenenavam entre eles, não viviam
muito tempo em um lugar, que não dava nem tempo de ver as plantas
crescerem. As mulheres que sabiam trabalhar nas pontas das mãos diziam:
“eu sei fazer, então eu não vou ensinar as outras”. Os que aprendiam eram
somente os parentes próximos, para não enfraquecer o saber e o
conhecimento da artesã. Hoje nós somos muito fáceis de ensinar as outras.
As plantações de algodão eram feitas pelas mais velhas e só elas sabiam
fazer as saias de algodão. Outras mulheres sofriam por não saber fazer saias,
porque as que sabiam fazer não facilitavam para ensinar.

Satã Mashe: earo en ewa mokanawan vimanon, en txischtso yoshasho tiris


imisi inan anun ea awen tsaũ pawa katseki yosinki, tseshe, toati, txitxã,
pechin, wekoti, washmen, pani, kenerasi, mapo mea. Atiã nawã awe non
oikoikamarivi, nawã awe vinosho inã pae ashon, kamã shaka, ono shaka.

No meu caso, os Matses pegaram minha mãe. Minha avó, por ser velha e
para eu não ficar andando sem fazer nada, me ensinava frequentemente tudo
o que se podia fazer com coco, tucum, algodão, como fazer peneira, cesto,
esteira, abanador, grafismos e trabalho com cerâmica. Nessa época nós não
conhecíamos direito nawã awe (as coisas dos nawa) e, para ter nawã awe,
tínhamos que extrair caucho, couro de onça e couro de porcão.

Tamã Sheta: En ewa kakaya shavosho awen meiti piti kashma akis niavre
ipaowa, mania, atsa, kari, sheki, pia wetsarasin aka, yora pimakayash, vake
an vene ninivaransh awen ave tsawa an natxi awen papani naneya ton
kashma ashon pawa, peti aki yosika ipawa en ewa. Kene, toati, pichin,
wekoti, mapo mea, panika, tseshe, nuvo aka en vavawã ea yosirivi.
Nishavovo pitiakaton txikichka menkin, meti yaõkavo ipawavo, askasho vene
pima chinasmavo, aton meti shovimaro atonavriki. Vevun tian, aĩvorasin
katsekase awe antsãwama ipawa, aĩvo meti yaõka an vene via, awen ave
nikaton, peshe kashmashon vaiki enevai-ya, awen venen nokush peti
kashmavai pari tsaush, awen vene anun neshati kashmawaki, ainvo
ruapasho an iki.

O trabalho de minha mãe, por ser kakaya shavosho (mulher chefe), era
preparar a comida com banana, mandioca, milho e outros tipos de alimentos.
O esposo a trouxe para perto dele quando ela era ainda criança e quem lhe
ensinou a preparar comida foi a primeira mulher do esposo, irmã do seu pai.
Minha mãe era talentosa em preparar comida. Grafismos, peneira, esteira,
abanador, trabalho com cerâmica, fazer rede, coco e fazer aruá, eu aprendi
com minha sogra que era ni-shavovo. As mulheres deste clã eram
consideradas preguiçosas no preparo da comida, mas habilidosas no trabalho
na ponta das mãos. Antigamente, as mulheres não tinham muita quantidade
de trabalho. O homem que casava com uma mulher habilidosa, antes de ir
caçar improvisava um tapiri para que ela continuasse o seu trabalho. Então,
ela primeiro preparava a comida do esposo e depois fazia adornos. Esta era
considerada uma mulher perfeita.

Tamasai: Chero nia nuken sheniwetsarasin anun eseyapawavo, ruamisa, an


wetsamaton enea anon notsi an ititon an ikiki, nami yoima nitima itsan
ravinti, senpa, mashe aka saiki tean kase nun anun ruamarivi, yoima nia
ichna kenayaki. Nori nõ oina noke ese ãtsaka, noke yorashavo tserãa inã,
yoi akĩ chinaimai mãis tsaopakei akamarivi, pichĩ aĩvo yosikatõ vaĩkĩs
64

kashma akaya, anõ tsaotichinash, vevo vana ikitaya aĩvo westi akĩ chinãsma,
esetaya kanish, aĩvos en yoãma vene askasivi.
Andar sem enfeite para nossos ancestrais era desrespeito, agouro, querer a
morte de algum parente. Não podia andar sem cuidar da pele e ter vergonha
do cheiro ruim. Cera com urucum não era para ser usada só nas festas; andar
sem enfeite atrai tudo que não presta. Para nós temos muitos conhecimentos:
só por ser mulher yora, não sentamos em qualquer lugar do chão; a mulher
que tem habilidade já preparava a esteirinha no caminho para poder sentar
quando chegasse ao lugar. As mulheres de antigamente, por receberem
vários ensinamentos, eram sabias de pensamentos e isso não acontecia só
com as mulheres, os homens eram iguais.

Nos relatos das mulheres, chamou minha atenção a minúcia do processo de como
aprenderam os diversos modos de ensinamentos das suas famílias, o tanto que elas valorizam
o que para elas é o modo de vida que faz da pessoa um exemplo de vida para os jovens. Como
elas dizem: “é assim que funciona”. A família traz para cada pessoa a responsabilidade de ser
um bom exemplo na sua sociedade; a pessoa que não valoriza o conhecimento tradicional não
é considerada uma pessoa boa para se espelhar nela. Para os Marubo, o que se espera dos
filhos é que eles possam dar continuidade aos seus clãs, no futuro como chefe da sua aldeia,
se tornando filho, pai, esposo, sogro, avô. O mesmo pode ser dito das mulheres.
Essa forma de ensinamento, continuamente repetido pelas mulheres, é explicada
como conhecimento clânico. Um trecho do texto “Trançados indígenas norte-amazônicos:
fazer, adornar, usar”, de Velthem (2003: 117), me fez pensar: “A atividade humana deixa
traços materiais, de diferentes sortes. Alguns são involuntários, outros intencionais e,
portanto, artefatuais, possuindo a forma de objetos, os quais informam sobre as necessidades
de expressão e de perpetuação de determinada sociedade”. Foi isso que procurei escrever a
partir do que minhas protagonistas tentaram transmitir, quando me escolheram para falar de
seu ‘trabalho manual’, que anda junto com seu saber tradicional, e onde a explicação precisa
considerar a diferenciação dos distintos ‘trabalhos clânicos’. No processo de produção de
‘coisas’ através do trabalho manual, acontecem variadas formas, pois, entre as mulheres
marubo, as criatividades vão se aprimorando tendo como base as descobertas de todas as
artesãs, sendo que as técnicas de trabalho revelam estilos em que estão os traços da
descendência de cada subgrupo clânico, herdados pela artesã.

3.3 Inovação

No dia 09 de junho de 2010, conforme o costume ensinado por minha mãe desde
pequena de receber as visitas com lanches, na tarde ensolarada de uma quarta feira, as
65

mulheres das aldeias Boa Vista e Maronal apareceram na minha casa em Atalaia do Norte-
AM. Após o lanche, conversando com as mulheres sobre as novidades das produções de
artesanatos, elas me contaram o seguinte:

Nõ nawa nin mera nananin, aton anõ meiti, atõ vivaran noken anõ
meiti, noke yomen ashõ-keti.Nõ anoash nawatsõti, richkiti, senoti, roe,
sheo aka; vevo nõ meiki westsarisῖ, anõ chinã tanai pakesho china
txiwakointeki meiti.

“Desde que tivemos contato com os nawa-rasῖ, as ferramentas trazidas


por eles facilitaram muito a produção dos artesanatos. Queríamos ver
as coisas dos nawa, como facões, facas, machados, esmeril e agulhas;
nossa forma tradicional de produzir artesanatos era diferente, tudo era
mais demorado e exigia habilidade e tranquilidade.”

Os facões, facas, machados, esmeril e agulhas facilitaram tanto a produção de


artesanatos, que algumas mulheres chegaram a fazer mais da metade dos enfeites de aruá em
bem menos tempo do que antes, quando usavam pedra e mashashe, pois na fase de txaro-ka
(fazer lasquinhas) pouco se aproveitava, já que a pedra esmagava as lascas, que viravam pó na
maioria das vezes. O mesmo ocorria no processo de ota (furar), usando uma pedra mashashe
de pior qualidade; quem não tinha conhecimento da técnica correta de afiar, mal conseguia
produzir uma quantidade ideal de enfeites de aruá.
As mulheres, rindo e no meio de risadas coletivas, me contavam episódios
engraçados que ocorreram com as chegadas das ferramentas dos nawa:

“Nossos parentes antigos contam que quando as mulheres experimentaram


pela primeira vez a furar o aruá com agulha, fizeram tanto mistério que
quem sabia enganava aquela que não sabia. Aquela que não sabia ou não
conseguia descobrir, ia atrás de outra mulher para pedir orientação. Esta
outra, ao invés de ensinar certo, enganava dizendo que tinha que usar rapé
(pó feito com folha de tabaco) para conseguir furar. A mulher enganada
passava o dia todo usando rapé, só sujando seu nariz, sem conseguir furar
nenhum disquinho de aruá.”

E ainda:

“A descoberta, que as mulheres tanto mantinham em segredo entre


elas, não era tão estranha. Era só pegar a pedra e lixar a ponta da
agulha para deixá-la em forma de espátula, de modo a facilitar o furo
do aruá. Não podia ser uma agulha nova, tinha que ser meio
enferrujada. Mesmo que fosse frágil, tinham que juntar as duas mãos
com delicadeza ao fazer o movimento de esfregar de leve, o que
ajudava a furar sem precisar virar o disquinho do outro lado; com
mashashe, tinha que virá-lo sempre do outro lado, e ficava a marca
nos disquinhos em cada lado, parecendo leve redemoinho ao redor do
66

furo e para furar tinha que ficar afiando constantemente. Usar agulhas
era melhor, mas as agulhas mais novas davam trabalho ao fazer furos
nos disquinhos”.

“E no caso dos homens, quando tiveram machado pela primeira vez,


fizeram uma roça gigante através de várias montanhas. Uma velha se
perdeu na roça, pois só eram acostumados a roças pequenas, pela
dificuldade de derrubar arvores grande com os machados de pedra.
Faziam roças onde só havia arvores pequenas. Quando encontraram os
machados de ferro tudo mudou, pela facilidade que o machado trazia
de cortar árvores enormes. Os homens faziam questão de andar com
richkiti (facão e facas) pendurado na cintura e bem afiado; nenhuma
criança se atrevia a encostar-se ao richkiti das pessoas mais velhas.
Aliás, naquela época as pessoas mais velhas não eram como hoje,
eram respeitadas e temidas e os jovens não podiam falar com elas de
qualquer maneira.”

3.4 Criatividade: o uso de novos materiais no trabalho manual

Ao longo do tempo, eu venho observando e ouvindo os relatos das mulheres


marubo. As artesãs contam de suas invenções, no progresso da produção do aruá, ao
apropriar-se de novos materiais provenientes do mundo dos nawa.
Fernanda disse uma vez:
Noke aivorasin yosi onsi onsipa vena noke meraya, noke katsese
oikaya, askati roakarkin ikin no chinanto china anosho noke mevi
revosh non shovima aya. Shata aweaka no meraton vevo pari ainvo
wetsan onati amaino, antoro na wicha toskoshma amaino, wetsan
aska roakamase inan, shovi wetsarivi akin weshasho aka ainvo wetsa.

“Nós mulheres tivemos outro momento de descobertas inéditas,


somos muito curiosas, para nós mulheres a criatividade está ao
nosso alcance. No inicio do trabalho de reciclagem de shata
patxi (frascos de plásticos) e de shata (PVC e plásticos mais
duros), quando a gente via uma mulher fazer um colar de frasco
sem raspar os desenhos ou as escritas (wicha, ‘risco’), a gente
criava outra ideia em cima, a de testar este mesmo frasco com os
desenhos raspados”.

Shata rasin ota iki naman askasivi, ainvo wetsaro novu aka tana
tinisen ota maiapakea ato amiska, na askamaino wetsan oivaiki txinti
arame tirivaiki ravosh akaton aki orumatsawan, aton askamaino
wetsaro sheo ioro arame shana avaikin orui, oi panteti shao ramparin
ketivaiki orua. Ainvo raveton askai meke roa akasma, roakaimisma
inan, txareka, awe yoimaka. Askamaino, onatiki taa askash aton anon
aka ramaro, resisi papagaio ano teeaka ivo, anosho shakia roaka
tesesma, inoimase teses, ave resisi keskama.

O mesmo acontecia na hora de furar as shatarasin (shata-PL); tinha


mulher que seguia furando frascos ou PVC usando o mesmo processo
67

aplicado ao aruá, enquanto outra mulher observava e testava furando


com arame e martelando, e outras já tinham a ideia de furar com
ferrinhos da armação de um guarda chuva, esquentando com
lamparina a ponta do ferro para fazer o furo. Havia mulheres que
queriam um trabalho perfeito e não concordavam com a ideia de furar
com ferrinho quente, pois daquele jeito os furos ficavam enormes
deixando o trabalho grosseiro. A melhor descoberta consensual, até
agora, é o uso da linha de pipa, já que, na hora de lixar, não arrebenta
tão fácil.

Elas diziam também, conversando entre si:

Mĩ chinana noken onatiaka anoshose enemarevan aroa, noken


ainvakerasin meiti onati akaro ino ino amisma, roaki shovimai
(osanki) aska tseran inan onatikin oisho aton shovimarivi, mei iki osi
osipa menki rayaki meiki ato shovimaivo ato meratsikirivi. Noke
shavo yomemavorasin askai aton mei iki non roakakama ichnaka inan
non ikimarivi, anon iseyakima aton shoma, aton awe shomato noi
chinavo aka non roakama. Kanivenarasin china mestekavo noken non
chinan keskama, non roakai meikima noke askatsiki ikin china
yamarivi, rakesmavo. Meiki ikonokoismavo aka. Noke shavo
yomemaro aska, novu awe no shovima keskama shata, shata patxi
aka, noken mevish shovima ikin chinasho non ano eseya, askamenki
novu awe non akakeskama nawa awsh awen shovia non tanamarivi.
Askakin en shovimatseran ikin non chinan ton, noken shavapa non
vivaran anon noikise non akarivi. Askaki shovimanon witso iki
chinanton anon mekikeso non iki noken meiti. Aro novu marivi ikin
kene onsi onsipasho shawe otimpa, yaki non anon kene iki kayanvre,
vatxi kene vatxinavre, toati kene toatinavre, kaya kene vivaikin en
awenama apavasho en swetipa. Shavo yomemaro vatxi, toati kene,
kaya kene, veso kene aka mein mein atasho awe shovimamismas,
ainvo roapai vitama tsaosh akarivi askakin, roapai non anon aweyaiti
chinasho non akarivi, rama noken kanivena rasin aska chinan kima
aton awe shovimatosho, non ipawamaton noke naikiri tae txan inasho
shokoa ton iki.

“Não pense que nossas descobertas pararam por aí. Nossas meninas
têm descobertas absurdas, exageradas, (rindo) elas não querem saber
do trabalho perfeito, a criatividade delas está voltada para descobrir
como chegar ao produto mais rapidamente. Nós mais velhas, a maioria
das vezes, não concordamos, não pela descoberta delas, mas por elas
fazerem o trabalho de qualquer jeito, sem valorizar. Elas são agitadas,
são diferentes da nossa realidade de juventude, elas não temem pelos
seus erros e nem pensam nas consequências dos erros. Nossas jovens
não se dedicam aos seus trabalhos. Para nós mais velhas, o que
diferencia o aruá, que é o nosso trabalho tradicional, do PVC, dos
frascos, é o fato de não sabermos as origens desses novos materiais.
Qualquer tipo de shata, trazido para nossa casa e usado para fazer
colar, tem sua importância, a gente sabe que é material do nawa,
mesmo que não saibamos da sua origem. O valor da peça em PVC ou
plástico está na forma da nossa produção e da criação que sai das
nossas mãos. Mesmo que meus enfeites não sejam de aruá, não vou
alterar seus desenhos; por exemplo, não vou pegar os desenhos do
68

corpo para fazer nos meus enfeites. Para nós mais velhas, as pinturas
de saias, das peneiras, do corpo, do rosto e dos colares não se devem
misturar. Sempre pensamos nas harmonizações das coisas; hoje os
nossos jovens misturas as coisas, nosso mundo está de cabeça para
baixo”.

Ouvi as mulheres dizendo:

Vevon tia nuukë ãivake, vënë vakë këska marivi, aivake tëris imati-ma
iki nuken txichtso askatosho nukẽ ëwã anũ txitaki yusĩki tsawã tsëshë,
chini tsëshë, wanĩ tsëshë.

Antigamente, nós meninas não éramos criadas como os meninos. Não


podemos deixar que as meninas fiquem agitadas26. Nossa avó falava
assim e por causa disso nossa mãe nos ensina antes de tudo a aprender
a sentar, a trabalhar com o coquinho de tucum, de pupunha e de outro
tipo.

Nos relatos das anciãs Marubo, o que mais elas destacam das diferenças entre elas e
as mais jovens é a questão da valorização da produção do trabalho manual. Todos os Marubo
mais velhos acreditam na multiplicidade das produções dos artesanatos dependendo da
relação que a pessoa tem com a sua produção. Porém, eles acreditam que o rendimento do
trabalho manual sempre gera a reciprocidade para quem está produzindo.
Principalmente no que concerne os materiais extraídos da natureza, o processo de
preparo e produção exige o pensamento positivo ao extrai-los para que tragam energias boas
na casa ou na vida. Segundo minhas protogonistas: awe shovi manosho inã oῖkaki china
marivi pani-shãkô sanaka oῖnarvi vivakῖ oshõ ichna namãse õtxima, nuvo vitãi oshõ ikotῖse
õtxisho nõ enema, mapô vivaikῖ ichakῖse motsa motsa vaiki enetima, awe katsese anõ eseya
tirivi, ‘a iniciativa de produzir não se pensa só porque viu o material, por exemplo, trazer o
tucum e deixar jogado, trazer aruá e larga-lo em qualque lugar da casa, retirar barro, amassá-
lo com a mão e abandoná-lo. Se a matéria prima é extraída sem necessidade, a sabedoria nas
mãos da artesã vai empobrecendo. As retiradas, preparações e produções dessas matérias
precisam ser protegidas e bem cuidadas na hora de fazê-las e de usar as matérias. Assim, elas
terão a obrigação de se sentirem aliadas, para ajudar a artesão nesta vida e, após a morte, na
passagem de retorno ao destino.
Alguns Marubo mais velhos acham que, com a influência da sociedade não indígena,
as novas gerações estão mudando suas perspectivas, por não ver a realidade como viam os

26
A tradução da palavra tëris como ‘agitado/a’ dá conta só de uma parte de seu significado; tëris é dito de uma
menina que esquece seus compromissos e passa o tempo vagabundando, que não liga para aprender, não presta
atenção, fica com os meninos fazendo o que fazem os meninos.
69

antigos. As jovens querem imitar o pensamento dos nawa-rasῖ e começam a sofrer as


consequências, como já disse: gerar filhos deficientes ou que não respeitam os pais. Esses
jovens, que não acreditam nas palavras dos antepassados, são castigados pela sua própria
produção, por não respeitarem o luto dos seus parentes, por exemplo, o que acarreta perdas na
família, dos pais, filhos, irmãos e esposos. As jovens marubo são criativas em cima do que já
é criado, não tem saber na alma, afirmam os Marubo mais velhos com os quais tive
oportunidade de conversar.

3.5 Os adornos ou indumentárias: levantamento

A partir deste ponto da dissertação, apresento o levantamento das peças das


indumentárias e adornos femininos e masculinos. Observem os manequins na foto abaixo.
Eles exibem a ornamentação necessária em ocasiões festivas.

Foto 11: Artefatos expostos na Exposição “O caminho da miçanga”, Museu do Índio,


FUNAI-RJ, 2015

Na tabela 3, estão os adornos tradicionais marubo com os materiais usados para a sua
confecção: 27

27
A nomenclatura, os números dos ‘tipos’ e a numeração na última coluna estão sendo usados na organização do
acervo de peças de cultura material marubo localizado no Museu do Índio (FUNAI-RJ).
70

Tabela 3: adornos tradicionais e materiais usados para a sua confecção

Tipo MATERIAL NUMERAÇÃO


Nuvo maiti ‘aruá’ 1.1
maiti ‘coroa’ Shata maiti ‘pvc’ 1.4
(grupo 1) Txakiri maiti ‘miçanga’ 1.5
Washmen tiki-taya maiti ‘algodão’ 1.7
papiti ‘pingente da Nuvo papiti ‘aruá’ 2.1
coroa’ Shata papiti ‘pvc’ 2.4
(grupo 2) Txakiri papiti ‘miçanga’ 2.5
reshpín ‘narigueira’ Nuvo reshpin ‘aruá’ 3.1
(grupo 3) Shata reshpin ‘pvc’ 3.4
Txakiri reshpin ‘miçanga’ 3.5
pavi ‘brinco da Nuvo pavi ‘aruá’ 4.1
narigueira’ Shata pavi ‘PVC’ 4.4
(grupo 4) Txakiri pavi ‘miçanga’ 4.5
tewea ‘gargantilha, Nuvo tewea ‘aruá’ 5.1
colar de varias voltas Shata tewea ‘PVC’ 5.4
amarrado nas pontas’ Txakiri tewea ‘miçanga’ 5.5
(grupo 5)
poyã-kiri oshe Nuvo poyã-kiri oshe ‘aruá’ 6.1
‘braçadeira’ Shata poyã-kiri oshe ‘PVC’ 6.4
(grupo 6) Txakiri poyã-kiri oshe ‘miçanga’ 6.5
Nuvo paoti ‘nuvo’ 7.1
paoti ‘bandoleira Txeshe paoti ‘tucum’ 7.2
cruzada’ Echta paoti ‘coquinho de trepadeira’ 7.3
(grupo 7) Shata paoti ‘PVC’ 7.4
Txakiri paoti ‘miçanga’ 7.5
mevin oshe Nuvo mevin oshe ‘aruá’ 8.1
‘pulseira ritual’ Shata mevin oshe ‘PVC’ 8.4
(grupo 8) Txakiri mevin oshe ‘miçanga’ 8.5
Nuvo txiwiti ‘aruá’ 9.1
txiwiti ‘cinto’ Tseshe txiwiti ‘coco de tucun’ 9.2
(grupo 9) Shata txiwiti ‘PVC’ 9.4
Txakiri txiwiti ‘miçanga’ 9.5
Nuvo raneshti ‘aruá’ 10.1
Shata raneshti ‘PVC’ 10.4
raneshti ‘jarreteira’ Txakiri raneshti ‘miçanga’ 10.5
(grupo 10) Pani tiki-taya raneshti ‘tucum’ 10.2
Washmen tiki-taya raneshti ‘Algodão’ 10.6
Nuvo tae-kiri oshe ‘aruá’ 11.1
Shata tae-kiri oshe ‘PVC’ 11.4
tae-kiri oshe Txakiri tae-kiri oshe ‘miçanga’ 11.5
‘tornozeleira’ Pani tiki-taya tae-kiri oshe ‘tucum’ 11.6
(grupo 11) Washmen tiki-taya tae-kiri oshe 11.7
Algodão
Nuvo tewea tetxõ-kitaya ‘aruá’ 12.1
71

tewea tetxõ-kitaya Tseshe tewae tetxõ-kitaya ‘tucum’ 12.2


‘colar feminino Echta tewea tetxõ-kitaya ‘coquinho de 12.3
comprido’ trepadeira’
(grupo 12) Shata tewea tetxõ-kitaya ‘PVC’ 12.4
Txakiri tewea tetxõ-kitaya ‘miçanga’ 12.5
tewea seke-taya Nuvo tewea seke-taya ‘aruá’ 13.1
‘colar masculino Txeshe tewea seke-taya ‘tucum’ 13.2
curto’ Echta tewea seke-taya ‘coquinho de 13.3
(grupo 13) trepadeira’
Shata tewea seke-taya ‘PVC’ 13.4
Txakiri tewea seke-taya ‘miçanga’ 13.5
Nuvo kamã sheta tewea ‘aruá’ 14.1
kamã sheta tewea Txeshe kamã sheta tewea ‘tucum’ 14.2
‘colar masculino Echta kamã sheta tewea ‘coquinho de 14.3
curto com dente’ trepadeira’
(grupo 14) Shata kamã sheta tewea ‘PVC’ 14.4
Txakiri kamã sheta tewea ‘miçanga’ 14.5
Nuvo tewea mashken-kitaya ‘aruá’ 15.1
tewea mashken- Txeshe tewea mashken-kitaya ‘tucum’ 15.2
kitaya ‘colar com Echta tewea mashken-kitaya ‘coquinho de 15.3
pingente’ trepadeira’
(grupo 15) Shata tewea mashken-kitaya ‘PVC’ 15.4

Txakiri tewea mashken-kitaya ‘miçanga’ 15.5


Nuvo meneshti ‘aruá’ 16.1
meneshti ‘pulseira do Txeshe meneshti ‘tucum’ 16.2
dia a dia’ Echta meneshti ‘coquinho de trepadeira’ 16.3
(grupo 16) Shata meneshti ‘Pvc’ 16.4
Txakiri meneshti ‘miçanga’ 16.5
vatxi ‘saia’ Washmẽ vatxi ‘algodão’ 17.6
(grupo 17) Pani vatxi ‘tucum’ 17.7
washmẽ shapati
‘tanga masculina’ Washmẽ shapati ‘algodão’ 18.6
( grupo 18)

A tabela acima foi elaborada para mostrar quais são os tipos de materiais usados para
fazer adornos. Estes, hoje, encontram-se no acervo do Museu do Índio (FUNAI-RJ), tendo
sido trazidos pelas mulheres marubo (as protagonistas desta pesquisa) para a oficina realizada
em setembro 2011 na mesma instituição.
Descrevo, a seguir, as peças da indumentária feminina:
Maiti (coroa): antigamente as mulheres não usavam; se tivessem que usar, faziam
várias voltas de colares de aruá PVC ou miçangas, na medida da cabeça, que depois
72

amarravam com o papiti (pingente longo que fica sobre a coroa nas laterais da cabeça
e na nuca).

Foto 12: maiti (coroa masculina, feita com miçangas nas laterais, desenhos dos grafismos
corporais)

Foto 13: maiti (coroa masculina; hoje é usada por ambos os sexos, tem grafismos próprios para
adornos)
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Papiti pingente da coroa, feito de aruá (caramujo), PVC ou miçangas; o exemplar na


fotote respeita o padrão antigo das mulheres marubo.

Foto 14: Papiti (pingente de coroa feito de aruá; nas pontas, dentes molares de macaco)

Tewea (gargantilha): era usada tanto por homens como por mulheres. Estas, para dar
charme, ainda usavam tewiti (um colar com formato de dégradé em cada ponta e
entrelaçado com osso); outras mulheres usavam, além da tewea, o tewea tetxonka, um
colar longo com varias voltas. Há diversidade de informações oferecidas pelas
mulheres: umas falam que para o homem a gargantilha não tem muito volume e que
para a mulher é com mais volume, outras falam que para a gargantilha não há regras.

Foto 15: tewea (gargantilha de miçangas de varias voltas e amarrada nas pontas; usada por ambos
os sexos)
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Paoti (bandoleira): as mulheres medem com os braços abertos a quantidade desejada


das voltas da bandoleira, para poder usá-la cruzada no peito e dando volta no ombro.

Foto 16: Paoti (bandoleira de miçangas, de cor vermelha a masculina, amarela a feminina)

poyã-kiri oshe (braçadeira): seu uso é obrigatório pela mulher e pelo homem, para
tornear o ombro, para não ficar com ombro reto, “parecendo poraquê (koni)”.

Foto 17: poyã-kiri oshe (braçadeira de PVC, modelo tradicional)

Mevin oshe (pulseira): as mulheres a usam dando varias voltas no pulso, depois se joga
por cima uma outra cor só para realçar.
75

Foto 18: mevi-oshe (pulseira feminina em PVC)

Txiwiti (cinto): as mulheres o usam sobre a medida do quadril, com varias voltas, e
não inclui os pingentes.

Foto 19: txiviti õpia (cinto feminino com varias voltas de miçangas)
76

Foto 20: txiwiti mashken ikitaya (cinto feminino de miçangas)

Vatxi (saia): as mulheres usavam tecido de algodão feito manualmente por elas
mesmas; para aplicar grafismos na saia, tingiam as linhas com pigmentos extraídos de
plantas; nos dias atuais usam um tecido de algodão industrial, comprado, de um metro
e meio. A saia da manequim na foto 12 é tradicional marubo, porém feita de linha de
crochê.

Foto 21: vatxi (saia feita de crochê)


77

Raneshti (jarreteira): as mulheres usam dando varias voltas.

Foto 22: raneshti (jarreteira de miçangas com varias voltas)

tae-kiri oshe (tornozeleira): as mulheres antigas usavam feitas de algodão ou fibra de


tucum; nos dias atuais, são feitas com linhas de costura.

Foto 23: tae-kiri-oshe (tornozeleira de tucum)


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Foto 24: tae-kiri-oshe (tornozeleira de algodão com grafismo


sheta aka ‘imitando dente’ e one aka ‘imitando movimento’)

Vejamos, agora, a indumentária masculina:

Vene maiti (coroa masculina), feita na medida da cabeça do dono, para permanecer
larga e com o acabamento de grafismos na parte frontal, em cada lateral e na nuca.

Foto 25: maiti (coroa com três pingentes; nas pontas, dentes molares de macaco prego)
79

Foto 26: maiti (coroa de PVC sem pingentes)

Papiti (pingente da coroa): grafismos caracterizam os extremos deste pingente, nas


partes que são amarradas em três cantos da coroa, nas laterais e na nuca.

Foto 27: papiti (pingente nas pontas com dentes de molares de macaco prego)
80

tewea (gargantilha): dá várias voltas e é amarrada em cada ponta.

Foto 28: tewea (gargantilha masculina de varias voltas, mas não tanto quanto a feminina)

Paoti (bandoleira): usada cruzada no peito e nas costas, com amarração em forma de
cruz.

Foto 29: paoti (bandoleira masculina amarrada em forma de cruz nas costas)
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Foto 30: paoti (bandoleira de PVC)

Poyã-kiri oshe (braçadeira): nos extremos, são fixados acabamentos com grafismos.

Foto 31: poyã-kiri-oshe (braçadeira de miçangas)


82

mevin oshe (pulseira): se for para festa, as voltas nos extremos são diferenciadas por
cor e material e as pontas são fixadas com acabamento de grafismos.

Foto 32: mevin-oshe (pulseira de PVC)

Txiwiti (cinto), feito na medida do quadril, com largura de três ou quatro dedos, fixado
com acabamentos de grafismos na frente, atrás e nas laterais;

Foto 33: txiwiti (cinto de miçangas pretas e brancas)


83

Foto 34: txiwiti (cinto de PVC)

Shãpati (tanga): feita com linha de algodão artesanal.

Foto 35: shãpati (tanga masculina)


84

raneshti (jarreteira): com largura de dois ou três dedos, fixada com acabamento de
grafismos nas pontas;

Foto 36: raneshti (jarreteira de PVC)

Tae-kiri oshe (tornozeleira): três dedos de largura, fixada com acabamento de


grafismos nas pontas.

Foto 37: tae-kiri-oshe (tornozeleira de PVC)

3.6 Os colares masculinos

Os colares masculinos de uso cotidiano são aqueles que as mulheres fazem com as
sobras das indumentárias (conjuntos completo de adornos) e que chamam de meeti revo.
Quando estão fazendo as indumentárias, precisam deixar pedaços para poder concertar no
caso dos adornos arrebentarem, e, assim, não ter prejuízo. A artesã não deve disperdiçar o
85

material no momento em que esta preparando, já que aproveitar tudo significa possuir
habilidade e adquirir sabedoria no mundo da arte (mevi revõsho china vana yosia).
Vejam os colares, nas fotos abaixo. Na foto 38, o primeiro colar à esquerda é feito de
PVC, sua divisão preta é de disco vinil; o segundo é feito de miçangas brancas e pretas; o
terceiro é feito de disco vinil e PVC; o quarto é feito de aruá (caramujo) e sua divisão preta é
de coco de tucum; o quinto é feito usando pedaços de plástico de máquina de lavar roupa e a
cor preta é dada por pedaços de balde de pedreiro. Os colares na foto 39 são feitos de cacos de
coco e de contas de tucum, ossos, dentes de macacos e de queixadas.

Foto 38: coleção da autora de colares masculinos (PVC, miçangas, disco vinil)

Foto 39: da esquerda para direita o primeiro colar feito de lascas


de coco de tucum, colar de osso e colar de dentes de porcão e de macacos.

A antropóloga Delvair Montagner Melatti (1986:11-12) mencionou os colares


marubo feitos com dentes de onça, cachorro e macaco:
86

(Os Marubo) aproveitam seus dentes para fazer colar, que é enfeite
masculino. Há alguns anos os Marubo não matavam oncas, mas com os
seus dentes faziam um colar que era muito usado. Provalmente, obtinham
os dentes nos esqueletos de onça ou por meio de troca intertribal. Hoje só
homem velho ultiliza o colar, mas raramente. O colar de dentes de
cachorro é um adorno de homem adulto... É comum encontrar-se menino
enfeitado com colar de dentes de macaco barrigudo (txona) ou preto (iso).

Os dados por mim coletados comprovam parcialmente estas afirmações de Delvair


Melatti. São comprovadas no que diz respeito aos colares de dentes de macaco, mas não no
que se fala dos dois outros tipos. Na minha ida às aldeias São Sebastião e Maronal em abril de
2016, perguntei para as mulheres se os colares de dentes de onça, cachorro e macaco eram
usados no passado. Esta foi a sua resposta:

Vevõ shenirasῖ tῖã tewea apawavo iso sheta, kapa sheta atise. Iso sheta awẽ
vimi tosha-ti, vivaikῖ tewea naki shokõ vaiki awẽ sheta mãtõ-paro revo aῖni
vakῖti. Vene vake kamã sheta ma nitxῖ tima inã,aῖvake keska kacta misi inã
iso sheta mato avaikῖ sawe mati. Kapa sheta vake vene vakecta sawe mati
sheta roa-ka, sheta mestẽka aka ave kanino inã. Wapa sheta vene wetsã-se
sawe tima, vene chinãyatõ saweti, kakaya-tõ sawe-ti aka. Kamã sheta ikiro
aro anerivi, kamã yama mashõ ã sheta sawea inã iki marivi, yoini wetsarasῖ-
se sheta anerivi. Kamã-ro nõ ano eseyarivi mee tima, tsoka tsoka imaya.

Antigamente os colares de dentes eram feitos somente de dentes de macaco


preto e quatipuru, usados pelos homens adultos, sendo a sua confecção com
os molares na parte superior e caninos na parte inferior, enquanto para uso
das crianças eram usados somente os molares, na explicação das mulheres, a
denominação de colares de dentes como kamã sheta ‘dente de onça’ não
significa que elas fazem colar de dente de onça. A onça é um animal temido,
intocável, o ataque dela e o seu odor podem causar epilepsia (ichna-kaya)’.

Também perguntei se usávamos os dentes de cachorros; me falaram que sim, “mas


os dentes de cachorros não era qualquer um que usava, só os kenchin-tsorasĩ e kaka-yarasĩ,
pois eles sabem se proteger das suas maldades”. Antigamente, as mulheres marubo
confeccionavam os colares de dentes, denominados de kamã sheta28: os dentes caninos dos
macacos ficam no meio do peito, os dentes molares finalizam cada lado para amarrar o colar,
sendo que os dentes molares de macacos são destinados às crianças de sexo masculino para
definir sua masculinidade.
Os colares de uso cotidiano, além de serem feitos das sobras, têm contas menores; as
mulheres os fazem para seus pais, irmãos, maridos, filhos, namorados, amantes, exibindo sua
criatividade para outras mulheres. As minhas informantes me contaram que tanto as pulseiras

28
Kamã- onça, sheta – dente.
87

como os colares se desenvolveram de acordo com cada artesã. Segundo as mulheres, os


colares não podem parecer grosseiros e exagerados, por isso algumas delas priorizam a
manutenção de um padrão simples e delicado de colares/adornos, de modo a dar harmonia ao
corpo. Elas dizem: “Como as meneshte-rasῖ (pulseiras) e as tewea mashkẽ-kitaya-rasῖ
(colares), antigamente as mashkẽka-rasῖ no caso do tewea ficavam uma atrás do pescoço e
duas de cada lado, no peito e antes da ponta com os pingentes; no caso da pulseira, as
mashkẽka-rasῖ eram somente três, uma em cima do pulso e duas embaixo do pulso para poder
amarrar a pulseira”.
Atualmente, com a inovação do trabalho e a facilidade que os artefatos do nawa
trouxeram, as mulheres marubo aumentaram suas criatividades de brincar, ou seja,
diversificar os grafismos nos colares e nas pulseiras. Para não misturar os grafismos, elas me
disseram que, tanto nos colares como nas pulseiras, só podia ter grafismos chãchã ina aka,
tao pei aka, cheker mapo aka, entre outros. Hoje, as mulheres mais jovens, além de brincar
com as cores, fazem qualquer tipo de grafismos nos colares, não respeitam o padrão de
simplicidade e delicadeza. O que vale para elas é produzir.

Foto 40: seke tewea (colares masculinos de uma volta com cores alternadas)

Foto 41: menshte (pulseiras masculinas de uso coditiano)


88

3.7 Os colares femininos

Meto Vimiwã explicou, em Atalaia do Norte, no dia 15 de novembro 2014, que os


colares de uso cotidiano feminino são mais longos para poder valorizar os seios e a região do
peitoral das mulheres. As meninas adolescentes, que estão em fase de crescimento, não
podem usar colares longos para não ficar com os mamilos caídos. As pulseiras das mulheres
são todas de varias voltas. As mulheres não usam colares de sementes, colares de dentes e
colares com remates pretos assim como os dos homens; hoje em dia, as novas gerações
misturam tudo. Os homens não são iguais às mulheres que têm todo um trabalho minucioso
de produzir os colares, dizem as mulheres que não são cuidadosos com os colares que são
feitos para eles. É por isso que, segundo elas, todos os colares dos homens são fixados com
faixas que reproduzem grafismos (mashkẽ ikitaya).
Os colares das mulheres têm várias voltas e são feitos para serem usados do jeito que
elas gostam. Antigamente, os colares não tinham tantas voltas, por serem feitos com
dificuldade, com fragmentos quebrados com pedra (shasho) e furados com mashashe;
algumas mulheres eram consideradas como não tendo arte (meyo). Hoje, os materiaias e os
artefatos dos nawa-rasĩ melhoraram a vida das mulheres, que produzem grandes quantidades
de adornos, mas não respeitam seu trabalho. Antigamente, elas tinham mais cuidado e
guardavam o que estavam fazendo antes de deixar de trabalhar para não perder ou danificar as
peças. Hoje, as mulheres não fazem mais isso, porque o PVC está sempre disponível. Antes as
mulheres que deixavam seu trabalho pela metade eram chamadas de ‘pisadoras de buraco de
kenchĩ’29.

Foto 42: tewea tetxõka (colares com várias voltas)

29
Kenchĩ um pequeno animal terrestre difícil de ser visto, que cava buracos no chão sem o cuidado de terminar o
buraco, me disseram que tem aparência de tatu.
89

3.8 Tudo sobre novo (aruá - pomacea canalicultura)

Dedico esta seção a uma descrição bastante detalhada do novo, conhecido como
‘aruá’, um caramujo cujo nome científico é Pomacea canaliculata (Montaigne, 1988: 187). O
novo como rane awe (indumentária/enfeite) é extremamente importante, dados os valores
associados a sua produção e a forma como o novo enfeita e traz harmonia ao corpo. É
considerado como sendo o trabalho “original” dos ancestrais. Descrevo, de acordo com as
minhas interlocutoras, a origem da água relacionada ao novo, a origem do novo como enfeite,
a forma como busca-se a matéria-prima, o espaço onde é encontrado, os cuidados na coleta, o
novo como alimento e a partir de qual idade pode ser consumido.30

Foto 43: Novo isisi-paka keo-naya (aruá enfileirado com cipó)

3.8.1 Origem da água relacionada ao novo (aruá)

No relato das minhas protagonistas, o novo é considerado como um dos trabalhos


manuais feminino mais importante para a produção de adornos. A existência de tudo o que é
extraído da natureza para ser usado precisa ser plenamente conhecida, material e
imaterialmente. Ouvi meu pai, que falou:

30
Consultei a obra de Ribeiro (1988), Dicionário do Artesanato Indígena, para ver o trabalho de outras etnias
com caramujos e conchas, como, por exemplo, entre os povos karib do Alto Xingu, os Xikrin, Borôro e Karajá.
Assim como os Marubo, também os Matis usam auriculares (paosti) e estilete nasal (romoshe), feitos com o
mesmo caramujo (novo). Seria preciso realizar uma documentação comparativa com outros povos pano.
90

Yoã vana sheni aya, marubo yora shovia namã nã, china vana anipa yoã yavõ
shovõ katxivarãsh yoã paoa ivo, kenane sete vakῖsho.

“Há uma história antiga, que vem desde o inicio do povo marubo, e que os grandes
contadores de história costumam narrar quando estão reunidos em suas malocas,
sentados nos longos bancos masculinos”.

Neskaki kẽchῖtxorasῖ vevo yoã tivo, yora shovia namãsh, Kanavoã, wakapasha
yama oῖnã, chinãki: wakapasha ayaima tῖparivi, aweshõ txipo kaniyavo anõ china
matsi ati, a ayama nõ shokoi?Askainã, Kanavoã matsi awa shavã, vivaikῖ nuvowã
shovi mavaikῖ waka revõ tsaoῖ, waka netsomisi inã. Askavaikῖ aoki matsi yawa
mapo vivaikῖ novowã wetsa shovi mavaikῖ waka revo wetsarasῖ setẽ aῖti, wakarasῖ
netso misi, nashaimai ano kesosho a rakanõ inã. Waka vene pavose shovi mashõ
rakã misi inã ã teã rasῖ shovi makῖ rotsẽ, matsi awa ovo vivaikῖ nuvo shovi mawaikῖ
tsaoῖ, matsi yawa ovo vivaikῖ teã revõarasῖ seteῖ, teãrasῖ netso maima ave setenovo
inã. Nuvõ akaki waka matsika akῖ tsaõki, nasha mama mestẽkῖ põpo imaya.

Assim contam os kẽchῖtxo-rasῖ. Muito tempo atrás, nos primórdios dos Marubo,
Kanavoã31, ao ver o mundo sem água, pensou: se a água é tão importante para os
homens se refrescarem e se ela dá a vida, como podemos viver sem ela? Então,
Kanavoã pegou matsi awa shavã, o tórax da anta, transformando-o num grande
caracol, dando-lhe uma nova vida, dando uma nova forma ao tórax da anta, e
colocou este caracol gigante nas cabeceiras dos rios, para que nunca faltasse água,
para que não deixasse o rio secar.

Repetindo o mesmo gesto, pegou a cabeça de uma queixada (matsi yawa voshka) e a
transformou em outro caracol gigante, colocando-o nas cabeceiras dos outros rios, garantindo
assim que todos os rios ficassem cheios, caudalosos. Como não existem apenas os grandes
rios, temendo que o mundo se tornasse sem graça, ele usou os testículos da anta (matsi awa) e
da queixada (matsi yawa) para transformá-los em pequenos caramujos, colocando-os nas
cabeceiras dos igarapés para que nunca secassem e continuassem sempre cheios. O caracol
ajuda a manter o frescor da água, faz o rio ficar mais farto, aumentando a sua potência.

Figura 44: novo txitxã nanea (aruá dentro de um cesto de tucum)

31
Kanavoã é o nome do que seria, para nós Marubo, o criador do mundo.
91

Essa forma de conhecimento do material a ser utilizado, para meus protagonistas, é


um modo de instruir-se acerca de sua cultura (im)aterial, de modo a ensinar a alma no caso
caso em ela seja enganada por essas matérias, o que pode causar vei ikitaa (morte eterna). O
domínio dos conhecimentos que cercam o trabalho manual faz com que as pessoas estejam
preparadas para enfrentar os obstáculos do vei vai, ‘caminho da morte’32.

3.8.2 A origem do novo (aruá)

Como tudo tem mito de origem, perguntei para meu pai e para os kẽchῖ-txorasῖ,
‘xamãs’, qual seria novo awe chinãne aka vana, a ‘explicação do aruá nas palavras de
pensamento’. Queria ouvir também a explicação dos kẽchῖ-txorasῖ sobre os adornos feitos de
aruá’. Eu havia recebido um convite do Museu do Índio para participar da Primavera no
Museu, no mês de abril de 2015, para que contasse um mito ou uma história do meu povo.
Tinha tanta coisa para contar, mas como não sabia o que poderia contar, resolvi pedir ajuda ao
meu pai pelo celular e imediatamente ele me respondeu: “Filha, porque não contas o mito da
origem da água através do aruá e o surgimento do enfeite de aruá?”. Gostei muito da
narrativa e ela tinha tudo a ver com a minha pesquisa. Segue, então, um resumo do mito do
aruá contado pelo meu pai, um exemplo de mito associado ao trabalho manual.

Kẽchῖtxorasῖ askakῖ shõti vana, china vana aka yoshovia yoã yavosho, nuvo
rane awe chinayavo rane-yawavo atõ pia keska kῖ chinai maivã, aska akῖ
atõpiarivi ikῖ chinatõ.

Os kẽchῖtxorasῖ (xamãs), por dominarem shõti vana (falas de pajelança) e


china vana (falas de pensamento), contam a origem do adorno de aruá
atribuindo sua concepção ao povo queixada, já que os queixadas, por se
alimentarem de aruás, conhecem esse seu alimento.

Rane-yawavo, ‘queixadas-enfeites’, como são conhecidos os bandos de


queixadas da época da origem do povo marubo, possuíam uma forma
humana. Conta Ranẽ-Tupane (meu pai), com suas palavras:

Rane-yawavo awema shokosho chinã tsaka-pa ikino, awene nokẽ kaya nõ


roaka tsaῖ ikikivo. Aska akῖ china china vaiki nõ teã meinõikivã. Teã noro
ainavoki atõ nesheti rane merai shokosho. Wa teã revo risho teã keso ketxini
ainai, na awẽ sawea namãsho roro ainai akῖ nuvo meravoki. Askakῖ mera

32
O curso “Antropologia da Paisagem: teoria e paisagem ameríndia”, ministrado pela professora Luiza Elvira
Belaunde no PPGAS-MN, primeiro semestre de 2015, me deu a oportunidade de ter acesso ao texto de Berque
(2013) intitulado “El pensamiento paisajero”, que me ajudou a pensar o que as mulheres contavam sobre vei
vai mai, ‘o caminho de acesso à terra-morte’, visto como retorno à origem após a morte.
92

vaiki rane-yawvõ atõ aῖ potani shoa voki ave atõ nesheti rane awe ave
shovimanõvo inã, anõ kaya yoi ati china vanayai shokosho, txipo kaniyavo
shavo atõ mevi yosima shokosho, shero shokoi chinã yosima shokoi amisvo
inã.

Os rane-yawavo viviam preocupados por não possuírem enfeites,


ressentiam-se pelo fato de não terem ornamentos que pudessem usar para
embelezar seus corpos. Certo dia, após pensarem e pensarem, tiveram a ideia
de mergulhar nos igarapés. Acreditavam que poderiam ser agraciados com
novas descobertas. Aproveitaram os igarapés para fuçar, tateando por todos
os lados, seguindo até suas cabeceiras e nascentes, quando encontraram os
nuvos. Estes rane-yawavo apresentaram-lhes suas mulheres para que se
iniciassem no preparo de enfeites, de modo que os novos ornamentos
tornassem seus corpos mais belos e cheios de sabedoria, evitando que o povo
marubo sofresse no futuro com uma vida sem beleza e sem conhecimento
das artes.

Shovia kiri askai anõ meiti ivo iki yona yosina kai karã, aska aka keskaki
aῖvo rasῖ nuvo vishõ rane awe shovi maoa. Marubo yorasho, anõsho a ivovo
yora ikῖ, anõsho onãti westipaki, marubo narivi, iri ashkãyasho saweti,
marubo sho askakῖ onãtakῖ, vei kaῖki ã saweti. Nuvo awe aῖvo mevi revõsho
shoviya, vene anõ meiki marivi, awẽ yoã vanaro askai ã shovia inã vene
kẽchῖtxo, romeya isῖteneya mẽ ã ikarã mainõ ã onãti nasho.

Com respeito a sua origem e a forma como tiveram conhecimento dos seus adornos,
as mulheres marubo seguem um conjunto de regras na coleta do nuvo e no preparo dos
adornos. Para o povo marubo, o novo awe (indumentária marubo) é uma forma de
“certificação”, uma característica estética única, pertencente somente aos Marubo, que tem
uma função de diferenciação tanto na vida real, como também, acreditam os Marubo, na vida
após a morte. O aruá é um conhecimento feminino, não é produzido pelos homens, apesar de
fazer parte dos conhecimentos cosmológicos dos homens xamãs e pajés para contrastar
doenças que o nuvo pode causar.

3.8.3 A forma como se procura o aruá e o espaço onde encontrá-lo

Conversando com Tamasai (Dionizia), oriunda da aldeia Boa Vista no rio Ituí
(2010), a importância do novo, para as mulheres, já pode ser observada quando apenas se
pensar em ir buscá-lo. Por não existir em qualquer ambiente, a procura do novo é intensa.
Além disso, ele é um ser vivo que se desloca, mesmo que não seja por grandes distâncias.
Quando alguém encontra um nicho de aruá, coleta-se grandes quantidades. Aqueles que vão
depois, seguindo as indicações do pioneiro, coletam uma quantidade menor. Como já sabem
que os novo-rasĩ gostam de viver em áreas alagadas (como nos lagos, nos igarapés e nos
93

buritizais), quando acompanham seus maridos nas caçadas, as mulheres aproveitam para
vasculhar estes locais por onde passam.
Os humanos competem com os animais que se alimentam do aruá, como pacas e
porcos. Ao se alimentarem, estes animais destroem a parte que as mulheres utilizam para
fazer o colar. Quando uma mulher marubo sai para coletar aruá, já deve ter em mente qual
adorno (ranë awë) pretente preparar: pulseira, cinto, gargantilha, narigueira, coroa, enfeite de
coroa, brinco de narigueira, entre outros.
Quando irmãs, primas e tias se encontram, as conversas se enriquecem quando
mostram e comentam seus ranë awë-rasĩ (conjuntos completos de enfeites), contando
pequenas narrativas de como buscaram o novo para produzir cada par de colares. Estas
estórias pontuam as pequenas atividades do cotidiano marubo: nas andanças de caçada, nas
pescarias, nas coletas de frutos, sementes, entre outras atividades. São sempre dadas
explicações sobre a estação do ano e na companhia de quem foram encontrados os novo-rasĩ,
para produzir aqueles pares de colares.
Lembro, por exemplo, a história que Mashe me contou sobre quando ela era bem
nova e estava aprendendo a produzir adornos com o aruá. Sua irmã e seu tio viajaram para
txanawaka (região do Acre), pois nesta época os nawa (não indígenas) compravam peles de
animais. Mashe ficou com a avó na aldeia e as duas foram coletar o fruto itxivi (sapota). Em
suas andanças para pegar as sapotas, elas acharam aruás: a avó fez questão de ajudar a neta a
trazer os caramujos, para ela fazer o colar. A pequena Mashe fez uma gargantilha para si
própria, um paoti para sua avó e uma narigueira (reshpĩ) para presentear a irmã quando ela
retornasse. Quando a irmã retornou, trouxe um pente dos nawa e um tecido. Mashe deu a
narigueira, que foi o maior presente que poderia dar na época com o seu apredizado. A irmã
guardou o presente e, quando se reencontravam, relembravam daquela época, em que foram
criadas sem mãe (que tinha sido sequestrada pelos Mayoruna/Matsés).

Mashe ressalta:
Vene awen wetsamavorasin anon noika, anon kakaya akinpa askash
oi an ivo, na wetsa maton, awe roapa em inan non na iki chinan ton
ashomatsawa, na askamaino an aini ari rivi txitxã ashovaiki tin asho
tiki, anto inantikin an yoanti tanasho.

“Quando o marido é muito querido pela família ou quando alguém é


muito importante na sociedade, ele sempre ganha presentes muito
especiais, a sua mulher o ajuda a guardá-los em sua própria txitxã
(cesto gameliforme), como forma especial de recepção da dádiva”.
94

3.8.4 O cuidado que se deve ter na arte da coleta do aruá

Segundo Mashë, oriunda da aldeia Maronal no Rio Curuçá, para se coletar o nuvo
deve-se agir com todo o cuidado. Quando as pessoas se preparam para procurar o nuvo, têm
que ter pensamento positivo, para não atrair coisas ruins33 e para não ouvir o presságio de
algum animal. Conta-se que uma mulher chamada Shëtã Vëka (Cesarino, 2013: 129) deu à luz
alguns animais e que cada um deles teve sua função em noticiar algum presságio.
Quando alguém estiver preparando algo e ouvir um animal dando um aviso, deve-se
abandonar imediatamente a atividade de produção ou a coleta que estiver realizando. Esta
paisagem sonora, formada pelos animais do ambiente, que têm como ancestral a mulher Shëtã
Vëka, pode ser comparada com o conceito de ambiente de Barreto Filho (2012), citado por
Veronica Aldè (2013: 53):

Um dado ambiente resulta da história das atividades de todos os organismos,


humanos e não humanos contemporâneos e ancestrais, que contribuíram para a sua
formação. O ambiente de uma determinada sociedade é, portanto, o espaço definido
pelas atividades e os processos sociais que a caracterizaram ao longo de sua história,
bem como da história daquelas que a precederam. A quantidade de ambientes
corresponde à das sociedades consideradas, podendo haver relativa sobreposição
entre eles. Não há ambiente(s) preexistente(s) à(s) sociedade(s): para sabermos qual
o ambiente de uma sociedade, temos de perguntar a esta, pois são seus processos e
atividades sociais que especificam o segmento do mundo que lhe é relevante.
(BARRETO Fº, 2012).
Na sociedade Marubo, deve-se observar o respeito mútuo entre humanos e não-
humanos, para que não haja vingança. Qualquer ser pode causar benefícios ou malefícios para
os humanos e não é diferente com o aruá. Enquanto o nuvo estiver vivo não deve ser tocado
por uma mãe que tenha criança pequena, pois isto poderá causar tosse nesta última. Caso não
se descubra a tempo a causa da tosse, a criança pode morrer. Não se deve mexer com aruá
quando alguém da família estiver doente, pois o toque pode atrair a doença para seu parente -
por exemplo, quando uma filha toca o nuvo enquanto sua mãe estiver doente. Com isto, o aruá
se sentirá convidado a ir para o corpo já debilitado, podendo se aproveitar dele e até mesmo
causar a morte.
Após de todo o trabalho de limpeza do novo, vem o processo de secagem, que pode
ser feito no calor do sol. Para evitar furtos, em vez de secar sob o sol, a concha pode ser

33
Quando amanhece com o ceu nublado, os Marubo não costumam sair para o mato.
95

pendurada em cima de uma fogueira em algum repartimento da maloca, onde permanecerá


por vários dias até secar. Feito isto, a dona da concha inicia a separação do caramujo em
pedaços (atividade chamada txaroká) e depois corta os pedaços em forma de pequenas contas
(processo designado por tsosa).
Não se deve trabalhar o nuvo no período da tarde, mas apenas pela manhã. Isto é
principalmente importante para a perfuração das continhas, pois só é fácil de perfurar entre a
primeira refeição do dia e o meio dia. Após este período, o material começa a quebrar e a
mashashe (agulha tradicional) começa a escorregar - acontecendo o mesmo com a atual
agulha de ferro. Justificam os antepassados: na parte do meio dia em diante, os nuvo-rasĩ
saem para se alimentar, por isso a concha daqueles nuvo que estão sendo processados começa
a ficar difícil de perfurar.
Assim, o comportamento dos novo-rasĩ vivos no ambiente influência o processo de
produção das contas da carapaça do bicho já morto. Por isto, as mulheres procuram organizar
os momentos em que realizam seus afazeres, para não diminuir o rendimento da quantidade
de nuvo coletado para a produção de determinado rane awe (adorno).

As duas fotos reproduzidas abaixo explicam o preparo de enfeite de aruá. Na foto 43,
da esquerda para direita, temos: 1- três novo-rasῖ inteiros, 2 - prato de barro txaro-ikitaya, 3 –
tsosa-taya, 4 - michpo para o preparo do branqueamento das contas que ainda estão com as
películas pretas, 5 - osho-taya foi feito o branqueamento, 6 – ota-taya prontinhos para ser
enfileirados com linha de tucum ou linha de pipa. Na foto 44, temos: 7 – sheo-txiri-taya palito
de tucum com agulha ou arame amarrado na ponta; 8 – pani-maia-taya um novelinho de
tucum para enfileirar as contas de aruá.

2 3 4
1 5 6
96

Foto 45: Da esquerda para direita: novo inteiro, txaro-kitaya, tsosa-taya, michpo para o preparo do
branqueamento, osho-taya, ota-taya.

4> michpo
2> Txaro-ikitaya 7> sheo txiri-taya

1>três nuvo

6> ota-taya

8> pani-maia-taya
5>osho-taya

Foto 46: novo inteiro, txaro-kitaya, michpo para preparo do braqueamento, osho-taya, palito de
tucum com agulha ou arame amarrado na ponta, contas furadas e linha de tucum para
enfileirar contas.

As duas fotos acima mostram o aruá no processo de produção de colares e foram


trazidas pelas mulheres que participaram da exposição ‘No caminho da miçanga’, realizada
pelo Museu do Índio e inaugurada no mês de junho de 2015, com a curadoria da antropóloga
Elsj Lagrou.

3.8.5 Os passos para fazer novo rane awe

Os principais passos no processo de nuvo ranë awë shovi-ma (produção de enfeites


de aruá) são seis:
97

(1) Txaro-ka (‘lasca-VBLZ34’) é o processo de separar em pedaços, de lascar as


conchas;

Foto 47: novo (aruá inteiro)

Foto 48: Txaro-kitaya (lasca de aruá)

34
VBLZ = verbalizador.
98

(2) Tsosa (verbo): cortar os pedaços lascados, deixando-os mais refinados, em


forma de continhas; tsosa-taya (cortar-NMLZ), nome para se referir à continha que resulta
desta ação.

Foto 49: tsosaya (fazendo contas de aruá)

Foto 50: txitxã ne nanea novo (aruá inteiro em cesto feminino)

(3) Novo osho-ka: (‘aruá branco-VBLZ’), processo de embranquecimento da


concha, retirando a película que envolve a casca do nuvo. A concha é colocada em um prato
99

de cerâmica, e este numa fogueira com fogo baixo. As continhas são misturadas com as cinzas
que resultam da queima de shẽwẽ karo (‘espécie-de-árvore lenha’). Quando estão ao fogo,
mexe-se com uma espiga de milho sem parar, sempre observando a película saltar das
continhas. Deve-se tomar cuidado para não deixar esquentar demais, para não queimar as
contas. Quando estas estão quentes o suficiente, é dado um choque térmico com água fria. De
leve, se esfregam as contas com as mãos até ir retirando, pouco a pouco, toda a película preta
da concha. Então, para enxaguar, espreme-se limão por cima e deixam-se as contas sob o sol,
até ficarem bem branquinhas. Atualmente, as mulheres marubo utilizam água sanitária em vez
de limão.

Foto 51: novo tsosaya, michpo, novo-oshoya (contas de aruá, cinzas e contas de aruá branco)

(4) Ota (verbo): processo de furar as continhas com a agulha (mashashë).


100

Foto 52: novo otama, sheo txiriya, novo otaya (contas de aruá não furadas,
palito de pupunha com arame na ponta, contas de aruá furadas)

(5) Këwã (verbo): depois de furadas, as continhas são enfileiradas uma por uma
utilizando linha de tucum ou linha de pipa.

Foto 53: pani maia, novo otaya (novelo de tucum e contas de aruá furadas)

Foto 54: novo keõ-naya (aruás enfileirados)


101

(6) Shakia (verbo): polimento em cima de uma tora de madeira pequena com
pedra/esmeril e água para não levantar poeira e facilitar o acabamento.

Foto 55: shakia (aruá após o polimento)

Em todo o processo de produção dos adornos (ranë awë, ‘adorno’), as continhas


menores (ãwẽ revo) são enfileiradas para fazer mënështi, tëwëa e rëshpĩ. As continhas
maiores (ãwẽ venepavo) enfileirados são paoti, txiwiti, poyãkiri oshë, mëvĩ oshë e ranështi.
102

Figura 1: homem com conjunto completo de adornos (desenho da autora)

3.8.6 O aruá como alimento

O novo é também alimento. Quando se consegue pegar uma boa quantidade de


caramujos, a pessoa que está limpando-os faz um kawa, ‘embrulho’, com uma folha de
palmeira chamada kõta pëi que dá um sabor especial ao cozimento. O novo só pode ser
comido pelas mulheres mais velhas (shavo-yome-ma-rasĩ), que não exercem a sua função de
artesãs e gozam de boa saúde, pois o novo pode se sentir convidado para o seu corpo,
causando doença e podendo levar à morte.
Os tabus referentes ao novo ou a outros alimentos não afetam somente esta vida, já
que os Marubo se preparam para o após morte, para a caminhada da viagem do morto até seu
destino de origem (após a morte) 35. O individuo que soube lidar com a arte da vida, ou seja,
que teve conhecimento aprofundado do trabalho manual (cultura material e imaterial) usará
suas habilidades no além. Assim, uma artesã poderá ter palavras de defesa contra os perigos
do além, nesse caso como conhecedora da indumentária feita de novo. Pois, segundo as

35
Chamo de “destino de origem” os lugares para onde vão as “almas” (vaká) das pessoas após a morte. Estes
destinos variam de acordo com o pertencimento clânico da alma/pessoa: cada clã tem seu lugar específico no
pós-morte.
103

mulheres, “não usamos somente nesta região de vivência/existência (nishava-pa); no caminho


da morte servirá para argumentar a maneira em que produzem como sendo seu
conhecimento”.
Vimos que para as mulheres marubo, as atividades na região chamada de nishava36,
como, por exemplo, a produção de ornamentos de aruá, influencia a "paisagem" por onde a
alma (vaká) passará após a morte. De forma similar, os hábitos do caramujo aruá influenciam
o ritmo da produção dos adornos fabricados com sua carapaça, após ter sido morto. Segundo
Barrenera de la Torre (2011: 123), comentando sobre Bequer (2007):

Entre los criterios que, según el autor, permiten diferenciar las culturas en donde el
paisaje ya es un objeto del pensamiento, destaca la existencia de una o varias
palabras para decir “paisaje” y el planteamiento de una reflexión explícita sobre “el
paisaje”.

Um dos conceitos similares à ideia de "paisagem" em Marubo é nishava,


significando as características da região em que se habita nesta vida, ou, em outro sentido
morada na floresta. Em contraste, a “paisagem” pós-morte – yoveshava - não pode ser dita ni-
shava, mas depende das ações feitas em ni-shava.

Discorri sobre o novo, o caramujo do qual são produzidos muitos dos enfeites
marubo, pelas palavras dos meus protagonistas: nokẽ shenirasῖ rane awe, nõ aya shovia rane
awe (nosso trabalho de enfeite dos antepassados, o trabalho para enfeite desde o tempo que
surgimos). Passo agora a outra matéria-prima e outros produtos do saber artesão das mulheres.

3.9 Os processos de transformação do txeshe (coquinho de tucum)

Pani é o tucum (Bactris setosa), tucunzeiro, ticum, nomes derivasdos do tupi tu'kum,
uma palmeira que cresce formando touceiras densas. Atinge de 10 a 12 metros de altura. Tem
caules coberto por espinhos, muito ornamental. Seus frutos – os coquinhos txeshe - são
esféricos, com cerca de 2 centímetros de diâmetro. Quando verdes, contêm pequena polpa e
água no interior, como o coco-da-baía.

36
Ni-shava: habitat ou morada na floresta.
104

Foto 56: pane-eshe (caroço de tucum)

Foto 57: tovoin txaro-kitaya (lascas de tucum)

Outras palmeiras que irei descrever como chini e pĩtxo palmeira chamado murumuru
que fornece matéria-prima. O chini-rasĩ crescem formando touceiras densas e tem caules
finos e cobertos de espinhos. É encontrada na região de terra várzea. Atinge de 1 a 4 metros
de altura. Seus frutos pequenos têm o tamanho de bolinhas de gude. Quando verdes, contêm
alguma polpa e água no interior, como o côco. Pĩtxo ‘palmeira muru-muru’, de caules
robustos e cobertos de espinhos. Atinge de 1 a 4 metros de altura. Seus frutos são
coquiunhos com forma de pingo d’água, que, quando verdes, contem polpa e água no
interior, como o côco.
105

Foto 58: p xo sh (caroços de murumuru)

A produção de txeshe está vinculada aos remates de colares de aruá; segundo as


mulheres, txeshe é o complemento do aruá, para produzir seke-ka e mashkẽ-ka, a alternância
de contas claras e escuras e das barrinhas transversais, respectivamente.

Foto 59: p xo sosaya (contas de murumuru)


106

Foto 60: P xo xaro-taya (lascas de murumuru)

É trabalhando com os diferentes tipos de coquinhos que a menina começa a se


apoderar de técnicas e conhecimentos, nos seus primeiros exercícios como futura artesã.
Txeshe-rasĩ são esses coquinhos de diversas espécies de palmeiras, de vários tamanhos, fontes
dos conhecimentos testados pelas mulheres: pani-eshe, chini-eshe, mai-chini-eshe, tovoi-eshe,
wanin-eshe, pintso-eshe. Chini-txeshe e wanin-txeshe possuem cascas mais finas, que podem
ser cortadas com os dentes (tsosa).

Foto 61: wanin eshe (caroços de pupunha)

Foto 6: p xo she (caroços de murumuru)

As mães ensinavam as suas filhas a produzirem seus primeiros colares, após de


cortar os coquinhos com os dentes em formado de continhas; para furar as continhas de txeshe
107

elas usavam dentes incisivos de esquilo (paka), enfileirados com linha de tucum. Na hora do
polimento, as mães ajudavam suas filhas, de modo a incentivar a sua produção de colares.
Uma vez o colar pronto, a mãe escolhia uma pessoa mais velha com notória agilidade e
habilidade na produção de artefatos, para ela doar o primeiro colar feito por sua filha. Este ato
era uma deferência que honrava as pessoas dentro da sociedade marubo.

Foto 63: Da esquerda para direita: caroços de tucum inteiro, contas prontas para serem
enfileiradas. linha de tucum para enfileirar as contas, contas já enfileiradas e já no formado de
colar.

Os materiais de coco de tucum que estão na foto acima foram trazidos pelas
mulheres marubo oriunda das aldeias Paraná, Boa Vista e Carneiro do alto rio Itui e, como
acompanhante das mulheres, por Paulo Marubo, Coordenador Geral da União dos Povos
Indígenas do Vale do Javari-UNIVAJA. Todos participaram da exposição “No caminho da
miçanga”.

3.9.1 Passo a passo do processo de produção dos enfeites de côco de tucum

Os principais passos no processo para txeshe ranë awë shovi-ma - produção dos
enfeites de côco de tucum - são cinco:

(1) Txaro-ka (verbo): cortar em lasquinhas com a faca;


108

Foto 64: Pane txaro-ka (fazendo lascas de caroço de tucum)

Foto 65: pane eshe txaro-kita shasho matxi (fazendo lascas de caroço de tucum em cima da
pedra)

(2) Tsosa (verbo): depois de txaro-ka, cortar em contas;


109

Figura66: Tsosa-taya (contas cortadas)

(3) Ota (verbo): furar as contas com agulha;

Foto 67: ota-taya (contas furadas)


110

Foto 68: pane txeshe ota (contas sendo furadas)

(4) Keoã (verbo): enfileirar as contas com linha de pipa.

Foto 69: pane keõ-naya (contas de tucum enfileiradas)


111

(5) Shakiya (verbo): depois de enfileiradas as contas, polimento com esmeril e


água para evitar a poeira.

Foto70: Shakiya (feito o polimento)

3.10 Os processos de transormação de echta (coquinho)

Segundo Fátima (Toro Vane), oriunda da aldeia Pentiaquino no médio rio Ituí, echta
é um fruto bem amargo que dá numa trepadeira muito alta, visado por esquilos e araras
vermelhas. Não pode ser pego diretamente com a mão; para descascá-lo com facilidade, é
preciso deixá-lo de molho no igarapé em um cesto, de modo a amolecer a casca e, uma vez
descascado, é deixado secando ao sol. Há mulheres que deixam a casca amolecendo até
apodrecer, para poder iniciar txaro-ka, tsosa, keoa e shakia. Disse Toro Vane: “Minha mãe
contou que antigamente as mulheres faziam colar de echta para os meninos, para que a
criança pudesse crescer forte e impedido de adoecer. Perguntei a ela se o echta não pode ser
usado por adulto. Ela respondeu: “sim, pode, ele pode ser usado como colar de complemento
no pulso e no pescoço, não é igual a aruá e nem a PVC” ”.
Cito novamente o texto de Aldè (2013), “Sustentando o Cerrado na Respiração do
Maracá: conversas com os Mestres Krahô”, sobretudo na parte em que é citado o trabalho de
Barreto Filho (“Meio ambiente em perspectiva”; Barreto, 2012), ao observar o trato com os
materiais extraídos da natureza, tomando o ponto vista das mulheres para lidar com o mundo
humano e o mundo não humano. Para qual finalidade faço para meu filho um colar de dentes
molares de macaco prego? Quero que a criança cresça tendo facilidade e habilidade em matar
animais que vivem na copa das árvores. Das frutas da trepadeira denominada em Marubo de
echta é feito um colar, usando o mesmo processo pelo qual são feitos os colares de coco de
tucum: ao dar esse colar para uma criança, o amargor da fruta fará com que ela não tenha
febre.
112

Foto 71: Da esquerda para direita: Echta sem casca, txaro-taya, tsosa-taya e já com furos.

3.10.1 Passo a passo do processo de produção de echta

Os principais passos no processo de produção dos adornos feitos com o fruto echta -
echta ranë awë shovi-ma - são cinco e são os mesmos vistos anteriormente:

(1) Txaro-ka (verbo): cortar em lasquinhas com faca;

Foto 72: echta txaro-ka (echta em lascas)


113

(2) Tsosa (verbo): depois de txaro-ka, cortar em contas;

Foto 73: tsosa-taya (echta em contas)

(3) Ota (verbo): furar com agulha as contas;

Foto 74: Echta ota-ya (contas de echta furadas)


114

(4) Keowã (verbo): enfileirar com linha de pipa.

Foto 75: Contas de echta enfileiradas

(5) Shakiya (verbo): depois de enfileirar as contas, fazer polimento com esmeril e
água para evitar não levantar a poeira.

Foto 76: shakiya (feito o polimento)


115

3.11 Os processos de transformação do PVC

Antes de falar do processo de produção de adornos de PVC, eu vou contar o que as


minhas protagonistas me contaram, um fato relatado que ocorreu entre meados de anos 70 e
80.

Diz Ilda da aldeia São Sebastião:

FUNAI nawarasῖ Posto shovimanõ inã vekῖ, noke yora rasῖ vesoni vekῖ atõ
vivarã venerasῖ anõ meiti awe, aska naneyarasῖ, balderasῖ, canecorasῖ,
mosquiteirorasῖ, rouparasῖ, raorasῖ, piarasῖ, nõ oῖmarasῖ akarasῖ. Askaki,
atõ awe wetsarasῖ mã nõ vevo oῖya. Atoma nõ vevo oῖya nawarasῖ atõ anõ
meiki kẽsh, tepirasῖ, askamainõ aῖvo rasῖro, vatxi õpo, sheo,resisi akarasῖ.

Com a chegada da Fundação Nacional do Índio-FUNAI, os nawarasῖ vieram


para construir a Aldeia (Posto), espécie de vigia do nosso povo; com eles
trouxeram artefatos para os homens trabalharem, panelas, baldes, canecas,
mosquiteiros, roupas, remédios, alimentos e muitas coisas que a gente nunca
imaginou em ver. É claro, muitas outras coisas também não foram tão
novidade para nós. A gente já havia “convivido” com outros nawa-rasĩ e se
interessado pelos seus artefatos, armas de fogos, e as mulheres por tecidos,
agulhas e linhas de costura.

Para começar a despertar o interesse de outras mulheres, a sua bisavó (avó materna
do meu pai) Erminia Maia - Raneshavo, por ser sogra do Chãti Tiako, quebrou espelhos com
moldura de plástica cor de laranja e fez gargantilha para seu bisneto. (Chãti Tiako é a maneira
em que é pronunciado na língua o nome San Tiago, um homem que na década de 40 veio no
meio do povo Marubo, ainda criança, descendente de peruano seringueiro, e se tornou esposo
da Ino/Iracy – Nishavo, filha mais nova da Erminia Maia).
Outras mulheres começaram a usar frascos de xarope (conhecido como shata patĩ
para niki), e avançaram mais quando os funcionários da FUNAI construíram uma casa de
alvenaria na aldeia trazendo PVC para fazer pias e privadas. Algumas delas mandavam
adornos de PVC para seus parentes (irmãs, sobrinhas, tias, avós, mães), que estavam ainda nas
cabeceiras dos rios Ituí e Curuçá. Eram presentes vistos como sendo os melhores possíveis
para as suas famílias. Enquanto no rio Ituí as mulheres marubo eram exploradas pelos
missionários das Novas Tribos, produzindo novo awe em trocadas quantidades miseráveis de
miçangas, no rio Curuçá corria a notícia da descoberta de como usar PVC.
116

3.11.1 Passo a passo do processo de produção de adornos de PVC

Os principais passos no processo de shata rane awe shovi-ma ‘fazer adornos de


PVC’, são seis:
(1) Wesha (verbo): raspar com a faca até ficar com espessura ideial para cortar.

Foto 77: shata wesha (raspando o plástico)

(2) Shatea (verbo): cortar com a faca e martelar com pedaço de ferro para obter a
espessura ideal para cortar em tirinhas e depois cortar em quadradinhos.

Figura 78: shata shatea (cortando o plástico em contas)


117

(3) Ota (verbo): furar as continhas quadradas com agulha ou arame grosso ou com
armação de guarda-chuva.

Foto 79: shata ota (furando as contas de plástico)

(4) Txista-ka e txishoa (verbo): cortar biquinho criado pela agullha na hora de
furar.

Foto 80: shata tsista-ka ou txishoa (cortando o biquinho criado com furo de agulha)
118

Foto 81: shata tsista-ka ou txishoa (cortando o biquinho criado com furo de agulha)

(5) Keoã (verbo): depois de terminar txista-ka e txishoa, enfileirar as contas com
linha de pipa.

Foto 82: shata otaya (contas furadas prontas para serem enfileiradas)
119

Foto 83: shata keõ-naya (contas enfileiradas)

(6) Shakia (verbo): fazer polimento com esmeril, depois de enfileirar as contas,
com movimento circular da mão, até o colar ganhar seu formato tubolar.

Foto 84: shata shakia (contas enfileiradas sendo polidas)

Usando o PVC, substituindo o aruá, em todo o processo de produção dos adornos


(rane awe, ‘adorno’), as continhas menores (ãwẽ revo) são enfileiradas para fazer meneshti,
tewea e rëshpĩ. As continhas maiores (ãwẽ venepavo) enfileiradas resultam em paoti, txiwiti,
poyãkiri oshë, mëvĩ oshë e ranështi.

A antropóloga Montagner assim descreve (1986:10):

‘A confecção de contas coloridas feitas de repientes de remédios e de utensílios


imprestáveis de plástico iniciou-se a partir de 1970, com a mesma técnica de
fabricação empregada para fazer contas de caramujo e de coco. E as contas de
plásticos, produzidas com fio de luz, foram inventadas em 1975, no igarapé
Maronal, quando a PETROBRÁS passou por aí ao fazer prospecção geológica. ’
120

O depoimento de Ino Tama-Shavo, da aldeia São Sebastião, em 18 de abril de 2016,


complementa as informações de Montagner:

Shata awe nõ titaki aka, awẽ patxi pari rivi, aῖvo kane vena vakῖsho Mãtxã
Txichtxo atõ aka ẽ papã aῖ aka nawa oῖno inã voshõ, vene rasῖni nawa merasho,
mara eshe vivaikῖ,roa kachta akῖ shate vaiki mevῖ-osõti amaivo, ato võro roakachta
akῖ shate shate vaiki, otai, keõi, shaki avaikῖ atõ tewe varã mainõ, aῖvo vetsarasῖ
kẽi, nawã awe ravãki, awẽ mevi-revõsho atõ shovi mavairi mekῖ, askaka. Anosho
askakῖ onati ashõ, aῖvorasῖ shata pati aki shovia, na rão shaka, ene-shaka aka.
Aska asho, shata ã kavimapa akῖro naa nawa rasῖni vivarã, anõ shovo ati shata
mõti revo vivaikῖ, wa ẽ takẽ shate shate, otai,keõi avaiki ãwẽ oῖrotsẽ awẽ tsista
akama ivai tõsho oraka rono kawãã, aska oῖnã ẽ õtxivai ikῖ, wa Noma-shavõ-ewa
Txi-shavo aka yoãshoatῖ, awẽ askaka atovõ vivaikῖ, weshai,
shatei,otai,tsishaki,keõi, avaikῖ atõ shakia tovo awe keskase, aska tõsho
wetsarasῖti.

Nosso fazer de shata iniciou com os plásticos, quando levaram duas moças para
visitar os nawa-rasῖ viram uns frascos de cartucho, os homens pegaram e cortaram
para fazer anel, e as mulheres por sua vez pegaram cortaram formado de continhas
enfileiram e poliram para fazer gargantilha. Quando outras mulheres viram,
gostaram muito e acharam que duas mulheres haviam comprado dos nawa-rasῖ. A
partir dali descobriram que podiam fazer colares de plásticos de outras cores. Mais
tarde chegaram entre nós os nawa-rasĩ fazendo sua casa trazendo o tubo para
encanamento da casa, vendo isso minha irmã pegou pedaço de tubo de PVC cortou
em formatos de contas, furou com arame, enfileirou e polio. Mas não fico satisfeito
com estética, pois as contas tinham ficado todas afastadas uma das outras no
enfileiramento. Mostrou para outras duas mulheres Noma-shavõ-ewa e Txishavo.
E elas vendo foram tentar fazer o mesmo processo, mas antes de enfileirar
contaram biquinho feito pela agulha e assim o colar ficou perfeito, dali foi copiado
por outras mulheres.

3.12 Mais sobre o trabalho nas pontas das mãos

As mulheres marubo dizem que a sua própria natureza não as deixa ficar paradas sem
fazer nada: “melhor ter as mãos ocupadas do que vazias”. Assim, comentam o trabalho
considerado por elas como recreativo, do seu cotidiano. Há muito mais a dizer sobre o que
criam com as pontas de suas mãos, há mais artefatos a serem descritos:

Toati (peneira) - kevõ-isã tasho ‘feito de talo da palmeira chamada patuá’. A


peneira serve para a produção de mani waka (mingau de banana), sheki
shesho waka (mingau de milho verde), wanῖ waka (mingau de pupunha) e
atsa waka (mingau de mandioca). Seus grafismos principais são: sevi kene
(desenho de círculo), yawa merinki kene (desenho de punho de queixada),
kara mapo kene (desenho da cabeça de sapo), awa vake ochika (imitação de
listas de filhote de anta), ãsῖ tae kene (imitação de pé de mutum), shonõ
shena kene (imitação de desenhos de larvas de sumaúma), kape chῖkach-aka
(coluna vertebral de jacaré).
121

Foto 85: toati-ras (peneira)

Txitxã (cesto), pani shãko ikita, feito de folha nova de tucum, para guardar
adornos, e pequenos objetos. Seus kene-rasῖ, ‘grafismos’, são: one-aka (formato de
movimento) e sῖki-ka (formato circular).

Foto 86: txitxã (cesto de folha nova de tucum)


122

Foto 87: txitã-rasin (cestos de folhas de tucum de vários tamanhos)

Vekoti e pechĩ (abanador e esteira), feitos de folha nova da palmeira


denominada na língua de kõta. Seus grafismos são: one-aka (formato de movimento),
kape chῖkach-aka (coluna vertebral de jacaré), toro-aka (redondo), yapa aka (fazer
peixe), pano aka (fazer tatu canastra).

Foto 88: wekoti e pichin (abanador e esteira feitos de folha nova de palmeira)
123

Foto 89: Varin Vãti fazendo esteira com grafismo one-ka

Pani (rede de tucum): para tirar as fibras de pani, as mulheres falaram que
tem que tirar as folhas novas de tucum, fazer as folhas se soltarem do talo, tirar os
espinhos das folhas laterais, abrir uma por uma as pontas das folhas com pequenos
golpes na superfice das folhas que ajude a tirar as fibras.

Foto 90: Fibras de tucum e três novelos de tucum


124

Foto 91: rede de tucum

Nas duas fotos abaixo, vemos vatxi (saia) feita com linhas de crochê, com os
grafismos kene sheta-aka (‘imitação de dente’), vinõ ranõ-aka (imitação de desenhos
de frutas de buriti) e sheta-aka (imitação de dentes). Como pode se observar na foto
85, a saia é tecida usando um tear feito com quatro seções de tronco de árvore e dois
caules de pupunha em formato de espátula. A saia tem medida de braço aberto como
comprimento e dois palmos de largura.
125

Foto 92: Saia feminino feito de crochê (kene sheta aka ‘grafismo imitação de dente’)

Foto 938: Saia em processo.

As fotos abaixo, oshe (tornozeleira), a primeira feito de linha de crochê com kene
sheta aka ‘grafismo imitação de dente’, com cores alternadas; a segunda é feita de linha de
costura, com kene sheta aka ‘grafismo imitação de dente’ no meio shavo ina kene ‘grafismo
imitando desenhos de rabo de calango’.
126

Foto 949: tornozeleira unissex

Foto 95: Tornozeleira unissex com grafismos ‘formato de dentes’ e ‘calango’

Resisi pani (rede de algodão): o processo tira-se o algodão do pé e faz


secagem, tira-se os caroços (shõpe-ka), depois tiris-ka37 e se faz shoko-ka, ‘novelo’.
A parte final do processo é denominada pelo Marubo de teris-ka, dependendo da
finalidade da artesã. O tamanho da linha para a rede é mais grossa e para fazer vatxi
‘saias’ ou oshe ‘tornozeleira’ as linhas são mais finas.

37
Tiris-ka (fiar) é o processo transformação do algodão em fio. O fuso é feito de talo de palmeira (o palito
denominado pelos Marubo de kõta), que tem comprimento de dois palmos; o disco de apoio é de cerâmica (a
partir do barro) e é chamado ivi (foto 91).
127

Foto 96: wachmen resisi teriska (fiando algodão)

Foto 97: resisi pani (rede de algodão)


128

Foto 98: resisi shoko, tirik-kitaya (novelos e linha de algodão enrolada no fuso)

Mapo mea é o trabalho com a cerâmica, para fazer yoá-rasῖ ‘panelas de


barro’, kẽtxa-rasῖ ‘pratos de barro’, kẽpo ‘recipiente para tomar migau’. A mulher
prepara primeira, com a ajuda do esposo, a derrubada de árvore denominda pelos
marubo mei (espécie de árvore que as mulheres marubo utilizam para misturar com
barro, para dar consistência o que evita a infiltração das cerâmicas); assim que a
casca se solta do caule, ela cata a casca de mei, que, ao chegar em casa, deixa secar
no sol e guarda numa casa improvisada própria para isso, um pouco afastada do
movimento da maloca ou oca, para não contaminar com alimentos doce e nem
salgados. Depois de secar ao sol, as cascas são queimadas e são trituradas com pedra
dentro da cavidade de pau oco. Tudo é, então, peneirado e guardado em um
recipiente para evitar a exposição ao ambiente. No dia seguinte, busca-se o barro no
período da tarde, depois, em outro lugar, de manhã, as cinzas são misturadas ao barro
até conseguir uma massa bem homogênea.
129

Foto 99: mapo yoa-aka (prepando as panelas de barro)

3.13 Festa wakaia/tanamea

O wakaia/tanamëa, segundo o kakaya Felipe, da aldeia Nazaré, antigamente


acontecia com mais frequência. Uma inesperada oportunidade para realizá-la novamente
surgiu no mês de abril de 2010 e ela foi como o coroamento de minha pesquisa. Foi graças às
conversas, quase cotidianas, com minha mãe, Tamã Shëta (Nazaré Barbosa Marubo), sobre o
andamento do movimento indígena do vale do Javari e os órgãos públicos como FUNAI e
FUNASA, responsáveis pelo atendimento de saúde aos índios. Não entendíamos as razões,
cada vez mais gritantes, dos nossos kakaya-rasῖ das aldeias menos informadas não se
interessarem dos acontecimentos como acontecia em outros tempos. Por essas e outras, minha
mãe resolveu comentar com outras mulheres marubo das aldeias Boas Vista do alto rio Ituí e
Maronal do alto rio Curuçá sobre a necessidade de expor suas opiniões. Aconteceu, então,
uma reunião na minha casa e depois me (Varin Mëma/Nelly B. Duarte) chamaram para trocar
idéias e tirar suas dúvidas com relação a algumas regras administrativas no mundo dos
brancos Convidei Eduardo Barcellos, funcionário da FUNAI. Nesse segundo momento de
encontro, as mulheres já estavam com suas opiniões formadas e com a firme intenção de se
organizar numa Associação. Eduardo observou que tradicionalmente, em suas aldeias, elas
vivem de uma forma organizada conforme seus costumes.
130

As mulheres, agora organizada numa Associação, resolveram procurar recursos para


conseguir aquilo que facilita hoje as suas vidas, de acordo com o contato que fizeram com a
sociedade não indígena. Pediram os seguintes materiais agulhas, linhas, entre outras coisas
para suas produções de adornos. Para atender ao pedido, eu e Eduardo Barcellos iniciamos a
elaborar um projeto a partir dos seus argumentos. Soubemos de um edital para projetos
culturais do Museu do Índio e encaminhamosa proposta dos grupos de mulheres marubo,
entitulada Aῖvo-risῖ meti” que significa ‘trabalho de mulheres’.
Quando souberam que o projeto “Aῖvo-risῖ meti” havia sido aprovado pelo Museu do
Índio no Rio de Janeiro, elas ficaram muito felizes. Queriam conhecer como era esse Museu,
que as convidou, atendendo ao seu pedido. As mulheres, para retribuir, levaram consigo seus
trabalhos, que foram apresentados ao diretor do Museu, José Calos Levinho. Depois de
conhecer como a instituição trabalha com a cultura indígena e de que forma é guardado o
acervo do patrimônio cultural. o kakaya Felipe, da aldeia Nazaré do rio Ituí, juntamente com
as mulheres, convidou o diretor para participar da festa wakaia/tanamëa, com a intenção de
registrar o evento e dar continuidade ao projeto Aῖvo-risῖ meti.

Foto 100: Recepção pelo diretor do Museu do Índio, José Carlos Levinho (13/09/ 2011)

Segundo a explicação da Tamã Sheta, o nome wakaia vem da forma como são
servidos os convidados da festa: as mulheres levam alimentos nos potes (pintados para
impressionar os convidados), como waká de milho, waká de banana, waká de mamão e waká
131

de mandioca38 e, nos cestos, carnes de diversos tipos e também bananas, batatas, e mandioca
cozidas.
Tanamëa é a forma como o organizador faz seu convite: anuncia com antecedência
avisando a todos que ele irá realizar a festa, para que os convidados possam preparar seus
adornos, sendo que as noticias correm por conta dos visitantes. Depois de alguns dias, antes
do wakaia, o organizador da festa vai ao solene encontro dos convidados, para avisar que
iniciem a se organizar. Nessa sua chegada, em uma das aldeias, ele é carregado, faz seu tsaῖka
(fala em forma cantada) justificando sua presença.
A festa wakaia/tanamëa é realizada pelo homem kakaya como encontro geral do
povo Marubo, onde todos possam mostrar suas artes: colares, cerâmicas, lanças, flechas,
chapéus. Os sobrinhos do anfitrião fazem seus enfeites mais engraçados para impressionar as
filhas do anfitrião. Para realizar esta festa, o kakaya prepara uma grande roça com a ajuda dos
outros homens das aldeias próximas, homens que vão ajudá-lo na organização e recebem o
tratamento kãpoki (injeção de ‘veneno’ de sapo) para expulsar o desânimo e a fraqueza, bem
como tomar rome waká (mingau de tabaco) e shoko waka (espécie de planta do mato) para
limpar o estômago e vetxeshkita (vestxeshti é uma espécie de folha do mato) para ter rapidez
na visão quando estiver no mato. Também preparam suas lanças, flechas, chapéus de pena e
cestos, e são pintados pelas suas mulheres com jenipapo e urucum.
As mulheres fazem grandes potes de cerâmica onde preparam alimentos para as
pessoas que estarão presentes na festa, fazem também peneiras e vatxi (saia de algodão) e
colares. Segundo Felipe e as mulheres mais velhas, que estavam presentes na oficina no
Museu do Índio - RJ, a preparação inicia no inverno e o evento acontece no verão. As mais
jovens que participaram da ultima festa wakaia/tanamea disseram que foram necessários seis
meses para realizar todos os processos preparatórios.
Segundo Cherompapa, Shapompa e Tupane, quem deu origem à festa
wakaia/tanamëa é o ser chamado Ni Shopa. A história conta que Ni Shopaera era o mais novo
de dois irmãos. Ao se tornar jovem, virou kakaya por ser espírito festivo, do clã ni-nawavo.
Antes de realizar o tanamëa, Ni Shopa falou para seu irmão, Wasa: “como você pode me
ajudar se nasceu alejado, sem poder andar? Wa vai wetsã miã oῖ oῖ vãta aavãtῖpase txãto tsao
kawãti?. “Não podemos dividir as tarefas, você é alejado e só fica ai sentado”. Assim saiu
rumo à estrada para fazer tanamea e, desse modo, cumprir seu compromisso de chefe.

38
waká é mingau de milho, banana, mamão ou batata; passa por fervura por um bom tempo e, em seguida, é
peneirado.
132

Reproduzo, a seguir, a narrativa mítica de Wasa-mĩtxo, oferecida pelos meus


protagonistas, que colocaram a festa wakaya como contexto e centro da exibição de adornos:
Quando Ni Shopa saiu para fazer tanamëa (convite), seu irmão mais velho e alejado
Wasa Mintxo ficou em casa junto com a cunhada. Na verdade, Wasa Mintxo não era alejado,
era somente preguiçoso. Ao anoitecer, ele ia debaixo da rede da sua cunhada chorando e sua
mãe, com pena do filho, pediu para a nora ajudar deitando com ele. Ele passou a noite toda
arrancando os pêlos pubianos da cunhada e cuspindo. Assim que voltou do tanamëa (convite),
seu irmão entrou e sentou no kena-ne (banco na frente da maloca, onde os homens sentam) e
chamou sua esposa dizendo: waká amari Maya? ‘Maya, você vem me dar mingau?’. Ela veio
trazendo waká tsomã shampatimëkain sho waka amaki na vene, ‘mingau, escondendo com a
cuia suas partes íntimas aos olhos do seu esposo’. Percebendo o que havia acontecido, Ni
Shopa pediu que ela esperasse a festa acabar para resolver o problema, para não interferir no
evento que ele tinha organizado para seus convidados. Ni Shopa não esqueceu a traição do
irmão e, ao terminar de receber seus presentes no fim da festa, awẽ take kamã sheta mẽtopa
txatxivakῖ ‘pegou dente molar de macaco e começou a furar com a ponta’ o joelho do irmão e
vonã-maspo matxi nini-keke-ki ‘o arrastou para cima de um ninho de formigas tocandira’.
Aska ashõ ã enea ikotῖ mepi mepi koaῖ, ‘assim, deixou-o largado e Wasa Mintxo ficou ali
tentando erguer seu corpo com as mãos’. Depois conseguiu ficar em pé e levou embora sua
cunhada dizendo: ẽ vicha-niro mã mῖ imapawa Maya, non nachi kawã? Maya, você já
aproveitou a vida com meu irmão mais novo, agora é nosso banho?’. Assim, Wasa Mitxõ
levou consigo a esposa do seu irmão.
Segundo o kakaya Felipe, o kakaya realiza a festa por querer rever os familiares que
moram longe. Então, ele anuncia em público que realizará a festa wakaia/tanamea e a notícia
começa a se espalhar. As pessoas de cada aldeia, esperando o convite, começam a
providenciar chapéus de penas, lanças, entre outras coisas, para presentear o dono da festa.
Enquanto a noticia se espalha, os amigos, cunhados e filhos do kakaya se organizam para
fazer limpeza ao redor da maloca, ampliam a estrada de nachti-vai (local de banho), igarapé
ou rio onde os tanameyavo ‘os convidados’ vão tomar banho.
Depois de um tempo, chega a grande caçada coletiva para receber os convidados.
Antes dela, tem a festa vina atxia que se inicia por volta de dez horas da manhã. Nesta
ocasião, os txais-rasĩ (filhos do irmão da mãe e filhos da irmã do pai) e as pano (filhas do
irmão da mãe e filhas da irmã do pai) brincam uns com os outros com ferroadas de vespas
para tirar a preguiça. Os mais velhos esfregam os jovens com urtiga para lhes passar sua
sabedoria e energia positiva. De noite, txai-rasĩ e pano brincam de matar animais e, no dia
133

seguinte, vão à caça, que dura mais ou menos uma semana, dependendo da quantidade de
caça que eles conseguirem.
A chegada dos caçadores é anunciada por gritos, por sons produzidos por
instrumentos de sopros feitos com pedaços de bambu de mais ou menos 50 cm e, também,
percutindo ako (tora de madeira). Segundo Isa Pëi Maia e Varin Vanti (esposas de Felipe), as
mulheres que chegaram ajudam na preparação da comida, waka, enquanto outras ajudam a
pintar os corpos de homens e de jovens. Depois de alguns dias de wakaia, o organizador,
antes de sair da sua casa, dança e canta, e vai ao solene encontro dos convidados, para avisar
que iniciem a organização da viagem de suas aldeias para o grande evento. Nessa chegada em
uma das aldeias, ele é carregado e faz seu tsaῖka (fala em forma cantada), justificando sua
presença, enquanto na sua casa seu ajudante dança e canta dizendo como os bens do anfritrião
sentem falta de seu dono e como os amigos e, principalmente, a casa do anfitrião sentem falta
deste. Esse ritual protege o anfitrião em seu retorno à aldeia.
Assim que ele chega à primeira maloca, ele explica ao dono da maloca o motivo da
sua visita em tsaintῖ (outra forma de fala cantada), depois segue sua jornada de caminhada de
tanamëa (convite). Terminando seu tanamëa (convite), ao retornar para sua aldeia, o kakaya
anuncia sua chegada através do ako (tora de madeira), e tdos os que lá moram se reúnem para
ouvir as noticias que ele está trazendo consigo.
A festa wakaya/tanamea é muito importante para o povo marubo, porque o kakaya a
realiza para rever os familiares que moram em outras aldeias distantes e também para ele
provar a sua importância como líder, bem como o afeto e o carinho que irá receber por
realizar uma festa que contagiará o povo desde o momento em que a notícia começará a
circular entre os taname-katsavo (convidados). São seis meses de preparação durante os quais
a expectativa cresce a cada dia. Enquanto esperam, os que vão ser taname-katsavo
(convidados) preparam os adornos que serão apreciados pelo dono da festa e pelos outros
taname-avo (convidados).
134

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Na elaboração desta dissertação, me dediquei às mulheres marubo, principais


idealizadoras da minha pesquisa, para falar sobre mevῖsho shovima awe e mevi revõsho
shovima awe e valorizar o conhecimento tradicional para novas gerações. Filhos e netos são
aprendizes do mundo ocidental e acabam deixando conteúdos e modos de ensinamento que
levam a incorporar a cultura de seus antepassados. Foram os anseios das mulheres que me
levaram a trazer para o mundo acadêmico seus conhecimentos através de nokẽ vana koῖ,
‘nossas falas verdadeiras’. Ao discorrer sobre o tema, foram surgindo longas explicações que
envolviam quase sempre o sistema de clãs. Nas palavras das mulheres, é o pertencimento
clânico que marca as diferenças entre estilos e os caminhos da transmissão.
No primeiro capítulo expliquei o título da dissertação, comuniquei os desejos das
mulheres, mostrei os contextos do trabalho manual, esbocei a trajetória de minha vida e
descrevi como foi iniciada a pesquisa com as mulheres marubo.
As minhas idas ao campo não ocorreram como eu imaginava, já que queria realizar a
pesquisa nas duas calhas dos rios. Sem a minha principal conselheira de pesquisa, tudo ficou
mais difícil. Não consegui me dirigir às pessoas como queria; não é porque sou indígena da
mesma etnia que teria facilidade para ter conversaa abertas, principalmente quando se trata de
fazer perguntas sobre conhecimentos. Mesmo para os que não têm contato com a sociedade
não indígena, o acesso aos saberes tradicionais por quem quer aprender não é facilitado,
sempre justificando que tudo o que se aprende com facilidade não tem valor.
Além disso, os Marubo têm distintas formas de contar as histórias tradicionais,
narrativas sempre muito complexas. Aqueles que vivem no rio Ítui são considerados maus
contadores pelos que moram no rio Curuça, por ter vivido longe dos ensinamentos dos mais
velhos. Tsonã Kenã-pa, Wanõ-papa, Ivã-papa, João Tuxaua, Keya-sheni e outros que já
morreram são considerados os anciãos dos chinã vana-rasῖ39, os que viviam na aldeia Kapi-
vana-waia antes de migrar para o rio Curuçá. Esse discurso de que ninguém sabe contar
direito, sobretudo o mito de origem, faz com que cada contador despreze a forma de contar do
outro, o que eles chamam de yoã vanasho iraviki nanã40.

39
Chinã vana-rasin significa ‘falas dos pensamentos-vidas’
40
yoã vanasho iraviki nanan = se acusam de não saber contar falas das vidas.
135

Minha mãe me dizia que a questão não é não saber contar história, mas a forma como
cada família recebe o ensinamento, o modo da pessoa receber o preceito do trabalho perfeito
com uma artesã, tendo o prestigio de manter consigo o ensinamento do saber tradicional.
Assim, na maioria das vezes, a falha no padrão de fazer é culpa de quem ensinou. O ponto
relevante, o que faz a diferença, é a origem dos anciãos que repassam o conhecimento
tradicional, seu pertencimento clânico, o papel dos clãs para os comportamentos e as atitudes
do individuo na sociedade.

Após nove anos sem ir a minha aldeia de origem, São Sebastião, a aldeia dos meus
parentes paternos, me senti deslocada ao querer fazer qualquer pergunta, pois ‘agora ganhei o
rótulo de fazedora de projetos no mundo ocidental, enquanto antes eu era apenas uma
estudante’. Para as mulheres com as quais fiz o projeto Aῖvo-rasῖ meti, eu estava chegando nas
aldeias como compradora de miçangas ou ajudante de compras de artefatos para aqueles que
fazem artesanatos.
Para minha pesquisa acontecer, tive que correr atrás do recurso financeiro necessário
para os deslocamentos até as aldeias, pois, depois que os Marubo se acostumaram a viajar
com os meios de transporte fluvial do nawa, o acesso à terra indígena passou a custar muito
caro. Como mestranda, estudante mulher indígena, mas sem o apoio de uma organização
indígena, pedi ajuda ao Museu do Índio/FUNAI-RJ e fui atendida.

O encontro com meus parentes próximos

No dia 12 de abril de 2016, consegui combustível para subir o rio Curuçá, tributário
do rio Javari, viajando rumo às aldeias para encontrar meus parentes, pegando carona com
meu primo, professor Alciney, da aldeia São Sebastião. Fazia dez anos que não aparecia por
lá, por conta dos meus estudos, sem a presença da minha mãe (Tamã Sheta/Nazaré filha de
João Tuxaua com sua segunda esposa). Fiz uma viagem não tão otimista, estava preocupada
pelo que iria perguntar aos meus consultores e parentes, até porque eu não sou nawa-shavo.
Pensei em não fazer perguntas para não me distanciar tanto deles.
Precisava me concentrar na minha pesquisa para atender ao pedido das mulheres,
para coletar os relatos sobre o trabalho que educa e ensina a sabedoria tradicional no mundo
marubo, pois minha mãe e os seus pais são considerados marubo tradicionais (shavo yomemã
136

vake e sheni wetsã vake41). Não poderia estar tão desvinculada da cultura do meu povo, mas
por ter me ausentado enquanto ainda era criança, por mais que meus pais tivessem se
esforçado para me transmitir o conhecimento do meu povo, contando oralmente a cada
oportunidade, eu não tenho a mesma experiência cotidiana que distingue as minhas irmãs,
criadas na aldeia. Não estava convencida de que poderia fazer uma boa pesquisa, agradando o
meu povo e adequada à academia, no padrão da universidade na qual estudo.
Mesmo com toda a insegurança que carrego, enfrentei uma viagem não tão
inspiradora, no clima amazônico da Terra Indígena do Vale do Javari sempre cheia de
surpresas. Às 7 horas da manhã o sol estava forte, escaldante. Além disso, nosso transporte
estava sem cobertura para se proteger do sol e da chuva. Apesar de ter vínculo clânico com o
sol, não estava disposta a me expor a ele, preferindo receber seu calor estando na sombra da
floresta.
Apesar da dificuldade, insegurança, pessimismo e estranhamento que carreguei
comigo nessa viagem, tive a certeza de que estava com minha família, senti que precisava
voltar muitas vezes, para que eu pudesse amadurecer e compreender aquilo que queriam me
passar sobre o conhecimento tradicional, o que exigia compreender o sistema dos clãs e sua
relação com o trabalho manual, o comportamento, o modo de ser de cada artesã.
Usei basicamente meu caderno de campo, pois não conseguia fazer com que minhas
interlocutoras colaborassem comigo na hora de gravar suas vozes. Quase sempre, ao acionar
meu gravador, surgiam outros assuntos menos os que queria ouvir. Senti muita falta da minha
mãe. Era ela que explicava as conversas tidas com meus interlocutores e me fazia entender
melhor as questões em jogo. As falas das mulheres eram, para mim, repetitivas, mas, depois,
lembrava as palavras de minha mãe: “contando uma história, queremos sempre ter certeza de
que o ouvinte se lembra do que falamos”.

41
shavo yomemã mulher mais velha e sheni wetsã palavra que se refere homem mais velho.
137

Foto 101: viagem de pesquisa de campo em 2016

Foto 102: viagem de pesquisa de campo no rio Curuçá, 2016

Durante sete dias de viagem fiquei contemplando minhas lembranças. A


‘modernização’ dos Marubo está cada vez mais acelerada. Há vinte e sete anos atrás, quando
o Bispo Dom Alcimar Caldas Magalhães pediu para eu descer até a cidade de Benjamin
Constant, para iniciar meus estudos, atendendo ao pedido do meu pai, lembro que eu desci
com uma canoinha pequena, junto com meu pai e meu tio Américo, remando quatros dias.
Naquela época, quem possuía motor de rabeta era funcionário da FUNAI ou quem havia sido
há muito tempo explorado pelos madeireiros. A maioria dos meus parentes nesta época iam
para cidade remando, enquanto o regatão não vinha até eles, para comprar anzol, cartucho,
sal, artefatos em geral, tecidos, panelas.
138

Por eu ter nascido no auge da luta do meu povo pela demarcação da terra e do
processo de construção do movimento indígena/indigenista, meu pai pensou em me preparar
no mundo dos nawa-rasῖ para estar à frente da organização tendo conhecimento entre dois
mundos, pois não há possibilidade de recuarmos diante dos não indígenas. Nossas sociedades
confrontam uma espada de dois gumes: se pensarmos em permanecer no nosso mundo
ignorando a existências dos nawarasῖ, sempre verão nossa cultura como atrasada, outras
sociedades não darão valor ao nosso conhecimento, a nossa história, ritos. Pensando dessa
forma, hoje em dia os pais mandam seus filhos para a cidade com a finalidade de estudar para
que no futuro eles ajudem a protegê-los da sociedade não indígena, aprendendo a falar, ler e
escrever.
Voltei do mundo marubo para o mundo nawa e vice-versa, muitas vezes, mesmo sem
sair da cidade de Atalaia ou de Manaus ou de Benjamin Constant ou do Rio de Janeiro, mas
foi a necessidade de realizar uma pesquisa ‘em campo’ para produzir uma dissertação e
concluir o mestrado que me fez voltar, de fato, a uma aldeia marubo, minha aldeia. Aprendi a
valorizar os chamados ‘trabalhos manuais’, surgidos nas mãos dos artesãos, por começar a
entender um pouco o mundo de conhecimentos e história(s) que está neles.
Restou o desafio de entender os modos de fazer e de ser nas origens clânicas. Meus
protagonistas comentavam continuamente sobre os clãs descendentes de wãsho-weneyavo
(wãsho, ‘fonte de flor’; weneyavo, ‘surgidos’) e de nãkõsho-weneyavo (nãkõsho. ‘fonte de
néctar’; weneyavo, ‘surgidos’), como base para uma classificação dos clãs. Comentavam
relatos históricos como vindo dos clãs vene-pavo e poto-pavo. Procurava manter o foco no
Nukẽ Mevĩsh Shovia Awe, no ‘saber-fazer das mãos entre os Marubo do rio Curuçá’, mas todo
um conjunto de dados e informações só fez aumentar minha curiosidade e minhas dúvidas.
Precisava pensar na ligação entre parentesco, clãs e o ser/destino do artesão. É isso que
pretendo retomar e aprofundar no curso de doutorado, entre os Marubo das duas calhas dos
rios Ituí e Curuçá.
139

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