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NOTA DO AUTOR À 3.

a EDIÇÃO

Conforme perceberá o leitor, há várias teorias da pena, umas


legitimadoras, outras deslegitimadoras, outras a um tempo
legitimadoras e deslegitimadoras do poder de punir. Perceberá
também que, apesar de assim classificáveis, não raro divergem
quanto aos fundamentos do direito de punir. Exatamente por
isso, não existe, a rigor, uma teoria preventiva especial, mas di-
versas, cujos argumentos e postulados nem sempre coincidem
entre seus partidários. Com efeito, ora falam de ressocialização,
ora de não dessocialização, ora propõem a ressocialização como
uma finalidade a ser perseguida contra a vontade do condena-
do inclusive, ora como um direito seu, que não pode lhe ser
imposto sob nenhum pretexto. Semelhantemente, a prevenção
geral negativa proposta por FERRAJOLI não é a mesma que propõe
ROXIN, que não é a mesma que propunha FEUERBACH.
Enfim, como toda classificação, as teorias da pena encer-
ram uma redução, uma simplificação, podendo compreender,
sob o mesmo título, propostas político-criminais um tanto
díspares.
De todo modo, parece-nos que, contrariamente ao que
pretendem, em geral, as diversas teorias, não existe uma razão
universal para castigar ou não castigar, isto é, aplicável a todo
e qualquer caso e, pois, válida para além do tempo e do espaço,
motivo pelo qual cada caso pede uma legitimação/deslegitima-
ção particular.
É que o direito penal, como todo conceito, é construído
pela equiparação de coisas desiguais e, por isso, constitui uma
universalização do não-universal, do singular; um conceito
8 FUNÇÕES DO DIREITO PENAL

nasce, portanto, da postulação de identidade do não idêntico.'


O conceito de crime, por exemplo, refere-se a um sem núme-
ro de condutas que, a rigor, nada têm em comum, à exceção
da circunstância de estarem formalmente tipificadas: matar
alguém, subtrair coisa alheia móvel, emitir cheque sem pro-
visão de fundos, portar droga para consumo pessoal, abater
espécime de fauna silvestre etc. (espécime que pode variar de
uma borboleta a uma onça pintada), conceitos, que, por sua
vez, unificam coisas díspares. Com efeito, não existe um ho-
micídio absolutamente igual a outro homicídio, nem um furto
absolutamente igual a outro furto, nem um crime ambiental
absolutamente igual a outro, pois as múltiplas variáveis que
sempre envolvem tais atos tornam cada ação humana singula-
ríssima, única, irrepetível. Enfim, um conceito é formado pela
eliminação do que há de singular em cada ato; e quanto mais
exato, mais abstrato e mais vazio de conteúdo se torna.2
Além disso, as leis penais supõem uma regularidade de ex-
pectativas, emoções e interesses que simplesmente não existe.
É que no fundo praticamos crimes pelas mesmas razões que
não os praticamos, isto é, porque temos ou não motivações
para tanto; e essas motivações variam de pessoa para pessoa e
são sempre novas.
Talvez por isso ou também por isso tivesse razão NIETZSCHE
quando afirmava que é impossível saber por que realmente se
castiga, e que o que chamamos justiça não é outra coisa senão
uma transformação do ressentimento e, pois, uma forma de
vingança com nome diverso.3

NIETZSCHE, Friedrich. Sobre verdad y mentira en sentido extramoral. Tecnos:


Madrid, 1996.
Idem.
A genealogia da moral. São Paulo: Centauro Editora, 2004.
NOTA DO AUTOR À 3 EDIÇÃO 9

O presente livro pretende ser uma introdução a este tema


sempre atual e controvertido, que é a crítica da razão punitiva, e
que encerra uma tríplice discussão: por que punir, o que punir
e como fazê-lo.
pauloqueiroz.net
INTRODUÇÃO

O presente livro quer responder à indagação sobre que fins


pode e deve perseguir o Estado por meio da pena, ou, mais exata-
mente, por meio do direito penal, indagação que, no fundo, envol-
ve o problema da legitimidade mesma do Estado como monopólio
organizado da força.' Interessa considerar, no entanto, não apenas
as funções2 que possam legitimar a intervenção jurídico-penal,
na vigência de um Estado Democrático de Direito (as chamadas
funções declaradas ou legitimadoras), mas também aquelas que,
embora não a justifiquem, são realmente realizadas pelo sistema
penal, que fazem parte, assim, da sua realidade operativa (funções
latentes ou ocultas), e que podem, inclusive, deslegitimá-la.
Semelhante questionamento, como é sabido, constitui um
dos temas mais antigos e controvertidos da filosofia,3 que é a

FERRAJOLI, L. Derecho y razón, p. 248.


Preferir-se-á, aqui, a expressão "função" às tradicionais "missão" ou
"fim" do direito penal, pela sua maior amplitude, abrangendo não só as
metas que o direito penal cumpre ou deve cumprir no plano normativo,
como também aquelas que efetivamente realiza no plano empírico,
desejadas ou não. Sobre o assunto, HASSEMER, W; MUROZ CONDE, F.
Introducción ala criminologiay ai derecho penal, p. 99, que preferem falar
de "missão", "fins" ou "metas" para aludir às conseqüências desejadas e
de "função" para referir às conseqüências não desejadas, mas reais; SILVA
SANCHES, J. M. Aproximación ai derecho penal contemporâneo; FERRAJOLI, L.
Op. cit. A tendência atual parece ser preferir-se a expressão "função" a
"fins" ou "missão", como se vê em MIR PUIG, S. Función dela pena y teoria
dei delito en el estado social y democrático de derecho; GARCIA-PABLOS DE
MOLINA, A. Derecho penal: Introducción e SILVA SÁNCHEZ, J. M. Op. cit.
A respeito, ARISTOTELES, SÊNECA, PLATÃO, tendo dito este último, pela boca
de PROTÁGORAS: "quem aspira a castigar de maneira racional, não deve
12 FUNÇÕES DO DIREITO PENAL

justificação do direito de punir, tradicionalmente tratada sob a


rubrica de "teorias da pena" , que, no fundo, são teorias do direi-
to pena1,4 tema, aliás, ordinariamente relegado a plano secun-
dário pelos manuais, a despeito da importância fundamental
que tem, ou que deveria ter, na elaboração e interpretação do
direito e processo penal, pois tais funções não podem ser rea-
lizadas de forma conseqüente com o só manuseio de conceitos
da dogmática penal, prescindindo-se do conhecimento dos fins
que devem orientar a atuação de juizes, legisladores e de todos
aqueles que de algum modo lidam com o direito.
Além disso, e conforme assinala SILVA SÁNCHEZ, a questão dos
fins do direito penal adquire uma transcendência nova quando
se adota um método teleológico-funcionalista na elaboração das
categorias dogmáticas e do próprio sistema da teoria do delito
com todo seu aparato conceitual, pois isto converte a discussão
dos fins do direito penal, tradicionalmente considerada como
matéria especulativa, em algo de substancial transcendência
prática, que repercute diretamente na resolução dos casos
penais.'
Convém esclarecer que a análise que aqui se desenvolverá
não se cinge, como sói acontecer, às teorias legitimadoras do
direito de punir, isto é, não se limita àquelas teorias que reco-
nhecem legitimação ao Estado para intervir coercivamente na
liberdade dos cidadãos, cuidando, também, das teorias deslegi-
timadoras (o abolicionismo penal e o minimalismo radical) que,

fazê-lo pelo injusto já realizado, senão em atenção ao futuro, para que


em diante nem o delinqüente mesmo volte a cometê-lo, nem tampou-
co os demais, que vêem como se o castiga", citado por JEscuEcK, H. H.
Tratado de derecho penal, p. 63.
Sobre o assunto, BATISTA, Nilo. Introdução critica do direito penal brasi-
leiro. Rio de Janeiro: Revan, 1990.
SILVA SANCHEZ, J.M. Op. Cit., p.180.
INTRODUÇÃO 13

diferentemente das primeiras, negam, sob fundamento vário,


legitimação ao Estado para exercitar um tal poder. A conclusão
final é• ,sultádo da confrontação de ambas as tendências.
Sob a rubrica de "teorias legitimadoras". são aqui isidg-
radas as diversas formulações teóricas justificadoras do direito
de í:Lâã_guais podem ser resumidas em três conhecidas
máximas: punitur guia peccaturn est; punitur ut ne peccetur; pu-
nitur guia peccatum est et ne peccetur Respectivamente: pune-se
porque pecou (teoria absoluta):2 pune-se para que não peaue
(teoria relativa); pune-se porque pecou e para que não peque
( .
Já sob a rubrica de "teorias deslegitimadoras" são tratados
o abolicionismo penal e aquele modelo de direito penal míni-
mo (radical), que prega, como objetivo imediato a máxima
contração do âmbito de intervenção penal e, como objetivo
ifirdraTó lo abolicionismo propriamente, a total
abolição do sisten&puaL_
A conclusão final, embora se compartindo, freqüentemente,
da crítica deslegitimadora do sistema penal, é no sentido da sua
relegitimação, porque se está de acordo quanto à sua necessi-
dade social, apesar das limitações estruturais desse subsistema
de controle, e das funções reais ou ocultas, que inevitavelmente
cumpre, ou seja, acredita-se na possibilidade de justificação do
direito de punir, em que pese a crítica, mais ou menos fundada,
que atualmente se lhe faz.
SUMÁRIO

NOTA DO AUTOR À 3.' EDIÇÃO 7


INTRODUÇÃO 11

PRIMEIRA PARTE
TEORIAS LEGITIMADORAS DO DIREITO PENAL

TEORIAS ABSOLUTAS: RETRIBUIÇÃO MORAL E RETRIBUI-


ÇÃO JURÍDICA 21
1.1 Introdução 21
1.2 Kant: retribuição moral 23
1.3 Hegel: retribuição jurídica 24
1.4 Crítica 27

TEORIAS RELATIVAS: PREVENÇÃO GERAL E PREVENÇÃO


ESPECIAL 34
2.1 Introdução 34
2.2 Prevenção geral — Prevenção negativa 35
2.2.1 Exposição e análise 35
2.2.2 Crítica 36
2.3 Teoria da prevenção geral — Positiva ou integradora 38
2.3.1 Introdução 38
2.3.2 Welzel 39
2.3.2.1 Exposição e análise 39
2.3.2.2 Crítica 41
2.3.3 Jakobs 43
2.3.3.1 Exposição e análise 43
2.3.3.2 Direito penal do cidadão versus direito penal
do inimigo 46
2.3.3.3 Crítica 47
2.4 Função simbólica ou retórica da pena 51
2.5 Prevenção especial (ou individual) 52
16 FUNÇÕES DO DIREITO PENAL

2.5.1 Exposição e análise 52


2.5.2 Crítica 56

TEORIAS UNITÁRIAS 60
3.1 Introdução 60
3.2 A teoria dialética unificadora de Claus Roxin 62
3.2.1 Exposição e análise 62
3.3 O garantismo de Luigi Ferrajoli: o direito penal mínimo 67
3.3.1 Exposição e análise 67
3.3.2 O modelo de direito penal mínimo e garantista 70
3.3.3 Crítica 72
3.4 Função da pena na legislação penal brasileira 76

SEGUNDA PARTE
TEORIAS DESLEGITIMADORAS DO SISTEMA PENAL

TEORIAS DESLEGITIMADORAS 83
4.1 Introdução 83
4.2 Abolicionismo penal 86
4.2.1 Introdução 86
4.2.2 Bases críticas 87
4.3 O minimalismo radical ou abolicionismo mediato 98
4.3.1 Introdução 98
4.3.2 Papel de um direito penal assim residual e mínimo
provisórios 100
4.3.3 Crítica 102

TERCEIRA PARTE
CONSIDERAÇÕES FINAIS: BASES CRÍTICAS
DE UM NOVO DIREITO PENAL

DIREITO PENAL E POLÍTICA SOCIAL 109

DIREITO PENAL E ESTADO DEMOCRÁTICO 112


6.1 Natureza instrumental e subsidiária do direito penal 115
6.2 A liberdade como regra; a não-liberdade como exceção: o
direito penal como afirmação da liberdade 116
6.3 Função principal do direito penal— Prevenção geral negativa-
subsidiária 117
SUMÁRIO 17

6.3.1 Prevenção sem direito penal 118


6.3.2 O direito penal como sistema de garantias 119
6.3.3 Prevenção especial como parte da prevenção geral 119
6.3.4 A retribuição como limite da prevenção 119
6.4 O delito como conflito: a flexibilidade do direito de punir 120

7. PARA ALÉM DA FILOSOFIA DO CASTIGO 122


7.1 Introdução 122
7.2 Limites estruturais da intervenção penal 125
7.3 Quatro casos paradigmáticos 126
7.3.1 Caso 1 126
7.3.2 Caso 2 128
7.3.3 Caso 3 128
7.3.4 Caso 4 129
7.4 Para além da "filosofia do castigo": em busca de uma nova
resposta penal 130
7.5 O que se poderia, então, sugerir em tal caso? 132
7.6 Conclusão 137

BIBLIOGRAFIA 139
PRIMEIRA PARTE
TEORIAS LEGITIMADORAS
DO DIREITO PENAL
1
TEORIAS ABSOLUTAS:
RETRIBUIÇÃO MORAL
E RETRIBUIÇÃO JURÍDICA

SUMÁRIO: 1.1 Introdução — 1.2 Kant: retribuição moral — 1.3


Hegel: retribuição jurídica — 1.4 Crítica.

1.1 Introdução

As teorias absolutas,' assim chamadas em oposição às teo-


rias relativas, vêem a pena como um fim em si mesmo, ora como
realização da justiça, ora como expiação de um mal, ora por
razões de outra ordem, e que está justificada pelo simples fatb
de o agente ter cometido um crime, que deve ser punido inde-
pendentemente de considerações preventivas ou utilitárias. A
pena se justifica assim guia peccatum est. Mas isso não significa
que eventualmente não cumpra funções;2 entende-se apenas

JAKOBS, citando passagem em que HEGEL, tradicionalmente apontado


como defensor de uma concepção absoluta da pena, afirma que "um
Código Penal pertence essencialmente ao seu tempo e ao correspon-
dente estado da sociedade civil" (Princípios de filosofia do direito, p.
195), observa, porém, que, em HEGEL, a pena é absoluta no conceitual,
mas em sua concreta configuração é relativa, conforme o respectivo
estado da sociedade (Derecho penal, p. 23). Entendendo também que,
tanto KANT quanto HEGEL, não defendem uma concepção absoluta da
pena (KAuFmANN, A. La mission del derecho penal. Política criminal y
reforma dei derecho penal, p. 121).
No mesmo sentido, MAURACH: "As chamadas teorias absolutas da pena
são teorias penais, não assim teorias dos fins da pena. Estas negam a
22 FUNÇÕES DO DIREITO PENAL

que as possíveis finalidades da pena são irrelevantes para sua


justificação porque nada têm a ver com a sua natureza, com a
sua ratio essendi.3
Portanto, para as teorias absolutas a pena estaria justificada
com ou sem finalidades preventivas, motivo pelo qual razões
de utilidade política ou social passam ao largo do interesse de
autores como IMANNUEL KANT e GEORG WILHELM FRIEDRICH HEGEL,
seus principais nomes, que assim justificam o direito de pu-
nir. Exatamente por isso, só a pena justa é legítima, ainda que
inútil, motivo pelo qual uma pena útil não tem legitimidade
alguma, se injusta.4
Convém notar que, tanto em KANT quanto em HEGEL, a jus-
tificação da pena é idealista. Significa dizer que o direito de que
aí se trata não é o direito como ele é, histórica e praticamente,
mas como deve ou deveria ser. Daí porque, ainda que tal fun-
damentação do direito de punir não tenha correspondência na

possibilidade de união da essência da pena à finalidade de prevenção


do delito. Para elas, a pena é compensação, seja como reparação ou
como retribuição, mas a pena se esgota em tais funções" (Derecho
penal, p. 86).
Assim, HEGEL: "As diversas considerações referentes à pena como fenô-
meno, a influência que exerce sobre a consciência particular e aos efeitos
que tem a representação (intimidação, correção etc.) ocupam o lugar
próprio até mesmo o primeiro lugar, desde que se trate da modalidade
da pena, mas tem de se supor resolvida a questão de saber se a pena é
justa de si e para si. Nesta discussão apenas se trata do seguinte: o crime,
considerado não como produção de um mal, mas como violação de um
direito tem de suprimir-se" (Princípios de filosofia do direito, p. 88-89).
Por isso, não parece de todo exato afirmar, como ROXIN, C. (Problemas
fundamentais de direito penal, p. 16), que, para essa teoria, a pena "não
serve para nada, contendo um fim em si mesmo", até porque se assim
não fosse, a pena serviria, em última análise, à realização da justiça,
como fim absoluto.
BACIGALUPO, E. Derecho penal, p. 48.
TEORIAS ABSOLUTAS 23

realidade jurídica, nem por isso perde o seu significado e o seu


valor.5 Como diz BOBBIO, quando KANT define o direito como
"o conjunto das condições por meio das quais o arbítrio de um
pode estar de acordo com o arbítrio do outro segundo uma lei
universal da liberdade", não pretende estabelecer aquilo que
é o direito na realidade histórica, mas aquilo que deveria ser
o direito para corresponder a um ideal de justiça, já que o que
ele visa é o ideal do direito, ao qual qualquer legislação deve se
adequar para poder ser considerada justa.6
1.2 Kant: retribuição moral
Para KANT, a pena responde a uma necessidade absoluta
de justiça, que decorre de um imperativo categórico, isto é, de
um imperativo moral incondicional, independentemente de
considerações preventivas ou utilitárias, de sorte que basta a si
mesma como realização da justiça, pois "as penas são, em um
mundo regido por princípios morais (por Deus), categorica-
mente necessárias" .7
KANT, ao conceber a pena como imperativo categórico, como
um fim em si mesmo, que nenhuma finalidade persegue, rejeita
toda pretensão de lhe emprestar fins políticos (prevenção geral'
ou especial) ou que se justifique a partir daí, por entender que
"o homem não deve ser tratado como um puro meio a serviço
do fim de outro ser, confundido com objetos do direito real,
porque isto é garantia de sua personalidade, embora ele possa

Nesse sentido, Bossio: "ainda que nenhuma legislação existente corres-


pondesse àquele ideal (ideal de justiça) a definição de KANT (definição
de direito) não seria menos verdadeira, uma vez que indica apenas o
ideal-limite ao qual o legislador deveria adequar-se e não uma gene-
ralização derivada da experiência" (Direito e Estado no pensamento de
Emanuel Kant, p. 71).
BOBBIO, N. Direito e estado no pensamento de Emanuel Kant, p. 71.
Citado por WELZEL, H. Derecho penal aleman, p. 284.
24 FUNÇÕES DO DIREITO PENAL

ser condenado a perder sua personalidade civil" .8 Condena


assim a instrumentalização do homem em favor de razões de
utilidade social.
Portanto, ainda que a pena seja, do ponto de vista da pre-
venção geral ou especial, absolutamente inútil, o autor de um
crime deve ser necessariamente castigado, porque é preferível,
disse KANT, que morra um homem a perder todo um povo, pois,
a se desprezar a justiça, já não terá sentido a vida dos homens
sobre a terra. Por isso sentenciou que "ainda que uma sociedade
se dissolvesse por consenso de todos os seus membros (assim,
por exemplo, um povo que habitasse uma ilha, decidisse sepa-
rar-se e dispersar-se pelo mundo), o último assassino deveria
ser executado".9
Não surpreende assim que tivesse o princípio talional— den-
te por dente, olho por olho — como o paradigma da verdadeira
justiça, do verdadeiro direito. "Somente a lei de talião", escre-
veu, "proclamada por um tribunal, pode determinar a qualidade
e a quantidade da punição" ,1° porque "o mal imerecido que tu
fazes a outrem, tu fazes a ti mesmo, se tu o ultrajas, ultrajas
a ti mesmo, se tu o roubas, roubas a ti mesmo, se tu o matas,
matas a ti mesmo"»
1.3 Hegel: retribuição jurídica
Para HEGEL, a pena não resulta de um mandato absoluto de
justiça, como em KANT» mas de uma exigência da razão, que se

La metafisica dei costumi, p. 142.


KANT, E. Idem, p.144.
Idem, p. 142-143.
Idem, p. 142.
Apesar disso, FERRAJOLI considera que só aparentemente se distinguem
as concepções de HEGEL e KANT, haja vista que ao menos em HEGEL- que
concebe o Estado como um espírito ético ou substância ética — também
a idéia de retribuição jurídica se baseia de fato, em última análise, no
TEORIAS ABSOLUTAS 25

explica e se justifica a partir de um processo dialético inerente


à idéia e ao conceito mesmo de direito. Mais claramente: o de-
lito é uma violência contra o direito, a pena uma violência que
anula aquela primeira violência; a pena é assim a negação da
negação do direito representada pelo delito (segundo a regra,
a negação da negação é a sua afirmação). A pena é, portanto, a
restauração positiva da validade do direito, constituindo uma
necessidade lógica. Como dizia BASILEU GARCIA, para HEGEL "o
direito é manifestação da vontade racional; a pena é a reafirma-
ção da vontade racional sobre a vontade irracional; servindo a
pena para restaurar uma idéia, precisamente para restaurar a
razão do direito, anulando a razão do delito" .13
E essa seqüência, negação-negação, é absoluta, já que o
direito há de ser, necessariamente, direito imposto; o que se
defende, portanto, não é a utilidade da pena, mas a idéia do
direito convertida em conceito,14 porquanto "como evento que
é, a violação do direito enquanto direito possui, sem dúvida,
uma existência positiva exterior, mas contém a negação. A
manifestação desta negatividade é a negação desta violação
que entra, por sua vez, na existência real; a realidade do direito
reside na sua necessidade ao reconciliar-se ela consigo mesma
mediante a supressão da violação do direito"."
Essa absolutização do sentido da pena está coerente com a
concepção do indivíduo, que, para HEGEL, somente existe em
função do Estado e para o Estado, pois o Estado é "o espírito
objetivo, então só como membro é que o indivíduo tem objeti-
vidade, verdade e moralidade" ,16 motivo pelo qual o indivíduo

valor moral associado, se não a cada imperativo penal, à ordem jurídica


lesionada. Derecho y razón: teoria dei garantismo penal, p. 254.
Instituições de direito penal, p. 73.
JAKOBS, G. Op. cit., p. 23.
HEGEL, G. W. E Op. cit., p. 87.
Idem, p. 217
26 FUNÇÕES DO DIREITO PENAL

deve obediência incondicional à autoridade estatal. O Estado,


diria HEGEL ainda, "é o racional em si e para si", "nele a liberdade
obtém o seu valor supremo e assim este último fim possui um
direito soberano sobre os indivíduos que em serem membros
do Estado têm o seu mais elevado dever" .'7
HEGEL parte da perspectiva de que toda coação ou violência
é idealmente injusta, porque atenta contra a existência real da
liberdade. "O direito abstrato", disse, "é o direito de coação,
pois o ato injusto é uma violência contra a existência da minha
liberdade numa coisa exterior. Manter essa existência contra
a violência como ação exterior é uma violência que suprime
a primeira".18 "A primeira coação, exercida pelo ser livre que
lesa a existência da liberdade no seu sentido concreto, que
lesa o direito como tal, é o crime— juízo negativo em todo o seu
sentido".19
A legitimidade da pena está fora de questão, portanto: "a
pena com que se aflige o criminoso não é apenas justa em si;
justa que é, é também o ser em si da vontade do criminoso, uma
maneira da sua liberdade existir, o seu direito" 20 Em relação ao
agente do delito, a pena constitui um direito seu, uma maneira
de sua liberdade existir, que o "dignifica como ser racional", pois
"está implicada na sua própria vontade, no seu ato. Porque vem
de um ser de razão, este ato implica a universalidade que por
si mesma o criminoso reconheceu e à qual se deve submeter
como ao seu próprio direito".2'
Em conclusão, a pena é condição lógica inerente à existência
do direito, que não pode permanecer sendo direito senão pela

Idem, ibidem.
Idem, p. 84-85.
Idem, p. 85.
Idem, p. 89.
Idem, ibidem.
TEORIAS ABSOLUTAS 27

negação da vontade particular do delinqüente, representada


pelo delito, pela vontade geral da sociedade representada pela
lei. Por isso que "a repressão penal passa a ser a reconciliação
do direito consigo mesmo na pena, pois, do ponto de vista
objetivo, há reconciliação por anulação do crime e nela a lei
restabelece-se a si mesma e realiza a sua própria validade, bem
como do ponto de vista subjetivo, que é o do criminoso, há
reconciliação com a lei que é por ele conhecida e que também
é válida para ele, para o proteger" .22

1.4 Crítica

O principal mérito das teorias retributivas parece residir no


fato de que a pena, independentemente dos fins a que se destine,
há de ter o delito como pressuposto indispensável, de modo
que o crime conceitualmente é retribuição de um mal, devendo
ademais ser proporcional ao delito, razão pela qual se presta a
criticar excessos na sua individualização inclusive.23 Em seu
favor, cabe dizer ainda que pode impedir o uso do condenado

22. Idem, p. 196.


Como assinala Mm PUIG, por trás da formulação de KANT, HEGEL e segui-
dores, está em geral uma filosofia política liberal, que vê na proporção
com o delito um limite de garantia para o cidadão. Não se podia castigar
além da gravidade do delito cometido, nem sequer por considerações
preventivas, porque a dignidade humana se opunha a que o indivíduo
fosse utilizado como instrumento de conseqüências de fins sociais
de prevenção a ele transcendentes. Esta era, provavelmente, a função
principal que as teorias retributivas queriam assegurar ao direito penal:
traçar um limite à prevenção, como garantia do cidadão (Introducción a
las bases del derecho penal, p. 63). Destacam, ainda, o mérito da teoria
retribucionista CLAUS ROXIN, GUNTHER ARZT e KLAUS TIEDEMANN: "na sua
aplicação prática esta teoria é de grande utilidade, pois comporta uma
limitação ao poder penal do Estado, não podendo a pena ser de maior
gravidade que a que corresponda à gravidade da culpabilidade do autor"
(Introducción al derecho penal..., p. 24).
28 FUNÇÕES DO DIREITO PENAL

em nome de fins preventivos gerais24 puramente, a evitar penas


de caráter meramente exemplificador. Esse o seu grande legado,
portanto: a proteção da sociedade por meio da pena, quando
necessária, deve dar-se sempre de maneira justa.25
Apesar disso, tais teorias são criticáveis por várias razões.
Há quem afirme inclusive, como ARMIN KAUFFMANN, que são
teorias sem partidários, cuja luta (contra elas) representa um
puro quixotismo.26 Ademais, a máxima kantiana que pretende
impedir que o homem seja usado como simples instrumento,
pois isso seria tratá-lo como coisa, parece ser grandemente re-
tórica, porque, como assinala RADBRUCH, o Estado é, em relação
ao indivíduo, justamente esse outro, a cujos fins se pretende
sacrificá-lo;27 também porque pressupõe, se mais, legítima e
justa a ordem social vigente.
Eis algumas das críticas mais correntes às teorias abso-
lutas:28
1. Fim do Estado/Direito e, portanto, da pena, não é realizar
a justiça, nem tampouco em termos absolutos.29 A função do

Nesse sentido, BACIGALUPO, E. Derecho penal, p. 48.


JESCHECK, H. H. Tratado de derecho penal..., p. 62.
La mission dei derecho penal. Politica criminal y reforma dei derecho
penal, p. 121. FERRAJOLL porém, observa que esta suposição é errônea,
pois antes de KANT e HEGEL, filósofos COMO LEIBINIZ, CAMPANELL, SELDEN
e GENOVESI já sustentavam tese semelhante, e sobretudo por juristas,
COMO PELLEGRINO ROSSI, ENRICO PESSINA, MAGGIORE, BETTIOL, entre outros.
Op. cit., p. 255.
Filosofia do direito, p. 314.
A critica é aqui dirigida já com vistas à conclusão do texto, terceira
parte.
KELSEN: "Se podemos aprender algo da experiência espiritual do pas-
sado é o fato de que a razão humana só consegue compreender valores
relativos. Isso significa que o juizo, por meio do qual algo é declarado
como justo, nunca poderá ser emitido com a reivindicação de excluir
TEORIAS ABSOLUTAS 29

direito penal é algo bem menos ambicioso: viabilizar a con-


vivência social por meio da ordenação pacífica dos conflitos.
Como assinala WELZEL, não é função do Estado intervir na
realização da justiça independentemente do que seja necessário
para sua própria existência como comunidade jurídica, uma vez
o Estado não castiga para que exista a justiça no mundo, mas
para que haja juridicidade na vida da comunidade.3° E essa jus-
tificação depende logicamente dos fins que se pretende atingir
por meio da intervenção penal, de sorte que o sentido e fins do
Estado e do direito de punir estão logicamente implicados.
2. Imaginar a pena como um imperativo categórico constitui
um ato de f.é,3' porque, considerado racionalmente, não se pode
compreender como pagar um mal cometido, acrescentando-lhe

a possibilidade de um juízo de valor contrário. Justiça absoluta é um


ideal irracional. Do ponto de vista do conhecimento racional, existem
apenas interesses humanos e, portanto, conflitos de interesses. Para
solucioná-los existem apenas dois caminhos: ou satisfazer um dos
interesses, à custa do outro, ou promover um compromisso entre am-
bos. Não é preciso comprovar que somente uma, e não a outra solução,
seja justa. Se se pressupõe a paz social como valor maior, a solução de
compromisso pode ser vista como justa, mas também a justiça da paz
é a justiça relativa, não absoluta" (O que é justiça?, p. 23).
Derecho penal alernan, p. 283.
ROXIN, C. Op. cit., p. 19: "A própria idéia da retribuição compensadora
só pode ser plausível mediante um ato de fé. Pois, considerando-o
racionalmente, não se compreende como se pode pagar um mal co-
metido, acrescentando-lhe um segundo mal, sofrer a pena. É claro
que tal procedimento corresponde ao arraigado impulso de vingança
humana, do que surgiu historicamente a pena; mas considerar a que
assunção da retribuição pelo Estado seja algo qualitativamente distinto
da vingança humana, e que a retribuição tome a seu cargo a 'culpa de
sangue do povo' expie o delinqüente etc., tudo isso é concebível apenas
por um ato de fé que, segundo a Constituição, não pode ser imposto
a ninguém, e não é válido para uma fundamentação, vinculante para
todos, da pena estatal."
30 FUNÇÕES DO DIREITO PENAL

um segundo mal: sofrer a pena.32 Noutros termos, a retribuição


não é explicável racionalmente, mesmo porque sua necessida-
de, por emanar de um suposto mandato de Deus ou de outro
ser metafísico, não comporta discussão. Além disso, explicar
sentido da pena por meio da retribuição é absolutizar uma
entre outras interpretações possíveis e igualmente plausíveis
dos desígnios e mistérios de Deus (KANT), a qual não é neces-
sariamente a melhor.33
É também manifesta a confusão entre direito e moral.
Como assinala FERRAJOLI, tais teorias só são explicáveis como
resultado mais ou menos consciente de uma total confusão
entre direito e moral, entre validez e justiça, entre legitimação
interna e justificação externa.34
3. A absolutização do fundamento do direito de punir supõe
a absolutização dos fins do Estado, perspectiva incompatível
com o perfil dos Estados modernos (Democráticos), Estados
funcionais (Estado-instrumento), que são portadores de atri-
buições sempre relativas. E essa vinculação Estado e pena é
essencial, porque o direito penal não é um fim em si mesmo,
mas um instrumento de controle social formal. Exatamente por
isso, é só legítima a intervenção penal necessária à proteção dos
bens jurídicos mais importantes. O direito penal é a fortaleza e
os canhões dos demais direitos (ALFONSO DE CASTRO).
Portanto, se uma sociedade se dissolvesse por consenso de
seus membros, não faria sentido algum promover a execução

ROXIN, C. Op. cit., p. 19.


Basta lembrar que HERMAN BIANCHI, interpretando o Velho Testamento,
chega a uma conclusão diametralmente oposta, e também religiosamen-
te plausível: a necessidade de abolir toda punição. Sobre o pensamento
de BIANCHI, veja-se MmenNEz SANCHES, M. La abolición dei sistema penal.
Bogotá: Temis, 1990.
Op. cit., p. 257.
TEORIAS ABSOLUTAS 31

do último assassino, como propunha KANT, pois tal não teria


nenhuma justificativa política, não mais interessando ao Estado
tal ato, simplesmente porque deixaria de existir. Castigá-lo seria
uma violência inúti1.35
Não é por acaso que a grande maioria dos códigos penais
ocidentais prevê uma série de causas extintivas de punibilidade
e semelhantes, como, abolitio criminis, prescrição, decadência,
perdão judicial, suspensão condicional do processo na tran-
sação etc. Daí dizer FLETCHER que KANT saltaria de sua tumba
de Koenisberg se soubesse que no processo penal americano e
em alguns europeus existe a possibilidade do plea bargaining,
da Abas prache ou da conformidade, é dizer, que o Ministério
Público pode negociar com o acusado sobre o castigo.36 Com
efeito, nenhum desses institutos é compatível com um impera-
tivo categórico, por implicarem um relativização inconciliável
com a proposta absolutizadora da pena.
4. Todas essas teorias pressupõem ainda um conceito abso-
luto de crime. Sabe-se hoje, no entanto, o crime é socialmente
construído, variando no tempo e no espaço os fatos assim de-
finidos conforme a reação social. Aliás, sob o rótulo de crime
se reúne uma série de condutas que não têm nada em comum,
exceto a circunstância de serem igualmente criminalizadas:
matar alguém, fraudar o pagamento por meio de cheque sem
provisão de fundo, caçar animal silvestre sem autorização
legal etc., de modo que o delito não existe materialmente,37

No mesmo sentido, ROXIN, referindo-se à hipótese kantiana: "Creio en-


tão que se deveriam deixar em liberdade esses assassinos e abandoná-los
nas mãos da justiça de Deus, pois a sua punição já não poderia servir
para fins terrenos, únicos a que o direito humano se deve confinar".
Problemas fundamentais..., p. 33.
Conceptos basicos de derecho penal, p. 70.
Sobre essa pretensa distinção qualitativa, HEGEL: "A distinção entre
o banditismo e o roubo reside numa diferença qualitativa; é que no
32 FUNÇÕES DO DIREITO PENAL

pois depende das reações sociais, isto é, dos processos de cri-


minalização primária e secundária, parte que é da construção
social da realidade, afinal o crime — como de resto tudo que
diz respeito ao homem — não está no fato em si, mas na cabeça
das pessoas.
5. Partindo de uma concepção idealista e acrítica de direito
ou justiça, desconsidera todo conhecimento criminológico
acerca da realidade operativa dos sistemas penais. Assim, por
exemplo, desconhecem as limitações estruturais da interven-
ção penal, como, as cifras ocultas da criminalidade, isto é, a
circunstância de que o direito penal intervém em casos isola-
dos e excepcionais, uma vez que a maior parte dos passíveis
de intervenção penal não são apurados ou castigados, ficando
impunes. Ignoram ainda que o direito penal é um sistema in-
justo e desigual, vez que seleciona sua clientela invariavelmente
à:ire os setores mais vulneráveis e pobres da população .38 Além
disso, a pretexto de combaterá criminalidade, comete-se toda
sorte de injustiças (violação sistemática dos mais elementares
direitos humanos).

primeiro eu sou lesado como consciência que está presente, portanto


com infinitude subjetiva, que é sobre mim que se exerce uma violência"
(Op. cit., p. 86).
38 Como disse alhures: "Ainda que o próprio Deus ditasse as leis, ainda
que os juízes fossem santos, ainda que promotores de justiça fossem
super-homens, ainda que delegados e policiais formassem um exército
de querubins, ainda assim o direito — e o direito penal, em particular
— seria um instrumento de desigualdade. Porque a desigualdade formal
ou jurídica não anula a desigualdade material que lhe subjaz. O direito
31 penal, em especial, sob a ilusória aparência de igualdade, é, por exce-
lência, um veículo de afirmação e reprodução de desigualdades sociais
reais, pois a ficção da igualdade rui ante a desigualdade substancial.
i
'il Afinal, não se trata de um problema circunstancial, que se possa vencer
pela boa vontade de legisladores ou aplicadores da lei: é um problema
estrutural" (Do caráter subsidiário.... cit., p. 30).
TEORIAS ABSOLUTAS 33

6. Ao já pressupor necessária a intervenção jurídico-penal,


a teoria absoluta da pena tem por justas as normas jurídicas já
estabelecidas ou que se venha a estabelecer, legitimando-as, se-
jam quais forem as razões que as ditaram, seja qual for o regime,
democrático ou totalitário, em que foram ditadas. Conceber a
pena como uma "retribuição intrinsecamente justa" é conceder
um cheque em branco em favor do arbítrio do legislador.39

39. ROXIN, C. Op. cit., p. 19.


2
TEORIAS RELATIVAS:
PREVENÇÃO GERAL' E
PREVENÇÃO ESPECIAL

SUMÁRIO: 2.1 Introdução — 2.2 Prevenção geral — Prevenção


negativa: 2.2.1 Exposição e análise; 2.2.2 Crítica —2.3 Teoria
da prevenção geral — Positiva ou integradora: 2.3.1 Introdu-
ção; 2.3.2 WELZEL; 2.3.3 Jaxoss — 2.4 Função simbólica ou
retórica da pena — 2.5 Prevenção especial (ou individual):
2.5.1 Exposição e análise; 2.5.2 Crítica.

2.1 Introdução
Em oposição às absolutas, as teorias relativas, também
conhecidas como prevencionistas, são marcadamente teorias
finalistas,2 por verem a pena não como um fim em si mesmo,
mas como um meio a serviço de um fim. São teorias utilitá-
rias. Finalidade da pena, em suas várias versões, é a prevenção

Incluo, aqui, também a teoria da prevenção geral positiva como sen-


do relativa, apesar do que observa ZUGALDIA ESPINAR: "Só com certos
matizes pode admitir-se que esta teoria da prevenção geral positiva
seja uma teoria relativa da pena. Em primeiro lugar, porque resulta
evidente seu paralelismo com a teoria da retribuição jurídica de Hegel,
só que agora esta parece apresentar em 'chave sociológica': que antes
era uma exigência absoluta do Direito, agora é uma exigência para a
integração do grupo social e do bom funcionamento do sistema. Em
segundo lugar, porque propriamente não legitima a pena porque esta
cumpra um fim útil de prevenção (evitação do delito), senão porque
cumpre o fim útil de assegurar a confiança institucional dos cidadãos
no sistema". Fundamentos de derecho penal, p. 59.
MAURACH, R. Derecho penal, p. 87.
TEORIAS RELATIVAS 35

de novos delitos em caráter geral e/ou especial. As teorias de


prevenção geral se subdividem em prevenção geral positiva
e prevenção geral negativa. Também as teorias da prevenção
especial se subdividem em positiva e negativa.
2.2 Prevenção geral — Prevenção negativa

2.2.1 Exposição e análise

A principal versão da teoria da prevenção geral negativa é uma


construção de PAUL JOHANN ANSELM RITTER VON FEUERBACH.
Para FEUERBACH, todos os crimes têm por causa ou motivação
psicológica a sensualidade, na medida em que a concupiscência
do homem é o que o impulsiona, por prazer, a cometer a ação.
A esse impulso da sensualidade deve ser oposto um contra-
impulso, que é a certeza da aplicação da pena. Finalidade da
pena é, por conseguinte, a prevenção geral de delitos por meio
da coação psicológica exercida sobre toda a sociedade, de modo
a atemorizar os destinatários das normas penais.
FEUERBACH distingue dois momentos da pena: a cominação
e a individualização judicial. No primeiro, o objetivo da nor-
ma é "a intimidação de todos como possíveis protagonistas de
lesões jurídicas"; no segundo, fim da pena é "dar fundamento
efetivo à cominação legal, dado que, sem a aplicação da comi-
nação, tal seria ineficaz".3 A aplicação/execução da pena é a
realização da coação psicológica contida na cominação legal,
concretizando aquela ameaça. Portanto, o sentido da norma
penal é a intimidação geral por meio da anulação dos impulsos
de sensualidade, móvel que é de todos os crimes.
Por conseguinte, fim da pena não pode ser, segundo
FEUERBACH:

3. Tratado de derecho penal, § 13 et seq.


36 FUNÇÕES DO DIREITO PENAL

a prevenção contra futuros delitos de alguém em par-


ticular (prevenção especial);
nem retribuição moral, porque esta pertence à ética e
não ao direito, e porque tal pretensão seria fisicamente
impossível;
nem melhoramento moral, porque este seria o objetivo
da expiação, mas não o objetivo da pena.4

2.2.2 Crítica
FEUERBACH distingue claramente direito e moral, entenden-
do que o direito penal não pode perseguir o aperfeiçoamento
ético/moral do delinqüente, nem tampouco sua expiação como
se fosse um pecador. Finalidade da pena, para FEUERBACH, é
algo menos ambicioso: que os criminosos, reais ou poten-
ciais, abstenham-se de praticar delitos, independentemente
de mudarem seus valores. Quer-se a só abstenção da prática
de crimes, nada mais. E, no caso de cometimento, seus autores
devem ser castigados.
Mas sua teoria da pena não está isenta de críticas.
1. Conforme assinala ROXIN, permanece em aberto a questão
de se saber em face de que comportamentos possui o Estado a
faculdade de intimidar. Ou seja, a doutrina da prevenção geral
partilha com as doutrinas da retribuição esta debilidade: per-
manece por esclarecer o âmbito do criminalmente puníve1.5 E
desde que se aceite que o fim de intimidação geral justifica a in-
tervenção penal, e que não lhe delimite o âmbito de atuação, tal
doutrina parece tender para um Estado policia1,6 que se valerá
da pena sempre que lhe parecer politicamente conveniente.

Idem.
Problemas fundamentais de direito penal, p. 23.
Idem.
TEORIAS RELATIVAS 37

Além disso, não responde à indagação sobre a sua própria


legitimação, isto é, sobre como se justifica a punição de alguém,
não em consideração a ele próprio, mas em consideração a
outros que, com sua punição, poderão abster-se de pratica
semelhante. Nada diz, pois, sobre o porquê desta instrumenta-
lização do infrator, conforme a objeção de KANT. Porque mesmo
que seja eficaz a intimidação, é difícil compreender que possa
ser justo que se imponha um mal a alguém para que outros se
omitam de cometer um ma1.7
Também não existe prova empírica, mesmo hoje, de que
a norma penal seja capaz de prevenir novos crimes, ou seja,
que a alegada coação psicológica realmente atue no processo
motivacional de formação da vontade de delinqüir e evite, com a
ameaça e efetiva execução da pena, novas violações à lei. Parece
improvável, por exemplo, que o sujeito decidido a roubar ban-
cos ou praticar atos de terrorismo e correr, portanto, os riscos
reais (de vida inclusive) dessas ações altamente perigosas, tenha
seriamente em conta a possibilidade de ser preso, processado e
condenado, especialmente se for criminoso multirreincidente.
E se isso é válido para as ações criminosas mais violentas e que
ensejam maiores riscos pessoais, com maior razão se poderá
questionar a eficácia da lei quanto a delitos menos graves, tais
como furto, aborto, porte ilegal de droga etc.
Além disso, essa doutrina não pode fundamentar o poder
punitivo nos seus pressupostos, nem limitá-lo nas suas con-
seqüências; é político criminalmente discutível e carece de
legitimação .8

Idem. Como veremos, o próprio ROXIN, na sua formulação "dialética


unificadora da pena", buscará resolver esse impasse, recorrendo à
culpabilidade, não como fundamento da pena, mas como limite da
retribuição.
Idem.
38 FUNÇÕES DO DIREITO PENAL

Apesar disso, MIR PUIG considera que quase todas as críticas


atacam a prevenção geral porque não oferece limites ao poder
punitivo do Estado, admissíveis num Estado Democrático,
isto é, critica-se a prevenção geral porque conduz a prevenção
excessivamente longe, mas não se demonstra que a prevenção
geral, dentro de certos limites, não constitua uma das possíveis
bases de justificação da pena.9
2.3 Teoria da prevenção geral — Positiva ou integradora
2.3.1 Introdução
Para os autores da prevenção positiva ou integradora, a
pena se presta não à prevenção negativa de delitos, demoven-
do potenciais infratores, nem tampouco dissuadindo aqueles
que já praticaram delito; seu propósito vai além: infundir na
consciência coletiva a necessidade de respeito a determinados
valores, exercitando a fidelidade ao direito, promovendo a
integração social finalmente.
Releva notar que a idéia de justificar a pena positivamen-
te, embora só recentemente tenha merecido maior destaque,
parece remontar a DURKHEIM. Com efeito, dizia Durkheim que
"a pena não serve, ou só serve de maneira muito secundária,
para corrigir o culpado ou intimidar seus possíveis imitadores;
desse duplo ponto de vista, sua eficácia é duvidosa e, em todo
caso, medíocre" .'° Entendia então que o delinqüente ofendia
os "estados fortes e definidos da consciência coletiva", fator
de coesão social, razão por que a pena, como reação passional
àquela ofensa perpetrada, restauraria a coesão social, manten-
do a vitalidade da consciência coletiva. A pena, enfim, seria
a restauração — simbólica — da integridade dos sentimentos

Introducción a las bases..., p. 67.


Da divisão social do trabalho, p. 81.
TEORIAS RELATIVAS 39

coletivos lesados pelo delinqüente; reação necessária à esta-


bilização social.
Outros autores," dando-lhe maior ou menor destaque, se
refeririam também a essa finalidade da pena. FERRI, por exem-
plo, tomando-a como função reflexa ou acessória, afirmava
que a pena, antes de mais nada, "imprime, radica e transmite
hereditariedade na consciência dos cidadãos o sentido do lícito
e do ilícito, não só jurídico como moral"»
No entanto, as versõesi3 mais conhecidas da teoria positiva
ou integradora no âmbito do direito penal são de HANS WELZEL
GUNTHER JAKOBS.

2.3.2 WELZEL

2.3.2.1 Exposição e análise


Para WELZEL, missão do direito penal é a proteção dos
valores elementares de consciência, de caráter ético-social, e
só por inclusão a proteção de bens jurídicos particulares.'4 A

Concebendo como função da pena, "o restabelecimento da ordem ex-


terna da sociedade", pode-se antever, também em CARRARA, uma clara
preocupação em fundamentar a pena positivamente, "mais destinada
a agir sobre os outros do que sobre o culpado" (Programa do curso de
direito criminal, § 613 et seq).
Princípios de direito criminal, p. 122.
A propósito da suposta originalidade do discurso sistêmico, ZAFFARONI
escreve: "É bastante claro que o pensamento sistêmico não diz nada que
antes não haja sido dito. O organicismo e, em verdade, entre `organicismo'
e 'sistema', a diferença não é muito clara, se é que existe" (En busca de las
penas perdidas: deslegitimación y dogmática jurídico-penal, p. 65).
Derecho penal aleman, p. 5. No mesmo sentido, CEREZO MIR: "A função
do Direito Penal consiste essencialmente no fomento do respeito aos
bens jurídicos. Para fomentar o respeito aos bens jurídicos, o Direito
Penal há de tratar de obrigar aos cidadãos em sua consciência, por seu
conteúdo valioso, de habituá-los em seu cumprimento.., e de apelar,
40 FUNÇÕES DO DIREITO PENAL

norma penal cumpre, portanto, uma importante função de for-


talecimento da consciência de permanente fidelidade jurídica,
assegurando a vigência inquebrantável dos valores éticos."
Em socorro de sua tese, WELZEL argumenta que quando a
intervenção penal se materializa já é demasiado tarde, por isso
"mais essencial que a proteção de determinados bens jurídicos
concretos é a missão de assegurar a real vigência (observância)
dos valores de ato da consciência jurídica; isso constitui o fun-
damento mais sólido que sustenta o Estado e a sociedade. A
mera proteção de bens jurídicos tem um fim policial e negativo.
Contrariamente, a missão mais profunda do Direito Penal é
de natureza ético-social de caráter positivo" .16 Por isso, antes
de evitar determinados resultados lesivos, importa assegurar
a vigência dos valores éticos. Dito mais claramente: ao crimi-
nalizar e punir o homicídio, o furto ou a bigamia pretende-se,
antes de prevenir lesões à vida, ao patrimônio, à instituição do
casamento, fortalecer o sentimento de respeito à vida, ao patri-
mônio alheio e exaltar a importância da fidelidade matrimonial.

inclusive, aos seus interesses egoísticos por meio da coação" (Curso de


derecho penal espanol, p. 17). Semelhantemente, HASSEMER, W.; MUNOZ
CONDE, F: "A vigência dos valores ético-sociais da atitude interna é con-
dição de possibilidade da proteção de bens jurídicos. Em um mundo de
diabos não poderia proteger-se os bens jurídicos por mais extrema que
fosse a coação jurídica (...). O Direito Penal tende ao fortalecimento e
garantia dos valores ético-sociais da ação, porém na busca desta meta
atua submetida a princípios, como o da legalidade e da proteção de
bens jurídicos". E mais adiante: "Função de qualquer tipo de controle
social — desde a família ao Direito, passando pela escola — é afirmar
as normas fundamentais de toda sociedade, fazendo assim possível a
convivência social. A Administração da Justiça penal não tem outra
missão que essa — naturalmente dentro de seu âmbito de competência
e com seus instrumentos específicos" (Introducción ala criminologia y
al derecho penal, p. 101-102 e 162).
Idem.
Idem, p. 3.
TEORIAS RELATIVAS 41

Exatamente por isso, WELZEL considera que mais importante


do que o desvalor do resultado é o desvalor da ação, uma vez
que "importa menos o efeito positivo atual da ação, que a per-
manente tendência positiva da ação dos cidadãos"."
WELZEL fundamenta sua tese, portanto, ontologicamente,
na conexão do direito penal com os valores elementares e
básicos da Ética Social; sistematicamente, na distinção entre
desvalor da ação e desvalor do resultado, com clara primazia
do primeiro, e político criminalmente, na maior eficácia da
função ético-social do Direito Penal acerca da função clássica
de proteção de bens jurídicos.'s
WELZEL concluirá então que "missão do direito penal é a
proteção de bens jurídicos mediante a proteção dos elementares
valores de ação ético-social".'9

2.3.2.2 Critica
1. Também aqui não parece plausível supor que o direito
penal seja capaz de fortalecer sentimentos jurídicos ou infundir
na consciência dos seus destinatários valores ético-sociais,

Conforme escreve textualmente WELZEL: "Embora em geral se reco-


nheça que a proteção de bens jurídicos é um objetivo do direito penal,
em relação à sua função ético-social, isto tem ocorrido de modo muito
limitado. Isso traduz uma sobreconcentração do resultado e num
inevitável utilitarismo do Direito Penal. Segundo essa concepção, o
justo ou o injusto de uma ação se determina conforme o grau a que
alcance seu proveito ou dano social. Isto traz como conseqüência não
só um marcado utilitarismo acerca do juízo do valor, senão também sua
acentuada atualização: o benefício ou dano atual inerentes ao resultado
de uma ação determinam o valor da ação. Com isto se desconhece que
ao Direito Penal há de importar menos o efeito positivo atual da ação,
que a permanente tendência positiva" (Op. cit., p. 3-4).
GARCIA-PABLOS DE MOLINA, A. Derecho penal, p. 44.
Op. cit., p. 5.
42 FUNÇÕES DO DIREITO PENAL

atuando pedagogicamente. Com efeito, não obstante a cri-


minalização do aborto, por exemplo, é pouco provável que a
norma penal tenha exercido influência relevante no sentido
de instaurar ou promover uma consciência ética, isto é, não
parece que a proibição normativa tenha se prestado àquele
pretendido fim de inculcar nos seus destinatários o sentimento
jurídico de respeito à vida. Ordinariamente, quem se abstém
de praticá-lo, assim o faz por motivos morais, religiosos etc.,
motivos que independem da intervenção do sistema penal.
Enfim, as pessoas cometem crimes pelas mesmas razões que
não os cometem: decisivo são sempre as motivações humanas,
permanentemente em mutação, sociais, culturais, psicológicas,
parecendo-nos que a lei penal tem um papel absolutamente
secundário, talvez irrelevante, no particular.
Naturalmente semelhante argumentação pode ser esten-
dida a outras tantas situações em que por meio da norma se pre-
tende afirmar o sentimento jurídico de respeito a determinados
valores morais. Pense-se na incriminação do favorecimento à
prostituição, no porte ilegal de drogas etc., cujas normas não
serviram, nem servem, ao fortalecimento dos valores subja-
centes à criminalização. Enfim, as mesmas objeções que se têm
dirigido à dissuasão de crimes, como fim da pena, valem para
a pretensão de apelar à norma jurídico-penal para fomentar
valores ético-sociais.
Mas ainda que a norma penal seja um meio útil à realiza-
ção de dita função, forçoso é convir que tal finalidade de modo
algum justifica a intervenção jurídico-penal. Numa palavra,
tais fins não justificam os meios. Com efeito, num Estado que
se quer democrático, que quer respeitar a dignidade da pessoa
humana, que pretende ser pluralista e maximamente tolerante
ante a diversidade, não se pode pretender que, por meio dessa
violência institucionalizada, que é o direito penal, possa o
Estado intervir na liberdade dos cidadãos. Uma tal pretensão,
TEORIAS RELATIVAS 43

enfim, de ditar uma Ética, eticizando/moralizando seus juris-


dicionados, contravém o pluralismo ideológico inerente à idéia
de democracia, sobretudo se se recorre a um castigo tão extre-
mado. Como diz SILVA SANCHEZ, finalidade das normas penais é
só a adequação da conduta externa do cidadão a suas diretrizes,
e não a assunção pessoal dos valores que expressam,2° já que
não é regulação de sentimentos, mas de comportamentos com
relevância no mundo social exterior?'
4. Além disso, semelhante perspectiva isola o direito pe-
nal, em sua função, do direito em sua totalidade, correndo
perigo de encontrar os componentes da infração na forma
preponderante da pessoa do autor, e não em sua ação,22 ou seja,
prefere-se o direito penal do autor ao direito penal do fato,
quando o correto seria perseguir que o destinatário da norma
se abstivesse simplesmente de violá-la, independentemente
de aderir intimamente ao seu comando. Ademais, pretender
fortalecimento dos sentimentos jurídicos implica confundir
instâncias distintas de controle social: a moral e a jurídica.
2.3.3 JAKOBS

2.3.3.1 Exposição e análise


JAKOBS, que se inspira na teoria dos sistemas de LUHMANN,
parte da perspectiva da funcionalidade para o sistema social,

Op. cit., p. 304. Ainda, conforme este autor, "o direito deve conformar-
se com proteger os bens jurídicos mediante um respeito neutro aos
princípios sustentados por ele, sem tratar de fomentar fenômenos de
adesão pessoal que, ademais, impliquem tal confusão de níveis. Por-
tanto, se se estima legítimo que alguma instância estatal cumpra num
Estado pluralista uma função éticosocial, tal função deverá cumprir-
se, em todo caso, num âmbito diferente da intervenção punitiva, não
condicionado" (idem).
RODRIGUES MOURULLO, G. Derecho penal, p. 22.
BAUMANN, J. Derecho penal: conceptos fundamentales y sistema, p. 10.
44 FUNÇÕES DO DIREITO PENAL

investigando seu papel a partir do controle social, isto é, a partir


do sistema de expectativas que decorre dos contatos e interações
sociais. De acordo COM JAKOBS, a norma penal é uma necessidade
funcional, isto é, uma necessidade sistêmica de estabilização
de expectativas sociais, cuja vigência deve assegurada ante às
frustrações que resultam da violação das normas. Este novo
enfoque se utiliza da concepção luhmanniana do direito como
instrumento de estabilização social, de orientação das ações e
de institucionalização das expectativas.
JAKOBS considera que os contatos e interações sociais ge-
ram expectativas as mais diversas que devem ser asseguradas
como condição de subsistência da ordem social, preservando e
estabilizando o sistema social. Essas expectativas, que podem
ser desestabilizadas frente à decepção ou conflito entre os que
participam da interação social, são norma tizadas, assegurando
a confiança e a fidelidade das interações interindividuais ou
sistêmicas. A pena deve assim proteger as condições de tal
interação, e tem, portanto, uma função preventiva.23 Para esta
perspectiva sistêmica a reação punitiva tem como função prin-
cipal restabelecer a confiança e reparar ou prevenir os efeitos
negativos que a violação da norma produz para a estabilidade
do sistema e para a integração socia1.24
As normas visam, pois, à manutenção da configuração
social básica, afirmando positivamente a expectativa de que
as instituições funcionem ordenadamente, diante do seu des-
cumprimento. Para expressá-lo com palavras deJAKoBs: a pena
é uma demonstração da vigência da norma à custa de um res-

JAKOBS, G. Derecho penal, p. 18.


BARATIA, A. Integración-prevención: una nueva fundamentación da la
pena dentro de la teoria sistémica. Revista de Derecho Penal y Crimino-
logia 29, v. VIII, 1986, p. 81.
TEORIAS RELATIVAS 45

ponsáve1,25 cuja função é afirmar positivamente a sua validade


de modo que é "a estabilização da norma lesionada",26 como
"réplica que tem lugar frente ao questionamento da norma" ,27
atuando contrafaticamente.
Por conseguinte, a pena não se presta à prevenção geral nem
especial, nem tampouco à proteção de bens jurídicos, mesmo
porque, como assinala JAKoBs, "destinatários da norma não são
primariamente algumas pessoas enquanto autoras potenciais,
senão todos, vez que ninguém pode passar sem interações so-
ciais e dado que por isso todos devem saber o que delas podem
esperar" .28 Antes, a pena é concebida positivamente, tendo
por finalidade a manutenção da norma enquanto modelo de
orientação de condutas para os contatos sociais.29
E não lhe compete a proteção de bens jurídicos, mas a
proteção de funções sistêmicas3° porque fim do direito penal
é a prevenção geral positiva mediante o exercício do reconhe-
cimento da norma.3'
Sintetizando: o delito é uma ameaça à integridade e à esta-
bilidade social por constituir a expressão simbãica -daTárta-de
fidelidade ao direito. Esta expressão faz estremecer a confiança
institficional e a pena é, por sua vez, uma expressão simbólica
oposta à representada pelo crime.32

JAKOBS, G. Op. cit., p. 9.


Idem.
Idem, p. 14.
Idem, p. 18.
Idem, ibidem.
Sobre a semelhança desta concepção com a de WELZEL, HASSEMER, W;
MuNoz CONDE, E Op. cit., p.102-103.
JAKOBS, G. Op. cit., p. 18.
BARATTA, A. Op. cit., p. 81.
46 FUNÇÕES DO DIREITO PENAL

2.3.3.2 Direito penal do cidadão versus direito penal do


inimigo
Recentemente jAKOBS passou a defender, ao lado do direito
penal do cidadão, um direito penal do inimigo, modelos políti-
co-criminais cujas notas distintivas residem especialmente no
seguinte: a) o inimigo não é pessoa, mas inimigo (não-pessoa),
logo a relação que com ele se estabelece não é de direito, mas de
coação, de guerra; b) o direito penal do cidadão tem por finali-
dade manter a vigência da norma; o direito penal do inimigo,
combate de perigos; c) o direito penal do cidadão reage por
meio de penas; o direito penal do inimigo por meio de medidas
de segurança; d) o direito penal do cidadão trabalha com um
direito penal do fato; o direito penal inimigo, com um direito
penal do autor; e) por isso, o direito penal do cidadão pune fa-
tos criminosos; o direito penal do inimigo, a periculosidade do
agente; O o direito penal do cidadão é essencialmente repressivo,
direito penal do inimigo, essencialmente preventivo; g) por
essa razão, o direito penal do cidadão deve se ocupar, como
regra, de condutas consumadas ou tentadas (direito penal do
dano), ao passo que o direito penal do inimigo deve antecipar
a tutela penal, para punir atos preparatórios (direito penal do
perigo); h) o direito penal do cidadão é um direito de garantias;
direito penal do inimigo, um direito antigarantista.
E assim há de ser porque, de acordo COM jAKOBS, aquele que
não oferece um mínimo de segurança cognitiva em seu comporta-
mento pessoal, não só não pode esperar ser tratado como pessoa,
como também "o Estado não deve tratá-lo como pessoa, já que
contrário violaria o direito à segurança das demais pessoas, os
cidadãos".33 Com efeito, quem por principio se conduz de modo
desviado e não oferece garantia de um comportamento pessoal

33. Derecho penal dei enemigo, p. 47.


TEORIAS RELATIVAS 47

(v.g., aqueles que tomam parte em terrorismo e criminalidade


organizada), não pode, conseqüentemente, ser tratado como
cidadão, devendo ser combatido como inimigo; e esta guerra
tem lugar em nome, e para preservar, o legítimo direito penal
dos cidadãos, que têm direito à segurança.34

2.3.3.3 Critica
Muitas são as semelhanças entre essa teoria e as teorias
absolutas da pena, razão pela qual parte do que foi dito sobre
elas vale para estas; semelhança, aliás, reconhecida pelo próprio
JAKOBS, ao afirmar que "em Hegel, a teoria absoluta recebe uma
configuração que em pouco se diferencia da prevenção geral
aqui representada".35 Em ambos a pena é concebida lógica e
dialeticamente, significando a restauração positiva da validade
da norma. Daí dizerem alguns autores que se trata de uma teoria
neo-retributiva.36
1. Inicialmente, cumpre notar que tal teoria nada diz sobre
o porquê da estabilização da norma vez que, à semelhança
das teorias absolutas, pressupõe a necessidade mesma de
estabilizá-la. Mas, a se admitir que estabilizar a norma seja o
mais importante, poder-se-á questionar a necessidade da pena
como opção para realização desse fim, porque, sendo o direito
penal parte da tática política (FoucAuu), não se compreende
como não se possa atingir tal propósito por outros meios de
estabilização que não a pena, como o direito civil, o direito do
trabalho, direito administrativo ou intervenções sociais não
penais. Enfim, o Estado, como titular do jus puniendi, pode
se valer de outros "equivalentes funcionais", que não a pena,
podendo inclusive renunciar à intervenção jurídico-penal, por

Idem, p. 56-57.
JAKOBS, G. Op. cit., p. 22-23.
Assim, ARTHUR KAUFMANN, MUNOZ CONDE, entre 01.H.TOS.
48 FUNÇÕES DO DIREITO PENAL

ser uma resposta funcional subsidiária.37 Resulta, assim, que a


importância atribuída à pena dentro da teoria sistêmica parece
equivaler à importância mesma do direito.38
2. Forçoso reconhecer também que não se trata de uma
perspectiva instrumental, mas simbólica,39 pois o direito já
não serve primordialmente ao homem, que se reduz a um sub-
sistema físico-psíquico, mas ao sistema. O decisivo é o sistema
em que ele se situa; é estabilizá-lo, razão pela qual o direito já
não se presta à solução de conflitos, nem à proteção de bens
jurídicos.
Como assinala ZAFFARONI, o discurso jurídico-penal tribu-
tário da sociologia sistêmica se afasta do homem, perdendo
todos os limites e garantias liberais, abrindo-se a possibilidade
de punir ações meramente imorais que não lesionam ninguém,
emprestando relevância e primazia aos dados subjetivos de
ânimo e a sustentar um critério de pena puramente utilitário
ou instrumental para o sistema .4°
Daí se dizer que é uma descrição asséptica e tecnocrata do
modo de funcionamento do sistema, porém não uma valoração
e muito menos uma crítica ao sistema» Como observa BARATTA,
a teoria sistêmica conduz a uma concepção preventiva inte-
gradora em que o centro de gravidade de norma jurídica penal
passa da subjetividade do indivíduo e do mundo axiológico, dos

Como o reconhece o próprio JAKOBS: "o princípio de subsidiariedade


constitui a variante penal do princípio constitucional da proporciona-
lidade, em virtude do qual não está permitida a intervenção penal se
o efeito se pode alcançar mediante outras medidas menos drásticas."
Op. cit., p. 61.
Nesse sentido, BARATTA, A. Op. cit., p. 92.
Nesse sentido, ZUGALDIA ESPINAR, J. M. Op. cit.
Op. cit., p. 66.
MuNoz CONDE, E Derecho penal y control social, p. 26.
TEORIAS RELATIVAS 49

valores, ao sistema e às expectativas institucionais, elidindo


qualquer reflexão crítica alheia à funcionalidade do castigo
para o sistema.42 Neste modelo tecnocrático, não se resolve
conflitos sociais — o problema do crime — senão que os integra
no sistema, os reduz, intervindo onde e quando aqueles se
exteriorizam (sintomatologicamente) não onde e quando são
gerados (etiologicamente).43
Além disso, tende claramente para o totalitarismo, pois,
em sua rigorosa visão norma tivista e antinaturalista que desen-
volve os conceitos da dogmática penal, perdem-se os referen-
ciais extrajurídicos de delimitação da resposta pena1,44 já que
o fundamental não é o homem, mas o sistema. Como observa
FERRAJOLI, ao reduzir o indivíduo a um "subsistema físico-psí-
quico", funcionalmente subordinado às exigências do sistema
social geral, esta teoria se aproxima inevitavelmente de mode-
los de direito penal máximo e ilimitado, programaticamente
indiferentes à tutela da pessoa humana.45
Explica-se, por outro lado, a pena e sua necessidade, sis-
temicamente, isto é, a intervenção jurídico-penal se justifica,
não pelo que representa ou pode representar para o homem,
mas pelo que representa para o sistema social. Entretanto,
busca-se, apesar disso, a manutenção da configuração social
básica não por meio de modificações estruturais ou sistêmi-
cas, como pareceria mais coerente, mas por meio de reações
individualizadas, localizadas, conseqüenciais. Ou, como diz
BARATTA, o indivíduo, embora transformado em portador da
resposta penal simbólica, permanece, entretanto, excluído do

BARATTA, A. Op. cit.


Idem.
BARATTA, A. Op. cit., p. 88.
Derecho y razón: teoria dei garantismo penal, p. 275.
50 FUNÇÕES DO DIREITO PENAL

conflito, de sua condição de destinatário e fim de uma política


de autêntica reinserção social."
Cumpre ressaltar ainda, com BARATTA, que é um deter-
minado nível de visibilidade social da desviação, de alarma
social, e não as "cifras ocultas" da delinqüência, que provoca
uma resposta penal baseada na teoria da prevenção positiva.
Esta, por conseguinte, legitima o princípio da seletividade do
sistema e dos processos de imunização da resposta penal, que
dependem estreitamente do grau de visibilidade social dos
conflitos de desviação existentes numa sociedade»
Quanto ao direito penal do inimigo, que parece colocar o
homem numa condição inferior à de plantas e animais, os quais
têm proteção legal," diferentemente deste, que passa a ser trata-
do como não pessoa e não, pois, sujeito de direito, mas simples
objeto do direito. Razão assiste a MuNoz CONDE quando assinala
que "os direitos e garantias fundamentais próprias do Estado de
Direito, sobretudo as de caráter penal material (princípios de
legalidade, intervenção mínima e culpabilidade) e processual
penal (direito à presunção de inocência, à tutela jurisdicional,
a não depor contra si mesmo etc.), são pressupostos irrenun-
ciáveis da própria essência do Estado de Direito. Se se admite
sua derrogação, ainda que seja em casos pontuais extremos e
mui graves, tem-se que admitir também o desmantelamento
do Estado de Direito, cujo Ordenamento jurídico se converte
em um ordenamento puramente tecnocrático e funcional, sem
nenhuma referência a um sistema de valores, ou, o que é pior,
referido a qualquer sistema, ainda que seja injusto, sempre
que seus defensores tenham o poder ou a força suficiente para
impô-lo. O Direito assim entendido se converte em um puro

BARArrA, A. Op. cit., p. 96.


Op. cit., p. 95.
FõPPEL, Gamil. Organizações criminosas, p. 5.
TEORIAS RELATIVAS 51

Direito de Estado, em que o direito se submete aos interesses


que em cada momento determinem o Estado ou às forças que
controlem ou monopolizem seu poder. O Direito é então, sim-
plesmente, o que em cada momento convém ao Estado, que é,
ao mesmo tempo, o que prejudica e faz o maior dano possível
a seus inimigos" .49
Parece também evidente que direito penal do cidadão é
um pleonasmo e direito penal do inimigo uma contradição
em seus termos.5°
2.4 Função simbólica ou retórica da pena
Em oposição às funções instrumentais do direito penal
— prevenção geral/especial —, e com freqüência inspirada nas
teorias da prevenção geral positiva, alguns autores falam de
função simbólica ou retórica, por cujo meio não se pretende a
resolução de um dado conflito de interesse propriamente, mas
produzir na opinião pública uma impressão tranqüilizadora
de um legislador atento e decidido.5' Vale dizer, por meio da
edição e aplicação das normas penais, objetivar-se-ia criar uma
impressão de segurança jurídica — abalada pela ocorrência
de certas infrações, em geral, delitos que provocam comoção
social em razão do extraordinário grau de perversão de que se
revestem —, de modo a restaurar a confiança no direito e nas
instituições penais.
Não infreqüentemente o Estado apela ao direito penal
para transmitir a impressão tranqüilizadora de que fala SÍLVÁ
SÁNCHEZ. No Brasil, há exemplos vários da utilização deste

De nuevo sobre el "derecho penal dei enemigo". Novos rumos do direito


penal contemporâneo, p. 76.
CANCIO MEUÁ, Manuel. Derecho Penal dei inimigo, cit.
SILVA SÁNCHEZ, J. M. Aproximación ai derecho penal contemporaneo, p.
305.
52 FUNÇÕES DO DIREITO PENAL

expediente, como a promulgação da lei de crimes hediondos


(Lei 8.072/1990), que aumentou sensivelmente as penas dos
crimes nela previstos, além de agravar a situação processual
dos que tenham praticado quaisquer daquelas infrações. Não
é raro ainda a decretação de prisões provisórias em razão do
alarma/comoção social provocados pelo delito cometido, em-
bora nada disso autorize, constitucionalmente, a adoção dessa
providência cautelar/processual, sob pena de a prisão provisória
converter-se em pena antecipada, confundindo processo de
conhecimento com processo de execução.
É certo que as normas penais — simbólicas ou não — cos-
tumam, ao menos imediatamente à sua publicação, criar real-
mente uma certa impressão tranqüilizadora. Entretanto, uma
teoria da pena que anteponha funções latentes às manifestas,
de proteção de bens jurídicos, parece contrariar o sentido e fins
do direito e processual penal. Isto porque, conforme adverte
GARCIA-PABLOS, um direito penal simbólico carece de toda legi-
timidade pois manipula o medo ao delito e à insegurança, reage
com um rigor desnecessário e desproporcionado e se preocupa
exclusivamente com certos delitos e infratores, introduz um
sem fim de disposições excepcionais, a despeito de sua ineficá-
cia ou impossível cumprimento e, a médio prazo, desacredita
o próprio ordenamento, minando o poder intimidatório de
suas prescrições»
2.5 Prevenção especial (ou individual)
2.5.1 Exposição e análise
Para as teorias da prevenção especial, a intervenção jurídico-
penal deve se contentar em evitar que os condenados voltem a

52. Op. cit., p. 51. No mesmo sentido, SILVA SÁNCHEZ, J. M., e ZUGALDIA
ESPINAR, J. M., nas obras citadas.
TEORIAS RELATIVAS 53

delinqüir, impedindo a reincidência, de modo que fim da pena é


evitara reincidência, por meio da ressocialização ou reintegra-
ção social do apenado. Portanto, as normas penais já não têm
como destinatários toda a comunidade, mas os delinqüentes.
Finalidade do direito penal é, enfim, como dizia BASILEU GARCIA,
a conversão do criminoso em homem de bem.53
Diversas correntes de pensamento advogaram ou ainda
advogam essa forma de justificação do direito de punir: o cor-
recionalismo espanhol (DORADO MONTERO, CONCEPCIÓN ARENAL);
O positivismo italiano (FERRI, LomsRoso); a chamada moderna
escola alemã, de VON LISZT, e, mais recentemente, o movimento
de defesa social, de FILIPPO GRAMATICA, MARC ANCEL e outros.
Em sua versão mais radical, a teoria da prevenção especial
pretende a substituição da justiça penal por uma "medicina
social", cuja missão é o saneamento social, seja pela aplicação
de medidas terapêuticas, visando ao tratamento do delinqüente,
tornando-o, por assim dizer, dócil, seja pela sua segregação,
provisória ou definitiva, seja, ainda, submetendo-o a um trata-
mento ressocializador que anule as tendências criminosas.
Representante dessa tendência foi PEDRO DORADO MONTERO,"
com seu direito protetor dos criminosos, que defendia, como
missão da administração da justiça penal, o "saneamento social,
uma função de higienização e profilaxia", razão pela qual os
atuais juízes, ao invés de julgarem conflitos de interesse, passa-
riam a ser "novos médicos sociais", a fim de promover e dirigir
o tratamento mais adequado à situação de cada delinqüente:
"O juiz severo, adusto e temível" , profetizou DORADO MONTERO,
"deve desaparecer para passar o posto ao médico carinhoso e

GARCIA, Basileu. Instituições de direito penal, p. 72.


Atribui-se a CARLOS DAVID AUGUSTO ROEDER o germe do correcionalismo
espanhol (assim, BASILEU GARCIA, idem).
54 FUNÇÕES DO DIREITO PENAL

entendido" .55 O processo penal deveria, portanto, dar lugar


administração unilateral de tais interesses pelo Estado, uma
vez que, para a implantação desse novo sistema, cumpria "su-
primir todo o aparato de juízes, magistrados, tribunais hierár-
quicos, ministério público, advogados defensores etc." ,56 o que
implicaria a abolição das atuais garantias do processo penal:
contraditório, ampla defesa, licitude da prova etc.
Outro postulado daí resultante é a indeterminação da pena
ou das medidas de segurança enquanto durasse a necessidade
do tratamento. A FERRI, por exemplo, autor de um ambicioso
sistema de substitutivos penais, pareceu que "a experiência se-
cular tem demonstrado o absurdo teórico e a deficiência prática
da pena em medida fixa, que é conseqüência lógica do conceito
de retribuição da culpa, mediante um castigo proporcionado" ,57
motivo pelo qual a defesa social contra a criminalidade deveria
se realizar "ou com o seqüestro indefinido dos delinqüentes
não readaptáveis à vida livre ou com a reeducação para a vida
social dos delinqüentes readaptáveis" .58
Mas coube especialmente a FRANZ VON LISZT universalizar
a teoria da prevenção especia1.59 Para VON LISZT, a finalidade

Bases de un nuevo derecho penal, p. 66.


Idem, p. 94.
Princípios de direito criminal, p. 311.
Idem, p. 313.
Segundo JEscxEcx, "a sorte das teorias penais da prevenção especial da
época do Direito Territorial Geral prussiano parecia decidida há largo
tempo atrás, quando Franz v. Liszt (1851-1919), fundou, quase cem
anos depois, uma nova doutrina da prevenção especial, que teve res-
sonância internacional como modelo ideal e produziu uma profunda
transformação do sistema de sanções no Direito alemão. V. Liszt voltou
a situar o Direito penal em conexão com uma política inspirada em
critérios racionais e em que 'idéia do fim' deveria ser a verdadeira base
do progresso jurídico" (Op. cit., p. 64).
TEORIAS RELATIVAS 55

da pena e medidas de segurança era prevenir de modo eficaz a


prática de futuros delitos, conforme as peculiaridades de cada
infrator. Assim, finalidade da pena, para os delinqüentes oca-
sionais, que não precisam de correção, é a advertência (função
de advertência ou de intimidação); para os que precisam de
correção, é ressocializá-lo com a educação durante a execução
penal (função ressocializadora); para o delinqüente incorrigí-
vel ou habitual, é torná-lo inócuo por tempo indeterminado
(função de "inocuização"), enquanto durasse a necessidade
"inocuizadora". Para VON LISZT, função do direito penal era,
portanto, a proteção de bens jurídicos por meio da incidência
da pena sobre a personalidade do delinqüente com a finalidade
de evitar futuros delitos.60
As reformulações mais recentes dessa ideologia do tra-
tamento, embora superando os exageros de sua concepção
original, mantêm-se fiéis à tradição no essencial: proteger a
sociedade contra os criminosos por meio do tratamento durante
a execução penal. Nesse sentido, MARC ANCEL — sem pretender,
como GRAMATICA, substituir o conceito de delito por anti-so-
cialidade, ou o de culpabilidade pelo de periculosidade, nem
as penas por medidas ressocializadoras —, para quem, a função
de proteção da sociedade, "a Defesa Social tenciona realizá-la
graças sobretudo a um conjunto de medidas extra-penais; na
acepção exata da palavra, destinadas a neutralizar o delinqüen-
te, seja pela 'eliminação', seja pela segregação, seja através da
aplicação de métodos curativos ou educativos; reencontramos
aqui as relações evidentes entre as idéias da defesa social e noção
de periculosidade" .61
A influência dessa teoria nas legislações contemporâneas
é conhecida. Assim, por exemplo, a Constituição espanhola

MIR PUIG, S. Op. cit., p. 70.


A nova defesa social, p. 18.
56 FUNÇÕES DO DIREITO PENAL

declara expressamente que "as penas privativas de liberdade


e as medidas de segurança estão orientadas para a ressociali-
zação e reinserção social" (art. 25, 2). Também a nossa Lei de
Execução Penal (Lei 7.210/1984, art. 1.°) declara, já no seu
primeiro artigo, que a "execução penal tem por objetivo efetivar
as disposições da sentença ou decisão criminal e proporcionar
condições para a harmônica integração social do condenado
e do internado".
2.5.2 Critica
A primeira observação a ser feita diz respeito aos limites
teóricos da prevenção especial. Com efeito, ela pressupõe a
existência de normas penais vigentes e, mais ainda, a infração
dessas normas por alguém em particular. Por conseguinte, a
prevenção especial não pode operar, como a geral, no momen-
to da cominação penal, mas só na execução da pena.62 Nada
diz, portanto, sobre os limites da atuação estatal ou sobre os
critérios e razões político-criminais que hão de orientar a
intervenção jurídico-penal neste campo, omitindo-se sobre o
conteúdo do poder punitivo. Responde à só indagação sobre o
destino a ser dado aos que já tenham delinqüido. Por isso, não
é propriamente uma teoria do direito penal, mas uma teoria
da execução penal.
Viola o princípio do fato (direito penal do fato), visto que,
ao pretender privilegiar, em nome da periculosidade do infra-
tor, o tratamento criminal, em detrimento do comportamento
delituoso praticado, necessariamente conduzirá a soluções as
mais díspares e injustas, porquanto, independentemente da
danosidade ou gravidade do fato cometido, a pena ou a medida
de segurança poderá ser mais longa para os "mais perigosos" e

62. Mi R PUIG, S. Introducción a las bases..., p. 68.


TEORIAS RELATIVAS 57

mais curta para os "menos perigosos" (direito penal do autor).


Assim, por exemplo, o autor de furtos (reincidente), embora
de pouca importância social, poderia ser submetido a uma
longa medida de segurança (ou pena), por ser considerado
como perigoso, ao passo que um homicida ocasional poderia
sofrer uma pena mínima ou pena alguma, em face de sua não-
perigosidade. Afinal, para essa teoria, o fundamental não é o
fato em si, mas o seu autor. É evidente também que legitima
a arbitrária seletividade do sistema penal, pois em geral os
chamados criminosos do colarinho branco não necessitam de
ressocialização, especialmente criminosos do poder.
Assim também não se justificaria a pena para todos
aqueles que, depois de longo período de tempo, tenham se
reintegrado à vida social, não mais precisando de qualquer
tratamento ressocializador ou de qualquer outra natureza (por
exemplo, a punição dos criminosos nazistas, ainda perseguidos
em toda parte do mundo, a despeito de passados mais de 50
anos da Segunda Guerra Mundial). Enfim, a prevenção especial
é uma explicação apenas parcial para um problema de maior
complexidade.
Viola-se, ainda, o princípio da isonomia, pois, a partir
do momento em que o infrator passar a responder, não pro-
priamente pelo que fez, mas pelo que é, interpretando-se a sua
personalidade como indicativa de periculosidade, será tratado
desigualmente e, com base em juízos de valor freqüentemente
arbitrários, mesmo porque se tomará em consideração um fato
determinado da vida do infrator, e não a vida em sua história
e complexidade; afinal, importa a verdade processual, e não a
verdade existencial.
Sabido, ainda, que o crime decorre menos de inclinações
pessoais, do que dos condicionamentos sociais e das oportuni-
dades de acesso aos bens e ao poder, ou seja, que o indivíduo
58 FUNÇÕES DO DIREITO PENAL

está inserido uma sociedade criminógena, cuja estrutura con-


diciona e cria tanto os comportamentos desviados como os não
desviados — ou seja, o comportamento delituoso é socialmente
"normal" e o delinqüente é uma "agente regular" da vida social
(DuRKHEIm) —, pouco sentido faz buscar não a modificação das
estruturas do sistema social, mas a modificação dos esquemas
de valores das pessoas individualmente/isoladamente consi-
deradas.
Por outro lado, se não é lícito ao Estado pretender, por
meio da pena — forma institucionalizada de violência — morali-
zar seus jurisdicionados, tampouco é admissivel que pretenda
ressocializá-los coercitivamente. Como afirma FERRAJOLL o
Estado, que não tem o direito de forçar os cidadãos a não serem
malvados, senão só impedir que se danem entre si, tampouco
tem o direito de alterar — reeducar, redimir, recuperar, ressocia-
lizar ou outras idéias semelhantes — a personalidade dos réus.
E o cidadão, se bem que tem o dever jurídico de não cometer
fatos delitivos, tem o direito de ser interiormente malvado e de
seguir sendo o que é. As penas, conseguintemente, não devem
perseguir fins pedagógicos ou correcionais, senão que devem
consistir em sanções taxativamente predeterminadas e não
agraváveis com tratamentos diferenciados e personalizados
do tipo ético ou terapêutico.63
É de convir-se, ainda, que, ao supor uma concepção do po-
der punitivo como um bem metajurídico — o Estado pedagogo
ou terapeuta — e simetricamente do delito como um mal moral
ou enfermidade natural ou social, tais doutrinas se revelam as
mais antiliberais e antigarantistas, a justificar modelos de direito
penal máximo e tendencialmente ilimitado.64

Derecho y razón, p. 223-224.


FERRAJOLI, idem, p. 270.
TEORIAS RELATIVAS 59

8. Finalmente, educar para a liberdade em condições de


não-liberdade é, como afirma MuNoz CONDE, não só de difícil
realização, senão que constitui também uma utopia irrealizá-
vel nas atuais condições de vida nas prisões,65 que na prática
não são senão escolas de especialização no crime, que não
ressocializam, mas dessocializam, que não civilizam, antes
embrutecem, que não moralizam, e sim corrompem. A isso se
deve acrescentar que, ao menos no Brasil, freqüentemente a
privação da liberdade nos presídios não constitui um obstáculo
sério à gestão das ilegalidades e crimes fora da prisão por quem
nela se encontra cumprindo pena.

65. Derecho penal y control social, p. 124.


3
TEORIAS UNITÁRIAS

SUMÁRIO: 3.1 Introdução —3.2 A teoria dialética unificadora


de Claus Roxin: 3.2.1 Exposição e análise —3.3 0 garantismo
de Luigi Ferrajoli: o direito penal mínimo: 3.3.1 Exposição
e análise; 3.3.2 O modelo de direito penal mínimo e garan-
tista; 3.3.3 Crítica — 3.4 Função da pena na legislação penal
brasileira.

3.1 Introdução
São unitárias (ou mistas ou ecléticas) todas as teorias que
pretendem superar as antinomias entre as diversas formulações
teóricas apresentadas, buscando combiná-las ou unificá-las
ordenadamente.' Pretendem, enfim, sem compromisso com
a pureza ou monismo de modelos, característicos das teorias
absolutas e relativas, explicar o fenômeno punitivo em toda a
sua complexidade.2
As teorias unitárias intentam, assim, conforme observa
JESCHECK, mediar entre as teorias absolutas e relativas, não,

Para ROXIN, as teorias monistas, quer atendam à culpa, quer à preven-


ção geral, quer à especial, são necessariamente falsas, porque, quando
se trata da relação do particular com a comunidade e com o Estado, a
realização estrita de um princípio ordenador tem forçosamente como
conseqüência a arbitrariedade e a falta de verdade. Problemas funda-
mentais de direito penal, p. 43.
Como afirma GARCIA-PABLOS DE MOLINA, metodologicamente, quem
propugna por esta solução — ou tese semelhante — procura ressaltar os
graves inconvenientes dos "monismos" e da denominada "pureza de
modelos". Derecho penal, p. 105.
TEORIAS UNITÁRIAS 61

naturalmente, somando sem mais suas contraditórias idéias


básicas, mas mediante a reflexão prática de que a pena, na rea-
lidade de sua aplicação, pode desenvolver a totalidade de suas
funções frente à pessoa afetada e seu mundo circundante, de
maneira que o importante é conseguir uma relação equilibrada
entre todos os fins da pena (método dialético) ,3 servindo assim
de ponte entre umas e outras.4
Para essas teorias, a justificação da pena depende da justiça
de seus preceitos e da sua necessidade para a preservação das
condições essenciais da vida em sociedade (proteção de bens
jurídicos). Busca-se, assim, unir justiça e utilidade, razão
pela qual a pena somente será legítima na medida em que for
a um tempo justa e úti1.5 Por conseguinte, a pena, ainda que
justa, não será legítima, se for desnecessária (inútil), tanto
quanto se, embora necessária (útil), não for justa. Semelhante
perspectiva se caracteriza, por conseguinte, por um conceito
pluridimensional da pena que, apesar de orientada pela idéia
de retribuição, a ela não se limita.6
Significa dizer que a pena é conceitualmente uma retri-
buição jurídica, mas retribuição que somente se justifica se e
quando necessária à proteção da sociedade, vale dizer, é uma
retribuição a serviço da prevenção geral e/ou especial de fu-
turos delitos. A retribuição há de ser, nesse sentido, o limite
máximo da prevenção,7 de sorte a coibir os possíveis excessos
de uma política criminal orientada exclusivamente pela idéia
da prevenção.

Tratado de derecho penal, p. 66.


BAUMANN, J. Derecho penal: conceptos fundamentales y sistema,
p.1.415.
BACIGALUPO, E. Derecho penal, p. 53.
JESCHECK, H. H. Op. cit., p. 67.
Mm PUIG, S. Idem, p. 72.
62 FUNÇÕES DO DIREITO PENAL

Sob a rubrica de unitárias se reúnem, todavia, formulações


das mais diversas tendências e matizes, mais ou menos conser-
vadoras, mais ou menos liberais, segundo a importância que
se dá a uma ou outra função da pena ou segundo considere,
mais ou menos criticamente, as tarefas do direito penal. Em
geral, tem-se como conservadoras as que vêem a retribuição
como fundamento da pena — de que seria exemplo o Projeto
de Código Penal Alemão de 1962 (projeto oficial) —, uma vez
que conferem a prevenção um papel complementário,8 dentro
do marco da retribuição. E como progressistas, as que vêem a
retribuição ou, mais exatamente, a culpabilidade, não como
fundamento, mas como limite da pena. Assim, o Projeto de
Código Penal Alternativo Alemão de 1966 (Alternativentwwf),
que refere expressamente que as penas e medidas de segurança
destinam-se à proteção de bens jurídicos e à reintegração do
agente na comunidade jurídica. A pena, portanto, segundo esse
projeto, decorre da necessidade social, pois não é, conforme
seus termos, um sucesso metafísico, mas uma amarga neces-
sidade de uma sociedade de seres imperfeitos.
Dentre as diversas e atuais concepções unitárias da pena,
merecem especial referência as teorias de CLAUS ROX1N e LUIGI
FERRAJOLla seguir expostas.
3.2 A teoria dialética unificadora de Claus Roxin
3.2.1 Exposição e anãlise
Para RoxiN,9 cuja formulação privilegia a prevenção geral,
em que pese fundir numa só teoria tendências as mais diversas,
a análise das funções do Direito Penal deve ter em consideração

Idem, ibidem.
Sobre o assunto, ver GAMIL FõPPEL, A função da pena na visão de Claus
Roxin. Rio de Janeiro: Forense, 2004.
TEORIAS UNITÁRIAS 63

três momentos que, embora distintos, se integram e se com-


plementam, cada um reclamando uma justificação particular,
a saber: a ameaça (cominação), a imposição (aplicação) e a exe-
cução da pena. Com adotar semelhante perspectiva, pretende
ROXIN acentuar o caráter antitético dos diversos pontos de vista
e procura reuni-los numa síntese, visto que "uma teoria da
pena que não pretenda manter-se na abstração ou em propostas
isoladas, mas que tenha que corresponder à realidade, tem de
reconhecer' estas antíteses inerentes a toda existência social
para, de acordo com o princípio dialético, poder superá-las
numa fase posterior".10
Na primeira fase de manifestação do jus puniendi — a comi-
nação da sanção penal—, entende ROXIN que, para se saber dos
fins do Direito Penal, cumpre ter em conta, em primeiro lugar,
o papel que é atribuído ao Estado, como titular do direito de
punir, razão pela qual, na vigência do Estado de Direito, em
que todo poder emana do povo, já não se pode ver a sua função
na realização de fins divinos ou transcendentais de qualquer
outro tipo. Também por isso, e especialmente por participar
cada indivíduo do poder estatal com igualdade de direitos, se-
melhante função não pode consistir em corrigir moralmente o
indivíduo. Para ROXIN, o papel do Estado — que determinará, por
sua vez, a função do direito penal — é "criar e garantir a um gru-
po reunido, interior e externamente, no Estado, as condições
de uma existência que satisfaça as suas necessidades vitais"."
Definindo, assim, o conteúdo e limites do direito penal, a
partir da conformação política que se assinale ao Estado, ROXIN
conclui: 1) que o direito penal é de natureza subsidiária, ou seja,
somente se podem punir as lesões de bens jurídicos e as contra-
venções contra fins de assistência social, se tal for indispensável

Problemas fundamentais de direito penal, p. 45.


ROXIN, C. Op. cit., p. 27.
64 FUNÇÕES DO DIREITO PENAL

para uma vida em comum ordenada, pois quando bastem os


meios do direito civil ou do direito público, o direito penal deve
se retirar. E que, para a pessoa atingida, cada pena significa um
dano aos seus bens jurídicos cujos efeitos atingem, não raro, o
extermínio da sua existência ou, em qualquer caso, restringem
fortemente a sua liberdade pessoal. Conseqüentemente, e por
ser a reação mais forte da comunidade, somente se pode recorrer
a ela em último lugar. Assim, pois, o bem jurídico recebe uma
dupla proteção: através e ante o direito penal;12 2) que o direito
penal não pode se ocupar de condutas meramente imorais ou
não lesivas de bem jurídico (princípio da ofensividade).
Fim das normas penais é, assim, neste primeiro momento,
a proteção subsidiária de bens jurídicos, normas que somente
se justificam quando e enquanto a isso se prestem. Ou seja,
função das disposições penais é a prevenção geral subsidiária
de comportamentos ofensivos de tais interesses, cuja proteção
o direito penal deve assegurar.
Já por ocasião da individualização judicial da pena, por meio
da sentença penal condenatória, missão da pena permanece
sendo primariamente a prevenção geral, pela confirmação da
ameaça da pena. Essa, aliás, e não a prevenção especial, é a
única razão que pode justificar, por exemplo, segundo ROXIN,
a punição de assassinos nacional-socialistas depois de longo
tempo, embora não sejam mais perigosos. No entanto, dife-
rentemente de FEUERBACH, a prevenção geral, para ROXIN, não
se exaure na mera intimidação ou atemorização das pessoas
— prevenção negativa, apenas —, vez que compete ao direito
penal também fortalecer a consciência jurídica da generalidade
dos seus destinatários.'3

Idem, p. 28.
Idem, p. 33-45.
TEORIAS UNITÁRIAS 65

A despeito de prestigiar a prevenção geral, a um tempo ne-


gativa e positiva, ROXIN vê na aplicação da pena também um fim
de prevenção especial como uma finalidade última de prevenção
geral, porquanto "certamente não se pode desconhecer que, na
maioria dos casos de aplicação da pena, se inclui também um
elemento de prevenção especial que intimidará o delinqüente
face a uma possível reincidência e manterá a sociedade segura
deste, pelo menos durante o cumprimento da pena" .i4
Ademais, quanto à máxima kantiana segundo a qual tomar
em consideração questões de prevenção geral para impor uma
pena a alguém significaria instrumentalizá-lo ou coisificá-lo,
argumenta que a aplicação da pena estará justificada se conse-
guir harmonizar a sua necessidade para a comunidade jurídica
com a autonomia da personalidade do delinqüente, que o di-
reito tem de garantir, devendo, portanto, o infrator da norma
ser julgado segundo a medida de sua pessoa, e não segundo a
sua mera utilidade para os fins de outros.i5
Daí recorrer ROXIN à culpabilidade, não para fundamentar a
pena, mas para evitar possíveis excessos que poderiam resultar
da prevenção geral, passando aquela a funcionar como limite
desta, não podendo a pena ultrapassar a medida da culpa. Para
dizê-lo com suas palavras: "fim de prevenção geral da puni-
ção apenas se pode conseguir na culpa individual, pois se vai
além, e portanto se pretende que o autor expie as tendências
criminosas de outros, atenta-se realmente contra a dignidade
humana.' A culpa serve, assim, à limitação do jus puniendi,
razão pela qual não se poderia, em nome da prevenção geral ou
especial, pretender transformar, por exemplo, mediante vários

Idem, p. 33-34.
Idem, p. 34-35.
Idem, p. 35 et seq.
66 FUNÇÕES DO DIREITO PENAL

anos de trabalho reeducativo, um mendigo notório num dili-


gente guarda-livros, pois o escasso conteúdo da culpa proíbe
o direito penal de levar a cabo tal tarefa.17
ROXIN concluirá então que a aplicação da pena serve para a
proteção subsidiária e preventiva, tanto geral como individual,
de bens jurídicos e de prestações estatais, por meio de um pro-
cesso que salvaguarde a autonomia da personalidade e que, ao
impor a pena, esteja limitado pela medida da culpa.18
Finalmente, o terceiro estágio de realização do direito
penal: a execução da pena. Nela, a pena, sem prejuízo da
prevenção geral, visa à reintegração do delinqüente na comu-
nidade, à sua ressocialização. ROX1N adverte, porém, que, em
respeito à garantia constitucional da autonomia da pessoa, é
proibido um tratamento coercitivo que interfira com a estru-
tura da personalidade, mesmo que de eficácia ressocializante,
razão por que seria inadmissível, por exemplo, a castração
de delinqüentes sexuais, como também a operação cerebral
que transforme um brutal desordeiro num manso e obediente
sonhador.19
Releva notar, ainda, a função de garantia do direito penal,
já que, à semelhança de VON L1SZT, que afirmara que o direito
penal era a "carta magna do delinqüente", ROX1N entende que o
direito penal serve também para limitar o poder de intervenção
do Estado, protegendo o indivíduo de uma repressão desmedida
do Estado, isto é, protege o indivíduo simultaneamente através
do direito penal e ante o direito penal.2°

Idem, p39. ROXIN admite, porém, que se possa aplicar uma pena inferior
à culpa, vez que constitui um garantia individual.
Ibidem, p. 40.
Idem, p. 40 et seq.
Idem, p. 76-28.
TEORIAS UNITÁRIAS 67

3.3 O garantismo de Luigi Ferrajoli: o direito penal mínimo


3.3.1 Exposição e análise
Para FERRAJOLI, que tem o direito penal como uma técnica
de defini ao com rova ão e re • _ a aesvia ão /1 o único
m que o Estado ode e deve le itimamente persegjr or
meio ena é a preven.222. ey.a. Mas não apenas a
prevenção e uturos e it os, corno costumam enfatizar as dou-
trinas utilitárias tradicionais. Em seu "utilitarismo reformado"
FERRAJOLI dá especial ênfase à"---TereTi="71-7=7"s,
isto e, a prevenção de possÍveisições públicas QU1Jjs
ar ararias, que podem resultar da ausência ou omissão do
sistema pena.
Assinala, assim, que a pena não serve só para prevenir os
injustos delitos, mas também os castigos injustos: que n4o_se
amea a COM ela e se a im õe só ne seccetur mas também ne
punietur; ue não tutela só a pesso,a,akj_WApelo delito, e sim
tam ém ao de in üente frente ás rea ões informais, úblicas
ou privadas.22
Confere-se-lhe (ao direito penal), ortanto uma du la fun-
0,2.preventiva, am as e signo negativo: prevénçào de futuros
delitos e prevenção de feãções arbitrárias tanto do particular
quanto do próprio. Seu modelo de justificação do direito penal
privilegia, porérá, essa segunda função, que considera como
"fim fundamental" da pena. E isso porque, primeiro, FERRAJOLI
duvida,23 por um lado, da efetiva idoneidade do direito penal

Derecho y razón, p. 209.


FERRAJOLI, L. Op. cit., p. 332.
Escreve, com efeito, textualmente: "Em rigor, qualquer delito cometido
demonstra que a pena prevista para ele não foi suficiente para preve-
ni-lo e que para tal fim seria necessário uma maior (...). É duvidosa
a idoneidade do direito penal para satisfazer eficazmente a primeira
(a prevenção geral de delitos) — não se podendo ignorar as complexas
68 FUNÇÕES DO DIREITO PENAL

para prevenir delitos futuros; duvida enfim da eficácia dissu-


asiva da intervenção penal; e, por outro, acredita que a norma
penal seja mais eficaz ou mais adequada para cumprir essa
segunda tarefa (de prevenção de reações informais), "ainda
quando com penas modestas ou pouco mais que simbólicas" ;24
segundo, porque só esse segundo fim é, ao seu ver, necessário
e suficiente para fundamentar um modelo de direito penal mí-
nimo e garantista; finalmente, porque só a tutela do inocente
e a minimização da reação ao delito serve para distinguir o
direito penal de outros sistemas de controle social — policial,
disciplinário, terrorista etc.
Considera, por outro lado, que enquanto a prevenção geral
de delitos determina o "limite mínimo" das penas, a prevenção
de penas arbitrárias ou desproporcionadas —vinganças, abusos
de poder etc.—, determina o "limite máximo" da pena. Com
efeito, uma, a prevenção geral de crimes, reflete o interesse
da maioria não-desviada; a outra, a prevenção de reações sem
controle, o interesse do réu e de todo aquele que é suspeito
ou acusado como tal. Esses fins e interesses, é certo, entram
em conflito, e são seus portadores as partes no processo penal
contraditório: a acusação, interessada na defesa social e, por
conseguinte, em maximizar a prevenção e o castigo aos delitos;
e a defesa, interessada na defesa individual e, portanto, em ma-
ximizar a prevenção das penas arbitrárias.25 E o direito penal
nasce, assim, da necessidade política e social de administrar
esse conflito de interesses, objetivando controlar a violência
(minimizá-la) e coibir o arbítrio.26

razões sociais, psicológicas e culturais dos delitos, certamente não


neutralizáveis mediante o mero temor das penas". Idem, p. 332-334.
Idem, p. 334.
FERRAJOLI, L. Op. cit., p. 334.
O direito penal, ressalta FERRAjou, nasce precisamente no momento em
que a relação bilateral parte ofendida/ofensor é substituída por uma
TEORIAS UNITÁRIAS 69

FERRAJOLI — que propugna pela abolição gradual das penas


privativas de liberdade e propoe que nao excedam a Tez anos,
por lhe e arecerem excessiva e in 410,01:111=0.1141011/er
àii eia de ressocializaçao ou reeducação por meio da pena.
Porque o Estado — afirma — que não tem o direito de forçar os'
cidadãos a não serem malvados, senão s6 o de impedir que se
tampouco tem o direito de alterar — reeducar,
redimir, recuDerarressocializar ou outras idéias semelhantes
— uzsonalidade dp --1,571
..s. -EW, embora tenha o dever
jurídico de não cometer fatos clelitiv, em o djulatu jir.5£4
interiormente malvado e de_seguirendo o ai g ç. As penas, por
conseguinte, conclui, não devem perseguir fins pedagógicos
ou correcionais, senão que devem consistir em sanções taxati-
vamente predeterminadas, e não agraváveis com tratamentts
drierenciados e personalizados do tipo ético ou térT1to 27
Também por essa razão, insurge-se contra flexibi a_ização r. na
execução penal, do principio drèTrInTe determinaçãQ
pena (rZir eg . aaraná-Frr ia porir"""d"--.
iew e certos ""r"r
ene ícios'le-
is(pro_gressão/regressão ds. .r£girrig, livramPntn122.d_49n—
1 al
tc , cuja concessão nã ficai critério/arbítrio d
e.) aos
adn
..p.Suisuati-v43~34. juris
.11..c.9215,Lusào: a lei penal _re ww.a.ka a "1-no mais débil
(ou mais fraco)" — dlglialad(2 ofendido ou ameaçado2elo
delito, assim como d.bi1, quando ofendido o ela
vingança — lei do mais débilu cus4e2lige, assim, à proteção
do direi tunuaiitais destes contra a violência artitrária
do mais forte, sen o que no momento 's fraco é
a vitima; no momen oÀ. r.usius2,4,zu..çgj face lo Estado,
( p.
q maisrorte. Portanto, hm geral do direito penal é impedir que
MI"

relação trilateral em que se situa numa posição de terceiro e imparcial


uma autoridade judicial. Idem, p. 332-333.
27. Idem, p. 223-224.
70 FUNÇÕES DO DIREITO PENAL

os indivíduos façam justiça por suas próprias mãos, ou, ainda,


minimizar ou controlar a-violencia.
Dito de outro modo: ao monopolizar a força, delimitar
seus pressupostos e modalidades e excluir seu exercício arbi-
trário por parte dos sujeitos não autorizados, a proibição e a
ameaça penais protegem as possíveis partes ofendidas contra
os delitos, enquanto que a imposição da pena protege os réus
e inocentes suspeitos de crime, contra vinganças ou reações
arbitrárias públicas ou privadas. As duas finalidades preventi-
vas — prevenção de delitos e de penas arbitrárias — estão assim
conectadas entre si sobre esta base: legitimam conjuntamente
a necessidade política do direito penal como instrumento de
tutela dos direitos fundamentais.28
3.3.2 O modelo de direito penal mínimo e garantista
No entanto, semelhante discurso não é capaz por si só de
impedir um modelo máximo de direito penal.
Não é isso que pretende o "minimalista" FERRAJOL1, eviden-
temente; antes, insurge-se enfaticamente contra tal tendên-
cia. Para ele, o direito penal ideal, por assim dizer, em face da
exigência de certeza e razão que devem presidir a intervenção
do Estado, é necessariamente um modelo de direito penal
que represente a um tempo o máximo de bem-estar possível
para os não-desviados (os não-delinqüentes) e o mínimo de
mal-estar para os desviados (os delinqüentes),29 modelo que
corresponde, assim, a um meio termo entre um modelo má-
ximo de direito penal e o abolicionismo penal: um modelo de
direito penal mínimo.
Por "direito penal mínimo", considera um direito penal
maximamente condicionado e maximamente limitado, isto é,

Idem, p. 335.
Idem, p. 332.
TEORIAS UNITÁRIAS 71

limitado às situações de absoluta necessidade — pena mínima


necessária —, que corresponda não só ao máximo grau de tu-
tela de liberdade dos cidadãos frente à potestade punitiva do
Estado, mas também a um ideal de racionalidade e de certeza,
razão pela qual não terá lugar a intervenção penal sempre que
sejam incertos ou indeterminados os seus pressupostos.3° E, por
"garantismo" entende-se a tutela daqueles valores ou direitos
fundamentais cuja satisfação, ainda que contra interesses da
maioria, é o fim justificador do direito penal: a imunidade dos
cidadãos contra a arbitrariedade, das proibições e dos castigos,
a defesa dos débeis mediante regras iguais para todos, a digni-
dade da pessoa do imputado e, por conseguinte, garantia de sua
liberdade mediante o respeito de sua verdade.3 Esse sistema
mínimo de garantias do cidadão frente ao poder punitivo do
Estado é representado pela adoção (ou manutenção ou aper-
feiçoamento) de dez garantias — garantias clássicas — penais
fundamentais.
Ei-las: 1) princípio de retributividade ou da sucessividade
da pena frente ao delito; 2) princípio da legalidade; 3) princípio
da necessidade ou de economia do direito penal; 4) princípio da
lesividade ou da ofensividade do ato; 5) princípio da materiali-
dade ou da exterioridade da ação; 6) princípio de culpabilidade
ou de responsabilidade pessoal; 7) princípio da jurisdição; 8)
princípio acusatório; 9) princípio de verificação; 10) princípio
do contraditório ou ampla defesa.32 Por esse modelo garantis-
ta, exige-se, como pressuposto necessário de toda e qualquer

Idem, p. 104.
Idem, p. 336.
Idem, p. 93. Respectivamente: 1) Nulla poena sine crimine; 2) Nullum
crimen sine lege; 3) Nulla lex (poenalis) sine necessitate; 4) Nulla neces-
sitas sine injuria; 5) Nulla injuria sine actione; 6) Nulla actio sine culpa;
7) Nulla culpa sine judicio; 8) Nullum indicium sine accusatione; 9) Nulla
accusatio sine probatione; 10) Nulla probatio sine defensione.
72 FUNÇÕES DO DIREITO PENAL

punição, o prévio cometimento de um delito, sua previsão por


lei como tal, necessidade estrita de sua proibição e punição,
efeitos lesivos para terceiros, o caráter exterior ou material da
ação criminosa, a imputabilidade e culpabilidade do autor, e,
ainda, sua prova empírica levada por uma acusação ante um
juiz imparcial em processo público e contraditório com a defesa
e mediante um procedimento preestabelecido.33
Releva notar ainda que se, de um lado, o modelo garantista
de FERRAJOLI se presta, como se vê, à relegitimação do direito
penal, é certo que, de outro, presta-se também à deslegitimação
de sistemas penais concretos que total ou parcialmente violem
o modelo de direito penal mínimo proposto. E seguramente
todos os sistemas penais o violam, ainda quando consagrem
em linhas gerais tais princípios. Não é sem razão, aliás, a sua
"confissão" no sentido de que talvez a verdadeira utopia não
seja hoje a alternativa ao direito penal, senão o direito penal
mesmo e suas garantias; não o abolicionismo penal, por ele
combatido, senão o garantismo mesmo34 que propõe, de fato
inevitavelmente parcial e imperfeito.35
3.3.3 Crítica

Em que pese a coerência lógica do pensamento de FERRAJOLI,


e de concordarmos, no essencial, com semelhante perspectiva,
cabe fazer algumas ponderações.36

Idem, p. 103-104.
Garantismo é, segundo definição de FERRAJOLI, um esquema epistemo-
lógico de identificação da desviação criminal destinado a assegurar,
em relação a outros modelos de direito historicamente concebidos e
realizados, o máximo grau de racionalidade e, pois, o máximo grau de
limitação da potestade punitiva e de tutela da pessoa humana contra a
arbitrariedade (idem, p. 34).
Idem, p. 342.
Contra semelhante crítica se insurgiu FERRAJOLI.
TEORIAS UNITÁRIAS 73

Em primeiro lugar, a idéia da prevenção geral de delitos por


meio do direito penal, como já assinalado, parte de um pressu-
posto empírico indemonstrado — e dificilmente demonstrável
— do qual o próprio FERRAJOLI muito desconfia: a idoneidade
da ameaça penal para dissuadir comportamentos delituosos;
não se podendo desconhecer, como ele próprio reconhece, as
complexas causas sociais, psicológicas e culturais dos delitos,
certamente não neutralizáveis mediante o mero temor das
penas.3' E se inexiste relação de adequação lógica entre meio
(pena) e fim (prevenir crimes), faltam os pressupostos de cer-
teza e razão pretendidos.
Além isso, não parece fazer muito sentido afirmar que o
direito penal seja mais eficaz para prevenir reações informais
arbitrárias. Porque, como se sabe, tais reações — vinganças,
execuções sem processo (execuções sumárias), abusos de poder
etc. — não são senão crimes também (genocídio, homicídio,
lesões corporais, abuso de autoridade, violação de domicílio
etc.), ou, no mínimo, exercício arbitrário das próprias razões,
fato definido na maioria das legislações penais também como
crime (entre nós, o art. 345 do Código Penal). Prevenir reações
arbitrárias e prevenir delitos são, em última análise, uma só e
mesma coisa. Seja como for, se o direito penal não é útil à pre-
venção de delitos — ou muito se desconfia da sua capacidade
dissuasiva —, não há porque se acreditar que seja idôneo para
essa segunda tarefa que se lhe atribui enfaticamente: prevenir
reações informais.
É certo também que semelhante fim de prevenção de reações
informais violentas não é uma exclusividade do direito penal.
Em verdade, essa é uma função declarada, não do direito penal
propriamente, mas do próprio Direito. Ao pretender justificar

37. Idem, p. 332-334.


74 FUNÇÕES DO DIREITO PENAL

direito penal, FERRAJOLI acaba por justificar o Direito mesmo.


Nem poderia ser diferente já que o garantismo é um esquema
epistemológico de legitimação/deslegitimação do direito como
um todo e não só do direito penal.
Ademais, ordinariamente reações informais arbitrárias es-
tão relacionadas a fatos dos quais não se ocupa, em princípio,
direito penal: suspeitas de infidelidade conjugal, cobrança de
dívidas, disputas possessórias, atos de prostituição etc. Nem
por isso se pretende que o direito penal deva intervir em tais
hipóteses.
Convém também redargüir que, no mundo dos fatos, não
existe esta equação inexorável: crime + falta de repressão pe-
nal = reação arbitrária. Pois, de um lado, a vítima ou pessoas
de alguma forma atingidas pelo crime buscam as formas mais
díspares de superação da agressão sofrida — resignação, esque-
cimento, perdão, crença na implacabilidade da "justiça divina",
reparação, composição, terapia etc., — de outro, mesmo ocor-
rendo a efetiva incidência da intervenção penal, por vezes se
consumam reações informais arbitrárias, casos, por exemplo,
em que, mesmo preso, processado ou sentenciado (condenado
ou absolvido), ocorrem atos de linchamento ao réu ou se perpe-
tram ações de represália à sua pessoa ou a pessoas ligadas a ele.
Vale dizer, reações arbitrárias podem ocorrer, "a despeito de",
ou a mesmo "a pretexto da" intervenção do sistema de justiça
penal (prisões ilegais, tortura, execuções etc.).
Não poucas vezes reações informais arbitrárias, parado-
xalmente, resultam exatamente da "ingerência criminógena"
do sistema penal em domínios comprovadamente rebeldes a
este modo cirúrgico de intervenção estatal. É o que ocorre,
por exemplo, em relação à repressão arbitrária ao tráfico ilíci-
to de drogas, em que a "guerra" pelo monopólio do comércio
clandestino — e clandestino precisamente por força da atuação
TEORIAS UNITÁRIAS 75

(criminalização) do sistema penal —, tem sistematicamente


dizimado vidas humanas. Como observa HASSEMER, a preven-
ção também se realiza quando o direito penal deixa, em certas
circunstâncias, de intervir.38 Enfim, em muitos casos, diferen-
temente, prevenir significa descriminalizar (ou despenalizar),
isto é, abolir o direito penal.
Não se pode, ademais, perder de vista que a efetiva inter-
venção do sistema penal é excepcional, já que a maior parte
dos comportamentos erigidos à categoria de delituosos como
regra passa ao largo do conhecimento ou da atuação do sistema
pena1,39 razão por que é muito questionável, também por isso,
a necessidade do direito penal para realizar tais cometimentos.
Daí dizer ZAFFARONI que no plano real ou social a experiência
já indicaria que parece estar bem demonstrada a desnecessi-
dade do exercício do poder do sistema penal para evitar a ge-
neralização da vingança, porque o sistema penal só atua num
reduzidíssimo número de casos, e por onde a imensa maioria
dos supostos impunes não generaliza vinganças ilimitadas.
Ademais, na América Latina têm-se cometido cruéis genocí-
dios os quais ficaram praticamente impunes, sem que tenham
havido episódios de vingança massiva.4°
É conhecida, finalmente, a sistemática violação das garan-
tias do direito e do processo penais, apesar de formalmente
consagradas, como reconhece o próprio FERRAJOLI, pela reali-
dade operativa do sistema penal, um sistema de dificílimo e
delicadíssimo controle. Se bem que com um certo exagero, tem

Fundamentos dei derecho penal, p. 396.


FERRAJOLI que destaca o que chama de "cifras da injustiça", que corres-
pondem ao número de inocentes processados e às vezes condenados.
(FERRAJOLI, L. Op. cit., p. 210).
En busca de las penas perdidas: deslegitimación dogmática jurídico-
penal, p. 83.
76 FUNÇÕES DO DIREITO PENAL

razão, no particular, STEINERT, quando afirma que a lei penal


conflita com sua função liberal e resulta, assim, irreal, visto
que, ao invés de restringir a intervenção do Estado, se converte,
em realidade, em uma autorização para que essa intervenção
se legitime.41
Em face disso, pois, o direito penal passa a atuar ordinaria-
mente à margem da legalidade — prisões provisórias forçadas e
sem amparo legal, prisões além do prazo legal, tortura, execuções
sumárias —, a revelar que, em boa parte, o poder real do sistema
penal não é repressivo propriamente, mas "configurador-disci-
plinário" (positivo, e não negativo), arbitrário e seletivo.42

3.4 Função da pena na legislação penal brasileira

A análise da legislação brasileira, como de resto de qualquer


legislação penal, mostra claramente opção político-criminal
do legislador pelo pragmatismo, não se identificando filiação a
qualquer teoria da pena em particular. No ordenamento jurídico-
penal brasileiro, encontram-se manifestações das mais diversas
tendências: liberais, antiliberais, instrumentais, simbólicas etc.
Há também atos que respondem exclusivamente a razões de eco-
nomia. É o que ocorreu, por exemplo, como Decreto de Indulto
Presidencial (Dec. 2.838/1998), que, com a finalidade clara de
esvaziar penitenciárias, indultava, dentre tantas hipóteses, quem,
tendo sido condenado a uma pena superior a seis anos, tenha
cumprido mais de um terço (quando primário) da pena e seja
pai ou mãe de filho ou filha menor de 12 anos
Não obstante isso, dentre as concepções da pena apresen-
tadas, parece que a que mais se aproxima do nosso direito é a
teoria dialética-unificadora de ROXIN, como se perceberá.

Mas alia dei delito y de la pena. Abolicionismo penal, p. 45.


ZAFFARONI, E. R. Op. cit., p. 12-13.
TEORIAS UNITÁRIAS 77

Evidentemente o Código Penal não adota a teoria absoluta


da pena em qualquer de suas versões. Com efeito, disposições
como a do artigo 27 do Código Penal, que considera como
penalmente inimputáveis os menores de dezoito anos, ou
institutos como a desistência voluntária, o arrependimento
eficaz (art. 15), a anistia, a graça, o indulto, a abolitio criminis,
a prescrição, a decadência, a perempção, o perdão judicial (art.
107), o regime de progressão da pena, o condicionamento da
ação penal à iniciativa do ofendido (ações privadas e públicas
condicionadas) etc., são claramente incompatíveis com a idéia
de uma teoria penal absoluta.
No entanto, o Código Penal, especialmente quando da co-
minação das penas, o que faz segundo critério não apenas de
prevenção geral ou, ainda, quando da aplicação da pena, busca
ajustá-la à proporção e gravidade do comportamento delituoso
praticado, ao determinar, por exemplo, no artigo 29, que o
participe de crime responde na medida de sua culpabilidade.
Em especial, quando dispõe no artigo 59 que, para a fixação da
pena, o juiz deverá tomar em conta a culpabilidade, motivos e
circunstâncias do crime etc. E, mais importante, estabelecerá
a pena conforme seja necessária e suficiente para a reprovação
e prevenção do crime. Logo, a pena é também retribuição, mas
retribuição simplesmente limitadora do direito de punir. O
legislador não se guia por ela, ao definir infrações penais, mas
a toma em conta ao cominar penas, dosá-las e eleger os critérios
de individualização judicial da pena.
É certo, por outro lado, que é a prevenção geral que orienta,
ordinariamente, a legislação quando da definição das infrações
penais e cominação das penas respectivas, que deverá ser gra-
duada segundo a culpabilidade do autor. Assim, o homicídio,
a lesão corporal, o estupro etc.
Não são estes os únicos critérios orientadores de uma po-
lítica criminal pragmática, porém. De fato, e sobretudo por
78 FUNÇÕES DO DIREITO PENAL

ocasião da aplicação da pena e posterior execução, tem-se em


vista a reintegração social do condenado, grandemente. Assim
quando se prevê que, para a fixação da pena, o juiz atenderá aos
antecedentes, à conduta social, à personalidade, aplicando-a
conforme seja suficiente e necessária para a reprovação e pre-
venção do crime (art. 59). Igualmente, quando prevê a progres-
são do regime penitenciário, a remição da pena pelo trabalho, o
livramento condicional etc. Não há dúvida, portanto, de que o
legislador se louvou também em critérios de prevenção especial.
Aliás, como já referido, o artigo 1.0 da LEP, alude expressamente
a este fim de reintegração à vida social»
Reconhece-se ainda a subsidiariedade da intervenção penal.
De fato, e como conseqüência natural do princípio da reserva
legal, a legislação penal não outorga uma proteção absoluta
aos bens jurídicos de que se ocupa. Como regra, por exem-
plo, somente se ocupa das condutas realizadas dolosamente,
e só por exceção daquelas realizadas culposamente (CP, art.
18, parágrafo único). Fica fora do direito penal toda e qual-
quer conduta delituosa praticada por menor de dezoito anos.
Numerosas são as hipóteses em que a efetiva intervenção do
sistema penal fica a critério do ofendido, quer promovendo a
ação penal privada, quer provocando a atuação do ministério
público, nos casos em que a lei exige representação da vítima
ou de seu representante legal. Enfim, muitas são as situações
em que o legislador ou privilegia o interesse das partes dire-
tamente envolvidas ou prefere outras formas de intervenção
social ou jurídica (civil, administrativa etc.), renunciando à
intervenção jurídico-penal.

43. A Exposição de Motivos do Código refere, ainda, que "uma política


criminal orientada no sentido de proteger a sociedade terá de restringir
a pena privativa da liberdade nos casos de reconhecida necessidade,
como meio eficaz de impedir a ação criminógena cada vez maior no
cárcere" (item 26).
TEORIAS UNITÁRIAS 79

Finalmente, existem manifestações claras de um direito


penal simbólicO. Assim, as normas relativas ao tráfico ilícito
de drogas, cujas penas exageradamente altas (5 a 15 anos de
reclusão, para o tràfico, além da incidência de todas as restri-
ções atinentes aos,lcritmes hediondos) expressam o repúdio
— grandemente retórico — do Estado a essa prática, prescin-
dindo-se de toda racionalidade. Semelhantemente, a norma
incriminadora do aborto (CP, art. 124 et seq.), bem como as
disposições relativas ao lenocínio (CP, art. 227 et seq.), que
pretendem exaltar a importância de certos valores, próprios
da tradição moral cristã, a despeito da absoluta ineficácia da
norma penal para proteção dos interesses por ela veiculados:
saúde, moral pública etc.
Por último, a legislação vem de transigir nos últimos anos
com um direito penal do inimigo, que viola garantias mínimas
do Estado Democrático de Direito. Convém referir nesse senti-
do o Decreto 5.144, de 16 de julho de 2004, que, a pretexto de
regulamentar os §§ 1.0 e 2.° do art. 303 da Lei 7.565, de 19 de
dezembro de 1986 (Código Brasileiro de Aeronáutica), previu
a destruição de aeronaves "hostis ou suspeitas de tráfico de
substâncias entorpecentes e drogas afins", vale dizer, instituiu,
entre nós, a pena de morte por juízo de exceção, implicando,
por isso, a violação sistemática de vários princípios constitu-
cionais (CF, art. 4.° e 5.°): a) inviolabilidade da vida (art. 5.0,
caput); b) proibição da pena de morte em tempo de paz (art.
5.0, XLVII, a); c) presunção de inocência (art. 5.0 , LVII); d)
proibição de juízo ou tribunal de exceção (art. 5.0, XXXVII); e)
devido processo legal (art. S.°, LIV); f) prevalência dos direitos
humanos (art. 4.0,11); g) defesa da paz (art. 4.0 , VI); h) solução
pacífica dos conflitos (art. 4.0 , VII); i) repúdio ao terrorismo
(art. 4.0, VIII); j) legalidade (art. 5.0, II);1) proporcionalidade;
m) inviolabilidade da propriedade (art. 5.0, caput).
80 FUNÇÕES DO DIREITO PENAL

Assim também o Regime Disciplinar Diferenciado (Lei


10.792/2003) que constitui uma espécie de prisão dentro da
própria prisão, vedando em caráter quase absoluto qualquer
contato do preso com o mundo exterior, e interior inclusive,
cujo caráter de pena cruel e degradante é manifesto.
SEGUNDA PARTE
TEORIAS DESLEGITIMADORAS
DO SISTEMA PENAL
4
TEORIAS DESLEGITIMADORAS

SUMÁRIO: 4.1 Introdução — 4.2 Abolicionismo penal: 4.2.1


Introdução; 4.2.2 Bases críticas — 4.3 O minimalismo radical
ou abolicionismo mediato: 4.3.1 Introdução; 4.3.2 Papel de
um direito penal assim residual e mínimo provisórios; 4.3.3
Crítica.

4.1 Introdução

As várias teorias até aqui tratadas, embora divirjam entre


si quanto às razões que justificam o direito penal, convergem
no essencial: reconhecem a necessidade de normas jurídico-
penais para o controle da criminalidade, de modo que são
teorias que partem da legitimidade estatal para definir crimes
e cominar penas como forma de controle social. Mais: reconhe-
cem idoneidade ao direito penal para realização dos fins que
lhe são cometidos. São teorias legitimadoras (justificadoras)
ou relegitimadoras do direito de punir.
No entanto, existem teorias que, na história do pensamen-
to,' se insurgiram, sob argumento moral, religioso, político
etc., contra a potestade punitiva, recusando legitimação ao
Estado para castigar. Interessa considerar no presente capítulo
dois movimentos político-criminais contemporâneos que se
põem nessa linha de argumentação teórica deslegitimadora do

1. Uma resenha histórica em FERRAJOLI, L. Derecho y razón: teoria del


garantismo penal.
84 FUNÇÕES DO DIREITO PENAL

sistema penal: o abolicionismo penal e o minimalismo radical.2


O primeiro, negando validez aos pressupostos sobre os quais
assentam as teorias tradicionais de justificação do direito de
punir, pretende a abolição imediata de todo o sistema penal
(direito penal, penitenciárias, judiciário, ministério público,
polícia etc.). O segundo pugna pela adoção imediata de um
direito penal mínimo como tática para a abolição gradual do
sistema penal.
O abolicionismo e o minimalismo contemporâneos são
movimentos de política criminal, vertentes da assim chamada
nova criminologia ou criminologia crítica, surgida nos Esta-
dos Unidos por volta dos anos 60 e 70, que, rompendo3 com
a criminologia tradicional (a criminologia positiva), e sob a
influência de teorias sociolõgicas4 principalmente (das mais
diversas tendências), contrapõem ao paradigma etiológico,

Emprego aqui a expressão minimalismo radical, primeiro, para deixar


claro que seus adeptos apelam ao minimalismo apenas como "tática"
ou "passagem" para a abolição; segundo, para distinguir do modelo de
direito penal mínimo proposto por autores como FERRAJOLI, contrários
a semelhante perspectiva.
Essa ruptura, no entanto, não é absoluta, já que se reconhece, em geral,
não ser possível a abordagem e investigação do problema criminal,
prescindindo-se das causas mediatas e imediatas que lhe subjazem.
SCHEERER entende que sequer se trata de um novo paradigma ou de um
salto revolucionário (Hacia el abolicionismo. Abolicionismo penal, p.
21). Parece mais exato falar de uma reorientação epistemológica ou de
revisão (redirecionamento) da investigação científica.
Segundo BARATTA, as teorias psicoanalíticas negam o princípio da legi-
timidade; a estrutural-funcionalista, o princípio do bem e do mal; as
subculturais, o princípio da culpabilidade; o labelling approach, o fim
de prevenção e o princípio da igualdade; e a sociologia do conflito, o
princípio do interesse social e do delito natural (Criminologia crítica
y crítica dei derecho penal: introducción ala sociologia jurídico-penal,
1993). Grande, também, é a influência de FoucAum
TEORIAS DESLEGITIMADORAS 85

próprio da criminologia positiva, o paradigma do controle ou


da reação social.
É natural, portanto, que sob uma influência comum ambos
os movimentos convirjam no essencial em seus pressupostos
e críticas ao sistema de justiça penal; coincidem, por motivos
vários, e que serão referidos a seguir, quanto à deslegitimação
dessa instância formal de controle social, seja por que não
cumpre as funções declaradas que lhe são tradicionalmente
assinaladas, seja porque cumpre funções latentes que o des-
legitimam e, por conseqüência, legitimam a sua supressão.
Por isso, são movimentos5 deslegitimadores do sistema penal:
tanto o abolicionismo quanto o minimalismo têm o sistema
penal como um subsistema funcional de reprodução material
e ideológica (legitimação) do sistema social global, é dizer, das
relações de poder e da propriedade existentes.6 Consideram,
em conclusão, o sistema penal um sistema estruturalmente
seletivo, criminógeno e ineficaz.
Contudo, diversamente do minimalismo, que propõe a má-
xima redução do sistema penal, preservando-o residualmente,
ao menos em caráter provisório, o abolicionismo penal vai além,
para, rechaçando toda justificação do jus puniendi, que julga
assentada sobre bases falsas, propor a sua radical e imediata
supressão por outras instâncias formais e informais de controle
social ou por intervenções comunitárias ou instituições alter-
nativas. Entre os abolicionistas, destacam-se os nomes de Loux

Discute-se se se trata de teoria, de movimento, ou corrente de pensa-


mento. SCHEERER (op. cit., p. 22) nega-lhe caráter de teoria, pois que, a
seu ver, ainda lhe faltam precisão e conceitos descritivos firmes, con-
siderando-o como perspectiva do controle social nas sociedades (post)
modernas há quem o tenha, ainda, como simples discurso acadêmico
(G. SmAus).
Cf. MARTNEZ SANCHES, M. Que pasa en la criminologia moderna?, p. 34.
86 FUNÇÕES DO DIREITO PENAL

HULSMAN, Nus CHRISTIE, THOMAS MATHIENSEN, HERMAN BIANCHI


e HEINZ STEINERT.Entre os minimalistas, ALESSANDRO BARATTA,
EUGÊNIO RAÚL ZAFFARONI e SEBASTIAN SCHEERER.

4.2 Abolicionismo penal


4.2.1 Introdução
O abolicionismo, como dito, recusa consistência científica
a todas as premissas sobre as quais descansa o direito penal,
e propõe, por isso, não apenas a extinção da pena e do direito
penal,' mas a imediata abolição de todo o sistema de justiça
penal. Argumenta-se que o sistema penal é em si mesmo um
problema social, um mal social que cria mais problemas do
que resolve, razão pela qual deve ser abolido para dar vida às
comunidades, às instituições e aos homens.8
Desde logo, convém assentir, com POLITOFF, que o abolicio-
nismo não tem a ver com determinadas filiações ideológicas,

Neste sentido, ZAFFARON1, que, à semelhança de BARATTA e outros ("abo-


licionistas mediatos"), se posiciona no sentido da abolição a longo
prazo do sistema e defende o minimalismo como tática ou meio para
atingimento daquele fim, afirma que não se pode pretender abolir
unicamente o direito penal, senão o sistema penal mesmo, porque "a
desaparecer só o primeiro, que não é mais que o discurso de justificação
e pau tação da agência judicial, isto implicaria a só anulação do poder dos
juristas e a liberação total dos conflitos ao poder das agências restantes
do sistema penal, o que seria mais que uma ilusão, muito mais infantil
ainda: confundir o discurso racionalizador do exercício de poder do
sistema penal com esse exercício de poder e suprimir o muito limitado
exercício do poder da única agência que nos sistemas vigentes pode
chegar a gerar uma contradição limitadora e minimamente garantidora,
só pode qualificar-se de suicídio político reacionário e totalitário, e de
modo algum é a proposta abolicionista". En busca delas penas perdidas:
deslegitimación y dogmática jurídico-penal, p. 83.
Assim, HULSMAN, L.; BERNAT DE CEL1S, J. Penas perdidas: o sistema penal
em questão, p. 91-92.
TEORIAS DESLEGITIMADORAS 87

já que a formação e os princípios subjacentes em MATHIESEN,


ARNO PLACK, CHRISTIE OU HULSMAN, para citar alguns nomes,
são muito variadas: desde o neomarxismo até o liberalismo,
desde o humanismo até o "anti-humanismo" (à maneira de
FOUCAULT). Também a metodologia e a estratégia propostas
são muito distintas.9
A seguir, as principais críticas dirigidas ao sistema penal,
comuns ao abolicionismo e o minimalismo.
4.2.2 Bases criticas
1. O sistema penal é incapaz de prevenir, por meio da co-
minação e execução de penas, quer em caráter geral, quer em
caráter especial, a prática de novos delitos. Inidoneidade fun-
cional ou motivadora da norma penal.
Argumenta-se que o direito penal não é um instrumento
capaz de motivar comportamentos no sentido do comando
da norma penal, isto é, no sentido de agir positivamente no
processo motivacional de formação da vontade de delinquir,
vez que o delito decorre de um sem-número de causas — psi-
cológicas, sociais, culturais — não neutralizáveis pelo mero
temor da pena. Salienta-se que, a despeito da incriminação, o
homicídio, o porte para uso e tráfico ilícito de drogas etc., repe-
tem-se sistematicamente como se tal proibição simplesmente
não existisse, não se abstendo os infratores da prática de tais
crimes pelo só fato de existir uma norma penal incriminadora.
A só reincidência desmentiria a função preventiva ou dissuasiva
da norma penal. A prevenção geral, portanto, não se confirma,
sendo desacreditada a todo momento, servindo à só legitimação
do discurso e da atuação do sistema. A prevenção é um mito,
uma crença infundada.

9. Posfácio à obra de HULSMAN. Sistema penal y seguridad ciudadana: bacia


una alternativa.
88 FUNÇÕES DO DIREITO PENAL

Contesta-se-lhe, também, qualquer função de garantia.


No particular, STEINERT afirma que a lei penal conflita com sua
função liberal e resulta irreal, visto que, ao revés de restringir
a intervenção do Estado, converte-se em realidade em uma
autorização para que essa intervenção se legitime."°
Ressalta-seque, muito além disso, o verdadeiro e real poder
do sistema penal não é o repressivo (poder negativo), e sim
configurador disciplinário (positivo), arbitrário e seletivo, vez
que, renunciando à legalidade penal, confia-se às agências do
sistema penal um controle social militarizado e verticalizado
de uso cotidiano e exercido sobre a maioria da população, que
está além do alcance meramente repressivo, por ser substan-
cialmente configurador da vida social»
Igual objeção se faz à prevenção especial ou ressocializa-
ção , porquanto a pena de prisão, a espinha dorsal dos sistemas
penais contemporâneos, ao confinar o infrator num ambiente
antinatural (artificial), que é a prisão, longe de ressocializar,
dessocializa, perverte, estigmatiza, indelevelmente.
Nesse sentido, CHRISTIE afirma ironicamente que, com ex-
ceção da pena de morte, da prisão perpétua e possivelmente da
castração, nenhuma cura tem se revelado mais eficiente que as
demais como meio de impedir a reincidência.'2 A prisão, segun-
do BARATTA, representa a ponta do iceberg que é o sistema penal
burguês; representa o momento culminante de um processo
de seleção que começa antes da intervenção do sistema penal,
com a discriminação social e escolar, com a intervenção dos
institutos de controle da desviação dos menores, da assistência

Mas alia dei delito y dela pena. Abolicionismo penal, p. 45.


ZAFFARONI, E. R. Op. cit., p. 12-13.
Los limites dei dolor, p. 33.
TEORIAS DESLEGITIMADORAS 89

social etc. O cárcere representa geralmente a consolidação


definitiva de uma carreira criminal."
2. O sistema penal é arbitrariamente seletivo; recruta sua
clientela entre os mais miseráveis. É um sistema injusto, pro-
dutor e reprodutor das desigualdades sociais.
Enfatiza-se a distribuição desigual do sofrimento, pois o
direito penal, estando assentado sobre uma estrutura social
profundamente desigual, recruta inevitavelmente sua clientela
entre os grupos mais vulneráveis, entre os mais débeis. Não
estando fora ou além dessa estrutura social, de que é parte in-
tegrante, em que as oportunidades e o acesso à riqueza não se
dão eqüitativamente, produz e reproduz desigualdades sociais
reais, apesar da igualdade formal.
Afirma-se que o direito penal, em particular, reflete uma
contradição fundamental entre igualdade dos sujeitos de direito
e desigualdade substancial dos indivíduos. A igualdade formal
dos sujeitos de direito serve em realidade como instrumento de
legitimação de profundas desigualdades materiais.14 De acordo
com BARATTA, existe um nexo funcional entre os mecanismos
seletivos do processo de criminalização e a lei de desenvolvi-
mento de formação econômica." Trata-se de uma desigualdade
e seletividade estruturais inerentes aos sistemas sociais.

BARATTA, A. Op. cit., p. 175.


BARATTA, A. Op. cit.
Idem, p. 171. Entre nós, VERA REGINA PEREIRA DE ANDRADE, defendendo
tese de doutoramento, chega a conclusões semelhantes, ao dizer que
para "além das intervenções contingentes, há uma lógica estrutural de
operacionalização do sistema penal nas sociedades capitalistas, que,
implicando a violação encoberta (seletividade) e aberta (arbitrariedade)
dos direitos humanos, não apenas viola a sua programação normativa,
mas é, num plano mais profundo, oposta a ambas, caracterizando-se
por uma eficácia instrumental invertida à qual uma eficácia simbólica
confere sustentação". Mais adiante, após consignar que os limites do
90 FUNÇÕES DO DIREITO PENAL

Significa dizer enfim que o direito penal tende a privilegiar


os interesses das classes dominantes e isentar do processo de
criminalização comportamentos socialmente danosos típicos
dos indivíduos pertencentes a elas e ligados funcionalmente
existência da acumulação capitalista, e tende a orientar o pro-
cesso de criminalização sobretudo até formas de desviação das
classes inferiores.'6 Exerce-se por essa via uma função ativa, de
reprodução e de produção, de desigualdades. Desse modo, a
aplicação seletiva do direito penal tem como resultado colateral
a cobertura ideológica dessa mesma seletividade."
Afirma-se ainda que a realidade operativa dos sistemas
penais jamais poderá ajustar-se à planificação do discurso
jurídico-penal, visto que todos os sistemas penais, quaisquer
que sejam, apresentam características estruturais próprias de
seu exercício de poder e que anulam o discurso jurídico-penal.
Porque "a seletividade", escreve ZAFFARONI, "a reprodução da
violência, o condicionamento de maiores condutas lesivas, a
corrupção institucional, a concentração de poder, a verticali-
zação social, e a destruição das relações horizontais ou comu-
nitárias não são características conjunturais, mas estruturais
ao exercício do poder de todos os sistemas penais" .'8
O sistema penal atua sempre seletivamente e seleciona
conforme estereótipos fabricados pelos meios massivos de

sistema são os limites da própria sociedade, afirma ser "irreversível


essa lógica e impossibilidade de operacionalização dos sistemas penais
adequar-se à sua programação, já que constitui uma marca estrutural do
exercício do poder que não pode ser eliminada sem a própria supressão
dos sistemas penais". Dogmática e sistema penal: em busca da segurança
jurídica prometida, p. 469-470.
BA1RATTA, A. Op. cit.
Idem, p. 171-173.
Op. cit., p. 6.
TEORIAS DESLEGITIMADORAS 91

comunicação;" cria e reforça as desigualdades sociais;2° é,


contrariamente a toda aparência, um sistema desigual por
excelência. 21
3. O sistema penal opera à margem da legalidade. Violação
dos Direitos Humanos pelo próprio sistema.
Argumenta-se que o direito penal criminaliza uma infi-
nidade de condutas, sobrecarregando os órgãos incumbidos
da repressão criminal, apesar de tais agências disporem de
uma capacidade operativa muito inferior à magnitude da
demanda. O sistema penal está estruturado assim para que
não funcione realmente. A disparidade entre o exercício do
poder programado e a capacidade operativa das agências,
afirma ZAFFARON1, é abismal, e se ocorresse a inconcebível
circunstância de que seu poder se incrementasse até chegar a
corresponder a todo o exercício programado legislativamente,
produzir-se-ia o indesejável efeito de penalizar várias vezes
a toda a população.22
A violação ao princípio da legalidade penal e a sistemática
violação aos direitos humanos seriam, por isso, corolário lógico
dessa disparidade entre a programação discursiva e a realidade
operativa do sistema, por meio de execuções sem processo, atos
de tortura, pela duração extraordinária dos processos penais,
das prisões provisórias, que acabam por se converter em defi-
nitivas etc. Mais grave ainda, estando estruturalmente progra-
mado para não funcionar segundo a planificação discursiva, o
principal e mais importante exercício de poder do sistema penal
dar-se-ia fora da legalidade, vale dizer, dentro de um marco de

ZAFFARONI, E. R. Op. cit.


HULSMAN, L. Op. cit., p. 75.
BARATTA, A. Op. cit., p. 169.
Op. cit., p. 16.
92 FUNÇÕES DO DIREITO PENAL

arbitrariedade concedido pela lei penal mesma. O poder real


do sistema é, enfim, configurador disciplinário.
4.0 sistema penal somente intervém em situações excepcio-
nais. As "cifras ocultas" da criminalidade.
Argüi-se que, se se tiver em conta os números da crimina-
lidade oculta (não registrada), ou seja, a soma de crimes dia-
riamente praticados e que, a despeito disso, passa ao largo do
conhecimento ou da atuação do sistema penal — quer porque
desconhecida, quer porque não identificados os seus autores,
quer porque alcançados pela prescrição, quer porque objeto
de composição extrajudicial, quer porque não provados etc. —,
verificar-se-á que a criminalidade registrada, investigada, pro-
cessada e objeto de condenação e execução penais, é irrisória,
desprezível. É a imunidade, assim, e não a penalização, a regra
no modo de funcionamento do sistema penal.23 Por que achar
normal — questiona, a esse respeito HULSMAN -24 um sistema
que só intervém na vida social de maneira tão marginal, esta-
tisticamente tão desprezível? Daí concluir que um sistema que
somente rege casos esporádicos se revela, assim, desnecessário,
dele se podendo prescindir, abolindo-o.
5. Reificação do conflito (do delito). Neutralização da vítima
pelo sistema penal: o sistema penal é um sistema ladrão.
Assinala-se que definir fatos ou situações como delituosos
significa limitar extraordinariamente as possibilidades de
compreender tais fatos e situações e apresentar uma resposta
minimamente racional. Daí se preferir a expressão "situações
problemáticas" (assim, HULSMAN) ou semelhantes, ao tradicio-
nal "delito" ou "crime", num modelo alternativo de justiça que,
para fazer face a tais situações, ditas "problemáticas", tenha

HULSMAN, citado por BARArrA, A. Op. cit., p. 49.


Op. cit., p. 66.
TEORIAS DESLEGITIMADORAS 93

em conta todas essas opções e possibilidades, no sentido de


melhor resolvê-las.25
Além disso, acredita-se que a intervenção estereotipada do
sistema penal tanto age sobre a vítima, como sobre o delinqüen-
te: "todos são tratados da mesma maneira; supõe-se que todas
as vítimas têm as mesmas reações, as mesmas necessidades; o
sistema não leva em conta as pessoas em sua singularidade e
operando em abstrato, causa danos inclusive àqueles que diz
proteger" ,26 sentencia HULSMAN. Nesse sentido também CHRISTIE
assinala que a vítima no processo penal é em geral um perdedor
duplamente: em primeiro lugar, frente ao infrator, e depois
frente ao Estado, pois está excluído de qualquer participação
em seu próprio conflito: "e o Estado lhe rouba o conflito, um
todo que lhe é levado a cabo por profissionais.'
Com relação à reificação do conflito, BARATTA observa que "a
operação característica do processo penal é decidir se subsistem

Como exemplo das várias reações possíveis em uma dada situação


conflitiva: punitiva (reação penal típica), compensatória, terapêutica
(curativa) e conciliadora, HULSMAN figura hipótese bastante ilustrativa:
cinco estudantes moram juntos e, num determinado momento, um
deles se arremessa contra a televisão e a danifica, quebrando também
alguns pratos. Como reagem seus companheiros? É evidente, respon-
de, que nenhum deles vai ficar contente. Mas cada um, analisando
o acontecido à sua maneira, poderá adotar uma atitude diferente. O
estudante número 2, furioso, dirá que não quer morar com o primeiro
e fala em expulsá-lo da casa; o terceiro declarará: "o que se tem que
fazer é comprar uma nova televisão e outros pratos e ele que pague".
O quarto estudante, traumatizado com o que acabou de presenciar,
grita: "ele está evidentemente doente; é preciso procurar um médico,
levá-lo a um psiquiatra etc." O último ainda sussurra: "a gente achava
que se entendia bem, mas alguma coisa deve estar errada em nossa
comunidade, para permitir um gesto como esse. Vamos juntos fazer
um exame de consciência". Op. cit., p. 100.
Op. cit., p. 83-84.
Op. cit., p. 126.
94 FUNÇÕES DO DIREITO PENAL

as condições previstas pelo direito para dispor de uma interven-


ção do tipo repressivo sobre um conflito. Concretas situações
conflitivas encontram no processo penal um laboratório de
transformação teatral. A verdade a que está predisposto o rito
não é a verdade existencial, senão a verdade processual".28 O
sistema penal, enfim, coisifica, a um tempo, o drama de que se
ocupa, o delito, e os seus protagonistas: ofensor e ofendido. Dá-
se ao fenômeno criminal, sob todos os ângulos, uma resposta
insatisfatória e irracional.
6. O crime carece de consistência material (ontológica).
Caráter definitorial do delito: o crime não existe.29
Ressalta-se que, sob a etiqueta de "delito", agrupa-se toda
uma série de comportamentos que nada têm em comum (exceto
quanto ao fato de estarem criminalizados). Significa, ainda,
que o crime não é um objeto do sistema penal, senão resultado
mesmo do seu funcionamento. A criminalidade, sob essa pers-
pectiva, não existe por natureza, senão que é mais exatamente
uma realidade socialmente construída por meio de processos
de definição e interação.30 Adota-se, em toda sua extensão, o

Citado por MARTINEZ SANCHES, M. Op. cit., p. 62.


Adota-se, no particular, postulados do labelling approach (teoria do
etiquetamento), que tem em HOWARD S. BECKER seu principal repre-
sentante, para quem "os grupos sociais criam os desvios ao fazerem as
regras cuja infração constitui desvio e ao aplicarem essas regras a pessoas
particulares e rotulá-las como marginais e desviantes. Deste ponto de
vista, o desvio não é uma qualidade do ato que a pessoa comete, mas
uma conseqüência da aplicação por outras pessoas de regras e sanções
a um transgressor. O desviante é alguém a quem aquele rótulo foi apli-
cado com sucesso; comportamento desviante é o comportamento que
as pessoas rotulam como tal" (Outsideres, studies in the sociology of
desviance. Uma teoria da ação coletiva, p. 53 et seq., Cap. 1). O crime,
assim, é resultado da reação social. É uma etiqueta, um rótulo.
BARATTA, A. Op. cit., p. 109.
TEORIAS DESLEGITIMADORAS 95

teorema de THOMAS, segundo o qual se definem situações como


reais; são reais em suas conseqüências.31
Por isso que nada haveria na natureza do fato, na sua formação
intrínseca, que permitisse reconhecer se se trata, ou não, de um
crime, exceto a competência formal do sistema para intervir em
determinadas situações. O conceito de crime, observa HULSMAN,
não é operacional: "É a lei que diz o que é crime. É a lei que cria o
crime."32 Em termos semelhantes, CHRISTIE nota que o delito não
é uma coisa. É, antes, um conceito aplicado em certas situações
sociais onde é possível cometê-lo, e quando a uma ou a várias
partes interessa que assim se defina. Pode-se, assim, "criá-lo", a
seu ver, "criando sistemas que requeiram essa palavra; podendo-
se extingui-lo criando os tipos opostos de sistemas".33
Em conclusão, é a lei penal, segundo essa perspectiva, que,
criando certas figuras criminosas (erigindo-as à categoria de
criminosas), cria o crime.

Expressivas, no particular, são as investigações de FRITZ SACK: "1) Os


mecanismos de distribuição da qualidade negativa 'criminalidade' são
um produto de ajustes sociais como os que regulam a distribuição dos
bens positivos em uma sociedade; 2) a distribuição do bem negativo
'criminalidade' acontece da mesma maneira em que ocorre a distribuição
de bens positivos. Para a análise dela se utilizam conceitos que geral-
mente têm dado bom resultado em sociologia, como o status, modelos
de recrutamento, carreira, critérios de atribuição etc.; 3) A criminali-
dade, e de maneira absolutamente geral o comportamento desviado,
deve ser compreendida como um processo no qual os partners, por uma
parte [quem] se comporta de modo desviado e por outra quem define o
comportamento como desviado, são postos em frente do outro; 4) Neste
sentido, comportamento desviado é aquele que outros definem como
desviado. Não é uma qualidade ou uma característica que concerne ao
comportamento como tal, senão que é atribuída ao comportamento"
(Cf. BARATTA, A. Op. cit., p. 108-109).
Op. cit., p. 64.
Op. cit., p. 101.
96 FUNÇÕES DO DIREITO PENAL

O sistema penal intervém sobre pessoas, e não sobre


situações.
Argumenta-se que todo o sistema penal gira em torno da
idéia de culpabilidade individual (pessoal), desprezando por
completo o ambiente ou o sistema social em que se insere.
Culpam-se os indivíduos; ignoram-se os sistemas, as estrutu-
ras sociais. Segundo CHRISTIE, o fato decisivo é o delito, não os
desejos da vítima, não as características individuais do culpado,
não as circunstâncias particulares da sociedade local, sendo
que, ao excluir todos estes fatores, o sistema se converte em
uma negação de toda uma série de opções e possibilidades
que deveriam ser tomadas em consideração. "E um sistema",
escreve o criminólogo norueguês, "que permite a si mesmo ser
dirigido unicamente pela gravidade do ato, em nada contribui
para ter-se um conjunto satisfatório de modelos para os valores
da sociedade".34
A pessoa é assim considerada pelo direito penal como uma
variável independente e não como uma variável dependente
das situações.35 Vale dizer, a lei penal trabalha com imagens
falsas, pois se baseia em ações, ao invés de interações, funda-se
em sistemas de responsabilidade biológica e não em sistemas
de responsabilidade socia1.36
O sistema penal intervém de maneira reativa e não pre-
ventiva.
Nessa ordem de idéias, BARATTA argumenta que o controle
penal intervém quando as conseqüências das infrações já se
produziram, mas não efetivamente para evitá-las. Qualquer

Op. cit., p. 60-61.


BARATTA, A. Direitoshumanos: entre a violência estrutural e a violência
penal. Fascículos de Ciências Penais. Porto Alegre, 1993.
LARRAURI, E. Abolicionismo dei derecho penal: las propostas dei movi-
miento abolicionista. Poder y Cont rol, n. 3, p. 95-117, 1987.
TEORIAS DESLEGITIMADORAS 97

progresso que se possa realizar com relação à ampliação dos


direitos das vítimas, que tendem a ser os sujeitos mais lesados
nas situações conflitivas nas quais intervém o sistema de jus-
tiça penal, não altera o fato de que o referido sistema só passa
a atuar quando as pessoas já se transformaram em vítimas. As
conseqüências da violência não podem ser eliminadas efeti-
vamente, apenas simbolicamente. Por esta razão, o sistema de
justiça punitivo se apresenta como forma institucional e ritual
da vingança. Tal como a vingança, ele intervém com a pena,
em forma de violências para compensar simbolicamente um
ato de violência já realizado.37
O sistema penal atua só mediatamente, tardiamente.
Alega-se que o resultado da intervenção do sistema de jus-
tiça criminal (a sentença e a execução) não é imediatamente
posterior à prática do delito. Há um atraso no processo de
intervenção penal. Não obstante, no momento do juízo, con-
sidera-se o acusado como o mesmo indivíduo do momento da
realização do delito, embora se saiba que o indivíduo do mo-
mento da ação e reação penais não seja exatamente o mesmo;
acabando por prevalecer uma ficção de identidade, que não
corresponde à realidade.38
O sistema tem uma concepção falsa da sociedade.
O sistema penal supõe, e supõe falsamente, um modelo con-
sensual de sociedade, em que todos reprovam unanimemente
os comportamentos definidos como delituosos, que seriam,
assim, uma exceção consensualmente reprovada. Tem-se, por-
tanto, uma concepção dicotômica de sociedade: tudo é acordo
ou desacordo, social ou anti-social, mal ou bom. Representa,

BARATTA, A. Direitos humanos: entre a violência estrutural e a violência


penal. Fascículos de Ciências Penais. Porto Alegre: Fabris, 1993.
Idem.
98 FUNÇÕES DO DIREITO PENAL

por isso, uma candente negação do pluralismo necessário nas


sociedades heterogeneamente formadas e cujos interesses não
raro se conflitam.39
A lei penal não é inerente às sociedades.
Antes do estabelecimento da lei penal, havia outra forma
de manejar os conflitos e resolver os problemas, como a lei
civi1.4°
O sistema penal intervém sobre efeitos e não sobre as
causas da violência, isto é, sobre determinados comportamen-
tos por meio dos quais se manifestam os conflitos propriamente
ditos. E uma resposta sintomatológica, e não etiológica.
Em conclusão, é o sistema penal, de conformidade com a
crítica abolicionista, um subsistema de reprodução das desi-
gualdades materiais, cujo sofrimento, materializado por meio
de penas legais ou não, é seletiva e inutilmente imposto a certa
categoria de pessoas. As penas, legais ou ilegais, são penas
perdidas.
4.3 O minimalismo radical ou abolicionismo mediato
4.3.1 Introdução
Diferentemente do abolicionismo, o minimalismo penal
aqui tratado, embora partilhando, em geral, da crítica abo-
licionista, propõe, imediatamente, a máxima contração do
âmbito de atuação do sistema penal, preservando-o, assim,
residualmente, e só mediatamente a abolição — a longo prazo
— desse subsistema de controle social. Assim, ZAFFARONI, que
é de opinião que o direito penal mínimo é uma proposta que
deve ser apoiada por todos que deslegitimam o sistema penal,

MARTÍNEZ SANCHES, M. La abolición dei sistema penal, p. 58.


LARRAURI, E. Op. cit.
TEORIAS DESLEGITIMADORAS 99

porém não como meta insuperável, mas como passo ou trânsito


para o abolicionismo»
A perspectiva minimalista radical reconhece o sistema penal
como um subsistema de reprodução seletiva de desigualdades
materiais, criminógeno e incapaz de realizar suas funções de-
claradas, mas considera impossível a supressão desse sistema
sem que se desencadeiem, previamente, mudanças sociais es-
truturais, razão por que a preservação tática do direito penal é
necessária enquanto não se operam tais mudanças. Mas isso não
impede que se amplie» em alguns casos, a intervenção penal
(neo-criminalização), desde que seja absolutamente necessária
à proteção de interesses sociais fundamentais (saúde pública,
meio ambiente etc.).
Essa contração do sistema operar-se-á principalmente por
meio da descriminalização de condutas para cuja repressão
seja inadequada a intervenção do sistema penal, seja pelos
custos sociais que dela resultam, seja pela ineficácia dessa in-
tervenção, seja, ainda, pela possibilidade de se poder submeter
a controles mais apropriados, jurídicos (civil, administrativo,
processual) ou não, como educação, assistência social, inter-
venções comunitárias etc. Outras tantas formas de contração do
sistema são propostas: despenalização, diversificação, adoção
do princípio da oportunidade, adoção de penas alternativas
prisão, COM vistas à sua abolição etc. ZAFFARONI ressalta, porém,
que a redução do marco de intervenção penal deve ocorrer
sempre que essa renúncia à pena não seja um recurso formal
para aumentar o poder configurador de outras agências, razão

Op. cit., p. 83.


BARATTA, por exemplo, é de opinião que se deve reforçar a tutela penal
em campos de interesses essenciais para a vida dos indivíduos e da
comunidade: saúde, segurança do trabalho, integridade ecológica etc.
Crirninologia crítica y crítica dei derecho penal..., cit., p. 214.
100 FUNÇÕES DO DIREITO PENAL

pela qual a renúncia à intervenção punitiva deve corresponder


a uma renúncia ao modelo punitivo onticamente considerado."
Insurge-se, assim, contra manifestações simplesmente aparen-
tes de redução da violência institucional, mas que, em verdade,
encerram um aumento real do poder do sistema.'"
4.3.2 Papel de um direito penal assim residual e mínimo provi-
sórios
Mas que função poderá ou deverá cumprir um direito penal
(residual e mínimo) assim declaradamente deslegitimado? As
respostas a essa indagação, embora possam convergir, não são,
entretanto, rigorosamente as mesmas.
Para BARATTA, em especial, a melhor política criminal"
corresponde a uma política de transformação das estruturas
sociais e de poder, uma política, enfim, de minimização das
desigualdades sociais, salientando que dentre os instrumentos
de política criminal, o direito penal é o mais inadequado," pelas
razões já assinaladas. Daí por que não se trata de uma política de
"substitutivos penais", vagamente reformista e humanitária, mas,
sim, de uma política muito mais ambiciosa, de levar a cabo pro-
fundas reformas sociais e institucionais para o desenvolvimento
da igualdade, da democracia, de formas de vida comunitária e

Op. cit., p. 142.


Cita-se, como exemplo disso, o que ocorre com menores, loucos etc.,
cujo procedimento específico sofre uma sensível relativização das
garantias do processo.
Este autor, que se declara um "abolicionista realista", utiliza as ex-
pressões "política-criminal" e "política-penal" diferentemente. Com
a primeira, quer referir-se a uma política de transformação social e
institucional; com a segunda, uma resposta à questão criminal relativa
ao exercício da função punitiva do Estado (lei, sua aplicação, execução
da pena e medidas de segurança) (Criminologia critica..., p. 213).
BARArrA, A. Idem, p. 214.
TEORIAS DESLEGITIMADORAS 101

civil alternativas e mais humanas.47 Enfim, a melhor política


criminal é uma política não-penal, que se socorre de interven-
ções que vão às raízes dos problemas, uma resposta etiológica,
e não uma resposta sintomatológica apenas.
Por isso que à criminologia caberá, segundo BARATTA, elabo-
rar uma teoria materialista (econômico-política) da desviação,
dos comportamentos socialmente negativos e da criminali-
zação e traçar as linhas de uma política criminal alternativa,
de uma política das classes subalternas no setor da desviação,
vale dizer, quer-se uma ciência capaz de penetrar na lógica das
contradições que a realidade social apresente e apreender as
necessidades dos indivíduos e da comunidade em seu conteúdo
historicamente determinado, para orientar a descrição das re-
lações sociais de desigualdade que refletem o sistema penal."
Em conclusão: BARATTA, dentro de um modelo integrado
de política criminal alternativa, assinala ao direito penal um
papel — relativo e provisório — tríplice: a) defesa de garantias
liberais fundamentais; b) defesa frente ao direito penal mesmo
pela redução do seu campo de intervenção; c) defesa de certos
interesses sociais ante à falta de alternativas."
Já ZAFFARONI entende que o direito penal, como programa-
ção da operatividade da agência judicial, deve permanecer, e
inclusive ampliar o seu âmbito, na medida em que a intervenção
dessa agência resulte menos violenta que as outras formas ou
modelos efetivamente disponíveis de decisão de conflitos.50
Acredita, ainda, que, ante a evidente carência do poder da
agência judicial para abolir o sistema penal e substitui-lo por

Idem, p. 214.
Idem, p. 209-211.
BARATTA, A. Op. cit., p. 239-240.
Op. cit., p. 84.
102 FUNÇÕES DO DIREITO PENAL

mecanismos de solução de conflitos (análoga à falta de poder


da Cruz Vermelha Internacional para suprimir os conflitos
bélicos), as agências judiciais, como objetivo imediato, devem
proceder conforme um discurso que trace os limites máximos
da irracionalidade tolerável na seleção criminalizante do sis-
tema penal."
4.3.3 Critica
Diversas são as objeções que, contemporaneamente ao
reconhecimento do mérito da crítica abolicionista, se lhe for-
mulam.
As críticas mais contundentes procedem de FERRAJOLL Para
ele, o abolicionismo penal, muito além de suas intenções liber-
tárias e humanitárias, configura-se como uma "utopia regressi-
va" que, sob pressupostos ilusórios de uma sociedade boa e de
um Estado bom, apresenta modelos em realidade desregulados
ou autorregulados de vigilância e/ou castigos em face dos quais
é o direito penal — com seu complexo, difícil e precário sistema
de garantias, que constitui, histórica e axiologicamente, uma
alternativa progressista.52 Assinala, ainda, o menosprezo abo-
licionista por qualquer enfoque garantis ta, confundindo, num
rechaço único, modelos penais autoritários e modelos penais
liberais, e não oferecendo contribuição alguma à solução dos
graves problemas relativos à limitação e ao controle do poder

Idem, p. 190. Também à semelhança de BARArrA (e do próprio FERRAJOLI) ,


que fala de princípios intra e extrassistemá ticos, propõe o citado autor
a adoção de princípios para limitação da violência penal, princípios
que basicamente coincidem com aqueles.
Op. cit., p. 341. A despeito disso, diz mais adiante FERRAJOLI que "quiçá
a verdadeira utopia não seja hoje a alternativa ao direito penal, senão
o direito penal mesmo e suas garantias; não o abolicionismo, senão o
garantismo mesmo, de fato inevitavelmente parcial e imperfeito" (p.
342).
TEORIAS DESLEGITIMADORAS 103

punitivo."53 Finalmente, ressalta os riscos, em especial, de uma


provável sociedade disciplinária que se sucederia à abolição do
direito penal e seu código de garantias.54
Conclusivamente, para FERRAJOLI, a defesa do direito penal
corresponde à defesa da liberdade física da transgressão, proi-
bida deonticamente, mas não materialmente, isto é, o direito
penal se configura como uma técnica de controle social que,
com a liberdade física de infringir a lei com o preço da pena, ga-
rante a liberdade de todos.55 Abolir o direito penal seria, assim,
abolir a liberdade mesma, dando lugar a controles autoritários
(individuais, coletivos ou estatais) e sem limites.56
Em termos semelhantes, é a crítica de BUSTOS RAMIREZ,
para quem a alternativa abolicionista significaria uma simples
"fraude de etiquetas", pois que continuaria a existir, ainda que
com nome diverso, um direito sancionador, também seletivo
e discriminador, já que não desapareceriam as estruturas do
Estado que lhe dão vigência, mas, e o que é pior, sem garantia
alguma.57 Critica-se também o fato de os críticos do sistema
privilegiarem funções latentes ao tempo em que desprezam
funções manifestas e instrumentais.
Censura-se-lhe, ainda, a negatividade.58 Nesse sentido,
DAVID E GREENBERG afirma que aqueles que estão na oposição

Idem, p. 251.
Idem, p.338 et seq.
Idem, p. 339.
LARRAURI, no entanto, julga possível fixar tais limites ou garantias por
meio de uma lei não penal, civil, por exemplo. Entretanto, teme que
essa civilização do direito penal se converta numa criminalização da lei
civil. Op. cit., p.107.
Introducción ai derecho penal, p. 195-196.
Em especial, SCHEERER, S. Hacia el abolicionismo. Abolicionismo penal,
p. 24.
104 FUNÇÕES DO DIREITO PENAL

são incapazes de fazer algo mais que criticar, é dizer, incapazes


de ser mais que negativos. E sem uma visão precisa de uma
alternativa positiva, poucos se verão inspirados a "assumir a
árdua tarefa de lutar por uma mudança radical" .59
Recentemente, SCHEERER pôs em dúvida, criticamente, os
fundamentos da perspectiva abolicionista, concluindo que
abolicionismo tem um longo caminho a percorrer, tendo
de pesquisar mais profundamente os possíveis equivalentes
funcionais ao sistema pena1,6° uma vez que, de fato, se conhe-
cemos hoje um pouco melhor o sistema penal e sua realidade
operativa, mas não o bastante para sustentar a sua abolição
imediata, pouco sabemos sobre as possíveis alternativas a ele.
Não é sem razão, aliás, a afirmação de COHEN, no sentido de que
abolicionismo é uma mescla peculiar do altamente concreto,
do profundamente visionário e de um alto nível de especulação
epis temoló gica.61
É realmente pouco provável que as mesmas reações (não
punitivas) pudessem ser pacificamente aceitas, se, ao revés de
um simples dano, conforme o exemplo de HULSMAN antes citado,
outro fosse o crime, um crime, por exemplo, praticado com
violência, v. g. , homicídio, roubo seguido de morte, estupro ou
um seqüestro seguidos do mesmo resultado, genocídio, atos de
terrorismo etc. ,62 especialmente em se tratando de condenados

Citado por SCHEERER, S. Op. cit. Tal vale sobretudo para aqueles autores
como MATHIESEN e HULSMAN, que insistem em rechaçar a idéia de pensar
alternativas para o sistema penal.
Um desafio para o abolicionismo. Conversações abolicionistas, p. 219-
235.
Introducción. Abolicionismo penal, p. 13.
Em palavras de GARCIA-PABLOS DE MOLINA: "O Direito Penal goza de boa
saúde. É utópico vaticinar sua desaparição, inclusive a médio ou largo
prazo. Isso sim, o atual Direito Penal há de experimentar transforma-
ções substanciais. Está chamado a intervir menos nas relações sociais
TEORIAS DESLEGITIMADORAS 105

recidivos. É mais provável que, em muitos casos, tivesse lugar


o justiçamento privado, em virtude da falta de alternativas,
como ocorre presentemente, aliás, apesar do direito penal.
Uma coisa é ter um sistema penal falho, outra é não ter sistema
penal algum, ou outra alternativa aceitável pela generalidade
das pessoas.
Convém redargüir ainda que a crítica abolicionista não é
propriamente uma crítica ao subsistema penal, mas ao siste-
ma social mesmo. E toda crítica que se lhe faz vale para todo
e qualquer subsistema de controle social, conseqüentemente.
O direito civil, o direito do trabalho, o direito tributário, por
exemplo, são tão seletivos, tão violadores de garantias constitu-
cionais e podem ser tão violentos quanto o direito penal. Nem
por isso se conhece uma teoria abolicionista do direito civil,
trabalhista ou tributário. A ser coerente, o abolicionismo teria
que se estender a todo controle social, a começar pelos controles
jurídicos não-penais, não se limitando ao direito penal.
Finalmente, o minimalismo radical tem sido igualmente
criticado — assim, SMAUS -63 ao argumento de que a pena é ma-
nifestação de violência em defesa e reprodução de um sistema,
razão por que não se pode ao mesmo tempo invocá-la para
outros fins. Afirma-se ainda que pregar abolição do direito
penal a longo prazo, sem se dizer como e quando, é praticar
futurologia.

e conflitos comunitários, a verificar racionalmente seu objetivo e a


ponderar empiricamente o custo social real de sua intervenção. De-
verá potenciar as exigências garantistas e melhorar qualitativamente
seus instrumentos, dando passo a outros menos devastadores. Não se
trata, pois, da desaparição do Direito Penal, senão de sua progressiva
racionalização e penalização". Derecho penal: introducción, p. 58.
63. Citado por MARTINEZ SANCHES, M. Qué paca...?, cit., p. 36-41. Entende a
autora, ainda, que atacar as bases do direito penal e ao mesmo tempo exigir
sua preservação, ainda que residual e taticamente, é relegitimá-lo.
106 FUNÇÕES DO DIREITO PENAL

Critica-o também SILVA SÁNCHEZ,64 por considerar que uma


tal proposta é a um tempo anacrônica e ucrônica, visto que
um direito penal mínimo como ora se defende jamais existiu
historicamente, além de ser claramente incompatível com a
complexidade das sociedades contemporâneas (sociedades de
riscos), cujos riscos produzidos pelos mais variados avanços
tecnológicos reclamam cada vez mais proteção, proteção penal
inclusive.
Contra semelhante argumentação, pode-se objetar que a
ciência penal não é a descrição de direito como é, mas a projeção
do direito que deve ser (FitANGIER1).

64. La expansion dei derecho penal. Madrid: Civitas, 1999.


TERCEIRA PARTE
CONSIDERAÇÕES FINAIS:
BASES CRÍTICAS DE UM
NOVO DIREITO PENAL
5
DIREITO PENAL E POLÍTICA SOCIAL

Falar de direito penal é falar inevitavelmente de violência,


mas não apenas da violência que é materializada pelos fatos
considerados delituosos (homicídio, latrocínio, estupro), como
é falar também da violência que é o próprio direito penal e seus
modos de atuação, pois ele é em si mesmo violência, seletiva,
desigual, e de discutível utilidade, de sorte que tão grave e
importante quanto o controle da violência é a violência do
controle (VERA ANDRADE) . A pena de morte, as penas privativas
da liberdade, as prisões cautelares, por exemplo, distinguem-se
do homicídio e do seqüestro pelo só fato de que aqueles cons-
trangimentos estão autorizados pelo direito, enquanto estes
últimos não, ou seja, a pena de morte e as medidas privativas
da liberdade outra coisa não são senão autênticos homicídios
e seqüestros levados a cabo pelo Estado legalmente. O direito
penal é enfim uma espada de duplo fio, porque é lesão de bens
jurídicos para proteção de bens jurídicos (VoN LiszT); é violên-
cia a serviço do controle da violência, portanto.
Ademais, é certo que quem pretenda compreender inter-
pretar e aplicar o direito penal criticamente, não pode ignorar
que de fato o sistema penal assenta sobre fundamentos teóricos
(prevenção de delitos, proteção de bens jurídicos, culpabilida-
de, igualdade etc.) no mínimo duvidosos; e a sua necessidade é
em todo caso questionável, sobretudo em face da excepcionali-
dade de sua intervenção (as cifras ocultas), da duvidosa eficácia
motivadora de sua intervenção, da possibilidade de apelo a
outras formas de controle social e da arbitrária seletividade do
seu funcionamento ordinário.
110 FUNÇÕES DO DIREITO PENAL

Mas se isso é verdadeiro, também é certo que não podemos


abdicar pura e simplesmente do direito penal, como pretende o
abolicionismo penal, mesmo porque, ainda quando semelhante
pretensão fosse realmente factível, teríamos que passar neces-
sariamente por um processo gradual de descriminalização, até
alcançarmos tal estágio. No entanto, o que se tem verificado
atualmente é uma expansão descomunal do sistema, em que
praticamente tudo ou quase tudo é criminalizado.'
Não bastasse isso, abolir o sistema penal seria, no máximo,
abolir o sistema penal formal (oficial), legitimando, de certo
modo, os sistemas penais informais (grupos de extermínios,
ação de justiceiros etc.) que atuam sem nenhum controle, pos-
sibilitando a multiplicação de ações dessa natureza, se abolido
fosse o direito penal formal.
Num tal contexto, bem mais razoável é propugnar por um
direito penal mínimo na linha proposta por BARATTA, ZAFFARONI,
FERRAJOLI, HASSEMER e Outros, entendendo-se, COMO SCHEERER,
que no particular reduzir é melhor que aumentar, que substituir
é melhor que reduzir.2
Naturalmente que direito penal mínimo, que é o mesmo que
se dizer, direito penal da Constituição ou conforme a Consti-
tuição,3 não é em si uma solução, mas parte da solução, pois o
decisivo para o controle racional da criminalidade, a par da
eficientização/democratização do controle social não-penal
é privilegiar intervenções estruturais (etiológica) — e não

Sobre o assunto, SILVA SÁNCHEZ, J. M. La expansion dei derecho penal. Madrid:


Civitas, 1999.
Entrevista concedida a PAULO QUEIROZ, em 1.0 de agosto de 2000, disponível no
site <www.pauloqueiroz.net>.
No mesmo sentido, BARATIA, A. La política criminal y el derecho penal de la
Constitución: nuevas reflexiones sobre el modelo integrado de las ciencias penales.
Revista Brasileira de Ciências Criminais, p. 43, ano 8, jan.-mar. 2000.
DIREITO PENAL E POLÍTICA SOCIAL 111

simplesmente individualizadas e localizadas (sintomatológica)


— sobretudo com vistas a melhorar as condições de vida das
populações marginalizadas, por meio de políticas sociais de
integração social do homem. Um direito penal mínimo não é
só, portanto, um programa de um direito penal mais justo e
mais eficaz; é também parte de um grande programa de justiça
social e pacificação dos conflitos.4 Assim postas as coisas, terá
direito penal um papel bastante modesto e subsidiário de
uma política social de largo alcance, mas nem por isso menos
importante. Uma boa política social ainda é a melhor política
criminal (MEzGER).
Porque no fundo segurança e proteção têm pouco a ver com
a proteção penal ou com o aumento da sua carga repressiva,
isto é, o controle (real) da criminalidade tem pouco a ver com
controle penal (polícia, juízes etc.). E mais importante: a
necessidade de segurança dos cidadãos não é somente uma
necessidade de proteção da criminalidade e de processos de
criminalização, pois a segurança dos cidadãos corresponde tam-
bém à necessidade de estar e sentir-se garantidos no exercício
de todos os seus próprios direitos: direito à vida, à liberdade,
ao livre desenvolvimento da personalidade e das suas próprias
capacidades; direito de expressar-se, de comunicar-se, direito à
qualidade de vida, assim como o direito de controlar e influir so-
bre as condições das quais depende, em concreto, a existência de
cada um. Enfim, a relação existente entre garantismo negativo
— limites ao poder punitivo — e garantismo positivo — assegurar
as condições de poder viver condignamente (realização dos
direitos sociais) —equivale à relação que existe entre política de
direito penal e política integral de proteção dos direitos.5

Idem, p. 43.
Idem, p. 48-49.
6
DIREITO PENAL E ESTADO
DEMOCRÁTICO

SUMÁRIO: 6.1 Natureza instrumental e subsidiária do direito


penal — 6.2 A liberdade como regra; a não-liberdade como
exceção: o direito penal como afirmação da liberdade — 6.3
Função principal do direito penal— Prevenção geral negativa-
subsidiária: 6.3.1 Prevenção sem direito penal; 6.3.20 direito
penal como sistema de garantias; 6.3.3 Prevenção especial
como parte da prevenção geral; 6.3.4A retribuição como limite
da prevenção —6.40 delito como conflito: a flexibilidade do
direito de punir.

Nas sociedades contemporâneas, em que, como em geral, o


papel do Estado e de suas instituições estão previamente defi-
nidos pelas Constituições promulgadas, as quais, por sua vez,
estabelecem os pressupostos de criação, vigência e execução
do resto do ordenamento jurídico, convertendo-se assim em
elemento de unidade,1 e em cujos textos já se acham constitu-
cionalizados os direitos e garantias fundamentais (entre nós, CF,
art. 5.0), o papel do direito, e em particular, do direito penal,
parece estar, por conseqüência, ao menos em linhas gerais,
já constitucionalmente definido. Saber quais as funções que
se devem creditar ao direito penal implica saber, por isso, as
funções constitucionalmente assinaladas ao Estado. O perfil
do direito penal — autoritário ou democrático — depende,
portanto, da conformação político-constitucional que se

1. HESSE, Konrad. Escritos de derecho constitucional, p. 17.


DIREITO PENAL E ESTADO DEMOCRÁTICO 113

lhe dá (ao Estado).2 Afinal, as funções do direito e do Estado


são, em última análise, uma só e mesma função:3 possibilitar
a convivência social, proporcionar o exercício da liberdade,
condicionar e controlar a violência.
Definir os fins e os limites do direito de punir pressupõe, por
conseguinte, conhecer os fins e os limites do próprio Estado.4
E o faz a Constituição Federal, explícita ou implicitamente,
fixando as bases e os limites do direito pena1,5 que é o braço
armado da Constituição Nacional.6 Os limites do direito penal
são os limites do Estado.
E assim é porque o direito penal não é senão um dos muitos
instrumentos de política criminal de que se vale o Estado para

Como observa MIR PUIG: "A retribuição, a prevenção geral e a pre-


venção especial não constituem opiniões ahistóricas, senão diversos
cometimentos que distintas concepções do Estado têm assinalado em
diferentes momentos ao Direito Penal. Não se trata, pois, de perguntar
só pela função 'da pena', em abstrato, senão de averiguar que função
corresponde à pena no Direito penal próprio de um determinado
modelo de Estado." E, mais adiante, "enquanto Direito penal de um
Estado social, deverá legitimar-se como sistema de proteção efetiva dos
cidadãos, o que lhe atribui a missão de prevenção da medida e só na
medida do necessário para aquela proteção. Isso já constitui um limite
à prevenção. Porém, enquanto Direito penal de um Estado democrático
de Direito, deverá submeter a prevenção penal a outra série de limites"
(Derecho penal, p. 64-65).
Como assinala FERRAJOLI, o problema da legitimação ou justificação do
direito penal envolve em sua raiz a questão mesma da legitimidade do
Estado. Derecho y razón: teoria dei garantismo penal, p. 210.
Divirjo, pois, de SILVA SÁNICHEZ, quando afirma que "o Direito positivo,
tanto em nível constitucional como em nível legal, não proporciona a
imagem de um modelo concreto sobre os fins do Direito Penal" (Apro-
ximación..., p. 194).
Entendo, apesar disso, que não colide com a Constituição uma política
criminal abolicionista.
Expressão de PEREZ, Luiz Carlos. Tratado de derecho penal, p. 42-43.
114 FUNÇÕES DO DIREITO PENAL

a realização dos fins que lhe são constitucionalmente assinala-


dos (CF, arts. 1.0 a 5.0). Mais claramente: o homicídio, a lesão
corporal, a calúnia, o estupro, o seqüestro, o roubo etc. —isto é,
declarar tais comportamentos como criminosos, submetendo-
os a seguir a uma disciplina especialmente dura — são parte da
estratégia política dirigida a assegurar a vigência dos valores
constitucionais fundamentais: a inviolabilidade da vida, da
integridade física, da honra, da liberdade, da propriedade (art.
5.0). Ou seja, ao menos da perspectiva do Estado, o direito penal
não é uma exigência natural, moral, divina ou transcendental
de qualquer tipo, é, isto sim, uma alternativa política com vistas
a assegurar a preservação de determinados interesses vitais.
É parte da anatomia política;7 necessidade política enfim; ou,
como consta do Alternatív-Entwwf alemão, o direito penal não
é um sucesso metafísico, mas uma amarga necessidade de uma
sociedade de seres imperfeitos.
E uma teoria que pretenda refundar o papel do direito penal,
relegitimando-o a partir dos valores e princípios constitucio-
nais, não pode desconhecer as funções reais que ele cumpre.
Vale dizer, para redefinir os fins que se deve creditar ao direito
penal é preciso ter seriamente em conta as suas limitações
estruturais: seletividade, localidade, excepcionalidade, con-
tingencialidade, conseqüencialidades etc.

FOUCAULT, M. Vigiar e punir História da violência nas prisões.


Com empregar tais termos, quero referir respectivamente o seguinte:
a) que o sistema penal recruta, de fato, sua clientela entre os grupos
mais vulneráveis, inevitavelmente; b) que atua sobre as manifestações
pontuais (locais) e pessoais dos problemas sociais que geram os con-
flitos rotulados pela lei como crime, ou delito ou contravenção; incide
sobre pessoas, enfim, e não sobre situações ou estruturas; c) atua
sobre situações excepcionais, eis que a maioria dos casos passíveis de
repressão penal passa ordinariamente ao largo do conhecimento ou
da atuação do sistema penal; d) que a possibilidade de a norma penal
DIREITO PENAL E ESTADO DEMOCRÁTICO 115

Também não se pode perder de vista a violência inerente a


essa forma de intervenção estatal, cuja atuação não raro está
associada a uma violência desregrada e de difícil controle e
ainda mais perigosa, que é a sistemática violação dos direitos
humanos pelos agentes incumbidos dessa função. Enfim, a
pretexto combater a criminalidade, o sistema penal acaba,
muitas vezes, por violar direitos humanos sistematicamente,
praticando violências iguais ou maiores.
É de convir assim que, de todas as formas de política social
de que se pode valer o Estado para condicionar a violência, fran-
queando o exercício da liberdade, o direito penal representa a
mais inadequada dessas formas, seja pelas limitações estruturais
de sua atuação, seja pelos custos sociais que ordinariamente
implica, seja pela violência que lhe é inerente.
A questão decisiva consiste em saber, portanto, quando a
intervenção penal é legítima e conveniente, isto é, saber se,
quando e como deve ter lugar semelhante estratégia, sempre
condicionada pelos valores e princípios constitucionais que,
expressa ou tacitamente, imediata ou mediatamente, regem o
direito de punir. Desnecessário dizer que o juízo de conveniên-
cia ou utilidade constitui critério necessário, mas insuficiente
para justificar a intervenção jurídico-penal, pois a pena deve
ser a um tempo justa e necessária (útil).

6.1 Natureza instrumental e subsidiária do direito penal


E sob a égide de um Estado Democrático de Direito (CF,
arts. 1.0 a 50), em que "todo poder emana do povo, que o exerce

atuar sobre o ânimo do potencial infrator, inibindo-o de alguma forma,


depende do concurso de uma série de circunstâncias e, em todo caso,
é duvidosa sua eficácia motivadora; e) que é cirúrgica, atuando sobre
as conseqüências, os sintomas, dos conflitos, não lhe alcançando as
causas.
116 FUNÇÕES DO DIREITO PENAL

por meio de seus representantes eleitos ou diretamente" (CF,


art. 1.0 , parágrafo único), resulta que os castigos impostos
pelo direito penal não são um fim em si mesmo, mas um meio
a serviço dos fins constitucionalmente assinalados ao Estado:
proteção da vida, da liberdade, da integridade física, da saúde
pública (art. 5.0) etc. E por ser a forma mais violenta de inter-
venção na vida dos cidadãos, os quais são a razão e o fim do
Estado, segue-se necessariamente que semelhante intervenção
somente deve ter lugar quando seja absolutamente necessária
segurança desses mesmos cidadãos. O direito penal deve ser
enfim a extrema ratio de uma política social orientada segun-
do os valores constitucionais. Semelhante intervenção há de
pressupor o insucesso das instâncias primárias de prevenção e
controle social, família, escola, trabalho etc., e de outras formas
de intervenção jurídica, civil, trabalhista, administrativa. Vale
dizer: a intervenção penal, quer em nível legislativo, quando
da elaboração das leis, quer em nível judicial, quando da sua
interpretação/aplicação, somente se justifica quando seja real-
mente imprescindível.
Uma tal perspectiva conduz assim a um modelo de política
criminal radicalmente descriminalizador; conduz a um modelo
de direito penal mínimo, que nos parece o mais condizente
com a Constituição, sobretudo em virtude de sua declarada
vocação libertária.
6.2 A liberdade como regra; a não-liberdade como exceção:
o direito penal como afirmação da liberdade
Parece também evidente, em face do princípio da invio-
labilidade da liberdade (CF, art. 5.0), que a liberdade é neste
regime a regra; a não-liberdade, a exceção. Disso resulta que
toda restrição jurídico-penal no particular há de pressupor
a absoluta necessidade e adequação desse modo cirúrgico
de intervenção estatal, vale dizer, violações autorizadas da
DIREITO PENAL E ESTADO DEMOCRÁTICO 117

liberdade pelo direito penal somente podem ser toleradas


quando necessárias à afirmação da liberdade mesma, razão pela
qual crime só pode consistir numa lesão grave à liberdade de
alguém, isto é, lesão a um bem jurídico definido, não se tole-
rando intervenções pedagógicas ou moralizadoras para coibir
comportamentos que não lesam ninguém (v. g., porte ilegal de
droga e o próprio tráfico entre adultos) ou possam ser objeto de
suficiente repressão fora do direito penal (civil, administrativo
etc.), como, por exemplo, as contravenções penais. Porque a
liberdade, no sistema democrático, é a um tempo o limite e o
fim do direito penal.
Não quer isso significar que só ataques à liberdade indivi-
dual justifiquem a intervenção penal. Obviamente, com maior
força de razões, justificam-na interesses coletivos desde que
sejam claramente individualizáveis, isto é, que protejam bens
jurídicos realmente.
6.3 Função principal do direito penal — Prevenção geral
negativa-subsidiária
Resulta assim que, sob a égide de um Estado a que se comete
funções relativas exclusivamente, não pode ser fim da pena o
retribuir por retribuir, nem o pretender fazer justiça sobre a
terra, mas simplesmente possibilitar, em termos mui relativos
e limitados, isto é, subsidiariamente, e dentro duma política
social de largo alcance (intervenção de caráter etiológico), a
convivência social, condicionando o exercício da liberdade,
coibindo o arbítrio e, por conseqüência, a violência mesma. O
Estado, ao declarar, portanto, determinados comportamentos
como delituosos, pretende prevenir em caráter residual sua
reiteração, protegendo determinados bens jurídicos; busca-se
controlá-lo minimamente quando semelhante fim não se possa
lograr por outros meios menos onerosos à liberdade e para cuja
finalidade possa o direito penal concorrer utilmente.
118 FUNÇÕES DO DIREITO PENAL

Também por isso, impõe-se a não-intervenção naqueles


domínios em que o direito penal se revele claramente ineficaz
ou contraproducente, como é o caso do lenocínio, aborto, jogo
do bicho, tráfico ilícito de drogas etc., em que muitos são os
males que resultam da clandestinidade decretada pelo direito
penal, onde não há controle algum. Nesse sentido, a prevenção
geral negativa-subsidiária parece ser o único critério compatível
com um modelo de política criminal minimamente racional, a
ser permanentemente reavaliado, em que se possa confrontar
custos e benefícios da intervenção jurídico-penal.

6.3.1 Prevenção sem direito penal

Como se vê, prevenir comportamentos delituosos nem


sempre significa apelar ao direito penal, uma vez que não raro
sua intervenção se revela criminógena, atuando contrariamente
aos fins visados. Prevenir significará assim renunciar à inter-
venção jurídico-penal, por não existir adequação entre meio e
fim. Exemplo desse efeito contraproducente ou criminógeno da
pena é a política de controle do tráfico ilícito de entorpecentes e
da contravenção do jogo do bicho, porque a violência inerente
a tais atividades é resultado da intervenção penal mesma.9 A
abolição do direito penal em tais atividades e noutras tantas é
uma exigência de racionalidade que deve sempre presidir os
atos do Estado.

9. Como disse noutro lugar: "Paradoxalmente, a repressão arbitrária ao


comércio de entorpecentes somente interessa ao próprio traficante,
pois é ela, a repressão, que lhe assegura a viabilidade dos negócios e a
extraordinária lucratividade. O tráfico ilícito de entorpecentes, enfim,
tal qual o conhecemos, e com tão assustadora aparência, é, no fundo,
um monstrengo concebido e gerado pelo próprio sistema penal." Do
caráter subsidiário do direito penal: lineamentos para um direito penal
mínimo, p. 116.
DIREITO PENAL E ESTADO DEMOCRÁTICO 119

6.3.2 O direito penal como sistema de garantias


Não se pode ignorar ainda que o direito penal tem um papel
importante de garantidor dos direitos fundamentais frente ao
arbítrio realizável pelo Estado ou pelo indivíduo, já que lhe
cabe delimitar os pressupostos e limites da intervenção penal
e processual, assim como os direitos e deveres da vítima e do
próprio réu. O direito e processo penais traçam os lindes do jus
puniendi, seja quanto aos poderes, deveres e direitos do Estado,
seja quanto aos do réu, seja quanto aos da vítima. Por meio do
direito penal previnem-se também eventuais reações públicas
ou privadas arbitrárias, mesmo que em caráter precário.
6.3.3 Prevenção especial como parte da prevenção geral
Embora não seja missão do Estado moralizar seus jurisdi-
cionados, por meio da violência dos instrumentos punitivos, é
dever seu proporcionar, e sem pretender alterar seus esquemas
de valores, as condições necessárias à reintegração do cidadão
infrator à vida social, quando disso necessite. Prevenção geral
e especial têm em última análise o mesmo objetivo: a evita-
ção de delitos como forma de proteção de bens jurídicos.1°
Nesse sentido as penas privativas da liberdade que conspiram
grandemente contra a reintegração do cidadão infrator à vida
comunitária devem ser progressivamente abolidas.
6.3.4 A retribuição como limite da prevenção
No entanto, por mais que motivos de prevenção geral re-
clamem a intervenção penal e a exasperação das penas, tal terá
de sempre guardar proporção com a lesão jurídica praticada,
inclusive por imposição constitucional, devendo orientar-se

10. MIR PUIG, S. Función de la pena y teoria dei delito en el estado social y
democratico de derecho, p. 39.
120 FUNÇÕES DO DIREITO PENAL

pela culpabilidade do agente do delito. Quer isso significar


também que a pena ou medida de segurança supõem sempre o
cometimento de um injusto penal culpável e punível, devendo
guardar proporção com ele. Nesse sentido, a culpabilidade do
autor constitui um limite à prevenção. Aliás, as medidas de
segurança devem exigir necessariamente, os mesmos pressu-
postos da pena: fato típico, ilícito e culpável, distinguindo-se
apenas quanto às conseqüências: a pena se destina aos impu-
táveis, as medidas de segurança aos inimputáveis, porque do
contrário violar-se-á o princípio da isonomia, em prejuízo do
mais frágil, o inimputável.'i
Mas semelhantes limitações ao poder punitivo do Estado
já estão também previamente delimitadas pela Constituição,
razão pela qual, por exemplo, medida de segurança por tempo
indeterminado, enquanto perdure a periculosidade do inim-
putável, como ainda prevê o nosso Código Penal (art. 97, §
1.0), é claramente inconstitucional por manifesta violação do
espírito democrático, além de atentar contra o princípio da
não-perpetuação da pena (CF, art. 5.°, XLVII, b), bem como os
princípios de igualdade e de proporcionalidade.12

6.4 O delito como conflito: a flexibilidade do direito de


punir

Ademais, se o que chamamos crime ou contravenção é uma


definição legal, carente de substrato material, segue-se que
fim do direito penal é o fim de todo direito: decidir conflitos
de interesse.

Para maiores detalhes, QUEIROZ, Paulo. Direito penal—Parte geral. 3. ed.


São Paulo: Saraiva, 2006.
Sobre o assunto, GOMES, Luiz Flávio. Duração das medidas de segurança.
RT 663.
DIREITO PENAL E ESTADO DEMOCRÁTICO 121

Se assim é, impõe-se, à semelhança do direito não-penal,


e sem prejuízo da segurança jurídica, flexibilizar os modos de
atuação do direito e processo penais, significando dizer que
se deve confiar ao Juiz criminal e/ou Ministério Público uma
maior liberdade (mas não o arbítrio) de decisão das lides penais,
permitindo-lhe, dentro de um rol prefixado de possibilidades,
optar por aquela que pareça mais adequada à composição do
litígio sob julgamento. Se é missão da justiça criminal decidir
conflitos, embora sem resolvê-los, em face de sua atuação local,
superficial e cirúrgica, é razoável do que lhe assegurar maior
liberdade nesse papel, ampliando por exemplo, as hipóteses de
crimes de ação pública condicionada (v.g., crimes patrimoniais
sem violência).
7
PARA ALÉM DA FILOSOFIA
DO CASTIGO

SUMÁRIO: 7.1 Introdução — 7.2 Limites estruturais da inter-


venção penal — 7.3 Quatro casos paradigmáticos: 7.3.1 Caso
1; 7.3.2 Caso 2; 7.3.3 Caso 3; 7.3.4 Caso 4— 7.4 Para além
da "filosofia do castigo": em busca de uma nova resposta
penal — 7.5 O que se poderia, então, sugerir em tal caso?
— 7.6 Conclusão.

7.1 Introdução

O que a tradição nos legou com o nome de direito penal


ou direito criminal é uma criação humana destinada a reger e
motivar a vontade humana, com o fim de, ou a pretexto de, lhe
emprestar justa e necessária proteção (conforme o princípio da
proporcionalidade, compreensivo da necessidade e adequação
desta intervenção) ; o homem é, portanto, ou deveria ser, o
alfa e o õmega, e, pois, o começo e fim do ordenamento jurí-
dico. Se assim é, a resposta penal em cada caso concreto deve
ou deveria ser a menos inumana entre as soluções possíveis,
mesmo porque, embora se pretenda atender também a fins de
prevenção geral, fato é que semelhante intervenção se realiza,
sempre, em casos particulares, individualmente, com fins de
prevenção especial.
Mas não só. Malgrado as condutas humanas chamadas
"criminosas" possam ser formalmente as mesmas (homicídio,

1. QUEIROZ, Paulo. Direito penal... cit.


PARA ALÉM DA FILOSOFIA DO CASTIGO 123

roubo, estupro etc.), concretamente constituem, porém, situa-


ção contextualmente e humanamente irrepetível.
Com efeito, ainda quando a "infração penal" seja idêntica,
as múltiplas variáveis que sempre a envolvem, tais como as mo-
tivações, os antecedentes, as circunstâncias e conseqüências do
crime, o papel desempenhado por seus principais protagonistas,
o autor, a vítima e suas reações etc. tornam-na uma experiência
humana singularíssima e única, a justificar, apesar da "identidade
do crime", respostas muito distintas, porque, v. g. , nem todos os
estupros, nem todos os homicídios, nem todos os roubos de-
mandam, necessariamente, a aplicação de pena ou a indicação
da mesma resposta jurídico-penal. Além disso, grande parte dos
comportamentos criminalizados sequer possui "dignidade pe-
nal", a justificar a sua descriminalização pura e simples. De certo
modo, portanto, a função do juiz é fazer o impossível: ajustar
a generalidade e abstração dos termos da lei à singularidade de
casos que são sempre novos (ALICIA Ruiz).
Releva notar, ainda, que o crime, que não tem consistência
material ou ontológica ("o crime não existe") , faz parte da
construção social da realidade, de modo que uma mesma con-
duta formalmente criminalizada pode, a depender das reações
sociais que desperta, motivar os mais diversos comportamen-
tos: desde a vingança e busca da intervenção penal, passando
pela reparação civil, chegando à absoluta indiferença e mesmo
a atos de compaixão e perdão. Daí dizer VERA ANDRADE que a
lei configura apenas um marco abstrato de decisão, no qual os
agentes do controle social formal desfrutam de ampla margem
de discricionariedade na seleção que efetuam, desenvolvendo
uma atividade criadora proporcionada pelo caráter definitorial
da criminalidade, pois entre a seleção abstrata e provisória da lei
e a seleção definitiva operada pelos agentes de criminalização
124 FUNÇÕES DO DIREITO PENAL

secundária (polícia, Ministério Público, Judiciário) medeia um


complexo e dinâmico processo de refração.2
Pois bem, se as condutas humanas submetidas a julgamento
são assim tão variáveis, como julgá-las humanamente, e não só
sistematicamente, atendendo as singularidades de cada caso
particular, se alei é um "artifício", uma "ficção", geral, abstrata,
dirigida a todos indistintamente e, mais, partindo de conceitos
rígidos, como o conceito de "crime", de "pena" etc.? Dito de
outro modo: como evitar que, a pretexto de julgar homens,
julguemos fantasmas ou estereótipos?
Na verdade, e paradoxalmente, a lei (e o sistema), para ser
igual, há de ser desigualmente aplicada in concreto, na medida
em que, para ser verdadeiramente igual, tenha de atender à
inevitável desigualdade dos casos, de sorte que, para tanto, é
necessário flexibilizar, crescentemente, os modos de atuação
do sistema penal como um todo — em especial, o direito e
processo penal — confiando-se ao juiz e ao Ministério Público
maior liberdade de decisão das "lides" penais, permitindo-lhes,
dentro de um rol prefixado de possibilidades, optar por aquela
menos injusta e menos inadequada para o caso concreto, sem
prejuízo das garantias constitucionais. Porque, se é missão da
justiça criminal "solucionar conflitos", nada mais razoável
do que se lhes oportunizar maior liberdade no desempenho
desta função. No caso brasileiro, o Estatuto da Criança e do
Adolescente poderia ser uma fonte inspiradora importante
(Lei 8.069/1990).
Dai ser preocupante a recepção de teorias que privilegiam
a preservação do "sistema", seja ele qual for, em prejuízo do
"subsistema" (o homem), pelo seu caráter tecnocrata, acri-
tico e tendencialmente desumano, voltadas para combater o

2. A ilusão de segurança jurídica. De controle da violência à violência do


controle penal, p. 260.
PARA ALÉM DA FILOSOFIA DO CASTIGO 125

"inimigo". Assim, por exemplo, a formulação de JAKOBS, que


concebe a pena como simples afirmação contra-fática da vali-
dade da norma, em nome da estabilização do sistema social.
Porque o sistema não constitui um estado final de elabo-
ração dogmática, mas um momento desta, não um fim em si
mesmo, mas um meio, flexível, provisório, aberto ao problema,
que não se justifica por si mesmo, nem por sua coerência ou
rigor lógico, mas por seus resultados e funções,3 de sorte que
determinante há de ser sempre a questão de fato.
7.2 Limites estruturais da intervenção penal
Com pretender tal redefinição da resposta penal e com vis-
tas a implementar um modelo de justiça restaurativa, se quer
responder, nos limites (estruturais) da intervenção jurídico-
penal e intra-sistematicamente, à crítica, procedente, de que
todo o sistema penal gira em torno da idéia de culpabilidade
individual (pessoal), desprezando por completo o ambiente
ou o sistema social em que se insere, uma vez que se culpam os
indivíduos e se ignoram os sistemas, as estruturas sociais. Como
assinala CHRISTIE, no sistema atual o fato decisivo é o delito,
não os desejos da vítima, não as características individuais do
culpado, não as circunstâncias particulares da sociedade local,
razão pela qual, ao excluir todos esses fatores, o sistema acaba
por inviabilizar múltiplas opções que deveriam ser tomadas
em conta.4 Enfim, e como dizia BARATTA, a pessoa é considerada
pelo direito penal como uma variável independente, e não como
uma variável dependente das situações.'

GARCIA-PABLOS DE MOLINA, A. Derecho penal... cit., p. 413.


Los limites dei dolor,, p. 60-61.
Direitos humanos: entre a violência estrutural e a violência penal. Fas-
cículos de Ciências Penais. Porto Alegre, 1993.
126 FUNÇÕES DO DIREITO PENAL

Quer-se responder, ademais, à objeção, muito próxima da


anterior, no sentido de que a intervenção penal reifica (coisifica)
o conflito e neutraliza a vítima. É que, de fato, a intervenção
estereotipada do sistema penal tanto age sobre a vítima como
sobre o delinqüente. Como observa HULSMAN, no sistema penal
todos acabam sendo tratados da mesma maneira; supõe-se que
todas as vítimas têm as mesmas reações, as mesmas necessida-
des, pois não se levam em conta as pessoas em sua singularidade
e, operando em abstrato, causa danos inclusive àqueles que
pretende proteger.6 Daí se dizer que a vítima é um perdedor
duplamente: em primeiro lugar, perante o criminoso e, em
segundo lugar, perante o Estado, que lhe rouba o conflito, um
todo que lhe é levado a cabo por profissionais.'
Conclusivamente, se a intervenção penal implica, como
regra, mera tecnização dos conflitos, subtraindo-lhe toda a
carga de dramaticidade e humanidade, além de importar em
despolitização e descontextualização, é preciso buscar, na
medida do possível, re-politizá-lo, re-contextualizá-lo e re-hu-
manizá-lo segundo o sistema de valores e princípios (garantias)
da Constituição Federal. Cumpre reaproximar, enfim, o Direito
do Homem, pois mais que a "verdade processual", importa a
"verdade existencial".
A seguir, far-se-á referência a quatro casos paradigmáticos
da inadequação da resposta penal hoje cabível.
7.3 Quatro casos paradigmáticos
7.3.1 Caso 1
Clarice de tal, residente no Município de Ipirá, Bahia,
deliberou, em razão dos maus-tratos sofridos e constantes

Penas perdidas, p.83-84.


CHRISTIE, N. Op. cit., p. 126.
PARA ALÉM DA FILOSOFIA DO CASTIGO 127

ameaças de morte, matar seu companheiro, Luís José de tal.


Para tanto, deu-lhe uma refeição, acondicionada em vasilha
plástica, composta de farinha e carne, sendo que, ao prepará-
la adicionou-lhe uma colher de chã do veneno conhecido por
"chumbinho". Posteriormente, Luís José encontrou os seus
filhos X, 7 anos, e Y, 12 anos aos quais entregou a marmita a
fim de que a levassem para casa, em razão de não haver serviço
naquele dia. Ocorreu que os menores, antes de chegarem à re-
sidência, comeram a refeição e em conseqüência, agonizaram
até a morte. Presa numa delegacia local, onde tentou suicídio,
Clarice foi denunciada pelo Ministério Público Estadual pelo
crime do art. 121, § 2.°, III, c/c os arts. 61, II, f, e 73, todos do
CP, vale dizer homicídio doloso qualificado (crime hediondo),
punido com reclusão de 12 a 30 anos.
É que o Código Penal brasileiro, de 1940, consagrou, no
particular, a teoria da equivalência,8 hoje minoritária, segundo
a qual é irrelevante que o dolo se concretize em pessoa diversa
da pretendida, uma vez que, sendo tipicamente equivalentes os
resultados (matar o companheiro ou matar os filhos), o autor
deve responder por crime único, crime consumado. Dito mais
claramente: quando, por acidente ou erro no uso dos meios de
execução, o agente, em vez de atingir a pessoa que pretendia

8. Essa teoria considera que o dolo só deve abranger o resultado típico


quanto aos elementos determinantes de sua espécie: A quis matar uma
pessoa (B) e realmente matou uma pessoa (C), de sorte que o desvio do
curso causal não tem influência no dolo, devido à equivalência típica
dos objetos, havendo, assim, homicídio consumando. Já para a teoria
da concreção (ou concretização), o dolo pressupõe sua concretização
num determinado objeto, motivo pelo qual, se o agente atinge pessoa
diversa da pretendida, não age com dolo quanto à pessoa realmente
atingida. Logo, se pretendia matar B, vem a atingir C, responde, segundo
esta teoria, por homicídio tentado contra B e homicídio culposo contra
C, cf: ROXIN. Derecho penal, p. 492.
128 FUNÇÕES DO DIREITO PENAL

ofender, atinge pessoa diversa, responde como se tivesse pra-


ticado o crime contra aquela (art. 73 do CP), motivo pelo qual
não se consideram, neste caso, as condições ou qualidades da
vítima, senão a da pessoa contra quem o agente queria praticar
o crime (CP, art. 20, § 3.°).
De acordo com o Código Penal, portanto, que se utiliza
claramente de uma ficção, Clarice responderá por crime de ho-
micídio consumado contra Luís José (qualificado e hediondo,
em razão do emprego de veneno) dolosamente, ainda que, de
fato, tivesse matado seus próprios filhos culposamente.

7.3.2 Caso 2

Marivaldo de tal, brasileiro, solteiro, servente de pedreiro,


foi preso, processado e condenado a 11 anos e 3 meses de re-
clusão pela prática do crime de atentado violento ao pudor (CP,
art. 214, c/c o art. 224, a, e 226, II, dc a Lei 8.072/1990), visto
ter abusado sexualmente do próprio filho, com quem tentou
fazer sexo anal, X, de 7 anos de idade à época dos fatos, 1997.
Marivaldo cumpre, desde então, pena na penitenciária Lemos
Brito, em Salvador, Bahia.

7.3.3 Caso 3

Lourdes de tal, flagrada por sua vizinha quando fazia sexo


oral com sua filha, Z, de 2 anos, foi presa em "flagrante delito"
por policiais; processada e submetida a julgamento, foi con-
denada por "crime hediondo" (atentado violento ao pudor)
a cumprir pena de sete anos e seis meses de reclusão. Prestes
a sair por meio de livramento condicional, foi novamente
flagrada, no interior do próprio presídio, com droga ilícita,
sendo autuada por tráfico, motivo pelo qual, reincidente,
deverá ser (possivelmente) condenada a mais três ou quatro
anos de reclusão.
PARA ALÉM DA FILOSOFIA DO CASTIGO 129

7.3.4 Caso 4
"Eu estava imbuído da leitura do livrinho Dos delitos e das
penas" — escreve VOLTAIRE — "quando soube que acabavam de enfor-
car, numa província, uma jovem de dezoito anos, bela e bem-feita,
que tinha talentos úteis e pertencia a uma família muito honesta.
Ela era culpada de ter deixado que lhe fizessem um filho. A
vergonha, que é no sexo uma paixão violenta, deu-lhe força su-
ficiente para voltar à casa de seu pai e para esconder seu estado.
Ela abandona o filho, que é encontrado morto no dia seguinte;
a mãe é descoberta, condenada à forca e executada" .9
Formula VOLTAIRE a seguinte questão: "será que o fato de uma
criança morrer torna absolutamente necessário matar mãe?
Responde-se, então, nos seguintes termos: "Ela não o ma-
tou; esperava que algum transeunte tivesse piedade daquela
criatura inocente; podia mesmo ter a intenção de ir reencontrar
o filho e fazer com que lhe dessem a assistência necessária. Esse
sentimento é tão natural que se deve presumi-lo no coração
de uma mãe. A lei é positiva contra a jovem da província de
que estou falando; mas essa lei não será injusta, desumana e
perniciosa? Injusta porque não distingue aquela que mata o
filho e aquela que o abandona; desumana porque fez perecer
cruelmente uma infeliz a quem não se pode reprovar senão a
fraqueza e a precipitação em esconder a sua desdita; perniciosa
porque arrebata à sociedade uma cidadã que devia dar súditos
ao Estado, numa província onde as pessoas se queixam do
despovoamento. A caridade ainda não criou neste país estabele-
cimentos onde os filhos abandonados possam ser alimentados.
Ali onde falta a caridade, a lei é sempre cruel. Seria bem melhor
prevenir esses infortúnios, que são bastante comuns, em vez de
simplesmente puni-los. A verdadeira jurisprudência consiste

9. Comentários politicos, p. 119-121.


130 FUNÇÕES DO DIREITO PENAL

em impedir os delitos, e não em punir com a morte um sexo


frágil, quando é evidente que o seu crime não se acompanhou
de malícia e mortificou-lhe o coração. Assegurai, tanto quanto
puderdes, uma ajuda a todo aquele que seja tentado a fazer o
mal e tereis menos motivos para punir".
Que fazer em tais casos?
7.4 Para além da "filosofia do castigo": em busca de uma
nova resposta penal
A missão do direito penal é a missão de todo o direito:
possibilitar a vivência social, assegurar níveis minimamente
toleráveis de violência, resolver, enfim, conflitos de interesses
de modo pacífico, segundo normas e processo previamente
conhecidos.
Não obstante seja esta a sua missão, de cujos demais ramos
somente se distingue pelo maior rigor das sanções que adota
para fazer em face dos comportamentos declarados crimino-
sos, o direito penal, porque preso ainda, fortemente, à idéia de
retribuição, responde aos conflitos de forma sensivelmente
menos racional que os demais ramos. Não sem razão, tem-se
afirmado que a justiça criminal "decide" conflitos, mas não os
"resolve".
Se, por exemplo, ao cônjuge traído ou insatisfeito com a vida
conjugal, o direito civil lhe coloca à disposição a separação, o
divórcio etc; ao posseiro esbulhado, a reintegração na posse;
ao locador, a retomada do imóvel, diante do inadimplemento
contratual, o mesmo ocorrendo no direito administrativo, em
que, v.g. , obras edificadas sem prévia licença são passíveis de
embargo e demolição; veículos estacionados em lugar proibido
são multados, guinchados etc., no âmbito penal, porém, esta
razoabilidade, isto é, esta preocupação quanto à composição
efetiva da lide — pensada no interesse dos protagonistas do
PARA ALÉM DA FILOSOFIA DO CASTIGO 131

drama criminal, vítima, sociedade, réu — que lhe são submetidos


à apreciação, numa palavra, esta adequação da sanção à diversi-
dade dos fatos concretamente postos, quase nunca se verifica,
já que tudo tem uma resposta invariável: pena (notadamente a
prisão) ou, em caráter excepcional, medida de segurança.
Pense-se nas hipóteses seguintes: aos pais que eventualmen-
te maltratem os filhos, segregando-os num cárcere, não raro
lhes compromete a própria subsistência; priva-os daqueles (e
aqueles do convívio com os pais), estigmatizando-os indele-
velmente. O direito penal, enfim, longe de resolver conflitos,
atuando de modo contraproducente, acaba por agravá-los e
criar outros novos, pois disponibiliza uma resposta que não
interessa a ninguém: vítima, sociedade e réu.
Ora, um direito penal orientado para prevenção de delitos
(direito penal funcionalista, ou seja, politicamente orientado),
e não para retribuir por retribuir, não pode prescindir da idéia
de compor os conflitos sob sua disciplina, de modo a superar
as conseqüências do delito, sempre e quando possível fazê-lo.
Em suma: é preciso sancionar utilmente.
A pergunta que se impõe é a seguinte: encarcerar alguém
numa prisão, nestas condições, sem mais, será uma resposta
razoável, socialmente adequada?
Certamente que não. No Caso 2, entre outras razões, pelas
seguintes:
inicialmente, o sentenciado, desqualificado para o traba-
lho (servente de pedreiro), ao sair da prisão, além de se manter
em tal condição, terá contra si, além disso, o estigma de haver
passado pela experiência carcerária. Se, antes, obter emprego
era difícil, agora mais ainda;
mantido na prisão, as suas perversões sexuais, muito
provavelmente irão recrudescer mais ainda;
132 FUNÇÕES DO DIREITO PENAL

os laços (residuais) entre a criança e o pai, após anos de


desencontros, se dissiparão enormemente;
sem o sustento do pai, as privações da criança serão
ainda maiores;
uma vez solto, as possibilidades de o sentenciado rein-
cidir serão ainda maiores, ante a dessocialização decorrente
da traumática e negativa experiência carcerária, em prejuízo,
inclusive, dos fins de prevenção geral e especial;
é razoável supor que no futuro venha a constituir nova
família e que atos semelhantes se repitam.
Conclusão: a intervenção penal constitui um simples cas-
tigo, nada além disso, isto é, uma só violência (a prisão) que se
soma, inutilmente, a uma outra violência (a agressão sexual).

7.5 O que se poderia, então, sugerir em tal caso?


Em verdade, esta situação está a exigir uma resposta bem
diversa, algo que seja realmente adequado, ou, ao menos, não
inadequado, para o caso e que possa servir como "solução do
conflito". Semelhante resposta, evidentemente, não a pode ofe-
recer o sistema penal, em face de sua excessiva rigidez, mesmo
porque tal fato é rotulado legalmente como "crime hediondo"
(Lei 8.072/1990); sujeito, pois, a uma série de restrições. En-
contramo-la, porém, no Estatuto da Criança e do Adolescente
(Lei 8.069/1990), fortemente influenciado pelo princípio da
proporcionalidade, compreensivo da necessidade e adequação
da intervenção.
De fato, considerando que a criança sexualmente agredida
foi abandonada pela mãe com tenra idade e que, apesar do
abuso que sofreu, manifesta afeto pelo pai e este por ela, e que
este é alcoólatra (afirma, inclusive, que somente praticou o
fato porque estava embriagado), mais razoável seria o seguinte,
PARA ALÉM DA FILOSOFIA DO CASTIGO 133

conforme previsão no Estatuto da Criança e do Adolescente


(em especial, arts. 101, 112, 129 e 130):
colocação do menor em família substituta, inicialmente
em caráter provisório, permitindo, porém, ao pai, visitá-lo
regularmente;
submeter ambos, pai e filho, a tratamento psicológico regu-
lar (o pai, inclusive, a tratamento psiquiátrico, se necessário);
inclusão em programa comunitário ou oficial de auxílio
à família e à criança;
inclusão (do pai) em programa oficial ou comunitário
de auxílio, orientação e tratamento a alcoólatras;
orientação, apoio e acompanhamento temporários de
ambos;
1) matrícula e freqüência (do menor) em estabelecimento
oficial de ensino fundamental; etc.
A solução adequada para o caso, portanto, nada tem a ver
com pena ou com medida de segurança (esta última, inclusive,
legalmente inadmissível no caso, visto que o sentenciado foi
considerado penalmente responsável), pois constituem pro-
vidências que devem ter em conta necessidades pedagógicas,
preferindo-se aquelas que visem ao fortalecimento dos vínculos
familiares e comunitários (ECA, art. 100).
Para além disso, o Estado deve criar as condições sociais para
que as pessoas não sofram tais abusos ou, ao menos, tenham
à disposição serviços públicos e agentes capazes de prestar a
necessária proteção e auxílio psicológico, psiquiátrico, jurídico
etc. Numa palavra: urge trabalhar com o máximo de direitos
sociais/medidas assistenciais e de tratamento e com o mínimo
de direito penal. Uma boa política social ainda é a melhor po-
lítica criminal.
Resposta semelhante poder-se-ia pensar quanto ao Caso 3.
134 FUNÇÕES DO DIREITO PENAL

Note-se, desde já, que Lourdes é portadora de evidente


déficit de socialização, conforme se conclui da leitura do seu
exame criminológico, que a diagnosticou como: "personalidade
primitiva, com nível mental baixo e conseqüente imaturidade
intelectual e afetiva, que motivam os comportamentos regressi-
vos que emite e que demonstram a dificuldade de adaptação ao
meio social. Evidencia baixo nível de tolerância às frustrações,
às quais reage com atitudes oposicionistas e agressivas, mani-
festadas através de descargas emocionais intensas, que refletem
a dificuldade de controle sobre os impulsos. Em conseqüência,
o processo de inter-relação social torna-se difícil, sobretudo
quando adota atitudes de supervalorização de si mesmo como
uma forma de compensar o sentimento de inferioridade que
procura dissimular".
E se Lourdes é uma pessoa com reconhecido déficit de
socialização, pouco se lhe deveria exigir socialmente, afinal
deve-se exigir mais de quem pode mais e se exigir menos de
quem pode menos, proporcionalmente. No entanto, na prática
se dá, e se deu, justamente, o contrário: exigimos e condenamos
maximamente, quando mais do que castigo, Lourdes carecia
de ajuda, de compreensão, do perdão e, claro, de tratamento,
; mas não precisaria, por certo, de crime nem de pena.
Não bastasse isso, o castigo imposto a Lourdes se revelou
politicamente desastroso, pois, ao invés de "ressocializã-la" e
prevenir novos "crimes", a intervenção penal a dessocializou
mais ainda, agudizando seu déficit de socialização, e, pior, a
profissionalizou na criminalidade e a afastou, definitivamente,
da sua filha, e sua filha dela, cortando-lhes os laços afetivos e
maternais (residuais).
Aliás, tivesse essa história se passado numa família de classe
média ou alta e outro seria o desfecho: certamente, a família
submeteria Lourdes a tratamento de psicologia, a sessões de
PARA ALÉM DA FILOSOFIA DO CASTIGO 135

análise ou semelhante, e, no máximo, lhe tiraria, provisória


ou definitivamente, a guarda da criança. Assim, não haveria
polícia, nem crime, nem pena, nem prisão, tudo não passaria
de um "problema de família" a ser resolvido em família. Defi-
nitivamente, o direito penal é coisa de pobres, de miseráveis.
Quanto aos Casos 1 e 4, ante a sua significação trágica, a
resposta principal seria, não o castigo, qualquer que fosse,
mas a concessão do perdão judicial; hipótese juridicamente
impossível no caso brasileiro, que só o admite se o crime for
culposo.
Naturalmente que as situações aqui utilizadas são um só
exemplo das múltiplas possibilidades de redefinição dos modos
de atuação do direito e processo penal, com vistas à imple-
mentação de um direito penal fraterno, já que diversas outras
medidas podem e devem ser adotadas. Assim, por exemplo, a
ação penal nos crimes contra o patrimônio, à semelhança dos
crimes contra a liberdade sexual, deveria ser, como regra, de
iniciativa privada (furto, dano, estelionato etc.) e só excepcio-
nalmente de ação pública condicionada (roubo simples, por
exemplo) ou incondicionada (e.g., roubo com violência grave
ou morte).
A pena, o castigo, só deverá ter lugar quando for absoluta-
mente insubstituível e sobre isso decidirá o juiz, que há de ser,
de certo modo, o legislador no caso concreto, mesmo porque
a interpretação do direito penal há de partir, necessariamente,
das funções político-criminais assinaladas à pena. Com efeito,
já há algum tempo expressões como "o juiz é a boca da lei" ou o
"juiz é um escravo da lei" perderam todo o sentido, pois inter-
pretar é, em verdade, argumentar, corretamente, num sistema
aberto (ARTHuR KAuFmANN) e, se múltiplas são as possibilidades
de argumentar, múltiplas também hão de ser as possibilidades
de interpretar corretamente. Daí dizer LÉSIO STRECK, com toda
136 FUNÇÕES DO DIREITO PENAL

razão, que rigorosamente não existem julgamentos de acordo


com a lei ou em desacordo com ela, porque o texto normativo
não contém imediatamente a norma (MünER), a qual é cons-
truída pelo intérprete no decorrer do processo de concretização
do direito, de sorte que, quando o juiz profere um julgamento
considerado contrário à lei, na realidade está proferindo um
julgamento contra o que a doutrina e a jurisprudência estabe-
lecem como arbitrário. Conclui, então, UNTO, que "é necessário
ter em conta que o direito deve ser entendido como uma prática
dos homens que se expressa em um discurso que é mais que
palavras, são também comportamentos, símbolos, conheci-
mentos, expressados (sempre) na e pela linguagem. É o que a lei
manda, mas também o que os Juízes interpretam, os advogados
argumentam, as partes declaram, os teóricos produzem, os
legisladores criticam. É, enfim, um discurso constitutivo, uma
vez que deseje significado a fatos e palavras" .1°A interpretação,
portanto, é um complexo ato de criação e não um simples ato
de contemplação da vontade da lei ou do legislador, como se
imaginou no passado.
Por conseguinte, o juiz que supõe tomar seus critérios de
decisão unicamente da lei é vítima de um fatal engano, pois
(inconscientemente) permanece dependente dele mesmo,
quando, em realidade, só o juiz que tenha plena consciência de
que sua pessoa se co-implica no processo interpretativo pode
ser verdadeiramente independente.n E se isso é válido para a
interpretação em geral e para as situações "normais", tal vale,
com maior força de razões, para a interpretação no âmbito do
direito penal, em que, à superprodução de leis penais sem o
menor critério, editadas, não raro, para criar uma só impressão

Hermenêutica jurídica em crise, p. 210-211.


KAUFMANN , Arthur. "Panorámica histórica de los problemas dela filosofia
dei derecho". El pensamiento jurídico contemporáneo, p. 130.
PARA ALÉM DA FILOSOFIA DO CASTIGO 137

— e uma falsa impressão — de segurança jurídica (leis puramente


simbólicas e grandemente demagógicas), se soma uma lingua-
gem freqüentemente confusa e imprecisa, tipos de conteúdo
vago, já não bastasse o fato de a interpretação e a aplicação das
normas competir a órgãos que atuam independentemente, sem
nenhuma coordenação entre si e com grande margem de dis-
cricionariedade: Polícia, Órgãos da Execução Penal, Ministério
Público, Judiciário etc. Aqui, mais do que em qualquer outro
campo do direito, a interpretação e a aplicação das normas
jurídicas ocorrem de forma arbitrariamente seletiva e criadora
de crimes e criminosos.
7.6 Conclusão
Em todos os casos aqui citados, a intervenção penal revela-se
claramente inadequada, porque constitutiva de simples casti-
go, que nada resolve; antes, agudiza um processo de exclusão
e marginalização social, pois trabalha com falsas imagens da
realidade e acaba por coisificar o conflito; desumanizando-o em
nome de um sistema que, embora abstratamente possa parecer
coerente e justo; concretamente se auto-deslegitima, por encer-
rar uma resposta maquinal a um problema demasiado humano,
e para o qual desserve, simplesmente porque não se destina a
máquinas, mas a homens; e o homem, e não o sistema ou a lei,
há de ser sempre a medida de todas as coisas (Protágoras) !
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