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2 - ARTIGO - Uma Nota Sobre A Diferenciação Estrutural de Freud Entre Neurose e Perversão PDF
2 - ARTIGO - Uma Nota Sobre A Diferenciação Estrutural de Freud Entre Neurose e Perversão PDF
Resumo
A autora apresenta uma visão geral da elaboração de Freud a respeito da diferenciação entre
neurose e perversão. Enfatiza o modo pelo qual o sujeito se relaciona com a configuração edí-
pica – o modo que decide a sua relação com a castração, com a realidade, com o desejo e com
seus objetos. Estruturas diferentes estão relacionadas a mecanismos psíquicos específicos, que
manifestam diferentes soluções para a interdição edípica (recalque na neurose e denegação na
perversão), o que também é importante na condução da transferência e do próprio tratamento
psicanalítico.
Palavras-chave
Neurose, Perversão, Recalque, Denegação, Fantasia, Fetichismo, Configuração edípica.
“As neuroses são, pode-se dizer, a negativa das em conta a natureza da própria pulsão. A
perversões” (FREUD, 1905, p.165). Com perversão é originalmente compreendida
essa afirmação Freud indica, entre outras como um desvio da pulsão em relação à
coisas, como a sintomatologia psiconeuró- sua meta ou objeto. Esse ponto de vista,
tica representa – através do recalque – a contudo, implica na existência de uma
expressão convertida dos impulsos que satisfação ‘normal’ da pulsão, uma pressu-
poderiam ser qualificados, de um ponto posição que a descoberta de Freud do ca-
de vista normativo, como pervertidos. ráter polimórfico universal da sexualidade
Freud comenta, mais especificamente, que humana põe em questão. De fato, graças a
as “fantasias histéricas inconscientes corres- seu estudo da sexualidade infantil, Freud
pondem completamente às situações em que aponta a peculiaridade da relação entre
a satisfação é conscientemente obtida pelos a pulsão sexual, sua meta e seu objeto.
perversos” (1908, p.162). Graças ao papel Como sabemos, a meta dessa pulsão é a
fundamental exercido pelas fantasias, a satisfação em si mesma. O objeto de uma
histeria, em particular, parece pôr em foco pulsão, por outro lado,
a relação que a neurose mantém com a
perversão. A proximidade e ao mesmo “é aquele que por si mesmo ou através do
tempo a oposição entre neurose e perver- qual a pulsão se acha apta a atingir sua
são levantam a questão da relação entre meta. O objeto é o que é mais variável
as duas, assim como a sua diferenciação na pulsão e não está originalmente
estrutural. conectado a ela, mas se torna determi-
nado a ela apenas em consequência do
Em direção a uma diferenciação estrutural fato de ser particularmente apropriado
Nos Três Ensaios sobre a Teoria da Sexua- para possibilitar a satisfação. O objeto
lidade Freud (1905) nota a dificuldade de não é necessariamente extrínseco: ele
dar uma definição de ‘perversão’, tendo pode igualmente ser uma parte do próprio
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Uma nota sobre a diferenciação estrutural de Freud entre neurose e perversão
corpo do sujeito. Ele pode mudar quantas permanece associada com as pulsões do
vezes forem possíveis no curso das vicissi- ego ao longo da vida e lhes fornecem
tudes que a pulsão percorre durante a sua componentes libidinais, o que no fun-
existência” (FREUD, 1915, p.122-123, cionamento normal facilmente escapa
grifos nossos). à percepção e é revelado apenas pelo
estabelecimento da doença” (FREUD,
Dessa forma, do ponto de vista da 1915, p.125-126).
natureza da pulsão, a noção de um ‘desvio’
em relação ao objeto ou à meta parece A sexualidade humana não é biolo-
ser autocontraditório em seus próprios gicamente determinada, assim como o
termos, desde que não existe uma coisa próprio conceito de ‘pulsão sexual’ – um
tal como um objeto estável para que a conceito na fronteira entre o mental e o
pulsão atinja sua satisfação, ou a satisfação somático – dá a entender, e a escolha do
que deve ser privilegiada em si mesma. objeto sexual individual é independente
Paradoxalmente, a qualidade ‘perversa’ da distinção biológica dos gêneros. Com
da pulsão é ‘normal’, se desejamos man- a descoberta do caráter polimórfico per-
ter essa terminologia, e como aponta verso da sexualidade infantil, Freud indica
Freud, “do ponto de vista da psicanálise, como, para ambos os sexos, a sexualidade
o interesse exclusivo sentido por homens é primeiro organizada em torno das zo-
e mulheres é também um problema que nas erógenas do corpo, onde uma troca
necessita elucidação e não é um fato evi- privilegiada com o outro – o cuidador, a
dente por si mesmo baseado numa atração mãe – acontece. As mesmas pulsões par-
que é basicamente de natureza química” ciais que caracterizam a sexualidade das
(1905/1915, p.146). crianças estão em ação na sexualidade
Tendo analisado a natureza da pulsão dos adultos, tanto independentemente
sexual, Freud chega às seguintes conclu- quanto promovendo prazer preliminar no
sões: intercurso genital. Portanto, as pulsões que
poderiam ser qualificadas como ‘perversas’
“Tudo isso pode ser dito pelo modo de se revelam como uma inevitável parte do
caracterização da pulsão sexual. Elas processo que fundamenta a estrutura da
são inúmeras, emanam de uma grande própria organização psicossexual.
variedade de fontes orgânicas, atuam em Nos Três Ensaios sobre a Teoria da Se-
primeira instância independentemente xualidade (FREUD, 1905), as perversões
umas das outras e apenas conseguem parecem ser o resultado de uma regressão
uma síntese mais ou menos completa no e de uma fixação a uma certa fase do
último estágio. A meta pela qual cada desenvolvimento libidinal, caracterizado
uma delas se empenha é a obtenção pela prevalência das pulsões parciais espe-
do ‘prazer do órgão’; apenas quando a cíficas. Baseada na evidência fenomeno-
síntese é alcançada é que elas começam lógica, essa hipótese sobre a natureza da
o trabalho da função reprodutiva e logo perversão não responde à questão aberta
após tornam-se geralmente reconhecíveis sobre a especificidade de sua estrutura,
como pulsões sexuais. Quando aparecem especialmente à luz do caráter universal
pela primeira vez estão ligadas às pulsões ‘normalmente perverso’ da própria pul-
de autopreservação, das quais apenas são parcial. Ao atualizar, na realidade,
gradativamente tornam-se separadas; na os modos de satisfação idênticos àqueles
sua escolha de objeto, também, elas se- manifestados na sequência dos estágios
guem os caminhos que lhes são indicados e fantasias psicossexuais dos neuróticos,
pelas pulsões do ego. Uma porção delas a perversão permanece como o ‘reverso’
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Paola Mieli, Ph.D — Tradução: Eliana Rodrigues Pereira Mendes
sia, sexualidade e desejo. Freud levanta a fantasia no aparelho psíquico, assim como
hipótese, ou melhor, constrói um ponto de na própria natureza da denegação, seria
partida para o aparelho psíquico, o qual incorreto manter a ideia de que na atuação
ele chama de Befriedigungs erlebnis (1900), perversa não há espaço para a fantasia.
isto é, a experiência original de satisfa- Ao contrário, através de dados clínicos,
ção. Tendo por base esta experiência, as sabemos que na perversão a chegada à
fantasias mais fundamentais são aquelas satisfação pode envolver a encenação de
que tendem a reencontrar os objetos de componentes imaginários relacionados a
satisfação alucinatória: desse ponto de fantasias subjacentes; ao mesmo tempo,
vista é impossível isolar a origem da fan- sujeitos cuja constituição psíquica indica
tasia – da combinação de sinais que levam uma estrutura perversa, muitas vezes são
à satisfação – da origem do desejo e da particularmente dotados artisticamente
sexualidade. A constituição da sexualida- – e é bem conhecida a conexão básica
de, como Laplanche e Pontalis observam que Freud estabelece entre a atividade
(1985), ocorre no próprio momento em de fantasiar e a produção de arte. Esta
que a pulsão, descomprometida de seu última consideração levanta a complicada
objeto natural, se volta para a fantasia, questão da sublimação. Recordemos aqui,
ou vice-versa, no próprio momento em simplesmente, que ao manifestar a mu-
que a fantasia provoca a disjunção entre dança da pulsão sexual para uma meta e
a libido e a necessidade. A primeira ‘ação’ um objeto diferentes do original, na visão
psíquica a satisfazer o desejo está na ordem freudiana a sublimação mostra como a
de uma fantasia, da produção de um objeto pulsão sexual pode encontrar sua satisfa-
alucinatório. Logo, fantasia e desejo estão ção em qualquer outro lugar que não seja
estruturalmente relacionados. Não deve- sua finalidade sexual. O que é interessante
ria nos surpreender, então, a facilidade notar, nesse particular contexto, é que o
com que as fantasias adquirem um papel processo de sublimação permite a satisfa-
fundamental na sexualidade e na vida ção de um impulso sem repressão. Dada a
humanas, em geral, e na constituição da natureza da estrutura psíquica perversa e
sintomatologia neurótica em particular. a ‘técnica’ particular com a qual ela pode
Podemos observar que o mecanismo do se relacionar com a realidade sem reprimir
recalque, ao impedir a satisfação do desejo as pulsões sexuais, é possível levantar a
por meio de uma ação na realidade, favo- questão da predisposição particular da
rece o re-investimento das fantasias assim perversão em direção à sublimação.
como a repetição da solução original do No caso da histeria, podemos relem-
aparelho psíquico à urgência da pulsão. Ao brar que os sintomas histéricos represen-
permitir a constituição de um “substituto tam o resultado de um compromisso entre
para a realidade” (FREUD, 1924, p.187), os impulsos libidinais e os recalcados,
a atividade de fantasiar reflete diferentes e constituem a satisfação de um desejo
modos de se relacionar com a realidade. alcançado através de um deslocamento.
Freud observa que na psicose o mundo Recalque e deslocamento são dois ele-
imaginário “tenta colocar-se no lugar da mentos fundamentais que caracterizam
realidade externa”, enquanto na neurose a histeria. O próprio sintoma, como me-
“está apto, como na brincadeira das crianças, táfora para a fantasia inconsciente que
a se ligar a um pedaço da realidade” (ib.). lhe está subjacente, tem o status de uma
Mais uma vez a neurose manifesta sua ação de satisfação. A noção freudiana da
‘submissão’ ao princípio da realidade e neurose como a negativa da perversão
sua tentativa de evitar um conflito com se refere, entre outras coisas, à oposição
ele. Tendo em vista a função estrutural da fantasia/sintoma versus ação, sendo que
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Uma nota sobre a diferenciação estrutural de Freud entre neurose e perversão
esta oposição aponta mais claramente ta como o “sujeito suposto saber”, muitas
para a diferenciação estrutural entre dois vezes leva a uma abrupta interrupção do
tipos de ações do que para os dados fe- tratamento.
nomenológicos ou comportamentais; ao Tentei apresentar aqui uma breve
identificar diferentes modos de satisfação, visão geral da elaboração de Freud a
ela aponta para os mecanismos psíquicos respeito da noção de denegação à luz da
que os fundamentam. questão da diferenciação entre a neurose
Tendo como causa a dialética relação e a perversão. Argumentei a favor de que
que a neurose mantém com a perversão, as diferentes estruturas podem estar rela-
uma distinção estrutural entre as duas é cionadas aos mecanismos psíquicos espe-
crucial para a compreensão e o manejo cíficos que manifestam diferentes soluções
dos acontecimentos clínicos. Os dados para a interdição edípica. Tais afirmações
comportamentais das duas não são sufi- devem ser distinguidas daquelas teorias
cientes para definir a natureza dessa dife- que tratam a perversão como uma conse-
rença. Sabemos como é frequente que os quência dos processos ou identificações
sintomas histéricos possam ter a qualidade pré-edípicos, incluindo aquelas teorias
de ações ‘pervertidas’, como em certos da relação de objeto que desvalorizam o
casos de automutilação histérica ou em componente fundamentalmente sexual
comportamentos sexuais específicos que das perversões. Essas posições divergem
acompanham, por exemplo, desordens das afirmações de Freud, de sua ênfase
orais histéricas. Por outro lado, uma es- na relação entre o complexo de Édipo e
trutura perversa, pela própria natureza do o complexo de castração na constituição
mecanismo que a fundamenta, é, muitas das diferentes configurações sexuais, e
vezes, acompanhada de manifestações sua constante concepção da perversão
neuróticas, como, por exemplo, o medo como patologia sexual. O mais importante
ou a inibição. O fracasso do tratamento de tudo isso é que essa visão parece não
pode se dever, entre outras coisas, a uma produzir progressos clínicos. Num período
confusão entre a denegação perversa e histórico e num país que, muitas vezes, em
uma identificação pré-edípica, ou por prol da simplificação, tem presenciado o
se tomar uma fantasia ou um acting out florescimento de várias visões psicanalíti-
histéricos como um sinal de uma patolo- cas pós-freudianas, parece particularmen-
gia perversa. O próprio fato de que uma te desejável retornar a uma leitura mais
distinção estrutural entre a neurose e rigorosa dos textos freudianos: apesar de
a perversão pode ser fundamentada no todas essas precauções e contradições,
modo pelo qual o sujeito se relaciona com esses textos ainda fornecem a mais efetiva
a configuração edípica – aquele modo estrutura para a compreensão dos fenô-
que decide a relação do sujeito com a menos clínicos, para a direção e o desen-
castração, com a realidade, com o desejo, volvimento de posteriores teorizações. ϕ
e com seus objetos – reflete-se nos dife-
rentes desenvolvimentos da transferência.
O mecanismo de denegação e a relação
específica que o perverso mantém com a
lei – e consequentemente com as figuras
parentais, com o superego – estabelecem
uma configuração transferencial diferente
daquela do neurótico. A má compreensão
dessa condição, por exemplo, do desafio
específico endereçado à posição do analis-
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Paola Mieli, Ph.D — Tradução: Eliana Rodrigues Pereira Mendes
SOBRE O AUTOR
Paola Mieli
Psicanalista. Fundou e preside
a Après-Coup Psychoanalytic Association
em Nova Iorque. Membro do Cercle Freudien
(Paris). Leciona no Departamento de Fotografia
e Ciências Midiáticas da School of Visual Arts
(Nova Iorque) e na Lacanian School of Berkeley
(São Francisco). Autora de vários artigos
publicados na Europa e na América,
co-editou Being human: the technological
extensions of the body (Nova Iorque:
Agincourt/Marsilio, 1999).
Autora de uma coletânea de artigos
publicada no Brasil sob o título Sobre
as manipulações irreversíveis
do corpo e outros textos psicanalíticos
(Rio de Janeiro: Contra Capa/Corpo
Freudiano, 2002).