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FIXAÇÃO E REGRESSÃO: REVISÃO DOS CONCEITOS APLICADA À PRÁTICA DA

PSICOTERAPIA DE ORIENTAÇÃO ANALÍTICA(POA)


Charlie Trelles Severo
Descritores:Fixação;impulso;libido;regressão; psicoterapia psicanalítica;

Este estudo revisa os conceitos de fixação e regressão psíquicas propostos por Freud, bem como
contribuições de Abraham e de autores contemporâneos. Utilizando mitos gregos e fragmentos de
um caso clínico, procuro ilustrar, refletir e diferenciar estes fenômenos, descrevendo quando podem
ser considerados normais ou patológicos e referir sobre estes conceitos para a prática da Psicoterapia
de Orientação Analítica. Intenciono enfatizar a importância de ter estes conceitos constantemente
presentes na mente do psicoterapeuta,reforçar a reflexão sobre a manifestação destes fenômenos na
vida dos pacientes como indicadores de seu funcionamento psíquico.
A mitologia1 grega apresenta histórias nas quais os heróis vivenciam situações de aprisionamento:
Prometeu é destinado a ter seu fígado comido após cada regeneração; Atlas, a sustentar o mundo nas
costas; Sísifo, empurrar, morro acima, pesada pedra, que,ao topo, rolava ao início, retomando o
penoso trabalho. O caso clínico: Sra.V., meia idade,vários terapeutas anteriores, reinicia tratamento:
está ‘sem muito sentido na vida’,‘sem saber porquê faz o que faz’. Critica-se severamente.
Repetidamente, faz escolhas negativas: “Me sinto burra. Me avanço na comida e 'como' o prato
junto, é só me sentir angustiada.”(sic). Frente a conquistas, não suporta: retorna a um padrão de
funcionamento anterior,com lamentos e queixas constantes, quando mínimas frustrações
comprometem seu ânimo. Associa o descaso provindo de sua mãe ao revelar ter desgostado de
amamentar os filhos, quando para si, amamentar é um dos maiores indicativos da mulher quando
mãe. Mesmo amamentado seus próprios filhos,sofre a penosa lembrança materna. Outra
queixa:dificuldade para relacionamento afetivo estável; sente-se incapaz devido à auto-percepção
negativa. Relata: passeando com a mãe e a irmã, elogia um modelo de roupa que gostou para si.
Ouve da mãe: “Mas isso não serve prá ti.Gorda assim!Aí me vem na cabeça ela dizendo: ‘nós as
gordas!’.Fico louca! Não dá prá ser feliz!”(sic).Relembra a agressividade materna: aos seis anos,
insegura de permanecer na escola, seguia-a após fingir entrar na sala. Desejava retornar para com
ela. Descoberta, era severamente punida.

Freud2 demonstrou a existência do inconsciente ao escutar seus pacientes.Observou vivências


passadas, mas desconhecidas por eles.Tentava compreender e os interpretava.Descreveu processos
identificando funcionamento psíquico problemático, pois implicam em condutas, ideias e
sentimentos, caracterizando padrões de ação compatíveis a idade cronológica anteriores a da pessoa
queixosa.São sentimentos de ‘estar preso’, com ‘conduta penosa’, relacionados a passado remoto,
porém sem clareza consciente do significado.Freud3 afirmou que estímulos que possibilitem as
adequadas satisfação ou repressão dos impulsos sexuais característicos às etapas psicossexuais
(oral,anal,fálica)favorecerão o alcance da genitalidade. Embora aparentemente estabelecidas,
percebia um ‘tornar’ a elas através dos sintomas de conflito primitivo: a queixa sendo o passado se
fazendo presente, aplicado em temática atual. Revela-se 'apego' ao passado. A fixação busca
gratificação do que é sentido como falta. Logo, segue neuroticamente a busca daquilo que carencia.

Para Freud2, 'fixado' indica ‘estagnação em determinada maneira de agir’. Cita-nos: a pessoa“(...)
fica desligada da vida; permanece sadia e eficiente, porém evitou o curso normal da vida”(p.324);
citando Breuer quanto Anna O.(1880 a 1882): "(...)é uma característica geral das neuroses, e não
uma peculiaridade especial.”(p.324);"(...)escolheu-se, para este fim, uma fase muito precoce da
vida-um período de sua infância ou, até mesmo, por mais que isso pareça risível, um período de sua
existência como criança de peito.”(p.324); é “(...) abandonar o interesse pelo presente e pelo futuro
e manter-se permanentemente absorvido na concentração mental no passado.”(Freud2, p.325);
“(...)é a intenção do ato a partir de sua relação com a lembrança.” (Freud2, p.327). O sentido dos
atos se refere ao efeito dos processos mentais inconscientes,é consequência dos mesmos. A pessoa o
percebe, reclama, porém não compreende seu sentido. Daí a sensação de enclausuramento. É intenso
o dispêndio de energia libidinal investida. Como citam Laplanche e Pontalis4, este conceito é
fundamental na história da Psicanálise, pois indica“(...) o que na história de vida do indivíduo
esteve/está na origem da neurose”.(p.252).

Fixação é também definida como processo defensivo: sendo desejo latente, impossibilitado de
satisfação pela repressão, torna-se ameaça ao equilíbrio do ego tenta manter. Desejos insatisfeitos e
experiências desagradáveis não toleráveis pelo ego são rechaçadas da consciência. Fixar-se é resistir
a impulsos que não podem emergir à consciência.É a fixação libidinal que determina os tipos de
mecanismos defensivos e desempenha importante papel na etiologia dos distúrbios psíquicos.
Laplanche e Pontalis4 relacionam fixação ao: “(...) fato de a libido se ligar fortemente a pessoas ou
imagos, de reproduzir determinado modo de satisfação e permanecer organizada segundo a
estrutura característica de uma das suas fases evolutivas;(...) abre ao indivíduo o caminho de uma
regressão;”(p.251). Afirmam ser um mecanismo que designa o modo de inscrição de certos
conteúdos representativos que persistem no inconsciente de forma inalterada e a que a pulsão
permanece ligada. São três verbos: ligar/reproduzir/permanecer, indicando a existência de um estar
sendo. Os impulsos ficam ligados, permanecem característicos à determinada etapa do
desenvolvimento, ficando esta trancada em determinados aspectos.
Zimerman5 refere que Freud conceituou a fixação como “(...)fenômeno psíquico ligado à teoria da
libido de modo que as perversões eram explicadas por uma permanente persistência das pulsões
pré-genitais em busca de uma desrepressão. Assim, a fixação está na origem das repressões (ou
recalque) e se manifestam mais claramente durante as regressões.”(p.150). Fixação tem relação
direta com o mecanismo de repressão. Quando um fato atual alude ao trauma sexual primário, o
material reprimido é posto em atividade, surgindo os sintomas. A repressão, possivelmente falha. O
sintoma corresponde ao retorno do reprimido. Se o papel do trauma não for negado, ele intervém
sobre um fundo de uma sucessão das experiências sexuais, favorecendo a fixação em determinado
ponto. Conforme Abraham6, o trauma já não é mais requisito essencial. Afirma que, após as
mudanças teóricas:"(...), acentua primordialmente o modo como reage o indivíduo, de acordo com
sua disposição inata frente às impressões sexuais.(...) a sexualidade anormal destes pacientes se
manifesta em uma aparição prematura da libido e também em fantasias patológicas que se ocupam
prematuramente de temas sexuais até chegar à exclusão de todo outro pensamento consciente."(p.
17). Com a teoria das fases libidinais (especialmente as pré-genitais), fixação“(...)pode não incidir
apenas sobre um alvo ou objeto libidinal parcial, mas ainda sobre toda a estrutura da atividade
característica de uma dada fase.”(Laplanche e Pontalis 4, p.252). A fixação ‘indica a direção’ na
qual vai ocorrer a regressão. Conforme Freud7, repelida pela realidade que não permitiu sua
satisfação, necessitando outra maneira de realização, “A libido(...) será compelida a tomar o
caminho da regressão e a tentar encontrar satisfação, seja em uma das organizações que já havia
deixado para trás, seja em um dos objetos que havia anteriormente abandonado.(...)é induzida a
tomar o caminho da regressão pela fixação que deixou após si nesses pontos do seu
desenvolvimento.”(p.420). Parece ser assim que o ego enfrenta a frustração quando a libido não
pode ser satisfeita.
Acredita-se que experiências infantis insatisfatórias, favorecem uma reiterada queixa neurótica, bem
como a necessidade de ainda satisfazê-las. Laplanche e Pontalis4, definem regressão como
“(...)retorno em sentido inverso desde um ponto já atingido até um ponto situado antes
desse.”(p.567)
Fixação e regressão estão associadas. Uma vez o desenvolvimento ser dinâmico, a insatisfação o
compromete, porém não o impede de um todo. Amadurece em alguns aspectos, mas
psicologicamente há necessidades ainda a serem satisfeitas. Regride-se em busca de recuperar e/ou
manter a satisfação não adequadamente contemplada. Ou o excesso de satisfação ou, por carência,
fixa-se e se torna a regredir às situações enfrentadas como novas (como sinônimo de desconhecida,
ainda não certa de satisfação como originalmente). Conceitua Zimerman 5 quanto à fixação:
“(...)ligação primitiva da libido nas diversas fases da evolução, assim determinando, pelo fenômeno
da regressão, os traços predominantes da caracterologia, ou o quadro sintomatológico de alguma
psicopatologia.”(p.150) A pessoa não troca o certo pelo duvidoso, pelo que não tem certeza de
melhor gratificação.
Nem sempre fixações e regressões serão de um todo patológicas. Freud 2 afirmou que:“Toda neurose
inclui uma fixação numa determinada fase do passado, mas nem toda fixação conduz a uma
neurose, coincide com uma neurose ou surge devido a uma neurose.” (p.326). Exemplifica: o luto,
perfeito modelo de fixação afetiva no que é passado, envolvendo completa alienação do presente e
futuro, mas, à medida que a pessoa compreende o vivenciado (a/o pessoa/objeto perdido), de modo
que sua vida não fica comprometida, tal lembrança não caracteriza conflito. Outro exemplo de
Freud8: crianças, ao insistirem na repetição de histórias ou brincadeiras, buscam manter um
sentimento de supremacia, pois, na repetição, dominam ativamente o que originalmente foi
vivenciado de modo passivo.Assim,“(...) a repetição, a re-experiência de algo idêntico é
claramente, em si mesma, uma fonte de prazer.”(p.53). Zimerman5, citando Ernest Kris(1952),
lembra que muitas regressões estariam a serviço do ego:“(...) o analisando na situação analítica, um
pai que regride ao nível de idade do seu filinho quando brinca parelho com ele e da criação
artística.” (p.359)
Fixação e regressão são fenômenos dinâmicos, relacionados.Frente à dificuldade atual, regride-se até
onde se está fixado, utilizando defesas próprias da época. Predominantemente inconscientes, estão
presentes e tentam integrar os componentes da estrutura psicológica, porém iludidamente manifestos
por sintomas. Penso que a maneira como se elabora as fases do desenvolvimento psicossexual, com
os correspondentes investimentos libidinais, quando não adequados à realidade daquela etapa, será
favorecida maior ou menor intensidade destes fenômenos.
Creio que a fixação e a regressão podem ser descritas como um “trabalho por fazer”, “um
prazo/prazer perdido”, passível de elaboração, ao buscar tratamento psicodinâmico. Daí a utilização
dos mitos e do caso clínico como ilustrações. Citar expressões como ‘trabalho de Sísifo’, ‘carregar
pedra’ para designar árdua tarefa, ficar ‘preso e sofrendo’ como Prometeu, assim como ‘levar o
mundo nas costas’, tal qual Atlas, assemelham-se às queixas da paciente mencionada por estar
‘sempre na mesma’ quando obstáculos lhes surgem. Percebe-se o movimento de ‘tornar a um
momento já vivenciado’, de intenso estímulo, prazeroso ou não, sem perceber a evitação, e até o
abandono, de atitudes autônomas, independentes e de conquista. A Sra.V., sem perceber, lamenta a
falta de uma convivência/proximidade positiva com a mãe. Fixou-se na dependência oral, a qual
regride mantendo queixas.'Tropeça' nas expectativas:deseja satisfação, mas vinculada à intensa
voracidade(‘avançar na comida...’), demonstrando fixação à fase oral canibal, sente-se merecedora
de críticas. Deseja mudar, porém não compreende o porquê não consegue ou, quando ocorre uma
mudança positiva, não satisfaz.O desejo de companhia materna era impedido e, ainda, buscado como
conquista, porém frustrada(mãe inalcansável). A crítica da mãe, internalizada ou real, está
repetidamente presente, sentida como substituto da atenção oral: alimenta-se (mal) com críticas da
mãe.Fixa-se como sendo o que lhe resta. Identifica-se dependência afetiva materna, oral,
caracterizando funcionamento pré-genital.Os titãs desejaram a proximidade com os deuses.Suas
insistências foram provocativas e, daí, punidos.Regrediram e fixaram nestes embates. A Sra. V.
deseja a aproximação com a mãe. Escravizam-se pelos próprios desejos. Penitenciam-se pelos
próprios desejos. Assim,'comungam' com seus progenitores (mal)amados.Estabeleceram
condicionamento psíquico. Compulsivamente, repetem seu conflito. Revelam em suas ‘penas’ a
necessidade de apego intenso ao significado das mesmas: o castigo pelo desejo de permanecer junto
aos superiores comprometeu suas autonomia e independência.
A Análise e a POA são favorecidas com estes conceitos: expressam a psicodinâmica humana.
Através da relação entre vivências passadas e sintomas atuais, compreende-se o sentido destes,
tornando-o consciente. Ampliando a capacidade de conscientizar, crescem flashes-backs do
desenvolvimento e o alívio mental se instala. Neste avanço,a energia que mantinha os pontos de
fixação se torna disponível para investimentos mais maduros e adequados.

RESUMO
“O quê de tão interessante pode haver no passado que de lá não se sai? Por quê para lá tanto se
retorna ou, em outras palavras, por que tornamos o passado repetidamente presente?”. Os diversos
fenômenos psicológicos presentes no desenvolvimento humano determinam as características da
personalidade. Destes fenômenos, a fixação e a regressão, como exemplos, podem revelar que o
modo de satisfazer ou reprimir o impulso durante o desenvolvimento da libido não ocorreu
satisfatoriamente, evidenciando um “prender-se” ao que acredita ser um modelo de resolução de
conflito ou necessidade. A relação entre estes dois fenômenos está na origem da criação de sintomas
comprometedores de uma vida psíquica satisfatória. Identificá-los, assim como elaborá-los, torna-se
alvo da psicoterapêutica com orientação analítica. Elaborei o presente trabalho motivado por estas
indagações. O objetivo deste estudo é revisar os conceitos de fixação e regressão psíquicas
propostos por Sigmund Freud, criador da Psicanálise, bem como o desenvolvimento dos mesmos
pelas contribuições de Karl Abraham e por autores contemporâneos. Intenciono ressaltar a
importância de se ter estes conceitos constantemente presentes na mente do psicoterapeuta,
reforçando a reflexão sobre a manifestação destes fenômenos na vida dos pacientes em psicoterapia
como indicadores de seu funcionamento psíquico, tanto adequado, quanto patológico. Utilizando a
mitologia grega e fragmentos de um caso clínico, busco ilustrar a identificação destes fenômenos
psicológicos, refletir e diferenciar quando ambos podem ser considerados normais ou patológicos.
Seriam fenômenos defensivos? Que relação apresentam entre si? Qual a importância destes
conceitos para a prática da Psicoterapia de Orientação Analítica?

BIBLIOGRAFIA:
1- Bulfinch, T.(2004).O livro de ouro da Mitologia-histórias de deuses e heróis.Rio de
Janeiro:Ediouro.
2- Freud,S.(1974).Conferência XVIII–Fixação em traumas-o inconsciente (p.323-336).Rio de
Janeiro: Imago.
3- _______.(1974).Três ensaios sobre a teoria da sexualidade(1905) (p.123-134).Rio de Janeiro:
Imago.
4- Laplanche, J. e Pontalis, J.-B. (1983).Vocabulário de psicanálise.São Paulo: Martins Fontes.
5- Zimerman, D. ( 2001).Vocabulário contemporâneo de psicanálise.Porto Alegre: Artmed.
6- Abraham, K.(1961).Sobre la significacion de los traumas sexuales infantiles en la sintomatologia
de la demencia precoz (1907)-In:Estúdios sobre psicoanálisis y psiquiatría. (p.13-19).Buenos Aires:
Hormé.
7- Freud, S.(1974).Conferência XXIII–Os caminhos da formação dos sintomas.(p.419-439). Rio de
Janeiro:Imago.
8- Freud, S.(1974). Além do princípio do prazer.(p.13-85). Rio de Janeiro:Imago.

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