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FALA E ESCRITA EM QUESTÃO

USP – UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO


Reitor: Prof. Dr. Jacques Marcovitch
Vice-Reitor: Prof. Dr. Adolpho José Melfi

FFLCH – FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS


Diretor: Prof. Dr. Francis Henrik Aubert
Vice-Diretor: Prof. Dr. Renato da Silva Queiroz

CONSELHO EDITORIAL ASSESSOR DA HUMANITAS


Presidente: Prof. Dr. Milton Meira do Nascimento (Filosofia)
Membros: Profª. Drª. Lourdes Sola (Ciências Sociais)
Prof. Dr. Carlos Alberto Ribeiro de Moura (Filosofia)
Profª. Drª. Sueli Angelo Furlan (Geografia)
Prof. Dr. Elias Thomé Saliba (História)
Profª. Drª. Beth Brait (Letras)

PROJETO DE ESTUDO DA NORMA LINGÜÍSTICA


URBANA CULTA DE SÃO PAULO
(PROJETO NURC/SP - NÚCLEO USP)

Endereço para correspondência

Comissão Editorial
PROJETO NURC/SP – NÚCLEO USP FFLCH/USP
Área de Filologia e Língua Portuguesa
Av. Prof. Luciano Gualberto, 403
sala 205 – Cidade Universitária
05508-900 – São Paulo – SP – Brasil
Tel: (011) 818-4864
e-mail: nurc@edu.usp.br

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05508-900 – São Paulo – SP – Brasil
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FFLCH/USP

Humanitas março/2000 FFLCH


ISBN: 85-86087-88-2

PROJETOS PARALELOS – NURC/SP


(NÚCLEO USP)

Diana Luz Pessoa de Barros - Dino Preti - Hudinilson


Urbano - José Gaston Hilgert - Leonor Lopes Fávero - Luiz
Antonio Marcuschi - Maria Lúcia da Cunha V. de Oliveira
Andrade - Marli Quadros Leite

FALA E ESCRITA EM QUESTÃO


Dino Preti (org.)

FFLCH/USP

2000

UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO • FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS

PUBLICAÇÕES
FFLCH/USP
Copyright 2000 da Humanitas FFLCH/USP

É proibida a reprodução parcial ou integral,


sem autorização prévia dos detentores do copyright

Série PROJETOS PARALELOS


Vol. 1 ANÁLISE DE TEXTOS ORAIS
Vol. 2 O DISCURSO ORAL CULTO
Vol. 3 ESTUDOS DE LÍNGUA FALADA
Vol. 4 FALA E ESCRITA EM QUESTÃO

Serviço de Biblioteca e Documentação da FFLCH/USP


Ficha catalográfica: Márcia Elisa Garcia de Grandi CRB 3608

F157 Fala e escrita em questão / organizado por Dino Preti.- São


Paulo: Humanitas / FFLCH / USP, 2000.
258 p. (Projetos Paralelos – NURC/SP, 4)

Publicação do Projeto de Estudos da Norma Lingüística


Urbana Culta de São Paulo (Projeto NURC/SP – Núcleo USP).

ISBN 85-86087-88-2

1. Sociolingüística 2. Língua portuguesa 3. Português do


Brasil 4. Comunicação verbal 5. Escrita I. Preti, Dino II. Projeto
de Estudo da Norma Lingüística Urbana Culta de São Paulo
III. Série
CDD 417

HUMANITAS FFLCH/USP
e-mail: editflch@edu.usp.br
Tel.: 818-4593

Editor Responsável
Prof. Dr. Milton Meira do Nascimento

Coordenação editorial
Walquir da Silva

Diagramação
Marcos Eriverton Vieira

Capa
Joceley Vieira de Souza

Revisão
dos autores
SUMÁRIO

Apresentação ............................................................................................. 7

Breve notícia sobre os autores .............................................................. 11

Normas para transcrição dos exemplos ............................................... 15

l. A construção do texto “falado” por escrito na Internet ................. 17


José Gaston Hilgert

2. Entre a fala e a escrita: algumas reflexões sobre as


posições intermediárias ................................................................... 57
Diana Luz Pessoa de Barros

3. A entrevista na fala e na escrita ........................................................ 79


Leonor Lopes Fávero

4. A digressão como estratégia discursiva na produção


de textos orais e escritos .................................................................. 99
Maria Lúcia da Cunha V. de Oliveira Andrade

5. A influência da língua falada na gramática tradicional ............... 129


Marli Quadros Leite

6. A linguagem falada e escrita de Helena Silveira .......................... 157


Hudinilson Urbano

7. Referenciação e cognição: o caso da anáfora sem antecedente ... 191


Luiz Antônio Marcuschi

8. A gíria na língua falada e na escrita: uma longa história de


preconceito social ........................................................................... 241
Dino Preti
Fala e escrita em questão.

APRESENTAÇÃO

Este livro continua a linha de trabalhos proposta pela série “Projetos


Paralelos – NURC/SP”, isto é, a publicação de textos referentes a estudos
e pesquisas da língua oral e suas eventuais relações com a escrita.
Os três primeiros volumes da coleção estudaram, em geral, ape-
nas os materiais do Projeto de Estudo da Norma Lingüística Urbana Culta
de São Paulo (NURC/SP), na perspectiva teórica da Análise de Conver-
sação, da Sociolingüística, da Análise do Discurso, etc. Contamos sem-
pre para as análises com a colaboração dos pesquisadores ligados ao
NURC/SP, porque os livros, de certa forma, representam o trabalho de
pesquisa e discussão dos integrantes do Projeto. Mas, a partir do volume
3 (Estudos de língua falada – variações e confrontos), passamos a incluir
a colaboração de autores ligados ao NURC de outras capitais do Brasil.
Assim, Fala e escrita em questão inclui dois textos de pesquisa-
dores de outras universidades: José Gaston Hilgert e Luiz Antônio Mar-
cuschi. O primeiro, no tempo em que atuava no grupo do NURC/SP, já
havia colaborado com um artigo em Análise de textos orais, volume 1
desta coleção. Hoje, está ligado aos trabalhos do NURC/RS. O segundo
é um nome amplamente conhecido na lingüística brasileira e, também, já
colaborou com um trabalho, no volume 3 desta série.
Este livro traz outra característica peculiar: atendendo à sugestão
criada pelo próprio nome da coleção, a obra se abriu para estudos que
nem sempre se ligam diretamente ao NURC/SP, embora abordem assun-
tos relacionados ao binômio fala/escrita. O texto de abertura, por exem-
plo, desenvolve um tema ainda inédito, pelo menos num tratamento em

7
Fala e escrita em questão.

profundidade, como lhe dá Hilgert: a conversação na Internet, contexto


em que fala e escrita se completam. São as “posições intermediárias”
entre essas duas modalidades da língua, a que se refere, também, Diana
Luz Pessoa de Barros, em outro artigo do livro.
Certamente, os leitores perceberão que, incluindo temas como esses
ou referindo-se a problemas ligados à linguagem popular, ao estilo literá-
rio, ou ao discurso da mídia, entre outros, os autores que participam desta
coletânea pretendem, além de trabalhar com a linguagem culta gravada
pelo Projeto NURC/SP, abrir um leque bem mais amplo de análise dos
problemas ligados à fala/escrita, para sobre eles debruçar-se com uma
experiência que inclui mais de vinte anos de pesquisa com a oralidade e
suas relações mais variadas com a escrita. Somente sob esse enfoque é
que se podem explicar alguns textos desta obra, como os que estudam a
comunicação na Internet; a gíria; a linguagem oral e escrita da cronista
Helena Silveira; as relações entre a gramática da norma culta, represen-
tada na obra de Evanildo Bechara, e a influência do uso oral sobre ela; a
entrevista de TV e jornal; etc.
Façamos um breve resumo dos textos aqui incluídos, para que o
leitor possa ter uma idéia dos limites desta obra, na análise do tema pro-
posto pelo seu título:
No primeiro artigo, José Gaston Hilgert trata do chamado “bate-
papo” ou “chat” na Internet, durante o qual, embora estejam em contato
por meio de um canal eletrônico (o computador), os interlocutores pro-
curam sentir-se como se estivessem em presença um do outro. Daí
interagirem, construindo um texto falado “por escrito”. Fazendo um pa-
ralelo com a interação face a face, Hilgert conclui que a interatividade é
a marca mais autêntica desse tipo de comunicação, pois os interactantes
“investem toda a criatividade para atribuir a essa manifestação escrita as
marcas da comunicação face a face.”
Diana Luz Pessoa de Barros examina “as características tempo-
rais, espaciais e actoriais do discurso falado e escrito e os traços da orali-

8
Fala e escrita em questão.

dade e sincretismo da expressão”, no confronto entre as duas modalida-


des de língua. O seu estudo utiliza como referência a conversação espon-
tânea, o “bate-papo” na Internet, a entrevista, o noticiário de TV e rádio e
os textos escritos em geral.
Leonor Lopes Fávero escreve sobre a entrevista na língua falada e
na escrita, suas características e a constituição do par dialógico pergunta/
resposta. Considera exemplos do material gravado pelo NURC/SP, en-
trevistas de TV e textos escritos publicados pelas revistas Veja, Isto é e
Cláudia.
Maria Lúcia da Cunha V. de Oliveira Andrade estuda em seu texto
a digressão como estratégia discursiva na fala e na escrita. Seu objetivo
são os efeitos da digressão sobre o processo interativo e, também, seu
papel na construção do texto oral e escrito. Para isso, utiliza documenta-
ção bem variada, que inclui inquéritos do NURC/SP, textos da revista
Veja, bem como uma produção literária (o conto “O espelho”, de Macha-
do de Assis).
Em “Influência da língua falada na gramática tradicional”, Marli
Quadros Leite usa como objeto de estudo as duas versões da Moderna
gramática portuguesa (196l e 1999), de Evanildo Bechara, para estudar
as mudanças provocadas no último texto do autor por influência dos
usos falados da língua. No fundo, o texto abre discussão sobre um assun-
to polêmico: o aproveitamento ou não de variantes populares na lingua-
gem padrão e na gramática da língua culta.
Hudinilson Urbano, continuando uma pesquisa já referida em seu
artigo, na obra Estudos de língua falada – variações e confrontos, procu-
ra estabelecer um paralelo entre a linguagem falada de uma escritora
(Helena Silveira) e seu estilo literário, em crônicas realizadas na mesma
época em que deu uma longa entrevista aos pesquisadores do NURC/SP.
Em pauta, pois, o discurso oral e escrito de uma escritora contemporânea
e as suas muitas marcas de aproximação.
Luiz Antônio Marcuschi desenvolve, num ensaio original, o pro-
blema da referenciação e cognição, estudando o caso da anáfora sem

9
Fala e escrita em questão.

antecedente, na fala e na escrita. O autor se detém no fenômeno da refe-


renciação textual, “que trata da construção referencial com pronomes de
terceira pessoa, sem antecedente explícito no co-texto.” Na verdade, tra-
ta-se do primeiro texto, na lingüística brasileira, a abordar o problema
com tal profundidade.
Por último, um texto de Dino Preti estuda a gíria e o preconceito
social que incide, na fala e na escrita, sobre esse tipo de vocabulário. Para
tanto, refere-se às origens do fenômeno e chega até a linguagem dos
jornais de nossos dias, principalmente à presença desse vocabulário em
entrevistas com falantes cultos, inclusive os constantes do corpus do
NURC/SP.
O leitor, certamente, perceberá, na leitura de Fala e escrita em
questão, que seus autores, que trabalham na pesquisa em várias universi-
dades brasileiras, mas que também são professores, tiveram o objetivo
bem claro, como, aliás, já se notou em outros livros desta coleção, de
escrever seus textos de forma didática, a fim de atingir, principalmente,
estudantes e professores universitários, colocando-os em contato com
teorias e autores nem sempre de fácil acesso e procurando documentar os
textos com exemplos ligados aos mais diversos contextos e situações de
comunicação, em língua portuguesa. De fato, na organização deste volu-
me, pretendemos criar uma obra que servisse de apoio aos estudos de
língua oral/escrita, evitando, de todas as formas, a mania do nominalismo
pelo nominalismo, que torna o texto científico estéril e pedante.
A recepção a este livro constituirá a resposta para nosso objetivo
de transformar as pesquisas de língua oral em textos acessíveis a nossos
estudantes e futuros pesquisadores. De todas as formas, a sede do NURC/
SP, bem como seu e-mail, continuam disponíveis para sugestões e críti-
cas que, em qualquer circunstância, nos animarão a prosseguir com nos-
sos “Projetos Paralelos – NURC/SP”.
D.P.

10
O discurso oral culto.

BREVE NOTÍCIA SOBRE OS AUTORES

JOSÉ GASTON HILGERT é professor titular de Lingüística e


Língua Portuguesa da Universidade de Passo Fundo/RS. Doutorou-se
em Filologia e Língua Portuguesa pela Universidade de São Paulo. Suas
pesquisas e publicações estão centradas no estudo e na descrição do uso
da língua falada em reais situações de interação. Durante várias tempora-
das especializou-se nessa área, na Universidade de Freiburg, na Alema-
nha. Está organizando e publicando os materiais do Projeto NURC/RS
com o título de A linguagem falada culta na cidade de Porto Alegre. É
pesquisador do Projeto da Gramática do Português Falado do Brasil,
participando do subgrupo de estudos que investiga as estratégias de cons-
trução do texto falado.

LUIZ ANTÔNIO MARCUSCHI, professor titular de Lingüística


da Universidade Federal de Pernambuco, doutorou-se em Filosofia da
Linguagem na Friendrich Alexander Universitat de Erlangen, na
Alemanha.Tem dado cursos e conferências em vários países da Europa e
da América. Foi o introdutor, no Brasil, dos estudos de Análise da Con-
versação e publicou inúmeros artigos, aqui e no exterior, além das obras
Lingüística do texto: o que é e como se faz; Linguagem e classes sociais;
e Análise da Conversação. Tem desempenhado papel de relevo junto às
sociedades científicas do País, como ABRALIN, ANPOLL, SBPC. É
hoje, no Brasil, um dos nomes de maior prestígio na área de Lingüística.

DINO PRETI, professor titular (aposentado) de Filologia e Lín-


gua Portuguesa da Universidade de São Paulo e, atualmente, professor

11
O discurso oral culto.

associado de Língua Portuguesa da Pontifícia Universidade Católica de


São Paulo, é Coordenador Científico do Projeto NURC/SP (Núcleo USP)
e seus trabalhos se encontram nas áreas de língua oral, vocabulário popu-
lar (principalmente gíria urbana) e Sociolingüística. Tem realizado pes-
quisas em áreas interligadas, como Sociolingüística e Análise da Con-
versação, Sociolingüística e Literatura Brasileira. Principais publicações:
Sociolingüística: os níveis de fala; A linguagem proibida: um estudo
sobre a linguagem erótica (Prêmio Jabuti l984); A gíria e outros temas; A
linguagem dos idosos.

MARLI QUADROS LEITE leciona Filologia e Língua Portu-


guesa na Universidade de São Paulo. Defendeu Mestrado e doutorou-se
na mesma universidade e sua especialidade é Análise da Conversação e
Sociolingüística. Ocupa o cargo de Secretária Científica do Projeto NURC/
SP (Núcleo USP) e atual Presidente da Associação de Professores de
Língua e Literatura (APLL). Publicou a obra Metalinguagem e discur-
so: a configuração do purismo brasileiro.

DIANA LUZ PESSOA DE BARROS, professora titular de Lin-


güística, na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Uni-
versidade de São Paulo, foi presidente da ABRALIN e tem desenvolvido
e orientado pesquisas, bem como publicado obras, principalmente nas
áreas de Teoria e Análise de Textos, Semiótica Discursiva e Análise da
Conversação. Principais livros: Teoria do discurso – fundamentos
semióticos; Teoria semiótica do texto; Dialogismo, polifonia e intertex-
tualidade: em torno de Bakhtin (em co-autoria com José Luiz Fiorin).

HUDINILSON URBANO é doutor pela Universidade de São


Paulo, na área de Filologia e Língua Portuguesa. Tem-se dedicado ao
estudo específico da língua falada, com participação ativa dentro do Projeto

12
O discurso oral culto.

NURC/SP (Núcleo USP) e Projeto da Gramática do Português Falado


do Brasil. Nos dois projetos realizou e publicou, individualmente ou em
co-autoria, pesquisas sobre estratégias e mecanismos de produção do
texto oral. Obra: Oralidade na Literatura (o caso Rubem Fonseca).

LEONOR LOPES FÁVERO, doutora pela Pontifícia Universi-


dade Católica de São Paulo e livre-docente pela Universidade de São
Paulo, trabalha como Professora Associada do Departamento de Lin-
güística da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP.
Sua especialidade abrange os campos da Lingüística Textual, estudos de
língua falada e História das Idéias Lingüísticas. Principais obras: Coesão
e coerência textuais; As concepções lingüísticas no século XVIII;
Oralidade e escrita: perspectivas para o ensino de língua materna (em
co-autoria com Maria Lúcia C.V.O. Andrade e Zilda G. O. Aquino).

MARIA LÚCIA DA CUNHA VICTÓRIO DE OLIVEIRA AN-


DRADE é professora do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas
da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, onde
leciona Filologia e Língua Portuguesa. Defendeu seu Mestrado em Lín-
gua Portuguesa na PUC/SP, em 1990, e doutorou-se em Semiótica e Lin-
güística pela USP, em 1995, com a tese Digressão: uma estratégia na
condução do jogo textual interativo. Obra: Oralidade e escrita: perspec-
tivas para o ensino de língua materna (em co-autoria com Leonor Lopes
Fávero e Zilda G.O. Aquino).

13
O discurso oral culto.

NORMAS PARA TRANSCRIÇÃO


OCORRÊNCIAS SINAIS EXEMPLIFICAÇÃO

Incompreensão de palavras ( ) do nível de renda ( )


ou segmentos nível de renda nominal

Hipótese do que se ouviu (hipótese) (estou) meio preocupado


(com o gravador)

Truncamento (havendo
homografia, usa-se acento
indicativo da tônica e/ou
timbre) / e comé/ e reinicia

Entonação enfática maiúscula porque as pessoas reTÊM


moeda

Prolongamento de vogal e
consoante (como s,r) ::podendo
aumentar
para ::::
ou mais ao emprestarem...
éh ::: ... dinheiro

Silabação - por motivo tran-sa-ção

Interrogação ? e o Banco... Central...


certo?

Qualquer pausa ... são três motivos... ou três


razões... que fazem com que
se retenha moeda... existe
uma... retenção

Comentários descritivos do
transcritor ((minúscula)) ((tossiu))

* Exemplos retirados dos inquéritos NURC/SP nº 338 EF e 331 D2

15
O discurso oral culto.

OCORRÊNCIAS SINAIS EXEMPLIFICAÇÃO

Comentários que quebram a


seqüência temática da
exposição; desvio temático -- -- ...a demanda de moeda - -
vamos dar essa notação - -
demanda de moeda por
motivo

Superposição, simultaneidade
de vozes
[ ligando
linhas
as A.na casa da sua irmã
B.
[ sexta-feira?
A.fizeram LÁ...
B. [ cozinharam lá?

Indicação de que a fala foi


tomada ou interrompida em
determinado ponto. Não no
seu início, por exemplo. (...) (...) nós vimos que
existem...

Citações literais ou leituras


de textos, durante a gravação “” Pedro Lima...ah escreve
na ocasião... “O cinema fa-
lado em língua estrangeira
não precisa de nenhuma
baRREIra entre
nós”...

OBSERVAÇÕES:
1. Iniciais maiúsculas: só para nomes próprios ou para siglas (USP etc.)
2. Fáticos: ah,éh, ahn, ehn, uhn, tá (não por está: tá? você está brava?)
3. Nomes de obras ou nomes comuns estrangeiros em itálico.
4. Números: por extenso.
5. Não se indica o ponto de exclamação (frase exclamativa)
6. Não se anota o cadenciamento da frase.
7. podem-se combinar sinais. Por exemplo: oh:::...(alongamento e pausa).
8. Não se utilizam sinais de pausa, típicos da língua escrita, como ponto- e-
vírgula, ponto final, dois pontos, vírgula. As reticências marcam qualquer
tipo de pausa.

16
Fala e escrita em questão.

A CONSTRUÇÃO DO TEXTO “FALADO” POR


ESCRITO: A CONVERSAÇÃO NA INTERNET

José Gaston Hilgert

1. Introdução

Este texto aborda a conversação na Internet, focalizando especifi-


camente o chamado “bate-papo” ou “chat” 1. Nesse tipo de interação
interlocutores estão em contato por um canal eletrônico, o computador.
Eles sentem-se falando, mas, pelas especificidades do meio que os põe
em contato, são obrigados a escrever suas mensagens, ou seja, intera-
gem, construindo um texto “falado” por escrito. Por ser esta a natureza
do tipo de texto objeto de nossa observação, explica-se a inclusão deste
trabalho num livro cujos artigos todos analisam, sob algum prisma, a
relação entre a língua falada e a língua escrita.
Não relacionamos aqui fala e escrita numa perspectiva dicotômica,
em que se dava evidência às diferenças e semelhanças lingüísticas de
textos escritos e falados, fora de seu uso em práticas sociais de produção
textual. Assim, a escrita era tida como estável, sem variação, “estrutural-
mente elaborada, complexa, formal e abstrata”, e a fala, ao contrário,
“como concreta, contextual e estruturalmente simples”, marcada pela
1
Chat = conversa, em inglês.

17
HILGERT, José Gaston. A construção no texto “falado” por escrito...

variação (Cf. Marcuschi, 1997). Essa caracterização é evidentemente


idealizada, pois, além de não contemplar a correlação das duas modali-
dades entre si, considera cada uma um fenômeno monobloco, estático e
homogêneo.
O nosso objetivo é discutir as estratégias de construção do texto
da conversação na Internet (daqui para frente denominada de CINT) à
luz do que já se estudou e escreveu sobre a construção da conversação
face a face (doravante identificada por CFF). É nos limites deste con-
texto que nos interessa a relação escrita e fala, já que a escrita, em
conjunto com outras condições de produção da CINT, vai imprimir
características próprias a este tipo de interação. Portanto, mais do que
contrapor fala e escrita, queremos pôr em relação dois tipos de textos
conversacionais para cujas diferenças contribuem esses dois modos de
realização.
Não temos o propósito de ser exaustivos em nossa abordagem.
Escolhemos alguns ângulos que nos parecem mais relevantes. Inicial-
mente definimos teoricamente a fala e a escrita como práticas sociais
geradoras de textos falados e escritos, cujas realizações prototípicas cons-
tituem os pólos de um continuum, no qual se situam todos os gêneros de
textos produzidos. Em seguida, situamos a CINT neste continuum, ten-
do, antes, descrito brevemente o nosso objeto de observação, do ponto
de vista do meio eletrônico em que ele se realiza, e delimitado o nosso
campo de investigação. Finalmente, voltamo-nos ao propósito central
deste trabalho: analisar, na construção da CINT, a organização da alter-
nância de turnos e a formulação dos enunciados que os constituem.
Sabemos que o assunto em pauta é relativamente novo no contex-
to dos estudos da Análise da Conversação no Brasil. Por isso a nossa
análise corre riscos de fazer observações superficiais ou tirar conclusões
precipitadas. Esse fato, contudo, não desautoriza esta primeira aproxi-
mação ao tema. Por meio dela queremos estimular o debate para, preci-
samente, aprofundar questões e desvelar outras. Todas as críticas que
venham a contribuir nesse sentido são muito bem-vindas.

18
Fala e escrita em questão.

2. Escrita e fala na perspectiva de um continuum


tipológico da produção textual

Segundo Koch e Oesterreicher (1994, 1990 e 1985), os termos


fala e escrita são empregados em dois sentidos: num, denominam meios
distintos de realização textual, correspondendo fala à manifestação fônica
e escrita à manifestação gráfica; noutro, referem maneiras distintas de
concepção de um texto. Um discurso acadêmico, por exemplo, embora
seja um texto falado do ponto de vista de sua realização fônica, é,
conceptualmente, um texto escrito. Já uma carta pessoal para um amigo
íntimo, ainda que se realize por escrito, aproxima-se, conceptualmente,
de um texto falado. A noção de concepção, nesta abordagem, é definida
com base (a) nas condições de comunicação do texto e (b) nas estratégias
adotadas para sua formulação.
Pressupondo que qualquer texto resulta da relação entre interlocu-
tores, um texto conceptualmente falado prototípico, ao contrário do
conceptualmente escrito, se caracterizaria, do ponto de vista das condi-
ções de comunicação, por um alto grau de privacidade, de intimidade,
de envolvimento emocional, de mútua referencialidade, de cooperação,
de dialogicidade, de espontaneidade entre os interlocutores e, também,
por um destacado grau de dependência situacional e interacional das
atividades de comunicação, além de um baixo grau de centração temática.
Do ponto de vista das estratégias de formulação, esse mesmo tex-
to falado seria fortemente marcado por fatores não lingüísticos; teria pouco
ou nenhum planejamento prévio, fato que lhe daria um caráter essencial-
mente “processual e provisório”; apresentaria uma estruturação sintática
“extensiva, linear e agregativa” e uma densidade informacional diluída.
Segundo essas considerações, fala e escrita não mais referem tipos
de textos dicotomicamente antagônicos, mas sim identificam gêneros de
textos configurados por um conjunto de traços que os leva a serem conce-
bidos como textos falados ou escritos em maior ou menor grau.
Nesse sentido entendemos também a distinção feita por Marcuschi
(1997) entre fala e escrita de um lado, e oralidade e letramento de outro.

19
HILGERT, José Gaston. A construção no texto “falado” por escrito...

A primeira distinção concerne a duas modalidades de uso da língua; a


segunda identifica duas práticas sociais. A prática social da oralidade
envolve, em diferentes contextos, o uso de textos falados que vão desde
os exemplos mais prototípicos, como as conversações cotidianas, até os
mais formais, inerentes à prática social da escrita. O letramento abrange
o uso de textos escritos também numa gradação que vai desde uma escri-
ta formal de um texto acadêmico até uma escrita mínima que incorpora
procedimentos próprios da prática social da fala.
Tanto Marcuschi quanto os autores anteriores estabelecem as re-
lações entre fala e escrita no contexto do efetivo uso lingüístico, o qual se
realiza na produção de textos. Nessa perspectiva, as diferenças entre fala
e escrita se concebem num continuum tipológico de gêneros de textos,
determinado pela correlação entre as modalidades.
Marcuschi (1997: 136), inspirado em Koch e Oesterreicher (1990),
representa esse continuum no seguinte esquema:

Textos da escrita
TE1, TE2... TEN
TE1
ESCRITA

TF1
FALA Textos da fala
TF1, TF2... TFn

Nele evidenciam-se dois planos: o superior representa o continuum


da escrita; o inferior, o da fala. TE1 representa o texto escrito prototípico,
por ter caráter gráfico e por ser, em razão dos dois critérios apresentados
acima (condições de comunicação e estratégias de formulação), essen-
cialmente concebido como um texto escrito. São exemplos de TE1: tex-

20
Fala e escrita em questão.

tos acadêmicos, artigos científicos, textos profissionais, contratos, docu-


mentos oficiais 2. Na medida em que, a partir de TE1, formos observan-
do TE2, TE3, ... TEn, continuaremos a identificar, do ponto de vista
medial, textos escritos os quais vão, contudo, gradativamente assumindo
características da fala, passando então à concepção de textos falados,
como exemplificam, no pólo esquerdo do plano superior, os bilhetes e as
cartas pessoais.
TF1, exemplificado pelas conversações em geral, representa o
texto falado prototípico, por ter, do ponto de vista medial, caráter fônico
e por ser concebido essencialmente como falado. A partir de TF1, iden-
tificam-se sucessivamente os textos TF2, TF3, ... TFn, todos eles falados
do ponto de vista de sua realização fônica, mas gradativamente concebi-
dos como textos escritos, fato que se explicita nos textos das exposições
acadêmicas ou de sermões.
Diante dessas considerações, algumas conclusões se impõem: a)
somente como formas de manifestação (fônica ou gráfica) textual, a fala
e a escrita estão numa relação estritamente dicotômica; definidos, contu-
do, na perspectiva conceptual, os gêneros de texto, dos falados aos escri-
tos e vice-versa, distribuem-se ao longo de um continuum tipológico; b)
existe uma afinidade fundadora, no caso dos textos prototípicos (TE1 e
TF1), entre o meio e a concepção correspondente; na medida, porém, em
que houver um afastamento dos pólos prototípicos para os extremos opos-
tos, essa afinidade, nos limites de cada plano do continuum, vai dimi-
nuindo até se constituir uma nova afinidade com o plano oposto; c) cada
tipo de texto não se define isoladamente em seu plano horizontal, mas
sim na correlação vertical dos dois planos, permitindo-nos dizer que, à
extrema esquerda, localizam-se textos conceptualmente falados, mesmo

2
Meise-Kuhn (1997: 14) apresenta, segundo o esquema acima, um rico quadro ilustrativo
da distribuição de uma grande variedade de gêneros textuais. Nele, situam-se: a) no plano
superior, à extrema direita, os textos acadêmicos, científicos, profissionais, contratos,
documentos oficiais; à extrema esquerda, bilhetes e cartas pessoais; b) no plano inferior,
à extrema esquerda, a conversação espontânea, telefônica e a pública; e à extrema direita,
exposições acadêmicas e sermões.

21
HILGERT, José Gaston. A construção no texto “falado” por escrito...

que sejam medialmente escritos (os bilhetes) e, à extrema direita, situ-


am-se textos conceptualmente escritos, ainda que medialmente falados
(exposições acadêmicas); d) um movimento simultâneo nos dois planos
horizontais, em direção ao centro do gráfico, levará à identificação de um
tipo de texto, do ponto de vista conceptual, “equilibradamente” marcado
pela fala e pela escrita, como é o caso dos textos noticiosos de jornais e
revistas (na escrita) e dos noticiários de televisão e rádio (na fala).
Em que ponto da escala desse continuum se situa o texto da CINT?
Para respondermos a essa pergunta, cabe descrever mais detalhadamente
este tipo de interação e como ela se instaura.

3. A configuração do objeto de análise

Na comunicação por computador, os dois recursos mais comuns


entre os usuários em geral são os e-mails e as mensagens on line (conver-
sações). Os primeiros são textos mais ou menos extensivos enviados ao
endereço eletrônico do destinatário. Ficam arquivados num servidor para
serem posteriormente lidos, quando o destinatário acessar o seu prove-
dor.
Mensagens on line ou simplesmente mensagens (cf. Murray, 1989)
são enunciados predominantemente lingüísticos, enviados ao destinatá-
rio que está, naquele momento preciso, ligado ao computador para as
receber e, se desejar, a elas responder. É o que se chama também de
comunicação em tempo real. Cada mensagem é elaborada pelo destina-
dor e enviada somente depois de ele acionar o comando “enviar”. As
mensagens não são arquivadas, perdendo-se com a interrupção da intera-
ção, se não forem salvas. Na medida em que destinador e destinatário
forem alternando mensagens, respondendo um ao outro, instaura-se o
que aqui denominamos de “conversação na Internet” 3.

3
Meise-Kuhn (1989: 322) chama essa interação de “computer conversation”, e Meise-
Kuhn (1998: 213), de “computertalk”.

22
Fala e escrita em questão.

Existem muitos endereços no Brasil, para acompanhar conversa-


ções na Internet ou participar delas, em língua portuguesa. O UOL
(www.uol.com.br) e o ZAZ (www.zaz.com.br) são dois dos mais cita-
dos. Ambos apresentam, em sua primeira página, um índice de links e
ícones que permitem o acesso a serviços que o site proporciona. Clicando,
no UOL, o link “bate-papo” e, no ZAZ, o “chat”, abre-se uma página que
oferece basicamente dois tipos de conversação: o bate-papo com convi-
dados e as salas de conversação.
O primeiro consiste numa conversa informal entre um grupo de
pessoas presentes numa sala virtual e um convidado, que pode ser um
escritor, um cantor, um artista, um publicitário ou qualquer outra perso-
nalidade. A interação tem início em hora marcada antecipadamente anun-
ciada e é coordenada por um mediador que seleciona as perguntas a se-
rem dirigidas ao convidado. Na medida em que as perguntas vão se suce-
dendo, ele responde às que lhe interessam, ficando muitas, evidentemen-
te, sem retorno, o que acontece especialmente quando muita gente quer
conversar com uma pessoa de destaque em alguma área de atuação.
O segundo tipo são as salas de conversação propriamente ditas.
Organizadas de acordo com diferentes critérios, propõem conversações
sobre os mais variados temas que buscam atender à diversificação de
interesses do público. É o tipo de conversação que é objeto de nossa
análise neste estudo.
Para entrar na sala de conversação, o interessado precisa identifi-
car-se com seu nome, um apelido ou pseudônimo (nas conversações de-
nominado de nick 4). Para constituir um pequeno corpus, entramos numa
sala do ZAZ no dia 07 de junho de 1999, às 22h42min, com o nick de
ddd, e, sem participar da conversação, ficamos acompanhando, com ob-
servador, durante 37 minutos, a conversação dos demais presentes na
sala. Segundo o estabelecido pelo organização do próprio site, nessa sala
se falaria sobre cultura.

4
Do inglês nickname = apelido, alcunha.

23
HILGERT, José Gaston. A construção no texto “falado” por escrito...

4. A localização do texto “conversação na Internet”


no continuum tipológico

Como dissemos, a elaboração da mensagem, na CINT, acontece


por escrito, por força das características do meio eletrônico usado, mas
os interlocutores sentem-se numa interação falada. A percepção de fala
vem especialmente explicitada nas características da própria formulação
dos enunciados – tópico abordado mais adiante –, mas se manifesta tam-
bém em referências metalingüísticas do tipo “bate papo”, “papo” e se-
melhantes:

Medusa 22:43:26 – “Alguém afim de um bate papo legal?”


Bart 22:52:46 fala com Cláudia: “É você que está fa-
lando sobre Mitologia? Se eu entrar no
papo, não durmo hoje. :–)”

Os recursos que buscam traduzir manifestações exclusivas da fala5


do tipo cumprimento informais, alongamentos vocálicos com funções
paralingüísticas várias igualmente atestam que os interlocutores se con-
sideram falando:

Bia 22:48:16 fala com barbarella: muitoooooo!!!!:o


Valentine1 22:48:32: oie!!!! :o)
Valentine1 22:50:02 fala com bia: biiiiiiiiiiiiiiiiiiiiinha! :o)

Por outro lado, a consciência de que a conversação ocorre por


escrito vem amiúde atestada por meio da referência metonímica “teclar”:

Allen 22:51:00 – “Boa noite! Alguém quer teclar?”


Isabel 22:55:43 – “De onde tc?”

5
Em estudos sobre a língua falada alemã, aparece com freqüência o termo “Geprächswörter”
(= palavras da fala), cf. Meise-Kuhn 1998, p. 228.

24
Fala e escrita em questão.

Essas manifestações já sugerem uma primeira localização da CINT


no continuum acima. Considerando os exemplos dados por Marcuschi,
no plano inferior do gráfico, ela se aproximaria dos textos da conversa-
ção telefônica e, no plano superior, das cartas pessoais e dos bilhetes.
Mas, ainda que estes e a CINT sejam manifestações medialmente escri-
tas, há diferenças essenciais a destacar entre ambos: a) ao contrário da
CINT, a comunicação por meio do bilhete ou da carta não acontece em
tempo real, ou seja, eles são escritos e destinados a alguém, que os lerá
posteriormente e, havendo disposição para tanto, fará seguir a resposta;
b) a carta ou o bilhete, por mais informais que sejam, ainda que marcados
por sua concepção dialogal, podem ser concebidos como um todo de
sentido independente, constituindo um texto em si 6. Já na CINT, cada
intervenção por escrito é um turno, cujo sentido depende inteiramente da
relação com turnos anteriores e subseqüentes, formando-se um todo de
sentido, o texto, somente na interrelação de vários turnos; c) cartas e
bilhetes são, em princípio, dirigidos somente a interlocutores conhecidos
ou ao menos identificados, o que não acontece numa sala de conversa-
ção, onde ocorre uma interação pública entre pessoas desconhecidas,
escondidas quase sempre atrás de apelidos 7.
Essas diferenças determinam condições de produção próprias para
a CINT, com destaque particular à alternância de turnos em tempo real:
um interlocutor está escrevendo, pressionado por ter de responder a uma
mensagem enviada pelo outro ou por este estar esperando uma mensa-
gem “na outra ponta da linha”. Tal fato imprime às intervenções escritas
de cada interlocutor marcas dialogais próprias da formulação do turno na
CFF.
Particularmente esta última caracterização leva, então, a situar o
gênero textual “conversação na Internet” ainda mais à esquerda dos bi-

6
Na verdade, o caráter dialogal das relações carta-resposta, bilhete-resposta decorre da
alternância de monólogos.
7
Mais próximos da carta e do bilhete estariam os e-mails entre conhecidos e amigos: além
de, em geral, não ocorrerem em tempo real, pois ficam arquivados no endereço do desti-
natário, que os lerá quando acionar o seu provedor, têm como destinatários pessoas devi-
damente identificadas.

25
HILGERT, José Gaston. A construção no texto “falado” por escrito...

lhetes, no plano superior da distribuição de Marcuschi. Apesar de escrita,


portanto, a conversação na INT é concebida como fala, por ser essencial
e intensamente dialogal 8, desenvolvendo-se por meio da alternância de
turnos. É precisamente este caráter que lhe dá o nome de conversação,
bate-papo, papo, chat, só não a confundindo com um texto falado
prototípico, por não ter realização fônica.

5. O sistema de alternância de turnos na CINT

A alternância de turnos constitui, sem dúvida, a explicitação mais


evidente do caráter interacional da CFF e seu princípio de organização
básico. Entende-se por turno “aquilo que um indivíduo faz e diz, enquan-
to está na vez de falar”.9 Cada turno é um passo dado por um e outro
falante, na evolução do processo conversacional.10
Sacks, Schegloff e Jefferson (1974: 700) registraram as seguintes
observações básicas em seqüências conversacionais: 11

– os falantes se alternam com freqüência;


– predomina a prática de só um dos falantes fazer uso da palavra
por vez;
– são comuns os momentos em que ocorre sobreposição de fa-
las, mas são breves;
– a absoluta maioria das transições de um turno para o próximo
ocorrem sem ou, no máximo, com pequenos intervalos e
sobreposições.

8
Hilgert 1989, p. 52, entende por dialogicidade “a dinâmica de alternância de turnos” na
interação. Quanto mais intensa for essa alternância, maior será a dialogicidade da conver-
sação.
9
Goffmann, apud Henne e Rehbock (1982: 22 e 23).
10
Nesse sentido é sugestiva a tradução alemã para a palavra inglesa “turn”: “Gesprächsschritt”
= “passo conversacional”, acepção que enfatiza o caráter dinâmico da conversação.
11
Cf. também Bergmann (1981: 76), Henne e Rehbock (1995: 23).

26
Fala e escrita em questão.

Com base nessas observações, elaboraram um sistema de distri-


buição de turnos, constituído de três regras básicas:

R1) o falante em exercício (t1) indica o próximo falante (t2), o


qual tem o direito e a obrigação de tomar o turno e dar prosseguimento à
conversação;
R2) o falante em exercício (t1), ao final de seu turno, não indica o
próximo falante (t2), tendo, então, direito ao turno quem primeiro tomar
a palavra12 ;
R3) se, no caso de (R2), ninguém se manifestar, pode, embora não
necessariamente, o falante em exercício (t1) prosseguir.

A aplicação da terceira regra (R3) equivale a iniciar a reaplicação


do conjunto de regras, partindo novamente da primeira. Se esta não en-
trar em vigor, automaticamente abre-se a oportunidade de vigência da
segunda (R2). E se mais uma vez entrar em uso (R3), a seqüência de
reaplicação das regras recomeça até que ocorra a transferência do turno.
Em resumo, a alocação de turno ocorre quando o falante com a
palavra “a) seleciona o falante seguinte; b) permite o outro falante sele-
cionar-se; c) continua falando. Essas três possibilidades seguem nessa
ordem e são recursivas” (Murray, 1989: 326). À luz desses princípios,
observemos agora a alternância de turnos na CINT.
A pessoa que entra na sala é anunciada pelo próprio sistema (“ddd
22:42:31 entra na sala”). Uma vez nela, podem-se verificar as seguintes
ocorrências:

– o recém-chegado entra e não se manifesta, acompanhando uni-


camente a interação dos demais;

12
Ao momento ou ao ponto provável na evolução do turno (t1), em que pode ocorrer a
transição para o turno (t2), chamam Sacks, Schegloff e Jefferson (1974: 704) “lugar rele-
vante de transição” (“transition-relevance place”).

27
HILGERT, José Gaston. A construção no texto “falado” por escrito...

– o recém-chegado institui-se como interlocutor, pedindo, explí-


cita ou implicitamente, que seja interpelado por alguém:

Medusa 22:43:26 – Alguém afim de um bate papo legal?


C@ndy Girl 22:43:41 – É a primeira vez que entro nesta sala....
estou só......

– alguém outro na sala toma a iniciativa de instituir como


interlocutor o recém-chegado que ainda não se manifestou,
dirigindo-lhe a palavra:

Isabel 22:43:50 fala com ddd – de onde?

Com sua intervenção, Isabel interpela ddd, que havia entrado na


sala às 22:42:31 sem ter-se apresentado ainda.
– nos dois últimos casos, pode haver ou não correspondência na
tentativa de instaurar a interlocução;
– caso não haja essa correspondência, o interessado pode aban-
donar a sala sem maiores explicações ou então continuar a
insistir. Para esta última possibilidade, é exemplar uma seqüên-
cia de intervenções de C@ndy Girl:

(22:43:26) É a primeira vez que entro nesta sala....


estou só......
(22:44:39) (Chateada vou para um canto meditar.....)
(22:45:17) Farei um monólogo: Ser ou não ser.... eis
a questão...

A sua insistência lhe valeu, finalmente, a manifestação de dois


interlocutores:

sil 22:45:25 – sai daí menina!


URSO 22:45:25 – Take it easy, menina doce! Junte-se aos bons.

28
Fala e escrita em questão.

– Caso haja correspondência, a conversação finalmente se esta-


belece, pois se institui o seu princípio organizacional mínimo:
a troca de turnos.

Uma vez desencadeada a alternância de turnos na CINT, confron-


temos agora as suas características com as observações de Sacks, Schegloff
e Jefferson em relação a essa alternância na CFF.
a) Na CFF, “os interlocutores se alternam com freqüência”. Na CINT,
essa alternância ocorre com mais freqüência ainda. Isso se deve a
uma série de fatores, a começar com a dimensão dos turnos. São
predominantemente muito curtos, sendo raros os que vão além de
meia ou, no máximo, de uma linha no monitor. Além disso, são
constituídos, predominantemente, por pares adjacentes 13 pergunta-
resposta e cumprimento-cumprimento, os quais, por natureza, ten-
dem à objetividade, não favorecendo divagações que poderiam se
estender em turnos mais longos, o que levaria, então, à redução do
grau de dialogicidade. Também o próprio contexto de produção não
estimula um interlocutor a estender-se em considerações mais lon-
gas, por não saber quem é o “ouvinte”, por não tê-lo diante de si
fisicamente nem mesmo pela voz (como é o caso da interação tele-
fônica) e, em conseqüência, por este não lhe dar nenhum feedback
lingüístico (certo, concordo, sei, isso aí, de fato), paralingüístico
(mhm, ahã) ou extralingüístisco (gestos, mímicas, sorrisos) quanto
ao interesse que suas considerações estão despertando. Esses aspec-
tos estão diretamente ligados ao fato de, na Internet, a conversação
se dar por escrito. Sabemos que, num contexto face a face, um ou
outro dos interactantes, num grupo maior de conversação, se vê es-
timulado a manter o turno por mais tempo, na medida em que varia-
dos sinais de feedback (“sinais do ouvinte”, cf. Marcuschi 1986: 68)
demonstram interesse e atenção dos ouvintes pela fala em anda-

13
“Par adjacente (ou par conversacional) é uma seqüência de dois turnos que coocorrem e
servem para a organização local da conversação.” (Meise-Kuhn, 1986: 35).

29
HILGERT, José Gaston. A construção no texto “falado” por escrito...

mento, rareando, dessa forma, a intensidade das alternâncias de tur-


no. Nas relações face a face existe ainda uma outra situação, ausente
na CINT, que pode provocar turnos mais longos: a relação assimé-
trica entre interlocutores. Numa roda de conversação, alguém que
se manifesta mais entendido sobre o tema em pauta acaba impondo
uma certa autoridade sobre os demais, que, quase insconsciente-
mente, lhe outorgam mais tempo de fala; também do ponto de vista
das relações de poder “os que estão numa posição inferior têm me-
nos turnos e ficam mais silenciosos” (Murray, 1989: 336). Ora, na
CINT, pelo fato de os interlocutores não se conhecerem, essas rela-
ções de poder inexistem, não havendo, portanto, também, razões
para uns falarem mais do que os outros, o que imprime um caráter
simétrico a esta conversação.

b) Na CFF, “predomina a prática de só um dos falantes fazer uso da


palavra por vez”. Na CINT, do tipo que analisamos, falar um por
vez é uma norma compulsória, por determinação do meio eletrôni-
co em uso. Os interlocutores nem sequer acompanham, nos seus
respectivos monitores, a gradativa formulação dos enunciados de
seu parceiro de comunicação. O “falante” só dará a conhecer ao
“ouvinte” o seu enunciado, quando, concluída a formulação, ele
acionar o comando “enviar”. Neste momento o enunciado aparece-
rá no monitor do “ouvinte”, que saberá então que está concluído o
turno de seu interlocutor e que caberá agora a ele assumir a função
de “falante”. E, assim, alternadamente.

c) Na CFF, “são comuns os momentos em que ocorre sobreposição de


falas, mas são breves”. Na CINT, em decorrência do que expuse-
mos acima, essa sobreposição inexiste.

d) Na CFF, “a absoluta maioria das transições de um turno para o pró-


ximo ocorrem sem ou, no máximo, com pequenos intervalos e
sobreposições”, entendendo-se por intervalo, numa interação a dois,

30
Fala e escrita em questão.

o período de tempo que vai do fim do turno do falante para início de


formulação do turno do ouvinte. Quanto às sobreposições na CINT,
já vimos que elas não ocorrem de maneira nenhuma. No que respei-
ta ao intervalo entre turnos, ele se define como o tempo decorrido
entre o aparecimento, no monitor, do turno do “falante” e o do turno
do “ouvinte”. Considere-se este segmento de nosso corpus:

Bart 22:42:59 fala com Ana: Você é macrô?


Sil 22:43:14 mumura para Isabel: eu gosto de batata-
frita.
Medusa 22:43:26 Alguém afim de um bate papo legal?
Anônimo 22:43:26 sai da sala
Dexter 22:43:29 Oi, oi, oi, oi, oi, oi, oi, oi, oi
Bart 22:43:36 EU AMO Mc DONALDS! :–)
Candy Girl 22:43:41 É a primeira vez que eu entro nesta sala....
estou só......
Ana 22:43:43 fala com Bart: Não...sou lacto-vegetaria-
na. Como derivados de leite e nenhum
tipo de carne.

Entre a abordagem de Bart e a resposta de Ana, passaram-se 42


segundos, ou seja, mesmo considerando o tempo que Ana levou para
formular o seu enunciado, a demora entre o aparecimento de um e outro
turno no monitor é longa. Considere-se mais este exemplo:

Urso 22:44:16 fala com Ana: O sabor... A picanha san-


grando no espeto... A maminha... A fral-
dinha... Nhammmmm! Socorro, alguém
me segure senão eu vou correndo pra
uma churrascaria agora!!!!!

Seguem-se outras interações no monitor, até que Ana responde:

31
HILGERT, José Gaston. A construção no texto “falado” por escrito...

Ana 22:45:21 fala com URSO: Depois que eu parei de comer, eu


sinto um cheiro ruim vindo da carne. Engraçado...
sinto um cheiro forte e desagradável...de carne
podre mesmo!

Desta vez a transição do turno demorou um minuto e cinco segun-


dos, o que efetivamente é um tempo muito mais longo ainda se compara-
do com o que ocorreria na interação face a face.
As razões que levam ao protelamento da transição do turno não se
pretende aqui discutir mais detalhadamente. Lembramos somente que,
além do tempo necessário para a formulação do enunciado lingüístico,
uma delas é a própria velocidade do meio. Seus limites tornam ainda
lenta a transmissão de dados on line, obstáculo que certamente a tecnologia
em breve superará. Cabe lembrar também outra razão: como na sala se
encontram muitos interlocutores (não somente dois), é natural – como tam-
bém acontece na CFF entre várias pessoas simultaneamente presentes –
que espontaneamente surjam interações paralelas centradas em temas afins
ou não ao que predomina no grupo maior 14. Ora esse fato é um perene
estímulo à dispersão da atenção, ao aguçamento de outros interesses, à
interação com outros parceiros na sala, fatos que podem facilmente levar
ao protelamento da transição de turnos ora, simplesmente, à interrupção do
processo de sua alternância. Essas conseqüências são menos comuns na
CFF, pois nela os interlocutores obrigam-se a uma certa etiqueta, determi-
nada por uma prática sociocultural, que os leva a deferências mútuas no
desdobramento conversacional. Na CINT, porém, esses compromissos
entre os interlocutores não existem, particularmente pelas razões já cita-
das da distância física entre eles e pelo ocultamento de identidade.
Em síntese, ao contrário do que acontece na CFF, na CINT, o
intervalo na transição do turno é relativamente longo, durando, no míni-
mo, o tempo necessário para a formulação do turno e a sua transmissão.
Diante do que expusemos, tentaremos agora propor, mantendo a
comparação com o que Sacks, Schegloff e Jefferson estabeleceram para
14
O corpus observado revela que o tipo de conversação que analisamos se caracteriza por
uma grande dispersão temática.

32
Fala e escrita em questão.

a CFF, um sistema de troca de turnos na CINT, sempre lembrando que


nos estamos referindo apenas à alternância de turnos já desencadeada.
R1) O “falante” em exercício (t1) indica nominalmente o próximo
“falante” (t2), o qual tem o direito de tomar o turno e dar prosseguimento
à conversação.
Duas considerações são aqui importantes em relação à CFF. Por
um lado, nesta, o sistema prevê, além do direito, a obrigação de o falante
do (t2) tomar o turno. Essa obrigação parece vir determinada exatamente
pelas injunções socioculturais que comandam, ao menos nas culturas
ocidentais, as interações das pessoas em presença física. Como já se viu,
não existindo essas injunções na interação pela Internet, também desa-
parece a “obrigação” de o falante de (t2) tomar o turno. Por outro lado, o
destinatário do turno do falante tem de ser, por determinação dos limites
do meio eletrônico, nominalmente indicado, diferentemente, portanto,
da CFF, em que vários recursos proporcionados pela situação face a face
podem apontar o falante seguinte.
R2) O falante em exercício (t1), ao final de seu turno, aguarda que
qualquer um dos presentes na sala seja o próximo “falante” (t2), tendo
direito ao turno quem primeiro tomar a palavra.
Esta regra, embora determine uma auto-seleção do próximo fa-
lante entre os presentes na sala, só a possibilita depois que o falante em
exercício tiver entregue o turno. Nesse sentido, tem esta regra uma dife-
rença fundamental com a R2 da interação face a face, a qual consiste na
auto-seleção que permite, como característica essencial, o assalto ao tur-
no do falante em andamento. Essa possibilidade implica uma série de
características tanto na transição do turno em si quanto nas marcas de sua
formulação, ausentes na CINT, como, por exemplo:

– a existência, no turno do falante de (t1), de um “lugar relevante


de transição”, constituído por hesitações, pausas alongadas não
preenchidas e outros fenômenos lingüísticos, paralingüísticos
ou até extralingüísticos, que ensejam a tentativa de assalto ao
turno;

33
HILGERT, José Gaston. A construção no texto “falado” por escrito...

– a interrupção e a sobreposição de falas, por meio das quais se


revela a tentativa de assalto ao turno e a recusa em entregá-lo.

Em síntese, a transição de turnos segundo a R2, na CFF, é marcada


essencialmente pela negociação entre os interlocutores, sendo a ausên-
cia desta a marca mais evidente das transições de turno na CINT. Esse
fato revela que a negociação é um traço fundador do texto falado proto-
típico.
R3) Se, no caso de (R2), ninguém se manifestar, pode, embora
não necessariamente, o “falante” (t1) retomar o turno entregue, formu-
lando um outro enunciado ou, na medida em que acionar novamente a
tecla “enviar”, insistindo com o mesmo. Assim procedendo, retorna, à
aplicação da R1.
No caso da insistência com o mesmo enunciado, dá-se origem a
uma repetição, cuja fidelidade é somente possibilitada pelo recurso ao
computador. Ela pode ser reiterada o número necessário de vezes, en-
quanto tiver alguma função comunicativa pertinente. Na CFF essa repe-
tição seria absolutamente inviável, primeiro pelo fato de o ser humano
não ser uma máquina repetidora; em segundo, porque, nesta conversa-
ção, as repetições têm necessariamente um caráter parafrástico, por cons-
tituírem retomadas que, em relação a seu enunciado-origem, sempre apre-
sentam alguma reformulação enunciativa e, por menor que ela seja, sem-
pre concorrem para a progressividade textual.
Fechando essas considerações sobre a organização da alternância
dos turnos na CINT, cabe enfatizar que a transição de turnos é nela ne-
cessariamente marcada pelo meio (cf. Murray, 1989). O fato de os “fa-
lantes” não estarem numa situação face a face, de não saberem quem são
seus interlocutores e de terem de traduzir seus enunciados por escrito,
ainda que conceptualmente se sintam falando, imprime à transição de
turnos um caráter maquinal, previsível, planejado, no sentido de que essa
conversação transcorre de acordo com os limites e as possibilidades da
programação de um sistema eletrônico. Mas maquinal aqui também se
opõe a humano, na medida em que a transição de turnos, na conversação

34
Fala e escrita em questão.

face a face, mais do que uma simples alternância de enunciados lingüís-


ticos, envolve identidades e histórias humanas que geram, em situação
face a face, sentidos imprevistos, manifestados por signos não só lingüís-
ticos, fatores todos responsáveis por uma organização conversacional
bem mais complexa.

6. Aspectos da formulação lingüística na CINT

Já vimos quais são as condições de produção da CINT: mesmo


interagindo em tempo real, os interlocutores não se encontram face a
face, não sabem com quem estão “falando” e estão limitados aos recur-
sos de programação do computador, que os obriga a elaborar por escrito
seus enunciados, ainda que se concebam falando nas interações de que
fazem parte.
Já observamos também algumas conseqüências dessas condições
de produção no sistema de alternância e alocação de turnos. Queremos
agora identificar outras no processo de formulação do texto conversa-
cional na Internet. E, para darmos mais evidência a essa formulação,
vamos retomar, resumidamente, as principais características da formula-
ção da CFF.
Segundo Rath (1979: 20), a noção de texto falado se confunde
com o próprio processo de sua construção e, no dizer de Antos (1962:
183), nele se mantêm explícitos todos os traços de seu status nascendi.
Na CFF, os interlocutores acompanham mutuamente, passo a passo, pa-
lavra a palavra, expressão a expressão, o processo de construção dos
enunciados, com todos os seus desvios, interrupções, reinícios, hesitações,
repetições, correções. Todos esses procedimentos são parte integrante do
texto conversacional. Nada, no processo de sua construção, se apaga.
Para Gülich (1994)15 a formulação do texto conversacional é um
“trabalho” 16 que se realiza por meio de dois tipos de atividades: “a

15
Cf. também em Gülich e Kotschi, 1986; Gülich e Kotschi, 1995; Gülich e Kotshi, 1996.
16
A formulação também é concebida como trabalho em Blanche-Benveniste, 1990: 25ss.

35
HILGERT, José Gaston. A construção no texto “falado” por escrito...

verbalização de conteúdos cognitivos” e “o tratamento de enunciados


lingüísticos já produzidos”. A primeira consiste em dar forma lingüística
ao que o falante quer transmitir ao ouvinte; a segunda denomina todas as
reformulações, avaliações e comentários de enunciados ou segmentos de
enunciados anteriormente verbalizados. As atividades de verbalização e
de tratamento podem ser abordadas sob dois pontos de vista diferentes:
a) elas podem ser identificadas como atividades distintas, na medida em
que um enunciado só pode receber um tratamento se ele já tiver sido
verbalizado, constituindo, então, essas atividades, fases sucessivas no
processo da formulação; b) as atividades de tratamento se confundem
com as de verbalização, na medida em que toda atividade de tratamento
será sempre o resultado de uma verbalização.
Em qualquer um dos casos, enfatiza Gülich, dois enfoques con-
vergem sempre na análise das atividades de formulação: elas precisam
ser vistas, ao mesmo tempo, como processo e como interação. A pri-
meira perspectiva focaliza o caráter discursivo da conversação, o qual
permite distinguir diferentes fases em sua construção; a segunda põe em
evidência o fato de que “a produção de enunciados acontece na interação
e por meio da interação”.
O fluxo da formulação textual, como já se pode deduzir da classi-
ficação acima, não acontece de forma fluente e continuada. As desconti-
nuidades são freqüentes. Consistem em interrupções do fluxo formulativo
atribuídas ao fato de o falante não encontrar uma alternativa de fomulação
imediata e definitiva, o que caracteriza, segundo Antos (1982: 160), um
“problema de formulação”. Sacks, Schegloff e Jefferson (1977: 362) lem-
bram que cada elemento lingüístico pode ser considerado uma “fonte de
problemas” (“trouble source”). Para eles um problema não só se identifi-
ca na ocorrência de “erros” e “falhas” na formulação, mas também na
procura de uma palavra adequada, manifesta em hesitações e outros fe-
nômenos. Podem também ser considerados problemas enunciados in-
compreensíveis ou de difícil compreensão que levam o falante, por inici-
ativa própria, ou de seu interlocutor, a reformular esses enunciados a fim
de lhes garantir a compreensão (cf. Hilgert, 1993: 108).

36
Fala e escrita em questão.

Formular a conversação consiste então em buscar alternativas de


solução para esses problemas, o que, segundo Gülich, pode exigir dos
interlocutores significativos esforços – daí a concepção de formulação
como trabalho – que deixam os seus vestígios, as suas pegadas no texto
conversacional. São esses vestígios que constituem os elementos para a
análise da construção da conversação.
São por demais conhecidas as marcas que apontam para os pro-
blemas da verbalização: pausas preenchidas ou não, hesitações, alonga-
mentos, interrupções de diferentes naturezas, reinícios, anacolutos. Ma-
nifestam-se particularmente em momentos de seleção lexical, no “traba-
lho de denominação” (cf. Blanche-Benveniste, 1990: 25), como revela
este segmento:

“antigamente... o vestibular era diferente... nós estuda/


fazíamos... doze cad/
doze matérias... e
dividíamos geralmente fazendo quatro matérias para o
por ano”.
(Hilgert, 1997: 193)

Freqüentemente, no trabalho de denominação, se evidencia o ca-


ráter interacional da formulação, na medida em que o ouvinte participa
ativamente da procura de um nome adequado ou até colabora na estrutu-
ração sintática do enunciado.

L2 – é... é a moda... antigamente era:: ... conjuntura... ago-


ra é infra-estrutura e poluição ((risos))
L1 – exatamente... saneamento
L2 – saneamento...
L1 – poluição... e outras coisas mais...
(Castilho e Preti, 1987: 66)

L1 – o o a casimira era chique... o brim era para a classe mais modes-


ta mais pobre... e:: ...

37
HILGERT, José Gaston. A construção no texto “falado” por escrito...

[
L2 – para os operários (né?) ( )
(Idem, 1987: 221)

Neste último exemplo, registra-se, no dizer Wahmhoff (1981: 104),


o fenômeno da “solidariedade sintática”, à medida que L2, com o seg-
mento “para os operários”, dá seqüência à estrutura sintática do enuncia-
do de L1.
As atividades de tratamento têm natureza reformuladora ou fun-
ção metalingüística retrospectiva. As reformulações mais comuns são as
repetições, as paráfrases e as correções. Elas se identificam, em geral,
dentro de uma estrutura relacional de três elementos: o enunciado-ori-
gem (a ser repetido, parafraseado ou corrigido); o enunciado reformulador
(da repetição, paráfrase e correção); um marcador (verbal ou paraverbal),
geralmente antecedendo o enunciado reformulador ou integrado a este:17

Os que não têm condições maiores de aptidão eles


(EO) passam a fazer biscates
(P) ficam assim fazendo ou:: uma sub–empreitada de um trabalho
fazendo as coisas assim mais leves
ou que não tenham assim tanta
significação...
(Hilgert, 1997: 67)

EO é o enunciado-origem e P a paráfrase, que se desdobra, deste


modo, numa verdadeira cadeia parafrástica, sendo cada passo assinalado
pelo marcador “assim”, que, além de anunciar ao interlocutor uma refor-
mulação, identifica a natureza dela.
A mesma estrutura tricotômica pode-se observar na correção:
17
Se são muito comuns os marcadores verbais para as paráfrases e as correções; para as
repetições predominam os de caráter paraverbal.

38
Fala e escrita em questão.

Acho que vai muito da:: da... da higiene nessa parte aí... relacionada
com o cabelo... procurando assistência com um técnico ou com uma
técnica que entende do assunto... e de:: de uma orientação como utili-
zar... meios pra que se... previna a cárie... a cárie desculpe ((risos)) a::
a:: queda do cabelo... calvície... precocemente... e assim procura-se
mantê-lo...
(Hilgert, 1997: 77-78)

Todo o segmento em destaque (mesmo a segunda ocorrência de


“cárie”, dita de forma rápida e em tom mais baixo, como quem se deu
conta do equívoco) é o marcador que anuncia a correção de “a cárie”
para “a:: a:: queda do cabelo”.
Nas atividades de correção e paráfrase, predominam as autocorre-
ções e as autoparáfrases. Contudo, muitas delas são desencadeadas por
iniciativa do ouvinte. Outras, além de desencadeadas, são realizadas por
este, gerando heteroparáfrases e heterocorreções. Essas possibilidades
todas acentuam a natureza interativa das atividades de tratamento.
Finalmente, cabe ainda fazer uma referência aos comentários e às
avaliações, genericamente denominados por Gülich e Kotschi (1995) de
“procedimentos de qualificação”. São enunciados conversacionais de
natureza metalingüística ou metadiscursiva formulados “para avaliar ou
comentar expressões ou seqüências de expressões” usadas no desenvol-
vimento do discurso, destacando, dessa forma, problemas de verbalização
ou de comunicação (cf. idem: 51). Nestes dois trechos identificam-se
atividades qualificadoras:

Inf. Nós temos a nossa... nossa antiga capital que é uma cidade ma-
ravilhosa mesmo... encantadora com praias belíssimas com ser-
ra na própria cidade... lá pela Tijuca para Santa Teresa, mas...
assim nesses comentários assim um pouco rápidos há outros ou-
tras coisas também... impressionantes e:: encantadoras? (Hilgert
1997, p. 10).

39
HILGERT, José Gaston. A construção no texto “falado” por escrito...

Inf. Eu tenho impressão que se para o homem é é horrível para a


mulher então ia ser muito pior acho que isso é uma profissão que
para mulher aí não... já era né? como se diz na gíria não dá eu
acho... e essas são outras profissões que que fisicamente a mu-
lher não tenha condições de enfrentar não é? (Hilgert 1997, p.
10).

Os segmentos sublinhados constituem as atividades qualificadoras,


consistindo, respectivamente, numa avaliação e num comentário sobre
elementos anteriormente inseridos no processo de formulação. No pri-
meiro caso é objeto de qualificação um conjunto de informações anteri-
ores; no segundo, a expressão “já era”. Nem sempre, é verdade, o seg-
mento avaliado e a avaliação ou o comentário aparecem de forma tão
explícita. Às vezes um ou outro ficam implícitos no contexto ou a quali-
ficação simplesmente se realiza por formulações estereotipadas do tipo
“digamos”, “assim dizendo”, “assim”, “é o que se chama/denomina”,
“entre aspas”, etc.
Por esses exemplos, fica evidente que as atividades de qualifica-
ção apresentam, ao menos como caráter geral, uma estrutura relacional
dicotômica: a) um enunciado-origem ou segmento avaliado ou comen-
tado; b) a avaliação ou comentário. Distinguem-se, portanto, sob esse
ponto de vista, das atividades de tratamento, cuja estrutura relacional
identificamos como tricotômica.
À luz dessas características da formulação da CFF, consideremos
agora a CINT, tentando identificar peculiaridades no processo de formu-
lação desta.
Em primeiro lugar, é óbvio, estão ausentes da formulação da CINT
os vestígios de verbalização intrinsecamente ligados ao caráter fônico da
fala, como é o caso da velocidade, das nuanças entonacionais, dos ele-
mentos paraverbais do tipo ah, éh, eh, ahn, ehn, uhn indicadores de hesi-
tações e sustentadores de pausas.
Os alongamentos vocálicos, tão freqüentes na CFF, – muitas ve-
zes também com o objetivo de sustentar pausas, ganhar tempo na seleção

40
Fala e escrita em questão.

lexical ou simplesmente não perder o turno –, aparecem na CINT, mas


são bem mais raros e restringem-se a funções interjectivas enfáticas:

Bia 22:52:43 fala com URSO: ahhh q pena! o q há de


diferente?
Valentine1 22:52:09 fala com bell: oi belllllll! :o)
Bia 22:48:18 fala com barbarella: muitoooooo!!!! :o)
Valentine1 22:50:02 fala com bia: biiiiiiiiiiiiiiiiinha! :o)

Não há representações gráficas precisas e regulares que possam


ser identificadas como traduções de eventuais pausas. Às vezes, com
base no sentido contextual do enunciado, tem-se a impressão de que o
“falante” quer traduzir uma pausa por meio de uma seqüência de três
pontos, como vem sublinhado nestes segmentos:

URSO 23:09:10 fala com GUARÁ II: Já o javali... Pare-


ce com porco, mas é diferente... Não sei
explicar... é bom!
Ana 23:06:07 fala com antonio: Pois é....fica difícil pra
mim discutir com alguém que desconhe-
ce metafísica...

No entanto, não é essa a função preponderante das seqüências de


pontos (em geral três ou mais). O que elas revelam mesmo é a consciên-
cia da segmentação sintática na construção do enunciado. Elas substitu-
em, o que, num texto prototipicamente escrito, seria representado por um
ponto ou ponto-e-vírgula, em final de perído; por uma vírgula, na demar-
cação de um adjunto adverbial ou de elementos coordenados. Isso fica
muito evidente no penúltimo exemplo acima e neste a seguir:

Ana 23:05:25 fala com GUARÁ II: Como sim....de vez


em quando....eu não sou nenhuma neu-
rótica ou radical. Eu simplesmente de-
testo comer carne. N me faz falta nenhu-

41
HILGERT, José Gaston. A construção no texto “falado” por escrito...

ma. Como aquilo que eu gosto e que me faz bem.....adoro


sorvete....chocolate....mas sem exagero né?

A primeira seqüência poderia ser substituída por uma vírgula; a


segunda e a terceira por um ponto; as duas últimas por vírgulas.
Essa prática de não usar a pontuação da língua escrita na marca-
ção sintática dos enunciados na CINT é mais um recurso para efetiva-
mente imprimir um caráter “falado” ao compulsoriamente escrito. Como
muitos usos dos sinais de pontuação na escrita são uma representação
gráfica de um fenômeno fônico (entoação ou pausa), a pontuação alter-
nativa da CINT acaba se tornando uma forma de “re-oralização”, isto é,
uma tentativa de retorno ao oral (cf. Meise-Kuhn, 1998: 234). Enqua-
dram-se nesta perspectiva, aliás, todas as iniciativas, por vezes criativas,
dos “falantes” em imprimirem, ao que compulsoriamente tem de ser es-
crito, traços próprios da fugacidade e da imediatez da fala e das coerções
de uma interação face a face.
Sobre pontuação cabe ainda registrar o verdadeiro abuso dos pon-
tos de interrogação e de exclamação. Em segmentos como estes:

Bell 22:51:53 fala com ©láudia: Oi....voltou pra fi-


car?????
Valentine1 22:55:45 mas amiga, vc deu boa noite e saiu dire-
to!!!! Mandei a msg e vc já tinha saído!!!!

Um só de cada um dos sinais daria conta respectivamente do sen-


tido interrogativo e exclamativo do enunciado. O que se acresce além
deste só se explica como tentativa de evocar impressões da interação
face a face, dificilmente traduzíveis por escrito. É outra manifestação da
re-oralização.
Na CINT os interlocutores não acompanham, passo a passo, a
mútua construção do enunciado. Como já vimos, o “ouvinte” só vai ter
acesso ao turno do “falante”, quando o texto que o traduz aparecer con-
cluído no monitor. Este fato vai afetar explicitamente o caráter interativo

42
Fala e escrita em questão.

da formulação na CINT. Não vão aparecer manifestações de colaboração


do “ouvinte” na construção dos enunciados do “falante”, nem no “traba-
lho de denominação” e seleção sintática, nem nas iniciativas de “solida-
riedade sintática”. Pela mesma razão, o “falante” fica também privado de
uma série de outras manifestações de natureza não lingüística do “ouvin-
te” que, na CFF, acabam sendo decisivas nos rumos da formulação.
Por esse mesmo motivo, fica-se igualmente sem saber se o enun-
ciado de um “falante” que aparece no monitor foi formulado fluente-
mente, isto é, num único impulso de formulação, ou se houve “proble-
mas” que o levaram, por exemplo, a demorar na seleção lexical, a apagar
(deletar), corrigir e reescrever certos segmentos ou a reordenar outros.
Em síntese, duas hipóteses se põem: a) o texto em evidência é fruto de
um primeiro e único impulso de formulação, decorrente, portanto, de um
processo sem “problemas”; b) ele é um texto-produto, do qual se apaga-
ram os vestígios das atividades de verbalização, de tratamento ou até de
qualificação, solucionadoras dos “problemas”.
Objetivamente, com base nos dados observados, nenhuma das
hipóteses pode ser confirmada de forma absoluta. Mas neles há elemen-
tos que autorizam algumas conjecturas. Vem em favor da hipótese (a) o
fato de que a absoluta maioria dos turnos não ocupa mais de meia linha
de texto. São falas em pares adjacentes como pergunta-resposta, cumpri-
mento-cumprimento, ou apresentações pessoais, tentativas de contato,
breves comentários, esclarecimentos, manifestações de espanto (expres-
sões interjectivas), como mostram os exemplos:

Anônimo 22:59:52: Alguém por acaso.......tem notícias da


Dana?....... (a dos anjos)
URSO 23:00:21 fala com Anônimo: Ela esteve aqui on-
tem...

Sil 22:57:30 fala com Neo: oi! como vai?


Neo 22:58:01 fala com sil: Tubo bem... e vc???

43
HILGERT, José Gaston. A construção no texto “falado” por escrito...

Diadorim 23:00:04 Boa noite a todos!


Neo 22:57:02 Oi algue’m afim de TC???

Sebulba 23:04:32 fala com ANAKIN: Na próxima corrida


eu te pego!

Estruturas com essas características, traduzidas por frases nomi-


nais ou por períodos de uma ou, no máximo de duas orações, não desen-
volvendo uma idéia que exigiria uma formulação, se não mais complexa,
ao menos mais longa, foram certamente construídas num único impulso
formulativo, isto é, sem ter havido reformulações em sua construção.
Turnos mais longos, porém, com um processo de construção mais
complexo, oferecem um contexto mais propício ao surgimento de “pro-
blemas” de formulação. Vejam-se estes exemplos:

Antonio 22:47:51 fala com Ana: Peraí..... a definição de


hommo sapiens tá ligada ao consumo de
proteína animal.... os principais instru-
mentos paleolíticos são de caça ou pes-
ca..... se dqui pra frente a gente pode ex-
perimentar viver sem protéina animal é
um papo (com certeza não dá....)..... mas
a origem da espécie tá ligada ao consu-
mo de protína animal.... sem dúvida vc
não existiria sem os bifes primordiais....
Ana 22:50:17 fala com antonio: Mas e antes da era
paleolítica? A ciência tem registro? Pois
eu já li vários metafísicos pesquisadores
que dizem que a humanidade já foi mais
pacífica e vegetariana. Saiba que de
acordo com eles, o nosso canibalismo
está associado ao espírito bélico, que na
era paleolítica já era latente!!! EU creio
nisso... vc não precisa crer...

Em relação a esses exemplos não se pode asseverar com tanta


segurança que tenham sido construídos num único impulso. Em sua com-

44
Fala e escrita em questão.

plexidade formulativa, é provável que, em algum momento, tenha havi-


do recuos para reformulações. Na “fala” de Antonio, contudo, esta pro-
babilidade parece menor do que na de Ana. Com efeito, se o primeiro
estivesse efetivamente atento ao registro escrito de sua “fala”, teria
reformulado problemas de digitação como “dqui”, “protéina”, “protína”.
Isso atesta, portanto, a favor de uma formulação fluente. Já a “fala” de
Ana está impecavelmente escrita, o que permite duas conclusões: ou a
“falante” tem singular fluência na expressão de seu pensamento por es-
crito ou o seu texto é produto em que os vestígios da solução dos proble-
mas de formulação foram apagados.
Se procedimentos de correção são raramente detectados nos limites
da construção de um turno, eles, contudo, ainda que não com freqüência,
são encontrados de um turno para outro. Vejam-se estes exemplos:

Luci@n@ 23:05:47 fala com Ana: Olha, acho que vc tem ra-
zão no caso das homeopatias..mas acre-
dito na cura com revas tb..
Luci@n@ 23:06:25 fala com Ana: Desculpe, eu disse ervas!

Ana 23:06:07 fala com antonio: Pois é.... fica difícil pra
mim discutir com alguém que desconhece
metafísica... e que mesmo assim critica.
Ana 23:06:44 fala com antonio: Perdão... era “pra eu
discutir”...

Diotima 23:09:10 fala com Sebulba: Acho que sim. Que tipo
de cinema você gosta?
Diotima 23:10:13 sorri para Sebulba: Desculpe a repetição.
Esta máquina mortífera é que faz isso...

No primeiro exemplo, ocorre a correção de um equívoco de


digitação, do qual a “falante” só se deu conta depois de enviar o texto ao
interlocutor. No segundo, corrige-se um erro de uso do padrão culto da
língua. Em ambos os casos fica evidente que, se os falantes tivessem-se
dado conta dessas incorreções enquanto estavam formulando o turno,

45
HILGERT, José Gaston. A construção no texto “falado” por escrito...

teriam feito a reformulação logo, e o “ouvinte” não teria percebido ne-


nhum vestígio dela.
No último exemplo, o “erro” de que Diotima se desculpa decorre
de um movimento equivocado no uso do computador, consistindo, pro-
vavelmente, no acionamento involuntário da tecla “enviar”, que acabou
remetendo mais uma vez o enunciado anterior.
Resumindo, a correção não tem razão de se manifestar na CINT,
salvo em casos em que ela vá ser feita, por alguma razão, num turno
futuro do mesmo (autocorreção) ou de outro (heterocorreção) “falante”,
quando, então, o procedimento se tornará explítico. Sendo a função da
correção anular, total ou parcialmente, o anteriormente dito, a formula-
ção escrita pelo computador permite essa anulação pelo efetivo apaga-
mento. Aliás, nem mesmo num texto de CFF se manifestariam corre-
ções, se fosse possível “apagá-las” por outro recurso que não por um
enunciado corretivo.
Paráfrases são também raras, no corpus que analisamos, em prin-
cípio pela mesma razão da curta dimensão dos enunciados e da sua fun-
ção comunicativa, já comentadas acima. Encontramos estas:

Bart 22:49:01 fala com Bia: Mas Hesse já foi [muito]


lido. [Muito mesmo]. Está sendo
redescoberto. :–)
Ana 22:55:18 fala com antonio: [Nesse caso, sugiro que
nossa discussão pare por aqui], porque
eu já li muito a respeito de astrologia,
numerologia, sobre povos antigos
(essênios, caldeus), e tenho grande fé na
mnetafísica. Acho que se a humanidade
fosse mais intuitiva, tantas aberrações
(como canibalismo) não estariam acon
tecendo. Já que vc só tem fé na ciência
ortodoxa do homem (que vive se contra
dizendo), [então creio que nada temos a
discutir!]

46
Fala e escrita em questão.

Na verdade, o parafraseamento, embora tenha igualmente um ca-


ráter de tratamento como a correção, reformula, não para anular enuncia-
dos antecedentes, mas sim para avançar na construção do texto, com a
finalidade de explicar, explicitar, precisar, especificar, exemplificar, de-
nominar, resumir. Ora, paráfrases com tais funções não ocorrem somen-
te em textos falados, mas são também comuns em textos prototipica-
mente escritos, o que as torna, portanto, plenamente viáveis na CINT.
As repetições cujas funções, na CFF, são essencialmente identifi-
cadas na modulação fônica da fala e na sua vinculação às manifestações
mímico-gestuais da interação face a face evidentemente não ocorrem na
CINT. Todas as demais, porém, podem ocorrer. Como exemplo, veja-se
a fala de Bart que acima transcrevemos para a paráfrase. Sob um ponto
de vista conceitual mais amplo, ela – aliás, como toda paráfrase – poderia
ser considerada uma espécie de repetição.
Há ainda um tipo de repetição que se manifesta na reapresentação
absolutamente idêntica de um enunciado num ou mais turnos subseqüen-
tes, com o intuito de levar a algum “ouvinte” se manifestar.

GUARÁ II 23:11:31: Galera alguem já ouviu algum


comentario sobre o filme”DE OLHOS
BEM FECHADOS” com TOM CRUISE
e NICOLE KIDMAN? E alguém poderia
me recomendar algum filme do diretor
STANLEY KUBRICK?

Como ninguém se manifestou, o “falante” volta a reapresentar o


mesmíssimo enunciado, até que:

Bial 23:12:22 fala com GUARÁ II: bem, la vamos nós!


qq filme do kubrick a q vc assistir, vc sai
ganhando. garanto!!!!
Diotima 23:12:31 fala com GUARÁ II: Eu recomendo “La-
ranja Mecânica”. É ótimo!!

47
HILGERT, José Gaston. A construção no texto “falado” por escrito...

Esta repetição está diretamente vinculada às possibilidades do re-


curso eletrônico por meio do qual acontece a interação, e a sua ocorrên-
cia é relativamente freqüente pelo fato de ela não mais exigir nenhum
trabalho de formulação. Basta acionar novamente o comando “enviar”, e
ela retorna ao monitor dos presentes na sala.
Quanto às atividades de qualificação discursiva (comentários e
avaliações metalingüísticas) na CINT, vale considerar o mesmo já cons-
tatado para as paráfrases e repetições. As que podem ocorrer em qual-
quer texto escrito também têm a possibilidade de se manifestar na CINT.
Nos dados que observamos nenhuma apareceu.
Finalmente, cabem ainda algumas considerações sobre o léxico e
a estrutura sintática dos enunciados na CINT. Pelo fato de a maioria das
interações terem a natureza de pares adjacentes pergunta-resposta e cum-
primento-cumprimento, predominam as expressões interjectivas ou no-
minais (“qual msg”??”, “oi bart!”, “Boa noite!”, “oi! como vai?”,“Tudo
bem... e vc???”, “ah q pena, né?). Quando os períodos se estruturam em
torno de um verbo, em geral ficam nos limites de uma única oração. E
quando se estendem em duas ou mais, a relação entre elas é paratáxica,
como mostram estes exemplos:

E aí, já se integrou?
Acho que você está ocupado....
Mas Hesse já foi muito lido. Muito mesmo. Está sendo redescoberto.
Mas até a batata deles tem gosto de plástico, eca!

Em turnos mais longos, também predominam as relações de coor-


denação. As raras relações hipotáxicas manifestam-se predominantemente
em orações subordinadas adjetivas e substantivas, como mostra este seg-
mento:

Mas e antes da era paleolítica? A ciência tem registro? Pois eu já li


vários metafísicos pesquisadores que dizem que a humanidade já foi
mais pacífica e vegetariana. Saiba que de acordo com eles, o nosso

48
Fala e escrita em questão.

canibalismo está associado do espírito bélico, que na era paleolítica já


era latente!!!! EU creio nisso... vc não precisa crer...

Aqui cabe relembrar a consciência sintática dos falantes na cons-


trução dos enunciados, na medida em que demarcam as fronteiras de
constituintes das frases por seqüências de pontos, conforme já exempli-
ficamos acima.
Registre-se ainda o fenômeno recorrente do apagamento de uma
série de constituintes da oração: o sujeito, a cópula, o verbo, determinantes
e outros.
“Qual msg???”
“de onde” (Isabel dirigindo-se a ddd, que ainda não se havia ma-
nifestado na sala)
“Eu” (Dexter “murmurando” para Medusa, em resposta a sua
pergunta: “Alguém afim de um papo legal?”
“Eu não...” (Ana manifestando a Bart que não gostou dos nomes
“Ma Che Bello” e “Ma Che buono” como denominações alternativas ao
BigMac.)
É claro que esses apagamentos em nada comprometem a compreen-
são dos enunciados, uma vez que ela decorre da relação entre os turnos.
Em síntese, essas características apontadas também marcam a sin-
taxe dos enunciados da CFF, o que efetivamente descaracteriza a CINT
como um texto escrito e a aproxima das especificidades da conversação
informal, condicionada especialmente pela alternância de turnos em tempo
real.
No que respeita ao léxico, quatro aspectos destacam-se nitida-
mente na CINT: a forte incidência das palavras e expressões típicas da
fala; palavras e expressões que vão do registro coloquial da fala às gírias;
o fenômeno do “flaming” 18; e as formas abreviadas.
18
Cf. Kiesler, Siegel & McGuire (1984), apud Meise-Kuhn (1988: 364). A palavra deriva-
se do inglês flame = arder, queimar, luzir.

49
HILGERT, José Gaston. A construção no texto “falado” por escrito...

Aos recursos típicos da fala, em situação face a face, já fizemos


alusão acima 19. Traduzem-se em formas onomatopaicas, de cumprimen-
to, de ênfase, de interpelação interrogativa e exclamativa e similares como
estas: “Nhammmmmmm”, “snniiffff”, “olá Bartô! :o) tudo bem?”, “So-
corro!”, “biiiiiiiiiiiiiiiinha!”, “Kd??kd?? (=cadê?)”, “ahhhh tá!!”,
“psiu...”, “poxa, fui abandonada, buá, buá, buá!!!!!!!!!”
O registro coloquial e as gírias estão também fartamente represen-
tadas:

Sil 22:45:25 fala com C@ndy Girl: sai daí menina!


Bart 23:12:17 fala com Dexter: Então pára de me en-
cher, fio. Não mande mais mensagens.
Oh, tranqueira!
Kelly 23:18:01: o que tá rolando de bom por aqui?
Sesbulba 23:19:16 fala com ANAKIN: Depende! Na minha
opinião, quem achou o filme ruim, pq não
entendeu xongas!

Com essas considerações fica evidente a flagrante informalidade


da linguagem na CINT. O fato de serem os interlocutores de uma sala
desconhecidos entre si pressuporia um certo grau de formalidade (uma
linguagem mais elaborada), ao menos nas primeiras abordagens, como
costuma acontecer na conversação telefônica ou mesmo nas interações
face a face, somente se instalando a informalidade na proporção em que
os interlocutores vão-se aproximando, se identificando, enfim, se conhe-
cendo. Não é o que ocorre na CINT. Os interlocutores, em vez de irem
aos poucos expondo suas faces, escondem-nas por meio de apelidos e
pseudônimos. E assim escondidos, sem correrem o risco de “perderem a
sua face”, libertam-se de todas as normas socioculturais que costumam
comandar as relações humanas por meio do uso da linguagem e intera-
gem de maneira pretensamente íntima, descambando até para interven-

19
Cf. nota 10.

50
Fala e escrita em questão.

ções gratuitamente chulas. É a estas intervenções que os autores referi-


dos na nota acima chamam de flaming.
Não cabe aqui entrar em detalhes sobre as razões desse fenômeno.
Mas uma delas com certeza é o fato de os interlocutores poderem se
manifestar sem nenhum receio de serem identificados. Murray (1989:
364) também atribui o fenômeno à falta de normas estabelecidas para a
interação na Internet e refere-se a entrevistados de suas pesquisas que
afirmam ser o flaming um sinal de inexperiência, de imaturidade e de
falta de profissionalismo no uso do computador. Psicólogos talvez pu-
dessem opinar com mais propriedade sobre esse assunto.
Ainda considerando aspectos do léxico, uma das marcas mais evi-
dentes de uma CINT são as abreviaturas. Não consistem numa parte da
palavra, mas sim num conjunto de letras, no qual ao menos o falante
nativo da língua imediatamente reconhece a palavra em questão, por fa-
zerem essas letras parte de sua constituição gráfica. Em nosso corpus
identificamos as seguintes abreviaturas: N (não), q (que), tb/tmb (tam-
bém), vc (você), hj (hoje), blz (beleza, na expressão “tudo beleza!”), tc
(teclar), td (tudo), pq (porque), kd (cadê), msg (mensagem), qdo (quan-
do), qm (quem), qq (qualquer). Neste processo existe só uma regra, pra-
ticamente sem exceção: as abreviaturas são formadas pelas consoantes
iniciais das sílabas da palavra que representam. Fogem a esta regra uma
única ocorrência de tmb para também e de qdo para quando. Registre-se
ainda que é muito pequeno o conjunto de palavras que assim aparecem
abreviadas e todas elas de uso extremamente corrente na CFF ou na CINT,
como é o caso de tc e msg.
Finalmente queremos lembrar ao leitor que não nos ocuparemos
neste trabalho de alguns recursos icônicos mais ou menos codificados,
chamados de “caracteretas”, dos quais os interlocutores se valem para
geralmente transmitir alguns estados de espírito. Não os consideramos,
principalmente porque, por sua natureza, não entram na relação fala e
escrita que aqui estamos fazendo. Além disso, parece haver algumas ins-
tabilidades no que respeita à universalidade de sua codificação.

51
HILGERT, José Gaston. A construção no texto “falado” por escrito...

7. Considerações finais

Foi nosso objetivo neste trabalho caracterizar a CINT, comparan-


do-a com a CFF, tendo como principal referência de comparação o fato
de que a primeira é um texto conceptualmente falado, mas compulsoria-
mente realizado por escrito.
Inicialmente procuramos situar a CINT no continuum em que se
distribuem os gêneros de textos escritos correlacionados com os de tex-
tos falados. Vimos que em relação ao texto escrito prototípico (artigo
científico, documento oficial), o texto da CINT situa-se, por suas condi-
ções de comunicação e estratégias de formulação, no extremo oposto do
referido continuum. Por essas razões, ele se afina muito mais com o texto
falado prototípico (conversação espontânea, conversação telefônica) do
que com o correspondente escrito.
O que mais aproxima a CINT da CFF é, indiscutivelmente, a na-
tureza processual e dinâmica daquela, decorrente da interatividade dos
interlocutores em tempo real. Esse caráter vai-se manifestar nas diferen-
tes estratégias de formulação de seus enunciados, as quais, em grande
parte, se identificam com as da CFF.
É evidente que o fato de a CINT ter de se realizar por escrito e
estar limitada ao que se pode fazer por meio do computador lhe dá ca-
racterísticas próprias. Não vão nela ocorrer manifestações específicas da
interação face a face difíceis ou impossíveis de serem representadas na
escrita. Também não se explicitam procedimentos de correção, por exem-
plo, uma vez que as condições de produção dos turnos e os recursos
técnicos da máquina permitem o apagamento de eventuais “erros”. Esse
aspecto mostra que, ao contrário do que acontece com a CFF, no texto da
CINT podem ser apagados traços de seu status nascendi, o que o põe em
rota de aproximação com o texto-produto, conforme é concebido o texto
escrito prototípico.
Também a alternância de turnos tem características muito própri-
as na CINT, destacando-se, particularmente, a absoluta impossibilidade
do assalto ao turno, excluindo desse tipo de conversação uma das marcas

52
Fala e escrita em questão.

mais evidentes da CFF: a negociação. A alocação de turnos na CINT é


rigorosamente ditada pelos limites do meio eletrônico em que ocorre a
interação.
Em síntese, o que efetivamente marca a construção do texto da
CINT é a interatividade. Os interlocutores querem interagir. E como a
interação, na sua forma mais completa e eficaz, acontece em situação
face a face, eles, vendo-se compelidos a escrever, investem toda a criati-
vidade para atribuir a essa manifestação escrita as marcas da CFF. Isso
nos leva a dizer com Meise-Kuhn (1998: 234) que a CINT revela um
crescente processo de re-oralização. Os interactantes, uma vez garanti-
da a eficiência comunicativa da interação, tendem a livrar-se das coer-
ções da codificação da língua escrita, recodificando-a em favor de uma
interatividade possível por meio da manifestação escrita. É à luz da re-
oralização que se explicam, por exemplo, o recurso a longas seqüências
de sinais de pontos de exclamação e de interrogação e também os sinais
icônicos, conhecidos como caracteretas. É de se esperar que a criativida-
de dos interlocutores e o próprio desenvolvimento tecnológico no âmbi-
to das interações por computador vá desenvolver ainda muito mais a
oralização da escrita em busca de interatividade cada vez mais intensa.

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Fala e escrita em questão.

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55
Fala e escrita em questão.

ENTRE A FALA E A ESCRITA: ALGUMAS


REFLEXÕES SOBRE AS POSIÇÕES
INTERMEDIÁRIAS

Diana Luz Pessoa de Barros

1. Há mais coisas entre a fala e a escrita...

Nos estudos lingüísticos atuais instalou-se já certo consenso sobre


a insuficiência de uma distinção rígida entre escrita e fala e sobre a exis-
tência de posições intermediárias ou de certa continuidade entre os pon-
tos extremos em que se caracterizam idealmente língua falada e língua
escrita.
Não trato neste estudo de alguns aspectos instigantes e polêmicos
das diferenças cognitivas entre fala e escrita, tais como o da supremacia
cognitiva da escrita em relação à fala, o da completa diferença entre es-
crita e fala, considerados como sistemas cognitivos paralelos e, conse-
qüentemente, o da existência de diferenças profundas entre o pensamen-
to de indivíduos ou sociedades letrados e não-letrados. Concordo com
Marcuschi (1997, 1998, 1999a, 1999b) em que a supremacia cognitiva
da escrita não passa de um mito e se deve a questões políticas e sociais de
prestígio, em que tanto a fala quanto a escrita são imprescindíveis na

57
BARROS, Diana Luz Pessoa de. Entre a fala e a escrita: algumas reflexões...

sociedade atual, em que fala e escrita não são sistemas cognitivos parale-
los e sim modos complementares de ver e compreender o mundo, em
que as duas modalidades devem ser examinadas na perspectiva de sua
organização textual-discursiva e em que há entre fala e escrita graus ou
posições intermediárias de variação.
Neste estudo faço apenas algumas reflexões sobre as posições in-
termediárias entre escrita e fala. Para as demais questões remeto aos tra-
balhos já mencionados do Autor.
Minhas reflexões são tecidas também na perspectiva dos estudos
do texto e do discurso, mas especificamente no quadro da semiótica dis-
cursiva. Em outras palavras são observados neste estudo os discursos (e
textos) que põem em uso as modalidades da fala e da escrita.
Estou convencida de que os textos falados e escritos têm papéis
diferentes nas sociedades que se servem tanto da fala quanto da escrita e
de que constroem sentidos de modos diversos, com estratégias e proce-
dimentos diferentes, ou preferenciais, e de que as posições intermediári-
as entre fala e escrita são outras tantas formas de produzir os sentidos do
mundo, mais próximas ou mais distantes dos da fala e da escrita.
Para examinar a questão, retomo, na perspectiva da semiótica, os
critérios e características mais freqüentemente apontados na literatura
para definir e distinguir escrita e fala. São eles, a meu ver, na proposta
semiótica, elementos do nível propriamente discursivo, no plano do con-
teúdo, e traços da oralidade, no plano da expressão.
O nível do discurso é, na teoria semiótica, a última etapa de orga-
nização do plano do conteúdo, a mais complexa e concreta e, portanto, a
mais próxima da manifestação e a que mais traços revela da instância de
sua enunciação. É nesse patamar que as organizações narrativas são
investidas de tempo, de espaço, de pessoa (tornam-se atores), de aspecto
e ainda tematizadas e figurativizadas.
O discurso é assim, para a semiótica, uma construção apenas do
plano do conteúdo de um texto, enquanto no texto casam-se uma organi-
zação da expressão com uma organização do conteúdo. No patamar pro-
priamente textual são observados as coerções do plano da expressão,

58
Fala e escrita em questão.

seja ele visual, sonoro, etc., os sincretismos de expressão nos textos ao


mesmo tempo verbais e visuais, verbais e gestuais, entre outros, e as
escolhas lexicais, propriamente ditas.
Minha intenção é apontar aqui apenas as características tempo-
rais, espaciais e actoriais do discurso falado e escrito e os traços de
oralidade e sincretismo da expressão, elementos esses que têm sido em
geral considerados como diferenciadores das duas modalidades de lín-
gua. O objetivo é mostrar a dificuldade e mesmo a impossibilidade de
uma separação estanque entre fala e escrita e as estratégias de construção
de sentido dos vários discursos situados entre as posições ideais de fala e
de escrita.

2. O plano do conteúdo na fala e na escrita.

2.1. O tempo na escrita e na fala.

Boa parte dos autores que se ocupam da fala e da escrita aponta a


forma como tais modalidades se inscrevem no tempo como um dos ele-
mentos fundamentais de diferenciação, quando não a indicam como o
principal fator de distinção (Rodrigues, 1993, Viollet, 1986). Na fala,
elaboração e produção coincidem no eixo temporal, enquanto na escrita
há dois momentos diferentes, o primeiro em que se elabora o texto, o
segundo em que ele é efetivamente produzido. Da concomitância ou não
concomitância da elaboração e produção, decorrem três características
da fala e da escrita:

a – planejamento vs não-planejamento;
b – ausência vs presença de marcas de formulação e de reformula-
ção;
c – continuidade vs descontinuidade.

59
BARROS, Diana Luz Pessoa de. Entre a fala e a escrita: algumas reflexões...

O texto escrito é planejado tanto do ponto de vista temático (esco-


lha dos assuntos a serem tratados) quanto lingüístico-discursivo. A fala
tem certo planejamento temático, isto é, de escolha de tópico para que a
conversação se desenvolva, mas a maior parte das escolhas temáticas e
lingüísticas se faz durante a conversa. É a questão do tempo também que
dá à escrita a possibilidade de reelaborar seu texto sem deixar marcas –
revê-se o que se escreveu, volta-se atrás, apagam-se os erros e hesita-
ções, evitam-se as repetições –, e de apresentá-lo como algo acabado. A
fala, ao contrário, expõe as marcas deixadas pela formulação e pelas
reelaborações, oferecendo sempre pistas e traços das revisões, das mu-
danças de encaminhamento, das reformulações, sob a forma de procedi-
mentos de correção, paráfrase, hesitação, repetição, interrupção, etc..
Esses procedimentos assumem diferentes papéis na conversação
(Barros, 1998), tais como construir as relações de interação, tanto as per-
suasivo-argumentativas quanto as afetivas e passionais, e contribuir para
a produção e a compreensão da conversação, fornecendo pistas de leitura
ao interlocutor e assegurando ao falante o tempo necessário à formula-
ção e à reformulação de sua fala. Dessa forma, os discursos falados e
escritos empregam procedimentos e recursos diversos e constroem sen-
tidos e relações intersubjetivas também diferentes.
A terceira característica resulta, na verdade, não propriamente da
temporalização, isto é, de relações de concomitância ou de sucessividade
temporal, mas da aspectualização do tempo como contínuo ou durativo e
como descontínuo ou pontual. Chafe (1982) desenvolve a questão e a
partir daí define a fala como fragmentada, isto é, que ocorre em jatos, sob
a forma de unidades de idéias com contornos entonacionais próprios e
delimitadas por pausas, enquanto a escrita se caracteriza por unidades
mais longas e complexas, pois o escritor tem mais tempo de formulação
e de reformulação e o leitor sempre pode rever ou reler o texto. O tempo
da escrita é assim contínuo, aspectualizado pela duração, e o da fala,
descontínuo, determinado pela pontualidade. Deve-se observar que não
há diferença de volume de informação entre fala e escrita, mas apenas de
estratégia de aspectualização do tempo.

60
Fala e escrita em questão.

A questão da duração da fala e da escrita tem produzido, além dos


efeitos de sentido mencionados de fragmentação da fala e de complexi-
dade da escrita, alguns outros sentidos constantemente mencionados nos
estudos sobre fala e escrita: o efeito de conservação da escrita, garantia
da história, e o de identidade da fala, que assegura a tradição popular.
Uma vez mais, o caráter durativo ou extensivo do tempo da escrita na
manutenção histórica, e o pontual e intenso da fala na constituição da
identidade dos usuários.
Separam-se, portanto, pelos critérios apontados, fala e escrita: a
escrita é planejada antes de sua realização, não apresenta marcas de for-
mulação e de reformulação e suas unidades “duram” mais do ponto de
vista da dimensão e da complexidade; a fala não é planejada antecipada-
mente, apresenta traços de formulação e de reelaboração que assumem
diferentes papéis na interação verbal e ocorre fragmentada em jatos ou
borbotões.
O que fazer, porém, de manifestações lingüísticas como as entre-
vistas e os noticiários na televisão e no rádio ou como os bate-papos na
Internet, no que tange a tais características?
As notícias nos jornais falados na televisão e no rádio são planeja-
das antecipadamente, escritas e praticamente lidas, em geral com peque-
nas mudanças no momento de efetiva realização. Mesmo tendo sido an-
tecipadamente planejadas, as notícias acabam por apresentar alguns tra-
ços do descompasso entre a realização escrita planejada e a realização
falada não-planejada. Além disso, como o texto será falado (lido), seu
planejamento já prevê um texto mais entrecortado, com unidades meno-
res e menos complexas.
A entrevista tem diferentes graus de planejamento, com a prepa-
ração da pauta, a entrevista propriamente dita e a edição. Há vários tipos
de entrevista: a entrevista falada ao vivo, a entrevista falada mas não ao
vivo, a entrevista escrita, a entrevista por telefone, etc.. Toda entrevista
tem um certo planejamento, geralmente maior da parte do entrevistador
do que do entrevistado, e, portanto, um número menor de marcas de
elaboração e reelaboração. A questão da edição é mais complexa: se for

61
BARROS, Diana Luz Pessoa de. Entre a fala e a escrita: algumas reflexões...

uma entrevista ao vivo é menor o papel do editor e o tempo de edição é


concomitante ao da entrevista; se não for ao vivo, é o editor quem, em
última instância, produz o texto final, em um terceiro momento no tempo.
É na edição que a entrevista passa de “fala” a “escrita”, no caso do jornal
ou das revistas, ou mantém-se como fala “editada”, no caso do rádio ou da
televisão. A edição apaga boa parte das marcas de reformulação, de repeti-
ção, de hesitação, etc., e altera às vezes o caráter entrecortado da fala.
Os bate-papos na Internet, por sua vez, lidam de três formas com
a questão do tempo, aproximando-se ora da fala, ora da escrita: o primei-
ro tipo (tipo IRC) é aquele em que a contribuição de cada usuário é digitada
e pode ser alterada e reformulada antes de ser enviada ao destinatário e,
embora seja o mais próximo da escrita, com ela não se confunde, nem
mesmo na questão do tempo, porque no conjunto do texto há mudança
de encaminhamento e de planejamento, devido à alternância de locuto-
res, e porque o tempo de formulação é limitado, curto; o segundo tipo de
bate-papo (tipo ICQ) aproxima-se um pouco mais da fala, pois o destina-
tário do texto vai recebendo o texto à medida que ele é digitado pelo
destinador e, dessa forma, o texto traz marcas de sua formulação e refor-
mulação (Esse tipo de bate-papo permite também, tal como na fala, a
“sobreposição de vozes”, graças à tela dividida); o terceiro tipo é aquele
em que as pessoas se comunicam oralmente pelo computador e que se
diferencia da conversação por telefone, por uma questão temporal – não
é possível a sobreposição de vozes – e da conversa por rádio amador,
pela possibilidade de alternar ou de juntar comunicação gráfica e oral.
Deve-se observar que nos bate-papos da Internet aparece uma outra
faceta da aspectualização do tempo, a quantificação da duração temporal
em longa e curta (ou seja, nova determinação do tempo como contínuo
ou descontínuo). O tempo de formulação e de reformulação na Internet,
mesmo no primeiro tipo de bate-papo, mais próximo da escrita, é curto:
há menos tempo para a formulação e para a reformulação ou para dar
maior dimensão e complexidade ao texto.
Feitas essas observações podem-se estabelecer diferentes posições
de “fala” e “escrita”, em relação ao tempo:

62
CONCOMITÂNCIA CONCOMITÂNCIA E NÃO- NÃO-CONCOMITÂNCIA TEMPORAL
TEMPORAL CONCOMITÂNCIA
dois momentos: três momentos: elabora- dois três dois
elaboração e ção, realização falada e momentos: momentos: momentos:
realização edição elaboração e elaboração, elaboração
falada-edição realização realização e realização
escrita escrita e
realização
falada
aspecto pontual aspecto pontual aspecto pontual e durativo aspecto aspecto aspecto
Fala e escrita em questão.

e durativo durativo curto durativo e durativo


pontual
não-planejamento; planejamento e planejamento planejamento planejamento planejamento; planejamento;
marcas de não-planejamento e não-planeja- e não- e não- algumas ausência

63
elaboração e de (interlocução);** mento (interlo- planejamento planejamento marcas de marcas
reelaboração marcas cução); apaga- (interlocução); (interlocução);
mento de algu- ausência de ausência de
mas marcas marcas marcas
fragmentação fragmentação fragmentação não- fragmentação fragmentação não-
fragmentação fragmentação
conver- bate-papo entrevista ao entrevista entrevista bate-papo do noticiário texto
sação do* tipo vivo falada escrita tipo IRC de tv e de escrito
espon- ICQ (2º “editada” (1º tipo) rádio em geral
tânea tipo) e oral
por com-
putador
* A conversação espontânea e o bate-papo do tipo ICQ distinguem-se por outras características que não dizem respeito direta-
mente ao tempo.
** A interlocução vai ser examinada nos itens sobre o ator.
BARROS, Diana Luz Pessoa de. Entre a fala e a escrita: algumas reflexões...

Se, como proponho, a diversidade temporal e aspectual dos dis-


cursos falados e escritos produz sentidos e relações interacionais diferen-
tes, essas variações se farão sentir nos vários tipos de discurso localiza-
dos entre os pontos ideais de fala e de escrita.

2.2. O espaço na escrita e na fala.

O espaço, ou melhor, a unidade espacial tem sido indicada sempre


como uma das características de fala, a que definiria a conversação face
a face. Alguns autores consideram porém que esse não é um traço im-
prescindível de caracterização da conversação, uma vez que há também
conversações por telefone, por rádio amador, pela Internet, entre outras
formas.
De qualquer modo, a unidade espacial é um dos elementos da fala
“ideal”, de que decorrem alguns de seus traços definidores em relação à
escrita:

a) presença vs ausência dos interlocutores;


b) presença vs ausência do contexto situacional.

A definição plena da fala prevê a presença dos sujeitos envolvidos


na conversação que dialogam face a face e que podem empregar mais
facilmente ou preferencialmente os dêiticos e recursos de outras ordens
de expressão (visual, tátil, etc.), tais como os gestos ou as expressões
faciais, pois se encontram em um mesmo espaço e partilham o mesmo
contexto situacional. O texto escrito, por sua vez, não tem seu destinador
e seu destinatário centrados em um mesmo espaço e, conseqüentemente,
faz uso de outros recursos em lugar dos dêiticos, dos gestos, das expres-
sões faciais.
As relações entre os sujeitos, o tempo e o espaço do discurso e a
sua enunciação são, em geral, expressas na fala por dêiticos. Já na escrita

64
Fala e escrita em questão.

essas relações são tratadas por meio de descrições mais detalhadas dos
atores e da localização e organização temporal e espacial. Não é possível,
portanto, que os discursos falados e escritos produzam os mesmos efei-
tos de sentido. Igualmente a gestualidade que acompanha a fala cumpre
aí várias funções relacionadas com a comunicação: estabelecer, manter
ou interromper a comunicação, julgar o que está sendo dito (concordar,
discordar, manifestar surpresa, dúvida, etc.), acompanhar a fala,
mimeticamente, e, principalmente, expressar sentimentos e emoções (so-
bretudo pela gestualidade do rosto). A escrita, em geral, serve-se de perí-
frases para recuperar, de outros modos, essas diferentes funções da
gestualidade: “João falou bravo”; “Ela interrompeu-o com um gesto brus-
co”; “Ele cumprimentou-o com um aceno de cabeça”; “Maria concor-
dou com um movimento de ombros” e assim por diante. Nas transcri-
ções de textos falados, a gestualidade e as expressões são, geralmente,
comentadas entre parênteses (risos, voz alegre, etc.).
Na comunicação pela Internet utilizam-se com freqüência outros
recursos para expressar os afetos e paixões, mais próximos dos encontra-
dos na fala em que, como se viu, as relações afetivas entre os falantes se
constroem em grande parte gestualmente: são as “caretinhas” (avatares,
ícones, emotions) alegres, tristes ou bravas que acompanham a comuni-
cação. Mantém-se, dessa forma, o caráter sincrético da fala em que se
juntam dois tipos de expressão (verbal e visual). Pode-se dizer, nesses
casos da internet, que há uma presença relativa ou parcial dos interlocu-
tores pela imagem das “caretas”. Da mesma forma, outros tipos de tex-
tos, produzem efeitos de presença parcial, como na conversa por telefo-
ne, graças à sonoridade da voz.
Mais próximas da fala, nesse aspecto, estão, sem dúvida, comuni-
cações por telefone com imagem, pela Internet com voz e imagem e pela
televisão, quando se faz contato ou entrevista com pessoas que estão em
espaços diferentes, mas se ouvem e se vêem na tela. Nesses casos, além
da presença relativa ou parcial dos interlocutores, em duas ordens senso-
riais (visual e sonora), ocorre também a presença relativa ou parcial do
contexto situacional (visual e sonora, ao menos no caso da televisão).

65
BARROS, Diana Luz Pessoa de. Entre a fala e a escrita: algumas reflexões...

Faltam, mesmo nessas situações, as outras ordens sensoriais que partici-


pam da conversação face a face (tátil, olfativa, gustativa) e que, por isso,
continuam a ser descritas por perífrases verbais faladas: conversando de
Belo Horizonte, pela televisão ou pelo telefone com imagem, com o amigo
mineiro que está em Londres e que lamenta a qualidade da comida de lá,
pode-se dizer: “Aqui está um cheirinho bom de pão de queijo”.
Finalmente, nos vários tipos de comunicação pela Internet, cria-se
a presença virtual dos interlocutores (na mesma “sala de bate-papo” –
não se diz, vou entrar na sala? – e na mesma tela) e do contexto situacional.
Há, portanto, uma vez mais, posições intermediárias entre a fala e
a escrita, do ponto de vista do espaço, ou seja, da sua unidade ou não, em
relação aos interlocutores:

UNIDADE ESPAÇOS DIFERENTES


ESPACIAL
presença dos presença parcial presença parcial presença virtual ausência dos
interlocutores (visual e sonora) (visual e sonora) dos interlocutores
dos interlocutores dos interlocutores interlocutores
presença do presença parcial ausência do contexto presença virtual ausência do
contexto (visual e/ou situacional do contexto contexto
situacional sonora) do situacional situacional
contexto
situacional
conversação conversação pelo conver- conversa- conversação texto escrito
face a face telefone com sação ção pela pela Internet em geral:
imagem; pela telefônica, Internet jornal,
Internet com som por rádio- com romance etc..
e imagem; pela amador “care-
televisão. tinhas”

Das diferentes posições relativas ao espaço decorrem textos dife-


rentes que empregam, como se viu, recursos e estratégias diferentes,
lingüísticos, discursivos ou de outros tipos, para assegurar a comunica-
ção e a interação entre os sujeitos envolvidos.

66
Fala e escrita em questão.

2.3. O ator na fala e na escrita.

A semiótica utiliza o termo ator para tratar dos sujeitos que assu-
mem papéis na organização narrativa do discurso, são investidos pela
categoria lingüística de pessoa e preenchidos por temas e/ou figuras do
discurso. Além da diferença claramente reconhecida de que “falantes e
ouvintes” e “escritores e leitores” têm preenchimentos temáticos e figu-
rativos diferentes, relacionados em primeiro lugar aos recursos distintos
de expressão (sonoridade e visualidade), outros elementos distinguem os
atores da fala e da escrita e dizem respeito sobretudo aos papéis narrati-
vos que cumprem e ao investimento pela categoria da pessoa. Resultam
daí alguns dos traços mais comumente mencionados na separação entre
fala e escrita:

a) construção “coletiva” do texto (a pelo menos quatro mãos ou a


duas vozes) e alternância de papéis (falante/ouvinte) vs cons-
trução “individual” do texto (ou a uma voz) e ausência de al-
ternância de papéis (escritor/leitor);
b) aproximação vs distanciamento da enunciação;
c) descontração vs formalidade;
d) simetria vs assimetria.

A fala é, por excelência, em sua realização ideal, como conversa-


ção espontânea face a face, construída a quatro mãos, com alternância
dos papéis de falante e de ouvinte, descontraída, com efeitos de sentido
de aproximação, e simétrica. Já a escrita “plena” não se produz a quatro
mãos, mas a duas, não tem alternância entre os papéis de escritor e leitor,
produz tanto efeitos de distanciamento quanto de aproximação, é formal
e assimétrica. Vejamos a que cada uma dessas características correspon-
de e que decorrências traz para os dois tipos de modalidades da língua e
para as posições intermediárias.
Na fala, o discurso se constrói passo a passo pelos dois atores
envolvidos. Essa característica liga-se às outras já apontadas de plane-

67
BARROS, Diana Luz Pessoa de. Entre a fala e a escrita: algumas reflexões...

jamento efetuado pouco a pouco, durante a realização da fala. Os dois


interlocutores contribuem na produção do discurso oral. Desse traço de-
corre o da interlocução, ou seja, o da alternância dos papéis de falante e
ouvinte, assumidos turno a turno pelos atores da fala.
Resultam dessas características vários procedimentos lingüísticos
e discursivos – o sistema de turnos, os marcadores da conversação, os
procedimentos de reparação, as hetero-reformulações, entre outros – que
organizam não apenas o discurso falado, mas as relações de interação
entre os sujeitos envolvidos.
Na escrita, o discurso produz o efeito de sentido de ser realizado
individualmente, pelo ator escritor que o dirige a um ou a vários leitores
não muito bem definidos ou determinados. As diferentes teorias do dis-
curso propõem porém (vejam-se os escritos precursores de Bakhtin) um
ponto de vista diferente: também os textos escritos resultam de diálogos
que se instauram entre sujeitos e entre discursos. Em outras palavras, os
atores “escritor” e “leitor” preenchem as casas do enunciador e do
enunciatário, em que se desdobra o sujeito da enunciação, e estabelecem
entre si relações intersubjetivas sob a forma de simulacros (Greimas) ou
de “jogos de imagens” (Pêcheux). Ainda assim, há diferenças entre a
escrita e a fala nessa questão e que se devem não apenas à explicitação e
implicitação das relações intersubjetivas, como também à já mencionada
alternância de papéis, que não acontece na escrita. Dessa forma, o texto
escrito vai empregar outros procedimentos lingüísticos e discursivos para
construir as relações intersubjetivas e as demais vozes do discurso, sob a
forma sobretudo de um complexo jogo de projeções da categoria de pes-
soa no discurso (Fiorin, 1996).
A aproximação e o distanciamento da enunciação são efeitos de
sentido obtidos pelo número de atores envolvidos na comunicação e,
sobretudo, pelos recursos mencionados das projeções da categoria de
pessoa no discurso. Como se viu até agora, a conversação “autêntica”,
manifestação por excelência da modalidade da fala, é centrada no tempo,
no espaço e nos atores, ou seja, tem o caráter mais “intimista” de um
diálogo entre “eu e você, aqui e agora”. A fala traz sempre marcada sua

68
Fala e escrita em questão.

organização em primeira pessoa (projeção enunciativa, no dizer da se-


miótica), escolha que produz o efeito de sentido de aproximação da enun-
ciação, de subjetividade, e constrói o discurso entre os vários “eus” que
dialogam. Já a escrita, além dos efeitos de objetividade obtidos pelo
emprego da terceira pessoa (projeção enunciva, na semiótica), desenvol-
ve, com mais freqüência, um outro jogo de pessoas, produzindo efeitos
de multiplicidade ou de unicidade de vozes e de subjetividade e/ou de
objetividade, conforme variem os procedimentos utilizados (1ª ou 3ª pes-
soa, alternância de pessoas, apagamento e substituição das projeções,
sob a forma de discursos diretos, indiretos, indiretos livres, etc.).
As tão citadas descontração da fala e formalidade da escrita são,
por sua vez, conseqüências da alternância ou não de papéis entre os ato-
res e sobretudo dos procedimentos mencionados para produzir efeitos de
sentido de subjetividade e objetividade discursivas, mas também das fun-
ções históricas e sociais da fala e da escrita. Essas funções decorrem, sem
dúvida, das características temporais, espaciais e actoriais da fala e da
escrita até agora apontadas.
No projeto coletivo História das idéias lingüísticas no Brasil de-
senvolvo uma pesquisa sobre as imagens da norma e da língua em gra-
máticas e dicionários. O exame das modalizações nas gramáticas e dici-
onários tem apontado diferenças na concepção de norma para a escrita e
para a fala.
Assim, por exemplo, na Gramática da Língua Portuguesa de Celso
Cunha (1972), são considerados na norma (explícita ou culta) tanto para
a escrita, quanto para a fala, em primeiro lugar, os usos “naturais” ou
prescritos, isto é, aqueles que são modalizados pelo ser (eles são) e/ou
pelo dever-ser; em segundo lugar, as variantes aceitas (modalizadas pelo
poder-ser), isto é, as variantes diacrônicas, regionais e coloquiais; em
terceiro lugar, aparecem certos usos aceitos na fala coloquial e que
começam a ser incorporados na escrita. Já na fronteira da norma,
encontram-se os casos duvidosos da chamada linguagem popular, ou
seja, que podem ser ou não ser, pois são aceitos na fala e recusados na

69
BARROS, Diana Luz Pessoa de. Entre a fala e a escrita: algumas reflexões...

escrita. Finalmente, posicionam-se fora da norma os usos proibidos,


mas que são, mesmo assim, empregados na fala por falantes cultos.
Nos dicionários recentes (o Aurélio, entre outros), a questão da
aceitação de usos na fala e na escrita é mais ou menos a mesma.
Há, portanto, diferença de aceitação dos usos na fala e na escrita,
ou seja, são aceitos na fala usos considerados insuficientes na escrita (a
linguagem dita popular nas gramáticas ou os termos e expressões consi-
derados populares nos dicionários) e são bem aceitos na escrita, mas não
na fala, os usos ditos excessivos, isto é, a linguagem erudita e/ou literária
de que tratam as gramáticas e os eruditismos dos dicionários. Em co-
mum, fala e escrita têm apenas a justa medida da norma “natural” e
prescrita.
Essas imagens da norma na escrita e na fala levam a diferentes
escolhas de vocabulário e de estruturas sintáticas nas duas modalidades.
A partir daí, são muito comuns problemas de hipercorreção, freqüentes,
por exemplo, em redações de vestibular ou em outros textos preocupa-
dos com a sanção social, como os discursos políticos: o dequeísmo, o
pouco uso do verbo ter, substituído por haver na escrita, mesmo em
situações em que só cabe o ter, e a escolha de “termos difíceis” nas
redações são alguns exemplos.
O último traço apontado, a simetria ou a assimetria dos papéis dos
atores, deve ser desdobrado em três tipos (Barros, 1997 e 1998): a dos
papéis conversacionais, a dos papéis sociais e a dos papéis “pessoais”.
Os procedimentos do discurso constroem para os atores diferentes pa-
péis conversacionais (entrevistador/entrevistado, expositor/debatedor,
escritor/leitor de romance, etc.), diferentes papéis sociais, em equilíbrio
ou em desequilíbrio (professor/aluno, patrão/empregado, dois amigos,
etc.) e diferentes papéis “pessoais” ou “estilos”, no modo de conduzir a
interação (escolha de tópico, manutenção ou não do turno, emprego de
hetero-reformulações, etc.). São esses procedimentos que qualificam os
discursos como simétricos ou assimétricos. Assim, por definição, a con-
versação espontânea é simétrica – papéis conversacionais que se alter-
nam plenamente (e não apenas o de falante/ouvinte), papéis sociais e

70
Fala e escrita em questão.

“pessoais” equilibrados (conversação entre “iguais”) – e a escrita assi-


métrica – papéis conversacionais que não se alternam, papéis sociais e
pessoais desequilibrados (escritor e leitor não são “iguais” socialmente e
as “decisões” na construção do discurso parecem caber ao escritor).
Tal como ocorre com o tempo e o espaço, a distinção estanque e
rígida entre fala e escrita não se sustenta do ponto de vista dos atores e
surgem posições intermediárias em todos os aspectos mencionados. Ve-
jamos alguns casos.
A alternância de papéis tem duas posições intermediárias: a pri-
meira, em discursos que têm características da fala, mas em que não se
alternam os papéis de falante e de ouvinte, como nas conferências ou nos
noticiários de TV, ou, ao contrário, em discursos que têm certos traços da
escrita, mas em que há alternância de papéis, como na comunicação por
carta ou por Internet; a segunda, em conversações ou falas em que, mes-
mo havendo alternância dos papéis de falante e de ouvinte, não há alter-
nância dos papéis conversacionais, como na entrevista e na aula, entre
outros.
Em relação à aproximação e ao distanciamento da enunciação e
aos efeitos de sentido de subjetividade e objetividade decorrentes, o uso
dos procedimentos enunciativos da categoria de pessoa permite a produ-
ção de falas mais objetivas ou de escritas mais subjetivas: comparem-se,
por exemplo, os noticiários na TV do Jornal Nacional e do Aqui e Agora.
Igualmente, no que diz respeito à descontração e à formalidade
há, como se viu, uma gradação tanto na fala como na escrita, em relação
à aceitação ou não de certos usos, resultando daí falas e escritas mais ou
menos formais. A justa medida da norma aplica-se aos usos da escrita
em geral e aos empregos mais formais da fala (uma conferência, um
discurso na Assembléia ou no Fórum, uma conversa com o presidente,
uma aula, entre outros). Por sua vez, os usos aceitos na fala informal e
que começam a ser incorporados na escrita, definem uma escrita mais
coloquial (cartas, bilhetes, etc.). Já os empregos aceitos na fala e recusa-
dos na escrita caracterizam um grau maior ainda de informalidade da fala
(conversa entre amigos, por exemplo).

71
BARROS, Diana Luz Pessoa de. Entre a fala e a escrita: algumas reflexões...

Fiz já algumas referências à questão da simetria e assimetria dos


papéis conversacionais quando tratei dos lugares intermediários em rela-
ção à alternância de posições no discurso. Resta mencionar que os dis-
cursos constroem simetrias e assimetrias graças aos três papéis –
conversacionais, sociais e “pessoais” – e que não há sempre coincidência
nas relações. Assim, por exemplo, uma “conversa de corredor” entre
professor e aluno, poderá ser simétrica do ponto de vista dos papéis
conversacionais (conversa informal), mas muito provavelmente será
assimétrica na perspectiva dos papéis sociais e “pessoais”. Uma entre-
vista, por sua vez, assimétrica em relação aos papéis conversacionais de
entrevistador e entrevistado, poderá ser simétrica no que diz respeito aos
demais papéis, ou ainda, uma “conversa entre amigos”, simétrica quanto
aos papéis conversacionais e sociais, tem muita probabilidade de ser
assimétrica quanto aos papéis “pessoais”, pois há sempre um que “fala
mais” e domina a conversação.
O quadro que segue ilustra as posições intermediárias entre fala e
escrita, do ponto de vista dos atores:

72
Fala e escrita em questão.

construção do texto a quatro mãos construção “individual”


do texto
alternância de papéis alternância alternância alternância ausência de alternância
falante/ouvinte de papéis
e não-alternância
de papéis
conversacionais
aproximação aproximação aproximação/ distancia- distanciamento
(subjetividade) distanciamento mento (objetividade)
descontração descontração descontração/ formalidade formalidade
formalidade
simetria simetria de assimetria assimetria assimetria
papéis con-
versacionais e
assimetria de
papéis sociais
e “pessoais”
conversa- bate- “conversa de entrevista, conversa noticiário texto
ção “es- papo* na corredor” aula com o reitor de TV, escrito
pontâ- Internet, entre conferên- em geral
nea” cartas professor cia
entre entre e aluno
amigos amigos

* Os bate-papos na Internet, as cartas entre amigos, os noticiários de TV e as conferências


têm outras caraterísticas, algumas já apontadas, que os diferenciam da conversação “es-
pontânea” ou do texto escrito.

3. O plano da expressão na fala e na escrita.

As diferenças de substância de expressão – sonora, na fala, visual,


na escrita – constituem, sem dúvida, um dos traços definidores das duas
modalidades de língua. Grande parte dos autores consideram, porém,
que os elementos da substância são secundários para a concepção dos

73
BARROS, Diana Luz Pessoa de. Entre a fala e a escrita: algumas reflexões...

fatos lingüísticos que, em princípio, devem ser caracterizados pelos tra-


ços formais. Vejam-se a respeito, por exemplo, os escritos de Hjelmslev.
Costuma-se, também, fazer a distinção entre a fala, definida pelas
características formais já mencionadas, e sua expressão oral, e mais rara-
mente entre a escrita e sua expressão gráfica. É comum ouvir que o noti-
ciário de TV é um texto escrito, apenas realizado oralmente, ou que o
bate-papo da Internet é uma conversação com expressão gráfica.
Concordo plenamente com a hierarquização feita entre os traços
de substância e de forma. Como, porém, os traços de expressão não são
apenas substanciais, mas também formais, na perspectiva de Hjelmslev,
com que a semiótica compactua, há certas questões sobre a expressão
que precisam ser examinadas quando se trata de textos falados e escritos.
Mencionarei aqui três delas:

a) a escrita não é pura transcrição da fala;


b) aceleração vs desaceleração na fala e na escrita;
c) relação entre expressão e conteúdo na fala.

A escrita não transcreve apenas a fala em outra substância de ex-


pressão. Ela utiliza recursos diferentes da fala para expressar, e de modo
diferente, conteúdos que a fala exprime pela sonoridade da expressão.
Daí os sinais gráficos da escrita e a pontuação que são utilizados para
cumprir, no texto escrito, as funções de organizar, do ponto de vista argu-
mentativo e afetivo-passional, as relações entre os “interlocutores”, que
a fala organiza com a entoação e a gestualidade, a que já fiz referência.
Não há uma transposição simples de conteúdos, pois os recursos diferen-
tes de expressão estão relacionados a diferenças de sentido. Muitas vezes
até, na fala, recorremos a sinais gráficos da expressão escrita por consi-
derar que certos conteúdos são assim mais bem manifestados. É o caso,
por exemplo, de se dizer “estou falando em erro, entre aspas”. Não res-
tam dúvidas, além disso, de que há uma oralidade própria da escrita,
resultante das diferenças até agora apontadas e da sinalização gráfica. As

74
Fala e escrita em questão.

crianças percebem bem essas diferenças de oralidade e, assim, quando


ainda não sabem ler, mas fingem que lêem, o fazem com um esquema
sonoro muito diferente do que empregam na fala.
Dessa forma, a transcrição para a escrita de um texto falado ou a
leitura oral de um texto escrito trazem marcas de escrita e de fala, respec-
tivamente, tal como procurei mostrar nas posições intermediárias exami-
nadas. Não se passa impunemente da substância sonora da fala à visual
da escrita, pois há conseqüências no nível da forma da expressão e no
plano do conteúdo.
Uma dessas conseqüências é a aspectualização do tempo, já men-
cionada no nível discursivo e retomada agora como aspectualização pela
velocidade, de que resultam textos mais acelerados ou rápidos (pontuais)
e desacelerados ou lentos (durativos). Dessa forma, no nível textual, o
texto falado apresenta-se acelerado, enquanto a escrita se define pela
desaceleração do tempo que dura. Os textos falados, graças aos diferen-
tes recursos e procedimentos utilizados – as pausas, as interrupções, os
prolongamentos sonoros –, reproduzem, porém, os esquemas de aspec-
tualização que combinam e alternam continuidade e descontinuidade,
aceleração e desaceleração ou intensão e extensão. Cada pausa ou inter-
rupção é seguida de uma duração pela repetição ou pela paráfrase, cada
prolongamento sonoro de vogal, de uma correção pontual e assim por
diante. Explica-se, dessa forma, no nível da expressão, a construção da
fala em jatos.
Essa organização da expressão sonora correlaciona-se, por sua
vez, com organizações do plano do conteúdo, no caso sua estruturação
contratual e passional, e produz o que se denomina sistema semi-simbó-
lico (vejam-se, para as correlações entre a expressão e o conteúdo, os
trabalhos de L. Tatit (1994) sobre a canção popular). Esse arranjo da
expressão sonora entre pontualidade e durações, acelerações e desacele-
rações homologa-se, no plano do conteúdo, às relações contratuais e de
ruptura de contrato, e às relações afetivas e passionais de aproximação
interessada e de distanciamento desapaixonado que caracterizam a coo-
peração e a interação entre sujeitos, definidoras da conversação.

75
BARROS, Diana Luz Pessoa de. Entre a fala e a escrita: algumas reflexões...

O texto escrito, como se viu, emprega outras estratégias para asse-


gurar a interação e a cooperação dos sujeitos envolvidos. São predomi-
nantemente recursos da organização dos atores pela categoria da pessoa
e, no caso dos textos literários (textos poéticos), também os procedimen-
tos de semi-simbolismo sonoros e/ou visuais localizados. Na fala, ao
contrário, trata-se de um recurso que recobre o texto inteiramente.
O texto poético ocupa assim uma posição intermediária entre a
escrita e a fala, quanto aos recursos da expressão:

EXPRESSÃO SONORA EXPRESSÃO SONORA EXPRESSÃO VISUAL


E VISUAL
aceleração desaceleração desaceleração
semi-simbolismo semi-simbolismo sonoro ausência de semi-
e/ou visual simbolismo
conversação texto poético texto escrito

4. Considerações finais.

Os diferentes fatores apontados na caracterização da fala e da es-


crita ideais mostraram a existência, na realidade, de um bom número de
posições intermediárias. Assim, as modalidades de língua aproximam-
se ora da fala ora da escrita, conforme o critério considerado. Há uma
certa tendência de hierarquização desses fatores. Alguns autores consi-
deram que é o modo de inserção no tempo que melhor caracteriza fala e
escrita, outros definem a fala por seu caráter dialógico, pela interlocução,
outros ainda insistem no aspecto secundário da substância da expressão
na diferenciação das duas modalidades, e assim por diante. Considero,
nestas reflexões, que nenhum fator ou nível de descrição isoladamente
caracteriza as modalidades de língua. Língua e fala são definidas por um
conjunto de elementos e como, em geral, nem todos estão presentes nos
usos lingüísticos, o que se tem de fato são posições intermediárias entre
“língua” e “fala”. Os usos lingüísticos que ocupariam os lugares extre-

76
Fala e escrita em questão.

mos da fala e da escrita “puras” e “sem contágios” e que são definidos


como termos contrários são pouco comuns e servem, antes de mais nada,
como pontos de partida da caracterização que se pode fazer na diversida-
de de modalidades de uso que a língua apresenta.
Há mais coisas entre a escrita e a fala do que em geral se acredita
ou se constrói no nosso imaginário sobre a língua. São modos e formas
diversas de produzir sentidos e de estabelecer relações entre sujeitos.

Referências bibliográficas

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imagens. In: PRETI, D. (org.). O discurso oral culto. São Paulo, Humanitas.
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D. (org.). Estudos da língua falada: variações e confrontos. São Paulo, Humanitas,
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ture. In: TANNEN, D. (ed.). Oral and written discourse. New Jersey, Norwood.
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_______. (1999a) Cognição, explicitude e autonomia no uso da língua. (Digitado)
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Cole. (No prelo)
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Análise de textos orais. São Paulo. FFLCH-USP, p. 13-32.
TATIT, L. (1994) Semiótica da canção. São Paulo, Escuta.
VIOLLET, C. (1986) Interaction verbale et pratiques d’interruption. DRLAV. 34-35:
183-193.

77
Fala e escrita em questão.

A ENTREVISTA NA FALA E NA ESCRITA

Leonor Lopes Fávero

Considerações Iniciais.

Este texto retoma trabalhos anteriores sobre a entrevista (Fávero,


Andrade e Aquino, 1997, Fávero e Aquino, 1998 e Fávero e Andrade,
1998) para examinar, agora, o par dialógico pergunta-resposta (P-R) em
entrevistas orais (de televisão e do Projeto NURC-SP) e escritas (revistas
Veja, Isto é e Cláudia). O trabalho está organizado em duas partes. Na
primeira são examinadas as características das entrevistas e, na segunda,
o par dialógico pergunta-resposta nas entrevistas, considerando-se sua
função e natureza dentro de uma perspectiva textual-interativa.

1. Características da Entrevista

A entrevista é uma atividade em que, não somente pessoas ligadas


à área de comunicação, como os jornalistas, mas todos nós, de uma for-
ma ou de outra estamos envolvidos, quer como entrevistadores, quer
como entrevistados. Seu objetivo é sempre o interrelacionamento huma-
no, mas os direitos dos participantes não são os mesmos, pois o entrevis-

79
FÁVERO, Leonor Lopes. A entrevista na fala e na escrita.

tador faz as perguntas e oferece, em seguida, o turno ao entrevistado. Na


verdade, as relações de poder entre eles deixa-os em diferentes condi-
ções de participação no diálogo, havendo um direcionamento maior ou
menor da interação: o entrevistador pode simplesmente cumprir o papel
de obter respostas ou dirigir de tal maneira que o entrevistado é conduzi-
do às respostas pré-estabelecidas por aquele; não precisamos ser grandes
conhecedores para detectar o que ocorre e, freqüentemente, ouvimos
comentários do tipo: “o repórter não deixou Fulano falar e cortou”.
Outras vezes há inversão de papéis, pois o entrevistado dirige a
entrevista, aprovando ou não a ação do entrevistador, fazendo-lhe per-
guntas, muitas vezes:

(1)
Inf: (...) nos termos daque::la ahn... dispensa que eu me referi... quando
respondi à::... à pergunta anterior se não estou enganado... foi
até muito bom é/éh... muito boa essa pergunta agora porque...
ficou mais claro talvez agora... ficou mais clara a explicação
(SP DID 250: 131-135, p. 136)

(2)
Inf: e::... mais vulTOsas em relação a bancos... agora quem sabe se
vocês PREcisando... melhor... ou melhor insistindo em deter-
minadas perguntas eu poderia dizer mais alguma coisa...
(SP DID 250: 53-56, p. 134)

(3)
Inf: antes disso eu quero dizer uma coisa não... eu estou ficando tão
entusiasmado com estas perguntas que eu fico até com vonta-
de de ser banqueiro... ((risos)) embora eu não tenha a mínima
vocação pra isto... para esta profissão... bom... a vantagem de
abrir uma conta bancária...
(SP DID 250: 432-437, p. 143)

80
Fala e escrita em questão.

Embora não tão freqüente, pode-se dar a situação ideal em que os


participantes do jogo da entrevista “interagem, se modificam, se reve-
lam, crescem no conhecimento do mundo e deles próprios” (Medina,
1986: 6).
Nesses casos, em que as palavras do entrevistado transmitem au-
tenticidade e emoção, o mesmo ocorrendo com as do entrevistador, tem-
se o que Medina denomina “vivência única” e acrescenta:

“A experiência de vida, o conceito, a dúvida ou o juízo de valor do


entrevistado transformam-se numa pequena ou grande história que de-
cola do indivíduo que a narra para se consubstanciar em muitas inter-
pretações. A audiência recebe os impulsos do entrevistado, que passam
pela motivação desencadeada pelo entrevistador, e vai se humanizar,
generalizar no grande rio da comunicação anônima. Isto, se a entrevis-
ta se aproximou do diálogo interativo”.

Como já indicaram Fávero e Andrade (1998: 155)

“Em toda entrevista, além de se pretender uma troca de informações,


de experiências, de juízos de valor, há uma ambição mais ousada que
filósofo Martin Buber (1982) já dimensionou: o diálogo em que a rela-
ção eu – tu é plena, isto é, entrevistador e entrevistado saem ‘modifica-
dos’ no conhecimento do mundo e deles próprios”.

Cria-se um jogo duplo porque é sempre possível a inversão da


relação eu-tu, isto é, a qualquer momento o entrevistado pode alterar a
direção da entrevista, tomando o turno ou mudando o tópico em desen-
volvimento. É necessário, porém, que sejam consideradas também as
relações que se estabelecem entre entrevistador/entrevistado e a audiên-
cia (ouvinte, telespectador, leitor), pois, como aponta Kerbrat-Orecchioni
(1990: 89), “todos os destinatários de uma mensagem, mesmo aqueles
que o são indiretamente, desempenham um papel importante no desen-
volvimento da interação”.
Aqui os papéis não são passíveis de inversão; ambos, entrevista-
dor/entrevistado, têm a função de informar e convencer o público (tercei-

81
FÁVERO, Leonor Lopes. A entrevista na fala e na escrita.

ra parte), desempenhando, portanto, dois papéis na interação: o de cúm-


plices quanto à comunicação e o de oponentes quanto à conquista desse
mesmo público.
Vejam-se os exemplos a seguir, em que o entrevistado revela cla-
ramente a preocupação com o público e não tanto com o entrevistador:

(4)
Veja: Você ama o Roberto ainda?
Adriana: Por que você está me fazendo essa pergunta?
Veja: É uma entrevista
Adriana: Acho que não tem nada a ver. Nem quero que você coloque essa
pergunta
(Veja: entrevista – Adriane Galisteu, 8 de setembro de 1999, p. 15).

(5)
L1: eu fiz um “show” lá no teatro Quitandinha... que foi... ótimo... aliás eu
vou fazer uma apresentação... no Rio de Janeiro... não falei isso ainda...
vou falar... no Metropolitan... casa do Ricardo Amaral... vou fazer dia
oito de dezembro... vou fazer uma apresentação lá com o meu espetácu-
lo... inédito no Rio de Janeiro... ... o Gordo em Concerto... já aproveitei...
já encaixei

L2: tá certo... ((risos))


(“Programa Jô Soares Onze e Meia”, com Zezé de Camargo e Luciano).

Nestes trechos observa-se claramente a preocupação do interlocutor


em manter sua imagem.
Na entrevista, podemos distinguir três momentos: o tempo de pre-
paração, o da entrevista propriamente dita e o da edição. Uma das ca-
racterísticas da língua falada é sua inscrição no tempo (Viollet, 1986),
isto é, planejamento e produção são simultâneos ou quase simultâneos.

82
Fala e escrita em questão.

Na escrita, ao contrário, o planejamento e a produção estão sepa-


rados no tempo, permitindo tantas revisões e reescrituras quantas se fize-
rem necessárias, já que ela mostra só o produto final. A entrevista, po-
rém, constitui um tipo especial de texto falado porque o planejamento
existe da parte do entrevistador e pode existir também, em certos casos,
da parte do entrevistado, diminuindo, dessa forma, marcas da oralidade.
No momento da edição, a entrevista pode manter-se oral (rádio,
televisão) ou passar para a escrita (jornais, revistas). As escritas perdem
muito das características da língua falada: sendo o texto reescrito, desa-
parecem repetições, correções, paráfrases, hesitações e outras marcas do
texto oral.
Os exemplos a seguir, embora de entrevistas escritas, guardam
traços de oralidade e uma certa espontaneidade aflora, em detrimento do
planejamento. E por quê isso ocorre? Embora faltem dados conclusivos
e o “corpus” seja restrito, parece ser possível afirmar que o editor teria
levado em conta ou o público a quem a revista se destina ou as caracterís-
ticas do entrevistado:

(6)
Isto é: Você não tem medo de que versos como “afogar o ganso” e “mo-
lhar o biscoito” esbarrem na pobreza poética?
Gabriel: O limite sou eu quem faço. E mesmo assim é muito relativo. Às
vezes bate uma dúvida, faço uma rima escrota e não gosto. Mas um f.d.p.
com conteúdo é um desabafo diferente. Não tenho o pudor do palavrão
em si, o que não pode é passar do ponto. (...)
(Isto é: entrevista – Gabriel O Pensador, 18 de fevereiro de 1998, p. 6).

(7)
Cláudia: O que considera uma “porrada da vida”?
Paulo Coelho: Por exemplo, acabei de ler uma entrevista que dei para um
jornal da Austrália. O cara veio até aqui me entrevistar e, em vez de falar
só sobre mim, metade do artigo que escreveu esculhamba o Brasil. Eu já

83
FÁVERO, Leonor Lopes. A entrevista na fala e na escrita.

tô irritado com isso, entendeu? O cara só tá a fim de ver o que há de ruim


no meu país. Isso para mim é uma porrada. E me dá uma irritação total.
Eu defendo o Brasil com unhas e dentes.
(Cláudia: entrevista – Paulo Coelho, novembro de 1999, p. 53).

(8)
Adriane – Nunca me recusei a dar um autógrafo.
Veja: Nunca?
Adriane: Nunca. Há dois anos, tive um problema de stress, minha glote
fechou, quase tive de fazer traqueotomia. Foi muito sério. Fui internada e
entrava gente no quarto do hospital para pedir autógrafo. Eu, toda entubada,
pedia caneta, esticava o braço e assinava. Quem fala que não gosta disso
está sendo hipócrita. Esse não é o preço da fama. É o prazer da fama.
Veja: E o preço?
Adriane: O preço acho que é o lado pessoal. Você não pode ser forte em
todos os campos da vida. Se fosse assim, eu estaria com o Beto até hoje.
Minha força é centrada para uma coisa: o profissional. O lado sentimental
acaba ficando aberto mesmo. É mais difícil para mim.
Veja: E isso a incomoda?
Adriane: Incomoda um pouco.
(Veja: entrevista – Adriane Galisteu, 8 de setembro de 1999, p. 15).

2. Par dialógico Pergunta–Resposta.

A necessidade de se examinar o par dialógico pergunta-resposta


(P-R) deve-se ao fato de ser ele elemento crucial na interação, sendo
difícil imaginar-se uma conversação sem ele; (Stenström, 1984: 262),
associado ao contexto e aos objetivos da conversação, acaba por revelar
uma organização textual peculiar, determinando, inclusive, o desenvol-
vimento da atividade interacional (Fávero e Aquino, 1998: 123).

84
Fala e escrita em questão.

As entrevistas de televisão foram-se modificando ao longo do tem-


po e as perguntas e respostas não visam mais somente a preencher o
tempo. Segundo Aquino (1997: 98), a entrevista desenvolve-se a partir
de perguntas, mas o entrevistador perspicaz utiliza-se de estratégias va-
riadas, conseguindo boas respostas e até, muitas vezes, revelações ínti-
mas ou secretas, como ocorre, por exemplo, com a entrevistadora Marília
Gabriela.
Nas entrevistas do Projeto NURC-SP, as formulações do
entrevistador são representadas, quase sempre, por perguntas, já que não
importa o que o entrevistador diz, mas de que maneira o diz. Assim, as
perguntas não buscam a informação, mas são colocadoras de situação e,
muitas vezes, o entrevistado mostra ao entrevistador que já havia tratado
do tópico, indicando, então, a irrelevância do que lhe está sendo propos-
to.

(9)
Doc. no seu entender o que é o imprescindível pruma:: peça de teatro obter
sucesso?
Inf. o que eu falei... é atingir diretamente ao o público... a:: ao qual ela foi
destinada...
(SP DID 161: 322-325; p. 45)

ou:

(10)
Doc. o que o que precisa existir numa peça de teatro pra ela:: atingir realmente
a massa?...
Inf. o que eu falei...
(SP DID 161: 490-92; p. 49)

Muitas vezes a pergunta coloca o óbvio, provocando riso:

85
FÁVERO, Leonor Lopes. A entrevista na fala e na escrita.

(11)
Doc. o senhor quando queria mandar (por exemplo::)... uma carta para seus
amigos ou parentes que estavam aqui no Brasil como é que o senhor
fazia?...
Inf. ia no correio... ((risos)) não é?
Doc. ((risos)) e onde é que se situava o correio?
(SP DID 161: 319-323; p. 80)

Ao estudar as perguntas, Gaulmyn (1991: 321) mostra que uma


pergunta não pode ser analisada fora de seu contexto de ocorrência e que,
se não houver marcas formais, só ele permitirá inferir se se trata de uma
pergunta; diz ainda que “la question se définit en discours par le couple
qu’elle forme avec sa réponse”. Segundo Kerbrat-Orecchioni (1991), a
pergunta desempenha um papel intermediário entre a ordem e a asserção,
isto é, há um continuum entre a pergunta e a asserção.
Na visão tradicional considera-se a pergunta um pedido de infor-
mação não conhecida, havendo, nesse par dialógico, uma dupla ligação:
a uma pergunta segue-se uma resposta que, por sua vez, é decorrente de
uma pergunta, o que acaba por levar a uma circularidade inevitável, ge-
ralmente aceita como necessária. Mas, como bem observa Moeschler
(1986: 227), a análise do par dialógico P-R não deve ser conduzida de
forma tão frágil e essa abordagem apresenta dificuldades teóricas e ana-
líticas, já que não há uma determinação lógica na organização do par, isto
é, a uma P pode seguir-se outra P e não há necessariamente uma única R
possível a uma dada P e sua escolha parece decorrer de um sistema de
negociação entre os participantes, tendo em vista as possibilidades de
negociação tópica, conhecimento partilhado, fatores de contextualização
etc.
É indiscutível a importância que o tópico assume na organização
do texto conversacional. Os interlocutores formulam suas perguntas, tendo
em vista o tópico: introduzindo-o, dando-lhe continuidade por não ter
sido suficientemente explorado, redirecionando, etc.

86
Fala e escrita em questão.

Em trabalho anterior (Fávero, Andrade e Aquino, 1996: 476) as


perguntas e respostas foram examinadas em conversações espontâneas e
em inquéritos do Projeto NURC do tipo D2 (diálogo entre dois informan-
tes), mas não o foram nas entrevistas do Projeto NURC-SP, de televisão
e escritas, o que será feito agora, considerando a função e a natureza.
Inserindo-se o trabalho na perspectiva textual-interativa, o par dialógico
P-R não será observado quanto à forma.

3. Tipologia

3.1. Função

A – Introdução de Tópico

Ao iniciar a entrevista, é comum que o entrevistador se utilize de


uma P que vai ocorrer, também, quando se introduzem novos tópicos:

(12)
Doc. bom dona H. eu gostaria de saber... éh... como a senhora entrou para a
esco:: la... e com que ida:: de por exemplo?
Inf. eu entrei com sete anos... porque... ante disso eu vivi na fazenda...
(SP DID 242: 1-3, p. 148)

(13)
L1 governador... inicialmente nós gostaríamos que o senhor respondesse o se-
guinte... o senhor estaria deixando o estado de São Paulo falido... procede
isso governador? é fato que o senhor está deixando São Paulo falido?
(“Programa Roda Viva”, entrevista com Fleury Filho, 1994
in Aquino, 1997)

87
FÁVERO, Leonor Lopes. A entrevista na fala e na escrita.

(14)
L1 O ano 2000 está impregnado de misticismo. O senhor acredita que este
reveillon será especial – um marco na vida das pessoas?
L2 Eu não acho. Será, sim, um ritual de passagem, como o de todos os anos
anteriores.
( Cláudia: entrevista – Paulo Coelho, novembro de 1999, p. 51)

B – Continuidade de Tópico

As perguntas e respostas são utilizadas pelos interlocutores para


dar prosseguimento ao tópico:
No exemplo (7) a pergunta de L1
O que considera uma “porrada da vida”? continua o tópico que os
interlocutores vêm desenvolvendo sobre se L2 se sentiu fracassado em
alguns momentos e este responde:
L2 Porrada você vai levar sempre.
Em (7) o entrevistador retoma o termo porrada usado por L2 e dá
continuidade ao tópico.
Nessa função, a ocorrência de R é uma das mais comuns na con-
versação, porque o interlocutor foi solicitado a dar sua contribuição e
interage permitindo a continuidade desse tópico.
O mesmo ocorre em:

(15)
Doc. certo agora... depois desse curso... a senhora continuou a estudar:: certo? e
tem teve uma formação universitária... gostaria de... que a senhora falas-
se... os cursos que a senhora fez até então...
Inf. terminei todo curso secundário... no Mackenzie... fiz um curso normal::
do próprio Instituto Mackenzie...
(SP DID 242: 16-21, p. 148).

88
Fala e escrita em questão.

O tópico em desenvolvimento é a Formação escolar da interlo-


cutora e a questão colocada pela documentadora dá seqüência a esse
tópico.

C – Redirecionamento do tópico

O tópico pode agir prospectiva e retrospectivamente graças à pro-


priedade de recursividade; ao perceber que houve um desvio do tópico, o
interlocutor pode redirecioná-lo por meio de uma P, reintroduzindo o
tópico original.
No exemplo (16), a seguir, os interlocutores desenvolviam o tópi-
co Vícios do entrevistado quando passaram a falar de Mozart citado por
esse último; ao perceber um desvio do tópico, o entrevistador o redireciona
por meio de uma P:

(16)
Veja – Voltando ao assunto “vício”, alguma vez o senhor experimentou dro-
gas?
Rossi – Jamais.
(Veja – entrevista de Reginaldo Rossi, p. 15, 13/10/1999).

No programa “Roda Viva” de 16/10/95, Matinas Suzuki e Maluf


vêm falando sobre a proibição de fumar nos restaurantes e o abuso do
álcool para quem está dirigindo:

(17)
Matinas – por que o senhor não proibe teste em carros?...
Maluf ( )... espera
Matinas – isso é perigoso... as pessoas morrem

89
FÁVERO, Leonor Lopes. A entrevista na fala e na escrita.

Maluf – então espera um pouquinho... eu fiz... você está tergiversando... vamos


falar primeiro sobre o álcool
( )
Maluf – você me deixa falar sobre o álcool ou não?
(“Programa Roda Viva” – entrevista com Paulo Maluf, 16 de outubro de 1995)

As entrevistas do Projeto NURC – SP, graças ao seu estatuto par-


ticular em que a interação é frouxa, não havendo relações pessoais
marcadas fortemente, nem troca de informações, apresentam poucos ca-
sos de reintrodução do tópico. Examinando o volume III do Projeto –
Entrevistas – foi encontrado somente um caso de reintrodução do tópico:
(18)
O documentador pergunta quais os profissionais que poderiam
trabalhar na construção de uma casa e a informante nomeia engenheiro,
empreiteiro, operários e se detém a falar da elaboração e execução da
planta, quando o Documentador reintroduz o tópico sobre o pintor a quem
a informante havia se referido ao falar das profissões liberais:

Doc. quando você falou em pintor se você tivesse que pintar um quadro o que
você iria comprar?
(SP DID 251: 306-7, p. 66)

D – Mudança de tópico

É muito comum a ocorrência de uma P como elemento de mudan-


ça de tópico, mudança esta que se dá por problemas de contexto – refe-
rentes não compreendidos, referentes que provocam associações – por
esgotamento ou por não se querer falar mais sobre o tópico em desenvol-
vimento.
Observem-se os exemplos:

90
Fala e escrita em questão.

(19)
Na entrevista com Paulo Coelho, o tópico que está sendo desen-
volvido é Proliferação das seitas; havendo um esgotamento, o entrevis-
tador diz:

Cláudia – O senhor está escrevendo outro livro


Paulo Coelho – Costumo dizer que estou grávido. Escrevo a cada dois anos e
no intervalo me permito um período de gestação em que não tomo notas,
apenas faço amor com a vida. Penso no livro na hora em que sinto a
urgência de manifestar essa criação. E sei que ele vai sair rápido, como o
último (Veronika Decide Morrer), que fiz em um ou dois meses.
(Cláudia – entrevista de Paulo Coelho, novembro de 1999, p. 15).

(20)
Na entrevista com Reginaldo Rossi à revista Veja, os tópicos que
estão sendo desenvolvidos são Políticos e Pena de Morte, quando o en-
trevistador muda e pergunta:

Veja – Em seus shows, há canções em inglês e francês. O senhor fala esses


idiomas?
Rossi – Quando eu era garoto e tocava violão, resolvi dar aula do instrumento
para ganhar uns trocados. Uma das minhas alunas era americana. Então,
fazíamos uma troca: eu ensinava violão e ela me ensinava inglês. De noi-
te, quando ia para a zona do meretrício, que no Recife fica perto do cais
do porto, aproveitava para praticar com os marinheiros estrangeiros. Che-
guei a dominar bem o inglês durante uma época. Hoje estou meio esque-
cido, porque não tenho com quem treinar.
(Veja: entrevista de Reginaldo Rossi, 13 de outubro de 1999).

(21)
No inquérito 234 do Projeto NURC-SP, os interlocutores vêm fa-
lando sobre teatro, balê e o Documentador, mudando o tópico, pergunta:

91
FÁVERO, Leonor Lopes. A entrevista na fala e na escrita.

Doc. escuta Dona I, passando assim mais agora para o campo de filme... eu
queria saber qual o tipo de:: o que mais chama atenção da senhora no que
diz respeito a cinema? não é? eu sei que a senhora já:: a senhora disse que
não gosta de drama, gosta de comédia
Inf. comédia
(SP DID 234: 298-303, p. 111)

3.2. Natureza

A – Pedido de Informação.

A incidência de perguntas com solicitação de informação é muito


grande e a R pode restringir-se apenas à informação solicitada como em:

(22)
Doc. ... e como eram os professores naquela época? Exigentes demais ou não?
Inf. ah isto ahn... variava não é? nós tínhamos... professores exigen/...
exigentíssimos viu? Outros já não eram tão exigente né? de modo que...
isso eu penso que continua mais ou menos do mesmo jeito...
(SP DID 242: 228-233, p. 153)

ou a pergunta pode ser mais uma sugestão dada para o desenvolvimento do


tópico, para que o interlocutor expresse sua opinião a respeito do assunto;
assim a R não fica restrita à P formulada, mas conterá outras informações.
Nas entrevistas do NURC-SP, por suas características, é o tipo mais encon-
trado, já que o que se pretende é deixar o entrevistado falar.
Os exemplos (6) (7) (19) e (20), aqui transcritos, constituem uma
amostra dessa afirmação.
No exemplo (17), além do pedido de informação, cria-se uma si-
tuação em que um problema é publicamente apresentado. Os traços da

92
Fala e escrita em questão.

fala de Maluf mostram uma interação polêmica, pois, segundo ele, Matinas
está conduzindo mal a entrevista, encaminhando-a para um contexto
irrelevante; Maluf reclama seu espaço e procura marcar pontos com a
audiência (Fávero e Aquino, 1997).

B – Pedido de Confirmação.

Os pedidos de confirmação ocorrem, comumente, quando houve


inicialmente um pedido de informação e o interlocutor solicita que essa
informação seja sustentada. Ou, quando um dos interlocutores não con-
corda com o que foi dito e procura certificar-se:

(23)
Veja – Você já traiu?
Adriane – Já traí e já fui traída. Mas isso foi na época dos namoros menos
sérios.
Veja – E o Ayrton?
Adriane – Não.
Veja – O Júlio
Adriane – Não.
Veja – O Roberto?
Adriane – Não.
Veja – Nenhum deles?
Adriane – Não. Quer dizer, depende do que você entende por traição. Eu te dou
três opções de traição. É mais traição você sair com outro homem ou
viver com um homem que você não ama e não ser verdadeira com ele? A
pior traição não tem a ver com essa coisa de pele.
(Veja: entrevista de Adriane Galisteu, 8 de setembro de 1999, p. 15).

93
FÁVERO, Leonor Lopes. A entrevista na fala e na escrita.

(24)
Doc: escute me conta uma coisa... essas peças que você representou você e seu
grupo... elas foram apresentadas assim em outras faculda::des:: em outros
teatros em teatro você já falou que já foram... foram representadas... mas
eu quero saber se elas foram representadas em outras faculdades?... se
ELA foi representada em outras faculdades?
Inf. não... em outras faculdades não... a única faculdade... onde ela foi represen/
:: ahn faculdade não ahn não faculdade na Universidade Mackenzie no
auditório... lá no teatro Rui Barbosa... só lá que as três peças... as três não
as duas primeiras...
(SP DID 161: 64-75; p. 39)

Pode haver uma combinação de pedido de informação e de con-


firmação, como no exemplo (23), assim como de confirmação e de es-
clarecimento.

C – Pedido de Esclarecimento.

Freqüentemente, o interlocutor, não conseguindo captar (= ouvir)


o enunciado, solicita a repetição total ou parcial ou esclarecimento em
relação ao conteúdo do enunciado, como nos exemplos (25) e (26) aqui
apresentados.
Nas entrevistas escritas aqui analisadas, não foi encontrado ne-
nhum exemplo, pois a revisão e a reescritura, posteriores à produção,
eliminam essas marcas; nas entrevistas do Projeto NURC-SP e de televi-
são, são bastante freqüentes:

(25)
Doc. que você acha que é importante... pruma boa representação teatral... com...
exceção da participação do artista... ou melhor da BOA participação do
artista?

94
Fala e escrita em questão.

Inf. não entendi bem

(26)
Doc. uhn uhn... Dona I como é que a senhora descreveria um cinema... com
todos os elementos assim que compõem o cinema?...
Inf. como você diz descrever um:: um filme?
Doc. não o cinema em si o local o cinema...
Inf. eu não entendi a pergunta.
(SP DID 234: 530-535; p. 116)

D – Pergunta Retórica.

Ocorre quando o falante elabora a pergunta mas já conhece a res-


posta; usada como recurso para manter o turno ou para estabelecer con-
tato (função fática):

(27)
Inf. ... bem o banco faz o o... o que se chama o... como é que se... como é que
(eles chamam) essa essa folha de informação? O cadastro bancário... en-
tão o sujeito assina...
(SP DID 250: 417-420; p. 142)

(28)
Doc. escuta e QUAIS os tipos de programa que mais te atraem... humori::sticos...
nove::las.. fi::lme?...
Inf. DESENHO ANIMADO ((riu)) dos BONS desenhos animados...
Disneylândia quando passa um bom filme e um bom desenho do Pato
Donald quem É que não gosta? Não existe...
(SP DID 161: 811-816; p. 56).

95
FÁVERO, Leonor Lopes. A entrevista na fala e na escrita.

Considerações Finais

As análises realizadas permitem confirmar que o par dialógico P-


R se configura como elemento imprescindível na organização do texto
da entrevista, prestando-se a consolidar ou a modificar as relações entre
os interlocutores (entrevistador, entrevistado, audiência), imprimindo um
caráter vivo ao evento discursivo.
Constitui-se em estratégia que acumula efeitos, pois o entrevista-
dor pode, por exemplo, formular um pedido de informação, confirmação
ou esclarecimento, mas, ao mesmo tempo, servir-se da pergunta para
mudar ou redirecionar o tópico, além de expor a face do outro participan-
te. Vai, portanto, muito além do simples papel de obter informações.
A pesquisa revelou, também, que não há grandes diferenças quanto
à função e à natureza do par P-R, quer se trate de entrevista escrita, quer
se trate de entrevista falada, pois todos os casos foram encontrados no
corpus, com exceção da pergunta como pedido de esclarecimento, nas
entrevistas escritas, quando, provavelmente, a reescritura a faz desapare-
cer.

Referências bibliográficas

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96
Fala e escrita em questão.

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97
Fala e escrita em questão.

A DIGRESSÃO COMO ESTRATÉGIA


DISCURSIVA NA PRODUÇÃO DE TEXTOS
ORAIS E ESCRITOS

Maria Lúcia da Cunha V. de Oliveira Andrade

“As digressões são incontestavelmente a luz do sol – são a vida, a


alma da leitura (...) elas trazem a variedade e impedem que a apetência
venha a faltar”.
Laurence Sterne

Considerações iniciais

Este trabalho tem por objetivo estudar as digressões em textos


orais e escritos produzidos por pessoas cultas, verificando em que medi-
da, ao empregar essa estratégia, a interação recebe uma espécie de reo-
rientação de seu sentido, revelando algo que está no horizonte do campo
de percepção do locutor. Pretende-se verificar também como a digressão
apresenta papéis definidos na construção textual (oral/escrita).
O corpus da pesquisa compõe-se de textos orais – retirados de
materiais do Projeto NURC/SP (D2 343 e 360), entrevistas de TV e al-
guns trechos de conversações espontâneas1 – e de textos escritos publi-
cados na revista Veja, além do conto O espelho de Machado de Assis.

1
Os nomes dos interactantes, quando mencionados, foram trocados para preservar a priva-
cidade das pessoas.

99
ANDRADE, Maria Lúcia da C. V. de O. A digressão como estratégia...

A digressão pode ser caracterizada como uma porção textual que


não se acha diretamente relacionada com o segmento precedente nem com
o que lhe segue; entretanto, não é acidental e tampouco cria uma ruptura da
coerência, na medida em que é fruto de relações de relevância tópica.
Considerar a digressão como desvio no fluxo informacional (rele-
vância tópica) passa a ser uma questão de perspectiva. Se considerada do
ponto de vista textual ou de ação (ilocucionária), a digressão pode ser
enigmática; porém, se considerada sob o enfoque interacional, passa a
funcionar como uma estratégia por meio da qual se busca um determina-
do efeito de sentido.
A digressão implica a substituição de um domínio de relevâncias
(tópico discursivo, ou seja, o assunto da atividade textual) por outro do-
mínio diferente, que suspende momentaneamente aquele domínio ante-
rior, colocando-o à margem do campo de percepção, enquanto o novo
tópico discursivo assume posição focal. Como lembram Dascal e Katriel
(1979, p. 78), “uma digressão pode ser caracterizada por duas mudanças
tópicas sucessivas envolvendo os mesmos dois tópicos”. Esquematizando
essa explicação, tem-se:

1a. etapa: retirada de um tópico (A);


2a. etapa: introdução de um tópico (B);
3a. etapa: retirada do tópico (A)
4a. etapa: reintrodução do tópico (A)

A digressão localiza-se, assim, na 2a. e 3a. etapas. Na verdade, ela


é uma estratégia por meio da qual os interlocutores conduzem o texto,
manifestando na materialidade lingüística o quadro de relevâncias acio-
nado na situação enunciativa. O deslocamento e conseqüente focalização
de um novo ponto no domínio de relevâncias se instaura a partir da per-
cepção de um dos participantes e se efetiva por meio de marcas formais
que apontam para algo que estava no entorno e que agora é inserido no
contexto situacional.

100
Fala e escrita em questão.

1. A digressão no texto oral

O contexto situacional em que o texto oral se efetiva manifesta-se


no próprio texto, não de uma forma mecânica, mas por meio de um rela-
cionamento sistemático entre o meio social, de um lado e a organização
funcional da língua, de outro. Em outras palavras, texto e contexto apre-
sentam-se integrados e um serve para predizer o outro. O texto oral é,
portanto, um evento interativo, uma troca social de significados e tal
troca se torna mais evidente na conversação espontânea, visto tratar-se
de um tipo de texto em que as pessoas exploram todos os recursos da
língua, e por ser um tipo de situação em que se pode improvisar, inovar e
onde as mudanças no sistema acontecem.
A estrutura de um texto está relacionada ao contexto de situação,
segundo Halliday (1989), de tal forma que as variáveis campo (o que
realmente ocorre), teor (quem participa) e modo (a função que a língua
desempenha), juntas, estabelecem a configuração contextual, podem ser
usadas para fazer certas predições sobre a estrutura do texto, assim como
a estrutura, que é desdobrada do próprio texto, pode ser usada como
indicador para encontrar a natureza da configuração contextual. Tem-se,
assim, uma relação de mão dupla entre a estrutura do texto e a configura-
ção contextual: a estrutura do texto define e confirma a natureza da con-
figuração contextual, enquanto esta última atua como um ponto de refe-
rência para decidir que tipo de elementos podem aparecer, quando, onde
e com que freqüência.
Na visão de Hasan (1989), todo texto está encaixado em uma situ-
ação específica assim como em uma configuração contextual. Isso equi-
vale a dizer que certos aspectos de um texto são determinados pelo aqui-
agora daquela interação particular.
Para poder processar um texto oral, o locutor ativa sua percepção
em relação à situação comunicativa. Esta, por sua vez, é acionada a partir
de um conjunto pertinente de instruções para a conduta verbal na referida
situação. Verifica-se, assim, que o contexto situacional determina as con-
dições pragmáticas vigentes durante a interação verbal. Em outras pala-

101
ANDRADE, Maria Lúcia da C. V. de O. A digressão como estratégia...

vras, o contexto situacional é a construção cognitiva (ou quadro) que o


locutor faz da situação comunicativa.
A percepção da situação ocupa um lugar especial nesse contexto.
O locutor percebe somente aqueles elementos da realidade circundante
que considera relevantes para o desenvolvimento da interação. Assim,
pode-se asseverar que o contexto situacional é uma criação individual,
conforme já apontou Ibañez (1998), mas, para que esta criação se efeti-
ve, os demais contextos (cultural, biográfico individual e conhecimento
de mundo) são acionados.2

1.1 Tipos de digressão

Como a linguagem apresenta funções específicas que se refletem


na estrutura textual e essa estrutura só pode ser compreendida a partir da
referência a seu lugar no processo social, isto é, seu contexto, é conveni-
ente observar e identificar na atividade interacional o que está ocorrendo
em termos de estrutura. Assim, constata-se que os tipos de situação lin-
güística em que as digressões se estabelecem diferem entre si devido às
três variáveis, já apontadas anteriormente: campo, teor e modo. A partir
dessas três variáveis, pode-se determinar os três tipos de digressão já
identificados por Dascal e Katriel (op. cit.), mas carregando a subdivisão
da tipologia de um ônus mais relacionado à própria configuração contex-
tual em que tais digressões surgem:

a. campo: digressão lógico-experiencial (aquela, anteriormente,


denominada digressão baseada no enunciado) estabelece certo
propósito de natureza pessoal entre o tópico central e o digres-
sivo;
b. teor: digressão interpessoal (anteriormente denominada digres-
são baseada na interação) relaciona-se a fatores de ordem con-
2
Este assunto foi tratado, pormenorizadamente, por ANDRADE (1998).

102
Fala e escrita em questão.

textual, revelando preocupações sociais entre os interlocuto-


res, subdivide-se em:
i – digressão interpessoal incidental: está vinculada a preocu-
pações de ordem social, como a chegada de uma outra pessoa,
por exemplo, e à necessidade de se seguirem as regras estabe-
lecidas na comunidade;
ii – digressão interpessoal imediata: diz respeito à imediatici-
dade da situação enquanto relação entre o falante e a pertinência
de algum objeto presente no entorno;
c. modo: digressão retórica (anteriormente denominada digres-
são baseada em seqüência inserida) estabelece um vínculo de
pertinência textual, ou seja, contribui para a textura da produ-
ção lingüística e divide-se em:
i – digressão retórica didática: caracteriza-se por ser uma se-
qüência que modifica uma outra seqüência par, do tipo per-
gunta-resposta. Esse tipo é bastante comum e demonstra um
aspecto interacional importante, visto que parece servir a uma
variedade de atos de fala: corretivo, informativo, clarificatório,
entre outros;
ii – digressão retórica persuasiva: revela uma certa manipula-
ção da pergunta, orientando-a de alguma maneira. Um exem-
plo característico desse tipo de digressão se instaura quando o
interlocutor cria uma paráfrase da pergunta com a finalidade
de direcioná-la para certo objetivo, como se verifica em deba-
tes ou entrevistas.

Na construção de um texto oral em que se instaura uma digressão,


nota-se que o falante traz para o contexto situacional algo que é próprio
do contexto biográfico e/ou do contexto de conhecimento de mundo, ou
seja, trata de influenciar a constituição do contexto situacional no outro
interactante, em função de sua metas comunicativas, criando uma di-

103
ANDRADE, Maria Lúcia da C. V. de O. A digressão como estratégia...

gressão lógico-experiencial 3, visto que o foco da cena discursiva é


direcionado para um propósito de natureza pessoal. Nesse caso, há nego-
ciação individual ou negociação de contexto em função do quadro de
relevâncias que se estabelece na interação. Veja-se o exemplo a seguir 4:

(1)
L2 tenho saído sim... assim em termos mas eu acho por exemplo::... de sair::...
éh::... sabe sair por aí:: descobrir
[
L1 uhn
L2 lugares novos e tal acho que meu conhecimento de São Paulo é muito
restrito se comparar com papai por exemplo...
L1 eu fui:: quinta-feira... não foi terça-feira à noite fui lá
no ( ) né? lá na Celso Furtado
L2 éh::
L1 passei ali em frente à:: Faculdade de Direito...então estava lembrando...
que ia muito lá quando tinha sete nove onze...(com) a titia sabe?... e:: está
muito pior a cidade... está...o aspecto dos prédios assim é bem mais sujo...
tudo acinzentado né?
L2 uhn:: poluição né?
(D2 343: 12-25, p. 17)

Nesse segmento, os interlocutores desenvolvem o tópico “Sair de


carro para a cidade”, no momento em que L2 se refere aos seus conheci-
mentos de São Paulo e os compara ao do pai, fazendo uma pausa, L1
toma o turno e muda o tópico discursivo para “Opinião de L1 sobre o
aspecto da cidade”; entretanto, ao referir-se à Faculdade de Direito, L1

3
Neste artigo, seguiu-se a tipologia de digressões proposta por ANDRADE (1995).
4
Os trechos em que ocorre uam digressão foram destacados em itálico.

104
Fala e escrita em questão.

faz uma pausa e cria, por meio do marcador “então”, uma digressão
lógico-experiencial, introduzindo o tópico “Lembranças de L1”. A di-
gressão é percebida não só pela mudança de relevância tópica (aspecto
da cidade) para relevância marginal (lembranças de L1), mas também
pela mudança discursiva temporal: de “passei” (pretérito perfeito narra-
tivo) para “estava lembrando” (pretérito imperfeito narrativo-descriti-
vo). L1 denuncia o esgotamento da digressão fazendo pausas e alonga-
mentos e, finalmente, reintroduzindo o tópico “Opinião sobre a cidade”
com o marcador “e::”.
Casos bastante significativos desse tipo de digressão podem ser
observados em conversações espontâneas ou em entrevistas de TV como
nos segmentos colocados a seguir:

(2)
L1 eu fui ver um filme Ó::timo... Vestígios do Dia....
L2 ah;; me falaram que É muito bom
L3 neste fim de semana?... você viu Filadélfia?
L1 vi sim... vi semana passada... este:: fim de sema::na vi...
L3 é BOM?
L1 eu NÃO gostei muito... achei MUIto TRISte porQUE é
um filme sobre AIds e preconceito né?... o raPAZ ele é
mandado embora é um advogado ilustre... ele não É mandado
embora...porque tinha aids É mandado embora porque é
homossexual... porque uma coLEga que tem aids e que NÃO É
mandada embora.... quer dizer enTÃO fica CLAro que
a firma usou dois pesos duas medidas
L2 aí ele entra na justiça
L1 ENTÃO:: ele entra na justiça... o filme é isso... e Filadélfia é a
cidade dos direitos humanos... o FILme é MUI::TO bem interpretado
MAS é um filme cheio de clichês POR exemplo é um filme que deseja

105
ANDRADE, Maria Lúcia da C. V. de O. A digressão como estratégia...

mostrar que os Estados Unidos são no fim das contas O:: PAÍS da
justiça... onde MESmo que seja intolerante... você con::trata um BOM
advogado o advogado GAnha a CAUsa pra você É um filme ameriCAno
deMAIS::... pro meu gosto... Ele só vale pela interpretação de Tom Hanks
que traBAlha muito bem MAS a história É simples... MAS bom mesmo é
Vestígios do Dia... esse filme é impressionante
L2 você assistiu Vestígios do Dia?
L3 ainda não tive tem::po
L1 é LIN::do é:: impressioNANte... é uma adaptação né?
(Conversação espontânea 1)

L1 introduz o tópico “Último filme visto no cinema”, comentan-


do a respeito de “Vestígios do dia”, mas é interrompido por L3 e todos os
interlocutores começam a falar sobre o filme, “Filadélfia”. Após uma
longa digressão lógico-experiencial sobre este último filme, L1 volta a
introduzir o tópico relacionado a “Vestígios do dia”. Nesse segmento, a
digressão baseia-se numa relação paradigmática ou associativa evocada
a partir do item lexical “filme”, produzido por L1 em “eu fui ver um
filme ó::timo... Vestígios do Dia...”. Vocábulo este que leva L3 a fazer
uma associação com outro filme, deslocando o tópico sobre “Último
filme visto” agora para “Filadélfia”. A volta ao tópico é feita por L1 que,
depois de responder ao amigo, retoma a expressão avaliativa usada para
caracterizar o filme, mas com certa variação: “bom mesmo é”.

(3)
L6 ...o que seu ministério fará sem dinheiro? se não há dinheiro nem pra
quatorze reais de aumento do salário mínimo... depois de quatro meses
de debate... nós tivemos a concessão por um mês só... o mês de janei-
ro...
[
L5 parece que estão falando de uma verba de

106
Fala e escrita em questão.

[
L2 (veja)... ( )
L5 cento e vinte milhões... uma coisa assim... cento e vinte milhões...
[
L2 não... veja... tem pouco dinheiro... Salomão... pra... má/ não é
tão miserável assim que não possa fazer nada... compreende? aliás...
eu acho que no Brasil... nós precisamos... eu... eu acho muito impor-
tante que os jornalistas sobretudo... não é? cutuquem os temas de
maneira direta... não é? agora... é também é... também é preciso per-
ceber que no Brasil...
(Programa “Entrevista Coletiva” – Francisco Weffort, p. 101-102)

Nessa parte da entrevista, os locutores (cinco jornalistas e o mi-


nistro Francisco Weffort) desenvolvem o tópico relativo aos problemas
de verba enfrentados pelo ministério da cultura, quando L2 (o então mi-
nistro da cultura) faz uso de uma digressão lógico-experiencial referente
ao papel do jornalista, como elemento que deve apontar os problemas de
forma direta. A volta ao tópico prévio é estabelecida por meio do marcador
“agora”.
Por sua vez, o falante pode evidenciar no contexto situacional ele-
mentos do contexto cultural, já que se tornam relevantes, motivacional-
mente, elementos externos ou regras de conduta da atividade social, esta-
belecendo uma digressão interpessoal incidental.

(4)
L1 é... olha só... o que é que... o que é que... ahn... quantos shows por
ano? com essa loucura agora que tão de ( )... (o quê) todo dia cês
fazem show... ou não?
L2 depende da época do ano... né... Jô? esse ano a gente deve fechar o ano
com uma média de cento e sessenta...
[

107
ANDRADE, Maria Lúcia da C. V. de O. A digressão como estratégia...

L3 toma uma aguinha (aqui do Luís Fernando Guimarães) por


que não deram pra nós... né?
L1 a água troca... a água troca...
[
L3 não... vou tomar a dele mesmo...
[
L1 na/não... já não vai... porque
todo intervalo a gente troca a água pra um não ficar bebendo a baba
do outro... claro... ((risos)) [
L3 a::... eu não vi...
L1 a gente sempre troca...
L2 ( ) a curiosidade desse negócio que tinha aqui dentro... Jô...
[
L1 não... varia...
[
L3 ( ) você falou que era
preto... agora é branco...
L1 pois é... toda vez eu tenho que falar... tem vezes que é água... tem vezes
que é água de coco... tem vezes que é... refrigerante
[
L3 pinga
L1 dietético de vários tipos...
[
L2 mas cê tava falando do show... esse ano a gente deve
fechar com cento e sessenta e cinco... cento e setenta shows por ano...
(“Programa Jô Onze e Meia” – Zezé de Camargo e Luciano, p. 17-18)

Nessa entrevista, L2 (o cantor Zezé de Camargo) está desenvol-


vendo o tópico relativo ao número de shows feitos pela dupla, mas L3 (o

108
Fala e escrita em questão.

cantor Luciano) interrompe para oferecer água a seu companheiro. A


seguir, passam a desenvolver o tópico relativo ao conteúdo da caneca. L1
(o entrevistador Jô Soares) dá as explicações devidas e L2 volta a desen-
volver o tópico sobre os shows.

(5)
L1 enTÃO... vocês gosTAram do projeto da casa?
L2 está Ótimo... adoraria morar numa casa como essa...
L3 pena que eu não dirijo... e Arujá cinco fica lon::ge demais do meu
trabalho...
L2 mesmo que você dirigisse... Paula... não teria condições... já penSOU::
quanto
tem::po você levaria atravessando toda a marginal até chegar a USP...
L3 é:: Rodolfo... só quando você construir Pinheiros QUAtro ((risos))
Garçonete: café com aÇÚcar... ou adoçante?...
L1 adoçante...
Garçonete: aqui está
L1 obrigado
L2 mas... FOra de brincadeira... Rodolfo ( ) se NÓS puDÉssemos...
compraRÍAmos essa Casa... quando ficasse pronta...
L1 eu tô pensan::do em ficar com ela para mim... mas... CLAro... se eu
tiver o dinhei::ro para pagar os cotistas...
L3 mas eu acho que/ que o João vai querer comprar também...
L2 ótimo... assim o preço SObe... e NÓS como cotistas... ganhamos
mais dinheiro... quem oferece MAIS... Leva
L1 ficando esperTI::nho hem::
(Conversação espontânea 2)

109
ANDRADE, Maria Lúcia da C. V. de O. A digressão como estratégia...

Nessa conversação, os interlocutores estão num Café e, depois de


fazerem o pedido, desenvolvem o tópico “Projeto da casa de Arujá”.
Entretanto, são interrompidos pela garçonete que vem trazendo o pedido
e pergunta se desejam “café com açúcar ou adoçante”. Nesse momento,
tem-se uma digressão interpessoal incidental, visto que está relacionada
a um fator de ordem contextual: os interlocutores têm preocupações so-
ciais e necessitam interagir de acordo com as normas, isto é, estão num
Café, fizeram um pedido e a garçonete faz o seu papel servindo aos clien-
tes. Após serem atendidos, L1 agradece em nome dos demais e a garço-
nete se retira. Há uma mudança de alinhamento entre a conversa dos três
amigos e a chegada da garçonete, que se evidencia pela mudança de
entonação e postura dos participantes, anteriormente mais descontraídos
e alegres, agora sérios e solícitos. Em relação ao domínio de relevância,
observa-se que agora ela é motivacional, já que o tópico central (“Projeto
da casa”) fica suspenso temporariamente e dá lugar ao interesse dos par-
ticipantes (serem servidos e desempenharem seus papéis de pessoas
educadas e cordiais). Há, portanto, um deslocamento do tópico devido
ao teor do discurso, englobando elementos do contexto de situação e das
relações sociais.
O falante pode ainda introduzir uma digressão interpessoal ime-
diata ao fazer uso da relação existente entre ele próprio e a pertinência de
algum elemento ou objeto presente no entorno. Veja-se o trecho a seguir:

(6)
L1 é coitadinho... porque ele tá tão a perigo... a gente nota que ele tá... cê
tá com uma cara de quem tá com o boi na sombra e o irmão com a cara
de aflito... ((risos)) não sei porque (que é isso)...
L2 não... mas a última grana que eu tinha eu gastei em alfinete... pra por
na minha calça... ( )
[
L1 rapaz... eu não tinha olhado essa calça ainda...
[

110
Fala e escrita em questão.

L2 e eu fiz um compromisso aqui com a galera... aqui


com o pessoal do seu programa... da platéia... de que no final eu vou
dá um alfinete pra cada um deles... ( ) ((aplausos))
L1 rapaz... deu pra dar um detalhe... deu... heim?
L2 isso aqui na verdade... é o seguinte... né... porque eu tenho um neném
novinho agora... um filho com nove meses... quando nasceu eu
[
L1 com nove meses...
L2 fui compra/ é... comprei logo uma caixa de alfinete... levei pra casa...
mulher “pra que isso...” “isso aqui pra amarrar as fraldas...” ela fa-
lou “cê tá... há vinte anos atrás rapaz...
[
L1 atrasado
L2 o negócio agora é descartável...
[
L1 é claro...
[
L2 aí eu peguei e fiz...
[
L1 botou na calça...
[
L2 botei na cal-
ça aqui...
[
L1 o::... Arafat... cê já mostrou aqui o... o... ((risos))
(“Programa Jô Onze e Meia” – Zezé de Camargo e Luciano, p. 19)

Nesse segmento, os interlocutores desenvolvem o tópico relativo


aos contratos e shows marcados para aquele ano, quando L1 passa a
comentar a respeito da fisionomia de L2. Este procura-se justificar, fa-

111
ANDRADE, Maria Lúcia da C. V. de O. A digressão como estratégia...

zendo alusão ao motivo de ter colocado tantos alfinetes em sua calça. O


elemento que provoca a digressão interpessoal (relação de L1 com o
fisionomia de seu interlocutor na imediaticidade do contexto situacional)
é a referência que o entrevistador faz à expressão de aflito de L2.
Para analisar como se processa a interação, neste trecho, foi pre-
ciso observar o teor do discurso. Houve uma mudança no domínio de
relevância provocada por um elemento de ordem contextual (a expres-
são de L2) que se manifesta na fala de L1.

(7)
L1 porque... eu fiz o curso normal... porque eu havia perdido
o meu pai fazia:: ah no no primeiro colegial e:: eu
precisava ter uma ah optar por uma carreira pro/ –
meu relógio está atrapalhando a nossa – ... por uma
carreira profissionalizante... eu achei que as coisas dali
para frente seriam mais difíceis eu comecei o colegial...
(SP D2 360: 1562-7, p. 175)

L1 responde a uma pergunta de L2, introduzindo o tópico “Neces-


sidade de carreira profissionalizante de L1”. Nesse segmento, a locutora
diz por que escolheu a carreira profissionalizante, mas interrompe o de-
senvolvimento do tópico e faz uma digressão interpessoal imediata ao
mencionar o problema do horário: “meu relógio está atrapalhando a nos-
sa”. A interrupção é rápida e relaciona-se algo que está presente no en-
torno e torna-se relevante para o locutor. Ao introduzir o tópico prévio,
L1 repete a última estrutura utilizada antes da digressão: “por uma car-
reira profissionalizante...”.

(8)
L2 não::... o cruzamento é ali adiante... mas não é para entrar ainda
neste PONto você daí para Jundiaí... nós só vamos sair lá no fim

112
Fala e escrita em questão.

L1 Vitor... você conhece esta estrada como a PALma da MÃO né


L2 conheço bem
[
L1 então... descreva a PALma da mão ((risos))
L2 faz uns DOze anos que eu viajo por aqui TOda semana... esta
estrada é muito boa... é gostosa de dirigir
L1 é engraçado essa coisa de provérbio... outro dia o Bussunda
mencionou aquele éh... “ele JOga como um leão... você já viu
como um leão joga?... NADA” ((risos))
L2 é... às vezes o Bussunda e:: o pessoal que trabalha com ele no
programa “Casseta e Planeta” têm sacadas interessantes... mas
em:: outras...
L1 uhn uhn... esta estrada é realmen::te mui::to boa... veja só...
(Conversação espontânea 3)

Nesse exemplo, L1 faz alusão ao fato de seu amigo conhecer bem


a estrada pela qual estão viajando e emprega o termo “palma da mão”.
L2 confirma conhecer bem a estrada, mas L1 toma o turno e, ironica-
mente, pede que o outro descreva a palma da mão. L2 torna a mencionar
que há muito tempo viaja por aquela estrada, mas L1 está interessado em
voltar a falar sobre o provérbio mencionado anteriormente, então faz um
comentário acerca do programa “Casseta e Planeta”, criando uma di-
gressão interpessoal imediata, dado que o locutor atribui valor a um
elemento do entorno e efetiva uma relevância motivacional, fazendo com
que esse elemento seja incorporado à situação discursiva.
Por fim, o falante pode estabelecer um vínculo de pertinência tex-
tual, ou seja, contribuir para a textura da produção lingüística, instauran-
do no contexto situacional elementos relevantes ao contexto cultural,
biográfico individual ou de conhecimento de mundo. Neste caso, tem-se
uma digressão retórica didática como se pode observar no trecho a se-
guir:

113
ANDRADE, Maria Lúcia da C. V. de O. A digressão como estratégia...

(9)
L1 você acha que... desenvolvimento é BOM ou ruim?
L2 desenvolvimento em que sentido?
L1 crescimento... o Brasil diz-se basicamente
subdesenvolvido e diz-se também que ele está crescendo...
se desenvolvendo... parece que está saindo de uma
condição de subdesenvolvido para chegar sei lá numa
de desenvolvido... okay?... uma:: um caminho
L2 ahn ahn
L1 agora PE::gue... os indivíduos... desse país... é melhor
ou é pior para eles isso?
L2 não sei porque acho que aí quando se fala em
desenvolvimento geralmente está se falando num plano né? ((...))
(SP D2 343: 497-509, p. 29-30)

L2 pede uma informação sobre o sentido do termo “desenvolvi-


mento” (ato de fala clarificatório), pois é provável que não o tenha com-
preendido totalmente, evidenciando que o contexto de conhecimento de
mundo não é plenamente partilhado pelos dois participantes. Para poder
sanar a dúvida da interlocutora e garantir a inteligibilidade do discurso,
L1 relaciona o termo que causou toda a dificuldade a outro (“crescimen-
to”); a seguir, para deixar mais evidente ainda o significado pretendido,
faz uso de um exemplo (“agora PE::gue... os indivíduos...desse país... é
melhor ou pior para eles isso?”). Tem-se, então, uma digressão retórica
didática, já que não há a introdução de um novo tópico, mas uma mudan-
ça em relação ao foco. Passa-se de um ponto de centração a outro, isto é,
há um deslocamento do domínio de relevância tópica para uma relevân-
cia de ordem metaconversacional ou metalingüística. A resposta de L1 à
pergunta feita por L2 se dá por meio de construções parafrásticas com o
intuito de expandir a noção de “desenvolvimento”: ação ou ato de sair da
condição de subdesenvolvimento. Após a digressão, L2 tem condições

114
Fala e escrita em questão.

de responder à questão proposta e faz uso da repetição do termo “desen-


volvimento” para voltar ao tópico prévio.
O mesmo tipo de ocorrência, isto é, após uma pergunta feita por
um dos locutores, o outro faz um pedido de esclarecimento, para em
seguida desenvolver o tópico em questão, pode ser observado no exem-
plo a seguir:

(10)
L4 já deu pra fazer um plano de rescalonamento dessa dívida... aí?
L2 de qual?
L4 dessa dívida total... já deu pra estabelecer uma estratégia... ou é muito
cedo ainda?
[
L2 ah... depende... você tem que analisar cada uma das coisas separada-
mente...
(“Programa Entrevista Coletiva” – Mário Covas, p. 116)

Um dos locutores pode, também, fazer uma pergunta, não para


solicitar qualquer esclarecimento, mas para manipular seu interlocutor,
orientado seus argumentos de alguma maneira. Um exemplo caracterís-
tico desse tipo de digressão se instaura quando o locutor cria uma pará-
frase da pergunta com a finalidade de direcioná-la para certo objetivo,
estabelecendo uma digressão retórica persuasiva, como se verifica nos
exemplos a seguir:

(11)
L4 o papel do governante aí no caso... governador... o senhor desculpe... é
criar uma estrutura que fique a salvo dessa politização maluca aí... que
volta e meia vota...
[
L2 perfeitamente...

115
ANDRADE, Maria Lúcia da C. V. de O. A digressão como estratégia...

[
L4 ué ... isso
não é ( )...
[
L2 e você acha que isso que tá acontecendo impede tal ou qual
pessoa de ser eleita?
L4 de ser eleita não... de tomar... de... de politizar do jeito que foi feito... se
se estabelece asregras definitivas que impeçam...
[
L2 quais definitivas? que alguém
quando chegar no governo aja em relação às suas escolhas da mesma
maneira que eu?
[
L4 não...
[
L2 que tipo de regra eu posso impor à
empresa de tal maneira a que... quem quer que seja como acionista
majoritário... não vá dispor sobre isso segundo a sua vocação...
L4 tem maneiras legais de estabelecer conselhos que evitem esse poder
[
L2 sim mas os conselhos estão
aí... os conselhos existem...
[
L4 mas num ( )...
[
L2 os conselhos existem...
(“Programa Entrevista Coletiva” – Mário Covas, p. 125)

No exemplo dado, os locutores desenvolvem o tópico “Papel do


governante”, entretanto L2 (o governador Mário Covas) não aceita as

116
Fala e escrita em questão.

observações do jornalista e passa a questioná-lo, fazendo uso de pergun-


tas manipulatórias que provacam pausas no fluxo informacional e visam
a preparar o interlocutor para aceitar as objeções que fará em relação ao
tópico em andamento.

(12)
L2 e eu acho que a gente está num período de decadência
[
L1 veja o
seguinte... cada vez não aumenta mais a prioridade de...
ter hecatombe?... ou é mais fácil?...
L2 atualmente?
[
L1 pelo menos teoricamente?...
L2 ahn
L1 é né?
L2 ahn ahn...
L1 cada vez não se aumenta mais essa pro/ essa::...
potencialidade de fazer:: uma hecatombe?
L2 ahn ahn
L1 então
[
L2 mas isso está dentro de um ciclo né? maior... ou você
acha que não?...
L1 ou seja... uma época há vontade de fazer hecatombe
outra época não há... de qualquer maneira... numa época
ou noutra a tua potencialidade de fazer hecatombe
aumenta né? então você veja a própria bomba atômica
né?... ((...))
(SP D2 343: 1689-1708, p. 58-59)

117
ANDRADE, Maria Lúcia da C. V. de O. A digressão como estratégia...

No segmento prévio ao trecho digressivo, L2 faz uma pergunta


em relação à pergunta de L1 sobre a época em que pode haver prioridade
de ocorrência de hecatombe; tem-se, portanto, uma digressão retórica
didática (segmento que vai da linha 1693 a 1696). Após a dúvida de L2
ser sanada, L1 repete a pergunta não para esclarecer algum ponto da
questão, e sim para persuadir a interlocutora quanto à probabilidade de
acontecer uma nova hecatombe, fazendo-a inferir (isso fica evidente com
o uso do marcador “então”) os motivos pelos quais a teoria por ele apre-
sentada está correta.
Para a construção do significado comunicativo de interações ver-
bais contendo digressões, torna-se fundamental a observação do contex-
to situacional e da verficação de que elementos dos demais contextos
(cultural, biográfico individual, conhecimento de mundo) afloram, de-
terminando a configuração contextual e as condições pragmáticas vigen-
tes durante a interação. Assim, o contexto manifesta-se através de uma
forma de relevância (central, marginal, motivacional ou metalingüística)
que envolve a atividade conversacional quer como presença, quer como
saber dos interlocutores.
Ao se afirmar que, por meio da digressão, a interação verbal rece-
be uma espécie de reorientação de seu sentido, pretendeu-se dizer que a
digressão opera uma mudança de foco em relação ao tópico discursivo
em andamento, revelando algo que está no horizonte do campo de per-
cepção do falante. Desejou-se também afirmar que a digressão tem pa-
péis definidos na construção textual, de base informacional ou interacional
na organização tópica. Isso se deve ao fato de que toda a digressão cir-
cunscreve a significação tópica no âmbito de significações mais amplas,
geradas pelo espaço discursivo, emergentes graças ao olhar que pelo
menos um dos interlocutores lança em relação ao quadro discursivo no
qual a interação se efetiva. Em outras palavras, a digressão revela o “lu-
gar” de onde emerge a relevância de seu conteúdo agora contextualizado.
Por meio da explicitação verbal desse lugar de processamento dis-
cursivo, realiza-se a integração textual da digressão: focalizando e ins-
taurando novas relevâncias, a digressão torna-se um tópico efetivo do

118
Fala e escrita em questão.

texto, articulado aos demais, na medida em que espelha a geração de tais


relevâncias, criando um movimento próprio. Talvez até se poderia dizer
“estético”: se se imagina a progressão tópica como uma linha reta, a
digressão faria com que essa linha se tornasse uma “serpentina” 5, trazen-
do vivacidade ao discurso e carregando-o de um matiz singular.
As análises feitas permitem afirmar que, de acordo com os objeti-
vos, os interlocutores organizam suas ações de modo a alcançar os fins a
que se propuseram no início da interação e que as digressões se instau-
ram como estratégias discursivas na organização do texto oral. Em ou-
tras palavras, a digressão instaura na significação tópica elementos que
pertencem ao espaço discursivo em que se tornam emergentes devido à
percepção de um dos interlocutores, evidenciando que o quadro discursi-
vo se compõe de elementos centrais e marginais passíveis de se tornarem
focais devido a uma escolha realizada durante a atividade interacional.
Sendo o texto conversacional fruto de uma atividade de co-produ-
ção discursiva (Marcuschi, 1986), o tópico precisa ser visto como algo
dinâmico e resultante de deslocamentos operados pelos interactantes, de
domínios de relevância “centrais” para relevâncias “marginais”, provo-
cados pela introdução de novos domínios mencionáveis na interação, a
partir de outros já existentes, ou de associações, ou ainda de implicaturas 6.
O interesse dos participantes para que a atividade flua é, muitas vezes,
responsável pela ocorrência de trechos digressivos, mas que devem ser
encarados como estratégias discursivas empregadas por um dos interlo-

5
Termo retirado de José Paulo Paes na introdução à obra de Laurence Sterne, A vida e as
opiniões do cavaleiro Tristam Shandy, romance significativo pelas digressões que apre-
senta, publicado no Rio de Janeiro, pela Editora Nova Fronteira, em 1984, p. 31.
6
Sentido derivado, que se atribui a um enunciado a partir da constatação de que seu senti-
do literal seria irrelevante na situação. Exemplo: Numa interação em que os participantes
estão preparando um bolo e após a pergunta feita por A: “Você viu onde está o vidro de
baunilha?”, B responde: “Você perdeu seu óculos?” e A complementa: “A propósito,
você leu aquele artigo sobre miopia que saiu na revista Cláudia?”, o desvio tópico baseia-
se na implicatura do enunciado de B, em detrimento de alguma particularidade do pró-
prio enunciado: “Você está ficando cada vez mais míope” ou “Pessoas míopes devem
usar óculos, onde estão os seus?”.

119
ANDRADE, Maria Lúcia da C. V. de O. A digressão como estratégia...

cutores, na medida em que este relaciona e aciona o campo, o teor ou o


modo do discurso, com o intuito de garantir não só a continuidade do
desenvolvimento do tópico mas também a construção de sua coerência.

2. A digressão no texto escrito

Na construção de um texto escrito, a digressão seria uma fuga –


ainda que momentânea – da meta original para uma aparente incursão
através dos prováveis anseios do leitor. Segundo Moisés (1978, p. 152),
a digressão pode apresentar qualquer tamanho e ser inserida em qualquer
parte do texto e em obras de toda natureza. Acrescenta ainda que ela
constitui “expediente difícil de manejar, uma vez que pode comprometer
a integridade da obra em que se inscreve”; entretanto, ainda não se fez
um estudo pormenorizado desse assunto.
No discurso jornalístico, por exemplo, as digressões são normal-
mente destacadas sob a forma de quadros com comentários ou informa-
ções paralelas a que se remete no corpo da reportagem. Atualmente, a
linguagem jornalística busca estruturar o seu discurso a partir do estabe-
lecimento de articulações entre os elementos que compõem uma texto,
deixando para o leitor a tarefa de fazer as devidas associações entre a
imagem (fotos, desenhos, gráficos), os quadros em destaque por meio de
cor (textos paralelos ou digressivos) e o texto base. As conseqüências
dessa atitude são fundamentais, pois apontam a orientação argumentativa
como um fator essencial de coesão e coerência textuais, visando à com-
preensão, à expressividade e, por que não dizer, à persuasão.
Conforme observa Dias (1996, p. 39), “a linguagem jornalística
compõe-se de uma conjugação simultânea de diversas linguagens: a lin-
guagem verbal escrita, a linguagem fotográfica, a linguagem gráfica e a
linguagem diagramática (que se refere aos diagramas da informação no
espaço da página)”. Segundo a autora, a linguagem jornalística contem-
porânea torna-se uma espécie de “língua veicular”, língua essa que pres-
supõe um estilo que leva em conta todos os níveis socioculturais.

120
Fala e escrita em questão.

Na revista Veja, edição de 29 de setembro de 1999, a reportagem


de capa é do ex-ministro Ciro Gomes, que aparece na foto com uma
expressão sorridente e onde se lê a seguinte manchete:

“A ESQUERDA LIGHT: Alimentado pela impopularidade de FHC,


Ciro Gomes ganha a classe média e assusta o PT”.

A reportagem, que vai da página 34 a 92, apresenta-se com a man-


chete:

“A CARA DA NOVA OPOSIÇÃO: Ciro Gomes sobe nas pesquisas


ao atrair descontentes com o governo e os que temem o PT”.

Há fotos, quadros com estatísticas e pesquisas feitas por Veja-


VoxPopuli e também três quadros que podem ser analisados como di-
gressões, na medida em que estão relacionados com o tópico discursivo
“Ciro Gomes: o novo fenômeno da política brasileira”, e são textos que
seguem paralelamente o texto básico, que vem na cor branca. Embora
marginais, esses textos servem para compor a imagem do fenômeno po-
lítico Ciro Gomes e são os seguintes:
Texto 1 (p. 37):

“O reduto político dos Gomes”, em que se desenvolve o tópico relati-


vo à cidade de Sobral, reduto da família Gomes. Ao lado do texto, que
vem na cor bege, há uma foto de Cid Gomes, irmão de Ciro, considera-
do o prefeito mais popular do Ceará.

Texto 2 (p. 38-39):

“Nem o divórcio os separou”: pequena matéria assinada por Dina Duarte,


jornalista de Fortaleza, a respeito de Patrícia Gomes, deputada pelo

121
ANDRADE, Maria Lúcia da C. V. de O. A digressão como estratégia...

PPS e separada há seis meses de Ciro. O pequeno texto revela que


Patrícia conta com o apoio do ex-marido para disputar as eleições à
prefeitura de Fortaleza. A distribuição do texto entre duas páginas é
também um ponto a destacar, pois o texto vem em cor bege, com uma
foto que mostra Patrícia em sua mesa de trabalho e no texto central há
uma foto de Ciro Gomes rodeado de pessoas e cumprimentando a atriz
Patrícia Pillar. A foto apresenta a seguinte legenda: “O primeiro encon-
tro de Ciro com Patrícia Pillar: namoro às escondidas”.

Texto 3 (p. 40-41)

“Ciro e Cérebro”: este texto é o mais longo e talvez o mais significativo


de toda a reportagem. O tópico desenvolvido nesta digressão é a res-
peito de Roberto Mangabeira Unger, professor da escola de direito da
Universidade de Harvard, nos E.U.A., a sua influência sobre Ciro Go-
mes e o que a nova dupla Ciro e Unger propõem concretamente. Esse
quadro, também em cor bege, é acompanhado de duas fotos:
a – uma, à esquerda, do rosto de Unger, bastante carrancudo, seguida
da legenda: “Magabeira Unger: complexidades que não se desbastam
nem a golpes de facão”. A foto ultrapassa o espaço do quadro e invade
o texto básico ou tópico central.
b – outra, à direita, das personagens de desenho animado Pinky e Cére-
bro, bastante conhecidas pelas pessoas que assistem à TV a cabo, espe-
cificamente no canal Cartoon Network. A legenda da foto é: “Pinky e
Cérebro: ‘Vamos conquistar os mundo’ ”. Para o público que acompa-
nha esse programa, a personagem Pinky caracteriza-se por ser um rato
magro e alto que é deslumbrado, um tanto imbecil e conhecedor de
tudo o que passa na TV. Cérebro, por sua vez, é um rato pequeno, com
uma cabeça enorme, cara de malvado e que só pensa em conquistar o
mundo.

122
Fala e escrita em questão.

Se o leitor fizer uma associação entre as personagens do desenho


e as da política, não apenas por meio das fotos, mas também das idéias
colocadas, verificará que o texto, aparentemente, paralelo ou digressivo,
é o que dá o tom à reportagem. Como se sabe, a analogia estabelece uma
semelhança parcial de traços que podem servir de base a uma compara-
ção e, ainda, ser empregada como estratégia persuasiva. Na verdade, a
construção textual é marcada pelas escolhas de um sujeito enunciador
que cria o discurso, visando aos efeitos de sentido que devem ser produ-
zidos no enunciatário (leitor).

123
ANDRADE, Maria Lúcia da C. V. de O. A digressão como estratégia...

Na visão de Brait (1994/1995, p. 20), “a linguagem é sempre, em


maior ou menor grau, uma forma de persuasão, de levar o outro a aderir
a um ponto de vista”. Entretanto, é preciso lembrar as palavras de
Landowski (1989): “o texto jornalístico é uma forma objetivante de nar-
rar o cotidiano, mas que necessariamente passa pela forma subjetivante
imposta pela constituição de um discurso”.
Outros exemplos, também significativos, de textos jornalísticos
que buscam, por meio da digressão, complementar a informação para o
leitor são os apresentados nas revistas Veja de 2 de junho e 16 de junho,
respectivamente.
No primeiro texto, uma reportagem sobre televisão intitulada “De-
sejo fraco”, em que o jornalista Manoel Fernandes desenvolve o tópico
discursivo sobre a novela “Força de um desejo”, transmitida no horário
das 6 horas, pela Rede Globo. O texto revela que, embora tenha sido
planejada para recuperar a audiência, a novela é um fracasso. Paralela-
mente, em um quadro abaixo, num texto assinado por Ricardo Valladares
e intitulado “Enquanto isso...”, mostra-se como as outras emissoras (Sbt
e Record) vêm conseguindo se manter e concorrer com a Globo na pro-
dução de novelas.
Já no segundo texto sobre livros, o jornalista Diego Mainardi co-
menta, no artigo “Berlinda Russa”, como Dostoievski é retratado em
duas obras de cunho biográfico: “Meu marido Dostoievski” de Anna
Grigorievna, obra escrita em 1911 e só agora lançada no Brasil; e “As
sementes da Revolta: 1821 a 1849” escrita pelo professor americano
Joseph Frank, indicando que este é o primeiro volume de uma obra escri-
ta num intervalo de duas décadas e publicada em cinco volumes.
O jornalista busca analisar as duas obras e oferecer ao leitor um
contraponto entre as duas biografias, opondo o estilo anedótico de Anna
Grigorievna e o método centrado exclusivamente na arte literária de
Dostoievski. Entretanto, este artigo é acompanhado também por outro,
que aparece em um quadro de fundo bege, intitulado “Até tu, Miguel de
Cervantes”, assinado por C.G. Este texto versa sobre uma biografia es-
crita por Fernando Arrabal, lançada recentemente, cujo título é “Um es-

124
Fala e escrita em questão.

cravo chamado Cervantes”. Segundo o texto, Arrabal conseguiu desven-


cilhar os pontos obscuros da vida de Cervantes, que sempre semeou pis-
tas falsas sobre sua história. Cabe ao leitor fazer a ligação entre os textos,
que se estabelece a partir do domínio de relevância, focalizado em rela-
ção a duas vidas devassadas por biografias reveladoras sobre aspectos
íntimos dos escritores retratados.
Sendo a estratégia de uso de digressões uma forma de argumenta-
ção, o aspecto comum entre os textos analisados está em buscar, na inte-
ração com o enunciatário, criar um jogo em que a informação deve ser
recebida, mas visando à formação de opiniões e mudança de atitudes.
No texto literário, a digressão foi até hoje pouco estudada e é me-
recedora de atenção especial. Entretanto, neste artigo, apenas farei uma
breve discussão do tema, dada a sua complexidade, deixando para um
outro momento uma abordagem mais específica.
No conto “O espelho” de Machado de Assis, publicado na obra
Papéis Avulsos, em 1882, há uma ocorrência bastante interessante: o
enunciador conta a história de “quatro ou cinco cavalheiros” que, numa
dada noite, debatiam “várias questões de alta transcendência, sem que
a disparidade dos votos trouxesse a menor alteração aos espíritos” (p.
345). Na verdade, os que debatiam eram quatro, pois o quinto homem,
chamado Jacobina, permanecia o tempo todo calado: “Não discutia
nunca; e defendia-se da abstenção com um paradoxo, dizendo que a
discussão é a forma polida do instinto batalhador, que jaz no homem,
como uma herança bestial; e acrescentava que os serafins e os querubins
não controvertiam nada, e aliás, eram a perfeição espiritual e eterna”
(p. 345).
No meio da noite, após discutirem muito sobre a natureza da
alma humana, um dos amigos pede a Jacobina alguma opinião. Este
diz que não irá discutir, somente aceita contar um caso de sua vida, em
que ressaltará “a mais clara demonstração acerca da matéria de que se
trata”, desde que todos permaneçam calados. Assim faz: afirma que
não há apenas uma alma, mas duas e passa a narrar um fato de sua
mocidade.

125
ANDRADE, Maria Lúcia da C. V. de O. A digressão como estratégia...

Bem ao estilo machadiano, há uma grande digressão que é a “es-


sência” ou núcleo temático do conto, por meio da qual se compreende
não só o título “O espelho”, como também o subtítulo da narrativa: “Esbo-
ço de uma nova teoria da alma humana”. Nas últimas linhas, o Jacobina 7,
narrador-personagem, do trecho digressivo diz:
“Cada dia, a uma certa hora, vestia-me de alferes, e sentava-me
diante do espelho, lendo, olhando meditando; no fim de duas, três horas,
despia-me outra vez. Com esse regímen pude atravessar mais seis dias
de solidão, sem os sentir...” (p. 352)
E a narrativa termina com a volta ao tópico prévio:
“Quando os outros voltaram a si, o narrador tinha descido as esca-
das” (p. 352). Em que há possivelmente um embricamento das vozes do
enunciador 1 (ou narrador-onisciente) e o enunciador 2 (ou narrador-
personagem Jacobina), construindo-se uma relação especular.
Segundo Lajolo (1980: 101), “a calma, o ritmo pausado com que
Machado nos faz entrar no mundo de suas personagens, a completa au-
sência de pressa na narração dos episódios são uma forma de distancia-
mento. As ações se desenrolam preguiçosamente e o narrador, volta e
meia, as interrompe para fixar a sua (e a nossa) atenção em elementos
circunstanciais e periféricos”.
O objetivo deste breve comentário sobre o conto “O espelho” não
foi discutir o elemento literário do texto, mas a interação estabelecida na
relação enunciador(es)-enunciatário e como o uso da digressão cria uma
economia na narrativa e um jogo na relação entre os enunciadores que
acaba refletindo, metalinguisticamente, o que é o ato enunciativo: o dis-
curso é a matéria do conto.

7
A relação do nome Jacobina (derivado do local que serviu de sede de um clube político
revolucionário fundado em Paris em 1789, ou seja, a biblioteca dos monges dominicanos
ou jacobinos) e o termo alma (que pode ser usado para traduzir o hebreu nefesh, signifi-
cando infeliz; ou na linguagem comum, reflete o complexo de idéias que remontam à
filosofia grega passada através do escolasticismo medieval) merece um estudo à parte, à
medida que cria uma relação entre o significado do nome da personagem, sua maneira de
ser e agir, bem como o que se mostra no espelho.

126
Fala e escrita em questão.

Considerações Finais

Embora alguns estudiosos questionem a existência da digressão


(cf. Koch: 1990), por meio das análises feitas, pôde-se observar que ela é
uma estratégia empregada pelo usuário da língua (oral ou escrita) com o
intuito de converter o “excesso” em algo que parece aflorar da ocasião
(elemento do contexto situacional) ou da necessidade (reforçar um argu-
mento, ilustrar ou preparar uma prova, esclarecer um enunciado, entre
outros), transformando-se em uma possibilidade para fazer emergir algo
que estava latente naquele ponto da atividade discursiva.
Concluindo, deve-se tomar a digressão como uma estratégia que,
dada a sua regularidade, permite a recriação de uma regra discursiva que
começou com Córax e passou por várias transformações, mas não per-
deu o seu caráter de elemento suspensivo e flutuante: excesso ou desvio
momentâneo que traz vivacidade ao jogo textual e permite um envolvi-
mento maior dos participantes. A propósito, as digressões realmente exis-
tem.

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127
ANDRADE, Maria Lúcia da C. V. de O. A digressão como estratégia...

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Revista Veja. São Paulo: ed. 1602, ano 32, n. 24, 16 de jun. de 1999.
Revista Veja. São Paulo: ed. 1617, ano 32, n. 39, 29 de set. de 1999.

128
Fala e escrita em questão.

A INFLUÊNCIA DA LÍNGUA FALADA NA


GRAMÁTICA TRADICIONAL

Marli Quadros Leite

Considerações iniciais

As perguntas que freqüentemente são formuladas acerca do que é


“certo” ou “errado” em português nos levam a refletir sobre a questão da
norma lingüística de modo geral e sobre a norma prescritiva (a norma da
gramática tradicional) de modo particular. O usuário da língua tem sem-
pre a preocupação de “falar bem” a sua língua, o que significa estar ali-
nhado com a prática lingüística dos grupos a que pertence e com o que
consegue aprender sobre a língua, seja por meio da observação da escri-
ta, seja por meio de metalinguagem.
É essa atitude lingüística que tem alimentado a indústria editorial
de publicações do tipo “não erre mais”, “1000 erros de português” etc. O
usuário, ao adquirir um volume como esses, tem a ilusão de que melho-
rará sensivelmente seu nível de linguagem em todas as situações de co-
municação e pensa resolver seus problemas lingüísticos, tanto em rela-
ção à modalidade falada, quanto à escrita. A primeira conseqüência da
leitura é tomar conhecimento de que eram “errados”, ou considerados
inexistentes na língua, muitos de seus usos, antes nem imaginados como
tal. A segunda é comentar com amigos e parentes as novidades lingüísti-
cas que aprendeu. A terceira pode ser descobrir que, se puser em prática,
de modo indistinto, muitas daquelas “recomendações”, vai-se sentir “um

129
LEITE, Marli Quadros. A influência da língua falada na gramática tradicional.

estranho no ninho”, em muitos momentos de interação. O que ocorre? A


norma prescrita nesses manuais não anda pari passu com a realidade
lingüística como um todo? A resposta é não, em muitos casos.
As regras da gramática normativa são extraídas de textos escritos
literários, de épocas anteriores à da descrição. Aquela norma, portanto,
jamais será integralmente praticada e os pontos de discordância entre o
que um usuário culto fala/escreve e o prescrito são exatamente os que
“saltam aos ouvidos e olhos” dos usuários e causam a sensação de des-
conforto, de haver “erro de português”. Em se tratando de norma culta,
as discordâncias existem, mas não são tantas e tamanhas a ponto de se
poder dizer que há duas organizações, duas gramáticas, a da língua prati-
cada e a da língua prescrita. A grande diferença entre elas é que a língua
praticada é um mecanismo multiforme que toma diferentes configura-
ções, quando posta em discurso, e a prescrita é uma entidade monolítica.
O objetivo deste trabalho é investigar na norma prescritiva, na
gramática tradicional, algumas mudanças provocadas pela força da reali-
dade falada da língua. Para comprovar a hipótese de que a norma dos
manuais de gramática são vagarosamente alteradas pela influência da
língua falada de cunho popular ou não, tomaremos como corpus de aná-
lise a Moderna Gramática Portuguesa (MGP), de autoria de Evanildo
Bechara, em suas duas versões, a primeira de 1961 e a segunda de 1999,
analisando, especificamente, dados referentes à morfologia.
A metodologia de trabalho será comparar os dois textos para apon-
tar mudanças, com especial atenção às “observações” e notas que quali-
ficam usos como “linguagem vulgar”, “linguagem coloquial”, “lingua-
gem familiar” etc., a fim de verificar se alguns passaram a ser incorpora-
dos à norma, sem qualificativos ou restrições, ou mesmo se há registros
de usos falados/escritos, que comprovam a mudança lingüística, ou do-
cumentam a passagem da variação à mudança.

1. Descrição do corpus
As duas versões da MGP são bem diferentes em alguns aspectos.
O próprio autor reconhece isso quando diz: “Amadurecido pela leitura

130
Fala e escrita em questão.

dos teóricos da linguagem, da produção acadêmica universitária, das


críticas e sugestões gentilmente formuladas por companheiros da mes-
ma área e da leitura demorada de nossos melhores escritores, verá facil-
mente o leitor que se trata aqui de um novo livro.” A maior diferença diz
respeito ao aproveitamento da teoria lingüística para a explicação dos
fatos da língua. Na primeira edição, o autor, somente em alguns pontos,
se aproveita dessa teoria para explicar certas regras; na segunda, o apro-
veitamento é farto. A presença da Lingüística se comprova desde a dedi-
catória: a 1ª edição é dedicada apenas a M. Said Ali e a segunda, é dedicada
tanto a este quanto a outros lingüistas, sobre os quais diz:

“Aos mestres e amigos

EUGENIO COSERIU
JOSÉ HERCULANO DE CARVALHO
J. MATTOSO CÂMARA JR.
a cujas lições fui colher o que de melhor existe nesta nova versão”.

A gramática de 1961, em sua época, foi inovadora e fez justiça ao


título. Como afirma o autor no prefácio, os leitores encontrariam ali “um
tratamento novo para muitos assuntos importantes que não poderiam
continuar a ser encarados pelo prisma que a tradição os apresentava”.
Isso se pode constatar no tratamento de alguns pontos, como, por exem-
plo, “Estrutura dos vocábulos”, em que se aproxima bem das idéias de
Mattoso Câmara Jr. (Bechara, 1983: 167-74). Talvez se possam citar tam-
bém as observações que faz sobre a colocação pronominal no item “Ex-
plicação da colocação dos pronomes átonos no Brasil” (op. cit., p. 329),
em que o autor adota uma posição mais flexível do que a da tradição
gramatical. Tanto relativamente a esses, quanto a outros casos, todavia, o
autor não se desliga completamente da tradição, como veremos adiante.
Para sentir a diferença existente entre as duas versões da Moderna
Gramática da Língua Portuguesa, contudo, não é preciso muito esforço,
basta ter contato físico com as duas: enquanto a primeira tem 374 páginas,
a segunda tem 669. O confronto do índice da primeira com o sumário da

131
LEITE, Marli Quadros. A influência da língua falada na gramática tradicional.

segunda também fornece dados suficientes para a visualização da diferen-


ça entre elas. Para que o nosso leitor possa ter idéia do que se fala, apresen-
taremos um quadro comparativo do índice/sumário das duas versões da
MGP 1:

1ª versão 2ª versão
Índice Sumário
Prefácio Prefácio da 37ª edição
Prefácio da 1ª edição
Introdução [03 páginas] Introdução [33 páginas]
Que é uma língua? A) Linguagem: suas dimensões univer-
A língua é um fenômeno cultural sais
Modalidades de uma língua: língua B) Planos e níveis da linguagem como
falada e língua escrita atividade cultural
Língua geral e língua regional C) Língua histórica e língua funcional
Objeto da Gramática D) Sistema, norma, fala e tipo lingüístico
Divisão da Gramática E) Propriedades dos estratos de
Partes da Gramática estruturação gramatical
Objeto da Estilística F) Dialeto – Língua comum – Língua
exemplar: Correção e exemplaridade.
Gramáticas científicas e gramática
normativa. Divisões da gramática e
disciplinas afins. Lingüística do texto.
I – Fonética e Fonêmica I – Fonética e Fonologia
II – Morfologia II – Gramática descritiva e normativa:
A) Classes de vocábulos as unidades do enunciado
1 – Substantivo A) Formas e funções
2 – Adjetivo 1 – Substantivo

1
Por questão de espaço, apresentaremos apenas os itens principais do índice e do sumário.

132
Fala e escrita em questão.

3 – Artigo 2 – Adjetivo
4 – Pronome 3 – Artigo
5 – Numeral 4 – Pronome
6 – Verbo 5 – Numeral
7 – Advérbio e os denotativos 6 – Verbo
8 – Preposição 7 – Advérbio
9 – Conjunção 8 – Preposição
10 – Interjeição 9 – Conjunção
B) 1 – Estrutura dos vocábulos 10 – Interjeição
2 – Formação de palavras B) Estrutura das unidades: análise mórfica
III – Sintaxe 1 – Estrutura das palavras
A) Noções gerais 2 – Formação de palavras do ponto
B) O período simples de vista constitucional
C) O Núcleo 3 – Estudo estrutural do léxico: a lexemática
1 – Termos essenciais da oração 4 – Formação de palavras do ponto de
2 – Tipos de predicado verbal vista do conteúdo
3 – Constituição do predicado verbal 5 – Alterações semânticas
4 – Complementos nominais C) Estrutura do enunciado ou período.
5 – Adjunto: seus tipos A oração e a frase
6 – Agente da passiva 1 – A oração: funções oracionais
7 – Aposto: seus tipos 2 – Orações complexas e grupos oracionais:
8 – Vocativo A subordinação e a coordenação.
A) O período composto A justaposição
1 – Orações independentes e dependentes 3 – As chamadas orações reduzidas
2 – Oração principal 4 – As frases: enunciados sem
3 – Interrogação direta e indireta núcleo verbal
4 – Orações coordenadas conectivas 5 – Concordância
5 – Orações intercaladas 6 – Regência

133
LEITE, Marli Quadros. A influência da língua falada na gramática tradicional.

6 – Orações subordinadas 7 – Colocação


7 – Orações reduzidas Apêndice:
E) Sintaxe das classes de palavras 1 – Figuras de sintaxe
1 – Emprego do artigo 2 – Vícios e anomalias de linguagem
2 – Emprego do pronome
3 – Emprego do verbo
4 – Emprego de preposições
5 – Concordância
6 – Regência
Apêndice:
1 – Figuras de sintaxe
2 – Vícios e anomalias de linguagem
IV – Pontuação III – Pontuação
V – Semântica —
VI – Noções elementares de estilística IV – Noções elementares de estilística
VII – Noções elementares V – Noções elementares de versificação
de versificação

O índice da primeira edição mostra uma organização mais tradi-


cional, em que, depois de uma pequena introdução sobre conceito de
língua e sua divisão em modalidades, e sobre conceituação de gramática
e suas partes, dentro da perspectiva tradicionalista, o autor trabalha com
a seguinte ordem: 1. Fonética e Fonêmica; 2. Morfologia; 3. Sintaxe; 4.
Pontuação; 5. Semântica; 6. Noções elementares de estilística; e 7. No-
ções elementares de versificação. Já na segunda versão, há outra postura
em relação a tal divisão, pois o autor trata de: 1. Fonética e Fonologia; 2.
Gramática Descritiva e Normativa; 3. Pontuação; 4. Estilística (noções)
5. Versificação (noções). Em ambos os casos, a divisão das partes da
gramática revela a postura do autor frente ao objeto gramática. A segun-
da edição indica que a atitude primeira de isolar morfologia e sintaxe foi
revista, e esses níveis de análise passaram a integrar o que o autor con-

134
Fala e escrita em questão.

sidera efetivamente gramática, já que foram os únicos denominados “gra-


mática descritiva e normativa”. Os demais, incluindo a Fonologia, fica-
ram à margem do que fica entendido como gramática.
Adiante comentaremos algumas diferenças mais evidentes, sob o
ponto de vista do tema que nos interessa neste artigo: a força da realidade
lingüística na mudança da norma prescritiva. Para tanto, nossa base teó-
rica será a da teoria da mudança de Keller (1994), a da gramaticalização
de Hopper & Traugott (1994), a da gramatização de Auroux (1988) e a
das teorias da norma de Coseriu (1987) e Aléong (1983).

2. Fundamentação teórica

É lugar-comum a afirmação de que é próprio à língua mudar, evo-


luir. Auroux (1992), por exemplo, diz que a mudança é um processo tão
natural das línguas vivas que, se não existir, a língua não será mais língua
viva. Portanto, o raciocínio é simples, o uso leva a variações e estas às
mudanças: língua viva = mudança constante, inovações, dinamismo; lín-
gua morta = conservação, paralisação, estatismo.
Não faltam, porém, aqueles que se insurgem contra a variação da
língua. Para esses, a língua é entendida como uma entidade monolítica,
cuja única face é aquela descrita nos manuais de gramática tradicional e
nos dicionários. Sob esse ponto de vista, a língua tem apenas uma possibi-
lidade de realização, e as divergências a tal possibilidade são “erros cras-
sos” 2. Fica a impressão, pelos comentários feitos, de que essa norma da
gramática prescritiva é imutável. Isso, porém, não é verdade, como de-
monstraremos por meio de exemplos extraídos do próprio texto normativo.

2
Veja-se, por exemplo, o que diz Niskier (1999): “(...) pode-se registrar o fato, facilmente
comprovável, de que nunca se escreveu e falou tão mal o idioma de Rui Barbosa. (...)
Novas formas de regência verbal são adotadas e, também, por influência do economês,
todos ‘oportunizam’, ‘absolutizam’, ‘otimizam’, ‘a nível’ disto e daquilo, e ‘colocam’

135
LEITE, Marli Quadros. A influência da língua falada na gramática tradicional.

Como Coseriu (1987: 74), entendemos que a norma 3 é “a realiza-


ção do sistema” e que “a norma é, com efeito, um sistema de realizações
obrigadas, de imposições sociais e culturais, e varia segundo a comuni-
dade.” Há, portanto, normas (no plural) variadíssimas que se compatibi-
lizam no seio de uma comunidade lingüística 4.
Em geral, há para as línguas, que têm escrita, uma descrição de
uma dessas normas, a qual tanto passa a ter o valor de “bom, belo e
certo”, quanto a constituir-se como regra para o “bem falar e escrever”.
A esse processo de descrição Auroux (1992: 08) chama gramatização:

“O Renascimento europeu é o ponto de inflexão de um processo que


conduz a produzir dicionários e gramáticas de todas as línguas do mundo
(e não somente dos vernáculos europeus) na base da tradição greco-
latina. Esse processo de ‘gramatização mudou profundamente a eco-
logia da comunicação humana e deu ao ocidente um meio de conheci-
mento / dominação sobre as outras culturas do planeta. Trata-se pro-
priamente de uma revolução tecnológica que não hesito em considerar
tão importante para a história da humanidade quanto a revolução In-
dustrial do século XIX.” (Grifos nossos)

Como diz Auroux (op. cit.), a gramatização “constitui – depois do


advento da escrita no terceiro milênio antes da nossa era – a segunda
revolução técno-lingüística.” Esse não é um fato a ser desprezado, mas,
perguntas e dúvidas, ‘enquanto’ alunos... (...) Para que estudar verbos irregulares, se é
mais fácil dizer ‘interviu’ ou ‘manteu’ ou, ainda, descobrir outras utilidades para o ‘aliás’
e o ‘inclusive’? E o triste ‘houveram’? Os chamados anglicismos estão, entre nós, nacio-
nalizados e incorporados ao dicionário por transformação semântica ou morfológica: bife,
clube, bonde, dólar, iate, teste não agridem mais a língua nacional. (...) A conclusão é que
se deve cuidar dessa matéria de forma inteligente, sem patriotadas, mas com objetivida-
de, no sentido de valorizar o idioma de Machado de Assis e de Fernando Pessoa. Se a
nossa pátria é a língua portuguesa, por que não cuidar bem dela? ”
3
Um estudo mais detido sobre o problema da norma e uso lingüístico aparece nos volumes
dois e três desta série.
4
De acordo com Halliday (1974: 100), “a comunidade lingüística é um grupo de homens
que se consideram a si mesmos falar a mesma língua.”

136
Fala e escrita em questão.

depois do aparecimento da Lingüística como disciplina científica, desde


o início do século, depois da difusão das idéias de Saussure, a norma
prescritiva, antes exageradamente prestigiada, virou tabu, e os lingüistas
julgaram que não era matéria de estudo e análise. Ora, esse é um erro tão
grande quanto o de atribuir a essa norma hegemonia sobre as demais. Se
os cientistas da linguagem não se ocupam do assunto, ele fica entregue
aos professores de língua e aos gramáticos que, em geral, não têm visão
global sobre o fenômeno da linguagem e, por isso, entendem que a nor-
ma prescritiva é a própria língua 5. Aléong (1983: 277) reconhece tal
equívoco quando afirma:

“É fato que a Lingüística, depois do início do século vinte, deixou o


problema da correção da língua aos gramáticos e aos professores de
língua.”

Com isso, não queremos dizer que o lingüista deve chamar a si o


papel de codificador das regras da “boa linguagem”, mas que a ele com-
pete também analisar a estrutura e formação da norma explícita, as suas
transformações, com o mesmo cuidado e preocupação que tem ao estu-
dar as transformações das normas implícitas. Afinal, a norma prescritiva
não é a língua, mas uma de suas descrições, diferente das demais, pois é
a única que carrega juízos de valor (“o bom, belo e correto”) e que se
presta ao ensino 6. Além disso, mesmo o lingüista não vendo nela, por
esses motivos, muita relevância, é importante para o usuário comum, por

5
Não nos referimos aqui ao autor da MGP, Prof. Evanildo Bechara, que antes de tudo é um
lingüista. A MGP, que ora analisamos é uma prova disso, pois desde a 1ª edição inova,
como já dissemos, incorporando dados da realidade da língua e oferecendo tratamento
diferenciado sobre muitas questões de língua, e também porque a 37ª edição incorpora
significativamente a teoria lingüística, especialmente a funcionalista, de Eugenio Coseriu,
para explicar o funcionamento da língua.
6
Usamos aqui a terminologia de Aleóng (1983), para quem norma explícita é a norma da
gramática tradicional e normas implícitas são as normas relativas ao uso da língua em
todas as suas variedades regionais / sociais e situacionais. Neste trabalho, usamos tam-
bém o termo norma prescritiva no mesmo sentido de norma explícita.

137
LEITE, Marli Quadros. A influência da língua falada na gramática tradicional.

funcionar como um parâmetro para a realização culta da língua. Ao lin-


güista, então, pode caber, por exemplo, verificar essa descrição para, por
meio de comparações, análises, comentários e discussões oferecer algu-
ma contribuição ao gramático.
Em termos, este é um estudo que pretende, de algum modo, con-
tribuir para esse processo, já que visa a pôr em relevo certos problemas
de gramaticalização, só que a partir da verificação do registro de formas
pela norma prescritiva. A diacronia da norma mostra o aproveitamento
de usos antes não aceitos, se aparecem registrados sob certas designa-
ções restritivas, tais como: linguagem vulgar, linguagem coloquial, lin-
guagem familiar etc., que, depois, na progressão do tempo, passam a
fazer parte do corpo da norma, sendo introduzidos por expressões como:
no português moderno diz-se (...), modernamente usa-se (...) etc. Com
efeito, essa metalinguagem pode mostrar que não seria descabido proce-
der a atualizações do texto normativo com maior freqüência.
O processo da gramaticalização (ou gramaticização) pode ser en-
tendido a partir de dois pontos de vista diferentes:

“Uma delas é histórica, que investiga as origens das formas gramati-


cais e dos caminhos típicos da mudança que as afeta. Sob essa pers-
pectiva, gramaticalização é usualmente tomada como um subconjunto
das mudanças lingüísticas pelo qual um item lexical em certos usos
torna-se um item gramatical, ou pelo qual um item gramatical torna-
se mais gramatical. A outra perspectiva é mais sincrônica, vendo a
gramaticalização como primariamente um fenômeno discursivo, prag-
mático e sintático, a ser estudado a partir do ponto de vista dos fluidos
padrões da língua em uso.” (Hopper e Traugott, 1994: 2)

A segunda perspectiva se enquadra em nosso objetivo de verificar


na norma prescritiva a influência que o uso da língua exerce sobre ela, a
ponto de, ao longo de algum tempo, provocar uma mudança.
Como explicam os autores, uma forma gramaticalizada é aquela
que, sendo primariamente uma “palavra de conteúdo” passa depois a

138
Fala e escrita em questão.

assumir características gramaticais. Uma classificação preliminar de for-


mas gramaticais, apresentada pelos autores, engloba:

a) as preposições – palavras gramaticais com relativa indepen-


dência fonológica;7
b) morfemas derivacionais;
c) clíticos;
d) flexões;
e) perífrases e formas afixadas.

O método de estudo da gramaticalização, a partir do ponto de


vista histórico, leva em conta o caminho que uma forma percorre na
mudança de uma categoria a outra. Do ponto de vista sincrônico, esse
caminho (cline) é visto como um contínuo, “uma organização de formas
ao longo de uma linha imaginária ao fim da qual está uma forma comple-
ta de algum tipo, talvez ‘lexical’, e na outra ponta uma forma compactada
e reduzida, talvez ‘gramatical’.” A representação desse contínuo (cline
of grammaticality) é:

Palavra de conteúdo > palavra gramatical > clítico > morfema


derivacional
(Op. cit., p. 07)

7
Hopper & Traugott (1994: 04) falam também sobre a independência sintática das prepo-
sições do inglês que podem atuar no fim de uma oração sem uma frase nominal, o que
não é normal em português. Se bem que, em certas circunstâncias, quando há intenção de
elidir uma oração, a preposição pode aparecer isolada no final da frase, criando um efeito
de sentido de tensão acerca do que se diz. É o que faz Mário de Andrade em Amar Verbo
Intransitivo, por exemplo, quando num momento de tensão Sousa Costa tem de explicar
à Dona Laura exatamente qual era a tarefa de Fräulen naquela casa, e termina ofendendo
a acusada:
“– Mas Fräulen não tive a intenção de!” (Andrade, 1944: 78) (Grifamos)

139
LEITE, Marli Quadros. A influência da língua falada na gramática tradicional.

Em português, só para ilustrar, podemos lembrar o contínuo da pa-


lavra mente, gramaticalizada como sufixo derivacional, formador de ad-
vérbios de modo. Veja-se o que diz Ali (1964: 230) sobre essa passagem:

“1130. Que mesmo na derivação sufixal nem sempre é fácil determinar


a linha que a separa do processo de composição, vê-se pelo histórico
dos advérbios em –mente. Enquanto em latim só se usaram dizeres
como fera mente, bona mente (ou feramente, bonamente, pois se pro-
nunciariam ligando as palavras), em que se combinavam os substanti-
vos com qualificativos adequados à sua significação, o processo em
vigor era, quando muito, a composição, formavam-se palavras com-
postas. Desde porém que com igual facilidade puderam vogar combi-
nações como rapidamente, recentemente, já a palavra mente tinha per-
dido a significação e valor substantivo e, de termo componente, passa-
va a funcionar como sufixo criador de advérbios.”

Esse exemplo serve aqui apenas para comprovar com um fato,


dentre outros tantos, a existência da mudança lingüística, sempre tão re-
jeitada pelos usuários de uma dada sincronia. Nosso estudo não diz res-
peito à explicação dessa mudança, mas a sua verificação no corpo do
manual normativo que, em última instância, pode indicar certo conserva-
dorismo lingüístico.
Segundo Keller (1994: 05), as mudanças na língua não decorrem,
como se pensa correntemente, necessária e suficientemente das mudan-
ças do mundo. A necessidade de comunicação e a intenção de os homens
exercerem influência uns sobre os outros são decisivas para isso. O pró-
prio autor afirma que as razões da inexorável mudança lingüística ainda
não foram descobertas, mas que uma teoria da mudança é, também e ao
mesmo tempo, uma teoria das funções e princípios da comunicação.
O problema da mudança da língua implica o exercício do “pessi-
mismo cultural”. Isso ocorre porque o usuário não tem intenção, nem
planos, para promover as mudanças e, também, não tem consciência de
que elas existem natural e independentemente de sua vontade. Por isso, o
usuário tende a achar que a perfeição se encontra em estágios anteriores

140
Fala e escrita em questão.

da língua, isto é, os estágios descritos nos manuais como a “língua corre-


ta”, por meio de exemplos da literatura. Esses, então, passam a constituir
o foco de resistência da mudança.
Nossa premissa neste trabalho é a de que mesmo esses focos con-
servadores não resistem às mudanças que, ao longo do tempo, precisam
não somente ser registradas, mas também assimiladas. Passemos, então,
à verificação de algumas ocorrências de mudanças no texto gramatical
de Bechara (1961 e 1999).

3. Mudança lingüística no texto prescritivo

Analisaremos alguns exemplos de mudança registrados na Mo-


derna Gramática Portuguesa. Antes de tudo, cabe dizer que, embora a
MGP seja uma “gramática tradicional” o autor procurou tratar da descri-
ção da realidade lingüística na sua modalidade culta escrita. É o que o
termo descritiva posto ao lado de normativa indica. Além disso, o adje-
tivo descritiva também diz respeito ao aproveitamento da teoria lingüís-
tica para explicação dos temas tradicionalmente tratados na gramática
normativa. Essa é uma grande diferença entre as duas versões da MGP: a
presença significativa da teoria lingüística para a explicação de muitos
fenômenos da língua. Esse fato faz a gramática selecionar um leitor mais
exigente e talvez seja possível dizer que essa é uma edição voltada para o
ensino superior, para os alunos de Letras ou Lingüística.
Como nesse artigo não temos o objetivo de resenhar a MGP, dei-
xaremos de lado os comentários sobre a Gramática como um todo para
nos fixarmos nos pontos em que há indicações da presença da língua
falada, coloquial ou popular, ou, ainda, do uso não padrão da língua, que
leva a alterações na norma tradicional.
No âmbito da morfologia, a descrição da flexão de gênero eviden-
cia a presença do uso na norma prescritiva. Assim, Bechara (1999: 133)
inicia a abordagem sobre o gênero com o subtítulo “Inconsistência do
gênero gramatical”, explicando, de saída:

141
LEITE, Marli Quadros. A influência da língua falada na gramática tradicional.

“A distinção do gênero nos substantivos não tem fundamentos racio-


nais, exceto a tradição fixada pelo uso e pela norma (...).
A inconsistência do gênero gramatical fica ainda mais patente quando
se compara a distribuição de gênero em duas ou mais línguas, e até no
âmbito de uma mesma língua histórica na sua diversidade temporal,
regional, social e estilística. (...)
Na variedade temporal da língua, do português antigo ao contempo-
râneo, muitos substantivos passaram a ter gêneros diferentes, alguns
sem deixar vestígios, outros como mar, hoje masculino, onde o antigo
gênero continua presente em preamar (prea = plena, cheia) e baixa-
mar”. (Grifo nosso)

O reconhecimento desse fenômeno ainda leva o autor a listar mais


algumas palavras, antes usadas com gênero diferente do praticado hoje,
por exemplo: antes femininos – fim, cometa, mapa, tigre, fantasma; an-
tes masculinos – árvore, tribo, catástrofe, hipérbole, linguagem, linha-
gem. (Op. cit., p. 134)
As necessidades de comunicação impostas pela vida moderna,
consoante idéia de Keller (1994), impõem alterações na norma. Isso está
registrado no texto normativo em exame:

“A presença cada vez mais justamente acentuada da mulher nas ativi-


dades profissionais que até bem pouco tempo eram exclusivas do ho-
mem tem exigido que as línguas – não só o português – adaptem seu
sistema gramatical a estas novas realidades. Já correm vitoriosos faz
muito tempo femininos como mestra, professora, médica, advogada,
engenheira, psicóloga, juíza, entre tantos outros. (Sublinhamos)

Como para o nosso objetivo é de fundamental importância ressal-


tar a força da realidade de certos usos da língua nesse tipo de texto, deve-
mos continuar as citações para comprovar nossa hipótese. Assim, pros-
segue dizendo Bechara (1999: 134):

142
Fala e escrita em questão.

“As convenções sociais e hierárquicas criaram usos particulares que


nem sempre são unanimemente adotados na língua comum. Todavia já
se aceita a distinção, por exemplo, entre a Cônsul (= senhora que diri-
ge um consulado) e a Consulesa (= esposa do Cônsul), a Embaixadora
(= senhora que dirige uma Embaixada) e Embaixatriz (= esposa do
Embaixador). Já para senador vigoram indiferentemente as formas de
feminino senadora e senatriz para a mulher que exerce o cargo políti-
co ou para a esposa do senador, regra que também poucos gramáticos
e lexicógrafos estendem a consulesa e embaixatriz.” (Sublinhamos)

Os comentários do autor permitem entender que a gramática aco-


lhe os usos contrários à norma prescritiva anterior, como, por exemplo, o
do emprego da palavra senadora para os dois casos citados. Essa é uma
influência do uso real, global, da língua. Essas explicações não figuram
no texto da antiga versão da MGP.
Nas duas versões da MGP, as referências ao usos da forma
gramaticalizada a gente, e ao emprego da forma de tratamento você, que
se vai gramaticalizando como pronome pessoal ao lado de tu, de largo
emprego em quase todas as normas do português do Brasil, exceção para
falantes de alguns estados brasileiros 8 em se que usa o tu, ainda apare-
cem com restrições. O texto é idêntico em ambos os casos, mas, mesmo
assim, digno de nota por registrar, ainda que sob a rubrica observações,
um uso real da língua que vai de encontro à norma prescritiva. Diz o
texto:

“3.ª) Você, hoje usado familiarmente, é a redução da forma de reve-


rência Vossa Mercê. Caindo o pronome vós em desuso, só usado em
orações de estilo solene, emprega-se vocês como plural de tu.

8
Cunha & Cintra (1985: 284) dizem: “No português do Brasil o uso do tu restringe-se ao
extremo Sul e a alguns pontos do Norte, ainda não suficientemente delimitados. Em qua-
se todo o território brasileiro, foi ele substituído por você como forma de intimidade. Você
também se emprega fora do campo da intimidade, como tratamento de igual para igual ou
de superior para inferior.”

143
LEITE, Marli Quadros. A influência da língua falada na gramática tradicional.

4.ª) O substantivo gente, precedido do artigo a em referência a um


grupo de pessoas em que se inclui a que fala, ou a esta sozinha, passa
a pronome e se emprega fora da linguagem cerimoniosa. Em ambos os
casos o verbo fica na 3.ª pessoa do singular.”

Pesquisas recentes 9 têm mostrado o processo de gramaticalização


da expressão nominal a gente e, conseqüentemente, seu emprego em
situações de comunicação não somente familiar ou coloquial, como re-
gistra a norma prescritiva, tradicional.
Ainda no capítulo dos pronomes, há alguns fatos que merecem
destaque. O primeiro ponto refere-se ao emprego do pronome pessoal
reto em vez do oblíquo em “coordenações de pronomes ou com um subs-
tantivo introduzidos pela preposição entre: entre eu e tu (por entre mim e
ti); entre eu e o aluno, entre José e eu ” (p. 173).
Na primeira versão da MGP, Bechara não toca nesse emprego,
mas na segunda diz:

“Já há concessões de alguns gramáticos quando o pronome eu ou tu


vem em segundo lugar:
Entre ele e eu. Entre o José e eu.
A língua exemplar insiste na lição do rigor gramatical, recomendan-
do, nestes casos, o uso dos pronomes oblíquos tônicos:
Entre mim e ti. Entre ele e mim.
Um exemplo como Entre José e mim dificilmente sairia da pena de um
escritor moderno.” (Ib.)

Nessa passagem fica evidente que o uso tem forçado o emprego


das formas retas e, possivelmente, estas venham a se gramaticalizar na
posição. O comentário do autor sobre a escolha que um escritor moderno
faria nesse caso é uma indicação clara da normalidade do emprego da

9
Por exemplo, Omena, N. P. de & Braga, M. (1996); Leite, M. Q. (1999).

144
Fala e escrita em questão.

expressão com o pronome reto. Cunha e Cintra (1985: 290) também


registram esse emprego e assim se pronunciam sobre a questão:

Observações:
(...)

2.ª) A tradição gramatical aconselha o emprego das formas oblíquas


tônicas depois da preposição entre. (...) Na linguagem coloquial predo-
mina, porém, a construção com as formas retas, construção que se vai
insinuando na linguagem literária.”

Em passagem como essas, o próprio texto normativo indica as


tendências de usos, discrepantes da norma prescritiva em vigor, que dei-
xam no texto normativo marca da realidade lingüística falada ou escrita.
A lição de Bechara (1961 e 1999) quanto ao emprego do pronome
se na construção reflexiva é inovadora. Na versão de 61, o autor arrola as
três funções do se (sujeito de infinitivo; objeto direto – com verbo transi-
tivo direto na voz reflexiva; objeto indireto – com verbo transitivo indi-
reto na voz reflexiva, ou com verbo acompanhado de dois complemen-
tos) e as faz seguir dos comentários do filólogo Martins de Aguiar, se-
gundo o qual tanto a sintaxe de exemplos como Vende-se casas quanto a
de Vendem-se casas está correta porque, explica, há aí uma evolução
lingüística que implicou o contínuo (cline)

“Reflexivo → passivo → indeterminador”


(Bechara, 199: 178)

Na primeira versão da MGP, p. 329, Bechara deixa completamen-


te a palavra para Martins de Aguiar, simplesmente transcrevendo toda a
explicação que o autor dá sobre o problema. Encarar esse problema so-
bre tal ponto de vista é uma posição sem dúvida inovadora no seio de
uma gramática normativa. Vejamos a lição de Martins de Aguiar adotada
na MGP:

145
LEITE, Marli Quadros. A influência da língua falada na gramática tradicional.

“Vende-se casas e frita-se ovos são frases de emprego ainda antilite-


rário, apesar da multiplicidade de exemplos. A genuína linguagem li-
terária requere vendem-se e fritam-se. Mas ambas as sintaxes são cor-
retas, e a primeira não é, como fica demonstrado, modificação da se-
gunda. São apenas dois estádios diferentes de evolução. (...)”

Na segunda edição da MGP, o autor explicita sua opinião sobre o


problema, referindo-se ao “falante”. Leiamos o trecho (op. cit., p. 178):

“(...) o se como índice de indeterminação do sujeito – primitivamente


exclusivo em combinação com verbos não acompanhados de objetos
direto – estendeu seu papel aos transitivos diretos (onde a interpreta-
ção passiva passa a ter uma interpretação impessoal: Vendem-se ca-
sas = ‘alguém tem casa para vender’) e de ligação (É-se feliz). A pas-
sagem deste emprego da passiva à indeterminação levou o falante a
não mais fazer concordância, pois o que era sujeito passou a ser en-
tendido como objeto direto, função que não leva a exigir o acordo com
o verbo.” (Sublinhamos)

Essa opinião do autor sobre o uso do verbo transitivo direto no


singular com sujeito plural usado como objeto direto é um dado de reco-
nhecimento de uma prática lingüística, mas fica ambíguo se é um uso
permitido ou não na norma culta. O que é patente em ambos os casos é
que esse é um dado real da língua, com força suficiente para aparecer no
texto da norma prescritiva.
Ainda no que se refere a pronomes, a MGP de 99 registra uma
sintaxe, talvez já gramaticalizada na língua falada, que não é citada na
versão de 61. É o caso do relativo que, o qual, pela tradição, seria regido
de preposição, mas na atualização efetiva da língua o usuário “corta” a
preposição 10. O registro desse fato no texto prescritivo é tão inovador,
que os pesquisadores que lidam com a questão ainda nem imaginam que
ele já possa aparecer no texto normativo. Pesquisas recentes, como a de
10
Veja-se sobre o problema, Tarallo (1983).

146
Fala e escrita em questão.

Morais (1999), por exemplo, ainda afirmam que “(...) os manuais de


gramática nem sequer mencionam a existência das estratégias de relati-
vização diferentes da estratégia padrão.” São estas as palavras de Bechara:

“Relativo universal – na linguagem coloquial e na popular pode apa-


recer o pronome relativo despido de qualquer função sintática, como
simples transpositor oracional. A função que deveria ser desempenha-
da pelo relativo vem mais adiante expressa por um substantivo ou pro-
nome precedido de preposição. É o chamado relativo universal que,
desfazendo uma complicada contextura gramatical, se torna um ‘ele-
mento lingüístico extremamente prático’.
Ali vai o homem que eu falei com ele.
Por
Ali vai o homem com quem eu falei.” (Op. cit. 201)

O estudo do verbo nas duas edições da MGP é bem diferente. A


primeira traz apenas uma descrição tradicional dessa classe de palavra 11, e
a segunda, antes de entrar na descrição tradicional, apresenta um estudo
funcional das categorias verbais. O que nos interessa no momento, porém,
são as observações sobre os usos modernos que aparecem nessa última.
A primeira observação relativa à realidade da língua dentro desse
assunto diz respeito à ausência do agente da passiva em certos contextos.
Na primeira versão da MGP, o autor afirma, sobre o emprego da voz
passiva analítica:

“A passiva analítica difere da passiva pronominal em dois pontos:


(...)
2) pode seguir-se de uma expressão que denota o agente da passiva,
enquanto a pronominal, no português moderno, a dispensa obrigato-
riamente.

11
Exceção feita à descrição da morfologia do verbo, que está conforme a teoria estruturalis-
ta.

147
LEITE, Marli Quadros. A influência da língua falada na gramática tradicional.

Eu fui visitado pelos parentes.


Aluga-se a casa (não se diz aluga-se a casa pelo proprietário). (Op.
cit., p. 09)

Na segunda versão, o assunto é tratado diferentemente no que diz


respeito à explicação da voz passiva. Nessa, o autor se preocupa um
pouco mais com a distinção existente entre as vozes passiva e reflexiva,
também enfatizando a diferença entre passiva e passividade verbal. En-
tão, sobre o que vimos dizendo, o autor distingue:

“A voz passiva difere da reflexiva de sentido passivo em dois aspectos:


1) (...)
2) pode seguir-se de uma expressão que denota o agente da passiva,
enquanto a reflexiva, no português contemporâneo, dispensa: (...)”
(Grifamos)

Note-se que, na versão de 99, a qualificação do português atual


passa a contemporâneo e não moderno como na anterior, qualificativo
que podia fazer pensar ser característica da língua usada do séc. XVI
para cá 12. Esse pormenor marca um dado da norma contemporânea do
português em confronto com uma outra diferente, antiga. É uma com-
provação de que a língua praticada efetivamente muda a norma
prescritiva.
Ainda sobre verbo, as duas versões da MGP divergem quanto à
descrição dos auxiliares modais (de) + infinitivo. Assim, então, Bechara
explica o seguinte nas duas edições:

“Em vez de ter ou haver de + infinitivo, usa-se ainda, mais


modernamente, ter ou haver que + infinitivo: tenho que estudar. (...)”

12
Cf. Lausberg (1974: 36).

148
Fala e escrita em questão.

O autor acrescenta à versão de 61 uma segunda observação relati-


va a esse assunto, explicando um uso desses verbos modais acompanha-
dos de preposição e infinitivo, que se vai gramaticalizando, pelo sentido
diferenciado que adquire. Assim, diz ele:

“Muitas vezes no Português contemporâneo não é indiferente o senti-


do da expressão com preposição ou sem ela: Deve resultar exprime
certa precisão de resultado; deve de resultar traduz a probabilidade do
resultado.” (MGP, 1999, p. 232)

O reconhecimento do uso corrente, depois da normalidade de cer-


tos empregos, leva Bechara a, em alguns casos, desautorizar a tradição
em benefício da realidade da língua. Por exemplo, no capítulo das prepo-
sições faz uma observação sobre o uso da preposição em, nas expressões
tais como General em chefe, Ferro em brasa, Imagem em barro, Gravu-
ra em aço, antes condenada por galicismo, nos seguintes termos:

OBSERVAÇÃO: Tem-se, sem maior exame, condenado este emprego


da preposição em como galicismo. Tem-se também querido evitar a
expressão em questão, por se ter inspirado em modo de falar francês;
mas é linguagem hoje comuníssima e corrente nas principais línguas
literárias do mundo.” (MGP, 1999, p. 316) (Sublinhamos)

É interessante observar os argumentos do gramático quando é pre-


ciso explicar um problema como esse. Claro está que o emprego da pre-
posição em expressões como as supracitadas foram consagradas pela
adoção e uso em tais contextos o que, depois, as consagrou como nor-
mais na língua, quer na modalidade escrita ou falada, nos registros for-
mais ou informais. Nesse caso, não resta outra alternativa ao gramático
sensível aos fatos da língua senão o reconhecimento da existência da
expressão. Vale notar a observação de Bechara, a fim de justificar sua
opção, ao uso desse tipo de expressão “nas principais línguas literárias
do mundo”. Talvez se possa dizer que esse não seja um argumento pró-

149
LEITE, Marli Quadros. A influência da língua falada na gramática tradicional.

prio para justificar um uso vernáculo, mas é válido e pode ser tomado
como princípio explicativo para a justificação da novidade nesse campo
tão inóspito a inovações. E elas existem, como estamos percebendo.
Ainda no terreno das preposições, vêem-se outros aproveitamen-
tos da realidade lingüística. No que tange ao emprego da preposição por
(e per), observamos o seguinte:

“(...)
m) depois de nomes que exprimem disposição ou manifestação de dis-
posição de ânimo para alguma coisa:

‘A paixão pelo jogo pressupõe ordinariamente pouco amor pelas le-


tras’ [MM].

OBSERVAÇÃO: Não procede mais o ter-se como errônea a constru-


ção com por, nestes casos porque, no português contemporâneo, o uso
de de se especializou no sentido de genitivo objetivo. No português de
outros tempos, amor de Deus era tanto o que consagramos a ele (genitivo
objetivo) ou o que ele tem, o que nos consagra (genitivo subjetivo). Em
lugar de amor pelas letras diz-se também corretamente amor às letras.
(...). (p. 318) (Sublinhamos)
(...)
o) introduzindo o predicativo do objeto direto, denota qualidade, esta-
do ou conceito em que se tem uma pessoa ou coisa:

Ter alguém por sábio. Enviou alguém por embaixador. Tenho por certo
que ele virá.

OBSERVAÇÃO: Neste emprego pode ser substituída pela preposição


como, apesar da crítica injusta dos puristas.” (p. 319) (Sublinhamos)

Ressalte-se que, em ambos os casos, a lição das observações é a


que realmente descreve a língua praticada, mas a barreira da tradição é

150
Fala e escrita em questão.

muito alta, e fatos como esse perduram marginalmente por muito tem-
po.
No capítulo das conjunções, o autor da MGP introduz algumas
novidades, no âmbito do texto normativo, referentes à conceituação des-
sa classe de palavra, por estabelecer diferenças entre conector (a conjun-
ção coordenativa) e transpositor (a conjunção subordinativa). Essa posi-
ção leva-o ao seguinte: as conjunções coordenativas são apenas três:
aditivas, adversativas e alternativas. As explicativas e as conclusivas,
segundo anuncia, são representadas por unidades adverbiais (pois, logo,
entretanto, não obstante etc.) que têm comportamento sintático diferente
dos conectores. Nesse grupo incluem-se alguns itens lexicais antes tidos,
inclusive pelo próprio Bechara (1983: 161-62), como conjunções
adversativas, tais como: contudo e todavia. Nas duas versões da gramá-
tica, porém, o autor faz certas observações que vêm ao encontro de nosso
objetivo de estudo. No que toca às conjunções causais, por exemplo, se
de um lado abona uma expressão consagrada pelo uso (mas, antes, rejei-
tada pela tradição), de outro, condena uma outra expressão igualmente
usada e condenada. Vejamos:

“OBSERVAÇÕES:
1.ª) Já se condenou injustamente o emprego de desde que em sentido
causal, só o aceitando com idéia temporal (assim que) ou condicional.
2.ª) Evite-se o emprego de de vez que por não ser locução legítima.
(MGP, 1999: 326)

Outro uso que vem rompendo a tradição, e que já é forçoso ao


gramático acolher, é o do que chamado excessivo, acompanhante de ad-
vérbios, que, assim, se gramaticalizam como “locuções conjuntivas”.
Sobre o assunto assim se pronuncia Bechara:

“Que excessivo – Sob o modelo das “locuções” conjuntivas finaliza-


das por que, desenvolveu-se o costumes de acrescentar este transpositor
junto a advérbio que só por si funciona como adjunto adverbial: en-

151
LEITE, Marli Quadros. A influência da língua falada na gramática tradicional.

quanto que, apenas que, embora que, mal que, etc., construções que os
puristas não têm visto com bons olhos, apesar dos exemplos de escrito-
res corretos:
‘... porque a ciência é mais lenta e a imaginação mais vaga, enquanto
que o que eu ali via era a condensação viva de todos os tempos’ [MA.
1, 24].
Aparece ainda o que excessivo depois de expressões de sentido tempo-
ral como:
Desde aquele dia que o procuro.” (Ib.)

Aqui, também, vemos a referência do autor ao veto dos puristas a


construções provindas do uso real da língua. Essa abertura do gramático
leva o leitor a entender a lição de dois modos: 1. a expressão está abona-
da pelo gramático que a reconhece e a ela faz referência, embora ela
tenha, antes, sido considerada errada ou ruim; 2. o autor apenas a regis-
tra, e a referência ao veto é uma indicação de que não deve ser praticada
se se quer usar um português correto.
Certo é que, como diz MORAIS (1999) “o padrão escrito muda
historicamente, e o esforço normativo não é capaz de deter o processo de
mudança”. Não resta, portanto, outra alternativa ao gramático senão o
reconhecimento da variação ou mudança lingüística.

Considerações finais

Esta análise mostra que o texto prescritivo também é um espaço


de registro de mudanças lingüísticas. É também um lugar em que se
pode verificar a variação lingüística, pois alguns registros de usos deno-
minados familiares e coloquiais são o reflexo de que mais de uma forma
é empregada pelo usuário. Se a norma prescritiva é, por natureza, tradi-
cional e conservadora, é certo pensar que todos os registros que nela
aparecem são extremamente típicos do uso culto, especialmente escrito,

152
Fala e escrita em questão.

da comunidade lingüística. As formas da modalidade falada da língua,


contudo, provocam mudanças na norma tradicional.
O registro de usos que “perturbam” a tradição causa problemas ao
gramático que, diante deles, tende a não tomar uma posição clara nem a
favor da tradição nem a favor do uso real da língua.
Neste estudo, restrito ao âmbito da morfologia, pudemos verificar
alguns (possíveis) casos de gramaticalização, reconhecidos pelo gramá-
tico, relativos a:

1. Flexão nominal – vimos consagrados os femininos mestra;


senadora / senatriz, indiferentemente para a mulher do sena-
dor ou para quem exerce o cargo de senador.
2. Pronominalização – emprego da expressão substantiva a gen-
te como pronome de terceira pessoa do singular, ao lado de
nós da primeira pessoa do plural.
3. Troca do emprego de forma pronominal oblíqua tônica por
forma reta – emprego do pronome pessoal reto eu com a pre-
posição entre, em vez do pronome oblíquo mim.
4. Eliminação do agente da passiva em estrutura em que o verbo
esteja na voz passiva.
5. Emprego da estrutura ter / haver + que.
6. Diferenciação semântica das estruturas infinitivo + infinitivo
(valor de precisão de algo) e infinitivo + de + infinitivo (proba-
bilidade de algo).
7. Aceitação da preposição em em estruturas do tipo substantivo
+ em + substantivo (Ex. General em chefe).
8. Aceitação da preposição como introduzindo o predicativo do
objeto direto.
9. Aceitação da locução conjuntiva desde que com valor causal.
10. Reconhecimento de locuções conjuntivas com que: enquanto
que, apenas que, embora que, mal que etc.

153
LEITE, Marli Quadros. A influência da língua falada na gramática tradicional.

11. Reconhecimento da indeterminação do sujeito em textos com


verbos transitivos diretos na voz passiva (Vende-se casas).

Um estudo sobre a sintaxe certamente mostraria muitos outros


casos de variação/mudança da norma. No entanto, o espaço de um artigo
não permite a extensão da pesquisa, o que se fará no contexto de uma
pesquisa maior. O trabalho com alguns registros desse fenômenos no
âmbito da morfologia, acreditamos, já enuncia ao leitor a importância de
o pesquisador estar também atento ao texto da gramática tradicional,
pois ela, também, e vagarosamente, vai anunciando ou reconhecendo a
variação/mudança lingüística.
Para finalizar, devemos retornar à idéia de Auroux (1992) de que
a gramatização é um processo tecnológico relevante para uma cultura,
pois a norma prescritiva é também um espaço em que fica registrada, de
certo modo, a história (da língua) de um povo. Isso se pode afirmar por-
que é um espaço em que ficam anotados, primeiro, o modo como um dia
se usou a língua, depois, num esforço de preservação de um uso de dada
época, como se deveria usar e, finalmente, como não se usa mais, o que
fica evidente nos conselhos “a tradição recomenda, mas a língua mo-
derna...”. O texto da gramática não é, pois, um texto a esquecer, mas um
texto a analisar.

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154
Fala e escrita em questão.

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155
Fala e escrita em questão.

A LINGUAGEM FALADA E ESCRITA DE


HELENA SILVEIRA

Hudinilson Urbano

Considerações iniciais

Pretendemos cotejar analiticamente o texto falado da jornalista e


escritora Helena Silveira, produzido como depoimento para o Projeto de
Estudo da Norma Lingüística Urbana Culta de São Paulo (Projeto NURC/
SP) em 7.4.76, com o escrito da mesma jornalista, produzido em algu-
mas de suas crônicas para o jornal Folha de S. Paulo nos meses de março
e abril do mesmo ano. Excepcionalmente, no entanto, analisaremos uma
crônica de 1973 e seis de 1975, sob o enfoque da linguagem falada e
escrita da escritora.
O texto falado constitui-se do depoimento prestado durante diálo-
go entre a depoente e outra informante, Isa Leal, sua prima, também
escritora. Ambas são falecidas, e tinham na época 60 anos (3a. faixa etária).
Trata-se de inquérito classificado pelo Projeto NURC como D2 (Diálo-
go entre dois informantes), sob nº. 333. O diálogo realizou-se com base
nos temas TV, Cinema, Rádio e Teatro, sugeridos pela documentadora
do Projeto, intermediadora do diálogo, que tem duração de 57 minutos.
Trata-se, pois, de gênero conversacional, não casual e não totalmente
espontâneo devido à situação construída e à presença do gravador. Toda-
via o diálogo acaba fluindo de maneira descontraída e bastante informal,
graças à natural desinibição, experiência profissional e grau de intimida-

157
URBANO, Hudinilson. A linguagem falada e escrita de Helena Silveira.

de entre as informantes e à intermediação habilidosa da documentadora,


evitando constrangimentos.
O texto escrito compreende uma série de crônicas que a jornalista
produziu nas décadas de 40 a 80, especialmente sobre telenovelas. Na
Folha de S. Paulo era responsável por duas seções, a saber: “Helena
Silveira Vê TV” e “Videonário”. Em “Helena Silveira Vê TV”, a jorna-
lista escrevia uma ou duas pequenas crônicas, com títulos específicos,
muito circunstanciais, sobre o mundo da televisão de modo geral e das
telenovelas em especial (programação, capítulos de telenovelas, artistas
etc.) Vários assuntos, programas e artistas mencionados durante seu de-
poimento para o Projeto também transitam nas crônicas. Em “Videonário”,
também produzia crônicas, mas uma vez por semana, às quartas-feiras,
reservava espaço para atender a correspondências de seus leitores, numa
subseção denominada “Cartas na mesa”.1

1. Texto falado

Pode-se considerar a participação de Helena Silveira na produção


do texto falado muito próxima da uma conversação real com todas ou

1
Eis a relação das crônicas analisadas:
“De vídeo e sua Linguagem”, 18.2.73, p. 62; “Avaliações das festas, com olhos no vídeo”,
4.1.75, p. 28; “Inteligência e audiência”, 8.1.75, p. 34; “Os deuses na escalada”, 9.1.75, p.
39; “Abertura, mas fugindo ao chavão gênio que surge”, 10.1.75, p. 38; “No Ano Interna-
cional da Mulher, a TV como habitat feminino”, 11.1.75, p. 32; “Encontro marcado com
o tucano”, 14.1.75, p. 38; “Marquês de Sade rende IBOPE”, 11.3.76, p. 38; “Show certo,
verdade errada”, 16.3.76, p. 42; “Vago perfil do homem da praça”, 20.3.76, p. 40; “Vídeo-
art e novela”, 25.3.76, p. 38; “Oscar’ número 48, 31.3.76, p. 38; “Os muitos cardápios da
crítica”, 3.4.76, p. 30; “O Uruguai assiste ao ‘Bem Amado”, 6.4.76, p. 38; “Cacoetes do
palco para o vídeo”, 8.4.76, p. 40; “Novelas, novelas, novelas, e mais novelas”, 10.4.76,
p. 32; “Um sugestivo discurso”, 20.4.76, p. 40; “O contar-se de Lourenço”, 23.4.76, p.
44; “Vídeo dá um jeitinho na vida”, 24.4.76, p. 36; “Pecado Capital com plena absolvi-
ção”, 27.4.76, p. 48; “Dois mil anos de teatro”, 28.4.76, p. 36; “Os programas femininos
estão como Carolina”, 30.4.76, p. 40.

158
Fala e escrita em questão.

quase todas as características que os estudiosos da língua falada, em ge-


ral, ou da Análise da Conversação, em particular, têm arrolado e atribuí-
do a esse gênero.2 Chamamos a atenção, em particular, para os aspectos
da naturalidade e informalidade do diálogo, o planejamento local e a
construção coletiva do texto, a interação mais ou menos distensa e o
grau de envolvimento do falante consigo mesmo, com o assunto e com o
parceiro, a simetria e assimetria da interação.

1.1. Conceito de Oralidade

Preliminarmente levamos em conta que o texto falado é um texto


oral, não só no sentido de língua falada, mas também num sentido mais
amplo, como vimos considerando em nossos estudos.3 Tomado num sen-
tido amplo, oralidade diz respeito não só ao aspecto verbal ou vocal da
língua falada, mas também a todo o contorno necessário à produção da
fala na conversa face a face, ou seja, tudo o que provoca, propicia, favo-
rece e possibilita a produção, transmissão e recepção da fala como mate-
rial verbal e oral, como canal de interação: portanto a expressão lingüís-
tica, a expressão paralingüística; a manifestação mímica e gestual; o con-
texto situacional, e até o conhecimento partilhado próximo e remoto,
atualizado durante o evento. Nesse sentido, levamos em conta em parti-
cular o material sonoro, sígnico ou não, com todas as implicações de sua
produção e transmissão, como a entoação, intensidade, duração, veloci-
dade, riso; a personalidade dos interlocutores; seus estados emocionais
etc., abstração feita à informação referencial que interesse especifica-
mente à mensagem; os gestos, mímica; enfim, qualquer meio concreta-
mente unido à situação “local”, a que se recorre para precisar o sentido
da expressão propriamente dita.

2
Cf., entre outros, os estudos da Série PROJETOS PARALELOS do Projeto NURC/SP-
USP, organizada por Dino Preti (Vol. 1, 2, 3).
3
Por exemplo URBANO, H. Oralidade na literatura.

159
URBANO, Hudinilson. A linguagem falada e escrita de Helena Silveira.

1.2. Conceito de Conversação

A oralidade manifesta-se plenamente no evento conversacional.


Estudos sobre a conversação iniciaram-se, como se sabe, na década de
60, na linha da Etnometodologia e Antropologia Cognitiva. Até meados
dos anos 70 a preocupação era com a descrição das suas estruturas e
mecanismos organizadores. Hoje, há uma tendência a se observarem
outros aspectos envolvidos na atividade conversacional, a saber: a espe-
cificação dos conhecimentos lingüísticos, paralingüísticos e sociocultu-
rais, que são fatores na produção textual e que devem ser partilhados
durante a interação.4
Em termos lingüísticos, dentro do que diretamente interessa ao
presente estudo, sobretudo com relação ao texto escrito, devemos ter em
mente que o texto conversacional manifesta fenômenos ao menos de
dois níveis, a serem considerados em relação ao texto escrito em geral:

1) fenômenos que podemos classificar como típicos do texto con-


versacional, dificilmente registrados em qualquer texto escri-
to, sob a forma de monólogo. Referimo-nos às hesitações, pau-
sas (preenchidas ou não), realizações próprias da cadeia linear
sonora, gaguejamentos, alongamentos, glotal stop, cortes de
palavras, silabações, sobreposições de vozes; falsos começos,
truncamentos frásicos e fragmentações etc. Alguns decorrem
da própria natureza do veículo sonoro da fala e da materialidade
mesma da cadeia falada, outros, das condições de produção
específicas do texto falado; da falta de planejamento prévio,
da co-presença dos interlocutores, do referente situacional co-
mum, por exemplo;
2) fenômenos que manifestam uma freqüência muito grande na
fala, mas não lhe são exclusivos, podendo ocorrer, embora ra-
ramente, no texto escrito de modo geral. Referimo-nos aqui às

4
Para maiores informações, cf. Análise da Conversação, de Marcuschi, L. A.

160
Fala e escrita em questão.

repetições de palavras gramaticais, sobretudo do pronome eu,


paráfrases; correções e incorreções gramaticais e lexicais; per-
guntas (retóricas ou não), vocativos, exclamações; vocábulos,
expressões, torneios frásicos, frases feitas, metáforas, ditados,
flags 5 e construções populares; marcadores conversacionais,
retomadas e recorrências semânticas, instabilidade tópica etc.
É claro que no texto escrito, sobretudo literário, mais do que
no falado, muitos desses fenômenos, quando ocorrem, têm
motivações geralmente diferentes das do texto falado, como é
o caso das perguntas e correções retóricas e das repetições en-
fáticas.

Observemos, por ora, um pequeno trecho do inquérito 333:

Doc. Dona Isa e Dona Helena gostaríamos que dessem as suas opi-
niões a respeito de televisão (3)
L1 Olha Isa... eu (1,5) como você sabi (2) u::ma pessoa/ um diretor
lá da Folha (l,5) certa feita mi chamou (1,5) e m’incumbiu
d’iscrever sobri televisão (1,5) o qui mi pareci é qui na ocasião
(1) quando ele m’incumbiu disso (1) ele pensou/ (1) que ele ia::
(1,5) ficar em faci di uma recusa (2) i qu’eu ia... esnoBAR ((ri)) —
agora vamus usar um termu (1) qu’eu usu bastanti i qui todo mundu
usa muitu – eu iria ESnobar a televisão (1) como todo intelectual
realment’isnoba (1) mas aconteci (1) qu’eu já tinha vistu duranti
muitu tempu televisão (1,5) por::que:: houv’uma época na minha
vida qui a literatura:: mi fazia prestar muit’atenção... i eu queria
era uma fuga ... intão a minha fuga (1) era mi deitar na cama (1)
ligar o:: o receptor e ficar vendu... ficar vendu... (1,5) I:: aí eu
comecei a prestar atenção naquela tela pequena...(1) vi (1) não só
qui já si fazia muita coisa boa i também muita coisa rúim é claru

5
Flag: expressão genérica que antecipa o tipo de função sintática e semântica que se vai
realizar, pleonasticamente, na expressão que segue, do tipo: Lá em casa tudo vai bem.
(Cf. Ilari et al., 1990: 70)

161
URBANO, Hudinilson. A linguagem falada e escrita de Helena Silveira.

(2) mas:: vi também todas as possibilidadis... qui aqueli veículu...


ensejava i qu’istavam ali laTENtes pra serem aproveitadus (1,5)
(...) agora voCÊ (1) foi dos tempus heróicus... da mencionada luta 6

Como se vê, em relação aos fenômenos do 1o. tipo, há várias


elisões (m’incumbiu, qu’eu, pra, houve’uma etc.); alongamentos (::);
inúmeras pausas imprevistas (de 0,5 seg. ou menos: ... e várias de mai-
or duração: l; l,5; 2,5 seg), muitas delas revelando hesitações de diver-
sas motivações; glotal stop (pessoa/, pensou/; 27); entonação enfática
(esnoBAR, ESnobar, laTENtes; 5, 6, 12), falso começo (eu (l,5) como
você sabe (2).
Quanto aos fenômenos do 2o. tipo, podem ser observadas muitas
repetições de palavras gramaticais (qui), uso normalmente pleonástico
do eu (7 vezes); repetição de palavras lexicais, retomadas, paráfrases:
m’ïncumbiu (2 vezes); esnobar (3 vezes), prestar atenção (2 vezes); ver
(3 vezes); muita coisa (2 vezes); certa feita/na ocasião/quando; usar um
termu/qui eu usu bastanti/qui todo mundu usa muitu. e um tipo de flag:
u::ma pessoa/ um diretor lá da Folha (1,5) certa feita me chamou; 2).
Algumas repetições e retomadas podem ser atribuídas a uma intenção de
ênfase ou elaboração, como ficar vendu... ficar vendu; se fazia muita
coisa boa i também muita coisa rúim é claru; eu queria era uma fuga/
intão a minha fuga. Registram-se ainda vocativos (Dona Isa e Dona
Helena); marcadores conversacionais (olha; 2, agora; 5); incorreção gra-
matical (possibilidades (...) para serem aproveitados; 11-12); uma cor-
reção lexical (uma pessoa/ um diretor; 2)

6
A gravação foi reouvida várias vezes e o trecho foi retranscrito com algumas correções
na transcrição e com as seguintes adaptações: a) pausas com duração maior do 0,5 segun-
do foram indicadas com números, conforme sua duração em segundos; b) o continuum
sonoro foi indicado pelas elisões (m’incumbiu) e pela transcrição fonética das vogais
átonas iniciais e finais, quanto à realização dos timbres fechados (díscrever, sabi); c) a
barra (/) indica glottal stop (interrupção do som na glote).
7
A numeração simples após os exemplos, entre parênteses ou não, indica o número da
linha do texto falado; as datas (por exemplo: 10.1.75) indicam as datas das crônicas ana-
lisadas.

162
Fala e escrita em questão.

Alguns fenômenos relacionados no início, mas sem registro de


ocorrências no trecho de exemplificação, manifestam-se com freqüência
no resto do inquérito. Lembramos sobretudo, por ora, os recursos de
cunho mais marcadamente emotivo e interacional, como exclamações
(comei ?!; 268), interrogações retóricas ou não (75, 162, 565, 1172/3);
pronome cópia 8 (os artistas paulistas que estão lá... eles começam a
adoTAR..; 62/64); vocábulos, expressões, torneios frásicos, metáforas,
ditados, construções populares: baianice (79), choca (97, 1135),
cachorreira (1040), e o dia inteirinho (343), coisíssima alguma (323),
pescar alguma coisa boa; em relação a programa de televisão (817),
“jogos já estão feitos”como se diz (175/6) engraçado/é muito engraça-
do/é engraçado (236, 275, 503, 506, 887), filme água-com-açúcar (253),
costumo dizer: “se no princípio era o verbo agora é a imagem” (960/
61)
Nesse diálogo Helena Silveira (L1) ocupa mais ou menos 75% do
tempo, tomando a iniciativa da palavra e das respostas em mais de 90%
das vezes. E normalmente sua participação reflete-se em comentários
longos (mais ou menos 20 linhas transcritas), que desqualificam a virtual
simetria da participação e se manifestam em grandes trechos de feição
monológica.

1.3. Competência comunicativa

Trata-se de duas pessoas não só cultas de um modo geral, mas


também e sobretudo lingüistica e pragmaticamente cultas, tendo em vis-
ta que têm curso superior e são conhecedoras das regras da gramática e
das da conversação em contexto de produção (Preti, 1994: 31-37, Bar-
ros, 1997: 35-43), fazendo da linguagem escrita culta seu instrumento de
trabalho, uma vez que ambas são escritoras, sendo Helena Silveira tam-
bém jornalista, com coluna regular no jornalismo paulistano nas décadas
de 40 a 80.

8
Pronome que retoma um referente topicalizado.

163
URBANO, Hudinilson. A linguagem falada e escrita de Helena Silveira.

1.4. Desempenho lingüístico

Quanto ao desempenho lingüístico, para ficar apenas na avaliação


da jornalista, constata-se que ele pode ser rotulado como de um falado
naturalmente culto, segundo temos entendido o desempenho lingüístico
dos informantes do Projeto NURC, que têm curso superior, sobretudo os
que revelam um hábito lingüístico marcadamente gramatical, com
morfossintaxe correta, naturalmente elaborada, com alguns desvios em
relação à norma prescritiva, em razão das condições normais de produ-
ção de texto falado e da situação concreta da comunicação. No caso da
jornalista também a dicção é apurada, sobretudo na articulação dos /r/
dos infinitivos, ainda que as demais realizações fonéticas de modo geral
sejam as típicas da corrente sonora da fala, como se demonstrou na trans-
crição supra. Também quanto ao léxico, pode-se considerar uma fala
culta porque seu vocabulário é rico e preciso.
Consideramos o desempenho lingüístico de Helena Silveira como
culto em nível de fala, compatível com sua competência lingüística, em
razão da freqüência das marcas da variedade padrão em relação com as
da modalidade popular.
Chama atenção em particular o amplo e variado vocabulário, que
se pode posicionar entre comum e culto. Alguns termos são técnicos,
sensivelmente provenientes do referencial de hábito e ofício da cronista.
Consideramos de nível culto ou próximo a ele as seguintes palavras e
expressões, algumas até com feição de artefato elaborado.9 São 110:

acesso (549) anti televisivo (327)


acumular (1178) antropofagia (1064)
adequado (170) aparar aresta (84)
amoldar (233) aprimorar (991)
ancestrais (103) aprofundamento (1023)

9
Cabe lembrar que os dicionários consultados, sobretudo o do AURÉLIO, são de 1975/76,
época da produção dos textos.

164
Fala e escrita em questão.

arte cênica (72) esnobar (8, 10, 11)


arte cinematográfica (731/2) esporadicamente (333)
assinalar (91) estagnada (243)
autora teatral (880, 885) exportar (468)
calcada (99) ficção (393)
catalogado (1055) fonética (133)
cinegrafista (972) força dramática (589, 590)
claudicar (308) força interpretativa (596/7)
coleteira (285, 286, 287) francês clássico (235)
conceitual (132) fundamentar (1097)
concepção cinematográfica (713) grifado (99)
conservadora (106) happening (915)
contestável (844) hiato (693, 701, 702)
cordão umbilical (665, 666/7) hollywoodesca (714, 723)
coreógrafa (374) ilustração (328)
deformação (130) imigrar (237)
descendência (239) incômodas (819)
deturpar (184) incumbir (5, 6)
dicção (112) insofismável (974)
diluir (100) intelectual (11, 387)
discutível (551, 820, 854, 1093) interpretar (168, 600, 602, etc.)
divergente (1002) ironizar (129)
do ponto de vista ficcional (383, irretorquível (974)
391-2, 401, 918-9) laboratório (931, 932, 933)
embaixatriz (226) lamentável (1094)
empenho (109) latente (21)
enamorar (388) lauda (983)
enfastiada (706) linguagem televisiva (402)
enfocar (67, 1029) longínqua (949)
engendrar (740) louvável (109)

165
URBANO, Hudinilson. A linguagem falada e escrita de Helena Silveira.

malfadada (384) requisitados (503)


mentalidade (943) restaurar (1036)
mirabolante (720) saciada (743)
muralha de mediocridade (545/6, 550) sentenciar (1070, 1071)
negligenciado (1059) sentido caricatural (858)
neo-realismo (712) sestros (936)
no que tange (337) sibilado (35)
normativo (134) sibilante (91, 107)
oneroso (1210) singularidade (69, 303)
opção (817) sintonizar (551)
patrimônio (240) subversiva (971)
peculiaridade (638) superprodução (714)
perdurar (1207) tempos heróicos (23)
poder aquisitivo (1195, 1210/11) tendência anômala (869)
poluição (1027) textos indigentes (824)
predominar (395) transposição (773, 774)
preservar (236) trilha sonora (509, 510)
problemática (995) unificação (110)
processar-se (461) uniformizada (315)
proporcionar (541) vendagem (502)
rapsodo (947) visão caricatural (859)
receptor (16) voluntária (167)
reformular (726)

Em oposição a esse numeroso e variado aparato lexical, opõe-se


uma pequena quantidade de palavras, expressões ou formações de nível
popular, às vezes afetivo, da linguagem do cotidiano; cerca de 15, que
representam apenas 12 o/o do universo lexical considerado: coisa (18,
19, 228, 331, 339, 541, 793, 813, 814, 818, 859, 889, 981, 1045, 1089),
baianice (79), chocar (97), é muito engraçado (235/6, 503, 505/6), en-
graçado (175, 276), sem coisíssima alguma (323), dia inteirinho (323),

166
Fala e escrita em questão.

cara de milionária (898), “jogos já estão feitos”, como se diz (175/6),


filme água-com-açúcar (253), mora pertinho (903), uma cara de ho-
mem impressionante (955/6), uma cara patética (981), cachorreira (1040),
pescar (um programa) (817). Registram-se também, em pequena ou gran-
de quantidade, modos de expressão e marcadores conversacionais típi-
cos da fala e da interação, como acho que, olha, não é?, então, aí, vamos
dizer etc.
A estruturação frásica e gramatical de modo geral se conforma
com a prescrita na gramática normativa. Na estruturação frásica, por
exemplo, pode-se dizer que as frases se apresentam normalmente com-
pletas, com uso dos processos e procedimentos sintáticos previstos,
embora sem grande riqueza em termos de nexos oracionais variados.
Há, como é normal na cadeia linear falada, sem prejuízo da estrutura-
ção canônica, os naturais preenchimentos de “buracos” com os já cita-
dos marcadores conversacionais, pausas vazias, pausas preenchidas,
alongamentos, uso explícito ou implícito do pronome eu etc., ou com
repetições de palavras relacionais, à semelhança de gaguejamentos na-
turais do tipo: de de, do do, na na, no no, e e, que que ou mesmo
segmentos maiores como era o... era o o ... era o:: (329) ou ainda
elementos lexicais, conforme se pode observar na relação das palavras
e expressões de nível culto ou próximo a ele, acima relacionadas, por
exemplo. Evidentemente, o fato de se tratar de fenômenos típicos da
fala não afasta deles eventuais funções discursivas, que, entretanto, não
cabe aqui apontar.
Na expressão oral, por motivos vários, muitos dos quais explicá-
veis pela própria dinâmica da fala, como por exemplo o envolvimento
emocional e interacional, ocorrem construções que, à luz da prescrição
gramatical, constituem desvios. Apontando o fato aqui apenas sob o ân-
gulo do desvio, constatando como exceções a regular obediência ao
normativo da gramática, registram-se:

a) discordâncias entre verbo e sujeito posposto com se apassiva-


dor: ouve-se (...) expressões (234), se ouve ainda vocábulos

167
URBANO, Hudinilson. A linguagem falada e escrita de Helena Silveira.

(245)10; entre modificado e modificador: possibilidades (...)


aproveitados (20/21), produziam coisas tão gostosa (793); entre
pronome e seu referido: eu estou vendo:: a TV (...) e não se
pode mesmo... analisá-lo (302/4); entre verbo(imperativo) e
pronome sujeito: você não...não me chama de madame (282),
ao lado de construções normalmente da sintaxe da escrita cul-
ta, como se pode exemplificar com: então você não...não diga
(...) e não nem me chame de madame (289/91), (...) você... me
chame dona Helena não me chame de madame (292/3), a
maioria dos bons artistas(...) cursou escola (146/8);
b) regências e usos da sintaxe popular, como: me esqueci o nome
da da coreógrafa (374), eu me lembro quando (447), e o ter-
ceiro eu não me lembro (913), pediu para aumentar (505),
tenho a impressão que (83), na medida que o país (913), fala
feito caipira (161); os artistas paulistas que estão lá... eles
começam a adotar (62/64), eu tive uma empreGAda ... éh que
ela atendia o telefone (278/9), um diretor lá da Folha (3), aqui
de São Paulo (151), ao lado de construções marcadamente
cultas, chamando atenção, por exemplo: em face de (7, 328),
você se lembra daqueles filmes (794), vou ao teatro (811), de-
viam de cursar (146) eu devo de assinalar (878)11; o verbo
haver sistematicamente usado como “existir” (mais de 15 ve-
zes).

Pode-se ainda apontar como característica do texto falado culto


de Helena Silveira a ausência de gírias, de termos grosseiros, de rupturas
gramaticais de tom vulgar ou de denunciado desconhecimento da norma
culta.
Enfim, feito o balanço entre as marcas sinalizadoras de uma lin-
guagem culta e as de uma linguagem popular, sobejam significativamen-
10
Bechara (1999, p. 433) explica o exemplo “Ouve-se os ventos soprar” (com infinito),
mas o rotula de irregular à luz da análise gramatical e da tradição da língua exemplar.
11
Conforme Francisco Fernandes (1970), o verbo “dever” mais “de” indica probabilidade.

168
Fala e escrita em questão.

te as primeiras, permitindo-se afirmar que o desempenho lingüístico de


Helena Silveira, consoante sua competência lingüística culta, é realmen-
te de um coloquial (conversacional) culto.

1.5. Propósito utilitário do texto falado

Obviamente o texto falado de Helena Silveira não tem propósitos


e características de texto literário, apesar de uma ou outra frase que pro-
duz esse sabor, como sibilantes como cobras (91/92) ou se no princípio
era o verbo agora é a imagem (960/61). Com efeito trata-se de um texto
utilitário, produzido a pedido e para fins práticos de informação e estudo,
valendo também como um encontro agradável entre amigos para refle-
xões comuns sobre temas compartilhados.

2. Texto escrito

Embora sem preocupação de nos aprofundar em reflexões sobre o


gênero crônica, cabe referir alguns dos vários aspectos levantados por
estudiosos do assunto.12
Discute-se se trata realmente de uma gênero literário ou apenas
um gênero menor, sua evolução, sua condição de ofício ou profissão, sua
efemeridade e transitoriedade, sua brevidade gráfica e temática, sua lin-
guagem, até a quase inexistência de cronistas mulheres, o que colocaria
Helena Silveira numa prazerosa exceção ao lado de Júlia Lopes de Al-
meida, Carmem Dolores e a contemporânea Rachel de Queiroz. Mas,
sobretudo, discutem-se bastante sua concepção e características temáticas
e estilísticas.

12
Referimo-nos a Antônio Cândico (1979), Ledo Ivo (1981), Massaud Moises (1968), J. Sà
(1987), Nilo Scalzo (1982).

169
URBANO, Hudinilson. A linguagem falada e escrita de Helena Silveira.

Detenhamo-nos em alguns aspectos que interessam direta ou in-


diretamente à análise da linguagem de Helena Silveira. Comecemos pela
concepção e características da crônica, como moderna e brasileiramente
entendida.

2.1. Concepção e características temáticas e estilísticas


das crônicas de modo geral

Trata-se de uma composição de extensão livre, mas freqüentemente


pequena, que por sua natureza temática e formal costuma ter ambições
modestas. É um gênero híbrido entre literatura e jornalismo ou um arte-
fato ambíguo, dotado de uma carga ao mesmo tempo informativa e lite-
rária. Expõe juízos originais acerca de fatos que tenham impressionado a
imaginação ou sensibilidade do autor ou acerca de experiências pessoais.
Fala de coisas miúdas do dia-a-dia em curso e provoca reflexão oportuna
ou fixa algum aspecto escapado à observação superficial. Para alguns é
literatura do transitório e do circunstancial, literatura dos dias que pas-
sam.
A crônica aponta o ridículo, desperta o sorriso, proporciona um
fugaz momento de distração em meio ao ramerrão cotidiano. Nesse sen-
tido, ela impõe ao cronista a capacidade de seduzir e divertir, emocionar,
propalar malícia e indignação. Repontam nela amiúde notas discretas de
humor e sentimentalismo.
Alguns põem em dúvida tratar-se realmente de literatura. Quando
muito a classificam como manifestação híbrida, paraliterária, que tem a
pressa e a concisão do jornal e a magia da literatura. Mas a maior parte
reconhece a poeticidade dos cronistas.
Quanto à linguagem, que deve coadunar-se à própria natureza,
concepção e temática da crônica, revela simplicidade e clareza. Supõe
leitura fácil, estilo coloquial, leve e correntio. É o oral no escrito, o diálo-
go no monólogo.

170
Fala e escrita em questão.

2.2. Gênero dos textos sob estudo

Ante os questionamentos e a certa indefinição de contornos em


termos de classificação de gênero que às vezes são feitos, cabe perguntar
inicialmente se, perante os textos de Helena Silveira, estamos mesmo
diante de crônicas ou de simples reportagens ou notícias jornalísticas
comentadas sobre televisão e telenovelas.
Embora a questão aqui seja marginal, para nós realmente se trata
de crônicas, e das melhores. E assim entendemos, primeiro, em conso-
nância com a própria autora e seus leitores; segundo pelas próprias
conceituação e características atribuídas a esse gênero. Helena Silveira,
seja no depoimento ao NURC, seja nos próprios textos jornalísticos, não
deixa dúvidas quanto a essa classificação.

1. (...) eu já enfoquei na nas minhas crônicas da Folha (...) (66/7; grifo


nosso);
2. (...) mais uma vez a [= esta] cronista pôde verificar quanto é difícil
(...) (18.2.73; grifo nosso)
3. Já mais de uma vez escrevi crônicas a modo de quem encerra uma
série de questões em torno de uma obra. (20.4.76; (grifo nosso)

Por outro lado, no texto que dirige ao cronista Lourenço Diaféria


(23.4.76; crônica anexa), a ele se compara como tal.
Ademais, ainda, a temática e as outras características que se cos-
tumam apontar nas crônicas estão totalmente presentes nos seus textos,
como se perceberá durante o presente estudo. Naturalmente com as par-
ticularidades que a fazem única no cenário jornalístico, sobretudo, da
época.
Embora seu centro de atenção seja a telenovela, que ela viu nascer
e crescer, seus textos trazem notícias criticamente comentadas sobre te-
levisão em geral e telenovelas em particular, afastando-se às vezes para
assuntos mais, ou menos, periféricos, seja quanto às telenovelas, seja

171
URBANO, Hudinilson. A linguagem falada e escrita de Helena Silveira.

quanto à própria televisão, como acontece, por exemplo, em “Os muitos


cardápios da crítica” (3.4.76), sobre o exercício da crítica; “Os progra-
mas femininos estão como Carolina” (30.4.76), criticando a condição de
simples apresentadoras e não produtoras das mulheres em programas
femininos na televisão; “Dois mil anos de teatro” (28.4.76), comentando
peças de teatro levadas à televisão, ou ainda, “O contar-se de Lourenço”
(23.4.76), sobre Lourenço Diaféria e seu novo livro O gato na terra do
tamborim, reproduzida em anexo.
Quanto ao seu estilo, abstração feita, por ora, à linguagem em si,
que analisaremos especificamente na seqüência, escreve de modo rápi-
do, descontraído, despreocupado, cativante e corajoso; às vezes irônico,
às vezes picante.
Sob a perspectiva de que a crônica seja um gênero hídrido entre a
literatura e o jornalismo ou um artefato ambíguo, dotado de uma carga ao
mesmo tempo informativa e literária, pensamos que, no caso das crôni-
cas de Helena Silveira, talvez elas estejam mais carregadas de informa-
ção do que de literatura, mas não deixam também de conter toda a
poeticidade da cronista, por vezes cheia de humor e até ironia; freqüente-
mente recuperando e revitalizando, com elaboração clara ou não, acha-
dos literários ou a linguagem e imagens comuns do cotidiano ou da rua;
despertando sorriso, apontando ridículo; emocionando, às vezes com in-
timidades e sentimentalismos:

4. Vocês vejam o destino de quem critica televisão: tem que se meter


até em altas cirurgias. (9.l.75) [sobre cortes de clichês, parafraseando
situação prevista no próprio enredo de determinada novela sob crítica
da jornalista];
5. a) E houve audiência e glórias para produtores e jornalistas e profis-
sionais que enfiaram a cara no que lhes deveria parecer a doce lama da
vida, faturando tão bem.; b) E os produtores e profissionais foram obriga-
dos a remover o lodo dos sapatos e das palavras (...) (10.1.75; grifo
nosso);
6. a) Sempre achei você um Lourenço Silveira e eu uma Helena Diaféria.
Soube que você nasceu no Brás, eu nasci nos Campos Elíseos (que

172
Fala e escrita em questão.

chique!); c) Estou agora suficientemente cachorrizada (...) (23.4.76;


grifo nosso);
7. Minha querida, para agradar seu maridinho experimente o charme
que é este xampu ! [parafraseando e ironizando as apresentadoras de
programas femininos] (30.4.76)
8. a) (...) teorias, o que sempre realizei no arroz com feijão cotidiano
em meu mister de escriba; b) Um aos outros, os escribas, devem se
outorgar até a liberdade de pastar. Por que não? O cardápio de capim
poderá um dia ser recomendado por alguma cozinha macrobiótica. (“Os
muitos cardápios da crítica; 3.4.76; grifo nosso);
9. Fui para a redação, pus a cabeça sobre a máquina de escrever e co-
mecei a chorar como uma idiota. (30.4.76);
10. Quando era menina, tinha uma tia-avó que possuía um Renault-
limousine, com dois caras na frente, separados dela por uma parede de
cristal. Ela dava ordens por um telefonezinho. Quando chegaram os
carros americanos abertos, lembro-me de que comentou com meu tio-
avô: – Isto é uma promiscuidade. O povinho ouve a conversa da gente.
Eu era muito criança e fiquei pensando: quem era esse povinho? Muito
mais tarde saquei: era bem resumido, o motorista e o auxiliar. (24.4.76)

2.3. Linguagem

No âmbito da linguagem propriamente dita, entendemos que as


crônicas são vazadas num estilo coloquial culto literário, como, aliás, o
são de modo geral as crônicas dos demais cronistas. Aqui, naturalmente,
pretendemos constatar como é o coloquial culto literário de Helena
Silveira. Já destacamos linhas atrás alguns aspectos literários nas crôni-
cas, mas voltaremos ao assunto.

2.3.1. Coloquial

Entendemos que se trata de textos produzidos num estilo colo-


quial, porque a cronista projeta e realiza seu discurso em tom de conver-

173
URBANO, Hudinilson. A linguagem falada e escrita de Helena Silveira.

sa com um interlocutor, simulando, graças aos recursos e estratégias típi-


cos dos eventos conversacionais, a co-presença do leitor, com quem es-
tabelece maior envolvimento. E não estamos falando das respostas às
cartas dos leitores na seção “Cartas na mesa”. Naturalmente, trata-se de
um coloquial estilística e previamente planejado. Ou, como diz Ochs
(1979), trata-se do planejamento do discurso não planejado, isto é, a ex-
pressão auto-consciente das características do discurso não-planejado em
que o escritor produz intencionalmente um discurso que parece ser não-
planejado. Na verdade, sendo língua escrita, que é uma modalidade teo-
ricamente invariável, é, porém, uma língua escrita atípica, na medida em
que incorpora a variabilidade lingüística, que é própria da língua falada.
Observando os recursos estilísticos mais usados por João Antônio
para alcançar o efeito de uma linguagem literária coloquial, Cassiano
Nunes (l982) destaca, entre outros: o aproveitamento de adágios popula-
res, locuções populares, sinonímia abundante, sufixação pessoal, imitan-
do a criação e o uso popular. Além de outros que anteriormente vimos
apontando, podemos acrescentar ainda: a) a estruturação frásica singela,
com exploração da coordenação do tipo frase de arrastão ou de ladai-
nha, com muitos e ou que iniciais, ou subordinadas pouco complexas,
que lhe imprimem um estilo leve e facilitam a compreensão imediata,
por meio de uma leitura corrente, motivadora da interação ou b) o ingres-
so constante da cronista no interior do enunciado informativo, avaliando,
comentando ou simplesmente opinando, como nos casos:

11. a) Só faltaria Consuelo Leandro entrar na briga e falar de ‘meu


marido Oscar”. [ referindo-se a um quadro humorístico da televisão da
época]; b) Agora [Elizabeth Taylor] retornava à Fábrica de Ilusões (pa-
recia grandiosamente solitária, malgrado os eventuais maridos).
(31.3.75; grifo nosso)
12. (...) como o teatro é chato. (...) Dizemos chatos, por chatos mesmo.
(28.4.76).

A construção das crônicas na primeira pessoa do singular e as


referências ao leitor incorporando a figura do interlocutor, com vocativos,

174
Fala e escrita em questão.

perguntas, verbos e pronomes de primeira pessoa do singular (do autor)


e da segunda ou terceira (do leitor) e demarcando com precisão o espaço
da interlocução parece-nos ser uma das mais importantes marcas de
coloquialidade.
Normalmente a primeira pessoa é denunciada pelo contexto lin-
güístico ou pelo morfema verbal, dispensando o uso do eu explícito,
diferentementre do texto falado, onde esse uso é quase sistemático. Quando
a recuperação da marca enunciativa não é evidentemente clara ou quan-
do, mesmo evidente, a cronista quer marcar mais ostensiva ou
contrastivamente seu “envolvimento”, o eu é explícitado. Cf. exemplos.
1, 6-a e 10, e ainda: 13

13. E as festas, leitor? Eu [as] passei longe de São Paulo (4.1.75; g.n.);
15. Diante de O Recém-Chegado (...) eu me indaguei como (...) (4.1.75;
grifo nosso);
14. (...) eu que nunca joguei na Loteria Esportiva (16.3.76; grifo nos-
so).

Ainda que raramente, apagam-se as marcas explícitas da subjeti-


vidade da enunciação, registrando-se então um “distanciamento” mo-
mentâneo, por meio da indefinição, neutralização ou generalização do
plural (parece-nos; 11.3.76), de um pronome invariável (exemplo 4:
quem), ou ainda de substantivos semelhando indeterminação, conforme
exemplo 2 (a cronista) e o seguinte:

15. É da maior dificuldade para o jornalista conseguir dados sobre a


programação da TV Cultura (14.1.75; grifo nosso)

Esse envolvimento consigo mesmo ou a expressão da função


emotiva estão também freqüentemente manifestados em perguntas retó-

13
Deixamos de considerar aqui a frase “Mas eu nunca fui cronista social”, do exemplo 43,
por se tratar de simples reprodução de diálogo.

175
URBANO, Hudinilson. A linguagem falada e escrita de Helena Silveira.

ricas: exemplos 8-b acima e 21-b abaixo, ou palavras ou frases exclama-


tivas ou avaliativas do tipo: que chique! (exemplo 6-a) e ainda:

16. parlapartice (será traduzível ?) (6.4.76; grifo nosso);


17. Parece mentira! (16.3.76; grifo nosso);
18. a) (...) como o teatro é chato. Oh, não, não nos pensem vulgares
(...); b) Olhem, podem me xingar, mas a pior telenovela, a pior
gloriamagadan, ainda é mais tolerável do que aquela gente fantasiada
(...), meu Deus do céu ! (28.4.76; grifo nosso);
19. Fazer justiça, meu Deus do céu, é coisa de Deus. (24.4.76; grifo
nosso).

Quanto ao efeito de envolvimento dos leitores, além de perguntas


(não retóricas, deixadas no ar: exemplo 13 acima), há exemplos de todo
tipo, mais explícitos e expressivos ou mais sutis: ex. 4 (vocês vejam) ou
ainda: 14

20. E por que ? Um caso que deixo para estudos do setor de economia
(4.1.75);
21. Não leitor, você não se enganou de coluna, não. (23.4.76; grifo
nosso);
22. a) Bem, meus senhores, se vocês pensam que hoje vou levar as
coisas a sério estão muito enganados. (...); b) (...) E sabem por quê ?
Porque [a vida] não imita a novela. (...); c) (...) Meus amigos, iniciei
estes tópicos de brincadeirinha. (24.4.76; grifo nosso);
23. Hoje, a novela está aí e não adianta (...) (25.3.76);
24. Bem, meninas, onde quero chegar é no seguinte: (...) (30.4.76; grifo
nosso).

Por outro lado, registram-se na superfície do texto outras marcas


claras da informalidade situacional construída. Observem-se o caráter

14
Cf. Marcuschi, 1997.

176
Fala e escrita em questão.

intimista dos subtópicos (exemplos 6-a e 10); a naturalidade de certas


construções, com redundâncias, repetições, palavras, criações, sufixações,
frases feitas e outras frases e expressões, de impressão e aparência des-
cuidada, desleixada e familiar, que convidam e conquistam o leitor para
parceiro da própria construção textual. Além de outros que se espalham
em diferentes passos do presente estudo, apontamos mais:

25. a) Não leitor, você não se enganou de coluna não (...); b) (...) en-
quadrar-se na própria (...); c) é lindo, não acham ? (...); d) (...)
cachorricizada (23.4.76; grifo nosso);
26. Ora, isto tudo ocorre em tempo em que a vídeo-art está aí (25.3.76;
grifo nosso);
27. (...) dava ensejo a toda uma enfiada de considerações. (4.1.75; gri-
fo nosso);
28. Aí, o espetáculo correu rápido (31.3.75; grifo nosso);
29. Mas tenho cá minhas razões (3.4.76; grifo nosso);
30. a) Novelas, novelas; novelas: não entendi bulhufas (...): b) herói de
Cervantes ficou completamente abilolado – na expressão pitoresca da
gente do Nordeste.; c) (...) fico nesse pula-pula insatisfatório (...); d)
(...) aturar xaropadas inglórias (...); e) (...) um redondo ‘não” (10.4.76;
grifo nosso);
31. a) despojado de saberetice tipo ‘Seleções” (...); b) (...) como manda
o figurino (16.3.76; grifo nosso);
32. a) gatos escaldados que têm medo da água fria (...); b) nada feito.;
c) o autor joga tudo para o ar; d) Seria teste definitivo fechando a boca
dos que apostam na burrice de nossas platéias. (8.1.75; grifo nosso);
33. a) (...) audaciosos rapazes entram com a cara e a coragem para
cima de uma crítica temerosa de ser rotulada quadrada, bitolada e ou-
tros adas, em que entra a desinformada, também. (...); b) (...) é um bota
pra quebrar geral e encucativo (...); c) (...) parecer não estar por dentro
(...) (10.1.75; grifo nosso);
34. Entrou com a cara e a coragem (...) (27.4.76);
35. (...) “uma andorinha só não faz verão” (20.4.76);
36. a) Uma glória a presença de Lima Duarte; b) Certa feita, eu estava

177
URBANO, Hudinilson. A linguagem falada e escrita de Helena Silveira.

sem emprego, na fossa. Me achava um lixo. c) Não sei se o novo pro-


grama humorístico da Globo irá emplacar (20.3.76; grifo nosso);
37. a) Louquinhos da silva; b) Nei Latorraca, esse excelente cara. [sub-
título de seção) (24.4.76; grifo nosso).
38. Todaviamente – parafraseando Odorico, O Bem Amado conta com
um elenco (...) (18.2.73; grifo nosso);
39. Um abraço pela vida que vocês levam. Com a cara, a coragem, a
garra. (11.1.75; grifo nosso)

Naturalmente, ao admitirmos que as crônicas são vazadas num


estilo coloquial, estaremos conseqüentemente admitindo que fenômenos
específicos da oralidade estariam nelas presentes, dando-lhes essa sensa-
ção de coloquialidade e oralidade. Não é à toa que mais de um estudioso
entende que “a crônica pode (...) apresentar-se como coloquial e até po-
pular e ser mesmo artística sem perder a naturalidade. Ser oral no escri-
to.” (Martins, apud Fargoni, 1993, p. 47)
Já apontamos vários traços responsáveis pela simulação e sensa-
ção de interlocução concreta, de diálogo pois, e de aproximação da cro-
nista ao leitor, que são aspectos de oralidade, conforme expusemos ini-
cialmente. Naturalmente, o mencionado diálogo entende-se “diálogo no
monólogo”, como continua Martins, conciliando-se, pois, a sensação de
diálogo dentro da realidade do monólogo da crônica.
Além desses elementos, quase nada mais, porém, se manifesta
nas crônicas em nível específico de oralidade, em relação ao canal e à
cadeia falada. Há pouquíssimos fenômenos incorporados em relação à
fonética (um pra; exemplo 33-b), inclusive com exploração da expressi-
vidade sonora, como se verá, na análise sob o aspecto literário (exemplos
5-b, 33-a e 67-a, b, 64-a 68-a) e à onomatopéia (um clic substantivado;
10.4.76), e outros, mais freqüentes, no nível supra-segmental da entonação
e das pausas:

40. (...) O estúdio chama, o roteiro não pode esperar, as gravações estão
marcadas para tal data... se realmente não pode vir, sentimos muito,

178
Fala e escrita em questão.

mas terá que ser substituída... É o demônio das competições rondan-


do... (11.1.75)

e às estratégias da interação conversacional, como interrogações, excla-


mações (exemplos 6-a, 13, 16, 17, 18-a e b, 19) e marcadores
conversacionais (mas nos exs. 29 atrás, 42 e 43 adiante; bem nos exem-
plos 22 e 24; olhe, olhem, 8.1.75 e 18-b).
O destaque de termos e seqüências para uma exata leitura é feito
via linguagem verbal, descrevendo a) uma entonação intelectiva:

41. No ponto em que está, a novela torna seu público exigente. Deve
ser cuidada desde sua abertura. Frise-se: principalmente esta [= aber-
tura] deve ser cuidada. (25.3.76; itálico e grifo nossos)

ou b) uma recorrência de sons, que faz ecoar os qualificativos negativos,


como se percebe no exemplo 33-a.
O relato de falas próprias ou de outros, não muito freqüentes, é
feito com muita naturalidade, concisão e efeito, seja pelo discurso direto
explícito, seja pelo direto livre: exemplos 10 e 40 acima mais:

42. Ele [= Manoel de Nóbrega] já tinha sido operado e o supúnhamos


ainda no hospital, quando o vi chegando, numa homenagem que se
fazia ao cantor Romeu Feres. Apreensiva, interroguei-o: – Mas Nóbrega,
o que você veio fazer aqui ? Você ainda não está bem ! Ele: – “Eu vim
pra dizer que não posso vir...” (20.3.76)

43. Pedi a meu amigo Rubens do Amaral que me arranjasse emprego e


ele prontificara:
– “Você vai ser cronista social !”
– Mas eu nunca fui cronista social.
– “Basta esquecer todo português que sabe, escrever bastante besteira
(...) “E não venha querer fazer literatura, não venha querer escrever
direito porque senão você está perdida ! (...) Emburreça.” (30.4.76).

179
URBANO, Hudinilson. A linguagem falada e escrita de Helena Silveira.

2.3.2. Culta

As crônicas são elaboradas num nível indiscutivelmente culto.


Competência para tanto já vimos que a cronista possuía. De modo geral,
não poderia ser outra a expectativa, uma vez que “já no oral”, tratando
praticamente dos mesmos temas, em ambiente e com interlocutores de
nível cultural elevado, ela produziu seu discurso em nível culto. Sob esse
aspecto de adaptação à situação de comunicação, outros motivos a mais
justificam sua produção: trata-se de língua escrita, dirigida a leitores vir-
tualmente cultos e inteligentes, como ela mesma admite. Ainda que se
trate de um escrito coloquial próximo da linguagem cotidiana, não deixa
de ser fiel à norma culta, com obediência à prescrição gramatical, evitan-
do concessões à linguagem popular, ainda que em nome da simplicidade
(que freqüentemente enaltece), como gírias chulas e vulgaridades.
No que é aplicável ao texto escrito, todas as razões e tipos de
exemplificação revelados em relação ao seu desempenho culto no texto
falado podem e devem aqui ser recuperados. Cabe, pois, retomar e refor-
çar alguns aspectos.
No campo lexical, sente-se, além do rico e variado vocabulário,
que em parte já figura correntemente no texto falado e reaparece aqui, a
presença de muitos outros, como: amplexo (23.4.76); androgenia
(10.1.75), catedralescas (14.1.75), cristalização (10.1.75), dúctil
(11.1.75); factível (4.1.75); fossilização (10.1.75), inquestionavelmente,
(10.1.75); mornidão (14.1.75); nuançar, (18.2.73), ogivas (14.1.75); per-
quirir (4.1.75), prescindir (18.2.73), prestidigitador (8.1.75); vaticinar
(30.4.76) etc. etc.
Alguns até se afiguram preciosos, como:

44) de sua doce voz tatibitate; 16.3.76);


45) os uruguaios parecem satisfeitos com a parlapatice (será traduzível)
(6.4.76);
46) A esta altura, para a gente muito jovem, parece parlapatice todo
esse movimento reivindicatório em torno da mulher; 30.4.76);

180
Fala e escrita em questão.

47) despojado de saberetice tipo “Seleções”; 16.3.76).

Em nível de termos técnicos, por conta do próprio desenvolvi-


mento temático específico, registram-se inúmeros. Há inclusive a incor-
poração da linguagem jornalística: Uma voz em off (14.1.75).
Quanto a concessões conscientes à língua popular, além de algu-
mas passagens respingadas na exemplificação retro, há moderação no
uso de gírias e total ausência de termos obscenos e grosseiros. Em rela-
ção a gírias, arrolamos as abaixo, algumas das quais também foram em-
pregadas no depoimento para o Projeto NURC: abilolado (atrapalha-
do); baratinado (tonto) (28.4.76); cara (indivíduo) (24.4.76); encucativo
(confuso) (10.1.75); fisgar (conseguir) (8.4.76; 10.4.76); lixo (desprezí-
vel) (30.3.76); na fossa (deprimido) (30.3.76); pescar (conseguir, perce-
ber); (14.1.75); piche (falar mal) (3.4.76); sacar (entender) (24.4.76);
sorverter (virar sorvete, desaparecer); transa (conluio) (10.4.76; 31.3.75);
transar entre (combinar, pactuar); (10.4.76; 31.3.75); tutu (dinheiro)
(14,4,76). Além dessas, registram-se expressões e frases gírias:

48) entrar com a cara e a coragem (10.1.75; 27.4.76);


49) (...) profissionais que enfiavam a cara no que (...);
50) [levar a vida] Com a cara, a coragem, a garra. (11.1.75);

No caso de abilolado e sorverter, a cronista explica o uso:

51. O herói de Cervantes ficou completamente abilolado – na expres-


são pitoresca da gente do Nordeste.; (negrito da cronista) (grifo nosso);
52. O dinheiro, de repente, sorvetera, como se dizia no jargão da épo-
ca. (grifo nosso)

Nesta reflexão sobre a linguagem culta das crônicas, cabe apontar


alguns “desvios” em face da gramática, justificáveis uns pela intenção de
simplicidade, leveza e coloquialidade; outros, admissíveis, porém, como

181
URBANO, Hudinilson. A linguagem falada e escrita de Helena Silveira.

deslizes ou uso consciente (também verificados no texto falado), que


uma análise mais ampla e profunda talvez possa explicar.
Em termos de concordância, registramos: 53) “Vendeu-se a misé-
ria, as aberrações, as vilanias, o deboche (10.1.75) e 54) “Veja-se os he-
róis de Molière (...)” ao lado de “Vejam-se duas formas de fazer televi-
são” (três linhas antes); e ainda 55) “(...) sentíamos que éramos discrimi-
nados”, referindo-se somente a mulheres, isto é: Clube de Mulheres que
Trabalham em Jornais.
Em termos de colocação, apenas registramos o emprego coloqui-
al da próclise: 56) “Me achava um lixo.” (20.3.76), e em termos de
morfossintaxe, um enquanto que (10.4.76); uns usos do futuro analítico:
57) “Para isto, vou tomar férias “ (20.3.76) e 58) “(...) irá emplacar”
(20.3.76), este de uso enfático, pois o auxiliar irá já está no futuro, e as
curiosas demonstrações de erudição gramatical com o “m’o apaga” e
com a preocupação de não repetir a palavra “abraço”:

59. a) E como posso espiar o meu [vídeo de TV] se a Light m’o apaga,
(ah, este m’o apaga, é lindo não acham?); b) (...) Pois é, Lourenço, não
pude (...) comprar seu livro e dar-lhe meu abraço. Falei com Aroldo
Chiorino, pedi-lhe que desse o amplexo por mim ( amplexo aí vai para
não haver repetição, mas não é um vocábulo do qual eu seja devota.;
(23.4.76; grifo nosso)

2.3.3. Literária

Já vimos que a crônica é de modo geral considerada um misto de


jornal informativo e literatura. E não se pode negar o caráter informativo
das crônicas de Helena Silveira. No entando, deve-se ter em conta, tam-
bém, que grande parte de seus textos são apenas análises e comentários
de fatos e eventos já de conhecimento público. Tanto informando quanto
apenas comentando, Helena Silveira, porém, atua criticamente, com pers-
picácia e graça (às vezes com ironia), elaborando seu discurso com inte-
ligência e arte e despertando nos leitores o esperado prazer estético.

182
Fala e escrita em questão.

E outra não poderia ser sua atitude, de grande conhecimento e


vocação lingüística e literária, como se pode observar nos trechos abai-
xo, em que ela mesma relata depoimentos a seu respeito e seu próprio
comportamento de frustração e superação:

Quando há trinta e um (ou trinta e dois anos ?) entrei para a redação da


“Folha da Manhã” (...) vinha com a incumbência de escrever crônica
social. O dinheiro, de repente, sorvetera, como se dizia no jargão da
época. Pedira a meu amigo Rubens do Amaral que me arranjasse em-
prego e ele prontificara:
– Você vai ser cronista social !”
– Mas eu nunca fui cronista social !
– Basta esquecer todo o português que sabe, escrever bastante bes-
teira, reparar nos chapéus e nos vestidos das mulheres elegantes. “Olhou
bravo para mim, como se eu fosse mordê-lo; “E não venha querer fazer
literatura, não venha querer escrever direito porque senão você está
perdida! Esqueça tudo que seus pais e seus tios lhe ensinaram.
Emburreça!”
Fui para a redação, pus a cabeça sobre a máquina de escrever e come-
cei a chorar como uma idiota. (...) Dia 26 de abril saiu uma coluna
estreitinha assinada Helen, (sic) (...) Rubens do Amaral vaticinou-me
um negro destino de colunista mundana e Nabantino Ramos me cha-
mou a seu gabinete dando-me parabéns:
– “Parece-me que você encontrou um jeito novo: (...) (30.4.76)

Nesse sentido, as crônicas constituem peças jornalísticas, vazadas


numa linguagem utilitária, mas também artísticas, elaboradas em lingua-
gem literária de indiscutível valor.
Páginas atrás alinhamos uma rápida amostra de alguns recursos
que fazem o estilo literário das crônicas. Mas a série toda das exemplifi-
cações, que atestam os vários temas tratados, compõe por si só um painel
muito ilustrativo e auto-explicativo da linguagem literária da cronista.
No presente passo, centrando-nos mais objetivamente na questão,
procuraremos rever e listar alguns recursos observados, agora como um

183
URBANO, Hudinilson. A linguagem falada e escrita de Helena Silveira.

subsídio para estudos estilísticos, mas sem essa pretensão, tarefa fora dos
nossos propósitos, que só um estudo específico e profundo poderá realizar.
Parece-nos que um dos recursos de feição mais literária, sob o
aspecto de poeticidade, é o uso de imagens e metáforas, com ou sem
ironia, elaboradas ou revitalizadas; achados e arranjos pitorescos e artís-
ticos; trocadilhos e jogos de palavras de grande efeito:

60. a) Marisa Raja Gabaglia excede-se nas indagações, borda comen-


tários; b) (...) as câmeras podem ser discursivas borbardeando as figu-
ras; c) O pingue- pongue verbal fere os nervos; d) (...) longos pingues-
pongues pergunta-resposta ; e) (...) chegou a ser inconveniente grifan-
do a intimidade de alguns entrevistados; f) (...) Jardel Filho que me
parece desperdiçado num médico muito mares do sul enxarcado de
álcool. Ao correr da pena espero que o personagem fique mais baiano
e menos Somerset Maughan (grifo nosso; 18.2.73)
61. a) Estava eu posta em sossego, vendo outra emissora, quando me
telefonaram: (14.1.75); b) (...) esses cães que só cometem, na vida, para
com seus donos, uma única infidelidade: a de morrerem antes.; c) Por
vontade própria, tenho que [os tucanos] ficariam [na terra] até viessem
os jardins da Eternidade prosseguindo aquele jardim [paraíso de fronde,
flor e folha] que o médico [Dr. Armando Galo] lhes criara com sua
sensibilidade de nostálgico dos bíblicos rebanhos perdidos... (14.1.75);
62. b) (...) depois de longo e tenebroso inverno (27.4.76);
63. Fazer justiça, meu Deus do céu, é coisa de Deus. (24.4.76; grifo
nosso)

Quanto à forma, Helena Silveira consegue expressividade e efeito


entre outros recursos ora com aliterações que nos parecem consciente-
mente elaboradas, ora com construções bimembres, trimembres e poli-
membres, ora com um uso especial de gerúndio, ora com uma textualiza-
ção literário-coloquial, que nos parecem já incorporados ao seu estilo de
escrever e, no caso dos paralelismos, até ao seu modo de falar.15

15
Já tínhamos observado esse emprego de paralelismos morfológicos, sintáticos e semânti-
cos, no texto falado de Helena Silveira, em análise anterior, o que explica certa inclinação
da jornalista para esse tipo de construção retórica e expressiva: a medida do homem... a

184
Fala e escrita em questão.

Deixando de inventariar exaustivamente as ocorrências de cons-


truções bimembres do tipo “No palco e na tela pequena”; “é o virtuosismo,
a técnica”; “no palco e no vídeo”, “moça meiga, moça bem comporta-
da”; “com exuberância, simpatia”; “personagem poupado, difícil”; “Ele-
gante, desenvolta.” (só no dia 11.1.75), por serem inúmeras, arrolamos
apenas construções tri e polimembres, ainda assim não em relação a to-
das as crônicas:

64. a) Não há necessidade, pois, de calcar a nota sentimental com ter-


nuras, ingenuidades, meiguices, desamparos, nostalgias, saudades e
ainda de contrapeso o face-a-face com injustiças de um homem falível
e fraco; b) Ele, como ninguém, estende ao telespectador a criatura bra-
sileira, os fenômenos brasileiros, a terra, as circunstâncias, a exposição
tranquila, não opinativa, não panfletária (...); c) figurante em cinema,
televisão e comerciais (4.1.75)
65. E já se ouve (...) quando o Canal 5 apresentava O Bem Amado, Os
Ossos do Barão e o Espigão (8.1.75);
66. a) [Os programas] Foram uma onda, a voga, o figurino do dia.; b)
Vendeu-se a miséria, as aberrações, as vilanias, o deboche ; c) até que
haja saturação das vozes, dos falsetes, de trejeitos, das máscaras; d)
crítica temerosa de ser rotulada quadrada, bitolada e outros adas, em
que entra desinformada, também; e) mas tiveram força e audiência e
aplauso; f) E houve audiência e glórias, para produtores e jornalistas e
profissionais que enfiaram a cara; g) Gostei do espetáculo, das can-
ções, música, tudo. (10.1.75);
67. a) Com a cara, a coragem, a garra. ; b) Contestada, amada louvada.
c) a televisão era feita com gente: carne e osso e emoção. (11.1.75);
68. a) Sei que elas [as aves] vivem soltas, como Deus manda, num
paraíso de fronde, flor e folha; b) realizações feitas durante o ano findo
nos setores teatro, artes visuais, televisão dança, música erudita, músi-
ca popular, cinema; c) um mundo de bambus, flores, arbustos. Tucanos
tranquilos, coloridos, docemente entregues à; d) (...): o pássaro, o cão,
o gato é o que sobrou ao homem (14.1.75);

medida do::: do industrial – a medida do comerciante... a do homem de negócios... a do


profissional de TV... e do empreSÁrio de TV... (linhas 1071-76) (A expressividade...” In
Dino Preti, O Discurso Oral Culto, p. 104)

185
URBANO, Hudinilson. A linguagem falada e escrita de Helena Silveira.

69. Porque no terreno movediço das artes, sofismável, mutável,


indefinível (3.4.76);
70. Muiitas vezes, os críticos de teatro, em seus trabalhos apontam
sestros e artistas, diretores e autores e (8.4.76);

Como se pode observar na exemplificação acima, outros meca-


nismos que parecem ocorrer intencionalmente são ora o polissíndeto
(Exemplos 66-e e f), ora o assíndeto (mais freqüentemente), que merece-
riam um levantamento mais completo e uma análise detalhada. Com cer-
ta freqüência emprega também o e no início de frases, como nos exem-
plos 5 a, b, 13, 59-a, 65, 66-f.
Como também se pode observar nas ocorrências 5-b, 33-a e 67-b,
39, 64-a e 68-a, a cronista procurar ganhar maior expressividade por
meio do recurso fonético das aliterações, assonâncias e ecos.
Com relação ao gerúndio, Helena Silveira parece demonstrar cer-
ta preferência pelo uso do gerúndio narrativo ou com função qualificadora,
à maneira de adjetivo. Entre outros, arrolamos:
71. (...) o telespectador se perguntando (4.1.75); 55. Quem ouviu
falar em Valter Franco naquela ocasião, moço pesquisando, sério, se in-
formando ? (10.1.75); 56 a) Mulher fazendo televisão, repartida entre o
trabalho e lar, atormentando-se para que a profissão e vida não entrem
em conflito. Mulher correndo (...); b) Mulher encaixando a gravidez de
fato com a gravidez fabricada (...); c) Mulher (...) levando seu trabalho,
dia a dia, e só deixando o olhar da câmara (...); d) E o demônio das
competições rondando... (11.1.75)
Embora sem uma análise lingüístico-estilística profunda, não pre-
tendemos finalizar sem uma referência especial ao trecho abaixo:

72. Quando chegaram os carros americanos abertos, lembro-me de que


comentou com meu tio-avô: – Isto é uma promiscuidade. O povinho
ouve a conversa da gente. Eu era muito criança e fiquei pensando: quem
era esse povinho? Muito mais tarde saquei: era resumido, o motorista e
o auxiliar. (24.4.76).

186
Fala e escrita em questão.

A cronista consegue associar a naturalidade e simplicidade da lín-


gua oral popular (povinho, saquei; a pergunta) ao uso literário do verbo
ser e à palavra resumido, empregada nas fronteiras do adjetivo e do ad-
vérbio, intensificada pelo bem, produzindo um expressivo e conciso efeito
de coloquial estilizado.

Considerações finais

Concluindo, podemos afirmar, não só com base no levantamento


das ocorrências e nas análises feitas, que a linguagem de Helena Silveira
no texto falado corresponde a sua linguagem usual, naturalmente infor-
mal, simples e culta, e nas crônicas, a uma linguagem coloquial, culta e
sem sofisticação, com propósitos literários, revelando um estilo leve,
entre moderado e simples, que ela parece ter criado especialmente para
seus textos de jornal, temperada com uma cuidada dose de oralidade
funcional e premeditada.
O presente estudo comportaria ainda uma análise contrastiva mais
profunda entre o discurso oral da gravação para o Projeto NURC/SP e o
escrito para as crônicas, mas será tarefa para outra oportunidade. Quere-
mos apenas, por ora, registrar a sensação de que, quando nos deparamos
com um texto falado e um texto escrito literário que estiliza o falado,
ambos nos repassam, em graus diferentes, a essência vital da emoção.

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188
Fala e escrita em questão.

“Videonário”

O contar-se de Lourenço

Helena Silveira

Meu caro Lourenço Diaféria.


Não leitor, você não se enganou de coluna, não. É aqui mesmo. Já
se disse que, hoje em dia, se espia mais pelo video do que por uma janela
A recíproca também vale: espia-se a janela quando não se pode
espiar o video. E como posso espiar o meu se a Light m’o apaga (ah, este
m’o apaga, é lindo não acham?). Falta-me a energia – não a minha, que
esta quanto mais a consumo mais me vem em caudais nunca suspeitadas
– mas a da acima mencionada Light, aquela mesma que, em não se lhe
pagando em tempo devido as devidas contas, corta sua corrente lumino-
sa que vem nos abastecer a casa.
Assim, Lourenço, espio a janela: e você está a enquadrar-se na
própria. Está na ordem do dia, com o seu livro, onde há um gato:
O GATO NA TERRA DO TAMBORIM
Não sou de gatos mas de cães. E sou, sobretudo, de gentes. Sou de
amigos. Curto as pessoas, os colegas. Conversar, através da mímica, com
o antigo puxador de riquixá, na China, é muito mais importante do que
visitar a Grande Muralha. Ir ao Mercado do Jade com o homem no triciclo,
em Changai, pagá-lo, vê-lo devolver a propina mofina com gesto que o
torna, de repente, em singular mandarim de zuarte azul paupérrimo, des-
venda horizontes maiores do que ler discursos de Chu Enlal.
Sempre achei você um Lourenço Silveira e eu uma Helena Diaféria.
Soube que você nasceu no Brás, eu nasci nos Campos Elíseos (que chi-
que!) na chácara de minha bisavó. Mas, literariamente, acho que somos
parentes sangüíneos bem próximos. E tanto é assim que já lhe disse: uma

189
URBANO, Hudinilson. A linguagem falada e escrita de Helena Silveira.

amiga pensou, lendo algumas de suas crônicas, que eu usasse pseudôni-


mo masculino para dizer certas coisas. Como se mulher, hoje em dia, não
pudesse dizer tanto quanto homem!
Pois é, Lourenço, não pude espiar o video apagado, mercê das
diabruras da Light, nem descer dez andares e lá ir à livraria comprar seu
livro e dar-lhe meu abraço. Falei com o Aroldo Chiorino, pedi-lhe que
desse o amplexo por mim (o amplexo aí vai para não haver repetição,
mas não é vocábulo do qual seja devota). Abraço por procuração perde o
calor. Então, como não há falar em TV ao leitor, por culpa da famigerada
Light, ocupo este meu espaço falando de seu gato e de você.
Seu gato literário, logo o verei embora não seja devota do bicho.
Estou agora suficientemente cachorricizada com Bingo Silveira Segun-
do, aquele que deseja substituir o daschund de olhar de Omar Scharif em
Dr. Jivago que tentei pôr em um Caso Especial. Não é uma ressurreição
mas uma ressurreição. (E ressurreição, mesmo, revisor!)
O importante, Lourenço, é que, contando um gato, um cachorro,
uma nação, um amor, a política, o ódio, o fervor, o sexo, o mundo, Deus,
o diabo, o escritor o que faz é contar a si próprio, é narrar-se, é dizer-se.
E a narrativa, Lourenço Diaféria, me interessa exatamente porque somos
bichos da mesma jaula. (23.4.76)

190
Fala e escrita em questão.

REFERENCIAÇÃO E COGNIÇÃO:
O CASO DA ANÁFORA SEM ANTECEDENTE

Luiz Antônio Marcuschi

1. A referenciação textual

Aspecto central da textualização é a organização referencial que


dá continuidade e estabililidade ao texto, contribuindo decisivamente para
a coerência discursiva. Contudo, a construção referencial não é um fato
simples, segundo observam Sanford & Garrod (1982: 102). Construí-
mos espaços referenciais que consistem em domínios explícitos com a
“representação de entidades atualmente mencionadas” e construímos
domínios implícitos que consistem de “cenários colhidos no próprio
texto, mas que o aumentam”. Esses domínios implícitos serão o objeto
de estudo desta análise.
A idéia de continuidade dos referentes, que a referenciação susci-
ta, no caso da construção da progessão referencial, não implica neces-
sariamente retomada dos mesmos referentes, nem sua manutenção com-
pleta, pois o encadeamento referencial organiza-se num sistema de cor-
relações como uma rede multidimensional. Assim, não é uma condição
necessária da textualidade a ligação linear de elementos lingüísticos, já
que a textualização se dá num processo de multilinearização. Exemplo
típico desse aspecto é a anaforização, ou seja, o procedimento anafórico

191
MARCUSCHI, Luiz Antônio. Referenciação e cognição: o caso da anáfora...

que exige atividades inferenciais intermediárias retrospectivas ou pros-


pectivas para a interpretação.
Considerando os diversos aspectos da construção dos encadea-
mentos referenciais, pode-se elencar, entre outros, os seguintes procedi-
mentos gerais, com ou sem continuidade referencial1:

a) retomada de referentes por repetição de itens lexicais mantendo a


correferencialidade;
b) retomada de referentes por sinonímia ou paráfrase baseada na
significação lexical, mantendo ou não a correferencialidade;
c) retomada referencial por pronominalização correferencial;
d) progressão referencial com estratégias realizadas por processos
de associação, ou seja, pela anáfora associativa, sem caráter cor-
referencial; 2
e) continuidade fundada em processos cognitivos realizados por me-
táforas, metonímias, mereonímia etc., sem correferencialidade;
f) progressão textual como construção referencial por inferenciação
baseada em representações mentais sem retomada nem correfe-
renciação.

1
É oportuno ter presente que todo preenchimento anafórico pronominal e toda a relação
anafórica nominal se dá por processos inferenciais, sejam eles automáticos ou não. Meu
interesse centra-se precisamente nas atividades inferenciais não automáticas e de caráter
cognitivo-pragmático envolvidas na compreensão de pronomes sem referentes pontuali-
zados. Note-se que nos procedimentos aqui citados não estão incluídas as continuidades
elípticas, ou seja, aqueles casos de preenchimento do que se chama de anáfora zero.
Contudo, estes casos poderiam estar subsumidos em (a), desde que o preenchimento de
uma elipse é seu preenchimento por um elemento antecedente sem que haja um indicador
explícito.
2
Pode-se levantar aqui uma objeção quanto à distinção feita entre d) e e) na medida em
que a associação também é um proceso cognitivo, como os demais. Contudo, creio que
há uma distinção sistemática a fazer entre conhecimentos estritamente lexicais que emba-
sam em boa medida as associações e conhecimentos enciclopédicos e pessoais que não se
inserem nos conhecimentos lexicais. Esta questão não é aqui tratada e admito que as duas
sugestões d) e e) poderiam, em última análise e numa justificativa refinada, serem
distinguidas por outros meios e talvez serem parcialmente fundidas.

192
Fala e escrita em questão.

Como se nota, as várias formas de construção referencial sugerem


que a cadeia referencial não se funda exclusivamente na correferencia-
lidade, o que admite uma noção ampla de anáfora. Por outro lado, pres-
supõe-se uma conceituação não realista de referência. Assim entendida,
a noção de referência não supõe que os referentes sejam necessariamente
objetos do mundo, mas pode postulá-los como objetos de discurso. Essa
é a posição adotada neste estudo, seguindo sugestões teóricas de Apothéloz
e Reichler-Béguelin (1995) e seus detalhamentos em Marcuschi (1998);
Koch e Marcuschi (1998). Uma tal compreensão de referência é funda-
mental para toda a reflexão aqui desenvolvida, evitando-se tomar a lín-
gua como instrumento ou como determinada e transparente. Adota-se,
pois, uma noção de língua como atividade cognitiva e interativa, social e
histórica, indeterminada e heterogênea.

2. Referenciação anafórica

Em seu estudo sobre as Anáforas e Pronomes, Kleiber (1994:


143) frisa que o pronome ele continua desafiando os analistas. Seu fun-
cionamento referencial nas línguas naturais é peculiar porque diferente-
mente de outros designadores tais como “descrições definidas, demons-
trativos, pronomes de 1ª e 2ª pessoa, nomes próprios etc, em que os me-
canismos referenciais são bem conhecidos, o pronome ele coloca um
enigma quanto ao seu funcionamento referencial”. O pronome ele não
descreve nada, não tem estatuto semântico estável e no entanto designa
referentes particulares, definidos e ao mesmo tempo pode ser opaco e
designar até o que não existe,3 o que não ocorre com eu/tu. O pronome
3
Na realidade, em francês, há uma construção que não é possível com o pronome ele em
português. Trata-se da conhecida frase (cf. Kleiber, 1994: 144):
“Attention! Il est dangereux!”
É evidente que o il neste caso não designa algo como existente, mas uma situação. Já em
português diríamos:
“Atenção! Isso é perigoso!”
neste caso, usa-se um indefinido, que não é marcado quanto à designação referencial,
mas genérico.

193
MARCUSCHI, Luiz Antônio. Referenciação e cognição: o caso da anáfora...

ele tanto substitui (correferencia) como introduz ou modifica referentes


textuais.
Dentro do quadro acima desenhado, esta análise dedica-se a um
aspecto não-canônico do funcionamento anafórico do texto, ou seja, aquele
funcionamento que vai além do emprego do ele correferencial.4 Como
já são numerosos e acessíveis os estudos existentes sobre a anáfora, não
parece oportuno resenhá-los aqui. Para os objetivos do momento, parti-
rei da posição de Milner (1982:18) 5, a qual não adotarei, que define a
anáfora tratando-a no contexto de uma teoria referencial fundada em
postulados de base vericondicional e na perspectiva gerativista. Já que
essa não é a posição adotada neste estudo, será posteriormente revista,
precisamente pelo tipo de problema aqui tratado. É, no entanto, útil pela
clareza com que analisa a questão e pelo contraste que oferece com o
problema por mim levantado. Esta é a defninição de anáfora dada por
Milner (1982):

4
Quanto ao problema da correferencialidade, há ainda um aspecto que não foi de todo
esclarecido. Não convém confundir a retomada pronominal correferencial com a reapre-
sentação do referente tal como ele se encontra naquele momento textual. Isto é, convém
não confundir a troca de estado de um referente com o próprio referente, tal como lembra
Kleiber (1994: 151). Este aspecto recebe a seguinte observação de Kleiber (p. 151): “no
momento da interpretação de um pronome subseqüente, esse modelo contextual ou seu
conteúdo descritivo, em suma, a representação mental do referente, não é jamais total-
mente idêntica àquela do SN antecedente correferencial”. A anáfora situa-se sempre num
foco discursivo imediato que se dá no universo textual (discursivo), o que faz com que a
anáfora não seja vista apenas como um mecanismo de reenvio automático a elementos
referenciais, mas também como um mecanismo de construção de foco no próprio proces-
so discursivo com seleção de espaços não abarcados pelo elemento referido. De certo
modo, este é tipo de funcionamento específico das anáforas aqui trabalhadas.
5
Embora considere o trabalho de Kleiber (1994) muito mais completo que o de Milner
(1982), a vantagem de Milner está precisamente na radicalidade com que trata e define a
anáfora, sem se preocupar em matizar sua posição gerativista, mesmo sabendo que há
uma série de problemas com sua teoria. Além disso, Milner situa sua posição dentro de
um quadro ateórico precedido de uma teoria da referência, indispensável para o tratamen-
to da anáfora. Este aspecto fica a dever em Kleiber.

194
Fala e escrita em questão.

“Ocorre uma relação de anáfora entre duas unidades A e B quando a


interpretação de B depende crucialmente da existência de A, a ponto
de se poder dizer que a unidade B não é interpretável a não ser na
medida em que ela retoma – inteira ou parcialmente – A. Essa relação
existe quando B é um pronome no qual a referência virtual não é esta-
belecida a não ser pela interpretação de um N” que o pronome “repe-
te”. Ela existe igualmente quando B é um N” em que o caráter definido
– isto é, o caráter de identidade do referente – depende exclusivamente
da ocorrência, no contexto, de um certo N” – com efeito, geralmente, o
mesmo do ponto de vista lexical.” (p. 18)

Salta à vista nesta definição de Milner a noção restrita de anáfora,


ou seja, a idéia de que a anáfora envolve continuidade (retomada) pelo
menos parcial de referentes. Além disso, Milner transforma em condição
necessária a relação entre a anáfora e um antecedente textual quando
propõe como base da anáfora a “relação entre duas unidades A e B”
(que o autor chamará de “anaforizado” e “anaforizante” p. 32). Isto vale
mesmo para o caso de se tratar de anáforas nominais do tipo sinonímia
ou repetição lexical (o autor distingue entre anáforas nominais e anáforas
pronominais, p. 32).6 Contudo, Milner não supõe como condição ne-

6
Quanto a estas duas categorias, Milner (1982: 38-39) estabelece o seguinte quadro geral
de diferenças:
Anáfora pronominal Anáfora nominal
O anaforizante não é autônomo e está des- O anaforizante é autônomo e provido duma
provido de referência virtual própria referência virtual própria
O efeito é de fornecer uma referência virtual O efeito é de identificar o referente atual do
ao anaforizante; não de idenficar o anaforizante e não de fornecer uma referên-
referente atual cia virtual
O anaforizante não tem necessariamente O anaforizante tem necessariamente uma re-
uma referência atual ferência atual
O anaforizado não tem necessariamente O anaforizado tem necessariamente uma re-
uma referência atual; basta-lhe que tenha ferência atual
uma referência virtual
A referência atual do anaforizado pode ser A referência atual do anaforizado deve ser não
identificada ou não, identificável ou não. O identificada; o anaforizado deve ser indefini-

195
MARCUSCHI, Luiz Antônio. Referenciação e cognição: o caso da anáfora...

cessária a retomada correferencial para o processo anafórico. Assim, pode


sustentar que anáfora e correferência não são noções equivalentes (1982:
32).7
Uma tal definição estrita de anáfora tem a vantagem do controle
do fenômeno, mas a desvantagem da limitação da observação e impossi-
bilidade de explicação de um grande número de referenciações textuais
que, apesar de serem anafóricas, não são do tipo desenhado por Milner.
Assim, considerando as estratégias (a-f) elencadas no primeiro item aci-
ma, podemos dizer que a noção de anáfora tal como proposta por Milner,
só dá conta dos processos e estratégias a), b), c), mas não dá conta de d),
e) f).

anaforizado pode, pois, ser definido ou inde- do. A referência atual do anaforizado deve ser
finido, especificado ou genérico identificável. Ela deve, pois, ser particular e
não pode ser genérica nem quantificada
A relação de anáfora tem como condição ne- A correferência – virtual ou atual – não é nem
cessária e suficiente a correferência virtual necessária nem suficiente
Com base nessas especificações, Milner (1982: 39) chega ao seguinte princípio geral:
“O anaforizante – nominal ou pronominal – tem exatamente o mesmo grau
de particularidade que o anaforizado.”
Certamente, não podemos concordar com a limitação estrita imposta por este princípio,
pois ele impede que se consiga tratar a maioria dos casos de anáforas, especialmente as
nominais, que não preenchem esse requisito. E elimina do campo de análise os casos que
trato neste estudo.
7
Muitos outros aspectos relevantes, levantados por Milner (1982) a propósito da anáfora
poderiam e deveriam ser aqui tratados. Contudo, não é o caso neste estudo. Mas é bom
lembrar um traço fundamental das anáforas pronominais. Mesmo sendo correferenciais,
elas não são transitivas (p. 33). Assim, por exemplo, no caso de uma seqüência como:
– um livro…ele… ele… o …
não se pode imaginar que o esteja retomando o pronome ele imediatamente anterior, mas
sim o nome inicial: um livro. Isto porque um anaforizante será sempre um anaforizante e
um anaforizado será sempre o mesmo anaforizado. Esta é apontada por Milner (1982: 33)
como uma das diferenças entre as anáforas nominais e pronominais. Veja-se que no caso
da seqüência:
– um livro… o livro… o livro…
a segunda ocorrência de o livro retoma anaforicamente o livro que lhe antecede imediata-
mente e não um livro, tal como ocorria com o pronome ou com o livro na primeira se-
qüência acima.

196
Fala e escrita em questão.

A argumentação de Milner (1982) para a restrição conceitual aqui


observada é a mesma da maioria dos autores que adotam essa posição,
isto é, um termo, seja ele um nome ou um SN, quando tem autonomia
referencial, pode referir independentemente do contexto textual. Já o pro-
nome não pode atuar assim, porque não tem autonomia referencial. Por-
tanto, uma entrada A de um artigo indefinido + nome seguida de uma
entrada B com outro artigo definido + nome, sugere uma retomada de A
por B. Essa identidade referencial definida de A = B só pode dar-se,
segundo Milner, se entre A e B existir uma relação semântica prévia,
independente do texto. Neste caso devem A e B ser no mínimo sinôni-
mos ou, no caso ideal, uma repetição do mesmo termo. Para o caso de
pronomes, deve ocorrer um antecedente como ponto de ancoragem in-
terpretativa, já que pronomes não têm autonomia referencial.
Diante do exposto, Milner (1982: 21-22) analisa os exemplos (1,
2, 3) de maneira diversa da que faremos neste ensaio. Consideremos os
exemplos:

1. Um caçador chegou ontem; o imbecil havia errado todos os tiros.


2. Teu irmão chegou ontem; o imbecil havia errado todos os tiros.
3. Teu irmão chegou ontem; o esposo de Joana havia errado todos
os tiros.

Nos casos (1) e (2) o artigo definido diante de imbecil obriga-nos


a considerá-lo como uma retomada correferencial do elemento autôno-
mo (indefinido) anterior sem recorrer a algum conhecimento extra-tex-
tual. Já no caso de (3), parece que a autonomia referencial da expressão
“o esposo de Joana” impede uma relação de retomada imediata sem
algum conhecimento suplementar. Para Milner, os exemplos acima dife-
rem entre si por várias razões:

(a) em (1) teríamos uma anáfora pressuposicional baseada numa relação entre
dois termos que assumem seus referentes na relação cotextual;

197
MARCUSCHI, Luiz Antônio. Referenciação e cognição: o caso da anáfora...

(b) em (2) haveria dificuldade em admitir uma relação anafórica tal que no
caso anterior e, para Milner, no máximo, trata-se de uma anáfora contex-
tual baseada em conhecimentos outros do que os textuais;
(c) já no caso de (3) ter-se-ia nitidamente uma anáfora contextual que exorbita
a competência pronominal para sua interpretação.

Embora a tenha sugerido, Milner (1982: 22) julga duvidosa a no-


ção de anáfora pressuposicional e segundo o autor nada obriga a
considerá-la como um caso de anáfora. Por outro lado, descarta os casos
(2) e (3) como anafóricos. Milner (1982: 27) admite que casos como (4)
possam ocorrer e realizar uma espécie de anáfora lexical:

4. Um boi passava; o quadrúpede…

A relação entre quadrúpede e boi se dá pelo conhecimento lexical


e não por uma razão contextual, pressuposicional ou textual.
Não é necessário prosseguir com esta análise da posição de Milner
(1982), que representa boa parte dos estudos existentes sobre a anáfora
partidários de uma visão estrita do problema, restringindo a anáfora a
relações de retomada baseadas em menções cotextuais imediatas. A po-
sição aqui adotada tentará rever e ampliar a noção de anáfora proposta
por Milner (1982), a fim de dar conta dos casos de progressão referencial
elencados em (f). Quanto aos casos d) e e), trata-se de uma situação
complexa analisada detidamente nos trabalhos constantes em Schnede-
cker, Charolles, Kleiber e David (1994).
Em conclusão a este item, é conveniente lembrar que o debate
sobre a interpretação da anáfora não está iniciando. Ela já dura há al-
gum tempo. Excelentes discussões a este respeito e com sugestões de
caráter diverso, oscilando entre o pragmático e o cognitivo, podem ser
encontradas, por exemplo, em Ariel (1994). Para Ariel (p. 4) o problema
da interpretação anafórica não é uma questão lingüística, mas de acessi-
bilidade franqueada intencionalmente por parte do falante em relação ao

198
Fala e escrita em questão.

ouvinte. Já para Levinson (1987), parece que uma revisão dos postula-
dos griceanos seria suficiente. Na realidade, temos, no caso de Ariel,
uma perspectiva que privilegia a cognição (representações mentais) e, no
caso de Levinson, uma perspectiva mais de natureza pragmática (proje-
ções inferenciais situacionais).
Talvez se possa dizer que a interpretação referencial das anáforas
não é uma questão de implicaturas (pragmáticas), nem de pressuposi-
ções (semânticas) ou algo deste tipo, e sim uma questão de representa-
ções ou de espaços mentais gerados no contexto discursivo e com obje-
tivos específicos. Assim, a perspectiva que considera processos cognitivos
na construção referencial anafórica parece estar mais perto do acerto e
será por mim adotada aqui.

3. Referenciação anafórica sem antecedente cotextual

Neste estudo, analiso apenas o caso específico de referenciação


textual, representado por (f), que trata da construção referencial com pro-
nomes de terceira pessoa sem antecedente explícito no cotexto. Estes
casos distinguem-se da anáfora associativa (e mereológica) em vários
pontos, como ainda veremos em detalhe ao longo do estudo. A diferença
essencial deste caso para os dois anteriores (d, e), reside no fato de não se
dar uma atividade remissiva nem de retomada. Na verdade, inexiste aqui
a relação de anaforizado e anaforizante exigida por Milner (1982) para a
presença de uma anáfora. Por outro lado, este tipo de continuidade tex-
tual é tido como típico (talvez exclusivo) da oralidade, sendo em geral
condenado na escrita. Mas o fato é que há gêneros textuais escritos, tais
como as cartas, os bilhetes e também noticiários de jornal que se servem
dessa estratégia de textualização.
A análise deste aspecto da textualização é importante e, supreen-
dentemente, não foi ainda tratada em detalhe sob seu aspecto cognitivo.
Foi lembrada em vários momentos por Kleiber (1994), mas sem analisá-
la nas suas características cognitivas e pragmáticas, já que a trata como

199
MARCUSCHI, Luiz Antônio. Referenciação e cognição: o caso da anáfora...

fenômeno vinculado especificamente ao funcionamento do léxico. Ou-


tros autores dedicaram-se ao tema, tais como Apothéloz (1995), Kleiber,
Schnedecker e Ujma (1994) e, anteriormente Yule (1982), Tasmowski-
de Ryck e Veluyten (1982 e 1985) entre outros, como se pode observar
em Kleiber (1994).
A importância da análise da anáfora sem antecendente explícito
deve-se ao fato de não se ter uma explicação no nível do código e de se
ter que partir para uma fundamentaçaão cognitiva e pragmática. Isto faz
com que essas anáforas não se submetam às condições de verdade dos
enunciados, tal como observa Kleiber (1994: 11). Tratadas pela gramáti-
ca tradicional como agramaticais e não estudadas pelo gerativismo e pela
sintaxe em geral, estas anáforas são mais comuns na língua falada, mas
ocorrem também na escrita, especialmente de caráter informal.
Muito conhecido e estudado é o caso da anáfora pronominal cor-
referencial na sua forma canônica representada por este exemplo:

5. Marina concluiu o Primeiro Grau. No ano que vem, ela iniciará o


1º ano do Segundo Grau.

Em (5), o pronome ela retoma o referente Marina correferencial-


mente com marcas morfossintáticas (de gênero e número). Isto contrasta
com o caso da anáfora tida como imprópria por alguns autores, já que
cancela a relação anafórica prototípica, ou como conceitual (um caso de
silepse), por outros, e que se dá como solução de esquemas cognitivos.
Veja-se um caso típico:

6. A equipe médica continua analisando o câncer do Governador


Mário Covas. Segundo eles, o paciente não corre risco de vida.

Em contrapartida a (5), no exemplo (6) o pronome eles não tem


um referente cotextual antecedente, o que o torna não-correferencial.
No entanto, sabemos a que é que o pronome se refere. A rigor, a ativida-

200
Fala e escrita em questão.

de inferencial interpretativa em (6) funda-se num conjunto de operações


relativamente complexas e apresenta algumas características não abarca-
das pela análise gramatical.
Neste estudo, estaremos observando uma série de casos do tipo
(6) com o objetivo de fundamentar os processos desenvolvidos para sua
construção e interpretação em discursos autênticos, de modo especial na
oralidade. Será aqui tentada uma tipologia desses casos com a indicação
das respectivas diferenças operacionais e processuais. Na falta de um
nome genérico para todos os tipos, sugiro, provisoriamente, adotar a ex-
pressão anáfora esquemática (AE) para designá-la. Também podería-
mos chamá-la de anáfora cognitiva, mas este nem sempre é o caso.
Melhor termo poderia ser, também, anáfora de discurso, o que não equi-
vale a chamá-la de anáfora discursiva, pois ela se distingue dos dêiticos
textuais ou discursivos.

4. Características da Anáfora Esquemática (AE)

Muitas são as características da Anáfora Esquemática (AE),8 tal


como tentarei mostrar a seguir. Há aspectos morfossintáticos, semânti-
cos, cognitivos e pragmáticos bastante específicos que constituem esse
fenômeno como um caso particular de funcionamento discursivo essen-
cialmente ligado à enunciação.
A AE, segundo lembra Kleiber (1994: 163), não é um “uso para-
digmático do pronome “ele(s)” e suas variações átonas do tipo “-o(s)”.
Analisando o exemplo (6), percebe-se que a AE apresenta pelo menos as
seguintes características que valem para a maioria dos casos:

a) não tem antecedente explícito no cotexto

8
Lembro aqui que a anáfora esquemática, tal como a trato neste estudo, não se confunde
com as chamadas anáforas plurais representadas por casos do tipo: “Todo indivíduo que
tem um burro bate nele”. O nele neste caso é um plural, pois indica muitos burros, ou
seja, o burro de cada um. Veja-se, a respeito a obra de Hornstein.

201
MARCUSCHI, Luiz Antônio. Referenciação e cognição: o caso da anáfora...

b) não é correferencial
c) não é linearmente continuativa
d) não apresenta congruência morfológica com algum elemento
cotextual
e) é inferencial, mas não logicamente inferida 9
f) refere uma pluralidade indeterminada (Kleiber, 1994: 170)
g) introduz elementos novos como dados

Um detalhamento dessas características será apresentado logo após


o desenvolvimento de um modelo explicativo da resolução das AE.
Alguns aspectos podem ainda ser observados nesse tipo de anáfo-
ra, como o faz Kleiber (1994: 164), ao notar que esse pronome está geral-
mente no plural “eles”, na forma masculina, sugerindo com isso que, se
por um lado não apresenta a restrição morfossintática como no caso das
anáforas correferenciais, por outro lado, apresentaria restrições formais
(=masculino+plural). Esse plural porta uma característica referencial cole-
tiva, realizando uma “referência indireta”. A forma “eles” quase sempre
está para pessoa ou ser animado, o que levou Moignet (1981: 162, apud
Kleiber 1994: 163) a denominá-los de “pessoa gregária”. Contudo, não
tem a ver com o nós ou a gente como plurais genéricos (cf. Kleiber, 1994:
169). A AE é uma anáfora que sugere coletividade, mas de indivíduos de
algum modo discretizados, e não genericamente como um indefinido.
Um teste de substituição do pronome masculino pelo feminino
(forma marcada), ou o plural pelo singular, colocaria o problema da iden-
tificação, pois em não havendo um antecedente, não seria possível reali-
zar a inferência necessária. Contudo, é possível que ocorra no singular
feminino, como no caso deste exemplo:

7. Os alunos da primeira série aprenderam as vogais. Ela utilizou


um método novo para ensiná-los.

9
Com a expressão “logicamente” entendo aqui apenas a indução e dedução. Poder-se-ia
falar num tipo de lógica abdutiva, mas isso é questionável, embora alguns autores a
imaginem possível nestes casos.

202
Fala e escrita em questão.

Neste caso temos um frame de escola primária em que trabalham


no geral professoras (uma em cada turma), o que nos levaria a identi-
ficar ela como sendo a professora desses alunos. O mesmo ocorre num
caso do tipo (8):

8. Às 4.00 h da madrugada a polícia invadiu o bordel e elas saíram


correndo porta afora.

Não é necessário muito esforço para se inferir que elas tem como
referente o conjunto das prostitutas que lá se encontravam (e não um
grupo de policiais femininas). Já no caso (6) não poderíamos pôr o prono-
me no feminino plural, pois não teria uma interpretação plausível. Veja-se:

* 6a. A equipe médica continua analisando o câncer do Governador


Mário
Covas. Segundo *elas, o paciente não corre risco de vida.

Parece razoável que com “equipe médica” se tenha em mente um


conjunto de indivíduos designados pelo gênero masculino, o que não
significa que todos os médicos sejam homens. Esta questão leva a postu-
lar que o conjunto referido é coletivamente representado e não tem ca-
racterísticas existenciais, ou seja, como aponta Kleiber (1994: 170), não
se trata de um funcionamento de tipo “definido”. Apenas o modo de
introdução é como se fosse definido. E este é um aspecto curioso, pois se
dá um “novo” com a estratégia referencial do “conhecido”. Isto nos faz
pensar no status semântico desses referentes (daí minha preferência por
designá-los como objetos de discurso).
O fato de encontrarmos preferencialmente seres humanos refe-
renciados pela AE é bastante significativo, pois no geral anaforizam-se
seres com o traço semântico {+animado} e raramente entidades com o
traço {–animado}. Estes em geral são retomados por repetição lexical ou
sinonímia. No caso das AE, isto se torna ainda mais saliente pelo tipo de

203
MARCUSCHI, Luiz Antônio. Referenciação e cognição: o caso da anáfora...

conjunto que construímos. Contudo, temos exemplos de seres não hu-


manos e de entidades inanimadas pronominalizadas desta forma. Vejam-
se estes dois exemplos citados por Kleiber (1994):

9. Adotei um gato lingüista porque eles (os gatos) rosnam em


todas as línguas.
10. Comprei um Toyota porque eles (os carros T) são robustos e
econômicos.

Note-se, no exemplo (10) que, segundo Kleiber (1994: 151), Toyota


é um referente particular (um carro dessa marca), sendo que o pronome é
plural e não específico, designando todos os exemplares da classe. Não
há antecedentes textuais para o pronome eles, mas um contexto discursi-
vo adequado para inferir do que se trata referencialmente. Nenhuma ex-
plicação morfossintática dá conta desse fenômeno, de modo que se deve
apelar para a situação discursiva da enunciação como desencadeador do
processo inferencial interpretativo.
Um outro teste que permite perceber uma característica interes-
sante desse tipo de anáfora sem antecedente é o de produzir enunciados
negativos (Kleiber, 1994: 154-55). O que se observa é que há uma certa
assimetria entre as anáforas correferenciais e não-correferenciais do tipo
aqui analisado. Veja-se o caso de:

*10’. Não comprei um Toyota porque ele é vermelho.


10”. Não comprei um Toyota porque eles são todos vermelhos.

Como se vê, o enunciado *10’ sofre uma restrição que diz que não
se pode predicar referencialmente elementos negados. Essa restrição não
vale para 10”. Neste segundo caso parece que se dá uma predicação
atributiva e não referencial. Essa questão mereceria mais atenção, pois
existem mais assimetrias entre os dois usos pronominais apontados. Pa-
rece que a restrição acima vale de modo especial para as subordinadas

204
Fala e escrita em questão.

causais que impedem predicações correferenciais de antecedentes nega-


dos.
Embora os referentes da AE não sejam inferidos de elementos
lingüísticos do tipo N ou Det+N ou N+Modificador de forma explícita,
sua inferência se baseia em elementos textuais. Nem sempre se trata de
algum elemento lexical específico, podendo ocorrer o caso de uma série
de elementos ou até mesmo de uma situação desenhada discursivamente.
Na realidade, isto torna as AE um fenômeno da enunciação. Por isso
mesmo, não pode a AE ser analisada com base nos postulados vericondi-
cionais.
Embora, como vimos acima, não se trate de um uso definido do
pronome, ou seja, não se constrói um elemento identificável, isto pode
ocorrer em casos específicos em que o pronome usado é “ele” ou “ela”,
tendo em vista o elemento textual que propicia a inferência. Veja-se este
caso:

11. O casal discutia aos berros. Ela (a mulher) chorava convulsiva-


mente.

Nestes casos, temos um item lexical que comporta um conjunto


identificável por dois aspectos: (a) um casal contém extamente dois indi-
víduos; (b) de sexo diferente (nos casos mais comuns!). Esse enquadre
mental permite que se faça uma referenciação discreta (contingente). No
geral, porém, como lembra Kleiber (1994: 171), temos uma referência
“virtual”, ou seja, elementos que não são designados quantitativamente
nem nomeadamente, como neste exemplo:

12. Ontem à noite estive num concerto. Eles (os músicos) tocavam a
9ª Sinfonia.

Em (12), os músicos podem ser homens ou mulheres e não se sabe


quantos: se 1, 2, 3 … n. O que se tem são características de indeterminação,

205
MARCUSCHI, Luiz Antônio. Referenciação e cognição: o caso da anáfora...

coletividade e virtualidade, embora não seja uma identificação simples-


mente genérica (do tipo: alguém), pois são indivíduos identificáveis. O
curioso no caso do estatuto da referenciação coletiva do “eles”, segundo
Kleiber (1994: 173), é que o “eles” tem uma caracaterística que torna
seus referentes a uma só vez indeterminados e determinados, pois em-
bora não sejam discretizados (contingentes), também não são genéricos
(são idenficáveis). Trata-se de uma “entidade coletiva de tipo especial”,
na formulação de Kleiber (1994: 173), que designa indivíduos virtuais
(não atuais).
Resta fazer aqui uma última observação que deve ser retomada
posteriormente e envolve um dos núcleos da identificação referencial.
Vejamos alguns dos exemplos acima sob um aspecto diverso para expli-
citar melhor a questão reduplicando parte dos enunciados:

6. A equipe médica continua analisando o câncer do Governador


Mário Covas. Segundo eles (os médicos) o paciente não corre
risco de vida.
6a. A equipe médica continua analisando o câncer do Governador
Mário Covas. Segundo eles [ …………]
9. Adotei um gato lingüista porque eles (os gatos) rosnam em todas
as línguas.
9a. Adotei um gato lingüista porque eles [ ……………]
10. Comprei um Toyota porque eles (os carros T) são robustos e eco-
nômicos.
10a. Comprei um Toyota porque eles [ ………………]
12. Ontem à noite estive num concerto. Eles (os músicos) tocavam a
9ª Sinfonia
12.a. Ontem à noite estive num concerto. Eles [ ……………]

O que se observa aqui é que nem tudo se deve ao pronome eles na


sua relação com o co(n)texto anterior, pois a simples exclusão do trecho

206
Fala e escrita em questão.

subseqüente torna praticamente impossível construir o conjunto de enti-


dades referidas pelo pronome. Aquele “eles” poderia receber uma deter-
minação referencial dada pelo que se segue e assim ser um uso catafórico
do pronome. Há, portanto, mais do que uma relação de um cotexto ante-
cedente e um pronome; há uma conformação interpretativa posterior.
Não se pode pôr qualquer coisa no lugar de [ ………]. É certo que nem
todos os casos de AE se dão com este tipo de condicionamento, mas uma
boa parte deles cumpre esta condição.
Em suma, o que se tem aqui como resultado notável e pouco frisa-
do até hoje nesse tipo de estudo, é que as anáforas sem antecedente explí-
cito e, em especial as que se dão na exploração de espaços mentais gené-
ricos, têm sua definição referencial discursivamente determinada por
aspectos pós-pronome. Veja-se o caso (9):

9. Adotei um gato lingüista porque eles (os gatos) rosnam em


todas as línguas.
9a. Adotei um gato lingüista porque eles [ ……………]

Poderíamos imaginar algo assim:

9a’. Adotei um gato lingüista porque eles (os lingüistas) gostam


de bichos de estimação pequenos.

Não parece necessário prosseguir com este tipo de demonstração


para comprovar que a fórmula:

“............⇐ [PRO] ⇒ ..........”

mostra que o pronome anafórico em casos desse tipo tem uma cabeça de
Janus, ou seja, apresenta um caso de dupla determinação, sendo anaca-
tafórico se é que um termo desses pode dizer algo.

207
MARCUSCHI, Luiz Antônio. Referenciação e cognição: o caso da anáfora...

5. Anáfora no caso de contextos referenciais evolutivos

Embora não tenha muito a ver com o caso específico aqui em


pauta, parece-me instrutivo abordar a questão de progressão referencial
em contextos cognitivos específicos baseados em problemas de ordem
ontológica e não só categorial. Baseio-me, aqui, num estudo de natureza
um tanto diversa e com questões mais complexas, levado a efeito por
Kleiber (1998). Trata-se da questão da anáfora ele em casos que, embora
tendo um antecedente identificável, a relação não se dá na forma de cor-
referencialidade ontológica ou categorial, pois há um suposto “processo
evolutivo” ou uma mudança de estado do elemento referido.
Kleiber parte das observações de Asher (1997) sobre os contextos
de destruição. Neste caso parece que várias teorias convergem para o
mesmo ponto, ou seja, temos uma convergência da SDRT (Segmentation
Discourse Representation Theory) com a estrutura discursiva, semântica
lexical, semântica composicional e a teoria da coerção do tipo segundo
Pustejovsky (1995). A questão é como explicar a referenciação de “pro-
nomes evolutivos”. Esta designação de pronomes evolutivos é criticada
por vários autores e não parece sustentável, mas não vem ao caso neste
momento, pois de igual forma poderíamos dizer que para as anáforas
sem antecedente explícito não se daria uma evolução referencial.
Para Kleiber (1998: 206), a posição teórica mista apontada expli-
ca também como usamos e criamos metonímias no discurso. Vejamos o
caso específico dos verbos de destruição. Tomemos estes exemplos:

13. A bomba pulverizou o Volkswagen. Em seguida a polícia examinou-o


cuidadosamente.
14. O fogo no museu consumiu uma tela magnífica. O conservador do
museu tentou restaurá-la em seguida.

Qual é de fato o referente dos pronomes sublinhados em (13) e


(14)? Para Kleiber, casos de destruição ou modificação de referentes, ou
seja, enunciados em que os verbos ou os elementos de uma predicação

208
Fala e escrita em questão.

envolvem mudanças, exigem cuidado na identificação referencial, já que


é posível fazer várias relações. Pode-se inclusive considerar relações tem-
porais. Vejamos estes exemplos:

15. A bomba destruiu um VW . Ele desapareceu no fogaréu.


16. A bomba destruiu um VW . Mas ele nunca havia andado mesmo.
17. A bomba destruiu um VW . Ele estava estacionado no parque.

Para Kleiber (1998: 208), podemos dizer que três são os fatores
que entram em questão para resolver o problema posto pelos pronomes
nos casos (13-17):

(i) a semântica lexical de verbos tais como destruir, matar, queimar, pul-
verizar... faz com que os objetos ou entidades em questão nesses casos
não mais existam após sofrer tais ações. Assim, os elementos da pro-
posição a que apresenta a primeira entrada e da proposição b que re-
presenta suas retomadas não são necessariamente da mesma entidade
antes da destruição, ou seja, temos que considerar aqui as entidades
num tempo ti e um tempo tj
(ii) as relações binárias de discurso que ligam as proposições entre si se-
guem certas condições. Em 13) e 14) trata-se de uma relação de nar-
ração que une as proposições; em 15) é a elaboração; em 16) é o
contraste e o pano de fundo; em 17) é a elaboração. Note-se que: (a)
o plano narrativo que se estabelece em 13) e 14) na seqüenciação de
um evento a para um evento b pode identificar a validade dessa rela-
ção. Assim, se o pronome retoma o elemento anterior em tempo ante-
rior ou posterior à destruição é relevante para o processo referencial e
para a construção da coerência textual; (b) na elaboração, o evento
descrito em b (situação subseqüente) contribui para a culminação do
evento descrito em a; na realidade, b é a parte final da fase preparatória
de a; (c) no pano de fundo (background) o evento descrito em b
causou o evento descrito em a.

209
MARCUSCHI, Luiz Antônio. Referenciação e cognição: o caso da anáfora...

(iii) a hipótese de que as pressuposições de um enunciado que comporta


um evento devem estar já validadas no pré-estado desse evento. Essa
hipótese permite notadamente inferir, em 13) por exemplo, que o VW
devia fazer parte das pressuposições do pré-estado de b, ou seja, do
evento descrito pela segunda fase de 13).

A conjunção das condições (i) – (iii) bloqueiam o uso dos prono-


mes em 13) e 14):

13. A bomba pulverizou o Volkswagen. *Em seguida a polícia examinou-


o cuidadosamente.
14. O fogo no museu consumiu uma tela magnífica. *O conservador do
museu tentou restaurá-la em seguida.

Nota-se uma inconsistência entre o pós-estado da primeira frase e


o pré-estado da segunda frase. Trata-se de uma situação narrativa em que
o elemento introduzido na segunda frase não equivale ao primeiro, pois
passou por uma destruição. Trata-se de um pronome cujo referente é
discursivo, ou seja, retoma aspectos da narrativa.
Já no caso de 15), 16) e 17) temos outros aspectos a considerar, tal
como apontado acima em (iii). Vimos que em 15) se dá uma elabora-
ção; em 16) um background e em 17) um contraste e background.
Contudo, há algumas relações apontadas por Kleiber (1998: 211) que
não são afetadas com verbos de destruição, tal como nestes casos:

18. Fígaro, nosso gato, comeu um rato enorme. Em seguida, digeriu-o


durante o dia inteiro.
19. O compactador comprimiu um VW. Em seguida, um guindaste enor-
me removeu-o para um caminhão.
20. Descaroce, descasque e corte as maçãs, caramele-as com açúcar e
escorra-as por 20 minutos. Em seguida, ponha-as na torta e cozinhe-
as por mais 40 minutos.

210
Fala e escrita em questão.

Nos casos de (18-20), temos processos correferenciais, pois a


matéria subjacente é que está sendo designada no processo de referen-
ciação. Essa é a hipótese da matéria subjacente. A questão é complicada
porque não se tem um critério de suficiência para o encadeamento pro-
nominal correferencial no caso da matéria subjacente, como mostra este
exemplo de Kleiber (1998: 215).

21. O vaso tombou por terra e se esfacelou em mil pedaços. *Em seguida,
Paulo o restaurou.

Certamente, não foi o vaso que se restaurou, mas sim os mil peda-
ços que foram novamente remassados. Veja-se, no entanto, este outro
enunciado:

22. O vaso tombou por terra e se esfacelou em mil pedaços. Em seguida


Paulo o recolheu.

O que aqui se recolheu foram os mil pedaços e fica um tanto vaga


a ligação, pois foi de fato a matéria restante que foi recolhida, tal como
ocorreu com o caso (19) visto acima. Em conclusão a esta questão, Kleiber
(1998: 216-217) aponta 4 elementos como hipótese explicativa para esse
tipo de anáforas com verbos de destruição:

a) a representação estereotípica da forma e da matéria do referente, que


chamamos Rs. Este Rs é o estado inicial da matéria, ou seja, um Ri;
b) o estado do referente tal como ele se acha após a mudança que o faz um
predicado transformado que chamamos de Rm;
c) o predicado da frase-hóspede na qual se testa a presença do pronome;
d) o próprio pronome que assinala a possibilidade da continuidade
referencial, sendo o Rs e o Rm dois estados do mesmo referente R. Con-
tudo, deve-se considerar que o pronome não garante identidade categorial

211
MARCUSCHI, Luiz Antônio. Referenciação e cognição: o caso da anáfora...

assim como o nome. Quando Rm não é um estado de Rs, então temos um


referente diverso e já não se dá a correferência.

Portanto, quando se tem um enunciado em que a frase a traz um


Rs compatível com o Rm da frase b que comporta o pronome, então é
possível a retomada correferencial; do contrário não é possível. Isso ex-
plica porque *(21) não é possível e (22) é possível. Trata-se de uma
retomada de um elemento compatível. Assim também *(13) e *(14) não
são viáveis.
Embora digressiva, esta observação mostra que (co)referir é um
aspecto complexo da textualização, mas mais complexo é o caso de refe-
renciações que não são continuamente progressivas e não envolvem con-
textos de destruição ou de mudanças de estado e tempo. Trata-se dos
casos de reinício fundado em quadros cognitivos e não necessariamente
ancorados na simples cotextualização lexicalmente categorizada.

6. Modelo analítico da AE

Toda a construção de um modelo implicará simplificações e redu-


ções no que se refere ao conjunto de atividades e operações envolvidas.
Contudo, o modelo aqui desenhado dá conta de um grande número de
casos, em especial dos apontados no item seguinte. Quanto aos demais
casos, trata-se de uma adaptação específica enquadrando maior número
de operações ou de operações mais específicas.
Fique claro que este modelo não está aqui para dar conta de casos
tais como os das anáforas associativas nem de recategorizações ou si-
milares, pois para isso devem-se construir teorias diferentes como mos-
trou Apotheloz. Inclusive porque esses tipos de anáfora não se dão pro-
nominalmente. Também não pretendo dar conta de anáforas não-corre-
ferenciais que tratam de encadeamentos dicursivos que têm a ver com
especificações ontológicas ou aspectos relativos a papéis temáticos de

212
Fala e escrita em questão.

itens lexicais. Refiro-me a casos como os dos verbos de destruição vistos


acima, que antes do evento comportam predicações que se tornam im-
possíveis após o evento que nomeiam.
Para construir o modelo de identificação dos fenômenos constitu-
tivos da AE, vou me servir do exemplo (6). Antes de apresentar o mode-
lo, será necessário desenvolver a terminologia para operacionalizar a
análise. Todas as observações apresentadas acima serão aqui supostas
como necessárias.
Vimos que a AE tem como característica a não-correferenciali-
dade, pois ela se dá no plano da enunciação discursiva. É evidente que,
embora não esteja(m) na co-textualidade o(s) elemento(s) referido(s),
ele(s) surge(m) de algum ponto presente no cotexto, mesmo que não se
dê como um antecedente tal que nas anáforas correferenciais. Assim, no
caso (6), identificamos a expressão a equipe médica como um espaço
mental gerador a que chamaremos de matriz discursiva que opera como
um foco acionador da inferência. É importante considerar que a relação
entre a matriz discursiva e o pronome anafórico não é a mesma que
entre um antecedente e uma anáfora (relação anaforizado – anaforizan-
te, na terminologia de Milner, 1982: 32).
Quanto ao elemento que constrói um referente, aqui representado
pelo pronome eles, trata-se de um referenciador que constrói as entida-
des referidas. Justamente este aspecto construtivo do pronome tira dele a
característica de anaforizador (ou anaforizante), pois ele não remete e
sim introduz, induz, constrói referentes.
Em terceiro lugar, observamos que há um outro momento posteri-
or ao pronome, que dá a conformação interpretativa operando como um
espaço mental identificador. Designo este espaço como uma matriz
conformativa. Essa estrutura básica comporta, portanto, três elementos
fundamentais para a construção referencial. Friso que não tenho visto
este aspecto assim tratado na literatura pertinente a esse tipo de anáfora,
pois todos os autores tratam de observar apenas as relações entre a ma-
triz discursiva e o referenciador.

213
MARCUSCHI, Luiz Antônio. Referenciação e cognição: o caso da anáfora...

Portanto, quanto à relação entre a matriz discursiva, o referencia-


dor e a matriz conformativa, temos um conjunto de elementos a que
chamamos de quadro de propriedades. Trata-se, na realidade, de uma
relação holística, inferencial e baseada em atividades cognitivas, prag-
máticas e, por vezes, semânticas. Não é uma relação de implicação lógi-
ca nem de pressuposição semântica, nem de anaforizante-anaforizado.
Com Fauconnier, podemos imagnar esta relação como uma relação de
espaços mentais mapeados num contínuo de relações.
O quadro de propriedades, que opera como um frame ou um
tipo de espaço mental para representações com a finalidade de dar acesso
a referentes, está submetido a um conjunto de operações a que chama-
mos de estratégias de construção de referentes, que se dão em vários
níveis (semântico, pragmático, situacional, cognitivo) e com funções
variadas. Estas estratégias seguem instruções vindas tanto do plano lexical
como do plano discursivo, de maneira que o controle referencial do pro-
nome não é uma questão meramente lexical como querem Tasmowsky-
de Ryck e Verluyten (1982, 1985). Nem de natureza puramente pragmá-
tica (via implicaturas), como quer Levinson (1987).
Finalmente, há um momento em que os referentes são estabeleci-
dos e inferidos. Este momento é aqui denominado determinação refe-
rencial. Assim, o esquema terminológico fica deste modo desenhado:

1. Matriz discursiva
2. Referenciador
3. Matriz conformativa
4. Quadro de propriedades
5. Estratégias de construção de referentes
6. Determinação referencial

O modelo aqui desenhado dá conta dos aspectos inicialmente apon-


tados como característicos da AE. Suponho que ele poderia ser melhor

214
Fala e escrita em questão.

representado se adotássemos as formas de mapeamento ou correspon-


dências sugeridas por Fauconnier (1997) com sua teoria dos espaços
mentais. Nesse caso, teríamos dois espaços mentais básicos representa-
dos pelas duas matrizes e um espaço gerado pela estratégia de mesclagem
(blending), além de um espaço genérico que conteria todos os ingredi-
entes para a mesclagem, sendo que a mesclagem não se daria no sentido
estrito de fusão conceitual. Não me dedico a esta abordagem aqui, por-
que implicaria uma reconstrução deste modelo sobretudo na sua apre-
sentação, sem que houvesse um ganho explicativo significativo.
O diagrama abaixo apresenta as relações para um caso típico, que
deve ser remodelado para dar conta de todas as demais ocorrências. Cer-
tamente, não se trata de uma visualização completa e deverá merecer
mais especificações após análises e sugestões que melhorarão o procedi-
mento analítico. O que salta à vista neste modelo é o fato de os referentes
serem determinados de forma indireta na situação discursiva tanto
prévia como posterior à localização do pronome.

215
MARCUSCHI, Luiz Antônio. Referenciação e cognição: o caso da anáfora...

MODELO DAS OPERAÇÕES PARA A CONSTRUÇÃO DOS


REFERENTES DA ANÁFORA PRONOMINAL
SEM ANTECEDENTE

1 2 3

a equipe médica continua segundo o paciente não


analisando o câncer do eles corre risco de vida
Governador Mário Covas

matriz referenciador matriz


discursiva conformativa

determinação
grupo construído Contexto configuracional
como indivíduos:
referencial em que agem indivíduos
médico 1; médico 2; do grupo da área médica
médico 3; médico n
OS MÉDICOS

quadro de propriedades

estratégias de construção de referentes

1. a matriz discursiva: (a) constrói um espaço mental que produz um quadro de


propriedades; (b) identifica e seleciona indivíduos; (c) especifica os indivíduos na
relação com o enquadre;
2. a matriz conformativa: (a) gera um contexto seletivo para os elementos
construídos em 1.; (b) seleciona os referentes adequados de 1.;
3. a determinação referencial: identifica os referentes apropriados em obediência ao
que foi selecionado e sugerido em 1. e 2.

216
Fala e escrita em questão.

Vejamos mais de perto as características dessas anáforas, tal como


apontadas inicialmente:

a) As AE não têm antecedente explícito no cotexto: como se


observou, de fato, essas anáforas constroem seus referentes,
mas não remetem a eles como se fossem pontualizados. Os
referentes são construídos a partir de uma complexa relação de
elementos textuais tanto anteriores como posteriores à AE. Eles
são induzidos, mas não são nomeados ou mencionados. Pode-
se dizer que se dá um acesso pela via de uma memória discur-
siva.
b) As AE não são correferenciais: este aspecto apenas explicita
o que já estava previsto em (a). Como as AE não referem pon-
tualizadamente nem recobram entidades cotextuais, mas as
constroem, isso comprova sua não-correferencialidade e seu
caráter não remissivo.
c) As AE não são linearmente continuativas: este aspecto é
mais complexo e diz respeito à natureza do papel dessas aná-
foras. Elas não dão continuidade referencial, porque não refe-
rem algo mencionado previamente, já que apenas explicitam
elementos intermediários (memoriais) construídos em proces-
sos que envolvem relações retrospectivas e prospectivas, mas
não continuativas.
d) As AE não apresentam congruência morfológica com al-
gum elemento cotextual: isto decorre do fato de não serem
textualizadas de forma explícita e serem construídas apenas
como proposta interpretativa. Sua concordância é apenas cog-
nitiva e de congruência pragmática ou situacional. Esta é uma
prova de que a gramática não dá conta desses elementos tex-
tuais. Por fim, esses pronomes dão a impressão de um isola-
mento sintático, pois, do ponto de vista estritamente morfos-
sintático, eles não concordam com nenhuma entidade presente
na cotextualidade. Esta talvez tenha sido uma das razões para

217
MARCUSCHI, Luiz Antônio. Referenciação e cognição: o caso da anáfora...

não merecerem estudos dos sintaticistas nem serem aceitas pe-


los gramáticos normativos que as condenam e as julgam como
próprias do contexto de fala ou como licenças estilísticas, por
exemplo silepses (concordâncias psicológicas).
e) As AE são inferenciais, mas não são logicamente inferidas:
como toda a anáfora, também a AE resolve-se inferencialmente,
mas não por processos gramaticais ou lógicos e sim pela inter-
pretação cognitiva e co(n)textual. No geral, investem-se co-
nhecimentos de mundo para determinar os seus referentes. Não
é o léxico quem decide crucialmente nesta definição e sim a
situação discursiva.
f) As AE referem uma pluralidade indeterminada (Kleiber,
1994: 170): este aspecto já foi amplamente analisado; indica
que os referentes construídos pelas AE não são no geral de
caráter existencial nem entidades discretas identificadas de
modo explícito, pois, como se disse acima, eles sequer são
nomeados. O trabalho de identificação é virtual e não concre-
to. Constroem-se entidades discursivas, mas não entidades dis-
cretizadas. Seguramente, os indivíduos ou entidades referidos
existem, mas não são designados nessa condição.
g) As AE introduzem elementos novos como dados: este as-
pecto mereceria uma análise detalhada, tal como o fazem
Apothéloz e Reichler-Béguelin (1995) ao tratarem das anáfo-
ras associativas. Em resumo, a propriedade apontada sugere
que as AE, ao construírem referentes definidos, embora de certo
modo indeterminados, estão dando essas entidades como co-
nhecidas. Isso se deve à característica peculiar de estarem de
algum modo fazendo referência a elementos presentes na me-
mória discursiva ou no contexto cognitivo. O fato de construí-
rem entidades e atualizarem-nas no discurso como dadas, deve-
se precisamente a essa característica de já estarem presentes
no contexto discursivo. Imagino que se poderia utilizar aqui
Fauconnier (1997) com a noção de espaços mentais, mappings

218
Fala e escrita em questão.

e blendings para esclarecer alguns elementos presentes nessa


questão, tal como apontei há pouco.

Em suma, o modelo que se acaba de desenvolver dá conta das


principais características das AE e sugere que elas são constitutivas do
fenômeno textual-discursivo analisado.

7. Casos de Anáforas Esquemáticas

Para completar o estudo das AE, deveríamos, neste momento,


aplicar o modelo proposto, fazendo-o funcionar com as devidas mudan-
ças para um número significativo de casos. Seguramente, teríamos que
introduzir mais detalhes, em especial sobre temas ligados à hoje denomi-
nada lingüística cognitiva. Além disso, a questão levanta um interessante
capítulo relativo às relações entre oralidade e escrita, pois é na oralida-
de que este tipo de textualização se dá com mais freqüência. Isto mostra
que essas anáforas fazem, na fala, uma suposição de uso de conheci-
mentos partilhados em mais alto grau que a escrita. Pois os interlocuto-
res estão, quando face a face, em condições mais favoráveis de identifi-
car seus referentes discursivos no ato da interação e negociam com mais
facilidade os referentes como propostas para a continuidade referencial.
Resultados de análises feitas no contexto do Projeto Integrado
desenvolvido no NELFE 10, mostram que em textos escritos de gêneros
tais como cartas, bilhetes, recados etc., ocorrem essas anáforas. Veja-se

10
Refiro-me, em especial aos trabalhos das bolsistas de IC no âmbito do Projeto Integrado:
Fala e Escrita: Características e Usos III, desenvolvido no Núcleo de Estudos Lingüísticos
da Fala e Escrita (NELFE), sob minha coordenação, na UFPE, e financiado pelo CNPq,
proc. Nº 523612/96-6. Esses estudos mostraram que as AE são mais comuns na fala, em
especial nos materiais do NURC do tipo D2 (Diálogos entre dois Informantes) e DID
(Diálogos entre um Informante e o Documentador), sendo menos comum Ef (Elocuções
Formais). Mas aparecem também em cartas, como no caso do exemplo aqui citado.

219
MARCUSCHI, Luiz Antônio. Referenciação e cognição: o caso da anáfora...

o seguinte trecho de uma carta pessoal, para uma idéia aproximada da


questão.

(23)
NN, 00/00/1991
Amiga A.P.
Oi!
/.../
015 Demorei um tempão pra responder, espero sinceramente que você
não esteja chateada comigo. Eu me amarrei de verdade em vocês
aí, do PP., principalmente a galera da ET., vocês são muito ma-
neiros! Meu maior sonho é viajar, ficar um tempo por aí, conhe-
cer legal vocês todos, sairmos juntos... Só que não sei ao certo se
vou realmente no início de 1992. Mas pode ser que dê, quem sabe?!
É o seguinte:
020 como você sabe, estudo no CT. – RJ e estou no último ano do
curso técnico de Metereologia. Bem, já estou estagiando em Furnas
Centrais Elétricas. É uma das empresas que gera eletricidade para
o Brasil, com suas usinas hidroelétricas. Você deve estar pensan-
do: mas porque eles querem um metereologista? Lá eu faço a
previsão das chuvas, ou seja, digo se vai chover e quanto vai cho-
ver em todas as
025 cidades por onde passam os rios Paraíba do Sul e Grande. Com
minha previsão eles sabem o quanto vão abrir as portas das usi-
nas. Assim a chuva não inunda as cidades. Imagine se eu digo que
vai chover, eles abrem as comportas e na verdade não chove? A
hidroelétrica fica sem água para transformar em energia elétrica,
o que acontece? Todos os estados da região Sudeste e Sul ficam
sem energia.
(Fonte: NELFE, E002 Carta pessoal)

Note-se o uso do pronome eles (linhas 23, 25 e 27) sem que tenha
sido identificado de quem se trata. Há o contexto discursivo “já estou

220
Fala e escrita em questão.

estagiando em Furnas Centrais Elétricas”, que ligado ao que segue ao


primeiro eles, isto é, “um metereologista” nos faz pensar em “os técnicos
de Furnas” como os referentes de eles. Contudo, não se sabe se são os
técnicos, os diretores, os metereologistas ou outros. Já no caso da fala,
isto ocorre com outras características como se nota neste exemplo extra-
ído de um diálogo dos materiais do Projeto NURC-SP:

(24)
Doc: outras revistas o senhor citaria assim... da imprensa...
vamos dizer assim...
L2: outras revistas? lá em casa nós temos assim... por força da escola
e das crianças temos a Veja... não é? e:: ... revista de reportagem
é raro... uma vez ou outra Manchete... principalmente quando a
Manchete publica essas... essas reportagens sobre... cidades e::
por exemplo sobre o Rio de Janeiro... sobre São Paulo inclusive Ø
fazem aquelas edições especiais entende?
(NURC/SP, D2, Inq. 255 linhas 1264 1271)

Veja-se que o caso (uma elipse) sublinhado aqui não é o mesmo


que na carta, e é difícil dizer com precisão quem são esses eles (que aqui
aparece elipticamente). Podemos dizer que se trata de os jornalistas de
uma das duas revistas citadas, ou então, como menor probabilidade, as
duas revistas citadas. Na realidade, não nos preocupamos muito em in-
dagar com precisão, pois estas situações são rápidas na fala e não interfe-
rem no andamento do tópico.
Não obstante a tranqüilidade com que venho expondo a questão,
algumas teorias parciais teriam de ser melhor explicitadas e adaptadas às
necessidades explicativas do modelo desenhado. Entre essas teorias iden-
tifico as seguintes como as mais relevantes:

• uma teoria da referência discursiva (objetos-de-discurso);


• uma teoria da inferência e caráter não vericondicional;

221
MARCUSCHI, Luiz Antônio. Referenciação e cognição: o caso da anáfora...

• uma teoria da construção de categorias de conjuntos;


• uma teoria da metáfora, metonímia, mereonímia e outros modelos cogniti-
vos.

Não é este o lugar de desenvolver todas essas teorias parciais.


Mas sua indicação já dá a entender que as AE são muito mais complexas
do que as anáforas pronominais correferenciais, bastante trabalhadas e
conhecidas.
A seguir, elenco uma série de exemplos mais comuns de AE, sem
uma análise de detalhe. Algumas sugestões indicativas são fornecidas
para análise posterior. Vejamos os exemplos:

25. Comprei um Toyota porque eles são mais econômicos. (Kleiber,


1994)
26. Não encontrei mais Pierre. Eles não moram mais na Grand-rue.
(Kleiber, 1994)
27. Eles aumentaram os impostos novamente. (Kleiber, 1994)
28. Francisco é um excelente filatelista. De acordo com a norma, ele
os guarda em séries comemorativas.
29. Guimarães Rosa está guardado na primeira gaveta do burô. Pre-
tendo vendê-lo num antiquário na próxima semana.
30. /…/ no Amazonas por exemplo… que nós estivemos em Manaus…
ah… nós passamos uma tarde num… num lugar onde eles servi-
ram uma refeição e depois era só frutas… mas frutas que real-
mente nunca havia visto /…/ completamente diferentes daquelas
que nós estamos acostumadas aqui no Rio /…/
(NURC/RIO, DID, Inq. 328, linhas 77-84)
31. /…/ o norte principalmente na Amazonas e no Pará… a influência
indígena sobre a alimentação é muito grande… eles comem mui-
tas coisas todas assim /…/
(NURC/RIO, DID, Inq. 328, linhas 86-88)
32. /…/ o Amazonas é impressionante o número de frutas e frutas

222
Fala e escrita em questão.

assim tudo duro… tipo assim cajá-manga… eles têm muita coisa
assim /…/ é gozado como a gente sente essa diferença… lá lá a
gente não comia fruta… a banana é uma banana tão grande que
não dá pra você comer uma inteira … o que a gente chama de
banana aqui… a banana deles lá é uma coisa imensa…
(NURC/RIO, DID, Inq. 328, linhas 90-97)
33. aqui no Rio tinha uma espécie de banana parecida… parece que
se não me engano era banana-figo que eles chamam aqui no Rio…
mas ainda lá é muito maior que a banana-figo /…/
(NURC/RIO, DID, Inq. 328, linhas 98-100)
34. Inf. /.../ ah e vi também com a Lisa a Lisa Minelli dois filmes
inclusive o Cabaré antes de ser premiado eu tinha assistido... e vi
um outro que ela fazia o papel duma moça toda queimada (mas)
achei que ela trabalhou excepcionalmente bem que eu me pego
muito no paPEL que eles estão fazendo... (NURC/POA, DID, Inq.
121, linhas 638-645))
35. Telefonema entre duas amigas:
B: e eu também achei que não ficou muito bom sabe V. aquele
negócio do coquetel sabe?
V: diz que ficô as prate/as ninguém se serviu direito não foi?
B: não é n/ e também... éh mais ou menos isso...
mas olha uma pouca vergonha ((rindo)) viu
V: o povo foi em cima
B: é: menina... que coisa FEia tá...tão FEio V.
V: éh:... agora sabe o que é que ia servi...
ia servi no terraço mas choviscou não foi
B: mas naquela hora não tava choviscando né
V: diz que tava cho[viscando...
B: [ éh
V: eu tava lá dentro... mas sabe que eu não me servi de ab-
solutamente nada a não ser uma coca-cola...porque eu vi
passando mas eu tava tão agoniada tão tensa sabe[...

223
MARCUSCHI, Luiz Antônio. Referenciação e cognição: o caso da anáfora...

B: [éh
V: mas diz que foi terível né?
porque os meios das cadeiras eram estreitas e não dava
pra ele passá né?
B: é... exato... aí ficava um avanço ficava uma coisa feia
(NELFE – F001)
36. Filha: papai, vou me casar no mês que vem
Pai: e o que é que ele faz?
37. No Recife, eles dirigem perigosamente naquele trânsito maluco.

Creio que não é difícil, com base no modelo sugerido, desenvol-


ver análises explicativas para o funcionamento de todos os estes casos.
Vimos acima que uma das caracaterísticas das AE é o fato de serem
referenciações coletivas e indeterminadas. Este aspecto merece algum
esclarecimento.
Em relação ao tipo de coletividades que um item lexical ou uma
expressão pode representar, Cruse (1986:176) distingue 3 tipos:

(a) coleções: representadas por expressões como malta, tropa, grupo, que
sob o ponto de vista do agrupamento indicam indivíduos indistinta-
mente e constituem conjuntos abertos;
(b) classes: representadas por expressões tais como burguesia, aristocra-
cia, classe baixa, cujo agrupamento de indivíduos se dá por certas pro-
priedades similares ou objetivos comuns;
(c) grupos: tais como família, júri, comitê, equipe, que constituem classes
fechadas que agrupam indivíduos em sistemas e lhes dão a proprieda-
de de membros de uma instituição ou de uma classe.

A estas três categorias poderíamos acrescentar uma outra:

(d) mereologias: são conjuntos em geral de elementos não humanos que


mantém uma relação de parte-todo, tais como livro (tem páginas); car-

224
Fala e escrita em questão.

ro (tem rodas, motor) etc. Nestes casos podemos referir partes de um


continente por pronomes sem designá-las, desde que o co(n)texto for-
neça as pistas.

Também servem como matriz discursiva para AE situações


prototípicas ou bem delineadas que permitem invocar e construir ele-
mentos. Modelos cognitivos tais como frames, scripts, cenários, esque-
mas e outros dessa natureza são adequados a propiciar o surgimento de
AE.
Caso interessante nos exemplos acima é o (26), comentado tam-
bém por Kleiber (1994). Ele é singular porque exige alguns acréscimos
no modelo, especialmente por subentender conhecimentos mais com-
plexos tais como os de grupos institucionais, como apontado acima. Ve-
jamos o exemplo:

26. Não encontrei Pierre. Eles não moram mais na Grand-rue.

Considerando os elementos do modelo, podemos organizar o se-


guinte quadro geral:

Índices Texto Análise


Não encontrei mais Pierre é um indivíduo que o enun-
Pierre ciador daquele enunciado conhece.
1. matriz discursiva Ele sabe que Pierre mora com os
pais ou que é casado e tem família
ou que mora com amigos. O certo
é que não vive só.
Referência a indivíduos virtuais, tais
2. referenciador Eles como irmãos, pais etc., ou esposa,
filhos etc. e, eventualmente, amigos
ou colegas de pensão.

225
MARCUSCHI, Luiz Antônio. Referenciação e cognição: o caso da anáfora...

Contexto configuracional em que


se identificam indivíduos que mo-
3. matriz Não moram mais na ram em alguma casa (apartamento)
conformativa Grand-rue e e se localizam em algum local
numa rua que costumava ser fre-
qüentada pelo locutor.
Considerando (1) e (3), o enunciador
4. determinação OS FAMILIARES sugere que se trata de indivíduos tais
referencial (AMIGOS? COLEGAS?) como os construídos no espaço
mental definido em (1 e 3)
Procura por alguém x Trata-se de informações que se
5. quadro de Indivíduo procurado acham contidas no próprio texto
propriedades Pierre e que são usadas para proceder
Local de moradia à construção com as estratégias
Grand-rue apontadas em (6)
Ninguém se encontra no
local
6. estratégias de 1. matriz discursiva: (a) trata-se
construção de de um conhecido que é procurado;
referentes (b) a pessoa se chama Pierre; (c)
esse indivíduo não é encontrado; (d)
o enunciador sabe que Pierre não
mora sozinho, mas com mais al-
guém; (e) as pessoas com quem ele
mora podem ser familiares, amigos,
colegas de pensão ou outros; (f)
como o locutor conhece Pierre,
identifica os indivíduos e os especi-
fica como um conjunto determina-
Informações contidas do mas não designado; (g) este
em (1, 2, 3) conjunto de propriedades e fatos
determina um espaço mental para
inferências.
2. matriz conformativa: (a) o lo-

226
Fala e escrita em questão.

cutor dirigiu-se a uma determinada


rua em que Pierre morava; (b) não
o encontrou e inferiu que ele não
morava mais lá; (c) como Pierre
morava com mais alguém, o locu-
tor nomeia todos, inclusive Pierre,
coletivamente, sem identificar os
referentes.
3. determinação referencial: (a)
pelas duas matrizes (1. e 2.) acima,
a sugestão é de que sejam pessoas
conhecidas, provavelmente, FAMI-
LIARES. O certo é que se trata
de indivíduos que existem e são
identificáveis.

Tomemos os outros exemplos e construamos uma espécie de pau-


ta para cada um deles com casos similares. As pautas desenhadas pelas
colunas e linhas só consideram alguns elementos do modelo, sendo que
os demais serão apenas comentados.

(a) Entidades que formam conjuntos que acessam indivíduos:

25. Comprei um Toyota porque eles são mais econômicos.

Matriz discursiva Referenciador Matriz conformativa


(a) (comprei um) Toyota Eles são mais econômicos
(porque)
Determinação
referencial:
os carros da Toyota

227
MARCUSCHI, Luiz Antônio. Referenciação e cognição: o caso da anáfora...

(b) Coleções que dão acesso a elementos abrigados:

Este tipo de funcionamento é muito comum e já foi tratado por


outros autores como Postal sob a denominação de ilhas anafóricas. Pre-
firo vê-los como frames ou modelos cognitivos mais gerais que dão ori-
gem a entidades bastante definidas. Entram aqui outros termos como:
órfão, casal, quinteto musical e assim por diante.

28. Francisco é um excelente filatelista. De acordo com a norma, ele os


guarda em séries comemorativas.

Matriz discursiva Refrenciador Matriz conformativa


(a) (Fracisco é um…) os … guarda em séries come-
filatelista morativas
Determinação
referencial:
os selos

(c) Construção de estruturas metonímicas:

Veja-se o caso do exemplo (29) que traz uma conhecida figura


de estilo. Não é difícil aqui identificar o que se está referindo. Trata-se
de um processo metonímico. Isto já não ocorre com casos de metáfo-
ras, pois estas são processos cognitivos (e epistemológicos) muito di-
ferentes.

29. Guimarães Rosa está guardado na primeira gaveta do burô. Pretendo


vendê-lo num antiquário na próxima semana.

228
Fala e escrita em questão.

Matriz discursiva Refrenciador Matriz conformativa


Guimarães Rosa... na -lo vender... num antiquário
primeira gaveta
Determinação
referencial:
Um livro de GR

Temos aí um quadro antecedente que cria um determinado con-


texto metonimicamente (explicável pelos processos acima), que a situa-
ção posterior identifica como não sendo uma congruência morfológica a
melhor relação indexadora e sim uma relação de “autor pela obra”.

(d) Reenvio à situação de enunciação:

O caso (30) e os similares apontados em seguida, tais como (31,


32, 33) operam, de forma geral, clara na medida em que tomam como
ponto de partida uma situação de enunciação, em geral apresenta no con-
texto de fala para construir um espaço mental dentro do qual as estraté-
gias de construção de referentes são aplicadas. Contudo, o caso (30)
não é tão claro e as várias tentativas que fiz junto a colegas para decidir
quem eram os referentes de eles não tiveram respostas unânimes.

30. /.../ no Amazonas por exemplo… que nós estivemos em Manaus… ah…
nós passamos uma tarde num… num lugar onde eles serviram uma refei-
ção e depois era só frutas… mas frutas que realmente nunca havia visto
/…/ completamente diferentes daquelas que nós estamos acostumadas
aqui no Rio /…/

229
MARCUSCHI, Luiz Antônio. Referenciação e cognição: o caso da anáfora...

Matriz discursiva Referenciador Matriz conformativa


(a) no Amazonas… em eles Serviram uma refeição e
Manaus depois …
Determinação
referencial:
os amazonenses(?)
os garçons(?)

(e) Enquadres em papéis ou contextos institucionais:

Este tipo de referenciação e construção implícita de indivíduos se


dá com certa constância na fala, pois a nossa sociedade se acha em boa
medida institucionalizada em organizações e atividades ou papéis que
enquadram indivíduos específicos, como no caso de: sala de aula, res-
taurante, escritório, salão de beleza, igreja, farmácia etc.

34. Inf. /.../ ah e vi também com a Lisa a Lisa Minelli dois filmes inclusive o
Cabaré antes de ser premiado eu tinha assistido... e vi um outro que
ela fazia o papel duma moça toda queimada (mas) achei que ela
trabalhou excepcionalmente bem que eu me pego muito no paPEL
que eles estão fazendo... ((NURC/POA, DID, Inq. 121, linhas 638-
645))

Matriz discursiva Referenciador Matriz conformativa


(a) e vi também com a Lisa estão fazendo…
a Lisa Minelli dois filmes
/…/ eu me pego muito no eles
paPEL que
Determinação
referencial:
os atores

230
Fala e escrita em questão.

(f) Atividades dialógicas com conhecimentos sociais envolvi-


dos:

Aqui os enquadres têm as características de ações que também


são em boa medida institucionalizadas e supõem atores específicos.

36: Filha: papai, vou me casar no mês que vem


Pai: e o que é que ele faz?

Matriz discursiva Referenciador Matriz conformativa


(a) vou me casar ele e o que é que ele faz?
Determinação
referencial:
o namorado

(g) Situações da vida diária como organizadores de espaços


mentais:

Embora este caso se assemelhe ao anteriormente tratado em (e),


poder-se-ia distingui-lo tendo em mente que aqui os enquadres são de
natureza mais global e envolvem atividades gerais misturadas com uma
série de aspectos que simulam institucionalização.

35. Telefonema entre duas amigas:


B: e eu também achei que não ficou muito bom sabe V. aquele negócio do
coquetel sabe?
/ ………./
V: o povo foi em cima

231
MARCUSCHI, Luiz Antônio. Referenciação e cognição: o caso da anáfora...

/ ………/
V: eu tava lá dentro... mas sabe que eu não me servi de absolutamente
nada a não ser uma coca-cola... porque eu vi passando mas eu tava
tão agoniada tão tensa sabe[...
B: [éh
V: mas diz que foi terrível né?
porque as meios das cadeiras eram estreitas e não dava pra ele passá
né?
B: é... exato... aí ficava um avanço ficava uma coisa feia

Matriz discursiva Referenciador Matriz conformativa


(a) aquele negócio do coque- passá né?
tel sabe? /… / o povo foi em
cima /…/ eu não me servi
de absolutamente nada /…/ ele
não dava nem pra
Determinação
referencial:
o garçom

Esta série não pretende ser exaustiva nem pode ser tomada como
uma proposta de tipologia. A intenção foi elencar algumas das ocorrên-
cias constatadas e certas formas de funcionamento mais comuns. Valeria
a pena uma análise rigorosa e controlada de um corpus representativo,
tanto da fala como da escrita para confirmar ou modificar a sugestão aqui
trazida. Veja-se, por exemplo, a dificuldade de situar os casos abaixo,
extraídos de uma entrevista do Projeto NURC de Salvador. Trata-se de
uma passagem em que a entrevistadora vinha indagando de sua entrevis-
tada (uma médica) a respeito das decisões de pôr a filha em colégio pú-
blico ou não e do problema do colégio hoje. Num dado momento, o
assunto é o ensino básico e seus diversos níveis. Nesse ponto, a docu-
mentadora indaga:

232
Fala e escrita em questão.

(38)
140 Doc— Exato. Bem, mas o... então, depois desse
141 maternal, qual é o outro tipo de escola a que a
142 criança chega? Depois do maternal, do infantil...
143 (superp)
144 FF— É o (superp) primário. É... é o primário, né...
145 Sim. (superp)
146 ... que eles (superp) não dizem mais primário
147 agora, né, é por série... Como... É um...
148 Doc- Primeiro, primeiro grau, né?
(NURC-SSA, DID, Inq. 231, linhas 140-148)

Com base na estratégia (e) sugerida acima, parece não haver, de


nossa parte, dificuldade para evocar um contexto cognitivo situado na
instituição escola (ou na esfera escolar) como a matriz discursiva que
gera vários conjuntos de indivíduos. Por exemplo, alunos, professores,
diretores, pessoal de manutenção, Secretaria de Educação, Ministério da
Educação etc. Desses vários conjuntos parece estar sendo isolado um
com base no que segue na matriz conformadora, ou seja, aquele con-
junto que tem o poder de dar nome aos níveis de ensino. Supõe-se que
sejam os membros da Secretaria de Educação ou até mesmo do Ministé-
rio da Educação. Com isso, o pronome eles, num primeiro momento,
parece receber sua referência como sendo “os do ministério ou da secre-
taria” que têm autoridade para dar esse nome. Não se trata de qualquer
um. Mas também não se trata apenas da esfera institucional escolar e sim
de um aparato muito mais amplo que define a questão. Contudo, na for-
ma como a entrevistada se refere ao eles, tudo indica que não se pode
descartar que ele estivesse, aqui, referindo-se aos professores e pessoal
da escola e não a autoridades. Seja como for, tudo se resolve nos limites
institucionais.

233
MARCUSCHI, Luiz Antônio. Referenciação e cognição: o caso da anáfora...

Já no caso deste outro segmento da mesma entrevista, num mo-


mento seguinte, quando a entrevistada, que era médica, tratava do pro-
blema da organização da Escola de Medicina, a situação é um pouco
mais complexa e não se tem uma noção clara do conjunto de fato cons-
truído, embora uma reconstrução dos processos envolvidos poderia con-
duzir-nos a uma decisão bastante aproximada. Vejamos o trecho selecio-
nado:

(39)
280 Doc— E agora (superp) reformaram também os
281 departamentos, né, aumentaram ou... reduziram, de
282 forma que...
282 FF— É, porque eles fizeram exatamente isso, porque
283 nós tínhamos duas cadeiras, duas disciplinas,
284 formando um departamento. Então, Dermatologia e
285 Moléstia Tropical seria um departamento só. Era
286 por número: departamento dez. Agora eles
287 resolveram agrupar mais: botar Clínica Médica,
288 Gastroenterologia, fazer um depart... Cardiologia,
289 tudo no Departamento de Medicina. Então, fizeram
290 quatro ou cinco departamentos: Medicina, Cirurgia,
291 Neuropsiquiatria e, se não me engano, Pediatria e
292 Puericultura, um departamento à parte.
(NURC-SSA, DID, Inq. 231, linhas 280-292)

Não há dúvida quanto ao conjunto de indivíduos selecionados pela


matriz discursiva para a referenciação das duas ocorrências do pronome
eles. Contudo, fica muito vago se estes seriam os chefes dos Departa-
mentos, os diretores do Centro ou os membros da Administração Central
da Universidade. Na realidade, a situação institucional permite uma infe-
rência norteadora, mas não necessariamente clara.

234
Fala e escrita em questão.

Por fim, temos também um dêitico textual que aparece na forma


pronominal neutra isso e opera de maneira muito diversa do que as AE
para sua referenciação, mas não têm um antecedente pontualizado, como
já observei certa vez (v. Marcuschi 1997).

8. Cognição e referenciação

Aspecto importante e não bem conhecido é o que diz respeito à


interpretação que os falantes dariam a todas essas formas em contextos
diversos. É possível que nem todos tenham em mente algo definido e,
provavelmente, em muitos casos sequer haverá um item lexical que de-
signe o(s) referente(s) inferíveis. Assim, para que a referenciação seja
bem-sucedida não é necessário que se apontem referentes lexicalizáveis
nominalmente. As sugestões de determinação referencial feitas de (a – g)
não são garantidas e podem variar em contextos diversos. O curioso é
que as pessoas em geral não indagam de seus interlocutores a que se
referem, pois dão quase sempre como suposta alguma referenciação
consensual. Se não houve uma designação explícita é porque sua explici-
tação não é crucial para o prosseguimento do tópico.
Intrigante é a questão da referenciação predominantemente cole-
tiva para esses casos de AE. Isto sugere que não se trata propriamente de
uma referenciação em sentido estrito do termo e sim de uma orientação
cognitiva. Esses pronomes plurais sem antecendentes cotextuais nunca
são identificados de maneira discreta nem pontualizada. Neste caso asse-
melham-se ao que já investiguei para os dêiticos discursivos (v. Marcus-
chi 1997), cuja característica central é não delimitarem com precisão seu
espaço referencial. Vejamos o exemplo abaixo que traz as duas ocorrên-
cias: uma AE e um dêitico textual. Trata-se de um turno-resposta ao
documentador, extraído dos materiais do Projeto NURC-SP e refere-se a
um diálogo de dois amigos de Universidade falando sobre seu passado e
suas andanças pelo país.

235
MARCUSCHI, Luiz Antônio. Referenciação e cognição: o caso da anáfora...

(40)
81 Doc: professor R. ... já viajou de avião?
82 L2: já ... viajei de avião há dez anos atrás eu trabalhava com
83 um jornal e:: ... não era professor ... então minha
84 atividade era ... mais diversificada ... então viajei
85 bastante de avião ... andei MUIto também por aí afora de
86 avião ... e:: ... mas não gostava assim como ... parece que
87 o C. gosta né C.? quer dizer minhas viagens de avião
88 eram mesmo por negócio ... estritamente ... quando eu
89 podia fazer viagem de automóvel ou por outro meio eu
90 prefi/ ... sempre dei preferência ... talvez:: ... há dez anos
91 atrás os aviões não tinham o conforto de hoje ... e eu tive
92 uma experiência assim meio desagradável numa viagem de
93 um ...Viscount da VASP até por sinal ... pegamos um
94 desses:: ... CB que eles chamam né? e o avião quase caiu
95 comigo lá perto de Goiânia né e:: então ... isso também
96 ... colaborou para que eu não tivesse muito entusiasmo
97 em viagens aéreas sabe?
(NURC-SP, D2, Inq. 255, linhas 81-97)

Note-se que o pronome eles não refere um conjunto de indivíduos


identificável extensionalmente como pertencente a um ou outro conjun-
to delimitado. Seriam os fabricantes do avião mencionado, ou seriam os
donos da empresa? Sabemos que são “os que deram esse nome ao avião
e têm autoridade para tanto”. Por outro lado, no caso do dêitico textual
isso, temos uma referenciação que tanto se estende ao fato de o avião CB
ter quase caído, como ao fato mais geral da queda em si.
Seguramente, como os exemplos concretos mostraram, para si-
tuações conversacionais, a questão da identificação é bem diversa do que
para situações discursivas monologadas. E ainda mais diversas para as

236
Fala e escrita em questão.

situações de escrita. Na escrita, as AE são menos comuns, porque podem


conduzir a malentendidos que não são facilmente contornáveis. Basta
observar as correções de redações de alunos para ver quantos desses
pronomes são assinalados com uma interrogação.

9. Observações finais

A continuidade dessas reflexões deverá conduzir a um tratamento


integrado de três grandes conjuntos de fenômenos anafóricos:

(a) anáforas esquemáticas (sem antecedente explícito);


(b) anáforas mereológicas, que seguem a relação parte-todo;
(c) anáforas associativas.

Como bem lembram Berrendonner e Reichler-Béguelin (1995),


parece imprescindível considerar que as anáforas associativas, tal como
outras que não retomam elementos anteriores de maneira correferencial,
são calculadas com recursos tanto pragmáticos, como lógicos e cogniti-
vos. Trata-se de um procedimento de raciocínios inferenciais comple-
xos. Contudo, diferentemente dos autores citados (p. 28), não parece
adequada a posição de que em exemplos do tipo (41) impliquem “dedu-
ções lógicas” para sua interpretação.

41. Eu tenho 17 anos, tenho acne e na minha família ninguém leva


meu problema a sério. Eles vivem dizendo que isso não é nada.

Berrendonner e Reichler-Béguelin (1995: 28) comentam do se-


guinte modo esse exemplo:

“o tipo (41) é um grande clássico, freqüentemente trazido: ele supõe,


como outros casos, uma dedução lógica que, tomando como premissa

237
MARCUSCHI, Luiz Antônio. Referenciação e cognição: o caso da anáfora...

a existência de um indivíduo coletivo (família, classe, grupo, bando,


regimento etc.) conclui dele um outro objeto necessariamente implica-
do por todo o coletivo: a classe de seus membros.”

Os autores têm razão na explicação considerando-se o procedi-


mento da construção dos membros da classe, mas não se trata de um
procedimento fundado na dedução lógica, pois esta inferência não tem
caráter vericondicional nem pode ser verificada empiricamente. Trata-se
de um conjunto de espaços mentais criados, e nós sabemos que espaços
mentais não equivalem a “mundos possíveis”. A incongruência dos au-
tores está no fato de dizerem que esses indivíduos são deduzidos (inferi-
dos por processos de natureza formal e vericondicional) e que são obje-
tos-de-discurso, com o que concordamos, ou seja, concordamos que são
representações de ordem cognitiva expressos no universo do discurso e
não entidades existentes em si mesmas, mas discordamos de que sejam
inferidos logicamente. Pois isto daria razão a uma visão essencialmente
lexicalista da língua: e língua é muito mais do que código. Justamente
isso faz com que não se possa postular tratar-se de um processo de dedu-
ção lógica, desde que se tome essa expressão em seu sentido técnico.
Corretos, no entanto, andam os mesmo autores (p. 29-30), quando
distinguem entre uma micro-sintaxe e uma macro-sintaxe, sendo a
primeira restrita ao plano infra-frasal e a segunda abrangendo aspectos
que não estão de modo específico no domínio do sistema. Neste segundo
caso, mais do que regras sintáticas, fazem-se sentir regras de outro tipo,
tais como: regras de encadeamento de seqüências, regras de construção
de atos de fala, estratégias inferenciais, organização tópica, sistema con-
figuracional de ordem cognitiva e assim por diante.
No sentido acima definido, tudo leva a concluir que as anáforas
esquemáticas são parte da macro-sintaxe textual e não da micro-sintaxe,
pois não sofrem restrições de ordem sintática na frase nem se submetem
a padrões de concordância. Uma tentativa de tratar integradamente as
anáforas aqui denominadas esquemáticas, as anáforas associativas e as
de base mais estritamente mereológicas pode ser encontrada em Berren-

238
Fala e escrita em questão.

donner (1995) especialmente em Berrendonner e Reichler-Béguelin


(1995), que acrescentam ser o modelo útil inclusive para análise e inter-
pretação das anáforas correferenciais.

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240
Fala e escrita em questão.

A GÍRIA NA LÍNGUA FALADA E NA


ESCRITA: UMA LONGA HISTÓRIA DE
PRECONCEITO SOCIAL

Dino Preti

Considerações iniciais.

A gíria constitui um vocabulário tipicamente oral. Sua presença


na escrita reflete apenas um recurso lingüístico, com objetivos determi-
nados, como, por exemplo, indicar a fidelidade de uma transcrição; criar
uma interação mais eficiente do escritor com o seu leitor, como ocorre
em algumas matérias jornalísticas; dar uma realidade maior ao diálogo
literário ou teatral; comprovar um uso em desacordo com o vocabulário
de falantes cultos, caso em que é usual transcrevê-la entre aspas, como
ocorre na mídia jornalística; etc.
Sua natural ausência, na escrita (modalidade da língua mais pla-
nejada), e as restrições de seu emprego em muitas situações de comuni-
cação, na língua oral, vêm comprovar uma atitude lingüística de rejeição,
por parte de quem fala ou escreve, o que torna a gíria um vocabulário
marcado, cujo uso enfrenta preconceitos na sociedade (mais em algu-
mas, menos em outras).
Somente uma visão histórica do problema poderia esclarecer-nos
como se teria formado essa atitude preconceituosa em relação ao voca-

241
PRETI, Dino. A gíria na língua falada e na escrita: uma longa história...

bulário gírio. E, quando se trata da história da gíria, conhecê-la significa


penetrar no mundo da marginalidade, na vida dos grupos excluídos da
sociedade pela sua própria condição de pobreza ou pelas suas atividades
peculiares (não raro ilícitas), os quais buscam com a criação de um voca-
bulário criptológico uma forma de defesa de suas comunidades restritas.
Mas, por outro lado, historicamente, são os mesmos motivos de
preservação e segurança que fizeram com que comerciantes ambulantes,
mascates, na Idade Média, criassem seus próprios códigos secretos de
identificação. E essa gíria da marginalidade e do comércio se mistura
também à de um povo surgido na Índia, historicamente discriminado, os
ciganos, que, com sua vida nômade, espalharam seu vocabulário em vá-
rias áreas da Europa e, posteriormente, da América.
Lingüistas, mas particularmente historiadores ligados a uma es-
pecialidade recente, a História Social da Linguagem são, hoje, os princi-
pais responsáveis pelo esquadrinhamento de documentos em que se
mencionam gírias, jargões, linguagens secretas ou, simplesmente, vestí-
gios da língua oral, que podem trazer a luz sobre a vida de um grupo
marginal (tomando-se, aqui, o vocábulo marginal no sentido mais am-
plo, não apenas ligado a atividades criminosas), na “tentativa de acres-
centar uma dimensão social à história da linguagem e uma dimensão
histórica à obra de sociolingüistas e etnógrafos da fala”, no dizer de um
dos teóricos mais importantes dessa corrente (Burke, P. 1995: 17).
Na realidade, o estudo da gíria exige colaboração científica neces-
sária entre várias ciências humanas: a Lingüística, a Sociolingüística ou
a Sociologia da Linguagem, a Etnografia da Fala, a História Oral, a His-
tória Social da Linguagem etc. As informações colhidas tanto servem a
lingüistas, como a antropólogos, sociólogos ou historiadores.

As fontes documentais. A gíria na escrita.

As gravações da língua oral constituem a fonte de primeira mão


de toda pesquisa de gíria, pelo menos a partir do aparecimento dos gra-

242
Fala e escrita em questão.

vadores. Mas essa fonte nem sempre está à disposição do pesquisador,


mesmo porque não se trata simplesmente de possuir um gravador (ou,
mais modernamente, uma câmara de televisão ou cinema), e sim de po-
der utilizá-lo dentro de uma determinada situação. Por isso, vários corpora
de pesquisas são constituídos de transcrições de textos orais (entrevistas
de jornais, listas de vocábulos gírios divulgados com o propósito de ca-
racterizar a linguagem de um determinado grupo etc.) ou até de docu-
mentos literários ou teatrais, em que se supõe tenha havido o aproveita-
mento da gíria ouvida ou empregada pelos autores, num determinado
tempo e espaço. Quanto à utilização de peças de teatro ou de romances
como comprovação da língua falada, essas fontes “devem ser usadas
com cuidado porque os romancistas e dramaturgos geralmente estilizam
a fala ao invés de reproduzi-la de maneira exata; mas para qualquer que
esteja ciente dessas convenções, essas evidências podem ser extrema-
mente informativas.” (id. p. 35).
Fontes de segunda mão, porém, mais seguras são as constituídas
pelos questionários de entrevistas pessoais, ou as obtidas por meio do
rádio, do cinema e da TV. Embora o pesquisador só excepcionalmente
possa estar presente na situação de comunicação, ele tem oportunidade
de conhecê-la tal como ocorre, tendo todos os elementos contextuais que
lhe permitem, por exemplo, conhecer o emprego do vocábulo gírio e seu
significado. Da mesma forma os sites e os diálogos na Internet podem
propiciar excelente material para o conhecimento da gíria.
Se situarmos nossas pesquisas em séculos passados, porém, como
o fazem os historiadores sociais da linguagem, as dificuldades em co-
nhecer a língua oral e o vocabulário gírio aumentam e as fontes são bem
mais escassas.
Provavelmente, os primeiros documentos com gíria parecem da-
tar do século XV na França (o chamado argot) e surgem em versos de
um poeta popular, François de Villon e em textos que nos remetem à
linguagem de marginais e mascates, durante o conturbado período histó-
rico que se seguiu à Guerra dos Cem Anos, após a qual numerosas cor-
porações criminosas infestaram a nação (Casciani, C. 1948: 6). Também

243
PRETI, Dino. A gíria na língua falada e na escrita: uma longa história...

desse século, são os primeiros documentos, na Inglaterra (cant) e na Itá-


lia (furbesco), nesta com gírias ligadas aos seus muitos dialetos. No sé-
culo XVI, começam a aparecer na Espanha (germanía ou caló), com
forte influência da linguagem dos ciganos, e em Portugal, onde podemos
encontrar exemplos desses vocábulos na diversidade das falas de perso-
nagens da obra teatral de Gil Vicente.
A propósito das dificuldades de uma pesquisa histórica da gíria,
vale lembrar, ainda uma vez, as palavras de Burke, quando se refere às
lacunas de uma investigação sobre a língua oral, a partir de documentos
escritos:

“Visto que existem tantas lacunas, os leitores podem muito bem se per-
guntar se uma história social do falar é um empreendimento viável,
pelo menos antes do aparecimento dos gravadores. No entanto, no caso
da Europa ocidental do final da Idade Média em diante, existem algu-
mas fontes extremamente volumosas e razoavelmente confiáveis no que
diz respeito ao falar, em especial os registros de tribunais, onde toma-
va-se o cuidado especial de solicitar às testemunhas que depusessem
sobre a exatidão das palavras usadas em determinadas ocasiões. A
Inquisição, em especial, foi bastante longe nesse sentido. As instruções
dadas aos inquisidores romanos do século XVII, por exemplo, diziam-
lhes para garantir que o notário, que deveria estar presente em todos
os interrogatórios, transcrevesse ‘não só todas as respostas do acusa-
do, mas também todas as outras observações e comentários por ele
feitos, além de cada palavra por ele pronunciada sob tortura, incluin-
do-se cada suspiro, grito, gemido e soluço.’ Uma diretriz assustadora,
mas que tem sido inestimável para os historiadores.” (id. p. 35)

Deve-se acrescentar a essas dificuldades, o fato de os pesquisado-


res, em particular os lingüistas, não revelarem um interesse maior pelo
estudo da gíria. E isso também indica um aspecto do processo preconcei-
tuoso em relação a esse vocabulário. Para nos atermos apenas à língua
portuguesa, vale lembrar que somente uma obra, já em pleno século XVII
revelaria o interesse de um poeta, D. Francisco Manuel Melo, por essa

244
Fala e escrita em questão.

fonte popular de nosso léxico: Feira de Anexins que, na verdade, não é


um trabalho científico. Da mesma maneira, na obra do poeta brasileiro
do século XVII, Gregório de Matos Guerra, em particular nos poemas
satíricos, encontramos alguns vocábulos que, pode-se supor, constituam
gírias da época.
Os estudos mais significativos sobre gíria ou calão (como se costu-
ma, ainda hoje, chamá-la em Portugal) só vão surgir em fins do século
XIX. De fato, só em 1890, Queirós Veloso publica num artigo seu, na
Revista de Portugal, a primeira lista de gíria portuguesa documentada, que
se tem notícia, com 1355 vocábulos (Lapa, A. 1974: 21; Preti, D. 1999).
O primeiro grande problema do pesquisador do vocabulário gírio é
a delimitação de seu campo de pesquisa. De fato, o fenômeno gírio pode
ser estudado sob duas perspectivas:

“a primeira, a da chamada gíria de grupo, isto é, a de um vocabulário


de grupos sociais restritos, cujo comportamento se afasta da maioria,
seja pelo inusitado, seja pelo conflito que estabelecem com a socieda-
de. No primeiro caso, estão os grupos jovens ligados à música, à dan-
ça, ao esporte, às diversões, aos pontos de encontro nos shoppings, à
universidade, etc.; no segundo, estão os grupos comprometidos com as
drogas, com a prostituição, com o homossexualismo, com o roubo e o
crime, com o contrabando, com o ambiente das prisões, etc.
Uma segunda perspectiva, a da gíria comum, é a que estuda a vulgari-
zação do fenômeno, isto é, o momento em que, pelo contato dos grupos
restritos com a sociedade, essa linguagem se divulga, torna-se conhe-
cida, passa a fazer parte do vocabulário popular, perdendo sua identi-
ficação inicial. É assim que, quando dizemos que estamos baratinados,
quer dizer, preocupados, perturbados por qualquer problema, sem con-
dição de decidir, estamos empregando um vocábulo da gíria dos toxi-
cômanos, vulgarizado pelo contato desse grupo fechado com a socie-
dade.” (Preti D. 1996: 139-140)

Como vocabulário de grupo restrito, a gíria é denominada por


alguns, nesse sentido, como jargão, não podendo esquecer-se, no entan-

245
PRETI, Dino. A gíria na língua falada e na escrita: uma longa história...

to, que, atualmente, esse vocábulo está muito ligado a uma linguagem
técnica banalizada enfatizando “a afetação ou a pretensão, como o em-
prego daquilo que os ingleses do século XVI às vezes chamavam de
‘termos de tinteiro’ ou ‘tinteirismos’ e outras ‘palavras difíceis”. (Burke,
P. id. p. 18). Ou seja, o jargão “também gera uma verbosidade mistifica-
dora que é obscura para o público”, afirma Porter, referindo-se ao jargão
profissional dos médicos. (Porter, R. 1996: 57)
A gíria dos grupos restritos, teve, historicamente, seu estudo liga-
do à vida do submundo da contraversão e do crime, caracterizando-se,
no dizer de Burke, como “uma antilinguagem de uma contracultura ou
uma linguagem para marginais.” (Burke, P. 1996: 8) Essa espécie de
gíria sempre constituiu a maior fonte de pesquisas para historiadores,
sociólogos e lingüistas, possivelmente, observa o mesmo autor, “em ra-
zão da excitação para os sedentários acadêmicos de uma participação
indireta em um mundo secreto e proibido de sexo, trapaças e violência.”
(id. p. 13)
Mas há, também, vocabulários de grupos restritos que não se li-
gam ao crime. Assim, mais recentemente, tem-se estudado a gíria dos
estudantes (cf. Castro, A.F.: 1947; Connie, E. 1996), a gíria dos jovens
(cf. Rector, M. 1975; 1994), a gíria do futebol (cf. Fernandes, M.C.L.O.
1974; Proença, I.C. 198l; Feijó, L.C.S. 1994). etc.
Esses e outros grupos restritos, cujo vocabulário conserva tam-
bém suas características criptológicas, possuindo, ainda, uma feição lúdica,
têm ainda maior interação com a grande comunidade. E seus vocábulos,
em constante renovação, facilmente se misturam e são empregados na
linguagem comum, perdendo sua condição identificadora do grupo so-
cial. É o que costumamos chamar de gíria comum.
Hoje, o maior desafio dos pesquisadores do assunto reside na gí-
ria comum, isto é, na descaracterização do signo grupal e a conseqüente
dispersão desses vocábulos na linguagem comum, nos mais variados
contextos e situações de comunicação. Alguns lingüistas mais ortodoxos
chegam a negar a esses vocábulos, nesse estágio, a própria condição de
gíria, preferindo aceitá-los como vocábulos comuns (cf. Caradec, F. 1988).

246
Fala e escrita em questão.

Sobre o assunto, cumpre lembrar dois estudos, um inspirado em corpus


literário (Cabello, A.R.G., 1989) e outro baseado em corpus jornalístico
(Veneroso, P.C. 1999). Neste, a autora procura, de certa maneira, discutir
a consciência que o jornalista tem da marca gíria em grande parte desses
vocábulos da gíria comum, inclusive pela sua presença entre aspas nos
escritos, em boa parte dos contextos.
Na época contemporânea o que vem causando espécie é a ampli-
ação considerável do uso da gíria comum, em particular no contexto
urbano das grandes cidades. Trata-se de um fenômeno recente e tem
ligação específica com os problemas lingüísticos de atitude e preconcei-
to lingüistico. Talvez ele seja, também, um problema para ser examinado
pelos historiadores, mas no momento ele impressiona os sociolingüistas,
que o encaram como um índice das grandes transformações sociocultu-
rais que o fim do século XX vem propiciando, decorrrentes, principal-
mente, da influência político-social da mídia e das modernas redes de
comunicação via satélite, como a Internet.

O preconceito lingüístico.

Sob o ponto de vista histórico, a ausência da gíria nos textos escri-


tos ou, pelo menos, a sua presença muito restrita neles, serviu para refor-
çar a idéia do baixo prestígio social desse vocabulário. A condição de
código de segurança, de vocabulário criptológico, acabou por situar a
gíria numa posição francamente de oposição à linguagem comum, da
mesma forma como serviu para ligar esse vocabulário diretamente às
classes em conflito com a sociedade. Então, observa-se que se consti-
tuiu, com o correr dos séculos, uma tendência para excluir a gíria da
“boa” linguagem, procurando-se vê-la como uma espécie de vocabulário
marcado pelo sentimento de agressividade, de oposição, que se vislum-
bra, não apenas nos seus vocábulos técnicos, isto é, os que nomeiam
atividades específicas de um grupo social restrito, mas também nos seus
recursos expressivos, como, por exemplo, no seu processo metafórico,

247
PRETI, Dino. A gíria na língua falada e na escrita: uma longa história...

que reflete um julgamento do mundo, a partir dos grupos menos favore-


cidos da sociedade. Além disso, como o sexo constitui um de seus refe-
rentes mais imediatos, a gíria trouxe para si toda a rejeição social que
caracteriza os vocábulos obscenos.
Deve-se considerar, também, que sua origem ligada a grupos so-
ciais renegados pela sociedade acabou por associar a gíria, na sua ori-
gem, às classes mais baixas da população (“baixas” no sentido de menor
renda e escolaridade), à “linguagem do povo” (isto é, das “camadas po-
pulares menos cultas”), tradição que só começou a romper-se há bem
pouco tempo, quando, em algumas sociedades democráticas, a chamada
“linguagem popular” foi perdendo gradativamente o sentido pejorativo
que a caracterizava. Mas, ainda assim, o vocabulário gírio conserva a sua
condição de subpadrão lexical, pelo menos enquanto não se perde a cons-
ciência de sua origem, o que vem ocorrendo muito rapidamente na socie-
dade contemporânea.
A atenuação do preconceito contra os vocábulos gírios, em nossa
época, deve-se mais diretamente ao seu largo uso na mídia jornalística
ou nos escritores modernos.
Além disso, apesar da filosofia eminentemente conservadora da
Escola, os estudos de língua, em todo o mundo, beneficiaram-se das
teorias sociolingüísticas da variação da linguagem, que condenam qual-
quer discriminação lingüística, sem que se considere o contexto e a situa-
ção de comunicação. A gíria se incorporou a algumas variedades de re-
gistros e dialetos sociais, podendo-se, hoje, à luz dessas teorias, justificá-
la plenamente, até na conversação e nos escritos de falantes cultos.
Sua crescente aceitação dentro da cultura de massa e seu ingresso
na norma lingüística da mídia, nos casos de vocábulos que já perderam
sua significação secreta de grupo, misturando-se à linguagem comum,
favoreceu decisivamente a atenuação do preconceito. Pode-se dizer que
foi, historicamente, um processo natural, decorrente da transformação de
valores que marca as últimas décadas do século XX. Vejamos, especifi-
camente, o exemplo da linguagem das grandes cidades brasileiras:

248
Fala e escrita em questão.

“De certa forma, podemos afirmar que, do ponto de vista que nos inte-
ressa, o lingüístico, o fato importante é que essa cultura de massa tor-
nou necessária uma uniformidade de produção que incidiu diretamen-
te sobre a linguagem. Novelas, noticiários, programas cômicos, divul-
gação científica, noticiário diário da imprensa, legendas de filmes de
cinema, propaganda etc. devem atingir um receptor padrão, sempre
que possível uniforme. Teoricamente não existe uma novela para pes-
soas cultas e outra para tele-expectadores de baixa escolaridade. Tor-
na-se necessário criar temas mais amplos, acessíveis a todas as clas-
ses sociais, dentro de seus interesses mais imediatos, ligados à realida-
de mais recente, dentro de uma linguagem que todos entendem. Daí o
processo de uniformização cultural e, por conseguinte lingüístico. Re-
cebemos, cultos e incultos, um lazer e uma informação iguais, numa
linguagem que todos entendem, que não favorece a reflexão, nem ins-
tiga a dúvida, muito menos gera a incompreensão. Eis instaurada a
norma lingüística da mídia, mistura dos hábitos lingüísticos orais e
escritos, atenta às transformações constantes, à ‘moda lingüística’, à
maneira mais original ou expressiva de dizer as coisas no momento,
muito mais voltada para a linguagem popular que, assim, ganha ines-
perado prestígio social. (Preti, D. 1998: 121)

Tomemos como exemplo desse processo democratizador da cul-


tura e de sua representação na linguagem contemporânea um de seus
índices mais expressivos, que é o uso crescente das formas gírias, na
língua escrita, no estilo da imprensa. Neste, sua presença não ocorre ape-
nas no jornalismo popular, em jornais como Notícias Populares (cf. Dias,
A.R.F. 1996), mas também em órgãos tradicionais da imprensa brasilei-
ra, como O Estado de S.Paulo, Folha de S. Paulo, Jornal da Tarde, em
São Paulo, e em revistas de prestígio e circulação nacional, como Veja
(cf. Veneroso, P. C. op. cit), conforme ilustram alguns exemplos toma-
dos, ao acaso, em épocas diferentes:

“Já Fernanda, metida num modelito entre peruaça e feirante, despon-


tou puxando um cachorrão, que escorregou da passarela.” (Veja, l8-9-
96)

249
PRETI, Dino. A gíria na língua falada e na escrita: uma longa história...

“Estado não tem grana para cobrir títulos ilegais.” (Jornal da Tarde,
25-11-96)
“Outro bafafá nas contas dos Salinas.” (Veja, 12-6-98)
“O dia em que o Vasco eternizou a maracutaia.” (Jornal da Tarde, 22-
12-97).
“A mulher, casada, havia mantido relações sexuais com outro homem
logo depois de ter transado com o marido.” (O Estado de S.Paulo, 1º-
1-98)
“Na madrugada de ontem, o bailarino Valdomiro Muniz de Santana, 39,
conhecido como Sulimana, chegou do desfile da Viradouro e encontrou
seu apartamento todo bagunçado.” (Folha de S.Paulo, 25-2-98)
“Estréia de Ratinho, na terça, bagunça o coreto do SBT.” (O Estado de
S.Paulo, 6/9/98)
“Timão cata o caneco na porrada. Aos 30 do 2º tempo Edílson humi-
lhou. O Verdão pirou. O pau comeu e o jogo não acabou.” (Notícias
Populares, 21-6-99)
“Artistas no susto com a uruca de 94”. (Notícias populares, 27-12-94)
“A saia justa da festa de Sasha ficou por conta do trio Luciano Huck-
Ivete Sangalo-Eliana.” (Folha de S.Paulo 29-7-99)
“O espaço era tão grande que a saia nem ajustou, quando os ex se
encontravam – se é que se encontravam...” (Folha de S.Paulo, 29-7-
99)
“Pistolas, ameaças e fuzuê – A vereadora Maria Helena, presa com oito
armas de fogo em casa, enreda-se em mais um rolo que envolve chanta-
gem e complôs de assassinato” (Veja São Paulo, capa, 9-15/8/99)

Mas os vocábulos que citamos, peruaça (mulher madura, exibi-


cionista), grana (dinheiro), bafafá (confusão), maracutaia (tramóia),
transado (mantido relações sexuais), bagunçado (confuso), bagunçar o
coreto (criar confusão), na porrada (à força), humilhou (fez uma jogada
brilhante), pirou (enlouqueceu), o pau comeu (houve briga), uruca (azar),
saia justa (escândalo), a saia nem ajustou (não houve escândalo), fuzuê,
rolo (confusão) não comprovam que o preconceito em relação ao uso da
gíria na escrita tenha desaparecido. O que queremos mostrar é que ele se
atenuou e, considerado o contexto (tipo de leitor, tipo de assunto, seção

250
Fala e escrita em questão.

do jornal ou revista etc.) pode até ser considerado como um uso adequa-
do, com objetivo de criar uma interação mais satisfatória com o leitor, no
caso da imprensa.
Os manuais da redação dos grandes jornais, porém, continuam
fazendo sérias restrições ao seu uso, embora, em geral, os redatores pas-
sem por cima de tais regras e, cada vez mais, utilizem esse vocabulário:

“Gíria e linguagem coloquial. Evite as palavras de gíria. Quando fi-


zerem parte de uma declaração, use-as em itálico. Se forem muito es-
pecíficas (jargão policial, por exemplo), coloque em seguida, entre
parênteses, o seu significado: ‘ Peguei um bagulho (objeto qualquer),
fumei um baseado (cigarro de maconha) e depois mandei (roubei) um
carro’. A linguagem coloquial e os termos de gíria de uso comum dis-
pensam aspas, mas devem ser empregados apenas em casos especiais,
nos textos mais leves, opinativos ou irônicos que realmente os justifi-
quem.” (Martins, E. 1997: 134)

“Gíria – A Folha evita o uso de gíria, salvo quando reproduz declara-


ções textuais ou em respeito à liberdade literária de articulistas.” (MA-
NUAL GERAL DA REDAÇÃO, Folha de S.Paulo, 1984: 46)

Tal atitude faz parte do que Dias, A.R.F. (op. cit. P. 40-4l) denomi-
na de pretensas “leis de boa conduta lingüística” adotadas pelos jornais,
bem como de um resquício ainda vivo do purismo lingüístico (Leite, M.
Q. 1999: 230-40).
A presença, apesar de tudo, da gíria, nos jornais de “elite”, pode
ser justificada pelo fato de boa parte desses vocábulos ter perdido sua
condição de vocabulário fechado, ampliando-se seu uso, perdida a noção
de sua origem. Mas não é o caso de alguns dos vocábulos citados antes,
como saia justa, por exemplo, ainda de sentido pouco divulgado, porque
restrito aos ambientes da noite e da alta sociedade. Sua presença, no
noticiário geral do jornal, apenas indica uma das características impor-
tantes da ampliação do uso da gíria: sua divulgação para a linguagem
comum com a conseqüente perda do signo de grupo.

251
PRETI, Dino. A gíria na língua falada e na escrita: uma longa história...

Outro índice a considerar na perda parcial do preconceito em rela-


ção à gíria aparece nos dicionários. Os grandes dicionários, em todo o
mundo, têm sido muito parcimoniosos na recolha de vocábulos gírios.
Mas é evidente que, ao lado do surgimento de dicionários especializados
nesse vocabulário, está havendo uma aceitação da gíria nos dicionários
de língua, notadamente daquela que se incorporou ao uso diário falado.
Entre nós, o exemplo mais expressivo seria o Dicionário Aurélio. Nele,
o processo de lexicalização da gíria, ainda que sob rubricas nem sempre
adequadas, revela uma etapa na quebra do preconceito contra os vocábu-
los dessa espécie, por parte dos lexicógrafos.
Por outro lado, alguns dicionários de gíria têm surgido no Brasil,
valendo registrar o esforço de recolha de obras como a de Serra e Gurgel
(1990), em edições sucessivas, hoje já com cerca de 15.000 verbetes, o
que demonstra o interesse pelo material divulgado.
Se quiséssemos, no Brasil, datar historicamente esse processo de
interesse pela gíria, teríamos que aludir às três últimas décadas do século
XX, em que o país passou por conturbados períodos políticos, da ditadu-
ra à democracia, além de momentos de crise econômico-social, em que a
revolta das classes menos favorecidas não raro se traduziu no vocabulá-
rio gírio ou injurioso, como uma forma de catarse coletiva. Assim, lem-
brando que na década de 70, em plena ditadura militar, a gíria chegou a
ser proibida no meios de comunicação de massa, é interessante lembrar
como os sucessivos movimentos democráticos que se sucederam e cul-
minaram na década de 90, praticamente têm ignorado esse problema, e a
gíria já se incorporou aos modelos de variação lingüística no ensino de
português, em boa parte da escola brasileira.

A gíria e a linguagem dos falantes cultos.

Um dos problemas que têm intrigado os pesquisadores de gíria é a


relação que sempre se estabeleceu entre esse vocabulário e a classe so-
cial dos falantes que o empregam.

252
Fala e escrita em questão.

Como vimos, de um modo geral, podemos, historicamente, afir-


mar que a gíria nasceu do submundo social e essa sua gênese gerou um
acentuado preconceito em relação ao seu uso por outras classes, o qual,
embora atenuado, permanece até hoje. A gíria, pois, é o vocabulário de
uma anti-sociedade, de um grupo marginal, em conflito com a comuni-
dade.
Por outro lado, ela também pode apenas representar a linguagem
de um grupo restrito de costumes insólitos que, por possuir hábitos dife-
rentes da sociedade em que vive, gera uma atitude preconceituosa em
relação a seu vocabulário. Neste segundo caso, a convivência com esses
grupos (jovens, esportistas, freqüentadores da noite, estudantes etc.) é
menos conflituosa, mais freqüente, do que decorre a maior interação en-
tre esse vocabulário e o comum.
Com isso, diminui-se o preconceito, e os vocábulos mais empre-
gados pelo grupo restrito e, portanto, mais desgastados, começam a apa-
recer na linguagem comum da sociedade, muitas vezes, por meio da
mídia, passando a integrar a conversação do dia-a-dia e até, não raro, as
situações mais formais e com falantes considerados cultos.
Num estudo publicado sobre 6 diálogos do Projeto NURC/SP,
portanto a propósito de falantes cultos (pelo fato de terem nível universi-
tário), foi constatada a presença de 84 ocorrências de vocábulos e expres-
sões de fundo gírio, assim justificada:

“Como era de se esperar, dessas 84 ocorrências, 74 delas (88%) apa-


recem em dois diálogos com informantes da primeira faixa etária.
O número de ocorrências pode não parecer grande, considerando que
se trata de um levantamento de 7h27m de gravação. Mas não nos es-
queçamos de que são gravações até certo ponto formais, pois os
falantes tinham consciência de que estavam sendo gravados. Daí po-
dermos concluir que a aceitabilidade da gíria em situações de maior
formalidade já era apreciável na década de 70. Mas o certo é que se
tornaria bem maior nos anos 80.” (Preti, D. 1989: 164-165)

253
PRETI, Dino. A gíria na língua falada e na escrita: uma longa história...

Se pensarmos em termos da década de 90, o problema talvez ga-


nhe outra configuração. Começa a desaparecer, gradativamente, o pre-
conceito em relação aos vocábulos gírios, pelo menos em relação àque-
les que se incorporaram à linguagem comum e já perderam para o falante
a noção de sua origem. Hoje, seria necessário uma linguagem muito ten-
sa para que evitássemos, na conversação, os vocábulos gírios ou pelo
menos aqueles sobre os quais não temos certeza de que provêm de uma
origem gíria. A imprensa tem mostrado, nas entrevistas, em discurso
direto, a presença deles, até mesmo em falantes que, além de cultos, têm
o compromisso com o cargo ou o status que possuem na sociedade (em
geral, profissionais liberais, políticos etc.):

(Professor):
“Não adianta o marido ou a mulher reclamar um milhão de vezes,
alerta o professor Aílton. Ninguém convence ninguém argumentando
que a casa está uma bagunça.” (Veja, 11/8/99, p. 104).

Apresentador de TV:
“Por fim o apresentador Cid Moreira, no Fantástico: ‘ Príncipe Negro
das noites de domingo, você é espada?’ trovejou Cid. ‘Claro! Além de
espada sou sortudo.” (Veja, 4/8/99, p. 113)

Jornalista:
“Mas acredito que os outros 35 episódios sejam mesmo fruto da ação
de quem curte o prazer sádico de ver o circo pegar fogo.” (Veja, 4/8/
99, p. 121)

Deputado:
“Referiu-se em seguida a uma nota que apontava a existência de
maracutaia legítima na decisão do Senado” (O Estado de S.Paulo, 15/
3/97, p. A-18)

254
Fala e escrita em questão.

Economista:
“O exemplo mais recente foi o do presidente do BNDS, manifestando-
se contra a ‘abertura babaca’, desconhecendo que abertura, como
democracia não admite qualificativos. (...) Mas nem só de babacas
compõe-se o governo.” (Folha de S.Paulo, 1º/4/97, p. 2-2)

Delegado de Polícia:
“Em seu passaporte consta que ele chegou ao Brasil em 24 de maio.
Geralmente as mulas só ficam por aqui por cerca de quatro a cinco
dias.” (Folha de S.Paulo, 6/10/96, p. 3-13)

Ministro:
“O que foi feito recentemente não foi – como dizem os mais afoitos e
açodados de sempre – um liberar geral, um soltar a franga no que diz
respeito à cobrança de tarifas bancárias, disse Malan.” (Folha de
S.Paulo, 6-9-96, p. 2-7)

Considerações finais.

É preciso sempre ter em mente que as transformações lingüísti-


cas, mesmo no caso do léxico, estão sujeitas ao fenômeno do prestígio
social da linguagem. Ele explica, por exemplo, a invasão dos emprésti-
mos (particularmente dos anglicismos) nos dias de hoje. Como, também
ajuda a entender a melhor aceitação da gíria. Mas, por outro lado, há
sempre mecanismos de compensação, de equilíbrio, conservadores, que
contribuem, por exemplo, para manter os tabus e os preconceitos contra
determinados níveis de linguagem. São eles que ajudam a conservar,
ainda hoje, certos estigmas que vêm perseguindo há muitos séculos a
gíria.

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PRETI, Dino. A gíria na língua falada e na escrita: uma longa história...

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PRETI, Dino. A gíria na língua falada e na escrita: uma longa história...

Ficha técnica

Divulgação Humanitas Livraria – FFLCH/USP


Mancha 10,6 x 17,8 cm
Formato 13,8 x 21 cm
Tipologia Times New Roman e Bookman Old Style
Papel miolo: off-set branco 75 g/m2
capa: cartão branco 180 g/m2
Montagem Charles de Oliveira/Marcelo Domingues
Impressão da capa Preto e Pantone E 269-1
Impressão e acabamento Seção Gráfica – FFLCH/USP
Número de páginas 258
Tiragem 1000 exemplares

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