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Lavagem de dinheiro

Lei nº 9.613/98

Hekelson Bitencourt Viana da Costa

Sumário
Introdução. 1. As dificuldades no combate.
2. A delinqüência dourada no Brasil – um esbo-
ço histórico. 2.1. Brasil-Colônia. 2.2. Brasil-Impé-
rio. 2.3. Brasil-República. 3. Admirável crime
novo. 4. Criminalidade dourada e nova ética –
perspectivas doutrinárias. 5. Lavagem de dinhei-
ro – conceitos e fases. 5.1. Conceito. 5.2. Fases.
5.3 Ilustração das fases. 6. Antecedentes históri-
cos. 7. A lei de lavagem de dinheiro. 7.1 Aspec-
tos gerais. 7.2. Aspectos específicos – posiciona-
mento crítico. 7.3. Aspectos processuais penais.
8. Responsabilidade administrativa, o COAF e a
questão do sigilo bancário. Conclusão.

Introdução
O presente estudo tentará mostrar a cri-
minalidade dourada como um mecanismo
propulsor das diferenças de classes, tão co-
muns nas sociedades capitalistas, e assim
também o seu alto poder lesivo à economia.
Pela sua natureza, esse tipo de manifes-
tação criminosa requer respostas diferentes
daquelas oferecidas à criminalidade tradi-
cional. Ainda, se tentará mostrar que tal cri-
minalidade foi desvendada pela criminolo-
gia da reação social.
Aliando-se a isso, ficará evidente, por um
termo cunhado pela sociologia crítica: a ci-
fra oculta, que o Sistema Penal (policial, ju-
rídico e penitenciário) é seletivo e desigual
Hekelson Bitencourt Viana da Costa é Ba- em especial nessa criminalidade em relação
charel em Direito pelo Centro Universitário à tradicional, tendo em vista a posição de
de Brasília – CEUB. seus agentes na sociedade de classes.
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O termo em tela não é unânime como con- forma contrária, não ocorre com a macrocri-
ceito uno ou nomenclatura entre os autores. minalidade (criminalidade dourada), pois
Ora alguns tratam como macrocriminalida- a sua veiculação nos meios de comunica-
de, ora criminalidade não-convencional, ção vem em tiragens parciais e isoladas, o
crime de colarinho branco (white collar cri- que pode levar a uma interpretação de que
me), delinqüência dourada ou ainda hiper- se é impossível apurá-los em toda a sua ex-
criminalidade. tensão. O que não é verdade, haja vista, por
Mas como significado, como substância exemplo, as grandes operações já realiza-
não há tanta distinção entre os autores. Esse das para combatê-los:
tipo de criminalidade abarca algo diferente • a operação Mãos Limpas na Itália, in-
da microcriminalidade ou criminalidade clusive com o processo penal do ex-primei-
tradicional. Nele se encontram os atos que ro ministro Andreothi;
violam a Lei Penal, mas que são praticados • a operação ABSCAM, promovida pelo
por pessoas de elevado padrão social e eco- FBI, nos Estados Unidos, na qual se consta-
nômico, dentro de uma profissão lícita, mas tou a corrupção de legisladores e altos fun-
com um evidente exercício abusivo. cionários estatais;
A violência física direta é praticamente • a tentativa, pelo Ministério Público de
inexistente, pois seus agentes atingem a seus São Paulo, em resolver a máfia da prefeitura
objetivos por meio da astúcia, da fraude e daquele Estado;
da simulação. Esses agentes ancoram-se em • a tentativa, em tese, de no Brasil, de
suas posições sociais e, conquanto têm po- acordo com a ABIN (Agência Brasileira de
der econômico e corolário político, desfrutam Informação), ocorrerem situações análogas
da respeitabilidade social que possuem. às experiências italiana e americana.
Ainda que a violência física seja quase Diante desses exemplos, torna-se eviden-
que inexistente, essa criminalidade, pelas te que a microcriminalidade coexiste em
cifras que faz acumular, ocasiona prejuízos tempo e espaço com a criminalidade doura-
enormes à economia dos países, o que cor- da, porém a microcriminalidade é de natu-
responde a um entrave ao desenvolvimento reza conjuntural, praticada quase que de
e à própria cidadania, visto que outros mem- forma aleatória, salvo pequenas organiza-
bros da sociedade são excluídos da partici- ções. Mas o mais importante é que o micro-
pação dos bens resultantes dessas ações. criminoso é encarado como um indivíduo à
Como bem se depreende da lição de Ro- parte, um marginal. Tem aqui o Sistema Pe-
berto Lyra, essa criminalidade é praticada nal forte influência da Teoria pura do direi-
pelos “inacessíveis e incapturáveis”. Daí to (crime e o tipificado) que leva, ainda hoje,
que esses crimes, ao serem objeto de estu- muitos a enxergarem a criminalidade tradi-
dos, devem ter em conta as observações cri- cional como a única forma de delinqüência
minológicas sobre a cifra oculta da crimina- existente, e tendo em vista que muitos cri-
lidade – outro grande marco nas investiga- mes (da criminalidade dourada) não são ti-
ções da criminologia da reação social. Tra- pificados, pois o seu leque é grande ou ain-
ta-se daqueles crimes que não estão nas es- da nem são conhecidos. Isso favorece a conti-
tatísticas oficiais, nem mesmo tendo chega- nuação da criminalidade dourada, e como
do a registro pela atividade policial. conseqüência a impunidade de seus agentes.
No mais das vezes, a microcriminalida- A macrocriminalidade – criminalidade
de (tradicional), como os pequenos assal- dourada – é de natureza sistemática e estru-
tos, homicídios entre as pessoas pobres, fur- tural. Sistemática porque se envolve no
tos de pouca monta, acidentes de trânsito, Sistema Jurídico Penal, possuindo dois fato-
ocupa longos espaços e tempo nos meios de res: o lucro e a impunidade. É, pois, uma de-
comunicação de forma detalhada. O que, de linqüência em bloco, conexo e compacto den-

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tro do Sistema Social como um todo, de modo Esse elenco foi elaborado pelo Conselho
pouco transparente (como no caso do crime da Europa, órgão que colabora e assessora
organizado) ou sob o rótulo da atividade eco- o Conselho Econômico e Social da ONU e
nômica lícita (crime do colarinho branco). que tem como funções principais formular
Fica fácil, assim, visualizar que tais ati- recomendações de políticas para os sócios e
vidades prosperam em países desenvolvi- para o Sistema da Organização das Nações
dos e em desenvolvimento, pois a possibili- Unidas, bem como fazer estudos ou relató-
dade de lucro é maior, o que favorece a cor- rios de interesse econômico e social, de que
rupção de autoridades e demais funcioná- se depreende a preocupação global sobre
rios do Estado. essa espécie criminosa.
Assim a macrocriminalidade compreen- No Brasil, ante o caráter ultrapassado
de os crimes de colarinho branco e o crime da Lei de Economia Popular de 1951, surgi-
organizado, ambos em suas várias formas. ram alguns mecanismos para melhor com-
Tal compreensão não é uma conceituação bater o crime. Esses mecanismos estão colo-
fechada, ainda mais que a criminalidade em cados na Lei do Consumidor de 1990, na
tela (dourada) é, como visto, praticada por Lei do crime organizado e na Lei 9.613/98 –
“inacessíveis e incapturáveis”, o que leva a a lei de lavagem de capital.
crer que o conceito englobaria então todos A título de comparação, para se dimen-
os delitos praticados por essas pessoas ten- sionar o problema: apenas no período de
do em vista a cifra oculta de suas posições um ano a criminalidade do colarinho bran-
na pirâmide social e então a certeza de que co nos Estados Unidos rendeu 30 a 40 bi-
não “selecionados” (o que não é correto), lhões de dólares, o que, como bem observa
significando serem impunes, mesmo que Marchall Clinard: “(...) representa, em ter-
suas ações sejam prejudiciais à coletividade. mos de prejuízos para a sociedade, em 01
Para tentar minimizar o problema de único crime dessa natureza à soma de mi-
identificação, trago à baila o seguinte elen- lhares de crimes de pequenos furtos, furtos
co de crimes de colarinho branco: qualificados (os quais representam a crimi-
- formação de cartéis; nalidade tradicional)”.
- abuso do poder econômico das multi- Cabe aqui ressaltar que tal tipo de crimi-
nacionais; nalidade torna-se visível, graças ao traba-
- obtenção fraudulenta de fundos do Es- lho da criminologia crítica, pois, como bem
tado; leciona Frederico Abrahão, em seu Manual
- criação de sociedades fictícias; de Criminologia, o Estado Moderno capita-
- falsificação de balanços; lista defende os interesses das classes mais
- fraude contra o capital de sociedades; fortes economicamente. Esse tipo de organi-
- concorrência desleal; zação transformou a Criminologia Tradici-
- publicidade enganosa; onal em peça de controle social, mantendo
- infrações alfandegárias; a ordem posta, fazendo do Sistema Penal
- infrações cambiárias; (penitenciário, policial e judicial) mera peça
- infrações da bolsa de valores; para uma determinada clientela. Não é à toa
- dumping de produtos farmacêuticos; que Jorge de Figueiredo e Manuel da Costa
- manipulação de sorteios de consórcios Andrade falam da criminologia da seleção,
e de loterias; ou seja, inclusive no tribunal, os juízes relu-
- indústrias de insolvência; tam em condenarem indivíduos de deter-
- defraudação do consumidor; minadas classes, talvez nem em função da
- espoliação abusiva por instituição fi- pessoa juiz, mas de mecanismos de seleção
nanceira etc; tais como o da verdade processual, pois os
- lavagem de dinheiro. indivíduos de tais classes conseguem pa-

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gar bons advogados, fazendo da verdade se não possui violência efetiva, mas existe,
processual uma outra, e também existe o sim, uma violência oculta, indireta, mas
mecanismo dos bons antecedentes (dispos- enormemente cruel aos direitos humanos.
to no artigo 59 do Código Penal brasileiro), O direito penal, na lição de Vicente Cer-
os quais os agentes desses crimes possuem, nicchiaro, deve ser expressão do Estado De-
devido à sua posição social. mocrático de Direito, não devendo, pois, ser
Aliás, Alessandro Baratta, lastreando-se objeto de domínio de classes, como se obser-
em Dahrendof, lembra como mecanismo se- va. Aliando o tema deste trabalho aos dize-
letivo a “sociedade dividida”; assim, de- res do autor ilustre Ministro, pode-se ver
monstra que os juízes provêm de apenas al- uma ligeira mudança de posição, pois, com
gumas classes, o que aponta, como já citada o advento da Lei 9.618/93 sobre lavagem
retro, a posição desfavorável dos acusados de dinheiro, parece que o Brasil demonstrou,
(selecionáveis) no processo. embora tardiamente, preocupação para atin-
Assim, a seleção, além de retirar tais in- gir a criminalidade dourada. Tardia porque,
divíduos (da criminalidade dourada) da já na década de 70, nos EUA, com os lucros
órbita penal, tem nitidamente a função de absurdos, o crime organizado precisou re-
Poder, visto que, aqui, separam-se os puní- meter o capital com segurança para o exteri-
veis e os não-puníveis pelo sistema. Isso se or e fazer fluxo de caixa, passando a fazer
esclarece porque a explicação da Crimino- uso da lavagem de dinheiro. Contudo, a
logia Crítica se baseia em que as contradi- mera positivação, como é a resposta legisla-
ções das classes subordinam o crime a rela- tiva, não é tudo, pois o Sistema Penal ainda
ções dessas mesmas classes na produção continua seletivo.
econômica. Ou seja, não se equaciona o cri- Neste ponto, é interessante focar-se em
me e a criminalidade sem profundas altera- um novel tipo penal, nitidamente pertencen-
ções na base estrutural da sociedade capi- te à criminalidade dourada e recentemente
talista. Exemplo vivo é da execução penal: positivada: a lavagem de dinheiro (Lei
mesmo que um não-selecionável sofra a san- 9.613/98).
ção penal, a sua execução será diferente, o É sabido que os crimes dessa natureza
Sistema Penitenciário ratificará as desigual- geram lucros enormes e podem causar até
dades por meio de prisões especiais, sursis, instabilidades de governos frente às ruínas
etc. Tal diferenciação não é aquela descrita políticas que possam originar, daí que a
no começo deste trabalho, como necessária nova lei tutela, objetivamente, então, o Siste-
repressão a hipercriminalidade, pois aqui ma Financeiro Econômico nacional. Fica
não é uma repressão propriamente dita. evidente que, com o mundo se agilizando,
Essa forma de diferenciar é tão-somente uma principalmente em termos comerciais e tec-
ratificação da desigualdade do Sistema, ao nológicos, a rápida movimentação de capi-
tratar os agentes de uma e de outra crimina- tais é extremamente perigosa, como se teve
lidade. oportunidade de vislumbrar diante das cri-
Faz-se mister novamente a lição de Fre- ses cambiais do México e da Rússia. Diante
derico Abrahão em relação ao tipo de crimi- disso, a lei indica as pessoas jurídicas e físi-
nalidade deste trabalho, com base, claro, nos cas que devem identificar seus clientes e
apontamentos da Criminologia Crítica, a operações financeiras, bem como manter
qual deve focalizar as explorações exerci- registros das operações efetuadas e o seu
das por empresas multi e transnacionais valor; o que permite em tese às autoridades
controladoras de setores principais da eco- “seguir o rastro” de possíveis operações
nomia e que tal controle consiste em fonte suspeitas.
incalculável de corrupção, fraudes etc. Daí Com o exposto, nota-se que no mundo
que, como dito antes, tal criminalidade qua- moderno convivem as duas criminalidades:

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a tradicional e a não-convencional (doura- globalizado acompanhando a evolução das
da); citando Juary Silva: “aquela age de modo finanças e dos mercados internacionais
artesanal e essa em uma verdadeira linha (2000, p. 6). Não basta mais a conduta orga-
de montagem”. nizada de outrora, pois a lavagem de di-
É a criminalidade dourada uma caracte- nheiro serve de intercâmbio entre as organi-
rística da sociedade industrial ou, mesmo, zações internacionais criminosas, tal troca
da pós-industrial, ou seja, na proporção que é em nível não somente de informações, mas
cresce a oferta de produtos e serviços econô- de serviços de práticas, entre as quais o ilí-
micos aumenta, em igual termo, a suscetibi- cito em epígrafe, o que se está caracterizan-
lidade de bens jurídicos a ataques. Sendo, do como uma verdadeira DIT (Divisão In-
portanto, algo marcante na sociedade capi- ternacional de Trabalho, só que criminal).
talista, assim tornando-a um ente criminó- Daí outra dificuldade, que é, também, con-
geno em sua essência, como sociedade de seqüência dessa modernização, segundo
classes. Em outras palavras: é uma socieda- nos relata Adrienne de Senna, presidente
de que oferece ensanchas ao cometimento do COAF – Conselho de Controle de Ativi-
do crime, pois o desenvolvimento econômi- dades Financeiras –, sobre a necessidade de
co feroz desperta o desenvolvimento, pela formação de Recursos Humanos na apura-
cobiça, da criminalidade de escol, de ardil. ção do ilícito da lavagem de dinheiro, que é
Deve-se, pois, zelar por um Direito Pe- bem específico (2000, p. 25).
nal dicotômico, que é aquele que trate de Acrescenta-se aos expostos os obstácu-
ambas as criminalidades, pois, se a crimi- los que autoridades bancárias impuseram,
nalidade dourada é fruto tecnológico, deve nos últimos anos, com normas rígidas como
ser combatida pela mesma tecnologia, base- meio de combate à prática, o que forçou, em
ada no seu conhecimento do seu modus ope- certa medida, a que a lavagem de dinheiro
randi, não com fundamento no fracassado passasse a operar em menor escala nas ativi-
combate à criminalidade comum. dades bancárias, migrando para atividades
mercantis, como transações imobiliárias no
1. As dificuldades no combate grande mercado de jóias e obras de arte, bol-
sa de mercadorias, bingos e empresas de fac-
Roberto Lyra Filho (Apud FERNANDES, toring.
1995, p. 431) considera a macrocriminali- Entre nós, em 1990, o Relatório número
dade como crimes por atacado cometidos por 121, fruto de uma Comissão Parlamentar
indivíduos que, por sua posição sócioeconô- Mista de Inquérito, destinada a apurar a
mica na esfera social, são tidos como inaces- fuga de capital e a evasão de divisas do Bra-
síveis e incapturáveis, os quais, consciente sil, dáva-nos provas da dificuldade no com-
e tranqüilamente, violam as leis para aumen- bate a essa criminalidade. Interessante no-
tar os lucros de suas atividades ocupacio- tar que a lavagem, entre nós, só foi tipifica-
nais. Respaldam-se, destarte, no seu pode- da em 1998, fato este que poderá explicar,
rio econômico como fator de intangibilida- mais adiante, certos lapsos no documento
de e impunidade. em questão.
Oxalá fosse essa a única dificuldade no Ora, nesse documento, de início, perce-
combate, dadas as características do crime, be-se que a posição da CPI foi de limitar-se à
seu caráter transnacional como fator de fuga investigação das fraudes cambiais em im-
de investimentos, associado à rapidez que portação, realizadas por empresas nacio-
a globalização econômica nos traz: outras nais e multinacionais, eis que os principais
dificuldades levantam-se, certamente. envolvidos, como bancos, multinacionais e
Mesmo porque, como bem nos admoesta corretoras de câmbio, tinham (e têm) forte
Roque de Brito Alves, o crime passa a ser poder de pressão sobre o Corpo Legislativo.

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Há indícios que nos permitem perscru- tos na economia do país, nesta era de capi-
tar do uso da lavagem de dinheiro como fa- tal volátil.
tor legitimador das práticas apuradas, como E, por derradeiro, há uma verdadeira in-
quando o representante do BACEN (Banco versão de valores na sociedade, como au-
Central) afirma que pode ter ocorrido mau têntico caldo de cultura, que é propício para
uso dos cruzados originados com a trans- a proliferação de crimes dessa estirpe, ca-
formação das divisas obtidas por financia- racterística predominante das sociedades
mento externo. Ou quando o representante capitalistas, consumistas em sua essência,
da Polícia Federal lamenta que, na busca prevalecendo o Ter em desfavor do Ser. É,
para a identificação dos destinatários das pois, dessa verdadeira “neutralidade ética”
remessas sob fraude, haja esbarrado no si- que ascende mais uma dificuldade de com-
gilo dos bancos suíços, o que impediu a iden- bate, porque parece efetivar-se a noção ma-
tificação dos beneficiários. O Relatório con- niqueísta de vitória do Mal sobre o Bem. A
clui que, entre os demais modos operacio- finalidade do lucro acaba por gerar, nos
nais, estavam as infrigências aos CCRs, que componentes sociais, uma aceitação de cer-
são documentos de remessa de dinheiro tas práticas delitivas, como que não permi-
para fora do país, e a constatação de expor- tindo mais enxergar os danos causados à
tadores inexistentes. sociedade, tanto em termos monetários,
O Inquérito, no âmbito da Polícia Fede- como éticos, em crise de significado muito
ral, que o relatório transcreve, afirma que as mais profundo do que se imaginava.
fraudes ocorreram para obtenção de lucro
entre o câmbio oficial e o paralelo; tal dife- 2. A delinqüência dourada no
rença, que seria o ilícito – o lucro –, era apli- Brasil – um esboço histórico
cada no mercado de investimentos ao por-
tador. O montante da fraude foi de mais de 2.1. Brasil-Colônia
US$ 20.000.000. Os indiciados haviam dei-
xado o labor na área bancária e, usando o A corrupção no Brasil vem de longos
lucro auferido, passaram a atuar em ativi- tempos, passando, pois, pela fase da Colô-
dades diversas. Houve, ao final do Relató- nia, do Império e da República. Como bem
rio, o envolvimento de 24 bancos, 25 corre- leciona Sérgio Habib (1994), no máximo o
toras de câmbio e 105 empresas de importa- que conseguimos ser foi uma “terra brasi-
ção. As fraudes incluem a movimentação de leira”, não uma nação, visto que inexistia
mercadorias, serviços e moedas estrangeiras. um código moral. A nossa colonização defi-
Aliada a essas dificuldades soma-se ou- niu-se como meramente exploradora, com-
tra: a de que o Estado, enquanto ente preo- petindo-nos apenas fornecer matéria-prima,
cupado com a criminalidade tradicional sendo constantes os desvios na remessa de
(que se mostra abertamente e vem causando mercadorias e, também, na arrecadação dos
violência e uma comoção maior no grande tributos.
público), está defasado em relação à macro- Esse ranço ainda persiste entre nós: é o
criminalidade, que é sutil, quase sempre pensamento que encara os bens públicos
impune, corrupta e corruptora, mas tão ou como se fossem de terceiros, e toda essa
mais violenta que a tradicional, pois, ainda maneira de postar-se atravessou o período
que invisível, essa violência acarreta desvio de dominação, seja do colonialismo portu-
de recursos que poderiam estar em progra- guês, seja da dependência inglesa, já no
mas sociais. E, também, por causar, em ní- Império; seja no período republicano com a
vel internacional, insegurança e descrédito dependência norte-americana.
quanto ao mercado brasileiro, o que signifi- Ora, é compreensível esse ponto, visto
ca menos recursos externos em investimen- que os que aportavam aqui eram os falidos

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e incorrigíveis (SANTOS, p. 132), não ha- daí não se poder identificar a índole do povo
vendo, pois, um compromisso ideológico ou brasileiro como má ou distorcida. O com-
moral em formar uma nação. Nessa época, portamento do homem comum estava espe-
já era implantada a lei da vantagem no Bra- lhado na forma de agir da Metrópole.
sil. Assim, a avidez dos que aqui chegavam
para enriquecer-se com a forma de abundân- 2.2. Brasil-Império
cia da nova Colônia fazia com que se multi- O expansionismo francês, operacionali-
plicassem os casos de corrupção. zado por Napoleão Bonaparte, como sabi-
É lógica a percepção do motivo pelo qual do, por via direta, transferiu o reino de Por-
a Metrópole não permitiu o aprimoramento tugal para o Brasil, em 1808. Bem demons-
moral, pela educação, da vida na Colônia: tra Sérgio Buarque de Holanda2 que tal
somente com o temor de perder o domínio e, transferência era há muito ansiada, pois
em conseqüência, o poder sobre o lucro exis- podia-se realizar um “Portugal maior do
tente no negócio além-mar! Daí, como resul- outro lado do mar”; ou como Luís da Cu-
tado, nenhum esforço foi erigido para me- nha aconselhava, ao propor a D. João VI a
lhorar as condições de educação, como bem transferência, adjetivando Portugal como
nos colocam Vicente Barreto e Antônio Paim mera orelha de terra, terra essa parte por
(1989, p. 35). cultivar, parte pertencente à Igreja.
O governo português compreendeu, du- Assim, feita a transferência, houve aber-
rante o período pombalino e depois, que o tura dos portos às nações amigas, fundação
“grande perigo para suas colônias estava de escolas, fomento do comércio e abertura
nas disseminações das novas idéias do fran- de biblioteca. Foi um choque, pois um povo
cesismo”. não acostumado a um relacionamento dire-
Nota-se então a diferença da coloniza- to com a realeza, de uma hora para outra,
ção brasileira para com a norte-americana: via a própria usufruindo do mesmo territó-
eis que, nesta última, os povoadores deixa- rio. No entanto, as festas, o poder e toda a
ram o Velho Mundo, por perseguição religi- cultura real, a grande massa só acompanha-
osa e, na Terra Nova, estabeleceram-se para va de longe. O desenvolvimento experimen-
fundar uma pátria. A colonização brasilei- tado foi tão grande que Gilberto Freire3 afir-
ra, como demonstrado, resultou em mera em- ma que a Colônia não obtivera em três sécu-
presa de saque e de exportação. Nessa fase, los o que obteve em menos de uma década.
a corrupção ou delinqüência assumia for- Ora, com essa modernidade, com esse
mas de desvio, subtração, propina na rela- progresso, as formas de corrupção evoluí-
ção Colônia-Metrópole. ram para adaptar-se à realidade. A corrup-
Tais conhecimentos permitem-nos afir- ção não era aquela de contrabando, que en-
mar que nosso atraso não é de cunho ético, volvia os padres da Cia. de Jesus, a qual
por influência indígena ou africana, mas, acabou por cunhar o termo do “santo-do-
sim, de uma política distorcida da Metrópo- pau-oco”.
le, sem um objetivo cultural ou projeto polí- A ocupação, da outrora Colônia, de de-
tico a ser perseguido pelos habitantes das gredados e incorrigíveis cedeu lugar aos in-
terras brasileiras, que, oprimidos e entregues vestimentos culturais e às melhorias na in-
à própria sorte, viram na corrupção uma for- fra-estrutura: saúde, cultura, habitação, etc.
ma fácil de enriquecimento, sem nenhuma De igual modo aconteceu com a delinqüên-
implicação ética na relação dominante/do- cia dourada, que devia ser mais requintada,
minado. É nessa relação que a corrupção pois praticada por nobres e ocupantes do
apresenta peculiaridades circunstanciais, Governo.
mais do que do caráter de um povo, pois Já na segunda metade do século XIX, com
não havia uma unicidade de pensamento, uma relativa estabilidade econômica e po-

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lítica, não faltaram casos de freqüentadores sência da ética em relação ao consumismo,
da Corte que, usufruindo suas posições ele- e ao hedonismo, em uma sociedade euro-
vadas, de suas vantagens nos cargos, levan- peizada.
taram lucros resultantes de negócios escusos. De forma simples, a República foi impul-
Ora, fácil depreender-se que, mesmo com sionada estruturalmente por duas forças:
a transferência, a realeza não tinha tradi- uma pequena camada formada por intelec-
ção genealógica aqui na nova terra. As con- tuais, entre médicos, advogados, jornalistas
cessões, então, dos títulos eram oriundas de e militares do baixo oficialato, camada essa
um jogo de interesses, os quais contribuí- que não tinha expressão econômica; a ou-
ram, como afirmado no parágrafo retro, para tra, força de considerável expressão econô-
casos de macrocriminalidade. mica, formada pelos grandes cafeicultores,
Foi assim que a política se apresentou e prósperos sobretudo em São Paulo e no Rio
demonstrou-se como ambiente propício de Janeiro.
para vicejar essa manifestação criminosa. Logo de início, a primeira força se afas-
Pode-se, portanto, afirmar que a forte cor- tou, por entender que o modelo constituído
rupção reinante somada à falta de presença fugia dos seus ideais, o que a história corro-
do Imperador, por sua doença, contribuíram bora, pois, com a implantação da república,
para pôr a Monarquia ladeira abaixo. Mes- foi-se esta afastando do programa a que se
mo porque a forte concentração de poder na deveria restringir. Um exemplo é o re-esta-
figura do Rei fazia com que, por mero “efei- belecimento do Coronelismo, que se inicia-
to dominó”, os acertos e desacertos de seus ra no Império e, fortalecendo-se na Repúbli-
Ministros o envolvessem em negócios escu- ca, vigiu com todas as suas conseqüências
sos, atingindo-o e à sorte de seu reinado. econômicas, sociais e políticas.
Nessa aura de insatisfação da grande Ora, no Coronelismo predominava a con-
massa e da classe média, o novo regime era sideração, o apadrinhamento, trocas de favo-
inevitável, pois a Monarquia já era, ressen- res, uma rede infindável de tráfico de influên-
tida pela ausência de Governo, desacredi- cia. Nas palavras de Sérgio Habib: “Para que
tada, o que aumentou, no seu ocaso, a cor- ambiente mais propício, pois em que pudes-
rupção, por quebras de princípio morais; e se medrar a corrupção?” (1994, p. 28).
mesmo porque a Monarquia, no Brasil, nas- Com o passar dos governos e reforçada
ceu condenada, pois trazia inserta em si a a ação do poder econômico, adveio a Revo-
própria ruína: o latifúndio, relações de pro- lução de 1930. É a transformação da políti-
dução próximas do que se observara no Feu- ca em politicagem. É a derrocada da limita-
dalismo e ainda o escravismo, conforme se ção moral, e, em seu lugar, foi-se esculpindo
depreende da lição de Emília Viotti da Cos- a teia de interesses de grupos econômicos,
ta (1995). visando, óbvio, à obtenção de lucros sem-
pre maiores e a sua permanência no poder.
2.3. Brasil-República
Aviltou-se, não obstante, a diferença entre
Nélson Hungria4 nos ensinou que a cor- os Estados-membros com a república do
rupção não é exclusividade de um povo e, café-com-leite.
sim, é exclusiva do homem: ela é de todos os Rui Barbosa, com incomparável ética, le-
tempos. Assim, não foi a República, desde gou-nos a idéia da tal época; a primeira fase
quando incipiente, a responsável pelas be- republicana:
nesses, pelas mazelas que o Império não “... É o Banco do Brasil o esconde-
debelou. Pelo simples fato de que a crimina- rijo dos grandes empréstimos, nunca
lidade dourada é decorrência da frouxidão resgatados, é o Lloyd Brasileiro, anti-
moral, da desordem dos costumes, da im- go valhacouto de mil liberalidades
punidade imperante, da preterição ou au- escusas... Houve presidente que à boca

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aberta, confessou ter deixado sair por 3. Admirável crime novo
razão nos cofres do Estado, não me-
nos de cinco mil contos” (1986, p. 19). Vê-se, pelo esforço histórico construído
Com a segunda fase, mas precisamente e pela lição de John Noonnahn6, que a de-
com Vargas, procurou-se corrigir o apadri- linqüência dourada é conhecida de todas
nhamento com a instituição do DASP (De- as épocas da civilização, do Egito dos fara-
partamento Administrativo do Serviço Pú- ós aos nossos dias, compreendidos 4.000
blico), o que não evitou a proliferação de anos de história da corrupção. Não é carac-
desvios escusos. Com a incipiente industri- terística exclusiva do terceiro mundo. Exis-
alização, houve uma grande proletarização te, inclusive, em países desenvolvidos, em
nas cidades. Até meados da década de 50, especial nos EUA (MILLS, 1981, p. 402-405)
estava criado um novo ambiente, com dis- “em que o dinheiro é critério de êxito, os
torções da política, a falta de ética no de- padrões de vida endinheirada predomi-
sempenho dos misteres públicos, o agigan- nam... Um milhão de dólares, diz-se cobre
tamento do funcionalismo público e a proli- um milhão de pecados. A busca da vida com
feração e o açulamento das práticas carto- dinheiro é o valor básico, em relação ao qual
rárias e burocráticas: era uma nova desen- os outros valores declinaram”.
voltura da prática da corrupção. A corrupção é inata ao homem, não che-
Como é conhecido, a partir dos anos 60, gando a impressionar, mas as altas taxas
ao lado da corrupção, imperavam os primei- verificáveis de sua ocorrência é que trazem
ros lampejos expressivos da inflação. Um intranqüilidade pública, não negando, cla-
desespero para a grande parte da popula- ro, que o Sistema penal, elitizado e identifi-
ção, enquanto se beneficiava uma pequena cado com o poder, favorece o crescimento
casta de banqueiros e industriais das políti- de tal delinqüência.
cas perversas, por seqüestrarem renda e fra- Ora, em uma realidade dinâmica, o gran-
gilizarem a cidadania. de desafio que emerge é o de que o Direito
Tal situação não melhorou com o golpe tem de cuidar, não apenas do caminhar dos
de 31 de março de 1964, pois a falácia de fatos, mas também regular, prevendo-os.
combater a macrocriminalidade, com a qual Mesmo porque as modificações ocorridas na
se implantava a “Revolução”, viu-se por ter- órbita do direito econômico são intensas,
ra, como bem nos mostra a análise históri- refletindo as transformações ocorridas na
ca, em especial a da magistral obra “A trilo- ordem econômica mundial. É a seara gran-
gia do terror”, a implantação de 19645. Vê- de das mais simples formas de delinqüir às
se, então, que esse não era o incômodo. Era, mais complexas que envolvem intermediá-
sim, um temor de caráter ideológico, de que rios em assuntos estratégicos do governo até
o poder viesse a cair em “mãos de comunis- a delinqüência em tela neste estudo.
tas”, certamente de atores e de projetos es- Isso posto, vê-se que o Código Penal e a
tranhos às elites, as quais sempre domina- legislação esparsa não conseguem esgotar
ram o país. E, como se pode verificar, nos as formas de delinqüência dourada, em que
governos militares imperaram formas de a corrupção ganha corpo. Fato que isso cor-
delinqüência não tradicional. Ora, o poder robora é que somente recentemente, pela pro-
não é só fonte, como estuário de corrupção, mulgação da Lei 9.613/98, foi tipificada a
pois falta a conscientização da natureza da lavagem de dinheiro. Tal ponto reforça que
relação dominante/dominado, que, até hoje, a dinâmica da sociedade, seu progresso eco-
impera no Brasil, levando à corrupção: é a nômico e científico, o crescimento da empre-
lei da vantagem, a política extrativista, ago- sa privada, grandes fusões empresariais, o
ra não mais para depauperar a terra e, sim, trânsito fácil de dinheiro livre por meio da
o ideal de nação. remessa de lucros para o exterior, enfim em

Brasília a. 38 n. 150 abr./jun. 2001 129


nome da tecnologia do pseudodesenvolvi- dade. Como realidade jurídica, deve a pes-
mento econômico, enseja as ações escusas soa jurídica subordinar-se a esses valores,
que ganham nova roupagem, como que para daí o corolário limite axiológico e também
legitimá-las. ontológico da vedação de admissão para for-
Com efeito, é com grande acerto que Sér- mação de empresa para objeto ilícito.
gio Habib (1994, p. 84) diz-nos que o agente Ora, a pessoa jurídica nessa sua realida-
causador está sem dúvida na órbita pri- de exerce funções, quais sejam de união de
vada, é delinqüente com máscara de em- esforços e recursos econômicos para conse-
presário. Claro que a história, por exem- cução de suas finalidades, as quais seriam
plo, da corrupção é um diálogo corruptor/ impossíveis se a empreitada fosse indivi-
corrupto. dualizada.
A realidade que se impõe, pois, ao legis- Com a economia e a sociedade evoluin-
lador é quanto à eficácia e eficiência das leis do, os tipos legais existentes não conseguem
que devem estar impregnadas de atualida- dar azo às novas funções que vão surgindo,
de, correspondendo à dinâmica dos fatos e daí uma crise, que ora se observa sobre a
do progresso tecnológico já referidos retro. imputabilidade da pessoa jurídica; exemplo
Contudo, mesmo com a afirmação da a remessa ilegal de lucros para fora e o sigi-
culpa da iniciativa privada, o mesmo Sér- lo bancário. Tal posicionamento tem leva-
gio Habib (p. 90) não lhe nega o importante do, pela experiência, que é a conduta em-
papel como vetor de desenvolvimento e de presarial incompatível com a ética!
progresso, a qual por isso encontra respal- Porém, a mesma experiência (NASH,
do legal. Mas é justamente nessa pretensa 1993, p. 8-9) mostra que a ética pessoal é a
legalidade e no princípio do societas delin- característica de que um presidente de em-
quere non potestat que se verificam as condu- presas precisa. Tal afirmação foi identifica-
tas e as práticas abusivas. Como já dito no da em 1993, já estamos em 2001, e vemos
referente às repercussões da delinqüência que a máxima de outrora de incompatibili-
tradicional com a dourada, um só ato ilícito dade de ética com conduta empresarial não
dessas empresas equivale à soma de vári- se sustenta mais.
os casos de pequenos e médios delitos ras- A razão é óbvia, a quebra de princípios
teiros. éticos pode causar danos superiores a pre-
Constitui uma vantagem para a pessoa juízos intrínsecos à natureza empresarial.
jurídica o argumento de que ela não possui É o custo que escândalos podem causar às
capacidade de compreensão do ilícito do empresas.
fato ou de determinar-se com tal entendi- Eis, portanto, uma nova ordem emergen-
mento, sendo assim uma inimputabilidade te, a de fazer bem para ganhar bem, ou seja,
penal, até certo ponto ingênua e ilógica, pois a ética nos negócios é tão valiosa economi-
estão concentrados na pessoa jurídica os in- camente como o bem chamado clientela, na
teresses das pessoas físicas! lição de Sérgio Habib (1994, p. 120-121). Que
Daí decorre a nova ordem emergente, é contínua, singular, quando nos diz que a
para o legislador, convergindo para a sufi- moral enquanto questão central retoma a sua
ciente carga axiológica na lei, pois a pessoa importância superando a questão econômi-
jurídica, ainda que despersonalizada, é uma ca, pois o soerguimento moral de um povo
realidade jurídica. Ora, como bem professa deve ser centralizado na unidade de esfor-
J. Lamartine Correa de Oliveira (1979, p. ços como valor para sua reconstrução, pois
611), a ordem jurídica só tem efeito na prá- a má qualidade de vida é ligada intrinseca-
xis quando orientada por valores, sem os mente à questão moral, uma realidade que
quais não se justifica. Em última ratio seri- se impõe, pois, sem ela, o bem não se torna
am a dignidade da pessoa humana, igual- comum e a justiça não encontra o social.

130 Revista de Informação Legislativa


4. Criminalidade dourada e nova ética – tuação de anomia, de crime, de fraude, etc.,
construção doutrinária em que comportamentos legais e eticamente
negados tornam-se comuns.
Diante do exposto sobre a nova realida- Tal teoria distingue os fins culturais, que
de que se impõe frente à criminalidade dou- são as aspirações que a cultura induz ao
rada, é latente a nova posição ética que deve homem das normas – lato sensu –, ou seja,
ser adotada. dos meios legítimos existentes para buscar
Porém não se deve esquecer o trabalho esses fins culturais. Permite ainda, pela sua
que as ciências atinentes desenvolveram, no abrangência social ampla, vislumbrar o aflo-
intuito de desmitificar a criminalidade em ramento dessa forma criminosa. Na lição,
estudo. Assim, a criminologia contribuiu ainda, de Evaristo de Moraes Filho (p. 33),
com a identificação da cifra oculta. Como há de prevalecer o princípio da transparên-
nos relata Antônio Evaristo (1987, p. 21-34), cia, no tocante a enfrentar as peculiarida-
a cifra oculta é que nos dá conhecimento des desse tipo de criminalidade e de sua
daquelas infrações que não chegam às esta- impunidade, ativando, pois, mecanismos de
tísticas, seja por suas características, como combate. Em atenção clara aos princípios
o segredo de sua operacionalização, bem constitucionais do artigo 37: legalidade,
como de serem praticadas por pessoas de impessoalidade, moralidade, publicidade e
altas posições sociais e econômicas. Daí, eficiência, seria, pois, implícita a transpa-
como já referido, o papel da criminologia da rência, contribuindo para esses mecanismos
reação social, ao desvendar tal cifra a ponto de controle. Como exemplo dessa visão, te-
de mostrar a olhos nus a elitização e o con- mos o Conselho de Controle de Atividades
seqüente despreparo do Sistema Penal para Financeiras (COAF), órgão legal, a zelar pelo
o fato da criminalidade de alta soma! O que efetivo combate à lavagem de capitais, obje-
afasta a tese de que somente a impunidade to deste estudo.
para tais crimes é a única explicação para Em que pese demonstrar o contexto his-
sua reiteração. Como se a política legislati- tórico e social para avaliação da criminali-
va em não se prevenir e tipificar, e a política dade dourada, há que se observar os custos
governamental de se imiscuir em negócios políticos e sócioeconômicos de tal prática.
financeiros individuais não colaborassem. Que venha em socorro nosso J. S. Nye (CAR-
É, pois, essa aliança política que permite VALHO, 1981, p. 465):
que a ética financeira não se coadune com a “o capital acumulado termina em ban-
ética individual, alhures neste trabalho tra- cos suíços ou equivalentes no tocante
tada: é ela que mantém o ciclo. Causa, pois, ao sigilo bancário. Os investimentos
espanto o desmerecimento da ferramenta tendem a direcionar-se para setores
legítima para a satisfação das necessidades: mais propícios para esses ganhos ilí-
o trabalho, como ensina Evaristo de Moraes citos, como exemplo o setor de estra-
filho (1987, p. 23). das; em que se gastam consideráveis
É a criminalidade dourada, corolário na- quantias de energia e tempo (fatores
tural desse contexto da falta de eficácia dos essenciais na atividade administrati-
poderes constituídos no que diz respeito à va), o que facilita os desvios para fins
permissividade da ciranda de especulação escusos”.
financeira, a impunidade no trato dessa Soma-se a isso que a iniqüidade de dis-
manifestação criminosa. Assim, vislumbra- tribuição de renda, incapaz de atender à po-
se a Teoria da Anomia, de Robert Merton, pulação, responsabiliza-se pela inexistên-
ou seja, na proporção em que se escasseiam cia de disciplina e gradativa alienação em
os meios legítimos para se alcançar o suces- face do regime; o que corrobora, pois, a es-
so instala-se, na proporção direta, uma si- tigma da cifra oculta 7.

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Diante do exposto até o presente, vê-se cia, como conseqüência até no Sistema Pe-
que a ética é a nova ordem emergente, indo, nal como um todo.
pois, lado a lado com o proposto pela cor- O trabalho dessa corrente sobressai e con-
rente ético-reformista. Tal corrente consegue segue responder à nova realidade, pois o
pôr luzes no caminho de como enfrentar a método é o da mudança do status quo, mudan-
grande questão da macrocriminalidade. ça estratégica por sinal, com intuito de des-
Antes, porém, devemos conhecer as cor- mantelar políticas e práticas nocivas. Assim,
rentes antecedentes para que se possa vis- o mero afastamento, por exemplo, de algum
lumbrar o porquê da assente opinião favo- corrupto não corrige os desvios sistêmicos:
rável à corrente retro! A corrente moralista “trocam-se os cães continuam-se as coleiras”
ou tradicional8 considera o fenômeno de (termo nosso). Seu escopo é a delinqüência
maneira isolada, tratando os desvios no pla- enquanto sistema, diferente dos evolucionis-
no individual, ignorando o contexto em tas, pois para os últimos a modernização basta
que ocorrem, com os possíveis reflexos na para desmantelar a rede de interesses. Com o
vida econômica e política e suas raízes pálio de Etzioni11, deve-se separar a esfera
históricas. pública da privada, para que se mantenha a
Outra corrente, a funcionalista9, preocu- democracia ao invés de uma plutocracia.
pou-se com os propósitos alcançados pelas
instituições sociais nesse sentido, que fa- 5. Lavagem de dinheiro
vorecem o imobilismo e, por conseqüência,
5.1. Conceito
o status quo. É útil, pois descreve os fenôme-
nos, mas quanto às explicações não é con- Em termos mais simplistas, a lavagem
vincente. Enfatizam os funcionalistas os de dinheiro seria o conjunto de operações
aspectos integradores da macrocrimina- financeiras e/ou comercias que tratam da
lidade como fator de estabilidade social. incorporação, na economia de um Estado
A corrente evolucionista preocupa-se de recursos, bens e serviços originados ou
com as mudanças sócioeconômicas e as mo- ligados a atos ilícitos. É, pois, legitimar pro-
dificações que afetam as instituições e com dutos de crimes.
a percepção que a comunidade tem dessas Do que se vê e como alhures já afirmado,
mudanças e termina por afirmar que a mera tal prática permite que traficantes, corrup-
profissionalização dos serviços públicos tos, entre outros agentes criminosos, continu-
não é suficiente. Contribuíram para distin- em suas atividades, pois facilita o seu lucro a
guir os vários códigos de conduta profissio- referida operação. Requer, portanto, a vigi-
nal e sua autonomia em relação a outros lância necessária das principais instituições
grupos sociais. vulneráveis à atividade criminosa em tela.
Enfim, a corrente ético-reformista10 che- Para tal desiderato, essa prática envolve
ga à conclusão que os privilégios do Esta- múltiplas transações usadas para ocultar a
do, em especial nos países em desenvolvi- origem dos ativos financeiros, o que permi-
mento, não são suficientes para satisfazer a te o seu uso pelos criminosos sem nenhum
todos. Daí, obtém vantagem quem corrom- comprometimento. Eis, portanto, a base de
pe mais, e com melhor habilidade. E mais, é qualquer operação de lavagem de capital: a
nesses países que a criminalidade dourada dissimulação, ou seja, na medida mais rá-
é mais ativa e predominante, pois serve aos pida possível, o distanciamento do produto
interesses de muitas pessoas poderosas, no do crime que o originou.
sentido de manter-se inalterada a situação.
Reconhece que a soma de diversos fatores é 5.2. Fases
que contribui para a sua manutenção, po- A doutrina parece assente em estruturar
rém é a impunidade que tem forte influên- a prática da lavagem. Assim, a operação cri-

132 Revista de Informação Legislativa


minosa em questão envolve três etapas ou zações criminosas no mundo legítimo e ju-
fases, ainda que independentes, mas que rídico dos negócios.
com muita freqüência ocorrem simultanea- Exemplo de um caso clássico de lava-
mente. São elas: gem de dinheiro foi o acontecido durante
seis anos (1990 a 1996) nos Estados Uni-
5.2.1. Colocação dos, conhecido como caso “Jurado”, pois o
Ipsis Litteris, é a colocação do dinheiro na acusado – Franklin Jurado –, economista
economia. Aqui entram em cena os paraísos colombiano, coordenou a lavagem de lucros
fiscais, que são os países com inexistência advindos do narcotráfico na quantia de cer-
de lei ou com leis muito flexíveis sobre a ori- ca de US$ 36.000.000. Tal quantia foi obti-
gem de capitais. Pois é neste momento que da pelo traficante José Santacruz-Londono.
se oculta a origem do capital, operacionali- A etapa inicial foi feita no Panamá. Esta
zando-se por depósitos, compra de títulos é a mais arriscada como já explicado antes,
ou bens. São usadas técnicas cada vez mais porque o dinheiro ainda está muito próxi-
sofisticadas, como o fracionamento de valo- mo da origem, podendo ser rastreado. Du-
res para despertar suspeitas, “testas de fer- rante três anos, o acusado transferiu dóla-
ro” ou utilização de pessoas jurídicas que tra- res de bancos panamenhos para mais de
balham com dinheiro em espécie. cem contas em 68 bancos, em nove países,
sempre, em todas elas, com saldos inferio-
5.2.2. Ocultação
res a 10.000 dólares.
Desta feita, o dinheiro foi novamente
Baseia-se em apagar o “rastro” da movi-
transferido para contas bancárias européias
mentação contábil do capital. Assim, elimi-
e, logo depois, novamente transferido para
nam-se suspeitos e investigações sobre a ori-
pessoas jurídicas fictícias. Por derradeiro, o
gem do capital. Vê-se que, com a possibili-
dinheiro voltou à Colômbia, em forma de in-
dade de movimentação eletrônica em nível
vestimentos, pelas tais empresas fictícias, em
global, hodiernamente, é muito difícil de de-
ramos comerciais lícitos, como laboratórios
tectar essa fase, mesmo que a movimentação
farmacêuticos, restaurantes e construtoras!
se dirija a paraísos fiscais ou centros off sho-
Somente foi possível iniciar as investi-
re12, pois nesses a legislação permite o ano-
gações e prender Jurado com a quebra do
nimato dos titulares das contas.
esquema, que ocorreu com a falência de um
5.2.3. Integração banco em Mônaco, onde algumas contas
eram mantidas e ficaram expostas!
É a formal integração do capital no siste- Ao fim, vê-se o acerto de estudar tal
ma econômico. Busca-se, aqui, formar uma criminalidade pelas três fases retro expostas.
cadeia de empreendimentos para facilitar Contudo, não é correto estudá-la pelos
que as pessoas jurídicas e/ou outros envol- métodos utilizados, pois, como lembra-nos
vidos “prestem serviço” entre si, pois, uma José Laurindo (NETTO, 1999, p. 43), na
vez fechado o ciclo, a prática de legitimação medida da intensificação das investigações,
torna-se mais fácil, eis que é encoberta por os procedimentos de lavagem se aperfeiçoam,
atividades, em tese, lícitas. Assim, os setores o que corrobora nossa colocação anterior,
mais visados são bancos, paraísos fiscais, que a lavagem, devido aos mecanismos de
centros off shore, bolsas de valores, institui- controle em nível bancário, está orientando-
ções de seguro, jogos e sorteios. Izidoro Blan- se para outras “portas”. Já o estudo pelas
co Cordeiro (NETTO, 1999, p. 44) professa, fases, por mais que variem os métodos, diz
magistralmente, que a privatização de bens respeito à essência de uma operação de
e empresas pode ser viabilizada para o pro- lavagem, o que permite uma melhor
cesso de lavagem, introduzindo as organi- repressão.

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5.3. Ilustração das fases Em 1995, em Buenos Aires, houve o co-
municado ministerial da Conferência da
Cúpula das Américas sobre procedimentos
de lavagem e instrumentos criminais. Ao fim
e ao cabo, ainda, em 1998, houve a declara-
ção política e o plano de ação contra a lava-
gem, na Sessão Especial da Assembléia-
Geral da ONU.
Por derradeiro, vê-se que a cooperação
técnica é base precípua de um plano de ação
contra a lavagem, pois compreende ativida-
des de sensibilização dos países, para ado-
ção de formas de controle, criação de insti-
tuições e capacitação de recursos humanos.
A cooperação internacional tem como pa-
drão as quarenta recomendações do GAFI.
Ressalta-se que, atualmente, são 26 os paí-
ses que o compõem. O Brasil integra tal gru-
po desde setembro de 1999, quando da IX
reunião do grupo.
Há de assinalar-se a existência de um
organismo internacional não vinculado à
ONU, portanto, de caráter informal, que pro-
move, em nível mundial, a troca de informa-
ções, recebimento e trato de comunicações
suspeitas ligadas à lavagem, oriundas de
6. Antecedentes históricos da lei outras instituições financeiras: é o Grupo
brasileira de lavagem de dinheiro de Egmont, originariamente criado pela Uni-
dade Financeira de Inteligência Belga (CTIF)
Em 1988, ocorreu a “Convenção de Vie- e Norte-Americana (FNCEN).
na”, oficialmente nomeada de “Convenção- Então, essas unidades financeiras de in-
sobre o Tráfico Ilícito de Entorpecentes de teligência (FIU, em inglês), que acabaram por
Substâncias Psicotrópicas”. Seu escopo foi formar o Grupo de Egmont, podem ser de
fomentar a cooperação internacional con- natureza administrativa, judicial, policial
tra as questões ligadas ao narcotráfico e cri- ou mista: judicial e policial. O Brasil, pela
mes conexos. Foi ratificada pelo Brasil em edição da Lei 9.613/98, adotou o modelo
1991. administrativo, é o COAF – Conselho de
Nesse mesmo ano, o GAFI – Grupo de Controle de Atividades Financeiras – que
Ação Financeira sobre Lavagem de Dinhei- será abordado adiante.
ro, ou FATF (do inglês financial action task
force), elaborou quarenta recomendações 7. A lei brasileira de
sobre a lavagem, que foram revisadas em lavagem de dinheiro
1996. Já em 1992, elaborou-se o regulamen-
7.1. Aspectos gerais
to modelo sobre delitos de lavagem, relaci-
onados com o tráfico ilícito de drogas e A Lei 9.613, de 3 de março de 1998, pode-
outros delitos graves. Essa elaboração foi se dizer atuou em três frentes:
da lavra da CICAD – Comissão Interameri- a) tipificação dos crimes de lavagem ou
cana para Controle do Abuso de Drogas. ocultação de bens;

134 Revista de Informação Legislativa


b) prevenção da utilização do sistema fi- lei que se confirmam não por sua transnaci-
nanceiro para o ilícito que criou; onalidade, mas por sua periculosidade, no
c) criação do COAF (Conselho de Con- tocante ao vínculo com a lavagem de dinhei-
trole de Atividades Financeiras), a nossa ro, é, portanto, uma política de combate à
unidade financeira de inteligência. macrocriminalidade.
Segundo leciona Marco Antônio de Bar- Os sistemas jurídicos dos EUA, México,
ros (1998), a lei nacional traz em seu bojo Bélgica, Itália, França e Suíça estão na cha-
experiência da Alemanha, Bélgica, França, mada terceira geração, pois a lavagem nes-
Suíça, Portugal e México. Característica des- ses sistemas é atribuída a qualquer tipo pre-
se diploma é a junção de diversos ramos do cedente.
direito, trazendo, além da nova tipificação, A exposição de motivos da lei nacional
algumas regras de processo penal, bem como justifica nossa inserção na segunda gera-
um regime administrativo, que envolve re- ção, pois a lei de lavagem é fruto de crimes
gras de direito financeiro, econômico e co- com características transnacionais. Em cer-
mercial. ta medida, cremos que o legislador acertou,
O termo lavagem foi cunhado dessa for- eis que preservou o tipo de receptação do
ma, pois já se tinha fincado entre a doutrina artigo 180 do Código Penal, pois, a contrá-
anteriormente à promulgação da lei em tela. rio modo, a grande variedade de crimes con-
E não cabia o termo branqueamento, como na tra o patrimônio (título do Código Penal que
Suíça, França, Bélgica, Espanha e Portugal, abarca o artigo 180) seria abrangida pela
devido a possíveis conotações racistas que Lei 9.613! Ora, massificaria, sem tal critério
poderia ocasionar no Brasil. de interpretação – a de característica de
É uma lei de segunda geração. Explica- transnacionalidade, o rol de crimes antece-
se: a primeira geração corresponde àquelas dentes –, a lei de lavagem em pequeno furto
legislações à época da Convenção de Viena, estaria igualada à de macrocriminalidade.
que tipificaram a lavagem de bens, direitos Portanto, a lei contém tipos penais fecha-
e valores conexos com o narcotráfico. As de- dos, pois, além do princípio da reserva le-
mais condutas ficavam na órbita da recep- gal, que se vincula às fontes do direito pe-
tação. Historicamente, compreende-se tal nal, deve o sistema positivo completar-se
geração, pois foram os narcotraficantes os com o princípio da taxatividade. Ou seja, é
pioneiros na lavagem transnacional, não a maneira precisa que o legislador deva im-
podendo, claro, nessa hipótese, seus frutos primir na determinação dos tipos para, le-
serem considerados como tipo de recepta- gal e taxativamente, saber-se o que é e o que
ção convencional. não é penalmente admitido.
A segunda geração, a qual se pontuou
7.2. Aspectos específicos –
retro, diz respeito às legislações que ampli-
posicionamento crítico
aram os chamados crimes antecedentes, por-
tanto, é classificação taxativa. Além do Bra-
7.2.1. Sonegação fiscal como
sil, também pertencem a essa geração as da
crime antecedente
Alemanha, Espanha e Portugal. É curial: ao
estabelecer um quadro taxativo de crimes Por ser uma legislação de segunda gera-
antecedentes, permitindo a tipificação de cri- ção, portanto, com um rol taxativo, não ocor-
mes secundários. O legislador, na lei de la- rerá o tipo se não estiver presente ao menos
vagem de dinheiro, não se deixa caracteri- um dos crimes antecedentes do artigo pri-
zar, necessariamente, por uma camada sub- meiro da lei. Justamente aqui se levanta um
jacente internacional, mas a encaixando na ponto, a não-inclusão da sonegação fiscal
modalidade de criminalidade organizada. como crime antecedente. Adianta-se que, no
É, pois, uma opção, pois há certos crimes na projeto da lei quando da votação na Comis-

Brasília a. 38 n. 150 abr./jun. 2001 135


são de Assuntos Econômicos, constava o p. 321), a objetividade do tipo (sua prote-
tipo no rol do artigo primeiro, porém o rela- ção) é a normalidade do sistema econômi-
tor Romeu Tuma, por achar que a sonega- co-financeiro de um país; sem, obviamente,
ção já está tipificada na Lei 8.137/90, afir- deixar de reconhecer a pluralidade de ofen-
ma qua a mesma não merece constar no rol. sa aos interesses individuais, a que a lava-
Na mesma linha, o então Ministro da Justi- gem de dinheiro pode atingir. Mas isso não
ça Nelson Jobi13 salienta que os dois tipos, retira o caráter transindividual, pois, assim
lavagem e sonegação fiscal, não possuem entendido, a proteção visa, na lei, impe-
características similares, pois, na sonegação, dir o comprometimento econômico e a ero-
no seu entendimento, não há agregação de são de um sistema democrático, em tese,
valores novos e somente uma manipulação de direito.
de patrimônio, sendo evidente, na sonega- Mas, como a recente lei, dever-se-á criar
ção, a utilização de recurso próprio. jurisprudência, poderá, então, casuistica-
Ora, embora não sejam idênticos os ti- mente, aferir-se a lesão em maior ou menor
pos, ao contrário, teríamos bis in idem, são grau ao sistema econômico-financeiro, pois
semelhantes na prática e na lesividade, pois poderá afetar maiores áreas de interesses in-
atacam o Estado e manipulam o fluxo eco- dividuais, requerendo um espectro de pro-
nômico, pois privam a coletividade de instru- teção menor! Daí a sugestão da possibilida-
mentos econômicos para sua organização. de de se incluir formas de favorecimento
Assim, em que pese as considerações, te- pessoal, em que não tenha ocorrido lesão ao
mos, sim, que a sonegação fiscal poderia ser sistema econômico.
um crime antecedente, eis que não mantém
7.2.3. O tipo – sua classificação
o patrimônio; pelo simples fato de não-pa-
gamento ocorre um enriquecimento indevi- O artigo 1º, caput, e seus parágrafos, faz-
do, legitimado, com a sonegação, apenas nos ver, indubitavelmente, um tipo alterna-
não é agregado por valores novos! Ora, o tivo, pois são várias as condutas, bastando
argumento contrário à tese de que já é tipifi- uma única incidência para a caracterização
cado pela Lei 8.137/90 pode ser muito bem do crime. E mais, como todos os atos descri-
contraposto com o de derrogação por lei nova! tos vislumbram o simples comportamento
Mesmo porque Isidoro Blanco14 nos lembra do agente, não se exige um resultado para
que a lavagem é em sentido amplo e sentido se caracterizar o crime, consubstanciando-
estrito. Aquele refere-se ao processo de legiti- se assim em um tipo de mera atividade.
mação do dinheiro “sujo”, devido à sua ori- É também um tipo referido, ou seja, de-
gem ilícita, originado fora das instituições tri- pende de crimes anteriores (incisos I a VII
butárias. O sentido estrito refere-se à conver- do artigo 1º), portanto, prescinde deste para
são de bens de origem ilícita. Ambos usam sua adequação típica, seja por ação ou omis-
dos mesmos mecanismos de legitimação, por- são. Daí a lembrança primorosa de que a lei
tanto, a sua natureza é idêntica, requerendo, em tela foi clara ao definir que o delito da
pois, a intervenção penal! Ora, parece-nos lavagem relaciona-se com crimes anteriores
que, por ser a sonegação fiscal uma macrocri- e não com contravenções, por exemplo, fi-
minalidade, envolvendo em nosso país per- cando externos à lei o dinheiro e bens por-
sonalidades, houve uma certa pressão para a ventura oriundos do “jogo do bicho”.
sua não-tipificação como crime antecedente. Marco Antônio de Barros (1998, p. 45)
identifica os núcleos das condutas típicas,
7.2.2. Objetividade jurídica todas no artigo 1º, quais sejam: 1) fato de
Em que pesem as posições alienígenas ocultar ou dissimular, artigo 1º, o que cor-
sobre a objetividade jurídica, cremos que, responde à lavagem de dinheiro stricto sen-
junto com William Terra de Oliveira (1998, su; 2) o escopo de ocultar ou dissimular, §

136 Revista de Informação Legislativa


1º, I a III; 3) utilização (do produto da lava- em qualquer fase: administrativa, policial e
gem), § 2º, I; 4) participação (em pessoa jurí- processual, inclusive após o trânsito em jul-
dica ligada à lavagem), § 2º, II. gado, visão, por nós acatada, de Luiz Flávio
Como permite uma atenta exegese da lei, Gomes, o que seria um novo incidente de
esta não previu a forma culposa, ao contrá- execução, a cargo claro do juiz da Vara de
rio do que propõe o Conselho da Europa, Execuções Penais.
que preconiza tal instituto em sua Conven- Como qualquer inovação legislativa, tal
ção, artigo 6º. instituto não deixa de sofrer críticas. Ora,
Destarte é necessário que a vontade do oferecer prêmios ao delator, em matéria cri-
autor saiba que está praticando a conduta minal, sem nenhuma proteção à sua incolu-
proibida. Mas é necessário outro elemento midade física e de seus familiares se reveste
subjetivo: o intuito de ocultar ou dissimular de pouca importância prática.
a utilização do produto da lavagem. Assim, Também bem admoesta Walter Cenevi-
além da vontade livre e consciente de prati- va: porque o Estado passa a movimentar-se
car a conduta, é necessária a presença do no ius puniendi e pela persecutio criminis, pela
elemento expresso pela finalidade de agir palavra de delinqüentes, o que, além de con-
(NETTO, 1999, p. 100). substanciar uma nova imoralidade, é um
“atestado” de falência do aparelho policial.
7.2.4. Delação premiada
Indiretamente, a adoção da delação en-
Interessante instituto que vem sendo sina que trair traz benefícios, daí que po-
adotado na legislação penal brasileira, pri- dem ocorrer delações por mera vindita. É que
meiramente com a Lei 8.072/90 (crimes he- o Direito assenta-se em bases éticas, por isso
diondos, artigo 7º, parágrafo único), logo é acatado. Ainda que a fundamentação seja
depois na lei do crime organizado, Lei de combater o crime, é só se adotar tal insti-
9.034/95, artigo 6º. tuto; uma cultura antivalorativa! Outra crí-
Tal instituto foi previsto por Ihering como tica, não bastante assente, é que tal adoção
direito premial. É na política criminal dos do mecanismo em tela acaba por colocar em
EUA chamada de plea bargaing e na Itália de crise o princípio da proporcionalidade, eis
pentito, que significa “o arrependido”. Nes- que crimes idênticos acabam punidos dife-
se último país, foi incorporado à ordem jurí- rentemente.
dica por proposta do magistrado Giovanni Assim, ao comprar o delinqüente, seja
Falconne. com sua redução da pena ou não, o Estado
Pois bem, deve-se observar que, na con- corrobora o sistema penal elitista, que é for-
duta em estudo, ao que pertine o contido no te contra os fracos e complacente com os
artigo 1º § 5º, não é somente a delação pre- fortes.
miada e sim confissão premiada. Assim,
7.3. Aspectos processuais penais
será delação se sua proclamação envolver
outras pessoas e será confissão se sua de- A Lei 9.613/98, em suas disposições pro-
claração envolver somente a localização dos cessuais penais, revela algumas virtuais in-
produtos do crime. É mera interpretação congruências de índole constitucional e or-
(1997, p. 344) segundo Luiz Flávio Gomes, dinária.
da letra da lei; assim basta que ocorra ao me-
nos um dos resultados: apuração da autoria 7.3.1. Competência
ou localização do produto. É que logicamen- Pode-se ser levado, pela lei, na literali-
te, em caso de delação e confissão, o prêmio dade do artigo 2º, III, A e B, a imaginar que
deve ser de maior repercussão sobre o crime. se trata de competência essencialmente fe-
Tal colaboração deve ser espontânea, deral, mas não o é, pois, em tese, o bem pro-
partir do próprio infrator, podendo ocorrer tegido é a ordem econômica e financeira,

Brasília a. 38 n. 150 abr./jun. 2001 137


conseqüentemente o inquérito será da Polí- bém um erro de política criminal, pois nos
cia Federal. Mas em caso de lavagem de pou- crimes de delinqüência dourada é que de-
ca monta, em que o bem jurídico não é colo- veria exigir-se fiança de alto valor. Não é,
cado sobre risco, a competência é estadual, pois, absurda a idéia de que o legislador,
visando à celeridade processual e de modo quando da Constituinte, estabeleceu as úni-
a não sobrecarregar a máquina judiciária fe- cas limitações ao instituto da fiança.
deral com processos de pouca significância.
7.3.5. A vedação da liberdade provisória
7.3.2. A denúncia É evidente a inconstitucionalidade da
O § 1º do artigo 2º sobre a denúncia ba- proibição da concessão de liberdade provi-
seia-se em que esta deve estar balizada por sória também do artigo 3º da lei em tela, sob
indícios referentes do crime antecedente. a mesma linha de raciocínio no tocante à
Contudo, talvez em atenção ao disposto na vedação da fiança. Trata-se de inconstituci-
Carta Maior, artigo 37, a Administração Pú- onalidade material, o legislador não pode
blica – da qual o Ministério Público e o Juiz, juridicamente colocar-se no lugar do magis-
em última ratio, fazem parte, já que são agen- trado, conforme se depreende dos artigos
tes políticos do Estado – deve, então, zelar 310 a 312 do CPP. É uma ofensa ao princípio
pelo princípio da eficiência coadunado com de direito constitucional da razoabilidade dos
a justa causa. atos do Poder Público (do qual o legislativo é
uma função) por realizar finalidades consti-
7.3.3. Inconstitucionalidade do artigo
tucionais de modo desproporcional.
2º,§ 2º (não aplicação do artigo 366
É que aqui paira o inciso LXVI (vedação
do Código de Processo Penal)
de prisão existindo liberdade provisória), é
O artigo 366 do CPP cuida da suspen- um freio à possível arbitrariedade do Judi-
são do processo por meio da citação por ciário. Paira, também, o inciso LIV, do due
edital. Ora a ampla defesa é uma garantia process of law, o qual confirma que a liberda-
constitucional, pertencente ao princípio de provisória deve ser decidida casuistica-
do devido processo legal, ou seja: a ga- mente, o que elimina, pela inconstituciona-
rantia de ser o acusado informado sobre o lidade material, que o Legislador trasmude-
inteiro teor da acusação! Portanto, é juridi- se em julgador, ao estabelecer critérios abs-
camente inválido o § 2º aqui indigitado. tratos. É no devido processo legal que se de-
Não bastasse a evidente inconstitucio- cide, exclusivamente, a concessão ou não
nalidade, há uma contradição sistêmica de liberdade. Proibi-la ab initio é não tratar
pois no artigo 4º, § 3º, da mesma lei está da presunção da inocência!
prevista a aplicação do mesmo artigo 366,
7.3.6. Liberação antecipada dos bens
CPP. No dizer de Luiz Flávio Gomes, é uma
“contradição autofágica”, e nesses casos É o disposto no § 2º, artigo 4º da lei em
deve prevalecer sempre o preceito que mais epígrafe. A advertência aqui é referente a
ampliar a liberdade. uma possível interpretação que haveria ao
se conhecer uma inversão completa do ônus
7.3.4. A vedação da fiança da prova, o que não seria correto. Assim, o
Visualizamos aqui outra evidente in- seqüestro e apreensão de que trata o artigo
constitucionalidade. É que a Carta de 1988, 4º tem nesse momento natureza de medida
artigo 5º, XLII a XIV, declinou os crimes ina- cautelar e a inversão seria então uma con-
fiançáveis, e o artigo 3º da lei em tela veda a tracautela, para que o acusado, desde pron-
fiança! Ora, com o advento do direito penal to, mediante comprovada licitude da origem
subsidiário de endurecer, ao proibir a fian- dos bens em questão, tenha-os em sua pos-
ça, houve uma inconstitucionalidade e tam- se. Pois a perda definitiva, como sugere o

138 Revista de Informação Legislativa


artigo 7º, somente se dará com a condena- bém para o âmbito administrativo. Assim é
ção, porque incide o princípio constitucio- que o decreto 2.799 de 8/10/1998, do qual
nal da presunção de inocência. consta o Estatuto do Conselho em tela, dis-
Portanto, querer que a inversão do ônus põe sobre o processo administrativo. A pró-
da prova, neste caso, passe do âmbito da pria lei em estudo já determinara, ao nosso
medida cautelar é consubstanciar-se em in- ver, com excesso, que fossem observados a
constitucionalidade. Para evitar, pois, que o ampla defesa e o contraditório (artigo 13), já
Legislador, no combate à criminalidade, teste que é determinação constitucional inserta
fórmulas, de maneira a jogar por chão prin- no devido processo legal.
cípios basilares de proteção à dignidade hu- O COAF, disposto no artigo 14 da lei, é a
mana. unidade de inteligência brasileira adotada
no Brasil, ou seja, uma agência responsável
8. Responsabilidade administrativa, o por receber, analisar e distribuir às autori-
COAF e a questão do sigilo bancário dades competentes as operações referentes
à lavagem de dinheiro. Como tal, amplia
Além dos ilícitos penais, a lei brasileira seus vínculos com organismos internacio-
antilavagem de dinheiro criou obrigações nais e Estados estrangeiros, tendo em vista
para pessoas físicas e jurídicas que tiverem o caráter transnacional do crime em tela.
atividades que possam contribuir para a la- É um órgão subordinado ao Ministério
vagem de ilícitos. Essas obrigações estão dis- da Fazenda. Como já afirmado retro, não é
postas nos artigos 10 e 11 da lei. uma autoridade policial e tampouco finan-
Como forma de sancionar a inobservân- ceira. Porém, diante das características que
cia dessas obrigações, a lei também criou a as investigações sobre a conduta em estudo
responsabilidade administrativa e o Con- requerem, tais como técnicas fiscais e contá-
selho de Controle de Atividades Finan- beis, necessitando de uma coordenação en-
ceiras – COAF – como órgão para discipli- tre as entidades envolvidas, como Polícia,
nar e aplicar as sanções administrativas. Ministério Público e Banco Central, tal or-
É a adoção, ao nosso ver, com acerto, do ganismo se fez mister.
caráter subsidiário do direito penal, ou seja, Interessante é a questão contida no arti-
para a defesa dos bens da vida mais impor- go 15 da lei; referente à comunicação do
tantes, dos ataques mais graves, é que se aden- COAF às autoridades competentes, aqui, em
tra na esfera penal, fora isso, entram outras especial, o Ministério Público. Nada obsta
órbitas do direito, como o Administrativo ou que, dependendo das circunstâncias, pos-
o Econômico. Assim, as sanções administra- sa o parquet, de pronto, prescindindo do in-
tivas seguem uma progressividade: advertên- quérito policial, oferecer a denúncia, se não,
cia, multa pecuniária, inabilitação temporá- deverá requisitar à autoridade policial aber-
ria e cassação da autorização para funcionar. tura da peça inquisitiva. Vale aqui lembrar
Para a aplicação dessas sanções, depen- a recomendação de Marco Antônio de Bar-
der-se-á, obviamente, do que for apurado em ros (1998, p. 192):
processo administrativo. Claro que, na esfe- “que seja de bom tom e prudência a
ra administrativa, em que pese o Poder dis- verificação pelo órgão do Ministério
cricionário do administrador, não se pode Público, antes do oferecimento da exor-
confundi-lo com arbitrariedade. Assim, não dial acusatória, se existe alguma de-
se pode olvidar que ato discricionário, quan- claração nos documentos remetidos
do autorizado pelo direito, é legal; ato arbi- pelo COAF, do investigado, pois se não
trário é inválido e ilegítimo. Ainda mais que contiver é melhor requisitar investi-
é imperativo constitucional o due process of gações complementares em sede de in-
law (artigo 5º, LV, Constituição Federal) tam- quérito policial”.

Brasília a. 38 n. 150 abr./jun. 2001 139


A questão da quebra do sigilo bancário lembrar que, ainda, na Convenção de Vie-
levanta-se como importante, na medida em na, também fez parte do acordo a interven-
que as investigações no âmbito da lavagem ção judicial como meio de romper o sigilo
de capitais requerem o exame de contas ban- bancário em questão.
cárias, por envolverem aplicações e investi- Pois bem, uma vez estabelecida a miti-
mentos. gação do sigilo bancário desde que a inter-
Quando ainda da Convenção de Viena, venção judicial esteja presente, outra ques-
já se havia consagrado que as partes não tão levanta-se: com a recepção constitucio-
poderiam deixar de aplicar o aventado em nal da Lei 4595/64, o seu artigo 38, pará-
seu âmbito, sob o pálio do segredo bancário. grafo 1º, fala em prestação de informações
Nosso ordenamento protege o sigilo na ao juízo, o que gera o entendimento de so-
Constituição Federal, artigo 5 º, X e XII, como mente com a existência da actio in iudicio se
bem lembra Luiz Flávio Gomes (1997, p. 369). discutir acerca da quebra do sigilo.
Da sua quebra cuidam as Leis 4.595/64 e Ora, é da essência da persecução da
7.492/86, aquela trata de instituições mone- criminalidade em questão a requisição judi-
tárias, bancárias e creditícias e esta sobre cri- cial quando das investigações, tanto é que o
mes contra o sistema financeiro nacional. COAF foi criado com as atribuições, entre
Interessante é que a lei em estudo não outras, de receber e examinar a ocorrência
faz menção alguma ao sigilo bancário. Mes- de atividades ilícitas (artigo 14 da Lei 9.613/
mo porque tal matéria dever ser disciplinada 98). É que a volatilidade, no dizer de Marco
por lei complementar, conforme imposição Antônio de Barros (1998, p. 128), de opera-
constitucional insculpida no artigo, caput. ções financeiras na macrocriminalidade
Porém, como se percebe, as duas leis aci- dourada é alta. Assim, exigir o ajuizamento
ma elencadas são anteriores à Carta de 1988, precoce em juízo é não observar os fins soci-
mas, pela teoria da recepção, não havendo ais e bens protegidos pela lei em tela. Ora,
incompatibilidade entre essa legislação an- na observação em caso concreto, o juiz, ao
terior ordinária com a nova ordem constitu- dispor da quebra, deverá observar o fumus
cional, será então inserta, recepcionada nes- bonis iuris e o periculum in mora, o que permi-
se novo contexto jurídico. Como ainda não te a quebra do sigilo em fase anterior à perse-
se editou lei complementar, conforme dis- cutio in iudicio. Pois isso ocorrendo, a infor-
põe o artigo 192, caput, José Afonso da Silva mação é mantida sob segredo de justiça, por-
(1996, p. 755) leciona que permanecem váli- que houve a necessária intervenção judici-
das as regras dessas leis, não porque a Cons- al, e, se instaurada a lide, estará conservada
tituição Federal diz isso, apenas porque, ao a proteção ditada pela Constituição Federal
recepcioná-las, as constitucionalizou, po- e, obviamente, para o devido processo legal
rém, para novas alterações somente por for- o acesso das partes ao conteúdo da quebra.
ça de lei complementar.
Do exposto, vemos que somente com a Conclusão
intervenção judicial (autorização) é que
deve-se proceder à quebra do sigilo. Não Vê-se que a sociedade capitalista repre-
basta, pois, que, no âmbito do COAF, corra o senta um elemento propulsor da criminali-
processo em segredo de justiça, como dis- dade dourada, presente no título do presen-
posto no artigo 10, III, da Lei 9.613/98. te estudo. É, em contraposição à chamada
Assim, o sigilo bancário é mitigado em criminalidade tradicional, praticada por
nome do interesse coletivo, protegido pela pessoas que, pelo sistema penal, são inatin-
lei antilavagem, não podendo erigir-se em gíveis, porque detêm o poder econômico. A
óbice para que o juiz o levante, claro que criminalidade em tela mostra-se potencial-
arrimado em elementos convincentes. Vale mente perigosa para a estabilidade política

140 Revista de Informação Legislativa


e financeira dos Estados, como demonstra- com mecanismos que, por natureza caute-
da a título ilustrado: uma única operação lar, sejam aptos a bloquear bens e/ou valo-
de lavagem de capitais trabalha, em certo res ou pela atribuição de responsabilidade
lapso temporal, com quantias muito eleva- às pessoas física e jurídica que exerçam ati-
das. Isso porque, freqüentemente, está asso- vidades profissionais que possam servir de
ciada ao crime organizado, seja na modali- “pano de fundo” para tais operações.
dade de tráfico internacional de drogas, seja Assim, em que pese o objeto jurídico tu-
nos crimes de cunho econômico. telado por essa norma e a intenção do legis-
A modalidade criminosa sob estudo é lador em combater essa modalidade crimi-
bem recente quando comparada, em termos nosa, fica evidente, não de agora, mas des-
históricos, com outros tipos de hipercrimi- de a edição da lei dos crimes hediondos e
nalidade, como corrupção, por exemplo. O da chamada lei do crime organizado, que
que não lhe retira a periculosidade, mesmo esse mesmo legislador adota, por mais das
porque a delinqüência dourada é um fenô- vezes, o direito penal simbólico. Ou seja,
meno humano, portanto, dinâmico e criati- apenas normatiza, até buscando no direito
vo! Assim, em um mundo em que a ideolo- comparado, soluções para realidades aná-
gia capitalista mostra-se a única, em detri- logas que, contudo, não condizem com a
mento de valores éticos no trato social, é nossa ambiência ou não fornecem condições
compreensível seu aparecimento em todos de efetivá-las.
os tempos, em todas a esferas, como insti- É nessa colocação que se levanta como
tuições públicas, seja por meio de corrup- exemplo a contradição autofágica da lei nos
ção ou evasão de divisas, como tivemos a artigos 2º, § 2º , e 4º, § 3º, o qual debatemos
oportunidade de expor. retro. Ou ainda a inadequação da delação
Destarte é que ganha enlevo a delinqüên- premiada, já na lei dos crimes hediondos, e
cia sob estudo, pois, como lecionou o faleci- normatizada na lei em estudo, pois falta um
do juiz italiano Giovani Falcone (1995, p. programa efetivo de proteção a testemunhas,
91), o caminho no combate ao crime organi- inclusive com destinação financeira.
zado é a decisiva destruição do poderio fi- Cabe mencionar a ínclita Ada Pellegrini
nanceiro da delinqüência dourada, contan- Grinover (2000, on-line), que, em outras pa-
do com a colaboração internacional. lavras, diz que o uso de poderes instrutóri-
De tal forma que o combate à lavagem de os pelo juiz, como parece legar-nos o artigo
capital neste contexto histórico que vivenci- 4º da lei antilavagem, encontra limites no
amos é primordial para ajudar a debelar o contraditório e na obrigação de motivar suas
fomento da hipercriminalidade. decisões (o juiz). E, outrossim, num sistema
Como uma modalidade de crime diferen- acusatório consagrado, entre nós, pela Cons-
te, a delinqüência do estudo em tela requer, tituição no artigo 129, a separação das fun-
portanto, repressão, outrossim, diferencia- ções de investigar, acusar e julgar não de-
da. Como ficou demonstrado, o Brasil, por mandam um juiz inerte.
participação na comunidade internacional, Então, como cremos que ficou assente,
acabou editando a Lei 9.613/98 no combate no trato repressivo à criminalidade não-tra-
à lavagem de dinheiro. dicional, em especial a lavagem de dinhei-
Tal diploma, entre outras inovações, ro, o Brasil ressente-se de uma legislação sis-
criou o órgão de inteligência para tal desi- temática, pois, a título ilustrativo, na lei de
derato: o COAF, porém em outros dispositi- crimes hediondos não há regime de penas
vos criou institutos que vão contra o siste- progressivo; já na Lei 9.034/95 (crime orga-
ma legal que a constituição dispõe. nizado) e na referente à lavagem de dinhei-
Latente é que a criminalidade não-tradi- ro – objeto deste estudo – há a progressão de
cional requer repressão diferenciada, seja regime prisional.

Brasília a. 38 n. 150 abr./jun. 2001 141


Contudo, como se observa pelo artigo 4º, constitucionais, que a Lei 9.613/98 em tese
§ 4º, vislumbra-se um eventual retardo em viola, como a escuta telefônica, a violação
prender pessoas e apreender bens/valores, do direito de fiança ou de liberdade provi-
nos moldes da ação controlada da lei do cri- sória e a apreensão ou o seqüestro de bens
me organizado; e que, pela observação em como medida cautelar;
relação à organização no Ministério Públi- d) a adequação, tal qual o COAF, das ins-
co e Judiciário em que não há uma reparti- tituições supramencionadas, no sentido de
ção de juízos para melhor trato da matéria, organizarem-se internamente para melhor
parece não haver dúvida sobre a desorgani- trato do problema.
zação do Estado para o combate à crimina-
lidade em tela. Pois é sabido que a pletora
de autos e processos pode acabar inviabili- Notas
zando uma aceitável atuação judicial e do
parquet no sentido de bem efetivar o comba-
1
CONGRESSO NACIONAL. Diário do congres-
so nacional, 15 dez. 1990. p. 5693–5704.
te à criminalidade dourada. 2
BUARQUE de HOLANDA, Sérgio (Org.).
Assim, cremos serem necessários alguns História geral da civilização brasileira.
ajustes nos mecanismos ilegais trazidos pelo 3
Op. cit. v. 5, p. 9.
legislador e, também, no tocante à colabora- 4
Comentários. v. 9, p. 363-364, 1958.
ção das instituições chamadas ao combate
5
SANTOS, Wanderley Guilherme dos. Apud op.
cit.
da lavagem de dinheiro, segundo a argu- 6
NOONNAHN, John. In: Bribas, Tradução de
mentação que o presente ensaio sugere, su- Elsa Martins. Bertrand do Brasil.
mariada que está nos seguintes tópicos: 7
DOBEL, J. Patrick,. Cit. por CARVALHO, Ge-
a) a tipificação da sonegação fiscal como túlio. Op. cit. p. 66.
crime antecedente, o que não significará bis
8
MCTRICK, Erich H. Idem
9
CARVALHO, Getúlio. Idem
in idem, visto que em nosso ambiente o Whi- 10
TILMAN, O. Robert. Idem.
te collor crime pode dar ensejo a uma ciranda 11
ETIZIONI, Amitai. Capital Corruptain. Idem
de lavagem de capitais. Ora, pelas investi- 12
Centros bancários extraterritoriais não sub-
gações se demonstrará ser crime anteceden- metidos ao controle de nenhuma autoridade admi-
te ou não. Não o sendo, a incidência será a nistrativa isentos de controle, portanto.
do tipo descrito no Código Penal;
b) a instituição de um eficiente e adequa-
do programa de proteção às testemunhas,
visto que se adotaram institutos alienígenas, Bibliografia
tal qual a delação premiada. Tal matéria, tra-
ALVES, Roque de Brito. Globalização do crime.
tada na Lei 9.807/99, não pode ficar como IBCCrim, n. 88, mar. 2000.
mero simbolismo – somente pela normali-
BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica
zação –, pois, como o artigo 2º da referida
do direito penal. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1999.
lei traz, tal programa depende de consigna-
ção em orçamento, o que, como sabido, é BARBOSA, Rui. Às classes conservadoras. São Paulo:
LTR, 1986. Fundação Casa de Rui Barbosa.
questão política;
c) o fomento das interações, por meio de BARRETO, Vicente; PAIM, Antonio. Evolução do
seminários ou reuniões das diversas insti- pensamento político brasileiro. Belo Horizonte: Itati-
aia, 1989.
tuições chamadas ao trato repressivo, como
o Judiciário, o Ministério Público, a polícia BARROS, Marco Antônio de. Lavagem de dinhei-
e o COAF, visto ser uma criminalidade dife- ro: Análise Sistemática da lei 9613 de 3 de março de
1998. 4. ed. São Paulo: Oliveira Mendes, 1998.
rente da chamada criminalidade tradicio-
nal; tendo aqui em vista o princípio da ra- BUARQUE de HOLANDA, Sérgio (Org.). História
zoabilidade como mitigador de garantias geral da civilização brasileira.

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Brasília a. 38 n. 150 abr./jun. 2001 143

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