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ITAICI - REVISTA DE ESPIRITUALIDADE INACIANA - Nº 12

ARTIGO

A Paixão de Cristo segundo Sto. Inácio é o teste da autenticidade da opção cristã pelo
seguimento mais próximo do Cristo: o Autor é o Padre Geral da Companhia de Jesus, e deu
esta palestra na abertura de um curso de preparação de diretores de exercícios em Roma.
NR.

A PAIXÃO SEGUNDO SANTO INÁCIO


Pe. Peters-Hans Kolvenbach, SJ
Trad. Maria José F. de Castilho

Introdução

Com essa contribuição para o Curso Inaciano, organizado pela incansável atividade do
Centro de Espiritualidade Inaciana, gostaria de chamar a atenção para algumas
características típicas de Santo Inácio, na Terceira Semana dos Exercícios Espirituais.

Inácio construiu sua estrutura da Primeira Semana em torno da genealogia do pecado e da


graça. A Segunda Semana contém os elementos essenciais e fundamentais da
espiritualidade Inaciana. Face à Terceira Semana, corremos o grande risco de negligenciar
a orientação específica desejada por Inácio e simplesmente tomar como ponto de partida o
relato bíblico da Paixão do Senhor, entregando-nos à contemplação do mistério Pascal,
ignorando a Paixão segundo Santo Inácio, como propõe a Terceira Semana. O perigo é
tanto maior porque, dentro da dinâmica espiritual dos Exercícios, a Terceira Semana é a
confirmação da escolha, teste da autenticidade de uma decisão já feita durante a Segunda
Semana.

Há uma razão suficientemente boa para que a oração do exercitante na Terceira Semana,
seja baseada na Paixão segundo os evangelistas, e não na Paixão segundo Santo Inácio.
Como homem do seu tempo, Inácio faz o retirante orar sobre os textos bíblicos, sem levar
em conta a teologia específica do evangelista que os produziu: enfoca sobretudo os
acontecimentos como foram vivenciados pelo Senhor, no seu caminho para a cruz.
Evidentemente, foi pelo Seu acontecimento pascal que o Senhor nos salvou, e não através
da Hermenêutica.

Contudo, não seria mais útil deixar de lado a proposta medieval de Inácio, e orar sobre o
mistério pascal na perspectiva querigmática do evangelho de Marcos, ou no contexto
eclesial do evangelho de Mateus, ou com o amor pessoal do discípulo pelo Mestre, o que
caracteriza o evangelho de Lucas, ou com aquela visão teológica de glória do evangelho
segundo João?

Ainda uma outra razão nos poderia fazer correr o risco de falsificar a oração da Terceira
Semana. De fato, ela facilmente conduz à meditação de problemas intimamente ligados à
paixão do Senhor: o significado do sofrimento, o mistério da cruz, a existência do mal, o
escândalo ou a loucura do amor de um Deus que sofre, e a paixão de Cristo como o
primeiro ato de libertação. É verdade, tais problemas existem no coração de nossa vida
humana e cristã em cada época, e seria difícil negar a ligação desses interesses humanos
com os acontecimentos da Terceira Semana; mas eles se encaixam no desenvolvimento
espiritual ou na dinâmica dos Exercícios? De qualquer forma, tais interesses estão muito
longe do objetivo da Terceira Semana, como vem definido pelo Pe. Gil González Dávila, no
seu Diretório de 1587: "para encontrar o coração de Cristo em meio aos tumultos da paixão,
e nos erguer para entrar em comunhão com o Cristo crucificado, de tal forma que possamos
declarar: "amor meus crucifixus est" - meu amor foi crucificado". (MJ, Directoria EE pág.
527). Percorrendo o texto da Terceira Semana, tentaremos captar algumas características

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peculiares, e assim esboçar, na medida do possível, a paixão de Nosso Senhor segundo


Inácio.

PROPOSTA "ATEMPORAL" DE INÁCIO

Nesse sentido, como proceder à leitura do texto dos Exercícios? Um texto é sempre o
resultado de uma série de escolhas feitas pelo autor, a partir de um certo número de
possibilidades. Para se chegar ao significado e importância de um texto é imprescindível
conhecer essas possibilidades - algumas aceitas e outras rejeitadas pelo autor - sobre as
quais foram feitas as escolhas incorporadas ao texto. Para melhor compreender a proposta
tipicamente Inaciana da contemplação do mistério pascal, a análise do texto deve jogar com
a presença ou ausência de certas possibilidades de apresentar a paixão. Inácio tinha os
relatos bíblicos à mão; como autor dos Exercícios Espirituais, ele fez escolhas significativas
dentre as possibilidades de apresentação desses relatos. A Terceira Semana é o resultado
dessas escolhas, e assim constitui, realmente, "a paixão segundo Santo Inácio".

Para chegar ao cerne da questão, o leitor observará de imediato que Inácio não conserva
em seu texto nenhuma das indicações de tempo que entremeiam os relatos bíblicos. Não há
menção de "quando era noite" (Mt 26, 20) em cochichou com a Ultima Ceia, ou da noite da
negação de Pedro (Mc 14, 30), ou do dia de sábado (Lc 23, 54); absolutamente nenhuma
palavra sobre a hora sexta ou nona (Lc 23, 44). Apenas uma exceção, que por isso mesmo
atrai nossa atenção: "Jesus ficou preso a noite toda" (292) N.T. Aqui é antes de tudo, a
duração do sofrimento doloroso do Senhor, do que uma simples indicação de tempo.
Tempo, como tal, não é importante, exceto na medida em que contribui para a paixão de
Cristo. Como sempre, Inácio organiza os dias e as horas de oração do exercitante, mas a
paixão, em si mesma, se desenvolve fora de qualquer esquema cronológico, no presente
eterno, no hoje de Deus.

O "CAMINHO" OU JORNADA DA TERCEIRA SEMANA

Contudo, esse aspecto "atemporal", inegavelmente confere à paixão um caráter estático de


imobilidade. Aqui, o exercitante não mais se desloca da contemplação de um mistério da
vida de Cristo para outro, como fez na Segunda Semana. Inácio explicitamente insiste no
percurso do exercitante ao longo dos "mistérios", como em uma via: "da Ultima Ceia ao
Jardim" (290), "do Jardim à casa de Anás" (291), "da casa de Pilatos à Cruz" (296). Partindo
da Ultima Ceia (289) aos mistérios realizados "da cruz à sepultura" (298), os traços de
ligação indicam um caminho a ser percorrido - um caminho contendo um ou outro mistério,
no final incluindo todos os mistérios (209), e contudo permanecendo sempre a paixão, a
jornada pascal do Senhor.

Como já observado por Inácio na Segunda Semana (116), essa jornada pascal não começa
com a Ultima Ceia, mas no momento do nascimento do Senhor: "desde o instante em que
nasceu, até o mistério da Paixão, em que agora me encontro" (206). Se a ausência de
indicação de tempo nos coloca no centro do eterno presente do mistério pascal, as
indicações dos elos de ligação nos colocam em uma jornada, em um caminho da cruz, que
começa com o nascimento Daquele que é o Caminho. Cada etapa desse Caminho é um
mistério para aquele que deseja "conhecer melhor a Palavra eterna Encarnada" (130), até
ao ponto em que essas etapas se sucedem com tal intensidade que, como mistérios, levam
à totalidade da paixão, "da grande dor e sofrimento de Cristo Nosso Senhor" (206). A
pessoa de Cristo Nosso Senhor, foi quem suportou essa via ou caminho de "sofrimentos,
fadigas e dores" (206).

A MUDANÇA "KENÓTICA" NO NOME

Essa via ou jornada, produz uma profunda transformação na pessoa de Cristo, e Inácio
chama a atenção para o fato, em relação ao próprio nome do Senhor. O uso do título "Cristo
Nosso Senhor", às vezes nas formas abreviadas "Cristo" ou "o Senhor", domina toda a

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Segunda Semana. Novamente no princípio da Terceira Semana, é "Cristo Nosso Senhor"


que celebra a Ultima Ceia (191). Inácio aponta para o contraste entre "a majestade do
Senhor" e a "humildade de Pedro" durante os mistérios dessa Ultima Ceia (289). Mais uma
vez, é "Cristo Nosso Senhor" (201; Cf. "o Senhor" - 290-291- e "Cristo" - 201) quem vive o
mistério do jardim e trabalha a conversão de Pedro depois de sua negação (292); mas,
depois disso, "a divindade se esconde" (196). Há no uso dos títulos, uma certa tendência
para apagar a majestade de Cristo diante da sacratíssima humanidade (196), à qual é dado
o nome de "Jesus Galileu" (294) e "Jesus Nazareno" (296), até o momento em que o título
de "Cristo Nosso Senhor" é mais uma vez retomado no mistério da ressurreição (299).

Essa mudança "kenótica" ou de auto-despojamento no nome - não que ela deva ser tomada
de modo absoluto, porque estamos falando, como dissemos de uma certa tendência no uso
do nome - é confirmada na Segunda Semana pelo mesmo tipo de tendência no uso do
nome de Jesus: às vezes, certas formas abreviadas, como "o Menino Jesus", ou "a criança"
ou "Jesus", indicando a Kenosis ou auto despojamento da Palavra de Deus na infância. É
verdade que na cruz, o Senhor não é designado por um nome, mas simplesmente pelo
pronome "Ele" (297, 298); mas esse fato lingüístico não deve ser interpretado como
indicativo do completo apagamento do Cristo, porque o mesmo fato pode ser observado
também nas outras Semanas. (Cf. "Ele apareceu" - 299).

DA "ATIVIDADE CRIATIVA" DA SEGUNDA SEMANA À "PASSIVIDADE SOFREDORA "


DA TERCEIRA SEMANA

É da maior importância a maçou na pessoa de Cristo de sua atividade criativa, que é o


pulsar da Segunda Semana, à Sua passividade - experiência de dor e sofrimento - que
caracteriza a Terceira Semana. Os dezesseis mistérios da vida pública de Cristo (273-288),
indicados por Inácio para o exercitante da Segunda Semana, manifestam a glória de Deus:
cinco mistérios para revelar o Filho de Deus; cinco mistérios para realçar de maneira
miraculosa Sua divina atividade; dois mistérios falam do poder do Senhor sobre o pecado;
dois mistérios relacionados com o seu ensinamento, e dois com o chamado dos apóstolos
para seguir a Cristo. O que brilha é o ícone do Onipotente em cuja caminhada os
"sofrimentos" têm presença discreta; a paixão nunca é anunciada, e somente no último
mistério da Segunda Semana, surge uma certa oposição a Jesus: "porque não havia quem o
recebesse em Jerusalém" (288). Mas a Terceira Semana, depois do mistério da agonia no
horto, assinala uma nítida mudança de perspectiva: uma atividade febril se destaca ao redor
de Jesus, no caminho que leva à cruz; mas, esse "humilde Senhor" (291), no texto de Inácio,
permanece voltado para a ressurreição, ou como sujeito gramatical de um verbo passivo -
"Foi conduzido a Anás" (291) - ou mais freqüentemente como objeto gramatical de um verbo
ativo - "Pilatos conduziu-o, fora, à presença de todos" (295). Os outros é que são ativos,
traçando implacavelmente o caminho para a cruz. O Senhor "deixa-se beijar por Judas"
(291), da mesma forma que a divindade "deixa a sacratíssima humanidade padecer tão
crudelissimamente" (196). Contudo, há uma exceção no texto dos "mistérios": "Levava a
cruz às costas", mas essa atividade não dura: "E, não podendo carregá-la"... (296).

A escolha que Inácio faz para os mistérios da Segunda Semana, e sua maneira peculiar de
apresentar os mistérios para a Terceira Semana, indicam o Caminho de glória do
Onipotente e a aflição do Servo Sofredor. O "quinto ponto" do primeiro dia da Terceira
Semana (196), traduz o que Inácio realizou pela sua escolha dos mistérios da vida de Cristo:
a divindade se revela escondendo-se livremente na humanidade cruelmente sofredora. O
Onipotente é o Servo Sofredor. Inácio enfatiza ainda mais, que a divina onipotência se
revela na fraqueza humana, pela escolha que ele faz do material bíblico. O Cristo dos
Evangelhos é mais ativo durante Sua paixão do que o Cristo da Terceira Semana. De fato,
Ele é conduzido ao matadouro (Is 53, 7), mas nunca cessa de protestar por palavras ou pelo
Seu silêncio por causa da injustiça praticada contra Ele. Nos mistérios da Terceira Semana,
Jesus guarda silêncio absoluto da casa de Caifás (292) até a cruz, onde "pronunciou sete
palavras" (297). O grito final de protesto em Mt 27, 46 - "meu Deus, meu Deus, por que me
abandonaste? - é expresso por Inácio como: "Disse que estava desamparado" (297). Toda a

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iniciativa em achou e palavras pertence aos Seus inimigos a quem "a divindade... poderia
destruir... e não o faz" (196), e "nada responde" (294). É esse Jesus que não responde a
perguntas (294) e nem reage às provocações de seus acusadores, que Inácio concretizou
plasticamente na "bofetada" seguidamente recebida no rosto; uma "bofetada" na casa de
Anás (291), outra vez na casa de Caifás (292), e mais uma vez na casa de Pilatos (295).

Nos Evangelhos, Cristo protesta, e nisso se revela como Filho de Deus e Rei; mas na
Terceira Semana, Cristo de nenhum modo reage. E contudo, se a força poderosa de Deus
se esconde na fraqueza de Jesus, ela somente "parece se esconder durante a paixão"
(233), porque realmente se revela no dom divino e no perdão do "humilde Senhor" (291) na
cruz - Jesus situa-se bem em sua própria "casa" - onde sua glória se manifesta no perdão
ao ladrão e na entrega a Seu Pai (297).

Essa insistência da Terceira Semana sobre a fraqueza divina, pouco difere da mesma tônica
sobre os mistérios da infância na Segunda Semana. Tanto a fraqueza humana assumida
nos mistérios da infância, como a fraqueza humana livremente assumida nos mistérios da
paixão, são a "kenosis" ou auto despojamento do Senhor. Daí, a referência à cruz no
mistério do nascimento: "caminhar e trabalhar, para que o Senhor nasça em extrema
pobreza. E, ao cabo de tantos trabalhos, de fome, de sede, de calor e de frio, de injúrias e
afrontas, vá morrer na cruz..." (116). Esse texto já contém a trajetória de despojamento do
Todo Poderoso, a partir do seu nascimento.

FRAQUEZA: PASSIVIDADE DO DESEJO POSITIVO

Embora insistindo no mistério da fraqueza, Inácio, de forma alguma, o considera como


puramente negativo. Os três pontos típicos do primeiro dia da Terceira Semana, que contêm
toda a teologia Inaciana da paixão, refletem uma compreensão decisivamente positiva
dessa fraqueza. No quarto ponto (195), Cristo não somente sofre na Sua natureza humana,
mas "deseja sofrer". No quinto ponto (196), é a divindade que toma a iniciativa, na medida
em que "deixa padecer tão crudelissimamente, a sacratíssima humanidade". E no sexto
ponto (197), Inácio oferece a única resposta esboçada pelo Novo Testamento, à luz de Is
53, para a nossa pergunta: Por que sofrer, afinal? Ele diz: "Cristo padece tudo isso"... por
nós, por mim, "por meus pecados". Inácio apresenta o relato bíblico da paixão, como a
jornada pascal dos mistérios que todos proclamam em última análise, isto é, que o caminho
do "magis" é o do "minus" - "ser tido como néscio e louco por Cristo" (167) - porque é na
fraqueza da "kenosis" que a glória do Todo Poderoso nos é revelada. O porquê do mistério
pascal e o sentido da cruz, são como o livro dos sete selos do Apocalipse: somente o
Cordeiro que foi imolado é capaz de abri-lo para nós - "como de Criador, veio a fazer-se
homem, da vida eterna chegou à morte temporal, e assim veio a morrer por meus pecados"
(53). Finalmente, não se trata de me defrontar com um acontecimento do passado, ou
mesmo com uma teologia; melhor, eu me defronto com a pessoa de Cristo em sua jornada
pascal, aqui e agora. Cabe a mim, então, inspirado pelo Cristo "na cruz", "fazer um colóquio"
(53) - isto é, através de um encontro com Ele, perceber com o coração, entrando mais
profundamente no mistério pascal. Se a primeira meditação da primeira Semana faz o
exercitante perguntar: "o que tenho feito por Cristo?" (53), a Terceira Semana vai mais
longe: "o que devo fazer e padecer por Ele"? (197) O encontro com Cristo não seria
autêntico sem "dor com Cristo na dor, angústia com Cristo na angústia..." (203); seria
ilegítimo e deformado se não "trouxesse à memória os sofrimentos, fadigas e dores que
Cristo Nosso Senhor passou" (206), como conseqüência de seu desejo (195), como algo
nascido "por meus pecados" (197), como um ato criativo da divindade, que é amor (196), e
"quanto o mesmo Senhor deseja dar-se a mim, na medida do possível, segundo seu
desígnio divino" (234).

SÓ O AMOR EXPLICA TUDO

Orígenes talvez expresse em palavras, o que Inácio não quis formular explicitamente, de
modo que o possamos descobrir por nós mesmos, no encontro e colóquio com Cristo, na

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Sua jornada pascal. Em sua sexta homilia sobre Ezequiel (5, 6), Orígenes escreve: "Desceu
à terra, porque teve misericórdia do gênero humano (Cf. EE 107: "Façamos a redenção do
gênero humano"). Sim, Ele carregou os nossos sofrimentos, mesmo antes de ter
experimentado os sofrimentos da cruz; de fato, antes de ter assumido nossa natureza
carnal. Porque, se não tivesse sofrido, Ele não teria vindo para partilhar conosco nossa vida
humana. Primeiro Ele sofreu, depois Ele desceu entre nós (Cf. EE 102: "vendo que todos
desciam para o inferno, se determina, em sua eternidade, que a segunda pessoa se faça
homem, para salvar o gênero humano"). Mas o que é essa paixão que Ele experimentou por
nós? A paixão do amor (Cf. EE 338: "o amor que... desce do alto")". Assim, se Deus sofre, é
por causa de Seu amor infinito, desde o princípio; é porque Ele permanece fiel ao Seu amor
por nós, mesmo quando esse amor vincula os sofrimentos de Seu único Filho. Essa
referência ao amor do alto e do princípio, nos impele a nos entregar a ele, e assim torna-se
e permanece uma confissão de fé. Com Nicholas Cabasilas, o Cristianismo Oriental faz
alusão a esse "louco amor de Deus pelo homem, que não somente destrói o mal e a morte,
mas os assume". Contudo, não considera essa confissão de fé como a solução filosófica
para o problema do sofrimento.

Por essa razão, Inácio não insiste no sofrimento, mas no Cristo que sofre (195). Jesus
nunca deixou de combater o sofrimento, que Ele sempre considerou um mal (Mt 26, 23-24),
e que Ele experimentou em Si mesmo com tal angústia, que no Jardim "Suas roupas
estavam impregnadas de sangue" (290). Não é tanto por esse sofrimento que nos
aproximamos do Cristo, como Cristo nosso Senhor no seu sofrimento e morte infame na
cruz, se aproxima de nossos sofrimentos e aflições como seres humanos. Se Inácio, então,
se obriga a nos convidar a "começar com muito empenho e fazer grande esforço por sentir
dor, entristecer-se e chorar" (195 e 206), não pretende com isso algum tipo de esforço
voluntário, heróico, face ao sofrimento a ser experimentado, nem está pretendendo
acrescentar à paixão de Cristo uma nova e adicional maneira de gerar tristeza e melancolia.
Inácio nos dá como exemplo a Mãe do Menino Jesus, que sentiu compaixão pelo seu Filho,
por causa do sangue que Ele derramou em Sua circuncisão (266). Como diz Inácio, é
preciso um grande esforço para essa compaixão ser genuína, porque a paixão do Senhor -
isto é, sofrer como Ele sofreu, não é co-natural à pessoa humana. De fato, se o sofrimento
radical e absurdo impele a pessoa humana a fugir, ou se resignar a ele como inevitável,
tomar o sofrimento sobre si mesmo como o Cristo fez, é e continua sendo, loucura e
escândalo.

Fiel ao Evangelho da paixão, Inácio nunca sacraliza o sofrimento ou a desgraça, mas ele
propõe uma compaixão que santifica todo sofrimento. A diferença está baseada naquele
amor que por si só justifica tanto o desejo de Cristo de sofrer (195), como o acontecimento
pascal de sua divindade, permitindo que a sacratíssima humanidade sofresse tão
crudelissimamente (196), como também seu sofrimento pelos meus pecados (197). A
palavra "amor" que é a única resposta para todas as perguntas desafiadoras da Terceira
Semana, aparece expressamente nessa Semana, somente no mistério da Ultima Ceia,
quando o Senhor institui "o santíssimo sacrifício da Eucaristia, como a maior prova de seu
amor" (289). Mas, é o amor que por si só garante e traz à tona nossa compaixão (Cf. 197: "o
que devo fazer e padecer por Ele").

"COMPAIXÃO" SIGNIFICA AMOR

O termo "compaixão" pode ser temerário e ambíguo em um contexto sem "amor",


significando então pura sentimentalidade, uma espécie de piedade confortante, em que o
homem se consola com tanta desgraça e miséria. De modo nenhum Inácio procura fazer
essa compaixão esteticamente tolerável, por meio de um arranjo na frase - a exemplo de
Philarète, prelado metropolitano de Moscou (século XIX) que disse: "Deus triunfa do
sofrimento passando pelo sofrimento", ou do poeta Paul Claudel, que escreveu: "Deus não
veio para explicar o sofrimento. Ele veio para preenchê-lo com Sua presença". A Terceira
Semana tem um rico vocabulário para denotar o sofrimento. Nenhum aspecto do sofrimento
é glosado. Mas o sofrimento é sempre secundário em relação Àquele que sofre, quer dizer,

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Cristo (203 e 206: "que Cristo nosso Senhor sofre - ou sofreu - por mim"), e sempre
secundário em relação à loucura de amor que, de acordo com Inácio, é revelada na
fraqueza dolorosa do Todo Poderoso. Por isso, não pode haver compaixão sem sofrimento,
mas sofrimento livremente aceito por um amor que busca efetiva semelhança com Cristo
que desejou ser "pobre" e "tido como... louco" para Sua glória (167), e não uma imitação da
paixão de Cristo, como se fora uma cópia xerox.

Essa compaixão pede uma "Terceira Semana eterna", de acordo com a expressão do Pe.
Fessard, porque no mais íntimo de si mesmo - na verdade, no cerne de seu sofrimento - o
homem procura se completar. A Ultima Ceia, na qual Inácio insiste como uma espécie de
fundamento para a Terceira Semana, requer uma verdadeira transubstanciação de mim
mesmo, na qual o velho Adão morre para ressurgir no novo Adão à imagem e semelhança
da majestade do Senhor, aos pés do homem em Sua "humildade" existencial, a fim de que
ele ressurgisse para uma nova vida como "Cordeiro Pascal" (289). O vocabulário de Inácio,
que contém forte carga afetiva - tristeza, lágrimas, sofrimentos, angústia, aflição, melancolia
- e que insiste em "dor com Cristo doloroso" (203), é um chamado para entrar no mistério
pascal - aquele mistério pascal que é baseado na "kenosis" ou auto despojamento da
Palavra de Deus, de que os sofrimentos de Cristo, a nível dos sentidos, são expressões
dolorosas - de modo que possamos completar, pela nossa "kenosis" pessoal, o que está
ainda faltando à paixão de Cristo (Col 1, 24).

CONCLUSÃO

A essência da Bíblia, isto é, do Novo Testamento, é o mistério pascal. Tudo que o precede é
apenas uma introdução e uma preparação. Não deveríamos dizer o mesmo, em relação à
Terceira Semana nos Exercícios? Sem a Primeira Semana, o conhecimento de que o
Senhor sofre por meus pecados, perde em profundidade pessoal. Sem a Segunda Semana,
o desejo de ser escolhido para sofrer com Cristo, no sofrimento, perde na concretização de
um plano e decisões pessoais. Contudo, é somente na Terceira Semana, baseada na
Eucaristia, que é a Páscoa de Cristo, que o pecado - ligação pessoal com os inimigos que
sua "divindade poderia destruir e não o faz" (196) - incita-me a um verdadeiro encontro de
amor com o Cristo, quando Ele realiza Sua Páscoa em nós e conosco. E mais, é somente
na Terceira Semana que se torna realidade pascal, tudo o que foi desejado e imaginado
como projetos e planos concretos de vida; é quando Sua Divina Majestade nos coloca com
Seu Filho crucificado.

Assim, longe de ser uma forma de expressão sentimental de nossa ligação ao Cristo, e
também longe de ser uma simples confirmação de um desejo real, mas ainda imaginário de
seguir a Cristo, a Terceira Semana - semelhante ao mistério pascal que ela celebra -
constitui uma personalização, dentro de mim mesmo, do Senhor crucificado e ressuscitado,
do Cordeiro imolado e vivo, reconhecendo que sou um pecador e estou pessoalmente
envolvido com o chamado para seguir a Cristo, de acordo com os Três Graus de Humildade.

Na linguagem bíblica, o coração fala ao coração; então, a tristeza não mais se concentra
nos meus pecados, nem a alegria criativa assume a forma de planos e projetos generosos -
meus planos e projetos generosos. É Páscoa, o êxodo de um acanhado egoísmo, para me
entristecer e me alegrar com o Outro Total, quando Ele é escarnecido, açoitado, humilhado,
naquela singular e única experiência de poder - Seu poder pascal.

E assim, o orante da Terceira Semana só pode ser desprendido, pronto para receber,
humilde e livremente, do Deus de Jesus Cristo, a minha cruz para carregar a sua própria
cruz; pronto para receber minha Páscoa de humilde amor entre Deus e o homem: tornar-se,
pela glória pascal de Deus, um louco por Deus. A paixão segundo Santo Inácio expressa o
amor poderoso do Senhor, que salvou os outros em sua fraqueza, incapaz como era de
salvar a si mesmo (Mc 15, 31). Ela nos desafia a receber, num ato de gratidão pascal, a
humildade e humilhação do Senhor, pois somente um coração pobre em espírito pode tornar
os homens ricos com a riqueza da Vida de Deus.

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NOTAS

N.R - Traduzido do texto em espanhol publicado em CIS - XXI 1990: 1-2 / 63-64, pp. 61-71.

N.T - Quando sem outras indicações, os números nos parênteses se referem aos números
dos Exercícios Espirituais de Sto. Inácio.

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