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EDUCAÇÃO ESCOLAR

INDÍGENA
Marilda Almeida Marfan
Organizadora

Vo l u m e 4

Brasília
2002
PRESIDENTES DO CONGRESSO
IARA GLÓRIA AREIAS PRADO
Secretária de Educação Fundamental
MARIA AUXILIADORA ALBERGARIA
Chefe de Gabinete

COMISSÃO ORGANIZADORA
Coordenadora: Rosangela Maria Siqueira Barreto
Renata Costa Cabral
Fábio Passarinho de Gusmão
Lívia Coelho Paes Barreto
Sueli Teixeira Mello

COMISSÃO CIENTÍFICA
Coordenadora: Marilda Almeida Marfan
Ana Rosa Abreu
Cleyde de Alencar Tormena
Jean Paraizo Alves
Leda Maria Seffrin
Lucila Pinsard Vianna
Nabiha Gebrim de Souza
Stella Maris Lagos Oliveira

Edição: Elzira Arantes


Projeto Gráfico: Alex Furini
Editoração: José Rodolfo de Seixas

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


Congresso Brasileiro de Qualidade na Educação: formação
de professores (1. : 2001 : Brasília)
Congresso Brasileiro de Qualidade na Educação :
formação de professores: educação indígena. / Marilda Almeida
Marfan (Organizadora). __ Brasília : MEC, SEF,
2002.
204 p. : il. ; v.4

1. Formação de Professores. 2. Qualidade da Educação.


3. Educação Escolar Indígena. I. Título. II. Brasil.
Ministério da Educação. Secretaria de Educação
Fundamental.

CDU 371.13

Patrocínio: PETROBRAS
Apoio: Agência de Notícias dos Direitos da Infância (ANDI)
SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO 5
Iara Glória Areias Prado

SIMPÓSIOS

SIMPÓSIO 1 9
EDUCAÇÃO NO CONTEXTO DA DIVERSIDADE CULTURAL
Héctor Muñoz Cruz

SIMPÓSIO 2 19
POLÍTICAS PÚBLICAS EM EDUCAÇÃO INDÍGENA NO BRASIL
Jean Paraízo Alves
Maria Helena Fialho

SIMPÓSIO 3 29
EDUCAÇÃO, DIVERSIDADE CULTURAL E CIDADANIA: OS POVOS INDÍGENAS E A ESCOLA
Inge Sichra

SIMPÓSIO 4 41
EXPERIÊNCIA DO ENSINO SUPERIOR INDÍGENA
Edivanda Mugrabi
Elias Renato da Silva Januário
Maria Inês de Almeida
Marilda C. Cavalcanti

SIMPÓSIO 5 61
AS ORGANIZAÇÕES DE PROFESSORES NO BRASIL:
RELAÇÕES COM AS POLÍTICAS PÚBLICAS E AS ESCOLAS INDÍGENAS
Jaime Costódio Manoel
Cristóvão Teixeira Abrantes

PAINÉIS – RELATOS DE EXPERIÊNCIAS

PAINEL 1 71
A QUESTÃO INDÍGENA NA SALA DE AULA
Ana Vera Macedo
Rosani Moreira Leitão
Betty Mindlin
José Ribamar Bessa Freire

PAINEL 2 101
AS EXPERIÊNCIAS DOS CONSELHOS ESTADUAIS DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA
José Ademir Gomes e Jecinaldo Barbosa Cabral
Elias Renato da Silva Januário

PAINEL 3 107
O PAPEL DA ANTROPOLOGIA, DA LINGÜÍSTICA E DA PEDAGOGIA NA EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA
Judite Gonçalves de Albuquerque

PAINEL 4 113
POLÍTICAS LINGÜÍSTICAS E A ESCOLA INDÍGENA
Wilmar da Rocha D’Angelis
Marcus Maia

PAINEL 5 129
LEGISLAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA
Luís Donisete Benzi Grupioni
Darci Secchi
Vilmar Guarani
PAINEL 6 145
OS ETNOCONHECIMENTOS NA ESCOLA INDÍGENA
Carlos Alfredo Argüello
José Augusto Laranjeiras Sampaio
Roseli de Alvarenga Corrêa

PAINEL 7 161
EXPERIÊNCIAS DE FORMAÇÃO DE PROFESSORES INDÍGENAS
Jussara Gomes Gruber
Maria Cristina Troncarelli
Zélia Maria Rezende
Marlene de Oliveira

PAINEL 8 177
EXPERIÊNCIAS DE FORMAÇÃO DE PROFESSORES INDÍGENAS
Eunice Dias de Paula
Terezinha Furtado de Mendonça

PAINEL 9 187
EXPERIÊNCIAS DE FORMAÇÃO DE PROFESSORES INDÍGENAS
Bruno Kaingang
Arlene Bonfim

PAINEL 10 199
PRÁTICA DE SALA DE AULA NA ESCOLA INDÍGENA
Yolanda dos Santos Mendonça
Alzenira Felipe Marques
APRESENTAÇÃO

O Primeiro Congresso Brasileiro de Qualidade na Educação – Formação


de Professores, promovido pela Secretaria de Educação Fundamental do
Ministério da Educação (SEF/MEC), foi realizado em Brasília no período
de 15 a 19 de outubro de 2001.
O Congresso tratou, em seus simpósios, palestras, painéis, oficinas e
atividades paralelas, de uma das principais variáveis que interferem na
qualidade do ensino e da aprendizagem: a formação continuada dos pro-
fessores. Buscou propiciar aos educadores e profissionais da área, tanto
nas oito séries do Ensino Fundamental, quanto na Educação Infantil, na
Educação de Jovens e Adultos, na Educação Especial, na Educação Indí-
gena e na Educação Ambiental, informações e conhecimentos relevan-
tes para subsidiá-los em sua prática. Promoveu um balanço geral dos
principais avanços alcançados nos últimos anos, com a implantação de
políticas públicas voltadas para a melhoria da qualidade do ensino, e
enfatizou, de forma especial, os programas de desenvolvimento profis-
sional continuado e de formação de professores alfabetizadores, que fo-
ram debatidos sob diferentes óticas e pontos de vista.
O Congresso envolveu cerca de 3 mil participantes, incluindo, além das
representações municipais, um significativo número de autoridades, es-
pecialistas nacionais e internacionais e representantes de organizações
não-governamentais, privilegiando, quantitativamente, os representantes
dos municípios que procuravam desenvolver em seus sistemas de ensino
as políticas de formação continuada propostas pelo MEC, a saber: o Pro-
grama de Desenvolvimento Profissional Continuado – “Parâmetros em Ação”
e o Programa de Formação de Professores Alfabetizadores – PROFA.
Ao promover a organização desta publicação, a SEF faz um resgate de
todos os textos apresentados e entregues, em tempo hábil, pelos especia-
listas convidados e procura colaborar com aqueles profissionais da área
que valorizaram o evento e estão em busca de sua memória, ou que, por
diferentes razões, se interessam por reflexões e temas relativos à quali-
dade da educação e à formação dos professores, tais como: educação para
a mudança, transversalidade e interdisciplinaridade, educação escolar
indígena, livro didático, inclusão digital, alfabetização, organização dos
sistemas de ensino, educação inclusiva, escola reflexiva, enfim, compe-
tência profissional, o desempenho do professor e o sucesso escolar do
aluno, entre outros.
Como o público-alvo é muito diversificado, o volume de textos apre-
sentados muito grande, e como os principais eixos temáticos podem in-
teressar, de forma mais direta, a diferentes segmentos do Ensino Funda-
mental, os resultados do Primeiro Congresso Brasileiro de Qualidade na
Educação – Formação de Professores foram organizados em quatro volu-
mes: os volumes 1 e 2 referem-se a temas mais gerais, relativos à Educa-
ção Fundamental como um todo, e incluem temas específicos referentes
à Educação Infantil, à Educação de Jovens e Adultos, à Política do Livro
Didático e à Educação Especial; o volume 3 trata da Educação Ambiental;
e o volume 4 é dedicado à Educação Escolar Indígena.
Embora incompleta, pela ausência de alguns textos, e observando que
em alguns casos só apresenta os resumos dos participantes, a presente
edição reflete a importante contribuição e a competência de nossos es-
pecialistas, tanto pelas palestras proferidas nos simpósios, quanto pelos
relatos de experiências contidos nos painéis, e incorpora 25 textos apre-
sentados por renomados especialistas internacionais.
Ressalta-se ainda que os textos contidos nesta publicação são de in-
teira responsabilidade de seus autores e retratam reflexões e pontos de
vista de cada especialista envolvido.
Com a presente publicação, a SEF/MEC espera que os resultados do
Congresso de Brasília possam ser amplamente divulgados e cheguem ao
alcance dos principais interessados: professores do Ensino Fundamen-
tal, diretores de escolas, institutos de formação de mestres, pesquisado-
res, universidades, enfim, todos aqueles ligados à produção, à reprodu-
ção, ao consumo e à transmissão do conhecimento, paladinos da cons-
trução de uma escola de qualidade para todos.

Iara Glória Areias Prado


Secretária de Educação Fundamental
EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA
SIMPÓSIOS
SIMPÓSIO 1

EDUCAÇÃO NO CONTEXTO
DA DIVERSIDADE CULTURAL
Héctor Muñoz Cruz

9
A educação no contexto




da diversidade





Héctor Muñoz Cruz



Universidade Autônoma Metropolitana/México






lidade, a natureza e, sobretudo, as conseqü-
Natureza e impacto



ências desse fenômeno extrapolam quase que


da diversidade


por completo a imaginação popular e as pes-


quisas mais rigorosas. Ainda assim, no pre-



sente trabalho procuro propor algumas impli-


Este país encontra-se completamente despreparado


e, em alguns casos, sem vontade de atender às cações dos aspectos contemporâneos da di-

necessidades educativas e sociais de sua população



versidade lingüística e cultural na teoria
educacional.

multicultural de estudantes. Como resultado da


escassez de professores multiculturais e Em todas as latitudes do planeta, verifi-



multilíngües, os professores recebem referências de ca-se um processo extremamente amplo de



emergência para lecionar. Esses professores têm assimilação e perda da diversidade cultural

poucas oportunidades para desenvolver uma e intelectual. Como interpretar essa tendên-

compreensão do que significa lecionar em uma cia? Quais são as dimensões e implicações

sociedade multicultural e multilíngüe. Ademais, os


para a humanidade? Um caso muito discuti-


programas de formação de professores continuam


do refere-se à angústia e ao deslocamento


centrados no ensino e na aprendizagem de modelos


que as línguas e culturas politicamente do-

de instrução monoculturais e fora de contexto.


minantes produzem sobre as línguas e cul-


Quem necessita ser crítico e reflexivo se o uso


turas indígenas locais (Hale, 1992; Ladefoge,


continuado de métodos, materiais e currículos


1992). Embora esse processo não esteja rela-


descontextualizados, “à prova de professores”, é a

cionado com a perda simultânea de diversi-


prática habitual nas escolas?


dade nos mundos biológico e botânico, não



Gutiérrez, apud McLaren, 1995: 184. é de todo inadequado imaginar-se uma ana-

logia ecológica. Se é dramático imaginarmos



O reconhecimento social, a documentação os perigos decorrentes da perda de diversi-



e a pesquisa científica sobre a heterogeneida- dade biológica no planeta, não é menos ca-

de das sociedades, os sujeitos e seus respec- tastrófico visualizarmos os perigos inerentes


tivos indicadores aumentaram paulatinamen- à perda de diversidade lingüística e cultural.



te nos últimos anos, tanto no âmbito global Entretanto, a preservação e a manutenção



q u a n t o n a s c o m u n i d a d e s p e q u e n a s. O das línguas e culturas continuam a ser um



multiculturalismo e as desigualdades irrom- tópico multifacetado sobre o qual diferentes


peram com tal impacto nas platafor mas opiniões podem ser emitidas.

sociopolíticas dos projetos globais, nacionais A partir de uma perspectiva sociolingüística



e étnicos, que converteram a diversidade e o (Muñoz e Lewin, 1996), as conseqüências da



multidirecionamento em descobertas sur- perda e da transformação da diversidade para


preendentes, fascinantes, porém conflitantes. parâmetros de uniformidade se refletem em



A diversidade e o multidirecionamento cons- três importantes dimensões da vida social: pri-



tituem dois fatores substantivos do presente meiro, modificam a funcionalidade e a repro-



que nos foi legado com dor por uma realida- dução na comunicação e na continuidade cul-

de multicultural abundante em pobreza, de- tural; segundo, enfoca-se a racionalidade ou



sigualdades e exclusões. O quê e o quanto sa- reflexividade em torno de modelos lingüísticos



bemos sobre a diversidade histórica? Na rea- e culturais dominantes; e, terceiro, diversifi-


10
SIMPÓSIO 1
Educação no contexto da diversidade cultural

cam-se e especializam-se as capacidades No novo cenário político e econômico, a



socioculturais dos sujeitos em relação às neces- migração, as políticas de preservação das lín-



sidades dos projetos globais. Em suma, há todo guas, culturas e identidades das populações



um campo a ser pesquisado no qual, entretan- originais adquiriram grande relevância, junta-


to, a maioria das preferências explicativas pro- mente com o fomento da comunicação



postas decorre de uma visão superficial e des- intercultural e multilingüística e a eliminação



critiva da diversidade. de ranços sociais e educacionais. Do ponto de


A esse respeito, as possibilidades de in- vista das ações governamentais, na realidade, 10



tervenção ou de prevenção implicam tarefas não existem no momento soluções harmôni-



tais como uma adequada compreensão da cas para o reconhecimento e a reconciliação



perda de diversidade, rechaçando-se a con- das particularidades culturais e lingüísticas nas


cepção de que seja uma condição normal do novas estruturas nacionais.



mundo moderno e uma efetiva potencializa-



ção dos recursos e das identidades culturais Assim, já não podemos considerar que os seres


humanos criam seu entorno técnico e econô-


das comunidades afetadas. As soluções e as


estratégias estão longe de serem universais. mico [...] a partir de agora são as indústrias cul-



As decisões e as opções são prerrogativas cla- turais (em particular o ensino, a assistência sa-

ramente exercidas por povos e falantes. A hu-




nitária e a informação) que criam novas repre-
sentações do ser humano e, por outro lado, des-

manidade é surpreendentemente flexível no


cobrimos que é possível inovar não apenas com


que se refere à preservação da diversidade.

o novo... mas também com o velho ( Touraine,


Enquanto diversas culturas morrem, sempre


1999: 54).

estão surgindo outras, fato que não apresen-


ta correlação direta com a etnia ou o idioma


A Unesco também tem contribuído para


(Ladefoge, 1992).

chamar a atenção para esse fenômeno. A enti-


Nesse contexto, a diversidade é conseqü-


dade adverte que os estados estão deixando de


ência da racionalidade humana para adap-


cumprir a política de Educação para Todos


tar-se e responder de forma criativa a tudo

( Jomtien) nos seguintes aspectos:


que a rodeia e às suas necessidades. Mas essa


• descuido no que se refere a aprendizagens


não é a meta das relações humanas ou da


informais;

educação. A diversidade pressupõe funções


• lentidão na redefinição das necessidades


de intercâmbio e de equilíbrio tanto para o

educacionais, particularmente no que se


indivíduo quanto para as interações de todo


refere a um conteúdo educacional que re-


o conjunto social.

flita a diversidade cultural;


Por outro lado, discussões mais ou menos


recentes sobre desenvolvimento social inclusi- • aumento das desigualdades nos sistemas

vo, pluralidade na política e interculturalismo educacionais: apenas os pobres, grupos


minoritários e não-capacitados foram con-


na educação em nosso continente colocam uma


siderados;

ênfase clara sobre a necessidade de vincularem-


se, efetivamente, as alterações socioculturais e • pouco desenvolvimento da educação ini-



as particularidades étnicas e lingüísticas à de- cial nas zonas rurais; aumento da lacuna

tecnológica, que reduz as possibilidades


mocratização e ao direito, à transformação em


de que as tecnologias de informação e co-


prol da qualidade e da pertinência da educa-


municação atendam a necessidades espe-


ção nacional e à luta contra a pobreza e as de-

cíficas;

sigualdades.1




1
Nossos países devem optar por um desenvolvimento sustentável e pela paz, e construir uma democracia multiétnica e pluricultural, o que

significa que os Estados devem se esforçar para entender a diversidade. Essa corrente, em seu afã para criar novos paradigmas, resgata a

autoridade, a diversidade cultural, a interação com a natureza e a pluralidade de saberes como expressões enriquecedoras e não-problemá-

ticas da humanidade (Cárdenas, 1995: 2-3). Cf. Touraine, 1999.



• e, por último, o financiamento da Educa- Diversidade, direito e



ção Fundamental ainda é deficitário (SEP,


compromisso com o


2000a e 2000b).


desenvolvimento educacional


As experiências sociais mais freqüentes da



diversidade (auto-integração, assimilação, mi-
As transformações na área da educação


gração e ressocialização) comprometem obje-


sempre apresentam um referencial sócio-his-


tivos e atividades no âmbito da tecnologia dos


tórico que pode impulsioná-las ou bloqueá-


meios de comunicação, a educação em geral, o
las. A situação da formação de professores no


ensino dos idiomas, o acesso ao trabalho em no-


marco do multiculturalismo contemporâneo


vas áreas, a democratização da justiça e a diversi-


não é exceção. Para educadores, funcionários


ficação dos serviços de informação e tradução.


e líderes de movimentos sociais, o debate so-


As situações conflitantes do multicul-
bre a educação, sensível à diversidade cultural


turalismo aprofundam a desilusão e a frustra-


das populações discriminadas, gira em torno

ção das comunidades no que se refere à vonta-


do direito e do reconhecimento do todo nacio-
de e à orientação políticas do Estado. As deman- ○

nal, reivindicações que não foram atendidas e,


das e as ações das alterações podem experimen-


portanto, encontram-se bloqueadas. Seria in-

tar um “viés comunitário e de identidade”


teressante estabelecer e criar o panorama des-


(Gross, 2000), se seus próprios objetivos forem


sa situação em nosso continente, como sugere


frustrados. Ou seja, não é seguro que a popula-


o relatório intitulado Nossa diversidade criati-

ção discriminada se aproprie das mudanças ju-


va (Unesco, 1997).

rídicas e institucionais favoráveis à construção


As alterações sociais e suas organizações


e à participação em uma sociedade mul-


(etnias, imigrantes, gêneros, idiomas, reli-


ticultural plural, devido ao fato de que essas


giões) pelejam e negociam com os governos fe-

percebem convergências entre as reformas


derais medidas como o status de sujeitos de


constitucionais e o neo-indigenismo do Estado


direito, a cidadania e a pertinência das políti-


com o ajuste econômico, a abertura neoliberal


cas públicas. Com efeito, os tempos políticos


e os custos econômicos e sociais que esses pro-


na América Latina indicam que essa negocia-

vocam.

ção será longa e não estará desprovida de con-


Em suma, a educação sensível à diversida-


dicionamentos ideológicos do temor de supos-


de é uma utopia recente e questão de justiça


tos privilégios diferenciados. Portanto, a aber-


para grande número de povos indígenas e afro-


tura e o pluralismo das políticas públicas cul-

americanos, bem como para movimentos so-


turais e educacionais, no curto prazo, depen-


ciais que começaram a materializar-se na últi-


derão mais de negociações políticas do que de


ma década, em novas bases jurídicas e em polí-


razões educacionais (qualidade, igualdade e


ticas públicas de educação escolarizada, rever-


pertinência). 2

tendo progressivamente um processo adverso


Entretanto, a introdução de uma propos-


na educação pública que remonta ao início do


ta educacional suscita exigências que não se


século XX. “Até o século XVII, acreditava-se que


satisfazem com as posturas ideológicas. A


a diversidade era a causa da discórdia e das de-


questão essencial é que se precisa de concep-

sordens que levavam os Estados à ruína. Assim,


ções sobre como opera uma mudança na edu-


acreditava-se que a saúde do Estado exigia


cação e quantos processos devemos integrar


unanimidade” (Sartori, 2001: 20-21).


para assegurar uma reforma efetiva e favorá-






2
A crise na educação de hoje tem gerado profundas discrepâncias sobre o papel da escola na sociedade. É grande a necessidade de ajustar-

se a questão educacional às necessidades da sociedade e, especialmente, de abandonar a concepção e os conteúdos da escola pública

tradicional. Assim, no que se refere às escolas, inicia-se o progressivo consenso social de que sua atribuição não se limita a ensinar as

crianças e a fornecer-lhes as habilidades básicas necessárias em uma sociedade tecnológica complexa, mas inclui também a solução do

dilema da discriminação social e da violência, a fim de proporcionar oportunidades às mulheres e às populações étnicas, visando à sociali-

zação de gerações de migrantes do campo para a cidade e para canalizar a transformação de políticas sociais.

12
SIMPÓSIO 1
Educação no contexto da diversidade cultural

vel à população envolvida. Até o momento, educação sensível à diversidade cultural e lin-



tem-se abusado de plataformas sociopolíticas güística (povos indígenas). A partir de seto-



e descritivas para corroborar a necessidade de res técnicos de projetos EIB, com apoio inter-



transformar o sistema, os modelos acadêmi- nacional, e, especialmente, de pesquisadores,


cos e as práticas escolares em relação à diver- tentou-se estabelecer um tipo de história



sidade. Mas talvez o melhor passo seja abrir científica das orientações principais ou, figu-



o u d e m o c ra t i z a r a g e s t ã o d a e d u c a ç ã o rativamente, paradigmas da Educação Indí-


multicultural plural para atrair o compromis- gena escolarizada, a fim de sustentar o cará- 12



so e a criatividade demonstrados por muitos ter progressivo e alternativo da doutrina



professores. intercultural bilíngüe.



Mas antes seria conveniente fazer duas


observações. Primeiro, essa preocupação tem
Impacto da diversidade



sua origem no desenho de ações e projetos de


lingüística e cultural no


desenvolvimento educacional inovadores e


desenvolvimento educacional

diferenciados promovidos por agências inter-


nacionais. As comunidades indígenas foram



Na educação escolarizada, parece verifi- mais receptivas a essas preocupações. E, se-

car-se a impossibilidade de construir-se um gundo, no curso dessa preocupação, enfren-



projeto de desenvolvimento coerente com tam-se antigos problemas da Educação Indí-


gena e, em tempo real, novos desafios e te-


uma visão plural diferenciada do setor edu-


cacional, que permita vislumbrar as mudan- mas. As discussões paradigmáticas, até certo

ças socioculturais e as realidades escolares ponto, criam a ilusão de que os antigos pro-

blemas desaparecem pelo simples fato de


das comunidades de base.


operar-se com novas categorias e modelos


Contamos com parâmetros bem mais


4
atuais para discutir a reforma da educação, educacionais.

com novas tendências curriculares do siste- Mas também devemos reconhecer um as-

pecto muito interessante: as diversas orien-


ma educacional e com ações institucionais


tações programáticas e metodológicas refle-


que tendem a oferecer Ensino Fundamental


àqueles que dele necessitem. Da mesma for- tem a vontade política de influir no futuro da

ma, novas tecnologias surgiram para a elabo- sociedade e da identidade indígena, rede-

finindo-se o papel da educação no grande es-


ração de material didático, especialmente do


forço para permitir a formação do maior nú-


livro didático.

Em geral, as propostas subordinam os ob- mero possível de indivíduos de origem indí-



jetivos tradicionais de cobertura e igualdade gena e afro-americana dos atuais países lati-

no-americanos (Lesourne, 1993; e Albó, 1996).


que dominaram a educação durante grande


parte desse século e privilegiam objetivos Em trabalhos anteriores (Muñoz, 1998 e



“pós-modernistas” de eficácia, produtividade, 2001b), sugeri que a história científica da Edu-



pluralismo cultural e, ocasionalmente, de ex- cação Indígena procura representar o desen-


volvimento progressivo da natureza indígena.


celência acadêmica. 3

Para fins de avaliação e planejamento, há Assim, até o momento, o resultado ideológi-



um certo interesse em tornar a história da co da aceitação da proposta intercultural bi-









3
Utilizo nessa idéia a terminologia de Kelly (1985), ou seja, a adequação entre a formação escolarizada e o desenvolvimento socioeconômico

da comunidade.

4

As dificuldades relativas à educação bilíngüe, como o ensino do espanhol como segunda língua e a normatização ortográfica das línguas

indígenas, continuam pendentes e são atendidas por antigas práticas pedagógicas, típicas do paradigma bilíngüe. De certa forma, continu-

am a reinar, na pedagogia das escolas indígenas de 2001, concepções e práticas criadas há cinqüenta anos.

l í n g ü e é a s u b s t i t u i ç ã o i r re v e r s í ve l d o des e sua identidade. Por razões de política



paradigma bilíngüe bicultural. Anteriormen- mundial, assume-se o princípio do intercultu-



te, nos anos 1970, a doutrina da Educação In- ralismo dual ou polarizado, que circulou nes-



dígena bilíngüe e bicultural havia sido subs- ses ambientes educacionais com a bicultura-


tituída pela antiga proposta integracionista lização servindo de complemento à educação



dos anos 1930 chamada “educação bilíngüe”. bilíngüe. Entretanto, dadas a escassa experiên-



Apresento, no quadro abaixo, essa seqüência cia inovadora e a quase inexistente pesquisa


histórica. sobre a Educação Indígena àquela época, o



Na proposta gráfica acima, atribuímos gran- componente bilíngüe experimentou um de-



senvolvimento central, com princípios e


Quadro 1


tecnologia da lingüística aplicada. Como resul-


tado, prevaleceram a “castelhanização” e a


Paradigmas da Educação Indígena


escolarizada na América Latina monoculturalização dos currículos e da apren-



dizagem. A Educação Indígena não escapou à

A diversidade como problema Modelo democratizador ○

(educação bilíngüe)

crise e ao ranço planetário em matéria de edu-
cação, talvez com mais profundidade devido

A diversidade como recurso Modelo de capital humano e de às desigualdades não-resolvidas. No fundo, a


(educação bilíngüe bicultural) superação da marginalização


escola pública indígena não se modificou.



A diversidade como direito Modelos liberais de capital humano A terceira orientação constitui a utopia ou a

(educação intercultural ou versus virtualidade que desejamos construir e que pode



multicultural bilíngüe) Modelos críticos de resistência caracterizar-se como o paradigma da diversida-



de como direito. Uma das circunstâncias relevan-


tes dessa educação alternativa é a negociação ou



de valor a três princípios: a centralização da


discrepância não concluída entre as instituições

cultura (etnia-identidade), o papel da educa-


educacionais e os movimentos e organizações


ção no desenvolvimento indígena e os proces-


indígenas. No quadro, essa discrepância é apre-


sos de gestão e comunicação.


sentada como a luta entre modelos neoliberais

De acordo com esses princípios, a primei-


de capital humano e modelos críticos de resis-


ra orientação admite a caracterização do para-


tência. Em todo o continente, pode-se observar


digma da diversidade como problema


essa contradição, que está detendo e desvir-


educacional e de desenvolvimento. Ou seja, tan-


tuando o desenvolvimento educacional nas re-

to a cultura como a língua indígenas são con-


giões interculturais. Os dois componentes


sideradas obstáculos à integração dos povos in-


cruciais dos modelos críticos de resistência pro-


dígenas à sociedade nacional. Com base em


postos pelas comunidades indígenas são a au-


concepções democratizadoras, flexibiliza-se o


tonomia e o controle endógeno, ou a autogestão

acesso à educação e à comunicação, mediante


da educação. Para citar um exemplo, a Nicará-


estratégias bilíngües de transição para o mun-


gua é o único país que adotou, há quinze anos, o


do e o idioma hispânico.

estatuto de autonomia na Constituição Política.5


A segunda orientação (educação bilíngüe


Em suma, o conjunto de reorientações da

bicultural) pode caracterizar-se como o para-


política educacional para populações indígenas


digma da diversidade como recurso. Com base


tem como principal meta lograr no Ensino Fun-


na idéia de permitir o acesso das maiorias à


damental: “A universalização do Ensino Funda-


educação e ao desenvolvimento industrial,


mental é o principal compromisso que assumi-

procura-se potencializar a qualificação do ca-


mos como mexicanos para garantir a viabilida-


pital humano, recuperando-se suas diversida-


de de uma nação [...]. A Educação Fundamen-






5 Muñoz (2001a) e outros assinalam que não foi possível implantar essa política pública nos processos comunitários e escolares devido à

ausência de um projeto integral de desenvolvimento educacional.


14
SIMPÓSIO 1
Educação no contexto da diversidade cultural

tal é a possibilidade de construirmos uma socie- A partir da ótica do desenvolvimento edu-



dade cada vez melhor” (SEP, 2000a: 11). cacional integral, aprendemos a identificar, a



Essas reorientações representam acordos e expandir nossa compreensão e também a



objetivos assumidos pelos Estados nacionais relativizar os discursos dos diferentes setores


com a corrente internacional de humanização sobre as políticas públicas, as quais decorrem



do desenvolvimento e aprofundam a moderni- de princípios e condições ideológicas para pro-



zação educacional, com componentes de igual- mover uma grande mudança educacional que


dade, qualidade e pertinência. busca estabelecer novos termos com o desen- 14



Com base nesse horizonte histórico não- volvimento econômico e político, no qual “a



linear, vale ressaltar a importância de que se democracia de nossos países encontrará na



trabalhe com uma perspectiva de processo educação intercultural bilíngüe um dos princi-


complexo e articulado em várias dimensões pais instrumentos para sua consolidação”



educacionais, assimetricamente relacionadas, (Cárdenas, 1997: 29).



cuja convergência ou divergência decorre do


Quadro 3


êxito ou da crise da educação em geral. A esse


respeito, sugiro que a transformação da edu- Objetivos globais de política educacional


cação orientada para o multiculturalismo plu-


relacionados à diversidade
ral advirá principalmente do nível das realida-

Objetivos globais Políticas gerais


des e práticas escolares específicas, na medi-


da em que se democratize a gestão educacio-


1. Aumento da cobertura

nal da sociedade civil e das comunidades de Igualdade, e do financiamento misto



base, mediante modalidades de participação suficiência, acesso 2. Abertura do sistema a todos


integral e controle comunitário, “porque o os setores



pluralismo afirma que a diversidade e a


1. Aprimoramento da formação

discordância são valores que enriquecem o de alunos e professores


2. Desenvolvimento de

indivíduo e também sua comunidade política” Qualidade


(Sartori, 2001: 19). habilidades para solucionar


problemas


Quadro 2 Retenção e funcionalidade


Eficiência interna flexível do sistema escolar


Inserção da diversidade no desenvolvimento



educacional Desenvolvimento social com



vínculos estreitos com


Dimensões do a cultura, a identidade,


desenvolvimento Metas e processos Eficiência externa o trabalho, a paz, a co-


educacional

responsabilidade política e

o direito de todos os setores


Política educacional,

Sociedade multicultural sociais


normatização

Transmissão de qualidades

Educação inicial e continuada


sociais compatíveis com o


Sistema educacional na formação de professores Valores pluralismo, a reciprocidade e a


Organização flexível do aprendizagem cooperativa



sistema

Modelos acadêmicos Comunicação intercultural


Essa idéia de desenvolvimento educacional


de formação (ensino/ (validade, discordância)


aprendizagem) Ética do pluralismo poderia nos levar muito longe se os debates


Ciclos participativos

científicos e sociais influenciassem a elabora-



ção de políticas e projetos educacionais cujos


Práticas e processos Ações e ideologias plurais das

destinatários sejam as populações indígenas e


escolares escolas e das comunidades no


que se refere à diversidade afro-americanas e os setores marginalizados.



A história, as teorias e as práticas dessas alte-



rações socioculturais são mais bem conheci- 3. Em matéria de avaliação, tende a confor-



das por meio de pesquisas científicas que nos mar-se com indicadores endógenos.



ajudam a compreender a situação multiétnica 4. A construção de um grande sistema edu-



e pluricultural do país. De sua parte, as insti- cacional exerceu uma influência negativa


tuições governamentais assimilaram e recria- sobre a condição do ensino. Apresenta-se



ram, dando-lhe forma, uma avançada política como um sistema complexo que não faci-



sociocultural do Estado, mas que não se tra- lita a transferência de suas funções, por-


duz em uma política congruente de governo, que dispõe de objetivos múltiplos, ime-



nem na necessária compreensão e aceitação diatos e imprecisos para atender à natu-


reza de seu objeto que é transformar se-


pela sociedade nacional.


res humanos pobres, marginalizados e


Podemos concordar ou não com essa pro-


discriminados.
posta analítica, mas o que não podemos evitar



é, por um lado, imaginar o desenvolvimento Todas essas características condicionam



educacional como um todo com componen- com grande força a forma pela qual o siste-

tes múltiplos e, por outro, definir de onde ○

ma reage às demandas sociais, assimila ou
advirão as tendências decisivas que promovam rechaça inovações e mudanças. Eis a propo-

a mudança educacional para o multiculturalis- sição submetida a debate: no domínio da



mo plural. Do sistema oficial? Das instituições educação, a forma de encarar ou de difundir


uma mudança é tão importante quanto o


que criam a política? Dos movimentos sociais


e étnicos? próprio conteúdo dessa mudança (Lesourne,



1993: 19).

Sistemas educacionais

Reflexões para concluir


diferenciados


Talvez um dos maiores desafios da educação


Sem a perspectiva de desenvolvimento


seja o de dar apoio concreto às alterações

educacional, a análise do sistema educacio-


introduzidas nas práticas educacionais. Sabemos


nal e de seu papel no tempo, do impacto e da


que o ensino modifica os princípios da política


evolução das instituições escolares e de for-


e produz resultados nem sempre compatíveis


mação pode privilegiar as questões de poder


com os princípios. Na minha opinião, uma das

e organização nas cúpulas das instituições


razões principais dessa lacuna reside na ausên-


educacionais, postergando o próprio conteú-


cia ou nas deficiências dos níveis de concreção


do dessa mudança.

do desenho curricular. De fato, as concreções


Os sistemas educacionais latino-ameri-


curriculares são promovidas e produzidas por

canos mostram quatro grandes disfunções


instâncias normativas ou técnicas do sistema


no que se refere à diversidade lingüística e


educacional descentralizado, o que tradicional-


cultural:

mente nunca assegurou a perspectiva e as ne-


1. A condução centralizada do sistema per-

cessidades dos atores diretos da educação.


mitiu a proposta de grandes objetivos, mas


É importante observar que a expressão “di-


revelou-se incapaz de conduzir harmoni-


osamente a mudança, e essa incapacida- versidade lingüística e cultural” esconde uma



de gerou as principais dificuldades que os grande imprecisão no que se refere a seu alcan-

ce e a sua referência teórica. Na realidade, cria


afligem na atualidade. Na realidade, fun-


ciona como um sistema burocrático e a ilusão de que fazemos referência a um campo



hierarquizado, com uma administração bem delimitado de problemas e métodos. Pe-


las pesquisas realizadas, sabemos que os resul-


onipresente que nem sempre compreen-


de as necessidades educacionais da comu- tados significativos se relacionam tanto com o



nidade e dos pais. nível teórico quanto com as técnicas de pesqui-



2. Não se logrou a democratização e a eficiên- sa e as aplicações desses conhecimentos, os


quais convertem a sistematização conceitual


cia do ensino.

16
SIMPÓSIO 1
Educação no contexto da diversidade cultural

em uma tarefa necessária, a fim de explicar a HALE, Ken. On endangered languages and the safeguarding



of diversity. Language, v. 68, n. 1, p. 1-3, 1992.
variedade de casos concretos que compõe a re-


KELLY, Gail. Setting the boundaries of debate about


alidade das sociedades nacionais.


education. In: ALTBACH, Philip; KELLY, G.; WEIS, Lois.


Finalmente, as experiências conflitantes do Excellence in education. Buffalo, New York: Prometheus


multiculturalismo, o aspecto bilíngüe e a inte-


Books, 1985 p. 31-42.


gração das alterações socioculturais converte- LADEFOGE, Peter. Another view of endangered languages.



ram-se em tópicos bastante atuais nas institui- Language, v. 68, n. 4, p. 809-810, 1992.


ções oficiais e em comunidades e organizações LESOURNE, Jacques. Educación y sociedad. Los desafíos 16



del año 2000 . Barcelona: Gedisa, 1993.
sociais. Pouco a pouco, essas categorias vão


MCLAREN, Peter. La escuela como un performance ritual.


dando sustentação a um parâmetro de cidada-


Hacia una economía política de los símbolos y gestos


nia para a sociedade do futuro próximo, em que educativos. México: Siglo XXI, 1995.


se estabelecem novos problemas nacionais e se


MUÑOZ, Héctor. Los objetivos políticos y socioeconómicos


criam soluções recarregadas de valor democrá- de la educación intercultural bilingüe y los cambios que



tico e participativo. No momento, os fenôme- se necesitan en el currículo, en la enseñanza y en las


escuelas indígenas. Revista Iberoamer icana de


nos interculturais, o aspecto bilíngüe e a diver-


Educación , Madrid: Organização dos Estados Íbero-
sidade étnica estão servindo para criar novos


Americanos, 17: 31-50, 1998.

parâmetros para a discussão da reforma da edu-


. (Coord.). Un futuro desde la autonomía y la
cação, novas tendências curriculares do siste- diversidad. Experiencias y voces por la educación en

ma educacional e ações por parte do governo contextos interculturales nicaragüenses. México:


que tendem a oferecer Ensino Fundamental a Xalapa, 2001a. Coleção da Biblioteca da Universidade

todos que dele necessitem. Esses fenômenos Veracruzana.


. Políticas y prácticas educativas y lingüísti-


não apenas enfocam o debate em torno do pa-


cas en regiones indígenas de México. Palestra proferi-


pel das instituições superiores na elaboração de

da no workshop Perspectivas de la Educación Bilingüe


políticas educacionais, mas também sugerem a


en Contextos Interculturales de México. México: Unesco,


questão sobre a responsabilidade que devem out. 2001b.



assumir os diferentes setores da sociedade. MUÑOZ, Héctor; LEWIN, Pedro (Eds.). El significado de la

diversidad lingüística y cultural . Investigaciones Lingüís-



Bibliografia ticas 2. Oaxaca, México: Universidad Autónoma Metro-



politana-Iztapalapa, Instituto Nacional de Antropologia


ALBÓ, Xavier. Competencias para una educación e História – Centro INAH, 1996.

intercultural bilingüe . Documento de consultoria para a SARTORI, Giovani. La sociedad multiétnica . Pluralismo,

Secretaria Nacional de Educação. Bolívia, 1996. Manus- multiculturalismo y extranjeros. Editora Madrid : Taurus,

crito. 2001. p. 31-48.


CÁRDENAS, Víctor H. Desafíos para el futuro de los pro- SECRETARÍA DE EDUCACIÓN PÚBLICA. México en el foro

gramas de la Educación Intercultural Bilingüe, de cara mundial de educación Dakar 2000. México: Dirección

al siglo XXI. Congreso de Educación Intercultural General de Relaciones Internacionales SEP–Unesco,



Bilingüe América Indígena. Antigua, Guatemala, 1995. 2000a.


. Las lenguas indígenas dentro y fuera de la . México Jomtien + 10. Evaluación nacional

escuela. Discurso de abertura. In: II CONGRESO LATI- de “Educación para todos” . México: Dirección General

NO-AMERICANO DE EDUCACIÓN INTERCULTURAL de Relaciones Internacionales SEP, 2000b.



BILINGÜE (1997). Santa Cruz de la Sierra, Bolívia: TOURAINE, A. Iguales y diferentes. In: Unesco. Informe

Dinapel, 1997. mundial sobre la cultura. Cultura, creatividad y merca-



GROS, Christian. Etnicidad, violencia y ciudadanía: algunos dos. Madrid, 1999. p. 54-63.

comentarios sobre el caso latinoamericano. IHEAL–Uni- UNESCO. Nuestra diversidad creativa. Informe de la

versidade de Paris III, Cátedra Patrimonial Ciesas– Comisión Mundial de Cultura y Desarrollo. Versão resu-

Conacyt, 2000. mida, Paris, 1997.













SIMPÓSIO 2

POLÍTICAS PÚBLICAS EM
EDUCAÇÃO INDÍGENA NO BRASIL
Jean Paraizo Alves

Maria Helena Fialho

19
Novos atores e novas




cidadanias: o reconhecimento




dos direitos dos povos




indígenas a uma educação




escolar específica,




diferenciada, intercultural




e bilíngüe/multilíngüe




Jean Paraizo Alves


SEF/MEC ○



Esse trabalho procurará demonstrar como línguas maternas e dos processos próprios de

os entrelaçamentos entre novos atores – or- aprendizagem, bem como o respeito, a valo-

ganizações indígenas e professores indígenas rização e a preservação de suas culturas. Des-



– e políticas públicas têm produzido no Bra- sa forma, passou a ser assegurada aos povos

sil, nos últimos dez anos pelo menos, uma indígenas a prerrogativa de uma educação

nova escola indígena e conseqüentemente escolar intercultural, bilíngüe, específica e



uma concepção de cidadania que, sem abrir diferenciada. Os povos indígenas, de acordo

mão de valores caros a esta, abre espaço para com esses princípios, devem ter acesso, por

o respeito à diferença, possibilitando uma efe- meio da leitura e da escrita, tanto nas línguas

tiva interculturalidade. nativas quanto nas línguas oficiais, aos conhe-



A Educação Escolar Indígena vem se con- cimentos produzidos pelo seu próprio grupo,

solidando na América Latina em estreita re- por outros povos originários e pela sociedade

lação com a reforma do aparelho de Estado, envolvente (cf. Leitão, 1999).



bem como com as reformas educativas nacio- De acordo com Monte, a educação inter-

nais. Em anos recentes, adquiriu uma dimen- cultural bilíngüe possui uma importante base

são política e institucional significativa para em países cuja população indígena apresenta

as diversas etnias que podem ser percebidas peso demográfico significativo, como é o caso

em novas bases jurídicas e em discussões vol- da Bolívia, do Peru, do Equador, da Guatemala



tadas para a organização de currículos das e do México. Em países como o Brasil, a Costa

escolas indígenas e de formação de seus pro- Rica, o Panamá e a Venezuela, a educação


fessores. intercultural bilíngüe passou também a mar-



Estamos assistimos, portanto, ao aumen- car presença. Todos esses países, de uma for-

to da visibilidade da Educação Escolar Indí- ma ou de outra, asseguram em seus discursos



gena, seja por meio da sua inscrição em cons- institucionais e legais o direito a uma modali-

tituições, leis, declarações e convenções de dade específica de educação para as socieda-



organismos internacionais, seja incorporada des indígenas que estão dentro de suas fron-

ao discurso reivindicativo de movimentos in- teiras (Monte, 2000).



dígenas (cf. Muñoz, 1998). Entre inúmeros A educação intercultural bilíngüe passa a

direitos assegurados aos povos originários ter reflexos políticos e legais, principalmente

previstos em documentos de organismos in- a partir dos anos 1980, quando inúmeros pa-

ternacionais, os Estados passaram a prever, íses americanos, reconhecendo o caráter



tácita ou expressamente, o direito ao uso das pluriétnico e multicultural de suas popula-


20
SIMPÓSIO 2
Políticas públicas em Educação Indígena no Brasil

ções, introduziram alterações em seus orde- cepções nativas e as dos não-índios; pressionar



namentos constitucionais e legais. 1 o Estado no sentido de reconhecer de fato a es-



Além disso, pudemos assistir a uma in- pecificidade das escolas indígenas, regulamen-



tensificação das interações entre sociedades in- tando as prerrogativas de que estas deverão


dígenas e não-indígenas, tanto no âmbito na- gozar. Nesse sentido, pode-se afirmar que os



cional quanto no internacional, que acirrou o professores estão constituindo uma nova forma



processo de construção de novas estratégias de de liderança no interior dessas comunidades.3


negociação de direitos e intermediação de con- No Brasil, a Constituição Federal (1988) tra- 21



flitos, contribuindo para a criação de novos ato- çou um quadro jurídico novo para a regulação



res para atuar nessas instâncias e situações.2 das relações do Estado com as sociedades in-



Nas últimas três décadas, houve uma visí- dígenas contemporâneas. Rompendo com uma


vel explosão no número de organizações indí- tradição de quase cinco séculos de política



genas em toda América Latina. Só nos estados integracionista, ela reconhece aos índios o di-



da Amazônia brasileira, Albert menciona a exis- reito à prática de suas formas culturais pró-



tência de 183 organizações indígenas. Para ele, prias. O artigo 231 da Carta Magna afirma que


esse é um fenômeno que tem início, no Brasil, “são reconhecidos aos índios sua organização



principalmente a partir de fins dos anos 1980 e social, costumes, línguas, crenças e tradições,

ganha maior intensidade nos anos 1990. Fato- e os direitos originários sobre as terras que tra-

res internos e externos têm progressivamente dicionalmente ocupam, competindo à União


impulsionado o surgimento dessas organiza- demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos



ções indígenas. No âmbito interno, são apon- os seus bens”.



tadas facilidades na constituição dessas asso- O artigo 210 assegura às comunidades indí-

ciações como pessoas jurídicas, a partir de al- genas, no Ensino Fundamental regular, o uso de

terações no sistema constitucional do país após suas línguas maternas e processos próprios de

1988. Externamente, são mencionadas a exten- aprendizagem, garantindo, ainda, a prática do



são das questões relativas ao meio ambiente e ensino bilíngüe em suas escolas. O artigo 215

aos direitos das minorias étnicas para o âmbito define como dever do Estado a proteção das

global, a reorientação da cooperação interna- manifestações culturais indígenas. A escola tor-



cional para a sociedade civil e para o desenvol- na-se, portanto, instrumento de valorização dos

vimento sustentável e a proposição e a imple- saberes e dos processos próprios de produção


mentação de microprojetos locais (Albert, e reprodução da cultura, os quais formarão a



2001:195-217). base para o conhecimento dos valores e das



Além das organizações indígenas, um novo normas de outras sociedades, possibilitando,



e relevante ator social tem se firmado e renova- com isso, uma efetiva interculturalidade.

do sua importância: o professor indígena. Esse A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Na-

professor tem desempenhado os seguintes pa- cional – LDBEN (Lei nº 9.394/96) determina, em

péis: promover o registro de sua cultura, atu- seu artigo 78, que caberá ao Sistema de Ensino

ando como intermediário cultural entre as con- da União, com a colaboração das agências fe-



1
Nesse particular, duas convenções da Organização Internacional do Trabalho (OIT) foram de suma importância: a Convenção sobre a

Proteção e Integração das Populações Aborígines e outras Populações Tribais e Semitribais de Países Independentes (Convenção OIT nº

107, de 1957), que contém 37 artigos estabelecendo a proteção de instituições, pessoas, bens e trabalho dos povos indígenas, inclusive

com direito à alfabetização em línguas indígenas, e a Convenção sobre Povos Indígenas e Tribais em Países Independentes (Convenção

OIT nº 169, de 1989), que reconhece que cabe aos povos indígenas decidir quais são suas prioridades em matéria de desenvolvimento.

2
Leitão aponta, além da criação de organizações indígenas, a participação no processo eleitoral e o surgimento das primeiras lideranças

encarregadas de intermediar o contato com os não-índios, como é o caso do “cacique”, por exemplo (cf. Leitão, 2001). No que se refere a

esse assunto, Wolf menciona a noção de brokers como de fundamental importância para a compreensão das relações estabelecidas entre

grupos específicos e sociedades nacionais, por meio de agentes que atuam como mediadores culturais que poderão passar despercebidos,

caso cada tipo de grupo ou sociedade seja analisado de forma isolada (cf. Wolf, 2001: 124-38).

3
O Ministério da Educação criou a Comissão Nacional de Professores Indígenas, que tem por finalidade subsidiar a formulação de políticas,

programas e ações na área de Educação Escolar Indígena.



derais de fomento à cultura e de assistência aos entar por novas organizações curriculares ba-



índios, desenvolver programas integrados de seadas nas noções de pluralismo cultural e de



ensino e pesquisa para oferta de educação es- diversidade étnica, o que resulta em concepções



colar bilíngüe e intercultural aos povos indíge- pedagógicas específicas e novos referenciais


nas, com os objetivos de: curriculares.



• proporcionar aos índios, suas comunidades



e povos, a recuperação de suas memórias A escola indígena tem como objetivo a conquis-


históricas, a reafirmação de suas identida- ta da autonomia socioeconômico-cultural de



des étnicas e a valorização de suas línguas e cada povo, contextualizada na recuperação de


ciências;


sua memória histórica, na reafirmação de sua


• garantir aos índios, suas comunidades e identidade étnica, no estudo e valorização da



seus povos, o acesso às informações, conhe- própria língua e da própria ciência, sintetizada



cimentos técnicos e científicos da socieda- em seus etnoconhecimentos, bem como no


de nacional e demais sociedades indígenas acesso às informações e aos conhecimentos téc-


e não-índias. ○
nicos e científicos da sociedade majoritária e das
demais sociedades, indígenas e não-indígenas

O artigo 79 dessa mesma lei, ao afirmar que


(MEC, 1993: 12).


a União apoiará técnica e financeiramente os


sistemas de ensino no provimento da educa-


O Plano Nacional de Educação (PNE), apro-


ção intercultural às comunidades indígenas,


vado pela Lei nº 10.172/01, apresenta, na área


desenvolvendo programas integrados de ensi-


de Educação Escolar Indígena, 21 objetivos e


no e pesquisa, estabelece que as responsabili-


metas que deverão ser perseguidos no próximo


dades originárias da União devem estar com-

decênio. De acordo com as determinações do


partilhadas com os demais sistemas de ensi-


PNE, a coordenação das ações de Educação Es-


no, determinando procedimentos para o pro-


colar Indígena é responsabilidade do Ministé-


vimento da Educação Escolar Indígena e


rio da Educação, cabendo aos estados e muni-


salientando que os programas serão planeja-

cípios4 a sua execução.


dos com a anuência das comunidades indíge-



nas. A Resolução nº 03/99 e as Diretrizes Naci-


A proposta de uma escola indígena diferencia-


onais para a Educação Escolar Indígena (Pare-


da, de qualidade, representa uma grande novi-

cer CEB/CNE nº 14/99) do Egrégio Conselho


dade no sistema educacional do país e exige das


Nacional de Educação normatizaram os prin-


instituições e órgãos responsáveis a definição de


cípios constitucionais e legais acima citados novas dinâmicas, concepções e mecanismos,



criando a categoria da “escola indígena”, a car- tanto para que estas escolas sejam de fato in-

reira específica do magistério indígena, bem


corporadas e beneficiadas por sua inclusão no


como elaboraram referenciais específicos para sistema oficial, quanto para que sejam respei-

essa modalidade de educação. tadas em suas particularidades.



As escolas indígenas, de acordo com o


Referencial Curricular Nacional para as Escolas Assim sendo, para cumprir os princípios e

Indígenas (RCNEI), devem ter as seguintes ca- os objetivos estabelecidos pela legislação e pôr

racterísticas: comunitária, intercultural, bilín- em prática uma política nacional de educação



güe/multilíngüe, específica e diferenciada escolar indígena, o Ministério da Educação


(MEC, 1998). No Brasil, a Educação Escolar In- (MEC) tem se empenhado em desenvolver

dígena proposta tanto por organizações da so- ações e programas caracterizados pela descen-

ciedade civil quanto pelo Estado passa a se ori- tralização, pelo respeito ao processo de lutas e






4
O parágrafo 1º do artigo 9º da Resolução CEB/CNE nº 03/99 dispõe que “os municípios poderão oferecer Educação Escolar Indígena, em

regime de colaboração com os respectivos estados, desde que se tenham constituído em sistemas de educação próprios, disponham de

condições técnicas e financeiras adequadas e contem com a anuência das comunidades indígenas interessadas”.

22
SIMPÓSIO 2
Políticas públicas em Educação Indígena no Brasil

conquistas dos povos indígenas e pelo atendi- ro, tornando-se aptas a transitar com seguran-



mento de demandas que contemplem a educa- ça “em dois mundos e em duas culturas”. 5



ção intercultural e bilíngüe e que visem primor- Assim sendo, torna-se necessário que, nos



dialmente investir na formação inicial e conti- próximos anos, para cumprir o determinado


nuada dos profissionais de Educação Indígena, no artigo 62 da LDBEN, sejam feitos investi-



estimular a produção e a publicação de materi- mentos que possibilitem a formação, em ní-



al didático específico e divulgar para a socieda- vel médio e superior, dos professores índios. 6


de nacional a existência da diversidade étnica, Nesse sentido, é de fundamental importância 23



lingüística e cultural no país. a articulação entre o Ministério da Educação,



Como vimos acima, a Constituição Federal universidades, Secretarias de Educação, orga-



e a atual LDBEN asseguram o uso e a manuten- nizações não-governamentais, associação de


ção das línguas maternas e o respeito às formas professores indígenas e as próprias comuni-



próprias de aprendizagem das sociedades indí- dades, pois essa formação exige, além de uma



genas no processo escolar. O artigo 8º, caput, metodologia específica, profissionais alta-



da Resolução CEB/CNE nº 03/99 afirma o prin- mente qualificados. 7


cípio de que a atividade docente na escola in- Resta ainda salientar a importância da pro-



dígena será exercida prioritariamente por pro- dução de livros didáticos para uso nas escolas

fessores indígenas oriundos da respectiva etnia. indígenas do país, produzidos pelos professo-

Isso exige a elaboração de programas diferen- res indígenas e seus assessores. Uma formação

ciados de formação inicial e continuada de pro- de qualidade deve estar associada à produção

fessores. Essa formação deve fornecer aos pro- e à publicação de material didático que reflita

fessores índios as habilidades necessárias para e respeite a visão de mundo de cada povo in-

a elaboração de currículos e programas especí- dígena envolvido no processo de escolarização.



ficos para as suas escolas para o ensino bilín- Na elaboração desses materiais, os docentes

güe, para a condução de pesquisas, visando à estarão expressando e registrando as diferen-



sistematização e incorporação dos conheci- tes formas de linguagem, partindo de seus co-

mentos e saberes tradicionais das sociedades nhecimentos étnicos e contando com a cola-

indígenas e à elaboração de materiais didático- boração de especialistas com experiência nes-



pedagógicos, bilíngües ou não, para uso nas es- ta atividade.



colas instaladas em suas comunidades, bem O programa de apoio à produção de mate-


como o uso dos conhecimentos universais. A rial didático realiza-se com a publicação dos

escola é percebida por vários povos como o es- materiais didático-pedagógicos elaborados pe-

paço privilegiado em que as novas gerações são los professores índios, durante os cursos de for-

preparadas para enfrentar os desafios do futu- mação, apoiados pelo MEC ou por outros órgãos





5
De acordo com Leitão, “a aprendizagem da escrita da língua materna e dos conteúdos das tradições, na escola indígena, é uma necessida-

de, pois ela pode contribuir para reforçar os vínculos dos jovens com a cultura tradicional e formar uma identidade étnica comprometida com

os interesses da comunidade. Por outro lado, a escola também deve proporcionar o conhecimento da língua oficial e dos conteúdos que

servirão como base para a aprendizagem dos padrões de funcionamento da sociedade envolvente e de conhecimentos técnicos e científicos

especializados [...]” (Leitão, 1999).



6
O artigo 4 o da Resolução CEB/CNE nº 03/97 define que “o exercício da docência na carreira de magistério exige, como qualificação mínima:

I – ensino médio completo, na modalidade normal, para a docência na educação infantil e nas quatro primeiras séries do ensino fundamental;

II – ensino superior em curso de licenciatura, de graduação plena, com habilitações específicas em área própria, para a docência nas séries

finais do ensino fundamental e no ensino médio; III – formação superior em área correspondente e complementação nos termos da legisla-

ção vigente, para a docência em áreas específicas das séries finais do ensino fundamental e do ensino médio. [...] § 2 o A União, os Estados

e os Municípios colaborarão para que, no prazo de cinco anos, seja universalizada a observância das exigências mínimas de formação para

os docentes já em exercício na carreira do magistério”.



7
No que diz respeito à formação continuada, o Ministério da Educação brasileiro está oferecendo o Programa Parâmetros em Ação de

Educação Escolar Indígena. Esse programa busca criar uma cultura de formação continuada no interior das escolas e sistemas de ensino,

bem como fomentar o estudo em grupo, a leitura compartilhada de textos e a reflexão, por parte dos profissionais da educação, acerca de sua

prática docente.

e entidades. Esses materiais passam por uma Bibliografia



análise quanto à qualidade pedagógica, lingüís-


ALBERT, Bruce. Associações indígenas e desenvolvimen-


tica e antropológica, realizada pela Comissão de


to sustentável na Amazônia Brasileira. Povos indíge-


Análise de Projetos de Educação Escolar Indí- nas no Brasil: 1996/2000. São Paulo/Brasília: Instituto


gena/MEC.


Socioambiental, 2001. p. 195-217.


O Ministério da Educação tem fomentado LEITÃO, R. M. Estudantes indígenas em escolas de bran-



ainda a divulgação da temática indígena para a co: expectativas e dificuldades. In: OLIVEIRA, Dijaci


sociedade nacional, buscando, com isso, com- David de et al. 50 anos depois: relações raciais e gru-



pos socialmente segregados. Brasília/Goiânia: MNDH/
bater a discriminação e o preconceito, ainda


Cegraf, 1999.


vigentes, em relação às sociedades indígenas, e


. O papel da educacão escolar na formacão


procurando valorizar a diversidade socio- de lideranças indígenas. 21ª Reunião Nacional da As-


cultural do país. A temática indígena, nessa


sociação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em


perspectiva, deve ser abordada de maneira Educação, setembro 2000, Brasília: DAN/UnB, 2001



que crie condições para a reflexão sobre a ri- (Mimeo).

queza que a diversidade étnica possibilita, apro- ○

MINISTÉRIO DA EDUCACÃO. Diretrizes para a Política
Nacional de Educação Indígena . Brasília: MEC, 1993.
veitando a comporta de troca e aprendizado re-

. Referencial Curricular Nacional para as Es-


cíproco entre os diversos segmentos que cons-


colas Indígenas. Brasília: MEC, 1998.


tituem o país. MONTE, N. E agora, cara pálida? Educação e povos indí-



Assim sendo, estamos assistindo a um pro- genas, 500 anos depois. Revista Brasileira de Educa-

cesso em que as organizações indígenas, junta- ção, Rio de Janeiro, n. 15, set./out./nov./dez. 2000.

mente com a recém-criada categoria dos pro- MUÑOZ, H. Los objectivos políticos y socioeconómicos de

la educación intercultural bilingüe y los cambios que


fessores indígenas, em articulação com instân-


se necesitan en el currículo, en la enseñanza y en las


cias estatais, têm participado da formulação de

escuelas indigenas. Educación, Lenguas, Cultura. Re-


políticas públicas que, vinculadas com as refor-


vista Iberoamericana de Educación, Madrid, n. 17, 1998.


mas educativas, possibilitam a construção de WOLF, Eric. Aspects of group relations in a complex society:

uma nova escola indígena e, portanto, de uma México. Pathways of power: building an anthropology

nova concepção de cidadania.


of the modern world. Berkeley: University of California


Press, 2001.





































24
SIMPÓSIO 2
Políticas públicas em Educação Indígena no Brasil

A Funai e o novo contexto




de políticas públicas em




Educação Escolar Indígena: uma




questão de direito e cidadania




25



Maria Helena Fialho*






Considerando o contexto atual, orientado sores Indígenas em Mato Grosso, nas áre-



pela nova legislação da qual destacamos o De- as de Ciências Sociais, Ciências da Mate-



creto nº 26/91, a Resolução nº 03/CNE/99 e a mática e da Natureza e Línguas, Literatura


e Artes, inicialmente por um período de


Lei nº 10.172, de 9 de janeiro de 2001, a Funai,


por meio do Departamento de Educação, cinco anos. A Funai está também partici-


pando da discussão do 3º Grau Indígena

redefine seu papel como órgão indigenista fe-


em Roraima.
deral, o qual, além de zelar pelos direitos e in-

teresses das comunidades indígenas, estabele- 2. Assistência a estudantes indígenas fora de



ce parceria com as Secretarias Estaduais/Mu- suas aldeias. Atualmente, são mais de 12



nicipais de Educação, organizações indígenas, mil estudantes fora das aldeias, cursando

os níveis Fundamental, Médio e Superior,


ONGs e universidades na maioria das regiões,


esse com mais de 400 universitários. Ape-


desenvolve ações complementares onde as

sar da melhoria do ensino nas aldeias, em


agências ainda estão em fase de implementa-


decorrência da formação/capacitação de

ção da política de Educação Escolar Indígena,


professores, há um grande número de es-


executando o recurso orçamentário contempla-


tudantes indígenas que se deslocam para

do com a aprovação das ações da Educação Es-


centros urbanos para continuarem seus


colar Indígena por meio do programa Etnode-


estudos, uma vez que a maioria das esco-


senvolvimento das Sociedades Indígenas, no Pla- las nas aldeias só atende à 1ª fase do Ensi-

no Plurianual 2000/2003. Essas ações estão or- no Fundamental (1ª a 4ª séries). Esse apoio

ganizadas da seguinte forma:


técnico e financeiro é concernente ao cus-


teio de despesas com os estudos, sendo



que, em geral, refere-se a transporte, aqui-


1. Capacitação de professores das escolas in-


sição de material escolar, uniforme, ali-


dígenas. A Funai é parceira de pelo menos

mentação, hospedagem e, em sua maioria,


treze projetos de cursos de formação para


ao pagamento de mensalidades em univer-


professores indígenas e vem apoiando téc-

sidades particulares.

nica e financeiramente a realização de en-



contros, reuniões, seminários, colóquios, 3. Funcionamento de casas de estudantes in-


congressos e outros, visando à formação de dígenas. Em diversas regiões do país, a



professores indígenas. Além desses even- Funai mantém um total de 34 casas para

tos, a Funai firmou convênio com a Uni- indígenas que estudam em locais distan-

versidade do Estado de Mato Grosso tes de suas aldeias, e essa manutenção



(Unemat), visando formar os 200 profes- corresponde ao pagamento de aluguel,


energia, água, equipamentos, gêneros ali-


sores cursistas indígenas que foram apro-


vados no vestibular do Projeto de Cursos mentícios, material de higiene e limpeza e



de Licenciaturas Específicos para Profes- material escolar. Incluem-se nessa ação o







* Especialista em Línguas Indígenas Brasileiras, mestranda em Lingüística na UnB e chefe do Departamento de Educação da Funai.

acompanhamento e o desenvolvimento de zes, o acompanhamento pedagógico nes-



projetos específicos, os quais já estão sen- sas escolas ainda é precário. Falta pessoal



do viabilizados em alguns locais. Uma qualificado para assessorar os professores


grande preocupação do Departamento de na construção de uma metodologia de en-



Educação é com o ingresso desses estudan- sino coerente com as discussões realizadas


tes em escolas não-indígenas, levando em nos cursos de formação e que reconheça a



consideração os seguintes fatores: esses escola como um espaço de afirmação,



alunos se submetem a programas escola- revitalização e fortalecimento da cultura e


res que não estão associados à realidade da língua da etnia em questão e não so-



sociocultural e econômica vivenciada em mente como o lugar onde se “ensina” ou



suas comunidades; muitos não concluem se “aprende” a ler e escrever.


o ano letivo, desmotivados pela falta de


E, partindo do fato de que as secretarias


assistência pedagógica e financeira en- vivem situações diferenciadas, algumas já


quanto permanecem na cidade e pela difi-


estando mais envolvidas com a nova tare-

culdade de adaptação à escola; por ficarem


fa e outras em fase de estruturação, o De-
distantes de seus familiares e não partici- ○

partamento de Educação desenvolve ações


parem das atividades diárias da aldeia, ou

complementares nas regiões que ora apre-


seja, das festas, dos rituais e de tantos ou-


sentam as maiores demandas, buscando


tros importantes momentos sociais de seu atender da melhor forma possível às rei-

grupo étnico. E, por fim, grande parte dos


vindicações das respectivas comunidades.


que se formam não tem chance de traba-


Há um aumento expressivo do número


lho no mercado nacional, em face do pre-


conceito e da discriminação por parte da de alunos nas escolas nas aldeias e, consi-

derando a especificidade de cada etnia,


sociedade envolvente; e, ao retornarem


para suas comunidades nem sempre têm bem como os aspectos constitucionais, a

oportunidade de colocar em prática os Funai (em parceria com algumas secretari-


as) está viabilizando a implantação da se-


novos conhecimentos adquiridos. Por es-


ses e outros problemas decorrentes dessa gunda fase do Ensino Fundamental nas al-

deias que já possuem professores indígenas


nova convivência, torna-se emergencial a


com formação em Magistério específico, as-


implementação de ações que garantam a


oferta de cursos, de propostas profissiona- sessorando as escolas na elaboração de pro-


postas que respeitem os princípios da Edu-


lizantes a partir do contexto indígena no


cação Escolar Indígena, cujo instrumento


interior de suas terras, conforme prevê a


legislação referente aos direitos indígenas, teórico são os preceitos e os avanços da le-

gislação e das diretrizes vigentes. Por meio


e que também propiciem acesso às infor-


de convênios com o Fundescola, a Funai


mações e aos conhecimentos universais


para que o estudante indígena possa vem garantindo a construção de algumas


escolas, por exemplo, em Sergipe, Alagoas


interagir com o mundo que o cerca.


e, brevemente, na Bahia.

4. Funcionamento das escolas nas comuni-


5. Edição e distribuição de material didáti-


dades indígenas. Existem mais de 1.600 es-


colas e boa parte delas encontra-se com co específico. Em parceria com outras

agências, a Funai tem publicado diversos


infra-estrutura inapropriada e preca-


materiais didáticos específicos em línguas


ríssima, sem equipamentos e sem materi-


al escolar. Necessitam de urgentes refor- portuguesa e indígena, produzidos por


professores, assessores e alunos indígenas,


mas ou novas edificações. Muitas dessas


escolas ainda contam com o professor não- para uso nas próprias escolas e/ou na co-

indígena atuando em sala de aula, o qual munidade. Tem incentivado os professo-


res e alunos indígenas a produzirem ma-


em muitos casos, por falta de formação lin-


güística, antropológica ou em outras áreas terial para a publicação periódica de jor-


nais e revistas dos quais constam relatos,


relativas ao contexto, acaba por reprodu-


experiências, dificuldades, artigos e outros


zir uma prática adquirida e vivida na es-


cola onde foi formado. Na maioria das ve- assuntos didático-pedagógicos relaciona-

26
SIMPÓSIO 2
Políticas públicas em Educação Indígena no Brasil

dos à arte e à cultura, para circulação en- dos temas pontuais, como: aspectos da legali-



tre as escolas nas aldeias. dade desde a Constituição de 1988; os princípi-



Com o objetivo de otimizar a aplicação os da Educação Escolar Indígena (bilingüismo,



dos recursos dessa ação e reordenar a gran- interculturalidade, diferença e especificidade)


de demanda de materiais apresentados dentro das diretrizes da política pública da Edu-



para publicação, o Departamento definiu cação Escolar Indígena; demandas locais; PPA



alguns critérios essenciais à publicação, en- – Plano Plurianual 2000/2003; fatores relevan-


caminhando as devidas orientações aos or- tes apresentados no Referencial Curricular Na- 27



ganismos interessados para que sejam apre- cional para as Escolas Indígenas (RCNEI); cur-


sentados os dados necessários à aprovação


rículos; temas transversais; e, dessa forma, de-


do material pelo Conselho Editorial, orga-


sencadeou uma avaliação coletiva da atuação


nizado na própria instituição, com técnicos
da Funai no processo, tanto em nível central


e especialistas experientes nessa área.


como regional. A continuidade da referida


Os critérios estabelecidos, entretanto,


capacitação será por meio de minicursos em


buscam garantir uma publicação de mai-


Antropologia, Lingüística, Sociolingüística, Po-
or qualidade, com a participação direta da


lítica Indigenista e Fundamentos Pedagógicos,


comunidade indígena, seja pela via esco-

áreas importantes para o trabalho de Educação

lar, seja por outros autores também indí- ○

genas, desde que o material sirva para uti- Escolar Indígena, inclusive com propostas de

lização pela escola e/ou pela comunida- cursos de graduação e/ou especialização a dis-

de leitora. tância, em parceria com universidades, no mo-



mento já em fase de articulação.



A Funai conta hoje com uma equipe de pro- Fazem parte da linha de pesquisa da Funai:

a Documentação e Descrição de Línguas Indí-


fissionais que se vem especializando por meio


de cursos em universidades e outras institui- genas; e as Políticas Educacionais de Revita-



ções e por meio de experiências indigenistas lização de Línguas Indígenas. Assim, a Funai

acumuladas ao longo dos anos de convívio desenvolve há cinco anos um Projeto de


Revitalização de Língua Indígena que visa o


com as sociedades indígenas. Esse quadro é


formado por doutores, mestres, mestrandos resgate cultural relacionado a atividades de



nas áreas de Educação, Lingüística, Antropo- auto-sustentação, meio ambiente e auto-esti-



logia e História. Conta, ainda, de forma efeti- ma do cidadão indígena.


No que se refere à formação continuada do


va, com o apoio técnico especializado, em Ar-


quitetura Indígena, de um arquiteto e um en- professor indígena, existem questões urgentes



genheiro civil da Funai, que se especializaram que precisam ser repensadas e mais bem dis-

nesse tipo de construção, o que muito tem va- cutidas, especialmente o contexto de diversida-

de sociocultural, o multiculturalismo, os prin-


lorizado e reconhecido os padrões e/ou as so-


luções arquitetônicas de cada etnia. cípios da interculturalidade, a diferenciação, o



São esses especialistas que atuam na asses- bilingüismo e a especificidade, os quais são

soria e na docência de cursos de formação para importantíssimos e necessários ao processo, e


cujo valor semântico, todavia, muitas vezes não


professores, assessoram organizações indígenas


e estão contribuindo de forma competente para passa de palavras-chave para os agentes que as

a melhoria desse processo. utilizam. Existem casos em que as propostas



Além disso, esse quadro especializado está desenvolvidas nessa formação são descontex-

promovendo a capacitação/formação dos de- tualizadas e, conseqüentemente, refletem uma



mais técnicos em educação intercultural que prática em que o período de formação não tem

atuam nos setores e/ou seções de educação das uma interface com a realidade escolar e a de-

unidades regionais da Funai e, no segundo se- manda das comunidades indígenas envolvidas.

mestre de 2000, realizou encontros regionais, Não se pode correr o risco de viabilizar a for-

contemplando todas as regiões que possuem mação do professor apenas para atender às exi-

escolas indígenas. Na ocasião, foram trabalha- gências legais e, sim, possibilitar que esse pro-

fissional seja pesquisador e autor de sua pró- atendimento à educação em suas terras. A todo



pria história, um interlocutor da comunidade, momento, informamos sobre as mudanças de



se considerarmos que escola e comunidade não papéis institucionais; apresentamos a legislação



são separadas e estanques, porém constituídas vigente, principalmente as diretrizes e metas,


numa única base socioeconômica e cultural, que são claramente atribuídas aos estados. Ade-



como uma luta pela auto-afirmação étnica e mais, intercedemos junto das Secretarias, su-



pela conquista da autonomia indígena. gerindo encaminhamento para os problemas


Vale ressaltar que a Funai, especificamente


identificados ou propondo parceria.


o Departamento de Educação, não tem inten- Portanto, entendemos que a implementa-



ção de atropelar ações de nenhuma outra insti- ção da política educacional para os povos indí-



tuição, muito pelo contrário, seu desejo é sem- genas é um processo longo e demorado, e que,


pre o de desenvolver um trabalho em parceria no entanto, as esferas competentes devem as-



e o de atender às reivindicações e necessidades sumir realmente o que regulamenta a lei. Cabe



das organizações indígenas, dos professores, destacar que a Funai, no seu papel institucio-


dos estudantes e das lideranças indígenas por ○
nal de zelar pelos direitos e interesses das co-
uma educação de qualidade. munidades indígenas, e compromissada com as

A Funai continua sendo, para os indígenas, sociedades indígenas, vem exercendo junto

um centro de referência, apoio, consulta e arti- dessas outras esferas a parceira, o apoio finan-

culação, dada a sua longa trajetória indigenista. ceiro, a assessoria técnica em cursos para pro-

As demandas são levadas tanto às regionais fessores e técnicos, disponibilizando os conhe-



como ao próprio departamento. São constan- cimentos adquiridos nessa prática de pesquisa

tes as solicitações de organizações indígenas, e na reelaboração de conceitos construídos com


professores, estudantes e lideranças por melhor


o saber indígena.














































SIMPÓSIO 3

EDUCAÇÃO, DIVERSIDADE
CULTURAL E CIDADANIA:
OS POVOS INDÍGENAS E A ESCOLA
Inge Sichra

29
Educação, diversidade cultural




e cidadania Considerações




sobre a educação na Bolívia






Inge Sichra*





Resumo






As relações entre povos indígenas e o Esta- do processo de subordinação e “cidadania” dos


do na Bolívia nos permitem entender a inter- povos indígenas andinos, oferece uma visão atual



culturalidade como um espaço de permanente do plurilingüismo e da multiculturalidade da so-
○ ciedade andina boliviana e indica certos riscos da
conflito em torno de temas como identidade ét- ○

nica, direito e diferença, afirmação cultural, ter- educação intercultural bilíngüe oferecida pelo Es-

ritório e nação. Esse conflito cristaliza-se prin- tado. Concluímos que só um enfoque de educa-

cipalmente na educação porque, “mais que uma ção intercultural de transformação poderá fazer

esfera pedagógica, ela é uma instituição políti- frente ao desafio da igualdade na diferença. Num

ca, social e cultural, um espaço de construção e plano mais concreto, resgatamos, também, algu-

reprodução de valores, atitudes e identidades e mas experiências desenvolvidas na área da forma-



do poder histórico-hegemônico do Estado” ção de formadores, no nível do Ensino Superior,



(Walsh, 2000: 165). que poderão ser levadas em consideração em pro-


Esta dissertação examina os marcos históricos cessos de formação de professores.







to o problema da erosão de terras que assola a


Os povos nativos:

Bolívia. Embora no momento da proclamação da


desenvolvimento histórico de independência três quartos de todas as terras do



país pertencessem a comunidades indígenas, já


sua singularidade lingüística

em 1847, metade de suas terras férteis estava em


e cultural

mãos privadas (Pando, 1972: 913). Naquele ano,


a expansão da propriedade sob o amparo de uma



ideologia liberal de fortalecimento oligárquico


O espoliamento de terras

estava em seu auge. Era imperativo proteger-se e


das comunidades indígenas


lutar pela propriedade tradicional e aprender a


A luta pela escolarização indígena nos tem- ler e escrever em castelhano parecia ser um re-

pos republicanos da Bolívia tem estado associa- quisito fundamental.



da à luta pelo direito à terra, à necessidade de A escola indigenista “castelhanizante” que



munir-se de ferramentas para recuperar terras os índios do século XIX reivindicavam repre-

cujos títulos pertenciam a comunidades indí- sentava um meio de se deter o espoliamento



genas ou à obtenção de títulos de propriedade de terras ancestrais e promover a justiça so-



para terras que ocupavam. cial. “É importante assinalar que, no período



A erosão do direito à terra antecede em mui- de 1825 a 1870, as populações indígenas do







* Assessora, coordenadora de cursos de mestrado e docente na área da linguagem do Proeib Andes. As opiniões expressadas neste docu-

mento são de inteira responsabilidade da autora e não representam, necessariamente, as opiniões da GTZ ou da Universidade Maior de San

Simón, contrapartidas do Proeib Andes.


30
SIMPÓSIO 3
Educação, diversidade cultural e cidadania: os povos indígenas e a escola

altiplano e do vale exigiram educação para eli- trões diziam que o “único índio bom era o índio



minar o analfabetismo, que representava sua morto” (CSUTCB, 1991: 2).



meta mais urgente. A idéia era que a unifica-



ção da sociedade pela leitura e escrita em Nacionalismo para civilizar o índio


castelhano promoveria a igualdade entre as di-


Com a revolução de 1952, rebelião indígena


ferentes raças e grupos sociais” (Mesa et al.,


contra os latifundiários que inseriu o Movimen-


1999: 423).


to Nacionalista Revolucionário (MNR) no cená- 30
Surge, a partir daí, a identificação da esco-


rio político, propôs-se a criação de uma só na-


la com a aprendizagem do castelhano e a equi-


ção com uma só identidade. A história oficial


valência da aprendizagem do castelhano com


fala da opressão colonial do boliviano pela co-


o aprender a ler e escrever. Essa dupla equa-
roa espanhola, mas não do índio. O indígena


ção imprimiria uma característica inconfundí-


devia ser absorvido por todos os bolivianos em


vel à escola boliviana em toda a sua história.


nome de um Estado homogêneo. Assim, a es-


Até hoje, a escola “para todos” é vista como


colarização universal e gratuita devia ter a meta


símbolo de igualdade na sociedade e difusora
de “bolivinizar” os índios, ou seja, ensiná-los a


da leitura-escrita em castelhano como instru-


ler e escrever o idioma oficial do Estado, ensi-

mento de defesa.


○ nar-lhes coisas sobre seu país e fazê-los ter or-
gulho dele. O código educacional de 1955 esta-
A mestiçagem desafia

beleceu os sistemas de educação rural e urba-


a separação de raças

na com o claro objetivo de dar atenção especi-



No século XX, surge na Bolívia uma corren- alizada à população indígena, visando à sua

te mestiça que luta para escolarizar o índio com


transformação e “civilização”. O objetivo de


o intuito de “civilizá-lo” por meio da “castelha- mestiçagem era o mesmo da escola indígena de

nização” e alfabetização, para que ele possa in- origem mestiça, mas nesse caso como uma

tegrar-se à sociedade nacional. Ela defende a


obrigação assumida pelo Estado.


idéia de que a educação deveria preparar todos



os cidadãos, inclusive os índios, para se “encai-


Transformações em curso

xar” na nova nação. A intenção era transformar


o índio (que ainda era chamado por esse nome), Diante da ausência de espaço para o

incorporá-lo ao mercado e “libertá-lo” de sua pluralismo interno na agenda do discurso mo-


dernista, da ampliação da economia de merca-


condição inferior. A Warisat’a, a escola ayllu em


do e da afirmação da idéia de nação como algo


La Paz (1931-1939), com todo seu esforço para


ser um instrumento político de transformação comum e unificador dentro de um espaço



estatal e de legitimação do movimento indíge- territorial específico, as organizações indígenas


começam a tomar consciência de sua cultura


na, das autoridades tradicionais e do direito à


como elemento de luta política, “contestando


terra (Zalles, 2000: 142), foi criada a partir des-


sa corrente mestiça de “salvação” (Howard- um desenvolvimento que não beneficiou os in-



Malverde e Canessa, 1995: 232). Essa escola dígenas e uma sociedade que os discriminou em

decorrência de sua diversidade cultural”


indigenista desafiava a rígida divisão de raças


(Amadio, 1989: 430).


com o objetivo de promover a assimilação pela


“castelhanização”: A ação contestatória é mais evidente no



âmbito político, em que as instâncias indígenas


organizadas exigem um projeto contra a assi-


Naqueles tempos, os latifundiários, os patrões


milação estatal. Em setembro de 1990, uma


e seus lacaios não permitiam que nossos ante-


passados aprendessem o que quer que fosse. Marcha pelo Território e pela Dignidade, orga-

Eles afirmavam que “um índio letrado era um nizada por povos indígenas dos departamentos

índio rebelado”. Por isso havia muita repressão, amazônicos de Pando e Beni – as chamadas ter-

prisões e agressões contra lideranças que tenta- ras baixas (tierras bajas) da Bolívia –, percorreu

vam estabelecer escolas secretamente. Os pa- o país das planícies até o altiplano e forçou o

governo de Jaime Paz Zamora (1989-1993) e a cesso educacional deverá garantir a igualdade



população andina do país a se conscientizarem de oportunidades e uso, e nenhuma delas terá



da existência desses povos indígenas e de suas um tratamento preferencial, de modo que as



exigências territoriais. O Estado ratificou, em línguas maternas gozem do mesmo status que


1991, o Convênio nº 169 da OIT sobre povos in- o castelhano” (CSUTCB, 1991: 20).



dígenas e promulgou a respectiva lei. Além dis- No que se refere à característica intercultural



so, reexaminou sua política, concedeu direitos da educação, a proposta estabelece que:


territoriais a algumas etnias amazônicas e co-



meçou a falar em unidade na diversidade, igual- O currículo será intercultural e, portanto, aber-



dade na diferença e integração com respeito. to e voltado à afirmação da identidade cultural


e social dos educandos e à consolidação da cul-


Esse processo culminou, em 1994, com a intro-


dução de mudanças na Constituição Política do tura nativa das crianças [...]. Essa afirmação cul-



Estado, que passou a reconhecer a Bolívia como tural permitirá que a criança valorize sua cultu-


ra, desenvolva um maior respeito próprio e afir-

um país multiétnico e pluricultural. No artigo


me sua identidade, tornando-se um indivíduo
171 da atual Constituição, lê-se o seguinte: ○

que respeita e tolera as diferenças culturais e lin-


güísticas existentes no país (CSUTCB, 1991: 21).


Serão reconhecidos, respeitados e protegidos,


no âmbito da legislação, os direitos sociais, eco-



nômicos e culturais dos povos indígenas que vi- Após quatro anos de trabalho prévio e com

base no Projeto de Educação Intercultural Bi-


vem no território nacional, especialmente o di-


reito às suas terras comunitárias de origem, ga- língüe, co-patrocinado pelo Unicef e pelo Mi-

rantindo-se o uso e o aproveitamento susten- nistério de Educação, o Estado boliviano em-



táveis dos recursos naturais nelas existentes e barcou na Reforma Educacional, na Lei nº

sua identidade, valores, línguas, costumes e 1.565, promulgada no governo de Gonzalo



instituições. Sánchez de Lozada em 1994 e atualmente em



vigor. Essa reforma unificou o sistema educa-


Nesse período, foram promulgadas outras


cional nacional e promoveu uma educação


leis enquadradas no postulado do respeito à di-


intercultural em todo o país e bilíngüe nas zo-

versidade e à participação cidadã, como a Lei


nas nas quais predomina uma língua indíge-


da Participação Popular (1994), a Lei Florestal e


na. Ela se baseou numa ampla participação


a Lei INRA (ambas de 1996).


social, envolvendo desde o nível local até o


No âmbito educacional, a Confederação


nacional, por meio de juntas escolares e con-

Única dos Trabalhadores Rurais da Bolívia


selhos, e promoveu a flexibilização dos calen-


(CSUTCB), a maior organização sindical do


dários escolares de acordo com as diferentes


país, apresentou, em 1989, sua proposta edu-


condições regionais. Além disso, assumiu a

cacional, baseada na constatação de que “não


heterogeneidade sociocultural do país num

podemos mais permitir que a escola continue


ambiente de respeito e tolerância, visando a


tirando nossos filhos e filhas do campo, mos-


“fortalecer a identidade nacional, exaltando os


tre-lhes o espelho da cidade e os faça sentir ver-


valores históricos e culturais da Nação bolivi-

gonha de sua própria história, língua e cultura”


ana em sua enorme e diversificada riqueza


(CSUTCB, 1991: 4).


multicultural e multirregional” (Ministerio de


Com base num amplo diagnóstico da situa-


Educación, Cultura y Deportes, 1998: 11).


ção da educação escolar básica, a Confedera-


ção propôs a educação intercultural bilíngüe


Transformações em curso?

como um modelo educacional adequado para



promover melhorias na qualidade de vida dos A minoria dominante percebe o trabalhador



povos indígenas. Quanto à característica bilín- rural como improdutivo e atrasado, como um

güe da educação, ela se posicionou da seguinte obstáculo à modernização. Os trabalhadores



maneira: “O tratamento dado a essas línguas rurais e seu modo de vida representam tudo o

(línguas nativas e castelhano) em todo o pro- que o discurso dominante procura superar. O

32
SIMPÓSIO 3
Educação, diversidade cultural e cidadania: os povos indígenas e a escola

Estado impulsiona a transferência tecnológica nalmente, existirão para eles próprios” (Ribei-



para transformar o meio rural e cria uma nova ro, 1989: 56).



lei de terras que permite a comercialização do As culturas indígenas representam o orgu-



chamado bem inerte (bien inerte, nas palavras lho da Bolívia. Elas têm conquistado espaço nas


do presidente Gonzalo Sánchez de Lozada, capitais e nos teatros e tornam-se produto de



1993-1997) na Bolívia. O consumismo é estimu- exportação quando estão devidamente “folclo-



lado pelos meios de comunicação, seguindo a rizadas” na forma de música e dança. Já os in-


máxima de Galeano: “quem não compra não dígenas são... um problema. 32



existe e quem não tem não é”. Desde o ano passado, a direção da CSUTCB,



A identificação da singularidade é estabe- liderada por Felipe Quispe Huanca, vem promo-



lecida por dois conjuntos de sistemas, um sis- vendo, por meio de ações políticas, uma revi-


tema de remanescentes culturais obsoletos e são do conceito de “indígena” na sociedade



um sistema de carências (Varese, apud López, boliviana, exigindo que o Estado assegure igual-



1996: 64). Por um lado, a economia de subsis- dade de condições econômicas e sociais ao



tência, baseada num sistema de reciprocida- povo aimara. Sem entrar no mérito de suas po-


de com forte controle social, o agrocentrismo, lêmicas ações e intervenções, o senhor Huanca



a personificação e deificação da natureza, a promoveu, em todo o país, uma discussão em

concepção cíclica do tempo e as demais carac- torno do espaço a ser ocupado pelos povos na-

terísticas culturais andinas não podem gerar a tivos. Sem dúvida alguma, ele trouxe à baila...

mesma modernidade gerada pelo mundo oci- um problema.



dental; por outro lado, as províncias com mai-



or população indígena são tipificadas numa es-


Por trás da reforma educacional

cala graduada, enquadrada na categoria de



“pobreza”, rótulo imposto com o objetivo ób- As reformas da década de 1990 poderiam

vio de justificar ações desenvolvimentistas por implicar uma transformação radical de atitudes

parte dos financiadores que dirigem os desti- e uma afirmação do indígena, mas, acima de

nos do Estado. tudo, poderiam promover uma mudança efeti-



Em vez de se conceitualizar a cultura dos va no sistema nacional de educação. A reforma



povos indígenas como um recurso, estabele- educacional boliviana teve reconhecimento



cem-se, em primeira instância, suas deficiên- como modelo regional. No país como um todo,

cias, que resultam justamente da alienação à gerou ceticismo nos mesmos grupos que reivin-

qual ela foi exposta. É contraproducente essa dicavam uma educação inclusiva, que respei-

identificação com a carência que os próprios tasse a heterogeneidade. Qual é o interesse do



povos indígenas chegam a assumir: afirmar o Estado em considerar o significado histórico,


existente é, como os psicólogos e pedagogos já social, econômico e político da diferença cul-



descobriram há muito tempo, o ponto de par- tural e em construir a interculturalidade – não



tida para qualquer intenção séria e efetiva de apenas entre indivíduos, mas também entre

aprendizagem, desenvolvimento, mobilização, suas estruturas e instituições sociais, políticas


por mais subjugada e alterada que a cultura de e jurídicas? Não haveria uma contradição cons-

um povo possa estar. tante entre a demanda reivindicativa dos povos



Darcy Ribeiro nos fala de povos indígenas que enfrentam discriminação, racismo e desi-

como testemunhas, povos que dão testemunho gualdade e o léxico oficial da interculturalidade

do que conservaram deles próprios, das altas como algo que o Estado se compromete a fo-

civilizações que prenunciam como será o futu- mentar em âmbito nacional?



ro: “Uma vez libertos da opressão representada Uma reforma educacional como a bolivia-

pela expectativa de assimilação dos Estados na poderia também implicar uma maior inci-

nacionais e por todas as formas de repressão dência e funcionalidade do esquema de domi-



utilizadas contra eles, emergirão para as tare- nação, em vez de sua transformação. As orga-

fas de auto-reconstrução como povos que, fi- nizações indígenas percebem o caráter instru-

mental e mediador dos planos e programas; as Além do ideal constitucional



bases indígenas de algumas organizações iden-


de uma Bolívia multilíngüe


tificam seu objetivo oculto de minar a cultura


1
e multicultural


dos povos indígenas e dominá-los lingüisti-


camente, usando inicialmente sua língua ma-



terna, já que, tradicionalmente, a escolarização


A camisa-de-força da educação


era um cenário privilegiado para o glotocídio


(Green, 1996). intercultural bilíngüe



Inicialmente uma vitória, o caráter de polí-


A educação bilíngüe, considerada como um


tica estatal da educação intercultural bilíngüe modelo educacional adequado à diversidade lingüís-



(EIB) torna-se um “problema sério e permanen- tica, fica enriquecida em seu enfoque mediante a in-


te com efeitos práticos em propostas organiza-


clusão do aspecto intercultural que leva em conside-


cionais, porque as comunidades resistem, por


ração a pluralidade de conhecimentos e manifesta-


mais que a proposta seja boa, a qualquer pro- ções culturais e coloca “um educando concreto, de


grama do Estado” (Green, 1996: 1-2). Esse aler- ○

carne e osso, e não um construto teórico, no centro


ta das lideranças indígenas colombianas, ex-

da reflexão pedagógica” (López, 1994: 9).


presso no II Congresso Latino-Americano de Advoga-se um modelo educacional basea-



Educação Intercultural Bilíngüe de Santa Cruz do na demanda dos povos indígenas, das comu-

de la Sierra, Bolívia, em 1996, resume o proble- nidades de base (a partir da Conferência Mun-

ma: a desconfiança inerente em relação a qual-


dial sobre Educação para Todos, realizada em


quer ação do Estado, gerada pelo temor de que Jomtien em 1990) e não, como havia ocorrido

seus propósitos não correspondam às intenções até então, baseado em propostas elaboradas em

e às demandas dos povos indígenas, conside-


escritórios ministeriais, tendo como pano de


rando que historicamente isso nunca aconte-


fundo a política estatal predominante. A diver-


ceu nesse lado do mundo. “Quando se pensa no sidade cultural e lingüística começa a ser vista

Estado”, afirma Bourdieu, “suspeitar até demais como uma riqueza e não como um problema,

é sempre pouco [...]” (Zambrano, 2000: 158).


uma possibilidade em potencial de que o alu-


Surgem, então, vozes de alerta sobre um


no, enraizado em seu meio ecológico, social,


novo modelo de dominação pós-moderna es- cultural e lingüístico imediato, possa ser con-

trategicamente promovida por meio do reco- frontado com outras realidades e manifestações

nhecimento da diversidade de múltiplos po-


e enriquecer-se com esse conhecimento.


vos indígenas à custa da unidade política de


No entanto, muitos grupos questionam se a


organizações de trabalhadores rurais como a tolerância e o respeito que deveriam sustentar



CSUTCB, de caráter nacional (Green, 1996; esse modelo de educação e o diálogo intercul-

Zizek, 1998; Walsh, 2000), e sobre a divisão e a


tural e interétnico que ele poderia propiciar se-


desmobilização geradas pela nova participação


riam possíveis na Bolívia. Hornberger e López


política partidária ( Walsh, 2000). Inicialmen- (1998: 208) formulam esse questionamento da

te, no entanto, a suspeita surge no contexto seguinte maneira:


neoliberal, no qual predomina a lógica do



mercado globalizado que “prepara as pessoas


Specifically, there are tensions and contradictions


para um mercado de trabalho destinado a um inherent in transforming what has been and con-

grupo privilegiado – ao qual a maioria não terá tinues to be a tool for standardisation and

acesso – enquanto esvazia o restante da oferta


national unification into, simultaneously, a


de trabalho” (Zambrano, 2000: 158). vehicle for diversification and emancipation.








1
Em uma população de aproximadamente 6,4 milhões de pessoas, correções aplicadas ao censo de 1992 por Xavier Albó (1995, v.1, p. 19)

indicam que 38% delas usam o idioma quéchua, 26% usam o idioma aimara e 41% só usam o castelhano.

34
SIMPÓSIO 3
Educação, diversidade cultural e cidadania: os povos indígenas e a escola

O próprio caráter da escola concebida como dagogias e aos professores estabelecidos pelo



instituição fechada, como instrumento do Es- sistema estatal e questiona o avanço em dire-



tado e da ordem mundial a serviço da hegemo- ção à construção de um novo currículo amplo,



nia, suscita dúvidas. com base no eixo central da escola e da leitura-


Como a educação intercultural bilíngüe escrita, por tratar-se de um discurso circular: a



manteve as características da escola, a cultura flexibilidade dos currículos só é concebida no



indígena foi submetida a uma camisa-de-força contexto de uma escola, com espaço e tempo


que tende a desvirtuá-la e até desintegrá-la. segmentados. 34



Green (1996) fala da “fatalidade” da EIB em de- No caso da Bolívia, muitos professores que



corrência de suas características semelhantes às trabalham em escolas públicas lidam, em pri-



da escola de sempre: meira instância, com jovens que aspiram à as-


• professor formado ao longo de anos de re- censão social e a deixar para trás sua origem



clusão em instituições centralizadas e aca- rural e linhagem indígena. Ainda que mal re-



dêmicas com a missão de transmitir conhe- munerados e sem prestígio na sociedade domi-


cimentos;


nante, os inspetores educacionais ocupam um


• aula que reúne as crianças durante deter- espaço de poder como organismo sindical em



minadas horas em espaços fechados entre constante processo de reivindicação trabalhis-

quatro paredes; ta junto ao Estado. Por outro lado, no que se



• currículo estruturado, sistemático e com- refere ao seu posicionamento individual, o pro-


partimentalizado, estabelecido com o intui- fessor tipicamente não faz parte da comunida-

to de promover uma aprendizagem dirigida de. Ele se “estabelece” nela temporariamente,



a um fim específico ou purposeful learning enquanto aguarda sua transferência para esco-

behaviour; las situadas num vilarejo mais imponente, para



a capital da província e, finalmente, para a ca-


• horários e cronogramas fixos;


pital do departamento. Talvez como resquício


• ênfase no desenvolvimento de habilidades


de sua formação nos Institutos Normais regi-


cognitivas;

dos pelo código educacional de 1955, e consi-



• intermediação da escrita e da abstração.


derando sua motivação para optar por essa pro-

fissão, o ressurgimento étnico da década de


Se levarmos a sério a proposta da intercul-


1990 não “vingou” entre os professores.


turalidade discutida em todos os âmbitos, e se Por outro lado, a reforma educacional esta-

a educação intercultural pretende estender uma belece um currículo de vigência nacional (ou

ponte entre diferentes culturas, precisamos


“tronco comum”) e um currículo local (ou “ra-


aceitar, também, o fato de que a educação


mos complementares”) elaborado regional-


intercultural é qualitativamente diferente. mente com o aval de juntas escolares dirigidas



pelo diretor de cada núcleo educacional e que


Podemos concordar apenas parcialmente que a


deve ser aprovado pelas instâncias educacionais


Educação Intercultural Bilíngüe tornou-se um


estatais. Em alguns casos, esse currículo regio-


instrumento de libertação, de afirmação étnica e


nal começa a ser elaborado por autoridades

de facilitação de relações interculturais, porque,


educacionais a partir de levantamentos de ne-


embora tenha isolado outras propostas aberta-


cessidades básicas de aprendizagem desenvol-


mente integracionistas, ela persistiu em cortar e


deixar de lado laços com as raízes, com a sabe-


vidos pelos mesmos professores sobre os quais

falamos antes! Com exceção de alguns conteú-


doria dos velhos e com a cosmovisão dos povos...


dos mínimos, é provável que um currículo ge-


Podemos afirmar nesta ocasião que, a menos que


nasça da raiz, a educação – e qualquer projeto rado dessa maneira tenha muito pouco de con-

político-cultural – não serve (Green, 1996: 1). teúdo próprio.


Mais uma vez, o Estado é que define o que,



Green denuncia a falta de senso crítico da como, onde, quando e com quem ensinar, sem

EIB em relação à escola, aos currículos, às pe- permitir o desenvolvimento de outras opções

ou programas educacionais contestatórios no ência comum da nação” (Dave, apud Bourdieu,



nível básico ou da formação de docentes. 1991: 49). Assim, leva a cabo uma missão



civilizadora, na qual a escola é a “capela da



Apoiando o caráter universal que a educação modernização” (Howard-Malverde e Canessa,


deve ter, é inquietante observarmos que embo- 1995: 234).



ra aceitemos o fato de que existem outras A escola é um elemento a mais do sistema


cosmologias, outras éticas de saber, outros sis-


de mobilidade social moldado pelos processos


temas axiológicos, quando chega a hora de cons- políticos e sociais e pelas condições de forma-



truir os projetos educacionais, deixamos esse
ção da nova economia e do mercado após 1952,


fato de lado (Green, 1996: 3).


cuja orientação se resume a “deixar de ser ín-



dio”. Essa situação persiste, como bem escre-


vem Hornberger e López (1998: 208).


O enfoque da assimilação entre os


protagonistas da educação

Although, in fact, only a small percentage of

Entre os professores formados no espírito



the population attains social advancement
through formal education, schooling, and the

do código educacional de 1955 persiste a idéia


Spanish language with which it is identified,


fixa de “fazer dos índios bons bolivianos”. Fala-


are nevertheless perceived as the route to so-


mos sobre a utilidade da escola para as crian-

cial mobility.

ças com professores dos núcleos Raqaypampa



e Tukma Baja, situados na Província Mizque,


Ao estabelecer um sistema igualitário uni-


Departamento de Cochabamba, num workshop


versal de sociedade com a educação como ele-

sobre interculturalidade realizado em outubro


mento-chave para o êxito e a civilização, o fra-


de 1995. Seus comentários a respeito do tema


casso dos povos indígenas em seu afã de pro-


foram os seguintes:

gredir não é visto apenas como uma desvanta-


gem social, mas também como uma falta de


Não queremos que elas sejam iguais aos seus


adaptação pessoal. Uma vez que os valores


pais... Não queremos que elas abandonem a es-


modernos da metrópole cheguem à periferia


cola após a quinta série do Primeiro Grau e se


casem como seus pais... Há pais de família que em suficiente medida, uma vez que os grupos

marginais reconheçam o valor de um sistema


não vêem a escola como o futuro de seus filhos,


afirmando que ela os torna frouxos e os faz pa- educacional e a língua e cultura que ele repre-

rar de plantar e pastorear... Queremos que se- senta, eles também começarão a “colaborar

jam algo na vida, que não fiquem aqui como seus para a destruição de seus instrumentos de ex-

pais, que tenham uma profissão. pressão” (Bourdieu, 1991: 49).



Os pais desestimularão seus filhos a usar sua



O menosprezo do camponês, de seu modo língua materna – alguns deles já os socializam



de vida, de seu apego à terra e à sua cultura, é num castelhano incipiente. Uma mãe analfabe-

uma constante facilmente perceptível na Bolí- ta de Cayacayani, Província de Esseban Arce,



via. A emigração, o abandono de áreas rurais – Departamento de Cochabamba, ao explicar por



mesmo que isso signifique romper com sua fa- que fazia questão de falar com seus filhos num

mília −, é uma condição para civilizar-se, para


castelhano fora de contexto, que dominava mal,


aproximar-se da periferia, do subcentro urba- afirmou: “O que posso ensinar a meus filhos?

no ou do centro urbano (Aronowitz, 1987). O Sou ignorante, não sei ler nem escrever”. Um

professor, juntamente com as demais autorida- professor com ampla experiência docente no

des educacionais, personifica e representa o


meio rural escreve numa carta de apresentação


centro, o avalista e o transmissor de valores e para um programa de mestrado em educação



da cultura da metrópole. Ele percorreu pesso- intercultural bilíngüe: “Meus pais eram analfa-

almente esse caminho até se tornar um profes- betos... mas souberam me ensinar os valores do

sor. Em seu trabalho diário, “constrói a consci- respeito...”



36
SIMPÓSIO 3
Educação, diversidade cultural e cidadania: os povos indígenas e a escola

Quanto à diversidade lingüística, seu po- 51) caracterizam esse enfoque como a preten-



tencial não é reconhecido pelo professor. Pelo são de igualar oportunidades educacionais



contrário, eles acham que línguas indígenas para alunos culturalmente diferentes, o que se



na sala de aula e no território nacional pro- traduz na intenção de suplantar diferenças im-


vocam atraso. pondo formas culturais dominantes. A base



desse enfoque é a substituição do termo “de-



Os idiomas subjugam, porque, se eu sou um ficiência” por “diferença”, mantendo-se a con-


quéchua ou aimara e quero ir à universidade, vicção de que a pobreza se explica pelo fato de 36



não vou encontrar nenhum livro escrito em os diferentes grupos culturais não contarem



aimara ou quéchua. Portanto, minha vida vai fi- com as mesmas oportunidades para adquirir


car frustrada e vou ser forçado a trabalhar no


os conhecimentos e habilidades necessários.


campo. O que precisaram fazer com os gaúchos
O objetivo da educação será o de assegu-


na Argentina? Precisaram eliminá-los e, assim,


rar compatibilidade entre a dinâmica da sala


a Argentina começou a surgir como uma nação


de aula e a dinâmica cultural dos grupos de in-


que se entende, que fala um só idioma. Aqui é


divíduos “diferentes” do grupo cultural domi-
como a torre de Babel: todos falam idiomas di-


nante/majoritário que serve de referência na


ferentes e ninguém se entende e, por isso, a Bo-

escola. A idéia, em última análise, é desenvol-

lívia é tão desunida, não é mesmo? E parece que ○

é isso que o governo quer fazer: desunir os boli- ver sistemas de compensação educacional por

vianos (professor de Ensino Médio José Manuel meio dos quais o “diferente” possa desenvol-

ver, com uma certa rapidez, competência na


Pando, Apolo, Departamento de La Paz).


cultura dominante, sendo a escola o veículo



As observações acima, que foram feitas que facilita o “trânsito” de uma cultura à outra

(idem, ibidem).

por um profissional em educação entrevista-


do em 1999, denotam uma postura pouco A ironia da educação boliviana é que ela não

contemplativa em relação aos povos nativos está, efetivamente, preocupada em melhorar a



e parecem ter sido feitas há séculos. qualidade de vida dos povos indígenas, e sim

em provocar mudanças culturais e sociais


Esse cenário “real”, que contrasta com o


ideal promovido nas leis, também surge com estabelecidas conforme os ditames da socieda-

força nas observações de dirigentes da princi- de dominante.



pal responsável pela reforma educacional, que



deveria procurar potencializar os efeitos das


Conclusão

mudanças educacionais: a Central Regional



dos Trabalhadores Rurais de Raqaypampa, Pro- Quem determinará que conteúdos cultu-

rais serão válidos ou adequados para inclusão


víncia de Mizque. Quando se perguntou ao seu


no currículo dos “ramos complementares”?


diretor até quando seriam mantidos assenta-


mentos dispersos em sua região (11 mil pes- Como diferenciaremos o culturalmente acei-

soas), por que a Central não impulsionava a tável do que as políticas de desenvolvimento

estabelecem como norma (pobreza, diferenci-


concentração da população em torno dos nú-


ação de gênero etc.)? Quem tomará as medi-


cleos educacionais e por que, seis anos após a


promulgação da lei, a reforma educacional não das necessárias para que o cultural na educa-

“chegava” ao norte da Província de Ayopaya, ção intercultural não se reduza à expressão ar-

tística e “folclorizada” ou à manifestação lin-


no Departamento de Cochabamba, conside-


güística da cultura? Quem ensina e como?


rando que sua população inclui indivíduos de


origem quéchua e também aimara, sua respos- O reconhecimento territorial, a determina-



ta foi a seguinte: fica longe demais, a cinco ção cultural e a justiça social dos povos indíge-

nas fazem parte de um complexo conjunto de


horas da capital da província!


demandas que inclui uma educação adequada


Situações desse tipo nos levam a presumir


que o enfoque subjacente à reforma é o da as- às suas necessidades de participação na socie-



similação. García Castaño e outros (1999a: 50- dade nacional e internacional, de acordo com

sua própria concepção e a partir do fortaleci- los grupos dominantes que estruturam institui-



mento de sua identidade. Isso pressupõe uma ções sociais para manter ou aumentar esse con-



educação cuja natureza deve ser determinada trole. O que os grupos oprimidos, no nosso caso



pelos próprios indígenas, especialistas em sua os povos nativos, fazem é opor-se e lutar pelo


forma singular de vida. São eles, é cada povo controle dos recursos do poder, da riqueza e do



indígena, que devem definir como continuarão prestígio que existem na sociedade.



educando suas crianças e jovens e os mecanis- Concordamos plenamente com García


mos de seleção e formação de seus professores, Castaño e outros (1999b) quando afirmam que



livres das garras da escolaridade e do currículo impor culturas deficitárias sobre culturas



ocidental. É respeitando e valorizando o siste- não-deficitárias é uma prática de desigualda-



ma de reprodução de cada povo, de cada comu- de, não de diferença. A forma singular de


nidade, que a educação escolarizada pode as- adaptação de cada povo a contextos diferen-



sumir seu papel de facilitadora no processo de tes faz justamente a diferença entre os povos.



sua inserção na sociedade nacional e interna- A interculturalidade de modo geral e a edu-


cional, percebendo-se como agente de sociali- ○
cação intercultural bilíngüe em particular de-
zação e não de expulsão. vem fundamentar-se nessa diferença, e não

A partir da perspectiva oficial, os progra- na desigualdade.



mas de EIB, como parte dos projetos de rei-


Reconhecer o déficit de uma cultura minori-


vindicação idiomática e cultural, são concebi-


tária em relação a uma outra presumidamente


dos como uma espécie de licença ou conces-

majoritária como dominante equivale a não


são a favor dos grupos vernáculo-falantes, e


admitir a capacidade de qualquer cultura de


não como parte medular e integral de seus pro-


gerar novas estratégias de adaptação em novos


jetos educacionais, como programas que efe-

contextos e negar o plano de igualdade em que


tivamente assumem o problema das minori-


se encontram todas as culturas e os grupos hu-


as. Persiste a falta de uma concepção clara do manos que as criaram (García Castaño et al.,

alcance de uma autêntica EIB e de seus méto- 1999b: 205).


dos e procedimentos didáticos por parte dos



professores, endividados com os valores e pre- É de se esperar que o Estado, com seu apa-

conceitos da educação oficial secular. rato centralizado de funcionários especiali-



Embora o objetivo declarado da educação zados em encontrar soluções para os proble-


seja libertar os povos andinos da discriminação,


mas “dos outros”, relute em ceder espaços de


os valores culturais desses mesmos povos são decisão que propiciem a transmissão da cul-

solapados e denegridos ativamente na escola. tura e da ideologia dos povos indígenas. No



Qualquer ação de transmissão de cultura impli- entanto, o caminho para uma verdadeira edu-

ca, necessariamente, uma afirmação dos valo-


cação intercultural bilíngüe implica a supe-


res da cultura transmitida; em outras palavras, ração de sua perspectiva limitada e seu esta-

qualquer tipo de ensino deve gerar uma ne- belecimento no âmbito das comunidades in-

cessidade de seu próprio produto e, portanto, dígenas, aceitando as distintas “educações”


construir a cultura que deseja transmitir como que nelas existem. Por outro lado, como ex-

um valor, o que é logrado por meio do próprio posto acima, as organizações indígenas tam-

ato de ensinar (Bourdieu, 1967). bém relutam em participar de possíveis ins-



O enfoque de uma educação intercultural tâncias ou espaços estatais.


bilíngüe adequada a uma posição como a Não há dúvida de que o professor tem um

esboçada é o da educação como transformação papel fundamental a desempenhar numa edu-



(García Castaño et al. , 1999a: 59-60), com base cação transformadora. E estamos convencidos

na teoria do conflito e na teoria da resistência. de que a visão geral aqui apresentada não in-

Segundo essas propostas, os grupos oprimidos valida os esforços que devem ser envidados no

(no nosso caso, os povos indígenas) não se aco- campo da formação dos professores para

modam passivamente ao controle exercido pe- transformar a educação. Nossa experiência na


38
SIMPÓSIO 3
Educação, diversidade cultural e cidadania: os povos indígenas e a escola

formação de formadores no curso de Mestrado nar constantemente conhecimentos prévios e



do Programa de Formação em Educação Inter- novos. O desafio é imbuir-se, como professor,



cultural Bilíngüe para os países andinos do que possa significar um modo de fazer edu-



(Proeib Andes) tem como fio condutor a iden- cação num mundo que articula as diferenças e


tidade questionada, resgatada e afirmada do não as combate.



estudante de origem indígena. Acreditamos Não podemos concluir esse documento sem



que o caminho para o fortalecimento das afirmar que enquanto perdure o desequilíbrio


potencialidades dos povos indígenas é a recu- sociopolítico e econômico dos grupos étnicos 38



peração de sua auto-estima e identidade e em relação a setores sociais dominantes, e en-



também da de seus professores. A educação quanto esses concebam e executem programas



intercultural oferece possibilidades para esse educacionais e se sintam no direito de respon-


complexo processo de conscientização étnica der às necessidades de aprendizagem dos po-



e lingüística. Essa educação intercultural deve vos indígenas a partir da sua própria visão e in-



ser adotada nos Centros de Formação de Pro- teresses, a interculturalidade será, na melhor



fessores, sejam eles Institutos Normais Supe- das hipóteses, um diálogo de surdos e, na pior,


riores ou Instituições de Ensino Superior. No um novo e sutil mecanismo de dominação, uma



entanto, não é um caminho fácil e tampouco passagem de uma só via.

plano. Caracteriza-se pela sinuosidade de sua



natureza conflituosa. Como proposta pedagó-


gica e política, a interculturalidade não pode


Bibliografia

se esquivar dessa característica. A noção do



conflito é inerente ao ser intercultural, que ALBÓ, Xavier. Bolívia plurilingüe. Guía para planificadores.

precisa reconhecer e conviver com o conflito, La Paz: Unicef, Cipca, 1995. v. 1-3.

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seja ele intrapessoal, interpessoal, intragrupal

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GARCÍA CASTAÑO, Javier ; GRANADOS MARTÍNEZ,


cente -estudantes e dos estudantes entre eles, Antolín; GARCÍA-CANO TORRICO, María. Racialismo

aceitar o fato de que o estudante traz consigo


en el curriculum y en los libros de texto. La transmisión


conhecimentos e experiências – social e cultu- de discursos de la diferencia en el curriculum oficial de



ralmente determinadas – e, além disso, relacio- la Comunidad Autónoma Andaluza y en los libros de


texto de la educación primaria. In: GARCÍA CASTAÑO; . La cuestión de la interculturalidad y la


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SIMPÓSIO 4

EXPERIÊNCIA DO ENSINO
SUPERIOR INDÍGENA
Edivanda Mugrabi

Elias Renato da Silva Januário

Maria Inês de Almeida

Marilda C. Cavalcanti

41
O Ensino Superior Indígena




no Espírito Santo e o papel




da universidade






Edivanda Mugrabi*





Resumo





O presente texto visa, a um só tempo, siste- ria, em seguida trataremos de enfocar o papel da



matizar a experiência de construção do Ensino Universidade Federal do Espírito Santo nesse


Superior Indígena no Espírito Santo e discutir os processo. Num terceiro momento, centramo-nos


limites e as possibilidades dessa construção. Em ○

nas idéias essenciais que estão sendo discutidas
um primeiro momento, apresentaremos sucin- em torno do formato das Licenciaturas que pre-

tamente uma retrospectiva da luta dos povos tendemos criar. À guisa de conclusão, apresen-

Tupinikim e Guarani em prol de uma educação tamos alguns dilemas e dificuldades que atraves-

escolar diferenciada. Sem perder o fio da histó-


sam o processo.




Os Tupinikim e os Guarani e a

A preocupação desses povos com a educação


educação escolar diferenciada escolar é antiga, mas ela se traduz em fatos a par-

tir dos anos 1990. No bojo dessa preocupação,


No estado do Espírito Santo, no município


aparece em destaque a formação de educadores


de Aracruz, vivem atualmente 1.793 índios


para atuar nas escolas das aldeias. Em 1994, foi


aldeados, dos quais 1.615 são do povo Tupinikim


estabelecida uma parceria entre os índios, o Ins-

e 178 pertencem ao povo Guarani.


tituto para o Desenvolvimento e Educação de



Tabela 1 Adultos (Idea) e a Pastoral Indigenista para a cri-



ação de um projeto de formação de índios para


Aldeias População

atuarem no âmbito da Educação de Jovens e



N o de famílias N o de habitantes Adultos. Segundo Cota (2000: 110), essa forma-



Tupinikim ção representa um momento de ruptura impor-



Caieira Velha 150 708 tante para o povo Tupinikim, na medida em que,

de um lado, os próprios índios começam a assu-


Comboios 60 342

mir a educação nas aldeias, e de outro, as ques-


Irajá 62 262

tões culturais começam a ser introduzidas no


Pau Brasil 64 303

processo ensino-aprendizagem nas escolas.


Subtotal 336 1.615


Em 1996, estrategicamente amplia-se a


Guarani

parceria, incluindo o poder público, repre-


Boa Esperança 24 96

sentado pela Secretaria Municipal de Educa-


Três Palmeiras 14 82 ção de Aracruz e pela Secretaria de Estado da



Subtotal 38 178 Educação, para pensar a formação de profes-



Total 374 1.793 sores para o Ensino Fundamental. Em dezem-



bro de 1996, dá-se início ao Curso de Habili-






* Doutora em Educação pela Universidade de Genebra, professora do Departamento de Fundamentos e Orientação Educacional e do Mestrado

em Educação da Universidade Federal do Espírito Santo.


42
SIMPÓSIO 4
Experiência do Ensino Superior Indígena

tação Profissional para o Magistério de 1ª a 4ª Mais da metade dos alunos que concluem o



séries do 1º Grau – Formação Específica em 1º ciclo do Ensino Fundamental não prosse-



Educação Indígena. Esse curso foi fundado guem seus estudos. A taxa de índios que ascen-



nos princípios da interdisciplinaridade, da dem ao Ensino Médio é também extremamen-


interculturalidade e da participação dos edu- te baixa. Agregue-se a esses dados o número de



cadores e das comunidades indígenas em to- 25 alunos que freqüentam o Ensino Superior em



das as decisões das diferentes atividades pro- faculdades particulares cuja qualidade é duvi-


gramadas. Foram habilitados, em outubro de dosa e que não estão preocupadas com o pro- 43



2000, 37 índios (32 Tupinikim e 5 Guarani), jeto político das comunidades indígenas.



ampliando-se significativamente os quadros



para atuar na educação escolar, que até aquele
O papel da Universidade


momento encontrava-se irremediavelmente


Federal do Espírito Santo


nas mãos de professores não-índios (do total



de 19 professores apenas 4 eram índios).
(Ufes)



Com a formação de professores índios a


partir de 2000, há uma inversão significativa Na década de 1990, a universidade não se



na proporção entre professores índios e pro- envolveu com a questão da Educação Escolar

fessores não-índios: dos 23 professores que



Indígena. A fala de um índio Guarani, pronun-


ciada recentemente nas dependências dessa

passaram a atuar nas escolas das aldeias, 20


são índios. Essa apropriação nas mãos da instituição, revela bem o seu descaso para com

educação escolar pelos índios foi marcada os povos indígenas do Espírito Santo:

pela realização de um concurso público – o


Quando entramos na Universidade pela pri-


primeiro no Brasil! –, inaugurando-se assim

meira vez, diziam que não havia indígenas no


oficialmente a carreira de Magistério diferen-

Espírito Santo. A Universidade não vive em outro


ciada no município de Aracruz, com isono-


mundo, em outra lua, vivemos todos num mundo


mia salarial.

só. Por que um índio não pode estudar na Uni-


O atendimento escolar às crianças das al-

versidade? (Antonio Carvalho, vice-cacique da


deias é realizado pela Prefeitura Municipal de


aldeia de Boa Esperança, 18/6/2001).


Aracruz, por meio da Secretaria Municipal de



Educação. As escolas existentes (uma em cada Com efeito, nenhuma das iniciativas em

aldeia) atendem a crianças da Educação Infantil


prol da educação diferenciada dos povos indí-


(187 crianças) e do 1º ciclo do Ensino Fundamen- genas do Espírito Santo contou com a partici-

tal (309 crianças). Os alunos que concluem o 1º pação de professores representando a Ufes. Os

ciclo do Ensino Fundamental e desejam dar con- únicos dois professores universitários que atu-

tinuidade a seus estudos têm de se deslocar das


aram no curso de formação de professores em


aldeias para a zona urbana, havendo, dessa for- nível médio deram a sua contribuição por ou-

ma, uma ruptura no atendimento à educação tras vias institucionais.



diferenciada e específica prevista em lei. Os da- No início de 1999, por inicia-


dos abaixo, refe-


tiva dos próprios índios e dos di-


Tabela 2

rentes à demanda ferentes parceiros de instituições


Número de índios que estudam


escolar de Ensino não-governamentais – notada-



Fundamental, ofe- Nas aldeias mente o Idea –, um grupo foi-se


recem indicações Educação Infantil 187


constituindo para discutir acer-


incontestes quan- a a
Ensino Fundamental (1 a 4 série) 309 ca da necessidade de a universi-

to à urgência da Fora das aldeias dade assumir a continuação da



continuidade do formação dos educadores índios.


Ensino Fundamental (5 a a 8 a série) 208

processo de for-

Mas, naquele momento, somen-


Ensino Médio 66

mação dos docen- te alguns poucos professores se


Total 770

tes indígenas. sentiram interpelados por essa



questão. As reuniões que se realizaram nas cluído. Nossa expectativa é de que os cursos



dependências da própria universidade conta- venham a ser criados até o final deste ano e



vam com participação pouco expressiva dos que possam ser iniciados em março de 2002.



quadros universitários.


Nesse contexto institucional, ocorreu, em
O formato das licenciaturas



outubro de 1999, a primeira formulação do pro-


em grandes linhas


jeto de formação universitária de educadores


índios Tupinikim e Guarani, em resposta a um


As licenciaturas que estamos tentando cri-


edital da Capes, que reivindicava projetos ino-


ar na Universidade Federal do Espírito Santo


vadores para a melhoria da graduação. Infeliz-


priorizam uma formação diferenciada que


mente, o projeto não seduziu a equipe que fez a atenda à especificidade da cultura Tupinikim


triagem das diferentes iniciativas apresentadas.


e da cultura Guarani, sem renegar o conheci-


Em 2000, novos esforços foram feitos para que


mento das ciências tal como se constituíram


esse documento fosse discutido e aprovado pe- em suas áreas especializadas. Nosso grande


las instâncias universitárias. Num primeiro mo- ○

desafio é construir um espaço de formação que


mento, foi necessário encontrar um centro/de-

não se restrinja a reproduzir a divisão das ci-


partamento que o encaminhasse formalmente


ências (formando “pedagogos”, “matemáticos”


às demais instâncias universitárias. Por pressão etc.), mas que considere a especialização a par-

das lideranças indígenas, no final de 2000 o Cen- tir de uma nova abordagem do saber funda-

tro Pedagógico aprovou o projeto e o encami-


mentada no diálogo intercultural.


nhou novamente à Pró-Reitoria de Graduação.


No estágio atual em que o projeto se en-


A partir de março de 2001, na qualidade de contra, estão sendo pensadas as idéias que

coordenadora do projeto junto à Universidade,


apresentaremos a seguir.

articulamos a retomada das discussões, convo-


Não haverá vestibular para o ingresso dos


cando encontros sistemáticos para detalhar a


alunos; as comunidades indicarão os índios in-


proposta curricular das licenciaturas. Desses teressados pautando-se por dois critérios es-

encontros, têm participado representantes dos


senciais: tenham concluído o ensino médio e


alunos indígenas que freqüentarão os cursos, li-


estejam comprometidos com o projeto políti-


deranças indígenas e os diferentes parceiros de


co das aldeias.

instituições governamentais e não-governamen- As licenciaturas visam à formação em nível de


tais. Progressivamente, estamos tentando en-


terceiro grau – Licenciatura Plena – de professo-


contrar novos aliados nos distintos departamen-


res indígenas que atuam e/ou venham a atuar nas


tos da universidade para compor a equipe que


escolas de Ensino Fundamental e Médio.


viabilizará a proposta. Os alunos terão a possibilidade de concluir


Em junho do mesmo ano, promovemos es-


duas licenciaturas plenas no período de seis anos:


trategicamente um seminário, com o objetivo


nos três primeiros anos, todos farão a licenciatu-


de apresentar a proposta em construção à co- ra plena de Pedagogia; nos três últimos anos, eles

munidade acadêmica e à sociedade em geral. se especializarão em uma área específica do co-


A idéia era a de que o seminário pudesse cons-


nhecimento (Licenciatura Plena em Línguas e


tituir fato que chamasse a atenção da socieda-


Linguagens, Licenciatura Plena em Matemática,


de capixaba, implicasse as autoridades públi- Licenciatura Plena em Ciências Naturais, Licen-



cas e atraísse novas parcerias e novos profes- ciatura Plena em Ciências Sociais).

sores universitários. A imprensa local parece


As áreas de conhecimento que estarão


ter considerado a temática do seminário como


norteando as diferentes licenciaturas terão os


relevante, pois, durante dois dias sucessivos, enfoques a seguir.



o evento assumiu destaque na mídia.


O projeto ainda não foi aprovado pelo Con-


Fundamentos. A formação de um profes-


selho de Ensino e Pesquisa, uma vez que o sor indígena exige características específi-

detalhamento do currículo ainda não foi con- cas para responder de maneira adequada

44
SIMPÓSIO 4
Experiência do Ensino Superior Indígena

às necessidades de uma educação diferen- formação em suas múltiplas relações socio-



ciada bilíngüe e intercultural. A abordagem culturais. Serão estudadas as diversas formas



deverá levar em conta essas características, de conceber o espaço e o tempo a partir de


aprofundando conhecimentos que permi- uma perspectiva crítica, tentando apreender



tam uma compreensão mais abrangente do as relações complexas entre a estrutura polí-


fenômeno educativo em geral e em espe-


tica, ideológica e econômica de povos diver-


cial dos povos indígenas. O objetivo essen- sos, assim como suas relações com o espaço



cial dessa área é desenvolver conhecimen- (ambiente natural) em que vivem. As Ciências 45


tos e capacidades para compreender e par- Sociais pretendem dar conhecimentos e ins-



ticipar de maneira qualitativa e crítica no trumentos para compreender o social como



processo de educação em geral e da Edu- um todo a partir de suas diversas dimensões


cação Indígena em particular. Os conteú- (história, geografia, etnologia, sociologia, po-



dos das diferentes disciplinas serão trata- lítica etc.). Uma ênfase essencial será compre-


dos confrontando-se o universal com o par-


ender e questionar a história dos povos indí-


ticular das culturas Tupinikim e Guarani. As genas em relação à história de outros povos.



disciplinas de Fundamentos que serão es- Serão analisadas as características dos tem-


tudadas deverão considerar a Filosofia (te-

pos históricos e de diferentes fontes históri-

orias do conhecimento), a Sociologia da cas (memória oral, história escrita, arqueolo-

Educação, a Etnologia, a Psicologia e a His- gia, mitos etc.), tentando compreender as


tória da Educação.

contradições, complementaridades e limita-


Línguas e Linguagens. Essa área enfocará o ções dessas fontes.



estudo do Português como língua majoritá- Ciências Naturais. Essa área do conheci-

ria do país, o Tupi como língua dos ances- mento propõe uma abordagem sistêmica

trais Tupinikim e o Guarani como língua


que contemple os níveis de organização e


materna dos Guarani. Não será perdida de de complexidade de conhecimentos rela-



vista a história do contato das línguas indí- tivos às Ciências Naturais. As problemáti-

genas entre si e com a língua portuguesa.


cas a serem levantadas junto com as comu-


Neste último caso, será de fundamental im- nidades indígenas serão agrupadas em

portância o estudo da influência das línguas grandes eixos temáticos, tais como, o ensi-

indígenas de origem Tupi na constituição de


no de Ciências: tendências e concepções;


um saber sobre a língua portuguesa do Bra- Terra e Universo; Seres Vivos e Ambiente;

sil e na própria construção de uma língua


Sociedade e Tecnologia. Os estudos serão


nacional, como imaginário de unidade na


desenvolvidos de maneira integrada, con-


constituição da nação denominada “brasilei- siderando as demandas dos alunos indíge-


ra”. O espanhol também será estudado, com


nas, suas vivências e informações na área,


o fim de ampliar o diálogo intercultural. O


garantindo, assim, sua articulação com as


estudo dessas diferentes línguas será outras áreas do conhecimento. As situações


norteado pela constituição dos diferentes


de aprendizagem proporcionarão confron-


gêneros orais e escritos (gêneros literários e tos entre os conhecimentos científicos e os



não-literários), sem perder de vista a ques- conhecimentos culturais acumulados pe-


tão da oralidade e da escrita em sociedades


los povos Tupinikim e Guarani. A tec-


de tradição ágrafa. A linguagem não-verbal, nologia, os modelos de desenvolvimento,



circunscrevendo o mundo das artes e outros a dimensão ambiental e os paradigmas do-


campos discursivos (mídia impressa,


minantes serão considerados como fatores


Internet, tevê etc.), em diálogo com o verbal de influência na formação da racionalidade


no processo de produção de sentidos,


científica e do conhecimento científico. As


complementará os conhecimentos aborda-


práticas educativas desenvolvidas durante


dos nesta área, englobando-se assim as dife- o curso devem incorporar os princípios te-

rentes formas de expressão do ser humano.


óricos e metodológicos do ensino de Ciên-



Ciências Sociais. Essa área terá como um dos cias Naturais e sua afinidade com a Educa-

pontos de partida a realidade do educador em ção Ambiental.




Matemática. Todas as disciplinas dessa área o ensino das séries iniciais do Ensino Funda-



terão como ponto de partida o contexto es- mental.



pacial, histórico e cultural das comunidades A área de Línguas e Linguagens habilitará o


indígenas. O ensino da Matemática visará ao


cursista ao trabalho com as línguas Tupi ou


desenvolvimento do pensamento numérico, Guarani, mas os cursistas terão uma formação


algébrico, geométrico; da competência mé-


complementar em língua espanhola (como lín-


trica; do raciocínio que envolva a proporcio-


gua estrangeira) e em diferentes linguagens (li-


nalidade; do raciocínio combinatório, esta-
terária, artística, imagética etc.).


tístico e probabilístico. Será garantido o aces-


A área de Matemática visa à formação de


so ao conhecimento matemático, igual àque-


professores de Matemática.


le fornecido às comunidades não-indígenas,


mas com uma abordagem centrada na A área de Ciências Naturais visa à habilita-


ção de professores de Ciências para o Ensino


Etnomatemática. A matematização dos pro-


blemas privilegiará as questões de moradia, Fundamental, e de Biologia para o Ensino Mé-



alimentação, saneamento, trabalho, saúde, dio; uma formação complementar será dada em


vestuário, comércio e espaço vivenciadas ○
Física e Química.
pelas comunidades, visando à elaboração de A área de Ciências Sociais terá como focos

projetos interdisciplinares e interculturais. A privilegiados os campos da História e da Geo-



proposta incluirá conteúdos de três grandes grafia e habilitará os cursistas para o trabalho

blocos do saber: Matemática, Epistemologia


com essas duas disciplinas, mas haverá estudos


e Educação Matemática, permitindo a arti- complementares em Antropologia, Política, So-



culação entre os diferentes saberes e propi- ciologia e Economia.


ciando atividades de prática de ensino nas


Os cursos de Licenciatura seguirão um ca-


escolas das comunidades indígenas ao lon-


lendário específico, composto por duas moda-

go de todo o curso.

lidades letivas:

• aulas presenciais ministradas nas depen-


Cada licenciatura terá a carga horária de


dências da universidade e aulas presenciais


3.210 horas, prevendo-se, no entanto, aprovei- ministradas nas aldeias, as quais ocorrerão

tamento de cerca de 1.260 horas da primeira li- ao longo do ano, prevendo-se uma carga-

horária intensiva no período de férias e re-


cenciatura na segunda licenciatura (720 horas


de Fundamentos da Educação e 540 horas de cessos escolares dos cursistas;



uma área específica). • atividades cooperadas, possibilitando aos



A Licenciatura de Pedagogia habilitará para cursistas conciliar suas atividades docentes




Tabela 3


Carga horária de todos os cursos



Carga

Ciências Ciências

Fundamentos Matemática Línguas Estágio horária


Naturais Sociais

total

Pedagogia

720 550 550 550 550 300 3.220


1 a a 4 a série

Habilitação

240 1.400 300 3.210


Matemática

Habilitação

1.400 300 3.210


Línguas

Habilitação
1.400 300

3.210
Ciências Naturais

Habilitação

1.400 300 3.210


Ciências Sociais

46
SIMPÓSIO 4
Experiência do Ensino Superior Indígena

nas escolas com as atividades do curso de ses deverão passar por um processo de re-



formação (preparo de seminários, leituras, conhecimento e de avaliação na esfera do



pesquisas solicitadas etc.). MEC. Ora, pelo que se sabe até a presente


data, a Secretaria de Educação Superior



(Sesu) não dispõe de pessoal competente


Será prevista uma bolsa de estudos para os para lidar com a educação diferenciada. O



cursistas e uma bolsa de pesquisa para os pro- reconhecimento dos cursos levará em con-


fessores que atuarem no curso.


ta variáveis interculturais? Que parâmetros 47


serão considerados para avaliar os conteú-



dos mínimos de cada licenciatura? Somen-
Dificuldades e dilemas



te as diretrizes curriculares dos cursos con-
no processo de criação das


vencionais, tais como estão sendo definidas



atualmente? Os conteúdos mínimos defini-
licenciaturas


dos para o Exame Nacional dos Cursos? O



À guisa de conclusão, gostaríamos de levan- “Provão”, a que certamente os alunos da



tar algumas dificuldades e dilemas que deve- educação superior diferenciada serão sub-


metidos, será diferenciado? Pensamos que

riam ser superados para facilitar o processo de

formação dos educadores Tupinikim e Guarani. a Coordenação-Geral de Apoio às Escolas

Sem pretensão à universalização, pensamos que Indígenas deveria articular-se com a Sesu

para a facilitar o processo de reconhecimen-


algumas de nossas reflexões são válidas para


to dos cursos.

outras experiências em nível nacional.


O perfil do professor que se quer formar.



Ausência de políticas públicas em nível es- Todos – índios e não-índios – querem um


profissional que possa competir no merca-


tadual. O estado do Espírito Santo tem sido


omisso na definição de políticas para a edu- do de trabalho da educação formal, inde-



cação. Até hoje, não tem havido nenhum pendentemente de ter tido uma formação

diferenciada ou não. Isso gera dificuldades


esforço para a regulamentação no âmbito do


CEE da Resolução nº 3 do CNE, assim como na determinação dos conteúdos e da carga



não têm sido formuladas leis e portarias que horária necessária para tratá-los convenien-

possam assegurar aos povos indígenas do temente. Tomemos o caso da Licenciatura



estado um Ensino Fundamental diferencia- de Línguas e Linguagens. Convencional-



do, tal como prescreve a Constituição Fede- mente, os cursos de Letras, nas universida-

ral. Isso gera problemas de diferentes or- des brasileiras, habilitam para o ensino da

dens. Um dos mais sérios, que pode com- Literatura, de uma Língua Estrangeira e da

Língua Portuguesa, mas no caso de nosso


prometer a viabilização do projeto de cria-


ção de cursos, é a alocação de recursos fi- curso aparece como prioridade a habilita-

nanceiros. Os recursos destinados à Educa- ção em Língua Indígena. Como então con-

ciliar tantas habilitações com uma carga


ção Escolar Indígena não estão sendo bem


administrados pelo Estado. A prova disso é horária não muito extensa?



que até hoje a Secretaria de Estado da Edu- Interculturalidade. O respeito à diversidade



cação não pagou cerca de R$ 16.509,00 aos étnica e cultural preconizado pela Constitui-

formadores que atuaram no curso de Ma- ção de 1988 trouxe à baila uma questão con-

gistério nos anos 1999 e 2000. Ora, isso com- trovertida: como deve ser o relacionamento

promete a formação superior, uma vez que


dos povos indígenas com a sociedade brasi-


ela necessitará de recursos financeiros leira e vice-versa? Há intelectuais que defen-



oriundos de parcerias, convênios e acordos dem uma “inversão necessária”: se antes


negociados com agências estaduais, nacio-


eram os índios que tinham como prerrogati-


nais e internacionais. va conhecer a sociedade envolvente, depois



Ausência de articulação no interior do pró- de 1988 “o esforço para a compreensão e con-



prio MEC. As universidades brasileiras têm vivência com os povos indígenas passou a ser

autonomia para criar novos cursos, mas es- da sociedade brasileira” (Silva, 1999: 12). Essa


posição nega, no entanto, o princípio da ção, estamos prevendo seminários de for-



interculturalidade e não contribui para a su- mação da equipe que vai atuar no projeto,



peração do etnocentrismo. O curso univer- nos quais tentaremos discutir a questão da


sitário será um palco extraordinário para ín- interculturalidade, do bilingüismo, da inter-



dios e não-índios operacionalizarem o con- disciplinaridade etc. Alguns desses seminá-


ceito de interculturalidade, que aparece nos rios serão realizados nas dependências da



documentos oficiais, mas que tem sido fon- Ufes e outros serão realizados nas próprias



te de confusão nos planos teórico e prático. aldeias indígenas, para facilitar a imersão


dos professores nas questões propriamente


Perspectiva bilíngüe versus currículo


intercultural. Um currículo verdadeiramen- culturais.



te intercultural implicaria a adoção de um A pesquisa norteando o processo ensino-



ensino bilíngüe, ou seja, a estruturação do aprendizagem. Em nosso projeto, a pesqui-


processo ensino-aprendizagem baseada na sa é considerada como uma modalidade



estratégia da alternância de línguas, o que privilegiada na formação dos professores e


não é possível nas condições concretas ○
dos alunos índios. Ela visa uma melhor
atuais. A língua de ensino de todos os con- compreensão das comunidades e dos pro-

teúdos curriculares será o Português, e a lín- blemas socioculturais, históricos, lingüís-



gua indígena terá a função de disciplina ticos e ambientais que as circundam. Os re-

curricular. Para os Tupinikim, as disciplinas sultados desses trabalhos de investigação



envolvendo a língua indígena terão um deverão constituir um material educativo


status particular, na medida em que o Tupi importante a ser utilizado por todos os ato-

constitui para eles um objeto de conheci- res implicados na proposta. Resta, no en-

mento inteiramente novo. Eles terão de tanto, saber se os professores universitários


aprender o Tupi como uma língua estran- estarão dispostos a re-aprender seus obje-

geira. A valorização da língua Guarani e a tos de ensino.



recuperação da língua Tupi colocam desafi-


os novos para a questão do bilingüismo no


Pensamos que estas e outras questões de-


ensino das escolas nas aldeias.


verão ser respondidas com uma certa urgência,


Formação dos professores universitários


a fim de que sejam criadas condições mais fa-


para atuar nas licenciaturas. Em matéria de


voráveis às diferentes experiências de Ensino


quadros nacionais para atuar nos cursos

Superior Indígena que seguramente emergirão


superiores indígenas, nos deparamos com


em diferentes estados do país.


um dilema sério: de um lado, temos profes-


sores que ignoram completamente as cul-



turas e as problemáticas em torno das cul-



turas indígenas e, de outro, temos profissio-


nais que estão comprometidos com a causa


Bibliografia

indígena, mas não conhecem as questões



relativas ao ensino ou não valorizam o en- COTA, M.-G. Educação escolar indígena: a construção de

sino formal de conteúdos da cultura ociden- uma educação diferenciada e específica, intercultural e

tal para os índios. No caso concreto dos pro- bilíngüe entre os Tupinikim do Espírito Santo. Vitória,

fessores da Ufes, eles não têm a prática do 2000. Dissertação (Mestrado). Universidade Federal do

diálogo intercultural com os povos indíge- Espírito Santo.


FAUNDEZ, A. Diálogo intercultural e educação na socieda-


nas. Em outras palavras, eles são especialis-


de brasileira . Debate en Educación de Adultos. Medellin,


tas em suas áreas de conhecimentos, mas

n. 10, p. 14-19, 1999.


nunca tiveram a necessidade de tratar es-

MUGRABI, E. Bilingüismo o multilingüismo: una prerrogati-


ses conhecimentos na perspectiva de outros


va de minorias lingüísticas? Debate en Educación de


povos. Metodologicamente, seria necessá-

Adultos. Medellin, n. 12, p. 14-19, 2000.


rio abordar o geral a partir do específico, e


SILVA, R. H. D. Balanço dos movimentos dos povos indíge-


isso, à primeira vista, aparece como um de- nas no Brasil e a questão educativa. Caxambu: Anped,

safio para todos. Para enfrentar essa situa-


1999.

48
SIMPÓSIO 4
Experiência do Ensino Superior Indígena

Terceiro grau indígena:




cursos de licenciatura




específicos para a formação




de professores indígenas*




49


Elias Renato da Silva Januário**







Preliminares 1988 abre um novo contexto na educação es-



colar voltada para os povos indígenas, fazen-



O processo de educação escolar entre os do surgir propostas que passaram a conside-


ameríndios do Brasil, iniciado com a chegada


rar a diversidade étnica e cultural dos índios


dos colonizadores portugueses, estabeleceu brasileiros, respeitando a cultura, a língua, as



uma ação educacional fundamentada nos va- tradições e os processos próprios de aprendi-

lores do mundo ocidental e da doutrina cristã, zagem de cada etnia.


tendo os missionários jesuítas como os respon- Essa mudança de paradigma na relação en-

sáveis pela implementação da prática educaci- tre o Estado brasileiro e as sociedades indígenas

onal por meio da catequese. Essa ação educa- teve amplos reflexos no contexto da educação

cional tinha, entre outros propósitos, a submis- escolar, abrindo novas possibilidades de se pen-

são dos povos indígenas, revelando claramente sar uma nova escola indígena, longe das doutri-

o seu caráter etnocêntrico, integracionista e nas positivistas, civilizatórias e evangelizadoras



civilizatório. que até então se faziam presentes na educação


A Educação Escolar Indígena, sistematiza-


ofertada às populações indígenas.


da nos moldes tradicionais da catequese e da A Lei de Diretrizes e Bases da Educação



civilização, perpetuou-se do período colonial (LDB/1996) veio reforçar a legislação educaci-



ao republicano, contando também com a atu- onal disposta na Constituição Federal, acen-

ação de instituições governamentais de forte


tuando a diferenciação da escola indígena das


cunho positivista em seus ideais educacionais. demais escolas do sistema de ensino brasilei-

Em outras palavras, a ação educacional volta- ro, incentivando uma educação bilíngüe,

da para as sociedades indígenas brasileiras, do intercultural, com calendários adequados às


século XVI até meados do século XX, foi


par ticularidades locais e aos projetos


marcada por uma prática que desconsiderava societários de cada comunidade.



a diversidade étnica e cultural existente no ter- Mato Grosso tem apresentado conquistas

ritório brasileiro, em favor de uma política significativas no que diz respeito à Educação

pública de homogeneização social.


Escolar Indígena específica e diferenciada. Em


Somente a partir da segunda metade do sé- 1995, teve início a implementação de um am-

culo XX é que se vislumbra a possibilidade de plo programa de formação de professores in-



pensar a Educação Escolar Indígena distante dígenas, por meio do Projeto Tucum e do Pro-

das doutrinas religiosas e positivistas que ha-


jeto Urucum/Pedra Brilhante, que possibilitou


viam embasado a prática educacional até en- qualificar uma considerável parcela dos índi-

tão. A promulgação da Constituição Federal de os de Mato Grosso que atuam nas aldeias, mi-





* Texto-síntese do Projeto de Cursos de Licenciatura Específicos para a Formação de Professores Indígenas, Governo do Estado de Mato

Grosso, Cuiabá, 2000.



** Coordenador do Terceiro Grau Indígena – Unemat.



nistrando aula para mais de 5 mil crianças in- que atenderão a mais de 5,5 mil alunos oriun-



dígenas. dos das escolas das aldeias ou de outras, lo-



Não é tarefa fácil implementar um progra- calizadas em vilas e cidades circunvizinhas.



ma de Educação Escolar Indígena específico e A oferta de cursos superiores específicos


diferenciado, pautado pelos princípios da plu- para professores indígenas representa a possi-



ralidade cultural. Requer ousadia e determina- bilidade de atendimento adequado a essa cli-



ção por parte dos dirigentes do poder público entela, como também a continuidade do pro-


para que se consolide uma educação inter- cesso de formação dos atuais e dos novos pro-



cultural, bilíngüe e de qualidade, fundamen- fessores que comporão o corpo docente indí-



tada na percepção de outras lógicas, numa prá- gena em Mato Grosso.



tica pedagógica de valorização de calendários Apesar de tratar-se de uma antiga reivin-


e conteúdos curriculares de caráter indígena, dicação de povos indígenas, o acesso a uma



afastando-se, assim, da ação civilizatória e escola diferenciada e de qualidade foi abor-



integracionista presentes durante todos esses dado por políticos e educadores como uma


anos na prática da educação escolar brasileira ○
demanda de caráter individual, localizado e
voltada aos povos indígenas. transitório.

Apesar de tantas evidências quanto à ne- Com o advento da oferta de Ensino Médio

cessidade de formação docente, as iniciativas regular em escolas das missões ou em proje-



desenvolvidas no Brasil encontram-se ainda tos específicos (nos moldes do Tucum), a de-

em fase embrionária, quando não, trata-se de manda pelo Ensino Superior deixa de ser ex-

“cursos” desconexos e descontínuos. Urge, pectativa de alguns poucos, para tornar-se uma

portanto, implementar programas extensivos prioridade de dezenas, centenas de estudan-


a todas as sociedades indígenas que contem- tes, professores, agentes de saúde etc.

plem conteúdos curriculares, metodologias Os cursos de Licenciatura aqui propostos



de ensino, materiais didáticos etc., adequa- e os demais reivindicados poderão constituir



dos aos seus interesses. O Programa de For- um marco estratégico para que, a médio pra-

mação de Professores Indígenas de Mato zo, seja estruturado um espaço autônomo de



Grosso foi concebido e está sendo implemen- ensino e pesquisa voltado para os interesses e

tado a partir desse entendimento. Busca aten- necessidades das comunidades indígenas, a

der a todas as demandas educacionais, por exemplo de outras instituições de Ensino Su-

meio de projetos específicos e diferenciados, perior existentes em outros países.



elaborados, implementados e avaliados por



todos os segmentos envolvidos com a Educa-


O perfil do professor

ção Escolar Indígena.


O programa caracteriza-se, portanto, pela


a ser formado

oferta de cursos de formação em serviço, isto é,



os professores cursistas desenvolvem ativida- Nessa perspectiva, o professor idealizado



des docentes nas escolas das aldeias e os con- deve apresentar o seguinte perfil tipológico:

teúdos curriculares dos cursos são organizados ser um profissional competente, comprome-

de forma que acompanhem o progressivo de- tido, com postura ética, com reconhecimento

senvolvimento de seus alunos. social e com engajamento político.



Dando continuidade ao processo de for- De forma sintética, podemos dizer que o


mação, impõe-se agora a organização de cur- professor a ser formado nos cursos de Licen-

sos superiores voltados para as séries/ciclos ciatura deverá desenvolver capacidades e



finais do Ensino Fundamental e para o Ensi- competências que o habilitem a: a) elaborar


projetos de pesquisa e levantamento de infor-


no de Nível Médio, que se vêm implantando


em diversas escolas indígenas. Tal demanda mações sistematizadas em sua área de forma-

representará um contingente de aproximada- ção específica; b) elaborar e utilizar materiais



mente duzentos novos professores indígenas didáticos específicos para uso nas suas esco-

50
SIMPÓSIO 4
Experiência do Ensino Superior Indígena

las; c) definir, organizar e implementar pro- Setor de Educação da Administração Regional



postas curriculares adequadas aos níveis de da Funai de Cuiabá no ano de 1999, constatou



ensino e aos interesses das suas comunidades a existência de 53 estudantes indígenas cur-



(Grupioni, 1999). sando diferentes séries do Ensino Fundamen-


tal e Médio apenas na cidade de Cuiabá e



adjacências. Se considerados os que estudam


Justificativa do projeto


em outras cidades mato-grossenses (além de


Goiânia e Brasília), esse número chega a cen- 51


e dos cursos


tenas de alunos.



O Programa de Formação de Professores Portanto, o modelo de atendimento indi-



Indígenas de Mato Grosso está calcado numa vidualizado utilizado até aqui para acomodar


práxis pedagógica que respeita as formas tra- a demanda de Educação Escolar Indígena



dicionais de organização social e cosmológica deve ser imediatamente substituído por no-



dos povos ameríndios e os modos próprios vas estratégias que assegurem a oferta de en-


com que produzem e transmitem seus conhe-


sino regular nas próprias aldeias e garanta às


cimentos. Portanto, fundamenta-se na inter- sociedades indígenas o direito a uma educa-



culturalidade, trilha pelos caminhos da inter- ção específica, diferenciada e em todos os ní-

subjetividade e da percepção de outras lógi- veis. É preciso democratizar o acesso e garan-


cas, e instiga o educador a interpretar os con-


tir o percurso escolar a todos os interessados.


teúdos a as práticas a partir da sua própria con-



cepção de mundo (Bandeira, 1997).


Perfil dos cursos

Trata-se de cursos que vêm ao encontro


das expectativas dos povos indígenas, têm De forma sintética, podemos caracterizar

como ponto de partida e de chegada o que o perfil do professor indígena egresso dos cur-

pensam e o que esperam tais povos da edu- sos de Licenciatura como um educador capa-

cação escolar, e proporcionam o diálogo en- citado técnica, científica, étnica e culturalmen-

tre as culturas. te para desenvolver processos de reflexão, pes-



Longe de serem instrumentos de aliena- quisa, produção e reprodução cultural no âm-



ção “reprodutivista, etnocentrista ou integra- bito da escola, do povo indígena e da socieda-


de em geral.

cionista”, os cursos buscam reelaborar os pro-


cessos históricos e atuais dos contatos inter- Portanto, os cursos de formação deverão

culturais e fortalecer a consciência de índios- expressar esse perfil e garantir uma práxis fun-

cidadãos que mantêm as suas culturas, lín- dada nos seguintes pressupostos:

• afirmação da identidade étnica e da valo-


guas e projetos societários.


Como implementação de políticas públi- rização dos costumes, língua e tradições de



cas no campo da educação diferenciada, os cada povo;



cursos superiores para a formação de profes- • articulação entre conhecimentos e conteú-


dos culturais autóctones no cotidiano das


sores indígenas representam uma necessida-


de inadiável. aldeias, entendidas como laboratórios



Além do enorme contingente de alunos vivenciais entre cursistas, alunos e comu-


nidades indígenas;

matriculados nas escolas das aldeias, existe



uma crescente demanda hoje atendida em es- • busca de respostas para os problemas e ex-

colas regulares nas cidades. Nos últimos anos, pectativas das comunidades;

tal fluxo tem assumido dimensões alarmantes, • compreensão do processo histórico de-

quer pela restrição da oferta de educação es- senvolvido pelas comunidades indígenas

colar nas aldeias, quer pelo adiamento de uma


entre si e com a sociedade envolvente,


reflexão mais apurada sobre o papel da educa- bem como do processo de incorporação

ção escolar na perspectiva de cada sociedade. da instituição escolar no cotidiano indí-



Um levantamento preliminar, realizado pelo gena;



• estudo e utilização das línguas indígenas Objetivos dos cursos



no trabalho docente nas escolas das al-


Os cursos de Licenciatura têm por objetivo


deias;


geral a formação e a habilitação de professo-


• debate acerca dos projetos de vida e de fu-


res indígenas para o exercício docente no En-
turo de cada povo.


sino Fundamental e em disciplinas específicas



do Ensino Médio, conforme a área de termina-


Do ponto de vista organizacional, os cursos


lidade em que fizeram opção.


terão a seguinte configuração:


Os objetivos específicos dos cursos expres-


• são concebidos como mais uma etapa do
sam uma dinâmica de formação de qualidade


Programa de Formação de Professores In-


crescente, ancorada na permanente relação te-


dígenas que se desenvolve em Mato Grosso


oria-prática, manifesta em três níveis de com-


e serão implementados com a participação
petência:


das universidades públicas, do poder públi-


• compreensão do processo de educação es-

co estadual e federal, de organizações não-

colar, dos seus limites e possibilidades,
governamentais e de representantes indíge- ○

como uma nova prática social e cultural, que


nas;

se expressa em novas relações econômicas,


• visam à formação em nível de terceiro grau


políticas, administrativas, psicossociais, lin-


– Licenciatura Plena – de professores indí- güísticas e pedagógicas;



genas que atuam e/ou venham a atuar nas


• domínio de conhecimentos autóctones e


escolas de Ensino Fundamental e Médio;

das ciências que integram o currículo dos


• estão organizados de forma a contemplar


cursos de Licenciatura e de sua adequada


um ciclo básico de caráter geral e uma utilização na realidade sociocultural espe-



terminalidade específica. O ciclo básico terá cífica em que atua como professor;

a duração de quatro anos e objetiva a for-


• capacidade de organização e dinamização


mação geral do professor indígena no Ensi-


do currículo escolar e de implementação de


no Fundamental; a terminalidade específi-


estratégias didático-pedagógicas consonan-


ca, por sua vez, terá a duração de um ano e

tes com as demais práticas culturais utili-


visa à conclusão do curso mediante o apro-


zadas por uma sociedade ou por uma de-


fundamento de estudos em uma das áreas

terminada comunidade.

das ciências que compõem aquele nível de



ensino. Esses objetivos serão traduzidos no currícu-


lo dos cursos como núcleos de estudos ou ei-



xos temáticos e desenvolvidos nas disciplinas


Os cursos terão uma carga horária total de


que os compõem. Tal prática fará com que o li-


3.570 horas, assim distribuídas:


• estudos presenciais (10 etapas intensivas): cenciando indígena articule a formação teóri-

ca de cada núcleo de estudo com outros conhe-


1.900 horas;

cimentos, valores e habilidades disponíveis em


• estudos cooperados de ensino e pesquisa:


sua realidade sociocultural.


1.250 horas;

• estágios supervisionados: 420 horas.



Princípios curriculares

Uma vez concluídos, os cursos conferirão ao


O currículo dos cursos, entendido aqui


cursista o título de Licenciado numa das três


como o projeto que preside as atividades


áreas de terminalidade, a saber:

educativas, explicita suas intenções e propor-


• Licenciatura Plena em Ciências Matemáti-


ciona orientações para o desenvolvimento do


cas e da Natureza;

processo de ensino-aprendizagem (Seduc,


• Licenciatura Plena em Ciências Sociais;


1995), expressa-se pelo conjunto de conheci-

• Licenciatura Plena em Línguas, Artes e Li- mentos, habilidades, atitudes e valores que se-

teraturas. rão selecionados, organizados, debatidos e


52
SIMPÓSIO 4
Experiência do Ensino Superior Indígena

apreendidos pelos participantes dessa comuni- Assim concebidos, os cursos serão estrutu-



dade educativa especial (cursistas licenciandos, rados em duas etapas: uma de formação geral,



docentes, assessores, coordenadores). com duração de quatro anos, e uma de forma-



Por tratar-se de uma construção social e ção específica, com duração de um ano.


culturalmente situada, e por envolver sujeitos A etapa de formação geral compõe-se de



históricos com diferentes pedagogias e formas dois núcleos curriculares que se articulam com



de organização, a práxis curricular deverá reve- o objetivo de proporcionar aos cursistas a com-


lar o seu compromisso com esses sujeitos e com preensão dos elementos construtivos da Edu- 53



as suas histórias, sociedades e culturas (SMED, cação Escolar Indígena e os conhecimentos ne-



1996). Portanto, os cursos de Licenciatura, cessários para a prática docente no Ensino Fun-



como ademais todo o processo educacional es- damental.


colar, não são entendidos como um espaço ho- • O primeiro terá como objeto a reflexão acer-



mogêneo de mera reprodução ou de plena li- ca dos processos pedagógicos que com-



berdade e criação humana. Como parte de um põem a práxis escolar e os projetos socie-


tários que a orientam.


processo aberto e flexível, traz em seu interior


tensões e conflitos de ordem étnica, política, • O segundo enfocará o tratamento dos con-


lingüística, entre outras, que expressam a dinâ- teúdos das diversas áreas do conhecimento

mica da interculturalidade (Monte, 1996). que integram o currículo escolar indígena


do Ensino Fundamental.

Estruturas curriculares

Nessa etapa, portanto, serão aprofundados


os conceitos e os conteúdos necessários para


dos cursos

a formação desse novo agente de produção e



A estruturação de um currículo diferencia- reprodução cultural denominado “professor


do para os cursos de Licenciatura é fundamen- indígena”.



tal no processo de construção e reconstrução A etapa de formação específica será desen-



das escolas indígenas. Deve ser estabelecida a volvida no último ano do curso e terá como

partir do “repertório nacional” (EBI/Equador, enfoque principal o desenvolvimento de uma


1997) e dos “processos pedagógicos próprios” pesquisa teórica e/ou de campo numa das

(Diretrizes/MEC, 1993) dos cursistas e das suas áreas das ciências que compõem o currículo

comunidades educativas, abrindo-se progres- do Ensino Fundamental. Para tanto, os cur-



sivamente para o aprofundamento de outros sistas farão a opção por uma das três termi-

conhecimentos de caráter geral e de caráter es- nalidades: Ciências Matemáticas e da Natu-



pecífico, assim como de habilidades e atitudes reza; Ciências Sociais; ou Línguas, Artes e Li-

próprias do exercício docente. teratura, e nela desenvolverão o estudo



A incorporação nos cursos dos “conheci- monográfico que será apresentado como tra-

mentos étnicos” e das “pedagogias próprias” balho de conclusão de curso.



garantirá a vivência da interculturalidade e A exemplo do que ocorre nos demais proje-



permitirá reordenar e reinterpretar as meto- tos de formação de professores em Mato Gros-



dologias e os conhecimentos de cada curso à so, os cursos de Licenciatura seguirão um ca-


luz do contexto em que este se situa (RCNEI/ lendário específico, composto por duas moda-

MEC, 1998). lidades letivas. A primeira, de caráter presencial



Portanto, as opções curriculares devem ex- e trabalho intensivo, ocorrerá semestralmente,



pressar um “acordo intercultural” que define quais coincidindo com o período de férias e recessos

serão os conhecimentos de caráter geral e espe- escolares dos cursistas. A segunda, de ativida-

cífico de cada núcleo de estudo e as estratégias des cooperadas, nos períodos intermediários

mais adequadas para obter os melhores resulta- entre uma etapa intensiva e outra, possibilitan-

dos na aprendizagem. Tal acordo será construído do aos cursistas conciliar suas atividades docen-

e reconstruído em cada uma das etapas de pla- tes nas escolas com as atividades do curso de

nejamento, execução e avaliação curriculares. formação (preparo de seminários, leituras, pes-



quisas solicitadas etc.). Desse modo, a práxis A décima etapa intensiva será dedicada pri-



docente e o processo de formação ocorrerão si- oritariamente à redação final da monografia, à



multaneamente, num contínuo exercício de sua apresentação e apreciação e à avaliação fi-



comunicação dialógica. nal do programa, dos cursos e dos cursistas.



Os estágios


Temáticas centrais



do primeiro ciclo supervisionados




O primeiro ciclo de estudos constará de oito Os estágios supervisionados compõem o



etapas letivas de caráter intensivo e de oito eta- currículo dos cursos e serão desenvolvidos


pas de estudos cooperados, pesquisa e ativida-


nas unidades escolares em que os cursistas


des docentes dos cursistas, desenvolvidas en- atuam como professores. Integram as ativida-



tre uma etapa intensiva e outra. des das etapas de estudos cooperados e con-



Cada semestre letivo é composto por uma tam com o acompanhamento regular das

das etapas letivas intensivas e uma de estudos ○

equipes de supervisão dos cursos. Tais equi-
cooperados, e terá uma temática central sobre pes atuarão regionalmente, conferindo unida-

a qual serão desenvolvidos os conteúdos cur- de e sistematização aos trabalhos teórico-prá-



riculares das três áreas de estudo. ticos desenvolvidos nas escolas, de tal forma

que a atividade docente dos cursistas e o seu



Temáticas centrais estágio super visionado expressem-se em



práxis pedagógica.
do segundo ciclo

Buscando maior integração entre as ativi-


O currículo do segundo ciclo de estudos es- dades vinculadas aos cursos de Licenciatura e

tará centrado na definição, desenvolvimento e as demais atividades de ensino, pesquisa e ex-



apresentação de um trabalho monográfico de tensão das universidades, as equipes de acom-


final de curso.

panhamento de estágio serão apoiadas por do-


Para tanto, no final da oitava etapa letiva centes e pesquisadores que, em seus proces-

intensiva, os cursistas, acompanhados pelos sos de qualificação, optarem por desenvolver



docentes daquela etapa, definirão a área de estudos relacionados com a temática indíge-

terminalidade (Ciências Matemáticas e da Na-


nas.

tureza; Ciências Sociais; ou Línguas, Artes e Li- Nessa perspectiva, beneficiam-se os profes-

teraturas) a partir da qual cada um desenvolve- sores indígenas e as suas comunidades, uma vez

rá a sua pesquisa e o seu trabalho final. No iní- que em seus estágios supervisionados poderão

cio do nono semestre letivo, os cursistas, agora


contar com o acompanhamento regular e sis-


agrupados por áreas de concentração, terão o temático de docentes das universidades em



acompanhamento dos docentes que os orien- processo de qualificação; beneficiam-se tam-



tarão ao longo do desenvolvimento de todo o bém as instituições, seus mestrandos e douto-


trabalho monográfico. randos, por disponibilizarem excelentes cam-



Cada uma das áreas de terminalidade deci- pos de pesquisa e extensão universitária, asso-

dirá sobre a sua estratégia de trabalho, definirá ciando as suas atividades de campo com um

seus temas e problemas de estudo, os objetivos amplo e inédito programa de formação de pro-

a serem alcançados, a metodologia de trabalho fessores indígenas em serviço.



e todos os demais itens que compõem a produ- Para efeitos da integralização dos cursos, o

ção de uma monografia. desempenho de cada cursista e os produtos exi-



Ao término da nona etapa letiva intensiva, gidos ao final do estágio supervisionado serão

o cursista deverá estar em condições de retornar avaliados com base no processo adiante descri-

à sua comunidade e desenvolver as atividades to. De forma sintética podemos apresentar o



programadas, incluídas, aí, uma versão prelimi- programa curricular dos cursos conforme qua-

nar do trabalho de conclusão de curso. dro a seguir.


54
SIMPÓSIO 4
Experiência do Ensino Superior Indígena

Tabela 4





Quadro-síntese do programa curricular e respectivas cargas horárias




Estudos Estudos Estágio


presenciais cooperados supervisionado Total (horas)


Semestre Temática


(horas) (horas) (horas)



1o Gênese 190 125 – 315 55



o
2 Tempo 190 125 60 375



o
3 Espaço 190 125 60 375



o
4 Cotidiano 190 125 60 375



o
5 Sociedade 190 125 60 375



o
6 Água 190 125 60 375



7o Território 190 125 60 375



o
8 Autonomia 190 125 60 375


o
9

Monografia 190 125 – 315

o
10 Monografia 190 315

125 –

TOTAL 1.900 3.570


1.250 420




Processo de avaliação Formação dos docentes



que atuarão nos cursos


A avaliação do Programa de Formação de



Professores Indígenas de Mato Grosso e dos seus


Um projeto com a amplitude e as caracte-


respectivos projetos e cursos é vista como uma


ação fundamental da atual política de educação rísticas aqui apresentadas, além de recursos fi-

escolar. Trata-se da oportunidade de tomar de- nanceiros e esforços coletivos para a sua for-

cisões sobre o encaminhamento dos trabalhos, mulação, demanda uma ampla rede de profis-

sionais especializados para a sua implementa-


tendo em vista a construção do projeto político


e pedagógico de cada comunidade indígena. ção. Em virtude da especificidade dos cursos, é



No que diz respeito aos cursos de Licencia- preciso também que esses profissionais este-

tura, tal estratégia não é diferente. A avaliação jam dispostos a compartilhar suas experiênci-

as, reorientar suas práticas, enfim, adequar o


permanente e continuada é condição funda-


mental para a tomada de decisões ao longo do seu fazer pedagógico para atender a uma “cli-

processo de desenvolvimento curricular e cons- entela” especial, qual seja, 200 professores in-

dígenas de 20 diferentes etnias.


titui parte integrante dessa atividade.


A formação dos profissionais que atuam


A avaliação não deverá ser entendida como


um objeto de tensões e de inseguranças, mas como docentes nos cursos de Licenciatura



como um processo contínuo, em que todos os ocorre sempre antes do início de cada período

de atividades presenciais e intensivas e é de-


envolvidos, em todas as atividades, são avalia-


nominada “etapa de formação e planejamen-


dos (não apenas os cursistas e o resultado de


seus trabalhos, mas também os docentes dos to”. Dela participam, além da equipe coorde-

cursos, as etapas dos cursos, o projeto de for- nadora dos cursos, todos os docentes e asses-

sores que atuarão naquele semestre letivo. Têm


mação etc.). A avaliação constituir-se-á opor-


tunidade de observar e avaliar os avanços e os duração média de uma semana (40 horas) e vi-

empecilhos no decorrer do curso, possibilitan- sam a debater e a planejar os conteúdos (pre-



do, assim, definir as ações mais adequadas para viamente definidos) e as estratégias a serem

adotadas naquele período letivo.


alcançar os objetivos propostos.



A coordenação do projeto acompanhará res sociais com habilidades de redefinir as rela-



permanentemente as atividades programadas ções sociais de poder existentes, que estarão



para as etapas intensivas, os estágios supervi- tornando a universidade indígena uma realida-



sionados e os estudos cooperados, garantindo, de. O que se está garantindo hoje é a base para


assim, o cumprimento das diretrizes gerais do esse percurso, ao se criarem os instrumentos



projeto. Portanto, a etapa de formação e plane- teóricos e analíticos que permitam a compre-



jamento é parte fundamental do projeto de for- ensão dos conhecimentos do mundo ocidental,


mação, quer por responder às demandas ine- sem violentar a cosmovisão e os valores



rentes a cada período letivo, quer por formar e etnoculturais das diferentes etnias.



disponibilizar em nossas instituições um qua- A criação, num futuro próximo, de um cen-



dro de docentes e assessores especializados em tro de excelência indígena é fundamental, na


Educação Escolar Indígena. medida em que será um espaço de luta e de es-



tabelecimento de relações recíprocas de valo-



res, onde as culturas estarão se fortalecendo
Considerações finais ○


mutuamente e, principalmente, os povos indí-
A criação de cursos superiores específicos e genas estarão traçando, eles próprios, os seus

diferenciados para a formação de professores projetos societários de vida.



indígenas significa a oportunidade de empre-


ender um diálogo da interculturalidade. Repre-



senta a construção de novos marcos conceituais


Bibliografia

mediante a compreensão da alteridade. Será um



novo espaço onde frutificará a investigação ci-


BANDEIRA, Maria de Lourdes. Educação e diversidade


entífica e a preparação técnica.

cultural: interculturalidade como episteme. Cadernos de


A presença de 200 professores indígenas de


Educação. Cuiabá: UNIC, 1997.


35 etnias na universidade significa o reconheci- GOVERNO DO ESTADO DE MATO GROSSO. Projeto de



mento público da existência de outras identida- Cursos de Licenciatura Específicos para a Formação

des e de outras formas de saber que não apenas


de Professores Indígenas. Cuiabá, Mato Grosso, 2000.


a do “homem branco”. Significa a oportunidade MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. Secretaria de Educação Fun-



de empreender o fortalecimento e a valorização damental. Diretrizes para a Política Nacional de Educa-


ção Escolar Indígena. Brasília, 1993.


da auto-estima dos povos indígenas do Brasil,

. Referencial Curricular Nacional para as Es-


fustigado pelo processo colonizador empreen-

colas Indígenas. Brasília, 1998.


dido nos últimos séculos aos ameríndios.


MONTE, Nietta L. Escolas da floresta: entre o passado oral


Será na perspectiva da problematização e da e o presente letrado. Rio de Janeiro: Multiletras, 1996.


investigação, com uma postura dialógica de en-


SECRETARIA DE EDUCAÇÃO DE MATO GROSSO


tendimento e compreensão dos modos de (SEDUC). Projeto Tucum : Programa de Formação de



inteligibilidade dos professores índios, que es- Professores Indígenas. Cuiabá, 1995.

SMED. Ciclo de formação: proposta político-pedagógica da


taremos estabelecendo um novo paradigma na


escola cidadã. Cadernos Pedagógicos , n. 9. Porto Ale-


forma de pensar a diferença, particularmente

gre: Secretaria Municipal de Educação e Cultura, 1996.


no campo da educação escolar.


UNIVERSIDAD DE CUENCA. Projeto EBI – Educação Bi-


Serão os próprios professores indígenas for- língüe e intercultural . Quito/Equador: EBI/GTZ/DINEIB/



mados pelos cursos de Licenciatura novos ato- ENICEF/UNESCO, 1997.
















56
SIMPÓSIO 4
Experiência do Ensino Superior Indígena

A formação universitária




para os povos indígenas na UFMG






Maria Inês de Almeida*





57



A partir da necessidade de uma formação tos Língua Indígena e Terra, as diferentes formas



universitária, explicitada pelos professores indí- de organização escolar (em que tempos e espa-



genas formados em Magistério pelo Programa de ços correspondem à lógica da aldeia e não à da


Implantação de Escolas Indígenas de Minas Ge- cidade), o material didático (livros, cartilhas, jo-



rais, propomos à Universidade Federal de Minas gos, vídeos, discos, CD-ROMs, feitos pelos pró-



Gerais (UFMG) a elaboração conjunta de um prios professores) e outros instrumentos peda-


projeto para criação de um curso experimental,


gógicos (constantes reuniões com as respectivas


específico e diferenciado, cujo eixo temático será comunidades, professores de língua e cultura



a Educação Intercultural e Bilíngüe. indígenas contratados para atuar na escola, de-

O objetivo da proposta é viabilizar, por meio vido a sua representação política/espiritual, e a


do apoio dos órgãos competentes da UFMG, a


sua sabedoria lingüística ou medicinal), tudo isso


elaboração de um projeto de criação de um cur- exemplifica uma prática que, na realidade, apon-

so de graduação específico e diferenciado, com ta um caminho para uma forma mais eficiente

ensino presencial e a distância, para habilitação de conjugar tradições até agora conflitantes no

do educador intercultural indígena.


cenário escolar brasileiro.


Em dezembro de 1999, a Secretaria de Esta- As ciências e as artes, campos que se deline-



do da Educação de Minas Gerais concedeu o di- aram na chamada civilização ocidental por meio

ploma de Magistério (considerado Nível Médio da escrita alfabética, e os saberes que, no seio

de Ensino) a 66 professores Xacriabá, Maxakali, mesmo dessa civilização, continuam a se desen-



Pataxó e Krenak, que, desde 1997, nas suas al- volver e a se transmitir oralmente, podem se co-

deias, já atuam em classes de 1ª a 4ª séries do locar em diálogo, desde que se criem instâncias

Ensino Fundamental. adequadas e produtivas.


Esses professores foram formados por um Ao longo dos cinco anos de duração do cur-

programa da Secretaria de Educação, em convê- so de Magistério indígena, uma metodologia ra-



nio com a UFMG, o IEF, a Funai, e com o apoio do dicalmente baseada na pesquisa e na experiên-

MEC, que teve por princípio básico a construção cia, a cada momento era repensada e reestru-

teórica e conceitual conjunta entre formadores, turada a partir de informações da prática auto-

formandos e respectivas comunidades, a partir da ral dos professores. Suas técnicas de ensino, suas

experimentação e da pesquisa, sempre com um conversas com as lideranças e com os velhos da



sentido de processo em direção à criação coleti- aldeia, suas práticas escriturais, seus contatos

va da chamada Educação Escolar Indígena. interculturais (com os formadores, na maioria



Um dos aspectos mais significativos dessa docentes da UFMG; com técnicos de órgãos pú-

construção simbólica coletiva tem sido a auto- blicos; com os colegas de outras etnias; com edi-

ria indígena: o esforço para se imprimirem as


tores e jornalistas etc.) são algumas das práticas


marcas das diferentes tradições étnicas nos pro- novas que a criação da escola indígena transfor-

dutos dessa escola. Os programas curriculares, mou em laboratório do conhecimento sobre a



os projetos pedagógicos centrados nos elemen- interculturalidade e o plurilingüismo.







* Professora de Literatura Brasileira na UFMG. Coordenadora de formação dos professores Krenak e da área de Múltiplas Linguagens no

Programa de Implantação das Escolas Indígenas de MG, da SEEMG.



São, portanto, esses 66 professores indígenas nos diversos níveis de poder público municipal,



que reivindicam agora o direito de continuar essa estadual e federal.



experiência em direção à criação de um novo Em março de 2001, houve um encontro de



campo de estudos, qual seja a educação representantes dos professores indígenas com


intercultural bilíngüe, tão necessário, na nossa representantes da Secretaria de Educação e da



opinião, para a consolidação de um paradigma UFMG, e, por um dia inteiro, pensamos juntos



mais inclusivo para o desenvolvimento de uma sobre como iniciar o debate em torno desse pro-


forma brasileira de produzir pensamentos váli- jeto. Consideramos de fundamental importân-



dos, diante, por exemplo, da comunidade cien- cia a construção processual dessa proposta, para



tífica internacional. É um sonho que, para ser não corrermos o risco de perder a oportunidade



realizado, necessariamente, deverá ser incorpo- de criar algo novo: uma educação que seja fruto


rado pela universidade. Isso explica o enorme das parcerias estabelecidas com os sujeitos in-



interesse dos índios em se introduzirem nesse teressados e os professores da UFMG. Devemos



espaço privilegiado da pesquisa científica. considerar a enorme dívida social que o Estado


Pretendemos que essa elaboração se dê como ○
brasileiro tem com essas populações e a deman-
um processo que, ao mesmo tempo, defina o for- da e busca de uma saída com verdadeira auto-

mato do curso, atividades, cronogramas e parce- nomia por parte das nações indígenas, como

rias e seja em si mesmo parte da formação dos bem expressam as palavras de Marcos Krenak:

professores. Isso se efetivará com a ajuda e a par-


ceria do Programa de Implantação das Escolas In-


A comunidade não quer ver o branco, um en-


dígenas da Secretaria de Estado da Educação de


fermeiro sem conhecer a nossa realidade. A gen-


Minas Gerais, aproveitando parte de sua progra-


te quer que os próprios índios assumam o contro-


mação e de recursos já previstos para a educação

le, não só da saúde, mas da agricultura, para fa-


continuada dos professores formados.


zer projetos com a Emater. Eu sou professor, mas


As aldeias ficam distantes de Belo Horizonte


existem outras funções que eu deveria exercer, ou


e os índios são os professores das escolas, por- um outro. Mas é preciso ter algum curso superior.

tanto, não podem se ausentar de suas ativida-


Meu irmão sempre fala, um dia eu quero ser ad-


des. A experiência piloto é a própria elaboração


vogado, ele quer fazer um curso, e quem sabe ele


do projeto, em que os índios serão seus princi- vai ser mesmo um advogado e defender os direi-

pais agentes. Prioritariamente, será necessária a tos nossos? Existem outras pessoas com diferen-

aquisição de equipamentos de gravação de vídeo tes vontades também. Quantas vezes eu já che-

e áudio para que eles procedam ao diagnóstico guei perto de um parente lá e fiquei ouvindo ele

em cada uma das aldeias, visando a definir os falar: nós precisamos de um que lute por nós, que

corra atrás dos problemas que temos. A gente pre-


temas a serem abordados durante a formação


universitária. O diagnóstico será uma atividade cisa do branco também, mas tem que ter alguém

que tenha conhecimento lá fora. Como é que eu


de educação continuada, parte fundamental da

vou chegar num ministro da Cultura? Eu não te-


formação dos professores, tanto no que diz res-


nho força, então, através de outros colegas bran-


peito ao domínio metodológico da pesquisa,


cos, é que eu vou chegar lá.


como dos instrumentos técnicos de registro. Há

Nós fizemos um projeto com o Ministério da


uma grande necessidade e, portanto, uma ênfa-


Agricultura que não foi adiante. Eles compraram


se, na produção coletiva e original de material uns tratores que, quando quebra uma peça, tem

didático para as escolas indígenas, o que justifi- que buscar a tal peça lá num sei onde. Isso é por-

ca o investimento nessa área.


que não tem entre nós alguém que entenda, que


Uma questão política fundamental é a insta- vai lá, mexe, conserta.



lação de telefones em todas as áreas, já que esse O branco chega lá e diz, vocês têm aqui um

será o instrumento principal dos módulos de projeto de tantos mil reais, o que vocês vão fazer

ensino a distância, viabilizando o contato dos com o projeto? Nós vamos fazer plantio, eles vão

professores com a equipe da UFMG, no mínimo lá para comprar adubo, não sei mais o quê, coisa

semanalmente. Essa articulação deverá se dar que nem sequer precisa. Nós mesmos temos de

58
SIMPÓSIO 4
Experiência do Ensino Superior Indígena

80, vem reativando e potencializando as propos-


conhecer, de tomar conta, de fazer da nossa ma-


neira. Um técnico agrícola, um índio mesmo, pode tas de vanguarda é precisamente a tecnologia.



ser um agrônomo, isto é que é importante para nós. [...] O que ocorre é a viabilização, num grau sem


precedentes, das linguagens e procedimentos da



modernidade – a montagem, a colagem, a
Ensino bilíngüe



interpenetração do verbal e do não-verbal, a


A língua apresenta a oportunidade de um jogo sonorização de textos e imagens – em suma, a



na vida social. Sua representação, como mais um multiplicação do processo artístico. [...] Outro 59


fator relevante é a maior autonomia que a


bem simbólico, entre outros possíveis, não quer


exatamente comunicar. Serviria antes para acres- informatização pode proporcionar aos artistas.



À medida que estes possam ter a sua própria
centar mais uma regra no jogo da comunicação.


miniestação computadorizada, ou em que se as-


Mesmo a ressonância de um dado, uma cifra,


sociem a ilhas de produção e edição de outros


como “180 línguas faladas, no Brasil, além do Por-


artistas independentes para a realização de suas
tuguês”, veiculada pela mídia, modifica o contex-


experiências, terão muito melhores condições


to literário e cultural do país. Cria no leitor da in-


para resistir à convencionalização dos meios de


formação a expectativa de que novas formas apa- informação, cujos implementos técnicos até



recerão. Daí a possibilidade da presença de ou- aqui lhes foram negados. E para insistir na des-

tras vozes, outros corpos, outros textos. Esse foi ○

coberta de novas formas de o homem conhecer


um dos sentidos que norteou o Programa de Im- e se conhecer, livres quer dos constrangimen-

plantação das Escolas Indígenas de Minas Gerais, tos da linguagem convencional quer das máqui-

ao investir na produção de livros em Krenak,


nas de produção massificada pela ideologia do


Pataxó ou Maxakali, por exemplo, dirigidos não lucro imediato.



só às escolas indígenas em criação, mas também



ao público brasileiro. Esses textos, ícones, prefi- Segundo esse autor, os textos produzidos a

guram a presença corporal de um novo inter- partir das novas formas escriturais escapam ou

locutor, que, no entanto, sempre esteve ali. Uma destoam de uma tradição milenar, do desenho

nova reaproximação é tentada. E somente o de- histórico que vem dos embriões mesopo-

senvolvimento dos diferentes estilos garantiria a tâmicos da escrita ou dos primeiros alfabetos

relação intercultural, em vez do englobamento ou consonantais e vogais da Fenícia e da Grécia.



da sobreposição de uma forma por outra. Uma outra tradição, além da escrita alfabética,

O que, para nós, garante a relação intercultural, se coloca no espaço não-linear das novas

porque se encontra na sua base, é o diálogo entre mídias, estimulando o espírito em outras dire-

as diferentes vozes. Um projeto de curso cuja ções, rumo ao espaço aberto de uma outra ló-

metodologia de ensino se baseie na produção tex- gica, a do a-racionalismo.



tual e audiovisual, na autoria coletiva, no domínio Por que essa discussão nos interessa, quan-

das técnicas escriturais, eletrônicas e digitais nas do trabalhamos com a formação dos professo-

suas diversas bases e instrumentos, não se justifi- res indígenas?



ca apenas pela necessidade de se viabilizar o aces- O que estamos propondo, de certa maneira,

so dos povos indígenas à universidade, mas, an- se integra a um esforço das próprias vanguardas

tes, pela oportunidade de produzirmos, conjunta- artísticas, de transformar em vantagem as supos-


mente, novos conhecimentos e metodologias. tas limitações de uma cultura que só tardiamente

Augusto de Campos, poeta e tradutor, na ingressou no mundo da escrita. Acreditamos que



conferência Morte e vida da vanguarda: a ques- as comunidades indígenas – pelas dificuldades


de integração à sociedade brasileira, as quais lhes


tão do novo (1998: 161), dá uma pista que nos


ajuda a fundamentar o ponto de vista de nossa são impostas por todas as instituições que as

proposta de ensino a distância: cercam, inclusive escola e Estado (sistematica-



mente escriturais), e pela impressionante resis-


tência com que souberam conservar formas


Para mim, o fato novo para a produção artística


que, emergindo mais claramente na década de (míticas, artísticas), linguagens, princípios mo-


rais e religiosos – possuem hoje um enorme ar-


Nem ciência, nem arte, talvez uma rede de


senal de conhecimentos tradicionais pratica-


trocas simbólicas, em que, de posse dos meios


mente intocados pelas relações interculturais, de comunicação, os diferentes povos, com suas



ainda que façam parte do enorme caldeirão em diferentes linguagens, poderão expressar seus


que se faz a mestiçagem no Brasil.


desejos.







A pesquisa na formação do professor




como parte da educação continuada



preparatória para o curso superior




Marilda C. Cavalcanti ○

Unicamp/SP



Resumo



Focalizando a educação continuada, pós-magis- possibilidade de estabelecer convergências/diver-



tério indígena, no contexto acreano, em curso desen- gências entre as etnias focalizadas.

volvido e organizado pela Comissão Pró-Índio do Na apresentação da metapesquisa, ou seja, da


Acre, este trabalho objetiva uma reflexão sobre a par- pesquisa etnográfica em desenvolvimento pelos

ticipação de treze professores de seis etnias professores indígenas, aponto a importância da



(Asheninka, Katukina, Kaxinawá, Manchineri, pesquisa do professor em sua formação, que, ge-

Shawãdawa e Yawanawá) no desenvolvimento de um ralmente, ocorre em serviço durante o curso de



projeto coletivo de pesquisa sobre a sala de aula e Magistério. Se há aí um início de trabalho, relevan-

suas extensões. Esse projeto é parte da disciplina de te seria haver uma continuação no curso superior

Iniciação à Pesquisa. Neste trabalho, examina-se o indígena. Em resumo, propõe-se que a educação

projeto coletivo por meio de uma metapesquisa, vi- do professor indígena vá além da educação do pro-

sando à derivação de implicações para o Ensino Su- fessor não-índio (que, geralmente, não contempla

perior indígena no cenário brasileiro. espaço para pesquisa). Por outro lado, há pelo me-

A pesquisa, foco da metapesquisa, é uma nos duas questões para discussão: a) o perigo de se

etnografia escolar nas comunidades das diferen- “naturalizar” o fazer pesquisa pelo professor indí-

tes etnias envolvidas e será examinada a partir dos gena e a conseqüente obrigatoriedade da pesquisa

olhares dos professores indígenas. São também na formação do professor; e b) a “naturalização” do


parte do desenho da pesquisa os olhares das co- Ensino Superior e o conseqüente peso colocado no

munidades, dos alunos de escolas indígenas, de professor indígena para que faça um curso de gra-

assessores não-índios em visita às aldeias e de téc- duação Em outras palavras, o que é importante, do

nicos da Secretaria da Educação. Como a pesquisa ponto de vista da sociedade dominante, pode não

ainda está em andamento, não será possível foca- o ser, do ponto de vista dos professores indígenas.

lizar todos esses pontos de vista. Na obrigatoriedade decorrente da naturaliza-



É importante apontar que os comentários que ção de se fazer um curso superior, surgem duas per-

faço são relativos somente ao contexto de pesqui- guntas: 1) Essa “obrigatoriedade” não corre o risco

sa focalizado, preparatório para o Ensino Superi- de apagar o pressuposto de que os professores in-

or. A situação pode ser muito diferente com ou- dígenas passaram pela Educação Indígena, educa-

tros povos indígenas em outros lugares do país. ção essa que prescinde da escola? 2) Qual é a rela-

Como acontece em trabalhos etnográficos, não se ção dessa “obrigatoriedade” com o mito do

buscam generalizações. Busca-se, no máximo, uma letramento ocidental?




SIMPÓSIO 5

AS ORGANIZAÇÕES
DE PROFESSORES NO BRASIL:
RELAÇÕES COM AS POLÍTICAS
PÚBLICAS E AS ESCOLAS INDÍGENAS
Jaime Costódio Manoel

Cristóvão Teixeira Abrantes

61
A luta dos professores Ticuna






Jaime Costódio Manoel*






Resumo


região onde se concentra a maior parte da po-


pulação Ticuna que vive em território brasileiro.



A Organização Geral dos Professores Ticuna Bi- A OGPTB tem por objetivos principais de-



língües (OGPTB) foi criada em 1986, com o objetivo senvolver projetos e programas destinados à


de congregar os professores ticunas, lutar pela implan-


formação dos professores Ticuna, à preparação


tação de uma educação diferenciada nas escolas e pro- de materiais didáticos específicos, organizar



mover ações que garantam o cumprimento dos direi- propostas curriculares, além de outras ações


tos constitucionais assegurados aos povos indígenas.

que possibilitem maior autonomia pedagógica

Por meio dos cursos promovidos pela OGPTB, 225 pro- ○

e administrativa das escolas. A OGPTB vem lu-
fessores concluíram o Ensino Fundamental, dos quais
tando pela valorização da língua materna, da

170 terminaram o Ensino Médio com habilitação para


arte e dos conhecimentos tradicionais; por uma


o Magistério em julho de 2001.


escola que participe da vida da comunidade, da


Apesar dos esforços do Ministério da Educação

defesa da terra e da saúde do povo Ticuna; pelo


no sentido de implantar uma nova política de Edu-


cumprimento dos direitos constitucionais as-


cação Escolar Indígena, os princípios de uma edu-


cação diferenciada ainda não fazem parte das polí- segurados aos povos indígenas.

ticas públicas locais. Com isso, os professores ticunas Por meio dos cursos promovidos pela

OGPTB, 225 professores já concluíram o Ensi-


ainda enfrentam uma série de dificuldades para con-


duzir suas escolas com maior autonomia pedagógi- no Fundamental, dos quais 170 concluíram o

ca e administrativa, mesmo que a OGPTB tenha to- Ensino Médio (2º Grau – Magistério) em julho

mado várias providências no sentido de buscar mai- de 2001. Em julho de 2002, mais 35 professores

or articulação com as prefeituras municipais, às concluirão o Ensino Médio.



quais estão vinculadas as escolas indígenas. O Curso de Formação de Professores Ticuna



foi criado por iniciativa dos professores mem-



Em 1983, um grupo de professores Ticuna bros da OGPTB, em face da inexistência, na re-


reúne-se na aldeia de Santa Inês para discutir gião, de cursos que oferecessem uma formação

os problemas de suas escolas e de sua forma- em serviço.



ção. Mais adiante, em 1986, um grupo maior de Forçados pelo descaso e pelo abandono dos

professores reúne-se novamente, dessa vez para órgãos governamentais, que atuam direta ou indi-

fundar a Organização Geral dos Professores retamente na região, e conscientes da necessida-



Ticuna Bilíngües (OGPTB). Em 1993, a OGPTB de de aperfeiçoar seus conhecimentos e sua práti-

constrói na aldeia de Filadélfia, no município ca pedagógica, os professores reuniram-se em 1993



de Benjamin Constant, o Centro de Formação para iniciar um projeto específico que os levasse à

de Professores Ticuna-Torü Nguepata e, em conclusão do então 2º Grau, com habilitação para



1994, cria seu próprio estatuto. o exercício do Magistério. Nesse tempo, 97% dos

Hoje em dia, a OGPTB congrega cerca de 260 professores não possuíam o 1º Grau completo, sen-

professores ticunas, que trabalham com 7.997 do que 30% do total exercia o Magistério há mais

alunos de 1ª a 4ª séries, em 103 escolas distribu- de dez anos e 32% encontrava-se na faixa de cinco

ídas nos municípios de Benjamin Constant, a nove anos de serviço. Os professores estavam

Tabatinga, São Paulo de Olivença, Amaturá e convencidos de que, para transformar a escola

Ticuna, seria preciso investir na sua formação, de


Santo Antônio do Içá, no estado do Amazonas,






* Representante da OGPTB na Secretaria de Educação do Município de São Paulo de Olivença/AM; membro da equipe de supervisão escolar.

62
SIMPÓSIO 5
As organizações de professores no Brasil: relações com as políticas públicas e as escolas indígenas

modo que eles próprios fossem os principais agen- na. Seus esforços se deram também no sentido



tes dessa mudança. de buscar sempre uma articulação com as pre-



Mas para levar adiante esse projeto, os feituras e suas Secretarias de Educação, assim



professores enfrentaram uma série de dificul- como com a Secretaria Estadual de Educação,


dades. A proposta do curso sofreu diversas promovendo reuniões, encontros regionais e



modificações para se adequar ao modelo tra- outras ações.



dicional exigido pelo Conselho Estadual de Fica evidente, portanto, que a transforma-


Educação. O curso teve de ser dividido em ção dessa escola e a autonomia dos professores 63



dois níveis e, para cumprir a carga horária não correspondem aos interesses políticos lo-



exigida, foram necessárias 15 etapas, realiza- cais; na maior parte dos casos, os princípios da



das no período das férias, ou seja, quase oito Educação Indígena não foram incorporados às


anos de curso. Enquanto a formação dos pro- políticas públicas locais. Assim, a implantação



fessores prosseguia, pois se tratava de uma de uma escola diferenciada, de qualidade, es-



situação emergencial, a OGPTB esperava a pecífica e pluricultural, como consta dos tan-



autorização do Conselho. O curso em nível de tos documentos oficiais, dependerá não somen-


1º Grau obteve essa autorização em 1996, e a te do esforço e da luta dos professores índios



do 2º Grau saiu somente no ano 2000. Foram no sentido de melhorar sua formação, desen-

anos de espera. Se de um lado havia um am- volver métodos e conteúdos específicos ou pro-

plo movimento do Ministério da Educação duzir materiais didáticos diferenciados, mas de


para estabelecer uma nova política de Educa- uma mudança mais rigorosa na postura das ins-

ção Escolar Indígena no país, de outro, havia tituições às quais estão vinculadas as escolas

um distanciamento de algumas instituições e indígenas.


sérias dificuldades na compreensão desse Dessa forma, os professores Ticuna esperam



movimento e na adequação de suas estrutu- que sua luta de tantos anos venha a ter o reco-

ras internas. nhecimento que merece, e que suas escolas



Até hoje a mudança no quadro da Educa- possam existir como Escolas Ticuna.

ção Escolar Indígena ainda constitui um pro-



cesso difícil de ser assimilado, especialmente


Premiações da OGPTB

pelas prefeituras municipais, às quais estão vin-



culadas as escolas ticunas, com exceção de duas


que são estaduais.


O Livro das Árvores


Desde o início do projeto, a OGPTB vem lu-


2º Prêmio no Concurso Experiência Viva,


tando para que as prefeituras reconheçam a im-


com a participação de 15 países da Amé-


portância do Curso de Formação de Professores rica Latina e Caribe, realizado em Iquitos,


Ticuna, a importância dos materiais didáticos


Peru, agosto de 2001. Promoção: Procasur,


produzidos pelos professores, a importância de


Fida, CAF, Praia, Progenero.


um programa curricular diferenciado, a importân-



cia do Programa de Supervisão Escolar desenvol-


Projeto Educação Ticuna


vido por uma equipe de professores, a importân-

cia da língua materna na escola, a importância da Prêmio Destaque do Programa Gestão Pú-

presença do professor índio na escola, a impor- blica e Cidadania – 2000, conferido por

Fundação Getúlio Vargas e Fundação Ford.


tância de um concurso diferenciado, a importân-


cia de um pagamento em dia para os professores,



a importância de prédios escolares em condições, O Livro das Árvores



entre outras tantas coisas importantes que fazem


Prêmio Melhor Livro Informativo e Prêmio


parte da vida da escola indígena. Melhor Projeto Editorial – 1997, conferi-


A OGPTB, durante esses anos todos, vem


do pela Fundação Nacional do Livro Infan-


cumprindo as determinações da legislação bra- til e Juvenil.



sileira com relação à Educação Escolar Indíge-



Organização dos professores




indígenas de Rondônia e noroeste




de Mato Grosso: relações com




políticas públicas de educação e




as escolas indígenas






Cristóvão Teixeira Abrantes



Opiron/RO





Durante a década de 1970, foram realiza- Em busca de alternativas viáveis que so-


das as primeiras assembléias e a estruturação ○
lucionassem os problemas, foram organiza-
de diferentes organizações indígenas no país, dos os primeiros encontros regionais de pro-

visando à defesa das terras e dos direitos dos fessores, visando ao intercâmbio cultural, à

povos indígenas. A partir da realização das troca de experiências e a uma sistematização



reuniões da União das Nações Indígenas da proposta que resolvesse a atual situação.

(UNI), em São Paulo, o movimento ganhou Em várias regiões do Brasil, começaram a



corpo e visibilidade nacional. Essa organiza- acontecer os Encontros de Professores Indí-



ção conquistou e reuniu grande número de genas, ou Encontros de Educação Escolar In-

povos indígenas em defesa de seus direitos dígena, propiciando o debate com ênfase na

culturais e territoriais tradicionais. A partir da implantação de uma escola ideal e adequada



UNI-Norte, outras organizações indígenas de à realidade dos povos indígenas. Os professo-



caráter regional ou dos povos indígenas co- res não encontravam nas escolas implantadas

meçaram a surgir. É na mesma década de 1970 em suas aldeias uma resposta às suas expec-

que despontam as primeiras tentativas de tativas, portanto estavam dispostos a reagir



construção de uma educação escolar sintoni- diante do contexto acima citado.



zada com os interesses e as especificidades A Coordenação da União dos Povos Indí-


dos povos indígenas (Silva, 1998: 19).


genas de Rondônia, Noroeste de Mato Grosso


No final da década de 1980, surgem as pri- e Sul do Amazonas (Cunpir), juntamente com

meiras organizações de professores indígenas outras instituições que compõem o Núcleo de



em diversas regiões do Brasil, com a intenção Educação Escolar Indígena de Rondônia


de discutir a implantação de uma política na-


(Neiro), criou todas as condições para a reali-


cional específica para a Educação Escolar In- zação da I Assembléia de Professores Indíge-

dígena, visando à melhoria da qualidade da nas de Rondônia, em outubro de 1999. Esse



educação diferenciada para suas comunida- evento resultou do não-cumprimento da rea-


des. Na ocasião, era perceptível a necessida-


lização da segunda etapa do Curso de Forma-


de e a importância de uma mudança nos mo- ção dos Professores – Magistério Indígena –

delos de escola implantados pelos órgãos go- Projeto Açaí, planejada para os meses de ju-

vernamentais e não-governamentais (ONGs) nho/julho daquele mesmo ano. Obviamente,


em suas aldeias. Os currículos escolares não isso gerou um clima de angústia e temor en-

correspondiam à realidade local, ignoravam tre os professores, principalmente quanto à



a vida cultural do povo e não levavam em con- perspectiva de a Secretaria de Estado de Edu-

sideração os seus conhecimentos e seus pro- cação não realizar as etapas previstas ou

cessos próprios de ensino e aprendizagem, quanto à possibilidade de interrupção do re-



construídos a partir da experiência milenar, ferido Projeto. Em vista disso, pode-se afirmar

inerentes às culturas ameríndias. que as primeiras reflexões em torno da neces-


64
SIMPÓSIO 5
As organizações de professores no Brasil: relações com as políticas públicas e as escolas indígenas

os cursos são promovidos pelo Estado, que


sidade de institucionalização do movimento


de professores indígenas em Rondônia acon- não pretende, como representante de um gru-



teceram nesse evento. po hegemônico no poder, fortalecer e instru-



No estado de Rondônia, a organização dos mentalizar grupos “minoritários” capazes de


professores se efetiva a partir do momento em construir uma contra-hegemonia. Por isso, a



que eles têm a oportunidade de se encontrar importância da participação dos professores



durante a realização dos cursos de formação na escolha e seleção dos quadros de profissi-


onais que vão trabalhar nos cursos de forma- 65


inicial.


Em março de 1999, ocorreu o I Encontro de ção de professores indígenas.



Professores Indígenas de Rondônia e Noroes- A política de educação implementada pe-



te de Mato Grosso, deliberando a criação da las Secretarias não tem considerado o fato de


Organização de Professores Indígenas de a escola representar um elemento novo na or-



Rondônia e Noroeste de Mato Grosso (Opiron), ganização social dos povos indígenas de



o que representa um marco importantíssimo Rondônia, e os atuais modelos de atendimen-



na história da Educação Escolar Indígena no to têm interferido e modificado hábitos cul-


Estado. A partir da realização da primeira as- turais do sistema tradicional de educação,



sembléia, adotaram a sistemática de realiza- obrigando-os, de certa forma, a viverem em

ção dos encontros (duas vezes ao ano) confor- função da escola, acarretando, portanto, uma

me programação das etapas do Curso de For- inversão de papéis – em vez de a escola ser

mação Inicial – Projeto Açaí, executado pela adaptada à vida do povo, é exatamente o con-

Secretaria de Estado de Educação em parceria trário, o povo é que tem de se adaptar à vida

com organizações governamentais e não-go- da escola.


Todos esses fatores têm contribuído para


vernamentais indígenas e indigenistas que fa-


zem parte do Núcleo de Educação Escolar In- que a escola se apresente como um corpo es-

dígena de Rondônia. tranho no interior das aldeias. “A escola de-



Nesse cenário político, a trajetória que os veria ser, então, um espaço para a discussão

pelos índios da sua situação presente e das ex-


professores indígenas de Rondônia percorrem


desde o reconhecimento por parte da Secreta- periências de vida às quais eles estariam ex-

ria de Educação, até a efetivação de seus con- postos devido ao contato” (Capacla, 1995: 58).

tratos, é marcada pelo preconceito historica- Diante da inoperância e da negligência


mente estabelecido nas relações da população histórica dos órgãos governamentais respon-

nacional com os povos indígenas. Assim, ta- sáveis pela implementação das políticas pú-

chados de incapazes por essas instâncias, es- blicas para a Educação Escolar Indígena, foi

tão provando o contrário do que deles dizem, necessário viabilizar mecanismos e instânci-

mostrando que há formas diferentes de ensi- as legais que garantissem às sociedades indí-

nar e aprender e que a seleção dos conteúdos genas a participação nas decisões relaciona-

não deve partir das Secretarias. Essa consciên- das à educação escolar para o seu povo. Des-

cia é resultado de um processo de muito tra- sa forma, foi surgindo a necessidade objetiva

balho e luta dos professores, mediante a par- de criar organizações de professores indíge-

ticipação no movimento de professores. nas e, conseqüentemente, fluindo o processo



O sucesso da escola indígena está intima- de construção das políticas para suas escolas.

mente ligado aos cursos de formação de pro- Acredita-se que a organização e a efetiva

fessores, uma vez que, por meio deles, os pro- participação dos professores juntamente com

fessores terão instrumentos para promover suas comunidades vão, de certa maneira, de-

uma política de educação diferenciada e de cidir sobre as políticas públicas de educação.



q u a l i d a d e p a ra a s s u a s e s c o l a s. Em Por meio da mobilização dos professores e


contrapartida, sabe-se que nunca foi interes- criação da Opiron, passaram a perceber que

se do Estado assegurar essa qualidade e mui- as decisões sobre Educação Escolar Indígena

to menos o diferenciamento de modelo, já que não são meramente técnicas, mas, sobretudo,

políticas. Por isso, faz-se necessário se orga- turais específicos. Essa autonomia é extensi-



nizar para participar e decidir. va a qualquer comunidade, uma vez que não



Durante a realização das assembléias, os só os povos indígenas são violados com as



professores foram percebendo que seria pos- políticas públicas.


sível a criação de mecanismos de participação, Para se fazer uma educação verdadeira-



ainda que em sistemas tão fechados e cristali- mente indígena, com características próprias



zados, nos quais as decisões mais importantes de cada povo em Rondônia, é indispensável a


ficam nas mãos de tão poucas pessoas. participação efetiva de todos os segmentos



Mesmo com a criação da Opiron e o reco- envolvidos, sobretudo dos professores e de



nhecimento dos professores da necessidade suas comunidades, para que se possa formu-



de participar das discussões acerca da educa- lar uma política estadual que venha contribuir


ção escolar, a presença e a participação indí- para a construção de uma educação diferen-



genas (professores e lideranças) nas discus- ciada e de qualidade para os povos indígenas.



sões em torno da educação ainda têm sido Como as organizações dos professores in-


muito inexpressivas. Esse fato ocorre devido ○
dígenas podem intervir nos órgãos responsá-
à dificuldade que os professores enfrentam veis pela execução das políticas de educação

para se deslocar de suas aldeias até a cidade, que interferem nas relações sociais do grupo

pelo difícil acesso, e às limitações financeiras e nos processos próprios de elaboração dos

e de apoio logístico. Por outro lado, essa situ- seus conhecimentos?


ação vem sendo mantida pelas administra- Mesmo reconhecendo o esforço e a serie-

ções como estratégia de exclusão das popu- dade nas intenções dos envolvidos direta e in-

lações indígenas do processo de construção diretamente na elaboração do documento Re-


das políticas públicas. Não estou defenden- ferenciais Curriculares Nacionais para a Esco-

do a construção e a pavimentação de estra- la Indígena (RCNEI), construído a partir de



das ligando as aldeias aos centros urbanos uma ampla discussão, com a participação de

nem o paternalismo estatal no sentido de doar representantes indígenas e orientado por es-

meios de transportes para que as lideranças e pecialistas do Comitê Nacional de Educação



os professores possam participar do proces- Escolar Indígena, ainda gostaria de questio-



so de construção das políticas públicas. Mas nar se há pistas que apontem para efetivas

defendo uma política séria, de forma que os mudanças, de forma que os povos indígenas

beneficiados possam participar das decisões estejam participando da implementação e da



inerentes à vida do seu povo ou comunidade. construção de um modelo de educação que



Finalmente, a estratégia de organização dos se aproxime dos valores indígenas, no senti-



professores indígenas consiste no caminho do de estar se construindo uma educação ver-


para a autonomia, porque prima pela cons- dadeiramente diferenciada, que leve em con-

trução de uma nova relação dos povos indí- sideração os processos próprios de ensino e

genas com a sociedade envolvente, em que os de aprendizagem e os conhecimentos dos



professores e as comunidades têm uma fun- povos indígenas?


ção estratégica fundamental de agente de As atuais propostas de formação inicial



transformação e construção das políticas de apresentadas pelas instituições de educação



Educação Escolar Indígena, na busca da me- para os povos indígenas correspondem aos re-

lhoria da qualidade de vida de seus respecti- ais interesses das comunidades indígenas?

vos povos. O impacto gerado, embora gra- Elas têm contribuído para o processo de cons-

dativo, será a possibilidade da autogestão do trução da autodeterminação e resgate da



trabalho de educação, reduzindo a dependên- identidade dos povos indígenas?



cia de intervenções externas e, por fim, sen- Do ponto de vista avaliativo, esses ques-

sibilizados com seus problemas e conscien- tionamentos devem fazer parte das reflexões

tes de suas necessidades e demandas sociais, de encontros e de todos os momentos em que



atuarão sem perder de vista seus valores cul- professores e assessores estejam repensando

66
SIMPÓSIO 5
As organizações de professores no Brasil: relações com as políticas públicas e as escolas indígenas

a Educação Escolar Indígena. De fato, com


tização e implementação das políticas públi-


essa prática de reflexão e avaliação constan- cas de Educação Escolar Indígena. Penso que



tes, o risco de errar será, potencialmente, ao estabelecerem essa relação com os seus



menor. parceiros diretos e indiretos – governamen-


Pelo fato de a Educação Escolar Indígena, tais e não-governamentais – poderão discutir



como modalidade de ensino, apresentar sin- com autonomia e autoridade uma educação



gularidades educativas, heterogeneidade ét- escolar pautada em suas diferenças e espe-


nica e, ainda, em função da problemática le- 67


cificidades.


vantada, trabalha-se com a hipótese de que o



modelo de Educação Escolar Indígena im-



plantado pelos órgãos governamentais e não-
Bibliografia


governamentais para os povos indígenas não



tem contemplado o universo socioeconômico,



cultural e lingüístico desses grupos, anulan- ABRANTES, Cristovão Teixeira. A educação escolar in-


dígena em Rondônia e o processo educacional dos


do a construção de uma escola com um perfil


Cinta Larga: uma abordagem sociocultural. Monografia
indígena. Pelo contrário, vem desagregando


apresentada em curso de especialização. Porto Ve-

progressivamente os processos próprios de


lho: UNIR, 1998.
ensinar e aprender desses povos. CAPACLA, Marta Valéria. O debate sobre a educação in-

Exatamente por tratar-se de uma institui- dígena no Brasil (1975-1995): resenhas de teses e

ção responsável pela socialização do saber livros. Brasília/São Paulo, MEC – Mari/USP, 1995.

formal, em que há seleção desses saberes, par- SECCHI, Darci (Org.). Ameríndia : tecendo os caminhos

da Educação Escolar. In: CONFERÊNCIA AMERÍNDIA


timos do pressuposto que os impactos causa-


DE EDUCAÇÃO. Cuiabá: Seduc/MT e CEEI/MT, 1998.


dos nos valores culturais desses povos se ori-

SILVA, Rosa Helena Dias da. A autonomia como valor e


ginaram, principalmente, da escola. Nesse


a articulação de possibilidades: um estudo do movi-


sentido, cabe às organizações de professores mento dos professores indígenas do Amazonas,



indígenas estabelecer novas relações com es- Roraima e Acre, a partir dos seus encontros anuais.

sas instituições responsáveis pela norma- Abya – Yala, 1998.










































EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA
PAINÉIS
P AINEL 1

A QUESTÃO INDÍGENA
NA SALA DE AULA
Ana Vera Macedo

Rosani Moreira Leitão

Betty Mindlin

José Ribamar Bessa Freire

71
Cursos de formação de




professores índios em História:




experiências e considerações





Ana Vera Macedo



Mari/USP







A infatigável luta pelos direitos indígenas, trar cursos de formação para professores índi-


marcadamente a partir da década de 1970, re- os e também para professores não-índios que



sultou na consagração dos direitos constituci- trabalham nas aldeias. Amapá, Maranhão e in-



onais indígenas, trazendo em seu bojo aqueles terior do estado de São Paulo têm sido os locais

que se referem à Educação Indígena.1 A Cons- ○

onde tenho atuado com maior freqüência.
tituição Federal de 1988, a LDB, e a farta legis- A busca na concretização de alguns princí-

lação que tem sido produzida estabelecendo pios tem pautado minha atuação nos diferen-

parâmetros para que aqueles direitos assegura- tes cursos ligados à História e à Alfabetização.

dos se tornem realidade têm sido os nortea-


Entre eles, os mais constantes, porque funda-


dores de muitos dos cursos de formação de pro- mentais, têm sido:



fessores. Evidentemente, não podemos deixar • o interesse em pesquisar e conhecer as



de lembrar experiências bem-sucedidas, ante- etnias envolvidas com os cursos;


riores àquelas conquistas formais, como o tra-


• a procura de fontes de difícil acesso para


balho realizado com os Tapirapé, como a for- aqueles povos;



mação de professores índios do alto Rio Negro


• o planejamento cuidadoso;

e também a atuação da Comissão Pró-Índio do


• a utilização de metodologias pedagógicas


Acre, entre outras.

modernas;

O respeito às diferenças, lema tão valoriza-



do por muitas instâncias que se têm envolvido • a preocupação em possibilitar compara-


ções, criações, complementações e espaços


com a Educação Indígena, é, muitas vezes, difí-


cil de ser atingido. Apesar das explicitações, le- para as mais diversas participações.

gislação, RCNEI, divulgação de resultados de



projetos ligados à educação, podem-se ainda Para maior clareza na aplicação dos princí-

encontrar em diferentes espaços interações en- pios anteriormente citados, exemplificarei, es-

tre índios e não-índios que não correspondem tabelecendo alguns recortes e apresentando

às diretrizes que, no papel, nos parecem tão dados extraídos de dois cursos de História para

acertadas. professores índios que ministrei nos anos de



Desde 1995, tenho sido convidada a minis- 1997 e 1999.2








1
Para maiores informações sobre esse processo, ver Aracy Lopes da Silva, Educação para a tolerância e povos indígenas no Brasil, documen-

to interno do Mari/USP, 4º Relatório Científico (1998-1999), volume II, Fapesp (Processo nº 94/3.492-9).

2
Curso Supletivo para professores indígenas do Estado do Maranhão, patrocinado pelo Grupo de Educação Indígena da Secretaria de Educa-

ção daquele estado (entre 14/4 e 2/5/1997), objetivando a capacitação em História do Brasil para a posterior realização de exames e

certificados de conclusão do Ensino Fundamental. Participação de 85 professores Guajajara, Canela, Gavião, Timbira e Krikati. Locais:

Imperatriz, Santa Inês e Barra do Corda. O convite foi efetuado pela Secretaria de Educação do Maranhão ao Mari/USP, por indicação da

Coordenadoria Geral de Apoio às Escolas Indígenas do MEC.



Curso de Formação de Professores Índios das etnias Kaingang, Terena e Krenak, realizado na Terra Indígena de Icatu, município de Braúna,

interior do estado de São Paulo, em dezembro de 1999, patrocinado pelo MEC. Atendidos professores das Terras Indígenas de Icatu e

Vanuíre (município de Arco-Íris).


72
PAINEL 1
A questão indígena na sala de aula

O interesse em pesquisar e uma revisão do papel daqueles povos indígenas



e sua participação na história regional. A possi-


conhecer as etnias envolvidas


bilidade da utilização de um livro, resultado de


nos cursos


textos históricos reescritos sob a ótica daque-


les povos indígenas, poderia servir como ins-



Como os convites a que se referem os cur- trumento para uma revisão e reavaliação da his-


sos de História representavam novas experiên-


tória estudada nas escolas estaduais do oeste


cias e os primeiros contatos com etnias diferen- paulista. 73



tes daquelas que eu já conhecia, a pesquisa tor-



nava-se de fundamental importância, constitu-
A procura de fontes de difícil


indo-se na primeira providência sobre a qual se



construiria toda a elaboração futura. A possibi- acesso para os professores



lidade de recorrer à bibliografia e aos pesquisa-
índios de diferentes etnias


dores do Mari/USP representava uma certa fa-



cilidade. Algumas publicações, como Aconteceu, O rastreamento bibliográfico leva a novas



do Instituto Socioambiental, trazem referênci- fontes. A consulta a teses de Mestrado e Douto-



as bastante recentes e diversificadas sobre a si- rado recentes proporciona material rico, com

tuação de diferentes povos indígenas brasilei- ○

novos e modernos enfoques teóricos. Entretan-


ros. Acrescente-se, ainda a respeito dessa obra, to, como tornar acessíveis os resultados de lon-

o conjunto de notícias atuais recolhidas em di- gas pesquisas? Que conteúdos destacar, esco-

ferentes jornais do país, fornecendo a base ini- lher, trabalhar? Como criar estratégias ou pro-

cial sobre a qual as pesquisas eram construídas. cedimentos de maneira a garantir a apropria-

Outras publicações, ainda gerais, ajudavam no ção daqueles conteúdos pinçados em meio a

início da pesquisa. tantos conhecimentos?



O prazer em pesquisar e, agindo como de- Evidentemente, o trabalho ficou muito en-

tetive, seguir as pistas deixadas por diferentes riquecido com a possibilidade de se utilizar te-

autores, favorece a construção de um conheci- ses de Doutorado cujos conteúdos estavam di-

mento que proporciona certa segurança e faci- retamente ligados aos públicos dos cursos do

lita a escolha dos conteúdos que devem ser tra- Maranhão e de São Paulo, como as de Perrone-

balhados. Tanto no curso realizado no Moisés (1997) e Andrade (1990); Souza Lima

Maranhão como no de São Paulo, tal procedi- (1992) e Pinheiro (1992), respectivamente. Es-

mento facilitou a compreensão das realidades sas teses constituíram um desafio que mereceu

vividas pelos professores índios, que viriam a


atenção e muito preparo. A linguagem precisa


ser alunos daqueles cursos. A pesquisa referen- e requintada dos autores requeria adaptações

te à história Kaingang, entretanto, foi marcada e “traduções” para que se tornassem acessíveis

por pesquisa mais abrangente, visto que havia, aos professores índios que têm na língua por-

ao contrário do que acontecera no Maranhão,


tuguesa sua segunda língua. Reescrever alguns


um recorte histórico mais preciso: os Kaingang trechos que nos pareciam os mais instigantes e

e a construção da Estrada de Ferro Noroeste do representavam acréscimos ao conhecimento



Brasil. Aqui, além da formação dos professores histórico que os alunos possuíam se tornou um

índios, e diante da situação extremamente difí- dos grandes motivadores da preparação do cur-

cil das comunidades de Icatu e Vanuíre, convi- so. Frases curtas, diretas e claras, cujo entendi-

ve-se com uma situação social que apresenta mento se tornava imediato, não necessitando

sérios agravantes. Discriminados, sofrendo co- de explicações suplementares, caracterizaram


tidianamente as conseqüências da difícil vida o material elaborado para a utilização nos cur-

de bóias-fria e dos preconceitos correntes nas sos. O entendimento e a compreensão do ma-



mais diversas situações, pensou-se em utilizar terial evidenciaram o acerto da medida.



a reescrita da história do início do século XX, O mesmo trabalho foi realizado no curso

como explicaremos adiante, para possibilitar de Icatu. Aqui, além das teses, visamos a ofe-


recer para reflexão textos escritos no início do tuação: os professores, individualmente ou em



século XX, época da construção da Estrada de duplas, deveriam elaborar histórias em quadri-



Ferro Noroeste do Brasil. nhos com as idéias principais do texto que, ao



Os objetivos que nos moviam e a demons- ficarem prontas, seriam afixadas na classe. Li-


tração da presença e da força Kaingang na his- das e comentadas, deram origem a brincadei-



tória regional do oeste paulista constituíam a ras, sugestões, comentários.



diretriz das escolhas. A opção por temas, recor- Ao dar continuidade ao trabalho, partia-se


tes, enfoques mostra, mais uma vez, o papel e da experiência e do conhecimento anteriores



as motivações que nortearam a ação a ser de- para que novos desafios fossem colocados para



senvolvida nos cursos. a ação pedagógica.



É certo que, muitas vezes, se verificava que


o planejamento, mesmo cuidadoso, precisava
O planejamento cuidadoso


ser revisto e reorientado diante das respostas e



À medida que as leituras e as escolhas de das contribuições dos professores.

temas e textos caminhavam, o planejamento ia ○

sendo traçado. Nele, os conteúdos e as estraté- A utilização de metodologias



gias caminham juntos, pois se pensava que a um


modernas

passo, a uma ação deveria suceder outra que


dependesse dos conhecimentos e das ações A simples leitura nem sempre possibilita um

anteriores, resultando, assim, em processo co- pensar criativo e reflexivo. É preciso encontrar

eso, lógico e coerente. caminhos para que os textos, uma vez entendi-

Se tomarmos uma das atividades aplicadas dos, propiciem momentos de reflexão, acrésci-

nos diferentes cursos, poderemos, por meio de mos e trocas entre os participantes.

um exemplo, concretizar a assertiva anterior. Durante os cursos do Maranhão e de São



Uma das primeiras atividades consistiu na lei- Paulo, os desafios colocados por diferentes es-

tura de um pequeno texto, que foi realizada aos tratégias seriam o caminho escolhido para que

poucos, parágrafo por parágrafo. Lido um tre- se tornasse possível a apropriação daqueles tex-

cho, as idéias principais eram “traduzidas” tos e dos conteúdos selecionados. Leituras

oralmente, em poucas palavras. Como, geral- infindáveis de textos ou mesmo aulas


mente, aqueles professores com os quais tra-


expositivas não provocam o entusiasmo, a ale-


balhei seguem um modelo de escola tradicio- gria de descobrir e criar, a colaboração e os



nal, em que o professor é o centro do saber e adendos que os conhecimentos dos professo-

as respostas esperadas, muitas vezes, devem res podem proporcionar.


ser elaboradas repetindo ipsis litteris o texto, a


Dentre as inúmeras estratégias pedagógicas


solicitação de que os alunos dos cursos não uti- aplicadas naqueles cursos, algumas se destacam

lizassem as mesmas palavras do texto para por se terem revelado ricas quanto a sua execu-

“traduzi-lo” já se tornava um desafio. Ao final ção e a seus resultados, como, por exemplo, a

da leitura, foram levantados alguns problemas, comparação entre diferentes mapas. Tanto nos

pequenos e simples, porém não explicitados três pólos onde foram realizados os cursos no

no texto. Os participantes percebiam, aos pou- Maranhão como no interior de São Paulo, ao

cos, que suas sugestões, deduções e contribui- serem expostos, lado a lado, os mapas de Curt

ções tinham de brotar da capacidade de refle- Nimuendaju (1987) e outro, atual, que retrata a

xão. Sendo todas as contribuições muito valo- situação das Terras Indígenas Brasileiras (ISA,

rizadas, anotadas, comentadas, estimuladas, 1997), o choque se tornou evidente.



foi surgindo uma interação respeitosa e muito A comparação entre mapas falava por si. As

criativa. perdas, inúmeras, principalmente aquelas que se



Uma nova estratégia foi proposta para que referiam às terras e aos povos, gritavam. O pri-

as idéias principais do texto, agora apropriado meiro deles, que representava a ocupação do

pelo grupo, fossem aplicadas em uma nova si- Brasil pelos povos indígenas desde sua descober-

74
PAINEL 1
A questão indígena na sala de aula

ta até 1944, as diferenças lingüísticas e, princi- nos de diferentes grupos aproximavam-se e tro-



palmente, as migrações e o desaparecimento de cavam informações.



inúmeras etnias, mostrava dados claros, eviden- A observação de gravuras e fotos foi outro



tes. Instados a revelar suas conclusões diante da recurso utilizado para que professores obser-


observação, à medida que alguns expunham suas vassem, inferissem, concluíssem e percebessem



conclusões, outros descobriam outras, que eram que a capacidade de refletir é a grande aliada



acrescentadas, no quadro, às primeiras. Um nas descobertas e, conseqüentemente, na apre-


grande número de deduções pôde ser escrito por ensão de conhecimentos históricos. 75



todos. Começava-se assim um modus operandi No curso ministrado em Icatu, São Paulo, a



que se tornaria a tônica das aulas. Aqui, mais um gravura de uma casa Kaingang foi apresentada.



dos princípios que norteavam o trabalho era Diante dela, perguntas foram sendo feitas com


vivenciado: todas as conclusões, os raciocínios, o objetivo de dirigir o olhar e estimular as de-



as relações, as deduções tornar-se-iam conteú- duções.



dos que todos deveriam anotar, por serem



originais e únicos, produto de reflexões


bem fundamentadas pelos alunos e pela



professora.

Ainda trabalhando com mapas em



Icatu, sugeri que os professores comparas-


sem dois mapas da mesma região, porém



com datas diferentes. À solicitação de que



estabelecessem semelhanças e diferenças


entre os mapas, logo ficou evidente o que



ocorre costumeiramente com os mais di-



ferentes alunos – índios ou não-índios. A



formulação das semelhanças ou das dife-


renças pode ser rasteira, pobre. Ao aceitar



respostas como, por exemplo, em tal mapa



Alfred Métraux. “The Caingang”. In: Steward, Julian H.


os Kaingang tinham muita terra e naquele outro

(Editor), Handbook of South American Indians .


não, o resultado do exercício exigia apenas o que


New York, 1963, p. 447.


estava evidente e não grandes elaborações. Ao

serem instados a explicar o “não”, os professores



precisavam pensar, relacionar, elaborar, deduzir Para melhor entendimento dessa ação,

as causas da diminuição do território. exemplifico com algumas perguntas que foram


Por diversas razões, alguns textos eram ne- respondidas pelos professores: De que mate-

cessariamente longos, e sua simples leitura rial seria essa construção? Como aquela cons-

desmotivaria os alunos. Uma das maneiras uti- trução se mantinha em pé? Por que estaria vol-

lizadas para minorar o problema consistiu em tada para essa direção? Essa construção seria

dividir trechos do texto entre diferentes grupos. resistente? Seria a moradia permanente ou

A cada grupo se encarregava de ler seu trecho, provisória?



previamente estipulado, entendê-lo e desenhá- As respostas precisariam ser fundamentadas



lo, em seqüência, transportando para o dese- e, no momento em que os porquês iam surgin-

nho os conhecimentos e as idéias do trecho sob do, muita história Kaingang também brotava.

sua responsabilidade. Acabados os trabalhos O registro nos cadernos, aos poucos, tornava-

dos diversos grupos, os “filmes” foram apresen- se evidente, era fonte de saber, de relembrar.

tados, e o longo texto foi, dessa maneira, en- O passo seguinte consistiu na inversão dos

tendido e apreendido por muitos. Os desenhos, papéis: os professores índios elaboravam as per-

durante alguns dias, ficaram expostos, e era guntas para que fossem respondidas por mim

possível observar que, por diversas vezes, alu- que, nem sempre, tinha o conhecimento tão

amplo que pudesse solucioná-las. Os professo- material do livro que se propunha organizar.



res, então, explicavam com os conhecimentos É interessante salientar a atitude interessa-



que os mais velhos, tantas vezes, lhes haviam da, porém descrente, dos participantes duran-



relatado. Quanta oportunidade para aprender! te as aulas. Trabalharam, reescreveram textos,


À medida que os trabalhos iam sendo pro- observaram mapas e gravuras, dramatizaram,



postos, a percepção de que o respeito aos mo- elaboraram atividades didáticas, criaram pro-



dos de ser, agir e pensar e aos resultados que as blemas cujas soluções exigiam raciocínios.


diferentes atividades faziam surgir criaram uma Ao acabar o curso, conforme fora combina-



interação positiva, alegre, aberta. Problemas do, um boneco do livro foi organizado e envia-



criados a partir daqueles textos eram colocados do para Icatu e Vanuíre para que circulasse en-



e as respostas tinham de ser encontradas por tre professores e os mais velhos das comunida-


meio do raciocínio. A elaboração de problemas des envolvidas. A resposta foi inesperada: inú-



apresentados aos colegas, a observação de fo- meros acréscimos ocorreram, tornando a publi-



tos, as conclusões pessoais ou grupais que se cação3 rica em aspectos, fatos e descrições que,


transformavam em conteúdos anotados por to- ○
presentes na memória dos professores e das
dos, o relato de situações que determinados pessoas mais velhas, não haviam sido lembra-

conteúdos traziam à luz, a descoberta de que dos por ocasião do curso.



se é capaz de pensar e que o próprio pensamen-



to é assunto a ser considerado e refletido por


Alguns comentários finais

todos criavam, aos poucos, uma participação



ativa e interessada. Neste momento em que se organiza um



A difícil situação em que vivem Kaingang, congresso voltado à educação, tendo a Educa-

Terena e Krenak, moradores de Icatu e Vanuíre, ção Indígena um espaço definido, talvez seja um

muitos deles trabalhando como bóia-fria nas momento privilegiado para pensarmos nos re-

usinas de açúcar da região e recebendo salários cursos que têm sido despendidos com a forma-

irrisórios, trazem em sua esteira a desesperan- ção de professores índios ou não-índios ligados

ça, a discriminação e o preconceito dos não- à Educação Indígena, suas ações, resultados e

índios dos municípios vizinhos. Como um sim- mudanças.



ples curso de História poderia contribuir para Ao analisarmos os materiais didáticos vol-

tados às escolas indígenas, na língua nativa ou


a mudança possível da situação? Vistos com


desdém, desrespeitados e cansados de esperar em português, é possível notar que, nem sem-

por mudanças que, muitas vezes prometidas, pre, eles se destacam por sua qualidade. Os

nunca chegam, os professores receberam o cur- avanços pedagógicos, as metodologias, a orga-


nização desses materiais demonstram, muitas


so de formação como mais uma das atividades


das quais participariam, mas que, como já vezes, uma visão tradicionalista da educação

acontecera anteriormente, não teria conseqü- e dos métodos pedagógicos. Muitas vezes, os

ências ou resultados palpáveis. professores índios têm como modelo de atua-


ção ações pedagógicas ultrapassadas, como,


Um dos objetivos do curso era a leitura de


textos históricos do início do século XX e sua por exemplo, as cópias infindáveis de conteú-

reescrita pelos professores índios, como fora dos do quadro, a postura do professor, depo-

estabelecido anteriormente em reuniões prepa- sitário do saber, a desconsideração pelo conhe-


cimento que os alunos trazem, a falta de desa-


ratórias na aldeia de Icatu. Como resultado prá-


tico, a publicação de um livro didático prove- fios, a ausência de atividades didáticas en-

niente da produção do curso, que seria com- volventes e desafiadoras. A escola, muitas ve-

plementada pelos dados e fatos recolhidos en- zes, tem oferecido atividades repetitivas, pou-

co envolventes, monótonas, que, ao invés de


tre os mais velhos, tudo isso constituindo o






3
MACEDO, Ana Vera (Org.). Uma história Kaingang de São Paulo: trabalho a muitas mãos. Brasília: Mari/MEC (no prelo).

76
PAINEL 1
A questão indígena na sala de aula

atrair os alunos, tendem a afastá-los. Afinal, za, Aramirim, professora da Aldeia Barragem,



fora da escola há tanto a fazer, aprender, des- Morro da Saudade, Grande São Paulo, disse:



cobrir, se envolver.



Um outro agravante, que é necessário des- [...] fui professora na escola da Barragem


tacar neste momento, está ligado à continuida- por seis anos, direto. Sempre vim lutando pela



de dos cursos. Ao contrário do que ocorreu com educação indígena, pela escola diferenciada. A



a experiência ligada ao trabalho com os profes- Secretaria de Educação praticamente retirou o


sores de Icatu e Vanuíre, cujos resultados cons- espaço do meu trabalho [...] A cultura está se 77



perdendo aos pouquinhos depois da entrada da
tituíram retorno valorizado pelo grupo, quantas


Secretaria de Educação. Era uma coisa que a


vezes pudemos deparar com projetos cujos pla-


gente não queria. Quando não tinha professora


nejamentos previam a continuidade em mui-


do Estado, a gente sabia controlar, dava aula
tas etapas consecutivas, que não ocorreram.


normal. Éramos nós que tomávamos conta da


Fatores vários, nem sempre ligados aos profes-


escola. Depois que chegou o Estado, eles to-


sores índios ou capacitadores, impossibilitam maram conta, não deixaram espaço. [...] A am-



a continuidade. O início da ação, a primeira eta- pliação [do prédio da escola], que era para dar


pa, ocorre bem organizada, o curso flui, as ava-


aula em guarani, agora é para colocar 5ª a 8ª.

liações e os resultados imediatos são positivos, Eles decidiram [...].

porém se perdem pela ausência de continuida-



de, de novas avaliações e ajustes/acertos do Poder-se-ia considerar, diante da quantida-


processo. Muitas vezes nos perguntamos: terá de e diversidade de escolas indígenas no Brasil,

sido em vão o trabalho realizado? Que garanti- que esse é um caso isolado. Mas... será?

as os professores índios poderiam ter de que


não ficarão sós ao enfrentar desafios em seu tra-



balho cotidiano, quando acolhem sugestões de Bibliografia



mudanças em sua ação didática? Como mudar



a ação pedagógica sem uma certa garantia de


ANDRADE, Maristela P. Terra de Índio – terra de uso co-


novos cursos que avaliem o que ocorreu nas

mum e resistência camponesa. 1990. Tese (Doutorado


salas de aula, nos caminhos trilhados por ele e


em Antropologia Social). Universidade de São Paulo,


seus alunos, sem a continuidade da troca com


São Paulo.

os assessores/capacitadores responsáveis pelos INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL (ISA). Terras indígenas no


projetos que sugerem mudanças?


Brasil – situação jurídico-administrativa em 25/2/1997.


Um outro aspecto, neste momento, merece São Paulo: Instituto Socioambiental, 1997.

LIMA, Antonio C. de S. Um grande cerco de paz. Poder tu-


nossa atenção. Em situações localizadas, a

telar e indianidade no Brasil. 1992. Tese (Doutorado).


desconsideração da literatura que se tem pro-


Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro:


duzido sobre Educação Indígena e, muitas ve-

Museu Nacional.

zes, sem conhecer as etnias de seu estado,


NIMUENDAJU, Curt. Mapa etno-histórico. Rio de Janeiro:


pedagogos, assessores, professores, alguns nú- IBGE e Fundação Pró-Memória, 1987.



cleos ligados a diferentes governos estaduais, PERRONE-MOISÉS, Beatriz. Relações preciosas: france-

além de descumprirem as leis, oferecem cami- ses e ameríndios no século XVII. 1997. Tese (Doutora-

do em Antropologia). Universidade de São Paulo, São


nhos e um ensino contrários aos interesses das

Paulo.

etnias com as quais deveriam construir a esco-


PINHEIRO, Niminon S. Os nômades. Etno-história Caingang


la indígena. e seu contexto: São Paulo, 1850-1918 . Faculdade de


Em encontro recente4 com pequeno grupo


Filosofia, Ciências e Letras da Universidade Estadual


de professores Guarani, Sonia Barbosa de Sou- Paulista, 1992.










4
Encontro de professores Guarani para elaboração de Projeto de Alfabetização. Cajamar, São Paulo, 27 de junho de 2001.

Educação escolar e formação




de lideranças indígenas






Rosani Moreira Leitão*







Este trabalho pretende oferecer elementos rão passar despercebidos caso cada tipo de so-



para a compreensão dos mecanismos de poder ciedade seja analisado isoladamente.



hoje presentes entre as sociedades indígenas e Levando em conta essas considerações, o ob-


as estratégias buscadas por essas sociedades para jetivo mais específico do trabalho é discutir mu-



intermediar suas relações com os não-índios. A danças ocorridas nos modos tradicionais de for-



compreensão de tais estratégias de convivência, mação, escolha e atuação de lideranças indígenas

de negociação e de mediação de conflitos é de ○

bem como formas de apropriação da instituição
fundamental importância, uma vez que, atual- escolar e do saber escolarizado por elas. Para tan-

mente, as sociedades indígenas estão submeti- to, foram analisados discursos de lideranças in-

das a processos de interação cada vez mais in- dígenas gravados em uma aldeia Karajá, da Ilha

tensos com as sociedades não-indígenas, e es- do Bananal, no rio Araguaia, em Tocantins.2



sas interações não se limitam às fronteiras das Depoimentos de velhos Karajá indicam que

comunidades regionais ou dos Estados nacio- sempre existiram tipos distintos de lideranças

nais, mas se situam cada vez mais no âmbito de voltadas para o desempenho de papéis e funções

um mundo globalizado. Dessa forma, tanto as específicas em situações e espaços diferenciados,



sociedades locais quanto as sociedades nacio- seja no âmbito da aldeia, intermediando as rela-

nais só podem ser adequadamente compreen- ções sociais e cerimoniais, seja nas atividades ex-

didas se inseridas no âmbito da discussão acer- ternas à aldeia, liderando operações militares ou

ca do relacionamento entre ambas e se conside- atuando como espécies de diplomatas que do-

radas as implicações decorrentes dessas inte- minavam várias línguas e saberes voltados para

rações para a própria definição e redefinição de as relações exteriores e para as interações com

seus espaços e instituições, como recomenda outros grupos indígenas vizinhos, fossem essas

Wolf.1 Esse autor ressalta que as instituições na- relações baseadas em alianças ou em conflitos.

cionais, além de instituições formais, são tam- Entretanto, o encontro entre as culturas in-

bém espaços de interação entre diferentes gru- dígenas e o Ocidente, fundado na escrita e numa

pos. Assim, o relacionamento entre comunida- cultura letrada, passa a exigir das sociedades in-

de local/comunidade nacional possibilita con- dígenas saberes, técnicas e domínios que alte-

figurações de organização social e engendra a ram sensivelmente as formas de distribuição de



criação de sujeitos sociais específicos. Analisan- status, poder e prestígio, bem como os mecanis-

do a situação do México, Wolf recorre à noção de mos e as estratégias de formação e escolha de


brokers para referir-se a importantes agentes líderes no interior dessas comunidades. Expos-

mediadores nas relações de comunidades espe- tas a um contato prolongado com o “mundo dos

cíficas com comunidades nacionais, que pode- brancos”, elas incorporam às suas estruturas tra-



* Pesquisadora do Museu Antropológico da UFG, professora do Departamento Pedagógico da UEG, doutoranda em Antropologia pelo Centro

de Pesquisa e Pós-Graduação sobre América Latina e Caribe da Universidade de Brasília.


1
WOLF, Eric. Aspects of group relations in a complex society: México. In: Pathways of power: building an anthropology of the modern world. Berkeley:

University of California Press. p. 124-138.


2
Uma reflexão preliminar sobre esse tema – tendo com o título “O papel da educação escolar na formação de lideranças indígenas” – foi por mim apresentada

em setembro de 2000 em Caxambu, na 23ª Reunião Anual da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (Anped). O texto original

foi reelaborado a partir de leituras e discussões sobre cultura e poder realizadas no curso Seminários Avançados em Teoria I, do curso de Doutorado em

Antropologia Social da Universidade de Brasília, ministrado pelo professor Gustavo Lins Ribeiro.

78
PAINEL 1
A questão indígena na sala de aula

dicionais de poder novos mecanismos de medi- processos e nas tomadas de decisões nas instân-



ação dessas relações de poder. Dentre esses me- cias de poder da sociedade envolvente que te-



canismos, está a construção de novos tipos de rão conseqüências diretas sobre suas vidas.



lideranças que têm como objetivo intermediar Do ponto de vista das lideranças indígenas


o contato com a sociedade envolvente. As lide- mais velhas, o desejo de conhecer o modo de pen-



ranças do contato índio/branco ocupam um lu- sar do outro, neste caso do “branco civilizador”,



gar cada vez mais significativo tanto nas instân- não é uma preocupação recente. Um velho Karajá


cias de negociação de espaços e direitos da soci- relata a sua experiência quando, em sua juventu- 79



edade majoritária como nas decisões políticas no de, na década de 1940, e após obter bolsa de es-



interior da aldeia. tudos do governador de Goiás, é enviado por sua



A atuação dessas lideranças dentro e fora da família para a cidade de Goiás, onde deveria ini-


aldeia coloca-as na delicada situação de ter sem- ciar um programa de estudos. Dificuldades



pre de operar com códigos, símbolos e valores advindas da separação da família, da adaptação



de universos culturais distintos e com raciona- ao individualismo de um modo de vida urbano e



lidades orientadas por interesses que, ainda que o medo do preconceito vindo de professores e


interdependentes, são muitas vezes contraditó- colegas acabaram inviabilizando sua permanên-



rios. Esses representantes vivem assim uma am- cia no colégio interno, que não passou de um se-

bígua situação. Por um lado, devem ser porta- mestre letivo. Entretanto, vários motivos são

vozes coerentes com as aspirações, os desejos e apontados no seu discurso para justificar a deci-

as necessidades do seu povo – autênticos repre- são familiar. Diante de acontecimentos que trou-

sentantes do seu grupo étnico –, por outro lado, xeram drásticas conseqüências para a sociedade

devem ter competência para fazer uma apropri- Karajá, como alcoolismo, epidemias, invasão dos

ação adequada dos mecanismos de funciona- territórios tradicionais e outras arbitrariedades e



mento da sociedade não-indígena e, a partir daí, violências, as quais eram atribuídas à presença

atuar com eficiência nas negociações externas à progressiva do “branco”, era necessário “conhe-

aldeia em defesa dos direitos indígenas. Consci- cer o seu modo de pensar”, aprender a sua língua,

entes da relação de assimetria historicamente conhecer a lógica do seu pensamento e, a partir



estabelecida entre índios e brancos no Brasil e daí, compreender as suas ações.3 Era necessário,

desejosos de uma relação menos desvantajosa enfim, formar novas gerações aptas a construir

para eles, os Karajá demandam de suas lideran- estratégias de resistência.4 Esse interesse conti-

ças competências diversas no desempenho das nua presente nos projetos dos atuais líderes

suas atividades: elas devem conhecer as leis e os Karajá, a despeito da rejeição por parte da maio-

direitos indígenas; dominar o discurso na língua ria da população aos primeiros projetos de edu-

oficial; impressionar os seus interlocutores para cação escolar implementados nas aldeias. Nos

conseguir destes uma posição favorável aos seus anos mais recentes, já no contexto das experiên-

interesses; construir estratégias de negociação e, cias com a educação bilíngüe5 e, sobretudo, a



acima de tudo, atrair aliados para suas causas. partir da década de 1980, com a previsão legal do

Devem, enfim, influenciar positivamente nos respeito às identidades culturais e com a possibi-





3
Nesse período, os Karajá de Santa Isabel receberam visitas de importantes dirigentes políticos. As visitas fizeram parte de ações voltadas

para o desenvolvimento da região central do Brasil. “A partir da década de 40 deste século, são empreendidos novos esforços de desenvol-

vimento da Ilha do Bananal e do Vale do Araguaia. Não são raros os propósitos de desenvolvimento econômico e de integração da região à

economia do estado e do país [...]. A Fundação Brasil Central é criada em 1943, para dar continuidade à ‘Marcha para o Oeste’, que tem

início com a ‘Expedição Roncador Xingu’. A visita de Getúlio Vargas, na década de 40, e depois a de Juscelino Kubitschek, na década de 60,

se inserem no âmbito destes esforços de integração e desenvolvimento da região” (Leitão, 1998:37).



4
Não só as tentativas de escolarização fora das aldeias, mas também as experiências do Serviço de Proteção ao Índio (SPI), no interior delas, nessa

época foram frustradas (Leitão, 1998).



5
Essas experiências inicialmente não romperam com os esforços de aculturação. Começaram oficialmente em 1970, quando foi assinado convênio entre

a Funai e o Summer Institute of Linguistics (SIL), um instituto de estudos lingüísticos ligado a uma instituição religiosa protestante norte-americana, que

visava à produção de materiais religiosos escritos em línguas indígenas. Possuía, pois, um caráter civilizatório e evangelizador (Leitão, 1998).

lidade do desenvolvimento de projetos educacio- Velhas e novas lideranças:



nais concebidos com a participação das próprias


processos de formação e


comunidades indígenas ou totalmente por elas,


espaços de atuação


alguns avanços vêm ocorrendo nesse sentido. Au-


menta assim o número de pessoas alfabetizadas



e o grau de escolarização de algumas delas. Tam- Os discursos analisados ressaltam duas



bém aumentam as expectativas com relação ao modalidades gerais de chefias e lideranças


saber escolar, bem como o valor atribuído a esse atualmente existentes entre os Karajá, as quais



tipo de saber. apresentam distinções claras no que se refere



Todas essas questões impulsionam no seio das aos espaços de atuação e aos papéis a serem



sociedades indígenas contemporâneas uma gran- desempenhados por cada uma delas. Existem,


de demanda por educação escolar nos órgãos ofi- por um lado, as chefias tradicionais que atu-



ciais competentes. Conhecimentos técnicos, le- am nos espaços internos e tradicionais da al-



gais e burocráticos próprios das sociedades oci- deia e, por outro, lideranças que possuem um

dentais – que fazem parte de um conjunto de sa- ○

raio de atuação que extrapola os limites físi-
beres que só serão adquiridos pelo acesso ao co- cos da aldeia e está voltado para as negocia-

nhecimento escolarizado – são percebidos como ções com as instâncias e os poderes da socie-

necessários para a formação das habilidades e das dade nacional. Essas últimas são mediadoras

culturais que atuam entre dois universos, tra-


competências indispensáveis àqueles que são res-


ponsáveis pela mediação das relações com os dutoras de conteúdos culturais do mundo in-

não-índios. Entretanto, a emergência dessas no- dígena para o mundo ocidental e deste para o

vas lideranças não rompe com as formas tradicio- universo indígena. Do ponto de vista da aldeia,

nais de poder, apesar de elas restringirem-se agora são elaborados mecanismos que absorvem as

muito mais aos limites da aldeia. Bruce Albert, mudanças em um processo de acomodação

tomando como objeto de análise o discurso de dessas novas lideranças no âmbito do sistema

um líder Yanomami, oferece importante con- de chefia e poder já estabelecido. Assim, elas

tribuição nesse sentido. Ele demonstra que as atuam paralelamente às instâncias tradicionais

novas lideranças indígenas constroem um dis- de poder existentes na aldeia.



curso que realiza uma passagem da resistên- Existe um discurso legitimador e organizador

cia especulativa, caracterizada por uma das mudanças que dá ordem à realidade e às re-

simbolização etnocêntrica do branco como presentações nativas sobre o assunto, o que faz

subumano, para uma adaptação resistente, ca- que as lideranças Karajá elaborem as suas pró-

racterizada por uma simbolização relativista e prias concepções acerca da forma como o po-

por um discurso sobre si para o outro. Este der, o status e o prestígio estão distribuídos en-

autor, recorrendo à história de vida do líder, tre as pessoas da aldeia e como essas questões

identifica os conteúdos do seu discurso como interferem na delimitação dos espaços e nas to-

compostos por uma junção de elementos da madas de decisão.



tradição Yanomami com os modelos “brancos” Dessa forma, as chefias tradicionais são

de indianidade, constrói um discurso político classificadas como “lideranças rituais e da



sobre a etnicidade para a sociedade envolvente cultura”, enquanto as novas lideranças são

e para o resto do mundo. Ele também lembra, identificadas em função dos seus papéis como

entre os Yanomami, a coexistência de líderes intermediadores das relações nativas com o


tradicionais com as novas lideranças quando mundo dos brancos. A principal liderança tra-

ressalta a influência do discurso xamânico de dicional é o Ixydinodu, palavra traduzida para



uma liderança religiosa interna sobre o discur- “os brancos” como “cacique geral” ou “o che-

so do novo líder, este último traduzido para fe do povo”. O “cacique geral” é o “líder da

uma forma inteligível fora do grupo. O líder aldeia e dos rituais”. Deve possuir atributos

Yanomami é apontado assim como um “medi- especiais e situa-se na faixa etária dos

ador cultural por excelência” (Albert, 1995). matuari (dos velhos). Existe também o

80
PAINEL 1
A questão indígena na sala de aula

Deridu ou Ioló. 6 O Deridu deve ser uma crian-


A divisão aqui é a seguinte: Tebukua [o caci-


ça. Ambos (cacique geral e Deridu) devem per- que geral] é cacique, é chefe da aldeia, da cultu-



tencer a famílias de grande prestígio na aldeia. ra. Ele chefia negócio de dança [...] É ele quem


organiza. Agora eu, sou cacique representando do


O Ixydinodu, “cacique geral” da aldeia de


Santa Isabel do Morro, define suas atribuições e lado do branco. Quando vem alguma autoridade



aqui e quer conversar, aí me procura. [...] Tebukua
as do Deridu em oposição às atividades desem-


é só da aldeia mesma, quando não tem festa ele


penhadas pelo Tori Wedu, afirmando que “o ou-


fica livre. Quando chega na época de Hetohoky,7 81
tro” é o “cacique de branco”, enquanto ele pró-


continua chefiando a aldeia [...] (Xiari Karajá).


prio é “o cacique geral da aldeia”.



Internamente, Ixydinodu (cacique geral) e


As lideranças auxiliares do Tori Wedu nas re-


Deridu “governam juntos” nos assuntos referentes
lações externas da aldeia, como é o caso do vice-


não só aos rituais, mas também às relações sociais


cacique, entre outros, também definem a divi-


entre as famílias e o povo da aldeia em geral. Ao


são de papéis e poderes:


mesmo tempo em que desempenha o papel de lí-



der ritual, o “cacique geral”, nas suas próprias pa-
Cacique é aquele que tem poder, que toma con-


lavras, atua “como um juiz”, ou “a lei”, nos desen-


ta. É como prefeito, por exemplo. [...] Idjahina é o

tendimentos familiares. Para isso, ele procura a aju-


cacique de Santa Isabel do Morro. O resto é lide-
da do Deridu, representado pelos seus familiares, rança, os outros que trabalham. Eu, Lahuri, Koxieru

uma vez que ele é uma criança. Especialmente em [...], somos lideranças. Quando Idjahina viaja, a

casos de agressões entre membros das famílias, as


gente fica na responsabilidade [...]. Por exemplo,


pessoas ameaçadas de perigo buscam a proteção quando tori [branco] chega e Idjahina está viajan-

do Ixydinodu, e, caso seja necessário, ficam tem- do, a gente responde. [Somos] substitutos do caci-

porariamente sob guarda da família do Deridu, en-


que. A gente [...] trabalha assim (Koribete Karajá).


quanto esta última e o cacique geral procuram os



agressores para solucionar o problema. As outras duas modalidades de representan-



As lideranças emergentes do contato com a tes acima mencionadas também desempenham


sociedade nacional podem ser divididas, no caso papéis significativos nas decisões da aldeia e se

analisado, em: configuram como lideranças principalmente a



• Tori Wedu (“cacique de branco”) e seus au- partir das duas últimas décadas.

xiliares; A participação de indígenas como candidatos


• aqueles que se legitimam como lideranças na política partidária ocorre não só entre os

por meio da participação em processos eleito- Karajá, mas pode ser situada no âmbito de um

rais de municípios vizinhos às aldeias; processo mais amplo, que tem início na década

• representantes de associações indígenas. de 1980 com a eleição de Juruna, o primeiro indí-


O Tori Wedu, “chefe ou cacique ‘de branco’”, gena brasileiro a ser eleito para um mandato no

é apontado como o principal intermediador das Congresso Nacional. Nos últimos anos, as candi-

relações entre aldeia e sociedade envolvente. O daturas indígenas aumentaram progressivamen-



Tori Wedu da aldeia de Santa Isabel do Morro te, demonstrando uma disposição dos povos in-

assim define os espaços de atuação das lideran- dígenas em ocupar espaços políticos institucio-

ças Karajá: nais e assumir suas próprias representações.8









6
As palavras Ixytyby e Ixydinidu são traduzidas por Toral (op. cit., 78-91) como o “pai do povo” e o “líder do povo”. O Deridu também é chamado

de Ioló. Os Karajá não traduzem as palavras Ioló e Deridu . Às vezes, o Deridu é associado a entidades sagradas Karajá, ou comparado aos

reis das antigas sociedades ocidentais, por ter um poder hereditário. Todas as questões internas da aldeia, de desavenças familiares até

deliberações sobre rituais, são decididas em comum acordo entre Ixydinodu e a família do Deridu .

7
O Hetohoky é um ritual Karajá de iniciação masculina. (Lima Filho, 1994).

8
Conforme Albert (2001), esse processo ganha progressiva importância a partir dessa década, e só no ano 2000 foram registradas mais de 350 candidaturas

indígenas, sendo que 75 deles se elegeram. A maioria desses candidatos concorreu ao cargo de vereador, e um número menor, ao de vice-prefeito.

Entre os Karajá, candidaturas em processos elei- Indígena Karajá como uma entidade que pode



torais de cidades vizinhas ocorrem freqüen- oferecer uma alternativa ao assistencialismo da



temente, e alguns desses candidatos conseguem Fundação Nacional do Índio (Funai), que atra-



se eleger, como é o caso mencionado a seguir: vessa, no momento, uma crise por causa dos


cortes de verbas no orçamento federal. Assim, é



[...] E entrei no meio político. Primeiro, me no âmbito da associação, recentemente criada,



candidatei e fui derrotado. Fiquei com 86 votos que as lideranças Karajá planejam desenvolver


[enquanto o outro candidato, também da aldeia] tais projetos.



ficou com quinze votos [...]. Uma diferença muito


grande. Eu acredito que o povo aqui me queria


[...] temos a Associação que está em anda-


como representante dele. Então, quando houve


mento nesta aldeia, eles me elegeram para [...]


uma política, novamente, ganhei essa eleição9
assumir. E este trabalho terá condições de fazer


com 142 votos (Iwyraru Karajá).


alguma coisa. [...]. Através disso aqui poderemos


trabalhar e desenvolver o ecoturismo. [...] Temos

Na concepção das lideranças Karajá, dispu-


projeto aprovado pelo Ibama para piscicultura. Tem
tar cargos eleitorais nas esferas regionais e nacio-

um projeto aprovado através do Prodeagro [...]


nais de poder significa que o “índio está ganhan- para fazer roça de mandioca e fazer farinha. Va-

do espaço”, conquistando direitos e, sobretudo, mos trabalhar em cima disso (Kuhãlue Karajá).

garantindo melhorias para a qualidade de vida



do povo da aldeia. As organizações indígenas têm objetivos



reivindicatórios. O surgimento delas na Amazô-


Através de políticos, eu consegui um motor


nia é mencionado por Albert como uma muta-


(gerador de energia elétrica) para o posto de saú-


ção do movimento indígena “da etnicidade po-


de. E, graças a Deus, está funcionando. E a medi-


lítica: um movimento conflitivo de organizações

cação... consegui aumentar o número de consul-


e mobilizações etnopolíticas que tinham como


tas, através da prefeitura. E assim, eu ajudei um


objetivo reivindicações legalistas e territoriais e


pouco [...]. E agora está aí, sem representante. Não


tem ninguém na Câmara [...] Eu consegui cesta como principal interlocutor o Estado; para a

etnicidade de resultados: composta por jovens


básica [...] Distribuía na aldeia [...] Porque eu es-


tava como vereador (Iwyraru Karajá). quadros (interessados em administração e ges-



tão de projetos), na qual a afirmação identitária



E assim, esse representante segue destacan- é colocada como pano de fundo para a busca do

do estas e outras vantagens, como a abertura de acesso ao mercado, sobretudo de projetos, aber-

estradas para facilitar o transporte de doentes em tos nacional e internacionalmente, pelas novas

casos de emergência, como decorrência da sua políticas descentralizadas de desenvolvimen-


to”. 10 Dessa forma, a partir das dificuldades


participação no processo eleitoral do município


vizinho. vivenciadas pelas comunidades e pelas novas



Os representantes de associações indígenas possibilidades que se apresentam, vão se confi-



também são mencionados nos discursos Karajá gurando outros e novos espaços de atuação que

quando se referem à criação de uma Associação reivindicam a incorporação de novos saberes,









9
Quando os relatos foram gravados, Iwyraru, pela terceira vez, disputava o cargo de vereador em São Félix do Araguaia, MT, com outros dois

candidatos da aldeia. Essas disputas eleitorais nem sempre ocorrem de forma tranqüila. Em alguns momentos acirram rivalidades existentes

entre grupos familiares e facções políticas tradicionais da aldeia (Notas de campo, set. 1997).

10 Albert menciona a existência de 183 organizações indígenas atualmente, só nos estados da Amazônia. De acordo com ele, esse é um fenômeno que

tem início no Brasil, a partir do final da década de 1980 e é intensificado nos anos 1990, sendo impulsionado, principalmente, por fatores internos e

externos. No primeiro caso, ele menciona a possibilidade de criação dessas associações como pessoas jurídicas a partir da promulgação da Constitui-

ção Federal de 1988 e do esvaziamento político orçamentário da Funai. No segundo caso, são mencionadas: a globalização das questões relativas ao

meio ambiente e aos direitos das minorias, a descentralização da cooperação internacional (reorientada para a sociedade civil e para o desenvolvimento

sustentável) e a implementação de microprojetos locais (Albert, 2001: 195-217).


82
PAINEL 1
A questão indígena na sala de aula

novas estratégias de sobrevivência e novos me-


contarem para os seus filhos”. Todo mundo [os


canismos de relacionamento com a sociedade outros] saía brincando e eu ficava sempre com ele.



majoritária. Em função dessa complexificação E ele contava tudo [...], como é a festa de Hetohoky,


a festa do mel, a festa da puba... (Tebukua Karajá).


crescente, as formas tradicionais de chefia pas-


sam, cada vez mais, a conviver com modalida-



des alternativas de poder e liderança. Ao mes- E foi graças ao conhecimento cultural acu-


mulado ao longo de anos somado às caracterís-


mo tempo, as sociedades indígenas passam a


adotar critérios e mecanismos distintos para a ticas da sua própria personalidade (“calmo”, 83



escolha dos seus representantes e a recorrer a “educado”, “generoso”) e aos vínculos familiares



processos diferenciados de formação, de acordo com detentores de posições de status e prestí-


gio, no presente e no passado, que Tebukua é,


com o cargo a ser ocupado, com as atividades a


serem desempenhadas e com as modalidades de hoje, um dos principais líderes da sua aldeia. De



poder a ser exercido por cada um deles. acordo com ele, para que uma pessoa se torne


cacique geral são dela exigidos ainda outros atri-


No que se refere à formação dessas lideran-


butos baseados em critérios de idade e em rela-


ças e aos critérios adotados para sua escolha, a


interpretação dos depoimentos aponta para ções de parentesco. O posto é tradicionalmente



duas questões principais: por um lado, parece ocupado por velhos, pelos primeiros filhos de

existir uma associação entre padrões tradicio-



famílias respeitadas. O seu relato faz uma inte-


ressante descrição do processo de discussão tra-

nais de aprendizagem e formas tradicionais e


internas de poder e, por outro lado, entre for- vado por sua família e pela aldeia, que antece-

mação escolar e lideranças responsáveis pela deu à sua escolha para o cargo. Nesse processo,

eram debatidos os impasses decorrentes do fato


mediação das relações índios/não-índios.


Quando o “cacique geral” fala da sua própria de ele ser o caçula e não o primeiro filho.

trajetória de vida, não menciona nenhuma ex-



periência com a educação escolar. Ele relata um [...] Nesse tempo, o meu tio Maluaré adoeceu

e não tinha ninguém para liderar o Hetohoky. En-


longo e complexo processo de formação que,


tão, minha sogra falou com meu primo, conversou


baseado nos padrões tradicionais nativos de so-

lá e falou pra mim ser cacique. Não! Não posso


cialização, permitiu a ele, na vida adulta, assu-

ser. Sou o caçula. Não sou o primeiro filho do meu


mir um cargo de chefia. Ele fala de sua infância e


pai. [...]. Então, minha sogra veio [...] ela me falou:


juventude quando, na companhia de outros


“vai ser você mesmo. Você aprendeu. O velho

meninos da sua geração, era “forçado” a ouvir,


Maluá contou muitas coisas pra você [...]” (Tebukua


na casa de Aruanã,11 durante horas a fio, todos


Karajá).

os dias, durante anos, os ensinamentos sobre a



cultura, os rituais e as tradições. Este relato ressalta os critérios de escolha,



baseados no parentesco, na hereditariedade do


Fiquei na casa de Aruanã, não sei quantos


cargo, no conhecimento da cultura tradicional e


anos. O velho Maluá, pai de Maluaré, mandava


em personalidade socialmente aprovada.12 No

me chamar [...] Nós éramos eu, finado Kumahira


caso de Tebukua, mesmo ele não sendo o primei-


e Lawakate. Chamava todo mundo: “Senta aqui,


ro filho, tratava-se do candidato mais apropriado


que eu vou contar muitas histórias pra vocês ve-


dentro da sua linhagem e devia assumir o cargo,


rem como é que é”. E, então, a gente sentava. Todo

garantindo assim o status da sua família.


dia, sentava [Dizia: ] “Não quero isso, já sei de



tudo”. E o velho Maluá falava: “Ah, meu filho, não


é assim não. Eu tô velho, daqui a um tempo, eu [...] Aí, chegou o meu outro tio. Wataú:

“Tebukua, venha cá! Você vai ser cacique. [...] Por-


vou embora, vou morrer. Vocês têm que aprender


que toda a sua família foi cacique. Seu tio Belehiro


alguma coisa que eu conto pra vocês, pra vocês





11
Espaço público e ritual interditado a mulheres e a crianças, um dos espaços de socialização dos meninos Karajá.

12
Os atributos mencionados por Tebukua como necessários ao líder se aproximam daqueles apontados por Clastres. (1978) e por Service (1993: 112-134).

do por meio de eleições, nas quais “todo mundo


foi cacique, que faleceu. Depois, foi o finado dr.


Kuryala, que também foi cacique geral até morrer. vota”, homens ou mulheres.



Depois disso, foi Arutana que morreu também. O próprio cacique (Tori Wedu), ou “cacique


Então, você também serve. Nosso avô Maluá con-


de branco”, relata o seu caminho de acesso ao


tou muitas coisas para você. Então, você vai ser”. cargo de chefia no momento por ele ocupado:



Ele me abraçou e aí não tinha mais jeito e eu fi-


quei. Foi mais ou menos há uns cinco anos atrás


Primeiro, [...] Na época, do Ixãriri, quando ele


(Tebukua Karajá).
era cacique, ele me convidou pra ser liderança.14



Depois o Idjahina, quando assumiu como cacique,


A escolha e a sucessão do Deridu obedecem,


ele me convidou como vice dele. [Quando fui es-


em linhas gerais, aos mesmos critérios anterior- colhido], foi feita uma reunião. Então, eu assisti à



mente descritos. Baseiam-se no parentesco e na reunião deles para escolher o cacique. A comuni-


hereditariedade. O Deridu deve pertencer à últi-


dade, os homens, os jovens, as mulheres. Fui es-


ma geração de uma família de prestígio, deven- colhido assim (Xiari Karajá).


do ser também o primeiro filho. ○

Por outro lado, as lideranças que atuarão nas Um professor Karajá, que também atua como

relações políticas externas devem possuir outras auxiliar das atividades do Tori Wedu, relata a for-

qualidades de acordo com as atividades a serem ma pela qual explica aos seus alunos como sur-

desempenhadas por elas. Se vão intermediar o giram as aldeias e como “hoje” os Karajá utili-

contato com “a sociedade dos brancos”, devem zam outras formas de poder, de acordo com ele

principalmente possuir requisitos que permitam “copiadas dos brancos”.



a compreensão das regras e dos padrões de fun-



cionamento dessa sociedade ou o conhecimen- Nosso cacique de antigamente, chamava Ioló


to dos códigos que as capacitem a transitar nos e Deridu. Não existiam as lideranças, vice-caci-

“dois mundos” (do índio Karajá e do não-índio). que e cacique. [...] Mas, nesse tempo [hoje] mu-

Portanto, nas suas trajetórias de vida, todos pos- dou. Formou igual [na] sociedade branca. Por

exemplo, antigamente, existia rei. Eu falei assim


suem, em maior ou menor grau, alguma experi-


ência com a escolarização. Mesmo aqueles que para eles [os alunos]. Nesse tempo, [hoje] mudou

para presidente. Antigamente, passava [o poder]


não foram completamente alfabetizados fre-

de família a família. Nós, também, a mesma coisa.


qüentaram a escola por algum tempo e ressal-


Quando morria, passava para outro herdeiro. E


tam nos seus discursos essa necessidade, bem


nesse tempo, mudou [...]. Nós escolhemos o can-


como os obstáculos enfrentados por aqueles que

didato de nossa confiança. Por exemplo, Idjahina


não têm um domínio satisfatório da leitura e da


enfrentou uma disputa com Iwyraru e o povo ele-


escrita.13 geu Idjahina. (Woubedu Karajá).



Os mecanismos pelos quais se tornaram re-


presentantes, embora tenham alguma relação


Quanto aos processos de formação, perce-


com as influências exercidas pelos grupos fami-


be-se que, enquanto o cacique geral foi educa-


liares tradicionais, são bem distintos dos critéri- do nos moldes tradicionais Karajá, tornando-

os tradicionais, aproximando-se, em maior grau, se um profundo conhecedor da sua cultura e


das formas ocidentais de escolha de represen-


não tendo que, para isso, passar pela escola,


tantes. Assim, se o “cacique geral” e o Deridu nem dentro e nem fora da aldeia, a maioria das

possuem um poder hereditário, o cacique (de novas lideranças passou por um processo de

branco) ocupa um cargo temporário e é escolhi- escolarização e, portanto, domina a leitura e a






13
Outra característica que distingue essas lideranças, no caso dos Karajá, é o fato de todos eles serem relativamente jovens, tendo em média

entre 25 e 35 anos de idade.


14

Assim, após ser escolhido pela comunidade por meio do voto, o cacique escolhe outras pessoas para auxiliar na administração da aldeia, desempe-

nhando até mesmo funções burocráticas; nas relações com a Funai e com outras instâncias governamentais, controle de gastos e prestação de contas

no que se refere aos recursos da comunidade etc.


84
PAINEL 1
A questão indígena na sala de aula

escrita, tanto na língua nativa como na língua


anos, depois fui estudar em São Félix, cidade vi-


oficial. O grau de escolarização de alguns coin- zinha e, após isso, eu fui para Goiânia estudar.



cide com a etapa escolar oferecida pela escola Ganhei bolsa de estudos da Funai. [...] Estudei e


hoje estou colaborando com a minha turma, que


da aldeia, que vai até a 4ª série do Ensino Fun-


damental. Outros, após passarem pela escola são os índios. [...]. É através dos estudos que a



gente tá tomando espaço. Eu, como outros estu-
indígena, prosseguiram os estudos em cidades


dantes, que já foram, estudaram e voltaram, ou


vizinhas:


estão se formando em faculdades. No meu caso, 85


não deu. Por falta de apoio. Mas, pelo menos, ter-


Eu não tenho muito estudo. [...] Eu estudava


minei o 2º grau (Kuhãlue Karajá).


naquela época [1972], naquele tempo. Mas, meu


estudo é muito pouco. Parei na 4ª série. [...] Parei


Um desses líderes diz ter freqüentado a es-


porque casei. Naquele tempo, índio quando casa-


cola por pouco tempo e lamenta não ter apren-


va, parava de estudar [...]. Aprendi a ler e escre-


ver com Ijyraru, que é antigo professor [da aldeia]. dido a ler e a escrever, o que implica muitas difi-



[...] Depois, estudei com professora tori [branco] culdades, pois não dominando a escrita não do-


mina o discurso no português padrão:


(Xiari Karajá).




Eu estudei aqui mesmo, na minha aldeia. Na ○
Estudei quando era criança [...] Minha mãe não
dava incentivo, nem meu pai. Eu parei onde era alu-

escola que funciona aí. Quem me ensinou foi o


professor Ijyraru. Ele é antigo professor da escola no de Ijyraru [1ª série bilíngüe], que inclusive, até

indígena. Quando terminei aqui o primário, fui para agora, está dando aulas [...]. Fiquei ali mesmo e

nunca mais estudei [...]. Dificultou muita coisa, quan-


São Félix. Lá, assistia aula e voltava para a al-


deia. Tô terminando a 8ª série (Koxieru Karajá). do eu entrei na política e vivi no meio dos brancos,

sem saber ler e nem escrever [...]. Tento aprender


até agora. Às vezes, troco a língua [...] estou come-


Em casos menos freqüentes, prosseguem es-


tudos em cidades grandes, às vezes não chegan- çando a escrever (Iwyraru Karajá).

do a concluir a educação básica e atingindo, ra-


As lideranças Karajá16 afirmam a necessida-


ramente, o Ensino Superior.


de de garantir às crianças e aos jovens condições



Bem, minha alfabetização começou aqui mes- de acesso ao saber escolarizado e concebem a

mo, na aldeia [...] Eu estudei o nosso idioma. [...]. escola indígena e o ensino bilíngüe como instru-

mento destinado a fornecer não só os conteú-


Assim, facilitou como tradução para o Português.


Aí, fui estudando com dificuldade [...]. Fui passan- dos elementares básicos para etapas escolares

do de ano em ano e aprendendo. Terminei o pri- posteriores, como também para a preservação

da língua e o fortalecimento dos vínculos com a


mário e fui estudar na cidade próxima. Estudei lá


fora também, em Goiânia. Morei quatro anos lá. cultura tradicional. Existe uma compreensão de

[...] Fiz o curso Técnico em Contabilidade e parei que é na infância que esses vínculos culturais são

no 2º ano. Não terminei (Koribete Karajá).


sedimentados. E é em contato com a aldeia, com


os ensinamentos da família, da escola e dos pro-



As novas lideranças ressaltam a importância fessores indígenas que a identidade étnica Karajá

da escola indígena bilíngüe15 como base para o


se constitui. A passagem pela escola indígena


prosseguimento dos estudos em escolas da ci-


pressupõe a formação de uma consciência com-


dade e lamentam a falta de oportunidade e apoio prometida com os interesses indígenas e com os

para irem além da educação básica: problemas da comunidade. Assim, de acordo



Estudei aqui. Estudei indígena durante quatro com as lideranças Karajá, mesmo saindo da al-




15 Nas escolas Karajá bilíngües, as crianças são alfabetizadas na língua materna e aprendem o português oralmente nas séries iniciais. A

partir da segunda série, começam também a aprender o português escrito.



16 Os professores indígenas também gozam de grande prestígio em suas comunidades. Às vezes, atuam também como lideranças e, mesmo não

ocupando cargos de chefia, são sempre convidados a participar das decisões nas reuniões comunitárias que se referem às relações índios/não-índios.

deia para prosseguir estudos em “cidades”, esse O convívio dos Karajá quase cotidiano com



compromisso garante o retorno dos jovens tão os “brancos” de cidades vizinhas − onde nego-



logo eles concluam os seus cursos além de uma ciam benefícios para a aldeia, buscam tratamen-



futura atuação em benefício da comunidade. tos médicos, freqüentam/freqüentaram escolas,


vendem peixes e artesanato e adquirem produ-



Para apoiar em termos de trabalho e defen- tos industrializados para o consumo familiar –



der a questão indígena [...] Tudo isso depende impõe o domínio da língua “do branco” como


dessa escolinha. Todos nós, que estudamos fora, uma necessidade.



estudamos nessa escolinha. [...]. Os outros tam-



bém estudaram aí, saíram e retornaram. Todos, [...] eu falo duas línguas e acho que é bom,


que estudam aqui, vão para fora e retornam. Por-


porque quando eu falo pra branco, eu falo na lín-


que nós saímos daqui pensando em ajudar nosso gua dele, no Português, e quando eu falo para o


povo. [...]. É por isso que a educação das crianças


índio, para a gente da aldeia eu falo o Karajá. Eu


[...] é muito importante (Kuhãlue Karajá). acho que é muito bom. Pra nós falar só uma lín-



gua, eu acho que não é bom (Koxieru Karajá).
Assim, a escola indígena deve proporcionar

aos jovens condições necessárias para a apren- Portanto, para interlocutores diferencia-

dizagem do português oral e escrito, um requi- dos, devem-se usar línguas diferenciadas. O

sito necessário à atuação competente nas conhecimento, por mais profundo que seja,

intermediações do contato entre índios e bran-


da cultura nativa não capacita o “cidadão”


cos e um aspecto relevante nas decisões no que Karajá de hoje para os desafios que ele enfren-

se refere à escolha de lideranças. ta nas interações com a “sociedade branca”.



O desafio de ser, ao mesmo tempo, índio e


A escola indígena vista como


brasileiro requer habilidades que são cons-


tantemente buscadas pelos Karajá, conforme


lugar de aprendizado da língua


os discursos de suas lideranças, que permi-


oficial e de reafirmação étnica


tam transitar com segurança em dois mundos



e em duas culturas.

As lideranças indígenas Karajá atribuem um



alto status à linguagem escrita e ao saber escolar. [...] eu tenho o maior orgulho de ser índio. [...]

As vantagens de aprender o português na escola


Eu tenho que dançar, quando tem festa. Tenho que


são enfatizadas, pois aqueles que aprenderam fora estar lá e dançar. Quando eu tô no meio do bran-

da escola “trocam a língua” e “falam muito enro- co, eu tenho que tentar entrar no costume do bran-

lado”. Assim, a escola (da aldeia ou da cidade) deve co. Agora, quando eu estou no meio dos índios,

formar uma habilidade discursiva na Língua Por- eu sou índio. [...] Então, meu filho tem que apren-

tuguesa, o que futuramente possibilitará ao alu- der os dois costumes, os dois lados. Não pode

no a eloqüência do discurso nessa língua. deixar nosso costume e a nossa tradição. [...] Ago-

ra, temos que escrever e estudar. Tem que apren-



der, também, para conversar com autoridades


Às vezes eu converso com os alunos, com o

(Iwyraru Karajá).
povo: “as crianças têm que estudar”. Temos que

dar o maior incentivo às crianças. Eu estou dando


para o meu filho. Tenho orgulho do meu filho, pe- Assim, são ressaltadas as práticas tradici-

quenininho, mas está indo bem no colégio. Acre- onais da cultura nativa como critérios neces-

sários para a continuidade de uma identida-


dito que ele vai praticar dos dois lados. Vai saber

ler, escrever e falar o Português, corretamente. de indígena específica. A necessidade de “in-



Antes, quando alguém sabia falar, falava muito tegrar-se no mundo da ‘civilização’” para

enrolado. Agora, quem aprendeu a falar no colé- “conseguir viver” é enfatizada, ao mesmo

gio fala bem. Eu tenho um irmão que fala correta- tempo em que é ressaltado, por outro lado, o

mente. Ele aprendeu dentro da escola (Iwyraru sentimento de identidade Karajá e de perten-

Karajá). cimento étnico.


86
PAINEL 1
A questão indígena na sala de aula

Considerações finais suas instituições e redefinir os seus discur-



sos a partir de uma etnicidade genérica e ju-


De acordo com a situação analisada, três as-


rídica garantida legalmente pelo Estado Na-


pectos são relevantes no que refere à compre- cional. Nesse aspecto, o domínio da língua



ensão dos processos e das estratégias de convi- oficial falada e escrita é um desses códigos,


vência que caracterizam atualmente as intera- talvez considerado o mais precioso no dis-



ções entre comunidades indígenas e sociedade curso indígena. Nesse sentido, a análise de



nacional: Bourdieu, que situa a linguagem como um 87


campo específico no mercado dos bens sim-


• A apropriação de instituições e de discursos


da sociedade envolvente pelas sociedades in- bólicos, pode contribuir para uma melhor



dígenas, bem como a gestão entre estas últi- compreensão das concepções das lideranças


mas de agentes mediadores culturais (as Karajá no que se refere à língua dominante.



quais podem ser compreendidas a partir da Para Bourdieu, o domínio da linguagem no


padrão socialmente valorizado bem como


noção de brokers, utilizada por Wolf ). Esses


agentes atuam como verdadeiros tradutores das regras intuitivas referentes a uma situa-



culturais dos significados do pensamento ção comunicativa determinada constitui um


capital lingüístico que permite a produção de

ocidental para as suas comunidades e do sig-

nificado dos valores nativos para o resto do discursos ajustados a situações específicas e

mundo, o que vai resultar num discurso que garante ao seu detentor a manipulação da

permite uma comunicabilidade interétnica situação de forma a obter proveitos.



de conteúdo singular que articula o discurso


Dessa forma, o alto status atribuído à Língua


étnico cosmológico com o discurso baseado Portuguesa na sua versão oficial está, na concep-

em categorias ocidentais de indianidade.


ção das lideranças Karajá, intimamente relacio-


Essa capacidade de articular essas duas di-


nado à possibilidade de acesso, via saber esco-


mensões em um só discurso é, segundo


lar, aos conhecimentos técnicos e especializados

Albert, o que garante a eficiência dos gran-


próprios da cultura ocidental.


des líderes interétnicos.


Assim, o domínio das regras tanto objeti-


• A despeito da crescente importância do pa-


vas como subjetivas da linguagem na modali-


pel dessas lideranças mediadoras do conta-


dade oficial representa a possibilidade de

to interétnico, não ocorre sempre uma divi-


construir discursos políticos reivindicatórios,


são entre estas e as lideranças tradicionais,


bem como o acesso a conhecimentos burocrá-


uma vez que o discurso político e reivin-


ticos, jurídicos, de contabilidade e administra-


dicatório construído sobre a etnicidade pode

ção necessários à elaboração e ao desenvolvi-


ter como substrato as categorias nativas e, ao


mento de projetos voltados para a alocação de


mesmo tempo, se alimentar do saber tradi-


cional que as velhas lideranças detêm, o que recursos e para a realização de atividades

permite uma “eficiência político-simbólica” dirigidas para a ampliação de direitos e para a


auto-subsistência do grupo. Nesse contexto, as


no discurso indígena.

demandas crescentes por educação no Estado,


• O conhecimento escolar, ou a leitura e a es-


crita, neste cenário, são percebidos como um por parte das sociedades indígenas, podem ser

bem altamente valioso que pode permitir o compreendidas como um esforço de amplia-

ção do capital lingüístico dessas sociedades,


acesso aos significados da cultura ociden-


tal.17 O domínio desses significados é de fun- considerado de fundamental importância para



damental importância, uma vez que, subme- a formação das lideranças jovens, cujas fun-

tidas a processos de intensa interação com a ções se voltam para a intermediação das rela-

sociedade nacional, as comunidades indíge- ções entre sociedades indígenas e o “mundo



nas necessitam adaptar constantemente as dos brancos”.






17
Uma das lideranças entrevistadas afirma que “é por isso que o pessoal está na escola que existe em todo o Brasil para o índio”. Outra

ressalta a percepção de que “vale mais é o que está escrito” e que a comunicação oral “não vale para entidades do governo”. Por outro lado,

“um documento escrito, com assinatura, é válido”.



Bibliografia ção escolar para o povo Karajá de Santa Isabel do Mor-



ro, Ilha do Bananal, TO. Goiânia: UFG, 1998.


ALBERT, Bruce. O ouro canibal e a queda do céu: uma críti- LIMA FILHO, M.F. Hetohoky: um rito Karajá. Goiânia: UCG,



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. Associações indígenas e desenvolvimento In: HENDERSON, John S.; NETHERLY, Patricia J. (Eds.).



sustentável na Amazônia brasileira: Povos indígenas no Configurations of power: holistic anthropolgy in theory


Brasil: 1996/2000 . São Paulo/Brasília: Instituto and practice. Ithaca: Cornell University Press, 1993. p.


112-134.


Socioambiental, 2001. p. 195-217.


CLASTRES, P. Troca e poder: filosofia da chefia indígena. A WOLF, Eric. Aspects of Group Relations in a Complex Society:


sociedade contra o Estado. Rio de Janeiro: Francisco Mexico. In: Pathways of power: building an anthropology



Alves, 1978. of the modern world. Berkeley: University of California


LEITÃO, R.M. Educação e tradição: o significado da educa- Press. p. 124-38.




































































88
PAINEL 1
A questão indígena na sala de aula

A questão indígena na sala de aula





Betty Mindlin



Iama







A riqueza cultural brasileira, com mais de nas, com características muito distintas das que 89



duzentos povos indígenas e quase o mesmo nú- predominam na sociedade brasileira, exigindo,



mero de línguas indígenas, é imensa, e hoje se para sua compreensão, um estudo e uma refle-


reconhece que as escolas brasileiras deveriam


xão mais longos. Basta pensar, por exemplo, nos


desde cedo incluir no seu currículo o conteúdo muitos sistemas de parentesco, que por vezes são



dessa tradição milenar. análogos a modelos matemáticos, tão misterio-



Houve um grande avanço no país na afirma- sos para os que não são índios e tão fundamen-


ção dos direitos dos índios e de sua participação tais e claros para cada povo. Ou nas relações so-



na cidadania brasileira. Nos últimos vinte anos, ciais igualitárias, sem propriedade, com coope-



surgiram muitos projetos multiculturais e ração comunitária, com rituais e produção en-

multilíngües de Educação Indígena, impensáveis trelaçados, com economia, religião, arte e lazer

há algumas décadas, quando praticamente to- simultâneos, compondo um todo indissociável.



das as iniciativas educacionais entre os índios Ou, ainda, na religião e na feitiçaria, com os má-

eram de caráter religioso e feitas quase sempre gicos vôos xamânicos, o interesse pelo além e

apenas em português. pela vida depois da morte, pela influência de es-


A instituição pelo MEC dos Parâmetros Cur- píritos no quotidiano, pelas formas de cura e

riculares Nacionais, em particular os referentes explicações da doença ligadas ao sobrenatural,



a diversidade cultural, ampliou a consciência da às plantas, às aparições. Há, entre os índios, re-

importância de conhecer em profundidade as gras de alimentação com proibições e prescri-


formas de vida e de pensamento dos índios. É ções que não entendemos bem. Espanta-nos a

desde a infância que se criam atitudes de res- sexualidade relativamente mais livre, sem rou-

peito à diferença e de combate ao racismo e ao pas, sem censura na expressão do amor, do cor-

preconceito, ao desvendar e ao admirar o que são


po, do contato físico, mas com muitas regras,


os outros, em vez de ver como ameaçadores ou proibições e repressão. E assim muitos outros

desprezíveis conteúdos que não são bem com- aspectos parecem surpreendentes. Não se passa

preendidos. tanta substância fascinante e sem semelhança


Já existe uma extensa documentação da tra-


com o já conhecido se não houver um preparo e


dição cultural e da situação material dos índios, uma decisão de tradução cultural.

e cresceu a reflexão sobre os limites e a combi-



nação possível entre a tradição e o conhecimen-


A mitologia,

to na sociedade tecnológica. Além de pesquisa-


ou literatura indígena

dores, estudiosos, antropólogos, hoje os índios



começam a escrever em suas línguas e em por- A questão indígena é vasta, podendo ser exa-

tuguês e tomam a si a tarefa de expor sua visão minada sob vários ângulos. É sobre o uso da mi-

do mundo em trabalhos de boa qualidade.


tologia indígena em sala de aula que este texto


Apesar de todos esses aspectos promissores, procura concentrar-se.



não tem sido fácil promover no sistema educa- Os mitos exercem um fascínio irresistível so-

cional um conhecimento aprofundado e verda- bre adultos e crianças, desencadeiam imagens,


deiro do mundo indígena, nem há tantos livros


estimulam a curiosidade e o aprendizado. Con-


e material didático para esse aprendizado. siderados a verdadeira história do mundo pelos

A dificuldade em parte explica-se pela pró- povos que os contam, uma tradição sagrada, são

pria complexidade da vida e da cultura indíge- uma maneira artística de começar a penetrar na

sociedade indígena e ir aprendendo seus costu- a terra, ao caçar um tatu num buraco, como rela-



mes.1 tam os Kaiapó e muitos outros povos que falam



Os temas são variadíssimos, e mesmo alguns línguas do tronco jê. Ou pelo menos as primeiras



exemplos ao acaso dão idéia do interesse que po- mulheres, no início inexistentes, teriam descido


dem suscitar. dos céus, roubando a comida dos homens. Ao



A criação da humanidade e do mundo apa- serem surpreendidas, casaram-se com eles.



rece com variações em praticamente todas as Os mitos sobre a origem da mulher são curi-


mitologias. Às vezes, a idéia de infinito e de co- osos, indicando que mesmo na sociedade indí-



meço inconcebível é clara: os Suruí, por exem- gena, mais igualitária que a nossa, os homens



plo, dizem que os quatro primeiros seres nas- têm precedência. É comum em vários povos di-



ceram de si mesmos. Simplesmente brotaram. zer-se que não havia mulheres, que os criadores


Dois deles, irmãos ou companheiros, é que cri- viviam sozinhos com a mãe. Um deles namora



aram tudo o que existe, sendo um mais sábio e um oco de árvore (Suruí de Rondônia, por exem-



o outro provocando desastres e pregando pe- plo), e nove meses depois aparecem duas meni-


ças; um mais ponderado e o outro malandro e ○
nas, cujo choro a mãe ouve. Nos Aruá, um dos
sem-vergonha, porém muito mais inventivo e dois irmãos copulou com um monte de cupim,

menos preguiçoso. É como se fossem sementes engravidando a terra da humanidade, que se ori-

do bem e do mal, mas sem este sentido gina no subterrâneo. Em outros povos, como al-

maniqueísta de oposição que existe, por exem- guns do Xingu, as mulheres foram feitas de ár-

plo, quando falamos de Deus e do Diabo. A du- vores, ou de conchas, pelo grande Criador,

pla de irmãos ou companheiros existe em mui- Mavutsinim.



tos povos. São eles, por exemplo, que extraem a Enquanto a Bíblia nada nos conta sobre a

humanidade do subterrâneo, povoando o mun- origem dos órgãos sexuais e da cópula, esse é um

do, em narrativas como as dos Kadiwéu, dos tema forte na mitologia indígena, podendo dar

Macurap, dos Tupari, dos Aruá, dos Jabuti e ocasião, em sala de aula, a conversas muito vi-

muitos outros. Há povos, como os Gavião- vas sobre sexualidade e educação sexual.

Ikolen, que acreditam que uma parte da huma- Muitos povos dizem que antigamente os ho-

nidade ainda está presa debaixo da terra e pode mens é que ficavam menstruados, e por várias

ser ouvida. É que uma mulher grávida, ao sair, razões essa função passou às mulheres

ficou entalada em virtude do tamanho da bar- (Macurap, Kaiabi, Suruí, Tupari, Gavião e Arara

riga, impedindo a passagem. Os Gavião acredi- de Rondônia, para dar apenas alguns exemplos).

tam que é possível visitar, ainda hoje, a rocha Contam também que, inicialmente, os homens

de onde emergiram os primeiros seres. namoravam as mulheres entre os dedos do pé,



Outros povos têm uma explicação oposta a até que os órgãos sexuais fossem inventados

essa para o nascimento da humanidade: os ho- como são hoje...



mens teriam vindo do céu, caindo no que é hoje Temas predominantes são a origem da água,






1
Saber o que é o mito como forma de pensamento é uma das grandes preocupações de antropólogos e artistas, um debate que seria impossível

resumir em tão curto trabalho. Vale a pena, porém, reter uma definição sucinta publicada na Nova Enciclopédia da Folha de S. Paulo: “Mito:

narrativa tradicional sobre o passado que freqüentemente inclui elementos religiosos e fantásticos. Alguns tipos de mito são encontrados em

todas as sociedades, embora funcionem de diferentes maneiras em cada uma delas. Os mitos podem tentar explicar a origem do universo e da

humanidade, o desenvolvimento de instituições políticas ou as razões das práticas rituais. Os mitos muitas vezes descrevem as façanhas de

deuses, de seres sobrenaturais ou de heróis que têm poderes suficientes para se transfigurar em animais e para executar outras proezas

extraordinárias. Antropólogos passaram muito tempo tentando diferenciar mito de história, mas a história pode exercer as mesmas funções do

mito, e os dois tipos de narrativa sobre o passado algumas vezes se confundem. Teóricos como Frazer interpretavam os mitos como formas de

antigos pensamentos científicos ou religiosos. Essa abordagem foi posteriormente criticada por Malinowski, que via o mito como explicação

para a ordem social. O historiador romeno norte-americano Mircea Eliade (1907-1986) via o mito como um fenômeno religioso, isto é, como a

tentativa de o homem retornar ao ato original da criação. Lévi-Strauss afirmou que a importância do mito não está em seu conteúdo, mas em sua

estrutura, uma vez que ela revela processos mentais universais. Em Psicologia, os mitos são vistos como uma importante base para o compor-

tamento humano. Tanto Freud quanto Jung utilizaram largamente os mitos em seus trabalhos. Quaisquer que sejam as teorias a respeito das

origens e das funções dos mitos, esses permanecem fundamentais para a consciência humana.”

90
PAINEL 1
A questão indígena na sala de aula

em geral privilégio de algum deus ou espírito so- vôos e andanças mágicas para buscar espíritos e



vina, ou o roubo do fogo, pertencente a animais convencê-los a curar as doenças. A cura não ter-



avaros que o escondiam (o urubu, a onça, o sapo, mina na morte – ao contrário, é na fusão de mor-



o jacaré e muitos outros), o aparecimento dos te e vida, na crença na alma que são encontra-


alimentos básicos como mandioca, milho, feijão, dos recursos para prolongar o tempo de vida. A



a invenção da caça (gente que vai se transfor- poesia e a magia da espiritualidade indígena são



mando em animais, esses quase sempre tendo um contraponto à homogeneidade religiosa im-


sido originariamente seres humanos). posta por doutrinas de religiões monoteístas, 91



Catástrofes surgem nos enredos: dilúvios, apresentadas como verdade única. Quem ouvir



incêndios exterminadores, castigos em virtude e imbuir-se do clima das narrativas de pajés aca-



de incestos (embora muitas vezes a humanida- bará por julgá-los mais atraentes que padres ou


de recomece também com um incesto). Fenô- pastores, fará a analogia com pais e mães de san-



menos cósmicos são explicados, como o to, com fios culturais que guiam grande número



surgimento da Lua ou do Sol, e há explicações de brasileiros.



que ligam a origem física à estrutura social. As- A lista de temas e exemplos poderia esten-


sim, é freqüente, por exemplo, a lua originar-se der-se por muitas páginas e horas sem diminuir



de um incesto entre irmão e irmã. o encantamento. O que tem aparecido em ma-

Muitos mitos contam a separação entre o céu terial publicado, em antologias escolares, é ape-

e a terra, que no início dos tempos seriam uni- nas uma pequena amostra, um punhado de ter-

dos. Parte da humanidade sobe por um cipó, que ra de uma gigantesca montanha.

tem o papel de escada, e os cantos de pajés fa-


Formas de transmissão

zem o céu afastar-se. Há mitos em que o céu


ameaça cair sobre a terra e exterminar os mor-


dos mitos

tais, fazendo-nos lembrar do mito bíblico da



queda do paraíso, do fim da vida perfeita em que Para o aprendizado nas escolas, é preciso in-

céu e terra eram um só. Entre os Guarani ou os sistir muito em ter qualidade nas narrativas a

Tukano, há esteios que seguram o céu, mito que serem divulgadas. Complexas como são, de

é reproduzido na arquitetura das casas, e em modo algum devem ser simplificadas nem obs-

muitas mitologias uma grande árvore, que al- curecer a riqueza original que têm nos povos de

guns seres maléficos ameaçam derrubar, é que origem, com sua substância tão inimaginável

segura o céu e impede um desastre final. dentro do repertório que construímos a partir de

Poderíamos falar também da origem da diver- uma tradição européia, judaico-cristã,



sidade lingüística, com os dois criadores compa- tecnológica e industrial. Preservar a fidelidade

nheiros ensinando a língua: um deles, a mesma a ao conteúdo básico é fundamental.


todos os homens; o outro, o sem-vergonha, uma Os mitos são contados, sua transmissão é

língua diferente a cada povo que emerge do sub- oral, e esse caráter é precioso em si, não deveria

terrâneo (tradição dos Macurap, Tupari, Arikapu, ser perdido com a passagem para a escrita. A fa-

cilidade de falar e persuadir que têm os índios é


Gavião-Ikolen e muitos outros), criando o desen-


tendimento entre etnias. Versão da torre de Babel um traço a ser aprendido, multiplicado,

que atribui diretamente aos deuses a responsa- metamorfoseado em uma nova tradição literá-

bilidade pela incompreensão universal... ria a ser construída. Vale a pena incorporar ao

português bem escrito o estilo das narrativas in-


Outra vertente importante da tradição indí-


gena é a que diz respeito à vida depois da morte. dígenas, influenciado pela estrutura de línguas

Os povos indígenas ocupam-se muito do que tão diferentes.



ocorre com o além, que não é um domínio mui- Todos esses aspectos, nada fáceis de levar em

conta e de tornar concretos, são cruciais para a es-


to destacado da vida quotidiana. Os pajés per-


correm a estrada das almas, em reinos míticos colha do material didático. Ao mesmo tempo, é

dos céus, das águas ou da floresta, para curar os preciso que a leitura seja compreensível, que os

mortais. Transformam-se em animais, fazem professores sejam preparados para deixar de lado

preconceitos e penetrar em mundos diferenciados. dos Karajá, de João Américo Peret.



A sexualidade marcante que caracteriza os Os livros de Darcy Ribeiro, como Os Kadiwéu



mitos é um desafio constante quando se pensa ou Diários índios, têm mitos que poderiam ser



em difundir as narrativas indígenas nas institui- facilmente lidos nas escolas sem alteração, bas-


ções escolares. Na sociedade indígena, há gran- taria editá-los separadamente. Os mitos escritos



de liberdade no que diz respeito ao corpo, à ex- pelos irmãos Villas Bôas certamente poderiam



pressão verbal do amor, da fisiologia, dos impul- ser lidos.


sos e desejos – pouca ou nenhuma censura, um Muitas outras obras são importantíssimas,



clima lúdico, de brincadeiras e risadas. Atitudes mas de leitura bastante difícil, como as que exis-



que podem entrar em choque com o moralismo tem sobre os Guarani ou sobre os Tukano, como



de grande parte do sistema educacional – tão o livro de Berta Ribeiro ou o de Stradelli. Há mui-


falso quando se pensa na violência da cultura de tos mitos esparsos em teses e monografias sobre



massas. É preciso inventar formas de expandir e os índios, como as histórias Yanomami documen-



manter a liberdade, em vez de banir a diferença. tadas por Bruce Albert ou Jacques Lizot, mas que


Para as crianças, as histórias engraçadas sobre o ○
não foram publicadas em português e com o tem-
corpo humano ou sobre a sexualidade exercem po poderiam aparecer em antologias.

grande fascínio e abrem portas para conversas e O importante seria realizar oficinas com os

conhecimentos que mobilizam muitas emoções. professores, aprofundando o conhecimento das



sociedades indígenas, estimular pesquisas, do-


cumentando a tradição ainda viva entre os índi-


Literatura indígena disponível

os, e elaborar livros didáticos que mantivessem


e sugestões para ampliar a


o conteúdo, o caráter e a forma própria das his-


elaboração de documentação tórias indígenas. Certamente a participação cres-



cente dos índios nesses trabalhos há de enrique-



Há duas antologias de mitos indígenas bas- cer o resultado.


tante conhecidas, a de Alberto da Costa e Silva e



a de Herbert Baldus. Ambas se baseiam em pes-



quisas de antropólogos de qualidade e não re-


Algumas sugestões de leitura

criam os textos, apenas os reproduzem. São tra-


balhos que deveriam continuar a serem usados.


BALDUS, Herbert. Estórias e lendas dos índios. São Paulo:


Entre os livros escritos pelos índios, com apoio Edigraf, 1963.



de antropólogos, são excelentes os mitos dos COSTA E SILVA, Alberto da. Antologia de lendas do índio

brasileiro. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1957.


Kaxinawá e dos Xavante.


MINDLIN, Betty. Tuparis e Tarupás. São Paulo: Brasiliense/


As antologias que eu mesma preparei a partir

Edusp/Iama, 1993.

dos relatos, em muitas línguas, de narradores in-


. O primeiro homem. São Paulo: Cosac & Naify,


dígenas, que são os verdadeiros autores e rece- 2001.



bem os direitos autorais, podem parecer longas MINDLIN, Betty e narradores indígenas. Vozes da origem.

ou complicadas demais, mas penso que a maio- São Paulo: Ática/Iama, 1996.

ria dos mitos é de fácil compreensão para crian- . Moqueca de maridos. Rio de Janeiro: Rosa

dos Tempos/Record, 1997.


ças, com exceção do livro com conteúdo sexual


. Terra grávida. Rio de Janeiro: Rosa dos Tem-


mais forte, por vezes violento, que é Moqueca de

pos/Record, 1999.

maridos. Mesmo esse, se os professores forem


MINDLIN, Betty; GAVIÃO, Catarino Sebirop; GAVIÃO, Digüt


preparados para explicá-lo, poderia ter utilização. Tsorobá e outros narradores indígenas. Couro dos espí-

A última antologia, O primeiro homem, que re- ritos. São Paulo: Senac/Terceiro Nome, 2001.

produz textos e não é, como as outras, uma pes- PERET, João Américo. Mitos e lendas Karajá, Inã Son Wera.

Rio de Janeiro: Edição do autor, 1979.


quisa original, foi feita com o fim precípuo de uso

SEREBURÃ; HIPRU; RUPAWÊ; SEREZABDI; SEREÑIMIRÃMI;


em sala de aula, sendo sem dúvida de fácil com-


WAMRÊMÉ ZA’RA. Nossa palavra. Mito e história do povo


preensão. Um livro encantador, embora difícil de Xavante. Trad. de Paulo Supretaprã Xavante e Jurandir

encontrar e que deveria ser reeditado é de mitos


Siridiwê Xavante. São Paulo: Senac/SP, 1998.


92
PAINEL 1
A questão indígena na sala de aula


SHENIPABU MIYUI. História dos antigos. (Autoria coletiva NIMUENDAJU UNKEL, Curt. As lendas da criação e des-


da Organização dos Professores Indígenas do Acre) 2. truição do mundo como fundamentos da religião dos



ed. rev. Belo Horizonte: Ed.UFMG, 2000. Apapocuva-Guarani. São Paulo: Hucitec/Edusp, 1987.


VILLAS BÔAS, Orlando; VILLAS BÔAS, Cláudio. Xingu, os NUNES PEREIRA. Moronguêtá, um Decameron indígena. Rio


índios, seus mitos. Rio de Janeiro: Zahar, 1972.


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RIBEIRO, Darcy. Kadiwéu. Petrópolis, Vozes, 1980.


___________. Diários índios. Os Urubus-Kaapor. São Paulo:


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Livraria Briguiet, 1941. Janeiro: Typographia Leuzinger, 1890.


STRADELLI, Ermanno. “La leggenda del Jurupary” e outras


AGOSTINHO, Pedro. Mitos e outras narrativas Kamaiurá. Sal-


vador: Universidade Federal da Bahia, 1974. lendas amazônicas. São Paulo: Instituto Cultural Ítalo-


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Guaraní del Guairá. Edição preparada por Bartomeu UMÚSIN PANLÕN KUMU; TOLAMÃN KENHÍRI. Antes o mun-


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Melià. Assunção/Paraguai: Ceaduc-Cepag, 1992.


CLASTRES, Pierre. A fala sagrada. Campinas: Papirus, 1990. Berta G. Ribeiro.















A imagem do índio e o mito da escola





José Ribamar Bessa Freire*







Resumo



Este trabalho discute as representações sobre temática indígena em sala de aula. Recupera, ainda,

o índio construídas pela escola no Brasil, formulan- o discurso feito pelos índios sobre a escola, desta-

do algumas indagações relativas à imagem do ín- cando a narração mítica andina, que focaliza essa

dio difundida em sala de aula após a promulgação instituição como “devoradora” da identidade étnica

da Constituição Federal (1988) e depois da publi- e da própria identidade nacional. Enfatiza, finalmen-

cação dos Parâmetros Curriculares Nacionais (1997- te, alguns equívocos sobre os índios que a escola

1998). Toma como referência para suas reflexões a continua veiculando, o que poderia deixar de ocor-

prática dos professores de alguns municípios do Rio rer se o caráter intercultural presente nas escolas in-

de Janeiro, com os quais o autor trabalhou nos últi- dígenas fosse ampliado para todo o sistema nacio-

mos três anos, em oficinas destinadas a repensar a nal de educação escolar.








* O autor é ex-professor da Universidad Nacional de Educación e da PUC/Peru (Lima-Peru, 1974-1976) e da Universidade do Amazonas

(Manaus, 1977-1986). Lecionou, entre outras, as disciplinas Etno-história, História do Amazonas e Etnoeducação. Fundou e foi o primeiro

editor do Porantim , jornal do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) dedicado à causa indígena. Atualmente, é professor da Uni-Rio e da

Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), onde coordena desde 1992 o Programa de Estudos dos Povos Indígenas. Realizou seus

estudos de graduação na Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (1966-1969) e de pós-graduação no Irfed

(1970-1973), em Paris, e na École des Hautes Études en Sciences Sociales (1980-1983). Publicou artigos em revistas especializadas

nacionais e estrangeiras (França, Alemanha, Japão, México, Venezuela e Peru) relacionados à temática de história indígena, e coordenou

vários projetos de pesquisa, entre os quais o Guia de Fontes para a História Indígena e do Indigenismo em arquivos do Rio de Janeiro,

elaborado nacionalmente pelo Núcleo de História Indígena e do Indigenismo da USP.



Introdução Janeiro, com o objetivo de repensar com eles a



questão indígena na sala de aula. Dessa forma,


Nas aldeias dos Guarani Mbyá, localizadas


nos últimos três anos, o Pró-Índio da UERJ re-


nos municípios de Angra dos Reis e Parati, RJ,


alizou inúmeras oficinas, começando justa-


funcionam três escolas indígenas, cujas ativi-
mente com os professores não-índios de An-


dades são apoiadas, entre outras instituições,


gra e Parati, cuja população tem contato siste-


pela Universidade do Estado do Rio de Janei-


mático com os Guarani. O resultado desse tra-


ro. Preocupada com a formação de professo-
balho permitiu-nos elaborar algumas refle-


res indígenas, a UERJ editou, em convênio com


xões, que aqui apresentamos para o debate,


o FNDE, um livro paradidático intitulado Os


discutindo tanto a imagem do índio construída


aldeamentos indígenas do Rio de Janeiro (Freire


pela escola como a representação da escola


e Malheiros, 1997), com base em documenta-
elaborada pelos índios.


ção manuscr ita encontrada em arquivos



fluminenses pelos pesquisadores do Programa

de Estudos dos Povos Indígenas (Pró-Índio). ○

A imagem do índio
construída pela escola

A intenção do livro é valorizar os saberes


indígenas e redimensionar a contribuição his-



tórica dos índios para a cultura regional. Por A quase totalidade da população brasileira

isso, sua distribuição começou pelas escolas jamais visitou uma aldeia indígena nem teve

indígenas e pelos professores Guarani. Ao re- contato pessoal com qualquer índio. A repre-

ceber seu exemplar, o responsável pela Esco- sentação que cada brasileiro tem do índio,

la Kyringue Yvotyty, Algemiro Poty, depois de como regra geral, é aquela que lhe foi transmi-

uma rápida leitura, agradeceu educadamente, tida na sala de aula pelo professor, com a aju-

sugerindo, no entanto, com um leve tom de da do livro didático, e é reproduzida pela



ironia, que o livro fosse distribuído às esco- mídia. Dessa forma, cabe à escola uma grande

las do “Juruá” (do branco), onde poderia ser responsabilidade na construção da imagem

mais útil: que os brasileiros têm sobre os índios e sobre


si mesmos como produtos que são, entre ou-



O que está escrito neste livro o nosso aluno tras, da matriz cultural indígena.

já sabe; ele aprendeu a ter orgulho de ser Sobre esse papel da escola, foram realiza-

Guarani. Mas cada vez que sai da aldeia e vai


dos dois diagnósticos – o primeiro publicado


vender artesanato em Angra ou em Parati, ele em 1987 e o segundo em 1995 – que constitu-

desaprende lá tudo o que aprendeu aqui. Essa em referências obrigatórias para o tema. No

lição está no olho do “Juruá”, que trata o Guarani


espaço de tempo entre um e outro, surgiu a


como inferior. A escola do “Juruá” não ensina


nova Constituição Federal, promulgada em


pros seus alunos quem somos nós e nem mos-


1988, registrando alguns avanços significati-

tra a importância dos índios para o Brasil. Aí, o


vos nas relações do Estado com as minorias


aluno que sai dessa escola trata o índio com


étnicas. É interessante indagar se os especia-


desprezo, com preconceito, e aí acaba ensinan-


do a gente a ter vergonha de ser índio, estra-


listas detectaram mudanças substanciais nes-

se período.

gando todo o trabalho da escola Guarani. Por


O primeiro levantamento da situação, or-


isso, é bom levar esse livro pra lá, pra escola


dos brancos, pra ver se eles aprendem a conhe- ganizado por Aracy Lopes da Silva, da Comis-

cer o índio e a tratar a gente com respeito. são Pró-Índio de São Paulo (Silva, 1987), con-

tém críticas aos manuais didáticos, além de



Os argumentos de Algemiro Poty foram tão propostas para um novo tratamento da ques-

convincentes que a UERJ decidiu seguir a re- tão, formuladas por nove pesquisadores. A

comendação dele, criando novas atividades de conclusão é que, embora não exista “uma ima-

extensão destinadas a professores do Ensino gem única do índio no livro didático”, o que

Fundamental de vários municípios do Rio de predomina é uma representação “no mínimo,



94
PAINEL 1
A questão indígena na sala de aula

enganadora e equivocada”. São “afirmações Seria recomendável proceder a um exame



inexatas, detalhes exóticos e incompreensíveis, mais detalhado para avaliar se essas propos-



projeções de valores estranhos”, todos eles tas, de alguma forma, foram traduzidas em



apresentando o índio “como ser inferior” (Sil- ações concretas, com resultados palpáveis so-


va, 1987: 40 e 89). bre a imagem do índio, que é veiculada em sala



Oito anos depois, apesar das novas diretri- de aula. Essa avaliação, evidentemente, não



zes constitucionais, a situação não havia mu- pode se limitar ao registro das mudanças no


dado substancialmente. O segundo diagnósti- livro didático, na estrutura curricular, na 95



co, organizado pelo Mari – Grupo de Educa- metodologia de ensino ou na conduta do pro-



ção Indígena da USP –, com artigos de 22 es- fessor, mas deve prospectar entre os próprios



pecialistas, reafirma o que havia sido assina- índios, pois eles – quando em situação de con-


lado anteriormente. Constatou-se “a amplia- tato – constituem os indicadores mais interes-



ção, nos últimos anos, do número daqueles santes sobre como o sistema nacional de edu-



que escrevem sobre os índios”, o que não con- cação está se comportando em relação à ques-



tribuiu, no entanto, para alterar o “quadro de tão indígena. Eles sabem, pelo “olhar do bran-


desinformação, marcado pelo preconceito e co” que com eles interage, se essa imagem con-



pela discriminação”, porque “os manuais didá- tinua sendo preconceituosa ou não.

ticos ainda tratam os índios, suas sociedades No caso muito particular dos dois muni-

e seu papel na história a partir de formulações cípios do Rio de Janeiro onde atualmente exis-

esquemáticas e baseadas em pressupostos ul- tem aldeias indígenas – Angra dos Reis e Parati

trapassados” (Silva e Grupioni, 1995: 30, 483). –, algum esforço foi feito para a atualização dos

Os dois diagnósticos destacam o fato de que, professores e para um contato direto e mais

no Brasil, a escola tem contribuído historica- qualificado dos seus alunos com essas aldeias.

mente para apagar a participação dos diferen- Apesar disso, vários índios, como Algemiro

tes povos indígenas na formação cultural bra- Poty, tendo como base a sua experiência pes-

sileira, com conseqüências graves não apenas soal, continuam desconfiando da escola bra-

para a sociedade nacional, mas também para sileira e do papel que ela desempenha, hoje,

os próprios índios que com ela hoje interagem. no Brasil, o que parece confirmar as suspeitas

Depois desses dois balanços, foram elabo- já manifestadas por índios de outras regiões do

radas as propostas dos Parâmetros Curricula- continente americano.


res Nacionais para o ensino de 1ª a 4ª séries



(1997) e de 5ª a 8ª séries (1998), os Referenciais


A imagem da escola

para Formação de Professores (1999) e os Parâ-


construída pelo índio


metros em Ação (1999), destinados a apoiar a


capacitação profissional de professores e espe-


Numa intervenção realizada no 10º Con-


cialistas em educação. São documentos que in-


gresso de Leitura do Brasil (Cole), realizado em


corporaram conquistas significativas, reconhe- Campinas em julho de 1995, o professor



cendo o caráter pluricultural da sociedade bra- Kaingang Bruno Ferreira, integrante do Comi-

sileira e posicionando-se claramente “contra


tê de Educação Escolar Indígena do MEC,


qualquer discriminação baseada em diferenças


questionou o papel da escola:


culturais, de classe social, de crenças, de sexo e



de etnia” (SEF, 1997). Sugerem, por exemplo, no [...] os índios não sabem para que serve uma

eixo temático referente à história local e do co-


escola; eles não conhecem a escola; não sabem


tidiano, que a escola identifique os grupos in-


quais os objetivos da escola; o que ela quer fa-


dígenas da região e que, ali onde existem aldei- zer lá; se quer melhorar ou quer piorar, ou quer

as indígenas, se realizem visitas a elas, para co- afundar ou quer acabar ou quer exterminar os

nhecer melhor “o seu modo de vida social, eco- índios, ninguém sabe. Mas quem coloca a esco-

nômico, cultural, político, religioso e artístico” la sabe o que quer com a escola (D’Angelis e

(SEF, 1997, p. 54-55, v. 5). Veiga, 1997: 214).



Representação similar da escola pode ser tropólogo peruano Alejandro Ortiz (Ortiz,



observada em outros discursos, como na conhe- 1973: 244).



cida carta em que os índios norte-americanos



das Seis Nações agradecem, mas rejeitam as De acordo com essa narração mítica, o Cria-


vagas oferecidas no Colégio de Williamsburgo dor do mundo, depois de completar sua obra, teve



pelo governo da Virgínia em 1774, porque – dois filhos. O primogênito, chamado Inka, casou-


se com a Mãe Terra – a Mama Pacha – com quem


como afirmaram – tinham concepções diferen-


teve também dois filhos, a quem ensinou a falar,
tes sobre educação:



a cultivar a terra e a domesticar os animais, sem


necessidade da escola. Com isso, despertou


Muitos dos nossos jovens foram educados


muita inveja em seu irmão mais novo, chamado


por vossos professores nos colégios das pro-


Sucristo, que, cheio de ódio, matou o Inka e es-
víncias setentrionais e aprenderam as vossas


pancou Mama Pacha, cortando-lhe o pescoço e


ciências. Mas, quando eles regressaram para


ferindo-a mortalmente.
nós, já não eram ligeiros na corrida, esquece-

As duas mortes foram comemoradas por

ram a maneira de viver a vida da floresta e tor- ○

Ñaupa Machu, que até então vivia escondido


naram-se incapazes de suportar o frio e a fome.


numa montanha chamada Escola, sem poder


Não sabiam construir uma cabana, colher um

mostrar sua cara. Quando saiu de seu esconde-


fruto, caçar um animal, matar um inimigo e fala-


rijo, viu os dois filhos do Inka andando à procura


vam a nossa língua muito mal. Eles eram, por-


do pai e da mãe. Detentor da informação sobre o


tanto, absolutamente inúteis: não serviam como

destino deles, Ñaupa Machu/Escola, sedutora-


guerreiros, como caçadores, nem como conse-


mente lhes disse:


lheiros. Ficamos extremamente agradecidos pela


– Venham aqui, crianças, venham, que eu vou


vossa oferta e, embora não possamos aceitá-

contar para vocês onde estão o Inka e a Mama


la, para mostrar a nossa gratidão, oferecemos


Pacha.
aos nobres senhores da Virgínia que nos envi-

Os meninos, muito contentes, obedeceram.


em alguns dos seus jovens, que lhes ensinare-


Foram à Escola em busca de notícias de seus


mos tudo o que sabemos e faremos deles ho-


pais. Para confundi-los, Ñaupa Machu apresen-


mens (Vanderwert, 1971).

tou-lhes uma versão deturpada dos fatos:



– O Inka está vivo e ficou amigo de Sucristo.


No mundo andino, os índios também cons-


Os dois estão unidos, vivendo juntos, como dois


truíram vários discursos sobre a escola, mere-

irmãozinhos. Olhem no livro. Leiam aqui. Está


cendo ser aqui lembrado o discurso mítico,


tudo escrito aqui.


porque reflete uma visão mais “universal” so-


Os meninos, desconfiando da mentira, fugi-


bre as formas como essa instituição se tem re- ram porque compreenderam que se tratava de

lacionado com a alteridade e com a diferença.


uma armadilha. A verdadeira intenção de Ñaupa


Embora tenha sido produzido por cultura bas- Machu era devorá-los.

tante diferente daquelas que viviam em terri-



tório brasileiro, esse discurso situa a escola A raiz da rejeição à escola está nesse mo-

como a grande devoradora das identidades in-


delo, simbolizado na fuga das crianças. Os te-


dígenas, revela o quanto os índios se sentem mas clássicos tradicionais e coletivos da mito-

enganados por ela e destaca, até mesmo, a fun- logia andina estão presentes nesse relato, cuja

ção aniquiladora do livro didático. visão sobre a escola pode, no entanto, ser ge-

“O mito da escola” – tradição oral andina


neralizada para outros contextos.


da região de Ayacucho (Peru) que vem sendo Todos esses discursos formulados pelos ín-

transmitida desde o período colonial – preten- dios, míticos ou não, acabam representando a

de explicar as origens e as causas do medo e, escola como “devoradora” não apenas da iden-

às vezes, do ódio que as crianças sentem,


tidade étnica, mas da própria identidade na-


freqüentemente, em relação à escola. Uma de cional, uma vez que ela oculta as matrizes for-

suas versões foi narrada, em quéchua, por madoras desta última e falsifica sua procedên-

Isidro Huamani e registrada em 1971 pelo an- cia. No caso do mito andino, com a promessa

96
PAINEL 1
A questão indígena na sala de aula

de contar-lhes a verdade sobre seus pais e so- tados de forma preconceituosa pela escola



bre suas origens, a escola atrai os que estão em e pela sociedade brasileira. Os conhecimen-



busca dessa informação, mas o que faz, na re- tos indígenas são desprezados, como se fos-


sem a negação da ciência e da objetividade.


alidade, é criar uma armadilha para apagar a


memória e organizar o esquecimento coletivo, O preconceito, reproduzido pela escola, tem



de forma planejada. Dessa maneira, exerce um impedido que a sociedade brasileira usufrua


do legado cultural acumulado durante mi-


controle quase absoluto sobre a memória, uti-


lênios, inclusive da arte e da literatura indí- 97
lizando a escrita como instrumento para legi-


genas. A sofisticada literatura Guarani, por


timar os enganos sobre o passado, a genea-


exemplo, continua fora da sala de aula. As


logia, os ancestrais, as raízes culturais, enfim,


várias formas de narrativa e de poesia indí-


a própria identidade.
gena, transmitidas oralmente, não são con-



sideradas como parte da história da litera-


Os enganos da sala de aula


tura nacional, não são veiculadas nas esco-


las, não são reconhecidas e valorizadas.


No Brasil, sobre os índios, existem alguns



equívocos profundamente enraizados na cons- 2º equívoco: culturas congeladas. O segun-


do equívoco é o congelamento das culturas

ciência da sociedade e dos professores que dela

○ indígenas. A escola continua reproduzindo
fazem parte. Eles já foram identificados e dis-

a imagem do índio segundo a descrição de


cutidos pelos especialistas, embora essa dis-

Pero Vaz de Caminha. E essa imagem foi


cussão não tenha chegado até a sala de aula.


congelada. Qualquer mudança nela provo-


Gostaríamos de destacar alguns desses equí-


ca estranhamento. No caso dos Guarani de


vocos que persistem em diversos municípios


Angra e Parati, como não se enquadram

do Rio de Janeiro, de acordo com as observa-


mais nessa imagem, têm sua identidade


ções realizadas durante as oficinas com pro-


questionada. O “índio autêntico” é o índio


fessores do Ensino Fundamental no período de de papel da carta de Caminha, não aquele



1997 aos dias atuais (Freire, 2000). índio de carne e osso que vende artesanato

na estrada Rio–Santos. Dessa forma, a escola


1º equívoco: culturas atrasadas. Os povos


indígenas produziram no passado e conti- não trabalha aquela idéia defendida por

nuam produzindo no presente saberes, ci- Octávio Paz de que “as civilizações não são

fortalezas, mas encruzilhadas”, de que ne-


ências, arte refinada, literatura, poesia, mú-


sica, religião, mas o desconhecimento dis- nhuma cultura vive isolada, fechada entre

so faz que a escola continue veiculando a muros de uma fortaleza. Historicamente,


cada povo mantém contato com outros po-


imagem de que essas culturas são primiti-


vas e atrasadas. De todos os equívocos di- vos. Às vezes essas formas de contato são

fundidos pela escola e pela mídia, esse tal- conflituosas, violentas. Às vezes, são coope-

rativas, estabelece-se o diálogo, a troca. Em


vez seja o que está mais internalizado. As


línguas indígenas, por exemplo, continuam qualquer caso, os povos influenciam-se



sendo vistas como línguas “inferiores”, “po- mutuamente. Mas a escola não trabalha

com o conceito de interculturalidade, que


bres”, “atrasadas”, da mesma forma que as


religiões. Não importa se os Guarani Mbyá nos permite pensar e entender esse proces-

são considerados pelos estudiosos como os so, entendendo por interculturalidade não

apenas uma mera transferência de conteú-


“teólogos da América”. A população regio-


nal de Angra e Parati continua vendo essas do de uma cultura para outra, mas uma

práticas religiosas como manifestações de construção conjunta de novos significados,


em que novas realidades são construídas,


superstição, o que é reforçado, lamentavel-


mente, pela escola, que ignora como a reli- sem que isso implique abandono das pró-

gião tradicional Guarani é responsável pelo prias tradições. Essa liberdade de transitar

ensino da convivência com os outros, da em outras culturas que gostamos de usu-



tolerância, da generosidade e da solidarie- fruir, a escola não concede aos índios, quan-

dade. Os saberes indígenas também são tra- do congela suas culturas.



3 º equívoco: o índio genérico. Apesar de 5 º equívoco: o brasileiro não é índio. Por úl-



existir uma literatura expressiva em sen- timo, o quinto equívoco difundido ainda



tido contrário, a escola continua transmi- hoje pela escola é não considerar a existên-


tindo para a maioria dos brasileiros a cia do índio na formação da identidade na-



imagem de que os índios constituem um cional. Há quinhentos anos, não existia no


bloco único, com a mesma cultura, com- planeta Terra um povo com o nome de povo



partilhando as mesmas crenças, a mesma brasileiro. Esse povo novo foi se formando



língua, os mesmos costumes. Hoje, vivem nos últimos cinco séculos com a contribui-


no Brasil cerca de 220 etnias, falando 188 ção, entre outras, de três grandes matrizes:



línguas diferentes. Cada povo desse tem européias, africanas e indígenas. A tendên-



sua língua, sua religião, sua arte, sua ci- cia da escola continua sendo identificar o


ência, sua dinâmica histórica própria, brasileiro apenas com a matriz européia,



que são diferentes de um povo para ou- ignorando as contribuições das culturas


tro. No entanto, essa identidade étnica africanas e indígenas na sua formação.



particular é diluída dentro da classifica- Dessa forma, essa visão escolar acaba re-


ção genérica de “índio”. Tanto o profes- ○
duzindo e empobrecendo o Brasil, porque
sor como os livros didáticos não distin- apresenta aquilo que é apenas uma parte,

guem, para o caso do Rio de Janeiro, os como se fosse o todo.



Guarani de hoje dos Tupinambá, dos


Goitaká ou dos Puri de ontem.


Considerações finais


4 º equívoco: o índio pertence ao passado.


Com essas idéias equivocadas difundidas


O quarto equívoco consiste em situar os

pela escola, não é possível entender o Brasil


índios no passado do Brasil e, dessa for-


atual. O desconhecimento da história indíge-


ma, considerá-los como a negação da


modernidade. Num texto de 1997 sobre a na dificulta a explicação do Brasil contempo-



biodiversidade vista do ponto de vista de râneo, já que as sociedades indígenas consti-


um índio, Jorge Terena escreveu que uma tuem um indicador extremamente sensível da

das conseqüências mais graves do colo- natureza da sociedade que com elas interage.

nialismo foi justamente taxar de “primiti- A sociedade brasileira desnuda-se e revela-se


vas” as culturas indígenas, considerando- no relacionamento com os povos indígenas. É



as como obstáculo à modernidade e ao aí que o Brasil mostra a sua cara. Nesse senti-

progresso. do, tentar compreender as sociedades indíge-



nas não é apenas procurar conhecer “o outro”,


[Eles] vêem a tradição viva como primitiva, “o diferente”, mas implica conduzir as indaga-

porque não segue o paradigma ocidental. As- ções e as reflexões sobre a própria sociedade

sim, os costumes e as tradições, mesmo sen- em que vivemos.


do adequados para a sobrevivência, deixam


O professor Guarani Algemiro Poty, em sua


de ser considerados como estratégia de futu-


fala transcrita no início desta comunicação,

ro, porque são ou estão no passado. Tudo


chama a atenção para o fato de que pouco adi-


aquilo que não é do âmbito do Ocidente é


anta criar uma escola indígena diferenciada,


considerado do passado, desenvolvendo uma


noção equivocada em relação aos povos tra-


específica, bilíngüe e intercultural, como es-

tabelece a lei, se a escola brasileira, que com


dicionais sobre o seu espaço na história


ela convive, continua sendo monocultural e,


( Terena, 1997: 5).


sobretudo, etnocêntrica. Nessa perspectiva,



Os índios, é verdade, estão encravados no não é só a escola indígena que deve ser

intercultural, mas todo o sistema nacional de


nosso passado, mas integram o Brasil mo-


derno, de hoje, e não é possível imaginar- educação. Da mesma forma que os índios –

mos o Brasil no futuro sem a riqueza das graças à proposta de um currículo inter-

culturas indígenas. Mas esse aspecto é ig- cultural em suas escolas – são orientados para

norado pela escola. conviver com a sociedade regional envol-



98
PAINEL 1
A questão indígena na sala de aula

vente, os brasileiros também estariam mais


. Parâmetros Curriculares Nacionais: 5a a 8a


habilitados para um contato qualificado com séries. Brasília, 1998.



. Parâmetros em Ação. Programa de desen-
os índios se freqüentassem uma escola inter-


volvimento profissional continuado. Brasília, 1999. v. 1


cultural, sem a qual não é possível sequer um


e 2.
conhecimento mais profundo da própria


. Referenciais para formação de professores.


identidade nacional.


Brasília, 1999.


ORTIZ RESCANIERE, Alejandro. El mito de la escuela. In:


99


OSSIO A.; Juan M. (Org.). Ideologia mesiánica del mun-


do andino. 2. ed. Lima: Edición de Ignacio Prado Pastor,


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SILVA, Aracy Lopes (Org.). A questão indígena na sala de


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FREIRE, José R. Bessa. Cinco idéias equivocadas sobre o SILVA, Aracy L.; GRUPIONI, Luís D. (Orgs.). A temática in-



índio. Manaus: Cenesch (Setor de Publicações). Série dígena na escola. Novos subsídios para professores de


Conferências, Estudos e Palestras. n. 1, p. 17-34, set.


1º e 2º graus. Brasília: MEC/Mari/Unesco, 1995.


2000. TERENA, Jorge. A biodiversidade do ponto de vista de um


FREIRE, José R. Bessa; MALHEIROS, Márcia. Os

índio. Manaus, 1997 (Mimeo). Comunicação apresenta-

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damental. Parâmetros Curriculares Nacionais: 1a a 4 a


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séries. Brasília, 1997. Oklahoma Press, 1971.




















































P AINEL 2

AS EXPERIÊNCIAS DOS
CONSELHOS ESTADUAIS DE
EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA
José Ademir Gomes e Jecinaldo Barbosa Cabral

Elias Renato da Silva Januário

101
Educação escolar indígena




é realidade no Amazonas






José Ademir Gomes e Jecinaldo Barbosa Cabral



SEPI/AM e CEEEI/AM










O estado do Amazonas possui a maior po- Além do CEEEI, o governador criou a Gerência



pulação indígena do país. De fato, os dados es- de Educação Escolar Indígena, na Secretaria de



tatísticos comprovam as características e as ri- Educação do Estado (Seduc) que desenvolve um


quezas étnicas do Amazonas, onde vive 30% de ○
trabalho articulado com o Conselho. Com isso,
toda a população indígena existente no Brasil, têm-se promovido outras conquistas importantes

hoje estimada em 330 mil índios. Um universo no que diz respeito à escolarização dos povos in-

cultural diversificado, com 62 etnias diferentes, dígenas e tem-se dado ao trabalho de educação

que marca todo um processo de luta pela sobre- escolar indígena desenvolvido no estado do Ama-

vivência empreendida durante séculos por esses zonas visibilidade como uma das principais ações

povos diante do contato com o não-índio. da política pública governamental. É nesse contex-

É na valorização desse rico contexto étnico to que está inserido o processo de discussão, con-

que reside toda a preocupação do governo do es- sulta às comunidades indígenas e formulação teó-

tado do Amazonas em procurar mecanismos e rica, que deu ao Amazonas o posto de primeiro

não medir esforços para que se institua uma po- estado a aprovar, em fevereiro de 2001, a regula-

lítica pública concreta em atenção às comunida- mentação, a criação e o funcionamento da Escola



des indígenas presentes em nosso estado. Essa Indígena no âmbito da educação básica do esta-

preocupação tornou-se evidente quando o gover- do, fato que contou com a participação de repre-

nador Amazonino Mendes criou, em maio de sentantes de órgãos governamentais, organizações



1998, o Conselho Estadual de Educação Escolar indígenas e não-governamentais.



Indígena (CEEEI/AM), em atendimento a uma Há alguns anos, era difícil pensar na constru-

antiga reivindicação das comunidades indígenas. ção de um modelo de escola para as comunidades

Dos seus 27 conselheiros, a maioria é composta indígenas sem que esse não interviesse na organi-

por lideranças indígenas. Esses conselheiros in- zação desses povos. No entanto, os esforços e as

dígenas recebem ajuda financeira do estado para


parcerias promovidos pelo governo do estado têm


desenvolver trabalhos de acompanhamento de conseguido garantir a realização de um projeto de



projetos, levantamento da realidade socioeduca- escolarização que possibilita o resgate e a valori-



cional de sua comunidade, como também o apoio zação etnocultural dos povos indígenas. Nesse con-

para a realização de encontros pedagógicos. Isso texto é que o Conselho vem prestando consultoria

tem dado grande importância e representati- e assessoria técnica sobre as questões relativas às

vidade aos conselheiros indígenas. Essa repre- ações e aos projetos de educação escolar desen-

sentatividade também só foi possível por meio de volvidos com as comunidades indígenas do esta-

um processo de escolha em que a própria comu- do, além de deliberar sobre temas relacionados ao

nidade indígena elege seu representante, e a di- assunto, o que possibilitou a obtenção de avanços

visão por sub-regiões, como Alto e Médio Rio concretos, tornando-o uma referência nacional. No

Solimões, Alto, Médio e Baixo Rio Madeira, Alto e entanto, para garantir uma educação escolar de

Médio Rio Negro e Baixo Rio Amazonas, propor- qualidade, intercultural, bilíngüe, específica e di-

ciona uma melhor representação dos vários gru- ferenciada aos povos indígenas, o estado precisa-

pos étnicos existentes no Amazonas. va de uma estrutura maior que viesse dar respaldo

102
PAINEL 2
As experiências dos Conselhos Estaduais de Educação Escolar Indígena

ao processo de construção de uma política públi-


imprescindível a criação de condições de sobrevi-


ca voltada à valorização e ao respeito a esses po- vência cultural de antigas tradições dos povos in-



vos, possibilitando não só a escolarização, mas dígenas por meio de um trabalho de registro


também o desenvolvimento de projetos econômi-


etnográfico e lingüístico dessa realidade específi-


cos sustentáveis para as comunidades indígenas, ca. Isso requer que se firme um novo pacto social



o que fortalece a luta pela autonomia dessas co- com as comunidades indígenas de nosso estado,



munidades. Com essa finalidade, foi criada a Fun- resgatando seus direitos fundamentais e garantin-


dação Estadual de Política Indigenista do Amazo- 103


do o acesso à escola como um instrumento forma-


nas (Fepi), que é a responsável pela promoção da dor da cidadania indígena.



política indigenista do estado, em parceria com as Todas essas conquistas ressaltam a legitimi-


comunidades indígenas e as entidades governa-


dade do processo de reconstrução da memória


mentais e não-governamentais. Essa parceria cri- histórico-cultural dos índios. Nada mais legíti-



ará condições favoráveis para que o Amazonas mo do que a eleição de um indígena para a pre-



consiga realizar atividades voltadas à preservação sidência desse Conselho, fato que tem dado no-


de valores culturais e históricos desses povos tra-


toriedade ao trabalho de formulação das políti-


dicionais. cas públicas do Amazonas, uma vez que se pre-


Os avanços obtidos no campo da educação tende consolidar na esfera governamental do

escolar indígena permitirão que o Amazonas, até estado a parceria com as comunidades indíge-

o final de 2002, alcance a última etapa do Progra-


nas, entidades governamentais e não-governa-


ma de Formação de Professores Indígenas, capa- mentais, instituindo novos parâmetros para a



citando 800 professores indígenas do estado. Uma política indigenista do estado e demonstrando

conquista que beneficiará, diretamente, mais de claramente a intenção do Amazonas em não atu-

25 mil alunos que freqüentam as 600 escolas indí-


ar de maneira isolada, mas de contribuir para a


genas existentes no Amazonas. É interessante sa- conquista da autonomia econômica e



lientar que 38% das escolas indígenas existentes sociocultural dos povos indígenas.

hoje no país estão localizadas no estado do Ama- Nesse contexto de articulação e de represen-

zonas. Até o final de 2001, uma parceria feita entre


tatividade no trabalho de construção da escola in-


o governo do estado e a Universidade Federal do dígena – que no estado ganhou grande reforço após

Amazonas permitirá que 400 professores dos mu- a aprovação da resolução que regulamenta a esco-

nicípios localizados nas áreas dos rios Solimões e


la indígena –, o Conselho Estadual de Educação


Rio Negro iniciem os cursos de graduação e pós-


Escolar Indígena instituiu uma comissão interins-


graduação em Educação Indígena. Mas para aten- titucional específica para a proposição de uma re-

der a toda essa demanda e garantir um ensino de solução estadual que regulamente a escolha e o

qualidade aos povos indígenas, o estado precisa


processo de formação do professor indígena, va-


vencer alguns entraves burocráticos da adminis- lorizando, sobretudo, a experiência adquirida com

tração federal, possibilitando a inserção das lide- o Projeto de Formação de Professores Indígenas

ranças indígenas nos órgãos de deliberação, como Pira-Yawara, gerenciado pela Seduc. Para tanto,

o Conselho Nacional de Educação, além da cria-


todo um trabalho de sensibilização e cons-


ção de fundo de incentivo à publicação de livros cientização tem sido feito com as prefeituras mu-

didáticos para as escolas indígenas. Uma vez que nicipais e com os professores indígenas a fim de

um universo cultural de rica complexibilidade re- que a criação e o reconhecimento da escola e da


quer um atendimento diferenciado do sistema


categoria professor indígena representem, sobre-


convencional de educação, ou seja, que permita o tudo, o combate à discriminação e ao preconceito



resgate etnocultural desses povos, são necessári- em favor da dignidade e do respeito à cultura e às

os, fundamentalmente, o respeito e a preservação formas de organização, como também ao conhe-


de antigas tradições, como é o caso específico das


cimento tradicional dos povos indígenas. Pela nos-


línguas faladas. A evidência de que, ao longo do sa história e em reconhecimento aos nossos direi-

tempo, elas têm perdido espaço diante das trans- tos fundamentais, no Amazonas, a Educação Indí-

formações do mundo moderno faz que se torne gena é uma realidade.



Conselho de Educação Escolar




Indígena de Mato Grosso:




um espaço de cidadania






Elias Renato da Silva Januário*


Unemat/MT








Resumo





Passados mais de dez anos de sua promulga- co, cujas ações estão garantidas na Constituição Es-

ção, a Constituição Federal ainda prescinde daque- ○

tadual. Dele fazem parte 12 professores indígenas


las conquistas que assegurem os direitos dos povos

indicados por suas comunidades, os quais têm um


indígenas em relação à sociedade envolvente, como importante papel de orientação e articulação dos pro-

está previsto em seu texto legal. gramas referentes à Educação Escolar Indígena no

Foi no campo da Educação Escolar Indígena que


estado, em todos os níveis e modalidades de ensino.


constatamos os maiores avanços, com a implemen- O CEI/MT configura-se em uma instância de luta

tação de políticas públicas que têm garantido a rea- dos povos indígenas pela participação efetiva nas

lização de projetos voltados para a formação espe- ações da Educação Escolar Indígena implementada

cífica de professores indígenas e a organização de nas aldeias, dialogando com o poder público e com a

instâncias colegiadas de gestão escolar. sociedade não-índia, garantindo um espaço perma-


O Conselho de Educação Escolar Indígena de nente de articulação e representatividade no contexto



Mato Grosso – CEI/MT, criado em 1995, é um órgão do movimento dos professores indígenas por uma

consultivo, deliberativo e de assessoramento técni- educação diferenciada e de qualidade.






A Constituição Federal de 1988 estabeleceu se da perspectiva integracionista preconizada



novos parâmetros no que se refere à relação do ao longo de vários séculos no país.



estado com os povos indígenas, sob os mais di- Passados mais de dez anos de sua promul-

ferentes pontos de vista, particularmente no gação, a Constituição Federal ainda não viu re-

que diz respeito à educação escolar, que passa alizadas as conquistas que assegurem os direi-

a ter um novo papel com o fim da política que tos dos povos indígenas em relação à socieda-

previa como meta a assimilação dos índios à so- de envolvente, como está previsto em seu tex-

ciedade envolvente. Foi viabilizada, assim, uma to legal.


proposta de educação escolar voltada para o re- Foi no campo da Educação Escolar Indíge-

conhecimento dos índios, garantindo a utiliza- na que constatamos os maiores avanços, com

ção de suas línguas maternas no Ensino Fun- a implementação de políticas públicas que têm

damental e o respeito aos seus próprios proces- garantido a realização de projetos voltados para

sos de aprendizagem. a formação específica de professores indígenas



Destaca-se como o primeiro texto legal que e a organização de instâncias colegiadas de ges-

explicita a relação do estado com os povos in- tão escolar.



dígenas, reconhecendo a diversidade étnica e Essa mudança de postura na relação entre o


cultural, respeitando a diferença e afastando- Estado brasileiro e os povos indígenas teve am-





* Unemat, vice-presidente do CEI/MT.


104
PAINEL 2
As experiências dos Conselhos Estaduais de Educação Escolar Indígena

plos reflexos no contexto da Educação Escolar assessoramento técnico, cuja finalidade princi-



Indígena, abrindo novas possibilidades de se pal é promover o desenvolvimento das ações



pensar a escola indígena longe das doutrinas referentes à Educação Escolar Indígena em to-


positivistas, civilizatórias e evangelizadoras.


dos os níveis e modalidades de ensino. A com-


A LDB/96 veio reforçar a legislação educa- posição do CEI/MT é interinstitucional de ação



cional disposta na Constituição Federal, acen- conjunta, vinculado à Coordenadoria de Políti-



tuando a diferenciação da escola indígena das ca Pedagógica (CPP), da Secretaria de Estado de


demais escolas do sistema educacional brasi- Educação de Mato Grosso. É constituído por 105



leiro e apoiando uma educação com calendári- representantes de órgãos e entidades públicas



os adequados à realidade de cada povo, enfim, (Seduc, CEE/MT, Funai, Caiemt, Undime,


uma educação cidadã.


Unemat, UFMT, ONGs) e pelos representantes


Ainda que se tenha conseguido assegurar indígenas (12 titulares e 12 suplentes), todos



avanços na definição de políticas, no estabeleci- professores de Escolas Indígenas. As reuniões



mento de diretrizes e metas, bem como na am- plenárias do CEI/MT acontecem duas vezes a


pliação da oferta de vagas e de programas edu-


cada semestre, nas quais são discutidas as ques-


cacionais que respeitem as especificidades dos tões trazidas pelos conselheiros, além dos pro-



indígenas, muito ainda há por fazer. No âmbito jetos e dos programas na área de Educação Es-

administrativo, por exemplo, muitas ações pre- colar Indígena desenvolvidos no estado.

cisam realizar e avançar com respeito à inclusão


Entre os seus objetivos, destacam-se o


das escolas indígenas no sistema educacional do acompanhamento e a avaliação das ações refe-

país, especialmente no que diz respeito à espe- rentes à educação escolar nos municípios; o

cificidade da organização e da gestão dessas es- estabelecimento de metas anuais da Educação


colas, empreendimento que requer a atuação de Escolar Indígena no estado; o encaminhamen-



técnicos habilitados nas mais diferentes esferas to das diretrizes que garantam uma educação

da administração pública, em especial no âmbi- diferenciada, específica, intercultural e de qua-



to das escolas indígenas. lidade; a deliberação sobre os parâmetros e os


Desde meados dos anos de 1960, inúmeras fundamentos que irão nortear o Conselho Es-

instituições missionárias e indigenistas fize- tadual de Educação na aprovação e no reconhe-



ram-se presentes no cenário mato-grossense, a cimento das escolas, dos cursos e dos projetos

fim de discutir a Educação Escolar Indígena.


relativos à Educação Escolar Indígena, entre


Também com esse intuito foi criado em 1987, outros.



em Mato Grosso, o Núcleo de Educação Esco- O Conselho Indígena, nos seus seis anos de

lar Indígena (NEI/MT), que se caracterizava existência, teve um papel importante no forta-

como um espaço no qual as diversas institui-


lecimento da educação escolar específica e di-


ções, as ONG e os representantes indígenas tra- ferenciada. Atuou na realização do primeiro di-

çavam juntos os possíveis caminhos da política agnóstico da Educação Escolar Indígena em



de Educação Escolar Indígena de Mato Grosso. Mato Grosso. Articulou politicamente para a

A criação do NEI/MT foi um marco funda-


concretização do Projeto Tucum (formação em


mental na consolidação de uma política edu- nível de Magistério) e, recentemente, pelo iní-

cacional voltada ao atendimento das comuni- cio do 3º Grau Indígena.



dades indígenas. Por meio dele, consolidaram- Por meio de discussões, grupos de estudo,

se as bases para a criação do Conselho de Edu-


informativos e entrevistas que ocorrem no âm-


cação Escolar Indígena, um órgão de caráter bito das reuniões plenárias do CEI/MT, os pro-

oficial, institucional e com a efetiva participa- fessores indígenas conselheiros mantêm suas

ção dos professores indígenas. comunidades atualizadas, procurando cada vez


O Conselho de Educação Escolar Indígena


mais fortalecer o movimento dos professores


do estado de Mato Grosso (CEI/MT), criado indígenas dentro do estado. Também faz parte

pelo Decreto nº 265 de 20 de julho de 1995, é da função dos conselheiros ajudar a comunida-

um órgão consultivo, deliberativo e de de escolar a elaborar os currículos específicos e



o acompanhamento pedagógico às escolas, for-


O CEI/MT configura-se como um espaço de


talecendo a condução escolar de base diferen- luta dos povos indígenas pela participação efe-



ciada, assegurando às escolas indígenas a pos- tiva na educação escolar implementada em



sibilidade de gerirem os seus processos escola- suas comunidades, dialogando constantemen-


res e pedagógicos com autonomia. te com o poder público e com a sociedade não-



Mesmo limitado em decorrência das amar- índia, em busca de uma educação escolar es-



ras do poder público, o CEI/MT tem-se manti- pecífica e diferenciada, de qualidade e em con-


do firme, fomentando discussões a respeito da


sonância com os projetos societários de suas


formação de professores e da regulamentação comunidades.



das escolas indígenas.


Bibliografia


Por tratar-se de uma instância colegiada de


caráter interinstitucional, as ações do CEI/MT



MATO GROSSO. Regimento Interno do Conselho de Edu-
partem da interculturalidade, isto é, do diálogo


cação Escolar Indígena. Cuiabá: Secretaria de Estado


e do entendimento entre as culturas, buscando

de Educação, 1995.

o intercâmbio entre as diversas sociedades na ○

MATO GROSSO. Projeto de Cursos de Licenciatura para a


perspectiva de um futuro com maiores possi-

Formação de Professores Indígenas. Cuiabá: Governo


bilidades de melhoria social. do Estado, 2000.



























































P AINEL 3

O papel da Antropologia, da
Lingüística e da Pedagogia na
Educação Escolar Indígena
Judite Gonçalves de Albuquerque

107
Educação no contexto




da diversidade cultural






Judite Gonçalves de Albuquerque



Unemat





naram o Ensino Médio por meio desses dois


No processo formal de escolarização indí-


gena, que tem sido objeto de preocupação e projetos.



de ações concretas tanto por iniciativa das pró- Durante todo o período de formação, foi



prias comunidades e organizações indígenas possível contar sempre com a presença e a par-


quanto do Ministério da Educação e das secre- ticipação de antropólogos, sobretudo nas eta-



tarias de estado e municipais, penso que o de- pas letivas presenciais; a coordenação dos pro-

safio, hoje, por parte de todos, índios/não-ín-



jetos sempre entendeu que a Antropologia é


dios, é investir na “descolonização da escola importante. Em qualquer processo educativo

indígena” (Orlandi, 1999) e, superando os mo- e nos cursos de formação de professores indí-

delos de escola que foram/são transportados genas, ela é indispensável, tanto para os índi-

para as aldeias, batalhar pela construção da os quanto para os não-índios chamados a co-

laborar para a formação daqueles. A presença


verdadeira escola indígena, na especificidade


de cada povo, de cada comunidade, fazendo do antropólogo nos cursos de Magistério con-

sair do papel as propostas de uma educação di- tribuiu especialmente para estimular a sensi-

ferenciada. Algumas áreas do conhecimento bilidade individual e o desenvolvimento de


uma consciência crítica entre os professores


podem contribuir para isso de modo especial:


a Antropologia, a Lingüística, a Pedagogia. Para índios e os não-índios, gerando a compreen-



fazer algumas considerações a respeito do pa- são de que o conhecimento, sendo historica-

pel dessas áreas na formação dos professores, mente construído e determinado, é também

apropriado e reinterpretado de diferentes ma-


parto de algumas práticas e reflexões das quais


tenho tido ocasião de participar no Mato Gros- neiras, o que permite o confronto de diferen-

so, no Mato Grosso do Sul e no Amazonas. 1 tes conhecimentos de maneira eqüistatutária,



Os dados que trago para reflexão e análise embora isso não ocorra necessariamente (e

são basicamente de dois projetos de formação nem com tanta facilidade). 3 Será necessário

de professores indígenas que se desenvolve- pensar antropologicamente os processos de



ram no Mato Grosso, no nível de Magistério: o formação de professores para que se possa le-

Projeto Inajá, no período de 1987-1995, e o var em conta suas formas próprias de viver e

Projeto Tucum, entre os anos de 1996-2001. de pensar, suas formas tradicionais de produ-

Cerca de duzentos índios de treze etnias dis- zir o conhecimento e de ensinar, adequando-

tintas,2 em diferentes regiões do estado, termi- se às novas situações, instaurando o diálogo







1
Tomo como base experiências vividas nos seguintes projetos de formação de professores: no Mato Grosso, Projeto Inajá I e II (1987-1993);

Projeto Tucum (1996-2001). No Mato Grosso do Sul, Projeto Ára Verá. No Amazonas, Projeto Indata’hua, no Rio Madeira; Escola Panhali, de

5ª a 8ª séries, no Rio Içana, Alto Rio Negro (Oficinas de Formação de Professores Baniwa e Coripaco); Curso de Formação Antropológica e

Pedagógica para Professores do distrito de Iauareté, Rio Uaupés, Alto Rio Negro.

2
Do Projeto Inajá participaram os índios Karajá (do tronco lingüístico macro-jê) e Tapirapé (do tronco lingüístico tupi); do Projeto Tucum

participaram índios de 11 etnias e línguas diferentes: os Apiaká, Bakairi, Bororo, Irantxe, Kayabi, Munduruku, Nambikuara, Paresi, Rikbatsa,

Umutina e Xavante.

3
As reflexões desenvolvidas neste paper sobre o papel da Antropologia na Educação Indígena são o resultado de longas conversas com o

antropólogo Edmundo Peggion, que participou do Projeto Tucum, e cuja sensibilidade para as questões da educação fez que a sua contribui-

ção, sobretudo nas etapas de preparação e no acompanhamento do trabalho com os Xavante, fosse tão profícua!

108
PAINEL 3
O papel da Antropologia, da Lingüística e da Pedagogia na Educação Escolar Indígena

intercultural, fazendo da escola o lugar de tradicional e suas formas de transmissão.



manifestação das diferenças, do confronto A Pedagogia, freqüentemente, tem abdica-



interétnico, como também o espaço privilegi- do do seu caráter de ciência da educação para



ado para se inventar novas formas de convívio se reduzir a um discurso afirmativo, sagrado,


social e cultural. definido, normativo. Necessitaria de assumir



É comum em cursos de formação de pro- mudanças profundas no seu enfoque e, antes



fessores indígenas uma visão dicotômica em de tudo, abrir mão do que já está previsto,


relação à transmissão do corpus do conheci- alicerçado pelos poderes e saberes que têm de- 109



mento de diferentes grupos humanos. O co- terminado como é/deve ser a educação esco-



nhecimento tradicional é freqüentemente tido lar. Para realizar a escola diferenciada, será pre-



quase como folclórico ante o conhecimento ciso abrir-se ao “atual, deixar-se afetar pelas


ocidental, este, sim, exato, verdadeiro. É papel forças do seu tempo” (Rolnik, 1995). Lembrar



da Antropologia ajudar a romper com essa vi- que o índio não está mais somente nas aldei-



são, fazendo que haja a valorização das cultu- as, está na cidade, está em relação com o mun-



ras em seu tempo presente. É tão forte a idéia do, com o Outro, com sociedades que têm suas


da excelência do conhecimento ocidental que formas próprias de organização. Eles perten-



ela exerce uma espécie de fascínio mesmo en- cem a sociedades que se estão (re)construindo

tre os índios, em detrimento dos próprios co- no conflito, na tensão do inevitável contato.

nhecimentos. Trabalhar com Educação Escolar Indígena sig-


O cuidado no tratamento de culturas dife- nifica para os não-índios deixar-se afetar tam-

rentes e formas de transmissão do conhecimen- bém pelo modo de ser índio; somente essa ati-

to é essencial na Educação Indígena, levando tude de abrir-se à verdade do Outro possibili-


em conta que são distintos os preceitos episte- tará um trabalho em cooperação, abrindo-se

mológicos que dão suporte à tradição oral – um para o devir do movimento contínuo que re-

processo dinâmico de circulação de saberes cria a vida em sua intensidade, em cada tem-

contextualizados – e os que dão suporte à tra- po-espaço em que a educação escolar se está

dição escrita – de apropriação individual e com- constituindo.



petitiva – os quais, na escola, quase sempre se Para isso, a Pedagogia tem de se abrir para

apresentam como saberes compartimentados, entender o seu papel de ciência da educação,



fragmentados, mas, que, no seu conjunto, for- abandonando o discurso autoritário, esque-

mam a imagem da “civilização”, da “moderni- cendo uma função de impositora de regras a



zação” e do “progresso” (Gnerre, 1991: 105). A serem cumpridas que vem desempenhando

Antropologia pode contribuir para ajudar a evi- não apenas na escola indígena, mas na educa-

denciar, na prática, o funcionamento das dife- ção em geral. Os que trabalham na formação

rentes formas de contato com o conhecimento, de professores indígenas teriam de se dispor a



relativizando, assim, a maneira ocidental e es- “deixar-se modificar” na relação com as comu-

tabelecendo as bases para o real diálogo inter- nidades indígenas, alterando a tradição da

cultural. Ou, então, essa proposta que foi pen- educação escolar que, historicamente, sempre

sada e incentivada nas escolas indígenas será se propôs a “modificar o índio”, tornando-o se-

mais uma falácia. melhante à imagem do homem letrado ociden-



A Antropologia ajuda ainda a alertar para tal. O Referencial Curricular Nacional para a

o fato de que a educação escolar é um proces- Educação Indígena estimula a realização da


so que ocorre no âmbito da escola, é diferente escola diferenciada. Na prática, porém, esbar-

da educação tradicional e não a substitui. E ra com a questão da representação que se tem



esse é um ponto fundamental a ser considera- da escola, e esse talvez seja o peso mais difícil

do, estimulando o professor a refletir sobre os de ser aliviado: somos todos – índios, não-ín-

processos em que se dá a aprendizagem tradi- dios, professores, alunos, pais – prisioneiros de



cional, sobre si próprio e sobre seu povo, fa- um modelo que nunca termina de ser descar-

zendo que a própria escola valorize a cultura tado, por mais que se diga, se prove e se veja

que é um modelo que não funciona. Nesse cômodos onde trabalhavam. Mediram o espaço



modelo de escola, o professor aprendeu a dar pelo lado de fora e o reduziram 32 vezes, no bar-



ordens, e as crianças aprenderam a responder. bante. Então, montaram o desenho no chão, uma



E isso mata a magia da descoberta, mata a planta baixa, bidimensional. A ação seguinte foi


criatividade. medir alguns cômodos por dentro, reduzir as 32



Grupos indígenas organizados têm resisti- vezes, desenhar no papel, recortar e colocar den-



do a esse modelo, e foi essa persistência na luta tro das casinhas na planta. Se estivesse certo (e


por uma Escola Indígena verdadeira que deu


os Xavante, como todo os índios, são muito per-


origem a uma legislação aberta, em condições feitos no que fazem, muito exatos), os cômodos



de garantir uma educação adequada às neces- caberiam como luva dentro das casinhas. E foi



sidades atuais das comunidades. exatamente o que aconteceu. Eles gritaram de



satisfação! Fascinados! Tinham provado para si


Será preciso desmistificar o papel da Pedago- mesmos o que era uma representação de medi-



gia naquilo que ela tem de autoritário, fixo e ge- das com escala. Tinham finalmente percebido
nérico que a impede de se abrir para o nasci- ○

como todas aquelas informações cabiam exata-


mento do novo, para valorizar os espaços de li-


mente naquela planta baixa! E começaram logo


berdade nos quais os professores podem se


a extrapolar a planta, indo para as questões de

mover. Nesse sentido, eu não falaria em uma


medição de terra, para a leitura e a construção


pedagogia indígena, mas em pedagogias, res-


de mapas etc. O cursista Vitório não se confor-


salvando a idéia de que não existe uma escola


indígena, mas escolas indígenas. Não existe mava, encantado com a lógica do branco. Num

uma verdade pedagógica. Existe o vazio da ne- certo momento, olhou bem para a professora

Dulce e exclamou: “Uh!... eu queria tirar a cabe-


cessidade a ser preenchido, e esse vazio é tam-


bém o espaço da possibilidade. Uma boa refle- ça do branco (fez o gesto de cortar) e colocar no

xão sobre os pontos considerados “verdade” na corpo do Xavante!”. Queria tudo, logicamente, a

literatura escolar pode ajudar a desfazer a ve-


força deles e a ciência do branco...


lha cara das escolas e dar-lhes uma fisionomia Quando o conhecimento é trabalhado den-

nova, humana, atenta e expressiva. Educação tro de um contexto, ele produz seus efeitos. As

escolar nas comunidades indígenas tornou-se


professoras conseguiram provocar o diálogo


uma necessidade. Que ela possa, pois, respon-


intercultural: a possibilidade do uso do conhe-


der a que veio: contribuir para o desenvolvi-


cimento. Eu entendo o que o Vitório sentiu: a

mento mais pleno de um projeto social de cada


força de poder usar a ciência para resolver seus


nação e comunidade, projeto sempre em mo-


problemas, entender a lógica do branco. O pro-


vimento, como a vida (Albuquerque, 2001).


blema não está na ciência, está na forma como



Cito um exemplo acontecido no Projeto essa ciência é apresentada. Dada aos alunos

(isso em qualquer sociedade) em fragmentos


Tucum, pólo II, dos Xavante, numa etapa de Ci-


ências Sociais. 4 As professoras propuseram a desconectados, não serve para nada. Dada no

confecção de uma planta baixa do espaço onde contexto da necessidade, provoca o fascínio e o

se realizava o curso, o Parque Municipal, para entusiasmo. Os cursos de formação de profes-


sores indígenas, para cumprir seus objetivos,


trabalhar a compreensão de escala. A dúvida


havia surgido ao compararem tamanhos diferen- devem colocar a ciência universal à disposição

tes de mapas com as mesmas informações: como dos cursistas para uso, não para decoração.

cabiam, num mapa pequenino, as mesmas in- Transcrevo a seguir um trecho de um texto

produzido coletivamente pelos Bororo (pólo III)


formações do grande mapa da parede? Fizeram


o recorte de um pedaço da área, incluindo os 15 para constar em seus Projetos de Escola:








4
As responsáveis pela orientação da área de Ciências Sociais no pólo II dos Xavante foram as professoras Dulce M. Pompeo de Camargo/

PucCamp e Maynara Maria de Oliveira/UFMT.


110
PAINEL 3
O papel da Antropologia, da Lingüística e da Pedagogia na Educação Escolar Indígena

A escola Bororo organiza o seu currículo levan- Qual a função planejada para o futuro dessa lín-



do em conta o jeito Bororo de educar. Assim, gua como língua escrita? As pessoas aprende-



a escola trata a criança com respeito, com ca- rão a ler e a escrever para que finalidade? O que


rinho, com calma, com competência. Os pro- elas lerão se não há escritos nessas línguas?



fessores devem saber esperar o tempo da cri- Quem produzirá esses escritos? Quem? Como?



ança. Para transmitir os conhecimentos da sua A língua indígena passará a competir com o


cultura e das outras culturas, para produzir Português como língua de ensino? Ou será vei-



novos conhecimentos, a escola Bororo vai con- culada na forma escrita em outro âmbito? Qual? 111


tar histórias, incentivar a observação, fazer ex- Quem deve aprender a escrita primeiro: as cri-



periências e pesquisas. A escola Bororo respei- anças ou os adultos, que podem ressignificar



ta as diferenças de interesse, de idade, de sexo, esse instrumento que é a escrita mais de acor-


de clã, e organiza as atividades levando em do com suas necessidades culturais? (Camargo



conta essas diferenças. O espaço escolar utili- e Albuquerque, 1998: 181).



zado para a produção do conhecimento pode-


rá ser todo o universo da comunidade. Atuan- Eram tantas as perguntas que o professor


Gilvan Oliveira, assessor de Lingüística no Pro-


do dessa forma, a escola Bororo estará sendo


fiel às suas tradições e ao seu jeito próprio de jeto, propôs a realização de uma pesquisa co-



pensar e se organizar socialmente ( Texto co- letiva, em cada comunidade, com o objetivo

letivo, produzido pelos Bororo para o Projeto primeiro de descobrir a perspectiva que os

Político Pedagógico). povos têm para si mesmos e, conseqüente-



mente, para suas próprias línguas. Ou seja, re-



Vale bem a pena levar a sério o convite da fletir sobre a situação lingüística dos povos em

antropóloga Aracy Lopes da Silva de construir


questão para, então, poder construir políticas


uma Antropologia da Educação no Brasil. O lingüísticas adequadas. Tal pesquisa daria ele-

momento é propício, as pesquisas antropológi- mentos para se decidir sobre o tratamento a



cas estão avançadas, e as reivindicações dos ser dado às línguas no interior de cada comu-

índios por seus direitos educacionais à especi-


nidade e o papel da escola na implementação


ficidade e à manutenção de seu patrimônio das propostas. Naturalmente que essa era uma

lingüístico-cultural servem de argumento para tarefa que não terminaria com o curso de Ma-

dar sustentação a essa proposta (Silva, 2001: 38). gistério, mas os professores/cursistas estariam

Os povos indígenas têm reivindicado,


certos e seguros de que lhes caberia a tarefa


cada vez mais, a educação escolar reconhe- de pensar sobre as questões e formular respos-

cida e de qualidade. Percebem-se nessas rei- tas juntamente com as comunidades; ao cur-

vindicações propostas muito mais amplas do so, a responsabilidade de colocar à disposição


que simples processos educativos; o que se dos professores o conhecimento técnico ne-

lê aí é o direito de se inserir num mundo cessário.



homogeneizante, garantindo, porém, a sua Esse modo de encarar a linguagem acabou



diferença (Peggion, 1999). por fazer pensar sobre outra questão, a do pa-

A questão da Lingüística nos projetos em pel do lingüista nas comunidades indígenas



questão desloca-se do seu caráter meramente que, numa perspectiva tradicional, deveria des-

formal para o funcional e situa-se no âmbito crever e ensinar a língua indígena aos índios.

mais amplo do que o do ensino do Português Nessa nova perspectiva, reserva-se aos assesso-

como segunda língua ou, mesmo, do ensino res a contribuição solicitada e necessária, num

das línguas indígenas, isto é, situa-se no âm- projeto que irá sendo construído passo a passo

bito do funcionamento da linguagem nas di- pelos próprios sujeitos do processo.



versas práticas dentro e fora da escola. O eixo Algumas comunidades conseguiram avan-

do trabalho com as línguas no Projeto Tucum, çar na pesquisa e apresentar propostas concre-

mais do que se preocupar em ensinar língua tas ao final do curso com relação às complexas

indígena foi levantar questões a respeito da questões da linguagem na escola; outras con-

relação da escola com a escrita: tinuam em processo de elaboração; outras ain-



da lutam com muita dificuldade para se des-


CAMARGO, Dulce M. P.; ALBUQUERQUE, Judite G. Lín-


fazer da herança dos modelos recebidos, mas gua, cultura e territorialidade: formação de professo-



res índios no Brasil Central. Humanitas, Revista do
cada qual segue seu ritmo na construção de sua


ICH/PUC de Campinas, v. 2, n. 2, ago. 1998.


própria escola.


GNERRE, Maurizzio. Linguagem, escrita e poder. São Pau-
O que os projetos deixaram como experi-


lo: Martins Fontes, 1991.


ência maior foi a certeza de que não se pode


OLIVEIRA, Gilvan Muller de. Projeto Tucum . Proposta para


propor um sistema pedagógico pronto e aca- o encaminhamento das disciplinas de línguas indíge-


bado, mas contribuir para que cada escola in-


nas (relatório). 1997.


dígena consiga construir os seus próprios sis- ORLANDI, E. A linguagem e seu funcionamento – As for-



mas do discurso. 4. ed. Campinas: Pontes, 1996.
temas autônomos, e que estes sejam integra-


. Reflexões sobre escrita, educação indíge-


dos e reconhecidos no sistema nacional.


na e sociedade. Escritos – Escritas, Escritura, Cidade


(I) n. 5, Labeurb (Laboratório de Estudos Urbanos).



Unicamp, 1999.


Bibliografia ○


PEGGION, Edmundo A. Os povos indígenas e a educa-
ção escolar – alguns comentários e uma reflexão.
ALBUQUERQUE, Judite G. O sentido da diferença na Pe- Nead/ UFMT, 1999.

dagogia Indígena: oportunidades amplas, tensões, for-


SECRETARIA DO ESTADO DE MATO GROSSO. Projeto


mas limitadas de operar com a diferença. (Comunica- Inajá. Formação de Professores Leigos para o Magis-

ção realizada no IV Encontro de Educação Indígena –


tério . Relatório Final. 1990.


Unicamp. 13 o COLE, jul. 2001). SILVA, A. Lopes; FERREIRA, M. K. Leal (Orgs.). Antropo-

CAMARGO, Dulce M. P. Mundos entrecruzados: formação


logia, história e educação: a questão indígena e a es-


de professores leigos. Campinas: Alínea, 1997. cola. São Paulo: Global, 2001.


















































P AINEL 4

POLÍTICAS LINGÜÍSTICAS
E A ESCOLA INDÍGENA
Wilmar da Rocha D’Angelis

Marcus Maia

113
Quem vai de arrasto




não tem compromisso






Wilmar da Rocha D’Angelis



Unicamp/SP






As tentativas, os acertos e os erros ensinam


muito mais sobre a língua do que



o estudo do produto de uma reflexão


feita por outros, sem que se atine



com as razões que levaram à reflexão que se estuda.










João Wanderley Geraldi (1996: 136)

A máquina extraviada na por fora, por dentro, pense um pouco e co-



mece a explicar a finalidade da máquina; e, para


José J. Veiga escreveu um delicioso conto, no


mostrar que é habilidoso (eles são sempre habi-


qual o compadre do interior escreve ao da ci- lidosos), peça na garagem um jogo de ferramen-

dade, feliz por poder contar-lhe uma novidade tas e, sem ligar a nossos protestos, se meta por

do sertão: “Agora temos aqui uma máquina im-


baixo da máquina e desande a apertar, marte-


ponente, que está entusiasmando todo o mun- lar, engatar, e a máquina comece a trabalhar. Se

do”. A tal máquina chegara à cidadezinha certa isso acontecer, estará quebrado o encanto e não

existirá mais máquina.


tarde, em dois ou três caminhões, fora


descarregada, montada durante a noite e, na



manhã seguinte, ninguém ficara para dar expli- Do lugar de nossas práticas, impossível ler

cações: “A máquina ficou ao relento, sem que esse conto e não pensar na escola, em tantas

áreas indígenas, e não perceber que fazemos,


ninguém soubesse quem a encomendara nem


para que servia”. Com o tempo, a cidade foi se em muitos casos, o papel do moço de fora, “des-

afeiçoando à coisa, a ponto de o prefeito desig- ses despachados”, que vai “explicar a finalidade

nar um funcionário para zelar por ela. Diaria- da máquina” e fazê-la funcionar. Quebrado o

encanto, a máquina ainda será útil?


mente o homem espanava a máquina e duas


vezes por semana lhe aplicava “caol nas partes Do que eu disse, é possível que lhes venha à

de metal dourado, esfrega, esfrega [...]” etc. Ao mente a imagem de alguém que vai desfazer ilu-

sões sobre uma escola “boa por si mesma”,


fim, a máquina passou a ser o orgulho da cida-


aquela à qual as pessoas mandam os filhos,


de e parte importante das festividades nas da-


tas cívicas. Cidades vizinhas, e também de ou- convencidas de que “só assim” eles vão “ser al-

tros estados, mandaram para lá comissões, ten- guém na vida”. Certamente essa é uma aplica-

ção legítima da imagem da máquina e do “moço


tando comprá-la, mas o prefeito não se deixou


de fora” do conto de José J. Veiga.


levar por “conversa macia”, e surgiu até um


movimento para declarar a máquina “monu- Mas, em lugar disso, vou dirigir a reflexão

mento municipal”. para o que queremos da escola e de qual escola


precisamos para conseguir o que queremos.


O final do conto/carta é revelador:


Com isso, quero também poder quebrar outros



O meu receio é que, quando menos esperarmos, encantos: o da nova máquina, ainda mais relu-

desembarque aqui um moço de fora, desses des- zente, dita “escola diferenciada”, quase carinho-

samente, como se a expressão revelasse o cari-


pachados, que entendem de tudo, olhe a máqui-


114
PAINEL 4
Políticas lingüísticas e a escola indígena

nho pelas diferenças. Se “diferenciada” tivesse Política lingüística do Estado ou



aí o sentido de “valorizar a diferença”, todas as


políticas lingüísticas no Estado?


escolas deveriam ser – e ser chamadas – assim:



as dos índios e as dos não-índios. Mas, como só A existência de uma política lingüística do Es-


se chama “diferenciada” a escola indígena, é


tado brasileiro é, aparentemente, clara, embora


evidente que o parâmetro de comparação é a distinta, dependendo do lugar para onde se olhe.



escola “do branco”, que seria a escola “padrão” Se olharmos para os textos legais, há evidên-


e “indiferenciada”. Parece-me que o termo con- 115


cia suficiente de que:


segue cometer dois equívocos, um deles, com • o Estado entende ou pretende que o Brasil



conseqüências negativas bem concretas: 1) de- seja um país monolíngüe: declara a língua



finir a escola indígena pela diferenciação em portuguesa como idioma oficial (Constitui-


relação à dos brancos; e 2) afirmar a escola dos ção Federal, art. 13);



brancos como o lugar da indiferenciação. Na • o Estado se recusa a admitir que povos ou



prática, o que temos visto é que a concepção comunidades dentro do território nacional



da escola indígena como a que tem algo dife- tenham suas próprias políticas lingüísticas


rente da escola dos brancos tem sido a grande e educacionais: “universalizar, em dez anos,



motivação para os programas de Educação Es- a oferta às comunidades indígenas de pro-

colar Indígena “folclorizantes”, ou seja, aqueles gramas educacionais equivalentes às qua-


tro primeiras séries do Ensino Fundamen-


programas que transplantam uma escola de


branco para a aldeia, com “elementos da cultu- tal [...]” (Plano Nacional de Educação – Lei

nº 10.172/2001);

ra” indígena, geralmente em torno de certas



práticas artesanais ou da presença de algumas • o Estado se recusa a reconhecer uma escola


pessoas mais velhas que levam suas histórias desvinculada de um projeto de unificação

para a escola. ou integração nacional por meio da (única)



Seguindo uma distinção de ações – defensi- língua: determina que o ensino regular será

sempre ministrado em Língua Portuguesa,


vas x ofensivas – lembrada por Melià, tenho suge-


embora garanta aos povos indígenas “tam-


rido que a proposição da “escola diferenciada”

bém a utilização de suas línguas maternas”


permaneça nos limites das políticas defensivas,


(Constituição Federal, art. 210);


quando já é hora de o movimento indígena ado-


• a autonomia da escola indígena – se vincu-


tar políticas ofensivas também na educação es-


colar1 e, nesse caso, resgatar o sentido de “escola lada ao Estado – é um projeto impossível,

indígena”, um projeto ainda não alcançado.2 pois está previamente (de)limitada, dado

que aprender Português ou instruir-se nes-


E no que se refere ao tema deste trabalho –


sa língua não é um direito, mas uma obriga-


das relações entre política lingüística e escola in-


ção: “o Ensino Fundamental regular será

dígena –, quero sugerir que as ações ofensivas


ministrado em Língua Portuguesa” (Cons-


são necessárias e oportunas, tanto no que se re-


tituição Federal, art. 210).3


fere ao estabelecimento de políticas lingüísticas,



como no que se refere à planificação lingüística,


Por outro lado, se olharmos para outros do-

aí incluído o ensino escolar das línguas.


cumentos, em cujo processo de formulação o








1
Bartomeu Melià mencionou a distinção e sugeriu a necessidade e a oportunidade das políticas ofensivas, em conferência na abertura do IV

Encontro sobre Leitura e Escrita em Escolas Indígenas, realizado no 13° Congresso de Leitura do Brasil (Cole), na Unicamp, em julho/2001.

No mesmo encontro, propus analisar o projeto de “escola diferenciada” como uma política defensiva.

2
Refiro-me a recuperar do adjetivo “indígena” ou atribuir-lhe o sentido de “feito à maneira dos povos indígenas”. Atualmente, “escola indígena”

costuma ser sinônimo de “escola em comunidade indígena”, o que é uma grande licença poética, para dizer o mínimo.

3

Note-se que os surdos ficam em situação ainda pior: a Constituição nem sequer lhes garante o direito de também usarem sua língua de sinais

(Libras) no ensino regular. Em outro trabalho, discutimos a forma canhestra como, nos PCN, a Libra é admitida no ensino de pessoas surdas,

entre um conjunto de “recursos complementares” (Souza, D’Angelis e Veras, 2000).



Estado buscou ouvir as contribuições da socie- Política e planificação



dade civil, como é o caso dos Referenciais Cur-


lingüística nas sociedades


riculares Nacionais para a Escola Indígena


indígenas


(RCNEI), as posições são claramente mais


avançadas.4 Igualmente, se olharmos para ini-


Para Monserrat, “embora outras organiza-


ciativas de sociedades indígenas – em geral,


ções, entidades ou segmentos específicos de


com apoio de instituições educacionais e orga-


uma sociedade também possam definir e de-
nizações não-governamentais – que recebem


fender uma política lingüística, só o Estado tem


aportes decisivos de recursos por meio do Mi-


poder para implementá-la, colocá-la em práti-


nistério da Educação, incluindo programas de


ca, através de um planejamento lingüístico”


formação e projetos de publicações de escolas


(2001: 129).
indígenas, encontraremos a evidência de que:


Isso porque, segundo entende, “a planifi-


1. o Estado brasileiro apóia o fortalecimento


cação/implementação lingüística [...], para po-

e a vitalização das línguas indígenas: se-

mestralmente recebe projetos e financia ○

der ser operacional, necessita de um manda-
iniciativas voltadas ao ensino de línguas do jurídico, a lei, que é apanágio do Estado”

(op. cit.: 130).


indígenas, à formação de professores indí-


genas nessa área e à publicação de livros Nesse ponto, minha proposição me faz di-

em língua indígena; vergir dessa perspectiva. Ao defender a neces-


sidade e a oportunidade de ações ofensivas no


2. o Estado reconhece a autonomia dos po-


campo da política e planificação lingüística pe-


vos indígenas para construírem suas pró-


prias políticas lingüísticas: os projetos las sociedades indígenas, entendo que é possí-

apoiados pelo MEC incluem desde a alfa- vel planificação e ações concretas de implemen-

tação de políticas lingüísticas ao largo do Esta-


betização em língua indígena até o ensino


de língua indígena como segunda língua, do. E mais: sugiro que tais tipos de iniciativas

mas também alfabetização em Português são necessárias, indispensáveis mesmo, para as


– mesmo em comunidades nas quais a lín-


sociedades indígenas experimentarem um pro-


gua indígena é falada –, material para en- jeto de autonomia. Isso não significa renunciar

sino de Língua Portuguesa e publicações às ações e articulações para consolidação de


5
de textos indígenas em Português.

políticas públicas democráticas valorizadoras



da diversidade lingüística e apoiadoras da


vitalização de línguas minoritárias. Mas signi-


Reformulando o que está dito anteriormente: o


fica, por outro lado, não reduzir a ação do mo-


Estado brasileiro tem uma política lingüística, mas,


como tudo que se abriga em um Estado multi- vimento indígena e do indigenismo ao círculo

facetado e já não mais monolítico, em razão das con- fechado de conversa com o aparelho do Esta-

do, ao oficialismo e à burocratização, que são


quistas da sociedade civil, a política lingüística desse


sempre redutoras e sufocadoras das posturas


Estado é contraditória e se mostra, claramente, como


um campo de debate e de disputas de projetos di- mais criativas.



ferentes.6 Melhor isso do que a hegemonia mas- Mencionarei, por isso, duas iniciativas com as

quais fui chamado a colaborar como lingüista e


sacrante de um projeto conservador.





4
Ruth Monserrat observou, criticamente, que, mesmo nos RCNEI – que reconhece como o documento mais avançado –, “há um deslizar

imperceptível do enfoque inicial da língua indígena como questão fundamental estratégica na luta pela autonomia para um enfoque em que

ela aparece com um papel diluído ou pelo menos enfraquecido, situada que fica, em paralelo com a Língua Portuguesa, apenas como uma

das disciplinas da área de linguagem” [grifos da autora] (Monserrat, 2001: 135).



5
Não significa que não haja ações do Ministério que não apontem em sentido contrário. A recente extinção – em 2001 – do Comitê de

Educação Escolar Indígena do MEC – apesar dos muitos problemas pelos quais vinha sendo criticado – poderia ser incluída nas ações que

desfavorecem uma política democrática na gestão do apoio aos programas de Educação Escolar Indígena.

6
Monserrat (2001: 137) entende que “o Estado brasileiro não tem realmente uma política lingüística específica para as sociedades indígenas. Ele

tem, sim, no nível do discurso, uma política de Educação Escolar Indígena, qualificada como ‘bilíngüe, intercultural, específica e diferenciada’ [...]”.

116
PAINEL 4
Políticas lingüísticas e a escola indígena

educador e nas quais se pode falar de construção Funai, pela IECLB e pelo Summer Institute, nos



autônoma de política e planificação lingüísticas. anos 1970, e fora professor de todos os demais



nas primeiras séries. Apesar do programa de



Inhacorá (RS) bilingüismo para o qual fora formado, ele os al-


fabetizara em Português. Os outros sete haviam


Em 1996, a convite da Secretaria de Educa-


sido formados em Magistério de 2º grau, em cur-


ção do Rio Grande do Sul, por indicação de


so promovido pela Unijuí, Funai e IECLB, que se


membros do Núcleo de Educação Indígena 117
encerrara em 1996.


(NEI) daquela Secretaria, trabalhei como asses-


Na comunidade de Inhacorá, as crianças


sor lingüístico de um encontro de professores


chegam à idade escolar monolíngües em


das escolas indígenas daquele estado. Em razão


Kaingang. O problema que nos colocaram, e


de uma pesquisa de história Kaingang, aprovei-
para o qual deveríamos colaborar na reflexão,


tei a oportunidade para aproximar-me dos pro-


era o seguinte: em seu curso de Magistério não


fessores da aldeia de Inhacorá, a mais ociden-


ficou claro, para os novos professores, como


tal das comunidades Kaingang (município de


deveriam alfabetizar e, principalmente, em que


São Valério do Sul, RS). Na seqüência, estive em
língua deveriam alfabetizar. Teriam ouvido, se-


sua aldeia – quase vinte anos depois de minha

gundo diziam, que se poderia alfabetizar nas

primeira visita – e estabelecemos, rapidamen- ○

duas línguas ao mesmo tempo (Kaingang e Por-


te, laços de amizade e cooperação. Quase um


7 tuguês), mas isso dificultava ainda mais imagi-


ano depois desse encontro, fomos convidados,


nar o processo. Assim, em seu primeiro ano

pelos professores Kaingang de Inhacorá, a as-


como professores (1997), eles haviam decidi-


sessorar uma avaliação das experiências que


do, por conta própria, fazer uma experiência


vinham fazendo em alfabetização. Naquele


para verificarem o melhor resultado: dois pro-

momento, tendo já atuado em outros dois en-


fessores trabalharam alfabetização em Portu-


contros organizados pela Secretaria de Educa-


guês em suas turmas e um terceiro tentou al-


ção com os professores indígenas de todo o es-


fabetizar a sua turma em Kaingang, que, dian-


tado, estávamos convencidos das dificuldades


te da falta de método e da deficiência da for-

de contribuir para mudanças nas escolas indí-


mação, pensou poder traduzir uma cartilha do


genas sem acompanhamento local e direto das


Português para a sua língua, e assim levou adi-


experiências. Decidimos aceitar o convite e – na


ante seu trabalho. O que deveríamos avaliar no


medida da limitação de nosso tempo e de nos-


encontro, portanto, eram os resultados das

sos recursos – propusemo-nos a acompanhar


experiências dos três professores e, a partir


permanentemente o programa de educação es-


disso, ajudá-los a planejar o ensino de línguas


colar naquela comunidade.


na escola para os anos seguintes.


Em fevereiro de 1998, por quatro dias intei-


Nesse, e nos encontros que passamos a ter

ros, na Escola Marechal Cândido Rondon, da área


semestralmente, o nosso trabalho era construir


de Inhacorá, trabalhamos junto com os oito pro-


com eles a reflexão e, quando possível e necessá-


fessores Kaingang e com a direção da escola da


8 rio, a teorização que contribuíssem para uma


comunidade. Dos oito professores Kaingang, o


compreensão cada vez mais profunda da ques-

mais velho havia sido formado na primeira tur-


tão lingüística e educacional com que estavam li-


ma de “monitores” de um curso promovido pela


dando. Nossos encontros nunca ocuparam me-






7

O convite foi dirigido a mim e a Juracilda Veiga, antropóloga, que, no ano de 1997, morara por alguns meses naquela comunidade para

realizar pesquisa de campo para tese de doutorado. Juracilda é coordenadora do Núcleo de Cultura e Educação Indígena da Associação de

Leitura do Brasil (ALB).



8
Como em todas as escolas de áreas indígenas no RS, havia ali uma diretora não-índia. Além disso, a escola contava com uma professora

não-índia pertencente aos quadros da Funai, que atuava como vice-diretora. Elas eram respectivamente, a profª Maria Carmen dos Santos

e a profª Derli Berlezzi, que foram grandes apoiadoras e incentivadoras do nosso trabalho desde o primeiro momento, e sua contribuição ao

programa escolar indígena de Inhacorá é inestimável.



nos de trinta horas de trabalho e, em alguns de- jamento de material de alfabetização na comu-



les, superamos as quarenta horas. Em nenhum nidade Kaingang mais próxima, de Guarita.



deles fornecemos certificados, ajuda de custo ou Não se trata de um processo realizado sem



qualquer compensação aos professores, senão dificuldades e, muito menos, já concluído e com


aquela de contribuir à sua busca sincera de cons- resultados totalmente positivos – e esse é um dos



truir uma escola adequada à sua comunidade e motivos da epígrafe de Wanderley Geraldi. Foram



aos interesses de seu povo. Por solicitação direta pouquíssimas as crianças alfabetizadas nas tur-


que fez aos professores indígenas, a coordenado- mas de primeira série do ano de 1997 – tanto em



ra de Educação da Funai de Passo Fundo foi au- Português como em Kaingang. Os problemas que



torizada a assistir todos os encontros. Também isso gerou, com a entrada de novos alunos, a ex-



foram autorizados os supervisores da Delegacia pectativa dos pais com os novos professores e a


de Ensino da região, mas só participaram de al- carência de preparação destes para alfabetizar,



guns encontros, e sempre parcialmente. Todos os foram acumulando dificuldades nos anos seguin-



encontros contavam com momentos de avaliação tes, as quais se buscava corrigir para avançar.


do trabalho realizado, teorização, riquíssimos ○
Nada disso, porém, diminuiu o significado dos
debates e análises lingüísticas, estudo de textos9 ganhos mais importantes. A compreensão da si-

e planejamento. tuação sociolingüística de sua comunidade e das



Nesse processo, à margem das iniciativas, demais comunidades Kaingang e a capacidade de



sempre muito gerais e algumas improvisadas, enfrentar os problemas de um planejamento


da Secretaria de Educação do Rio Grande do Sul, lingüístico e educacional e responder-lhes com



a comunidade de Inhacorá foi reconstruindo autonomia fizeram dos professores de Inhacorá



sua escola, definindo sua política e planifica- – os oito iniciais mais os novos candidatos que

ção lingüística e implementando-as na prática. acompanharam os encontros posteriores – edu-



Menciona-se aqui a comunidade, pela praxe de cadores capazes de conduzir a sua escola.10

a escola interagir com os pais, pela presença do No momento, trabalham na reflexão sobre o

cacique da comunidade em todos os encontros que deve ser a “continuidade” do ensino na lín-

realizados – e, na maior parte deles, em tempo gua materna e ainda debatem questões referen-

quase integral – e pela assembléia realizada em tes à introdução da Língua Portuguesa. Embora

um dos momentos de encontro, em dezembro quase se restrinja, nesse caso, à definição de uma

de 1999, em que a comunidade toda debateu e política de educação escolar bilíngüe, as preocu-

aprovou o calendário escolar diferenciado da pações e debates que a fundamentam têm, no



escola de Inhacorá, o primeiro elaborado dessa horizonte, não apenas o futuro lingüístico da sua

forma no Rio Grande do Sul. Ao longo desse comunidade, mas da sociedade Kaingang como

processo, os professores produziram um mate- um todo, na qual se sentem plenamente inseri-


rial próprio de apoio à alfabetização e, como dos e, para cuja política e planificação lingüísti-

fruto dessa experiência e da reflexão acumula- ca, sentem que têm uma colaboração a dar e se

da, a experiência de Inhacorá passou a ser refe- orgulham, obviamente, do lugar social e político

rência para muitas escolas e nos encontros ge- que têm conquistado no conjunto dos professo-

rais promovidos pela Secretaria do Estado. Um res indígenas do Rio Grande do Sul.

professor de Inhacorá chegou a atuar como as- Nesse processo, fruto de sua prática com a

sessor, a convite de seus colegas, para o plane- reflexão lingüística stricto sensu, 11 eles também





9
Vários desses textos foram especialmente traduzidos do inglês para utilização com esses professores, naquelas oportunidades.

10
Para evitar confusão, é relevante anotar que a escola continua sendo custeada pelo estado, ainda que o financiamento, no Rio Grande do

Sul, seja pela forma de contratos precários para os educadores. Em outro trabalho, discuti o problema dos limites da autonomia das escolas

indígenas, inclusive acerca do seu financiamento (cf. D’Angelis, 1997).



11
Em encontro de pesquisadores de línguas Jê e Macro-Jê, realizado na UEL, em Londrina (PR), no mês de fevereiro de 2001, apresentei um trabalho

sobre o gênero em Kaingang que, em parte, refletia análises e discussões ocorridas no acompanhamento da escola de Inhacorá (cf. D’Angelis, 2001).

118
PAINEL 4
Políticas lingüísticas e a escola indígena

vêm assumindo o interesse de veicular, entre os mais velhas da comunidade, e proceder a uma



demais professores Kaingang, o debate em tor- análise fonológica e morfológica que pudesse



no da ortografia do Kaingang, que tanto descon- subsidiar o processo de definição ortográfica,



tentamento tem gerado em muitas comunida- que antevíamos como indispensável.


des há anos. As preocupações mais amplas se A falta de recursos impediu-nos de avan-



refletem, também, no interesse pela produção çar mais rapidamente, mas, no segundo se-



de um jornal em língua Kaingang, usando um mestre de 2000, realizamos um encontro – com


computador que doamos e um programa espe- apoio da Coordenação Geral de Apoio às Es- 119



cífico com uma fonte própria para as particula- colas Indígenas e da Funai/Bauru –, que pas-



ridades ortográficas do Kaingang – que tem samos a chamar de Convenção Ortográfica



quatro vogais nasais e, por isso, usa-se o til so- Nhandewa-Guarani. Por iniciativa dos Guarani


bre elas, o que os programas convencionais não do Posto Nimuendaju, o encontro reuniu pro-



permitem, a saber: e, i, u, y.12 fessores e lideranças – três caciques – de cinco



das sete aldeias Nhandewa-Guarani de São



Nhandewa-Guarani Paulo e do Norte do Paraná, que falam o mes-


mo dialeto e têm uma história comum:


(São Paulo e norte do Paraná)

Nimuendaju, Itariri e Piassaguera, de São Pau-

No primeiro semestre de 1997, em reunião ○

lo; Pinhalzinho e Laranjinha, do Norte do


na Secretaria de Planejamento do Estado de Paraná. 13 Depois disso, outros dois encontros

São Paulo, em que se tratava da constituição foram realizados entre as comunidades para

do Núcleo de Educação Escolar Indígena nes-


produção de materiais de uso escolar. Regis-


sa secretaria, o representante indígena da área


tre-se que

Nimuendaju (ex-Araribá), Claudemir Marco-



lino Honório, provocou os presentes dizendo [...] a escrita Nhandewa-Guarani de São Paulo e

que as universidades de São Paulo não esta-


Norte do Paraná foi decidida com acompanha-


vam interessadas nos índios do estado. No in-


mento de um lingüista, de forma a garantir às


tervalo, procurei-o para saber o que ele es- comunidades a informação e as melhores con-

perava das universidades. Disse-me que o di- dições para realizá-la, mas foi um processo de

aleto Nhandewa-Guarani da sua comunidade decisão dos professores indígenas. O principal



e de outras no estado estava desaparecendo e fruto desse procedimento é a desmistificação da



que eles gostariam muito de que pessoas das escrita, aqui vista por eles como uma ferramen-

ta da qual se apropriaram e sobre a qual podem


universidades se preocupassem em registrá-lo


e ajudá-los a pensar como ensinar aquele dia- tomar decisões, de modo que as comunidades

não ficam vulneráveis ao poder de estrangeiros


leto na escola. Assumi o compromisso de en-

sobre sua própria língua, como acontece em


contrar um auxiliar de pesquisa e, depois,


muitos casos de escritas produzidas por lingüis-


procurá-lo na aldeia.

tas para a comunidade, sobretudo nos casos em


A partir do segundo semestre de 1997, pre-

que participam agentes de empreendimentos


parei dois graduandos e, no ano seguinte, inici-


missionários. Tal como foi feito, o processo ga-


amos uma pesquisa na área do Nimuendaju.


rante aos Guarani liberdade para rever suas de-


Sem recursos específicos, o trabalho foi docu- cisões, porque foram eles que as tomaram e sa-

mentar o dialeto, tal como falado pelas pessoas


bem como o fizeram.14






12
Uma reflexão e mais informações sobre esse trabalho encontram-se em Veiga (2001). Nas viagens a partir do final de 1999, contamos com

recursos da Unesco por meio da Coordenação Geral de Apoio às Escolas Indígenas e, em todos os encontros, de um modo ou de outro,

houve contribuição efetiva da Funai/Passo Fundo.



13
Problemas decorrentes da separação muito recente entre os grupos de Piassaguera e Bananal impediram a participação de representantes

deste último grupo, que é, no entanto, uma das menores aldeias e uma das que têm menor número de falantes.

14
Trecho do projeto “Publicação de material didático Nhandewa-Guarani”, apresentado ao MEC pelo Núcleo de Cultura e Educação Indígena

da ALB, em julho/2001.

O que pretendo destacar, principalmente, é comum, é também o tipo de situação em que



o fato de que a comunidade Nhandewa-Guarani mais tenho atuado.



do Nimuendaju definiu a sua política lingüísti- Quanto ao outro aspecto, o da complexi-



ca muito antes de encontrar um lingüista para dade e das tensões do processo, não é inco-


apoiá-la e, ainda antes que contasse com esse mum – ao contrário, provavelmente é o mais



apoio técnico, já iniciara, com seus conheci- comum – que os professores indígenas cons-



mentos e recursos – com base em trabalho vo- truam, por sua reflexão e pelas relações com o


luntário de três pessoas: Claudemir, Francisco mundo fora da aldeia e da região, uma com-



e Juraci –, um programa de ensino da língua preensão diferente da maioria de sua comuni-



Guarani com as gerações mais novas. Duas a dade, em relação ao valor do trabalho com a



três vezes por semana, regularmente, desde língua materna na escola. É comum, portanto,


1998, reúnem-se à noite, na escola, com as cri- que, nesses contextos, alguns pais indígenas



anças e com os jovens que retornaram do tra- apresentem queixa aos professores ou ao ca-



balho nas fazendas ou com os que vieram da cique: “Meu filho não precisa aprender a nos-


escola da cidade, e passam de uma hora e meia ○
sa língua, isso ele já sabe; eu mando ele na es-
a três horas lendo e escrevendo, copiando e tra- cola para aprender Português”.

duzindo frases. A primeira reação é tomar essa fala como



Como parte dos esforços da comunidade um discurso integracionista, como se a comu-



toda, o Guarani já pode ser ouvido nos cumpri- nidade estivesse dizendo, com isso, algo como:

mentos e em muitas conversas entre as pessoas “Queremos que nossos filhos não sejam mais

acima de 40 anos e está presente também na índios (Kaingang, Wapixana, Terena...) e pas-

tradução de orações cristãs – já que, naquela sem, de língua e alma, para o mundo dos bran-

aldeia, quase 100% da comunidade participa de cos”. Quando entendida desse modo, essa fala

cultos da Congregação Cristã ou de algumas costuma gerar um distanciamento dos profes-



igrejas pentecostais, como Só o Senhor é Deus sores índios em relação à comunidade e, às ve-

– e de cantos para a escola, aí incluída uma ver- zes, um isolamento da própria escola. No limi-

são Guarani, feita por eles mesmos, do Hino te, alguns pais cogitam de mandar os filhos para

Nacional brasileiro. a escola de fora da área, em lugar de mandar



para a escola da comunidade. No entanto, na


Política lingüística

maior parte dos casos, esse discurso pode ser


traduzido por uma fórmula do tipo: “Nós que-


e escola indígena

remos, para os nossos filhos, um ensino que os



Anteriormente disse, de forma simplificada, prepare para enfrentar o mundo dos brancos e

sobre “política lingüística” definida na comuni- se virar nele, e isso inclui a Língua Portuguesa,

dade tal ou qual. Porém, é importante dizer nas modalidades oral e escrita”.15

duas palavras sobre o enfoque que foi assumi- Em outras palavras, aí está também em-

do aqui e sobre a complexidade e as tensões butida uma proposta de política lingüística.


desse processo.

Onde os professores indígenas saibam dialo-


Sobre o enfoque, é evidente que minha dis- gar com a sua comunidade e compreender as

cussão privilegiou, até aqui, as situações em suas preocupações e os seus interesses, será

que há duas línguas presentes na comunida- sempre possível desenvolver um programa


de, das quais uma delas é a língua indígena


escolar que dê conta daquela demanda e, ao


ancestral. Essa não é a única situação nas co- mesmo tempo, permita à escola trabalhar e

munidades indígenas, mas, além de ser a mais valorizar a língua indígena com as gerações





15

Nenhuma comunidade ou família deseja que seus filhos queiram guardar distância dela, alhear-se, enfim. Mas não se pode simplificar a

questão e esquecer que também há pais que aderem a projetos de cunho mais ou menos integracionista e, não por acaso, costumam ser

índios funcionários e, com alguma freqüência, casados com não-índio(a).


120
PAINEL 4
Políticas lingüísticas e a escola indígena

mais novas. Se esse programa escolar for bas-


fessores descomprometidos com seus objeti-


tante bem-sucedido e avançar em políticas


vos. As comunidades realmente interessadas


ofensivas, uma tal escola experimentará, efe- em um programa de educação escolar precisam



tivamente, um ensino intercultural eficaz e estar atentas e garantir que o lugar de “profes-


capaz de formar pessoas críticas e ativas, que,


sor” não seja um simples emprego, lugar de re-


em muito, diferencia-se de um ensino em que cebimento de salários por pessoas não capazes



a cultura indígena é apenas folclore que dá ou desinteressadas do processo. Como bem


colorido a um processo de “inclusão” compul- 121


ensina o professor Bruno Ferreira, Kaingang de


sória e “desculturadora”.


Votouro: “Quem vai de arrasto não tem com-


É preciso também reconhecer que, em boa promisso”,16 ou seja: quem vai porque os outros



parte dos casos em que os pais manifestam des- puxam não se compromete com os objetivos


contentamento com o ensino da língua indíge-


nem com os resultados do trabalho.


na na escola, os professores revelam-se real-



mente despreparados, sem iniciativa e, muitas


Bibliografia

vezes, incapazes de alfabetizar. Aqui, as pala-


vras de Geraldi, colocadas na abertura deste


D’ANGELIS, Wilmar da Rocha. Gênero em Kaingang? In:

texto, ecoam mais forte ainda. A escolha desse


SANTOS, L. dos (Org.). Línguas Macro-Jê : vários estu-
autor não foi casual: as propostas e práticas con- dos. Londrina: UEL, 2001.

solidadas de ensino renovado de língua mater- . Limites e possibilidades de autonomia de


na no Brasil, que se coloca contra o ensino escolas indígenas. In: D’ANGELIS, Wilmar da Rocha;

“gramaticalista” e no qual Geraldi é um dos no- VEIGA, J. (Orgs.), Leitura e escrita em escolas indíge-

nas. Campinas: ALB, 1997. p. 155-165.


mes mais destacados, são as que julgo pertinen-


GERALDI, João Wanderley. Linguagem e ensino. Exercíci-


tes para a formação também de professores in-

os de militância e divulgação. Campinas: ALB, Merca-


dígenas, para que trabalhem no ensino de lín-

do de Letras.

gua materna em suas comunidades, seja ela


MONSERRAT, Ruth M. F. Política e planejamento lingüístico


uma língua indígena, seja ela uma variedade do nas sociedades indígenas do Brasil hoje: o espaço e o

Português.

futuro das línguas indígenas. In VEIGA, J.; SALANOVA,


O caminho da descoberta, da experimenta- A.P. (Orgs.), Questões de educação escolar indígena:



da formação do professor ao projeto de escola. Campi-


ção e da busca de autonomia pode dar uma

nas: ALB, 2001. p. 127-159.


única garantia aos educadores: de que o pro-


SOUZA, Regina M.; D’ANGELIS, Wilmar R.; VERAS,


cesso acontecerá, independente dos resultados.

Viviane. Entre o dizer e o fazer: o discurso oficial sobre


E, se o processo acontece, as pessoas não saem


a inclusão e suas contradições. Estilos da Clínica, São


dele “incólumes”: agir e refletir sobre a ação Paulo, v. 9, p. 82-95, 2000.



transformam as pessoas, mesmo que elas não VEIGA, José J. A máquina extraviada. In: BOSI, A. (Org.) O

consigam transformar o mundo da forma que conto brasileiro contemporâneo . 9. ed. São Paulo:

Cultrix, 1999. p. 86-89.


desejavam fazê-lo.

VEIGA, Juracilda. Professores Kaingang de Inhacorá (RS):


Finalmente, é importante dizer que um tal


uma experiência de formação. In VEIGA, J.; SALANOVA,


programa escolar, entendido como parte im- A.P. (Orgs.) Questões de educação escolar indígena:

portante da política lingüística de uma socie-


da formação do professor ao projeto de escola. Campi-


dade indígena, não pode ser executado por pro- nas: ALB, 2001. p. 113-125.














16
Exposição oral em mesa-redonda sobre “Projeto Político Pedagógico e Autonomia”, no IV Encontro sobre Leitura e Escrita em Sociedades

Indígenas (Campinas: Unicamp, 13 o Cole, 16-20/7/2001).



Werè Tyyritina:




alfabetização na língua Javaé






Marcus Maia*



UFRJ






Resumo




um período de seis anos (1973-1979) em que


Este artigo reporta-se ao projeto de alfabetiza-
fora obrigada a se transferir para o Posto Indí-


ção Werè Tyyritina, que foi desenvolvido na aldeia


gena Kanoano, jamais recebera, por parte da


Javaé de Boto Velho, na Ilha do Bananal, TO, entre


Funai, qualquer assistência educacional. Em-

1983 e 1986. O projeto baseava-se no método Pau-

bora situada em local considerado mítico2 pela
lo Freire e ensinou um grupo de dez crianças indí-

etnia, na parte norte da Ilha do Bananal, pró-


genas a ler e escrever em sua língua materna. Uma


cartilha e um livro de estórias na língua Javaé (fa- ximo à localidade de Barreira da Cruz, na con-

mília Karajá, tronco Macro-Jê) foram elaborados e fluência do rio Formoso com o rio Javaés, a al-

deia de Boto Velho encontrava-se, na ocasião,


posteriormente publicados, assim como um ma-


nual do professor bilíngüe, que é apresentado como fora dos limites do Parque Indígena do

anexo a este artigo (página 127). Araguaia, sofrendo grande pressão de autori-

dades e de fazendeiros para abandonar a área,


que ficava no trajeto planejado para a estrada



BR-262, a Transaraguaia, que cortaria o Parque


Introdução

Nacional do Araguaia.

O projeto foi proposto a mim e ao antro- Decididos a permanecer em sua aldeia tra-

pólogo André Toral por ocasião de nossa pri- dicional, a despeito de todas as pressões,3 os

meira visita à aldeia Javaé de Boto Velho Javaé preocupavam-se com o fato de que as cri-

(Inywèbohona),1 na Ilha do Bananal, TO, em anças cresciam sem a oportunidade de se alfa-



julho de 1983, para coletar dados lingüísticos betizarem nem na língua materna e nem na Lín-

e etnográficos para projetos de mestrado liga- gua Portuguesa. Entre 1981 e 1982, alguns pais

dos ao Museu Nacional da UFRJ. Fixada no lo- enviaram seus filhos para estudar na escola da

cal desde a década de 1940, aquela comunida- prefeitura municipal de Cristalândia, na locali-

de Javaé, de cerca de 60 pessoas, à exceção de dade de Barreira da Cruz, próxima à aldeia. O







* PhD, professor adjunto de Lingüística do Setor de Lingüística do Museu Nacional e do Programa de Pós-Graduação em Lingüística da

Faculdade de Letras da UFRJ. Autor dos artigos: O acesso semântico no parsing sintático. In: Revista ALFA, São Paulo, n. 42, p. 101-111,

1998, e Palavras interrogativas em Karajá. In: Revista Laços , Rio de Janeiro, n.1, p. 91-110, 2000.

1
A transcrição dos dados do Javaé apresentados neste trabalho segue o quadro de correspondências entre os símbolos ortográficos e

fonéticos abaixo:

Consoantes: b, d, t ([t^]), k, tx ([ts&]), j, s ([T]), x ([s&]), l, r, h, w.


Vogais: i, y ([ï]), u, e ([e]), à ([´]), o, è ([E]) [æ]), a, ò ([ç]).


Vogais nasalizadas: i, õ, ã.

2
Próximo à aldeia de Boto Velho há três grandes buracos onde, segundo o mito, foram enterrados os corpos de todos os homens, todas as

mulheres e crianças da etnia, após a revelação do segredo de Aruanã.



3
A Funai alegava só poder assistir aos Javaé se eles se transferissem para a aldeia de Kanoano; o IBDF, então responsável pela administra-

ção do Parque Nacional do Araguaia, não reconhecia a presença do grupo indígena no interior do parque, fazendo constantes apelos para

que os Javaé se retirassem; a construtora Andrade Gutierrez, encarregada da construção da BR-262, ligava as suas máquinas, paradas, do

outro lado do rio Javaés, causando um barulho ensurdecedor; fazendeiros e autoridades municipais (Cristalândia, então estado de Goiás,

hoje estado do Tocantins) iam constantemente à aldeia, tentando persuadir os Javaé a deixar o local.

122
PAINEL 4
Políticas lingüísticas e a escola indígena

curso, realizado com entusiasmo pelas crianças iam duas desistências: uma, de Wajurema, de-



Javaé, foi, no entanto, interrompido por moti- corrente do engajamento do menino nas ativi-



vo de transferência do professor e não mais foi dades de pesca da comunidade e a outra, de



retomado. A tentativa de enviar crianças para Harawaki, cuja mãe queria a alfabetização ini-


estudar na sede do município de Cristalândia cial diretamente em Português, em vez de Javaé,



fora, igualmente, malsucedida em decorrência como havia sido decidido de comum acordo



da distância de 110 quilômetros entre a aldeia com a comunidade.


e o município. Nosso teste diagnóstico foi simples: pediu- 123



No momento de nossa visita, era, portanto, se aos alunos que desenhassem algo de sua li-



grande a ansiedade do grupo quanto à criação vre escolha e, em seguida, procurassem escre-



de uma escola na aldeia. A comunidade enten- ver o nome do desenho em Javaé e/ou em Por-


dia que a existência de uma escola em funcio- tuguês, conforme desejassem ou soubessem.



namento na aldeia, além de instrumentalizar as Propusemos ainda que copiassem algumas pa-



crianças para o contato com a sociedade lavras em Javaé escritas por Lucirene no qua-



envolvente, serviria para ajudar a legitimar a sua dro. Observamos que a totalidade dos alunos


presença na área. Foi em tal contexto, então, era monolíngüe em Javaé, exceto a mulher de



que o cacique João Wataju nos solicitou que as- 20 anos, que era capaz de compreender tam-

sistíssemos à sua filha, Lucirene Behederu, na bém o Português oral. Três alunas se revelaram

organização de um projeto de alfabetização. mais aptas do que os demais no que se refere


Lucirene, que concluíra os estudos de primeiro ao domínio de habilidades motoras da escrita,



grau (curso fundamental) durante a estada do mas todos eram rigorosamente analfabetos.

grupo em Kanoano, já vinha, desde há alguns A despeito do grande empenho de Lucirene,


meses, ministrando, informalmente, aulas de avaliamos que as suas aulas não vinham obten-

Javaé, Português e Matemática, usando o ma- do resultado satisfatório por duas razões:

terial bilíngüe desenvolvido para os Karajá pe- • o curso não obedecia a qualquer critério

los lingüistas do Summer Institute of Linguistics metodológico, era desenvolvido em bases


(SIL). Embora não tivéssemos, na ocasião, qual- assistemáticas, sem regularidade, o que di-

quer experiência prévia com alfabetização, em ficultava a progressividade da aprendiza-


gem;

face das dificuldades que presenciávamos, de-



cidimos aceitar a solicitação dos Javaé. Inicia- • o material do SIL desenvolvido para a lín-

mos o projeto assistindo às aulas de Lucirene e gua Karajá não era adequado ao Javaé, pois

tentamos avaliar a metodologia, os materiais esse dialeto do Karajá apresenta traços ca-

didáticos e o grupo de doze crianças e adoles- racterísticos nos planos fonético e lexical; a

comunidade atribui grande valor à sua rea-


centes com quem Lucirene vinha trabalhando.


lidade lingüística própria, tomando-a como


um dos elementos para a afirmação de sua


Avaliação preliminar

identidade perante os Karajá.



O grupo de alunos era constituído por oito



meninas e três meninos com idade entre 4 e 9


Metodologia e programação

anos e por uma mulher de 20 anos de idade que


Antes de deixarmos a aldeia de Boto Velho,


também pediu para ser alfabetizada.4 Oito des-


sas crianças já haviam sido expostas a alguma no final de julho, acertamos que Lucirene iria ao

forma de escolarização, outras quatro nunca Rio de Janeiro no início de outubro, para a reali-

haviam freqüentado escola. Posteriormente, zação de treinamento e desenvolvimento da


metodologia, da programação e de materiais di-


durante a primeira fase do curso, registrar-se-





4
É a seguinte a relação de nomes e respectivas idades dos alunos da escola de Boto Velho: Marilúcia Asiwaru (9 anos), Rosilda Beluá (9

anos), Rosamília Behé (4 anos), Harawaki (5 anos), Naiude Hariaru (6 anos), Luciana Kuaxiru (7 anos), Manoel Maireá (7 anos), Cleunícia

Seija (4 anos), José Inácio Wasuri (7 anos), Rosamíria Werià (6 anos), Roberto Wajurema (9 anos), Mariazinha Ximanaki (20 anos).

dáticos. Foi também estabelecido em conjunto amadurecimento da equipe, organizar-se-iam



com a comunidade que o projeto visaria, em sua cartilhas, livros de exercícios, de escrita e de



primeira fase, à alfabetização em Javaé, para, estórias. Inicialmente, no entanto, seria de-



posteriormente, passar à alfabetização em Por- senvolvida apenas a primeira etapa de um ma-


tuguês. Precisamos argumentar com a comuni- nual do professor, com roteiro de situações pe-



dade que não seria possível promover a alfabe- dagógicas a serem testadas e avaliadas. As eta-



tização inicialmente em Português, pois a tota- pas seguintes desse manual seriam desenvol-


lidade dos alunos não falava nessa língua, por vidas a partir dos resultados da primeira fase.



isso seria mais apropriado alfabetizá-los na lín- Logo que Lucirene chegou ao Rio de Janeiro,



gua materna e, em seguida, à medida que fos- em princípio de outubro de 1983, passamos à



sem se tornando fluentes em Português, intro- organização do programa. Discutimos com


duziríamos a escrita nessa língua. Lucirene a proposta educacional do método



Durante os meses que antecederam a che- Paulo Freire, a que ela demonstrou receptivi-



gada de Lucirene ao Rio, dedicamo-nos a es- dade desde o início. No decorrer das sessões,


tabelecer os fundamentos teóricos do projeto. ○
fomos delineando o perfil do programa e re-
Avaliamos várias metodologias, procuramos criando o método à feição dos Javaé. As 11 pa-

nos informar sobre projetos de alfabetização lavras geradoras escolhidas cobriam todos os

em outras comunidades indígenas e termina- fatos fonológicos da língua Javaé, inclusive as



mos por decidir tentar uma adaptação do mé- diferenças existentes entre a fala do homem e

todo Paulo Freire, originalmente concebido da mulher, e eram ainda representativas da



para a alfabetização de adultos, à turma de cri- realidade cultural da comunidade: Hãwa (al-

anças indígenas. O método Paulo Freire con- deia), Irasò (aruanã), Ijata (banana), Koworu

cebe o processo de alfabetização em termos de (roça), Wasureny (a nossa terra), Mahãdu (o



conscientização, recusando, por princípio, a grupo, a turma), Ixyju (outros índios, índios

excessiva centralização no professor e nos con- “bravos”), Bodòlekè (pirarucu), Krysa (Xavan-

teúdos programáticos, de um lado, e a mera re- te), Itxãtè (louco), Brèbu (medo).

cepção passiva de técnicas e conceitos, de ou- Organizamos, como havíamos previsto, um



tro. Tal fato pareceu-nos decisivo, pois as ati- guia metodológico bilíngüe (cf. Anexo), em que

vidades de alfabetização poderiam ser foram estipulados, item por item, os diversos

introduzidas na comunidade como parte de procedimentos de exploração de cada palavra


um contexto de questionamento e reflexão geradora a ser trabalhada com a turma de crian-



mais amplo sobre a realidade da sociedade in- ças.



dígena em face da realidade envolvente, além Basicamente, as atividades pedagógicas fo-



de ser um método de base silábica que pare- ram distribuídas nas seguintes etapas:

cia ideal às características fonético-fonológicas • atividades de reflexão oral: debate dos sig-

do Javaé, língua de recorte silábico simples e nificados de cada palavra pela turma, que,

bem marcado. A literatura por nós revista apre- em seguida, os representava pictorica-

mente;

sentava, ainda, várias experiências bem-suce-


didas na aplicação do método Paulo Freire em • atividades de leitura: cada palavra era apre-

comunidades indígenas. Uma dessas experiên- sentada para reconhecimento, desmembra-



cias foi-nos de particular valia: a realizada por da em seus constituintes silábicos, que eram

rearticulados em novas palavras criadas pe-


Isabel Hernandez com o grupo Mapuche, no


Chile (1981). los alunos;



Concebido para ser desenvolvido em con- • atividades de escrita: os alunos copiavam


cada palavra e sílaba e depois produziam


junto com o grupo a partir de situações inici-


novas palavras, recombinando os consti-


ais de aprendizagem, o programa seria mon-


tado progressivamente com a participação ati- tuintes silábicos.



va da comunidade. Em consonância com o ca- Ao longo de todas as fases eram realizados



ráter experimental do projeto e em função do jogos e brincadeiras pedagógicas.


124
PAINEL 4
Políticas lingüísticas e a escola indígena

Objetivando um máximo de envolvimento Avaliação da primeira fase



da comunidade na implementação, pedimos


do projeto


que as famílias dos alunos colaborassem com a



construção da casa e a fabricação da mesa e dos Na segunda quinzena de julho de 1984, vol-


bancos para o funcionamento da escola e envi-


tamos à aldeia a fim de avaliar a primeira etapa


amos aos pais fita gravada na língua Javaé, em do projeto de alfabetização e supervisionar a



que informávamos sobre os detalhes do méto- organização da segunda fase. Pudemos consta-


do e sobre a importância da alfabetização ini- 125


tar, de imediato, que a comunidade, de um


cial ser em língua indígena e da freqüência às modo geral, vinha se empenhando pelo suces-



aulas. Desenvolvemos também um conjunto de so do projeto. A construção da escola havia sido



folhas de exercícios para cada palavra geradora concluída e os bancos e mesas, fabricados com


e estabelecemos que Lucirene nos enviaria, ao


capricho. Verificamos que as aulas haviam se


término do trabalho com cada palavra, uma fo- tornado atividades regulares, bem inseridas no



lha-teste preenchida pelos alunos. Esse proce- cotidiano da comunidade.



dimento visava a nos permitir o acompanha- O grupo de alunos, extremamente motiva-


mento das atividades, o que nos possibilitaria do, relutara até em aceitar as férias propostas


a formulação de sugestões e correções. Junto por Lucirene para o mês de julho, época de ve-

com os testes, Lucirene deveria ainda nos envi- rão na região, quando a comunidade realiza ati-

ar regularmente um relatório em que seriam vidades coletivas tradicionais nas praias próxi-

registradas as faltas eventuais de cada aluno, mas à aldeia. Convocados para uma reunião de

além de observações gerais a respeito do anda- supervisão, chegaram todos bem cedo à esco-

mento do programa, dificuldades ou dúvidas na la, uniformizados e portando cada um a sua


aplicação do método etc.


pasta. Sentados à mesa, participavam ativa-


Em janeiro de 1984, ao recebermos de mente da aula. As dispersões ocasionais eram



Lucirene o relatório e os testes corresponden- contornadas por Lucirene com habilidade. Ape-

tes à primeira palavra geradora, enviamos-lhe sar do desconforto inicial causado pela presen-

uma carta contendo observações gerais e indi-


ça dos supervisores, a sessão transcorreu com


viduais, apontando problemas de grafia de le- naturalidade. A professora apontava a sílaba no



tras, falta de aderência das sílabas grafadas às cartaz afixado na parede, os alunos a identifi-

linhas, estímulo à maior diversificação dos de- cavam com presteza, habituados ao método.

senhos etc. Sugerimos a Lucirene que dedicas-


Em caso de dúvida de um aluno, outro era ins-


se mais tempo às práticas de desenvolvimento tado a auxiliar. Na fase de redação de sílabas,



de coordenação motora, pois os testes revela- Lucirene verificava pacientemente cada cader-

vam grande tendência dos alunos em grafar as no, sugerindo, corrigindo. Havia se estabeleci-

sílabas com traços descontínuos ao invés de


do um ritmo fluente de trabalho. Alguns aspec-


segmentos cursivos, conforme planejado. tos do método haviam sofrido adaptações di-

Submetemos, então, o projeto à apreciação tadas pela prática, mas, indiscutivelmente, a



da organização não-governamental britânica Werè Tyyritina era uma realidade na aldeia de


Oxfam, que o aprovou, repassando-nos recur-


Boto Velho.

sos financeiros destinados ao pagamento de Entre novembro de 1983 e junho de 1984,



salário a Lucirene, que assim poderia dedicar- haviam sido ministradas cerca de 140 aulas com

se exclusivamente às atividades da escola. Ou- duração aproximada de duas a três horas por

tra parte dos recursos obtidos foi aplicada em


sessão. O índice de freqüência médio, rigorosa-


gastos com xerox, material escolar, camisetas mente anotado pela professora no diário de

com impressão de desenho escolhido pelos alu- classe, estava em torno de 70%. Apontamos a

nos para simbolizar a escola. Iniciávamos, as- Lucirene alguns problemas que havíamos ob-

sim, o projeto de alfabetização da Werè Tyyritina servado e discutimos a respeito da implemen-



– a escola Werè, nome escolhido pela comuni- tação de estratégias para o seu equaciona-

dade para denominar o projeto. mento. Dessas discussões e da observação do



desempenho individual dos alunos, por meio de ma “A” integrava-se àquela desenvolvida para a



exame dos cadernos e de sua participação em fase inicial, obedecendo a uma perspectiva de



aula, concluímos que grande parte das dificul- complexificação crescente, assim estruturada:



dades encontradas era decorrente da hetero- 1. leitura em voz alta de uma estória, coleti-


geneidade da turma. Por um lado, os alunos va e individualmente;



mais adiantados não vinham se desenvolven- 2. representação pictórica dos fatos evocados



do adequadamente, pois as atividades de coor- pela estória;


denação motora, simples demais, não lhes des-


3. percepção das sílabas como unidades for-


pertavam maior interesse. Terminada a cópia,


madoras das palavras;


rapidamente ficavam sem ter o que fazer ou


4. percepção das palavras como unidades for-


dedicavam-se a ajudar os menores. Por outro
madoras das frases;


lado, os menos adiantados tinham poucas opor-



tunidades nas atividades de criação de novas 5. percepção das frases como unidades com-


ponentes da estória;

palavras a partir das sílabas conhecidas, ativi-

dades que ocupam posição central no método. ○

6. redação das palavras e frases da estória;
Os mais adiantados, geralmente, resolviam os

7. formação de novas frases;


problemas apresentados nos jogos e exercíci-


8. redação de novas frases;


os, restando aos menores a mera cópia dos re-


9. redação de novas estórias.


sultados. Procurando conciliar os dois pólos,


a professora terminava por não propiciar con- Introduzimos a partir daí, também, o ensi-

dições para que os mais adiantados passassem no do Português. Organizamos uma apostila

da fase de reconhecimento e cópia de vocábu- com exercícios diversos de interpretação e re-


los à fase de leitura e redação efetivas. Do mes- dação baseados em pequenas estórias do reper-

mo modo, os mais novos acabavam por não tório oral da comunidade. Outra apostila foi

perceber a produtividade das combinações si- preparada para uso dessa turma, incluindo pa-

lábicas para a formação de novas palavras e não lavras, frases e pequenas estórias em Portugu-

avançavam da fase de reconhecimento e cópia ês, além de outros gêneros discursivos, como

para a fase de criação vocabular. cartas, notícias de jornal, relatórios etc.



A turma “B” foi constituída pelos alunos



mais novos, ainda não efetivamente alfabeti-


A segunda fase do projeto

zados e que requeriam atenção especial para



Com o objetivo de corrigir os problemas o desenvolvimento de coordenação motora e



anteriormente indicados, decidimos distribuir para a compreensão da produtividade do sis-


os alunos nas turmas “A” e “B”. A turma “A” foi


tema de escrita: Wasuri, Behè, Hãriaru, Seija e


constituída pelos alunos mais adiantados, que Weria. Nessa fase, ingressou na turma a meni-

avaliamos como tendo sido efetivamente alfa- na Hukanaru. Esses alunos, a despeito de es-

betizados na primeira fase: Asiwaru, Belua, tarem familiarizados com o método, ainda não

Kuaxiru, Mairea e Ximanaki. A estes se juntou


haviam operacionalizado seus conhecimentos


o menino Paulo Huruka, que, embora não ten- de modo a serem capazes de ler e escrever no-

do participado da primeira fase do projeto, vas sílabas, palavras ou frases. Projetamos um



havia freqüentado anteriormente uma turma novo conjunto de palavras geradoras, solicita-

de alfabetização em Português na escola da


das em sessões escolares com os alunos, a sa-


prefeitura. ber: Korera (jacaré), Ijoti (barreira), Surona (sa-



Para essa turma, foi desenvolvida uma se- bão), Wadò (minha comida), Helyrè (pato-sel-

gunda etapa do projeto, fundamentada na lei- vagem), Txiòrò (noitinha), Buhã (boto), Krukru

tura e redação de textos. Assim, à noção de sí- (um pássaro), Maiti (cana-de-açúcar), Bròrè

laba e palavra aprendida na primeira fase, so- (veado). Organizamos, igualmente com a par-

mava-se agora a noção de frase e estória. A ticipação ativa da turma, outra série de folhas-

metodologia estabelecida para as aulas da tur- teste, que nos seriam remetidas para avaliação

126
PAINEL 4
Políticas lingüísticas e a escola indígena

no decorrer do semestre seguinte. As ativida- nal de Educação Indígena, realizado no Rio



des das turmas “A” e “B” foram previstas para de Janeiro, em 1987, sob o patrocínio do



um período de aproximadamente um ano. Par- Museu do Índio (Funai-RJ) e da Fundação



te do material foi produzido durante nossa es- Pr ó - Me mór ia (Ministério da Cultura). A


tada na aldeia – cartazes, folhas de exercício – cartilha elaborada para uso na escola Javaé foi



e outros itens foram produzidos posteriormen- publicada em 1990 pelo Museu do Índio



te no Rio de Janeiro e remetidos, pelo correio, (Funai/RJ). Os alunos das duas turmas, bem


para Lucirene. como os de outras turmas, foram alfabetiza- 127



Em 1986, o projeto Werè Tyyritina rece- dos na língua materna e em Português por



beu apoio do Museu do Índio (Funai/RJ), Lucirene Behederu, que foi, posteriormente,



quando se produziram também, com as as- contratada como professora pelo município de


sessorias do professor Francisco Vieira, do Cristalândia, TO, para continuar atuando re-



Depar tamento de Análise Matemática da gularmente na escola da aldeia de Boto Velho.



Universidade Federal Fluminense, e do an-



tropólogo André Toral (Mari/USP), materiais
Bibliografia

didáticos, respectivamente, nas áreas de



Matemática e Estudos Sociais. Esse projeto


HERNANDEZ, I. Educação e sociedade. São Paulo: Cortez,
foi apresentado durante o I Encontro Nacio- 1981.





Anexo



Guia bilíngüe de alfabetização





1. Bitejikre ka quadro-ò rybè tykytàrasana. 7. Raurubukre kà desenho, foto ixyby kua



“Colocar no quadro a foto ou desenho do àdekerenykijiboho lohoji, ibutumy.


tema da palavra geradora.” “Guardar a foto ou desenho e repetir com



as crianças, separadamente e em grupo.”


2. Bidesenhanykre rybè. Ibutumy iny rybè



bidesenhanybenykre. 8. Rykyraxire tiusè soemy iryy raukyratabo



“Pedir para a turma desenhar o tema da pa- rarybera rybè.


lavra geradora.” “Perguntar quantas vezes mexe a boca para



falar a palavra geradora.”


3. Bitejibenykre desenho ibutumy hetowèmy.



“Colocar os desenhos nas paredes da casa 9. Bitejikre tykyritisõmo iritina wiribi itxura

da escola para todos verem.”


txura irawoò tykyriti rawòò ibutumy ritina.


“Colocar o cartão da família de sílabas abai-



4. Bitejikre ka tykyritsõmo ibutumy ritina rybè xo do cartão ‘ibutumy ritina’.”


biritinykre ka quadro rybè. 10. Kiriranykre wiribi itxuramy ibutumy



“Colocar o cartão ‘ibutumy ritina’ e escre- wiribi irareamy.


ver no quadro-negro a palavra geradora.” “Ler as sílabas junto e separado.”





5. Marybebenykre: ka rybè belàkyke ijykymy. 11. Bitejikre tykyritisõmo iribi itxura txura

“Conversar sobre a palavra geradora.” mahãdu.



6. Karyberenykre ritinadi rybè ritèosinyrekre “Colocar o cartão da família de sílabas.”


debòmy ritina quadro-ò.



“Ler a palavra geradora mostrando com a 12. Rykyraxire titxi tahe iribi txura txura kaki

mão os pedaços no quadro- negro e no car-


ròire imahãdu.

tão ‘ibutumy ritina’.” “Perguntar onde está cada sílaba da palavra







geradora nos cartões da sua família silábica.” b. Tyyritidu ritèòsinyra ijõ tuu rarybere.


“Um aluno mostra e o outro vai lendo os



13. Ibutumy rarybera ijõruy lohoji tule. pedaços que o outro mostra.”


“Ler e repetir junto e separado as outras sí- c. Ijõ mariabènyke wiribi itxura txura



labas.” mahadu.


“Pedir para os alunos lerem as famílias de



14. Ryryreri iny lohoji-ò riteòsira… kia sílabas.”



ixybylesyhe. d. Ikyrèritèòsinykre tyyritinykydu rarybera


“Chamar cada um para mostrar as sílabas ikyrèmy.



que são repetidas oralmente.” “O professor vai mostrando os pedaços e


os alunos têm que dizer como se fala.”



15. Bitejikre kia tyyritisõmo imahadu wiribi


itxura txura. Ritara kia tyyritisõmo ibutumy 22. Ibutumy wimy rakurikre wiribi itxura



ritina, wiribi itxura txura ratira quadro-ki txura ibutumy ijoi.

“Repetir junto e separadamente as sílabas

tyyriti ibutumy iribi.

“Colocar o cartão da família de sílabas. Ti- das famílias. Primeiro em ordem, depois vai

rar os cartões ‘ibutumy ritina’ e ‘wiribi itxura juntando.”


txura’. Ficam no quadro só os cartões 23. Ryryre inyõ-ò manake itànynykymy



‘ibutumy iribi itxura txura mahãdu’.” aõbohe ijõ tykyrytidu rybè.


“Chamar alguém para mostrar o som que o



16. Rykyraxire titxi rare kia iwiribi txura txura outro diz. Um aluno fala um pedacinho e o

imahãdu. Ryryra iny-õ tahe ritànynyra outro mostra onde é que está escrito o pe-

wiribi itxura txura. dacinho.”



“Perguntar onde está cada sílaba na sua fa-


mília. Chamar alguém para mostrar cada 24. Rarybera tamy wideke ibutunyky

sílaba nos cartões.” tykyritina rybè iribi. Wideke ibutunyky


iwitxira tyyritina tyyritisõmo irukyre.



17. Rykyraxire kà wiribi txura txura “Dizer para formar a palavra geradora e de-

raerynykre kia wiribi txura txura… pois formar outras palavras com os pedaci-

ritelenyra iusemy tahe rixihura iwitxiramy. nhos. Escrever todas as palavras que os alu-

“Perguntar se os outros wiribiitxura txura nos formarem no quadro.”


são iguais à sílaba em foco. Explicar que



cada sílaba de uma família começa igual, 25. Rarybera tamy kia tyyritidu kia ituera

inatxi imahadu aijõ itànynyky tykyritisõmo


mas termina diferente das demais.”


debòribi lohoji.

18. Ibutumy ixybyle rarybekre. “Falar para os alunos que as terminações das

“Repetir todas as leituras em grupo e sepa- duas famílias são iguais. Mostrar o cartão

radamente.” das vogais.”




19. Bitejikre ibutulemy ijoi. 26. Rarybera ibutumy wiribi itxura txura.

“Colocar os cartões de todas as famílias si- “Repetir junto e separado.”


lábicas da palavra geradora juntos.”



27. Adehuna – tyyritinykydu rarybera: wiribi


20. Tahe kiwinykre nohõtimy ritina. itxura txura mesa-ki tyytidu mahadu

“Depois a gente faz os exercícios de revisão.” tyyritisõmodi tibo ròtakremy.


“Brincadeira – a professora espalha os



21. Raèrythykremy tyyriti. cartõezinhos em cima da mesa. Depois



“Exercícios para revisão” vai falando os pedaços e os alunos têm de


a. Tyyritidu rarybera ijõ ritèòsinyra. pegar rapidamente. Cada aluno vai guar-

“Um aluno vai lendo os pedaços e um ou- dando os pedacinhos que acerta. Ganha

tro aluno vai mostrando os pedaços que o jogo o aluno que juntar mais pedaci-

ele está lendo.” nhos.”





P AINEL 5

LEGISLAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA


Luís Donisete Benzi Grupioni

Darci Secchi

Vilmar Guarani

129
Do nacional ao local,




do federal ao estadual: as leis




e a Educação Escolar Indígena






Luís Donisete Benzi Grupioni*



SEF/MEC





O direito à educação


transformação em curso, que tem gerado novas


práticas a partir do desenho de uma nova fun-


diferenciada nas leis

ção social para a escola em terras indígenas.


brasileiras

Nesse processo, a Educação Indígena saiu do


gueto, seja porque ela se tornou tema que está
Passados mais de dez anos da promulgação

na ordem do dia do movimento indígena, seja


da atual Constituição brasileira, é possível afir-


porque há de se construírem respostas qualifi-


mar que o direito dos povos indígenas no Brasil


cadas a essa nova demanda por parte daqueles a


a uma educação diferenciada e de qualidade, ali


quem cabe gerir os processos de educação no

inscrito pela primeira vez, encontrou amplo res-


âmbito do Estado. Com isso, ganham os índios e


paldo e detalhamento na legislação subseqüen-


ganha também a educação brasileira, na medi-


te. É isso que percebemos quando reunimos a


da em que será preciso encontrar novas e


legislação brasileira que trata da Educação Es-


diversificadas soluções, exercitando a

colar Indígena em âmbito nacional.


criatividade e o respeito diante daqueles que pre-


Com a Constituição de 1988, assegurou-se


cisam de respostas diferentes.


aos índios no Brasil o direito de permanecerem


Esse novo ordenamento jurídico, gerado em


índios, isto é, de permanecerem eles mesmos


âmbito federal, tem encontrado detalhamento e

com suas línguas, culturas e tradições. Ao reco-


normatização nas esferas estaduais, por meio de


nhecer que os índios poderiam utilizar as suas


legislações específicas, que adequam preceitos


línguas maternas e os seus processos de apren-


nacionais às suas particularidades locais. Esse é


dizagem na educação escolar, instituiu-se a pos-


o caminho para uma legislação que tem tratado

sibilidade de a escola indígena contribuir para o


de princípios e cuja realização depende de cada


processo de afirmação étnica e cultural desses


contexto específico.

povos e ser um dos principais veículos de assi-


Já se acusou essa legislação de ser excessiva-


milação e integração.
mente genérica. Mas como contemplar a extrema

Depois disso, as leis subseqüentes à Consti-


heterogeneidade de situações e de vivências his-


tuição que tratam da Educação, como a Lei de


tóricas dos mais de 200 povos indígenas no Brasil


Diretrizes e Bases da Educação Nacional e o Pla-


contemporâneo? Essa questão já encontrou uma


no Nacional de Educação, têm abordado o direi-


resposta no Referencial Curricular Nacional para

to dos povos indígenas a uma educação diferen-


as Escolas Indígenas, lançado pelo MEC em 1998:


ciada, pautada pelo uso das línguas indígenas,



pela valorização dos conhecimentos e saberes


Os princípios contidos nas leis dão abertura para


milenares desses povos e pela formação dos pró-

a construção de uma nova escola, que respeite o


prios índios para atuarem como docentes em


desejo dos povos indígenas de uma educação que


suas comunidades. Comparativamente a algu-


valorize suas práticas culturais e lhes dê acesso a


mas décadas atrás, trata-se de uma verdadeira conhecimentos e práticas de outros grupos e so-




* Antropólogo, pesquisador do Mari (Grupo de Educação Indígena da Universidade de São Paulo) e consultor do Ministério da Educação para

a política de Educação Escolar Indígena.


130
PAINEL 5
Legislação escolar indígena

ciedades. Uma normatização excessiva ou muito tituição: atualizar os direitos e deveres nela ins-



detalhada pode, ao invés de abrir caminhos, ini- critos, de forma que ela seja útil para regular o



bir o surgimento de novas e importantes práticas relacionamento dos cidadãos entre si e destes


pedagógicas e falhar no atendimento a demandas


com o Estado e com a sociedade como um todo.


particulares colocadas por esses povos. A propos- Dividida em nove títulos, a Constituição tra-



ta da escola indígena diferenciada representa, sem
ta dos princípios, direitos e garantias fundamen-


dúvida alguma, uma grande novidade no sistema


tais, da organização do Estado, dos poderes


educacional do país, exigindo das instituições e 131
Legislativo, Executivo e Judiciário, da defesa do


órgãos responsáveis a definição de novas dinâmi-


Estado e das instituições democráticas, da tri-


cas, concepções e mecanismos, tanto para que


butação e do orçamento, da ordem econômica,


essas escolas sejam de fato incorporadas e bene-


ficiadas por sua inclusão no sistema, quanto res- financeira e social.


A Constituição de 1988 remeteu para a le-


peitadas em suas particularidades (RCNEI: 34).


gislação complementar e ordinária algumas de-



Conhecer a legislação, formulada em âmbito finições, bem como o detalhamento de direitos



federal, sobre a Educação Escolar Indígena é o apresentados de forma ampla ou genérica, não


auto-aplicáveis, que precisam de detalhamento


único caminho para superar o velho e persistente

impasse que marca a relação dos povos indíge- por meio de lei complementar. Alguns desses

nas com o direito, qual seja, o da larga distância dispositivos ficaram para a legislação comple-

entre o que está estabelecido na lei e o que ocor- mentar, porque não cabia seu detalhamento na

Constituição; outros, porque não foi possível


re na prática. Na medida em que os professores


indígenas e suas comunidades conhecerem os chegar a um consenso entre os parlamentares



direitos que a legislação lhes assegura, estaremos que elaboraram o novo texto. É o caso, por exem-

plo, da exploração mineral em terras indígenas,


caminhando para que eles se tornem realidade.


que está prevista na Constituição, mas depende


Por sua vez, o conhecimento da legislação gerada


na esfera federal é condição primeira para o esta- de regulamentação do Congresso Nacional por

belecimento da legislação estadual, que deve meio de legislação complementar.


O maior saldo da Constituição de 1988, que


normatizar o funcionamento das escolas indíge-


rompeu com uma tradição da legislação brasi-


nas e dar efetividade ao direito a uma educação


diferenciada para os povos indígenas. leira, diz respeito ao abandono da postura



integracionista, que sempre procurou incorpo-


rar os índios à “comunidade nacional”, vendo-



Direitos indígenas na os como uma categoria étnica e social transitó-



ria fadada ao desaparecimento. Com a aprova-


Constituição Federal de 1988

ção do novo texto constitucional, os índios não


A atual Constituição da República Federati- só deixaram de ser considerados uma espécie em



va do Brasil entrou em vigor em outubro de 1988, via de extinção, como passaram a ter assegura-

quando foi promulgada, depois de mais de um do o direito à diferença cultural, isto é, o direito

ano e meio de trabalho da Assembléia Nacional de serem índios e de permanecerem como tal.

Constituinte. A Constituição, também conheci- Não cabe mais à União a tarefa de incorporá-

da como Carta Magna, é a lei maior do país. Não los à comunhão nacional, como estabeleciam as

existe nenhuma outra lei tão importante quanto constituições anteriores, mas é de sua responsabi-

ela e nenhuma outra lei pode ir contra o que nela lidade legislar sobre as populações indígenas no in-

está estabelecido. tuito de protegê-las. A Constituição reconhece aos



A Constituição estabelece direitos, deveres e índios “os direitos originários sobre as terras que tra-

procedimentos dos indivíduos e do Estado, dos dicionalmente ocupam”, definindo essa ocupação

cidadãos e das instituições. Ela substituiu a não só em termos de habitação, mas também em

Constituição promulgada em 1947 e reflete as relação ao processo produtivo, à preservação do



modificações ocorridas no tempo e na socieda- meio ambiente e à reprodução física e cultural dos

de. Este é o sentido de elaborar uma nova Cons- índios. Embora a propriedade das terras ocupadas

pelos índios seja da União, a posse permanente é de importância fundamental porque trata, de



dos índios, aos quais se reserva a exclusividade do modo amplo, de toda a educação do país.



usufruto das riquezas aí existentes. A atual LDB substitui a Lei nº 4.024, de 1961,



Outra inovação importante da atual Consti- que tratava da educação nacional. No que se re-


tuição foi garantir aos índios, às suas comunida- fere à Educação Escolar Indígena, a antiga LDB



des e organizações a capacidade processual para nada dizia. A nova LDB menciona, de forma ex-



entrar na Justiça em defesa de seus direitos e in- plícita, a educação escolar para os povos indíge-


teresses. O Ministério Público é chamado a par- nas em dois momentos. Um deles aparece na



ticipar desse processo, mas não é condição para parte do Ensino Fundamental, no artigo 32, es-



a sua instauração. Ao Ministério Público cabe a tabelecendo que seu ensino será ministrado em



defesa dos interesses indígenas e a Justiça Fede- Língua Portuguesa, mas assegura às comunida-


ral é o fórum para resolver pendências judiciais des indígenas a utilização de suas línguas ma-



envolvendo os povos indígenas. ternas e processos próprios de aprendizagem. Ou



Além do reconhecimento do direito dos índi- seja, reproduz-se aqui o direito inscrito no arti-


os de manterem a sua identidade cultural, a Cons- ○
go 210 da Constituição Federal.
tituição de 1988 lhes garante, no artigo 210, o uso A outra menção à Educação Escolar Indígena

de suas línguas maternas e processos próprios de está nos artigos 78 e 79 do Ato das Disposições

aprendizagem, cabendo ao Estado proteger as Gerais e Transitórias da Constituição de 1988. Ali



manifestações das culturas indígenas. Esses dis- se preconiza como dever do Estado o oferecimen-

positivos abriram a possibilidade para que a es- to de uma educação escolar bilíngüe e intercultural

cola indígena constitua-se em instrumento de que fortaleça as práticas socioculturais e a língua



valorização das línguas, dos saberes e das tradi- materna de cada comunidade indígena e propor-

ções indígenas e deixe de ser instrumento de im- cione a oportunidade de recuperar suas memórias

posição dos valores culturais da sociedade históricas e reafirmar suas identidades, dando-

envolvente. Nesse processo, a cultura indígena, lhes, também, acesso aos conhecimentos técnico-

devidamente valorizada, deve ser a base para o científicos da sociedade nacional. Para que isso

conhecimento dos valores e das normas de ou- possa ocorrer, a LDB determina a articulação dos

tras culturas. A escola indígena poderá, então, sistemas de ensino para a elaboração de progra-

desempenhar importante e necessário papel no mas integrados de ensino e pesquisa, que contem

processo de autodeterminação desses povos. com a participação das comunidades indígenas em


Esse direito ao uso da língua materna e dos sua formulação e tenham como objetivo desenvol-

processos próprios de aprendizagem ensejou ver currículos específicos, neles incluindo os con-

mudanças na Lei de Diretrizes e Bases da Edu- teúdos culturais correspondentes às respectivas co-

cação Nacional. munidades. A LDB ainda prevê a formação de pes-


soal especializado para atuar nessa área e a elabo-



ração e publicação de materiais didáticos especí-


Educação Indígena na Lei de

ficos e diferenciados.

Diretrizes e Bases da Educação


Com tais determinações, a LDB deixa claro


Nacional (Lei nº 9.394) que a Educação Escolar Indígena deverá ter um



tratamento diferenciado do das demais escolas



A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacio- dos sistemas de ensino, o que é enfatizado pela

nal foi aprovada pelo Congresso Nacional no dia prática do bilingüismo e da interculturalidade.

17 de dezembro de 1996 e promulgada no dia 20 Outros dispositivos da LDB possibilitam co-



de dezembro daquele ano. Ela estabelece normas locar em prática esses direitos, dando liberdade

para todo o sistema educacional brasileiro, fixan- para cada escola indígena definir, de acordo com

do diretrizes e bases da educação nacional desde suas particularidades, seu respectivo projeto

a Educação Infantil até a Educação Superior. Tam- político-pedagógico. Assim, por exemplo, o ar-

bém conhecida como LDB, LDBEN ou Lei Darcy tigo 23 da LDB trata da diversidade de possibili-

Ribeiro, essa lei está abaixo da Constituição e é dades na organização escolar, permitindo o uso

132
PAINEL 5
Legislação escolar indígena

de séries anuais, períodos semestrais, ciclos, assegurar a especificidade do modelo de educa-



alternância regular de períodos de estudo, gru- ção intercultural e bilíngüe e sua regularização



pos não-seriados ou por critério de idade, com- nos sistemas de ensino.



petência ou outros critérios. No artigo 26, para O Plano Nacional de Educação prevê, ainda,


darmos mais um exemplo, fala-se da importân- a criação de programas específicos para atender



cia de considerar as características regionais e às escolas indígenas, bem como a criação de li-



locais da sociedade e da cultura, da economia e nhas de financiamento para a implementação dos


da clientela de cada escola, para que se consiga programas de educação em áreas indígenas. Es- 133



atingir os objetivos do Ensino Fundamental. Ou tabelece-se que a União, em colaboração com os



seja, outros dispositivos presentes na LDB evi- estados, deve equipar as escolas indígenas com



denciam a abertura de muitas possibilidades recursos didático-pedagógicos básicos, incluindo


para que, de fato, a escola possa responder à de- bibliotecas, videotecas e outros materiais de



manda da comunidade e oferecer aos educandos apoio, bem como adaptar os programas já exis-



o melhor processo de aprendizagem. tentes hoje no Ministério da Educação em termos



de auxílio ao desenvolvimento da educação.


Atribuindo aos sistemas estaduais de ensino
Educação indígena no


a responsabilidade legal pela Educação Indíge-

Plano Nacional de Educação ○


na, o PNE assume como uma das metas a ser


(Lei nº 10.172)

atingida nessa esfera de atuação a profis-


sionalização e o reconhecimento público do



A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Na- magistério indígena, com a criação da categoria

cional instituiu, no artigo 87, a “Década da Edu- de professores indígenas como carreira especí-

cação”, que teve início um ano após a sua publi- fica do magistério e com a implementação de

cação. Ali também se estabeleceu que a União programas contínuos de formação sistemática

deveria encaminhar ao Congresso Nacional um do professorado indígena.



Plano Nacional de Educação, com diretrizes e Ao ser promulgado, o PNE estabeleceu que a

metas para os dez anos seguintes. União, em articulação com os demais sistemas

Em 9 de janeiro de 2001, foi promulgado o Pla- de ensino e com a sociedade civil, deve proce-

no Nacional de Educação, também conhecido pela der a avaliações periódicas da implementação do



sigla PNE, que apresenta um capítulo sobre a Edu- plano e que tanto os estados quanto os municí-

cação Escolar Indígena, dividido em três partes. Na pios deverão, com base no plano, elaborar seus

primeira parte, faz-se um rápido diagnóstico de planos decenais correspondentes.



como tem ocorrido a oferta da educação escolar


Parecer nº 14/99 do

aos povos indígenas. Na segunda, apresentam-se


as diretrizes para a Educação Escolar Indígena. E


Conselho Nacional de Educação


na terceira, estão os objetivos e metas que deve-



rão ser atingidos a curto e a longo prazos. O Conselho Nacional de Educação foi insta-

lado em 26 de fevereiro de 1996. É composto por


Entre os objetivos e as metas previstos no


Plano Nacional de Educação, destaca-se a duas câmaras: a Câmara de Educação Superior e



universalização da oferta de programas educa- a Câmara de Educação Básica, cada qual com 12

cionais aos povos indígenas para todas as séries membros nomeados pelo Presidente da Repú-

blica. Entre as competências do CNE, está a de


do Ensino Fundamental, assegurando autono-


mia para as escolas indígenas tanto no que se emitir pareceres sobre assuntos da área educa-

refere ao projeto pedagógico, quanto ao uso dos cional e sobre questões relativas à aplicação da

recursos financeiros, e garantindo a participação legislação educacional. Após a promulgação da


LDB, ambas as câmaras do CNE trataram de pre-


das comunidades indígenas nas decisões relati-


vas ao funcionamento dessas escolas. Para que parar as normas necessárias à implantação da

isso se realize, o plano estabelece a necessidade nova estrutura da educação nacional instituída

de criação da categoria “escola indígena” para por aquela lei. A Câmara de Educação Básica pre-

parou diretrizes curriculares para os diferentes A primeira é relativa à criação da categoria



níveis e modalidades de ensino, entre as quais “escola indígena”, reconhecendo-lhe “a condição



as de Educação Indígena. de escolas com normas e ordenamento jurídico



As diretrizes para a Educação Indígena cons- próprios” e garantindo-lhe autonomia pedagó-


tituem o resultado das discussões que ocorreram gica e curricular. Disso resulta a necessidade de



na Câmara de Educação Básica do CNE, quando regulamentação dessas escolas nos Conselhos



essa se lançou na análise de dois documentos en- Estaduais de Educação, bem como a necessida-


caminhados pelo Ministério da Educação (a ver- de de instituir mecanismos de consulta e envol-



são preliminar do Referencial Curricular Nacio- vimento da comunidade indígena na discussão



nal para as Escolas Indígenas e um documento sobre a escola indígena.



especialmente preparado pelo Comitê de Edu- Outro ponto importante da Resolução nº 3/99


cação Escolar Indígena sobre a necessidade de é a garantia de uma formação específica para os



regulamentação da Educação Indígena), bem professores indígenas, podendo essa ocorrer em



como de uma consulta feita pelo Ministério Pú- serviço e, quando for o caso, concomitantemente


blico Federal do Rio Grande do Sul, para cuja ○
com a sua própria escolarização. A resolução es-
relatoria foi indicado o Pe. Kuno Paulo Rhoden. tabelece que os estados deverão instituir progra-

As Diretrizes Curriculares Nacionais da Edu- mas diferenciados de formação para seus pro-

cação Escolar Indígena foram aprovadas em 14 fessores indígenas, bem como regularizar a situ-

de setembro de 1999, por meio do Parecer nº 14/ ação profissional desses professores, criando

99 da Câmara Básica do Conselho Nacional de uma carreira própria para o magistério indígena

Educação. Dividido em capítulos, o parecer apre- e realizando concurso público diferenciado para

senta a fundamentação da Educação Indígena, ingresso nessa carreira.


determina a estrutura e funcionamento da es- Ao interpretar a LDB, o Conselho Nacional



cola indígena e propõe ações concretas em prol de Educação, por meio dessa resolução, definiu

da Educação Escolar Indígena. as esferas de competência e responsabilidade



Merecem destaque, no parecer que institui pela oferta da educação escolar aos povos indí-

as diretrizes, a proposição da categoria “escola genas. Estabelecido o regime de colaboração



indígena”, a definição de competências para a entre União, estados e municípios, o CNE defi-

oferta da Educação Escolar Indígena, a forma- niu que cabe à União legislar, definir diretrizes e

ção do professor indígena, o currículo da escola políticas nacionais, apoiar técnica e financeira-

e sua flexibilização. Essas questões encontraram mente os sistemas de ensino para o provimento

normatização na Resolução nº 3/99, gerada no de programas de educação intercultural e de for-



âmbito das mesmas discussões que ensejaram mação de professores indígenas, além de criar

este parecer. programas específicos de auxílio ao desenvolvi-


mento da educação. Aos estados, caberá a res-



ponsabilidade “pela oferta e execução da Edu-


Resolução nº 3/99 do

cação Escolar Indígena, diretamente ou por re-



Conselho Nacional de Educação gime de colaboração com seus municípios”, in-


tegrando as escolas indígenas como “unidades



No Diário Oficial da União, de 17/11/1999, foi próprias, autônomas e específicas no sistema



publicada a Resolução nº 3/99, preparada pela estadual” e provendo-as com recursos humanos,

Câmara Básica do Conselho Nacional de Educa- materiais e financeiros, além de instituir e regu-

ção. Essa resolução fixa diretrizes nacionais para o lamentar o magistério indígena.

funcionamento das escolas indígenas. Importan- Dessas disposições, decorre, entre outras, a

tes definições foram aí inscritas e regulamentadas, necessidade de cada Secretaria de Estado da Edu-

no sentido de serem criados mecanismos efetivos


cação criar uma instância interinstitucional, com


para a garantia do direito dos povos indígenas a a participação dos professores e das comunida-

uma educação diferenciada e de qualidade. Algu- des indígenas, para planejar e executar a educa-

mas dessas definições merecem ser destacadas. ção escolar diferenciada nas escolas indígenas.

134
PAINEL 5
Legislação escolar indígena

Do nacional ao local: encontrar detalhamento nas esferas estaduais,



de forma a se potencializar as oportunidades de


o lugar da legislação estadual


os povos indígenas terem uma escola e uma edu-



O conjunto da legislação nacional a respeito cação que atenda aos seus interesses e às suas


aspirações de futuro.


do direito dos povos indígenas a uma educação


diferenciada, como visto anteriormente, está Feito o itinerário do detalhamento do direito



estruturado a partir de duas vertentes, que ne- dos índios a uma educação diferenciada, algumas


questões colocam-se para o debate, no momento 135


cessariamente precisam convergir, para que esse


direito se materialize: de um lado, trata-se de em que se caminha para novas formulações legais



propiciar acesso aos conhecimentos ditos uni- e administrativas, agora nas esferas estaduais.



versais e, de outro, de ensejar práticas escolares A primeira questão já foi anunciada: a da


persistente lacuna entre a lei e a realidade, en-


que permitam o respeito e a sistematização de


saberes e conhecimentos tradicionais. É da jun- tre o direito explicitado e a prática vivida. Que



ção dessas duas vertentes que deve emergir a tão alternativas se colocam a esse direito? Será que



propagada escola indígena. a busca de novas leis e normatizações seria um


O que a legislação nacional estabelece é um caminho para que aquilo que já foi inscrito ga-



conjunto de princípios que, de modo geral, aten- nhasse efetividade? Ou será que os povos indí-

de à extrema heterogeneidade de situações vivi- genas contam com outros mecanismos que po-

das hoje pelos mais de 210 povos indígenas con- deriam ser acionados para que o direito já

temporâneos no Brasil. Essa legislação permite a explicitado seja cumprido? Quais são os impas-

expressão do direito a uma educação diferencia- ses e as dificuldades que impedem o direito de

da, a ser pautada localmente, em respeito às dife- se realizar? São exclusivos do campo educacio-

nal ou dizem respeito à relação dos povos indí-


rentes situações socioculturais e sociolingüísticas


de cada povo indígena, bem como em relação aos genas com o Estado brasileiro?

seus diferentes projetos de futuro. Outra ordem de questões diz respeito à esfe-

Todavia, esses princípios precisam encon- ra de normatização estadual. Se cabe aos siste-

mas estaduais de ensino a responsabilidade pela


trar respaldo e acolhimento nas normatizações


estaduais que vão disciplinar o funcionamento oferta da Educação Indígena e pela formação e

das escolas indígenas, como unidades integran- regularização profissional dos professores indí-

tes dos sistemas estaduais de ensino, bem como genas, a eles cabe também definir, em plano es-

tadual, a matéria esboçada no plano federal. O


regularizar a situação dos professores indígenas


como profissionais contratados pelo estado ou que caberia definir aos estados? Qual o espaço

pelo município. É aqui, portanto, no âmbito es- de sua atuação? A qual nível de detalhamento aos

tadual, que os princípios federais precisam ga- estados caberia chegar, na definição das ações

educacionais para os povos indígenas? Como


nhar efetividade, gerando normas e procedi-


mentos que lhes possam dar vazão. É nesse garantir que a legislação estadual não se restrin-

âmbito que se consolida o direito a uma edu- ja a princípios federais? Como garantir que a es-

cação diferenciada, na medida em que se cola indígena não sucumba diante das demais

escolas do sistema estadual?


implementa e se realiza o direito a uma escola


própria e diferenciada. Por fim, uma terceira ordem de questiona-



Esse é o momento em que diferentes esta- mentos nos deve conduzir a cada sociedade in-

dos da Federação se lançam a disciplinar a ma- dígena em particular, a cada projeto de futuro

e de escola, pois é aí que o direito a uma edu-


téria, seja por meio da inclusão da Educação Es-


colar Indígena nas leis orgânicas de educação, cação diferenciada se realiza. E a pergunta

por parte das Assembléias Legislativas, seja por deve inverter a ordem estabelecida: em que

meio de resoluções estaduais, geradas no âmbi- medida o que já está inscrito no plano legal não

to dos Conselhos Estaduais de Educação. Esse é, limita as aspirações e os desejos dos povos in-

portanto, o momento de refletir sobre como os dígenas relativamente à escolarização formal



avanços alcançados na esfera federal poderão de seus membros? E para que rumo segue a

Educação Indígena? Haverá espaço para aque- Bibliografia



les grupos que almejam simplesmente um


GRUPIONI, Luís Donisete Benzi. A Educação Escolar Indí-


maior conhecimento do Português e das regras


gena no Brasil: a passos lentos. In: RICARDO, Carlos


de comércio com a sociedade envolvente? To- Alberto (Org.). Povos indígenas no Brasil – 1996/2000.


das as escolas indígenas deverão formalizar


São Paulo: Instituto Socioambiental, 2000.


seu ensino, garantindo continuidade de estu- . Os índios e a cidadania. In: Cadernos da TV



dos dentro e fora das terras indígenas? Haverá Escola – Índios no Brasil, Brasília, v. 3, p. 25-46, 1999.


condições e espaços para que os índios dêem MELIÀ, Bartomeu. Educação indígena e alfabetização. São



Paulo: Loyola, 1979.
um sentido próprio para a escola indígena, fora


SECRETARIA DE EDUCAÇÃO FUNDAMENTAL. Referencial


das amarras administrativas e legais já con-


Curricular Nacional para as Escolas Indígenas. Brasília:


quistadas? Enfim, para onde caminha todo SEF/MEC, 1998.


esse processo?


. O governo brasileiro e a Educação Escolar


Enfrentar essas questões está na ordem do dia. Indígena 1995/1998. Brasília: SEF/MEC, 1998.








Apontamentos acerca da


regularização das escolas indígenas






Darci Secchi*

Unemat




Resumo



Os povos ameríndios convivem com algum gislação atual apenas admitiu a alteridade e tole-

tipo de escola há quase 500 anos. Nos últimos anos, rou a diferença, isto é, manteve resguardado o

porém, a escola colonial recebeu novas adjeti- direito de outorgar direitos. O presente paper pre-

vações (específica, diferenciada, intercultural, bi- tende discutir o processo de regularização das

língüe), e a educação escolar passou a ser tratada escolas indígenas no Brasil, destacando a neces-

como política pública, como um direito de cida- sidade de conciliar os interesses de todos os su-

dania. Entretanto, o antigo paradigma colonial jeitos detentores de direitos, em especial, os das

não foi totalmente superado, uma vez que a le- sociedades indígenas.





Um breve sobrevôo Na era dos descobrimentos, os debates acer-



ca da Educação Indígena tiveram como cenário


sobre o campo

o confronto visual dos colonizadores com os ha-



Diversas sociedades indígenas brasileiras con- bitantes das terras recém-conhecidas. Discuti-

am-se o estatuto desses seres naturais e o lugar


vivem, há séculos, com a instituição escolar, e nós,


colonizadores, convivemos com a inquietação que lhes caberia no projeto de exploração. A



quanto ao lugar que ela deve ocupar nos processos questão que se colocava era se eles seriam con-

de colonização e/ou de autonomia desses povos. siderados seres humanos e, tendo alma, se seria




* Professor da UFMT e doutorando em Ciências Sociais pela PUC/SP.


136
PAINEL 5
Legislação escolar indígena

possível educá-los na fé cristã, ou se deveriam ao atual momento econômico, político e



ser simplesmente escravizados. A controvérsia1 epistemológico brasileiro.3 O discurso que havia



acerca da natureza humana dos índios perdurou insuflado as “bandeiras de luta da sociedade ci-



por dois séculos e, a partir dela, estabeleceram- vil” passou a ser apropriado pelo poder público.


se os contornos do projeto colonizador em toda Seria o prelúdio de novos tempos?



a América e em outros continentes.



Nos últimos anos, porém, verificaram-se
Um pouco de história


significativas mudanças no tratamento da 137



temática educacional indígena. Os próprios ín- O modelo integracionista de educação esco-



dios entraram em cena para debater a política lar para o índio no Brasil está associado histori-



de escolarização e para exigir uma educação camente ao binômio proselitismo doutrinário


escolar voltada ao atendimento dos seus inte-


(religioso ou não) e preparação para o trabalho.


resses. A educação escolar passou a ser vista Com esse intuito, atuaram as missões católicas,



como uma política pública, como um direito de as escolas pombalinas, a educação positivista e,



cidadania. Hoje já não se discute se os índios mais recentemente, os missionários e lingüistas


têm ou não têm alma, se devem ou não ser civi- de diferentes confissões.


lizados, mas trata-se de considerá-los cidadãos A partir da década de 1950, insuflados pelos

detentores de direitos específicos. ares da modernidade e das novas relações inter-



Ainda assim, a secular matriz colonial não foi nacionais do trabalho, passaram a ser incorpora-

totalmente superada. As atuais leis e regulamen- dos, nos países do chamado Terceiro Mundo, no-

tos foram produzidos apenas com a audiência dos vos instrumentos jurídicos e novos objetivos para

índios, ou contaram com a participação das co- a educação escolar das “populações tribais e

munidades. Ou, dito de outra forma, a legislação


semitribais”. A Convenção 107 da Organização


admitiu a alteridade e tolerou a diferença, mas Internacional do Trabalho (OIT/1957) preconizou,



manteve resguardado o direito discricionário de entre outros dispositivos, a garantia de educação



conceder direitos. Nela, o reconhecimento à di- em todos os níveis (art. 21); a realização de estu-

versidade cultural, aos direitos específicos, à


dos antropológicos prévios à elaboração de pro-


liturgia diferenciada para as suas escolas etc. se- gramas escolares (art. 22); a alfabetização em lín-

riam como marcos ou garantias de um porvir de gua materna seguida de educação bilíngüe (art.

cidadania, de respeito e de valorização das socie- 23); e uma campanha de combate ao preconceito

dades indígenas. Ao tempo em que se consolida-


(art. 25). Porém os artigos 24 e 26 não esconde-


va a tendência de considerar assuntos indígenas2 ram o antigo paradigma integracionista. Vejamos:



apenas os de cunho jurídico e administrativo, viu-



se frutificar inúmeras parcerias e cooperações Art. 24. O ensino primário deverá ter por objetivo

entre o poder público, a militância indigenista e


dar às crianças pertencentes às populações inte-


acadêmica e as próprias organizações indígenas ressadas conhecimentos gerais e aptidões que as



na busca de novos horizontes para a “causa indí- auxiliem a se integrar na comunidade nacional.

gena”. Nesse processo, surgiu também um novo [...]


discurso oficial, que substituiu o antigo “refrão Art. 26 -1. Os governos deverão tomar medidas [...]

integracionista” por enunciados mais palatáveis com o objetivo de lhes fazer conhecer seus direitos e





1
Para Clastres (1995), a controvérsia residia em afirmar que os índios eram como “criaturas de Deus” e, ao mesmo tempo, promover a sua

captura e escravização. A saída legal para esse dilema seria encontrada na declaração (unilateral) de “antropofagia”.

2
Ribeiro (1978) e Oliveira (1976) utilizam as expressões “problema” ou “problemática indígena”; Lopes da Silva (1981) e outros preferem

“questão indígena”. Tomo-as aqui como sinônimos.



3
Para Brand (1988: 7), o avanço no arcabouço legal fez-se acompanhar de um crescente “confinamento geográfico e social”. Para ele, o

esgotamento do modelo integracionista está diretamente ligado ao atual estágio da globalização e do neoliberalismo, que encontrou, como

fórmula para solucionar o problema dos supérfluos, o seu confinamento em favelas, acampamentos e reservas. Integrar o índio em quê? –

pergunta. Como mão-de-obra, já não é mais necessário. Só se for como consumidores marginais, conclui.

obrigações especialmente no que diz respeito ao tra- senvolvidos em Mato Grosso, no Acre e em ou-



balho e os serviços sociais.4 [Grifos meus.] tros estados.



Os direitos conquistados nesse período


No Brasil, esses dispositivos ingressaram no


recolocaram em novas bases o antigo conflito


mundo jurídico somente uma década mais tar- entre o oficial e o paralelo, e as “relações perigo-



de e se materializaram de fato na Constituição sas” entre escola e Estado passaram a ser vistas



Federal de 1988. Mesmo assim, careciam de como “relações possíveis”.


maiores explicitações, o que seria formalizado, Os anos 1990 caracterizaram-se como um



em meados da década de 1990, com a publica- período de implementação do ideário gestado



ção da Lei de Diretrizes e Bases da Educação na década anterior. As novas palavras de ordem


Nacional (Lei nº 9.394/96).


– “educação bilíngüe e intercultural”, “currícu-


Ao longo desses 30 anos de maturação jurí- los específicos e diferenciados”, “processos pró-



dica e política, muitos atores compuseram o ce- prios de aprendizagem” – precisavam ser ma-



nário da Educação Escolar Indígena. terializadas no cotidiano das escolas. No entan-

A década de 1970 foi marcada pela emergên- ○

to, nem o poder público estava preparado téc-
cia do chamado “indigenismo alternativo” e por nica e administrativamente para assumir essa

ensaios dos primeiros movimentos indígenas, ti- tarefa, nem havia legislação específica que ori-

dos como estratégias de oposição e superação do entasse tal procedimento. No contexto desse

paradigma integracionista. Nesse período, as es-


“vazio normativo” e das pressões advindas das


colas oficiais foram vistas com cautela, quando comunidades indígenas, dos grupos de apoio,

não com desconfiança. Propunha-se, em seu lu- de setores da academia e do próprio poder pú-

gar, a criação de escolas alternativas, mormente blico, o Governo Federal e o MEC passaram a

de acepção freireana, desatreladas do espaço do coordenar uma série de iniciativas que resulta-

Estado e das instituições que o representavam. ram na atual arquitetura jurídica e administra-

Na década de 1980, a escola indígena anco- tiva para as escolas indígenas.


rou-se no tripé organização indígena, reflexão


Dentre as principais medidas, destacaram-se:


acadêmica e militância indigenista, parceria que • a publicação do Decreto nº 26/91 que trans-

produziu uma vasta documentação, participou feriu da Funai para o MEC a responsabilida-

do processo constitucional e ostentou a chan- de pela coordenação e aos estados e municí-


cela de ver as suas bandeiras contempladas na pios a responsabilidade pela execução das

nova Carta. As articulações surgidas nesse con- ações de Educação Escolar Indígena;

texto resultaram na organização de “Núcleos de • a publicação da Portaria Interministerial nos



Educação” ou “Núcleos de Estudos Indígenas” 559/91 e das Portarias/MEC nº 60/92 e 490/


em diversos estados. Em alguns casos – como o


93, instituindo e normatizando o Comitê


de Mato Grosso –, esses núcleos deram origem Nacional de Educação Indígena, fórum que

aos atuais Conselhos de Educação Escolar Indí- viria subsidiar a elaboração dos planos

operacionais e as ações educacionais nos es-


gena, fóruns multiinstitucionais e de composi-


ção paritária, que definem a política de Educa- tados e municípios;



ção Escolar Indígena nos respectivos estados. • a elaboração pelo Comitê Assessor e a publi-

Na década de 1980, realizaram-se também cação pelo MEC, em 1994, do documento



diversos cursos de capacitação de professores e “Diretrizes para a Política Nacional de Edu-


encontros de Educação Indígena, eventos que cação Escolar Indígena”, a partir do qual de-

deram suporte à organização dos atuais Progra- finiram-se os principais contornos do aten-

mas de Formação de Professores Indígenas, de- dimento escolar indígena;







4 Posteriormente, a Convenção 169, adotada pela 76ª Conferência Internacional do Trabalho (Genebra, junho de 1989), revisou essas propo-

sições e acrescentou ao texto outras diretrizes, tais como “el derecho a la autoidentificación, a la consulta y a la participación, y el derecho

a decidir sus proprias prioridades [...].


138
PAINEL 5
Legislação escolar indígena

• a sanção da Lei de Diretrizes e Bases da Educa- res “serão planejados com a audiência das comu-



ção Nacional (Lei nº 9.394/96), em que se esta- nidades indígenas” (art. 79, § 1º – grifo meu). Isto



beleceram as normas específicas para a oferta é, coube às agências externas – governos, acade-


de educação escolar para os povos indígenas;


mias, conselhos – o planejamento dos programas


• a aprovação, na Comissão de Constituição e das escolas com a audiência indígena, e não o



Justiça do Senado Federal, em 6 de dezem- inverso: “as comunidades indígenas planejarão



bro de 2000, após oito anos de tramitação, seus programas com a audiência do poder pú-


da Disposição 169 da Organização Interna- blico, dos conselhos e da academia”. 139



cional do Trabalho, estabelecendo os direi- Dessa forma, a atual legislação deixou de


tos dos povos indígenas e tribais (PIT), entre


contemplar duas premissas fundamentais para


eles o da Educação Escolar Indígena em to-


a superação do modelo escolar integracionista,


dos os níveis e nas mesmas condições que o
quais sejam, a da iniciativa e a do controle das


restante da comunidade nacional.


sociedades indígenas sobre o processo de con-



ceber, planejar, executar e gerir os seus progra-


Como vemos, nesta última década, multipli-


mas educacionais. Os índios permaneceram na


caram-se e aperfeiçoaram-se os instrumentos ju- qualidade de ouvintes, e não de propositores de



rídicos e administrativos concernentes à criação, suas próprias políticas. Continuaram sendo

à implementação e ao reconhecimento das esco- expectadores, “atores coadjuvantes”, sem direi-


las indígenas. No entanto, as mudanças tiveram um


to de propor, sem direito de vetar, sem direito


alcance maior apenas nos aspectos operacionais e de outorgar os seus próprios direitos.

metodológicos e não parecem ter rompido total- Um segundo aspecto problemático desse

mente com o modelo conceitual anterior.


modelo de escola diz respeito à sua adjetivação


O paradigma da atual escola específica, dife- como “escola bilíngüe”.



renciada, bilíngüe e intercultural, isto é, da es- A primeira versão da escola bilíngüe propu-

cola adaptada formalmente à clientela, não se- nha assegurar “a transição progressiva da língua

ria a antiga escola colonial, agora fantasiada de


materna ou vernacular para a língua nacional ou


novos atributos? Ou seria de fato uma escola do para uma das línguas oficiais do país” (OIT, art.

“outro”, isto é, dirigida às populações indígenas? 23, inciso 2). Essa empreitada seria atribuída, no

E, nesse caso, qual será a matriz conceitual que Brasil, aos missionários lingüistas do Summer

a inspira? Onde se funda essa nova instituição?


Institute of Linguistics (SIL), por meio de uma


portaria da Funai (nº 75/72), que conferiu a essa



Admitindo a alteridade e agência norte-americana o status, o privilégio e



o foro “oficial” no que se tratasse de assuntos


tolerando a diferença

lingüísticos. Segundo o antropólogo Márcio Sil-


Como vimos, o projeto hegemônico das atuais va, a parceria entre o Estado e o SIL foi tamanha

escolas indígenas teve a sua origem associada à “que até mesmo as ferramentas analíticas desen-

Convenção 107 da OIT, que, há cinqüenta anos, volvidas pelos lingüistas do SIL passaram a figu-

redefiniu as relações internacionais do trabalho e rar nos documentos oficiais”.5


ensejou incorporar as populações do Terceiro As críticas ao “bilingüismo de transição” – e



Mundo ao projeto de desenvolvimento liberal. não a utilização regular de ambas as línguas –



Naquele movimento, a escola e os seus pro- não tardaram, afinal tratava-se da mais “repulsi-

gramas educacionais foram definidos anterior e va forma de etnocídio”. Mesmo assim, esse mo-

exteriormente à participação das sociedades in- delo perdurou por três décadas até que foi

dígenas. A mesma perspectiva foi explicitada na substituído por sua abordagem antagônica, aqui

atual LDB, ao propor que os programas escola- denominada de “bilingüismo compulsório”.








5
Cf. Silva, 1999: 10. Uma análise crítica acerca da atuação do SIL pode ser encontrada também em Barros (1993) e em outros trabalhos da autora.

Se antes o aprendizado dos alunos dirigia-se O mesmo ocorre com os dois adjetivos res-



no sentido de transitarem de uma situação tantes: as escolas indígenas devem ser específi-



monolíngüe em língua indígena para uma situ- cas e diferenciadas. Mais do que garantir novos



ação de falantes do Português, agora a situação avanços, esses “direitos compulsórios” ratificam


se inverteria. Propunha-se que o bilingüismo a histórica perspectiva discriminatória de



fosse uma característica inerente às escolas in- desqualificação das minorias étnicas e culturais.



dígenas, isto é, que essas fossem compulsoria- As escolas indígenas – como também as escolas


mente bilíngües. rurais, ribeirinhas e das favelas – devem ser es-



O documento Diretrizes para a Política Na- pecíficas e diferenciadas para “reproduzir os co-



cional de Educação Escolar Indígena, produzido nhecimentos próprios”, isto é, para reproduzir a



pelo Comitê de Educação Escolar Indígena do negação cultural, a negação identitária e a nega-


MEC e lançado em 1994, não deixou dúvidas: ção da cidadania, elementos que compõem a



essência do cotidiano de quem se sabe e se re-


A escola indígena tem que ser parte do sistema

conhece historicamente discriminado.

de educação de cada povo, na qual, ao mesmo ○
Talvez resida aí a razão da dificuldade de os
tempo em que assegura e fortalece a tradição e o

índios perceberem as escolas diferenciadas


modo de ser indígena, fortalecem-se os elemen-


como algo positivo para os seus projetos socie-


tos para uma relação positiva com outras socie-


dades [...]. Como decorrência da visão exposta, a tários. Como disse o líder xinguano Marawê

Educação Escolar Indígena tem que ser necessa- Kayabi, “Até agora só sabemos o que é diferencia-

do para pior e nunca para melhor”.


riamente específica e diferenciada, intercultural


e bilíngüe [grifos meus].


Será possível “regularizar”



Parece óbvio que essa formulação generalista


o específico e o diferenciado?

carece de sustentabilidade, embora não se ques-



tione a adoção do bilingüismo em situações Todos nós que atuamos no campo da Edu-

sociolingüísticas diglóssicas. O seu ponto críti-


cação Escolar Indígena, por certo, já nos depa-


co reside na formulação como modelo tipológico ramos com questionamentos para os quais não

obrigatório e único para as escolas indígenas. obtivemos uma resposta satisfatória.



Como se daria o tratamento bilíngüe em es- Relaciono a seguir alguns dos que ainda po-

colas cujos alunos indígenas se definem como


voam os meus pensamentos, na expectativa de


monolíngües? Ou, inversamente, como se faria a compartilhá-los com meus pares e, assim, qui-

opção por apenas duas línguas em situações de çá, construirmos um caminho mais seguro nes-

multilingüismo? São inúmeros os casos em que se terreno pantanoso.


“coexiste, em um mesmo contexto, mais de uma


O primeiro provém de uma indagação for-


língua indígena e os casos em que a língua indí- mulada por um professor Guarani por ocasião

gena é a própria língua nacional” (Silva, op. cit.: de uma etapa do curso de formação de profes-

13). Portanto, a escola verdadeiramente indígena sores em Amambaí/MS. Na ocasião, perguntou-


não é necessariamente bilíngüe, embora o me o professor: “Você poderia me dizer como a



bilingüismo possa ser atualmente recorrente em gente faz para regularizar uma escola, respeitan-

muitas escolas. Ora, mais do que uma “adjetivação do o específico e o diferenciado?” Pensando ter

emblemática” para as escolas indígenas, o ensino


entendido a sua pergunta, passei a expor os pro-


bilíngüe deveria constituir-se numa opção das cedimentos recomendados pela legislação etc.,

comunidades e, como tal, poderia compor ou não mas logo fui interrompido com uma observação:

o currículo e o cotidiano de suas escolas. Essa “Eu sei, eu sei, mas não é isso que eu preciso sa-

opção, porém, é mais uma vez subtraída das co-


ber. Eu preciso saber se uma escola indígena es-


munidades e impingida como um “direito obri- pecífica e diferenciada deve ter tudo o que está

gatório”. Mais uma vez, admite-se a diversidade e escrito nas Diretrizes, nos Referenciais, nos Pa-

domestica-se a diferença, sem, contudo, abrir râmetros, na Resolução nº 3. Se for preciso tudo

mão do direito de conceder direitos.


aquilo, acho que nunca teremos uma escola es-


140
PAINEL 5
Legislação escolar indígena

pecífica e diferenciada”. O professor Guarani co- culada aos municípios. A administração estadu-



loca-nos o seguinte problema: como regularizar al não tem intenção de assumir diretamente as



as escolas sem “disciplinar” a diferença? Seria escolas indígenas e está propondo a consolida-



pelo caminho dos adjetivos formalizantes? ção do Sistema Único de Educação Básica pre-


A segunda indagação tem por nascedouro conizado pela LDB, mas não previsto na Resolu-



uma pergunta formulada por um professor ção nº 3. Nesse contexto, perguntou-se como



Parintintim quando se debatia a Resolução nº 3 proceder para que as escolas indígenas não se-


da CEB/CNE, no curso de formação de professo- jam prejudicadas em termos de recursos, acom- 141



res do Alto Rio Madeira. Depois de superar a difi- panhamento, concursos, carreira, serviços etc.6



culdade de entender a diferença entre “ano civil” Por essa breve amostra, percebe-se que ain-



e “ano letivo”, um professor perguntou aos cole- da perdura – se não se amplia – a necessidade de


gas: “Mas se a minha comunidade resolver que o “normatização” das escolas indígenas, não



nosso ano letivo deva durar cinco anos, será que obstante as diretrizes, parâmetros, referencial,



pode?”. Após algum debate, quase todos profes- resoluções etc. Grande parte dessa normatização



sores concordaram que poderia. Então o profes- seria desnecessária, creio, se mudássemos o es-


sor perguntou: “Mas o meu pagamento vai ser pectro de nosso olhar e desistíssemos de ideali-



pelo ano letivo ou pelo ano civil?” Ninguém sou- zar um único protótipo de escola diferenciada.

be formular uma resposta que convencesse o pre- Creio que uma política pública de Educação

feito ou o secretário de Educação a pagar o mes- Escolar Indígena deva apoiar-se em outras ba-

mo salário ao professor indígena cujo calendário ses que não a normatização da diferença e a su-

escolar coincide com o ano civil e ao outro que pressão da alteridade. Elas materializam o dis-

“demora” cinco anos para concluir um ano letivo. curso e a prática de um direito concedido e de

A última indagação veio do curso de formação uma cidadania conferida e, portanto, tornam-se

dos professores Xinguano após a conclusão dos veículos de dominação e de imposição.



estudos sobre o tema “Legislação”, em que nos de- Uma política pública de educação deve nas-

bruçamos – literalmente – sobre textos da legisla- cer dos professores, das lideranças e das comu-

ção estadual de Mato Grosso, que tratavam da car- nidades indígenas e por elas ser controlada. Mas

reira do Magistério, de concurso público, do siste- isso não significa que o poder público, as insti-

ma único, dos sistemas próprios, essas coisas. Após tuições acadêmicas e a sociedade civil em geral

uma semana de estudos, os professores chegaram devem ignorá-la ou eximir-se de sua responsa-

a algumas dúvidas, que pretendo compartilhar bilidade. Ao contrário, cabe-lhes, conjuntamen-



também com vocês. A primeira diz respeito à legi- te, discuti-la, consolidá-la, viabilizá-la, e não

timidade de se “exonerar” um professor indígena apenas implementá-la enquanto tal, o que su-

quando não há consenso entre o poder público e a põe uma estratégia de ação, que pode expressar-

comunidade escolar: o poder público pode exone- se pelos seguintes princípios fundantes:

rar um professor indígena à revelia da comunida- • a garantia da participação indígena em to-



de? Ou a comunidade pode “exonerar” um profes- das as etapas de elaboração, execução e ava-

liação dos programas;


sor concursado à revelia do poder público?


A segunda questão trata das condições de os


• o reconhecimento da legitimidade de insti-


municípios cooperarem com os estados na ofer- tuição parceira por meio da avaliação e da

ta de educação escolar, especialmente na exigên- avalização dos povos ou comunidades indí-


genas com as quais cada instituição atua;


cia de constituírem sistemas próprios. Em Mato


Grosso, por exemplo, apenas três municípios


• a apresentação e a aprovação dos programas


estão constituídos em sistemas próprios, ainda educacionais pelo Conselho de Educação



que a maioria das escolas indígenas esteja vin- Escolar Indígena do Estado de Mato Grosso





6
Até esta data, não obtivemos resposta à consulta formulada ao Conselho Nacional de Educação sobre a aplicação da Resolução nº 3 em

estados que constituírem o Sistema Único de Educação Básica.



(CEI/MT), fórum interinstitucional e pari- Bibliografia



tário composto por instituições e represen-


ARRUDA, Rinaldo S. Vieira. Os Rikbaktsa: mudança e tradi-


tantes indígenas;


ção. 1992. Tese (Doutorado). Programa de Pós-Graduação


• a manutenção de vínculo permanente entre em Ciências Sociais. São Paulo, PUC-SP.


BARROS, Maria Cândida D. Lingüística missionária: o Summer


as atividades escolares e as demais iniciati-


Institute of Linguistics. 1993. Tese (Doutorado). Unicamp.
vas do campo da saúde, da regularização


Campinas.


fundiária e da economia indígena;


BATALLA, Guillermo Bonfil. La teoria del control cultural en el


estudio de procesos étnicos., Papeles de la Casa Chata.
• a compatibilização dos programas escolares


Ciudad de México, año 2, n. 3, 1987.


com o calendário sociocultural das socieda-


BRAND, Antonio. Autonomia e globalização, temas fundamen-


des indígenas; tais no debate sobre Educação Escolar Indígena no con-


texto do Mercosul. In: PRIMEIRO ENCONTRO DE EDU-


• o compromisso da continuidade e termina-


CAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA DA AMÉRICA LATINA.


lidade dos trabalhos e da manutenção de 1988, Dourados/MS. Anais... Dourados/MS, 1998.


equipes técnicas aptas a acompanhar as CONSELHO DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA DO ES-


ações de Educação Escolar Indígena desen- TADO DE MATO GROSSO. Urucum, jenipapo e giz: a Edu-

cação Escolar Indígena em debate. Cuiabá/MT: Seduc,


volvidas no estado sob a coordenação da Se-


1997.
cretaria de Educação;

FRANCHETTO, Bruna. O papel da educação escolar no pro-


cesso de domesticação das línguas indígenas pela escrita.


• a escolha do Conselho de Educação Escolar


In: POPULAÇÕES INDÍGENAS, EDUCAÇÃO E CIDADA-


Indígena do Estado de Mato Grosso (CEI/ NIA (Mesa-redonda). São Luís: 47ª SBPC, 1995.

MT) como foro privilegiado para dirimir dú-


GRUPIONI, Luís Donisete B. De alternativo a oficial: sobre a


vidas e controvérsias relativas à educação (im)possibilidade da educação escolar indígena no Brasil.


escolar. In: 10º COLE. 1995, Campinas/SP. Anais... Campinas:



Unicamp, 1995.

Para concluir, estendo essa reflexão para IANNI, Octávio. Novo paradigma das ciências sociais. In: Estu-

além da temática da Educação Escolar Indígena dos Avançados, São Paulo, v. 8, n. 21, 1994.

INSTITUTO NACIONAL DE ESTUDOS E PESQUISAS EDU-


e me atenho especificamente aos contornos das

CACIONAIS. Tema: Educação Escolar Indígena. Brasília:


atuais políticas públicas no Brasil.


Inep/MEC: 1994.

Como nos ensina Octavio Ianni, as políti- MELIÀ, Bartomeu. Ação pedagógica e alteridade: por uma pe-

cas públicas equacionam-se pela conjugação dagogia da diferença. Cadernos de educação básica (série

institucional), Brasília, v. 2, 1993.


de três elementos fundamentais, que ordenam

MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. Secretaria de Educação Fun-


as relações entre o Estado e os cidadãos: a na-


damental. Diretrizes para a política nacional de Educação


tureza, o alcance e o conteúdo das ações pro- Escolar Indígena. Brasília, 1993 (Cadernos de Educação

postas; as formas de decisão e de atuação po- Básica, v. 2).



MUÑOZ, Héctor. Política pública y educación indígena


lítica; e a disposição e a capacidade de com-

escolarizada en America Latina. In: SECCHI, D. (Org.).


posição com as organizações da sociedade ci-


Ameríndia – tecendo os caminhos da Educação Escolar


vil, sejam elas propositivas, reivindicatórias ou Indígena. Cuiabá/MT: Seduc/CEIMT/CAIEMT, 1998.


de contestação. ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO. Pueblos



indígenas y tribales: guía para la aplicación del convenio n.


Portanto, uma política de educação esco-

169 de la OIT. Genebra: OIT, 1996.


lar que se pretenda convergente com os inte-


RICARDO, Carlos Alberto. Os índios e a sociodiversidade nati-


resses de sua clientela não poderá descon- va contemporânea no Brasil. In: LOPES DA SILVA, Aracy;

siderar essa conjugação. No caso específico da GRUPIONI, Luís Donisete B. A temática indígena na esco-

la. Brasília: MEC/Mari/Unesco, 1995.


Educação Escolar Indígena, implica, entre ou-

SECCHI, Darci. Diagnóstico da Educação Escolar Indígena em


tras iniciativas, um permanente exercício de Mato Grosso. Cuiabá/MT: PNUD/Prodeagro, 1995. (Mimeo).

negociações, cooperações, parcerias etc. Sem . (Org.). Ameríndia – tecendo os caminhos da


esses exercícios, não acredito ser possível o Educação Escolar Indígena. Cuiabá/MT: Seduc/CEIMT/

CAIEMT, 1998.
exercício do controle indígena sobre as suas

SILVA, Márcio F. da. Educação e sociedades indígenas; subsí-


escolas. E, como já foi dito antes, normatização dios aos projetos demonstrativos para populações indíge-

não é sinônimo de adequação. Para ser uma nas. São Paulo: FFLHC/USP, 1999.

boa escola indígena, é preciso antes que ela SILVA, M.; AZEVEDO, M. Diretrizes para a política de Educa-

ção Escolar Indígena. Brasília: MEC, 1994.


seja indígena.

142
PAINEL 5
Legislação escolar indígena

Legislação em Educação




Escolar Indígena





Vilmar Guarani



Funai




143




Resumo





genas elaborados com a participação ativa dos in-


Este resumo apresenta alguns enfoques da le-


gislação em Educação Escolar Indígena: dígenas e de suas organizações para que o Estado



Enfoque histórico. Visa a demonstrar a reali- brasileiro passasse a adotar uma posição mais aber-


ta em prol dos direitos indígenas. Ainda, no aspec-


dade da Educação Escolar Indígena em sua primei-


ra fase na história do Brasil, bem como no passado to da atualidade, buscar-se-á compreender a ques-



recente, nos moldes da legislação então vigente, tão da coexistência entre o Estado brasileiro e as

com as suas características integracionista e ○



culturas diversas representadas nos mais de 200
assimilacionista. povos indígenas, com seus usos, costumes, línguas,

crenças e tradições, e a importância da Educação


Enfoque atual. Desenvolvemos um relato so-


bre a legislação, observando principalmente a Lei Escolar Indígena como um dos direitos coletivos

nº 6.001/73, o Estatuto do Índio, a Constituição Fe- dos povos indígenas.


Enfoque da perspectiva. Discute a questão


deral, decretos, portaria interministerial, a Lei de


Diretrizes e Bases e o Plano Nacional de Educação, da Educação Escolar Indígena no Projeto de Lei

entre outras. Veremos, ainda, os instrumentos in- nº 2.057/91 e a da aplicabilidade da legislação em


vigor e outras possibilidades.


ternacionais de defesa e interesses dos povos indí-












































P AINEL 6

OS ETNOCONHECIMENTOS
NA ESCOLA INDÍGENA
Carlos Alfredo Argüello

José Augusto Laranjeiras Sampaio

Roseli de Alvarenga Corrêa

145
Etnoconhecimento na Escola Indígena





Carlos Alfredo Argüello*



Unicamp – Unemat






Resumo


cartesiano, o reducionismo mecanicista, a


disciplinaridade, traz implícita a idéia ou princí-



pios do progresso, a escrita, o cálculo, a teoria, o


O etnoconhecimento é peça fundamental na


nossa proposta de construção de uma escola indíge- acúmulo, o consumismo, a competição e, apesar



na que seja algo mais que uma escola de brancos pen- de propiciar a utilização dos meios globais de in-


sada para índios. Propomos uma escola que incor- formação, ignora o seu entorno imediato, ignora



pore o saber dos anciãos, as características da educa- o conteúdo cultural dos seus alunos e familiares


ção indígena ancestral, integrada à comunidade, e e tende a uma padronização estéril.

que resgate da escola do branco os saberes necessá- As correções de rumo, necessárias, foram re-

rios a seu empowerment e à prática da educação alizadas dentro do marco da pulverização disci-

libertadora. plinar e do apelo a tendências para as quais nem



os professores nem as escolas estão preparados:


O dicionário Aurélio traz como primeira transdisciplinaridade e visões estreitas de



acepção da palavra “escola”: “estabelecimento ambientalismo.



público ou privado no qual se ministra, sistema-



ticamente, ensino coletivo”.


Escola indígena

“Estabelecimento de ensino coletivo” pressu-



põe alguns professores, muitos alunos, em local A escola como uma estrutura humana,

determinado. A escola indígena tem o direito le- conceitual, onde se aprende, sempre esteve pre-

sente na Educação Indígena, mas não propicia um


gal de ser uma escola diferenciada. Isso lhe con-


fere um grau de liberdade para organizar os seus ensino coletivo, e sim uma educação artesanal,

currículos, administrar os seus horários e a pos- preceptoral, individualizada, contextualizada e na



sibilidade de organização bilíngüe com direito a qual se fomenta o fazer. Professores são a família,

e a família estendida.

alfabetização na primeira língua etc.


A escola indígena é responsabilidade última Essa escola, baseada na oralidade e na práti-



das prefeituras e dos estados e tem que se enqua- ca exaustiva, não pressupõe competitividade, não

drar nas diretrizes de orientações básicas educa- é dividida em disciplinas e predispõe o


afloramento do pensamento complexo.


cionais da Federação.

A tendência geral hoje é de que os professo- No momento, essa escola está em perigo de

res das escolas indígenas sejam índios e, priorita- extinção. O recente aparecimento da figura do jo-

riamente, pertençam à mesma etnia dos alunos. vem professor índio assalariado cria outras instân-

cias de poder, saber, comunicação e liderança que


Mesmo assim, a escola indígena é a escola do


branco para o índio. É a mesma escola que o bran- perturbam a estrutura ancestral (Bandeira, 1997).

co pensou para ele, mas a serviço do índio. Essa Os anciões, os sábios, os antigos mestres sentem-

escola possuirá, então, muitos dos defeitos que se ignorantes diante dos avanços da “Nova Educa-

ção” propiciada pela “Escola para Índios”.


possui a escola do branco, a que está ligada gene-


ticamente, com alguns deles apenas suavizados Passo a relatar duas experiências, duas situa-

pelo direito à diferenciação. ções vividas em locais completamente diferentes



A escola do branco prestigia o pensamento e distantes.







* Coordenador da Área de Ciências Matemáticas e da Natureza das licenciaturas para professores indígenas da Unemat.

146
PAINEL 6
Os etnoconhecimentos na escola indígena

Uma, na escola das etnias Baníwa-Coripaco, Os cursos são ministrados em etapas intensi-



às margens do rio Içana, afluente do rio Negro, vas, no campus de Barra do Bugres, MT, para 200



nas terras indígenas do Alto Rio Negro, estado do professores índios de 35 etnias diferentes.



Amazonas, perto da fronteira com a Colômbia, em Nas etapas intermediárias, o professor índio,


meados do ano 2000. enquanto leciona na sua escola, realiza tarefas,



A outra, na etapa de preparação das ativi- trabalhos e pesquisas ligadas ao seu curso univer-



dades dos cursos de licenciatura para profes- sitário. Também recebe em sua aldeia, na sua es-


sores indígenas, no campus de Barra do Bugres cola, a visita e a orientação da equipe de profes- 147



da Universidade Estadual de Mato Grosso, em sores do curso (docentes), que, desse modo, tam-



maio de 2001. bém interagem com a comunidade.



Em ambas as ocasiões, antigas lideranças in- O trabalho, nessa etapa intermediária, visa a


dígenas, sábios anciões fizeram discursos pareci- resgatar, para a escola, os conhecimentos ances-



dos, solicitando publicamente que instruíssemos trais indígenas, valorizar os detentores dos dife-



os jovens professores das suas etnias, para que es- rentes saberes, diminuir a separação entre escola



tes não fossem tão ignorantes como eles. Mas não e comunidade, permitir a docentes e professores


são esses anciões os detentores do conhecimento indígenas um conhecimento melhor da realida-



indígena que nenhum deles, enquanto tal, deve de nas aldeias e escolas e o diálogo direto com a

ignorar? Não são eles os detentores do que a aca- comunidade.



demia chama de etnoconhecimentos? Não são eles Nesses momentos, o olho atento e treinado

os que conhecem os segredos da mata, dos rios, do docente poderá detectar, na comunidade, sa-

dos animais, os que curam as doenças, os que co- beres, valores, práticas que poderão ser objeto de

nhecem os segredos do céu, conhecem o calendá- estudo sistematizado com a finalidade de sua in-

rio astronômico que rege, na Terra, as chuvas, as corporação escolar. Por exemplo, junto com as

migrações das aves, as piracemas, as enchentes, o professoras Marta Azevedo e Judite Albuquerque,

tempo certo de plantar? Não são eles os que co- realizamos na Escola Paanhali, no rio Içana, no

nhecem os rituais, as danças, as cerimônias, os que Amazonas, da etnia Baníwa, um trabalho de res-

falam com os deuses? Não são eles que conhecem gate, com os professores da escola, do calendário

o segredo da caça e são os melhores artesãos? astronômico Baníwa. Trouxemos para as discus-

Quem destruiu a sua auto-estima, quem mo- sões vários “anciões”, que deram sua importante

dificou os seus valores de julgamento? Não será a contribuição.


escola evangelizadora que os queria cristãos? Não Em etapa posterior, reunimo-nos em São

será a escola integracionista que os queria inte- Gabriel da Cachoeira, AM, com alguns desses pro-

grados, indiferenciados? Não serão as diferentes fessores indígenas e mais cinco anciões. Trabalha-

escolas que os queriam tratoristas, cortadores de mos durante vários dias, até estabelecermos, em

cana, engrenagens microscópicas na grande má- forma definitiva, um calendário natural circular

quina da economia branca? Não estará também e um calendário astronômico explicados em



a escola indígena, na sua versão “Escola para Ín- Baníwa e em Português.



dios”, prestigiando em demasia os conhecimen- Da riqueza do calendário natural, surgiram


tos e a cultura do branco em detrimento das pró- muitos importantes ensinamentos, como, por

prias culturas? exemplo, o equilíbrio ecológico presa/predador



Quero citar uma experiência que está no co- na sua versão indígena, as constelações Baníwa

meço e irá frutificar somente dentro de cinco foram “traduzidas” para as constelações acadêmi-

anos. Espero então, daqui a cinco anos, poder ter cas e vice-versa, possibilitando o diálogo intelec-

a oportunidade de informar e prestar contas. tual e a motivação para seguir estudando o céu,

É nosso trabalho formar professores indíge- os fenômenos astronômicos, climáticos etc., si-

nas no 3o grau, licenciados em várias áreas do co- multaneamente, a partir dos diversos olhares.

nhecimento. Coube-me a delicada tarefa de co- É interessante comentar que a introdução do



ordenar a área de Ciências dessas licenciaturas di- computador e um programa de simulação do céu

ferenciadas. encantaram os mais velhos, que, em pouco tem-



po, foram capazes de utilizar esse novo instru- interculturais servirá para ampliar o mundo comum



mento sem constrangimento nenhum. Cito essa a ambos, num processo cuja meta ideal, mas im-



passagem como um exemplo de saberes comple- possível, seja a união desses mundos individuais.



mentares. É nossa intenção que a escola seja o espaço


Nossa proposta é incorporar, nas atividades da dialógico para a ação mediatizadora. Note-se que



escola, a comunidade, os velhos mestres, seus sa- essa iniciativa transborda os limites da educação



beres e ensinamentos, os conhecimentos tribais, em geral, que irá se beneficiar, sem dúvida, da


enfim, derrubar os muros1 que a escola do branco experiência indígena na educação. Parafrasean-



possui e que a separam da comunidade e da reali- do Bartomeu Melià (1998), “Não há um proble-



dade que a rodeia, o que a escola para índios, como ma de Educação Indígena, há soluções indígenas



citei anteriormente, herdou em algum grau. ao problema da educação”.


Em contrapartida vejo a escola para índios A abertura de 200 vagas para os cursos de li-



como uma forma de “potencialização” ao estilo cenciaturas, reservadas aos professores indígenas,



freiriano. Segundo Paulo Freire, potencialização, equivaleriam, na população brasileira, à abertu-


ou empowerment, é um processo que “permite ao ○
ra de aproximadamente 100 mil vagas, resguar-
estudante interrogar e, seletivamente, se apropri- dando as proporções populacionais.

ar daqueles aspectos da cultura dominante, que A necessidade de construir o seu próprio ma-

vão lhe prover as bases para novas definições e terial didático, os textos, os equipamentos, em

transformações, em vez de meramente servir à constante diálogo com a realidade em volta, in-

ampla ordem social estabelecida”. cluindo a pobreza, é um desafio que, uma vez ven-

Continuando com Paulo Freire, nosso grande cido, como tudo leva a pensar que o será, consti-

mestre, gostaria de citar, da Pedagogia do opri- tuir-se-á em modelo a ser seguido por outras ins-

mido, a seguinte afirmação: “Ninguém educa nin- tâncias fora da Educação Indígena.

guém. Ninguém educa a si mesmo. Os homens se A revalorização da escola, de uma escola cul-

educam entre si mediatizados pelo mundo!” turalmente comprometida, mas aceitando a pers-

Comentar essa sentença inspiradora ocuparia pectiva de Educação Libertadora, poderá servir de

horas, mas vamos nos perguntar tão-somente: modelo a outras minorias, movimentos sociais e,

Qual é esse mundo mediatizador? Intermediador? basicamente, à escola tradicional, qualquer que

Existem tantos mundos como pessoas há. A seja o nível econômico dos seus alunos, para que,

experiência de vida da pessoa constrói o seu mun- engajada social, crítica e construtivamente, torne-

do, e as comunidades étnicas mais ou menos iso- se uma solução e deixe de ser um problema.

ladas, culturalmente definidas, produzem mun-



dos individuais com alto grau de semelhanças.



Poderíamos, simplificando, então idealizar um


mundo “padrão” étnico ou tribal.


Bibliografia

Mas o mundo do professor indígena é aber-



to a outras experiências e visões de mundo? E o


BANDEIRA, Maria de Lourdes. Formação de professores


mundo do professor de professores indígenas? índios: limites e possibilidades. In: CONSELHO DE


Como se pode conceber ou construir um mun-


EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA DE MATO GROS-


do mediatizador? SO. Urucum, jenipapo e giz: Educação Escolar Indíge-



Na nossa tradição educacional, a escola desco- na em debate. Cuiabá/MT: Seduc, 1997.


FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz


nhece e ignora o processo de mediatização por


e Terra, 2002.
mundos que nem sequer ensinam a ler. Será neces-

FREIRE, Paulo; MACEDO, Donaldo. Alfabetização: leitura


sário que, entre os mundos a dialogar, exista uma


do mundo, leitura da palavra. São Paulo: Paz e Terra,


interseção que gere o mundo comum, que será o 1990.



mediatizador. Então, o diálogo de características MELIÀ, Bartomeu. Ameríndia . Cuiabá/MT, 1998.






1
Ver Ciranda das Ciências – A Ciência na Escola: Palestra “A escola sem muros”.

148
PAINEL 6
Os etnoconhecimentos na escola indígena

O “resgate cultural” como valor:




reflexões sobre experiências de um




antropólogo militante em




programas de formação de




professores indígenas no Nordeste 149




e em Minas Gerais





José Augusto Laranjeiras Sampaio



Associação Nacional de Ação Indigenista (Anai) – Universidade do Estado da Bahia (Uneb)






Tomo como ponto de partida para essas re- sões de “autenticação” dos ditos valores por


flexões a idéia de que a Educação Escolar In- parte do pólo dominado.

dígena, concebida como “específica” e “dife- Assim, em uma palavra, cabe indagar

renciada”, como a pretendemos e a buscamos como, nesses diálogos e nessas disputas,


construir, não deixa de inscrever-se em um sabidamente desiguais, e por meio de que ca-

campo intersocietário de diálogos e de dispu- nais de poder e de que recursos simbólicos se



tas políticas e simbólicas. produzem e se legitimam, para todo o campo



Nesse campo, as próprias idéias de “dife- da Educação Escolar Indígena – e mesmo para

rença”, de “especificidade” e outras do gênero mais além dele –, as definições do que sejam

aparecem como valores, como objetivos a se- especificidade e diversidade culturais indíge-

rem alcançados e garantidos e, também, exi- nas e do que podem essas, enfim, estar a sig-

bidos e realçados. nificar para cada um dos pólos e no contexto


Aqui, a “cultura indígena” aparece como o da relação entre esses.



domínio social por excelência, por meio do Pretendo aqui demonstrar, com base em

qual tais valores se expressam, e a “escola in- minha própria experiência em programas de

dígena”, como a via institucional para a sua formação de professores indígenas, como a so-

formalização e reprodução. ciedade nacional imprime, por meio sobretu-



Mas, sendo o campo da Educação Escolar do de seus agentes diretamente engajados no



Indígena necessariamente intersocietário e, campo da Educação Escolar Indígena (profes-



mais que isso, definido pela presença, por um sores formadores, agentes administrativos

lado, de um pólo dominante, o da sociedade etc.), as suas próprias concepções de “cultura



nacional, “doador” e “prestador” de bens e indígena”, “especificidade cultural” etc. e como



serviços – formação de professores, infra-es- o pólo indígena tende a dialogar com tais con-

trutura, material didático, salários, alimentos cepções, a reproduzi-las ou a contrapô-las.


etc. –, e, por outro, de um pólo “receptor”, o Ao ser convidado para participar, como an-

das sociedades indígenas, não se deve supor tropólogo “especialista” em povo Pataxó, do

que os valores e conceitos caros ao campo, Programa de Implantação de Escolas Indíge-



como “diferença”, “especificidade” e “cultura”, nas em Minas Gerais, descobri que uma das de-

produzam-se e legitimem-se à margem dos mandas, talvez a mais importante delas,



diálogos e disputas políticos e simbólicos ine- dirigida a mim e a alguns outros colegas – e

rentes ao campo, sem que, sobre eles, impri- não infreqüente em circunstâncias semelhan-

mam-se as marcas ideológicas do pólo domi- tes que eu próprio teria oportunidade de vir a

nante, ainda que tais diálogos e disputas re- novamente vivenciar – por parte tanto de pro-

queiram, formal e necessariamente, expres- fessores indígenas em formação, quanto de



muitos dos responsáveis por essa formação, prias às autopercepções de sua própria socie-



dizia respeito à minha possível contribuição dade, permanecendo, pois, etnocêntrica e dis-



em um processo percebido como necessário às tante da produção de um real diálogo cultural



ditas formação de professores e implantação com as posições indígenas.


de escolas diferenciadas, claramente definido Na modalidade “positivada” das concep-



por todas as personagens presentes no campo ções etnocêntricas de “culturas indígenas”, as



como “resgate cultural”. oposições anteriormente referidas dão lugar


Em que consistiria, então, o “resgate cul- a outras nas quais tais “culturas” assumem,



tural” sobre o qual se esperava que pudésse- em relação à cultura de ego, o pólo “favorá-



mos, eu e outros antropólogos, percebidos vel”, como em autenticidade cultural x dege-



como “especialistas” em “culturas indígenas”, neração da cultura por colonialismo cultural,


intervir favoravelmente? cultura de massa ou globalização; harmonia



Antes de tentar responder a essa questão, com a natureza x exploração predatória do



cabem aqui duas digressões: uma, relativa a ambiente; igualitarismo, amor ao próximo e


como a sociedade brasileira vem reproduzin- ○
altruísmo x desigualdade social, individualis-
do suas concepções a respeito de idéias como mo e competitividade desumana; sabedoria

“diferença e especificidade culturais” indíge- milenar x futilidades e modismos; vida sau-



nas, de larga aplicação e de eficácia simbólica dável em ambiente “natural”, “mata” x vida

bastante perceptível, hoje, no campo da Edu- insalubre em ambiente citadino, poluído; vida

cação Escolar Indígena; e a segunda, relativa a espiritual rica x pragmatismo materialista;



como essa mesma sociedade e seus agentes etnoconhecimentos x cientificismo estéril etc.

diretos, no dito campo, tendem a perceber a Ao produzir tais oposições, o pensamento


configuração histórica e social tida como típi- dos agentes do pólo dominante, longe de ha-

ca da maioria das sociedades indígenas con- bilitar-se à compreensão e ao diálogo com o



temporâneas em áreas como aquelas em que pólo dominado, apenas projeta sobre este,

tenho trabalhado, em estados do Nordeste e idealizando-o, a própria “má consciência” de


em Minas Gerais. si mesmo.



No que diz respeito à primeira considera- Nessa modalidade, o pólo “autêntico” é



ção, sabe-se que não é difícil à maioria dos percebido como idealmente vivido em uma

agentes da sociedade nacional ora engajados condição de quase “encantamento”, à qual toda

na implantação e na garantia de sistemas di- aproximação do pólo “degenerado” é percebi-



ferenciados de Educação Escolar Indígena per- da como “contaminação”, “deturpação”,



ceber, de modo crítico, as clássicas visões “corrupção” e “ameaça cultural”.



etnocêntricas que negativizam a cultura do in- Aqui, os índices de maior ou menor “auten-

dígena em relação à de ego, por meio de opo- ticidade”, vale dizer, de maiores ou menores

sições, como “preguiçoso” x “trabalhador”, “pri- “taxas” de “diversidade cultural”, medem-se



mitivo” x “civilizado”, “atrasado” x “desenvol- sempre por graus de afastamento do que se



vido”, “fetichista” ou “infiel” x “temente a percebe como sendo os domínios culturais do


Deus”, e muitas outras, que tendem mesmo a pólo “corruptor”.



aproximar a condição indígena à bestialidade É evidente que os sinais diacríticos da “di-



e a das sociedades civilizadas ou ocidentais à versidade” ou da “autenticidade” – poder-se-



própria plenitude da condição humana. ia dizer mesmo da “pureza” – culturais são se-

Por outro lado, ao abandonar tais visões lecionados de acordo com os próprios critéri-

para transpor-se a outras tendentes a valorar os de “diferença” e de “cultura” próprios ao



positivamente “culturas indígenas” e sua “di- pólo dominante.



versidade”, a consciência crítica de agentes da Assim se reproduz a clássica imagem de ín-


sociedade nacional dificilmente percebe estar dio – nu, forte, emplumado e cercado de vege-

com freqüência, ainda assim, arraigada a vi- tação luxuriante – tão cara à nossa consciên-

sões de “cultura” e de “diferença” muito pró- cia nacional, desde, pelo menos, o Peri, de José

150
PAINEL 6
Os etnoconhecimentos na escola indígena

de Alencar, continuamente atualizado, inclu- muito menos “especificidades” e “diferenças”



sive em personagens “reais” de nossa mídia como algo factível de se produzir em proces-



contemporânea, ao cacique Metuktire Raoni. sos sociais de intensa inter-relação cultural e



Em suma, são nos sinais diacríticos de “di- simbólica entre os grupos “diferenciados”, e


ferença cultural” cuidadosa e interessa- não necessariamente o contrário.



damente selecionados pela consciência naci- Assim, um tal modelo não consegue pro-



onal e por grupos organizados de seus agentes duzir a respeito de tais sociedades indígenas


que os projetam, em função de suas próprias nada mais do que o que se poderia chamar de 151



necessidades ideológicas de distinção interna uma “visão lacunar”, por meio da qual essas são



ou externa, positiva ou negativamente, sobre percebidas apenas como “sociedades da au-



as sociedades indígenas, em que parecem, em sência” ou “sociedades da perda”. Aqui, vê-se


princípio, residir as ditas concepções de “es- nelas não o que elas “são” ou o que elas “têm”,



pecificidade” e de “cultura” indígenas domi- mas sempre o que elas teriam “deixado de ser”



nantemente presentes no campo da Educação ou “deixado de ter”, o que teriam “perdido”, que



Escolar Indígena. é, invariável e genericamente, qualificado


Quanto à segunda digressão, quero assina- como tendo sido “a cultura”.



lar que é justamente no contexto ideológico re- Não é preciso enfatizar muito que, aqui,

ferido que se deve buscar a inscrição da per- “culturas” não são percebidas como conjun-

cepção que tem a consciência de tais grupos tos semânticos resultantes de processos so-

de agentes da sociedade nacional a respeito de ciais históricos, vale dizer necessariamente



sociedades indígenas imersas em segmentos dinâmicos, mutáveis, mas como algo dotado

sociais regionais com longo tempo de consti- de certa “substância original”, perceptível em

tuição histórica por processos de colonização “traços” ou “elementos” culturais bastante



de origem européia e capitalista. “palpáveis”, como “a língua”, “os rituais”, “os



Em que pese o que poderia ser percebido conhecimentos tradicionais”, consubstan-



como inestimáveis signos de “especificidade ciados em visões próprias ou “etnoconheci-


cultural” dessas sociedades, em seus ricos e mentos”, costumeiramente associados às nos-



não raros intensos processos de produção e re- sas próprias ciências, em especial às “da na-

produção, invenção ou reinvenção de suas pró- tureza”, da Botânica à Astronomia.



prias identidades e de seus ordenamentos so- Ora, se sociedades indígenas, como a mai-

ciais internos com relação à sociedade envol- oria das do Nordeste e de Minas Gerais, são

vente, a dita consciência nacional tende, em percebidas como “sociedades da falta”, e se os



função da imersão ou interpelação mais estrei- processos históricos que, de fato, constituí-

ta dessas sociedades com segmentos sociais ram-nas são, inversamente, tratados apenas

regionais, a percebê-las apenas como resulta- como “processos de perda”, de “perda da cul-

dos de processos de “corrupção” sociocultural, tura”, não será difícil deduzir qual seja a idéia

ou como “vítimas” do que costumam definir de “resgate cultural” presente em um tal mo-

como “aculturação”. delo ideológico, bem como nas concepções de


Em síntese, em um modelo ideológico que Educação Escolar Indígena dele derivadas.



concebe “as verdadeiras culturas indígenas” Também não é difícil imaginar o que, em

como estados de “encantamento”, de “pureza”, tais circunstâncias, supõe-se que se possa es-

resultantes de isolamento, devendo ser, pois, perar do antropólogo, ou seja, daquele que é

idealmente, imutáveis, e no qual a “especifici- entendido como o especialista no conheci-



dade” e a “diversidade” são funções desse mes- mento de “culturas” e, portanto, como alguém

mo distanciamento do “contágio” com outros possivelmente apto a, por seus estudos, desen-

sistemas culturais, ou do que se costuma defi- volver artes capazes de trazer de volta à “cul-

nir como “preservação da cultura”, não pode tura indígena” a sua “substância” perdida.

mesmo haver lugar para que se percebam cul- Penso que, no âmbito da concepção de cul-

turas como resultantes de processos históricos, tura inerente ao modelo ideológico tratado, a

idéia de “resgate cultural” pode ser percebida indígenas que conheci, ainda como



como uma espécie de proposição de anulação ingressantes em programas de formação “es-



da história, um procedimento pelo qual se po- pecífica” e “diferenciada”, a empreitada do “res-



deria, ao menos em parte, “devolver” às socie- gate cultural” parecia impor-se-lhes como um


dades indígenas a sua “essência” perdida e, no desafio e uma missão inquestionavelmente ne-



limite, fazê-las “retornar” ou “reviver” o seu es- cessários. Egressos, em sua imensa maioria, de



tado “original” de “encantamento” e de “ver- escolas regionais “indiferenciadas” ou daque-


dadeira” “diversidade”. las até recentemente mantidas pelo regime tu-



Não posso deixar de assinalar também, telar do indigenismo oficial e, enquanto tal, já



aqui, a presença de uma não infreqüente vi- percebidas por eles como agências de “destrui-



são, a um só tempo “piedosa” e “culpada”, da ção” de suas culturas, tinham incorporada uma


consciência nacional com relação às socieda- aguda consciência de seu papel como agentes



des indígenas. Ao dispormo-nos a apoiá-las em transformadores do sistema escolar até então



sua busca do “resgate cultural”, estaríamos vigente, mas sem disporem de uma perspecti-


também, a um só tempo, contribuindo para o ○
va crítica da idéia do “resgate cultural” que, ao
seu retorno a um estado perdido de autentici- contrário, lhes era apresentada, ainda que mui-

dade, solucionando, por um lado, o que ten- tas vezes sob formas bastante indiretas, como

demos a identificar como a causa de sua su- requisito indispensável à própria implementa-

posta inadaptação ou, mesmo, infelicidade e, ção de uma Educação Indígena de fato “espe-

por outro, expiando a nossa própria culpa se- cífica” e “diferenciada”.



cular pelas “perdas” que lhes causamos. Vê-se, então, assim, como curiosamente as

De fato, espero que possa estar claro que idéias de “especificidade” e de “diversidade”

não percebo aqui mais que a eloqüente expres- podem, de fato, vir a servir justamente ao seu

são de formas bastante perversas e etnocên- oposto, uma vez que o que se impõe pela de-

tricas de dominação simbólica – vale dizer manda por “resgate cultural” é, na realidade, a

“cultural” –, em que das sociedades indígenas adequação de sociedades indígenas de fato di-

são expropriadas suas imagens, ou auto-ima- ferenciadas a um padrão, a um estereótipo de



gens, e sua historicidade, e transmutadas, con- “cultura indígena” imposto pelo sistema ideo-

forme dito, em “sociedades da falta”, em fun- lógico dominante.



ção da manutenção e da reprodução, no âm- Se já não se concebe a educação escolar


bito da ideologia dominante, das concepções oferecida às sociedades indígenas como ins-

de “cultura” e de “diferença cultural” preva- trumento para a sua “necessária e inevitável”



lentes na sociedade nacional – e potencialmen- dissolução sociocultural na sociedade envol-



te abaláveis por uma compreensão histórica vente, ao se lhes autorizar, ao contrário, uma

mais adequada sobre muitas das sociedades educação “específica” e “diferenciada”, não se

indígenas contemporâneas – ou mesmo de deixa de se lhes impor, muitas vezes, até mes-

imagens críticas dessa mesma sociedade, ca- mo sem que se o perceba, a sua redução a um

ras a alguns de seus segmentos. ideal “cultural” “indígena” produzido e impos-


Para as sociedades indígenas em questão, to pela sociedade nacional, cujo imaginário



o “resgate cultural” tende, com freqüência, a tende a identificá-lo e aproximá-lo de algumas



ser percebido, como seria de se esperar em sociedades indígenas “reais”, como algumas da

caso de segmentos sociais subalternos às con- Amazônia.


cepções ideológicas dominantes, nos mesmos Opera aqui, então, um processo de domi-

termos dessas concepções, ou seja, como algo nação cultural no qual os índios são levados a

a ser perseguido dentro dos parâmetros de se tornarem, a um só tempo, vítimas e cúm-



uma idéia reificada de “cultura” e em função plices de seu “seqüestro simbólico”, ou, diria

de sua própria incorporação da “visão lacunar” melhor, a se tornarem verdadeiros “reféns”



que delas tem a consciência nacional. nesse “seqüestro”, no qual o “resgate” é de fato

Em especial, para muitos dos professores percebido como um necessário “preço a pagar”

152
PAINEL 6
Os etnoconhecimentos na escola indígena

pela obtenção de reconhecimentos à legitimi- “resgate da cultura” como o resgate de informa-



dade de seus pleitos, sobretudo pleitos por di- ções necessariamente históricas e, portanto, di-



reitos “diferenciados”. nâmicas, deixando, assim, de ser percebidas



Não saberia relatar com precisão como re- como referentes a uma suposta “cultura de ori-


agi, de início, às diversas formas sob as quais gem”, descontaminada de influências e livre de



se me apresentavam demandas por contribui- “perdas”.



ções em processos de “resgate cultural”. Diria De modo geral, um maior interesse de-


que tentava tratar “criticamente” tais deman- monstrado no conhecimento de suas históri- 153



das sem, contudo, dispor de argumentos ou de as não é, por si só, suficiente para pôr em ques-



outros meios capazes de eliminá-las ou, mui- tão algumas concepções dominantes, como,



to menos, de atendê-las. por exemplo, a de uma inquestionável conti-


É evidente também que não poderia, por nuidade histórica das atuais unidades sociais,



força apenas de minha própria “consciência ou etnias, desde um período pré-colonial. A



crítica”, intervir significativamente no quadro consideração de que a própria constituição de



ideológico que se me apresentava. Assim, foi tais unidades sociais e étnicas possa ser algo


de fundamental importância todo um proces- resultante dos próprios processos coloniais



so de discussão com muitos outros professo- tende, quase sempre, a ser rejeitada como um

res formadores e, sobretudo, com os próprios dado incômodo e ameaçador.



professores indígenas. Seja como for, penso que a Educação Es-


Apesar da “consciência crítica”, não me fur- colar Indígena específica e diferenciada pode,

tava a colaborar com o “resgate cultural”, apre- sim, caminhar no sentido da produção de um

sentando aos professores indígenas coisas, conhecimento próprio das sociedades indíge-

como vocabulários de línguas de seus supostos nas sobre si mesmas. Um conhecimento, a um



“antepassados”, relatos dos “seus” costumes, só tempo, informado das concepções teóricas

feitos por viajantes, e a parca iconografia dis- de nossa História e de nossa Antropologia e,

ponível sobre a maioria dos grupos da região assim, capaz de livrar-se das perversas tutelas

nos períodos colonial e imperial etc. Com isso, simbólicas de ideologias dominantes da soci-

o interesse inicial, totalmente dirigido à recu- edade nacional, mas capaz também de engen-

peração de “perdas culturais”, foi se complexi- drar formas próprias de autopercepção de suas

ficando em um interesse por conhecer melhor próprias historicidades e culturas.


os próprios processos históricos de tais “per- Se assim for, essa será, certamente, a pe-

das”, o que se me afigurou como uma tendên- dra angular para o tratamento de quaisquer

cia interessante no sentido da produção de “etnoconhecimentos” na escola indígena, ou



perspectivas mais críticas acerca da idéia de uma espécie de “metaetnoconhecimento”; sem


“resgate”, ou melhor, de uma complexificação dúvida, uma expressão transformada e inova-



dessa idéia, capaz, por exemplo, de pensar o dora, e não tolamente revivalista, da velha

“resgate” de suas historicidades ou de pensar o idéia de “resgate cultural”.
























O etnoconhecimento e a Educação




Matemática na escola indígena






Roseli de Alvarenga Corrêa



Ufop/MG






O tema proposto “O etnoconhecimento e a da e aprendida?”, “Como trabalhar Matemá-


Educação Matemática na escola indígena” tica na escola indígena?” são perguntas feitas



pode sugerir, num primeiro momento, uma com freqüência no âmbito mais restrito da



abordagem sobre o modo como os educado- Educação Matemática. As respostas, temos ci-


res se utilizam do etnoconhecimento de um ência disso, alojam-se em terreno mais am-



povo no exercício de sua prática pedagógica na plo e delineiam-se à medida que as idéias se

Educação Escolar Indígena. Esse, naturalmen- voltam para a compreensão da educação e



te, é um dos focos para tal abordagem. No en- escola indígenas na sua historicidade e com-

tanto, penso que, antes de enfocar como a Edu- plexidade.



cação Escolar Indígena pode estar se utilizan- Quando se coloca a possibilidade de criar

do do etnoconhecimento específico de um e desenvolver situações pedagógicas, em cur-



povo, de aspectos de sua cultura, de seus mi- sos de formação de professores indígenas, que

tos e crenças, de seu saber e fazer, devo abor- valorizem as experiências de vida dos alunos,

dar primeiramente a escola indígena, uma ins- o conhecimento de seu povo, sua história e cul-

tituição garantida legal e constitucionalmen- tura, e que levem em conta suas aspirações,

te nos dias atuais e pleiteada pela maioria dos impõe-se a necessidade de conhecer tais aspi-

povos indígenas. Nessa perspectiva, a aborda- rações e escolhas do povo indígena para a sua

gem ao tema proposto pede, antes de tudo, que educação específica e como, historicamente,

se pense e se pergunte e que se levantem al- eles se constituíram. Significa, por um lado, co-

guns pontos de vista sobre a Escola Indígena. nhecer melhor o indígena que se fez professor

A abordagem que farei assenta-se sobre a em sua comunidade: no seu trabalho na aldeia

minha própria vivência como educadora não- e na escola, na sua relação com as lideranças,

indígena, que atua em cursos de formação de com os pais dos alunos, com o calendário es-

colar, com os materiais didáticos que selecio-


professores indígenas na área de Matemática


e Educação Matemática. Dúvidas, reflexões, na, cria e constrói para a sua prática pedagó-

críticas, questionamentos estavam e estão gica e, também, nas suas aspirações como pro-

sempre presentes no exercício dessa prática, fissional da educação e sujeito ativo de sua co-

mas também há espaço para o sonho e o pos- munidade. Por outro lado, significa conhecer

sível, e, se hoje já temos algumas respostas, o contexto histórico por meio do qual vem se

elas não se colocam como verdades absolutas, desenvolvendo a Educação Indígena no Brasil

universais, mas como verdades relativizadas e no qual se insere o modo de ser da escola e

em cada cultura, espaço e tempo. do professor indígenas e dos cursos de forma-



Nesse contexto, portanto, em que a crítica ção de professores indígenas.



e a possibilidade podem estar presentes, vejo A construção dessa trajetória investigativa,



que uma das direções a ser trilhada para a Edu- por sua vez, estrutura-se e articula-se também

cação Indígena aponta para modos de apren- a partir das visões e das concepções dos dife-

dizagem abertos – para as experiências e os co- rentes segmentos − além daquelas das comu-

nhecimentos das diversas culturas –, nidades indígenas − atuantes na Educação In-



investigativos e, sobretudo, críticos. dígena e, particularmente, das do educador


“Por que aprender Matemática na escola não-indígena. As representações e práticas



indígena?”, “Que Matemática deve ser ensina- desse educador não-indígena – seu modo de

154
PAINEL 6
Os etnoconhecimentos na escola indígena

ver e entender a Educação Indígena – são con- cie de detalhamento e sofisticação e têm



cebidas como influenciadas e influenciando como fundo a diversidade de situações, de



outras representações e práticas. Na sua tota- cultura e de propostas oferecidas pelas co-



lidade, esses modos de ver e conceber a Edu- munidades indígenas.


cação Indígena e a Educação Matemática na No entanto, embora se considere o peso de



escola indígena dos diferentes segmentos que tais constatações, a questão que ainda se co-



dela se ocupam são também vertentes do ma- loca, segundo o indigenista e lingüista Wilmar


nancial histórico das concepções educacionais da Rocha D’Angelis, é: “Para que uma comuni- 155



brasileiras e universais. dade indígena quer escola? Que função a es-



No momento atual, essa história se faz cola tem ou a comunidade está disposta a lhe



por meio das idéias de educadores influen- conferir?” (D’Angelis, 1999: 20).


ciados pelos novos ares e rumos que toma- Essas perguntas, aliadas à nossa sobre a ne-



ram, no século XX, algumas áreas de conhe- cessidade da escolarização formal para as po-



cimento, como a Antropologia, a Sociologia, pulações indígenas, não tinham como ser for-



a Psicologia, a Lingüística e outras. Esse mo- muladas no contexto e pensamento sobre Edu-


vimento, que eu diria em espiral, chamando- cação Indígena até a primeira metade do sécu-



nos à reflexão sobre a escolarização formal lo passado. Antes da década de 1970, mais pro-

para as comunidades indígenas, remete-nos priamente, a escola indígena foi usada como um

a uma nova interrogação, qual seja: “É neces- dos principais instrumentos para a descarac-

sária a escolarização formal para as popula- terização e destruição das culturas indígenas na

ções indígenas?”. história do contato com outras culturas, pois,



Uma pequena incursão na história da Edu- “definida e gerida desde fora, imposta e estra-

cação Indígena no Brasil assegura-nos que as nha aos índios” (Lopes da Silva, 1995: 10), as

mudanças significativas iniciadas a partir da escolas e programas oficiais de “educação para



década de 1970, época em que começaram a o índio” tinham como objetivo reforçar os pro-

surgir neste país os movimentos propriamente jetos integracionistas gerados pelo pensamen-

indígenas e aqueles que resultaram na criação to assimilacionista que dominava na relação



de entidades civis de apoio à causa indígena, entre estado e povos indígenas.



começam a produzir seus frutos. No final dos Se a escola, desde o início da colonização

anos 1980, as várias experiências de implanta- até poucas décadas passadas, foi imposta de

ção de escolas indígenas com currículos e pe- fora para dentro das comunidades indígenas,

dagogias próprias já aconteciam juntamente hoje a escola torna-se, para essas mesmas co-

com a produção de materiais didáticos especí- munidades, “uma espécie de necessidade ‘pós-

ficos e produzidos pelos próprios índios. contato’, que tem sido assumida pelos índios,

A partir dos anos 1990, além da intensifi- mesmo com todos os riscos e resultados con-

cação da pesquisa acadêmica na área, parti- traditórios já registrados ao longo da história”



cularmente entre lingüistas, antropólogos e (Dias da Silva, 1999: 64-66). Segundo a autora,

sociólogos, essa pesquisa torna-se mais re- a escola pode vir a ser, “hoje”, 1 um instrumen-

flexiva e crítica de seu próprio trabalho. Os to decisivo na reconstrução e na afirmação das



dias atuais têm sido marcados por uma ava- identidades, apoiada que está pelo texto legal

liação crítica das experiências educacionais que superou a perspectiva integracionista e re-

diferenciadas construídas nas décadas ante- conheceu a pluralidade cultural.


riores. Os debates, temas e problemas tor- E é nas idéias que se originaram nesse pe-

nam-se mais específicos, sofrem uma espé- ríodo, pós-década de 1970 e, principalmen-




1
Esse “hoje” significa que, após a Constituição de 1988, se inaugurou no Brasil a possibilidade de uma nova fase nas relações entre os povos

indígenas, o Estado e a sociedade civil. A educação formal indígena está apenas começando a ser pensada e exercida de forma diferencia-

da, de modo a assegurar “às comunidades indígenas também a utilização de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem”,

segundo o que diz a Constituição de 1988, Cap. III, § I.



te, pós-Constituição de 1988, que buscamos to dos próprios índios, livre da opressão e au-



estruturar as respostas para a pergunta que tônoma” (Capacla, 1995: 21). A partir daí, for-



fizemos sobre a necessidade da escolariza- taleceu-se a idéia – ainda não consensual – de



ção formal para as populações indígenas no que as próprias comunidades indígenas sele-


Brasil. cionassem e preparassem seus professores



A pesquisa realizada nos vários segmen- bilíngües. Algumas comunidades ainda relu-



tos envolvidos com a Educação Indígena – tavam em querer “uma escola como a dos


em particular nessa fase de mudanças e ne- brancos” e reivindicavam o aprendizado mais



g o c i a ç õ e s q u e, s e g u n d o L o p e s d a Si l va , rápido do Português pela urgência da situa-



constituiu-se em “processo intenso, rápido, ção de contato.



política e cr iativamente inovador, [que] Foi nas universidades e nas organizações


transformou a escola indígena característi- indigenistas não-governamentais que as idéi-



ca dos anos anteriores [...] em espaço de ar- as de “fortalecimento cultural” dos povos in-



ticulação de informações, práticas pedagó- dígenas encontraram campo favorável.


gicas e reflexões dos próprios índios sobre ○
Aprofundaram-se os debates em torno das
seu passado e seu futuro, sobre seus conhe- questões indígenas e fortaleceu-se, entre os vá-

cimentos, seus projetos e a definição de seu rios segmentos da sociedade civil brasileira,

lugar em um mundo globalizado” (1995: 10) em seu processo de reorganização, a consci-



– apontou-nos uma variedade de motivos ência cultural e étnica indígena.


favoráveis à presença da escola nas comu- Assim, pelo menos no meio acadêmico e,

nidades indígenas, os quais procuramos digamos, ainda na teoria, era unânime a idéia

agrupar em categorias mais abrangentes. de que:


Assim, com base na diversidade de pontos



de vista e no modo como procuramos sinte- De instrumento de dominação a escola indíge-



tizá-los, direi que a escola é necessária para na passa a ser um instrumento de reafirmação

as comunidades indígenas, porque consti- cultural e étnica, de informação sobre a socie-


tui-se em: dade envolvente e as relações internacionais,



• espaço de reafirmação/revitalização de sua como base para um diálogo em que os índios


são sujeitos que buscam construir seu destino


identidade cultural;

através da reflexão, escolhas e autodetermina-


• espaço de articulação de informações;


ção (Capacla, 1995: 18).


• local de reflexão sobre o destino dos povos



indígenas/a escola como parte do projeto Reconhecida, nos meios acadêmicos, a


de futuro dos povos indígenas;


necessidade de uma escola indígena apoia-



• espaço que possibilita estruturar as rela- da em uma base de reafirmação e fortaleci-


ções com outras sociedades; mento cultural, a questão passa também a



• local de pesquisa de suas próprias neces- ser considerada e expressa pelos próprios

sidades e métodos. índios, particularmente após a Constituição



de 1988. Como diz Jucineide Maria S. Freire,


professora Xukuru, de Pernambuco: “A esco-


A conquista de tais espaços, como já vi-


la indígena tem que ser parte do sistema de


mos, não se deu casualmente. Nos debates


educação de cada povo, no qual se assegura


ocorridos no 1º Encontro Nacional sobre Edu-


e for talece a tradição indígena” (RCNEI,


cação Indígena, em 1979, começaram a se

1998: 58).

delinear as questões norteadoras de debates


As palavras da pr ofessora Mar ineusa


futuros. Nesse encontro, ficou claro o caráter


Gazzetta vêm reforçar, justificar e esclare-


isolado das experiências realizadas até então.

cer a idéia, até então obscura, de como e a


Questionando as políticas da Funai e do Go-


partir de quando os índios e professores in-


verno Federal, “firmava-se a postura de fazer


dígenas se mostraram prontos a assumir,


da escola indígena um meio de fortalecimen-


156
PAINEL 6
Os etnoconhecimentos na escola indígena

diante da sociedade, a sua real identidade etnoconhecimento do povo, expresso por



indígena. meio das suas receitas de comida da roça,



Diz Gazzetta que: dos ornamentos, dos desenhos nos tururis,



do trançado das redes, dos pacarás, das al-


[...] é muito for te a cultura da identidade, deias, da localização e medida de suas ter-



é muito for te! Depois, as outras coisas. [...] ras, da venda de produtos da roça e artesa-



desde que os por tugueses chegaram aqui, os nato etc., constituíram-se em elementos


povos indígenas estavam condenados a se- vivificadores e significativos, por um lado, 157



rem extintos, isso até 1988, quando aparece para o “desvendar e despertar” do pensa-


a primeira Constituição brasileira, que diz al-


mento matemático Ticuna e, por outro, por


guma coisa, que garante alguma coisa. Claro


demonstrarem as características de um pen-


que não é de graça; todo o movimento, prin-
sar e fazer educação que pudessem permitir


cipalmente das organizações indígenas lá do


à escola indígena, como específica e diferen-


Norte, dos povos indígenas lá do Norte, é toda


ciada, ocupar os espaços aos quais realmen-


uma mobilização; eles não ganham isso de


graça, mas você vê que é a primeira vez que te tinha e tem direito.


Com o objetivo de discutir as possibili-


aparecem numa Car ta oficial alguns direitos.

dades desse “como fazer” na escola indíge-

Então, o que acontece? De repente, com es- ○

ses direitos, eles começam a ver uma luz no na, mostro, nas linhas a seguir, um breve mo-

fim do túnel, eles se fortalecem. [...] E quan- mento de um trabalho desenvolvido no Cur-

do eles começam a pensar no projeto de fu- so de Formação de Professores Ticuna, ex-



turo deles, a escola hoje faz par te desse pro- pondo idéias de como o etnoconhecimento,

jeto; é um elemento estranho, mas já incor- a Educação Matemática e a escola indígena


porado e ressignificado pela maioria dos po- podem, juntos, numa situação de transcen-

vos indígenas [...]. E esse projeto de futuro é dência, oferecer condições para a promoção

a reafirmação identitária, é a questão da ter- das diversas categorias que expressamos,


ra, é a questão dos marcadores todos, da or-


quando se perguntou da necessidade e im-


ganização social e tudo; então, a escola não


portância da escola indígena para os povos

pode ser igual à escola do branco, tem que


indígenas. E é principalmente no enfoque

ser uma escola coerente com esse projeto.


que damos à escola indígena como espaço de


Isso parece muito claro para eles. [...] O pro-


reafirmação/revitalização de sua cultura que


blema esbarra no “como fazer isso”. Por cau-

a questão do etnoconhecimento na escola in-


sa dessa nossa escola, essa tradição, nós


dígena mais se fortalece.


não temos uma educação brasileira, não con-


seguimos criar isso (Gazzetta, entrevista gra- Essa proposta que apresentamos também

vada em 2/9/1999). pretendeu oferecer ao professor Ticuna mo-


mentos de reflexão sobre o seu trabalho como



É dentro dessa problemática do “como fa- professor, como criador de estratégias peda-

zer”, apontada por Gazzetta, que evidenciarei, gógicas com base em seu saber, em elemen-

neste trabalho, ações pedagógicas estruturadas tos de sua cultura, expressos segundo sua pró-

pria visão de mundo, sua sensibilidade e


em idéias geradas pela experiência e conheci-


mentos incorporados no exercício de uma prá- criatividade.



tica voltada para cursos de formação de pro- O trabalho foi desenvolvido com base no

fessores indígenas e, em particular, para o Cur- texto “História do buriti”, um pequeno livro es-

so de Formação de Professores Ticuna da re- crito e ilustrado pela aluna Hermelinda Ahuê

gião do Alto Solimões, Amazonas – promovido Coelho, em 1996, satisfazendo a uma das dis-

pela Organização Geral dos Professores Ticuna ciplinas do curso. Contando a história do

Bilíngües (OGPTB). buriti, a autora traz para o leitor aspectos da


Algumas das ações pedagógicas propos- história do mundo Ticuna em sua relação com

tas na área de Matemática, durante as eta- a natureza e em suas relações sociais.



pas do curso, e que estiveram assentadas no Eis o texto de Hermelinda:



História do buriti Com a intenção de escrever a “História do



buriti”, a autora conta também um pouco da



2
Hermelinda Ahuê Coelho, aldeia Canimarú, 1996 história de seu povo, fala da relação do homem



e dos animais com a floresta e com essa espé-


O buriti serve para o homem comer e fazer cie de palmeira, muito resistente às inunda-



vinho. ções. Por meio do texto, o leitor percebe que


Serve também para alimentar os animais.


derrubar um buriti muito alto para retirar seus


Tem buriti no buritizal, na terra firme e nas frutos ainda é uma prática, embora discutível



restingas.
nos dias atuais, e salienta também, inclusive


As pessoas plantam o buriti perto da casa.


por meio das ilustrações, alguns aspectos das


Os animais que comem o buriti são: anta,


relações sociais da aldeia, quando diz da divi-


veado,
são dos frutos, de como lidar com eles e, por


jabuti, paca, quati, porco-do-mato, arara.


fim, de tomar o vinho.


O buriti quando está na água não morre.


As frutas, quando amolecem na árvore, caem. Para nós, leitores, o texto de Hermelinda

Aí os animais comem, debaixo do buriti.



nos faz mais conhecedores do povo Ticuna, da
região onde vive e de uma espécie nativa da

O tempo de buriti é quando as frutas estão


pretas. Aí as pessoas vão buscar. floresta, quando traz algumas respostas para

Quando o buriti está muito alto, as pessoas questões do tipo:


– Para que serve o buriti?


derrubam para tirar os frutos.


Aí as pessoas vão buscar o buriti e dividem


– Onde existe buriti? Onde o homem planta


entre elas. a palmeira?



Juntam no aturá e levam para casa. E aí deixam


– Quem come de seus frutos?

quatro dias para ficar preto.



Quando já está preto o buriti, deixa em uma – Quando é tempo de o homem colher os

vasilha com água para amolecer. frutos?



Duas horas e ele já amolece bem. – Como as pessoas fazem para colhê-los e

Aí as pessoas comem e fazem o vinho para levá-los para a aldeia?


beber e tomar com farinha.


– O que as pessoas fazem de seus frutos?




Com base nesse texto e em suas ilustrações, Além das questões sociais e culturais en-

preparei um material para ser lido e discutido volvendo a relação entre as pessoas da aldeia

em sala de aula com os alunos. Em sua primei- e a sua vida na floresta, o texto aponta tam-

ra parte, e tendo em vista os objetivos que pre- bém para questões espaciais, temporais e

quantitativas presentes nessa relação.


tendia, faço as seguintes considerações:


A leitura do texto de Hermelinda nos dá Onde existe? Quando é tempo? Quantos



muitas informações sobre essa espécie de pal- aturás? Quantos dias? São estas as perguntas

meira chamada buriti. que podem ser feitas quando a intenção é co-

lher o fruto e aproveitá-lo como alimento.


A autora diz para que serve o buriti, onde


ele é encontrado nativo na mata e, também, Podemos fazer muitas outras perguntas.

que as pessoas o plantam perto de suas casas. Tudo depende do que já conhecemos sobre o

Fala dos animais que comem seu fruto e da assunto e também de nossa vontade e neces-

sidade de conhecer mais, de pesquisar mais a


época em que as frutas estão boas para serem


colhidas pelas pessoas. As frutas são divididas fundo e de ampliar nossos conhecimentos.

entre as pessoas e levadas para a aldeia. De- Assim, também, os inúmeros textos produ-

pois de alguns dias, quando já amolecidas, as zidos pelos professores Ticuna e seus alunos,

contando a história de seu povo, a sua relação


frutas servem para comer e fazer vinho.






2
Hermelinda Ahuê Coelho é professora de escola indígena e aluna do Curso de Formação de Professores Ticuna. Neste texto, deixo de

apresentar as ilustrações feitas pela autora.


158
PAINEL 6
Os etnoconhecimentos na escola indígena

com a floresta e os animais, seus mitos e lendas, direção e sentido – e que o estudo das “matemá-



relatando suas festas, seu artesanato, a culiná- ticas” pode ser realizado com seus alunos, em



ria, a fabricação de utensílios etc., constituem, sala de aula, apoiado no etnoconhecimento de



para o leitor indígena e não-indígena, fontes seu povo, retomando, rediscutindo, revitalizando


inesgotáveis de conhecimento, de aprendizado, aspectos de sua cultura e redimensionando-os



de indagações, juntamente com outros textos para o momento presente. Os trabalhos criados



que trazem o conhecimento de outras culturas. pelos professores nas etapas posteriores do cur-


Aí entram os livros, os jornais, as revistas etc. so para as séries iniciais do Ensino Fundamen- 159



Com esse texto da professora Hermelinda, tal atestam essas afirmações.



entre muitos outros que poderiam ser coloca-



dos para nosso estudo, nossas considerações e
Bibliografia


nossos questionamentos – e trabalhados em si-



tuação didática –, pretendemos expressar as CAPACLA, Marta Valéria. O debate sobre a Educação In-


dígena no Brasil (1975-1995). Resenhas de teses e


idéias que vêm orientando nosso jeito de ser e


livros . Brasília: MEC, 1995.


agir durante as etapas do curso de formação de
D’ANGELIS, Wilmar da Rocha. Contra a ditadura da escola.


professores, as quais visam ao aprendizado da


Cadernos Cedes: Educação Indígena e Interculturalidade.


Matemática e, neste momento, estruturam tam- Campinas, 2000.

bém a criação e a organização deste trabalho D’ANGELIS, Wilmar R.; VEIGA, Juracilda (Orgs.). Leitura

(Corrêa, 1999). e escrita em escolas indígenas. Campinas: ALB/Mer-


Em sua segunda parte, denominada “O tex- cado de Letras, 1997.



DIAS DA SILVA, Rosa H. A autonomia como valor e articu-


to na sala de aula”, aponto para o uso interdis-

lação de possibilidades: o movimento dos professores


ciplinar de “História do buriti”, pelos próprios


indígenas do Amazonas, de Roraima e do Acre e a


questionamentos suscitados nas mais diversas

construção de uma política de Educação Escolar Indí-


áreas de conhecimento, incentivando o que-


gena. Cadernos Cedes : Educação Indígena, Campi-


rer saber mais e a pesquisa em novas fontes e nas, ano 19, n. 49, p. 62-75, dez.1999.

textos. No caso específico da Matemática, re- GRUPIONI, Luís Donisete B. De alternativo a oficial: so-

fletimos com os alunos que: bre a (im)possibilidade da Educação Escolar Indígena



no Brasil. In: D’ANGELIS, Wilmar R.;VEIGA, Juracilda


(Orgs.). Leitura e escrita em escolas indígenas . Cam-


A partir de agora, estaremos dando a este texto


pinas: ABL/Mercado de Letras, 1997.


um direcionamento para as questões matemá- LOPES DA SILVA, Aracy. Prefácio. In: CAPACLA, Marta

ticas presentes nas diversas situações descritas,


Valéria . O debate sobre a Educação Indígena no Bra-


sem, no entanto, nos afastarmos do pensamen- sil (1975-1995). Resenhas de teses e livros . Brasília:

to de que as idéias matemáticas que se origina- MEC, 1995.


rão de nossos questionamentos estão imersas, LOPES DA SILVA, Aracy; GRUPIONI, Luís Donisete B.

envoltas, relacionando-se com idéias que (Orgs.). A temática indígena na escola: novos subsídi-

estruturam conhecimentos e culturas diversas os para professores de 1º e 2º graus. Brasília: MEC–



que, na sua totalidade, podem nos oferecer con- Mari–Unesco, 1995.


MELIÀ, Bartomeu. Educação indígena e alfabetização. São


dições dignas de vida no mundo (Corrêa, 1999).


Paulo: Loyola, 1979.


. Educação indígena na escola. Educação


Sem dúvida, considero que tal encaminha-


Indígena. Campinas, ano 19, n. 49, dez. 1999.


mento dado ao trabalho abre possibilidades para MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. Secretaria de Educação

tornar a escola indígena um espaço para a


Fundamental. Referencial Curricular Nacional para as


reafirmação e revitalização da identidade cultu- Escolas Indígenas. Brasília: SEF/MEC, 1998.



ral do povo indígena, assim como para outras ca- SILVA, Márcio Ferreira; AZEVEDO, Marta Maria. Pensan-

do as escolas dos povos indígenas no Brasil: o movi-


tegorias mencionadas. No caso do professor


mento dos professores indígenas do Amazonas,


Ticuna, a leitura, análise e discussão conjunta do

R o ra i m a e A c r e. I n : L O P E S DA S I LVA , A ra c y ;
texto proporcionaram-lhe novas perspectivas so-

GRUPIONI, Luís Donisete B. (Orgs.). A temática indí-


bre o que é a Matemática – em particular, nas


gena na escola: novos subsídios para professores de


questões relacionadas com grandeza, posição, 1º e 2º graus. Brasília: MEC–Mari–Unesco, 1995.




P AINEL 7

EXPERIÊNCIAS DE FORMAÇÃO
DE PROFESSORES INDÍGENAS
Jussara Gomes Gruber

Maria Cristina Troncarelli

Zélia Maria Rezende

Marlene de Oliveira

161
O Curso de Formação




de Professores Ticuna






Jussara Gomes Gruber



Organização Geral dos Professores Ticuna Bilíngües (OGPTB)






Resumo





Em 1993, os professores membros da Organi- O curso de formação faz parte do Projeto Edu-



zação Geral dos Professores Ticuna Bilíngües cação Ticuna, que envolve um conjunto de ativida-


(OGPTB) reuniram-se para iniciar um curso que des organizadas em programas especiais voltados


lhes possibilitasse concluir o segundo grau com ○
para as questões de saúde, terra, meio ambiente,
habilitação para o exercício do Magistério. O curso

direitos indígenas, arte e cultura. No âmbito desse


deveria ser desenvolvido em módulos, no período projeto, desenvolvem-se também atividades de



das férias escolares, de modo que todos os profes- capacitação de supervisores índios e a organização

sores pudessem freqüentá-lo sem prejuízo de suas do projeto político-pedagógico das escolas Ticuna.

atividades docentes. Trata-se, portanto, de uma experiência bas-



O Curso de Formação de Professores Ticuna é, tante abrangente, que traz como parte da forma-

portanto, promovido pela OGPTB e conta com a par- ção do professor todos os aspectos que devem

ticipação de 250 professores. Já concluíram o Ensi- constar de uma escola diferenciada, como a pro-

no Fundamental 225 professores Ticuna, dos quais dução de materiais didáticos específicos, calen-

170 completaram o Ensino Médio em agosto de dário, programa curricular, planejamento, estudo

2001. Em julho de 2002, mais 35 docentes conclui- da legislação, entre outros, com a finalidade de

rão o Ensino Médio. O curso desenvolveu-se em 15 possibilitar a autonomia pedagógica e administra-


etapas, durante oito anos, totalizando 4.120 horas. tiva das escolas Ticuna.










A formação de educadores


indígenas para as escolas xinguanas





Maria Cristina Troncarelli, Estela Würker e Jackeline Rodrigues Mendes



Instituto Socioambiental (ISA)/Xingu/MS






Introdução

em 3.800 pessoas distribuídas em 32 aldeias, três



O Parque Indígena do Xingu, localizado no postos indígenas e dez postos de vigilância.



estado do Mato Grosso, na região do Rio Xingu e A partir de 1994, foi iniciada a formação de

seus formadores, tem uma extensão de 2.642.003 professores indígenas no parque, o que resultou

na criação de trinta escolas nas aldeias e nos


hectares. Nele vivem 14 etnias: Kuikuro,


Kalapalo, Matipu, Nahukuá, Mehinaku, Waurá, postos. Também participam desse processo pro-

Aweti, Kamaiurá, Trumai, Ikpeng, Yawalapiti, fessores Panara, que atualmente residem na Ter-

Suyá, Kaiabi e Yudjá. A população está estimada ra Indígena Panara, vizinha ao parque, e dois

162
PAINEL 7
Experiências de formação de professores indígenas

professores da Terra Indígena Kaiabi. Este texto


ligados à CPI-AC e à Unicamp, UFRJ, PUC-SP,


tem como objetivo mostrar o desenvolvimento Universidade de Londrina, Universidade



desse trabalho, enfatizando as práticas pedagó- Metodista de Piracicaba, Museu Goeldi e


gicas da equipe de formadores e dos professores


Unifesp.


indígenas.




Desenvolvimento


Histórico


163
do curso de formação



A primeira referência do processo de esco-



larização no Parque Indígena do Xingu foi a es- O curso de Magistério desenvolve-se por


cola do Posto Indígena (PIN) Leonardo, que, em meio de duas etapas intensivas anuais de trinta



1976, começou a funcionar com a presença de dias, sendo uma por semestre. Além das etapas



uma professora não-índia. Os alunos eram, em intensivas, é realizado o acompanhamento pe-


sua maioria, filhos de lideranças das aldeias vin- dagógico dos professores nas escolas das aldei-



culadas a esse posto indígena. Nos outros pos- as. Participam do curso 61 professores indígenas



tos, esse modelo se repetiu durante a década de de todos os povos do parque e os Panara, que



1980, sempre de forma intermitente, pois de- lecionam para 1.150 alunos entre crianças e ado-

pendiam de pessoas contratadas pela Funai. ○


lescentes, totalizando trinta escolas em funcio-


Algumas dessas professoras elaboraram mate- namento.

riais didáticos na Língua Portuguesa, usando o O princípio norteador do projeto é a gestão



Português regional. Os alunos, predominante- territorial, por meio da conscientização sobre as


mente monolíngües em Língua Indígena, eram questões ambientais, da valorização das diver-

alfabetizados em Português. sas culturas existentes no parque e do desenvol-



No fim da década de 1980, todas as escolas vimento da autonomia dessas comunidades para

estavam desativadas por falta de professores. Ex- lidar com as relações de contato. A abordagem

alunos da escola do Posto Diauarum, das etnias de questões relativas ao meio ambiente tem o

Kaiabi, Suyá e Yudjá, começaram a ensinar em objetivo de contribuir para a conscientização da



suas próprias comunidades o que aprenderam, população xinguana para a importância da pre-

sem nenhuma orientação pedagógica. Eles reivin- servação e do uso racional dos recursos naturais.

dicaram um curso para aprender a serem profes- Essa iniciativa está sintonizada com a política de

sores. Em função dessa demanda, a Fundação vigilância da área e das fronteiras do parque e

Mata Virgem organizou reuniões com as lideran- com a mobilização em relação à proteção das

ças do parque, a fim de consultá-las sobre o inte- nascentes dos rios formadores do Xingu, por

resse no desenvolvimento de um projeto de for- meio de um projeto desenvolvido pela Associa-



mação de professores indígenas. Em 1994, deu- ção Terra Indígena Xingu (Atix) e pelo Instituto

se início à primeira etapa do curso de Formação Socioambiental (ISA).



de Professores para o Magistério nos PIN O projeto de educação está voltado à reali-

Diauarum e Pavuru, contando com a participa- zação de um intercâmbio entre as várias cultu-

ção de pessoas enviadas por todas as etnias do ras e à valorização das línguas indígenas, desse

parque, com exceção da Yawalapiti, cuja comu- modo reavivando o interesse dos jovens pelas

nidade deseja ter um professor não-índio. Esse próprias histórias, danças, artesanato, língua,

projeto, em 1995, ficou sob responsabilidade da pela vida social e cultural da comunidade.

Associação Vida e Ambiente e, em 1996, passou a Uma das formas de valorização das línguas

ser desenvolvido pelo Instituto Socioambiental. indígenas vem sendo o processo de construção

A equipe do projeto é composta por educa- da sua escrita. Na década de 1980, havia, por

dores, antropólogos, lingüistas, agrônomos, bi- parte dos povos do PIX, resistência ao desenvol-

óloga, médicos, muitas dessas pessoas já envol- vimento da escrita em suas próprias línguas. O

vidas há vários anos com algum tipo de trabalho referencial de escola para as comunidades

na área. Além da equipe do ISA, há consultores xinguanas era baseado nas experiências ante-


riores, em que professores não-índios ensinavam tes centrava-se apenas no seu aprendizado in-



Português e Matemática, por isso a escrita fazia dividual, mas aos poucos começaram a atuar



sentido apenas na Língua Portuguesa. Além dis- como professores em suas aldeias.



so, o argumento das comunidades era de que Passamos a observar, então, que os temas tra-


ninguém esqueceria a própria língua. O deslo- balhados durante as etapas do curso eram refe-



camento da Língua Trumai pela Língua Portu- rência para os professores atuarem em sala de



guesa e da Língua Yawalapiti pela Língua Kuikuro aula. Em função disso, priorizamos a questão


vem servindo de exemplo para enfatizar a neces- metodológica de ensino no desenvolvimento dos



sidade de valorizar o ensino da Língua Indígena conteúdos em todas as disciplinas. Buscamos dar



também nas escolas. Em assembléias de lideran- ênfase à reflexão pedagógica, ao planejamento



ças de todo o parque, vários chefes têm reafir- de aulas, ao registro destas no diário de classe e


mado a necessidade de se aprender Português e à produção de materiais didáticos.



Matemática; entretanto, começam também a Um caminho interessante que vem sendo



apontar a necessidade de fortalecimento da Lín- desenvolvido na abordagem de temas e conteú-


gua Indígena. Esse discurso tem sido mais ○
dos novos, relacionado à elaboração de materi-
enfatizado por lideranças e comunidades da re- ais didáticos em Língua Portuguesa, é a criação

gião do Médio e Baixo Xingu. O uso da escrita de textos pelos professores sobre esses assuntos.

nas línguas indígenas ainda é bastante A equipe do ISA organiza apostilas, tratando de

incipiente, restringindo-se ao âmbito escolar, e conteúdos novos, para serem estudadas nos cur-

a maioria das comunidades ainda não valoriza sos. Essas apostilas vão sendo reconstruídas pe-

essa prática, concentrando sua expectativa em los professores, com textos produzidos por eles,

que a escola ensine a falar e escrever a Língua tornando esses conteúdos mais acessíveis aos

Portuguesa. alunos, uma vez que esses educadores conse-



Na avaliação dos professores indígenas, é guem imprimir em seus textos uma visão e um

importante criar materiais didáticos na língua modo próprio de se expressar sobre os temas.

materna, a fim de facilitar a compreensão de Um exemplo desse trabalho foi a realização


vários conceitos pelos alunos (transmissão de do Livro de história – volume 1 (publicado pelo

doenças, alguma operação matemática, por MEC em 1997), que aborda reflexões sobre a im-

exemplo). portância da história, o ensino, na escola, das



O projeto de formação também tem traba- histórias tradicionais de início do mundo, as his-

lhado no sentido de preparar os professores para tórias do contato de cada povo xinguano conta-

a participação na sociedade nacional como ci- das pelos professores e pelos não-índios

dadãos, para que possam gerir seu território, (Orlando Villas-Bôas, Karl von den Steinen) e a

defender seus interesses e direitos. Essa prepa- história da chegada dos europeus ao Brasil. O

ração tem envolvido o aprendizado de diversas segundo livro, Brasil e África – uma visão

habilidades necessárias para as relações de con- xinguana, traz informações sobre a escravidão

tato e de gerenciamento do território (aprendi- indígena e africana no Brasil, as religiões afro-



zado do uso da Língua Portuguesa – oral e escri- brasileiras, o intercâmbio entre culturas e a for-

ta – em diversas situações interacionais, o uso mação da sociedade brasileira, procurando mos-



do dinheiro nas situações de compra e venda, trar a sua diversidade cultural, com o objetivo

conhecimento e compreensão de leis etc.). de oferecer uma visão mais ampla do que a usu-

al dicotomia “mundo índio” e “mundo branco”.


Um dos professores do curso escreveu sobre a


Metodologia

formação do povo brasileiro, tema de redação de



No início do projeto, poucos eram os parti- uma das etapas do curso:


cipantes que tinham vivenciado algum proces-



so de escolarização, muitos aprenderam Portu- [...] Os primeiros moradores do Brasil são os po-

guês e foram alfabetizados durante as etapas do vos indígenas de várias etnias e idiomas diferen-

curso. A expectativa da maioria dos participan- tes. Depois apareceram outros moradores de ou-

164
PAINEL 7
Experiências de formação de professores indígenas

o acompanhamento, o assessor da equipe cola-


tro país, que foram os portugueses. Através dos


portugueses também vieram muitos estrangeiros bora com orientações sobre planejamento de



de vários países para se instalar no Brasil. Atual- aula, resolução das dificuldades do professor e


mente a população brasileira é formada por mui-


avaliação do aprendizado dos alunos, como tam-


tas nações, línguas, costumes, tradições, conhe- bém procura ouvir a avaliação da comunidade



cimento e religiões diferentes [...] (Matari Kaiabi) sobre a escola. Esses assessores elaboram rela-



tórios que fornecem subsídios importantes para


Em muitos desses livros, além dos textos dos a avaliação do desenvolvimento do professor. 165



professores indígenas, temos mantido textos da Como orientação pedagógica nos cursos de



equipe do ISA ou de outras pessoas (escritores, formação, solicitamos aos professores que regis-


especialistas, historiadores, viajantes, pesquisa-


trassem suas aulas de maneira detalhada e nar-


dores etc.) que possam trazer contribuição à rativa. Inicialmente, somente alguns deles fazi-



compreensão e à ampliação do tema tratado. am esses registros de forma sintética. Aos pou-



Outro exemplo de reelaboração de conceitos cos, esse trabalho foi-se solidificando e, atual-


foi observado no diário de classe do professor mente, todos os professores fazem registros de



Jeika Kalapalo. Em seu diário encontramos regis- suas aulas, trazendo os diários aos cursos de for-



trada uma reelaboração do conceito de lixo orgâ- mação. Esses diários estão servindo de base para

nico e inorgânico, estudado nas aulas de saúde: ○


a discussão e a elaboração do projeto político-


pedagógico das escolas xinguanas pelos profes-

Há três tipos de lixo: lixo seco, lixo molhado e lixo sores e também estão fornecendo elementos

perigoso. O lixo seco é papel, plástico, vidro e lata. para que, a partir do próprio trabalho, os profes-

O lixo molhado é resto de comida. O lixo perigoso sores exerçam na prática a reflexão pedagógica.

é pilha velha, remédio vencido, agulha e seringa Por meio do acompanhamento pedagógico,

usada, espinha de peixe e veneno de formiga. tem sido possível observar as diferentes estraté-

gias de aula usadas pelos professores. As aulas


Por meio desses exemplos, pode-se observar são realizadas sempre num ritmo bastante lento

que a formação desenvolvida não é homoge- e tranqüilo. Os professores propõem atividades



neizadora. Cada professor adapta à sua realida- coletivas, mas se preocupam em dar atenção es-

de o que aprendeu durante os cursos.


pecial a cada aluno por meio de um atendimen-


Aturi Kaiabi, em seu diário de classe, relata to individual. Muitas vezes, o professor propõe

uma aula sobre a Constituição brasileira e os di- aos alunos que façam atividades na lousa, ou

reitos da criança. Usou nessa aula um texto reti- então o professor se senta com cada aluno para

rado de um livro didático da cidade. Em segui-


ler e corrigir as atividades que ele realizou. Cada


da, ele desenvolveu com os alunos uma reflexão aluno espera tranqüilamente que os outros co-

sobre os direitos da criança indígena, não se res- legas terminem a atividade proposta, prestando

tringindo ao livro didático. Ele usou também o muita atenção ao desempenho de cada um dos

capítulo “Dos índios” da Constituição, texto es- colegas da classe. Isso acontece sem que haja

tudado durante uma das etapas do curso. nenhum problema de indisciplina ou desatenção

No processo de formação, há duas maneiras por parte dos alunos. Sob o ponto de vista dos

de acompanhar e de compreender o desenvol- não-índios, a dinâmica da aula pode parecer


vimento do trabalho do professor nas escolas: o muito lenta, mas acreditamos que ela é própria

acompanhamento pedagógico das escolas reali- da pedagogia diferenciada do professor índio,



zado por educadores da equipe e a leitura dos processo que ocorre dentro da concepção de

diários de classe dos professores indígenas. tempo vivenciada no cotidiano das pessoas nas

O acompanhamento pedagógico é uma ati- aldeias.



vidade fundamental, pois é a oportunidade de Com relação ao ritmo de desenvolvimento



avaliar o resultado da formação desenvolvida por das aulas, existe uma diferença marcada entre

os povos do Alto e os do Baixo Xingu. No Alto, os


meio da prática pedagógica do professor índio


nas escolas de suas respectivas aldeias. Durante conteúdos são trabalhados num ritmo mais rá-


pido em comparação com as aulas dos profes- sendo abordados na escola como temas para a



sores da região do Baixo Xingu. Em contra- leitura, a produção de textos e as dramatizações.



partida, os diários de classe demonstram que, na Os professores vêm desempenhando um pa-



região do Baixo, o número de dias letivos é mai- pel importante no contexto da educação para a


or que na região do Alto. Tal situação tem levado saúde. Durante as aulas vêm trabalhando com a



a equipe a refletir sobre o fato de que os conteú- compreensão das causas, sintomas e medidas de



dos dentro do currículo das escolas não podem prevenção de doenças como a cárie, as diarréi-


estar atrelados ao tempo e que o ano letivo nas as, as DST, a malária, a hipertensão e a obesida-



escolas do PIX vem sendo cumprido no período de. Os agentes de saúde chegaram a participar



de um ano e meio a dois anos, pois as escolas de algumas etapas do curso, num trabalho inte-



param de funcionar no período de festas e ativi- grado, e são convidados pelos professores a par-


dades na roça. ticipar das aulas sobre saúde nas escolas. Esse



O acompanhamento pedagógico e a leitura trabalho articula-se com o da formação de agen-



dos diários de classe são instrumentos privilegia- tes de saúde e auxiliares indígenas de enferma-


dos para compreender como o professor escolhe ○
gem, desenvolvido pela Unidade de Saúde e
os temas/conteúdos para trabalhar na escola, as Meio Ambiente da Universidade Federal de São

atividades que vai utilizar para ensinar esses te- Paulo (antiga EPM).

mas e a seqüência que pretende dar no desenvol- Outro tema que tem merecido destaque nos

vimento das aulas. Ambos servem de subsídios cursos é a relação entre recursos naturais, cultu-

para o planejamento dos cursos de formação. ra e economia, abordada de maneira interdisci-



Os cursos de formação e o acompanhamento plinar na Geografia, Antropologia, Ecologia, Saú-



pedagógico às escolas vêm incentivando o desen- de e História. Os professores indígenas começam


volvimento de pesquisas pelos professores indí- a refletir sobre as mudanças na economia dos

genas em suas comunidades. Alguns professores povos no PIX e a influência do dinheiro nas rela-

dos povos Kuikuro, Matipu, Ikpeng, Kaiabi e Suyá ções sociais, econômicas e políticas. Esse traba-

começaram a gravar e transcrever histórias nar- lho tem caminhado no sentido de desenvolver

radas pelos velhos. Um professor Kaiabi realizou uma análise comparativa das diferenças entre a

uma pesquisa sobre tatuagem a partir da grava- economia tradicional das comunidades e a eco-

ção da história sobre as guerras dos Kaiabi contra nomia de mercado e de que maneira a interfe-

os Apiaká. Ele levantou nomes e desenhos de qua- rência da economia de mercado pode ocasionar

renta tipos de tatuagem e registrou a história de a desestabilização da economia tradicional.



origem. Professores Kaiabi também estão desen-



volvendo uma pesquisa sobre trançado, assim Mudanças na economia do meu povo

como os Kuikuro, os Kalapalo, os Matipu e os Antes de entrar em contato com os não-ín-


Nahukuá, sobre a marcação do tempo pelos anti-


dios, usávamos ou destruíamos os recursos na-


gos (calendário indígena) a partir das estrelas e turais de acordo com as necessidades da co-

de fenômenos da natureza, como o desabrochar munidade. Fazíamos artesanato para o uso da



das flores e os períodos de seca e chuva associa- família, pescávamos, caçávamos para o consu-

dos com os recursos naturais. mo da família, fazíamos os enfeites para nos



A maioria dos professores vem trabalhando enfeitar, plantávamos para consumo da família

com temas relacionados à saúde e ao meio am- e também fazíamos canoa para o seu uso.

Quando a pessoa precisava de alguma coisa,


biente, além de, nas disciplinas de Língua Por-


tuguesa e Matemática, direcionarem o trabalho a gente dava, trocava, pagava ao pajé só com ar-

tesanato e comida.
da escola na preparação dos alunos para as situ-

Depois do contato com os não-índios, a vida


ações diversas de contato. Há uma preocupação


mudou muito, o povo começou a pensar em pro-


dos professores de contextualizar o conteúdo


duzir mais pensando na venda, para poder ganhar

ensinado no processo de alfabetização e de de-


dinheiro para comprar anzol, linha, arma etc.


senvolvimento da escrita dos alunos. Os acon-


Depoimento de Aturi Kaiabi


tecimentos do cotidiano da aldeia também vêm


166
PAINEL 7
Experiências de formação de professores indígenas

Essa reflexão tem estimulado a pesquisa so-


O que é manejo


bre as formas tradicionais de manejo dos recur- Manejo é o jeito de usar os recursos naturais.



sos naturais e caminhado em conjunto com o iní- Usar pode ser tirar, cuidar, respeitar, queimar,


transformar, plantar, guardar, colher, caçar, pes-


cio de novas experiências de manejo, como as fle-


chas e a taquara usada nas peneiras Kaiabi, ou a car. O manejo de antigamente era melhor do que



o de agora.
apicultura, promovidas pela Equipe de Alternati-


O manejo dos recursos mudou aqui no Par-


vas Econômicas do ISA em parceria com a Atix.


que do Xingu. Com a demarcação, a região de 167


cada povo ficou menor. A entrada do dinheiro in-


O cuidado que o meu povo tem com a natureza


tensificou a exploração dos recursos naturais. Os


Na comunidade eu vejo a preocupação em rela-


recursos naturais, que antes eram feitos só para
ção à natureza, como não queimar em volta da aldeia,


uso, agora estão sendo vendidos.


para não queimar remédios que ficam perto do pátio.


Hoje em dia está havendo mudança de inte-


Outra preocupação que apareceu agora para


resses dos adultos e dos jovens. A cultura não-
o povo Kaiabi: cada um que tem semente da plan-


indígena está ficando mais forte do que a indíge-


ta da roça é para cuidar e distribuir por família para


na. Isso está contribuindo para que o conhecimen-


plantar. Assim, as sementes nunca acabarão.
to das formas de manejar os recursos naturais


Na época de roçado, eles perguntam uns aos

esteja sendo esquecido.
outros: “Quem vai precisar da palha para cobrir a ○

Criação coletiva dos professores indígenas


casa?” Aí eles vão e cortam a palha que está den-


no 13º Curso

tro da roça. Então alguma parte eles aproveitam,



mas de todo jeito queima.


Ao mesmo tempo, vêm sendo estudados a


Outra preocupação que eles têm: não derru-

ocupação do entorno do PIX e os impactos


bar mais o pé da palha quando estiver precisan-


ambientais causados pelas atividades econômi-


do. Cortar só a palha e deixar um pouco da sua


palha para ser renovada. Isso eu já vi dentro da cas (agropecuária, garimpo, hotéis de pesca, ci-

minha aldeia que eu estou morando. dades que jogam esgoto nos rios etc.), que colo-

cam em risco a vida da população xinguana, bem


Depoimento de Jemy Kaiabi


como a mobilização de lideranças, professores e



comunidades na defesa das nascentes dos rios



formadores do Xingu que se encontram fora do


território demarcado.

O meu povo cuida para não queimar o pé de


pequi, para não acabar a fruta.



Cada ano o chefe pede para as pessoas não Ocupação do espaço geográfico

tocarem o fogo.

Os povos indígenas do Brasil ocuparam ou


Também o sapezal que tem em volta da aldeia, ocupam espaço desde o início do primeiro mundo.

se queimar o sapezal, vai faltar para cobrir casa. Nós, índios, temos 100% de sabedoria de so-

Depoimento de Sepé Kuikuro


brevivência com a natureza, sabemos aproveitar


a riqueza sem destruir. Da natureza tiramos o re-



curso para alimentar, remédio para curar doenças,


recursos para a construção de casas, terra para



O meu povo tem cuidado com os pés de plantar, materiais para fazer artesanato, frutos para

buritizeiros. Eles não cortam os pés de buritizeiros, comer e caças do mato também.

Nós, índios, sabemos usar a riqueza, os re-


somente eles estão cortando a palha de buritizeiro


quando eles estão fazendo construção de casa. cursos naturais, sem poluir os rios, ou ar, ani-

Também eles não queimam os buritizeiros, por- mais, peixes e pessoas.


que são muito importantes os buritizeiros para uti- A ocupação do espaço geográfico dos não-

lizar nos artesanatos, como cesto e abanador. Por índios é muito diferente. Eles já vêm com um pen-

isso, o meu povo Aweti tem cuidado com os pés samento planejado para destruir a natureza, para

de buritizeiros. fazer pastos, plantar capim, plantar soja, arroz,



Depoimento de Awayatu Aweti cana-de-açúcar, trigo etc.


Os não-índios destroem a natureza para




essa necessidade, procuramos trabalhar com


construir as grandes cidades e com eles trazem


muitos tipos de equipamentos que produzem pe- esses professores o mesmo tema, mas de ma-



tróleo, agrotóxicos. Isso traz muitos problemas neira que o ritmo de aprendizado seja respei-


para os moradores do Brasil, que são a poluição


tado, com um planejamento de trabalho espe-


do ar, água, terra, a contaminação de pessoas, cífico para cada grupo. Assim, em virtude dos



animais, peixes. Esses equipamentos causam
diferentes ritmos de aprendizagem dos parti-


grandes assoreamentos nas bacias dos rios e


cipantes do curso, vinte professores foram for-


principalmente os incêndios nas matas.
mados até 2000, outros dezesseis concluirão o


Isso está cada vez mais trazendo doenças


curso em 2001 e outros 25 deverão ser avalia-


diferentes para o povo brasileiro.


dos ao longo dos próximos dois ou três anos.


Depoimento de Aturi Kaiabi


Dos vinte professores formados, 19 ingressa-


ram no Curso de Licenciatura promovido pela


Espera-se que a escola seja um espaço po-


Unemat, que deverá habilitá-los no prazo de


lítico de reflexão e de informação que instru-

cinco anos para lecionar de 5ª a 8ª séries e no
mentalize a população xinguana para a mobi-


Ensino Médio.
lização política que permita amenizar os im-

Com relação à regularização das escolas,


pactos ambientais causados pela ocupação do


em 1996 a política estadual apontava como al-


entorno do PIX e possibilite a defesa das nas-


ternativa o processo de municipalização. Em


centes dos rios formadores do Xingu que se en-

razão da especificidade da situação jurídica do


contram fora do território demarcado. Um dos

parque, retalhado por dez municípios, o ISA


objetivos da formação de professores é que es-


não acreditava ser a municipalização o melhor


tes se tornem multiplicadores de conhecimen-


caminho para as escolas, pois comprometia a


tos que fortaleçam a participação dos povos in-

unidade política interna dos povos xinguanos.


dígenas na sociedade brasileira como cida-


Entretanto, o projeto seguiu essa orientação,


dãos, com melhores condições de gerir e de-


organizando, em conjunto com a Seduc, uma


fender seu território, seus interesses e direitos,


venda e aquisição de bens, uso adequado e reunião com os prefeitos e os secretários de


Educação dos municípios envolvidos, na qual


conservação dos recursos naturais, busca de


foi apresentado o Projeto de Formação e foram


alternativas econômicas auto-sustentáveis e


feitas as reivindicações de criação das escolas,


melhoria da qualidade de vida.


contratação dos professores e manutenção da


infra-estrutura (materiais escolares, equipa-


Histórico da regularização do

mentos, construção de escolas etc.). Com ex-



curso e das escolas ceção de um município, todos os outros cria-



ram as escolas por meio de decretos. No en-


A Proposta Curricular do Curso de Forma- tanto, somente alguns municípios atenderam



ção de Professores do PIX para o Magistério foi às solicitações de contratação e de envio de


aprovada pelo Conselho Estadual de Educação


materiais. A maioria deles é de difícil acesso


de Mato Grosso em abril de 1998. Inicialmen-


para o deslocamento dos professores.


te previsto com seis anos de duração, consta- Lideranças e professores da maioria das al-

tamos a necessidade de seu prolongamento, deias avaliaram como problemático o proces-


pois identificamos três grupos distintos de


so de municipalização das escolas. Assim, en-


professores: um grupo com dificuldade de


viaram representantes a Cuiabá, que reivindi-


compreensão da Língua Portuguesa ou dificul- caram ao governador e ao secretário de Edu-



dade de aprendizado; um grupo intermediá- cação a estadualização das escolas do parque.


rio, que consegue entender e se expressar em


Essa proposta foi aceita pela Seduc/MT, que


Português; e outro grupo com um desempenho


propôs a criação de três escolas centrais; as


melhor, tanto na compreensão da escrita da demais escolas ficaram anexadas a estas.



Língua Indígena quanto da Língua Portuguesa Em maio de 1998, os professores participa-


e nas operações aritméticas. Para atender a


ram da 3ª Assembléia da Atix, na qual esteve


168
PAINEL 7
Experiências de formação de professores indígenas

presente a maioria das lideranças do parque. A relação com os municípios tem sido di-



Esse encontro do grupo de professores e lide- fícil: os secretários municipais não participam



ranças propiciou a discussão sobre a vincu- das reuniões com professores e lideranças in-



lação das escolas ao estado ou aos municípi- dígenas no PIX; há diferenças salariais entre


os. Foi um processo difícil de discussão entre os municípios; algumas prefeituras continu-



a equipe do ISA, professores e lideranças. Para am enviando merenda escolar inadequada ao



a equipe de formação, foi um processo per- contexto do parque (sal, açúcar, biscoitos,


meado de inquietações, tais como: como ex- carnes enlatadas etc.); não há critérios defi- 169



plicar da melhor maneira o funcionamento dos nidos para a contratação de índios ou não-



órgãos governamentais em suas diversas ins- índios como professores, sendo contratados



tâncias? Como optar por um atendimento me- até missionários; interferências do ponto de


lhor, sabendo-se que inexiste ainda uma polí- vista pedagógico (não-aceitação dos diários



tica adequada para as escolas indígenas? Ao dos professores da forma como vêm sendo



mesmo tempo, se o processo de regularização elaborados, impressão de livros didáticos ina-



das escolas não se iniciasse, a demanda por dequados, por exemplo), envio insuficiente de


escolarização levaria a um número maior de materiais escolares; falta de clareza na apli-



crianças e jovens fora do PIX. cação de recursos governamentais no atendi-

Nessa assembléia, foi decidida a estadua- mento das escolas.



lização de 21 escolas e nove continuaram À medida que as escolas se configuram


municipalizadas, ligadas a três municípios como entidades regularizadas no sistema de



(Gaúcha do Norte, Feliz Natal e Querência). A ensino público, maiores contradições são en-

intenção das lideranças e dos professores foi contradas no respeito à sua especificidade.

experimentar os dois tipos de vínculo. Para as Apesar do avanço da legislação que legitima

escolas estadualizadas, foram escolhidos três o direito à especificidade, as contradições se



diretores entre os professores índios. Eles têm multiplicam, pois o modelo de atendimento

se responsabilizado pela compra de materiais é o mesmo das escolas não-indígenas. Para


com recursos da Seduc/MT e pela prestação de suplantar essas dificuldades, é necessária a



contas, além de terem redigido o pedido de au- articulação entre órgãos governamentais e

torização de funcionamento das escolas ao instituições não-governamentais que atuam



CEE/MT, um dos passos burocráticos necessá- na Educação Escolar Indígena e com lideran-

rios. Uma das conquistas dos professores in- ças e professores indígenas, concretizando a

dígenas do PIX foi o direito de adquirir meren- participação destes no processo de gestão

da escolar nas próprias comunidades, evitan- das escolas.



do a introdução de alimentos industrializados Um fator positivo de todo esse processo de


por intermédio da escola. Para isso, foi flexibi- discussão sobre a escola no PIX vem sendo a

lizada e adaptada a burocracia na prestação de oportunidade de articulação entre professores



contas desses recursos. A Secretaria de Estado e lideranças. É importante que haja continui-

de Educação de Mato Grosso tem-se mostra- dade desse fórum de discussões, porque tem

do disposta a incentivar a participação de li- possibilitado aos professores do PIX a percep-



deranças e professores indígenas na gestão das ção de que seu trabalho está inserido num con-

escolas, apoiando reuniões para discutir o texto maior da política dos povos que vivem

atendimento. Desde 1997 a Seduc/MT mantém no PIX, de gerenciamento e defesa do territó-


uma educadora que se integrou à equipe do rio, e que o seu vínculo profissional deve ser

projeto e que participa dos cursos e do acom- com a sua comunidade, evitando que sua atu-

panhamento pedagógico às escolas e contribui ação fique reduzida a um vínculo contratual



para o aprimoramento do trabalho. com os órgãos governamentais.








Curso de Magistério de Ensino




Fundamental para professores




indígenas de Minas Gerais






Zélia Maria Rezende*


Seduc/MG





O estado de Minas Gerais, constituído por • a aprendizagem como um processo contínuo e


global que avança em função das experiências


diversos grupos socioculturais, abriga uma plu-


ralidade cultural e lingüística, compondo um vivenciadas pelos sujeitos em seu contexto his-



rico mosaico de diferentes tradições, conheci- tórico e social, sendo o etnoconhecimento o


pressuposto metodológico que retrata essa con-

mentos, valores e línguas que pode ser sinteti-


cepção de aprendizagem;
zado na expressão “Minas são várias”. ○

As sociedades indígenas destacam-se nesse • a experiência escolar como um tempo de vivência



quadro de diversidade e riqueza cultural. cultural e espaço de produção coletiva;



Em 1995, nascia o Programa de Implantação • a ampliação da compreensão crítica da rea-



de Escolas Indígenas em Minas Gerais, fruto de lidade e da capacidade de atuação sobre ela;

uma parceria entre os Krenak, os Maxakali, os


• a apropriação crítica de instrumentos cultu-


Pataxó e os Xacriabá, a Secretaria de Estado da rais e recursos tecnológicos nos diversos



Educação, a Universidade Federal de Minas Ge- âmbitos da vida sociocultural;



rais, a Fundação Nacional do Índio e o Instituto


• a formação profissional de educadores capa-

Estadual de Florestas. Voltado para o objetivo


zes de pensar e criar instrumentos e processos


maior de apoiar a autodeterminação dos povos


próprios e adequados de conhecimento e de


indígenas mineiros, esse programa tinha como transformação da realidade em suas aldeias.

proposta criar e colocar em funcionamento es-


colas indígenas vinculadas à rede estadual de


Considerando as intenções educativas, cons-


ensino nas quatro áreas do estado, procurando


tituíram objetivos específicos do curso:


construir democraticamente propostas experi-


• construir coletivamente a proposta curri-


mentais, diferenciadas, multilíngües e inter-

cular do curso, substituindo, acrescentando


culturais para a formação específica do profes-


ou complementando as proposições do Pro-


sor e para as escolas de cada povo indígena. jeto UHITUP (“alegria”, na Língua Maxakali),

No escopo do programa, o projeto de formação desenho inicial desse currículo;


de professores indígenas ocupou e ocupa o espaço


• habilitar o professor cursista indígena ao exer-


central, tendo por princípio básico a construção te-


cício do Magistério, mediante conclusão do


órica e conceitual conjunta entre formadores,


Curso de Magistério de Ensino Fundamental


formandos e respectivas comunidades, a partir da para Professores Indígenas, em nível médio;


experimentação e da pesquisa, sempre com um sen-


• viabilizar o ingresso do professor indígena na


tido de processo em direção à criação coletiva da


carreira do Magistério e sua integração no pla-


chamada Educação Escolar Indígena mineira.


no de cargos e salários do órgão contratante;


O Curso de Magistério de Ensino Fundamen-


tal para Professores Indígenas, realizado de 1996 • construir propostas específicas para as es-

colas indígenas, por meio da elaboração de


a 1999, teve como pressupostos e intenções


propostas curriculares, materiais didáticos,


educativas:




* Licenciada em História pela UFMG. Coordenadora-Geral do Programa de Implantação de Escolas Indígenas em Minas Gerais. Consultora da

Coordenadoria de Apoio às Escolas Indígenas/SEF/MEC.


170
PAINEL 7
Experiências de formação de professores indígenas

sistemas de avaliação e calendários esco- A autonomia e a independência diante de seu



lares adequados às necessidades, aos inte- processo de formação são dimensões sempre



resses e aos projetos de futuro de cada buscadas durante o curso de formação e para isso


povo;


foi de fundamental importância o exercício do es-


• fortalecer os processos interativos nos calen- tudo autônomo, da pesquisa independente, do



dários naturais, sociais e rituais dos espaços registro individual e sistematizado, seja com a



em que as escolas estão situadas. presença e a coordenação dos formadores, seja


Tendo como base os



principais problemas vivi-



dos pelos povos indígenas
Estudo da cultura


Múltiplas


de Minas Gerais, três e da natureza TERRITÓRIO
linguagens


questões foram eleitas • Culturas indígenas


ÁGUA • Línguas indígenas


para nortear todo o traba- • Geografia • Língua Portuguesa


• História CULTURA


lho, em uma perspectiva • Literatura


• Ciências Químicas, • Artes


transdisciplinar, abran-
Físicas e Biológicas


gendo três áreas de co- • Educação Física

• Uso do território Pedagogia

nhecimento indicadas
indígena


indígena
pelo diagnóstico e nos de-
• Fundamentos

bates entre os povos indí-


da Educação

genas, os formadores e os

• Iniciação à pesquisa

órgãos envolvidos no pro- • Prática pedagógica



grama, conforme a repre- • Estrutura e funciona-


sentação a seguir. mento da escola



Achei boa a idéia des-



se currículo, porque há mis-



tura das matérias, acho que


uma matéria puxa a outra mesmo, acho que é isso


nos momentos de intervalos entre as etapas in-


mesmo. E a gente precisa, porque a gente tem que


tensivas do curso, viabilizando o que chamamos

aprender, sabendo pra que aquilo que a gente tá


de ensino não-presencial.

aprendendo vai servir.



Creuza Nunes Lopes, Tanto a gente tá ensinando como tá aprenden-


professora Xacriabá em formação


do. Então eu acho isso muito importante.



Antonio Aragão da Silva,


O diálogo, a negociação de significados e a professor Pataxó em formação



interação entre os múltiplos olhares sobre a rea-


lidade são alguns dos elementos presentes numa


O processo de avaliação do curso foi desen-


postura metodológica coerente com a proposta volvido a partir de três vertentes:



aqui desenvolvida. • a avaliação processual, mediante fichas de



Os projetos de trabalho, as oficinas e outras auto-avaliação construídas coletivamente e


atividades significativas foram algumas das preenchidas tanto pelos cursistas como pelos

ações que possibilitam um enfoque globalizador formadores, avaliando diferentes aspectos;



do conhecimento, em que, em um só processo, • a avaliação feita pela comunidade e conduzida



atitudes, valores, conceitos e habilidades são pela coordenação por etnia, por meio de reu-

construídos no exercício de resolver questões ou niões registradas em fitas de áudio e/ou vídeo;

vivenciar situações. A investigação e a observa-


• a avaliação pelo Conselho de Formadores,


ção, os debates e os registros em múltiplas lin- baseada em um memorial e em um trabalho


guagens, as vivências culturais, os jogos, as brin-


final. O memorial consiste na descrição, pelo


cadeiras e a criação de instrumentos foram pro-


cursista, de sua história de vida inserida no


cessos incentivados e muito valorizados. contexto de sua formação como professor.




Conclusões transcritas de dois memoriais O trabalho final, desenvolvido em grupo,



dão uma idéia de como os cursistas estão vendo consistiu em escolher um tema para desenvol-



seu processo de formação, em sua etapa formal- ver com os alunos, planejar e executar o plane-



mente final: jado na sua sala de aula, registrando as diversas


etapas; recolher e anexar os trabalhos e as avalia-



Durante todo este curso aprendi muitas coi- ções dos alunos; avaliar, em grupo, a aplicação e



sas boas, uma delas foi trabalhar com meus alu- os resultados obtidos individualmente, prepa-


nos. Na minha escola o aluno aprende a viver em rando um único relatório crítico de todo o tra-



comunidade, aprende os ensinamentos do nosso
balho. O formato desse trabalho final para os


povo, aprende a resgatar a consciência do cida-


Maxakali foi diferente – gravação em vídeo so-


dão brasileiro Pataxó e aprende a analisar a his-


bre sua cultura.


tória de outros grupos sociais. [...] Hoje ainda te-
O Curso de Magistério de Ensino Fundamen-


nho algumas dificuldades, mas estou consciente


tal para Professores Indígenas foi concebido


do que é bom para mim e meu povo. E, além do


mais, já tenho uma consciência de qual cidadão como um ciclo único e estruturado em:

que quero formar. [...] Mas ainda não aprendi tudo,



• etapas intensivas: ensino presencial no Par-
que Estadual do Rio Doce;

pois a escola que eu considero é aquela em que,


cada dia, a gente aprende um pouco mais. Uma


• etapas intermediárias: ensino presencial em


escola renovadora, de portas abertas, sempre área indígena e ensino não-presencial;



buscando novos horizontes.


Kanátyo, professor Pataxó em formação • estágios supervisionados.



As etapas intensivas foram organizadas em



oito módulos, concebidos como um processo


O curso foi acontecendo e os nossos conheci- global de formação em que, partindo de situa-

mentos foram aumentando, cada módulo que acon- ções-problema reais, os cursistas têm contato

tecia, cada visita que em área o projeto fazia, cada


com atividades e conteúdos disciplinares diver-


disciplina que a gente estudava, cada pesquisa que


sificados, não havendo uma fragmentação entre


com os nossos mais velhos da aldeia se fazia, cada


o que tradicionalmente a teoria curricular cha-

pessoa que no projeto entrava, com o estágio na


ma de objetivos, conteúdos e métodos. Efetiva-


escola da aldeia que a gente fazia, com os traba-


mente, não há como falar em conteúdo, isto é,


lhos de jornal e rádio que a gente produzia, com as


peças de teatro que a gente apresentava, com a


de “o quê” se ensina sem se discutir intenção

educativa e metodologia, ou seja, o “porquê” e o


escrita de livros, com a briga com os políticos para


“como” se ensina.

dar apoio ao nosso trabalho, com os congressos


que a gente participava, com o apoio dos nossos A preparação de cada módulo envolve

aliados que nos incentivaram, com a tradicional roda toda a equipe docente que, partindo da ava-

liação do processo de ensino-aprendizagem


embaixo da árvore, que no decorrer dos módulos


todo dia a gente fazia, cada avanço e obstáculo do módulo anterior e das demandas propos-

que via, muita coisa aprendia. [...] Me sinto muito tas pelos cursistas, participa de um movimen-

forte. A cada dia que passa, eu aprendo mais um


to interdisciplinar e transdisciplinar, na pre-


pouco e tenho o apoio da comunidade no paração e no desenvolvimento das ações



gerenciamento e na organização da escola. Eu educativas propostas.


penso em estudar mais, me especializar na área


Durante as etapas intermediárias, realiza-


de Educação, como Pedagogia, e talvez me formar


ram-se módulos de ensino presencial, envolven-


em mestrado e doutorado. Eu sonho com isso, por-


do disciplinas que ganham mais sentido e signi-

que a necessidade do povo Xacriabá é muito gran-


ficado dentro do cotidiano das aldeias: Cultura


de em expandir a educação dentro do seu territó-


Indígena, Língua Indígena e Uso do Território


rio. Nossos alunos precisam de terminar o Ensino


Indígena. Apesar de essas disciplinas serem de-

Fundamental e prosseguir os estudos até a univer-


senvolvidas fora das etapas intensivas, elas não


sidade. Vamos lutar para isso acontecer.


se tornaram “apêndices” dentro do processo de


José Nunes de Oliveira,


professor Xacriabá em formação formação dos cursistas.


172
PAINEL 7
Experiências de formação de professores indígenas

Durante as etapas intermediárias, acontece-


Troca de experiências e convívio com outras


ram também atividades de ensino não-pre- culturas. Conheci muita gente diferente e elas,



sencial. Orientados pelos formadores nas etapas de certa forma, colaboraram para que eu ocu-


passe um espaço que nunca havia ocupado an-


intensivas, os cursistas desenvolveram ativida-


des de pesquisa, literatura e escrita, coleta e pre- tes, dentro e fora da comunidade



paração de material didático, entre outras. Valmores Conceição da Silva,


professor Pataxó em formação


O estágio supervisionado constituiu-se em


um instrumento de formação em serviço. Após 173



O trabalho específico por etnia no curso
o quarto módulo intensivo de ensino presencial,


de formação mostrou resultados positivos


a Secretaria de Estado da Educação criou esco-


imediatos no rendimento acadêmico, na


las indígenas e designou os cursistas como do-


racionalidade de organização dos cursos, na
centes dessas escolas.


afirmação étnica e na valorização pessoal.


O estágio teve como foco central a reflexão


O Conselho Estadual de Educação de Mi-


da prática pedagógica incidindo sobre todos os


nas Gerais, no Parecer nº 1.109/98, de apro-


aspectos da vida cotidiana da escola e possibili-


vação do Curso de Magistério de Ensino
tando a construção gradativa de uma pedagogia


Fundamental para Professores Indígenas,

indígena, com características próprias e adequa-


considera que “essa escola torna-se real-
das à Educação Escolar de cada povo.

mente tempo de vivência e produção cole-


O caminho do trabalho por povo indígena


tiva transformando-se em espaço educati-


foi ficando cada vez mais evidente, especial-

vo para todos que dela participam: os pro-


mente quando os cursistas começaram a atuar


fessores não-índios, os professores indíge-


como professores em suas escolas indígenas.


nas, os órgãos envolvidos e as comunidades


Sua prática escolar assim como suas deman-

indígenas”.
das, interesses e objetivos diferenciados fo-

O curso teve a duração de quatro anos,


ram delineando a proposta de trabalho espe-


com cargas horárias presenciais e não-presen-


cífica por etnia. Os diferentes processos de


ciais, abrangendo um total de 3.216 horas.


implantação das escolas nas quatro áreas pro-

Recebeu autorização de funcionamento do


vocaram intensa reflexão coletiva no sentido


Conselho Estadual de Educação em novem-


de trabalhar com as especificidades dos qua-


bro de 1998 e certificou os 66 professores in-


t ro g r u p o s é t n i c o s d e m a n e i ra m a i s

dígenas em dezembro de 1999.


aprofundada e levaram à criação das coorde-

A partir de 2000, vem sendo desenvolvida


nações por etnia, quando começam a se con-


a formação continuada desses professores nas


figurar quatro cursos de formação distintos e


quatro áreas indígenas, por equipes específi-


específicos e geradores de processos distin-


cas por etnia, durante 44 horas a cada mês.


tos de escolas indígenas, refletindo o que o

Essa formação tem sido centrada em ações de


projeto vem chamando de “Pedagogia Indíge-


planejamento mensal das atividades dos pro-


na”. No entanto, não foi perdida a visão do


fessores indígenas, produção de material di-


todo, a unidade do processo, evidenciada nos


dático, observação das aulas e reflexão cole-


momentos de vivências conjuntas:

tiva da prática pedagógica.



O processo contínuo de reflexão e de com-


É muito bom saber que existem muitos grupos


promisso com a realidade da execução neces-


indígenas junto de nós: Xacriabá, Krenak, Pataxó,


Maxakali, Kaxinawá, Kaingang, Bakairi, Guarani, sariamente propõe mudanças, desafios, mais

perguntas que respostas, o que não deixa de


Tupinikim, povos da Bolívia etc. Foi uma alegria


muito grande conhecer todo esse povão. Aprendi ser um bom sinal. Enfim, as questões não apa-

muitas coisas com as trocas de experiências. recem, a menos que se comece a caminhar.

Maria Aparecida Lopes dos Passos, E, ao nos colocarem o espelho da perplexida-


professora Xacriabá em formação de, ajudam-nos a crescer.






Formação de Professores de séries




iniciais do Ensino Fundamental para




o contexto indígena Xokleng e




Kaingang: igualando oportunidades,




fortalecendo identidades,




consolidando o direito à diferença





Marlene de Oliveira



Seduc/SC





Resumo



O Curso de Formação e Habilitação de Professo- comunidades de origem. Tem a duração de 2.590 ho-

res de Séries Iniciais do Ensino Fundamental para o ras/aula, sendo que 20% da carga horária de cada disci-

Contexto Indígena Xokleng e Kaingang vem sendo plina é realizada na modalidade de ensino a distância.

desenvolvido pela SED/SC como experiência peda- O trabalho é desenvolvido com base nos pressu-

gógica em regime especial desde 1999, em cumpri- postos que orientam o Referencial Curricular Nacional

mento ao que dispõe a LDB nº 9.394/96, no seu artigo para as Escolas Indígenas, no que se refere à elabora-

79, e concretizando as proposições do Plano Nacional ção e à implementação de um programa de educação



de Educação, no que diz respeito à Educação Escolar que atenda aos anseios e aos interesses da comunida-

Indígena, bem como atendendo às determinações do de indígena, bem como à formação de educadores ca-

Fundo de Desenvolvimento do Ensino Fundamental pazes de assumir essas tarefas e de técnicos capacita-

e Valorização do Magistério que extingue, no prazo de dos a assessorá-las e viabilizá-las. Além disso, está pau-

cinco anos, a categoria de professor leigo. tado no documento “Educação Escolar Indígena”, que

Foi aprovado pelo Parecer nº 248/98 do Conselho integra a Proposta Curricular de Santa Catarina – Edu-

Estadual de Educação/SC e destina-se a professores cação Infantil, Ensino Fundamental e Médio: Temas

indígenas leigos que já atuam nas escolas indígenas, multidisciplinares, elaborado com a colaboração de

além de outros índios interessados, indicados por suas professores índios.







Considerando os preceitos constitucionais básica, e sabendo-se que a construção de uma



e as diretrizes do MEC, que apontam para a ela- sociedade democrática envolve, também, o re-

boração de um currículo intercultural, bilíngüe, conhecimento da diversidade étnica e a garan-


tia do direito de manifestação dos costumes e


específico e diferenciado, a Secretaria da Edu-


cação e do Desporto do Estado de Santa tradições das diferentes culturas, faz-se neces-

Catarina, por intermédio do Núcleo de Educa- sária a ampliação de oportunidades de educa-



ção Indígena (NEI), tem buscado efetuar uma ção a essas comunidades, fortalecendo o pro-

cesso educativo de cada etnia, pois sem a esco-


proposta de educação que contemple o siste-


ma educacional da sociedade envolvente, va- la esses povos estão excluídos do processo his-

lorizando as culturas e as tradições das comu- tórico global e atual da sociedade na qual se

nidades indígenas. inserem.


É com base nesse entendimento e nas dis-


Diante do quadro que se produz nas comu-


nidades indígenas, em que a maioria de seus cussões promovidas pelo NEI com as comuni-

membros não possui sequer a escolarização dades, desde 1994, que vimos propondo pro-

174
PAINEL 7
Experiências de formação de professores indígenas

gramas específicos visando à formação de re- como à formação de educadores capazes de as-



cursos humanos para o exercício da docência sumir essas tarefas e de técnicos capacitados a



entre os próprios indígenas, considerando suas assessorá-las e viabilizá-las. Além disso, está



tradições socioculturais e estimulando a emer- pautado no documento “Educação Escolar In-


gência de métodos de ensino que garantam a dígena”, que integra a Proposta Curricular de



produção de uma literatura nas línguas nativas. Santa Catarina – Educação Infantil, Ensino Fun-



O estado de Santa Catarina abriga três damental e Médio: Temas Multidisciplinares,


etnias – Kaingang, Xokleng e Guarani – que que considera fundamental a formação de re- 175



somam 8 mil índios. cursos humanos para o exercício da docência



Os Guarani não possuem áreas demarcadas, entre os profissionais indígenas, considerando



o que faz com que ocupem terras de outros gru- suas tradições e estimulando a emergência de


pos indígenas. Em virtude da sua grande mobi- métodos de ensino que garantam a produção



lidade social, não é possível proceder a um de uma literatura na língua nativa.



mapeamento preciso e definitivo desse grupo. Entre os vários aspectos apontados pela Pro-



Entretanto, em 1990, registra-se sua presença posta Curricular de Santa Catarina, destaca-se


em pelo menos 22 municípios, áreas de ocupa- a discussão sobre o caráter diferenciado da Edu-



ção tradicional. cação Escolar Indígena, passando pela questão

Os Kaingang, um dos maiores grupos que da cultura como elemento determinante nas

sobrevivem no Brasil, somam 4.400 indivíduos, relações educacionais estabelecidas entre a es-

aproximadamente, e ocupam as áreas de Xape- cola e a comunidade indígena.



có (Municípios de Ipuaçu e Entre Rios), Toldo Propõe que o currículo, entendido como

toda a organização da escola − seus conteúdos,


Chimbangue e Kondá (Chapecó), Toldo Pinhal


(Seara), Ibirama e Palmas (Abelardo Luz). a forma como são distribuídos os períodos leti-

Os Xokleng somam aproximadamente 1.800 vos, o material didático, entre outros aspectos

índios e constituem o único grupo Xokleng do −, seja discutido e elaborado em parceria com

Brasil. Ocupam a área indígena de Ibirama e a comunidade indígena. Para tanto, trabalha-

Palmas. se na perspectiva de construção desse currícu-



Para viabilizar o atendimento educacional lo diferenciado com os professores que atuam



a essas comunidades, a Secretaria de Estado da nas escolas indígenas, a partir da prática desen-

Educação e do Desporto mantém 26 escolas volvida nessas unidades escolares e da contri-


indígenas, que atendem a 722 alunos de 1ª a buição da comunidade indígena.



4ª séries do Ensino Fundamental, e uma esco- O Curso de Formação e Habilitação de Pro-



la que oferece toda a educação básica a apro- fessores de Séries Iniciais do Ensino Funda-

ximadamente 505 alunos, totalizando 1.227 mental para o Contexto Indígena Xokleng e

alunos. As ações voltadas para essas escolas são Kaingang vem sendo desenvolvido pela SED/

propostas pelo Núcleo de Educação Escolar SC como experiência pedagógica em regime



Indígena (NEI), diretamente vinculado à Dire- especial desde 1999, em cumprimento ao que

toria de Ensino Fundamental, constituído em dispõe a LDB 9.394/96, no seu artigo 79, e con-

1996, no qual estão representadas as lideran- cretizando as proposições do Plano Nacional



ças indígenas, coordenadorias regionais de de Educação, no que diz respeito à Educação



Educação, escolas indígenas, universidades e Escolar Indígena, bem como atendendo às de-

outras instituições comprometidas com a cau- terminações do Fundo de Desenvolvimento do


sa indígena. Ensino Fundamental e Valorização do Magis-



O trabalho é realizado com base nos pres- tério que extingue, no prazo de cinco anos, a

supostos que orientam o Referencial Curricular categoria de professor leigo. Foi aprovado pelo

Nacional para as Escolas Indígenas, no que se Parecer nº 248/98 do Conselho Estadual de


refere à elaboração e à implementação de um Educação/SC e destina-se a professores indí-



programa de educação que atenda aos anseios genas leigos que já atuam nas escolas indíge-

e aos interesses da comunidade indígena, bem nas, além de outros índios interessados, indi-

cados por suas comunidades de origem. dagógicos e oficinas de produção literária



Tem a duração de 2.590 horas/aula, e 20% Kaingang e Xokleng.



da carga horária de cada disciplina é realizada Os docentes do curso integram o NEI como



na modalidade de ensino a distância. Entre docentes e consultores, contam com reconhe-


uma etapa presencial e outra, os alunos desen- cida experiência na área de Educação Indígena



volvem trabalhos, tais como: estudos orienta- e constituem uma equipe interdisciplinar para



dos; coleta de dados nas suas comunidades, a elaboração de proposta teórico-metodológica


buscando responder ou elucidar questões para cada etapa de ensino, com o acompanha-



surgidas no período presencial e estágios que mento de dois auxiliares de ensino bilíngüe,



contemplem observação, participação e regên- responsáveis por atividades extraclasse com



cia de sala de aula com o respectivo registro Língua Kaingang e Xokleng.


dessas práticas. A avaliação perpassa todas as etapas pre-



Ocorre em etapas concentradas, durante o senciais e não presenciais e é realizada pelo



recesso escolar – 26 dias em janeiro e 15 dias conjunto dos participantes (cursistas, docen-


em julho –, no Colégio Estadual Agrícola Cae- ○
tes, coordenação) e pelas instituições envolvi-
tano Costa, e em etapas intermediárias nos das, tendo a função de redimensionar o pro-

meses de maio e setembro – seis dias, perfazen- cesso educativo, detectando dificuldades, en-

do um total de 636 horas aula/ano. traves e redimensionando atividades e práti-



A opção por etapas concentradas deve-se ao cas pedagógicas.


fato de os alunos, em sua maioria, atuarem Todas as disciplinas e atividades desenvol-



como professores leigos, não alterando, assim, vidas no curso propõem-se a capacitar o pro-

o andamento dos seus trabalhos e, também, fessor-aluno a construir coletivamente uma


para que não fiquem tempo demasiado sem o proposta curricular das séries iniciais especí-

contato com suas aldeias. fica e diferenciada, intercultural e bilíngüe, ou



Todas as disciplinas de base comum, den- seja, uma proposta com organização curri-

tro do possível, procuram se adequar à ótica cular, conteúdos, metodologia, calendário es-

das culturas Kaingang e Xokleng, estabelecen- colar, avaliação e material didático que expres-

do relações com o já conhecido e fornecendo sem a visão de mundo e o modo de ser



instrumental para que o professor-aluno inda- Kaingang e Xokleng.



gue-se e busque conhecer mais sobre a sua O curso integra o Programa de Formação

própria realidade. Continuada para Educadores que Atuam no



Além dessas disciplinas de base comum, o Contexto Indígena, em que se inserem: 96 ho-

curso inclui as disciplinas de Sociologia Cultu- ras/ano de capacitação a todos os educadores



ral, Língua Kaingang/Xokleng, História e Orga- que atuam na Educação Indígena e o Curso Su-

nização Social Kaingang/Xokleng, Metodologia pletivo de 5ª a 8 ª séries com Qualificação para



de Pesquisa, Saúde Pública, Metodologia do o Magistério Indígena, em módulos, que aten-



Ensino da Língua Kaingang/Xokleng e Metodo- de à especificidade do contexto escolar indí-



logia do Ensino Bilíngüe. gena, visando à qualificação, em nível de En-


Ocorreram miniestágios distribuídos ao sino Fundamental, dos profissionais que atu-



longo do curso, computados nas horas de en- am nesse contexto. Inclui no quadro curricular

sino a distância, realizados em Língua Portu- as disciplinas Língua Indígena Materna e Cul-

guesa e Língua Kaingang ou Xokleng, com a tura Indígena (Kaingang, Xokleng e Guarani, de

produção de relatórios e a participação em se- acordo com a comunidade à qual se destina) e



minários para apresentação e problematização Metodologia de Ensino. Esse curso foi autori-

dessa atividade. zado pelo CEE/SC, por meio do Parecer nº 217/



Os cursistas também participam de proje- 98, e inclui a capacitação das equipes vincula-

tos especiais de pesquisa e fomento cultural das aos Centros de Educação de Adultos

em suas comunidades, além de oficinas para (Ceas), assim como a produção de material

produção de material de apoio e recursos pe- específico.



P AINEL 8

EXPERIÊNCIAS DE FORMAÇÃO
DE PROFESSORES INDÍGENAS
Eunice Dias de Paula

Terezinha Furtado de Mendonça

177
Professores indígenas:




processos formativos e algumas




indagações





Eunice Dias de Paula*



Cimi/MT






As reivindicações por uma escola indígena formativos vivenciados por esse professor nos



com um ensino que atenda às expectativas dos anos que antecederam a sua prática pedagógi-



diferentes povos têm na figura do professor in- ca em sala de aula. Há uma concepção de for-



dígena um dos seus eixos basilares. De fato, ao mação fortemente marcada pela depreciação
pensarmos na longa trajetória desses quinhen- ○

○ em relação ao professor que não passou por
tos anos, em que as políticas públicas destina- processos de escolarização seriados, estabele-

das a essas populações, via de regra, foram cidos por nossa sociedade, em escolas fora das

pautadas por ações que visavam à assimilação aldeias, e que, portanto, estaria menos apto a

e ao apagamento da diversidade étnica presen- cursar um segundo grau com habilitação para

te neste país, constatamos que os diversos o Magistério em escolas indígenas. Como o que

agentes educacionais utilizados pelos coloni- se privilegia é a formação dada nos cursos or-

zadores cumpriram com eficácia seu papel,


ganizados por não-índios, esse professor é, qua-


implementando modelos educacionais favorá- se sempre, considerado não-escolarizado ou



veis ao intento maior do projeto colonial. com escolaridade insuficiente. Queremos res-

Quando uma nova história começou a ser saltar o contra-senso embutido nessa concep-

traçada, há cerca de trinta anos, com os povos ção, pois se o que se espera é que ele seja um

indígenas exigindo escolas que estivessem a bom professor indígena, o processo formativo

serviço de seus projetos de vida, nada mais proporcionado pelas comunidades é que deve-

coerente que pessoas das diversas etnias as- ria ser considerado relevante.

sumissem essa função, considerando o domí- Concordamos que o exercício do Magisté-



nio lingüístico e cultural próprio a um mem- rio acarreta responsabilidades variadas, que

bro interno ao grupo, sem dúvida, superior ao têm que ser contempladas dentro do que as

de qualquer não-índio, que, mesmo dotado de comunidades expressam em relação às expec-


boas intenções e preparo técnico, não pode ser tativas do trabalho do professor, responsabili-

comparado a quem nasceu e foi criado em ou- dades bastante diferentes das que ele pode en-

tro chão cultural, passando por experiências contrar entre os especialistas de Educação In-

formativas únicas, como os rituais de inicia- dígena, como “entender a vida dos brancos”, por

ção, os ensinamentos necessários à sobrevi- exemplo. Sobretudo se considerarmos que a



vência, os conhecimentos mitológicos etc. escola é uma instituição que está sendo apro-

Entretanto, de modo bastante paradoxal, priada pelos povos indígenas, mas que, nesse

constatamos que, se a figura do professor indí- movimento de apropriação, carrega consigo


gena parece consensualmente aceita no discur- uma organização de conhecimentos em tempos



so e na prática dos detentores do poder, encai- e espaços muito diferentes dos sistemas edu-

xada nos programas de Educação Escolar Indí- cativos tradicionais. A par dessas considerações,

gena que se multiplicaram no país, o mesmo ousamos afirmar que a formação dos profissio-

não se pode dizer a respeito dos processos nais de Educação Escolar Indígena não pode ser





* Pedagoga, mestre em Estudos Lingüísticos pela UFG, assessora pedagógica da Escola Tapirapé, em Mato Grosso.

178
PAINEL 8
Experiências de formação de professores indígenas

pensada de um modo desconectado do proces- organizamos, a pedido deles, cursos de Língua



so formativo vivenciado pelos professores em Tapirapé, assessorados pela Profª Dra. Yonne



suas comunidades, sob risco de continuarmos Leite, do Museu Nacional, UFRJ. No primeiro



a agir do mesmo modo que os primeiros colo- desses cursos, realizado em 1997, os professo-


nizadores. Ou a escola se insere nos sistemas res desejavam tomar decisões ortográficas, mas



educacionais indígenas, como algo necessário se sentiam inseguros a respeito de determina-



na realidade de contato com nossa sociedade, das palavras. Na avaliação, solicitaram que os


ou ela não será uma escola indígena, como aler- próximos cursos fossem realizados na aldeia, a 179



ta Melià.1 fim de facilitar a pesquisa com os mais velhos.



Queremos aqui destacar três experiências Esse fato é bastante significativo, pois demons-



formativas em que vimos atuando como asses- tra a articulação que pode existir entre novos


soria e que têm buscado superar essa contradi- conhecimentos, no caso, a aquisição de um ins-



ção, por meio de vários caminhos. Entre os trumental de análise lingüística, e o profundo



Tapirapé, povo com o qual convivemos há um conhecimento da Língua Tapirapé, exercido



longo tempo, a escolha inicial de pessoas con- pelas pessoas idosas.


sideradas aptas a serem professores aconteceu Os professores Kayabi, Apiaká e Mundu-



após longas discussões com a comunidade e a ruku, da região do rio dos Peixes, município de

decisão se encaixou num padrão cultural típi- Juara, em Mato Grosso, participaram do Proje-

co: os primeiros professores pertenciam a fa- to Tucum – Formação para Professores Indíge-

mílias tradicionais das quais podiam ser esco- nas – desenvolvido pelo estado do Mato Gros-

lhidas as lideranças. Após alguns anos, quando so. Entretanto, queriam elaborar a proposta

necessitaram de novos professores, o critério de curricular de suas escolas, uma vez que preten-

escolha utilizado foi o fato de dois rapazes te- dem oficializá-las como escolas indígenas. Para

rem ficado órfãos de pai. Queremos ressaltar, isso, solicitaram assessoria ao Conselho Indige-

nesses dois casos, o fato de que os critérios se- nista Missionário (Cimi), Regional MT. O traba-

letivos discutidos pela comunidade podem ser lho está sendo desenvolvido há dois anos em

completamente diferentes do que a simples encontros periódicos, dos quais participam não

passagem por bancos escolares durante alguns só os professores, mas toda a comunidade.2 São

anos. A preparação deles foi sendo feita por momentos muito ricos, pois todas as pessoas

meio de um acompanhamento cotidiano, estão envolvidas na discussão a respeito de


permeado por um processo de reflexão e avali- como querem a escola para seus filhos, definin-

ação em reuniões com a comunidade. A habili- do todo o planejamento escolar, desde o calen-

tação para o Magistério aconteceu pela partici- dário até os conteúdos considerados importan-

pação no Projeto Inajá (I e II), organizado pelas tes no processo de aprendizagem concebido

prefeituras da região do Médio Araguaia em como necessário para a realidade atual.



Mato Grosso. Esse curso destinava-se também Os professores Guarani e Kaiowá, organiza-

a professores leigos das zonas rurais dos muni- dos no Movimento dos Professores Indígenas

cípios envolvidos, portanto não tinha a carac- Guarani e Kaiowá do Mato Grosso do Sul desde

terística de ser voltado exclusivamente a pro- a década de 1980, vinham lutando há muito

fessores indígenas. Um trabalho de “tradução” tempo para ter um curso de Magistério especí-

do curso fez-se necessário e, assim, o elo com a fico. O Projeto Ára Verá (“tempo iluminado”),

vida da aldeia foi se mantendo. Como havia assumido pela Secretaria de Educação do Esta-

uma lacuna no tocante à formação lingüística, do em 1999, em parceria com vários municí-





1
Bartomeu Melià, em palestra proferida no I Congresso Latino-Americano de Educação Escolar Indígena, promovido pela UFMS, em Doura-

dos, MS, em maio de 1998.



2
Esse trabalho é desenvolvido em conjunto com Maria Regina Rodrigues e Maristela Sousa Torres, ambas da equipe de coordenação do Cimi,

Regional MT.

pios, passou por uma longa gestação, envolven- a presença de D. Júlia, rezadora de Amambaí,



do professores indígenas, lideranças e aliados foi incrível, pois, além de ela trabalhar na prá-



dos Guarani e dos Kaiowá e, com certeza, deve- tica os Fundamentos da Educação Tradicional,



se a esse processo amadurecido a possibilida- realizando diferentes tipos de danças e de ce-


de de avanços significativos em relação ao que rimoniais, alternava momentos de exposição



conhecemos em termos de cursos para profes- teórica para os cursistas, usando cartazes com



sores indígenas. mitos desenhados. Em todas as etapas, tem


Segundo seus autores, o Projeto Ára Verá acontecido a presença desses caciques



“constitui-se num processo integrado às práti- rezadores, que realizam todas as manhãs um



cas vivenciadas pelos Guarani/Kaiowá, as quais ritual conhecido como jehovasa, uma bênção



se baseiam em três grandes fontes – teko (cul- matinal para que tudo corra bem durante o dia.


tura), tekoha (território) e ñe’e (língua) – que são Além disso, são consultados sobre assuntos



também os eixos fundamentais pelos quais vão que os professores, jovens em sua maioria, não



se articular os conteúdos e a metodologia do dominam. Durante a 5ª Etapa, quando discor-

curso”. 3 Essa proposta não ficou só no papel, ○

ria sobre as relações entre grafismo e escrita,
concretizando-se de várias formas: os alunos se exemplificando com motivos trançados em ar-

sentem absolutamente à vontade para se ex- cos e cestos, o Sr. Jofre, cacique rezador de

pressar em sua própria língua, durante as eta- Panambi, explicou em Guarani os nomes dos

pas presenciais do curso; às vezes, temos a sen- motivos decorativos. Foi uma surpresa para

sação de estar participando de um grande muitos, que não sabiam que havia denomina-

fórum de debates sobre a situação da língua, os ções diferentes para identificar os desenhos

valores culturais, ou sobre os sistemas educa- geométricos. Ainda nessa etapa, houve o lan-

cionais próprios e o que representa a presença çamento do livro de contos Ñe’ë Poty Kuemi

da escola; a “aula”, não raras vezes, transforma- (Palavras floridas tradicionais), produzido pe-

se em assembléia, e ao professor “ministrante” los professores a partir de pesquisas nas comu-



cabe aprender com verdadeiros mestres do nidades. O livro foi batizado pelos caciques

povo Guarani/Kaiowá. rezadores e rezadoras de várias aldeias, numa



A estreita ligação do projeto com a vida cerimônia comovente chamada ñe’ë mongarai.

Guarani está assegurada também pela possibi- A dimensão desse ato excede qualquer plane-

lidade da participação constante de caciques jamento curricular que possa ser feito pelos

rezadores durante as etapas presenciais do cur- técnicos das Secretarias de Educação, pois sig-

so, conforme afirmado num dos princípios me- nifica, de fato, algo produzido pela Educação

todológicos: Escolar sendo introduzido no sistema simbó-



lico-religioso do povo, como ressaltado por


[...] da produção do conhecimento, que implica Melià (op. cit.).



criar condições favoráveis para desenvolver o Acreditamos que o breve relato dessas três

processo de descoberta, pesquisa, criação e apro-


experiências de processos formativos de pro-


priação dos conhecimentos. Para suprir essa ne-


fessores indígenas mostra outros caminhos


cessidade, será assegurada, também, durante o


possíveis de trilhar. Resta saber se os respon-

curso, a participação efetiva de caciques Guarani/


sáveis pelas políticas públicas em Educação


Kaiowá, os quais garantem a orientação de ques-


estarão dispostos a assumir realmente o que


tões próprias da cultura tradicional, sob o seu


preconiza a Constituição Federal, que garante


ponto de vista (idem, ibidem: 15).

aos povos indígenas e, claro, aos seus profes-



Durante a etapa de Fundamentos da Edu- sores o direito aos processos próprios de apren-

cação, por mim ministrada em janeiro de 2000, dizagem.








3
Projeto Ára Verá – Curso Normal em Nível Médio – Formação de Professores Guarani/Kaiowá, Campo Grande, MS, 1999, p. 13.

180
PAINEL 8
Experiências de formação de professores indígenas

Projeto Tucum




Relato de uma experiência de formação




de professores indígenas em Magistério






Terezinha Furtado de Mendonça*


181


Seduc/MT






Resumo




rias de Educação dos estados e municípios a


O presente artigo retrata a experiência de for-


incumbência de sua aplicação, em consonân-
mação de professores indígenas para o Magisté-


cia com a Secretaria Nacional de Educação do


rio – Projeto Tucum. Esse projeto foi desenvolvi-


MEC. Tal mediação foi resultado do Decreto nº


do de 1996 a 2000, em quatro pólos regionais do


estado de Mato Grosso: Tangará da Serra, Água 26/91, de 4 de fevereiro de 1991.

Boa, Rondonópolis e Paranatinga, para 11 etnias Também no mesmo ano, foram publicadas

a Portaria Interministerial nº 559/91 e as Porta-


diferentes: Paresi, Rikbaktsa, Irantxe, Kayabi,


Munduruku, Apiaká, Nambikwara, Umutina, rias nº 60/92 e 490/93, instituindo no Ministé-



Xavante, Bakairi e Bororo. Dos duzentos cursistas rio da Educação o Comitê de Educação Escolar

que iniciaram o Projeto Tucum, 176 se formaram Indígena, cuja finalidade é subsidiar as ações

em nível médio e, destes, 70% ingressaram nos educacionais indígenas, servindo de referência

cursos do terceiro grau indígena na Unemat. aos planos operacionais dos estados e municí-

pios. A partir de então, foi elaborado pelo co-


mitê o documento Diretrizes para a Política


A política brasileira, por muitos anos, igno-


rou as demandas apresentadas nas questões in- Nacional de Educação Escolar Indígena, nor-

dígenas, quando colocadas nas discussões; o teando as ações a serem implementadas nas

que prevalecia era um discurso integracionista esferas federal, estadual e municipal.


No estado de Mato Grosso, o enfrenta-


dessas populações, ignorando as diversidades


de sociedades aqui existentes. mento da questão da Educação Indígena é an-



Com a promulgação da Constituição Fede- terior ao Decreto nº 27/91. A Secretaria Esta-



ral de 1988, foram assegurados os direitos in- dual de Educação (Seduc), ainda que sem com-

petência legal, já atuava junto às populações


dígenas em um capítulo específico (Dos Ín-


dios). Passou-se a reconhecer o direito à dife- indígenas, atendendo a algumas de suas neces-

rença, isto é, à alteridade cultural, estabelecen- sidades no campo educacional.



do-se a partir daí um novo paradigma rela- Em setembro de 1987, em função das difi-

culdades e da multiplicidade de instituições e


cional. A União passa a ter a incumbência de


legislar sobre as populações indígenas, com entidades que vinham atuando nessa questão,

uma nova concepção que não aquela de incor- buscou-se uma articulação dos diferentes tra-

poração à sociedade nacional. balhos pela criação do Núcleo de Educação In-


dígena de Mato Grosso (NEI/MT). Sem ter um


No ano de 1991, a Educação Escolar Indí-


gena sai da esfera da Fundação Nacional do caráter oficial, o NEI/MT caracterizou-se como

Índio (Funai) e passa a ser de atribuição do Mi- um fórum de discussão de ações entre as di-

nistério da Educação (MEC), tendo as Secreta- versas instituições.







* Assessora pedagógica na Equipe de Educação Escolar Indígena da Secretaria de Estado de Educação, MT. Atuou na Coordenação-Geral do

Projeto Tucum.

A partir de 1989, a Secretaria de Estado de nais, bem como para agregar forças e habilitar



Educação cria a Divisão de Educação Indíge- professores, levando em conta a diversidade



na e Ambiental, extinta na reestruturação da étnica e suas especificidades culturais, respei-



Secretaria, no ano de 1992. Essa divisão, em tando, dessa forma, o projeto educacional das


sua curta história, procurou desenvolver sua comunidades e sua necessidade de diferencia-



ação em consonância com o NEI, buscando mento.



responder às reivindicações das sociedades in- Em 1995, com o objetivo de reunir todas as


dígenas, encaminhadas por intermédio das li- agências envolvidas com a Educação Escolar



deranças de suas comunidades e por entida- Indígena, realizaram-se quatro seminários re-



des de apoio ao índio. Esse trabalho foi desar- gionais, a fim de pensar uma proposta comum



ticulado e o grupo esfacelado, sob o argumen- de formação de professores indígenas.


to da “modernização do Estado” e da gestão da Criou-se o Projeto Tucum – Programa de



qualidade total. Formação de Professores Índios para o Magis-



Com o atual governo, a questão indígena é tério. Tucum é o nome atribuído ao projeto por


retomada, discutida e analisada sob um novo ○
se tratar de uma palmeira resistente, cujo fru-
enfoque, constatando-se a inexistência de uma to faz parte da matéria-prima na confecção dos

política indigenista estadual. O tema passa a adornos, em todas as etnias do estado, e é na-

ser incluído no Plano de Meta. Nesse docu- tiva tanto no cerrado quanto na mata.

mento, algumas propostas são delineadas, ser- A escolha do nome não foi por acaso. Há

vindo como diretrizes para a implantação de uma associação do fazer criativo e cuidadoso

políticas. do artesanato com a formação de professores



A Coordenadoria de Assuntos Indígenas do indígenas que aponta para a significação da


Estado de Mato Grosso (CAIEMT), órgão liga- educação como técnica, como prática social

do à Casa Civil, é reativada e orientada pelo e cultural. É uma relação metafórica entre cul-

Programa de Governo, passando a articular tura e educação como técnica que deve ins-

forças para a implementação da política trumentalizar o índio para a ação social do


indigenista. contato.

O estado de Mato Grosso congrega 38 soci- Esse nome envolve sentidos, significações

edades indígenas, perfazendo uma população que se aderem ao projeto, vir tualizando

aproximada de 28 mil pessoas, distribuídas em objetivações. Entretanto, no curso do proces-


41 municípios do estado. No que se refere à re- so de construção do Projeto Tucum, esses sen-

alidade escolar, essa população dispõe de 150 tidos foram um desafio contínuo.

escolas, entre estaduais e municipais, atenden- Colocando-se como resposta, como enca-

do aproximadamente a 6.500 alunos. minhamento de reivindicações de direitos es-


Com o objetivo de assessorar as escolas in- pecíficos das populações indígenas no campo

dígenas, prestar atendimento técnico aos do- educacional, o projeto foi pensado como or-

centes indígenas e às agências que trabalham ganização coletiva da prática pedagógica, em



com a Educação Escolar Indígena, a fim de de- regime de co-responsabilidade dos diversos

liberar sobre a política indigenista estadual na atores em torno do processo de formação di-

área da educação, foi criado o Conselho de ferenciada de professores da Educação Esco-



Educação Escolar Indígena de Mato Grosso lar Indígena.



(CEI/MT), pelo Decreto n o 265/95, de 20 de Coordenação-geral, coordenação regional,


julho de 1995. docência, assessoria pedagógica, assessoria de



Com a elaboração do Diagnóstico da Edu- área de conhecimento, consultoria e monitoria



cação Escolar Indígena em Mato Grosso eram instâncias de gestão e execução da pro-

(Secchi, 1995), Seduc e CAIEMT avaliam a ur- posta pedagógica funcionalmente articuladas,

gência da implantação de um Programa de numa dinâmica de cooperação, interação e



Formação de Professores Indígenas que con- intercomplementaridade. O nexo de ligação



temple uma continuidade das ações educacio- entre elas foi construído pela consciência da

182
PAINEL 8
Experiências de formação de professores indígenas

importância do papel e do desempenho na fessor, ao currículo do projeto, à organização



ação conjunta. Procurou-se superar o nexo de do trabalho, à função socializadora e cultural,



ligação tradicional, construído segundo uma à afirmação das identidades e dos valores e ao



concepção funcionalista de organização, por trabalho docente do professor cursista. Assim,


meio de funções hierarquizadas. o professor cursista e seu desempenho



O projeto teve como objetivos a capaci- cognitivo não foram os únicos aspectos a se-



tação e a habilitação de professores índios, o rem avaliados.


acesso e o desenvolvimento escolar por meio O projeto buscou romper com a lógica da 183



do diálogo intercultural, condições de desen- avaliação somativa, pela qual o aluno precisa



volvimento do processo educativo fundado nas ter número “x” de pontos para ser aprovado.



culturas e formas de pensamento indígena, Dessa forma, não se pensou na prova como


condições de produção do conhecimento de único instrumento de avaliação. Outros meios



processos interativos escola/comunidade e precisaram ser construídos, sempre a partir de



fortalecimento desse processo, valorização do critérios não mais ligados aos números de pon-



profissional de educação das escolas indíge- tos alcançados em si, mas aos objetivos defi-


nas, elaboração de proposta curricular diferen- nidos (idem, ibidem – ver Avaliação).



ciada, bilíngüe e intercultural para as escolas O curso foi desenvolvido de forma parce-

indígenas em que os cursistas atuam. lada, para atender à realidade das comunida-

A proposta pedagógica do projeto visou des, que não permitem ao professor índio au-

romper com a concepção dicotômica entre sentar-se de seu lugar de trabalho para fre-

educação e prática social, constituindo-se em qüentar um curso regular sem, com isso, cau-

processo de conhecimento integrado às práti- sar-lhe sério prejuízo. Assim, o curso foi

cas vividas. Os eixos fundamentais do desen- estruturado em três etapas:



volvimento das comunidades indígenas esta- Etapa intensiva. Realizada no período de



vam baseados em seu território, sua língua e férias e recessos escolares, com duração de

quatro a cinco semanas; foram trabalhadas


sua cultura, portanto estes foram os eixos que


nortearam o currículo do projeto (Governo do as disciplinas de ensino, sob a orientação



Estado do Mato Grosso, Projeto Tucum, p. 30- de docentes e o acompanhamento de


monitores. Antes de cada Etapa intensiva


35).

foram realizados encontros preparatórios


Em se tratando do currículo, pretendeu-se


de formação e planejamento da etapa para


abordar conteúdos das culturas indígenas e de

docentes, monitores e coordenação, con-


outras, assim como os conhecimentos univer-


tando com assessoria específica de cada


sais que interessavam às necessidades de con-


área disciplinar.

tinuidade e transformação daqueles grupos.


Etapa intermediária. Compreendeu todas


Para isso, usaram-se, durante todo o processo

as atividades realizadas pelo cursista entre


educativo, as Línguas Indígenas e a Língua Por-


uma Etapa intensiva e outra. Obedeceu a


tuguesa, como instrumento de comunicação e


uma carga horária prevista na grade


objeto de estudo, em busca da manutenção e


curricular e a um cronograma de ativida-

da dinamização dessas línguas e culturas. Por-


des, atendendo às necessidades específicas


tanto, o Projeto Tucum teve por base um cur-


do cursista e de cada comunidade. As ati-


rículo diferenciado, específico, intercultural e vidades foram desenvolvidas na aldeia, sob



bilíngüe. a coordenação do monitor.


Entendendo a educação como um direito,


Estágio supervisionado. Foi a atividade re-


no projeto não coube avaliar para classificar,


alizada na aldeia, que contou com a pre-


excluir ou sentenciar, aprovar ou reprovar. Por- sença do monitor que observou, discutiu e

tanto, a avaliação incidiu sobre aspectos glo- analisou com os cursistas a sua atuação em

bais do processo, inserindo tanto as questões


sala de aula, debateu os problemas encon-


ligadas ao processo ensino-aprendizagem trados no dia-a-dia do trabalho e na rela-



como as que se referem à intervenção do pro- ção escola/comunidade.



O projeto foi organizado em quatro pólos pios básicos da escola indígena do Ministério



regionais, tendo por clientela 200 professores da Educação, o curso de formação de profes-



indígenas, atingindo indiretamente um públi- sores indígenas para o Magistério assume, ne-



co aproximado de 4.500 alunos. O primeiro cessariamente, uma qualidade constituinte de


pólo, situado no Município de Tangará da Ser- política pública em nível de estado e de muni-



ra, abrangia um total de seis municípios, en- cípio. O grande desafio a enfrentar, nesse ter-



volvendo oito etnias. O segundo, situado no reno, tem sido o do envolvimento das prefei-


Município de Água Boa, abrangeu quatro mu- turas de municípios com populações indíge-



nicípios e uma etnia. O terceiro pólo, no Mu- nas. A sensibilização das prefeituras, no senti-



nicípio de General Carneiro, abrangeu quatro do de aprender a Educação Indígena como



municípios e uma etnia. Por fim, o quarto pólo dever, conseqüentemente como compromisso


situou-se no Município de Paranatinga, abran- público, tem exigido disposição constante.



gendo três municípios e duas etnias. A invisibilidade dos índios como cidadãos



As etapas tiveram início em 1996, sendo mediatiza interesses e motivações de profes-


esse trabalho coordenado pelo estado, por ○
sores, repercutindo, por exemplo, na questão
meio da Seduc e da CAIEMT, com a consultoria da monitoria. O monitor deveria desempenhar

PNUD/Prodeagro, contando ainda com a par- um papel estratégico no processo pedagógico



ticipação da Funai, das prefeituras municipais do projeto, com permissão de observar, acom-

e das seguintes ONGs: Conselho Indigenista panhar e avaliar o desempenho do professor


Missionário (Cimi), Operação Amazônia Nati- índio, como cursista e como profissional da

va (Opan), Sociedade Internacional de Lingüís- educação em atividade em sala de aula, forne-



tica (SIL), Congregação das Missionárias cendo dados e indicações aos docentes acerca

Lauritas, Missão Salesiana, Junta Missionária das dificuldades, insuficiências e necessidades



Nacional ( JMN), Congregação das Ir mãs específicas, enfim, colaborando com ajustes de

Catequistas Franciscanas (Cicaf ). percurso. No desenvolvimento do projeto, con-



As assessorias do projeto estavam vincula- tudo, a monitoria se configurou como proble-


das às seguintes instituições: Universidade Fe- ma. Enfrentou-se, ao longo do processo, uma

deral de Mato Grosso (UFMT), Universidade rotatividade reiterada de monitores, com con-

Estadual de Mato Grosso (Unemat), Universi- seqüências pedagógicas críticas no âmbito de



dade de Campinas (Unicamp) e Universidade ensino-aprendizagem, acompanhamento e


Federal de Santa Catarina (UFSC). avaliação proposta. Essa flutuação teve dupla

O projeto contou com financiamento do face: de um lado, a precariedade e a indefinição



Banco Mundial, por meio do Programa de De- da situação funcional dos monitores nas pre-

senvolvimento Agroambiental (Prodeagro) e feituras, a baixa remuneração, as dificuldades


com apoio do Programa das Nações Unidas de deslocamento para as aldeias e, de outro, a

para o Desenvolvimento (PNUD). baixa motivação de professores em trabalhar



Posteriormente, já no ano de 1998, a polí- com Educação Indígena.



tica de formação de professores indígenas es- A cada desistência ou afastamento de um


tendeu-se para o atendimento da demanda dos monitor, enfrentou-se o desafio de encontrar



catorze povos da Terra Indígena do Xingu. um substituto, de resolver a situação funcio-



A experiência da Secretaria de Estado de nal e de capacitação na metodologia do proje-



Educação e da Coordenadoria de Assuntos In- to. Essas dificuldades configuravam uma ten-

dígenas, em parceria com outros agentes e com dência de acumulação de papéis, até que se

lideranças indígenas, em objetivar a proposi- equacionasse a contratação de um novo



ção de formação de professores indígenas para monitor. A acumulação da função de monitor



o Magistério, envolve o enfrentamento de de- do projeto com a de assessor pedagógico ou


safios imensos. Sendo a primeira ação sistemá- de docente na sede do município, ou em al-

tica de Educação Indígena, em conformidade guns de seus distritos, limitou, restringiu e



com as diretrizes gerais definidoras de princí- comprometeu o papel pedagógico de monitor.


184
PAINEL 8
Experiências de formação de professores indígenas

A dedicação exclusiva à monitoria seria um de representantes dificulta a consolidação de



requisito fundamental, quer fosse sob o posicionamentos em patamares de atualidade



enfoque das implicações pedagógicas, quer das discussões e decisões. Permitiram ver, no



sob o enfoque da dispersão geográfica das áre- âmbito dialógico dessas organizações entre si


as indígenas e das aldeias no interior dessas e com as outras, que a flutuação de represen-



áreas, necessitando de deslocamentos perió- tantes dificultou o avanço das discussões, li-



dicos ao longo de cada mês. mitando a ampliação e o aprofundamento da


Cada município deveria oferecer seu qua- interlocução. Permitiram ver que a experiên- 185



dro de monitores para atuar no projeto. Hou- cia do trabalho coletivo envolveu uma fase do



ve casos em que prefeituras “importavam” processo, um patamar específico de relação



monitores, por não disporem de profissionais pedagógica no interior do Projeto Tucum.


no município. Essa solução foi inadequada Esses desafios instigaram a capacidade de



para preencher a vacância de monitoria. Era resolução de dificuldades entre todos os envol-



imprescindível que o monitor fosse um profis- vidos, permitindo rever passos, lidar com con-



sional local, com conhecimento da realidade flitos, perceber erros, reconhecer fragilidades


e experiência no Magistério. Alguns pólos e contradições.



vivenciaram essa dificuldade de forma dramá- A avaliação de um projeto como o que ora

tica, havendo monitor que atendia a cursistas estamos apresentando supõe o tratamento de

de três povos indígenas diferentes. diferentes enfoques que dão forma a essa com-

Outro grande desafio foi desenvolver o pro- plexa realidade.



jeto em parceria com diversas organizações Para efeitos do presente trabalho, destaca-

não-governamentais de apoio aos índios. Es- rei alguns desses aspectos que tiveram maior

sas organizações possuíam orientações e agen- consenso e visibilidade quando da realização



das diferenciadas, exigindo, a cada fase do pro- da avaliação pelos diversos segmentos que par-

cesso, um trabalho intenso de construção de ticiparam do projeto (monitores, docentes,



consensos. Essas organizações, como já regis- cursistas, coordenação, consultores etc.).


tramos anteriormente, participaram da cons- Para melhor abordá-los, irei agrupá-los em



trução do projeto, da sua proposta pedagógi- quatro núcleos temáticos, a fim de enfatizar as

ca e da sua execução. suas diferentes naturezas – aspectos pedagó-



Essa participação mais direta no processo gicos, operacionais, políticos e financeiros. Ve-

pedagógico deu-se por intermédio de asses- jamos um pouco de cada um desses núcleos.

s o r i a s e m o n i t o r i a s. No q u e c o n c e r n e à Pedagógicos. A avaliação de todos os seg-



monitoria, ainda que por motivos plenamen- mentos expressou enfaticamente a impor-

tância da adoção de uma metodologia de


te justificáveis, registrou-se também a ocor-


rência de rotatividade, embora com implica- estudos centrada na pesquisa e nos conhe-

ções menos dramáticas, uma vez que a ques- cimentos culturais de cada povo. Esses dois

elementos constituíram as âncoras do pro-


tão da invisibilidade do índio não se colocou.


grama e conferiram-lhe unidade e se-


Mas, ainda assim, a flutuação desses moni-


qüenciação, não obstante as interrupções

tores implicou descontinuidade na sua ação


sofridas ao longo do período, quer pela


educativa.

alternação das etapas de realização, quer


Assim como os monitores, nem sempre os por problemas de ordem administrativa e



representantes dessas organizações nas etapas financeira.


de planejamento foram os mesmos, implican-


Operacionais. Talvez estes aspectos te-


do idas e vindas na discussão de aspectos mais


nham sido os que trouxeram maiores pro-


sensíveis, como a questão lingüística. Essas blemas e que, portanto, exigiram maior es-

idas e vindas permitiram ver diferentes dimen- forço e cooperação interinstitucional para

sões problemáticas da rica experiência de um superá-los. Embora o trabalho em parce-



projeto em parceria. Permitiram ver, no con- ria tenha sido um grande avanço nesse pro-

junto das organizações em si, que a flutuação jeto, a sua concretização no cotidiano não

tem sido uma das tarefas mais fáceis. Cada longo do percurso do Projeto Tucum desper-



instituição tem o seu próprio tempo insti- taram para a necessidade de se elaborar polí-



tucional, seu ritmo, suas prioridades, en- ticas públicas específicas para a Educação Es-


fim, o seu modo próprio de tratar as ques-


colar Indígena no Estado de Mato Grosso.


tões que lhe são apresentadas. Isso exige Os Cursos de Licenciaturas Específicos


um permanente esforço de todos os parcei-


para Professores Indígenas, que tiveram iní-


ros para valorizar os pontos de consenso e


cio em julho de 2001, são exemplos disso. Vi-


buscar superar os atritos e os dissensos.
sam à formação e à habilitação de professo-



Políticos. A implementação de políticas pú- res indígenas para o exercício docente no En-


blicas envolvendo diferentes atores exige a


sino Fundamental e Médio. Abrangem três


consolidação de um relacionamento que


áreas diferentes – Ciências Matemáticas e da


respeite a diversidade e que transite por di-
Natureza; Ciências Sociais; Línguas, Artes e


ferentes administrações, partidos políticos,


Literatura – e estão vinculados à Universida-


interesses locais e regionais etc. Nesse sen-

de do Estado de Mato Grosso em parceria com

tido, a realização do Projeto Tucum pode ○
outras instituições. Um dos objetivos do pro-
ser considerada uma iniciativa que conse-

jeto é possibilitar o acesso dos povos indíge-


guiu angariar apoiadores e aliados de dife-


nas a esse nível de ensino e contribuir para o


rentes espaços políticos, da mídia e de toda


a sociedade civil. A construção coletiva de fortalecimento dos projetos de vida e de fu-



projetos nos quais todos podem obter re- turo de cada povo.

sultados mostrou-se um caminho viável A implementação de uma política de Edu-



para atender a tantas demandas acumula- cação Escolar Indígena construída coletiva-

das ao longo de cinco séculos de domina- mente, que contempla os programas de Ade-

ção e de desrespeito para com os assuntos quação Institucional, Fortalecimento das Es-

indígenas. colas e Formação de Professores, tem sido um



Financeiros. Quando da elaboração do Pro- novo desafio na continuidade do processo



jeto Tucum, optou-se por agregá-lo ao deflagrado a partir do Projeto Tucum.


Prodeagro1 e por utilizar essa fonte de re-



cursos para custear os seus gastos. Mais tar-



de, porém, percebeu-se que a dependência


exclusiva de recursos externos traria uma Bibliografia



série de dificuldades operacionais (incom-


GOVERNO DO ESTADO DO MATO GROSSO. Plano de


patibilidade da liberação dos recursos com


Meta, 1995/2006 – plano estratégico. Estudos prelimi-


a programação dos gastos, inadimplências,

nares. Cuiabá, 1994.


cortes, reduções, conjuntura econômica


. Projeto Tucum: a construção coletiva do tra-


mundial etc.), além de reforçar o já consa- balho pedagógico. Cuiabá: SEE/MT, 1996. p. 30-35.

grado descompromentimento de recursos


. Conselho de Educação Escolar Indígena


próprios para o financiamento dos assun- de Mato Grosso (CEI/MT). Urucum, jenipapo e giz: a

tos indígenas. Esse aprendizado fez com que Educação Escolar Indígena em debate. Cuiabá: Entre-

todos os projetos subseqüentes fossem fi- linhas, 1997.



nanciados por um leque de diversos apoia- . A construção coletiva de uma política de


dores e com diferentes fontes de recursos. Educação Escolar Indígena para Mato Grosso. Cuiabá:

SEE/MT, 2000a.
Nesse sentido, o Projeto Tucum teve um

. Relatórios de avaliação final do Projeto


grande êxito ao apontar a necessidade de


Tucum: monitores, docentes, consultores, cursistas e


fazer incluir nos orçamentos públicos recur-

coordenadores. Cuiabá: SEE/MT, 2000b.


sos específicos para os assuntos indígenas.


SECCHI, Darci. Diagnóstico da Educação Escolar Indíge-


As reflexões e as ações que aconteceram ao na em Mato Grosso. Cuiabá: PNUD/Prodeagro, 1995.








1
Trata-se de um programa de desenvolvimento agroambiental implementado em Mato Grosso, com recursos do Banco Mundial.

P AINEL 9

EXPERIÊNCIAS DE FORMAÇÃO
DE PROFESSORES INDÍGENAS
Bruno Kaingang

Arlene Bonfim

187
Experiência em formação




de professores





Bruno Kaingang



Associação dos Professores Bilíngües Kaingang e Guarani (APBKG)/PR






Resumo




de qualidade para as mais variadas culturas e



Este trabalho quer enfocar a situação pela realidades existentes no Brasil. Falando nisso,


qual a Educação Indígena passou com a chegada


ainda recentemente muitas escolas localizadas


dos europeus às Américas, quando houve uma
em terras indígenas encontravam-se fora dos

grande desestruturação na educação. Marcado por

○ sistemas de ensino dos estados, sendo, portan-
grandes conquistas de terra, esse momento fez

to, “clandestinas”. Nessas escolas, a maioria dos


com que ocorressem drásticas transformações na


vida política, social e cultural dos povos indíge-


professores tem formação de Magistério, em

nível de Ensino Médio, mas parte desses docen-


nas. Sendo assim, os povos indígenas foram sub-


tes não concluiu o Ensino Fundamental. Isso


metidos a uma nova visão de sociedade, seguin-


do o modelo europeu. dificulta o ensino e a aprendizagem dos alunos



Essa nova visão de sociedade imposta obrigou indígenas e a prática da língua materna com a

alfabetização, como está garantida na Consti-


os povos indígenas a se organizar para fazer frente


aos novos desafios propostos pela sociedade oci- tuição de 1988. Isso sem contar que o professor

dental. Nesse sentido, foram organizados vários indígena não conta com estímulos para a sua

encontros e cursos de formação de professores prática pedagógica.


Kaingang, para garantir uma reflexão em face dos A Constituição brasileira garante que a es-

desafios impostos aos povos indígenas do Brasil. cola indígena tem que ter tratamento diferen-

ciado, respeitando-se a especificidade de cada



A Educação Indígena passou por um proces- sociedade indígena. No artigo 210, estabelece

so de desestruturação desde a chegada da co- que o Ensino Fundamental deve ser ministra-

lonização européia nas Américas, há quinhen- do na Língua Portuguesa, respeitando e asse-



tos anos. Esse momento de conquista das ter- gurando às sociedades indígenas a utilização de

ras e extermínio dos povos e suas culturas fez suas línguas maternas. Essa garantia é assegu-

com que o mundo indígena passasse por uma rada e regulamentada na Lei de Diretrizes e

dura transformação política, econômica, social Bases da Educação Nacional, de 1996, que ain-

e cultural. Assim, a educação tradicional dos da estabelece a articulação dos sistemas de edu-

povos passou a ter uma nova visão, européia, cação para a oferta da Educação Escolar Indí-

uma educação que não respeita as diferenças gena em forma bilíngüe e intercultural, de

existentes entre as sociedades, dessa maneira modo que garanta a recuperação de sua cultu-

criando conflitos de identidade cultural e de ra e sua história étnica.


Diante da situação que a Educação Indíge-


nação. Se pensarmos no Brasil, veremos que não


existe uma educação que busque a formação do na estava vivendo no final do século XX, as co-

cidadão e sim uma formação voltada para o munidades indígenas, representadas por suas

mercado de trabalho. lideranças, tomaram a iniciativa de buscar al-


ternativas para a situação educacional dos


Quando se trata de Educação Indígena, ve-


remos que, passado o século XX, ainda não te- Kaingang do sul do Brasil. As lideranças e os

mos uma Educação Indígena estruturada com professores Kaingang começaram uma longa

suas especificidades e cujos educadores possu- discussão com entidades interessadas na Edu-

cação Indígena. As alianças com universidades,


am a devida formação que garanta um ensino


188
PAINEL 9
Experiências de formação de professores indígenas

professores e organizações não-governamentais criando, então, a necessidade de ampliar o qua-



possibilitaram que a educação Kaingang tomas- dro de professores mais críticos no que se refe-



se rumos mais consistentes, surgindo então o re às questões indígenas e não só à educação,



primeiro curso de Magistério de Ensino Médio. pois para os índios a educação não está


Essa necessidade é visualizada pela histó- desvinculada da vida e de todas as relações exis-



ria de luta dos Kaingang, pois a população es- tentes no seu mundo. Dessa maneira, formam-



tava crescendo; hoje, são cerca de 30 mil pes- se as novas lideranças em suas comunidades,


soas e com índice de crescimento constante. chamando para si a responsabilidade da cons- 189



Situando-se em mais de trinta comunidades trução das mais diversas demandas existentes



Kaingang no sul do país, eles se encontram en- nas terras indígenas. Com o objetivo de fazer



tre os cinco povos indígenas mais populosos uma educação de qualidade e uma formação de


do Brasil. cidadãos críticos na busca de melhoria para to-



Além disso, o número de professores não- dos, esses professores nunca perdem de vista



indígenas era superior ao de professores indí- as alianças formadas em torno da educação.



genas. Grande parte destes professores não tem Com uma clareza maior da Educação Indí-


nenhuma formação específica para trabalhar gena, surge a necessidade de aperfeiçoamento



com Educação Indígena, possuindo somente o desses professores Kaingang e de ampliação do

Magistério. Isso sem contar que a maioria de- quadro de professores; reiniciam-se as lutas por

les vê o indígena com a mesma carga de estere- formação continuada e formação inicial. Sur-

ótipo que a população regional, o que seria su- gem vários encontros de formação promovidos

ficiente para prejudicar o desenrolar do proces- pela Secretaria da Educação do Estado e outros

so escolar sob sua orientação. Para piorar essa realizados pelos próprios professores Kaingang.

situação, as escolas das comunidades indígenas Nesses encontros, a participação das lideranças

tinham a mesma organização curricular e o (caciques) é muito importante, pois são elas que

material didático das demais escolas da rede vão garantir e dar suporte político para os pro-

pública. Além disso, muitas escolas ainda con- fessores atuarem e pensarem novas alternativas

tinuam adotando orientação das Secretarias de para as comunidades Kaingang.



Educação sem nenhuma especificidade. Por outro lado, o número de professores ain-

Diante disso, e apoiados na Constituição de da era insignificante, e o de professores não-in-



1988, os professores criam a sua própria orga- dígenas continuava sendo maior, como é até

nização jurídica, a Associação dos Professores hoje. A tão esperada educação de qualidade es-

Bilíngües Kaingang e Guarani (APBKG), e come- tava – e permanece – distante, pois a desquali-

çam uma discussão mais acirrada sobre a im- ficação dos professores para trabalhar com in-

plantação do ensino específico diferenciado. dígenas ainda não tinha sido superada; para

Dessa luta, surge então o primeiro curso de piorar isso, possuem em suas mãos as direções

Magistério específico para os professores dessas escolas nas terras indígenas.



Kaingang, já citado, que começa em 1993, gra- Com isso, surge a discussão sobre a auto-

ças às alianças feitas pela Universidade de Ijuí, nomia nas escolas indígenas, pois as escolas em

o Conselho de Missão entre Índios (Comin), o terras indígenas adotavam todo o sistema das

Conselho Indigenista Missionário, a Secretaria escolas tradicionais. Assim, a necessidade de



da Educação do Estado do Rio Grande do Sul e formação ainda é maior, pensando então em

a APBKG, com apoio financeiro do Ministério garantir um controle da administração da es-


da Educação, formando então ou diplomando, cola, seja pedagógico ou administrativo. Isso



em 1996, 22 professores, com habilitação espe- garantiria uma aproximação maior às es-

cífica para trabalhar educação bilíngüe e pecificidades de cada comunidade Kaingang,



intercultural nas escolas Kaingang. com maior qualidade do ensino e com a práti-

Esses professores Kaingang passam a atuar ca do bilingüismo em todas as escolas situadas



em suas comunidades e a ter uma ligação mais nas comunidades.



afetiva com as pessoas da comunidade escolar, Pensando na ampliação, na conquista da



autonomia e na garantia da recuperação do es- na terra indígena de Guarita, Município de Re-



paço perdido ao longo do tempo na formação dentora, e outro no Município de Benjamin



dos professores Kaingang, surgiu no ano 2000 a Constant do Sul, RS.



discussão sobre a formação de novos professo- Mais uma vez, as lideranças dessas comu-


res Kaingang. Desse modo, a Funai, a Universi- nidades estão presentes com seu apoio aos pro-



dade de Passo Fundo, a Universidade de Ijuí, as fessores, acompanhando todas as discussões no



lideranças indígenas e a APBKG, com o apoio que diz respeito à educação e às questões que


da Prefeitura Municipal de Benjamin Constant envolvem suas comunidades, pois a situação



do Sul, começam o processo de discussão, vi- hoje enfrentada pelos indígenas não é diferen-



sando atingir a garantia da especificidade da te daquela que todos nós estamos acostumados



Educação Kaingang e a conquista da autonomia a ver ao longo dos quinhentos anos de nosso


educacional nas terras indígenas. país. Certamente, não será essa luta por forma-



Essa idéia de formação de uma nova turma ção que irá garantir a existência das comunida-



de professores concretiza-se em janeiro de des indígenas, mas também a insistência na


2001, sendo iniciada, então, a formação de mais ○
busca por uma sociedade mais justa em que
uma turma de professores com um número de cada professor seja mais um instrumento de

cem professores Kaingang, divididos em dois luta por melhoria em todos os setores da socie-

núcleos estratégicos no Rio Grande do Sul: um dade.










A Educação Escolar Indígena




no Estado do Amazonas:


Projeto Pira-Yawara




Arlene Bonfim

Seduc/AM





Introdução

às necessidades demonstradas pelas comunida-



Integrando-se aos dispositivos legais da des indígenas, que passam a gerir seus proces-

Constituição de 1988 e à LDB/96, que asseguram sos próprios de aprendizagem e a ocupar seus

o uso e a manutenção das línguas maternas e o espaços diante da sociedade majoritária, ao


respeito aos processos próprios de aprendiza- mesmo tempo que lhes garante o direito a uma

gem das sociedades indígenas no processo es- escola com características específicas, que bus-

colar, é que o estado do Amazonas, por meio da que a valorização de seu conhecimento tradici-

Secretaria de Estado da Educação e Qualidade onal, fornecendo-lhes, ainda, instrumentos para


do Ensino (Seduc/AM), vem garantindo os direi- enfrentar o contato com outras sociedades.

tos indígenas, ao coordenar e executar a política Para atender a esse grande desafio, elaborou-

de Educação Escolar Indígena, com prioridade se o Projeto Pira-Yawara, que tem como objeti-

atribuída à formação de professores. vo assegurar condições de acesso e de perma-


Considerando não somente os preceitos le- nência na escola à população escolarizável na



gais estabelecidos, o estado do Amazonas vem educação básica nas terras indígenas, garantin-

atendendo, fundamentalmente, aos interesses e do uma educação diferenciada, específica,


190
PAINEL 9
Experiências de formação de professores indígenas

intercultural, bilíngüe, comunitária e de quali- tucional, que sirva de fórum de discussão e



dade que responda aos anseios desses povos. de debate, para que as comunidades indíge-



nas possam determinar a formulação de uma


política lingüística a serviço da qual a escola


Ações do Projeto Pira-Yawara


estará atuando.



• Formação inicial de professores indígenas. • A escola indígena deve ser diferenciada, es-



• Formação continuada de professores indí- pecífica, intercultural, bi/multilíngüe, comu-


genas. nitária e de qualidade. 191



• Formação continuada de técnicos das Se- • Aprendizado via pesquisa como forma de



cretarias Municipais de Educação. compreensão da realidade, no qual os



• Assessoria técnico-pedagógica e adminis- etnoconhecimentos se aliem às diferentes in-


formações e aos conhecimentos técnico-cien-


trativa às Secretarias Municipais de Educa-


ção (Semeds). tíficos. Nesse enfoque, a produção do conhe-


cimento é mais importante do que sua repro-


• Formação continuada de técnicos da Secre-


dução. Por meio da pesquisa, os componen-


taria de Estado da Educação e Qualidade do


tes curriculares passam a ter por função pos-
Ensino (Seduc/AM).

sibilitar a reflexão, a compreensão crítica da

• Diagnóstico lingüístico e antropológico da ○

realidade e a capacidade de atuação sobre a
realidade indígena no estado do Amazonas.

situação sociocultural do povo em questão.


• Desenvolvimento e fomento do uso das lín-



guas indígenas no estado do Amazonas.


Objetivo

• Produção, editoração, publicação e distri-


buição de material didático específico e di- Formar os professores indígenas que estão

ferenciado. em sala de aula nas comunidades indígenas,



• Publicações didático-pedagógicas. como professores pesquisadores de seu próprio


universo cultural, possibilitando-lhes condições


• Distribuição de material escolar e didático-


para gerir seus processos próprios de aprendi-


pedagógico.

zagem e fortalecendo a identidade étnica de seus



membros.
Formação inicial de professores

indígenas

Forma de execução


Concepção Etapas letivas intensivas. Ensino presencial,


num posto indígena ou numa aldeia, sob a


• Formulação de uma política cultural que


orientação de docentes das diferentes áre-


atribua lugar e função à escola indígena por


as do conhecimento.
meio da participação efetiva dos professo-

res, em conjunto com suas comunidades. Etapas letivas intermediárias. Atividades de-

senvolvidas pelo professor na comunidade.


• Programa de formação como espaço insti-





Estrutura organizacional do programa




Etapa letiva intermediária



Etapa letiva

Modalidade N o de etapas Estágio Total (h/a)


intensiva Atividade Estágio não-


complementar superior

superior

Ensino Fundamental 5 3.200


2.300 900 – –

Ensino Médio/Normal 4 1.710 2.400


250 300 140


Total geral 9 4.010 1.150 5.600


440


Formação continuada de professores Formação continuada de técnicos das



indígenas Secretarias Municipais de Educação




Ao reconhecer a necessidade de formação A Portaria Interministerial nº 559/91, de 16


inicial e continuada dos próprios índios para de abril de 1991, determina no seu artigo 7º:



atuarem como professores de suas comunida-



des, a Secretaria de Estado da Educação e Qua- [...] que os profissionais responsáveis pela



lidade do Ensino (Seduc/AM) vem implementar Educação Indígena, em todos os níveis, sejam


a Política Estadual de Educação Escolar Indíge- preparados e capacitados para atuar junto às po-



na, assegurando a autonomia das escolas indí- pulações étnicas e culturalmente diferenciadas



genas tanto no que se refere à construção de seu


projeto político-pedagógico, quanto à partici- sejam eles da Funai, das Secretarias Estadu-



pação plena de cada comunidade nas decisões ais ou Municipais de Educação e ONG, a fim de



relativas ao funcionamento dessas escolas.

[...] garantir às comunidades indígenas uma

Adequado às peculiaridades culturais dos ○

educação escolar básica de qualidade, laica e


diferentes grupos, o Programa de Formação

diferenciada, que respeite e fortaleça seus cos-


Continuada de Professores Indígenas tem

tumes, tradições, línguas, processos próprios de


como objetivo capacitar os professores indíge-


aprendizagem e reconheça suas organizações


nas para a elaboração de currículos específi-


sociais (artigo 1).

cos para suas escolas, respeitando os modos



de vida dos índios, suas visões de mundo e as


As Secretarias Municipais de Educação do Es-


situações sociolingüísticas específicas por eles


tado, na sua maioria, às quais grande parte das es-


vivenciadas.
colas das terras indígenas está subordinada, ainda

Os cursos têm duração de 120 horas/aula e


apresentam sérias dificuldades quanto à compre-


são realizados nas sedes dos municípios, ou em


ensão e à aceitação da existência dessas escolas e


alguma aldeia indígena, conforme decisões to-


criam resistências quanto à implementação de


madas pelas lideranças e pelos professores in-


novos modelos de educação, como também à ofer-

dígenas, em conjunto com os representantes


ta da Educação Escolar Indígena municipal.


das Secretarias Municipais de Educação, sob a


Além do mais, os recursos humanos que


orientação da Gerência de Educação Escolar


compõem o quadro técnico dessas Secretarias


Indígena – Seduc/AM.
são reduzidos e não possuem formação adequa-

Os processos de discussão e de reflexão crí-


da para atendimento às peculiaridades culturais


tica da realidade ocorridos no contexto do cur-


dos diferentes grupos indígenas, de modo que


so, no qual questões relevantes vão surgindo a


possam garantir o apoio e o acompanhamento

partir dessas discussões e da própria atuação


pedagógico às escolas indígenas.


docente, são gerados com base nos pressupos-


Com base nos preceitos legais estabelecidos e


tos históricos e legais da educação em geral e


nos direitos fundamentais conquistados pelos po-


da Educação Escolar Indígena em particular, os


vos indígenas, a Seduc/AM, por meio da Gerência

quais auxiliarão os professores indígenas na


de Educação Escolar Indígena, vem garantindo e


construção dos projetos político-pedagógicos


assegurando a qualidade do Programa de Forma-


de suas escolas antes mesmo de sua formação


ção Continuada de Técnicos das Secretarias Mu-


inicial.
nicipais de Educação, capacitando-os no domínio

da metodologia e das bases legais e conceituais que


Temáticas desencadeadoras do processo


regem a política de Educação Escolar Indígena no


de discussão do grupo

estado e no país para o trato com essas popula-


• Base legal e conceitual da Educação Esco- ções e apoio às escolas indígenas na formulação

lar Indígena de seus projetos político-pedagógicos.



• Referencial Curricular Nacional para as Es- O Programa de Formação Continuada de



colas Indígenas (RCNEI) Técnicos das Secretarias Municipais de Educa-


192
PAINEL 9
Experiências de formação de professores indígenas

ção tem como proposta a discussão de temas que Educação e Qualidade do Ensino (Seduc/AM) vem



possam contribuir para a reflexão e a implemen- desenvolvendo uma política de articulação e de



tação de novas políticas e de práticas pedagógi- cooperação técnico-administrativa e financeira



cas e curriculares em áreas indígenas. com os municípios do estado, apoiando e fortale-


É executado nas sedes municipais, em cursos cendo, na estrutura organizacional das Secretarias



de 120 horas/aula, e conta, geralmente, com a par- Municipais de Educação, o desenvolvimento de



ticipação de diretores e professores de escolas uma política municipal de Educação Escolar Indí-


municipais e professores indígenas, bem como de gena, em consonância com a política estadual e 193



representantes de instituições locais ligadas à pro- com as diretrizes nacionais, política essa que con-



blemática indígena, sejam governamentais ou sidere a diversidade étnica do estado do Amazo-



não-governamentais, sob a orientação da Gerên- nas, os diferentes níveis de contato dessas etnias


cia de Educação Escolar Indígena (Seduc/AM). com a sociedade local e nacional e as peculiarida-



des regionais.



Temáticas básicas do programa Para atender a essa finalidade, a Secretaria



de Estado de Educação e Qualidade do Ensino
• Projeto Pira-Yawara, fundamentação e


(Seduc/AM), por meio da Gerência de Educação


operacionalização.

Escolar Indígena, vem desencadeando nos mu-
• Base legal da Educação Escolar Indígena, ○

nicípios envolvidos no processo de escolariza-


cumprimento e legalidade constitucional.


ção dos povos indígenas uma série de ativida-


• Base conceitual da Educação Intercultural,


des que, direta ou indiretamente, servem de in-

com ênfase nos conceitos básicos de cultu-


centivo e promoção da melhoria da Educação


ra, diversidade cultural, cultura lingüística,


Escolar Indígena, fortalecendo e valorizando a


etnocentrismo e relativismo cultural.

língua materna, as expressões culturais e artísti-


• Referencial Curricular Nacional para as Es-


cas, a história, o exercício pleno da cidadania e


colas Indígenas (RCNEI), como instrumento


da interculturalidade e demais conhecimentos


formativo e de reflexão das novas intenções


desses grupos étnicos que habitam o Amazonas,


educativas que devem orientar as políticas

bem como apoiando outras atividades que tam-


públicas educacionais para as escolas indí-


bém participam do processo educacional, como


genas brasileiras.

as de saúde, educação ambiental, cidadania e


• Proposições para o desenvolvimento da Polí-


direitos humanos.
tica de Educação Escolar Indígena Municipal.

Diante desse quadro, o Programa de Asses-



soria Técnico-Pedagógica e Administrativa às


Também durante o Programa de Formação


Semeds tem como proposta o desenvolvimento


Inicial e Continuada de Professores Indígenas,


de ações que possam contribuir para o incenti-


são capacitados em serviço técnicos e coorde-


vo, a promoção, a implantação e/ou a implemen-

nadores pedagógicos das Secretarias Municipais


tação de políticas e de práticas pedagógicas e


de Educação, de modo que possam participar


curriculares para as escolas indígenas.


das discussões e, dessa forma, acompanhar as



atividades relativas ao processo de Educação


Principais ações

Escolar Indígena nas escolas indígenas.



• Assessoramento à elaboração e apoio aos


projetos de Educação Escolar Indígena em


Assessoria técnico-pedagógica e

andamento que tenham o reconhecimento


administrativa às Secretarias

das comunidades indígenas.


Municipais de Educação

• Incentivo à implantação de projetos que vi-


sem à melhoria da Educação Escolar Indíge-


Com o compromisso legal de instrumentalizar-


se, definindo metas e ações de Educação Escolar na, bem como a realização de cursos de for-

Indígena que atendam às demandas das comuni- mação de professores indígenas nas regiões

onde os grupos étnicos ainda não dispõem


dades indígenas e às diretrizes estabelecidas pelo


de iniciativas dessa ordem.


Ministério da Educação, a Secretaria de Estado da


• Incentivo a uma política de articulação en- A proposta de uma escola indígena diferenciada



tre os vários segmentos locais à problemáti- representa uma grande novidade no sistema edu-



ca indígena, sejam governamentais ou não- cacional do País e exige das instituições e órgãos


governamentais, bem como o estabeleci- responsáveis a definição de novas dinâmicas,



mento de parcerias, para que juntos possam concepções e mecanismos, tanto para que essas


apoiar e garantir o desenvolvimento das


escolas sejam de fato incorporadas e beneficia-


ações relativas à Educação Escolar Indígena. das por sua inclusão no sistema oficial quanto



• Incentivo e apoio à criação de uma coorde- respeitadas suas peculiaridades.



nação ou setor responsável pela implemen-


tação de programas de Educação Escolar In- Cabe lembrar, então, que a Educação Indíge-



dígena na estrutura organizacional das Se- na, por seu caráter diferenciado, requer um qua-



cretarias Municipais de Educação. dro de técnicos devidamente preparados para atu-


ar nas comunidades indígenas. Dessa forma, é fun-


• Orientações quanto à política indigenista


brasileira e à legislação de ensino atual que damental que o estado disponha de um programa


trata da Educação Escolar Indígena, desta- ○
de formação para a sua equipe técnica, que sirva
cando a importância de seu cumprimento e de incentivo e apoio à implantação das novas po-

legalidade constitucional. líticas públicas de Educação Escolar Indígena.



• Orientações quanto aos princípios gerais a Daí a necessidade de a Secretaria de Estado



serem observados no desenvolvimento de da Educação e Qualidade do Ensino (Seduc/AM)


projetos e programas municipais de Educa- manter e preparar uma equipe de técnicos es-

ção Escolar Indígena, conforme estabelecem pecialistas das diferentes áreas do conhecimen-

as Diretrizes para a Política Estadual e Nacio- to para atuar, no âmbito das Secretarias Munici-

nal de Educação Escolar Indígena.


pais de Educação, no assessoramento de seus


• Promoção de estudos e discussão sobre as quadros técnicos para a oferta de educação es-

bases conceituais da educação intercultural. colar bilíngüe e intercultural aos povos indíge-

• Orientações quanto ao reconhecimento ofi- nas, produção de material de informação e



cial e à regularização legal de todos os esta- acompanhamento e avaliação da qualidade das


belecimentos de ensino localizados no inte- ações relativas à Educação Escolar Indígena.



rior das terras indígenas, no que se refere ao O Programa de Formação Continuada de


calendário escolar, metodologia e avaliação


Técnicos da equipe central tem como proposta


adequados à realidade sociocultural das co-


a construção e o desenvolvimento de habilida-


munidades indígenas. des e competências para que os técnicos bus-



• Orientações quanto à utilização do Referen- quem e aprofundem seus conhecimentos, am-


cial Curricular Nacional para as Escolas In-


pliando seu quadro de referência, de modo que


dígenas (RCNEI) como instrumento de dis-


sirvam de incentivo e apoio à implementação


cussão e implementação de políticas e prá-


das novas Políticas Públicas de Educação Esco-

ticas pedagógicas e curriculares em terras


lar Indígena nas esferas estadual e municipal.


indígenas.

Sem a composição e a manutenção de equi-


• Proposições para o desenvolvimento da Po-


pes de técnicos e consultores, não seria possível


lítica Pública de Educação Escolar Indígena


executar as linhas de ações estabelecidas pela

para o município, entre outras.


Secretaria de Estado da Educação e Qualidade



do Ensino (Seduc/AM) para o desenvolvimento



da Política Pública de Educação Escolar Indíge-


Formação continuada de técnicos

na no Estado do Amazonas, dada a diversidade


da Secretaria de Estado da Educação


de povos que habitam nossa região.


e Qualidade do Ensino (Seduc/AM)


Para isso, vem contando com uma consultoria


especializada, integrada por profissionais com ex-


O documento O Governo Brasileiro e Educação


Escolar Indígena (1995-1998), elaborado pela Secre- periência reconhecida e comprovada no campo

taria de Educação Fundamental (SEF/MEC) afirma: da Educação Escolar Indígena, composta por

194
PAINEL 9
Experiências de formação de professores indígenas

sociolingüista, antropólogo, especialista em Diagnóstico lingüístico



etnoconhecimentos e Educação Escolar Indíge- e antropológico da realidade indígena



na, os quais realizam atividades temporárias de
no estado do Amazonas



capacitação da equipe técnica central e de acom-


O Governo do Amazonas, por meio da Secre-
panhamento e avaliação das ações de Educação


taria de Estado da Educação e Qualidade do En-


Escolar Indígena desenvolvidas pela Gerência, ou


sino (Seduc/AM), considera necessário realizar


mesmo executam trabalhos mais pontuais desti-


um diagnóstico da situação da Educação Esco- 195
nados à estruturação e ao desenvolvimento da



lar Indígena. A intenção é realizar um quadro de
própria Gerência de Educação Escolar Indígena –


expectativas para referenciar os procedimentos


Seduc/AM.


da Gerência de Educação Escolar Indígena e,



conseqüentemente, levar a bom termo as ações
A formação continuada


do governo do estado.


e o aperfeiçoamento dos técnicos da


O diagnóstico tem como propósito não simples-


equipe central dão-se por meio de diversas


mente gerar dados, mas inserir a discussão e a ela-


providências, de modo que possam:


boração das informações no contexto da formação


• assessorar os professores indígenas na pro- dos professores. Assim, é possível colocar os pro-


dução de materiais didático-pedagógicos, na ○

fessores indígenas em conexão com outras realida-
construção de currículos, metodologias e sis- des – a aldeia, o povo, a região –, além de estabele-

temas de avaliação, no contexto dos progra-


cer um processo pedagógico por meio da coleta de


mas de formação; dados. Tal iniciativa corresponde ao método de tra-



• atuar como docentes em curso de formação balho que vem sendo desenvolvido na formação de

inicial e/ou continuada de professores indí- professores indígenas, qual seja, a ênfase na pesqui-

genas;

sa durante o processo de aprendizagem.


• assessorar as Secretarias Municipais de Edu-



cação; Para que o tratamento dado pelas políticas pú-



• colaborar com idéias criativas e buscar solu- blicas à educação escolar esteja em consonância

com o que as comunidades indígenas, de fato,


ções inovadoras que sirvam de base para im-


plantar e desenvolver uma educação transfor- querem e necessitam, é preciso que os sistemas

madora; educacionais estaduais e municipais considerem


a grande diversidade cultural e étnica dos povos


• participar de cursos e eventos relacionados


indígenas no Brasil e revejam seus instrumentos


com Educação Indígena (seminários, congres-


jurídicos e burocráticos, uma vez que tais instru-


sos, reuniões, encontros pedagógicos de pro-

mentos foram instituídos para uma sociedade


fessores indígenas, debates etc.) ou com ou-


que sempre se representou como homogênea


tras áreas afins ou de interesse da Gerência,

(Referencial Curricular Nacional para as Escolas


como lingüística, antropologia, ecologia, pe-


Indígenas, p. 12).

dagogia, saúde e outras;



• estagiar em instituições governamentais ou


não-governamentais com projetos em reali-


O planejamento da Educação Escolar Indígena,


zação na área de Educação Escolar Indígena;


em cada sistema de ensino, deve contar com a


• realizar estudos e pesquisas para atualização participação de representantes de professores



de informações, e outras. indígenas, de organizações indígenas e de apoio



aos índios, de universidades e órgãos governa-


Durante a realização dos cursos de capacitação mentais. (Resolução CEB nº 3, de 10/11/1999)



de equipe técnica central, também são convocados



os técnicos das Secretarias Municipais de Educação Principais ações



que atuam nas escolas indígenas, bem como os pro- • Realizar um levantamento e estabelecer con-

fissionais representantes de instituições envolvidas


tato com todos os projetos de Educação Es-


na questão da Educação Escolar Indígena. colar Indígena em curso no Amazonas.




• Estabelecer prioridades junto às populações ficiência expressiva (por exemplo: no ensino de



que reivindicam Educação Escolar Indígena, Matemática na escola em uma Língua Indígena,



mas que não contam com nenhum apoio ou para elaborar um projeto de piscicultura, pro-


institucional.


jeto de informática etc.).


• A discussão da forma como deve se desen- Tem sido demanda dos povos indígenas no



volver cada levantamento deve contar com Amazonas, por exemplo, dos Munduruku de


a participação de representantes indígenas,


Borba, ou dos Desano de São Gabriel da Cacho-


que serão colaboradores em todos os senti- eira, bem como dos Mura de Autazes, que o Es-



dos: poderão dizer qual a melhor época para tado colabore nos seus projetos político-lingüís-


a realização dos trabalhos (questões climá-


ticos de recuperar, salvaguardar ou fomentar o


ticas e atividades econômicas, por exemplo,


uso das suas línguas, de modo que elas possam


podem influenciar) e poderão ajudar a defi-
efetivamente ser utilizadas no processo educa-


nir quais as informações importantes para


tivo e em todas as outras situações.


constar no levantamento.


• Realizar um amplo diagnóstico da situação ○

da população indígena que habita zonas ur-



Principais ações
banas de todo o estado. • Responder às demandas dos povos indíge-

nas para apoiar o processo de recuperação,


desenvolvimento e fomento do uso das lín-


Desenvolvimento e fomento

guas indígenas no estado do Amazonas.


do uso das línguas indígenas no


• Elaborar e executar projetos na área de de-


estado do Amazonas

senvolvimento das línguas indígenas, para-


lelamente ou não aos cursos de formação de


Do Projeto Pira-Yawara decorre uma preocu-


professores do Projeto Pira-Yawara, em par-


pação com o uso efetivo das línguas indígenas


ceria com organizações indígenas e com en-


do povo em questão, normalmente a única lín-

tidades especializadas na área.


gua conhecida pela criança que chega à escola,


• Manter um programa editorial próprio nas


o que implica dizer estímulo a que os professo-


línguas indígenas no estado do Amazonas.


res indígenas preparem seus materiais didáticos


e de leitura na Língua Indígena e não (somente)



em Português. Exemplos disso são os livros pu- Produção, editoração, publicação



blicados até o momento pelo projeto.


e distribuição de material didático

No entanto, as línguas indígenas, que são lín-


específico e diferenciado

guas de minorias muito pequenas diante do



grande número de falantes de Português, neces- Esse programa tem como proposta instituir,

sitam de uma política de desenvolvimento e fo- entre os professores, a formação de índios como

mento do uso para que possam ser utilizadas pesquisadores de seu próprio universo cultural

com plenitude também em áreas outras que não e, igualmente, como escritores e redatores de

a da cultura tradicional, que se fazem necessá- material didático-pedagógico em suas Línguas



rias para a vida dos índios na e com a sociedade Maternas e/ou Portuguesa, referentes aos

contemporânea. Assim, como ocorreu em tan- etnoconhecimentos de suas sociedades.


tos outros países, as línguas indígenas podem ser Encaminhadas pelos vários componentes que

instrumentalizadas para que expressem aspec- integram a estrutura curricular do Programa de



tos da tecnologia e da sociedade brasileira e/ou Formação de Professores, as atividades de pesqui-



ocidental, o que permite que continuem sendo sa, como princípio metodológico do programa,

utilizadas nas novas condições que vão se colo- desencadeiam a interpretação, a construção e a

cando para os povos indígenas. O trabalho de reelaboração de conhecimentos gerados a partir



desenvolvimento lingüístico visa justamente da reflexão sobre a realidade socioeconômica,



ampliar o campo de uso das línguas minoritárias cultural e lingüística de cada povo indígena en-

para que não deixem de ser utilizadas por insu- volvido no processo, em que os etnoconhecimen-

196
PAINEL 9
Experiências de formação de professores indígenas

tos, aliados às diferentes informações oriundas Tupana Ewowi Urutuwepy é uma obra lite-



dos conhecimentos técnico-científicos, expres- rária produzida inteiramente na língua Sateré-



sam claramente a importância da produção des- Mawé. Apresenta cantos religiosos, cantos de



ses materiais, ao instituir entre os professores não atividades recreativas, de valores que regem a


somente a autoria de cada um dos materiais por conduta humana, como a importância da soli-



eles próprios escritos, mas, principalmente, ao dariedade, da união, da vida, da necessidade do



eliminar a grande distância entre quem pensa e saber, da felicidade e do trabalho exercido pelo


quem executa a prática educativa. professor em sala de aula. 197



A ênfase dada ao processo de pesquisa per- O livro Poesia Sateré-Mawé apresenta uma



mite a produção diversificada de materiais, ora literatura em que a sensibilidade, aliada às ques-



escritos na Língua Materna, ora escritos na Lín- tões étnicas e culturais desse povo, é retratada a


gua Portuguesa, por decisão dos próprios pro- partir de cada uma das palavras e mensagens



fessores, constituindo-se, assim, em instrumen- produzidas. Esse livro reflete a longa trajetória



tos de construção curricular desenvolvidos a percorrida pelos professores durante o processo



partir da realidade, prática social e cultural de de produção textual, considerando o desenvol-


cada professor indígena e integrados à sua prá- vimento das modalidades da fala e escrita.



tica docente, para permitir a reflexão sobre seu Sateré-Mawé Mawé Mowe’eg Hap é todo pro-

efeito pedagógico em sala de aula. duzido na língua Sateré-Mawé. É um livro de lei-



A política de apoio à produção, à editoração turas acompanhadas de atividades escolares, nas


e à publicação de literatura indígena realiza-se quais os alunos indígenas irão expressar de for-

com a distribuição e o acompanhamento desses ma escrita e oral suas idéias e experiências, bem

materiais nas escolas das aldeias. como reconhecer e aplicar os fatos da língua, de-

senvolvendo temas ligados aos textos.



Publicações didático-pedagógicas Produzido na Língua Materna, Sateré-Mawé



Nemahara Hap Ko’i é um livro rico em cores e


A coleção Seres vivos é composta de três volu-


detalhes ilustrativos, nos quais os autores apre-


mes enriquecidos visualmente. Constituindo a pri- sentam tipos de recreações e de lazer hoje prati-

meira produção escrita, a coleção apresenta, na sua cados pelas crianças, pelos jovens e pelos adul-

maioria, textos na Língua Portuguesa, por decisão tos das várias aldeias da região.

dos próprios professores indígenas. A variedade de


Os Sateré-Mawé e a arte de construir é uma


seus temas aborda a fauna e a flora da área indíge- obra que relata o poder da criança e o conheci-

na Sateré-Mawé, que hoje fazem parte do quadro mento do povo no domínio e na utilização dos

natural das regiões compreendidas entre os rios recursos oferecidos pela natureza, na construção

Marau e Urupadi e levam, por seu valor, conteúdo


e na manifestação de sua cultura. Por meio de


e forma, à compreensão das inter-relações desse textos informativos, que se harmonizam com as

povo com a natureza e com a cultura. ricas ilustrações, apresenta os mais variados ti-

Huhu’e Hap é um jornal indígena no qual os


pos de artesanato ainda hoje confeccionados e


conhecimentos lingüísticos dos professores são


utilizados por esse povo.


ampliados a partir de textos produzidos na lín- O poder curativo das ervas medicinais é na-

gua materna. É um instrumento pedagógico- turalmente apresentado a partir das diferentes


educativo que veicula a divulgação de notícias,


plantas utilizadas pelos Sateré-Mawé na cura de


como atividades culturais realizadas nas várias


suas doenças. Os meios de tratamento, preparo


aldeias encontradas ao longo dos rios Marau e e uso dos remédios são orientados por meio de

Urupadi, assembléias indígenas ocorridas na re- dois livros produzidos, sendo um na Língua Por-

gião, questões ligadas às atividades educativas e


tuguesa, As plantas que curam, e outro na Lín-


o trabalho realizado pela escola, fatos sociais


gua Materna, Mikoi Mohag Wuat Waku Rakaria


cotidianos, entre outras. É seu objetivo servir Set Ko’i. O conjunto dessas obras contém ricas

como instrumento de uso e aperfeiçoamento da ilustrações sobre as plantas medicinais usadas


língua escrita.

pelos índios Sateré-Mawé da região.



A obra Histórias, lendas e mitos Sateré-Mawé cultura e da própria existência, ao mesmo tem-



retrata de forma descritiva a riqueza mítica e a po em que demonstram sentimentos de digni-



tradição do povo Sateré-Mawé sintetizadas em dade ao partilharem com alegria a reconquista



suas crenças, objetos sagrados e conhecimentos de suas terras. A obra apresenta textos diversifi-


acumulados. Os textos são produzidos na Lín- cados, ricos em detalhes e ilustrações, de valor



gua Portuguesa, acompanhados de ilustrações. cultural e histórico para esse povo.



Produzida na Língua Portuguesa, a obra Cul- Sateré-Mawé E´Ko Nimuaria Ko´i,


tura, ambiente e sociedade Sateré-Mawé apresen- Koity´iwuaria E´ko, foi escrito na Língua Indíge-



ta os valores da cultura tradicional Sateré-Mawé na pelos professores Sateré-Mawé da aldeia Vila



relacionados aos modos de vida na aldeia, hábi- Batista, Rio Mari-Mari. Foi produzido com a in-



tos, costumes, território habitado e explorado. tenção de gerar junto aos alunos e à comunidade


Apresenta ainda uma visão crítica do processo processos de discussão e reflexão acerca dos há-



de dominação ao qual os índios foram submeti- bitos e costumes praticados nos dias de hoje pe-



dos ao longo de sua história. los habitantes da aldeia, em comparação com os


Histórias de vida é uma obra ilustrada produ- ○
da cultura tradicional dos antigos.
zida na Língua Portuguesa. Apresenta textos que O livro Chegada dos Sateré-Mawé no Rio Mari-

falam das experiências e dos fatos marcantes ocor- Mari e organização da Aldeia Vila Batista, escrito

ridos com os professores ao longo de suas vidas. na Língua Portuguesa, inicia-se com um relato so-

O livro Terras das línguas, ricamente ilustrado, bre os acontecimentos que levaram um grupo fa-

é uma produção recentemente publicada pela miliar Sateré-Mawé a deixar a região do Rio Andirá,

Seduc/AM, produzido no contexto do Programa de aldeia Ponta Alegre, e a se instalar na Terra Indíge-

Formação de Professores Indígenas de São Gabriel na Coatá-Laranjal, do povo Munduruku, Rio Mari-

da Cachoeira. Apresenta textos escritos em onze Mari. Além disso, há uma descrição do caminho

línguas: Baniwa, Desano, Hupd, Kubeo, Kuripako, percorrido durante a viagem, falando das dificul-

Nheengatu, Piratapuia, Tariano, Tukano, Tuyuka e dades enfrentadas e da organização da nova aldeia,

Wanano, possibilitando práticas pedagógicas além dos hábitos e costumes praticados. É uma

diversificadas e plurilíngües. Os textos abordam obra baseada em fatos reais, que retrata a realida-

assuntos diferentes, conforme a opção de cada de vivida pelos índios no Brasil e que permite uma

etnia, que vão desde receitas de remédios caseiros reflexão mais ampla sobre os conflitos que emer-

à mitologia da região. gem entre as culturas branca e indígena.


Aldeias Munduruku é uma obra didática que



retrata a situação atual das aldeias Munduruku, Distribuição de material escolar



localizadas ao longo dos rios Canumã e Mari-Mari, e didático-pedágógico



da Terra Indígena Coatá-Laranjal, no Município de A Secretaria do Estado da Educação e Quali-


Borba. Rico em cores e detalhes, apresenta um


dade do Ensino (Seduc/AM) vem implementando


conjunto de textos descritivos sobre a história e a


ações no sentido de prover as escolas indígenas de


geografia das aldeias, formas de organização, mo- recursos materiais e didáticos, tanto no que se re-

dos de vida, crenças e costumes práticos do povo. fere ao material de apoio ao trabalho do professor,

Concebendo a terra como fonte que gera e


quanto às necessidades dos alunos em sala de aula.


permite a vida, como também sagradas e pro-


Para isso, são disponibilizados kits escolares


fundas as relações que com elas estabelecem, os para professores e alunos indígenas:

professores Munduruku, da Terra Indígena • Kit do aluno: apontador, borracha, caderno


Coatá-Laranjal, decidiram produzir o livro


vertical e de desenho, caneta, cola plástica,


Kwata-Laranjal, história e reconquista da terra. lápis preto, lápis de cor, papel sulfite, régua,

É uma publicação que sintetiza a intenção dos entre outros.



autores de relatar o processo de demarcação de • Kit do professor: caderno universitário, car-


suas terras, como também as lutas e os massa-


tolina, caneta, fita gomada, papel madeira,


cres praticados contra eles e por eles contra os pincel atômico e régua de 30 centímetros,

invasores brancos em defesa do território, da entre outros.



P AINEL 10

PRÁTICA DE SALA DE AULA NA


ESCOLA INDÍGENA
Yolanda dos Santos Mendonça

Alzenira Felipe Marques

199
Prática de sala de aula




na escola indígena





Yolanda dos Santos Mendonça*







Resumo



aprendizagem combinam espaços e momen-



Construir uma escola a serviço dos interesses tos formais e informais com concepções pró-



dos povos indígenas e gerenciada por índios, as- prias sobre o que deve ser aprendido. A comu-


sumindo um papel fundamental na medida em


nidade é muito importante nesse processo,


que se cristaliza como um novo ator social, dinâ-
pois possui sua sabedoria para ser transmiti-

mico e atuante, em processo construtivo e infor-


da e distribuída por seus membros e mostra
mativo, voltado para uma educação específica, di-

valores procedentes próprios de sociedades


ferenciada e de qualidade, visando à orientação e


originalmente orais, noções próprias cultural-


à formação de cidadãos índios com espírito críti-

mente formuladas e variáveis de uma socieda-


co e tomadas de decisões rápidas e eficazes no


de indígena a outra, da pessoa humana e dos


convívio social; estimular e desenvolver compe-


tências que contribuam para a educação do povo seus atributos, capacidades e qualidades. Há

indígena Potiguara. inúmeras particularidades, mas há caracterís-


ticas comuns. Cada experiência cognitiva e


O professor índio tem papel desafiante e


articulador para tornar a Educação Escolar Indí- afetiva carrega múltiplos significados econô-

gena indispensável ao progresso de seu povo, em micos, sociais, técnicos, rituais, cosmológicos.

direção aos mais nobres ideais, transformando a


Admite diversos seres e forças da natureza com


escola num espaço privilegiado para análise, dis- as quais estabelecem relação de cooperação e

cussão e reflexão da realidade, garantindo o ple- intercâmbio, a fim de adquirir e assegurar de-

no desenvolvimento do potencial dos alunos.


terminadas qualidades.

Temos que ter autodeterminação para esse



Graças à mobilização e à união dos profes- movimento de articulação, pois quem faz a

sores indígenas junto aos Poderes Públicos é Educação Escolar Indígena ser específica, di-

que hoje já avançamos para a continuidade da ferenciada e de qualidade somos nós, e essa só

vida do planeta. A publicação RCNEI me fez será concretizada com a participação direta

ver, a partir da análise feita nessa obra, que dos interessados para garantir a sua realização.

seria um ponto de partida para minha profis- Devem ser oferecidas as condições necessá-

são, na qual tomei como educação transforma- rias para que a comunidade gerencie sua escola,

dora aquela que permite que as informações demonstrando a vitalidade e o desejo de forta-

adquiridas no decorrer do processo de apren- lecer sua identidade. Os direitos dos povos indí-

dizagem se tornem possibilidades de ações genas são coletivos. Temos o direito de decidir

para a recriação de uma realidade dramática sobre nossa história, nossa identidade, pensan-

que nos interpela quotidianamente. Cada povo do em nossas crianças como parte do presente

indígena que vive no Brasil é dono de univer- para não destruirmos nosso futuro. Temos que

sos culturais próprios e memória de percursos ter a escola como projeto próprio, e dela nos

e experiências históricas diversas. Esse é um apropriarmos como instrumento de luta pela


processo sem fim. autonomia. Para isso, temos um enorme desafio



Os momentos e as atividades do ensino- diante de inúmeras tensões que podem surgir







* Professora na Paraíba.

200
PAINEL 10
Prática de sala de aula na escola indígena

com a introdução do ensino escolar. Temos que correndo e fui aos poucos me entrosando com



ter postura e um trabalho adequado e responsá- as lideranças e as comunidades.



vel de comprometimento como articuladores, Lembrei-me das músicas de Toré, já que as



facilitadores, intervindo, orientando, problema- crianças gostavam de cantar outras músicas e


tizando, sem desconsiderar a atitude de curiosi- representar outras danças. Então, a música foi



dade dos alunos para com os novos conhecimen- o meu suporte. Mas músicas que nos fizessem



tos. Temos que formar uma escola da experiên- tocar no coração à vontade e o pulsar do peito,


cia, da convivência e da clareza. por uma versão nova. O Toré é uma cultura sa- 201



É importante que nossas crianças apren- grada de cada povo. Tive que me desdobrar para



dam sobre a vida de nossos antepassados e a fazer com que as crianças entendessem que elas



história mais nova, de mudanças nas aldeias e vivem e viverão nossa cultura, até mesmo por-


dos chefes que lideram nosso povo. É impor- que muitos não queriam nem saber, pois já es-



tante preparar os alunos para que, no futuro, tavam muito influenciados pelo outro modelo



eles possam continuar nosso trabalho. E a es- educacional. Foi aí que tive que introduzir pro-



cola pode ajudar a manter nossa cultura, para cedimentos didático-pedagógicos para que eles


que nós possamos manter nosso território. É entendessem que somos um todo e, por meio



preciso abrirmos os olhos e vermos que nesse de leituras e escritas relatadas por eles mesmos,

território estão plantadas nossas raízes, que juntos buscamos informações na nossa própria

hoje nasceram e se enramaram com uma for- família. Fomos montando e descobrindo novi-

ça enorme, que cada vez mais desabrocham dades que serviram de experiências e motiva-

para fortalecer a nossa sagrada identidade. São ções para uma realidade da própria criança. No

inúmeras as falsas informações que distorcem momento em que trabalhamos cada estrofe da

a realidade e impedem as pessoas de melhor música do Toré, as crianças ficam curiosas, e



conhecer os índios. Grande parte do nosso sempre vem o porquê. Quando vamos cantan-

povo desconhece ou pouco sabe sobre os ver- do e apresentando a história do passado do



dadeiros donos desta terra. Devemos romper nosso povo com clareza e confiança, fazemos

com essas informações enganosas, acabar com um trabalho para desenvolver o que elas ouvi-

esse preconceito que foi e continua sendo res- ram e visualizaram. Aí começa o interesse para

ponsável por mortes e doenças no mundo in- saber mais: sempre perguntam o que fazer de

teiro. A terra é nossa subsistência. Ela é supor- agora em diante para não passar pelo que nos-

te da vida social e está diretamente ligada às sos antepassados passaram.



crenças e aos conhecimentos. A terra somos Temos que ter cuidado para não causar im-

nós. Temos que ser dinâmicos e práticos para pacto, pois muitas crianças se revoltam. O que

que os alunos desenvolvam suas capacidades temos que fazer é conscientizá-las, para cuidar

e aprendam os conteúdos necessários, para do pouco que nos resta. Se assim o fizermos,

construírem instrumentos de compreensão da vamos conquistar mais, porque o que temos



realidade, com participação, e para assumir a não é o suficiente para o muito que nos leva-

valorização da cultura de sua própria comuni- ram, e só vamos conseguir se juntos lutarmos,

dade, respeitando direitos e diferenças dos sem medo de conhecer e buscar nossos direi-

outros povos indígenas. tos. Só temos esses direitos se antes cumprir-



Por meio de experiências da minha vida co- mos os nossos deveres. O Toré não é uma dan-

tidiana e de contatos com diversas pessoas de ça qualquer, foi-nos deixada pelos nossos an-

outras etnias, percebi que meu povo cada dia cestrais. Deus deu essa sabedoria a eles e tam-

mais estava sendo enganado e que nossas cri- bém aos velhos e até às pessoas mais novas,

anças cada dia mais desconheciam quem eram para invocarem os encantados e resolverem

na verdade. Foi daí que fiz uma análise e to- algo. Isso é prova de que nunca estamos sozi-

mei a iniciativa de ajudar meu povo, pois as- nhos, sempre temos alguém do nosso lado.

sim estarei ajudando a mim mesma. Conver- Mostramos às crianças que a mata é a cobertu-

sei bastante, mostrei os perigos que estávamos ra da terra. O vento é o respirar dos que já se

foram. A água e o rio são o sangue derramado


mos, pois ela interfere na política envolvente


do nosso povo. A terra é o pó da carne e dos os- e encaracolada, porque, no momento em que



sos dos nossos parentes que já foram plantados. as crianças e as comunidades descobrem sua



Gradativamente, fazemos com que as cri- verdadeira história e como ainda estão sendo


anças sintam amor pelo que é seu. Mas é pre- tratadas, passam a ter consciência e interfe-



ciso um trabalho árduo e longo, fazer compa- rem nas tomadas de decisões, como também



rações entre o que ouviram e o que são no pre- vão sentir curiosidade em se conhecer melhor


sente. Essa é a base, e só será feita se quiser-


e conhecer seu próprio território.











A Pedagogia do Texto na



prática da sala de aula na Escola




Indígena Tupinikim



Alzenira Felipe Marques*








Preocupados com o resgate da cultura de der com o tempo, caso não seja sistematizado

nosso povo, estamos procurando enfocar, nas e passado de uma geração à outra.

escolas das aldeias, problemáticas que afetam



nossa vida cotidiana. O relato a seguir centra-


Descrevendo o manguezal

se num exemplo dessas práticas diárias reali-


zadas na comunidade indígena de Caeira Ve- Com o passar dos anos e com o crescente

lha, composta de índios Tupinikim. número de diversas culturas invadindo nosso



Durante um mês, desenvolvemos o tema território, o nosso mangue sofreu várias in-

fluências negativas. Buscando conhecer e pre-


“Ecossistema Manguezal”, com o objetivo de


sensibilizar a comunidade indígena para a pre- servar uma parte de nossa cultura, nós nos pro-

servação do mangue que circunda nossa aldeia pusemos a desenvolver um projeto em que cada

e que vem sendo usado como nosso meio de aluno e seus pais pudessem expor seus conhe-

cimentos e adquirir outros num anseio de pre-


sobrevivência e reprodução cultural. Nas inú-


meras atividades que foram realizadas, procu- servação da natureza e de sua riqueza cultural.

ramos envolver escola e comunidade. O manguezal a que estamos nos referindo



A problemática levantada ao desenvolver é o Piraqueaçu, situado entre Santa Cruz e o


Córrego Fundo, em Aracruz, no Espírito Santo.


esse tema foi a seguinte: estudar e compreen-


der de que forma nós, moradores da aldeia, Esse manguezal é conhecido por ser um dos

podemos nos organizar para a preservação des- maiores da América Latina.



se ecossistema, tendo como pano de fundo o O manguezal é área preservada, conforme a


Constituição Federal (1988), a Resolução


fato de que todo saber corre o risco de se per-







* Educadora indígena Tupinikim, Aldeia Caeira Velha, ES.



202
PAINEL 10
Prática de sala de aula na escola indígena

Conama nº 004/85, a Lei nº 6.938/81, a Lei nº ao conhecimento coletivo, tudo isso respeitan-



4.771/65 e, no Espírito Santo, a Lei Estadual nº do a faixa etária de nossos alunos.



4.119, de 23/7/1988. Mas acreditamos que essa Durante a sistematização desses conheci-


“mina de tesouro” não deve ser preservada só


mentos, nossa fonte primeira foi a memória


porque a lei assim reza, mas porque é um peda- oral dos alunos, dos pais e dos mais velhos da



ço de nós, pois aqui aprendemos e descobrimos aldeia, usando para isso entrevistas e pales-



que a vida está nas coisas simples e ao mesmo tras. Fizemos também algumas visitas ao


tempo grandes. manguezal, onde foram recolhidos diversos 203



Cada espécie encontrada nesse manguezal tipos de recursos.



tem sua beleza e importância. Nesse espaço, en- Num segundo momento, selecionamos,


contramos moluscos e crustáceos variados: os-


agrupamos e desenvolvemos aulas contextua-


tra, sururu, ameixa (amêijoa), caramujo, buso, lizadas e interdisciplinares nas quais não havia



papa-fumo, unha-de-velho, craca, chama-maré, fragmentação dos conhecimentos, mas um só



siri, sapateiro, caranguejo, goiamum etc. Esses saber. Nessa segunda fase, outro princípio da


seres vivos podem ser encontrados ao longo de


Pedagogia do Texto que nos orientou foi o de


toda a extensão do Mangue Piraqueaçu. confrontar o saber empírico dos alunos e da



A maior parte da fauna do manguezal vem comunidade com outros saberes sistematizados

do ambiente marinho, o que não exclui o ter- em livros (saberes considerados científicos).

restre, pois nele vivem aves, répteis, anfíbios,


Estudamos flora e fauna, clima, espaço geográ-


mamíferos e insetos. A flora do manguezal é fico e outros conteúdos a partir de atividades



constituída pela espécie denominada mangue, variadas, tais como a produção de diferentes

a qual possui característica própria e é procu- gêneros de textos (argumentativo, explicativo,


rada pelos mariscos para sua proteção. Apesar dissertativo etc.), teatro de varas, problemas

de sua beleza e encanto, o manguezal possui envolvendo medidas, compra, venda, sistema

também perigos, o que não intimida aqueles monetário, jogos, quebra-cabeças, artesanato

que dele dependem para o seu sustento. com argila e sementes, desenhos variados.

Finalizamos o nosso estudo com um gosto-



A Pedagogia do Texto so almoço em que foi servida uma saborosa



no estudo do manguezal moqueca. Tudo isso foi realizado num clima de



seriedade e de busca de conhecimento.


Para que os alunos compreendessem o



manguezal do ponto de vista cultural e ao mes-


Conclusão

mo tempo científico, lançamos mão dos prin-


cípios da Pedagogia do Texto, na medida em que Estivemos diante do desafio que foi para

esta valoriza o conhecimento local, cultural e nós, educadores e educandos, tentar compre-

até mesmo individual do sujeito numa dimen- ender o mangue a partir de diferentes perspec-

são de crescimento. tivas. Podemos dizer que atingimos nosso ob-


Orientando-nos por esses princípios, em jetivo e aprendemos, sobretudo, que a preser-



um primeiro momento, tentamos descobrir o vação do manguezal será de fato uma conquis-

conhecimento empírico que os alunos deti- ta quando todos se conscientizarem da sua im-

nham acerca do mangue. Esses conhecimentos portância.


foram primeiro sistematizados em textos indi- Em suma, trabalhar o manguezal não foi ta-

viduais e depois em textos coletivos. Buscamos refa árdua e penosa, mas prazerosa tanto para

relacionar cada saber com o tempo, chegando nós, educadores, quanto para os alunos.









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