Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
INDÍGENA
Marilda Almeida Marfan
Organizadora
Vo l u m e 4
Brasília
2002
PRESIDENTES DO CONGRESSO
IARA GLÓRIA AREIAS PRADO
Secretária de Educação Fundamental
MARIA AUXILIADORA ALBERGARIA
Chefe de Gabinete
COMISSÃO ORGANIZADORA
Coordenadora: Rosangela Maria Siqueira Barreto
Renata Costa Cabral
Fábio Passarinho de Gusmão
Lívia Coelho Paes Barreto
Sueli Teixeira Mello
COMISSÃO CIENTÍFICA
Coordenadora: Marilda Almeida Marfan
Ana Rosa Abreu
Cleyde de Alencar Tormena
Jean Paraizo Alves
Leda Maria Seffrin
Lucila Pinsard Vianna
Nabiha Gebrim de Souza
Stella Maris Lagos Oliveira
CDU 371.13
Patrocínio: PETROBRAS
Apoio: Agência de Notícias dos Direitos da Infância (ANDI)
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO 5
Iara Glória Areias Prado
SIMPÓSIOS
SIMPÓSIO 1 9
EDUCAÇÃO NO CONTEXTO DA DIVERSIDADE CULTURAL
Héctor Muñoz Cruz
SIMPÓSIO 2 19
POLÍTICAS PÚBLICAS EM EDUCAÇÃO INDÍGENA NO BRASIL
Jean Paraízo Alves
Maria Helena Fialho
SIMPÓSIO 3 29
EDUCAÇÃO, DIVERSIDADE CULTURAL E CIDADANIA: OS POVOS INDÍGENAS E A ESCOLA
Inge Sichra
SIMPÓSIO 4 41
EXPERIÊNCIA DO ENSINO SUPERIOR INDÍGENA
Edivanda Mugrabi
Elias Renato da Silva Januário
Maria Inês de Almeida
Marilda C. Cavalcanti
SIMPÓSIO 5 61
AS ORGANIZAÇÕES DE PROFESSORES NO BRASIL:
RELAÇÕES COM AS POLÍTICAS PÚBLICAS E AS ESCOLAS INDÍGENAS
Jaime Costódio Manoel
Cristóvão Teixeira Abrantes
PAINEL 1 71
A QUESTÃO INDÍGENA NA SALA DE AULA
Ana Vera Macedo
Rosani Moreira Leitão
Betty Mindlin
José Ribamar Bessa Freire
PAINEL 2 101
AS EXPERIÊNCIAS DOS CONSELHOS ESTADUAIS DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA
José Ademir Gomes e Jecinaldo Barbosa Cabral
Elias Renato da Silva Januário
PAINEL 3 107
O PAPEL DA ANTROPOLOGIA, DA LINGÜÍSTICA E DA PEDAGOGIA NA EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA
Judite Gonçalves de Albuquerque
PAINEL 4 113
POLÍTICAS LINGÜÍSTICAS E A ESCOLA INDÍGENA
Wilmar da Rocha D’Angelis
Marcus Maia
PAINEL 5 129
LEGISLAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA
Luís Donisete Benzi Grupioni
Darci Secchi
Vilmar Guarani
PAINEL 6 145
OS ETNOCONHECIMENTOS NA ESCOLA INDÍGENA
Carlos Alfredo Argüello
José Augusto Laranjeiras Sampaio
Roseli de Alvarenga Corrêa
PAINEL 7 161
EXPERIÊNCIAS DE FORMAÇÃO DE PROFESSORES INDÍGENAS
Jussara Gomes Gruber
Maria Cristina Troncarelli
Zélia Maria Rezende
Marlene de Oliveira
PAINEL 8 177
EXPERIÊNCIAS DE FORMAÇÃO DE PROFESSORES INDÍGENAS
Eunice Dias de Paula
Terezinha Furtado de Mendonça
PAINEL 9 187
EXPERIÊNCIAS DE FORMAÇÃO DE PROFESSORES INDÍGENAS
Bruno Kaingang
Arlene Bonfim
PAINEL 10 199
PRÁTICA DE SALA DE AULA NA ESCOLA INDÍGENA
Yolanda dos Santos Mendonça
Alzenira Felipe Marques
APRESENTAÇÃO
EDUCAÇÃO NO CONTEXTO
DA DIVERSIDADE CULTURAL
Héctor Muñoz Cruz
9
A educação no contexto
○
○
○
da diversidade
○
○
○
○
Héctor Muñoz Cruz
○
○
Universidade Autônoma Metropolitana/México
○
○
○
○
○
lidade, a natureza e, sobretudo, as conseqü-
Natureza e impacto
○
○
ências desse fenômeno extrapolam quase que
○
da diversidade
○
por completo a imaginação popular e as pes-
○
quisas mais rigorosas. Ainda assim, no pre-
○
○
sente trabalho procuro propor algumas impli-
○
Este país encontra-se completamente despreparado
○
e, em alguns casos, sem vontade de atender às cações dos aspectos contemporâneos da di-
○
○
emergência para lecionar. Esses professores têm assimilação e perda da diversidade cultural
○
poucas oportunidades para desenvolver uma e intelectual. Como interpretar essa tendên-
○
○
compreensão do que significa lecionar em uma cia? Quais são as dimensões e implicações
○
Gutiérrez, apud McLaren, 1995: 184. é de todo inadequado imaginar-se uma ana-
○
e a pesquisa científica sobre a heterogeneida- dade biológica no planeta, não é menos ca-
○
○
peram com tal impacto nas platafor mas opiniões podem ser emitidas.
○
○
que nos foi legado com dor por uma realida- dução na comunicação e na continuidade cul-
○
10
SIMPÓSIO 1
Educação no contexto da diversidade cultural
○
○
socioculturais dos sujeitos em relação às neces- migração, as políticas de preservação das lín-
○
○
sidades dos projetos globais. Em suma, há todo guas, culturas e identidades das populações
○
○
um campo a ser pesquisado no qual, entretan- originais adquiriram grande relevância, junta-
○
to, a maioria das preferências explicativas pro- mente com o fomento da comunicação
○
○
postas decorre de uma visão superficial e des- intercultural e multilingüística e a eliminação
○
○
critiva da diversidade. de ranços sociais e educacionais. Do ponto de
○
A esse respeito, as possibilidades de in- vista das ações governamentais, na realidade, 10
○
○
tervenção ou de prevenção implicam tarefas não existem no momento soluções harmôni-
○
○
tais como uma adequada compreensão da cas para o reconhecimento e a reconciliação
○
○
perda de diversidade, rechaçando-se a con- das particularidades culturais e lingüísticas nas
○
cepção de que seja uma condição normal do novas estruturas nacionais.
○
○
mundo moderno e uma efetiva potencializa-
○
○
ção dos recursos e das identidades culturais Assim, já não podemos considerar que os seres
○
humanos criam seu entorno técnico e econô-
○
das comunidades afetadas. As soluções e as
○
estratégias estão longe de serem universais. mico [...] a partir de agora são as indústrias cul-
○
○
As decisões e as opções são prerrogativas cla- turais (em particular o ensino, a assistência sa-
○
1999: 54).
○
(Ladefoge, 1992).
○
informais;
○
o conjunto social.
○
recentes sobre desenvolvimento social inclusi- • aumento das desigualdades nos sistemas
○
○
siderados;
○
as particularidades étnicas e lingüísticas à de- cial nas zonas rurais; aumento da lacuna
○
cíficas;
○
sigualdades.1
○
○
○
○
○
1
Nossos países devem optar por um desenvolvimento sustentável e pela paz, e construir uma democracia multiétnica e pluricultural, o que
○
○
significa que os Estados devem se esforçar para entender a diversidade. Essa corrente, em seu afã para criar novos paradigmas, resgata a
○
autoridade, a diversidade cultural, a interação com a natureza e a pluralidade de saberes como expressões enriquecedoras e não-problemá-
○
○
○
ção Fundamental ainda é deficitário (SEP,
○
compromisso com o
○
2000a e 2000b).
○
desenvolvimento educacional
○
As experiências sociais mais freqüentes da
○
○
diversidade (auto-integração, assimilação, mi-
As transformações na área da educação
○
gração e ressocialização) comprometem obje-
○
sempre apresentam um referencial sócio-his-
○
tivos e atividades no âmbito da tecnologia dos
○
tórico que pode impulsioná-las ou bloqueá-
○
meios de comunicação, a educação em geral, o
las. A situação da formação de professores no
○
ensino dos idiomas, o acesso ao trabalho em no-
○
marco do multiculturalismo contemporâneo
○
vas áreas, a democratização da justiça e a diversi-
○
não é exceção. Para educadores, funcionários
○
ficação dos serviços de informação e tradução.
○
e líderes de movimentos sociais, o debate so-
○
As situações conflitantes do multicul-
bre a educação, sensível à diversidade cultural
○
turalismo aprofundam a desilusão e a frustra-
○
das populações discriminadas, gira em torno
○
ção das comunidades no que se refere à vonta-
○
○
do direito e do reconhecimento do todo nacio-
de e à orientação políticas do Estado. As deman- ○
va (Unesco, 1997).
○
vocam.
○
2
A crise na educação de hoje tem gerado profundas discrepâncias sobre o papel da escola na sociedade. É grande a necessidade de ajustar-
○
se a questão educacional às necessidades da sociedade e, especialmente, de abandonar a concepção e os conteúdos da escola pública
○
tradicional. Assim, no que se refere às escolas, inicia-se o progressivo consenso social de que sua atribuição não se limita a ensinar as
○
○
crianças e a fornecer-lhes as habilidades básicas necessárias em uma sociedade tecnológica complexa, mas inclui também a solução do
○
dilema da discriminação social e da violência, a fim de proporcionar oportunidades às mulheres e às populações étnicas, visando à sociali-
○
zação de gerações de migrantes do campo para a cidade e para canalizar a transformação de políticas sociais.
○
12
SIMPÓSIO 1
Educação no contexto da diversidade cultural
vel à população envolvida. Até o momento, educação sensível à diversidade cultural e lin-
○
○
tem-se abusado de plataformas sociopolíticas güística (povos indígenas). A partir de seto-
○
○
e descritivas para corroborar a necessidade de res técnicos de projetos EIB, com apoio inter-
○
○
transformar o sistema, os modelos acadêmi- nacional, e, especialmente, de pesquisadores,
○
cos e as práticas escolares em relação à diver- tentou-se estabelecer um tipo de história
○
○
sidade. Mas talvez o melhor passo seja abrir científica das orientações principais ou, figu-
○
○
o u d e m o c ra t i z a r a g e s t ã o d a e d u c a ç ã o rativamente, paradigmas da Educação Indí-
○
multicultural plural para atrair o compromis- gena escolarizada, a fim de sustentar o cará- 12
○
○
so e a criatividade demonstrados por muitos ter progressivo e alternativo da doutrina
○
○
professores. intercultural bilíngüe.
○
○
Mas antes seria conveniente fazer duas
○
observações. Primeiro, essa preocupação tem
Impacto da diversidade
○
○
sua origem no desenho de ações e projetos de
○
lingüística e cultural no
○
desenvolvimento educacional inovadores e
○
desenvolvimento educacional
○
diferenciados promovidos por agências inter-
○
nacionais. As comunidades indígenas foram
○
○
Na educação escolarizada, parece verifi- mais receptivas a essas preocupações. E, se-
○
○
cacional, que permita vislumbrar as mudan- mas. As discussões paradigmáticas, até certo
○
○
ças socioculturais e as realidades escolares ponto, criam a ilusão de que os antigos pro-
○
4
atuais para discutir a reforma da educação, educacionais.
○
○
com novas tendências curriculares do siste- Mas também devemos reconhecer um as-
○
àqueles que dele necessitem. Da mesma for- tem a vontade política de influir no futuro da
○
○
ma, novas tecnologias surgiram para a elabo- sociedade e da identidade indígena, rede-
○
livro didático.
○
jetivos tradicionais de cobertura e igualdade gena e afro-americana dos atuais países lati-
○
celência acadêmica. 3
○
3
Utilizo nessa idéia a terminologia de Kelly (1985), ou seja, a adequação entre a formação escolarizada e o desenvolvimento socioeconômico
○
○
da comunidade.
○
4
○
As dificuldades relativas à educação bilíngüe, como o ensino do espanhol como segunda língua e a normatização ortográfica das línguas
○
indígenas, continuam pendentes e são atendidas por antigas práticas pedagógicas, típicas do paradigma bilíngüe. De certa forma, continu-
○
am a reinar, na pedagogia das escolas indígenas de 2001, concepções e práticas criadas há cinqüenta anos.
○
l í n g ü e é a s u b s t i t u i ç ã o i r re v e r s í ve l d o des e sua identidade. Por razões de política
○
○
paradigma bilíngüe bicultural. Anteriormen- mundial, assume-se o princípio do intercultu-
○
○
te, nos anos 1970, a doutrina da Educação In- ralismo dual ou polarizado, que circulou nes-
○
○
dígena bilíngüe e bicultural havia sido subs- ses ambientes educacionais com a bicultura-
○
tituída pela antiga proposta integracionista lização servindo de complemento à educação
○
○
dos anos 1930 chamada “educação bilíngüe”. bilíngüe. Entretanto, dadas a escassa experiên-
○
○
Apresento, no quadro abaixo, essa seqüência cia inovadora e a quase inexistente pesquisa
○
histórica. sobre a Educação Indígena àquela época, o
○
○
Na proposta gráfica acima, atribuímos gran- componente bilíngüe experimentou um de-
○
○
senvolvimento central, com princípios e
○
Quadro 1
○
tecnologia da lingüística aplicada. Como resul-
○
tado, prevaleceram a “castelhanização” e a
○
Paradigmas da Educação Indígena
○
escolarizada na América Latina monoculturalização dos currículos e da apren-
○
○
dizagem. A Educação Indígena não escapou à
○
A diversidade como problema Modelo democratizador ○
(educação bilíngüe)
○
crise e ao ranço planetário em matéria de edu-
cação, talvez com mais profundidade devido
○
○
A diversidade como direito Modelos liberais de capital humano A terceira orientação constitui a utopia ou a
○
do e o idioma hispânico.
○
5 Muñoz (2001a) e outros assinalam que não foi possível implantar essa política pública nos processos comunitários e escolares devido à
○
○
14
SIMPÓSIO 1
Educação no contexto da diversidade cultural
○
○
dade cada vez melhor” (SEP, 2000a: 11). cacional integral, aprendemos a identificar, a
○
○
Essas reorientações representam acordos e expandir nossa compreensão e também a
○
○
objetivos assumidos pelos Estados nacionais relativizar os discursos dos diferentes setores
○
com a corrente internacional de humanização sobre as políticas públicas, as quais decorrem
○
○
do desenvolvimento e aprofundam a moderni- de princípios e condições ideológicas para pro-
○
○
zação educacional, com componentes de igual- mover uma grande mudança educacional que
○
dade, qualidade e pertinência. busca estabelecer novos termos com o desen- 14
○
○
Com base nesse horizonte histórico não- volvimento econômico e político, no qual “a
○
○
linear, vale ressaltar a importância de que se democracia de nossos países encontrará na
○
○
trabalhe com uma perspectiva de processo educação intercultural bilíngüe um dos princi-
○
complexo e articulado em várias dimensões pais instrumentos para sua consolidação”
○
○
educacionais, assimetricamente relacionadas, (Cárdenas, 1997: 29).
○
○
cuja convergência ou divergência decorre do
○
Quadro 3
○
êxito ou da crise da educação em geral. A esse
○
respeito, sugiro que a transformação da edu- Objetivos globais de política educacional
○
○
cação orientada para o multiculturalismo plu-
○
○
relacionados à diversidade
ral advirá principalmente do nível das realida-
○
1. Aumento da cobertura
○
1. Aprimoramento da formação
○
2. Desenvolvimento de
○
problemas
○
○
○
educacional
○
responsabilidade política e
○
Política educacional,
○
Transmissão de qualidades
○
sistema
○
○
Ciclos participativos
○
○
○
das por meio de pesquisas científicas que nos mar-se com indicadores endógenos.
○
○
ajudam a compreender a situação multiétnica 4. A construção de um grande sistema edu-
○
○
e pluricultural do país. De sua parte, as insti- cacional exerceu uma influência negativa
○
tuições governamentais assimilaram e recria- sobre a condição do ensino. Apresenta-se
○
○
ram, dando-lhe forma, uma avançada política como um sistema complexo que não faci-
○
○
sociocultural do Estado, mas que não se tra- lita a transferência de suas funções, por-
○
duz em uma política congruente de governo, que dispõe de objetivos múltiplos, ime-
○
○
nem na necessária compreensão e aceitação diatos e imprecisos para atender à natu-
○
reza de seu objeto que é transformar se-
○
pela sociedade nacional.
○
res humanos pobres, marginalizados e
○
Podemos concordar ou não com essa pro-
○
discriminados.
posta analítica, mas o que não podemos evitar
○
○
é, por um lado, imaginar o desenvolvimento Todas essas características condicionam
○
○
educacional como um todo com componen- com grande força a forma pela qual o siste-
○
tes múltiplos e, por outro, definir de onde ○
○
ma reage às demandas sociais, assimila ou
advirão as tendências decisivas que promovam rechaça inovações e mudanças. Eis a propo-
○
○
1993: 19).
○
○
Sistemas educacionais
○
diferenciados
○
○
○
do dessa mudança.
○
cultural:
○
de gerou as principais dificuldades que os grande imprecisão no que se refere a seu alcan-
○
cia do ensino.
○
16
SIMPÓSIO 1
Educação no contexto da diversidade cultural
em uma tarefa necessária, a fim de explicar a HALE, Ken. On endangered languages and the safeguarding
○
○
of diversity. Language, v. 68, n. 1, p. 1-3, 1992.
variedade de casos concretos que compõe a re-
○
KELLY, Gail. Setting the boundaries of debate about
○
alidade das sociedades nacionais.
○
education. In: ALTBACH, Philip; KELLY, G.; WEIS, Lois.
○
Finalmente, as experiências conflitantes do Excellence in education. Buffalo, New York: Prometheus
○
multiculturalismo, o aspecto bilíngüe e a inte-
○
Books, 1985 p. 31-42.
○
gração das alterações socioculturais converte- LADEFOGE, Peter. Another view of endangered languages.
○
○
ram-se em tópicos bastante atuais nas institui- Language, v. 68, n. 4, p. 809-810, 1992.
○
ções oficiais e em comunidades e organizações LESOURNE, Jacques. Educación y sociedad. Los desafíos 16
○
○
del año 2000 . Barcelona: Gedisa, 1993.
sociais. Pouco a pouco, essas categorias vão
○
MCLAREN, Peter. La escuela como un performance ritual.
○
dando sustentação a um parâmetro de cidada-
○
Hacia una economía política de los símbolos y gestos
○
nia para a sociedade do futuro próximo, em que educativos. México: Siglo XXI, 1995.
○
se estabelecem novos problemas nacionais e se
○
MUÑOZ, Héctor. Los objetivos políticos y socioeconómicos
○
criam soluções recarregadas de valor democrá- de la educación intercultural bilingüe y los cambios que
○
○
tico e participativo. No momento, os fenôme- se necesitan en el currículo, en la enseñanza y en las
○
escuelas indígenas. Revista Iberoamer icana de
○
nos interculturais, o aspecto bilíngüe e a diver-
○
Educación , Madrid: Organização dos Estados Íbero-
sidade étnica estão servindo para criar novos
○
Americanos, 17: 31-50, 1998.
○
parâmetros para a discussão da reforma da edu-
○
○
. (Coord.). Un futuro desde la autonomía y la
cação, novas tendências curriculares do siste- diversidad. Experiencias y voces por la educación en
○
○
que tendem a oferecer Ensino Fundamental a Xalapa, 2001a. Coleção da Biblioteca da Universidade
○
○
assumir os diferentes setores da sociedade. MUÑOZ, Héctor; LEWIN, Pedro (Eds.). El significado de la
○
ALBÓ, Xavier. Competencias para una educación e História – Centro INAH, 1996.
○
○
intercultural bilingüe . Documento de consultoria para a SARTORI, Giovani. La sociedad multiétnica . Pluralismo,
○
Secretaria Nacional de Educação. Bolívia, 1996. Manus- multiculturalismo y extranjeros. Editora Madrid : Taurus,
○
○
CÁRDENAS, Víctor H. Desafíos para el futuro de los pro- SECRETARÍA DE EDUCACIÓN PÚBLICA. México en el foro
○
○
gramas de la Educación Intercultural Bilingüe, de cara mundial de educación Dakar 2000. México: Dirección
○
. Las lenguas indígenas dentro y fuera de la . México Jomtien + 10. Evaluación nacional
○
○
escuela. Discurso de abertura. In: II CONGRESO LATI- de “Educación para todos” . México: Dirección General
○
BILINGÜE (1997). Santa Cruz de la Sierra, Bolívia: TOURAINE, A. Iguales y diferentes. In: Unesco. Informe
○
GROS, Christian. Etnicidad, violencia y ciudadanía: algunos dos. Madrid, 1999. p. 54-63.
○
comentarios sobre el caso latinoamericano. IHEAL–Uni- UNESCO. Nuestra diversidad creativa. Informe de la
○
○
versidade de Paris III, Cátedra Patrimonial Ciesas– Comisión Mundial de Cultura y Desarrollo. Versão resu-
○
POLÍTICAS PÚBLICAS EM
EDUCAÇÃO INDÍGENA NO BRASIL
Jean Paraizo Alves
19
Novos atores e novas
○
○
○
cidadanias: o reconhecimento
○
○
○
dos direitos dos povos
○
○
○
indígenas a uma educação
○
○
○
escolar específica,
○
○
○
diferenciada, intercultural
○
○
○
e bilíngüe/multilíngüe
○
○
○
○
Jean Paraizo Alves
○
○
SEF/MEC ○
○
○
○
○
Esse trabalho procurará demonstrar como línguas maternas e dos processos próprios de
○
○
os entrelaçamentos entre novos atores – or- aprendizagem, bem como o respeito, a valo-
○
○
– e políticas públicas têm produzido no Bra- sa forma, passou a ser assegurada aos povos
○
sil, nos últimos dez anos pelo menos, uma indígenas a prerrogativa de uma educação
○
○
uma concepção de cidadania que, sem abrir diferenciada. Os povos indígenas, de acordo
○
○
mão de valores caros a esta, abre espaço para com esses princípios, devem ter acesso, por
○
o respeito à diferença, possibilitando uma efe- meio da leitura e da escrita, tanto nas línguas
○
○
A Educação Escolar Indígena vem se con- cimentos produzidos pelo seu próprio grupo,
○
○
solidando na América Latina em estreita re- por outros povos originários e pela sociedade
○
bem como com as reformas educativas nacio- De acordo com Monte, a educação inter-
○
○
nais. Em anos recentes, adquiriu uma dimen- cultural bilíngüe possui uma importante base
○
○
são política e institucional significativa para em países cuja população indígena apresenta
○
as diversas etnias que podem ser percebidas peso demográfico significativo, como é o caso
○
○
tadas para a organização de currículos das e do México. Em países como o Brasil, a Costa
○
○
Estamos assistimos, portanto, ao aumen- car presença. Todos esses países, de uma for-
○
○
gena, seja por meio da sua inscrição em cons- institucionais e legais o direito a uma modali-
○
organismos internacionais, seja incorporada des indígenas que estão dentro de suas fron-
○
○
dígenas (cf. Muñoz, 1998). Entre inúmeros A educação intercultural bilíngüe passa a
○
direitos assegurados aos povos originários ter reflexos políticos e legais, principalmente
○
○
previstos em documentos de organismos in- a partir dos anos 1980, quando inúmeros pa-
○
○
20
SIMPÓSIO 2
Políticas públicas em Educação Indígena no Brasil
ções, introduziram alterações em seus orde- cepções nativas e as dos não-índios; pressionar
○
○
namentos constitucionais e legais. 1 o Estado no sentido de reconhecer de fato a es-
○
○
Além disso, pudemos assistir a uma in- pecificidade das escolas indígenas, regulamen-
○
○
tensificação das interações entre sociedades in- tando as prerrogativas de que estas deverão
○
dígenas e não-indígenas, tanto no âmbito na- gozar. Nesse sentido, pode-se afirmar que os
○
○
cional quanto no internacional, que acirrou o professores estão constituindo uma nova forma
○
○
processo de construção de novas estratégias de de liderança no interior dessas comunidades.3
○
negociação de direitos e intermediação de con- No Brasil, a Constituição Federal (1988) tra- 21
○
○
flitos, contribuindo para a criação de novos ato- çou um quadro jurídico novo para a regulação
○
○
res para atuar nessas instâncias e situações.2 das relações do Estado com as sociedades in-
○
○
Nas últimas três décadas, houve uma visí- dígenas contemporâneas. Rompendo com uma
○
vel explosão no número de organizações indí- tradição de quase cinco séculos de política
○
○
genas em toda América Latina. Só nos estados integracionista, ela reconhece aos índios o di-
○
○
da Amazônia brasileira, Albert menciona a exis- reito à prática de suas formas culturais pró-
○
○
tência de 183 organizações indígenas. Para ele, prias. O artigo 231 da Carta Magna afirma que
○
esse é um fenômeno que tem início, no Brasil, “são reconhecidos aos índios sua organização
○
○
principalmente a partir de fins dos anos 1980 e social, costumes, línguas, crenças e tradições,
○
○
ganha maior intensidade nos anos 1990. Fato- e os direitos originários sobre as terras que tra-
○
○
tadas facilidades na constituição dessas asso- O artigo 210 assegura às comunidades indí-
○
ciações como pessoas jurídicas, a partir de al- genas, no Ensino Fundamental regular, o uso de
○
○
terações no sistema constitucional do país após suas línguas maternas e processos próprios de
○
○
são das questões relativas ao meio ambiente e ensino bilíngüe em suas escolas. O artigo 215
○
aos direitos das minorias étnicas para o âmbito define como dever do Estado a proteção das
○
○
cional para a sociedade civil e para o desenvol- na-se, portanto, instrumento de valorização dos
○
○
e relevante ator social tem se firmado e renova- com isso, uma efetiva interculturalidade.
○
do sua importância: o professor indígena. Esse A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Na-
○
○
professor tem desempenhado os seguintes pa- cional – LDBEN (Lei nº 9.394/96) determina, em
○
○
péis: promover o registro de sua cultura, atu- seu artigo 78, que caberá ao Sistema de Ensino
○
○
ando como intermediário cultural entre as con- da União, com a colaboração das agências fe-
○
○
○
○
1
Nesse particular, duas convenções da Organização Internacional do Trabalho (OIT) foram de suma importância: a Convenção sobre a
○
Proteção e Integração das Populações Aborígines e outras Populações Tribais e Semitribais de Países Independentes (Convenção OIT nº
○
107, de 1957), que contém 37 artigos estabelecendo a proteção de instituições, pessoas, bens e trabalho dos povos indígenas, inclusive
○
○
com direito à alfabetização em línguas indígenas, e a Convenção sobre Povos Indígenas e Tribais em Países Independentes (Convenção
○
OIT nº 169, de 1989), que reconhece que cabe aos povos indígenas decidir quais são suas prioridades em matéria de desenvolvimento.
○
○
2
Leitão aponta, além da criação de organizações indígenas, a participação no processo eleitoral e o surgimento das primeiras lideranças
○
encarregadas de intermediar o contato com os não-índios, como é o caso do “cacique”, por exemplo (cf. Leitão, 2001). No que se refere a
○
esse assunto, Wolf menciona a noção de brokers como de fundamental importância para a compreensão das relações estabelecidas entre
○
○
grupos específicos e sociedades nacionais, por meio de agentes que atuam como mediadores culturais que poderão passar despercebidos,
○
caso cada tipo de grupo ou sociedade seja analisado de forma isolada (cf. Wolf, 2001: 124-38).
○
○
3
O Ministério da Educação criou a Comissão Nacional de Professores Indígenas, que tem por finalidade subsidiar a formulação de políticas,
○
○
○
índios, desenvolver programas integrados de seadas nas noções de pluralismo cultural e de
○
○
ensino e pesquisa para oferta de educação es- diversidade étnica, o que resulta em concepções
○
○
colar bilíngüe e intercultural aos povos indíge- pedagógicas específicas e novos referenciais
○
nas, com os objetivos de: curriculares.
○
○
• proporcionar aos índios, suas comunidades
○
○
e povos, a recuperação de suas memórias A escola indígena tem como objetivo a conquis-
○
históricas, a reafirmação de suas identida- ta da autonomia socioeconômico-cultural de
○
○
des étnicas e a valorização de suas línguas e cada povo, contextualizada na recuperação de
○
ciências;
○
sua memória histórica, na reafirmação de sua
○
• garantir aos índios, suas comunidades e identidade étnica, no estudo e valorização da
○
○
seus povos, o acesso às informações, conhe- própria língua e da própria ciência, sintetizada
○
○
cimentos técnicos e científicos da socieda- em seus etnoconhecimentos, bem como no
○
de nacional e demais sociedades indígenas acesso às informações e aos conhecimentos téc-
○
○
e não-índias. ○
nicos e científicos da sociedade majoritária e das
demais sociedades, indígenas e não-indígenas
○
criando a categoria da “escola indígena”, a car- tanto para que estas escolas sejam de fato in-
○
como elaboraram referenciais específicos para sistema oficial, quanto para que sejam respei-
○
○
Referencial Curricular Nacional para as Escolas Assim sendo, para cumprir os princípios e
○
○
Indígenas (RCNEI), devem ter as seguintes ca- os objetivos estabelecidos pela legislação e pôr
○
○
(MEC, 1998). No Brasil, a Educação Escolar In- (MEC) tem se empenhado em desenvolver
○
○
dígena proposta tanto por organizações da so- ações e programas caracterizados pela descen-
○
○
ciedade civil quanto pelo Estado passa a se ori- tralização, pelo respeito ao processo de lutas e
○
○
○
○
○
○
○
4
O parágrafo 1º do artigo 9º da Resolução CEB/CNE nº 03/99 dispõe que “os municípios poderão oferecer Educação Escolar Indígena, em
○
regime de colaboração com os respectivos estados, desde que se tenham constituído em sistemas de educação próprios, disponham de
○
condições técnicas e financeiras adequadas e contem com a anuência das comunidades indígenas interessadas”.
○
22
SIMPÓSIO 2
Políticas públicas em Educação Indígena no Brasil
conquistas dos povos indígenas e pelo atendi- ro, tornando-se aptas a transitar com seguran-
○
○
mento de demandas que contemplem a educa- ça “em dois mundos e em duas culturas”. 5
○
○
ção intercultural e bilíngüe e que visem primor- Assim sendo, torna-se necessário que, nos
○
○
dialmente investir na formação inicial e conti- próximos anos, para cumprir o determinado
○
nuada dos profissionais de Educação Indígena, no artigo 62 da LDBEN, sejam feitos investi-
○
○
estimular a produção e a publicação de materi- mentos que possibilitem a formação, em ní-
○
○
al didático específico e divulgar para a socieda- vel médio e superior, dos professores índios. 6
○
de nacional a existência da diversidade étnica, Nesse sentido, é de fundamental importância 23
○
○
lingüística e cultural no país. a articulação entre o Ministério da Educação,
○
○
Como vimos acima, a Constituição Federal universidades, Secretarias de Educação, orga-
○
○
e a atual LDBEN asseguram o uso e a manuten- nizações não-governamentais, associação de
○
ção das línguas maternas e o respeito às formas professores indígenas e as próprias comuni-
○
○
próprias de aprendizagem das sociedades indí- dades, pois essa formação exige, além de uma
○
○
genas no processo escolar. O artigo 8º, caput, metodologia específica, profissionais alta-
○
○
da Resolução CEB/CNE nº 03/99 afirma o prin- mente qualificados. 7
○
cípio de que a atividade docente na escola in- Resta ainda salientar a importância da pro-
○
○
dígena será exercida prioritariamente por pro- dução de livros didáticos para uso nas escolas
○
○
fessores indígenas oriundos da respectiva etnia. indígenas do país, produzidos pelos professo-
○
○
Isso exige a elaboração de programas diferen- res indígenas e seus assessores. Uma formação
○
ciados de formação inicial e continuada de pro- de qualidade deve estar associada à produção
○
○
fessores. Essa formação deve fornecer aos pro- e à publicação de material didático que reflita
○
○
fessores índios as habilidades necessárias para e respeite a visão de mundo de cada povo in-
○
ficos para as suas escolas para o ensino bilín- Na elaboração desses materiais, os docentes
○
○
sistematização e incorporação dos conheci- tes formas de linguagem, partindo de seus co-
○
mentos e saberes tradicionais das sociedades nhecimentos étnicos e contando com a cola-
○
○
como o uso dos conhecimentos universais. A rial didático realiza-se com a publicação dos
○
○
escola é percebida por vários povos como o es- materiais didático-pedagógicos elaborados pe-
○
○
paço privilegiado em que as novas gerações são los professores índios, durante os cursos de for-
○
○
preparadas para enfrentar os desafios do futu- mação, apoiados pelo MEC ou por outros órgãos
○
○
○
○
○
○
5
De acordo com Leitão, “a aprendizagem da escrita da língua materna e dos conteúdos das tradições, na escola indígena, é uma necessida-
○
de, pois ela pode contribuir para reforçar os vínculos dos jovens com a cultura tradicional e formar uma identidade étnica comprometida com
○
os interesses da comunidade. Por outro lado, a escola também deve proporcionar o conhecimento da língua oficial e dos conteúdos que
○
○
servirão como base para a aprendizagem dos padrões de funcionamento da sociedade envolvente e de conhecimentos técnicos e científicos
○
6
O artigo 4 o da Resolução CEB/CNE nº 03/97 define que “o exercício da docência na carreira de magistério exige, como qualificação mínima:
○
I – ensino médio completo, na modalidade normal, para a docência na educação infantil e nas quatro primeiras séries do ensino fundamental;
○
II – ensino superior em curso de licenciatura, de graduação plena, com habilitações específicas em área própria, para a docência nas séries
○
○
finais do ensino fundamental e no ensino médio; III – formação superior em área correspondente e complementação nos termos da legisla-
○
ção vigente, para a docência em áreas específicas das séries finais do ensino fundamental e do ensino médio. [...] § 2 o A União, os Estados
○
e os Municípios colaborarão para que, no prazo de cinco anos, seja universalizada a observância das exigências mínimas de formação para
○
7
No que diz respeito à formação continuada, o Ministério da Educação brasileiro está oferecendo o Programa Parâmetros em Ação de
○
○
Educação Escolar Indígena. Esse programa busca criar uma cultura de formação continuada no interior das escolas e sistemas de ensino,
○
bem como fomentar o estudo em grupo, a leitura compartilhada de textos e a reflexão, por parte dos profissionais da educação, acerca de sua
○
prática docente.
○
e entidades. Esses materiais passam por uma Bibliografia
○
○
análise quanto à qualidade pedagógica, lingüís-
○
ALBERT, Bruce. Associações indígenas e desenvolvimen-
○
tica e antropológica, realizada pela Comissão de
○
to sustentável na Amazônia Brasileira. Povos indíge-
○
Análise de Projetos de Educação Escolar Indí- nas no Brasil: 1996/2000. São Paulo/Brasília: Instituto
○
gena/MEC.
○
Socioambiental, 2001. p. 195-217.
○
O Ministério da Educação tem fomentado LEITÃO, R. M. Estudantes indígenas em escolas de bran-
○
○
ainda a divulgação da temática indígena para a co: expectativas e dificuldades. In: OLIVEIRA, Dijaci
○
sociedade nacional, buscando, com isso, com- David de et al. 50 anos depois: relações raciais e gru-
○
○
pos socialmente segregados. Brasília/Goiânia: MNDH/
bater a discriminação e o preconceito, ainda
○
Cegraf, 1999.
○
vigentes, em relação às sociedades indígenas, e
○
. O papel da educacão escolar na formacão
○
procurando valorizar a diversidade socio- de lideranças indígenas. 21ª Reunião Nacional da As-
○
cultural do país. A temática indígena, nessa
○
sociação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em
○
perspectiva, deve ser abordada de maneira Educação, setembro 2000, Brasília: DAN/UnB, 2001
○
○
que crie condições para a reflexão sobre a ri- (Mimeo).
○
queza que a diversidade étnica possibilita, apro- ○
○
MINISTÉRIO DA EDUCACÃO. Diretrizes para a Política
Nacional de Educação Indígena . Brasília: MEC, 1993.
veitando a comporta de troca e aprendizado re-
○
Assim sendo, estamos assistindo a um pro- genas, 500 anos depois. Revista Brasileira de Educa-
○
cesso em que as organizações indígenas, junta- ção, Rio de Janeiro, n. 15, set./out./nov./dez. 2000.
○
○
mente com a recém-criada categoria dos pro- MUÑOZ, H. Los objectivos políticos y socioeconómicos de
○
mas educativas, possibilitam a construção de WOLF, Eric. Aspects of group relations in a complex society:
○
○
uma nova escola indígena e, portanto, de uma México. Pathways of power: building an anthropology
○
Press, 2001.
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
24
SIMPÓSIO 2
Políticas públicas em Educação Indígena no Brasil
○
○
○
de políticas públicas em
○
○
○
Educação Escolar Indígena: uma
○
○
○
questão de direito e cidadania
○
○
○
25
○
○
Maria Helena Fialho*
○
○
○
○
○
Considerando o contexto atual, orientado sores Indígenas em Mato Grosso, nas áre-
○
○
pela nova legislação da qual destacamos o De- as de Ciências Sociais, Ciências da Mate-
○
○
creto nº 26/91, a Resolução nº 03/CNE/99 e a mática e da Natureza e Línguas, Literatura
○
e Artes, inicialmente por um período de
○
Lei nº 10.172, de 9 de janeiro de 2001, a Funai,
○
por meio do Departamento de Educação, cinco anos. A Funai está também partici-
○
pando da discussão do 3º Grau Indígena
○
redefine seu papel como órgão indigenista fe-
○
○
em Roraima.
deral, o qual, além de zelar pelos direitos e in-
○
nicipais de Educação, organizações indígenas, mil estudantes fora das aldeias, cursando
○
decorrência da formação/capacitação de
○
senvolvimento das Sociedades Indígenas, no Pla- las nas aldeias só atende à 1ª fase do Ensi-
○
○
no Plurianual 2000/2003. Essas ações estão or- no Fundamental (1ª a 4ª séries). Esse apoio
○
sidades particulares.
○
professores indígenas. Além desses even- Funai mantém um total de 34 casas para
○
○
tos, a Funai firmou convênio com a Uni- indígenas que estudam em locais distan-
○
* Especialista em Línguas Indígenas Brasileiras, mestranda em Lingüística na UnB e chefe do Departamento de Educação da Funai.
○
acompanhamento e o desenvolvimento de zes, o acompanhamento pedagógico nes-
○
○
projetos específicos, os quais já estão sen- sas escolas ainda é precário. Falta pessoal
○
○
do viabilizados em alguns locais. Uma qualificado para assessorar os professores
○
grande preocupação do Departamento de na construção de uma metodologia de en-
○
○
Educação é com o ingresso desses estudan- sino coerente com as discussões realizadas
○
tes em escolas não-indígenas, levando em nos cursos de formação e que reconheça a
○
○
consideração os seguintes fatores: esses escola como um espaço de afirmação,
○
○
alunos se submetem a programas escola- revitalização e fortalecimento da cultura e
○
res que não estão associados à realidade da língua da etnia em questão e não so-
○
○
sociocultural e econômica vivenciada em mente como o lugar onde se “ensina” ou
○
○
suas comunidades; muitos não concluem se “aprende” a ler e escrever.
○
o ano letivo, desmotivados pela falta de
○
E, partindo do fato de que as secretarias
○
assistência pedagógica e financeira en- vivem situações diferenciadas, algumas já
○
quanto permanecem na cidade e pela difi-
○
estando mais envolvidas com a nova tare-
○
culdade de adaptação à escola; por ficarem
○
○
fa e outras em fase de estruturação, o De-
distantes de seus familiares e não partici- ○
tros importantes momentos sociais de seu atender da melhor forma possível às rei-
○
conceito e da discriminação por parte da de alunos nas escolas nas aldeias e, consi-
○
para suas comunidades nem sempre têm bem como os aspectos constitucionais, a
○
○
ses e outros problemas decorrentes dessa gunda fase do Ensino Fundamental nas al-
○
legislação referente aos direitos indígenas, teórico são os preceitos e os avanços da le-
○
e, brevemente, na Bahia.
○
colas e boa parte delas encontra-se com co específico. Em parceria com outras
○
escolas ainda contam com o professor não- para uso nas próprias escolas e/ou na co-
○
○
cola onde foi formado. Na maioria das ve- assuntos didático-pedagógicos relaciona-
○
26
SIMPÓSIO 2
Políticas públicas em Educação Indígena no Brasil
dos à arte e à cultura, para circulação en- dos temas pontuais, como: aspectos da legali-
○
○
tre as escolas nas aldeias. dade desde a Constituição de 1988; os princípi-
○
○
Com o objetivo de otimizar a aplicação os da Educação Escolar Indígena (bilingüismo,
○
○
dos recursos dessa ação e reordenar a gran- interculturalidade, diferença e especificidade)
○
de demanda de materiais apresentados dentro das diretrizes da política pública da Edu-
○
○
para publicação, o Departamento definiu cação Escolar Indígena; demandas locais; PPA
○
○
alguns critérios essenciais à publicação, en- – Plano Plurianual 2000/2003; fatores relevan-
○
caminhando as devidas orientações aos or- tes apresentados no Referencial Curricular Na- 27
○
○
ganismos interessados para que sejam apre- cional para as Escolas Indígenas (RCNEI); cur-
○
sentados os dados necessários à aprovação
○
rículos; temas transversais; e, dessa forma, de-
○
do material pelo Conselho Editorial, orga-
○
sencadeou uma avaliação coletiva da atuação
○
nizado na própria instituição, com técnicos
da Funai no processo, tanto em nível central
○
e especialistas experientes nessa área.
○
como regional. A continuidade da referida
○
Os critérios estabelecidos, entretanto,
○
capacitação será por meio de minicursos em
○
buscam garantir uma publicação de mai-
○
Antropologia, Lingüística, Sociolingüística, Po-
or qualidade, com a participação direta da
○
lítica Indigenista e Fundamentos Pedagógicos,
○
comunidade indígena, seja pela via esco-
○
áreas importantes para o trabalho de Educação
○
lar, seja por outros autores também indí- ○
genas, desde que o material sirva para uti- Escolar Indígena, inclusive com propostas de
○
○
lização pela escola e/ou pela comunida- cursos de graduação e/ou especialização a dis-
○
A Funai conta hoje com uma equipe de pro- Fazem parte da linha de pesquisa da Funai:
○
ções e por meio de experiências indigenistas lização de Línguas Indígenas. Assim, a Funai
○
○
genheiro civil da Funai, que se especializaram que precisam ser repensadas e mais bem dis-
○
○
nesse tipo de construção, o que muito tem va- cutidas, especialmente o contexto de diversida-
○
São esses especialistas que atuam na asses- bilingüismo e a especificidade, os quais são
○
○
e estão contribuindo de forma competente para passa de palavras-chave para os agentes que as
○
○
Além disso, esse quadro especializado está desenvolvidas nessa formação são descontex-
○
mais técnicos em educação intercultural que prática em que o período de formação não tem
○
○
atuam nos setores e/ou seções de educação das uma interface com a realidade escolar e a de-
○
○
unidades regionais da Funai e, no segundo se- manda das comunidades indígenas envolvidas.
○
mestre de 2000, realizou encontros regionais, Não se pode correr o risco de viabilizar a for-
○
○
contemplando todas as regiões que possuem mação do professor apenas para atender às exi-
○
○
escolas indígenas. Na ocasião, foram trabalha- gências legais e, sim, possibilitar que esse pro-
○
fissional seja pesquisador e autor de sua pró- atendimento à educação em suas terras. A todo
○
○
pria história, um interlocutor da comunidade, momento, informamos sobre as mudanças de
○
○
se considerarmos que escola e comunidade não papéis institucionais; apresentamos a legislação
○
○
são separadas e estanques, porém constituídas vigente, principalmente as diretrizes e metas,
○
numa única base socioeconômica e cultural, que são claramente atribuídas aos estados. Ade-
○
○
como uma luta pela auto-afirmação étnica e mais, intercedemos junto das Secretarias, su-
○
○
pela conquista da autonomia indígena. gerindo encaminhamento para os problemas
○
Vale ressaltar que a Funai, especificamente
○
identificados ou propondo parceria.
○
o Departamento de Educação, não tem inten- Portanto, entendemos que a implementa-
○
○
ção de atropelar ações de nenhuma outra insti- ção da política educacional para os povos indí-
○
○
tuição, muito pelo contrário, seu desejo é sem- genas é um processo longo e demorado, e que,
○
pre o de desenvolver um trabalho em parceria no entanto, as esferas competentes devem as-
○
○
e o de atender às reivindicações e necessidades sumir realmente o que regulamenta a lei. Cabe
○
○
das organizações indígenas, dos professores, destacar que a Funai, no seu papel institucio-
○
○
dos estudantes e das lideranças indígenas por ○
nal de zelar pelos direitos e interesses das co-
uma educação de qualidade. munidades indígenas, e compromissada com as
○
○
A Funai continua sendo, para os indígenas, sociedades indígenas, vem exercendo junto
○
○
um centro de referência, apoio, consulta e arti- dessas outras esferas a parceira, o apoio finan-
○
○
culação, dada a sua longa trajetória indigenista. ceiro, a assessoria técnica em cursos para pro-
○
como ao próprio departamento. São constan- cimentos adquiridos nessa prática de pesquisa
○
○
o saber indígena.
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
SIMPÓSIO 3
EDUCAÇÃO, DIVERSIDADE
CULTURAL E CIDADANIA:
OS POVOS INDÍGENAS E A ESCOLA
Inge Sichra
29
Educação, diversidade cultural
○
○
○
e cidadania Considerações
○
○
○
sobre a educação na Bolívia
○
○
○
○
○
Inge Sichra*
○
○
○
○
Resumo
○
○
○
○
○
As relações entre povos indígenas e o Esta- do processo de subordinação e “cidadania” dos
○
do na Bolívia nos permitem entender a inter- povos indígenas andinos, oferece uma visão atual
○
○
culturalidade como um espaço de permanente do plurilingüismo e da multiculturalidade da so-
○ ciedade andina boliviana e indica certos riscos da
conflito em torno de temas como identidade ét- ○
○
nica, direito e diferença, afirmação cultural, ter- educação intercultural bilíngüe oferecida pelo Es-
○
○
ritório e nação. Esse conflito cristaliza-se prin- tado. Concluímos que só um enfoque de educa-
○
cipalmente na educação porque, “mais que uma ção intercultural de transformação poderá fazer
○
○
esfera pedagógica, ela é uma instituição políti- frente ao desafio da igualdade na diferença. Num
○
○
ca, social e cultural, um espaço de construção e plano mais concreto, resgatamos, também, algu-
○
e cultural
○
O espoliamento de terras
○
A luta pela escolarização indígena nos tem- ler e escrever em castelhano parecia ser um re-
○
○
munir-se de ferramentas para recuperar terras os índios do século XIX reivindicavam repre-
○
* Assessora, coordenadora de cursos de mestrado e docente na área da linguagem do Proeib Andes. As opiniões expressadas neste docu-
○
○
mento são de inteira responsabilidade da autora e não representam, necessariamente, as opiniões da GTZ ou da Universidade Maior de San
○
30
SIMPÓSIO 3
Educação, diversidade cultural e cidadania: os povos indígenas e a escola
altiplano e do vale exigiram educação para eli- trões diziam que o “único índio bom era o índio
○
○
minar o analfabetismo, que representava sua morto” (CSUTCB, 1991: 2).
○
○
meta mais urgente. A idéia era que a unifica-
○
○
ção da sociedade pela leitura e escrita em Nacionalismo para civilizar o índio
○
castelhano promoveria a igualdade entre as di-
○
Com a revolução de 1952, rebelião indígena
○
ferentes raças e grupos sociais” (Mesa et al.,
○
contra os latifundiários que inseriu o Movimen-
○
1999: 423).
○
to Nacionalista Revolucionário (MNR) no cená- 30
Surge, a partir daí, a identificação da esco-
○
rio político, propôs-se a criação de uma só na-
○
la com a aprendizagem do castelhano e a equi-
○
ção com uma só identidade. A história oficial
○
valência da aprendizagem do castelhano com
○
fala da opressão colonial do boliviano pela co-
○
o aprender a ler e escrever. Essa dupla equa-
roa espanhola, mas não do índio. O indígena
○
ção imprimiria uma característica inconfundí-
○
devia ser absorvido por todos os bolivianos em
○
vel à escola boliviana em toda a sua história.
○
nome de um Estado homogêneo. Assim, a es-
○
Até hoje, a escola “para todos” é vista como
○
colarização universal e gratuita devia ter a meta
○
símbolo de igualdade na sociedade e difusora
de “bolivinizar” os índios, ou seja, ensiná-los a
○
da leitura-escrita em castelhano como instru-
○
ler e escrever o idioma oficial do Estado, ensi-
○
mento de defesa.
○
○
○ nar-lhes coisas sobre seu país e fazê-los ter or-
gulho dele. O código educacional de 1955 esta-
A mestiçagem desafia
○
a separação de raças
○
No século XX, surge na Bolívia uma corren- alizada à população indígena, visando à sua
○
o intuito de “civilizá-lo” por meio da “castelha- mestiçagem era o mesmo da escola indígena de
○
○
nização” e alfabetização, para que ele possa in- origem mestiça, mas nesse caso como uma
○
o índio (que ainda era chamado por esse nome), Diante da ausência de espaço para o
○
○
Malverde e Canessa, 1995: 232). Essa escola dígenas e uma sociedade que os discriminou em
○
passados aprendessem o que quer que fosse. Marcha pelo Território e pela Dignidade, orga-
○
○
Eles afirmavam que “um índio letrado era um nizada por povos indígenas dos departamentos
○
índio rebelado”. Por isso havia muita repressão, amazônicos de Pando e Beni – as chamadas ter-
○
○
prisões e agressões contra lideranças que tenta- ras baixas (tierras bajas) da Bolívia –, percorreu
○
○
vam estabelecer escolas secretamente. Os pa- o país das planícies até o altiplano e forçou o
○
governo de Jaime Paz Zamora (1989-1993) e a cesso educacional deverá garantir a igualdade
○
○
população andina do país a se conscientizarem de oportunidades e uso, e nenhuma delas terá
○
○
da existência desses povos indígenas e de suas um tratamento preferencial, de modo que as
○
○
exigências territoriais. O Estado ratificou, em línguas maternas gozem do mesmo status que
○
1991, o Convênio nº 169 da OIT sobre povos in- o castelhano” (CSUTCB, 1991: 20).
○
○
dígenas e promulgou a respectiva lei. Além dis- No que se refere à característica intercultural
○
○
so, reexaminou sua política, concedeu direitos da educação, a proposta estabelece que:
○
territoriais a algumas etnias amazônicas e co-
○
○
meçou a falar em unidade na diversidade, igual- O currículo será intercultural e, portanto, aber-
○
○
dade na diferença e integração com respeito. to e voltado à afirmação da identidade cultural
○
e social dos educandos e à consolidação da cul-
○
Esse processo culminou, em 1994, com a intro-
○
dução de mudanças na Constituição Política do tura nativa das crianças [...]. Essa afirmação cul-
○
○
Estado, que passou a reconhecer a Bolívia como tural permitirá que a criança valorize sua cultu-
○
ra, desenvolva um maior respeito próprio e afir-
○
um país multiétnico e pluricultural. No artigo
○
○
me sua identidade, tornando-se um indivíduo
171 da atual Constituição, lê-se o seguinte: ○
nômicos e culturais dos povos indígenas que vi- Após quatro anos de trabalho prévio e com
○
reito às suas terras comunitárias de origem, ga- língüe, co-patrocinado pelo Unicef e pelo Mi-
○
○
táveis dos recursos naturais nelas existentes e barcou na Reforma Educacional, na Lei nº
○
Transformações em curso?
○
povos indígenas. Quanto à característica bilín- rural como improdutivo e atrasado, como um
○
maneira: “O tratamento dado a essas línguas rurais e seu modo de vida representam tudo o
○
○
(línguas nativas e castelhano) em todo o pro- que o discurso dominante procura superar. O
○
32
SIMPÓSIO 3
Educação, diversidade cultural e cidadania: os povos indígenas e a escola
Estado impulsiona a transferência tecnológica nalmente, existirão para eles próprios” (Ribei-
○
○
para transformar o meio rural e cria uma nova ro, 1989: 56).
○
○
lei de terras que permite a comercialização do As culturas indígenas representam o orgu-
○
○
chamado bem inerte (bien inerte, nas palavras lho da Bolívia. Elas têm conquistado espaço nas
○
do presidente Gonzalo Sánchez de Lozada, capitais e nos teatros e tornam-se produto de
○
○
1993-1997) na Bolívia. O consumismo é estimu- exportação quando estão devidamente “folclo-
○
○
lado pelos meios de comunicação, seguindo a rizadas” na forma de música e dança. Já os in-
○
máxima de Galeano: “quem não compra não dígenas são... um problema. 32
○
○
existe e quem não tem não é”. Desde o ano passado, a direção da CSUTCB,
○
○
A identificação da singularidade é estabe- liderada por Felipe Quispe Huanca, vem promo-
○
○
lecida por dois conjuntos de sistemas, um sis- vendo, por meio de ações políticas, uma revi-
○
tema de remanescentes culturais obsoletos e são do conceito de “indígena” na sociedade
○
○
um sistema de carências (Varese, apud López, boliviana, exigindo que o Estado assegure igual-
○
○
1996: 64). Por um lado, a economia de subsis- dade de condições econômicas e sociais ao
○
○
tência, baseada num sistema de reciprocida- povo aimara. Sem entrar no mérito de suas po-
○
de com forte controle social, o agrocentrismo, lêmicas ações e intervenções, o senhor Huanca
○
○
a personificação e deificação da natureza, a promoveu, em todo o país, uma discussão em
○
○
concepção cíclica do tempo e as demais carac- torno do espaço a ser ocupado pelos povos na-
○
○
terísticas culturais andinas não podem gerar a tivos. Sem dúvida alguma, ele trouxe à baila...
○
“pobreza”, rótulo imposto com o objetivo ób- As reformas da década de 1990 poderiam
○
○
vio de justificar ações desenvolvimentistas por implicar uma transformação radical de atitudes
○
○
parte dos financiadores que dirigem os desti- e uma afirmação do indígena, mas, acima de
○
cem-se, em primeira instância, suas deficiên- como modelo regional. No país como um todo,
○
cias, que resultam justamente da alienação à gerou ceticismo nos mesmos grupos que reivin-
○
○
qual ela foi exposta. É contraproducente essa dicavam uma educação inclusiva, que respei-
○
○
tida para qualquer intenção séria e efetiva de apenas entre indivíduos, mas também entre
○
○
por mais subjugada e alterada que a cultura de e jurídicas? Não haveria uma contradição cons-
○
○
Darcy Ribeiro nos fala de povos indígenas que enfrentam discriminação, racismo e desi-
○
○
como testemunhas, povos que dão testemunho gualdade e o léxico oficial da interculturalidade
○
do que conservaram deles próprios, das altas como algo que o Estado se compromete a fo-
○
○
ro: “Uma vez libertos da opressão representada Uma reforma educacional como a bolivia-
○
○
pela expectativa de assimilação dos Estados na poderia também implicar uma maior inci-
○
utilizadas contra eles, emergirão para as tare- nação, em vez de sua transformação. As orga-
○
○
fas de auto-reconstrução como povos que, fi- nizações indígenas percebem o caráter instru-
○
mental e mediador dos planos e programas; as Além do ideal constitucional
○
○
bases indígenas de algumas organizações iden-
○
de uma Bolívia multilíngüe
○
tificam seu objetivo oculto de minar a cultura
○
1
e multicultural
○
dos povos indígenas e dominá-los lingüisti-
○
camente, usando inicialmente sua língua ma-
○
○
terna, já que, tradicionalmente, a escolarização
○
A camisa-de-força da educação
○
era um cenário privilegiado para o glotocídio
○
(Green, 1996). intercultural bilíngüe
○
○
Inicialmente uma vitória, o caráter de polí-
○
A educação bilíngüe, considerada como um
○
tica estatal da educação intercultural bilíngüe modelo educacional adequado à diversidade lingüís-
○
○
(EIB) torna-se um “problema sério e permanen- tica, fica enriquecida em seu enfoque mediante a in-
○
te com efeitos práticos em propostas organiza-
○
clusão do aspecto intercultural que leva em conside-
○
cionais, porque as comunidades resistem, por
○
ração a pluralidade de conhecimentos e manifesta-
○
mais que a proposta seja boa, a qualquer pro- ções culturais e coloca “um educando concreto, de
○
○
grama do Estado” (Green, 1996: 1-2). Esse aler- ○
Educação Intercultural Bilíngüe de Santa Cruz do na demanda dos povos indígenas, das comu-
○
○
de la Sierra, Bolívia, em 1996, resume o proble- nidades de base (a partir da Conferência Mun-
○
quer ação do Estado, gerada pelo temor de que Jomtien em 1990) e não, como havia ocorrido
○
○
seus propósitos não correspondam às intenções até então, baseado em propostas elaboradas em
○
ceu nesse lado do mundo. “Quando se pensa no sidade cultural e lingüística começa a ser vista
○
○
Estado”, afirma Bourdieu, “suspeitar até demais como uma riqueza e não como um problema,
○
novo modelo de dominação pós-moderna es- cultural e lingüístico imediato, possa ser con-
○
○
trategicamente promovida por meio do reco- frontado com outras realidades e manifestações
○
CSUTCB, de caráter nacional (Green, 1996; esse modelo de educação e o diálogo intercul-
○
política partidária ( Walsh, 2000). Inicialmen- (1998: 208) formulam esse questionamento da
○
○
para um mercado de trabalho destinado a um inherent in transforming what has been and con-
○
○
grupo privilegiado – ao qual a maioria não terá tinues to be a tool for standardisation and
○
1
Em uma população de aproximadamente 6,4 milhões de pessoas, correções aplicadas ao censo de 1992 por Xavier Albó (1995, v.1, p. 19)
○
○
indicam que 38% delas usam o idioma quéchua, 26% usam o idioma aimara e 41% só usam o castelhano.
○
34
SIMPÓSIO 3
Educação, diversidade cultural e cidadania: os povos indígenas e a escola
O próprio caráter da escola concebida como dagogias e aos professores estabelecidos pelo
○
○
instituição fechada, como instrumento do Es- sistema estatal e questiona o avanço em dire-
○
○
tado e da ordem mundial a serviço da hegemo- ção à construção de um novo currículo amplo,
○
○
nia, suscita dúvidas. com base no eixo central da escola e da leitura-
○
Como a educação intercultural bilíngüe escrita, por tratar-se de um discurso circular: a
○
○
manteve as características da escola, a cultura flexibilidade dos currículos só é concebida no
○
○
indígena foi submetida a uma camisa-de-força contexto de uma escola, com espaço e tempo
○
que tende a desvirtuá-la e até desintegrá-la. segmentados. 34
○
○
Green (1996) fala da “fatalidade” da EIB em de- No caso da Bolívia, muitos professores que
○
○
corrência de suas características semelhantes às trabalham em escolas públicas lidam, em pri-
○
○
da escola de sempre: meira instância, com jovens que aspiram à as-
○
• professor formado ao longo de anos de re- censão social e a deixar para trás sua origem
○
○
clusão em instituições centralizadas e aca- rural e linhagem indígena. Ainda que mal re-
○
○
dêmicas com a missão de transmitir conhe- munerados e sem prestígio na sociedade domi-
○
cimentos;
○
nante, os inspetores educacionais ocupam um
○
• aula que reúne as crianças durante deter- espaço de poder como organismo sindical em
○
○
minadas horas em espaços fechados entre constante processo de reivindicação trabalhis-
○
○
partimentalizado, estabelecido com o intui- fessor tipicamente não faz parte da comunida-
○
○
a um fim específico ou purposeful learning enquanto aguarda sua transferência para esco-
○
turalidade discutida em todos os âmbitos, e se Por outro lado, a reforma educacional esta-
○
○
a educação intercultural pretende estender uma belece um currículo de vigência nacional (ou
○
nasça da raiz, a educação – e qualquer projeto rado dessa maneira tenha muito pouco de con-
○
○
Green denuncia a falta de senso crítico da como, onde, quando e com quem ensinar, sem
○
○
EIB em relação à escola, aos currículos, às pe- permitir o desenvolvimento de outras opções
○
ou programas educacionais contestatórios no ência comum da nação” (Dave, apud Bourdieu,
○
○
nível básico ou da formação de docentes. 1991: 49). Assim, leva a cabo uma missão
○
○
civilizadora, na qual a escola é a “capela da
○
○
Apoiando o caráter universal que a educação modernização” (Howard-Malverde e Canessa,
○
deve ter, é inquietante observarmos que embo- 1995: 234).
○
○
ra aceitemos o fato de que existem outras A escola é um elemento a mais do sistema
○
cosmologias, outras éticas de saber, outros sis-
○
de mobilidade social moldado pelos processos
○
temas axiológicos, quando chega a hora de cons- políticos e sociais e pelas condições de forma-
○
○
truir os projetos educacionais, deixamos esse
ção da nova economia e do mercado após 1952,
○
fato de lado (Green, 1996: 3).
○
cuja orientação se resume a “deixar de ser ín-
○
○
dio”. Essa situação persiste, como bem escre-
○
vem Hornberger e López (1998: 208).
○
O enfoque da assimilação entre os
○
○
protagonistas da educação
○
Although, in fact, only a small percentage of
○
○
cial mobility.
○
foram os seguintes:
○
casem como seus pais... Há pais de família que em suficiente medida, uma vez que os grupos
○
afirmando que ela os torna frouxos e os faz pa- educacional e a língua e cultura que ele repre-
○
○
rar de plantar e pastorear... Queremos que se- senta, eles também começarão a “colaborar
○
○
jam algo na vida, que não fiquem aqui como seus para a destruição de seus instrumentos de ex-
○
de vida, de seu apego à terra e à sua cultura, é num castelhano incipiente. Uma mãe analfabe-
○
mesmo que isso signifique romper com sua fa- que fazia questão de falar com seus filhos num
○
aproximar-se da periferia, do subcentro urba- afirmou: “O que posso ensinar a meus filhos?
○
○
no ou do centro urbano (Aronowitz, 1987). O Sou ignorante, não sei ler nem escrever”. Um
○
○
professor, juntamente com as demais autorida- professor com ampla experiência docente no
○
da cultura da metrópole. Ele percorreu pesso- intercultural bilíngüe: “Meus pais eram analfa-
○
○
almente esse caminho até se tornar um profes- betos... mas souberam me ensinar os valores do
○
36
SIMPÓSIO 3
Educação, diversidade cultural e cidadania: os povos indígenas e a escola
Quanto à diversidade lingüística, seu po- 51) caracterizam esse enfoque como a preten-
○
○
tencial não é reconhecido pelo professor. Pelo são de igualar oportunidades educacionais
○
○
contrário, eles acham que línguas indígenas para alunos culturalmente diferentes, o que se
○
○
na sala de aula e no território nacional pro- traduz na intenção de suplantar diferenças im-
○
vocam atraso. pondo formas culturais dominantes. A base
○
○
desse enfoque é a substituição do termo “de-
○
○
Os idiomas subjugam, porque, se eu sou um ficiência” por “diferença”, mantendo-se a con-
○
quéchua ou aimara e quero ir à universidade, vicção de que a pobreza se explica pelo fato de 36
○
○
não vou encontrar nenhum livro escrito em os diferentes grupos culturais não contarem
○
○
aimara ou quéchua. Portanto, minha vida vai fi- com as mesmas oportunidades para adquirir
○
car frustrada e vou ser forçado a trabalhar no
○
os conhecimentos e habilidades necessários.
○
campo. O que precisaram fazer com os gaúchos
O objetivo da educação será o de assegu-
○
na Argentina? Precisaram eliminá-los e, assim,
○
rar compatibilidade entre a dinâmica da sala
○
a Argentina começou a surgir como uma nação
○
de aula e a dinâmica cultural dos grupos de in-
○
que se entende, que fala um só idioma. Aqui é
○
divíduos “diferentes” do grupo cultural domi-
como a torre de Babel: todos falam idiomas di-
○
nante/majoritário que serve de referência na
○
ferentes e ninguém se entende e, por isso, a Bo-
○
escola. A idéia, em última análise, é desenvol-
○
lívia é tão desunida, não é mesmo? E parece que ○
é isso que o governo quer fazer: desunir os boli- ver sistemas de compensação educacional por
○
○
vianos (professor de Ensino Médio José Manuel meio dos quais o “diferente” possa desenvol-
○
As observações acima, que foram feitas que facilita o “trânsito” de uma cultura à outra
○
(idem, ibidem).
○
do em 1999, denotam uma postura pouco A ironia da educação boliviana é que ela não
○
○
e parecem ter sido feitas há séculos. qualidade de vida dos povos indígenas, e sim
○
ideal promovido nas leis, também surge com estabelecidas conforme os ditames da socieda-
○
○
dos Trabalhadores Rurais de Raqaypampa, Pro- Quem determinará que conteúdos cultu-
○
mentos dispersos em sua região (11 mil pes- Como diferenciaremos o culturalmente acei-
○
○
soas), por que a Central não impulsionava a tável do que as políticas de desenvolvimento
○
promulgação da lei, a reforma educacional não das necessárias para que o cultural na educa-
○
○
“chegava” ao norte da Província de Ayopaya, ção intercultural não se reduza à expressão ar-
○
ta foi a seguinte: fica longe demais, a cinco ção cultural e a justiça social dos povos indíge-
○
similação. García Castaño e outros (1999a: 50- dade nacional e internacional, de acordo com
○
sua própria concepção e a partir do fortaleci- los grupos dominantes que estruturam institui-
○
○
mento de sua identidade. Isso pressupõe uma ções sociais para manter ou aumentar esse con-
○
○
educação cuja natureza deve ser determinada trole. O que os grupos oprimidos, no nosso caso
○
○
pelos próprios indígenas, especialistas em sua os povos nativos, fazem é opor-se e lutar pelo
○
forma singular de vida. São eles, é cada povo controle dos recursos do poder, da riqueza e do
○
○
indígena, que devem definir como continuarão prestígio que existem na sociedade.
○
○
educando suas crianças e jovens e os mecanis- Concordamos plenamente com García
○
mos de seleção e formação de seus professores, Castaño e outros (1999b) quando afirmam que
○
○
livres das garras da escolaridade e do currículo impor culturas deficitárias sobre culturas
○
○
ocidental. É respeitando e valorizando o siste- não-deficitárias é uma prática de desigualda-
○
○
ma de reprodução de cada povo, de cada comu- de, não de diferença. A forma singular de
○
nidade, que a educação escolarizada pode as- adaptação de cada povo a contextos diferen-
○
○
sumir seu papel de facilitadora no processo de tes faz justamente a diferença entre os povos.
○
○
sua inserção na sociedade nacional e interna- A interculturalidade de modo geral e a edu-
○
○
cional, percebendo-se como agente de sociali- ○
cação intercultural bilíngüe em particular de-
zação e não de expulsão. vem fundamentar-se nessa diferença, e não
○
○
as. Persiste a falta de uma concepção clara do manos que as criaram (García Castaño et al.,
○
○
professores, endividados com os valores e pre- É de se esperar que o Estado, com seu apa-
○
○
os valores culturais desses mesmos povos são decisão que propiciem a transmissão da cul-
○
○
Qualquer ação de transmissão de cultura impli- entanto, o caminho para uma verdadeira edu-
○
res da cultura transmitida; em outras palavras, ração de sua perspectiva limitada e seu esta-
○
○
qualquer tipo de ensino deve gerar uma ne- belecimento no âmbito das comunidades in-
○
○
construir a cultura que deseja transmitir como que nelas existem. Por outro lado, como ex-
○
○
um valor, o que é logrado por meio do próprio posto acima, as organizações indígenas tam-
○
○
bilíngüe adequada a uma posição como a Não há dúvida de que o professor tem um
○
○
(García Castaño et al. , 1999a: 59-60), com base cação transformadora. E estamos convencidos
○
○
na teoria do conflito e na teoria da resistência. de que a visão geral aqui apresentada não in-
○
Segundo essas propostas, os grupos oprimidos valida os esforços que devem ser envidados no
○
○
(no nosso caso, os povos indígenas) não se aco- campo da formação dos professores para
○
○
38
SIMPÓSIO 3
Educação, diversidade cultural e cidadania: os povos indígenas e a escola
○
○
do Programa de Formação em Educação Inter- novos. O desafio é imbuir-se, como professor,
○
○
cultural Bilíngüe para os países andinos do que possa significar um modo de fazer edu-
○
○
(Proeib Andes) tem como fio condutor a iden- cação num mundo que articula as diferenças e
○
tidade questionada, resgatada e afirmada do não as combate.
○
○
estudante de origem indígena. Acreditamos Não podemos concluir esse documento sem
○
○
que o caminho para o fortalecimento das afirmar que enquanto perdure o desequilíbrio
○
potencialidades dos povos indígenas é a recu- sociopolítico e econômico dos grupos étnicos 38
○
○
peração de sua auto-estima e identidade e em relação a setores sociais dominantes, e en-
○
○
também da de seus professores. A educação quanto esses concebam e executem programas
○
○
intercultural oferece possibilidades para esse educacionais e se sintam no direito de respon-
○
complexo processo de conscientização étnica der às necessidades de aprendizagem dos po-
○
○
e lingüística. Essa educação intercultural deve vos indígenas a partir da sua própria visão e in-
○
○
ser adotada nos Centros de Formação de Pro- teresses, a interculturalidade será, na melhor
○
○
fessores, sejam eles Institutos Normais Supe- das hipóteses, um diálogo de surdos e, na pior,
○
riores ou Instituições de Ensino Superior. No um novo e sutil mecanismo de dominação, uma
○
○
entanto, não é um caminho fácil e tampouco passagem de uma só via.
○
○
conflito é inerente ao ser intercultural, que ALBÓ, Xavier. Bolívia plurilingüe. Guía para planificadores.
○
precisa reconhecer e conviver com o conflito, La Paz: Unicef, Cipca, 1995. v. 1-3.
○
○
ou intergrupal.
○
No Proeib Andes, identificamos a pesquisa AMADIO, Massimo. La cultura como recurso político:
○
deamento de processos de afirmação da iden- MOYA (Eds.). Pueblos indios, estados y educación. Lima/
○
○
tidade e também para gerar novas perspectivas Quito: PEED-P/ERA/EBI, 1989. p. 425-440.
○
preconceitos.
○
Finalmente, e como lição mais evidente, o Casa Chata, México, Año II, n. 3, p. 23-43, 1987.
○
○
professor deve lançar-se plena e resolutamen- BOURDIEU, Pierre. Systems of education and systems of
○
te nesse empreendimento intercultural, deixan- thought. International Social Science Journal, 19: 338-
○
○
cionista” da educação tradicional. Como des- MONTES DEL CASTILLO, Angel. La educación
○
○
taca López (2001), o caráter social da aprendi- multicultural y el concepto de cultura. In: GARCÍA
○
zagem, base da corrente pedagógica do cons- CASTAÑO, J.; GRANADOS MARTÍNEZ, A. (Eds.).
○
○
1999a. p. 47-80.
○
cente -estudantes e dos estudantes entre eles, Antolín; GARCÍA-CANO TORRICO, María. Racialismo
○
ralmente determinadas – e, além disso, relacio- la Comunidad Autónoma Andaluza y en los libros de
○
○
texto de la educación primaria. In: GARCÍA CASTAÑO; . La cuestión de la interculturalidad y la
○
GRANADOS MARTÍNEZ (Eds.). Lecturas para educación latinoamericana. In: Análisis de prospectivas
○
○
educación intercultural. Madrid: Trotta, 1999b. p. 169- de la educación en América Latina y el Caribe . Santia-
○
207. go: Unesco-Orealc, 2001. p. 382-406.
○
GREEN, Abadio. Viejos y nuevos requerimientos de las MESA, José; GISBERT, Teresa; MESA, Carlos. Historia de
○
○
políticas lingüísticas de los pueblos indígenas. In: II Bolivia. La Paz: Editora Gisbert, 1999.
○
CONGRESSO LATINO-AMERICANO DE EIB, 11-15 MINISTERIO DE EDUCACIÓN, CULTURA Y DEPORTES.
○
○
nov. 1996, Santa Cruz de la Sierra, Bolívia, 1996. Compendio de legislación sobre la Reforma Educativa
○
(Mimeo) 8 p. y leyes conexas . La Paz, 1998.
○
○
HORNBERGER, Nancy; LÓPEZ, Luis Enrique. Policy, RIBEIRO, Darcy. Etnicidad, indigenismo y campesinado.
○
possibility and paradox: indigenous multilingualism and Futuras guerras étnicas en América Latina. In: DEVALLE,
○
○
education in Peru and Bolivia. In: CENOZ; GENESEE S. B. C. (Ed.), La diversidad prohibida: resistencia étni-
○
(Eds.). Beyond bilingualism: multilingualism and ca y poder del Estado. México: El Colegio de México,
○
○
multilingual education. Multilingual Matters 110. 1989. p. 43-60.
○
Clevendon, 1998. p. 206-242. SICHRA, Inge. Huellas de intraculturalidad en un programa
○
○
HOWARD-MALVERDE, Rosalyn; CANESSA, Andrew. The intercultural en el ámbito de educación superior. In:
school in the Quechua and Aymara communities of ○
○
○ HEISE, María (Comp.). Interculturalidad. Creación de un
Highland Bolivia. International Journal of Educational concepto y desarrollo de una actitud. Lima: Programa
○
JORDÁN PANDO, Roberto. Participación y movilización VARESE, Stefano. La cultura como recurso: el desafío de
○
rica Indígena XXXII, México, p. 907-934, 1972. nal autónomo. In: ZÚÑIGA et al. (Eds.). Educación en
○
○
LÓPEZ, Luis Enrique. Educación, pluralidad y tolerancia: poblaciones indígenas. Políticas y estrategias en Amé-
○
na Reunião Regional BIE/Orealc-Unesco sobre Educa- Nueva Sociedad. Caracas, 165: 121-133, 2000.
○
○
ção para a Compreensão Internacional. Balanço e pers- ZALLES, Alberto. Educación y movilidad social en la
○
pectivas para a América Latina e o Caribe. Santiago do sociedad rural boliviana. Nueva Sociedad. Caracas, 165:
○
○
. No más danzas de ratones grises: sobre ZAMBRANO, Car los. Diversidad cultural ampliada y
○
○
interculturalidad, democracia y educación. In: educación para la diversidad. Nueva Sociedad. Cara-
○
GODENZZI, Juan Car los (Ed.). Educación e cas, 165: 148-159, 2000.
○
○
interculturalidad en los Andes y la Amazonía. Cuzco: ZIZEK, Slavoj. Multiculturalismo o la lógica cultural del ca-
○
Centro de Estudios Regionales Andino Bartolomé de pitalismo multinacional. Estudios culturales. Reflexiones
○
○
EXPERIÊNCIA DO ENSINO
SUPERIOR INDÍGENA
Edivanda Mugrabi
Marilda C. Cavalcanti
41
O Ensino Superior Indígena
○
○
○
no Espírito Santo e o papel
○
○
○
da universidade
○
○
○
○
○
Edivanda Mugrabi*
○
○
○
○
Resumo
○
○
○
○
O presente texto visa, a um só tempo, siste- ria, em seguida trataremos de enfocar o papel da
○
○
matizar a experiência de construção do Ensino Universidade Federal do Espírito Santo nesse
○
Superior Indígena no Espírito Santo e discutir os processo. Num terceiro momento, centramo-nos
○
○
limites e as possibilidades dessa construção. Em ○
○
nas idéias essenciais que estão sendo discutidas
um primeiro momento, apresentaremos sucin- em torno do formato das Licenciaturas que pre-
○
tamente uma retrospectiva da luta dos povos tendemos criar. À guisa de conclusão, apresen-
○
○
Tupinikim e Guarani em prol de uma educação tamos alguns dilemas e dificuldades que atraves-
○
sam o processo.
○
○
○
○
○
Os Tupinikim e os Guarani e a
○
○
educação escolar diferenciada escolar é antiga, mas ela se traduz em fatos a par-
○
○
Caieira Velha 150 708 tante para o povo Tupinikim, na medida em que,
○
Comboios 60 342
○
Irajá 62 262
○
Guarani
○
Boa Esperança 24 96
○
* Doutora em Educação pela Universidade de Genebra, professora do Departamento de Fundamentos e Orientação Educacional e do Mestrado
○
42
SIMPÓSIO 4
Experiência do Ensino Superior Indígena
tação Profissional para o Magistério de 1ª a 4ª Mais da metade dos alunos que concluem o
○
○
séries do 1º Grau – Formação Específica em 1º ciclo do Ensino Fundamental não prosse-
○
○
Educação Indígena. Esse curso foi fundado guem seus estudos. A taxa de índios que ascen-
○
○
nos princípios da interdisciplinaridade, da dem ao Ensino Médio é também extremamen-
○
interculturalidade e da participação dos edu- te baixa. Agregue-se a esses dados o número de
○
○
cadores e das comunidades indígenas em to- 25 alunos que freqüentam o Ensino Superior em
○
○
das as decisões das diferentes atividades pro- faculdades particulares cuja qualidade é duvi-
○
gramadas. Foram habilitados, em outubro de dosa e que não estão preocupadas com o pro- 43
○
○
2000, 37 índios (32 Tupinikim e 5 Guarani), jeto político das comunidades indígenas.
○
○
ampliando-se significativamente os quadros
○
○
para atuar na educação escolar, que até aquele
O papel da Universidade
○
momento encontrava-se irremediavelmente
○
Federal do Espírito Santo
○
nas mãos de professores não-índios (do total
○
○
de 19 professores apenas 4 eram índios).
(Ufes)
○
○
Com a formação de professores índios a
○
partir de 2000, há uma inversão significativa Na década de 1990, a universidade não se
○
○
na proporção entre professores índios e pro- envolveu com a questão da Educação Escolar
○
são índios. Essa apropriação nas mãos da instituição, revela bem o seu descaso para com
○
○
educação escolar pelos índios foi marcada os povos indígenas do Espírito Santo:
○
○
mia salarial.
○
Educação. As escolas existentes (uma em cada Com efeito, nenhuma das iniciativas em
○
(187 crianças) e do 1º ciclo do Ensino Fundamen- genas do Espírito Santo contou com a partici-
○
○
tal (309 crianças). Os alunos que concluem o 1º pação de professores representando a Ufes. Os
○
○
ciclo do Ensino Fundamental e desejam dar con- únicos dois professores universitários que atu-
○
aldeias para a zona urbana, havendo, dessa for- nível médio deram a sua contribuição por ou-
○
○
incontestes quan- a a
Ensino Fundamental (1 a 4 série) 309 ca da necessidade de a universi-
○
○
processo de for-
○
Total 770
○
○
○
dependências da própria universidade conta- venham a ser criados até o final deste ano e
○
○
vam com participação pouco expressiva dos que possam ser iniciados em março de 2002.
○
○
quadros universitários.
○
Nesse contexto institucional, ocorreu, em
O formato das licenciaturas
○
○
outubro de 1999, a primeira formulação do pro-
○
em grandes linhas
○
jeto de formação universitária de educadores
○
índios Tupinikim e Guarani, em resposta a um
○
As licenciaturas que estamos tentando cri-
○
edital da Capes, que reivindicava projetos ino-
○
ar na Universidade Federal do Espírito Santo
○
vadores para a melhoria da graduação. Infeliz-
○
priorizam uma formação diferenciada que
○
mente, o projeto não seduziu a equipe que fez a atenda à especificidade da cultura Tupinikim
○
triagem das diferentes iniciativas apresentadas.
○
e da cultura Guarani, sem renegar o conheci-
○
Em 2000, novos esforços foram feitos para que
○
mento das ciências tal como se constituíram
○
esse documento fosse discutido e aprovado pe- em suas áreas especializadas. Nosso grande
○
○
las instâncias universitárias. Num primeiro mo- ○
às demais instâncias universitárias. Por pressão etc.), mas que considere a especialização a par-
○
○
das lideranças indígenas, no final de 2000 o Cen- tir de uma nova abordagem do saber funda-
○
A partir de março de 2001, na qualidade de contra, estão sendo pensadas as idéias que
○
apresentaremos a seguir.
○
proposta curricular das licenciaturas. Desses teressados pautando-se por dois critérios es-
○
co das aldeias.
○
de apresentar a proposta em construção à co- ra plena de Pedagogia; nos três últimos anos, eles
○
○
cas e atraísse novas parcerias e novos profes- ciatura Plena em Ciências Sociais).
○
selho de Ensino e Pesquisa, uma vez que o sor indígena exige características específi-
○
○
detalhamento do currículo ainda não foi con- cas para responder de maneira adequada
○
44
SIMPÓSIO 4
Experiência do Ensino Superior Indígena
○
○
ciada bilíngüe e intercultural. A abordagem culturais. Serão estudadas as diversas formas
○
○
deverá levar em conta essas características, de conceber o espaço e o tempo a partir de
○
aprofundando conhecimentos que permi- uma perspectiva crítica, tentando apreender
○
○
tam uma compreensão mais abrangente do as relações complexas entre a estrutura polí-
○
fenômeno educativo em geral e em espe-
○
tica, ideológica e econômica de povos diver-
○
cial dos povos indígenas. O objetivo essen- sos, assim como suas relações com o espaço
○
○
cial dessa área é desenvolver conhecimen- (ambiente natural) em que vivem. As Ciências 45
○
tos e capacidades para compreender e par- Sociais pretendem dar conhecimentos e ins-
○
○
ticipar de maneira qualitativa e crítica no trumentos para compreender o social como
○
○
processo de educação em geral e da Edu- um todo a partir de suas diversas dimensões
○
cação Indígena em particular. Os conteú- (história, geografia, etnologia, sociologia, po-
○
○
dos das diferentes disciplinas serão trata- lítica etc.). Uma ênfase essencial será compre-
○
dos confrontando-se o universal com o par-
○
ender e questionar a história dos povos indí-
○
ticular das culturas Tupinikim e Guarani. As genas em relação à história de outros povos.
○
○
disciplinas de Fundamentos que serão es- Serão analisadas as características dos tem-
○
tudadas deverão considerar a Filosofia (te-
○
pos históricos e de diferentes fontes históri-
○
orias do conhecimento), a Sociologia da cas (memória oral, história escrita, arqueolo-
○
○
tória da Educação.
○
estudo do Português como língua majoritá- Ciências Naturais. Essa área do conheci-
○
○
ria do país, o Tupi como língua dos ances- mento propõe uma abordagem sistêmica
○
vista a história do contato das línguas indí- tivos às Ciências Naturais. As problemáti-
○
Neste último caso, será de fundamental im- nidades indígenas serão agrupadas em
○
○
portância o estudo da influência das línguas grandes eixos temáticos, tais como, o ensi-
○
um saber sobre a língua portuguesa do Bra- Terra e Universo; Seres Vivos e Ambiente;
○
dos nesta área, englobando-se assim as dife- o curso devem incorporar os princípios te-
○
Ciências Sociais. Essa área terá como um dos cias Naturais e sua afinidade com a Educa-
○
○
○
terão como ponto de partida o contexto es- mental.
○
○
pacial, histórico e cultural das comunidades A área de Línguas e Linguagens habilitará o
○
indígenas. O ensino da Matemática visará ao
○
cursista ao trabalho com as línguas Tupi ou
○
desenvolvimento do pensamento numérico, Guarani, mas os cursistas terão uma formação
○
algébrico, geométrico; da competência mé-
○
complementar em língua espanhola (como lín-
○
trica; do raciocínio que envolva a proporcio-
○
gua estrangeira) e em diferentes linguagens (li-
○
nalidade; do raciocínio combinatório, esta-
terária, artística, imagética etc.).
○
tístico e probabilístico. Será garantido o aces-
○
A área de Matemática visa à formação de
○
so ao conhecimento matemático, igual àque-
○
professores de Matemática.
○
le fornecido às comunidades não-indígenas,
○
mas com uma abordagem centrada na A área de Ciências Naturais visa à habilita-
○
ção de professores de Ciências para o Ensino
○
Etnomatemática. A matematização dos pro-
○
blemas privilegiará as questões de moradia, Fundamental, e de Biologia para o Ensino Mé-
○
○
alimentação, saneamento, trabalho, saúde, dio; uma formação complementar será dada em
○
○
vestuário, comércio e espaço vivenciadas ○
Física e Química.
pelas comunidades, visando à elaboração de A área de Ciências Sociais terá como focos
○
○
proposta incluirá conteúdos de três grandes grafia e habilitará os cursistas para o trabalho
○
go de todo o curso.
○
lidades letivas:
○
○
3.210 horas, prevendo-se, no entanto, aprovei- ministradas nas aldeias, as quais ocorrerão
○
○
tamento de cerca de 1.260 horas da primeira li- ao longo do ano, prevendo-se uma carga-
○
Tabela 3
○
○
○
Carga
○
Ciências Ciências
○
total
○
○
Pedagogia
○
1 a a 4 a série
○
○
Habilitação
○
Habilitação
○
Línguas
○
○
Habilitação
1.400 300
○
3.210
Ciências Naturais
○
○
Habilitação
○
Ciências Sociais
○
○
46
SIMPÓSIO 4
Experiência do Ensino Superior Indígena
nas escolas com as atividades do curso de ses deverão passar por um processo de re-
○
○
formação (preparo de seminários, leituras, conhecimento e de avaliação na esfera do
○
○
pesquisas solicitadas etc.). MEC. Ora, pelo que se sabe até a presente
○
data, a Secretaria de Educação Superior
○
○
(Sesu) não dispõe de pessoal competente
○
Será prevista uma bolsa de estudos para os para lidar com a educação diferenciada. O
○
○
cursistas e uma bolsa de pesquisa para os pro- reconhecimento dos cursos levará em con-
○
fessores que atuarem no curso.
○
ta variáveis interculturais? Que parâmetros 47
○
serão considerados para avaliar os conteú-
○
○
dos mínimos de cada licenciatura? Somen-
Dificuldades e dilemas
○
○
te as diretrizes curriculares dos cursos con-
no processo de criação das
○
vencionais, tais como estão sendo definidas
○
○
atualmente? Os conteúdos mínimos defini-
licenciaturas
○
dos para o Exame Nacional dos Cursos? O
○
○
À guisa de conclusão, gostaríamos de levan- “Provão”, a que certamente os alunos da
○
○
tar algumas dificuldades e dilemas que deve- educação superior diferenciada serão sub-
○
metidos, será diferenciado? Pensamos que
○
riam ser superados para facilitar o processo de
○
formação dos educadores Tupinikim e Guarani. a Coordenação-Geral de Apoio às Escolas
○
○
Sem pretensão à universalização, pensamos que Indígenas deveria articular-se com a Sesu
○
to dos cursos.
○
cação. Até hoje, não tem havido nenhum pendentemente de ter tido uma formação
○
não têm sido formuladas leis e portarias que horária necessária para tratá-los convenien-
○
do, tal como prescreve a Constituição Fede- mente, os cursos de Letras, nas universida-
○
ral. Isso gera problemas de diferentes or- des brasileiras, habilitam para o ensino da
○
○
dens. Um dos mais sérios, que pode com- Literatura, de uma Língua Estrangeira e da
○
ção de cursos, é a alocação de recursos fi- curso aparece como prioridade a habilita-
○
○
nanceiros. Os recursos destinados à Educa- ção em Língua Indígena. Como então con-
○
cação não pagou cerca de R$ 16.509,00 aos étnica e cultural preconizado pela Constitui-
○
formadores que atuaram no curso de Ma- ção de 1988 trouxe à baila uma questão con-
○
○
gistério nos anos 1999 e 2000. Ora, isso com- trovertida: como deve ser o relacionamento
○
prio MEC. As universidades brasileiras têm vivência com os povos indígenas passou a ser
○
autonomia para criar novos cursos, mas es- da sociedade brasileira” (Silva, 1999: 12). Essa
○
○
posição nega, no entanto, o princípio da ção, estamos prevendo seminários de for-
○
○
interculturalidade e não contribui para a su- mação da equipe que vai atuar no projeto,
○
○
peração do etnocentrismo. O curso univer- nos quais tentaremos discutir a questão da
○
sitário será um palco extraordinário para ín- interculturalidade, do bilingüismo, da inter-
○
○
dios e não-índios operacionalizarem o con- disciplinaridade etc. Alguns desses seminá-
○
ceito de interculturalidade, que aparece nos rios serão realizados nas dependências da
○
○
documentos oficiais, mas que tem sido fon- Ufes e outros serão realizados nas próprias
○
○
te de confusão nos planos teórico e prático. aldeias indígenas, para facilitar a imersão
○
dos professores nas questões propriamente
○
Perspectiva bilíngüe versus currículo
○
intercultural. Um currículo verdadeiramen- culturais.
○
○
te intercultural implicaria a adoção de um A pesquisa norteando o processo ensino-
○
○
ensino bilíngüe, ou seja, a estruturação do aprendizagem. Em nosso projeto, a pesqui-
○
processo ensino-aprendizagem baseada na sa é considerada como uma modalidade
○
○
estratégia da alternância de línguas, o que privilegiada na formação dos professores e
○
○
não é possível nas condições concretas ○
dos alunos índios. Ela visa uma melhor
atuais. A língua de ensino de todos os con- compreensão das comunidades e dos pro-
○
○
gua indígena terá a função de disciplina ticos e ambientais que as circundam. Os re-
○
status particular, na medida em que o Tupi importante a ser utilizado por todos os ato-
○
○
constitui para eles um objeto de conheci- res implicados na proposta. Resta, no en-
○
○
aprender o Tupi como uma língua estran- estarão dispostos a re-aprender seus obje-
○
○
Bibliografia
○
relativas ao ensino ou não valorizam o en- COTA, M.-G. Educação escolar indígena: a construção de
○
sino formal de conteúdos da cultura ociden- uma educação diferenciada e específica, intercultural e
○
○
tal para os índios. No caso concreto dos pro- bilíngüe entre os Tupinikim do Espírito Santo. Vitória,
○
fessores da Ufes, eles não têm a prática do 2000. Dissertação (Mestrado). Universidade Federal do
○
○
isso, à primeira vista, aparece como um de- nas no Brasil e a questão educativa. Caxambu: Anped,
○
1999.
○
48
SIMPÓSIO 4
Experiência do Ensino Superior Indígena
○
○
○
cursos de licenciatura
○
○
○
específicos para a formação
○
○
○
de professores indígenas*
○
○
○
49
○
Elias Renato da Silva Januário**
○
○
○
○
○
○
Preliminares 1988 abre um novo contexto na educação es-
○
○
colar voltada para os povos indígenas, fazen-
○
○
O processo de educação escolar entre os do surgir propostas que passaram a conside-
○
ameríndios do Brasil, iniciado com a chegada
○
rar a diversidade étnica e cultural dos índios
○
dos colonizadores portugueses, estabeleceu brasileiros, respeitando a cultura, a língua, as
○
○
uma ação educacional fundamentada nos va- tradições e os processos próprios de aprendi-
○
○
tendo os missionários jesuítas como os respon- Essa mudança de paradigma na relação en-
○
○
sáveis pela implementação da prática educaci- tre o Estado brasileiro e as sociedades indígenas
○
○
onal por meio da catequese. Essa ação educa- teve amplos reflexos no contexto da educação
○
○
cional tinha, entre outros propósitos, a submis- escolar, abrindo novas possibilidades de se pen-
○
são dos povos indígenas, revelando claramente sar uma nova escola indígena, longe das doutri-
○
○
ao republicano, contando também com a atu- onal disposta na Constituição Federal, acen-
○
cunho positivista em seus ideais educacionais. demais escolas do sistema de ensino brasilei-
○
○
Em outras palavras, a ação educacional volta- ro, incentivando uma educação bilíngüe,
○
○
a diversidade étnica e cultural existente no ter- Mato Grosso tem apresentado conquistas
○
○
ritório brasileiro, em favor de uma política significativas no que diz respeito à Educação
○
Somente a partir da segunda metade do sé- 1995, teve início a implementação de um am-
○
○
pensar a Educação Escolar Indígena distante dígenas, por meio do Projeto Tucum e do Pro-
○
viam embasado a prática educacional até en- qualificar uma considerável parcela dos índi-
○
○
tão. A promulgação da Constituição Federal de os de Mato Grosso que atuam nas aldeias, mi-
○
○
○
○
○
○
* Texto-síntese do Projeto de Cursos de Licenciatura Específicos para a Formação de Professores Indígenas, Governo do Estado de Mato
○
○
○
dígenas. dos das escolas das aldeias ou de outras, lo-
○
○
Não é tarefa fácil implementar um progra- calizadas em vilas e cidades circunvizinhas.
○
○
ma de Educação Escolar Indígena específico e A oferta de cursos superiores específicos
○
diferenciado, pautado pelos princípios da plu- para professores indígenas representa a possi-
○
○
ralidade cultural. Requer ousadia e determina- bilidade de atendimento adequado a essa cli-
○
○
ção por parte dos dirigentes do poder público entela, como também a continuidade do pro-
○
para que se consolide uma educação inter- cesso de formação dos atuais e dos novos pro-
○
○
cultural, bilíngüe e de qualidade, fundamen- fessores que comporão o corpo docente indí-
○
○
tada na percepção de outras lógicas, numa prá- gena em Mato Grosso.
○
○
tica pedagógica de valorização de calendários Apesar de tratar-se de uma antiga reivin-
○
e conteúdos curriculares de caráter indígena, dicação de povos indígenas, o acesso a uma
○
○
afastando-se, assim, da ação civilizatória e escola diferenciada e de qualidade foi abor-
○
○
integracionista presentes durante todos esses dado por políticos e educadores como uma
○
○
anos na prática da educação escolar brasileira ○
demanda de caráter individual, localizado e
voltada aos povos indígenas. transitório.
○
○
Apesar de tantas evidências quanto à ne- Com o advento da oferta de Ensino Médio
○
○
desenvolvidas no Brasil encontram-se ainda tos específicos (nos moldes do Tucum), a de-
○
em fase embrionária, quando não, trata-se de manda pelo Ensino Superior deixa de ser ex-
○
○
“cursos” desconexos e descontínuos. Urge, pectativa de alguns poucos, para tornar-se uma
○
○
a todas as sociedades indígenas que contem- tes, professores, agentes de saúde etc.
○
○
dos aos seus interesses. O Programa de For- um marco estratégico para que, a médio pra-
○
Grosso foi concebido e está sendo implemen- ensino e pesquisa voltado para os interesses e
○
○
tado a partir desse entendimento. Busca aten- necessidades das comunidades indígenas, a
○
○
der a todas as demandas educacionais, por exemplo de outras instituições de Ensino Su-
○
O perfil do professor
○
a ser formado
○
des docentes nas escolas das aldeias e os con- deve apresentar o seguinte perfil tipológico:
○
teúdos curriculares dos cursos são organizados ser um profissional competente, comprome-
○
○
de forma que acompanhem o progressivo de- tido, com postura ética, com reconhecimento
○
○
mação, impõe-se agora a organização de cur- professor a ser formado nos cursos de Licen-
○
○
em diversas escolas indígenas. Tal demanda mações sistematizadas em sua área de forma-
○
○
mente duzentos novos professores indígenas didáticos específicos para uso nas suas esco-
○
50
SIMPÓSIO 4
Experiência do Ensino Superior Indígena
○
○
postas curriculares adequadas aos níveis de da Funai de Cuiabá no ano de 1999, constatou
○
○
ensino e aos interesses das suas comunidades a existência de 53 estudantes indígenas cur-
○
○
(Grupioni, 1999). sando diferentes séries do Ensino Fundamen-
○
tal e Médio apenas na cidade de Cuiabá e
○
○
adjacências. Se considerados os que estudam
○
Justificativa do projeto
○
em outras cidades mato-grossenses (além de
○
Goiânia e Brasília), esse número chega a cen- 51
○
e dos cursos
○
tenas de alunos.
○
○
O Programa de Formação de Professores Portanto, o modelo de atendimento indi-
○
○
Indígenas de Mato Grosso está calcado numa vidualizado utilizado até aqui para acomodar
○
práxis pedagógica que respeita as formas tra- a demanda de Educação Escolar Indígena
○
○
dicionais de organização social e cosmológica deve ser imediatamente substituído por no-
○
○
dos povos ameríndios e os modos próprios vas estratégias que assegurem a oferta de en-
○
com que produzem e transmitem seus conhe-
○
sino regular nas próprias aldeias e garanta às
○
cimentos. Portanto, fundamenta-se na inter- sociedades indígenas o direito a uma educa-
○
○
culturalidade, trilha pelos caminhos da inter- ção específica, diferenciada e em todos os ní-
○
○
das expectativas dos povos indígenas, têm De forma sintética, podemos caracterizar
○
○
como ponto de partida e de chegada o que o perfil do professor indígena egresso dos cur-
○
○
pensam e o que esperam tais povos da edu- sos de Licenciatura como um educador capa-
○
○
cação escolar, e proporcionam o diálogo en- citado técnica, científica, étnica e culturalmen-
○
de em geral.
○
cessos históricos e atuais dos contatos inter- Portanto, os cursos de formação deverão
○
○
culturais e fortalecer a consciência de índios- expressar esse perfil e garantir uma práxis fun-
○
○
cidadãos que mantêm as suas culturas, lín- dada nos seguintes pressupostos:
○
nidades indígenas;
○
uma crescente demanda hoje atendida em es- • busca de respostas para os problemas e ex-
○
colas regulares nas cidades. Nos últimos anos, pectativas das comunidades;
○
○
tal fluxo tem assumido dimensões alarmantes, • compreensão do processo histórico de-
○
○
quer pela restrição da oferta de educação es- senvolvido pelas comunidades indígenas
○
reflexão mais apurada sobre o papel da educa- bem como do processo de incorporação
○
○
○
○
no trabalho docente nas escolas das al-
○
Os cursos de Licenciatura têm por objetivo
○
deias;
○
geral a formação e a habilitação de professo-
○
• debate acerca dos projetos de vida e de fu-
○
res indígenas para o exercício docente no En-
turo de cada povo.
○
sino Fundamental e em disciplinas específicas
○
○
do Ensino Médio, conforme a área de termina-
○
Do ponto de vista organizacional, os cursos
○
lidade em que fizeram opção.
○
terão a seguinte configuração:
○
Os objetivos específicos dos cursos expres-
○
• são concebidos como mais uma etapa do
sam uma dinâmica de formação de qualidade
○
Programa de Formação de Professores In-
○
crescente, ancorada na permanente relação te-
○
dígenas que se desenvolve em Mato Grosso
○
oria-prática, manifesta em três níveis de com-
○
e serão implementados com a participação
petência:
○
das universidades públicas, do poder públi-
○
• compreensão do processo de educação es-
○
co estadual e federal, de organizações não-
○
colar, dos seus limites e possibilidades,
governamentais e de representantes indíge- ○
nas;
○
terminalidade específica. O ciclo básico terá cífica em que atua como professor;
○
terminada comunidade.
○
• estudos presenciais (10 etapas intensivas): cenciando indígena articule a formação teóri-
○
1.900 horas;
○
1.250 horas;
○
○
Princípios curriculares
○
○
cas e da Natureza;
○
• Licenciatura Plena em Línguas, Artes e Li- mentos, habilidades, atitudes e valores que se-
○
○
52
SIMPÓSIO 4
Experiência do Ensino Superior Indígena
apreendidos pelos participantes dessa comuni- Assim concebidos, os cursos serão estrutu-
○
○
dade educativa especial (cursistas licenciandos, rados em duas etapas: uma de formação geral,
○
○
docentes, assessores, coordenadores). com duração de quatro anos, e uma de forma-
○
○
Por tratar-se de uma construção social e ção específica, com duração de um ano.
○
culturalmente situada, e por envolver sujeitos A etapa de formação geral compõe-se de
○
○
históricos com diferentes pedagogias e formas dois núcleos curriculares que se articulam com
○
○
de organização, a práxis curricular deverá reve- o objetivo de proporcionar aos cursistas a com-
○
lar o seu compromisso com esses sujeitos e com preensão dos elementos construtivos da Edu- 53
○
○
as suas histórias, sociedades e culturas (SMED, cação Escolar Indígena e os conhecimentos ne-
○
○
1996). Portanto, os cursos de Licenciatura, cessários para a prática docente no Ensino Fun-
○
○
como ademais todo o processo educacional es- damental.
○
colar, não são entendidos como um espaço ho- • O primeiro terá como objeto a reflexão acer-
○
○
mogêneo de mera reprodução ou de plena li- ca dos processos pedagógicos que com-
○
○
berdade e criação humana. Como parte de um põem a práxis escolar e os projetos socie-
○
tários que a orientam.
○
processo aberto e flexível, traz em seu interior
○
tensões e conflitos de ordem étnica, política, • O segundo enfocará o tratamento dos con-
○
○
lingüística, entre outras, que expressam a dinâ- teúdos das diversas áreas do conhecimento
○
○
do Ensino Fundamental.
○
○
Estruturas curriculares
○
dos cursos
○
das escolas indígenas. Deve ser estabelecida a volvida no último ano do curso e terá como
○
○
1997) e dos “processos pedagógicos próprios” pesquisa teórica e/ou de campo numa das
○
○
(Diretrizes/MEC, 1993) dos cursistas e das suas áreas das ciências que compõem o currículo
○
○
sivamente para o aprofundamento de outros sistas farão a opção por uma das três termi-
○
pecífico, assim como de habilidades e atitudes reza; Ciências Sociais; ou Línguas, Artes e Li-
○
○
A incorporação nos cursos dos “conheci- monográfico que será apresentado como tra-
○
luz do contexto em que este se situa (RCNEI/ lendário específico, composto por duas moda-
○
○
pressar um “acordo intercultural” que define quais coincidindo com o período de férias e recessos
○
serão os conhecimentos de caráter geral e espe- escolares dos cursistas. A segunda, de ativida-
○
○
cífico de cada núcleo de estudo e as estratégias des cooperadas, nos períodos intermediários
○
○
mais adequadas para obter os melhores resulta- entre uma etapa intensiva e outra, possibilitan-
○
○
dos na aprendizagem. Tal acordo será construído do aos cursistas conciliar suas atividades docen-
○
e reconstruído em cada uma das etapas de pla- tes nas escolas com as atividades do curso de
○
○
○
○
docente e o processo de formação ocorrerão si- oritariamente à redação final da monografia, à
○
○
multaneamente, num contínuo exercício de sua apresentação e apreciação e à avaliação fi-
○
○
comunicação dialógica. nal do programa, dos cursos e dos cursistas.
○
○
Os estágios
○
Temáticas centrais
○
○
do primeiro ciclo supervisionados
○
○
○
O primeiro ciclo de estudos constará de oito Os estágios supervisionados compõem o
○
○
etapas letivas de caráter intensivo e de oito eta- currículo dos cursos e serão desenvolvidos
○
pas de estudos cooperados, pesquisa e ativida-
○
nas unidades escolares em que os cursistas
○
des docentes dos cursistas, desenvolvidas en- atuam como professores. Integram as ativida-
○
○
tre uma etapa intensiva e outra. des das etapas de estudos cooperados e con-
○
○
Cada semestre letivo é composto por uma tam com o acompanhamento regular das
○
das etapas letivas intensivas e uma de estudos ○
○
equipes de supervisão dos cursos. Tais equi-
cooperados, e terá uma temática central sobre pes atuarão regionalmente, conferindo unida-
○
○
riculares das três áreas de estudo. ticos desenvolvidos nas escolas, de tal forma
○
práxis pedagógica.
do segundo ciclo
○
○
O currículo do segundo ciclo de estudos es- dades vinculadas aos cursos de Licenciatura e
○
○
final de curso.
○
Para tanto, no final da oitava etapa letiva centes e pesquisadores que, em seus proces-
○
○
docentes daquela etapa, definirão a área de estudos relacionados com a temática indíge-
○
nas.
○
tureza; Ciências Sociais; ou Línguas, Artes e Li- Nessa perspectiva, beneficiam-se os profes-
○
○
teraturas) a partir da qual cada um desenvolve- sores indígenas e as suas comunidades, uma vez
○
○
rá a sua pesquisa e o seu trabalho final. No iní- que em seus estágios supervisionados poderão
○
Cada uma das áreas de terminalidade deci- pos de pesquisa e extensão universitária, asso-
○
○
dirá sobre a sua estratégia de trabalho, definirá ciando as suas atividades de campo com um
○
○
seus temas e problemas de estudo, os objetivos amplo e inédito programa de formação de pro-
○
e todos os demais itens que compõem a produ- Para efeitos da integralização dos cursos, o
○
○
Ao término da nona etapa letiva intensiva, gidos ao final do estágio supervisionado serão
○
o cursista deverá estar em condições de retornar avaliados com base no processo adiante descri-
○
○
programadas, incluídas, aí, uma versão prelimi- programa curricular dos cursos conforme qua-
○
○
54
SIMPÓSIO 4
Experiência do Ensino Superior Indígena
Tabela 4
○
○
○
○
Quadro-síntese do programa curricular e respectivas cargas horárias
○
○
○
Estudos Estudos Estágio
○
presenciais cooperados supervisionado Total (horas)
○
Semestre Temática
○
(horas) (horas) (horas)
○
○
1o Gênese 190 125 – 315 55
○
○
o
2 Tempo 190 125 60 375
○
○
o
3 Espaço 190 125 60 375
○
○
o
4 Cotidiano 190 125 60 375
○
○
o
5 Sociedade 190 125 60 375
○
○
o
6 Água 190 125 60 375
○
○
7o Território 190 125 60 375
○
○
o
8 Autonomia 190 125 60 375
○
o
9
○
Monografia 190 125 – 315
○
o
10 Monografia 190 315
○
125 –
○
1.250 420
○
○
○
○
○
ação fundamental da atual política de educação rísticas aqui apresentadas, além de recursos fi-
○
○
escolar. Trata-se da oportunidade de tomar de- nanceiros e esforços coletivos para a sua for-
○
○
cisões sobre o encaminhamento dos trabalhos, mulação, demanda uma ampla rede de profis-
○
No que diz respeito aos cursos de Licencia- preciso também que esses profissionais este-
○
○
tura, tal estratégia não é diferente. A avaliação jam dispostos a compartilhar suas experiênci-
○
mental para a tomada de decisões ao longo do seu fazer pedagógico para atender a uma “cli-
○
○
processo de desenvolvimento curricular e cons- entela” especial, qual seja, 200 professores in-
○
como um processo contínuo, em que todos os ocorre sempre antes do início de cada período
○
seus trabalhos, mas também os docentes dos to”. Dela participam, além da equipe coorde-
○
○
cursos, as etapas dos cursos, o projeto de for- nadora dos cursos, todos os docentes e asses-
○
tunidade de observar e avaliar os avanços e os duração média de uma semana (40 horas) e vi-
○
○
do, assim, definir as ações mais adequadas para viamente definidos) e as estratégias a serem
○
○
○
permanentemente as atividades programadas ções sociais de poder existentes, que estarão
○
○
para as etapas intensivas, os estágios supervi- tornando a universidade indígena uma realida-
○
○
sionados e os estudos cooperados, garantindo, de. O que se está garantindo hoje é a base para
○
assim, o cumprimento das diretrizes gerais do esse percurso, ao se criarem os instrumentos
○
○
projeto. Portanto, a etapa de formação e plane- teóricos e analíticos que permitam a compre-
○
○
jamento é parte fundamental do projeto de for- ensão dos conhecimentos do mundo ocidental,
○
mação, quer por responder às demandas ine- sem violentar a cosmovisão e os valores
○
○
rentes a cada período letivo, quer por formar e etnoculturais das diferentes etnias.
○
○
disponibilizar em nossas instituições um qua- A criação, num futuro próximo, de um cen-
○
○
dro de docentes e assessores especializados em tro de excelência indígena é fundamental, na
○
Educação Escolar Indígena. medida em que será um espaço de luta e de es-
○
○
tabelecimento de relações recíprocas de valo-
○
○
res, onde as culturas estarão se fortalecendo
Considerações finais ○
○
○
mutuamente e, principalmente, os povos indí-
A criação de cursos superiores específicos e genas estarão traçando, eles próprios, os seus
○
○
mento público da existência de outras identida- Cursos de Licenciatura Específicos para a Formação
○
inteligibilidade dos professores índios, que es- Professores Indígenas. Cuiabá, 1995.
○
56
SIMPÓSIO 4
Experiência do Ensino Superior Indígena
A formação universitária
○
○
○
para os povos indígenas na UFMG
○
○
○
○
○
Maria Inês de Almeida*
○
○
○
○
57
○
○
A partir da necessidade de uma formação tos Língua Indígena e Terra, as diferentes formas
○
○
universitária, explicitada pelos professores indí- de organização escolar (em que tempos e espa-
○
○
genas formados em Magistério pelo Programa de ços correspondem à lógica da aldeia e não à da
○
Implantação de Escolas Indígenas de Minas Ge- cidade), o material didático (livros, cartilhas, jo-
○
○
rais, propomos à Universidade Federal de Minas gos, vídeos, discos, CD-ROMs, feitos pelos pró-
○
○
Gerais (UFMG) a elaboração conjunta de um prios professores) e outros instrumentos peda-
○
projeto para criação de um curso experimental,
○
gógicos (constantes reuniões com as respectivas
○
específico e diferenciado, cujo eixo temático será comunidades, professores de língua e cultura
○
○
a Educação Intercultural e Bilíngüe. indígenas contratados para atuar na escola, de-
○
○
elaboração de um projeto de criação de um cur- exemplifica uma prática que, na realidade, apon-
○
○
so de graduação específico e diferenciado, com ta um caminho para uma forma mais eficiente
○
○
ensino presencial e a distância, para habilitação de conjugar tradições até agora conflitantes no
○
do da Educação de Minas Gerais concedeu o di- aram na chamada civilização ocidental por meio
○
○
ploma de Magistério (considerado Nível Médio da escrita alfabética, e os saberes que, no seio
○
Pataxó e Krenak, que, desde 1997, nas suas al- volver e a se transmitir oralmente, podem se co-
○
○
deias, já atuam em classes de 1ª a 4ª séries do locar em diálogo, desde que se criem instâncias
○
○
Esses professores foram formados por um Ao longo dos cinco anos de duração do cur-
○
○
nio com a UFMG, o IEF, a Funai, e com o apoio do dicalmente baseada na pesquisa e na experiên-
○
○
MEC, que teve por princípio básico a construção cia, a cada momento era repensada e reestru-
○
teórica e conceitual conjunta entre formadores, turada a partir de informações da prática auto-
○
○
formandos e respectivas comunidades, a partir da ral dos professores. Suas técnicas de ensino, suas
○
○
sentido de processo em direção à criação coleti- aldeia, suas práticas escriturais, seus contatos
○
Um dos aspectos mais significativos dessa docentes da UFMG; com técnicos de órgãos pú-
○
○
construção simbólica coletiva tem sido a auto- blicos; com os colegas de outras etnias; com edi-
○
marcas das diferentes tradições étnicas nos pro- novas que a criação da escola indígena transfor-
○
○
* Professora de Literatura Brasileira na UFMG. Coordenadora de formação dos professores Krenak e da área de Múltiplas Linguagens no
○
○
○
que reivindicam agora o direito de continuar essa estadual e federal.
○
○
experiência em direção à criação de um novo Em março de 2001, houve um encontro de
○
○
campo de estudos, qual seja a educação representantes dos professores indígenas com
○
intercultural bilíngüe, tão necessário, na nossa representantes da Secretaria de Educação e da
○
○
opinião, para a consolidação de um paradigma UFMG, e, por um dia inteiro, pensamos juntos
○
○
mais inclusivo para o desenvolvimento de uma sobre como iniciar o debate em torno desse pro-
○
forma brasileira de produzir pensamentos váli- jeto. Consideramos de fundamental importân-
○
○
dos, diante, por exemplo, da comunidade cien- cia a construção processual dessa proposta, para
○
○
tífica internacional. É um sonho que, para ser não corrermos o risco de perder a oportunidade
○
○
realizado, necessariamente, deverá ser incorpo- de criar algo novo: uma educação que seja fruto
○
rado pela universidade. Isso explica o enorme das parcerias estabelecidas com os sujeitos in-
○
○
interesse dos índios em se introduzirem nesse teressados e os professores da UFMG. Devemos
○
○
espaço privilegiado da pesquisa científica. considerar a enorme dívida social que o Estado
○
○
Pretendemos que essa elaboração se dê como ○
brasileiro tem com essas populações e a deman-
um processo que, ao mesmo tempo, defina o for- da e busca de uma saída com verdadeira auto-
○
○
mato do curso, atividades, cronogramas e parce- nomia por parte das nações indígenas, como
○
○
rias e seja em si mesmo parte da formação dos bem expressam as palavras de Marcos Krenak:
○
○
e os índios são os professores das escolas, por- um outro. Mas é preciso ter algum curso superior.
○
do projeto, em que os índios serão seus princi- vai ser mesmo um advogado e defender os direi-
○
○
pais agentes. Prioritariamente, será necessária a tos nossos? Existem outras pessoas com diferen-
○
aquisição de equipamentos de gravação de vídeo tes vontades também. Quantas vezes eu já che-
○
○
e áudio para que eles procedam ao diagnóstico guei perto de um parente lá e fiquei ouvindo ele
○
○
em cada uma das aldeias, visando a definir os falar: nós precisamos de um que lute por nós, que
○
universitária. O diagnóstico será uma atividade cisa do branco também, mas tem que ter alguém
○
○
se, na produção coletiva e original de material uns tratores que, quando quebra uma peça, tem
○
○
didático para as escolas indígenas, o que justifi- que buscar a tal peça lá num sei onde. Isso é por-
○
lação de telefones em todas as áreas, já que esse O branco chega lá e diz, vocês têm aqui um
○
○
será o instrumento principal dos módulos de projeto de tantos mil reais, o que vocês vão fazer
○
ensino a distância, viabilizando o contato dos com o projeto? Nós vamos fazer plantio, eles vão
○
○
professores com a equipe da UFMG, no mínimo lá para comprar adubo, não sei mais o quê, coisa
○
○
semanalmente. Essa articulação deverá se dar que nem sequer precisa. Nós mesmos temos de
○
58
SIMPÓSIO 4
Experiência do Ensino Superior Indígena
○
conhecer, de tomar conta, de fazer da nossa ma-
○
neira. Um técnico agrícola, um índio mesmo, pode tas de vanguarda é precisamente a tecnologia.
○
○
ser um agrônomo, isto é que é importante para nós. [...] O que ocorre é a viabilização, num grau sem
○
precedentes, das linguagens e procedimentos da
○
○
modernidade – a montagem, a colagem, a
Ensino bilíngüe
○
○
interpenetração do verbal e do não-verbal, a
○
A língua apresenta a oportunidade de um jogo sonorização de textos e imagens – em suma, a
○
○
na vida social. Sua representação, como mais um multiplicação do processo artístico. [...] Outro 59
○
fator relevante é a maior autonomia que a
○
bem simbólico, entre outros possíveis, não quer
○
exatamente comunicar. Serviria antes para acres- informatização pode proporcionar aos artistas.
○
○
À medida que estes possam ter a sua própria
centar mais uma regra no jogo da comunicação.
○
miniestação computadorizada, ou em que se as-
○
Mesmo a ressonância de um dado, uma cifra,
○
sociem a ilhas de produção e edição de outros
○
como “180 línguas faladas, no Brasil, além do Por-
○
artistas independentes para a realização de suas
tuguês”, veiculada pela mídia, modifica o contex-
○
experiências, terão muito melhores condições
○
to literário e cultural do país. Cria no leitor da in-
○
para resistir à convencionalização dos meios de
○
formação a expectativa de que novas formas apa- informação, cujos implementos técnicos até
○
○
recerão. Daí a possibilidade da presença de ou- aqui lhes foram negados. E para insistir na des-
○
tras vozes, outros corpos, outros textos. Esse foi ○
○
plantação das Escolas Indígenas de Minas Gerais, tos da linguagem convencional quer das máqui-
○
ao público brasileiro. Esses textos, ícones, prefi- Segundo esse autor, os textos produzidos a
○
guram a presença corporal de um novo inter- partir das novas formas escriturais escapam ou
○
○
locutor, que, no entanto, sempre esteve ali. Uma destoam de uma tradição milenar, do desenho
○
○
nova reaproximação é tentada. E somente o de- histórico que vem dos embriões mesopo-
○
○
senvolvimento dos diferentes estilos garantiria a tâmicos da escrita ou dos primeiros alfabetos
○
da sobreposição de uma forma por outra. Uma outra tradição, além da escrita alfabética,
○
○
O que, para nós, garante a relação intercultural, se coloca no espaço não-linear das novas
○
○
porque se encontra na sua base, é o diálogo entre mídias, estimulando o espírito em outras dire-
○
as diferentes vozes. Um projeto de curso cuja ções, rumo ao espaço aberto de uma outra ló-
○
○
tual e audiovisual, na autoria coletiva, no domínio Por que essa discussão nos interessa, quan-
○
○
das técnicas escriturais, eletrônicas e digitais nas do trabalhamos com a formação dos professo-
○
ca apenas pela necessidade de se viabilizar o aces- O que estamos propondo, de certa maneira,
○
○
so dos povos indígenas à universidade, mas, an- se integra a um esforço das próprias vanguardas
○
○
mente, novos conhecimentos e metodologias. tas limitações de uma cultura que só tardiamente
○
○
ajuda a fundamentar o ponto de vista de nossa são impostas por todas as instituições que as
○
○
que, emergindo mais claramente na década de (míticas, artísticas), linguagens, princípios mo-
○
○
rais e religiosos – possuem hoje um enorme ar-
○
Nem ciência, nem arte, talvez uma rede de
○
senal de conhecimentos tradicionais pratica-
○
trocas simbólicas, em que, de posse dos meios
○
mente intocados pelas relações interculturais, de comunicação, os diferentes povos, com suas
○
○
ainda que façam parte do enorme caldeirão em diferentes linguagens, poderão expressar seus
○
que se faz a mestiçagem no Brasil.
○
desejos.
○
○
○
○
○
○
A pesquisa na formação do professor
○
○
○
como parte da educação continuada
○
○
○
preparatória para o curso superior
○
○
○
○
○
Marilda C. Cavalcanti ○
○
Unicamp/SP
○
○
○
○
Resumo
○
○
○
○
tério indígena, no contexto acreano, em curso desen- gências entre as etnias focalizadas.
○
○
Acre, este trabalho objetiva uma reflexão sobre a par- pesquisa etnográfica em desenvolvimento pelos
○
○
(Asheninka, Katukina, Kaxinawá, Manchineri, pesquisa do professor em sua formação, que, ge-
○
projeto coletivo de pesquisa sobre a sala de aula e Magistério. Se há aí um início de trabalho, relevan-
○
suas extensões. Esse projeto é parte da disciplina de te seria haver uma continuação no curso superior
○
○
Iniciação à Pesquisa. Neste trabalho, examina-se o indígena. Em resumo, propõe-se que a educação
○
○
projeto coletivo por meio de uma metapesquisa, vi- do professor indígena vá além da educação do pro-
○
sando à derivação de implicações para o Ensino Su- fessor não-índio (que, geralmente, não contempla
○
○
perior indígena no cenário brasileiro. espaço para pesquisa). Por outro lado, há pelo me-
○
○
A pesquisa, foco da metapesquisa, é uma nos duas questões para discussão: a) o perigo de se
○
etnografia escolar nas comunidades das diferen- “naturalizar” o fazer pesquisa pelo professor indí-
○
○
tes etnias envolvidas e será examinada a partir dos gena e a conseqüente obrigatoriedade da pesquisa
○
○
parte do desenho da pesquisa os olhares das co- Ensino Superior e o conseqüente peso colocado no
○
○
munidades, dos alunos de escolas indígenas, de professor indígena para que faça um curso de gra-
○
○
assessores não-índios em visita às aldeias e de téc- duação Em outras palavras, o que é importante, do
○
nicos da Secretaria da Educação. Como a pesquisa ponto de vista da sociedade dominante, pode não
○
○
ainda está em andamento, não será possível foca- o ser, do ponto de vista dos professores indígenas.
○
É importante apontar que os comentários que ção de se fazer um curso superior, surgem duas per-
○
○
faço são relativos somente ao contexto de pesqui- guntas: 1) Essa “obrigatoriedade” não corre o risco
○
sa focalizado, preparatório para o Ensino Superi- de apagar o pressuposto de que os professores in-
○
○
or. A situação pode ser muito diferente com ou- dígenas passaram pela Educação Indígena, educa-
○
○
tros povos indígenas em outros lugares do país. ção essa que prescinde da escola? 2) Qual é a rela-
○
Como acontece em trabalhos etnográficos, não se ção dessa “obrigatoriedade” com o mito do
○
○
AS ORGANIZAÇÕES
DE PROFESSORES NO BRASIL:
RELAÇÕES COM AS POLÍTICAS
PÚBLICAS E AS ESCOLAS INDÍGENAS
Jaime Costódio Manoel
61
A luta dos professores Ticuna
○
○
○
○
○
Jaime Costódio Manoel*
○
○
○
○
○
Resumo
○
região onde se concentra a maior parte da po-
○
pulação Ticuna que vive em território brasileiro.
○
○
A Organização Geral dos Professores Ticuna Bi- A OGPTB tem por objetivos principais de-
○
○
língües (OGPTB) foi criada em 1986, com o objetivo senvolver projetos e programas destinados à
○
de congregar os professores ticunas, lutar pela implan-
○
formação dos professores Ticuna, à preparação
○
tação de uma educação diferenciada nas escolas e pro- de materiais didáticos específicos, organizar
○
○
mover ações que garantam o cumprimento dos direi- propostas curriculares, além de outras ações
○
tos constitucionais assegurados aos povos indígenas.
○
que possibilitem maior autonomia pedagógica
○
Por meio dos cursos promovidos pela OGPTB, 225 pro- ○
○
e administrativa das escolas. A OGPTB vem lu-
fessores concluíram o Ensino Fundamental, dos quais
tando pela valorização da língua materna, da
○
cação diferenciada ainda não fazem parte das polí- segurados aos povos indígenas.
○
○
ticas públicas locais. Com isso, os professores ticunas Por meio dos cursos promovidos pela
○
duzir suas escolas com maior autonomia pedagógi- no Fundamental, dos quais 170 concluíram o
○
○
ca e administrativa, mesmo que a OGPTB tenha to- Ensino Médio (2º Grau – Magistério) em julho
○
○
mado várias providências no sentido de buscar mai- de 2001. Em julho de 2002, mais 35 professores
○
reúne-se na aldeia de Santa Inês para discutir gião, de cursos que oferecessem uma formação
○
○
ção. Mais adiante, em 1986, um grupo maior de Forçados pelo descaso e pelo abandono dos
○
○
professores reúne-se novamente, dessa vez para órgãos governamentais, que atuam direta ou indi-
○
Ticuna Bilíngües (OGPTB). Em 1993, a OGPTB de de aperfeiçoar seus conhecimentos e sua práti-
○
○
de Benjamin Constant, o Centro de Formação para iniciar um projeto específico que os levasse à
○
1994, cria seu próprio estatuto. o exercício do Magistério. Nesse tempo, 97% dos
○
○
Hoje em dia, a OGPTB congrega cerca de 260 professores não possuíam o 1º Grau completo, sen-
○
○
professores ticunas, que trabalham com 7.997 do que 30% do total exercia o Magistério há mais
○
alunos de 1ª a 4ª séries, em 103 escolas distribu- de dez anos e 32% encontrava-se na faixa de cinco
○
○
ídas nos municípios de Benjamin Constant, a nove anos de serviço. Os professores estavam
○
○
Tabatinga, São Paulo de Olivença, Amaturá e convencidos de que, para transformar a escola
○
* Representante da OGPTB na Secretaria de Educação do Município de São Paulo de Olivença/AM; membro da equipe de supervisão escolar.
○
62
SIMPÓSIO 5
As organizações de professores no Brasil: relações com as políticas públicas e as escolas indígenas
modo que eles próprios fossem os principais agen- na. Seus esforços se deram também no sentido
○
○
tes dessa mudança. de buscar sempre uma articulação com as pre-
○
○
Mas para levar adiante esse projeto, os feituras e suas Secretarias de Educação, assim
○
○
professores enfrentaram uma série de dificul- como com a Secretaria Estadual de Educação,
○
dades. A proposta do curso sofreu diversas promovendo reuniões, encontros regionais e
○
○
modificações para se adequar ao modelo tra- outras ações.
○
○
dicional exigido pelo Conselho Estadual de Fica evidente, portanto, que a transforma-
○
Educação. O curso teve de ser dividido em ção dessa escola e a autonomia dos professores 63
○
○
dois níveis e, para cumprir a carga horária não correspondem aos interesses políticos lo-
○
○
exigida, foram necessárias 15 etapas, realiza- cais; na maior parte dos casos, os princípios da
○
○
das no período das férias, ou seja, quase oito Educação Indígena não foram incorporados às
○
anos de curso. Enquanto a formação dos pro- políticas públicas locais. Assim, a implantação
○
○
fessores prosseguia, pois se tratava de uma de uma escola diferenciada, de qualidade, es-
○
○
situação emergencial, a OGPTB esperava a pecífica e pluricultural, como consta dos tan-
○
○
autorização do Conselho. O curso em nível de tos documentos oficiais, dependerá não somen-
○
1º Grau obteve essa autorização em 1996, e a te do esforço e da luta dos professores índios
○
○
do 2º Grau saiu somente no ano 2000. Foram no sentido de melhorar sua formação, desen-
○
○
anos de espera. Se de um lado havia um am- volver métodos e conteúdos específicos ou pro-
○
○
para estabelecer uma nova política de Educa- uma mudança mais rigorosa na postura das ins-
○
○
ção Escolar Indígena no país, de outro, havia tituições às quais estão vinculadas as escolas
○
○
movimento e na adequação de suas estrutu- que sua luta de tantos anos venha a ter o reco-
○
○
Até hoje a mudança no quadro da Educa- possam existir como Escolas Ticuna.
○
Premiações da OGPTB
○
cia da língua materna na escola, a importância da Prêmio Destaque do Programa Gestão Pú-
○
○
presença do professor índio na escola, a impor- blica e Cidadania – 2000, conferido por
○
○
○
○
indígenas de Rondônia e noroeste
○
○
○
de Mato Grosso: relações com
○
○
○
políticas públicas de educação e
○
○
○
as escolas indígenas
○
○
○
○
○
Cristóvão Teixeira Abrantes
○
○
Opiron/RO
○
○
○
○
Durante a década de 1970, foram realiza- Em busca de alternativas viáveis que so-
○
○
das as primeiras assembléias e a estruturação ○
lucionassem os problemas, foram organiza-
de diferentes organizações indígenas no país, dos os primeiros encontros regionais de pro-
○
○
visando à defesa das terras e dos direitos dos fessores, visando ao intercâmbio cultural, à
○
○
reuniões da União das Nações Indígenas da proposta que resolvesse a atual situação.
○
ção conquistou e reuniu grande número de genas, ou Encontros de Educação Escolar In-
○
○
povos indígenas em defesa de seus direitos dígena, propiciando o debate com ênfase na
○
caráter regional ou dos povos indígenas co- res não encontravam nas escolas implantadas
○
○
meçaram a surgir. É na mesma década de 1970 em suas aldeias uma resposta às suas expec-
○
No final da década de 1980, surgem as pri- e Sul do Amazonas (Cunpir), juntamente com
○
○
cional específica para a Educação Escolar In- zação da I Assembléia de Professores Indíge-
○
○
de e a importância de uma mudança nos mo- ção dos Professores – Magistério Indígena –
○
○
delos de escola implantados pelos órgãos go- Projeto Açaí, planejada para os meses de ju-
○
○
em suas aldeias. Os currículos escolares não isso gerou um clima de angústia e temor en-
○
○
a vida cultural do povo e não levavam em con- perspectiva de a Secretaria de Estado de Edu-
○
○
sideração os seus conhecimentos e seus pro- cação não realizar as etapas previstas ou
○
construídos a partir da experiência milenar, ferido Projeto. Em vista disso, pode-se afirmar
○
○
64
SIMPÓSIO 5
As organizações de professores no Brasil: relações com as políticas públicas e as escolas indígenas
○
sidade de institucionalização do movimento
○
de professores indígenas em Rondônia acon- não pretende, como representante de um gru-
○
○
teceram nesse evento. po hegemônico no poder, fortalecer e instru-
○
○
No estado de Rondônia, a organização dos mentalizar grupos “minoritários” capazes de
○
professores se efetiva a partir do momento em construir uma contra-hegemonia. Por isso, a
○
○
que eles têm a oportunidade de se encontrar importância da participação dos professores
○
○
durante a realização dos cursos de formação na escolha e seleção dos quadros de profissi-
○
onais que vão trabalhar nos cursos de forma- 65
○
inicial.
○
Em março de 1999, ocorreu o I Encontro de ção de professores indígenas.
○
○
Professores Indígenas de Rondônia e Noroes- A política de educação implementada pe-
○
○
te de Mato Grosso, deliberando a criação da las Secretarias não tem considerado o fato de
○
Organização de Professores Indígenas de a escola representar um elemento novo na or-
○
○
Rondônia e Noroeste de Mato Grosso (Opiron), ganização social dos povos indígenas de
○
○
o que representa um marco importantíssimo Rondônia, e os atuais modelos de atendimen-
○
○
na história da Educação Escolar Indígena no to têm interferido e modificado hábitos cul-
○
Estado. A partir da realização da primeira as- turais do sistema tradicional de educação,
○
○
sembléia, adotaram a sistemática de realiza- obrigando-os, de certa forma, a viverem em
○
○
ção dos encontros (duas vezes ao ano) confor- função da escola, acarretando, portanto, uma
○
○
me programação das etapas do Curso de For- inversão de papéis – em vez de a escola ser
○
mação Inicial – Projeto Açaí, executado pela adaptada à vida do povo, é exatamente o con-
○
○
Secretaria de Estado de Educação em parceria trário, o povo é que tem de se adaptar à vida
○
○
zem parte do Núcleo de Educação Escolar In- que a escola se apresente como um corpo es-
○
○
Nesse cenário político, a trajetória que os veria ser, então, um espaço para a discussão
○
desde o reconhecimento por parte da Secreta- periências de vida às quais eles estariam ex-
○
○
ria de Educação, até a efetivação de seus con- postos devido ao contato” (Capacla, 1995: 58).
○
○
mente estabelecido nas relações da população histórica dos órgãos governamentais respon-
○
○
nacional com os povos indígenas. Assim, ta- sáveis pela implementação das políticas pú-
○
○
chados de incapazes por essas instâncias, es- blicas para a Educação Escolar Indígena, foi
○
○
tão provando o contrário do que deles dizem, necessário viabilizar mecanismos e instânci-
○
mostrando que há formas diferentes de ensi- as legais que garantissem às sociedades indí-
○
○
nar e aprender e que a seleção dos conteúdos genas a participação nas decisões relaciona-
○
○
não deve partir das Secretarias. Essa consciên- das à educação escolar para o seu povo. Des-
○
○
cia é resultado de um processo de muito tra- sa forma, foi surgindo a necessidade objetiva
○
balho e luta dos professores, mediante a par- de criar organizações de professores indíge-
○
○
O sucesso da escola indígena está intima- de construção das políticas para suas escolas.
○
○
mente ligado aos cursos de formação de pro- Acredita-se que a organização e a efetiva
○
fessores, uma vez que, por meio deles, os pro- participação dos professores juntamente com
○
○
fessores terão instrumentos para promover suas comunidades vão, de certa maneira, de-
○
○
contrapartida, sabe-se que nunca foi interes- criação da Opiron, passaram a perceber que
○
○
se do Estado assegurar essa qualidade e mui- as decisões sobre Educação Escolar Indígena
○
○
to menos o diferenciamento de modelo, já que não são meramente técnicas, mas, sobretudo,
○
políticas. Por isso, faz-se necessário se orga- turais específicos. Essa autonomia é extensi-
○
○
nizar para participar e decidir. va a qualquer comunidade, uma vez que não
○
○
Durante a realização das assembléias, os só os povos indígenas são violados com as
○
○
professores foram percebendo que seria pos- políticas públicas.
○
sível a criação de mecanismos de participação, Para se fazer uma educação verdadeira-
○
○
ainda que em sistemas tão fechados e cristali- mente indígena, com características próprias
○
○
zados, nos quais as decisões mais importantes de cada povo em Rondônia, é indispensável a
○
ficam nas mãos de tão poucas pessoas. participação efetiva de todos os segmentos
○
○
Mesmo com a criação da Opiron e o reco- envolvidos, sobretudo dos professores e de
○
○
nhecimento dos professores da necessidade suas comunidades, para que se possa formu-
○
○
de participar das discussões acerca da educa- lar uma política estadual que venha contribuir
○
ção escolar, a presença e a participação indí- para a construção de uma educação diferen-
○
○
genas (professores e lideranças) nas discus- ciada e de qualidade para os povos indígenas.
○
○
sões em torno da educação ainda têm sido Como as organizações dos professores in-
○
○
muito inexpressivas. Esse fato ocorre devido ○
dígenas podem intervir nos órgãos responsá-
à dificuldade que os professores enfrentam veis pela execução das políticas de educação
○
○
para se deslocar de suas aldeias até a cidade, que interferem nas relações sociais do grupo
○
○
pelo difícil acesso, e às limitações financeiras e nos processos próprios de elaboração dos
○
○
ação vem sendo mantida pelas administra- Mesmo reconhecendo o esforço e a serie-
○
○
ções como estratégia de exclusão das popu- dade nas intenções dos envolvidos direta e in-
○
○
das políticas públicas. Não estou defenden- ferenciais Curriculares Nacionais para a Esco-
○
○
das ligando as aldeias aos centros urbanos uma ampla discussão, com a participação de
○
○
nem o paternalismo estatal no sentido de doar representantes indígenas e orientado por es-
○
so de construção das políticas públicas. Mas nar se há pistas que apontem para efetivas
○
○
defendo uma política séria, de forma que os mudanças, de forma que os povos indígenas
○
para a autonomia, porque prima pela cons- dadeiramente diferenciada, que leve em con-
○
○
trução de uma nova relação dos povos indí- sideração os processos próprios de ensino e
○
○
Educação Escolar Indígena, na busca da me- para os povos indígenas correspondem aos re-
○
○
lhoria da qualidade de vida de seus respecti- ais interesses das comunidades indígenas?
○
vos povos. O impacto gerado, embora gra- Elas têm contribuído para o processo de cons-
○
○
cia de intervenções externas e, por fim, sen- Do ponto de vista avaliativo, esses ques-
○
sibilizados com seus problemas e conscien- tionamentos devem fazer parte das reflexões
○
○
atuarão sem perder de vista seus valores cul- professores e assessores estejam repensando
○
66
SIMPÓSIO 5
As organizações de professores no Brasil: relações com as políticas públicas e as escolas indígenas
○
tização e implementação das políticas públi-
○
essa prática de reflexão e avaliação constan- cas de Educação Escolar Indígena. Penso que
○
○
tes, o risco de errar será, potencialmente, ao estabelecerem essa relação com os seus
○
○
menor. parceiros diretos e indiretos – governamen-
○
Pelo fato de a Educação Escolar Indígena, tais e não-governamentais – poderão discutir
○
○
como modalidade de ensino, apresentar sin- com autonomia e autoridade uma educação
○
○
gularidades educativas, heterogeneidade ét- escolar pautada em suas diferenças e espe-
○
nica e, ainda, em função da problemática le- 67
○
cificidades.
○
vantada, trabalha-se com a hipótese de que o
○
○
modelo de Educação Escolar Indígena im-
○
○
plantado pelos órgãos governamentais e não-
Bibliografia
○
governamentais para os povos indígenas não
○
○
tem contemplado o universo socioeconômico,
○
○
cultural e lingüístico desses grupos, anulan- ABRANTES, Cristovão Teixeira. A educação escolar in-
○
dígena em Rondônia e o processo educacional dos
○
do a construção de uma escola com um perfil
○
Cinta Larga: uma abordagem sociocultural. Monografia
indígena. Pelo contrário, vem desagregando
○
apresentada em curso de especialização. Porto Ve-
○
progressivamente os processos próprios de
○
○
lho: UNIR, 1998.
ensinar e aprender desses povos. CAPACLA, Marta Valéria. O debate sobre a educação in-
○
○
Exatamente por tratar-se de uma institui- dígena no Brasil (1975-1995): resenhas de teses e
○
ção responsável pela socialização do saber livros. Brasília/São Paulo, MEC – Mari/USP, 1995.
○
○
formal, em que há seleção desses saberes, par- SECCHI, Darci (Org.). Ameríndia : tecendo os caminhos
○
indígenas estabelecer novas relações com es- Roraima e Acre, a partir dos seus encontros anuais.
○
A QUESTÃO INDÍGENA
NA SALA DE AULA
Ana Vera Macedo
Betty Mindlin
71
Cursos de formação de
○
○
○
professores índios em História:
○
○
○
experiências e considerações
○
○
○
○
Ana Vera Macedo
○
○
Mari/USP
○
○
○
○
○
○
A infatigável luta pelos direitos indígenas, trar cursos de formação para professores índi-
○
marcadamente a partir da década de 1970, re- os e também para professores não-índios que
○
○
sultou na consagração dos direitos constituci- trabalham nas aldeias. Amapá, Maranhão e in-
○
○
onais indígenas, trazendo em seu bojo aqueles terior do estado de São Paulo têm sido os locais
○
que se referem à Educação Indígena.1 A Cons- ○
○
onde tenho atuado com maior freqüência.
tituição Federal de 1988, a LDB, e a farta legis- A busca na concretização de alguns princí-
○
○
lação que tem sido produzida estabelecendo pios tem pautado minha atuação nos diferen-
○
○
parâmetros para que aqueles direitos assegura- tes cursos ligados à História e à Alfabetização.
○
• o planejamento cuidadoso;
○
modernas;
○
cil de ser atingido. Apesar das explicitações, le- para as mais diversas participações.
○
○
projetos ligados à educação, podem-se ainda Para maior clareza na aplicação dos princí-
○
○
encontrar em diferentes espaços interações en- pios anteriormente citados, exemplificarei, es-
○
tre índios e não-índios que não correspondem tabelecendo alguns recortes e apresentando
○
○
às diretrizes que, no papel, nos parecem tão dados extraídos de dois cursos de História para
○
○
1
Para maiores informações sobre esse processo, ver Aracy Lopes da Silva, Educação para a tolerância e povos indígenas no Brasil, documen-
○
to interno do Mari/USP, 4º Relatório Científico (1998-1999), volume II, Fapesp (Processo nº 94/3.492-9).
○
○
2
Curso Supletivo para professores indígenas do Estado do Maranhão, patrocinado pelo Grupo de Educação Indígena da Secretaria de Educa-
○
ção daquele estado (entre 14/4 e 2/5/1997), objetivando a capacitação em História do Brasil para a posterior realização de exames e
○
○
certificados de conclusão do Ensino Fundamental. Participação de 85 professores Guajajara, Canela, Gavião, Timbira e Krikati. Locais:
○
Imperatriz, Santa Inês e Barra do Corda. O convite foi efetuado pela Secretaria de Educação do Maranhão ao Mari/USP, por indicação da
○
Curso de Formação de Professores Índios das etnias Kaingang, Terena e Krenak, realizado na Terra Indígena de Icatu, município de Braúna,
○
interior do estado de São Paulo, em dezembro de 1999, patrocinado pelo MEC. Atendidos professores das Terras Indígenas de Icatu e
○
72
PAINEL 1
A questão indígena na sala de aula
○
○
e sua participação na história regional. A possi-
○
conhecer as etnias envolvidas
○
bilidade da utilização de um livro, resultado de
○
nos cursos
○
textos históricos reescritos sob a ótica daque-
○
les povos indígenas, poderia servir como ins-
○
○
Como os convites a que se referem os cur- trumento para uma revisão e reavaliação da his-
○
sos de História representavam novas experiên-
○
tória estudada nas escolas estaduais do oeste
○
cias e os primeiros contatos com etnias diferen- paulista. 73
○
○
tes daquelas que eu já conhecia, a pesquisa tor-
○
○
nava-se de fundamental importância, constitu-
A procura de fontes de difícil
○
indo-se na primeira providência sobre a qual se
○
○
construiria toda a elaboração futura. A possibi- acesso para os professores
○
○
lidade de recorrer à bibliografia e aos pesquisa-
índios de diferentes etnias
○
dores do Mari/USP representava uma certa fa-
○
○
cilidade. Algumas publicações, como Aconteceu, O rastreamento bibliográfico leva a novas
○
○
do Instituto Socioambiental, trazem referênci- fontes. A consulta a teses de Mestrado e Douto-
○
○
as bastante recentes e diversificadas sobre a si- rado recentes proporciona material rico, com
○
tuação de diferentes povos indígenas brasilei- ○
○
o conjunto de notícias atuais recolhidas em di- gas pesquisas? Que conteúdos destacar, esco-
○
○
ferentes jornais do país, fornecendo a base ini- lher, trabalhar? Como criar estratégias ou pro-
○
cial sobre a qual as pesquisas eram construídas. cedimentos de maneira a garantir a apropria-
○
○
Outras publicações, ainda gerais, ajudavam no ção daqueles conteúdos pinçados em meio a
○
○
O prazer em pesquisar e, agindo como de- Evidentemente, o trabalho ficou muito en-
○
tetive, seguir as pistas deixadas por diferentes riquecido com a possibilidade de se utilizar te-
○
○
autores, favorece a construção de um conheci- ses de Doutorado cujos conteúdos estavam di-
○
○
mento que proporciona certa segurança e faci- retamente ligados aos públicos dos cursos do
○
○
lita a escolha dos conteúdos que devem ser tra- Maranhão e de São Paulo, como as de Perrone-
○
balhados. Tanto no curso realizado no Moisés (1997) e Andrade (1990); Souza Lima
○
○
Maranhão como no de São Paulo, tal procedi- (1992) e Pinheiro (1992), respectivamente. Es-
○
○
mento facilitou a compreensão das realidades sas teses constituíram um desafio que mereceu
○
ser alunos daqueles cursos. A pesquisa referen- e requintada dos autores requeria adaptações
○
○
te à história Kaingang, entretanto, foi marcada e “traduções” para que se tornassem acessíveis
○
○
por pesquisa mais abrangente, visto que havia, aos professores índios que têm na língua por-
○
um recorte histórico mais preciso: os Kaingang trechos que nos pareciam os mais instigantes e
○
○
Brasil. Aqui, além da formação dos professores histórico que os alunos possuíam se tornou um
○
índios, e diante da situação extremamente difí- dos grandes motivadores da preparação do cur-
○
○
cil das comunidades de Icatu e Vanuíre, convi- so. Frases curtas, diretas e claras, cujo entendi-
○
○
ve-se com uma situação social que apresenta mento se tornava imediato, não necessitando
○
○
tidianamente as conseqüências da difícil vida o material elaborado para a utilização nos cur-
○
○
a reescrita da história do início do século XX, O mesmo trabalho foi realizado no curso
○
como explicaremos adiante, para possibilitar de Icatu. Aqui, além das teses, visamos a ofe-
○
○
recer para reflexão textos escritos no início do tuação: os professores, individualmente ou em
○
○
século XX, época da construção da Estrada de duplas, deveriam elaborar histórias em quadri-
○
○
Ferro Noroeste do Brasil. nhos com as idéias principais do texto que, ao
○
○
Os objetivos que nos moviam e a demons- ficarem prontas, seriam afixadas na classe. Li-
○
tração da presença e da força Kaingang na his- das e comentadas, deram origem a brincadei-
○
○
tória regional do oeste paulista constituíam a ras, sugestões, comentários.
○
○
diretriz das escolhas. A opção por temas, recor- Ao dar continuidade ao trabalho, partia-se
○
tes, enfoques mostra, mais uma vez, o papel e da experiência e do conhecimento anteriores
○
○
as motivações que nortearam a ação a ser de- para que novos desafios fossem colocados para
○
○
senvolvida nos cursos. a ação pedagógica.
○
○
É certo que, muitas vezes, se verificava que
○
o planejamento, mesmo cuidadoso, precisava
O planejamento cuidadoso
○
○
ser revisto e reorientado diante das respostas e
○
○
À medida que as leituras e as escolhas de das contribuições dos professores.
○
temas e textos caminhavam, o planejamento ia ○
○
dependesse dos conhecimentos e das ações A simples leitura nem sempre possibilita um
○
○
anteriores, resultando, assim, em processo co- pensar criativo e reflexivo. É preciso encontrar
○
○
eso, lógico e coerente. caminhos para que os textos, uma vez entendi-
○
○
Se tomarmos uma das atividades aplicadas dos, propiciem momentos de reflexão, acrésci-
○
nos diferentes cursos, poderemos, por meio de mos e trocas entre os participantes.
○
○
Uma das primeiras atividades consistiu na lei- Paulo, os desafios colocados por diferentes es-
○
○
tura de um pequeno texto, que foi realizada aos tratégias seriam o caminho escolhido para que
○
poucos, parágrafo por parágrafo. Lido um tre- se tornasse possível a apropriação daqueles tex-
○
○
cho, as idéias principais eram “traduzidas” tos e dos conteúdos selecionados. Leituras
○
○
nal, em que o professor é o centro do saber e adendos que os conhecimentos dos professo-
○
○
solicitação de que os alunos dos cursos não uti- aplicadas naqueles cursos, algumas se destacam
○
○
lizassem as mesmas palavras do texto para por se terem revelado ricas quanto a sua execu-
○
○
“traduzi-lo” já se tornava um desafio. Ao final ção e a seus resultados, como, por exemplo, a
○
da leitura, foram levantados alguns problemas, comparação entre diferentes mapas. Tanto nos
○
○
pequenos e simples, porém não explicitados três pólos onde foram realizados os cursos no
○
○
no texto. Os participantes percebiam, aos pou- Maranhão como no interior de São Paulo, ao
○
○
cos, que suas sugestões, deduções e contribui- serem expostos, lado a lado, os mapas de Curt
○
ções tinham de brotar da capacidade de refle- Nimuendaju (1987) e outro, atual, que retrata a
○
○
xão. Sendo todas as contribuições muito valo- situação das Terras Indígenas Brasileiras (ISA,
○
○
foi surgindo uma interação respeitosa e muito A comparação entre mapas falava por si. As
○
Uma nova estratégia foi proposta para que referiam às terras e aos povos, gritavam. O pri-
○
○
as idéias principais do texto, agora apropriado meiro deles, que representava a ocupação do
○
○
pelo grupo, fossem aplicadas em uma nova si- Brasil pelos povos indígenas desde sua descober-
○
74
PAINEL 1
A questão indígena na sala de aula
ta até 1944, as diferenças lingüísticas e, princi- nos de diferentes grupos aproximavam-se e tro-
○
○
palmente, as migrações e o desaparecimento de cavam informações.
○
○
inúmeras etnias, mostrava dados claros, eviden- A observação de gravuras e fotos foi outro
○
○
tes. Instados a revelar suas conclusões diante da recurso utilizado para que professores obser-
○
observação, à medida que alguns expunham suas vassem, inferissem, concluíssem e percebessem
○
○
conclusões, outros descobriam outras, que eram que a capacidade de refletir é a grande aliada
○
○
acrescentadas, no quadro, às primeiras. Um nas descobertas e, conseqüentemente, na apre-
○
grande número de deduções pôde ser escrito por ensão de conhecimentos históricos. 75
○
○
todos. Começava-se assim um modus operandi No curso ministrado em Icatu, São Paulo, a
○
○
que se tornaria a tônica das aulas. Aqui, mais um gravura de uma casa Kaingang foi apresentada.
○
○
dos princípios que norteavam o trabalho era Diante dela, perguntas foram sendo feitas com
○
vivenciado: todas as conclusões, os raciocínios, o objetivo de dirigir o olhar e estimular as de-
○
○
as relações, as deduções tornar-se-iam conteú- duções.
○
○
dos que todos deveriam anotar, por serem
○
○
originais e únicos, produto de reflexões
○
bem fundamentadas pelos alunos e pela
○
○
professora.
○
○
precisavam pensar, relacionar, elaborar, deduzir Para melhor entendimento dessa ação,
○
○
Por diversas razões, alguns textos eram ne- respondidas pelos professores: De que mate-
○
○
cessariamente longos, e sua simples leitura rial seria essa construção? Como aquela cons-
○
○
desmotivaria os alunos. Uma das maneiras uti- trução se mantinha em pé? Por que estaria vol-
○
○
lizadas para minorar o problema consistiu em tada para essa direção? Essa construção seria
○
dividir trechos do texto entre diferentes grupos. resistente? Seria a moradia permanente ou
○
○
lo, em seqüência, transportando para o dese- e, no momento em que os porquês iam surgin-
○
nho os conhecimentos e as idéias do trecho sob do, muita história Kaingang também brotava.
○
○
sua responsabilidade. Acabados os trabalhos O registro nos cadernos, aos poucos, tornava-
○
○
dos diversos grupos, os “filmes” foram apresen- se evidente, era fonte de saber, de relembrar.
○
○
tados, e o longo texto foi, dessa maneira, en- O passo seguinte consistiu na inversão dos
○
tendido e apreendido por muitos. Os desenhos, papéis: os professores índios elaboravam as per-
○
○
durante alguns dias, ficaram expostos, e era guntas para que fossem respondidas por mim
○
○
possível observar que, por diversas vezes, alu- que, nem sempre, tinha o conhecimento tão
○
amplo que pudesse solucioná-las. Os professo- material do livro que se propunha organizar.
○
○
res, então, explicavam com os conhecimentos É interessante salientar a atitude interessa-
○
○
que os mais velhos, tantas vezes, lhes haviam da, porém descrente, dos participantes duran-
○
○
relatado. Quanta oportunidade para aprender! te as aulas. Trabalharam, reescreveram textos,
○
À medida que os trabalhos iam sendo pro- observaram mapas e gravuras, dramatizaram,
○
○
postos, a percepção de que o respeito aos mo- elaboraram atividades didáticas, criaram pro-
○
○
dos de ser, agir e pensar e aos resultados que as blemas cujas soluções exigiam raciocínios.
○
diferentes atividades faziam surgir criaram uma Ao acabar o curso, conforme fora combina-
○
○
interação positiva, alegre, aberta. Problemas do, um boneco do livro foi organizado e envia-
○
○
criados a partir daqueles textos eram colocados do para Icatu e Vanuíre para que circulasse en-
○
○
e as respostas tinham de ser encontradas por tre professores e os mais velhos das comunida-
○
meio do raciocínio. A elaboração de problemas des envolvidas. A resposta foi inesperada: inú-
○
○
apresentados aos colegas, a observação de fo- meros acréscimos ocorreram, tornando a publi-
○
○
tos, as conclusões pessoais ou grupais que se cação3 rica em aspectos, fatos e descrições que,
○
○
transformavam em conteúdos anotados por to- ○
presentes na memória dos professores e das
dos, o relato de situações que determinados pessoas mais velhas, não haviam sido lembra-
○
○
A difícil situação em que vivem Kaingang, congresso voltado à educação, tendo a Educa-
○
Terena e Krenak, moradores de Icatu e Vanuíre, ção Indígena um espaço definido, talvez seja um
○
○
muitos deles trabalhando como bóia-fria nas momento privilegiado para pensarmos nos re-
○
○
usinas de açúcar da região e recebendo salários cursos que têm sido despendidos com a forma-
○
○
irrisórios, trazem em sua esteira a desesperan- ção de professores índios ou não-índios ligados
○
ça, a discriminação e o preconceito dos não- à Educação Indígena, suas ações, resultados e
○
○
ples curso de História poderia contribuir para Ao analisarmos os materiais didáticos vol-
○
desdém, desrespeitados e cansados de esperar em português, é possível notar que, nem sem-
○
○
por mudanças que, muitas vezes prometidas, pre, eles se destacam por sua qualidade. Os
○
○
das quais participariam, mas que, como já vezes, uma visão tradicionalista da educação
○
○
acontecera anteriormente, não teria conseqü- e dos métodos pedagógicos. Muitas vezes, os
○
○
textos históricos do início do século XX e sua por exemplo, as cópias infindáveis de conteú-
○
○
reescrita pelos professores índios, como fora dos do quadro, a postura do professor, depo-
○
○
tico, a publicação de um livro didático prove- fios, a ausência de atividades didáticas en-
○
○
niente da produção do curso, que seria com- volventes e desafiadoras. A escola, muitas ve-
○
○
plementada pelos dados e fatos recolhidos en- zes, tem oferecido atividades repetitivas, pou-
○
3
MACEDO, Ana Vera (Org.). Uma história Kaingang de São Paulo: trabalho a muitas mãos. Brasília: Mari/MEC (no prelo).
○
76
PAINEL 1
A questão indígena na sala de aula
atrair os alunos, tendem a afastá-los. Afinal, za, Aramirim, professora da Aldeia Barragem,
○
○
fora da escola há tanto a fazer, aprender, des- Morro da Saudade, Grande São Paulo, disse:
○
○
cobrir, se envolver.
○
○
Um outro agravante, que é necessário des- [...] fui professora na escola da Barragem
○
tacar neste momento, está ligado à continuida- por seis anos, direto. Sempre vim lutando pela
○
○
de dos cursos. Ao contrário do que ocorreu com educação indígena, pela escola diferenciada. A
○
○
a experiência ligada ao trabalho com os profes- Secretaria de Educação praticamente retirou o
○
sores de Icatu e Vanuíre, cujos resultados cons- espaço do meu trabalho [...] A cultura está se 77
○
○
perdendo aos pouquinhos depois da entrada da
tituíram retorno valorizado pelo grupo, quantas
○
Secretaria de Educação. Era uma coisa que a
○
vezes pudemos deparar com projetos cujos pla-
○
gente não queria. Quando não tinha professora
○
nejamentos previam a continuidade em mui-
○
do Estado, a gente sabia controlar, dava aula
tas etapas consecutivas, que não ocorreram.
○
normal. Éramos nós que tomávamos conta da
○
Fatores vários, nem sempre ligados aos profes-
○
escola. Depois que chegou o Estado, eles to-
○
sores índios ou capacitadores, impossibilitam maram conta, não deixaram espaço. [...] A am-
○
○
a continuidade. O início da ação, a primeira eta- pliação [do prédio da escola], que era para dar
○
pa, ocorre bem organizada, o curso flui, as ava-
○
aula em guarani, agora é para colocar 5ª a 8ª.
○
liações e os resultados imediatos são positivos, Eles decidiram [...].
○
○
processo. Muitas vezes nos perguntamos: terá de e diversidade de escolas indígenas no Brasil,
○
○
sido em vão o trabalho realizado? Que garanti- que esse é um caso isolado. Mas... será?
○
○
São Paulo.
○
Um outro aspecto, neste momento, merece São Paulo: Instituto Socioambiental, 1997.
○
○
Museu Nacional.
○
cleos ligados a diferentes governos estaduais, PERRONE-MOISÉS, Beatriz. Relações preciosas: france-
○
além de descumprirem as leis, oferecem cami- ses e ameríndios no século XVII. 1997. Tese (Doutora-
○
○
Paulo.
○
4
Encontro de professores Guarani para elaboração de Projeto de Alfabetização. Cajamar, São Paulo, 27 de junho de 2001.
○
Educação escolar e formação
○
○
○
de lideranças indígenas
○
○
○
○
○
Rosani Moreira Leitão*
○
○
○
○
○
○
Este trabalho pretende oferecer elementos rão passar despercebidos caso cada tipo de so-
○
○
para a compreensão dos mecanismos de poder ciedade seja analisado isoladamente.
○
○
hoje presentes entre as sociedades indígenas e Levando em conta essas considerações, o ob-
○
as estratégias buscadas por essas sociedades para jetivo mais específico do trabalho é discutir mu-
○
○
intermediar suas relações com os não-índios. A danças ocorridas nos modos tradicionais de for-
○
○
compreensão de tais estratégias de convivência, mação, escolha e atuação de lideranças indígenas
○
de negociação e de mediação de conflitos é de ○
○
bem como formas de apropriação da instituição
fundamental importância, uma vez que, atual- escolar e do saber escolarizado por elas. Para tan-
○
○
mente, as sociedades indígenas estão submeti- to, foram analisados discursos de lideranças in-
○
○
das a processos de interação cada vez mais in- dígenas gravados em uma aldeia Karajá, da Ilha
○
sas interações não se limitam às fronteiras das Depoimentos de velhos Karajá indicam que
○
○
comunidades regionais ou dos Estados nacio- sempre existiram tipos distintos de lideranças
○
○
nais, mas se situam cada vez mais no âmbito de voltadas para o desempenho de papéis e funções
○
sociedades locais quanto as sociedades nacio- seja no âmbito da aldeia, intermediando as rela-
○
○
nais só podem ser adequadamente compreen- ções sociais e cerimoniais, seja nas atividades ex-
○
○
didas se inseridas no âmbito da discussão acer- ternas à aldeia, liderando operações militares ou
○
ca do relacionamento entre ambas e se conside- atuando como espécies de diplomatas que do-
○
○
radas as implicações decorrentes dessas inte- minavam várias línguas e saberes voltados para
○
○
rações para a própria definição e redefinição de as relações exteriores e para as interações com
○
○
seus espaços e instituições, como recomenda outros grupos indígenas vizinhos, fossem essas
○
Wolf.1 Esse autor ressalta que as instituições na- relações baseadas em alianças ou em conflitos.
○
○
cionais, além de instituições formais, são tam- Entretanto, o encontro entre as culturas in-
○
○
bém espaços de interação entre diferentes gru- dígenas e o Ocidente, fundado na escrita e numa
○
○
pos. Assim, o relacionamento entre comunida- cultura letrada, passa a exigir das sociedades in-
○
de local/comunidade nacional possibilita con- dígenas saberes, técnicas e domínios que alte-
○
○
criação de sujeitos sociais específicos. Analisan- status, poder e prestígio, bem como os mecanis-
○
○
brokers para referir-se a importantes agentes líderes no interior dessas comunidades. Expos-
○
○
mediadores nas relações de comunidades espe- tas a um contato prolongado com o “mundo dos
○
○
cíficas com comunidades nacionais, que pode- brancos”, elas incorporam às suas estruturas tra-
○
○
○
○
* Pesquisadora do Museu Antropológico da UFG, professora do Departamento Pedagógico da UEG, doutoranda em Antropologia pelo Centro
○
○
1
WOLF, Eric. Aspects of group relations in a complex society: México. In: Pathways of power: building an anthropology of the modern world. Berkeley:
○
○
2
Uma reflexão preliminar sobre esse tema – tendo com o título “O papel da educação escolar na formação de lideranças indígenas” – foi por mim apresentada
○
○
em setembro de 2000 em Caxambu, na 23ª Reunião Anual da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (Anped). O texto original
○
foi reelaborado a partir de leituras e discussões sobre cultura e poder realizadas no curso Seminários Avançados em Teoria I, do curso de Doutorado em
○
Antropologia Social da Universidade de Brasília, ministrado pelo professor Gustavo Lins Ribeiro.
○
78
PAINEL 1
A questão indígena na sala de aula
dicionais de poder novos mecanismos de medi- processos e nas tomadas de decisões nas instân-
○
○
ação dessas relações de poder. Dentre esses me- cias de poder da sociedade envolvente que te-
○
○
canismos, está a construção de novos tipos de rão conseqüências diretas sobre suas vidas.
○
○
lideranças que têm como objetivo intermediar Do ponto de vista das lideranças indígenas
○
o contato com a sociedade envolvente. As lide- mais velhas, o desejo de conhecer o modo de pen-
○
○
ranças do contato índio/branco ocupam um lu- sar do outro, neste caso do “branco civilizador”,
○
○
gar cada vez mais significativo tanto nas instân- não é uma preocupação recente. Um velho Karajá
○
cias de negociação de espaços e direitos da soci- relata a sua experiência quando, em sua juventu- 79
○
○
edade majoritária como nas decisões políticas no de, na década de 1940, e após obter bolsa de es-
○
○
interior da aldeia. tudos do governador de Goiás, é enviado por sua
○
○
A atuação dessas lideranças dentro e fora da família para a cidade de Goiás, onde deveria ini-
○
aldeia coloca-as na delicada situação de ter sem- ciar um programa de estudos. Dificuldades
○
○
pre de operar com códigos, símbolos e valores advindas da separação da família, da adaptação
○
○
de universos culturais distintos e com raciona- ao individualismo de um modo de vida urbano e
○
○
lidades orientadas por interesses que, ainda que o medo do preconceito vindo de professores e
○
interdependentes, são muitas vezes contraditó- colegas acabaram inviabilizando sua permanên-
○
○
rios. Esses representantes vivem assim uma am- cia no colégio interno, que não passou de um se-
○
○
bígua situação. Por um lado, devem ser porta- mestre letivo. Entretanto, vários motivos são
○
○
vozes coerentes com as aspirações, os desejos e apontados no seu discurso para justificar a deci-
○
as necessidades do seu povo – autênticos repre- são familiar. Diante de acontecimentos que trou-
○
○
sentantes do seu grupo étnico –, por outro lado, xeram drásticas conseqüências para a sociedade
○
○
devem ter competência para fazer uma apropri- Karajá, como alcoolismo, epidemias, invasão dos
○
mento da sociedade não-indígena e, a partir daí, violências, as quais eram atribuídas à presença
○
○
atuar com eficiência nas negociações externas à progressiva do “branco”, era necessário “conhe-
○
○
aldeia em defesa dos direitos indígenas. Consci- cer o seu modo de pensar”, aprender a sua língua,
○
estabelecida entre índios e brancos no Brasil e daí, compreender as suas ações.3 Era necessário,
○
○
desejosos de uma relação menos desvantajosa enfim, formar novas gerações aptas a construir
○
○
para eles, os Karajá demandam de suas lideran- estratégias de resistência.4 Esse interesse conti-
○
ças competências diversas no desempenho das nua presente nos projetos dos atuais líderes
○
○
suas atividades: elas devem conhecer as leis e os Karajá, a despeito da rejeição por parte da maio-
○
○
direitos indígenas; dominar o discurso na língua ria da população aos primeiros projetos de edu-
○
○
oficial; impressionar os seus interlocutores para cação escolar implementados nas aldeias. Nos
○
conseguir destes uma posição favorável aos seus anos mais recentes, já no contexto das experiên-
○
○
acima de tudo, atrair aliados para suas causas. partir da década de 1980, com a previsão legal do
○
○
Devem, enfim, influenciar positivamente nos respeito às identidades culturais e com a possibi-
○
○
○
○
○
○
3
Nesse período, os Karajá de Santa Isabel receberam visitas de importantes dirigentes políticos. As visitas fizeram parte de ações voltadas
○
para o desenvolvimento da região central do Brasil. “A partir da década de 40 deste século, são empreendidos novos esforços de desenvol-
○
vimento da Ilha do Bananal e do Vale do Araguaia. Não são raros os propósitos de desenvolvimento econômico e de integração da região à
○
economia do estado e do país [...]. A Fundação Brasil Central é criada em 1943, para dar continuidade à ‘Marcha para o Oeste’, que tem
○
○
início com a ‘Expedição Roncador Xingu’. A visita de Getúlio Vargas, na década de 40, e depois a de Juscelino Kubitschek, na década de 60,
○
4
Não só as tentativas de escolarização fora das aldeias, mas também as experiências do Serviço de Proteção ao Índio (SPI), no interior delas, nessa
○
5
Essas experiências inicialmente não romperam com os esforços de aculturação. Começaram oficialmente em 1970, quando foi assinado convênio entre
○
a Funai e o Summer Institute of Linguistics (SIL), um instituto de estudos lingüísticos ligado a uma instituição religiosa protestante norte-americana, que
○
visava à produção de materiais religiosos escritos em línguas indígenas. Possuía, pois, um caráter civilizatório e evangelizador (Leitão, 1998).
○
lidade do desenvolvimento de projetos educacio- Velhas e novas lideranças:
○
○
nais concebidos com a participação das próprias
○
processos de formação e
○
comunidades indígenas ou totalmente por elas,
○
espaços de atuação
○
alguns avanços vêm ocorrendo nesse sentido. Au-
○
menta assim o número de pessoas alfabetizadas
○
○
e o grau de escolarização de algumas delas. Tam- Os discursos analisados ressaltam duas
○
○
bém aumentam as expectativas com relação ao modalidades gerais de chefias e lideranças
○
saber escolar, bem como o valor atribuído a esse atualmente existentes entre os Karajá, as quais
○
○
tipo de saber. apresentam distinções claras no que se refere
○
○
Todas essas questões impulsionam no seio das aos espaços de atuação e aos papéis a serem
○
○
sociedades indígenas contemporâneas uma gran- desempenhados por cada uma delas. Existem,
○
de demanda por educação escolar nos órgãos ofi- por um lado, as chefias tradicionais que atu-
○
○
ciais competentes. Conhecimentos técnicos, le- am nos espaços internos e tradicionais da al-
○
○
gais e burocráticos próprios das sociedades oci- deia e, por outro, lideranças que possuem um
○
dentais – que fazem parte de um conjunto de sa- ○
○
raio de atuação que extrapola os limites físi-
beres que só serão adquiridos pelo acesso ao co- cos da aldeia e está voltado para as negocia-
○
○
nhecimento escolarizado – são percebidos como ções com as instâncias e os poderes da socie-
○
○
necessários para a formação das habilidades e das dade nacional. Essas últimas são mediadoras
○
ponsáveis pela mediação das relações com os dutoras de conteúdos culturais do mundo in-
○
○
não-índios. Entretanto, a emergência dessas no- dígena para o mundo ocidental e deste para o
○
○
vas lideranças não rompe com as formas tradicio- universo indígena. Do ponto de vista da aldeia,
○
nais de poder, apesar de elas restringirem-se agora são elaborados mecanismos que absorvem as
○
○
muito mais aos limites da aldeia. Bruce Albert, mudanças em um processo de acomodação
○
○
tomando como objeto de análise o discurso de dessas novas lideranças no âmbito do sistema
○
○
um líder Yanomami, oferece importante con- de chefia e poder já estabelecido. Assim, elas
○
tribuição nesse sentido. Ele demonstra que as atuam paralelamente às instâncias tradicionais
○
○
curso que realiza uma passagem da resistên- Existe um discurso legitimador e organizador
○
○
cia especulativa, caracterizada por uma das mudanças que dá ordem à realidade e às re-
○
simbolização etnocêntrica do branco como presentações nativas sobre o assunto, o que faz
○
○
subumano, para uma adaptação resistente, ca- que as lideranças Karajá elaborem as suas pró-
○
○
racterizada por uma simbolização relativista e prias concepções acerca da forma como o po-
○
○
por um discurso sobre si para o outro. Este der, o status e o prestígio estão distribuídos en-
○
autor, recorrendo à história de vida do líder, tre as pessoas da aldeia e como essas questões
○
○
identifica os conteúdos do seu discurso como interferem na delimitação dos espaços e nas to-
○
○
tradição Yanomami com os modelos “brancos” Dessa forma, as chefias tradicionais são
○
sobre a etnicidade para a sociedade envolvente cultura”, enquanto as novas lideranças são
○
○
e para o resto do mundo. Ele também lembra, identificadas em função dos seus papéis como
○
○
tradicionais com as novas lideranças quando mundo dos brancos. A principal liderança tra-
○
○
uma liderança religiosa interna sobre o discur- “os brancos” como “cacique geral” ou “o che-
○
○
so do novo líder, este último traduzido para fe do povo”. O “cacique geral” é o “líder da
○
uma forma inteligível fora do grupo. O líder aldeia e dos rituais”. Deve possuir atributos
○
○
Yanomami é apontado assim como um “medi- especiais e situa-se na faixa etária dos
○
○
ador cultural por excelência” (Albert, 1995). matuari (dos velhos). Existe também o
○
80
PAINEL 1
A questão indígena na sala de aula
○
A divisão aqui é a seguinte: Tebukua [o caci-
○
ça. Ambos (cacique geral e Deridu) devem per- que geral] é cacique, é chefe da aldeia, da cultu-
○
○
tencer a famílias de grande prestígio na aldeia. ra. Ele chefia negócio de dança [...] É ele quem
○
organiza. Agora eu, sou cacique representando do
○
O Ixydinodu, “cacique geral” da aldeia de
○
Santa Isabel do Morro, define suas atribuições e lado do branco. Quando vem alguma autoridade
○
○
aqui e quer conversar, aí me procura. [...] Tebukua
as do Deridu em oposição às atividades desem-
○
é só da aldeia mesma, quando não tem festa ele
○
penhadas pelo Tori Wedu, afirmando que “o ou-
○
fica livre. Quando chega na época de Hetohoky,7 81
tro” é o “cacique de branco”, enquanto ele pró-
○
continua chefiando a aldeia [...] (Xiari Karajá).
○
prio é “o cacique geral da aldeia”.
○
○
Internamente, Ixydinodu (cacique geral) e
○
As lideranças auxiliares do Tori Wedu nas re-
○
Deridu “governam juntos” nos assuntos referentes
lações externas da aldeia, como é o caso do vice-
○
não só aos rituais, mas também às relações sociais
○
cacique, entre outros, também definem a divi-
○
entre as famílias e o povo da aldeia em geral. Ao
○
são de papéis e poderes:
○
mesmo tempo em que desempenha o papel de lí-
○
○
der ritual, o “cacique geral”, nas suas próprias pa-
Cacique é aquele que tem poder, que toma con-
○
lavras, atua “como um juiz”, ou “a lei”, nos desen-
○
ta. É como prefeito, por exemplo. [...] Idjahina é o
○
tendimentos familiares. Para isso, ele procura a aju-
○
○
cacique de Santa Isabel do Morro. O resto é lide-
da do Deridu, representado pelos seus familiares, rança, os outros que trabalham. Eu, Lahuri, Koxieru
○
○
uma vez que ele é uma criança. Especialmente em [...], somos lideranças. Quando Idjahina viaja, a
○
pessoas ameaçadas de perigo buscam a proteção quando tori [branco] chega e Idjahina está viajan-
○
○
do Ixydinodu, e, caso seja necessário, ficam tem- do, a gente responde. [Somos] substitutos do caci-
○
sociedade nacional podem ser divididas, no caso papéis significativos nas decisões da aldeia e se
○
○
• Tori Wedu (“cacique de branco”) e seus au- partir das duas últimas décadas.
○
○
• aqueles que se legitimam como lideranças na política partidária ocorre não só entre os
○
○
por meio da participação em processos eleito- Karajá, mas pode ser situada no âmbito de um
○
○
rais de municípios vizinhos às aldeias; processo mais amplo, que tem início na década
○
○
O Tori Wedu, “chefe ou cacique ‘de branco’”, gena brasileiro a ser eleito para um mandato no
○
○
é apontado como o principal intermediador das Congresso Nacional. Nos últimos anos, as candi-
○
○
Tori Wedu da aldeia de Santa Isabel do Morro te, demonstrando uma disposição dos povos in-
○
assim define os espaços de atuação das lideran- dígenas em ocupar espaços políticos institucio-
○
○
6
As palavras Ixytyby e Ixydinidu são traduzidas por Toral (op. cit., 78-91) como o “pai do povo” e o “líder do povo”. O Deridu também é chamado
○
de Ioló. Os Karajá não traduzem as palavras Ioló e Deridu . Às vezes, o Deridu é associado a entidades sagradas Karajá, ou comparado aos
○
reis das antigas sociedades ocidentais, por ter um poder hereditário. Todas as questões internas da aldeia, de desavenças familiares até
○
deliberações sobre rituais, são decididas em comum acordo entre Ixydinodu e a família do Deridu .
○
○
7
O Hetohoky é um ritual Karajá de iniciação masculina. (Lima Filho, 1994).
○
○
8
Conforme Albert (2001), esse processo ganha progressiva importância a partir dessa década, e só no ano 2000 foram registradas mais de 350 candidaturas
○
indígenas, sendo que 75 deles se elegeram. A maioria desses candidatos concorreu ao cargo de vereador, e um número menor, ao de vice-prefeito.
○
Entre os Karajá, candidaturas em processos elei- Indígena Karajá como uma entidade que pode
○
○
torais de cidades vizinhas ocorrem freqüen- oferecer uma alternativa ao assistencialismo da
○
○
temente, e alguns desses candidatos conseguem Fundação Nacional do Índio (Funai), que atra-
○
○
se eleger, como é o caso mencionado a seguir: vessa, no momento, uma crise por causa dos
○
cortes de verbas no orçamento federal. Assim, é
○
○
[...] E entrei no meio político. Primeiro, me no âmbito da associação, recentemente criada,
○
○
candidatei e fui derrotado. Fiquei com 86 votos que as lideranças Karajá planejam desenvolver
○
[enquanto o outro candidato, também da aldeia] tais projetos.
○
○
ficou com quinze votos [...]. Uma diferença muito
○
grande. Eu acredito que o povo aqui me queria
○
[...] temos a Associação que está em anda-
○
como representante dele. Então, quando houve
○
mento nesta aldeia, eles me elegeram para [...]
○
uma política, novamente, ganhei essa eleição9
assumir. E este trabalho terá condições de fazer
○
com 142 votos (Iwyraru Karajá).
○
alguma coisa. [...]. Através disso aqui poderemos
○
trabalhar e desenvolver o ecoturismo. [...] Temos
○
Na concepção das lideranças Karajá, dispu-
○
○
projeto aprovado pelo Ibama para piscicultura. Tem
tar cargos eleitorais nas esferas regionais e nacio-
○
nais de poder significa que o “índio está ganhan- para fazer roça de mandioca e fazer farinha. Va-
○
○
do espaço”, conquistando direitos e, sobretudo, mos trabalhar em cima disso (Kuhãlue Karajá).
○
tem ninguém na Câmara [...] Eu consegui cesta como principal interlocutor o Estado; para a
○
E assim, esse representante segue destacan- é colocada como pano de fundo para a busca do
○
do estas e outras vantagens, como a abertura de acesso ao mercado, sobretudo de projetos, aber-
○
○
estradas para facilitar o transporte de doentes em tos nacional e internacionalmente, pelas novas
○
○
também são mencionados nos discursos Karajá gurando outros e novos espaços de atuação que
○
9
Quando os relatos foram gravados, Iwyraru, pela terceira vez, disputava o cargo de vereador em São Félix do Araguaia, MT, com outros dois
○
○
candidatos da aldeia. Essas disputas eleitorais nem sempre ocorrem de forma tranqüila. Em alguns momentos acirram rivalidades existentes
○
entre grupos familiares e facções políticas tradicionais da aldeia (Notas de campo, set. 1997).
○
○
10 Albert menciona a existência de 183 organizações indígenas atualmente, só nos estados da Amazônia. De acordo com ele, esse é um fenômeno que
○
tem início no Brasil, a partir do final da década de 1980 e é intensificado nos anos 1990, sendo impulsionado, principalmente, por fatores internos e
○
externos. No primeiro caso, ele menciona a possibilidade de criação dessas associações como pessoas jurídicas a partir da promulgação da Constitui-
○
○
ção Federal de 1988 e do esvaziamento político orçamentário da Funai. No segundo caso, são mencionadas: a globalização das questões relativas ao
○
meio ambiente e aos direitos das minorias, a descentralização da cooperação internacional (reorientada para a sociedade civil e para o desenvolvimento
○
82
PAINEL 1
A questão indígena na sala de aula
○
contarem para os seus filhos”. Todo mundo [os
○
canismos de relacionamento com a sociedade outros] saía brincando e eu ficava sempre com ele.
○
○
majoritária. Em função dessa complexificação E ele contava tudo [...], como é a festa de Hetohoky,
○
a festa do mel, a festa da puba... (Tebukua Karajá).
○
crescente, as formas tradicionais de chefia pas-
○
sam, cada vez mais, a conviver com modalida-
○
○
des alternativas de poder e liderança. Ao mes- E foi graças ao conhecimento cultural acu-
○
mulado ao longo de anos somado às caracterís-
○
mo tempo, as sociedades indígenas passam a
○
adotar critérios e mecanismos distintos para a ticas da sua própria personalidade (“calmo”, 83
○
○
escolha dos seus representantes e a recorrer a “educado”, “generoso”) e aos vínculos familiares
○
○
processos diferenciados de formação, de acordo com detentores de posições de status e prestí-
○
gio, no presente e no passado, que Tebukua é,
○
com o cargo a ser ocupado, com as atividades a
○
serem desempenhadas e com as modalidades de hoje, um dos principais líderes da sua aldeia. De
○
○
poder a ser exercido por cada um deles. acordo com ele, para que uma pessoa se torne
○
cacique geral são dela exigidos ainda outros atri-
○
No que se refere à formação dessas lideran-
○
butos baseados em critérios de idade e em rela-
○
ças e aos critérios adotados para sua escolha, a
○
interpretação dos depoimentos aponta para ções de parentesco. O posto é tradicionalmente
○
○
duas questões principais: por um lado, parece ocupado por velhos, pelos primeiros filhos de
○
internas de poder e, por outro lado, entre for- vado por sua família e pela aldeia, que antece-
○
○
mação escolar e lideranças responsáveis pela deu à sua escolha para o cargo. Nesse processo,
○
Quando o “cacique geral” fala da sua própria de ele ser o caçula e não o primeiro filho.
○
○
periência com a educação escolar. Ele relata um [...] Nesse tempo, o meu tio Maluaré adoeceu
○
Karajá).
○
é assim não. Eu tô velho, daqui a um tempo, eu [...] Aí, chegou o meu outro tio. Wataú:
○
11
Espaço público e ritual interditado a mulheres e a crianças, um dos espaços de socialização dos meninos Karajá.
○
○
12
Os atributos mencionados por Tebukua como necessários ao líder se aproximam daqueles apontados por Clastres. (1978) e por Service (1993: 112-134).
○
do por meio de eleições, nas quais “todo mundo
○
foi cacique, que faleceu. Depois, foi o finado dr.
○
Kuryala, que também foi cacique geral até morrer. vota”, homens ou mulheres.
○
○
Depois disso, foi Arutana que morreu também. O próprio cacique (Tori Wedu), ou “cacique
○
Então, você também serve. Nosso avô Maluá con-
○
de branco”, relata o seu caminho de acesso ao
○
tou muitas coisas para você. Então, você vai ser”. cargo de chefia no momento por ele ocupado:
○
○
Ele me abraçou e aí não tinha mais jeito e eu fi-
○
quei. Foi mais ou menos há uns cinco anos atrás
○
Primeiro, [...] Na época, do Ixãriri, quando ele
○
(Tebukua Karajá).
era cacique, ele me convidou pra ser liderança.14
○
○
Depois o Idjahina, quando assumiu como cacique,
○
A escolha e a sucessão do Deridu obedecem,
○
ele me convidou como vice dele. [Quando fui es-
○
em linhas gerais, aos mesmos critérios anterior- colhido], foi feita uma reunião. Então, eu assisti à
○
○
mente descritos. Baseiam-se no parentesco e na reunião deles para escolher o cacique. A comuni-
○
hereditariedade. O Deridu deve pertencer à últi-
○
dade, os homens, os jovens, as mulheres. Fui es-
○
ma geração de uma família de prestígio, deven- colhido assim (Xiari Karajá).
○
○
do ser também o primeiro filho. ○
Por outro lado, as lideranças que atuarão nas Um professor Karajá, que também atua como
○
○
relações políticas externas devem possuir outras auxiliar das atividades do Tori Wedu, relata a for-
○
○
qualidades de acordo com as atividades a serem ma pela qual explica aos seus alunos como sur-
○
○
desempenhadas por elas. Se vão intermediar o giram as aldeias e como “hoje” os Karajá utili-
○
contato com “a sociedade dos brancos”, devem zam outras formas de poder, de acordo com ele
○
○
to dos códigos que as capacitem a transitar nos e Deridu. Não existiam as lideranças, vice-caci-
○
○
“dois mundos” (do índio Karajá e do não-índio). que e cacique. [...] Mas, nesse tempo [hoje] mu-
○
○
Portanto, nas suas trajetórias de vida, todos pos- dou. Formou igual [na] sociedade branca. Por
○
ência com a escolarização. Mesmo aqueles que para eles [os alunos]. Nesse tempo, [hoje] mudou
○
○
liares tradicionais, são bem distintos dos critéri- do nos moldes tradicionais Karajá, tornando-
○
○
tantes. Assim, se o “cacique geral” e o Deridu nem dentro e nem fora da aldeia, a maioria das
○
○
possuem um poder hereditário, o cacique (de novas lideranças passou por um processo de
○
○
13
Outra característica que distingue essas lideranças, no caso dos Karajá, é o fato de todos eles serem relativamente jovens, tendo em média
○
○
14
○
Assim, após ser escolhido pela comunidade por meio do voto, o cacique escolhe outras pessoas para auxiliar na administração da aldeia, desempe-
○
nhando até mesmo funções burocráticas; nas relações com a Funai e com outras instâncias governamentais, controle de gastos e prestação de contas
○
84
PAINEL 1
A questão indígena na sala de aula
○
anos, depois fui estudar em São Félix, cidade vi-
○
oficial. O grau de escolarização de alguns coin- zinha e, após isso, eu fui para Goiânia estudar.
○
○
cide com a etapa escolar oferecida pela escola Ganhei bolsa de estudos da Funai. [...] Estudei e
○
hoje estou colaborando com a minha turma, que
○
da aldeia, que vai até a 4ª série do Ensino Fun-
○
damental. Outros, após passarem pela escola são os índios. [...]. É através dos estudos que a
○
○
gente tá tomando espaço. Eu, como outros estu-
indígena, prosseguiram os estudos em cidades
○
dantes, que já foram, estudaram e voltaram, ou
○
vizinhas:
○
estão se formando em faculdades. No meu caso, 85
○
não deu. Por falta de apoio. Mas, pelo menos, ter-
○
Eu não tenho muito estudo. [...] Eu estudava
○
minei o 2º grau (Kuhãlue Karajá).
○
naquela época [1972], naquele tempo. Mas, meu
○
estudo é muito pouco. Parei na 4ª série. [...] Parei
○
Um desses líderes diz ter freqüentado a es-
○
porque casei. Naquele tempo, índio quando casa-
○
cola por pouco tempo e lamenta não ter apren-
○
va, parava de estudar [...]. Aprendi a ler e escre-
○
ver com Ijyraru, que é antigo professor [da aldeia]. dido a ler e a escrever, o que implica muitas difi-
○
○
[...] Depois, estudei com professora tori [branco] culdades, pois não dominando a escrita não do-
○
mina o discurso no português padrão:
○
(Xiari Karajá).
○
○
○
Eu estudei aqui mesmo, na minha aldeia. Na ○
Estudei quando era criança [...] Minha mãe não
dava incentivo, nem meu pai. Eu parei onde era alu-
○
professor Ijyraru. Ele é antigo professor da escola no de Ijyraru [1ª série bilíngüe], que inclusive, até
○
○
indígena. Quando terminei aqui o primário, fui para agora, está dando aulas [...]. Fiquei ali mesmo e
○
deia. Tô terminando a 8ª série (Koxieru Karajá). do eu entrei na política e vivi no meio dos brancos,
○
○
tudos em cidades grandes, às vezes não chegan- çando a escrever (Iwyraru Karajá).
○
○
Bem, minha alfabetização começou aqui mes- de acesso ao saber escolarizado e concebem a
○
○
mo, na aldeia [...] Eu estudei o nosso idioma. [...]. escola indígena e o ensino bilíngüe como instru-
○
Aí, fui estudando com dificuldade [...]. Fui passan- dos elementares básicos para etapas escolares
○
○
do de ano em ano e aprendendo. Terminei o pri- posteriores, como também para a preservação
○
fora também, em Goiânia. Morei quatro anos lá. cultura tradicional. Existe uma compreensão de
○
○
[...] Fiz o curso Técnico em Contabilidade e parei que é na infância que esses vínculos culturais são
○
As novas lideranças ressaltam a importância fessores indígenas que a identidade étnica Karajá
○
dade e lamentam a falta de oportunidade e apoio prometida com os interesses indígenas e com os
○
○
Estudei aqui. Estudei indígena durante quatro com as lideranças Karajá, mesmo saindo da al-
○
○
○
○
○
15 Nas escolas Karajá bilíngües, as crianças são alfabetizadas na língua materna e aprendem o português oralmente nas séries iniciais. A
○
16 Os professores indígenas também gozam de grande prestígio em suas comunidades. Às vezes, atuam também como lideranças e, mesmo não
○
ocupando cargos de chefia, são sempre convidados a participar das decisões nas reuniões comunitárias que se referem às relações índios/não-índios.
○
deia para prosseguir estudos em “cidades”, esse O convívio dos Karajá quase cotidiano com
○
○
compromisso garante o retorno dos jovens tão os “brancos” de cidades vizinhas − onde nego-
○
○
logo eles concluam os seus cursos além de uma ciam benefícios para a aldeia, buscam tratamen-
○
○
futura atuação em benefício da comunidade. tos médicos, freqüentam/freqüentaram escolas,
○
vendem peixes e artesanato e adquirem produ-
○
○
Para apoiar em termos de trabalho e defen- tos industrializados para o consumo familiar –
○
○
der a questão indígena [...] Tudo isso depende impõe o domínio da língua “do branco” como
○
dessa escolinha. Todos nós, que estudamos fora, uma necessidade.
○
○
estudamos nessa escolinha. [...]. Os outros tam-
○
○
bém estudaram aí, saíram e retornaram. Todos, [...] eu falo duas línguas e acho que é bom,
○
que estudam aqui, vão para fora e retornam. Por-
○
porque quando eu falo pra branco, eu falo na lín-
○
que nós saímos daqui pensando em ajudar nosso gua dele, no Português, e quando eu falo para o
○
povo. [...]. É por isso que a educação das crianças
○
índio, para a gente da aldeia eu falo o Karajá. Eu
○
[...] é muito importante (Kuhãlue Karajá). acho que é muito bom. Pra nós falar só uma lín-
○
○
○
gua, eu acho que não é bom (Koxieru Karajá).
Assim, a escola indígena deve proporcionar
○
○
aos jovens condições necessárias para a apren- Portanto, para interlocutores diferencia-
○
○
dizagem do português oral e escrito, um requi- dos, devem-se usar línguas diferenciadas. O
○
○
sito necessário à atuação competente nas conhecimento, por mais profundo que seja,
○
cos e um aspecto relevante nas decisões no que Karajá de hoje para os desafios que ele enfren-
○
○
e em duas culturas.
○
alto status à linguagem escrita e ao saber escolar. [...] eu tenho o maior orgulho de ser índio. [...]
○
são enfatizadas, pois aqueles que aprenderam fora estar lá e dançar. Quando eu tô no meio do bran-
○
○
da escola “trocam a língua” e “falam muito enro- co, eu tenho que tentar entrar no costume do bran-
○
○
lado”. Assim, a escola (da aldeia ou da cidade) deve co. Agora, quando eu estou no meio dos índios,
○
formar uma habilidade discursiva na Língua Por- eu sou índio. [...] Então, meu filho tem que apren-
○
○
tuguesa, o que futuramente possibilitará ao alu- der os dois costumes, os dois lados. Não pode
○
○
no a eloqüência do discurso nessa língua. deixar nosso costume e a nossa tradição. [...] Ago-
○
(Iwyraru Karajá).
povo: “as crianças têm que estudar”. Temos que
○
○
para o meu filho. Tenho orgulho do meu filho, pe- Assim, são ressaltadas as práticas tradici-
○
○
quenininho, mas está indo bem no colégio. Acre- onais da cultura nativa como critérios neces-
○
dito que ele vai praticar dos dois lados. Vai saber
○
Antes, quando alguém sabia falar, falava muito tegrar-se no mundo da ‘civilização’” para
○
○
enrolado. Agora, quem aprendeu a falar no colé- “conseguir viver” é enfatizada, ao mesmo
○
gio fala bem. Eu tenho um irmão que fala correta- tempo em que é ressaltado, por outro lado, o
○
○
mente. Ele aprendeu dentro da escola (Iwyraru sentimento de identidade Karajá e de perten-
○
○
86
PAINEL 1
A questão indígena na sala de aula
○
○
sos a partir de uma etnicidade genérica e ju-
○
De acordo com a situação analisada, três as-
○
rídica garantida legalmente pelo Estado Na-
○
pectos são relevantes no que refere à compre- cional. Nesse aspecto, o domínio da língua
○
○
ensão dos processos e das estratégias de convi- oficial falada e escrita é um desses códigos,
○
vência que caracterizam atualmente as intera- talvez considerado o mais precioso no dis-
○
○
ções entre comunidades indígenas e sociedade curso indígena. Nesse sentido, a análise de
○
○
nacional: Bourdieu, que situa a linguagem como um 87
○
campo específico no mercado dos bens sim-
○
• A apropriação de instituições e de discursos
○
da sociedade envolvente pelas sociedades in- bólicos, pode contribuir para uma melhor
○
○
dígenas, bem como a gestão entre estas últi- compreensão das concepções das lideranças
○
mas de agentes mediadores culturais (as Karajá no que se refere à língua dominante.
○
○
quais podem ser compreendidas a partir da Para Bourdieu, o domínio da linguagem no
○
padrão socialmente valorizado bem como
○
noção de brokers, utilizada por Wolf ). Esses
○
agentes atuam como verdadeiros tradutores das regras intuitivas referentes a uma situa-
○
○
culturais dos significados do pensamento ção comunicativa determinada constitui um
○
capital lingüístico que permite a produção de
○
ocidental para as suas comunidades e do sig-
○
nificado dos valores nativos para o resto do discursos ajustados a situações específicas e
○
○
mundo, o que vai resultar num discurso que garante ao seu detentor a manipulação da
○
étnico cosmológico com o discurso baseado Portuguesa na sua versão oficial está, na concep-
○
cional que as velhas lideranças detêm, o que recursos e para a realização de atividades
○
○
no discurso indígena.
○
crita, neste cenário, são percebidos como um por parte das sociedades indígenas, podem ser
○
○
bem altamente valioso que pode permitir o compreendidas como um esforço de amplia-
○
damental importância, uma vez que, subme- a formação das lideranças jovens, cujas fun-
○
○
tidas a processos de intensa interação com a ções se voltam para a intermediação das rela-
○
17
Uma das lideranças entrevistadas afirma que “é por isso que o pessoal está na escola que existe em todo o Brasil para o índio”. Outra
○
ressalta a percepção de que “vale mais é o que está escrito” e que a comunicação oral “não vale para entidades do governo”. Por outro lado,
○
○
○
ro, Ilha do Bananal, TO. Goiânia: UFG, 1998.
○
ALBERT, Bruce. O ouro canibal e a queda do céu: uma críti- LIMA FILHO, M.F. Hetohoky: um rito Karajá. Goiânia: UCG,
○
○
ca xamânica da economia política da natureza. Brasília: 1994.
○
DAN/UnB, 1995. Série Antropologia, n. 174. SERVICE, E. Political power and origin of social complexity.
○
. Associações indígenas e desenvolvimento In: HENDERSON, John S.; NETHERLY, Patricia J. (Eds.).
○
○
sustentável na Amazônia brasileira: Povos indígenas no Configurations of power: holistic anthropolgy in theory
○
Brasil: 1996/2000 . São Paulo/Brasília: Instituto and practice. Ithaca: Cornell University Press, 1993. p.
○
112-134.
○
Socioambiental, 2001. p. 195-217.
○
CLASTRES, P. Troca e poder: filosofia da chefia indígena. A WOLF, Eric. Aspects of Group Relations in a Complex Society:
○
sociedade contra o Estado. Rio de Janeiro: Francisco Mexico. In: Pathways of power: building an anthropology
○
○
Alves, 1978. of the modern world. Berkeley: University of California
○
LEITÃO, R.M. Educação e tradição: o significado da educa- Press. p. 124-38.
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
88
PAINEL 1
A questão indígena na sala de aula
○
○
○
○
Betty Mindlin
○
○
Iama
○
○
○
○
○
○
A riqueza cultural brasileira, com mais de nas, com características muito distintas das que 89
○
○
duzentos povos indígenas e quase o mesmo nú- predominam na sociedade brasileira, exigindo,
○
○
mero de línguas indígenas, é imensa, e hoje se para sua compreensão, um estudo e uma refle-
○
reconhece que as escolas brasileiras deveriam
○
xão mais longos. Basta pensar, por exemplo, nos
○
desde cedo incluir no seu currículo o conteúdo muitos sistemas de parentesco, que por vezes são
○
○
dessa tradição milenar. análogos a modelos matemáticos, tão misterio-
○
○
Houve um grande avanço no país na afirma- sos para os que não são índios e tão fundamen-
○
ção dos direitos dos índios e de sua participação tais e claros para cada povo. Ou nas relações so-
○
○
na cidadania brasileira. Nos últimos vinte anos, ciais igualitárias, sem propriedade, com coope-
○
○
surgiram muitos projetos multiculturais e ração comunitária, com rituais e produção en-
○
○
multilíngües de Educação Indígena, impensáveis trelaçados, com economia, religião, arte e lazer
○
das as iniciativas educacionais entre os índios Ou, ainda, na religião e na feitiçaria, com os má-
○
○
eram de caráter religioso e feitas quase sempre gicos vôos xamânicos, o interesse pelo além e
○
○
A instituição pelo MEC dos Parâmetros Cur- píritos no quotidiano, pelas formas de cura e
○
○
a diversidade cultural, ampliou a consciência da às plantas, às aparições. Há, entre os índios, re-
○
○
formas de vida e de pensamento dos índios. É ções que não entendemos bem. Espanta-nos a
○
○
desde a infância que se criam atitudes de res- sexualidade relativamente mais livre, sem rou-
○
○
peito à diferença e de combate ao racismo e ao pas, sem censura na expressão do amor, do cor-
○
os outros, em vez de ver como ameaçadores ou proibições e repressão. E assim muitos outros
○
○
desprezíveis conteúdos que não são bem com- aspectos parecem surpreendentes. Não se passa
○
○
dição cultural e da situação material dos índios, uma decisão de tradução cultural.
○
○
ou literatura indígena
○
começam a escrever em suas línguas e em por- A questão indígena é vasta, podendo ser exa-
○
○
tuguês e tomam a si a tarefa de expor sua visão minada sob vários ângulos. É sobre o uso da mi-
○
não tem sido fácil promover no sistema educa- Os mitos exercem um fascínio irresistível so-
○
○
e material didático para esse aprendizado. siderados a verdadeira história do mundo pelos
○
○
A dificuldade em parte explica-se pela pró- povos que os contam, uma tradição sagrada, são
○
○
pria complexidade da vida e da cultura indíge- uma maneira artística de começar a penetrar na
○
sociedade indígena e ir aprendendo seus costu- a terra, ao caçar um tatu num buraco, como rela-
○
○
mes.1 tam os Kaiapó e muitos outros povos que falam
○
○
Os temas são variadíssimos, e mesmo alguns línguas do tronco jê. Ou pelo menos as primeiras
○
○
exemplos ao acaso dão idéia do interesse que po- mulheres, no início inexistentes, teriam descido
○
dem suscitar. dos céus, roubando a comida dos homens. Ao
○
○
A criação da humanidade e do mundo apa- serem surpreendidas, casaram-se com eles.
○
○
rece com variações em praticamente todas as Os mitos sobre a origem da mulher são curi-
○
mitologias. Às vezes, a idéia de infinito e de co- osos, indicando que mesmo na sociedade indí-
○
○
meço inconcebível é clara: os Suruí, por exem- gena, mais igualitária que a nossa, os homens
○
○
plo, dizem que os quatro primeiros seres nas- têm precedência. É comum em vários povos di-
○
○
ceram de si mesmos. Simplesmente brotaram. zer-se que não havia mulheres, que os criadores
○
Dois deles, irmãos ou companheiros, é que cri- viviam sozinhos com a mãe. Um deles namora
○
○
aram tudo o que existe, sendo um mais sábio e um oco de árvore (Suruí de Rondônia, por exem-
○
○
o outro provocando desastres e pregando pe- plo), e nove meses depois aparecem duas meni-
○
○
ças; um mais ponderado e o outro malandro e ○
nas, cujo choro a mãe ouve. Nos Aruá, um dos
sem-vergonha, porém muito mais inventivo e dois irmãos copulou com um monte de cupim,
○
○
menos preguiçoso. É como se fossem sementes engravidando a terra da humanidade, que se ori-
○
○
do bem e do mal, mas sem este sentido gina no subterrâneo. Em outros povos, como al-
○
○
maniqueísta de oposição que existe, por exem- guns do Xingu, as mulheres foram feitas de ár-
○
plo, quando falamos de Deus e do Diabo. A du- vores, ou de conchas, pelo grande Criador,
○
○
tos povos. São eles, por exemplo, que extraem a Enquanto a Bíblia nada nos conta sobre a
○
humanidade do subterrâneo, povoando o mun- origem dos órgãos sexuais e da cópula, esse é um
○
○
do, em narrativas como as dos Kadiwéu, dos tema forte na mitologia indígena, podendo dar
○
○
Macurap, dos Tupari, dos Aruá, dos Jabuti e ocasião, em sala de aula, a conversas muito vi-
○
○
muitos outros. Há povos, como os Gavião- vas sobre sexualidade e educação sexual.
○
Ikolen, que acreditam que uma parte da huma- Muitos povos dizem que antigamente os ho-
○
○
nidade ainda está presa debaixo da terra e pode mens é que ficavam menstruados, e por várias
○
○
ser ouvida. É que uma mulher grávida, ao sair, razões essa função passou às mulheres
○
○
ficou entalada em virtude do tamanho da bar- (Macurap, Kaiabi, Suruí, Tupari, Gavião e Arara
○
riga, impedindo a passagem. Os Gavião acredi- de Rondônia, para dar apenas alguns exemplos).
○
○
tam que é possível visitar, ainda hoje, a rocha Contam também que, inicialmente, os homens
○
○
Outros povos têm uma explicação oposta a até que os órgãos sexuais fossem inventados
○
mens teriam vindo do céu, caindo no que é hoje Temas predominantes são a origem da água,
○
○
○
○
○
○
○
1
Saber o que é o mito como forma de pensamento é uma das grandes preocupações de antropólogos e artistas, um debate que seria impossível
○
resumir em tão curto trabalho. Vale a pena, porém, reter uma definição sucinta publicada na Nova Enciclopédia da Folha de S. Paulo: “Mito:
○
narrativa tradicional sobre o passado que freqüentemente inclui elementos religiosos e fantásticos. Alguns tipos de mito são encontrados em
○
todas as sociedades, embora funcionem de diferentes maneiras em cada uma delas. Os mitos podem tentar explicar a origem do universo e da
○
○
humanidade, o desenvolvimento de instituições políticas ou as razões das práticas rituais. Os mitos muitas vezes descrevem as façanhas de
○
deuses, de seres sobrenaturais ou de heróis que têm poderes suficientes para se transfigurar em animais e para executar outras proezas
○
extraordinárias. Antropólogos passaram muito tempo tentando diferenciar mito de história, mas a história pode exercer as mesmas funções do
○
mito, e os dois tipos de narrativa sobre o passado algumas vezes se confundem. Teóricos como Frazer interpretavam os mitos como formas de
○
○
antigos pensamentos científicos ou religiosos. Essa abordagem foi posteriormente criticada por Malinowski, que via o mito como explicação
○
para a ordem social. O historiador romeno norte-americano Mircea Eliade (1907-1986) via o mito como um fenômeno religioso, isto é, como a
○
tentativa de o homem retornar ao ato original da criação. Lévi-Strauss afirmou que a importância do mito não está em seu conteúdo, mas em sua
○
○
estrutura, uma vez que ela revela processos mentais universais. Em Psicologia, os mitos são vistos como uma importante base para o compor-
○
tamento humano. Tanto Freud quanto Jung utilizaram largamente os mitos em seus trabalhos. Quaisquer que sejam as teorias a respeito das
○
origens e das funções dos mitos, esses permanecem fundamentais para a consciência humana.”
○
90
PAINEL 1
A questão indígena na sala de aula
em geral privilégio de algum deus ou espírito so- vôos e andanças mágicas para buscar espíritos e
○
○
vina, ou o roubo do fogo, pertencente a animais convencê-los a curar as doenças. A cura não ter-
○
○
avaros que o escondiam (o urubu, a onça, o sapo, mina na morte – ao contrário, é na fusão de mor-
○
○
o jacaré e muitos outros), o aparecimento dos te e vida, na crença na alma que são encontra-
○
alimentos básicos como mandioca, milho, feijão, dos recursos para prolongar o tempo de vida. A
○
○
a invenção da caça (gente que vai se transfor- poesia e a magia da espiritualidade indígena são
○
○
mando em animais, esses quase sempre tendo um contraponto à homogeneidade religiosa im-
○
sido originariamente seres humanos). posta por doutrinas de religiões monoteístas, 91
○
○
Catástrofes surgem nos enredos: dilúvios, apresentadas como verdade única. Quem ouvir
○
○
incêndios exterminadores, castigos em virtude e imbuir-se do clima das narrativas de pajés aca-
○
○
de incestos (embora muitas vezes a humanida- bará por julgá-los mais atraentes que padres ou
○
de recomece também com um incesto). Fenô- pastores, fará a analogia com pais e mães de san-
○
○
menos cósmicos são explicados, como o to, com fios culturais que guiam grande número
○
○
surgimento da Lua ou do Sol, e há explicações de brasileiros.
○
○
que ligam a origem física à estrutura social. As- A lista de temas e exemplos poderia esten-
○
sim, é freqüente, por exemplo, a lua originar-se der-se por muitas páginas e horas sem diminuir
○
○
de um incesto entre irmão e irmã. o encantamento. O que tem aparecido em ma-
○
○
Muitos mitos contam a separação entre o céu terial publicado, em antologias escolares, é ape-
○
○
e a terra, que no início dos tempos seriam uni- nas uma pequena amostra, um punhado de ter-
○
dos. Parte da humanidade sobe por um cipó, que ra de uma gigantesca montanha.
○
○
Formas de transmissão
○
dos mitos
○
queda do paraíso, do fim da vida perfeita em que Para o aprendizado nas escolas, é preciso in-
○
○
céu e terra eram um só. Entre os Guarani ou os sistir muito em ter qualidade nas narrativas a
○
Tukano, há esteios que seguram o céu, mito que serem divulgadas. Complexas como são, de
○
○
é reproduzido na arquitetura das casas, e em modo algum devem ser simplificadas nem obs-
○
○
muitas mitologias uma grande árvore, que al- curecer a riqueza original que têm nos povos de
○
○
guns seres maléficos ameaçam derrubar, é que origem, com sua substância tão inimaginável
○
segura o céu e impede um desastre final. dentro do repertório que construímos a partir de
○
○
sidade lingüística, com os dois criadores compa- tecnológica e industrial. Preservar a fidelidade
○
○
todos os homens; o outro, o sem-vergonha, uma Os mitos são contados, sua transmissão é
○
○
língua diferente a cada povo que emerge do sub- oral, e esse caráter é precioso em si, não deveria
○
○
terrâneo (tradição dos Macurap, Tupari, Arikapu, ser perdido com a passagem para a escrita. A fa-
○
tendimento entre etnias. Versão da torre de Babel um traço a ser aprendido, multiplicado,
○
○
que atribui diretamente aos deuses a responsa- metamorfoseado em uma nova tradição literá-
○
○
bilidade pela incompreensão universal... ria a ser construída. Vale a pena incorporar ao
○
gena é a que diz respeito à vida depois da morte. dígenas, influenciado pela estrutura de línguas
○
○
ocorre com o além, que não é um domínio mui- Todos esses aspectos, nada fáceis de levar em
○
correm a estrada das almas, em reinos míticos colha do material didático. Ao mesmo tempo, é
○
○
dos céus, das águas ou da floresta, para curar os preciso que a leitura seja compreensível, que os
○
○
mortais. Transformam-se em animais, fazem professores sejam preparados para deixar de lado
○
preconceitos e penetrar em mundos diferenciados. dos Karajá, de João Américo Peret.
○
○
A sexualidade marcante que caracteriza os Os livros de Darcy Ribeiro, como Os Kadiwéu
○
○
mitos é um desafio constante quando se pensa ou Diários índios, têm mitos que poderiam ser
○
○
em difundir as narrativas indígenas nas institui- facilmente lidos nas escolas sem alteração, bas-
○
ções escolares. Na sociedade indígena, há gran- taria editá-los separadamente. Os mitos escritos
○
○
de liberdade no que diz respeito ao corpo, à ex- pelos irmãos Villas Bôas certamente poderiam
○
○
pressão verbal do amor, da fisiologia, dos impul- ser lidos.
○
sos e desejos – pouca ou nenhuma censura, um Muitas outras obras são importantíssimas,
○
○
clima lúdico, de brincadeiras e risadas. Atitudes mas de leitura bastante difícil, como as que exis-
○
○
que podem entrar em choque com o moralismo tem sobre os Guarani ou sobre os Tukano, como
○
○
de grande parte do sistema educacional – tão o livro de Berta Ribeiro ou o de Stradelli. Há mui-
○
falso quando se pensa na violência da cultura de tos mitos esparsos em teses e monografias sobre
○
○
massas. É preciso inventar formas de expandir e os índios, como as histórias Yanomami documen-
○
○
manter a liberdade, em vez de banir a diferença. tadas por Bruce Albert ou Jacques Lizot, mas que
○
○
Para as crianças, as histórias engraçadas sobre o ○
não foram publicadas em português e com o tem-
corpo humano ou sobre a sexualidade exercem po poderiam aparecer em antologias.
○
○
grande fascínio e abrem portas para conversas e O importante seria realizar oficinas com os
○
○
de antropólogos, são excelentes os mitos dos COSTA E SILVA, Alberto da. Antologia de lendas do índio
○
Edusp/Iama, 1993.
○
bem os direitos autorais, podem parecer longas MINDLIN, Betty e narradores indígenas. Vozes da origem.
○
ou complicadas demais, mas penso que a maio- São Paulo: Ática/Iama, 1996.
○
○
ria dos mitos é de fácil compreensão para crian- . Moqueca de maridos. Rio de Janeiro: Rosa
○
pos/Record, 1999.
○
preparados para explicá-lo, poderia ter utilização. Tsorobá e outros narradores indígenas. Couro dos espí-
○
○
A última antologia, O primeiro homem, que re- ritos. São Paulo: Senac/Terceiro Nome, 2001.
○
produz textos e não é, como as outras, uma pes- PERET, João Américo. Mitos e lendas Karajá, Inã Son Wera.
○
○
preensão. Um livro encantador, embora difícil de Xavante. Trad. de Paulo Supretaprã Xavante e Jurandir
○
92
PAINEL 1
A questão indígena na sala de aula
○
SHENIPABU MIYUI. História dos antigos. (Autoria coletiva NIMUENDAJU UNKEL, Curt. As lendas da criação e des-
○
da Organização dos Professores Indígenas do Acre) 2. truição do mundo como fundamentos da religião dos
○
○
ed. rev. Belo Horizonte: Ed.UFMG, 2000. Apapocuva-Guarani. São Paulo: Hucitec/Edusp, 1987.
○
VILLAS BÔAS, Orlando; VILLAS BÔAS, Cláudio. Xingu, os NUNES PEREIRA. Moronguêtá, um Decameron indígena. Rio
○
índios, seus mitos. Rio de Janeiro: Zahar, 1972.
○
de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967. 2 v.
○
RIBEIRO, Darcy. Kadiwéu. Petrópolis, Vozes, 1980.
○
___________. Diários índios. Os Urubus-Kaapor. São Paulo:
○
Algumas fontes importantes
○
Companhia das Letras, 1996.
○
RODRIGUES, J. Barboza. Poranduba amazonense. Rio de 93
○
ABREU, Capistrano de. Rã-txa hu-ni-ku-i. Rio de Janeiro:
○
Livraria Briguiet, 1941. Janeiro: Typographia Leuzinger, 1890.
○
STRADELLI, Ermanno. “La leggenda del Jurupary” e outras
○
AGOSTINHO, Pedro. Mitos e outras narrativas Kamaiurá. Sal-
○
vador: Universidade Federal da Bahia, 1974. lendas amazônicas. São Paulo: Instituto Cultural Ítalo-
○
Brasileiro. 1964. Caderno 4.
○
CADOGAN, León. Ayvu Rapyta. Textos míticos de los Mbyá-
○
Guaraní del Guairá. Edição preparada por Bartomeu UMÚSIN PANLÕN KUMU; TOLAMÃN KENHÍRI. Antes o mun-
○
do não existia. São Paulo: Cultura, 1980. Introdução de
○
Melià. Assunção/Paraguai: Ceaduc-Cepag, 1992.
○
CLASTRES, Pierre. A fala sagrada. Campinas: Papirus, 1990. Berta G. Ribeiro.
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
Resumo
○
○
○
○
Este trabalho discute as representações sobre temática indígena em sala de aula. Recupera, ainda,
○
○
o índio construídas pela escola no Brasil, formulan- o discurso feito pelos índios sobre a escola, desta-
○
do algumas indagações relativas à imagem do ín- cando a narração mítica andina, que focaliza essa
○
○
dio difundida em sala de aula após a promulgação instituição como “devoradora” da identidade étnica
○
○
da Constituição Federal (1988) e depois da publi- e da própria identidade nacional. Enfatiza, finalmen-
○
cação dos Parâmetros Curriculares Nacionais (1997- te, alguns equívocos sobre os índios que a escola
○
○
1998). Toma como referência para suas reflexões a continua veiculando, o que poderia deixar de ocor-
○
○
prática dos professores de alguns municípios do Rio rer se o caráter intercultural presente nas escolas in-
○
de Janeiro, com os quais o autor trabalhou nos últi- dígenas fosse ampliado para todo o sistema nacio-
○
○
* O autor é ex-professor da Universidad Nacional de Educación e da PUC/Peru (Lima-Peru, 1974-1976) e da Universidade do Amazonas
○
(Manaus, 1977-1986). Lecionou, entre outras, as disciplinas Etno-história, História do Amazonas e Etnoeducação. Fundou e foi o primeiro
○
editor do Porantim , jornal do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) dedicado à causa indígena. Atualmente, é professor da Uni-Rio e da
○
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), onde coordena desde 1992 o Programa de Estudos dos Povos Indígenas. Realizou seus
○
○
estudos de graduação na Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (1966-1969) e de pós-graduação no Irfed
○
(1970-1973), em Paris, e na École des Hautes Études en Sciences Sociales (1980-1983). Publicou artigos em revistas especializadas
○
nacionais e estrangeiras (França, Alemanha, Japão, México, Venezuela e Peru) relacionados à temática de história indígena, e coordenou
○
vários projetos de pesquisa, entre os quais o Guia de Fontes para a História Indígena e do Indigenismo em arquivos do Rio de Janeiro,
○
○
○
○
questão indígena na sala de aula. Dessa forma,
○
Nas aldeias dos Guarani Mbyá, localizadas
○
nos últimos três anos, o Pró-Índio da UERJ re-
○
nos municípios de Angra dos Reis e Parati, RJ,
○
alizou inúmeras oficinas, começando justa-
○
funcionam três escolas indígenas, cujas ativi-
mente com os professores não-índios de An-
○
dades são apoiadas, entre outras instituições,
○
gra e Parati, cuja população tem contato siste-
○
pela Universidade do Estado do Rio de Janei-
○
mático com os Guarani. O resultado desse tra-
○
ro. Preocupada com a formação de professo-
balho permitiu-nos elaborar algumas refle-
○
res indígenas, a UERJ editou, em convênio com
○
xões, que aqui apresentamos para o debate,
○
o FNDE, um livro paradidático intitulado Os
○
discutindo tanto a imagem do índio construída
○
aldeamentos indígenas do Rio de Janeiro (Freire
○
pela escola como a representação da escola
○
e Malheiros, 1997), com base em documenta-
elaborada pelos índios.
○
ção manuscr ita encontrada em arquivos
○
○
fluminenses pelos pesquisadores do Programa
○
de Estudos dos Povos Indígenas (Pró-Índio). ○
○
A imagem do índio
construída pela escola
○
tórica dos índios para a cultura regional. Por A quase totalidade da população brasileira
○
○
isso, sua distribuição começou pelas escolas jamais visitou uma aldeia indígena nem teve
○
indígenas e pelos professores Guarani. Ao re- contato pessoal com qualquer índio. A repre-
○
○
ceber seu exemplar, o responsável pela Esco- sentação que cada brasileiro tem do índio,
○
○
la Kyringue Yvotyty, Algemiro Poty, depois de como regra geral, é aquela que lhe foi transmi-
○
○
uma rápida leitura, agradeceu educadamente, tida na sala de aula pelo professor, com a aju-
○
ironia, que o livro fosse distribuído às esco- mídia. Dessa forma, cabe à escola uma grande
○
○
las do “Juruá” (do branco), onde poderia ser responsabilidade na construção da imagem
○
○
O que está escrito neste livro o nosso aluno tras, da matriz cultural indígena.
○
○
já sabe; ele aprendeu a ter orgulho de ser Sobre esse papel da escola, foram realiza-
○
vender artesanato em Angra ou em Parati, ele em 1987 e o segundo em 1995 – que constitu-
○
○
desaprende lá tudo o que aprendeu aqui. Essa em referências obrigatórias para o tema. No
○
se período.
○
dos brancos, pra ver se eles aprendem a conhe- ganizado por Aracy Lopes da Silva, da Comis-
○
○
cer o índio e a tratar a gente com respeito. são Pró-Índio de São Paulo (Silva, 1987), con-
○
Os argumentos de Algemiro Poty foram tão propostas para um novo tratamento da ques-
○
○
convincentes que a UERJ decidiu seguir a re- tão, formuladas por nove pesquisadores. A
○
○
comendação dele, criando novas atividades de conclusão é que, embora não exista “uma ima-
○
extensão destinadas a professores do Ensino gem única do índio no livro didático”, o que
○
○
94
PAINEL 1
A questão indígena na sala de aula
○
○
inexatas, detalhes exóticos e incompreensíveis, mais detalhado para avaliar se essas propos-
○
○
projeções de valores estranhos”, todos eles tas, de alguma forma, foram traduzidas em
○
○
apresentando o índio “como ser inferior” (Sil- ações concretas, com resultados palpáveis so-
○
va, 1987: 40 e 89). bre a imagem do índio, que é veiculada em sala
○
○
Oito anos depois, apesar das novas diretri- de aula. Essa avaliação, evidentemente, não
○
○
zes constitucionais, a situação não havia mu- pode se limitar ao registro das mudanças no
○
dado substancialmente. O segundo diagnósti- livro didático, na estrutura curricular, na 95
○
○
co, organizado pelo Mari – Grupo de Educa- metodologia de ensino ou na conduta do pro-
○
○
ção Indígena da USP –, com artigos de 22 es- fessor, mas deve prospectar entre os próprios
○
○
pecialistas, reafirma o que havia sido assina- índios, pois eles – quando em situação de con-
○
lado anteriormente. Constatou-se “a amplia- tato – constituem os indicadores mais interes-
○
○
ção, nos últimos anos, do número daqueles santes sobre como o sistema nacional de edu-
○
○
que escrevem sobre os índios”, o que não con- cação está se comportando em relação à ques-
○
○
tribuiu, no entanto, para alterar o “quadro de tão indígena. Eles sabem, pelo “olhar do bran-
○
desinformação, marcado pelo preconceito e co” que com eles interage, se essa imagem con-
○
○
pela discriminação”, porque “os manuais didá- tinua sendo preconceituosa ou não.
○
○
ticos ainda tratam os índios, suas sociedades No caso muito particular dos dois muni-
○
○
e seu papel na história a partir de formulações cípios do Rio de Janeiro onde atualmente exis-
○
esquemáticas e baseadas em pressupostos ul- tem aldeias indígenas – Angra dos Reis e Parati
○
○
trapassados” (Silva e Grupioni, 1995: 30, 483). –, algum esforço foi feito para a atualização dos
○
○
Os dois diagnósticos destacam o fato de que, professores e para um contato direto e mais
○
no Brasil, a escola tem contribuído historica- qualificado dos seus alunos com essas aldeias.
○
○
mente para apagar a participação dos diferen- Apesar disso, vários índios, como Algemiro
○
○
tes povos indígenas na formação cultural bra- Poty, tendo como base a sua experiência pes-
○
○
sileira, com conseqüências graves não apenas soal, continuam desconfiando da escola bra-
○
para a sociedade nacional, mas também para sileira e do papel que ela desempenha, hoje,
○
○
os próprios índios que com ela hoje interagem. no Brasil, o que parece confirmar as suspeitas
○
○
Depois desses dois balanços, foram elabo- já manifestadas por índios de outras regiões do
○
○
cendo o caráter pluricultural da sociedade bra- Kaingang Bruno Ferreira, integrante do Comi-
○
de etnia” (SEF, 1997). Sugerem, por exemplo, no [...] os índios não sabem para que serve uma
○
dígenas da região e que, ali onde existem aldei- zer lá; se quer melhorar ou quer piorar, ou quer
○
○
as indígenas, se realizem visitas a elas, para co- afundar ou quer acabar ou quer exterminar os
○
nhecer melhor “o seu modo de vida social, eco- índios, ninguém sabe. Mas quem coloca a esco-
○
○
nômico, cultural, político, religioso e artístico” la sabe o que quer com a escola (D’Angelis e
○
○
○
○
observada em outros discursos, como na conhe- 1973: 244).
○
○
cida carta em que os índios norte-americanos
○
○
das Seis Nações agradecem, mas rejeitam as De acordo com essa narração mítica, o Cria-
○
vagas oferecidas no Colégio de Williamsburgo dor do mundo, depois de completar sua obra, teve
○
○
pelo governo da Virgínia em 1774, porque – dois filhos. O primogênito, chamado Inka, casou-
○
se com a Mãe Terra – a Mama Pacha – com quem
○
como afirmaram – tinham concepções diferen-
○
teve também dois filhos, a quem ensinou a falar,
tes sobre educação:
○
○
a cultivar a terra e a domesticar os animais, sem
○
necessidade da escola. Com isso, despertou
○
Muitos dos nossos jovens foram educados
○
muita inveja em seu irmão mais novo, chamado
○
por vossos professores nos colégios das pro-
○
Sucristo, que, cheio de ódio, matou o Inka e es-
víncias setentrionais e aprenderam as vossas
○
pancou Mama Pacha, cortando-lhe o pescoço e
○
ciências. Mas, quando eles regressaram para
○
ferindo-a mortalmente.
nós, já não eram ligeiros na corrida, esquece-
○
As duas mortes foram comemoradas por
○
ram a maneira de viver a vida da floresta e tor- ○
Pacha.
aos nobres senhores da Virgínia que nos envi-
○
bre as formas como essa instituição se tem re- ram porque compreenderam que se tratava de
○
Embora tenha sido produzido por cultura bas- Machu era devorá-los.
○
○
tório brasileiro, esse discurso situa a escola A raiz da rejeição à escola está nesse mo-
○
dígenas, revela o quanto os índios se sentem mas clássicos tradicionais e coletivos da mito-
○
○
enganados por ela e destaca, até mesmo, a fun- logia andina estão presentes nesse relato, cuja
○
○
ção aniquiladora do livro didático. visão sobre a escola pode, no entanto, ser ge-
○
da região de Ayacucho (Peru) que vem sendo Todos esses discursos formulados pelos ín-
○
○
transmitida desde o período colonial – preten- dios, míticos ou não, acabam representando a
○
○
de explicar as origens e as causas do medo e, escola como “devoradora” não apenas da iden-
○
freqüentemente, em relação à escola. Uma de cional, uma vez que ela oculta as matrizes for-
○
○
suas versões foi narrada, em quéchua, por madoras desta última e falsifica sua procedên-
○
○
Isidro Huamani e registrada em 1971 pelo an- cia. No caso do mito andino, com a promessa
○
96
PAINEL 1
A questão indígena na sala de aula
de contar-lhes a verdade sobre seus pais e so- tados de forma preconceituosa pela escola
○
○
bre suas origens, a escola atrai os que estão em e pela sociedade brasileira. Os conhecimen-
○
○
busca dessa informação, mas o que faz, na re- tos indígenas são desprezados, como se fos-
○
sem a negação da ciência e da objetividade.
○
alidade, é criar uma armadilha para apagar a
○
memória e organizar o esquecimento coletivo, O preconceito, reproduzido pela escola, tem
○
○
de forma planejada. Dessa maneira, exerce um impedido que a sociedade brasileira usufrua
○
do legado cultural acumulado durante mi-
○
controle quase absoluto sobre a memória, uti-
○
lênios, inclusive da arte e da literatura indí- 97
lizando a escrita como instrumento para legi-
○
genas. A sofisticada literatura Guarani, por
○
timar os enganos sobre o passado, a genea-
○
exemplo, continua fora da sala de aula. As
○
logia, os ancestrais, as raízes culturais, enfim,
○
várias formas de narrativa e de poesia indí-
○
a própria identidade.
gena, transmitidas oralmente, não são con-
○
○
sideradas como parte da história da litera-
○
Os enganos da sala de aula
○
tura nacional, não são veiculadas nas esco-
○
las, não são reconhecidas e valorizadas.
○
No Brasil, sobre os índios, existem alguns
○
○
equívocos profundamente enraizados na cons- 2º equívoco: culturas congeladas. O segun-
○
do equívoco é o congelamento das culturas
○
ciência da sociedade e dos professores que dela
○
○ indígenas. A escola continua reproduzindo
fazem parte. Eles já foram identificados e dis-
○
1997 aos dias atuais (Freire, 2000). índio de carne e osso que vende artesanato
○
indígenas produziram no passado e conti- não trabalha aquela idéia defendida por
○
○
nuam produzindo no presente saberes, ci- Octávio Paz de que “as civilizações não são
○
sica, religião, mas o desconhecimento dis- nhuma cultura vive isolada, fechada entre
○
○
vas e atrasadas. De todos os equívocos di- vos. Às vezes essas formas de contato são
○
○
fundidos pela escola e pela mídia, esse tal- conflituosas, violentas. Às vezes, são coope-
○
sendo vistas como línguas “inferiores”, “po- mutuamente. Mas a escola não trabalha
○
religiões. Não importa se os Guarani Mbyá nos permite pensar e entender esse proces-
○
○
são considerados pelos estudiosos como os so, entendendo por interculturalidade não
○
nal de Angra e Parati continua vendo essas do de uma cultura para outra, mas uma
○
○
mente, pela escola, que ignora como a reli- sem que isso implique abandono das pró-
○
○
gião tradicional Guarani é responsável pelo prias tradições. Essa liberdade de transitar
○
tolerância, da generosidade e da solidarie- fruir, a escola não concede aos índios, quan-
○
○
○
○
existir uma literatura expressiva em sen- timo, o quinto equívoco difundido ainda
○
○
tido contrário, a escola continua transmi- hoje pela escola é não considerar a existên-
○
tindo para a maioria dos brasileiros a cia do índio na formação da identidade na-
○
○
imagem de que os índios constituem um cional. Há quinhentos anos, não existia no
○
bloco único, com a mesma cultura, com- planeta Terra um povo com o nome de povo
○
○
partilhando as mesmas crenças, a mesma brasileiro. Esse povo novo foi se formando
○
○
língua, os mesmos costumes. Hoje, vivem nos últimos cinco séculos com a contribui-
○
no Brasil cerca de 220 etnias, falando 188 ção, entre outras, de três grandes matrizes:
○
○
línguas diferentes. Cada povo desse tem européias, africanas e indígenas. A tendên-
○
○
sua língua, sua religião, sua arte, sua ci- cia da escola continua sendo identificar o
○
ência, sua dinâmica histórica própria, brasileiro apenas com a matriz européia,
○
○
que são diferentes de um povo para ou- ignorando as contribuições das culturas
○
tro. No entanto, essa identidade étnica africanas e indígenas na sua formação.
○
○
particular é diluída dentro da classifica- Dessa forma, essa visão escolar acaba re-
○
○
ção genérica de “índio”. Tanto o profes- ○
duzindo e empobrecendo o Brasil, porque
sor como os livros didáticos não distin- apresenta aquilo que é apenas uma parte,
○
○
um índio, Jorge Terena escreveu que uma tuem um indicador extremamente sensível da
○
○
das conseqüências mais graves do colo- natureza da sociedade que com elas interage.
○
○
as como obstáculo à modernidade e ao aí que o Brasil mostra a sua cara. Nesse senti-
○
○
[Eles] vêem a tradição viva como primitiva, “o diferente”, mas implica conduzir as indaga-
○
○
porque não segue o paradigma ocidental. As- ções e as reflexões sobre a própria sociedade
○
○
Os índios, é verdade, estão encravados no não é só a escola indígena que deve ser
○
derno, de hoje, e não é possível imaginar- educação. Da mesma forma que os índios –
○
○
mos o Brasil no futuro sem a riqueza das graças à proposta de um currículo inter-
○
○
culturas indígenas. Mas esse aspecto é ig- cultural em suas escolas – são orientados para
○
98
PAINEL 1
A questão indígena na sala de aula
○
. Parâmetros Curriculares Nacionais: 5a a 8a
○
habilitados para um contato qualificado com séries. Brasília, 1998.
○
○
. Parâmetros em Ação. Programa de desen-
os índios se freqüentassem uma escola inter-
○
volvimento profissional continuado. Brasília, 1999. v. 1
○
cultural, sem a qual não é possível sequer um
○
e 2.
conhecimento mais profundo da própria
○
. Referenciais para formação de professores.
○
identidade nacional.
○
Brasília, 1999.
○
ORTIZ RESCANIERE, Alejandro. El mito de la escuela. In:
○
99
○
OSSIO A.; Juan M. (Org.). Ideologia mesiánica del mun-
○
do andino. 2. ed. Lima: Edición de Ignacio Prado Pastor,
○
Bibliografia
○
1973. p. 238-250 .
○
SILVA, Aracy Lopes (Org.). A questão indígena na sala de
○
D’ANGELIS, W.; VEIGA, Juracilda. Leitura e escrita em es-
○
aula. Subsídios para professores de 1º e 2º graus. São
○
colas indígenas. Campinas: Mercado de Letras, 1997. Paulo: Brasiliense, 1987.
○
FREIRE, José R. Bessa. Cinco idéias equivocadas sobre o SILVA, Aracy L.; GRUPIONI, Luís D. (Orgs.). A temática in-
○
○
índio. Manaus: Cenesch (Setor de Publicações). Série dígena na escola. Novos subsídios para professores de
○
Conferências, Estudos e Palestras. n. 1, p. 17-34, set.
○
1º e 2º graus. Brasília: MEC/Mari/Unesco, 1995.
○
2000. TERENA, Jorge. A biodiversidade do ponto de vista de um
○
FREIRE, José R. Bessa; MALHEIROS, Márcia. Os
○
índio. Manaus, 1997 (Mimeo). Comunicação apresenta-
○
aldeamentos indígenas do Rio de Janeiro. Rio de Ja- ○ da no Seminário de Lideranças Indígenas promovido
neiro: UERJ/MEC/FNDE, 1997.
○
pela Coiab.
○
MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. Secretaria de Educação Fun- VANDERWERT, W. C. Indian oratory: Famous speeches by
○
AS EXPERIÊNCIAS DOS
CONSELHOS ESTADUAIS DE
EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA
José Ademir Gomes e Jecinaldo Barbosa Cabral
101
Educação escolar indígena
○
○
○
é realidade no Amazonas
○
○
○
○
○
José Ademir Gomes e Jecinaldo Barbosa Cabral
○
○
SEPI/AM e CEEEI/AM
○
○
○
○
○
○
○
○
○
O estado do Amazonas possui a maior po- Além do CEEEI, o governador criou a Gerência
○
○
pulação indígena do país. De fato, os dados es- de Educação Escolar Indígena, na Secretaria de
○
○
tatísticos comprovam as características e as ri- Educação do Estado (Seduc) que desenvolve um
○
○
quezas étnicas do Amazonas, onde vive 30% de ○
trabalho articulado com o Conselho. Com isso,
toda a população indígena existente no Brasil, têm-se promovido outras conquistas importantes
○
○
hoje estimada em 330 mil índios. Um universo no que diz respeito à escolarização dos povos in-
○
○
cultural diversificado, com 62 etnias diferentes, dígenas e tem-se dado ao trabalho de educação
○
○
que marca todo um processo de luta pela sobre- escolar indígena desenvolvido no estado do Ama-
○
vivência empreendida durante séculos por esses zonas visibilidade como uma das principais ações
○
○
povos diante do contato com o não-índio. da política pública governamental. É nesse contex-
○
○
É na valorização desse rico contexto étnico to que está inserido o processo de discussão, con-
○
○
que reside toda a preocupação do governo do es- sulta às comunidades indígenas e formulação teó-
○
tado do Amazonas em procurar mecanismos e rica, que deu ao Amazonas o posto de primeiro
○
○
não medir esforços para que se institua uma po- estado a aprovar, em fevereiro de 2001, a regula-
○
○
des indígenas presentes em nosso estado. Essa Indígena no âmbito da educação básica do esta-
○
preocupação tornou-se evidente quando o gover- do, fato que contou com a participação de repre-
○
○
Indígena (CEEEI/AM), em atendimento a uma Há alguns anos, era difícil pensar na constru-
○
antiga reivindicação das comunidades indígenas. ção de um modelo de escola para as comunidades
○
○
Dos seus 27 conselheiros, a maioria é composta indígenas sem que esse não interviesse na organi-
○
○
por lideranças indígenas. Esses conselheiros in- zação desses povos. No entanto, os esforços e as
○
cional de sua comunidade, como também o apoio zação etnocultural dos povos indígenas. Nesse con-
○
para a realização de encontros pedagógicos. Isso texto é que o Conselho vem prestando consultoria
○
○
tem dado grande importância e representati- e assessoria técnica sobre as questões relativas às
○
○
vidade aos conselheiros indígenas. Essa repre- ações e aos projetos de educação escolar desen-
○
○
sentatividade também só foi possível por meio de volvidos com as comunidades indígenas do esta-
○
um processo de escolha em que a própria comu- do, além de deliberar sobre temas relacionados ao
○
○
nidade indígena elege seu representante, e a di- assunto, o que possibilitou a obtenção de avanços
○
○
visão por sub-regiões, como Alto e Médio Rio concretos, tornando-o uma referência nacional. No
○
○
Solimões, Alto, Médio e Baixo Rio Madeira, Alto e entanto, para garantir uma educação escolar de
○
Médio Rio Negro e Baixo Rio Amazonas, propor- qualidade, intercultural, bilíngüe, específica e di-
○
○
ciona uma melhor representação dos vários gru- ferenciada aos povos indígenas, o estado precisa-
○
○
pos étnicos existentes no Amazonas. va de uma estrutura maior que viesse dar respaldo
○
102
PAINEL 2
As experiências dos Conselhos Estaduais de Educação Escolar Indígena
○
imprescindível a criação de condições de sobrevi-
○
ca voltada à valorização e ao respeito a esses po- vência cultural de antigas tradições dos povos in-
○
○
vos, possibilitando não só a escolarização, mas dígenas por meio de um trabalho de registro
○
também o desenvolvimento de projetos econômi-
○
etnográfico e lingüístico dessa realidade específi-
○
cos sustentáveis para as comunidades indígenas, ca. Isso requer que se firme um novo pacto social
○
○
o que fortalece a luta pela autonomia dessas co- com as comunidades indígenas de nosso estado,
○
○
munidades. Com essa finalidade, foi criada a Fun- resgatando seus direitos fundamentais e garantin-
○
dação Estadual de Política Indigenista do Amazo- 103
○
do o acesso à escola como um instrumento forma-
○
nas (Fepi), que é a responsável pela promoção da dor da cidadania indígena.
○
○
política indigenista do estado, em parceria com as Todas essas conquistas ressaltam a legitimi-
○
comunidades indígenas e as entidades governa-
○
dade do processo de reconstrução da memória
○
mentais e não-governamentais. Essa parceria cri- histórico-cultural dos índios. Nada mais legíti-
○
○
ará condições favoráveis para que o Amazonas mo do que a eleição de um indígena para a pre-
○
○
consiga realizar atividades voltadas à preservação sidência desse Conselho, fato que tem dado no-
○
de valores culturais e históricos desses povos tra-
○
toriedade ao trabalho de formulação das políti-
○
dicionais. cas públicas do Amazonas, uma vez que se pre-
○
○
Os avanços obtidos no campo da educação tende consolidar na esfera governamental do
○
○
escolar indígena permitirão que o Amazonas, até estado a parceria com as comunidades indíge-
○
citando 800 professores indígenas do estado. Uma política indigenista do estado e demonstrando
○
○
conquista que beneficiará, diretamente, mais de claramente a intenção do Amazonas em não atu-
○
lientar que 38% das escolas indígenas existentes sociocultural dos povos indígenas.
○
○
hoje no país estão localizadas no estado do Ama- Nesse contexto de articulação e de represen-
○
o governo do estado e a Universidade Federal do dígena – que no estado ganhou grande reforço após
○
○
Amazonas permitirá que 400 professores dos mu- a aprovação da resolução que regulamenta a esco-
○
graduação em Educação Indígena. Mas para aten- titucional específica para a proposição de uma re-
○
○
der a toda essa demanda e garantir um ensino de solução estadual que regulamente a escolha e o
○
vencer alguns entraves burocráticos da adminis- lorizando, sobretudo, a experiência adquirida com
○
○
tração federal, possibilitando a inserção das lide- o Projeto de Formação de Professores Indígenas
○
○
ranças indígenas nos órgãos de deliberação, como Pira-Yawara, gerenciado pela Seduc. Para tanto,
○
ção de fundo de incentivo à publicação de livros cientização tem sido feito com as prefeituras mu-
○
○
didáticos para as escolas indígenas. Uma vez que nicipais e com os professores indígenas a fim de
○
○
resgate etnocultural desses povos, são necessári- em favor da dignidade e do respeito à cultura e às
○
○
línguas faladas. A evidência de que, ao longo do sa história e em reconhecimento aos nossos direi-
○
○
tempo, elas têm perdido espaço diante das trans- tos fundamentais, no Amazonas, a Educação Indí-
○
○
○
○
○
Indígena de Mato Grosso:
○
○
○
um espaço de cidadania
○
○
○
○
○
Elias Renato da Silva Januário*
○
Unemat/MT
○
○
○
○
○
○
○
Resumo
○
○
○
○
Passados mais de dez anos de sua promulga- co, cujas ações estão garantidas na Constituição Es-
○
○
indígenas em relação à sociedade envolvente, como importante papel de orientação e articulação dos pro-
○
○
está previsto em seu texto legal. gramas referentes à Educação Escolar Indígena no
○
constatamos os maiores avanços, com a implemen- O CEI/MT configura-se em uma instância de luta
○
○
tação de políticas públicas que têm garantido a rea- dos povos indígenas pela participação efetiva nas
○
lização de projetos voltados para a formação espe- ações da Educação Escolar Indígena implementada
○
○
cífica de professores indígenas e a organização de nas aldeias, dialogando com o poder público e com a
○
○
Mato Grosso – CEI/MT, criado em 1995, é um órgão do movimento dos professores indígenas por uma
○
○
estado com os povos indígenas, sob os mais di- Passados mais de dez anos de sua promul-
○
○
ferentes pontos de vista, particularmente no gação, a Constituição Federal ainda não viu re-
○
que diz respeito à educação escolar, que passa alizadas as conquistas que assegurem os direi-
○
○
a ter um novo papel com o fim da política que tos dos povos indígenas em relação à socieda-
○
○
previa como meta a assimilação dos índios à so- de envolvente, como está previsto em seu tex-
○
○
proposta de educação escolar voltada para o re- Foi no campo da Educação Escolar Indíge-
○
○
conhecimento dos índios, garantindo a utiliza- na que constatamos os maiores avanços, com
○
○
ção de suas línguas maternas no Ensino Fun- a implementação de políticas públicas que têm
○
○
damental e o respeito aos seus próprios proces- garantido a realização de projetos voltados para
○
Destaca-se como o primeiro texto legal que e a organização de instâncias colegiadas de ges-
○
○
cultural, respeitando a diferença e afastando- Estado brasileiro e os povos indígenas teve am-
○
○
○
○
○
○
104
PAINEL 2
As experiências dos Conselhos Estaduais de Educação Escolar Indígena
plos reflexos no contexto da Educação Escolar assessoramento técnico, cuja finalidade princi-
○
○
Indígena, abrindo novas possibilidades de se pal é promover o desenvolvimento das ações
○
○
pensar a escola indígena longe das doutrinas referentes à Educação Escolar Indígena em to-
○
positivistas, civilizatórias e evangelizadoras.
○
dos os níveis e modalidades de ensino. A com-
○
A LDB/96 veio reforçar a legislação educa- posição do CEI/MT é interinstitucional de ação
○
○
cional disposta na Constituição Federal, acen- conjunta, vinculado à Coordenadoria de Políti-
○
○
tuando a diferenciação da escola indígena das ca Pedagógica (CPP), da Secretaria de Estado de
○
demais escolas do sistema educacional brasi- Educação de Mato Grosso. É constituído por 105
○
○
leiro e apoiando uma educação com calendári- representantes de órgãos e entidades públicas
○
○
os adequados à realidade de cada povo, enfim, (Seduc, CEE/MT, Funai, Caiemt, Undime,
○
uma educação cidadã.
○
Unemat, UFMT, ONGs) e pelos representantes
○
Ainda que se tenha conseguido assegurar indígenas (12 titulares e 12 suplentes), todos
○
○
avanços na definição de políticas, no estabeleci- professores de Escolas Indígenas. As reuniões
○
○
mento de diretrizes e metas, bem como na am- plenárias do CEI/MT acontecem duas vezes a
○
pliação da oferta de vagas e de programas edu-
○
cada semestre, nas quais são discutidas as ques-
○
cacionais que respeitem as especificidades dos tões trazidas pelos conselheiros, além dos pro-
○
○
indígenas, muito ainda há por fazer. No âmbito jetos e dos programas na área de Educação Es-
○
○
administrativo, por exemplo, muitas ações pre- colar Indígena desenvolvidos no estado.
○
das escolas indígenas no sistema educacional do acompanhamento e a avaliação das ações refe-
○
○
país, especialmente no que diz respeito à espe- rentes à educação escolar nos municípios; o
○
○
técnicos habilitados nas mais diferentes esferas to das diretrizes que garantam uma educação
○
○
Desde meados dos anos de 1960, inúmeras fundamentos que irão nortear o Conselho Es-
○
○
ram-se presentes no cenário mato-grossense, a cimento das escolas, dos cursos e dos projetos
○
em Mato Grosso, o Núcleo de Educação Esco- O Conselho Indígena, nos seus seis anos de
○
○
lar Indígena (NEI/MT), que se caracterizava existência, teve um papel importante no forta-
○
ções, as ONG e os representantes indígenas tra- ferenciada. Atuou na realização do primeiro di-
○
○
de Educação Escolar Indígena de Mato Grosso. Mato Grosso. Articulou politicamente para a
○
mental na consolidação de uma política edu- nível de Magistério) e, recentemente, pelo iní-
○
○
dades indígenas. Por meio dele, consolidaram- Por meio de discussões, grupos de estudo,
○
cação Escolar Indígena, um órgão de caráter bito das reuniões plenárias do CEI/MT, os pro-
○
○
oficial, institucional e com a efetiva participa- fessores indígenas conselheiros mantêm suas
○
○
do estado de Mato Grosso (CEI/MT), criado indígenas dentro do estado. Também faz parte
○
○
pelo Decreto nº 265 de 20 de julho de 1995, é da função dos conselheiros ajudar a comunida-
○
○
○
O CEI/MT configura-se como um espaço de
○
talecendo a condução escolar de base diferen- luta dos povos indígenas pela participação efe-
○
○
ciada, assegurando às escolas indígenas a pos- tiva na educação escolar implementada em
○
○
sibilidade de gerirem os seus processos escola- suas comunidades, dialogando constantemen-
○
res e pedagógicos com autonomia. te com o poder público e com a sociedade não-
○
○
Mesmo limitado em decorrência das amar- índia, em busca de uma educação escolar es-
○
○
ras do poder público, o CEI/MT tem-se manti- pecífica e diferenciada, de qualidade e em con-
○
do firme, fomentando discussões a respeito da
○
sonância com os projetos societários de suas
○
formação de professores e da regulamentação comunidades.
○
○
das escolas indígenas.
○
Bibliografia
○
Por tratar-se de uma instância colegiada de
○
caráter interinstitucional, as ações do CEI/MT
○
○
MATO GROSSO. Regimento Interno do Conselho de Edu-
partem da interculturalidade, isto é, do diálogo
○
cação Escolar Indígena. Cuiabá: Secretaria de Estado
○
e do entendimento entre as culturas, buscando
○
de Educação, 1995.
○
o intercâmbio entre as diversas sociedades na ○
O papel da Antropologia, da
Lingüística e da Pedagogia na
Educação Escolar Indígena
Judite Gonçalves de Albuquerque
107
Educação no contexto
○
○
○
da diversidade cultural
○
○
○
○
○
Judite Gonçalves de Albuquerque
○
○
Unemat
○
○
○
○
naram o Ensino Médio por meio desses dois
○
No processo formal de escolarização indí-
○
gena, que tem sido objeto de preocupação e projetos.
○
○
de ações concretas tanto por iniciativa das pró- Durante todo o período de formação, foi
○
○
prias comunidades e organizações indígenas possível contar sempre com a presença e a par-
○
quanto do Ministério da Educação e das secre- ticipação de antropólogos, sobretudo nas eta-
○
○
tarias de estado e municipais, penso que o de- pas letivas presenciais; a coordenação dos pro-
○
○
indígena” (Orlandi, 1999) e, superando os mo- e nos cursos de formação de professores indí-
○
○
delos de escola que foram/são transportados genas, ela é indispensável, tanto para os índi-
○
○
para as aldeias, batalhar pela construção da os quanto para os não-índios chamados a co-
○
de cada povo, de cada comunidade, fazendo do antropólogo nos cursos de Magistério con-
○
○
sair do papel as propostas de uma educação di- tribuiu especialmente para estimular a sensi-
○
○
fazer algumas considerações a respeito do pa- são de que o conhecimento, sendo historica-
○
○
pel dessas áreas na formação dos professores, mente construído e determinado, é também
○
tenho tido ocasião de participar no Mato Gros- neiras, o que permite o confronto de diferen-
○
○
Os dados que trago para reflexão e análise embora isso não ocorra necessariamente (e
○
são basicamente de dois projetos de formação nem com tanta facilidade). 3 Será necessário
○
○
ram no Mato Grosso, no nível de Magistério: o formação de professores para que se possa le-
○
○
Projeto Inajá, no período de 1987-1995, e o var em conta suas formas próprias de viver e
○
Projeto Tucum, entre os anos de 1996-2001. de pensar, suas formas tradicionais de produ-
○
○
Cerca de duzentos índios de treze etnias dis- zir o conhecimento e de ensinar, adequando-
○
○
1
Tomo como base experiências vividas nos seguintes projetos de formação de professores: no Mato Grosso, Projeto Inajá I e II (1987-1993);
○
Projeto Tucum (1996-2001). No Mato Grosso do Sul, Projeto Ára Verá. No Amazonas, Projeto Indata’hua, no Rio Madeira; Escola Panhali, de
○
○
5ª a 8ª séries, no Rio Içana, Alto Rio Negro (Oficinas de Formação de Professores Baniwa e Coripaco); Curso de Formação Antropológica e
○
Pedagógica para Professores do distrito de Iauareté, Rio Uaupés, Alto Rio Negro.
○
○
2
Do Projeto Inajá participaram os índios Karajá (do tronco lingüístico macro-jê) e Tapirapé (do tronco lingüístico tupi); do Projeto Tucum
○
participaram índios de 11 etnias e línguas diferentes: os Apiaká, Bakairi, Bororo, Irantxe, Kayabi, Munduruku, Nambikuara, Paresi, Rikbatsa,
○
Umutina e Xavante.
○
○
3
As reflexões desenvolvidas neste paper sobre o papel da Antropologia na Educação Indígena são o resultado de longas conversas com o
○
○
antropólogo Edmundo Peggion, que participou do Projeto Tucum, e cuja sensibilidade para as questões da educação fez que a sua contribui-
○
ção, sobretudo nas etapas de preparação e no acompanhamento do trabalho com os Xavante, fosse tão profícua!
○
108
PAINEL 3
O papel da Antropologia, da Lingüística e da Pedagogia na Educação Escolar Indígena
○
○
manifestação das diferenças, do confronto A Pedagogia, freqüentemente, tem abdica-
○
○
interétnico, como também o espaço privilegi- do do seu caráter de ciência da educação para
○
○
ado para se inventar novas formas de convívio se reduzir a um discurso afirmativo, sagrado,
○
social e cultural. definido, normativo. Necessitaria de assumir
○
○
É comum em cursos de formação de pro- mudanças profundas no seu enfoque e, antes
○
○
fessores indígenas uma visão dicotômica em de tudo, abrir mão do que já está previsto,
○
relação à transmissão do corpus do conheci- alicerçado pelos poderes e saberes que têm de- 109
○
○
mento de diferentes grupos humanos. O co- terminado como é/deve ser a educação esco-
○
○
nhecimento tradicional é freqüentemente tido lar. Para realizar a escola diferenciada, será pre-
○
○
quase como folclórico ante o conhecimento ciso abrir-se ao “atual, deixar-se afetar pelas
○
ocidental, este, sim, exato, verdadeiro. É papel forças do seu tempo” (Rolnik, 1995). Lembrar
○
○
da Antropologia ajudar a romper com essa vi- que o índio não está mais somente nas aldei-
○
○
são, fazendo que haja a valorização das cultu- as, está na cidade, está em relação com o mun-
○
○
ras em seu tempo presente. É tão forte a idéia do, com o Outro, com sociedades que têm suas
○
da excelência do conhecimento ocidental que formas próprias de organização. Eles perten-
○
○
ela exerce uma espécie de fascínio mesmo en- cem a sociedades que se estão (re)construindo
○
○
tre os índios, em detrimento dos próprios co- no conflito, na tensão do inevitável contato.
○
○
O cuidado no tratamento de culturas dife- nifica para os não-índios deixar-se afetar tam-
○
○
rentes e formas de transmissão do conhecimen- bém pelo modo de ser índio; somente essa ati-
○
○
em conta que são distintos os preceitos episte- tará um trabalho em cooperação, abrindo-se
○
○
mológicos que dão suporte à tradição oral – um para o devir do movimento contínuo que re-
○
○
processo dinâmico de circulação de saberes cria a vida em sua intensidade, em cada tem-
○
○
contextualizados – e os que dão suporte à tra- po-espaço em que a educação escolar se está
○
petitiva – os quais, na escola, quase sempre se Para isso, a Pedagogia tem de se abrir para
○
○
fragmentados, mas, que, no seu conjunto, for- abandonando o discurso autoritário, esque-
○
zação” e do “progresso” (Gnerre, 1991: 105). A serem cumpridas que vem desempenhando
○
○
Antropologia pode contribuir para ajudar a evi- não apenas na escola indígena, mas na educa-
○
○
denciar, na prática, o funcionamento das dife- ção em geral. Os que trabalham na formação
○
relativizando, assim, a maneira ocidental e es- “deixar-se modificar” na relação com as comu-
○
○
tabelecendo as bases para o real diálogo inter- nidades indígenas, alterando a tradição da
○
○
cultural. Ou, então, essa proposta que foi pen- educação escolar que, historicamente, sempre
○
sada e incentivada nas escolas indígenas será se propôs a “modificar o índio”, tornando-o se-
○
○
A Antropologia ajuda ainda a alertar para tal. O Referencial Curricular Nacional para a
○
○
so que ocorre no âmbito da escola, é diferente escola diferenciada. Na prática, porém, esbar-
○
○
esse é um ponto fundamental a ser considera- da escola, e esse talvez seja o peso mais difícil
○
○
do, estimulando o professor a refletir sobre os de ser aliviado: somos todos – índios, não-ín-
○
cional, sobre si próprio e sobre seu povo, fa- um modelo que nunca termina de ser descar-
○
○
zendo que a própria escola valorize a cultura tado, por mais que se diga, se prove e se veja
○
que é um modelo que não funciona. Nesse cômodos onde trabalhavam. Mediram o espaço
○
○
modelo de escola, o professor aprendeu a dar pelo lado de fora e o reduziram 32 vezes, no bar-
○
○
ordens, e as crianças aprenderam a responder. bante. Então, montaram o desenho no chão, uma
○
○
E isso mata a magia da descoberta, mata a planta baixa, bidimensional. A ação seguinte foi
○
criatividade. medir alguns cômodos por dentro, reduzir as 32
○
○
Grupos indígenas organizados têm resisti- vezes, desenhar no papel, recortar e colocar den-
○
○
do a esse modelo, e foi essa persistência na luta tro das casinhas na planta. Se estivesse certo (e
○
por uma Escola Indígena verdadeira que deu
○
os Xavante, como todo os índios, são muito per-
○
origem a uma legislação aberta, em condições feitos no que fazem, muito exatos), os cômodos
○
○
de garantir uma educação adequada às neces- caberiam como luva dentro das casinhas. E foi
○
○
sidades atuais das comunidades. exatamente o que aconteceu. Eles gritaram de
○
○
satisfação! Fascinados! Tinham provado para si
○
Será preciso desmistificar o papel da Pedago- mesmos o que era uma representação de medi-
○
○
gia naquilo que ela tem de autoritário, fixo e ge- das com escala. Tinham finalmente percebido
nérico que a impede de se abrir para o nasci- ○
○
indígena, mas escolas indígenas. Não existe mava, encantado com a lógica do branco. Num
○
○
uma verdade pedagógica. Existe o vazio da ne- certo momento, olhou bem para a professora
○
bém o espaço da possibilidade. Uma boa refle- ça do branco (fez o gesto de cortar) e colocar no
○
○
xão sobre os pontos considerados “verdade” na corpo do Xavante!”. Queria tudo, logicamente, a
○
lha cara das escolas e dar-lhes uma fisionomia Quando o conhecimento é trabalhado den-
○
○
nova, humana, atenta e expressiva. Educação tro de um contexto, ele produz seus efeitos. As
○
Cito um exemplo acontecido no Projeto essa ciência é apresentada. Dada aos alunos
○
ências Sociais. 4 As professoras propuseram a desconectados, não serve para nada. Dada no
○
○
confecção de uma planta baixa do espaço onde contexto da necessidade, provoca o fascínio e o
○
○
havia surgido ao compararem tamanhos diferen- devem colocar a ciência universal à disposição
○
○
tes de mapas com as mesmas informações: como dos cursistas para uso, não para decoração.
○
○
cabiam, num mapa pequenino, as mesmas in- Transcrevo a seguir um trecho de um texto
○
4
As responsáveis pela orientação da área de Ciências Sociais no pólo II dos Xavante foram as professoras Dulce M. Pompeo de Camargo/
○
110
PAINEL 3
O papel da Antropologia, da Lingüística e da Pedagogia na Educação Escolar Indígena
A escola Bororo organiza o seu currículo levan- Qual a função planejada para o futuro dessa lín-
○
○
do em conta o jeito Bororo de educar. Assim, gua como língua escrita? As pessoas aprende-
○
○
a escola trata a criança com respeito, com ca- rão a ler e a escrever para que finalidade? O que
○
rinho, com calma, com competência. Os pro- elas lerão se não há escritos nessas línguas?
○
○
fessores devem saber esperar o tempo da cri- Quem produzirá esses escritos? Quem? Como?
○
○
ança. Para transmitir os conhecimentos da sua A língua indígena passará a competir com o
○
cultura e das outras culturas, para produzir Português como língua de ensino? Ou será vei-
○
○
novos conhecimentos, a escola Bororo vai con- culada na forma escrita em outro âmbito? Qual? 111
○
tar histórias, incentivar a observação, fazer ex- Quem deve aprender a escrita primeiro: as cri-
○
○
periências e pesquisas. A escola Bororo respei- anças ou os adultos, que podem ressignificar
○
○
ta as diferenças de interesse, de idade, de sexo, esse instrumento que é a escrita mais de acor-
○
de clã, e organiza as atividades levando em do com suas necessidades culturais? (Camargo
○
○
conta essas diferenças. O espaço escolar utili- e Albuquerque, 1998: 181).
○
○
zado para a produção do conhecimento pode-
○
rá ser todo o universo da comunidade. Atuan- Eram tantas as perguntas que o professor
○
Gilvan Oliveira, assessor de Lingüística no Pro-
○
do dessa forma, a escola Bororo estará sendo
○
fiel às suas tradições e ao seu jeito próprio de jeto, propôs a realização de uma pesquisa co-
○
○
pensar e se organizar socialmente ( Texto co- letiva, em cada comunidade, com o objetivo
○
○
letivo, produzido pelos Bororo para o Projeto primeiro de descobrir a perspectiva que os
○
Vale bem a pena levar a sério o convite da fletir sobre a situação lingüística dos povos em
○
uma Antropologia da Educação no Brasil. O lingüísticas adequadas. Tal pesquisa daria ele-
○
○
cas estão avançadas, e as reivindicações dos ser dado às línguas no interior de cada comu-
○
ficidade e à manutenção de seu patrimônio das propostas. Naturalmente que essa era uma
○
○
lingüístico-cultural servem de argumento para tarefa que não terminaria com o curso de Ma-
○
○
dar sustentação a essa proposta (Silva, 2001: 38). gistério, mas os professores/cursistas estariam
○
cada vez mais, a educação escolar reconhe- de pensar sobre as questões e formular respos-
○
○
cida e de qualidade. Percebem-se nessas rei- tas juntamente com as comunidades; ao cur-
○
○
que simples processos educativos; o que se dos professores o conhecimento técnico ne-
○
○
diferença (Peggion, 1999). por fazer pensar sobre outra questão, a do pa-
○
questão desloca-se do seu caráter meramente que, numa perspectiva tradicional, deveria des-
○
○
formal para o funcional e situa-se no âmbito crever e ensinar a língua indígena aos índios.
○
○
mais amplo do que o do ensino do Português Nessa nova perspectiva, reserva-se aos assesso-
○
como segunda língua ou, mesmo, do ensino res a contribuição solicitada e necessária, num
○
○
das línguas indígenas, isto é, situa-se no âm- projeto que irá sendo construído passo a passo
○
○
versas práticas dentro e fora da escola. O eixo Algumas comunidades conseguiram avan-
○
do trabalho com as línguas no Projeto Tucum, çar na pesquisa e apresentar propostas concre-
○
○
mais do que se preocupar em ensinar língua tas ao final do curso com relação às complexas
○
○
indígena foi levantar questões a respeito da questões da linguagem na escola; outras con-
○
○
○
CAMARGO, Dulce M. P.; ALBUQUERQUE, Judite G. Lín-
○
fazer da herança dos modelos recebidos, mas gua, cultura e territorialidade: formação de professo-
○
○
res índios no Brasil Central. Humanitas, Revista do
cada qual segue seu ritmo na construção de sua
○
ICH/PUC de Campinas, v. 2, n. 2, ago. 1998.
○
própria escola.
○
GNERRE, Maurizzio. Linguagem, escrita e poder. São Pau-
O que os projetos deixaram como experi-
○
lo: Martins Fontes, 1991.
○
ência maior foi a certeza de que não se pode
○
OLIVEIRA, Gilvan Muller de. Projeto Tucum . Proposta para
○
propor um sistema pedagógico pronto e aca- o encaminhamento das disciplinas de línguas indíge-
○
bado, mas contribuir para que cada escola in-
○
nas (relatório). 1997.
○
dígena consiga construir os seus próprios sis- ORLANDI, E. A linguagem e seu funcionamento – As for-
○
○
mas do discurso. 4. ed. Campinas: Pontes, 1996.
temas autônomos, e que estes sejam integra-
○
. Reflexões sobre escrita, educação indíge-
○
dos e reconhecidos no sistema nacional.
○
na e sociedade. Escritos – Escritas, Escritura, Cidade
○
(I) n. 5, Labeurb (Laboratório de Estudos Urbanos).
○
○
Unicamp, 1999.
○
Bibliografia ○
○
○
PEGGION, Edmundo A. Os povos indígenas e a educa-
ção escolar – alguns comentários e uma reflexão.
ALBUQUERQUE, Judite G. O sentido da diferença na Pe- Nead/ UFMT, 1999.
○
mas limitadas de operar com a diferença. (Comunica- Inajá. Formação de Professores Leigos para o Magis-
○
Unicamp. 13 o COLE, jul. 2001). SILVA, A. Lopes; FERREIRA, M. K. Leal (Orgs.). Antropo-
○
de professores leigos. Campinas: Alínea, 1997. cola. São Paulo: Global, 2001.
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
P AINEL 4
POLÍTICAS LINGÜÍSTICAS
E A ESCOLA INDÍGENA
Wilmar da Rocha D’Angelis
Marcus Maia
113
Quem vai de arrasto
○
○
○
não tem compromisso
○
○
○
○
○
Wilmar da Rocha D’Angelis
○
○
Unicamp/SP
○
○
○
○
○
As tentativas, os acertos e os erros ensinam
○
muito mais sobre a língua do que
○
○
o estudo do produto de uma reflexão
○
feita por outros, sem que se atine
○
○
com as razões que levaram à reflexão que se estuda.
○
○
○
○
○
○
○
○
○
João Wanderley Geraldi (1996: 136)
qual o compadre do interior escreve ao da ci- lidosos), peça na garagem um jogo de ferramen-
○
○
dade, feliz por poder contar-lhe uma novidade tas e, sem ligar a nossos protestos, se meta por
○
ponente, que está entusiasmando todo o mun- lar, engatar, e a máquina comece a trabalhar. Se
○
○
do”. A tal máquina chegara à cidadezinha certa isso acontecer, estará quebrado o encanto e não
○
manhã seguinte, ninguém ficara para dar expli- Do lugar de nossas práticas, impossível ler
○
○
cações: “A máquina ficou ao relento, sem que esse conto e não pensar na escola, em tantas
○
para que servia”. Com o tempo, a cidade foi se em muitos casos, o papel do moço de fora, “des-
○
○
afeiçoando à coisa, a ponto de o prefeito desig- ses despachados”, que vai “explicar a finalidade
○
○
nar um funcionário para zelar por ela. Diaria- da máquina” e fazê-la funcionar. Quebrado o
○
vezes por semana lhe aplicava “caol nas partes Do que eu disse, é possível que lhes venha à
○
○
de metal dourado, esfrega, esfrega [...]” etc. Ao mente a imagem de alguém que vai desfazer ilu-
○
tas cívicas. Cidades vizinhas, e também de ou- convencidas de que “só assim” eles vão “ser al-
○
○
tros estados, mandaram para lá comissões, ten- guém na vida”. Certamente essa é uma aplica-
○
movimento para declarar a máquina “monu- Mas, em lugar disso, vou dirigir a reflexão
○
○
O meu receio é que, quando menos esperarmos, encantos: o da nova máquina, ainda mais relu-
○
○
desembarque aqui um moço de fora, desses des- zente, dita “escola diferenciada”, quase carinho-
○
114
PAINEL 4
Políticas lingüísticas e a escola indígena
○
○
aí o sentido de “valorizar a diferença”, todas as
○
políticas lingüísticas no Estado?
○
escolas deveriam ser – e ser chamadas – assim:
○
○
as dos índios e as dos não-índios. Mas, como só A existência de uma política lingüística do Es-
○
se chama “diferenciada” a escola indígena, é
○
tado brasileiro é, aparentemente, clara, embora
○
evidente que o parâmetro de comparação é a distinta, dependendo do lugar para onde se olhe.
○
○
escola “do branco”, que seria a escola “padrão” Se olharmos para os textos legais, há evidên-
○
e “indiferenciada”. Parece-me que o termo con- 115
○
cia suficiente de que:
○
segue cometer dois equívocos, um deles, com • o Estado entende ou pretende que o Brasil
○
○
conseqüências negativas bem concretas: 1) de- seja um país monolíngüe: declara a língua
○
○
finir a escola indígena pela diferenciação em portuguesa como idioma oficial (Constitui-
○
relação à dos brancos; e 2) afirmar a escola dos ção Federal, art. 13);
○
○
brancos como o lugar da indiferenciação. Na • o Estado se recusa a admitir que povos ou
○
○
prática, o que temos visto é que a concepção comunidades dentro do território nacional
○
○
da escola indígena como a que tem algo dife- tenham suas próprias políticas lingüísticas
○
rente da escola dos brancos tem sido a grande e educacionais: “universalizar, em dez anos,
○
○
motivação para os programas de Educação Es- a oferta às comunidades indígenas de pro-
○
○
branco para a aldeia, com “elementos da cultu- tal [...]” (Plano Nacional de Educação – Lei
○
nº 10.172/2001);
○
pessoas mais velhas que levam suas histórias desvinculada de um projeto de unificação
○
○
Seguindo uma distinção de ações – defensi- língua: determina que o ensino regular será
○
colar1 e, nesse caso, resgatar o sentido de “escola lada ao Estado – é um projeto impossível,
○
○
indígena”, um projeto ainda não alcançado.2 pois está previamente (de)limitada, dado
○
1
Bartomeu Melià mencionou a distinção e sugeriu a necessidade e a oportunidade das políticas ofensivas, em conferência na abertura do IV
○
Encontro sobre Leitura e Escrita em Escolas Indígenas, realizado no 13° Congresso de Leitura do Brasil (Cole), na Unicamp, em julho/2001.
○
No mesmo encontro, propus analisar o projeto de “escola diferenciada” como uma política defensiva.
○
○
2
Refiro-me a recuperar do adjetivo “indígena” ou atribuir-lhe o sentido de “feito à maneira dos povos indígenas”. Atualmente, “escola indígena”
○
○
costuma ser sinônimo de “escola em comunidade indígena”, o que é uma grande licença poética, para dizer o mínimo.
○
3
○
Note-se que os surdos ficam em situação ainda pior: a Constituição nem sequer lhes garante o direito de também usarem sua língua de sinais
○
(Libras) no ensino regular. Em outro trabalho, discutimos a forma canhestra como, nos PCN, a Libra é admitida no ensino de pessoas surdas,
○
○
○
dade civil, como é o caso dos Referenciais Cur-
○
lingüística nas sociedades
○
riculares Nacionais para a Escola Indígena
○
indígenas
○
(RCNEI), as posições são claramente mais
○
avançadas.4 Igualmente, se olharmos para ini-
○
Para Monserrat, “embora outras organiza-
○
ciativas de sociedades indígenas – em geral,
○
ções, entidades ou segmentos específicos de
○
com apoio de instituições educacionais e orga-
○
uma sociedade também possam definir e de-
nizações não-governamentais – que recebem
○
fender uma política lingüística, só o Estado tem
○
aportes decisivos de recursos por meio do Mi-
○
poder para implementá-la, colocá-la em práti-
○
nistério da Educação, incluindo programas de
○
ca, através de um planejamento lingüístico”
○
formação e projetos de publicações de escolas
○
(2001: 129).
indígenas, encontraremos a evidência de que:
○
Isso porque, segundo entende, “a planifi-
○
1. o Estado brasileiro apóia o fortalecimento
○
cação/implementação lingüística [...], para po-
○
e a vitalização das línguas indígenas: se-
○
mestralmente recebe projetos e financia ○
○
der ser operacional, necessita de um manda-
iniciativas voltadas ao ensino de línguas do jurídico, a lei, que é apanágio do Estado”
○
genas nessa área e à publicação de livros Nesse ponto, minha proposição me faz di-
○
○
prias políticas lingüísticas: os projetos las sociedades indígenas, entendo que é possí-
○
○
apoiados pelo MEC incluem desde a alfa- vel planificação e ações concretas de implemen-
○
de língua indígena como segunda língua, do. E mais: sugiro que tais tipos de iniciativas
○
○
gua indígena é falada –, material para en- jeto de autonomia. Isso não significa renunciar
○
○
5
de textos indígenas em Português.
○
como tudo que se abriga em um Estado multi- vimento indígena e do indigenismo ao círculo
○
○
facetado e já não mais monolítico, em razão das con- fechado de conversa com o aparelho do Esta-
○
ferentes.6 Melhor isso do que a hegemonia mas- Mencionarei, por isso, duas iniciativas com as
○
4
Ruth Monserrat observou, criticamente, que, mesmo nos RCNEI – que reconhece como o documento mais avançado –, “há um deslizar
○
○
imperceptível do enfoque inicial da língua indígena como questão fundamental estratégica na luta pela autonomia para um enfoque em que
○
ela aparece com um papel diluído ou pelo menos enfraquecido, situada que fica, em paralelo com a Língua Portuguesa, apenas como uma
○
5
Não significa que não haja ações do Ministério que não apontem em sentido contrário. A recente extinção – em 2001 – do Comitê de
○
Educação Escolar Indígena do MEC – apesar dos muitos problemas pelos quais vinha sendo criticado – poderia ser incluída nas ações que
○
○
desfavorecem uma política democrática na gestão do apoio aos programas de Educação Escolar Indígena.
○
○
6
Monserrat (2001: 137) entende que “o Estado brasileiro não tem realmente uma política lingüística específica para as sociedades indígenas. Ele
○
tem, sim, no nível do discurso, uma política de Educação Escolar Indígena, qualificada como ‘bilíngüe, intercultural, específica e diferenciada’ [...]”.
○
116
PAINEL 4
Políticas lingüísticas e a escola indígena
educador e nas quais se pode falar de construção Funai, pela IECLB e pelo Summer Institute, nos
○
○
autônoma de política e planificação lingüísticas. anos 1970, e fora professor de todos os demais
○
○
nas primeiras séries. Apesar do programa de
○
○
Inhacorá (RS) bilingüismo para o qual fora formado, ele os al-
○
fabetizara em Português. Os outros sete haviam
○
Em 1996, a convite da Secretaria de Educa-
○
sido formados em Magistério de 2º grau, em cur-
○
ção do Rio Grande do Sul, por indicação de
○
so promovido pela Unijuí, Funai e IECLB, que se
○
membros do Núcleo de Educação Indígena 117
encerrara em 1996.
○
(NEI) daquela Secretaria, trabalhei como asses-
○
Na comunidade de Inhacorá, as crianças
○
sor lingüístico de um encontro de professores
○
chegam à idade escolar monolíngües em
○
das escolas indígenas daquele estado. Em razão
○
Kaingang. O problema que nos colocaram, e
○
de uma pesquisa de história Kaingang, aprovei-
para o qual deveríamos colaborar na reflexão,
○
tei a oportunidade para aproximar-me dos pro-
○
era o seguinte: em seu curso de Magistério não
○
fessores da aldeia de Inhacorá, a mais ociden-
○
ficou claro, para os novos professores, como
○
tal das comunidades Kaingang (município de
○
deveriam alfabetizar e, principalmente, em que
○
São Valério do Sul, RS). Na seqüência, estive em
língua deveriam alfabetizar. Teriam ouvido, se-
○
sua aldeia – quase vinte anos depois de minha
○
gundo diziam, que se poderia alfabetizar nas
○
primeira visita – e estabelecemos, rapidamen- ○
7
○
O convite foi dirigido a mim e a Juracilda Veiga, antropóloga, que, no ano de 1997, morara por alguns meses naquela comunidade para
○
realizar pesquisa de campo para tese de doutorado. Juracilda é coordenadora do Núcleo de Cultura e Educação Indígena da Associação de
○
8
Como em todas as escolas de áreas indígenas no RS, havia ali uma diretora não-índia. Além disso, a escola contava com uma professora
○
não-índia pertencente aos quadros da Funai, que atuava como vice-diretora. Elas eram respectivamente, a profª Maria Carmen dos Santos
○
○
e a profª Derli Berlezzi, que foram grandes apoiadoras e incentivadoras do nosso trabalho desde o primeiro momento, e sua contribuição ao
○
○
○
les, superamos as quarenta horas. Em nenhum nidade Kaingang mais próxima, de Guarita.
○
○
deles fornecemos certificados, ajuda de custo ou Não se trata de um processo realizado sem
○
○
qualquer compensação aos professores, senão dificuldades e, muito menos, já concluído e com
○
aquela de contribuir à sua busca sincera de cons- resultados totalmente positivos – e esse é um dos
○
○
truir uma escola adequada à sua comunidade e motivos da epígrafe de Wanderley Geraldi. Foram
○
○
aos interesses de seu povo. Por solicitação direta pouquíssimas as crianças alfabetizadas nas tur-
○
que fez aos professores indígenas, a coordenado- mas de primeira série do ano de 1997 – tanto em
○
○
ra de Educação da Funai de Passo Fundo foi au- Português como em Kaingang. Os problemas que
○
○
torizada a assistir todos os encontros. Também isso gerou, com a entrada de novos alunos, a ex-
○
○
foram autorizados os supervisores da Delegacia pectativa dos pais com os novos professores e a
○
de Ensino da região, mas só participaram de al- carência de preparação destes para alfabetizar,
○
○
guns encontros, e sempre parcialmente. Todos os foram acumulando dificuldades nos anos seguin-
○
○
encontros contavam com momentos de avaliação tes, as quais se buscava corrigir para avançar.
○
○
do trabalho realizado, teorização, riquíssimos ○
Nada disso, porém, diminuiu o significado dos
debates e análises lingüísticas, estudo de textos9 ganhos mais importantes. A compreensão da si-
○
○
sua escola, definindo sua política e planifica- – os oito iniciais mais os novos candidatos que
○
Menciona-se aqui a comunidade, pela praxe de cadores capazes de conduzir a sua escola.10
○
○
a escola interagir com os pais, pela presença do No momento, trabalham na reflexão sobre o
○
○
cacique da comunidade em todos os encontros que deve ser a “continuidade” do ensino na lín-
○
realizados – e, na maior parte deles, em tempo gua materna e ainda debatem questões referen-
○
○
quase integral – e pela assembléia realizada em tes à introdução da Língua Portuguesa. Embora
○
○
um dos momentos de encontro, em dezembro quase se restrinja, nesse caso, à definição de uma
○
○
de 1999, em que a comunidade toda debateu e política de educação escolar bilíngüe, as preocu-
○
escola de Inhacorá, o primeiro elaborado dessa horizonte, não apenas o futuro lingüístico da sua
○
○
forma no Rio Grande do Sul. Ao longo desse comunidade, mas da sociedade Kaingang como
○
○
rial próprio de apoio à alfabetização e, como dos e, para cuja política e planificação lingüísti-
○
○
fruto dessa experiência e da reflexão acumula- ca, sentem que têm uma colaboração a dar e se
○
○
da, a experiência de Inhacorá passou a ser refe- orgulham, obviamente, do lugar social e político
○
○
rência para muitas escolas e nos encontros ge- que têm conquistado no conjunto dos professo-
○
rais promovidos pela Secretaria do Estado. Um res indígenas do Rio Grande do Sul.
○
○
professor de Inhacorá chegou a atuar como as- Nesse processo, fruto de sua prática com a
○
○
sessor, a convite de seus colegas, para o plane- reflexão lingüística stricto sensu, 11 eles também
○
○
○
○
○
○
9
Vários desses textos foram especialmente traduzidos do inglês para utilização com esses professores, naquelas oportunidades.
○
○
10
Para evitar confusão, é relevante anotar que a escola continua sendo custeada pelo estado, ainda que o financiamento, no Rio Grande do
○
Sul, seja pela forma de contratos precários para os educadores. Em outro trabalho, discuti o problema dos limites da autonomia das escolas
○
○
11
Em encontro de pesquisadores de línguas Jê e Macro-Jê, realizado na UEL, em Londrina (PR), no mês de fevereiro de 2001, apresentei um trabalho
○
sobre o gênero em Kaingang que, em parte, refletia análises e discussões ocorridas no acompanhamento da escola de Inhacorá (cf. D’Angelis, 2001).
○
118
PAINEL 4
Políticas lingüísticas e a escola indígena
vêm assumindo o interesse de veicular, entre os mais velhas da comunidade, e proceder a uma
○
○
demais professores Kaingang, o debate em tor- análise fonológica e morfológica que pudesse
○
○
no da ortografia do Kaingang, que tanto descon- subsidiar o processo de definição ortográfica,
○
○
tentamento tem gerado em muitas comunida- que antevíamos como indispensável.
○
des há anos. As preocupações mais amplas se A falta de recursos impediu-nos de avan-
○
○
refletem, também, no interesse pela produção çar mais rapidamente, mas, no segundo se-
○
○
de um jornal em língua Kaingang, usando um mestre de 2000, realizamos um encontro – com
○
computador que doamos e um programa espe- apoio da Coordenação Geral de Apoio às Es- 119
○
○
cífico com uma fonte própria para as particula- colas Indígenas e da Funai/Bauru –, que pas-
○
○
ridades ortográficas do Kaingang – que tem samos a chamar de Convenção Ortográfica
○
○
quatro vogais nasais e, por isso, usa-se o til so- Nhandewa-Guarani. Por iniciativa dos Guarani
○
bre elas, o que os programas convencionais não do Posto Nimuendaju, o encontro reuniu pro-
○
○
permitem, a saber: e, i, u, y.12 fessores e lideranças – três caciques – de cinco
○
○
das sete aldeias Nhandewa-Guarani de São
○
○
Nhandewa-Guarani Paulo e do Norte do Paraná, que falam o mes-
○
mo dialeto e têm uma história comum:
○
(São Paulo e norte do Paraná)
○
Nimuendaju, Itariri e Piassaguera, de São Pau-
○
No primeiro semestre de 1997, em reunião ○
○
São Paulo, em que se tratava da constituição foram realizados entre as comunidades para
○
tre-se que
○
lino Honório, provocou os presentes dizendo [...] a escrita Nhandewa-Guarani de São Paulo e
○
tervalo, procurei-o para saber o que ele es- comunidades a informação e as melhores con-
○
○
perava das universidades. Disse-me que o di- dições para realizá-la, mas foi um processo de
○
que eles gostariam muito de que pessoas das escrita, aqui vista por eles como uma ferramen-
○
e ajudá-los a pensar como ensinar aquele dia- tomar decisões, de modo que as comunidades
○
○
procurá-lo na aldeia.
○
Sem recursos específicos, o trabalho foi docu- cisões, porque foram eles que as tomaram e sa-
○
12
Uma reflexão e mais informações sobre esse trabalho encontram-se em Veiga (2001). Nas viagens a partir do final de 1999, contamos com
○
○
recursos da Unesco por meio da Coordenação Geral de Apoio às Escolas Indígenas e, em todos os encontros, de um modo ou de outro,
○
13
Problemas decorrentes da separação muito recente entre os grupos de Piassaguera e Bananal impediram a participação de representantes
○
deste último grupo, que é, no entanto, uma das menores aldeias e uma das que têm menor número de falantes.
○
○
14
Trecho do projeto “Publicação de material didático Nhandewa-Guarani”, apresentado ao MEC pelo Núcleo de Cultura e Educação Indígena
○
da ALB, em julho/2001.
○
O que pretendo destacar, principalmente, é comum, é também o tipo de situação em que
○
○
o fato de que a comunidade Nhandewa-Guarani mais tenho atuado.
○
○
do Nimuendaju definiu a sua política lingüísti- Quanto ao outro aspecto, o da complexi-
○
○
ca muito antes de encontrar um lingüista para dade e das tensões do processo, não é inco-
○
apoiá-la e, ainda antes que contasse com esse mum – ao contrário, provavelmente é o mais
○
○
apoio técnico, já iniciara, com seus conheci- comum – que os professores indígenas cons-
○
○
mentos e recursos – com base em trabalho vo- truam, por sua reflexão e pelas relações com o
○
luntário de três pessoas: Claudemir, Francisco mundo fora da aldeia e da região, uma com-
○
○
e Juraci –, um programa de ensino da língua preensão diferente da maioria de sua comuni-
○
○
Guarani com as gerações mais novas. Duas a dade, em relação ao valor do trabalho com a
○
○
três vezes por semana, regularmente, desde língua materna na escola. É comum, portanto,
○
1998, reúnem-se à noite, na escola, com as cri- que, nesses contextos, alguns pais indígenas
○
○
anças e com os jovens que retornaram do tra- apresentem queixa aos professores ou ao ca-
○
○
balho nas fazendas ou com os que vieram da cique: “Meu filho não precisa aprender a nos-
○
○
escola da cidade, e passam de uma hora e meia ○
sa língua, isso ele já sabe; eu mando ele na es-
a três horas lendo e escrevendo, copiando e tra- cola para aprender Português”.
○
○
toda, o Guarani já pode ser ouvido nos cumpri- nidade estivesse dizendo, com isso, algo como:
○
mentos e em muitas conversas entre as pessoas “Queremos que nossos filhos não sejam mais
○
○
acima de 40 anos e está presente também na índios (Kaingang, Wapixana, Terena...) e pas-
○
○
tradução de orações cristãs – já que, naquela sem, de língua e alma, para o mundo dos bran-
○
aldeia, quase 100% da comunidade participa de cos”. Quando entendida desse modo, essa fala
○
○
igrejas pentecostais, como Só o Senhor é Deus sores índios em relação à comunidade e, às ve-
○
○
– e de cantos para a escola, aí incluída uma ver- zes, um isolamento da própria escola. No limi-
○
são Guarani, feita por eles mesmos, do Hino te, alguns pais cogitam de mandar os filhos para
○
○
Política lingüística
○
e escola indígena
○
Anteriormente disse, de forma simplificada, prepare para enfrentar o mundo dos brancos e
○
○
sobre “política lingüística” definida na comuni- se virar nele, e isso inclui a Língua Portuguesa,
○
dade tal ou qual. Porém, é importante dizer nas modalidades oral e escrita”.15
○
○
duas palavras sobre o enfoque que foi assumi- Em outras palavras, aí está também em-
○
○
desse processo.
○
Sobre o enfoque, é evidente que minha dis- gar com a sua comunidade e compreender as
○
○
cussão privilegiou, até aqui, as situações em suas preocupações e os seus interesses, será
○
○
ancestral. Essa não é a única situação nas co- mesmo tempo, permita à escola trabalhar e
○
○
munidades indígenas, mas, além de ser a mais valorizar a língua indígena com as gerações
○
○
○
○
○
○
15
○
Nenhuma comunidade ou família deseja que seus filhos queiram guardar distância dela, alhear-se, enfim. Mas não se pode simplificar a
○
questão e esquecer que também há pais que aderem a projetos de cunho mais ou menos integracionista e, não por acaso, costumam ser
○
120
PAINEL 4
Políticas lingüísticas e a escola indígena
○
fessores descomprometidos com seus objeti-
○
tante bem-sucedido e avançar em políticas
○
vos. As comunidades realmente interessadas
○
ofensivas, uma tal escola experimentará, efe- em um programa de educação escolar precisam
○
○
tivamente, um ensino intercultural eficaz e estar atentas e garantir que o lugar de “profes-
○
capaz de formar pessoas críticas e ativas, que,
○
sor” não seja um simples emprego, lugar de re-
○
em muito, diferencia-se de um ensino em que cebimento de salários por pessoas não capazes
○
○
a cultura indígena é apenas folclore que dá ou desinteressadas do processo. Como bem
○
colorido a um processo de “inclusão” compul- 121
○
ensina o professor Bruno Ferreira, Kaingang de
○
sória e “desculturadora”.
○
Votouro: “Quem vai de arrasto não tem com-
○
É preciso também reconhecer que, em boa promisso”,16 ou seja: quem vai porque os outros
○
○
parte dos casos em que os pais manifestam des- puxam não se compromete com os objetivos
○
contentamento com o ensino da língua indíge-
○
nem com os resultados do trabalho.
○
na na escola, os professores revelam-se real-
○
○
mente despreparados, sem iniciativa e, muitas
○
Bibliografia
○
vezes, incapazes de alfabetizar. Aqui, as pala-
○
vras de Geraldi, colocadas na abertura deste
○
D’ANGELIS, Wilmar da Rocha. Gênero em Kaingang? In:
○
texto, ecoam mais forte ainda. A escolha desse
○
○
SANTOS, L. dos (Org.). Línguas Macro-Jê : vários estu-
autor não foi casual: as propostas e práticas con- dos. Londrina: UEL, 2001.
○
○
na no Brasil, que se coloca contra o ensino escolas indígenas. In: D’ANGELIS, Wilmar da Rocha;
○
○
“gramaticalista” e no qual Geraldi é um dos no- VEIGA, J. (Orgs.), Leitura e escrita em escolas indíge-
○
do de Letras.
○
uma língua indígena, seja ela uma variedade do nas sociedades indígenas do Brasil hoje: o espaço e o
○
Português.
○
transformam as pessoas, mesmo que elas não VEIGA, José J. A máquina extraviada. In: BOSI, A. (Org.) O
○
consigam transformar o mundo da forma que conto brasileiro contemporâneo . 9. ed. São Paulo:
○
○
programa escolar, entendido como parte im- A.P. (Orgs.) Questões de educação escolar indígena:
○
dade indígena, não pode ser executado por pro- nas: ALB, 2001. p. 113-125.
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
16
Exposição oral em mesa-redonda sobre “Projeto Político Pedagógico e Autonomia”, no IV Encontro sobre Leitura e Escrita em Sociedades
○
○
○
○
alfabetização na língua Javaé
○
○
○
○
○
Marcus Maia*
○
○
UFRJ
○
○
○
○
○
Resumo
○
○
○
um período de seis anos (1973-1979) em que
○
Este artigo reporta-se ao projeto de alfabetiza-
fora obrigada a se transferir para o Posto Indí-
○
ção Werè Tyyritina, que foi desenvolvido na aldeia
○
gena Kanoano, jamais recebera, por parte da
○
Javaé de Boto Velho, na Ilha do Bananal, TO, entre
○
Funai, qualquer assistência educacional. Em-
○
1983 e 1986. O projeto baseava-se no método Pau-
○
bora situada em local considerado mítico2 pela
lo Freire e ensinou um grupo de dez crianças indí-
○
cartilha e um livro de estórias na língua Javaé (fa- ximo à localidade de Barreira da Cruz, na con-
○
○
mília Karajá, tronco Macro-Jê) foram elaborados e fluência do rio Formoso com o rio Javaés, a al-
○
nual do professor bilíngüe, que é apresentado como fora dos limites do Parque Indígena do
○
○
anexo a este artigo (página 127). Araguaia, sofrendo grande pressão de autori-
○
○
Nacional do Araguaia.
○
○
O projeto foi proposto a mim e ao antro- Decididos a permanecer em sua aldeia tra-
○
pólogo André Toral por ocasião de nossa pri- dicional, a despeito de todas as pressões,3 os
○
○
meira visita à aldeia Javaé de Boto Velho Javaé preocupavam-se com o fato de que as cri-
○
○
julho de 1983, para coletar dados lingüísticos betizarem nem na língua materna e nem na Lín-
○
e etnográficos para projetos de mestrado liga- gua Portuguesa. Entre 1981 e 1982, alguns pais
○
○
dos ao Museu Nacional da UFRJ. Fixada no lo- enviaram seus filhos para estudar na escola da
○
○
cal desde a década de 1940, aquela comunida- prefeitura municipal de Cristalândia, na locali-
○
○
* PhD, professor adjunto de Lingüística do Setor de Lingüística do Museu Nacional e do Programa de Pós-Graduação em Lingüística da
○
Faculdade de Letras da UFRJ. Autor dos artigos: O acesso semântico no parsing sintático. In: Revista ALFA, São Paulo, n. 42, p. 101-111,
○
1998, e Palavras interrogativas em Karajá. In: Revista Laços , Rio de Janeiro, n.1, p. 91-110, 2000.
○
○
1
A transcrição dos dados do Javaé apresentados neste trabalho segue o quadro de correspondências entre os símbolos ortográficos e
○
○
fonéticos abaixo:
○
Vogais nasalizadas: i, õ, ã.
○
○
2
Próximo à aldeia de Boto Velho há três grandes buracos onde, segundo o mito, foram enterrados os corpos de todos os homens, todas as
○
○
3
A Funai alegava só poder assistir aos Javaé se eles se transferissem para a aldeia de Kanoano; o IBDF, então responsável pela administra-
○
ção do Parque Nacional do Araguaia, não reconhecia a presença do grupo indígena no interior do parque, fazendo constantes apelos para
○
que os Javaé se retirassem; a construtora Andrade Gutierrez, encarregada da construção da BR-262, ligava as suas máquinas, paradas, do
○
outro lado do rio Javaés, causando um barulho ensurdecedor; fazendeiros e autoridades municipais (Cristalândia, então estado de Goiás,
○
○
hoje estado do Tocantins) iam constantemente à aldeia, tentando persuadir os Javaé a deixar o local.
○
122
PAINEL 4
Políticas lingüísticas e a escola indígena
curso, realizado com entusiasmo pelas crianças iam duas desistências: uma, de Wajurema, de-
○
○
Javaé, foi, no entanto, interrompido por moti- corrente do engajamento do menino nas ativi-
○
○
vo de transferência do professor e não mais foi dades de pesca da comunidade e a outra, de
○
○
retomado. A tentativa de enviar crianças para Harawaki, cuja mãe queria a alfabetização ini-
○
estudar na sede do município de Cristalândia cial diretamente em Português, em vez de Javaé,
○
○
fora, igualmente, malsucedida em decorrência como havia sido decidido de comum acordo
○
○
da distância de 110 quilômetros entre a aldeia com a comunidade.
○
e o município. Nosso teste diagnóstico foi simples: pediu- 123
○
○
No momento de nossa visita, era, portanto, se aos alunos que desenhassem algo de sua li-
○
○
grande a ansiedade do grupo quanto à criação vre escolha e, em seguida, procurassem escre-
○
○
de uma escola na aldeia. A comunidade enten- ver o nome do desenho em Javaé e/ou em Por-
○
dia que a existência de uma escola em funcio- tuguês, conforme desejassem ou soubessem.
○
○
namento na aldeia, além de instrumentalizar as Propusemos ainda que copiassem algumas pa-
○
○
crianças para o contato com a sociedade lavras em Javaé escritas por Lucirene no qua-
○
○
envolvente, serviria para ajudar a legitimar a sua dro. Observamos que a totalidade dos alunos
○
presença na área. Foi em tal contexto, então, era monolíngüe em Javaé, exceto a mulher de
○
○
que o cacique João Wataju nos solicitou que as- 20 anos, que era capaz de compreender tam-
○
○
sistíssemos à sua filha, Lucirene Behederu, na bém o Português oral. Três alunas se revelaram
○
○
grau (curso fundamental) durante a estada do mas todos eram rigorosamente analfabetos.
○
○
meses, ministrando, informalmente, aulas de avaliamos que as suas aulas não vinham obten-
○
○
Javaé, Português e Matemática, usando o ma- do resultado satisfatório por duas razões:
○
○
terial bilíngüe desenvolvido para os Karajá pe- • o curso não obedecia a qualquer critério
○
○
(SIL). Embora não tivéssemos, na ocasião, qual- assistemáticas, sem regularidade, o que di-
○
○
gem;
○
cidimos aceitar a solicitação dos Javaé. Inicia- • o material do SIL desenvolvido para a lín-
○
mos o projeto assistindo às aulas de Lucirene e gua Karajá não era adequado ao Javaé, pois
○
○
tentamos avaliar a metodologia, os materiais esse dialeto do Karajá apresenta traços ca-
○
○
didáticos e o grupo de doze crianças e adoles- racterísticos nos planos fonético e lexical; a
○
Avaliação preliminar
○
sas crianças já haviam sido expostas a alguma no final de julho, acertamos que Lucirene iria ao
○
○
forma de escolarização, outras quatro nunca Rio de Janeiro no início de outubro, para a reali-
○
○
4
É a seguinte a relação de nomes e respectivas idades dos alunos da escola de Boto Velho: Marilúcia Asiwaru (9 anos), Rosilda Beluá (9
○
○
anos), Rosamília Behé (4 anos), Harawaki (5 anos), Naiude Hariaru (6 anos), Luciana Kuaxiru (7 anos), Manoel Maireá (7 anos), Cleunícia
○
Seija (4 anos), José Inácio Wasuri (7 anos), Rosamíria Werià (6 anos), Roberto Wajurema (9 anos), Mariazinha Ximanaki (20 anos).
○
dáticos. Foi também estabelecido em conjunto amadurecimento da equipe, organizar-se-iam
○
○
com a comunidade que o projeto visaria, em sua cartilhas, livros de exercícios, de escrita e de
○
○
primeira fase, à alfabetização em Javaé, para, estórias. Inicialmente, no entanto, seria de-
○
○
posteriormente, passar à alfabetização em Por- senvolvida apenas a primeira etapa de um ma-
○
tuguês. Precisamos argumentar com a comuni- nual do professor, com roteiro de situações pe-
○
○
dade que não seria possível promover a alfabe- dagógicas a serem testadas e avaliadas. As eta-
○
○
tização inicialmente em Português, pois a tota- pas seguintes desse manual seriam desenvol-
○
lidade dos alunos não falava nessa língua, por vidas a partir dos resultados da primeira fase.
○
○
isso seria mais apropriado alfabetizá-los na lín- Logo que Lucirene chegou ao Rio de Janeiro,
○
○
gua materna e, em seguida, à medida que fos- em princípio de outubro de 1983, passamos à
○
○
sem se tornando fluentes em Português, intro- organização do programa. Discutimos com
○
duziríamos a escrita nessa língua. Lucirene a proposta educacional do método
○
○
Durante os meses que antecederam a che- Paulo Freire, a que ela demonstrou receptivi-
○
○
gada de Lucirene ao Rio, dedicamo-nos a es- dade desde o início. No decorrer das sessões,
○
○
tabelecer os fundamentos teóricos do projeto. ○
fomos delineando o perfil do programa e re-
Avaliamos várias metodologias, procuramos criando o método à feição dos Javaé. As 11 pa-
○
○
nos informar sobre projetos de alfabetização lavras geradoras escolhidas cobriam todos os
○
○
mos por decidir tentar uma adaptação do mé- diferenças existentes entre a fala do homem e
○
para a alfabetização de adultos, à turma de cri- realidade cultural da comunidade: Hãwa (al-
○
○
anças indígenas. O método Paulo Freire con- deia), Irasò (aruanã), Ijata (banana), Koworu
○
conscientização, recusando, por princípio, a grupo, a turma), Ixyju (outros índios, índios
○
○
excessiva centralização no professor e nos con- “bravos”), Bodòlekè (pirarucu), Krysa (Xavan-
○
○
teúdos programáticos, de um lado, e a mera re- te), Itxãtè (louco), Brèbu (medo).
○
tro. Tal fato pareceu-nos decisivo, pois as ati- guia metodológico bilíngüe (cf. Anexo), em que
○
○
vidades de alfabetização poderiam ser foram estipulados, item por item, os diversos
○
○
de ser um método de base silábica que pare- ram distribuídas nas seguintes etapas:
○
cia ideal às características fonético-fonológicas • atividades de reflexão oral: debate dos sig-
○
○
do Javaé, língua de recorte silábico simples e nificados de cada palavra pela turma, que,
○
○
bem marcado. A literatura por nós revista apre- em seguida, os representava pictorica-
○
mente;
○
didas na aplicação do método Paulo Freire em • atividades de leitura: cada palavra era apre-
○
○
cias foi-nos de particular valia: a realizada por da em seus constituintes silábicos, que eram
○
124
PAINEL 4
Políticas lingüísticas e a escola indígena
○
○
da comunidade na implementação, pedimos
○
do projeto
○
que as famílias dos alunos colaborassem com a
○
○
construção da casa e a fabricação da mesa e dos Na segunda quinzena de julho de 1984, vol-
○
bancos para o funcionamento da escola e envi-
○
tamos à aldeia a fim de avaliar a primeira etapa
○
amos aos pais fita gravada na língua Javaé, em do projeto de alfabetização e supervisionar a
○
○
que informávamos sobre os detalhes do méto- organização da segunda fase. Pudemos consta-
○
do e sobre a importância da alfabetização ini- 125
○
tar, de imediato, que a comunidade, de um
○
cial ser em língua indígena e da freqüência às modo geral, vinha se empenhando pelo suces-
○
○
aulas. Desenvolvemos também um conjunto de so do projeto. A construção da escola havia sido
○
○
folhas de exercícios para cada palavra geradora concluída e os bancos e mesas, fabricados com
○
e estabelecemos que Lucirene nos enviaria, ao
○
capricho. Verificamos que as aulas haviam se
○
término do trabalho com cada palavra, uma fo- tornado atividades regulares, bem inseridas no
○
○
lha-teste preenchida pelos alunos. Esse proce- cotidiano da comunidade.
○
○
dimento visava a nos permitir o acompanha- O grupo de alunos, extremamente motiva-
○
mento das atividades, o que nos possibilitaria do, relutara até em aceitar as férias propostas
○
○
a formulação de sugestões e correções. Junto por Lucirene para o mês de julho, época de ve-
○
○
com os testes, Lucirene deveria ainda nos envi- rão na região, quando a comunidade realiza ati-
○
○
ar regularmente um relatório em que seriam vidades coletivas tradicionais nas praias próxi-
○
registradas as faltas eventuais de cada aluno, mas à aldeia. Convocados para uma reunião de
○
○
além de observações gerais a respeito do anda- supervisão, chegaram todos bem cedo à esco-
○
○
Lucirene o relatório e os testes corresponden- contornadas por Lucirene com habilidade. Ape-
○
○
tes à primeira palavra geradora, enviamos-lhe sar do desconforto inicial causado pela presen-
○
tras, falta de aderência das sílabas grafadas às cartaz afixado na parede, os alunos a identifi-
○
○
linhas, estímulo à maior diversificação dos de- cavam com presteza, habituados ao método.
○
de coordenação motora, pois os testes revela- Lucirene verificava pacientemente cada cader-
○
○
vam grande tendência dos alunos em grafar as no, sugerindo, corrigindo. Havia se estabeleci-
○
segmentos cursivos, conforme planejado. tos do método haviam sofrido adaptações di-
○
○
Boto Velho.
○
salário a Lucirene, que assim poderia dedicar- haviam sido ministradas cerca de 140 aulas com
○
○
se exclusivamente às atividades da escola. Ou- duração aproximada de duas a três horas por
○
gastos com xerox, material escolar, camisetas mente anotado pela professora no diário de
○
○
com impressão de desenho escolhido pelos alu- classe, estava em torno de 70%. Apontamos a
○
○
nos para simbolizar a escola. Iniciávamos, as- Lucirene alguns problemas que havíamos ob-
○
– a escola Werè, nome escolhido pela comuni- tação de estratégias para o seu equaciona-
○
○
○
○
exame dos cadernos e de sua participação em fase inicial, obedecendo a uma perspectiva de
○
○
aula, concluímos que grande parte das dificul- complexificação crescente, assim estruturada:
○
○
dades encontradas era decorrente da hetero- 1. leitura em voz alta de uma estória, coleti-
○
geneidade da turma. Por um lado, os alunos va e individualmente;
○
○
mais adiantados não vinham se desenvolven- 2. representação pictórica dos fatos evocados
○
○
do adequadamente, pois as atividades de coor- pela estória;
○
denação motora, simples demais, não lhes des-
○
3. percepção das sílabas como unidades for-
○
pertavam maior interesse. Terminada a cópia,
○
madoras das palavras;
○
rapidamente ficavam sem ter o que fazer ou
○
4. percepção das palavras como unidades for-
○
dedicavam-se a ajudar os menores. Por outro
madoras das frases;
○
lado, os menos adiantados tinham poucas opor-
○
○
tunidades nas atividades de criação de novas 5. percepção das frases como unidades com-
○
ponentes da estória;
○
palavras a partir das sílabas conhecidas, ativi-
○
dades que ocupam posição central no método. ○
○
6. redação das palavras e frases da estória;
Os mais adiantados, geralmente, resolviam os
○
a professora terminava por não propiciar con- Introduzimos a partir daí, também, o ensi-
○
○
dições para que os mais adiantados passassem no do Português. Organizamos uma apostila
○
○
los à fase de leitura e redação efetivas. Do mes- dação baseados em pequenas estórias do reper-
○
○
mo modo, os mais novos acabavam por não tório oral da comunidade. Outra apostila foi
○
○
perceber a produtividade das combinações si- preparada para uso dessa turma, incluindo pa-
○
○
lábicas para a formação de novas palavras e não lavras, frases e pequenas estórias em Portugu-
○
avançavam da fase de reconhecimento e cópia ês, além de outros gêneros discursivos, como
○
○
constituída pelos alunos mais adiantados, que Weria. Nessa fase, ingressou na turma a meni-
○
○
avaliamos como tendo sido efetivamente alfa- na Hukanaru. Esses alunos, a despeito de es-
○
○
betizados na primeira fase: Asiwaru, Belua, tarem familiarizados com o método, ainda não
○
o menino Paulo Huruka, que, embora não ten- de modo a serem capazes de ler e escrever no-
○
○
havia freqüentado anteriormente uma turma novo conjunto de palavras geradoras, solicita-
○
Para essa turma, foi desenvolvida uma se- bão), Wadò (minha comida), Helyrè (pato-sel-
○
○
gunda etapa do projeto, fundamentada na lei- vagem), Txiòrò (noitinha), Buhã (boto), Krukru
○
tura e redação de textos. Assim, à noção de sí- (um pássaro), Maiti (cana-de-açúcar), Bròrè
○
○
laba e palavra aprendida na primeira fase, so- (veado). Organizamos, igualmente com a par-
○
○
mava-se agora a noção de frase e estória. A ticipação ativa da turma, outra série de folhas-
○
○
metodologia estabelecida para as aulas da tur- teste, que nos seriam remetidas para avaliação
○
126
PAINEL 4
Políticas lingüísticas e a escola indígena
○
○
des das turmas “A” e “B” foram previstas para de Janeiro, em 1987, sob o patrocínio do
○
○
um período de aproximadamente um ano. Par- Museu do Índio (Funai-RJ) e da Fundação
○
○
te do material foi produzido durante nossa es- Pr ó - Me mór ia (Ministério da Cultura). A
○
tada na aldeia – cartazes, folhas de exercício – cartilha elaborada para uso na escola Javaé foi
○
○
e outros itens foram produzidos posteriormen- publicada em 1990 pelo Museu do Índio
○
○
te no Rio de Janeiro e remetidos, pelo correio, (Funai/RJ). Os alunos das duas turmas, bem
○
para Lucirene. como os de outras turmas, foram alfabetiza- 127
○
○
Em 1986, o projeto Werè Tyyritina rece- dos na língua materna e em Português por
○
○
beu apoio do Museu do Índio (Funai/RJ), Lucirene Behederu, que foi, posteriormente,
○
○
quando se produziram também, com as as- contratada como professora pelo município de
○
sessorias do professor Francisco Vieira, do Cristalândia, TO, para continuar atuando re-
○
○
Depar tamento de Análise Matemática da gularmente na escola da aldeia de Boto Velho.
○
○
Universidade Federal Fluminense, e do an-
○
○
tropólogo André Toral (Mari/USP), materiais
Bibliografia
○
didáticos, respectivamente, nas áreas de
○
○
Matemática e Estudos Sociais. Esse projeto
○
○
HERNANDEZ, I. Educação e sociedade. São Paulo: Cortez,
foi apresentado durante o I Encontro Nacio- 1981.
○
○
○
○
○
○
Anexo
○
○
○
○
“Colocar os desenhos nas paredes da casa 9. Bitejikre tykyritisõmo iritina wiribi itxura
○
5. Marybebenykre: ka rybè belàkyke ijykymy. 11. Bitejikre tykyritisõmo iribi itxura txura
○
“Ler a palavra geradora mostrando com a 12. Rykyraxire titxi tahe iribi txura txura kaki
○
ròire imahãdu.
○
○
“Um aluno mostra e o outro vai lendo os
○
○
13. Ibutumy rarybera ijõruy lohoji tule. pedaços que o outro mostra.”
○
“Ler e repetir junto e separado as outras sí- c. Ijõ mariabènyke wiribi itxura txura
○
○
labas.” mahadu.
○
“Pedir para os alunos lerem as famílias de
○
○
14. Ryryreri iny lohoji-ò riteòsira… kia sílabas.”
○
○
ixybylesyhe. d. Ikyrèritèòsinykre tyyritinykydu rarybera
○
“Chamar cada um para mostrar as sílabas ikyrèmy.
○
○
que são repetidas oralmente.” “O professor vai mostrando os pedaços e
○
os alunos têm que dizer como se fala.”
○
○
15. Bitejikre kia tyyritisõmo imahadu wiribi
○
itxura txura. Ritara kia tyyritisõmo ibutumy 22. Ibutumy wimy rakurikre wiribi itxura
○
○
ritina, wiribi itxura txura ratira quadro-ki txura ibutumy ijoi.
○
“Repetir junto e separadamente as sílabas
○
tyyriti ibutumy iribi.
○
“Colocar o cartão da família de sílabas. Ti- das famílias. Primeiro em ordem, depois vai
○
○
16. Rykyraxire titxi rare kia iwiribi txura txura outro diz. Um aluno fala um pedacinho e o
○
○
imahãdu. Ryryra iny-õ tahe ritànynyra outro mostra onde é que está escrito o pe-
○
mília. Chamar alguém para mostrar cada 24. Rarybera tamy wideke ibutunyky
○
○
17. Rykyraxire kà wiribi txura txura “Dizer para formar a palavra geradora e de-
○
○
raerynykre kia wiribi txura txura… pois formar outras palavras com os pedaci-
○
ritelenyra iusemy tahe rixihura iwitxiramy. nhos. Escrever todas as palavras que os alu-
○
○
cada sílaba de uma família começa igual, 25. Rarybera tamy kia tyyritidu kia ituera
○
debòribi lohoji.
○
○
18. Ibutumy ixybyle rarybekre. “Falar para os alunos que as terminações das
○
“Repetir todas as leituras em grupo e sepa- duas famílias são iguais. Mostrar o cartão
○
○
19. Bitejikre ibutulemy ijoi. 26. Rarybera ibutumy wiribi itxura txura.
○
○
20. Tahe kiwinykre nohõtimy ritina. itxura txura mesa-ki tyytidu mahadu
○
○
a. Tyyritidu rarybera ijõ ritèòsinyra. pegar rapidamente. Cada aluno vai guar-
○
○
“Um aluno vai lendo os pedaços e um ou- dando os pedacinhos que acerta. Ganha
○
tro aluno vai mostrando os pedaços que o jogo o aluno que juntar mais pedaci-
○
○
Darci Secchi
Vilmar Guarani
129
Do nacional ao local,
○
○
○
do federal ao estadual: as leis
○
○
○
e a Educação Escolar Indígena
○
○
○
○
○
Luís Donisete Benzi Grupioni*
○
○
SEF/MEC
○
○
○
○
O direito à educação
○
transformação em curso, que tem gerado novas
○
práticas a partir do desenho de uma nova fun-
○
diferenciada nas leis
○
ção social para a escola em terras indígenas.
○
brasileiras
○
Nesse processo, a Educação Indígena saiu do
○
○
gueto, seja porque ela se tornou tema que está
Passados mais de dez anos da promulgação
○
contexto específico.
○
milação e integração.
mente genérica. Mas como contemplar a extrema
○
mas décadas atrás, trata-se de uma verdadeira conhecimentos e práticas de outros grupos e so-
○
○
○
○
○
* Antropólogo, pesquisador do Mari (Grupo de Educação Indígena da Universidade de São Paulo) e consultor do Ministério da Educação para
○
130
PAINEL 5
Legislação escolar indígena
ciedades. Uma normatização excessiva ou muito tituição: atualizar os direitos e deveres nela ins-
○
○
detalhada pode, ao invés de abrir caminhos, ini- critos, de forma que ela seja útil para regular o
○
○
bir o surgimento de novas e importantes práticas relacionamento dos cidadãos entre si e destes
○
pedagógicas e falhar no atendimento a demandas
○
com o Estado e com a sociedade como um todo.
○
particulares colocadas por esses povos. A propos- Dividida em nove títulos, a Constituição tra-
○
○
ta da escola indígena diferenciada representa, sem
ta dos princípios, direitos e garantias fundamen-
○
dúvida alguma, uma grande novidade no sistema
○
tais, da organização do Estado, dos poderes
○
educacional do país, exigindo das instituições e 131
Legislativo, Executivo e Judiciário, da defesa do
○
órgãos responsáveis a definição de novas dinâmi-
○
Estado e das instituições democráticas, da tri-
○
cas, concepções e mecanismos, tanto para que
○
butação e do orçamento, da ordem econômica,
○
essas escolas sejam de fato incorporadas e bene-
○
ficiadas por sua inclusão no sistema, quanto res- financeira e social.
○
A Constituição de 1988 remeteu para a le-
○
peitadas em suas particularidades (RCNEI: 34).
○
gislação complementar e ordinária algumas de-
○
○
Conhecer a legislação, formulada em âmbito finições, bem como o detalhamento de direitos
○
○
federal, sobre a Educação Escolar Indígena é o apresentados de forma ampla ou genérica, não
○
auto-aplicáveis, que precisam de detalhamento
○
único caminho para superar o velho e persistente
○
impasse que marca a relação dos povos indíge- por meio de lei complementar. Alguns desses
○
○
nas com o direito, qual seja, o da larga distância dispositivos ficaram para a legislação comple-
○
○
entre o que está estabelecido na lei e o que ocor- mentar, porque não cabia seu detalhamento na
○
direitos que a legislação lhes assegura, estaremos que elaboraram o novo texto. É o caso, por exem-
○
na esfera federal é condição primeira para o esta- de regulamentação do Congresso Nacional por
○
○
va do Brasil entrou em vigor em outubro de 1988, via de extinção, como passaram a ter assegura-
○
○
quando foi promulgada, depois de mais de um do o direito à diferença cultural, isto é, o direito
○
○
ano e meio de trabalho da Assembléia Nacional de serem índios e de permanecerem como tal.
○
Constituinte. A Constituição, também conheci- Não cabe mais à União a tarefa de incorporá-
○
○
da como Carta Magna, é a lei maior do país. Não los à comunhão nacional, como estabeleciam as
○
○
existe nenhuma outra lei tão importante quanto constituições anteriores, mas é de sua responsabi-
○
○
ela e nenhuma outra lei pode ir contra o que nela lidade legislar sobre as populações indígenas no in-
○
A Constituição estabelece direitos, deveres e índios “os direitos originários sobre as terras que tra-
○
○
procedimentos dos indivíduos e do Estado, dos dicionalmente ocupam”, definindo essa ocupação
○
○
cidadãos e das instituições. Ela substituiu a não só em termos de habitação, mas também em
○
modificações ocorridas no tempo e na socieda- meio ambiente e à reprodução física e cultural dos
○
○
de. Este é o sentido de elaborar uma nova Cons- índios. Embora a propriedade das terras ocupadas
○
pelos índios seja da União, a posse permanente é de importância fundamental porque trata, de
○
○
dos índios, aos quais se reserva a exclusividade do modo amplo, de toda a educação do país.
○
○
usufruto das riquezas aí existentes. A atual LDB substitui a Lei nº 4.024, de 1961,
○
○
Outra inovação importante da atual Consti- que tratava da educação nacional. No que se re-
○
tuição foi garantir aos índios, às suas comunida- fere à Educação Escolar Indígena, a antiga LDB
○
○
des e organizações a capacidade processual para nada dizia. A nova LDB menciona, de forma ex-
○
○
entrar na Justiça em defesa de seus direitos e in- plícita, a educação escolar para os povos indíge-
○
teresses. O Ministério Público é chamado a par- nas em dois momentos. Um deles aparece na
○
○
ticipar desse processo, mas não é condição para parte do Ensino Fundamental, no artigo 32, es-
○
○
a sua instauração. Ao Ministério Público cabe a tabelecendo que seu ensino será ministrado em
○
○
defesa dos interesses indígenas e a Justiça Fede- Língua Portuguesa, mas assegura às comunida-
○
ral é o fórum para resolver pendências judiciais des indígenas a utilização de suas línguas ma-
○
○
envolvendo os povos indígenas. ternas e processos próprios de aprendizagem. Ou
○
○
Além do reconhecimento do direito dos índi- seja, reproduz-se aqui o direito inscrito no arti-
○
○
os de manterem a sua identidade cultural, a Cons- ○
go 210 da Constituição Federal.
tituição de 1988 lhes garante, no artigo 210, o uso A outra menção à Educação Escolar Indígena
○
○
de suas línguas maternas e processos próprios de está nos artigos 78 e 79 do Ato das Disposições
○
○
manifestações das culturas indígenas. Esses dis- se preconiza como dever do Estado o oferecimen-
○
positivos abriram a possibilidade para que a es- to de uma educação escolar bilíngüe e intercultural
○
○
valorização das línguas, dos saberes e das tradi- materna de cada comunidade indígena e propor-
○
ções indígenas e deixe de ser instrumento de im- cione a oportunidade de recuperar suas memórias
○
○
posição dos valores culturais da sociedade históricas e reafirmar suas identidades, dando-
○
○
envolvente. Nesse processo, a cultura indígena, lhes, também, acesso aos conhecimentos técnico-
○
○
devidamente valorizada, deve ser a base para o científicos da sociedade nacional. Para que isso
○
conhecimento dos valores e das normas de ou- possa ocorrer, a LDB determina a articulação dos
○
○
tras culturas. A escola indígena poderá, então, sistemas de ensino para a elaboração de progra-
○
○
desempenhar importante e necessário papel no mas integrados de ensino e pesquisa, que contem
○
○
Esse direito ao uso da língua materna e dos sua formulação e tenham como objetivo desenvol-
○
○
processos próprios de aprendizagem ensejou ver currículos específicos, neles incluindo os con-
○
○
mudanças na Lei de Diretrizes e Bases da Edu- teúdos culturais correspondentes às respectivas co-
○
○
ficos e diferenciados.
○
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacio- dos sistemas de ensino, o que é enfatizado pela
○
○
nal foi aprovada pelo Congresso Nacional no dia prática do bilingüismo e da interculturalidade.
○
de dezembro daquele ano. Ela estabelece normas locar em prática esses direitos, dando liberdade
○
○
para todo o sistema educacional brasileiro, fixan- para cada escola indígena definir, de acordo com
○
○
do diretrizes e bases da educação nacional desde suas particularidades, seu respectivo projeto
○
a Educação Infantil até a Educação Superior. Tam- político-pedagógico. Assim, por exemplo, o ar-
○
○
bém conhecida como LDB, LDBEN ou Lei Darcy tigo 23 da LDB trata da diversidade de possibili-
○
○
Ribeiro, essa lei está abaixo da Constituição e é dades na organização escolar, permitindo o uso
○
132
PAINEL 5
Legislação escolar indígena
○
○
alternância regular de períodos de estudo, gru- ção intercultural e bilíngüe e sua regularização
○
○
pos não-seriados ou por critério de idade, com- nos sistemas de ensino.
○
○
petência ou outros critérios. No artigo 26, para O Plano Nacional de Educação prevê, ainda,
○
darmos mais um exemplo, fala-se da importân- a criação de programas específicos para atender
○
○
cia de considerar as características regionais e às escolas indígenas, bem como a criação de li-
○
○
locais da sociedade e da cultura, da economia e nhas de financiamento para a implementação dos
○
da clientela de cada escola, para que se consiga programas de educação em áreas indígenas. Es- 133
○
○
atingir os objetivos do Ensino Fundamental. Ou tabelece-se que a União, em colaboração com os
○
○
seja, outros dispositivos presentes na LDB evi- estados, deve equipar as escolas indígenas com
○
○
denciam a abertura de muitas possibilidades recursos didático-pedagógicos básicos, incluindo
○
para que, de fato, a escola possa responder à de- bibliotecas, videotecas e outros materiais de
○
○
manda da comunidade e oferecer aos educandos apoio, bem como adaptar os programas já exis-
○
○
o melhor processo de aprendizagem. tentes hoje no Ministério da Educação em termos
○
○
de auxílio ao desenvolvimento da educação.
○
Atribuindo aos sistemas estaduais de ensino
Educação indígena no
○
○
a responsabilidade legal pela Educação Indíge-
○
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Na- magistério indígena, com a criação da categoria
○
○
cional instituiu, no artigo 87, a “Década da Edu- de professores indígenas como carreira especí-
○
cação”, que teve início um ano após a sua publi- fica do magistério e com a implementação de
○
○
cação. Ali também se estabeleceu que a União programas contínuos de formação sistemática
○
○
Plano Nacional de Educação, com diretrizes e Ao ser promulgado, o PNE estabeleceu que a
○
metas para os dez anos seguintes. União, em articulação com os demais sistemas
○
○
Em 9 de janeiro de 2001, foi promulgado o Pla- de ensino e com a sociedade civil, deve proce-
○
○
sigla PNE, que apresenta um capítulo sobre a Edu- plano e que tanto os estados quanto os municí-
○
cação Escolar Indígena, dividido em três partes. Na pios deverão, com base no plano, elaborar seus
○
○
Parecer nº 14/99 do
○
rão ser atingidos a curto e a longo prazos. O Conselho Nacional de Educação foi insta-
○
universalização da oferta de programas educa- a Câmara de Educação Básica, cada qual com 12
○
○
cionais aos povos indígenas para todas as séries membros nomeados pelo Presidente da Repú-
○
mia para as escolas indígenas tanto no que se emitir pareceres sobre assuntos da área educa-
○
○
refere ao projeto pedagógico, quanto ao uso dos cional e sobre questões relativas à aplicação da
○
○
vas ao funcionamento dessas escolas. Para que parar as normas necessárias à implantação da
○
○
isso se realize, o plano estabelece a necessidade nova estrutura da educação nacional instituída
○
○
de criação da categoria “escola indígena” para por aquela lei. A Câmara de Educação Básica pre-
○
parou diretrizes curriculares para os diferentes A primeira é relativa à criação da categoria
○
○
níveis e modalidades de ensino, entre as quais “escola indígena”, reconhecendo-lhe “a condição
○
○
as de Educação Indígena. de escolas com normas e ordenamento jurídico
○
○
As diretrizes para a Educação Indígena cons- próprios” e garantindo-lhe autonomia pedagó-
○
tituem o resultado das discussões que ocorreram gica e curricular. Disso resulta a necessidade de
○
○
na Câmara de Educação Básica do CNE, quando regulamentação dessas escolas nos Conselhos
○
○
essa se lançou na análise de dois documentos en- Estaduais de Educação, bem como a necessida-
○
caminhados pelo Ministério da Educação (a ver- de de instituir mecanismos de consulta e envol-
○
○
são preliminar do Referencial Curricular Nacio- vimento da comunidade indígena na discussão
○
○
nal para as Escolas Indígenas e um documento sobre a escola indígena.
○
○
especialmente preparado pelo Comitê de Edu- Outro ponto importante da Resolução nº 3/99
○
cação Escolar Indígena sobre a necessidade de é a garantia de uma formação específica para os
○
○
regulamentação da Educação Indígena), bem professores indígenas, podendo essa ocorrer em
○
○
como de uma consulta feita pelo Ministério Pú- serviço e, quando for o caso, concomitantemente
○
○
blico Federal do Rio Grande do Sul, para cuja ○
com a sua própria escolarização. A resolução es-
relatoria foi indicado o Pe. Kuno Paulo Rhoden. tabelece que os estados deverão instituir progra-
○
○
As Diretrizes Curriculares Nacionais da Edu- mas diferenciados de formação para seus pro-
○
○
cação Escolar Indígena foram aprovadas em 14 fessores indígenas, bem como regularizar a situ-
○
○
de setembro de 1999, por meio do Parecer nº 14/ ação profissional desses professores, criando
○
99 da Câmara Básica do Conselho Nacional de uma carreira própria para o magistério indígena
○
○
Educação. Dividido em capítulos, o parecer apre- e realizando concurso público diferenciado para
○
○
cola indígena e propõe ações concretas em prol de Educação, por meio dessa resolução, definiu
○
○
Merecem destaque, no parecer que institui pela oferta da educação escolar aos povos indí-
○
indígena”, a definição de competências para a entre União, estados e municípios, o CNE defi-
○
○
oferta da Educação Escolar Indígena, a forma- niu que cabe à União legislar, definir diretrizes e
○
○
ção do professor indígena, o currículo da escola políticas nacionais, apoiar técnica e financeira-
○
e sua flexibilização. Essas questões encontraram mente os sistemas de ensino para o provimento
○
○
âmbito das mesmas discussões que ensejaram mação de professores indígenas, além de criar
○
○
Resolução nº 3/99 do
○
publicada a Resolução nº 3/99, preparada pela estadual” e provendo-as com recursos humanos,
○
○
Câmara Básica do Conselho Nacional de Educa- materiais e financeiros, além de instituir e regu-
○
ção. Essa resolução fixa diretrizes nacionais para o lamentar o magistério indígena.
○
○
funcionamento das escolas indígenas. Importan- Dessas disposições, decorre, entre outras, a
○
○
tes definições foram aí inscritas e regulamentadas, necessidade de cada Secretaria de Estado da Edu-
○
para a garantia do direito dos povos indígenas a a participação dos professores e das comunida-
○
○
uma educação diferenciada e de qualidade. Algu- des indígenas, para planejar e executar a educa-
○
○
mas dessas definições merecem ser destacadas. ção escolar diferenciada nas escolas indígenas.
○
134
PAINEL 5
Legislação escolar indígena
○
○
de forma a se potencializar as oportunidades de
○
o lugar da legislação estadual
○
os povos indígenas terem uma escola e uma edu-
○
○
O conjunto da legislação nacional a respeito cação que atenda aos seus interesses e às suas
○
aspirações de futuro.
○
do direito dos povos indígenas a uma educação
○
diferenciada, como visto anteriormente, está Feito o itinerário do detalhamento do direito
○
○
estruturado a partir de duas vertentes, que ne- dos índios a uma educação diferenciada, algumas
○
questões colocam-se para o debate, no momento 135
○
cessariamente precisam convergir, para que esse
○
direito se materialize: de um lado, trata-se de em que se caminha para novas formulações legais
○
○
propiciar acesso aos conhecimentos ditos uni- e administrativas, agora nas esferas estaduais.
○
○
versais e, de outro, de ensejar práticas escolares A primeira questão já foi anunciada: a da
○
persistente lacuna entre a lei e a realidade, en-
○
que permitam o respeito e a sistematização de
○
saberes e conhecimentos tradicionais. É da jun- tre o direito explicitado e a prática vivida. Que
○
○
ção dessas duas vertentes que deve emergir a tão alternativas se colocam a esse direito? Será que
○
○
propagada escola indígena. a busca de novas leis e normatizações seria um
○
O que a legislação nacional estabelece é um caminho para que aquilo que já foi inscrito ga-
○
○
conjunto de princípios que, de modo geral, aten- nhasse efetividade? Ou será que os povos indí-
○
○
de à extrema heterogeneidade de situações vivi- genas contam com outros mecanismos que po-
○
○
das hoje pelos mais de 210 povos indígenas con- deriam ser acionados para que o direito já
○
temporâneos no Brasil. Essa legislação permite a explicitado seja cumprido? Quais são os impas-
○
○
expressão do direito a uma educação diferencia- ses e as dificuldades que impedem o direito de
○
○
da, a ser pautada localmente, em respeito às dife- se realizar? São exclusivos do campo educacio-
○
de cada povo indígena, bem como em relação aos genas com o Estado brasileiro?
○
○
seus diferentes projetos de futuro. Outra ordem de questões diz respeito à esfe-
○
○
Todavia, esses princípios precisam encon- ra de normatização estadual. Se cabe aos siste-
○
estaduais que vão disciplinar o funcionamento oferta da Educação Indígena e pela formação e
○
○
das escolas indígenas, como unidades integran- regularização profissional dos professores indí-
○
○
tes dos sistemas estaduais de ensino, bem como genas, a eles cabe também definir, em plano es-
○
como profissionais contratados pelo estado ou que caberia definir aos estados? Qual o espaço
○
○
pelo município. É aqui, portanto, no âmbito es- de sua atuação? A qual nível de detalhamento aos
○
○
tadual, que os princípios federais precisam ga- estados caberia chegar, na definição das ações
○
mentos que lhes possam dar vazão. É nesse garantir que a legislação estadual não se restrin-
○
○
âmbito que se consolida o direito a uma edu- ja a princípios federais? Como garantir que a es-
○
○
cação diferenciada, na medida em que se cola indígena não sucumba diante das demais
○
Esse é o momento em que diferentes esta- mentos nos deve conduzir a cada sociedade in-
○
○
dos da Federação se lançam a disciplinar a ma- dígena em particular, a cada projeto de futuro
○
colar Indígena nas leis orgânicas de educação, cação diferenciada se realiza. E a pergunta
○
○
por parte das Assembléias Legislativas, seja por deve inverter a ordem estabelecida: em que
○
○
meio de resoluções estaduais, geradas no âmbi- medida o que já está inscrito no plano legal não
○
to dos Conselhos Estaduais de Educação. Esse é, limita as aspirações e os desejos dos povos in-
○
○
avanços alcançados na esfera federal poderão de seus membros? E para que rumo segue a
○
Educação Indígena? Haverá espaço para aque- Bibliografia
○
○
les grupos que almejam simplesmente um
○
GRUPIONI, Luís Donisete Benzi. A Educação Escolar Indí-
○
maior conhecimento do Português e das regras
○
gena no Brasil: a passos lentos. In: RICARDO, Carlos
○
de comércio com a sociedade envolvente? To- Alberto (Org.). Povos indígenas no Brasil – 1996/2000.
○
das as escolas indígenas deverão formalizar
○
São Paulo: Instituto Socioambiental, 2000.
○
seu ensino, garantindo continuidade de estu- . Os índios e a cidadania. In: Cadernos da TV
○
○
dos dentro e fora das terras indígenas? Haverá Escola – Índios no Brasil, Brasília, v. 3, p. 25-46, 1999.
○
condições e espaços para que os índios dêem MELIÀ, Bartomeu. Educação indígena e alfabetização. São
○
○
Paulo: Loyola, 1979.
um sentido próprio para a escola indígena, fora
○
SECRETARIA DE EDUCAÇÃO FUNDAMENTAL. Referencial
○
das amarras administrativas e legais já con-
○
Curricular Nacional para as Escolas Indígenas. Brasília:
○
quistadas? Enfim, para onde caminha todo SEF/MEC, 1998.
○
esse processo?
○
. O governo brasileiro e a Educação Escolar
○
Enfrentar essas questões está na ordem do dia. Indígena 1995/1998. Brasília: SEF/MEC, 1998.
○
○
○
○
○
○
○
○
Apontamentos acerca da
○
○
○
Darci Secchi*
○
○
Unemat
○
○
○
○
○
Resumo
○
○
○
○
Os povos ameríndios convivem com algum gislação atual apenas admitiu a alteridade e tole-
○
○
tipo de escola há quase 500 anos. Nos últimos anos, rou a diferença, isto é, manteve resguardado o
○
porém, a escola colonial recebeu novas adjeti- direito de outorgar direitos. O presente paper pre-
○
○
vações (específica, diferenciada, intercultural, bi- tende discutir o processo de regularização das
○
○
língüe), e a educação escolar passou a ser tratada escolas indígenas no Brasil, destacando a neces-
○
como política pública, como um direito de cida- sidade de conciliar os interesses de todos os su-
○
○
dania. Entretanto, o antigo paradigma colonial jeitos detentores de direitos, em especial, os das
○
○
não foi totalmente superado, uma vez que a le- sociedades indígenas.
○
○
○
○
○
○
sobre o campo
○
Diversas sociedades indígenas brasileiras con- bitantes das terras recém-conhecidas. Discuti-
○
quanto ao lugar que ela deve ocupar nos processos questão que se colocava era se eles seriam con-
○
○
de colonização e/ou de autonomia desses povos. siderados seres humanos e, tendo alma, se seria
○
○
○
○
○
136
PAINEL 5
Legislação escolar indígena
○
○
ser simplesmente escravizados. A controvérsia1 epistemológico brasileiro.3 O discurso que havia
○
○
acerca da natureza humana dos índios perdurou insuflado as “bandeiras de luta da sociedade ci-
○
○
por dois séculos e, a partir dela, estabeleceram- vil” passou a ser apropriado pelo poder público.
○
se os contornos do projeto colonizador em toda Seria o prelúdio de novos tempos?
○
○
a América e em outros continentes.
○
○
Nos últimos anos, porém, verificaram-se
Um pouco de história
○
significativas mudanças no tratamento da 137
○
○
temática educacional indígena. Os próprios ín- O modelo integracionista de educação esco-
○
○
dios entraram em cena para debater a política lar para o índio no Brasil está associado histori-
○
○
de escolarização e para exigir uma educação camente ao binômio proselitismo doutrinário
○
escolar voltada ao atendimento dos seus inte-
○
(religioso ou não) e preparação para o trabalho.
○
resses. A educação escolar passou a ser vista Com esse intuito, atuaram as missões católicas,
○
○
como uma política pública, como um direito de as escolas pombalinas, a educação positivista e,
○
○
cidadania. Hoje já não se discute se os índios mais recentemente, os missionários e lingüistas
○
têm ou não têm alma, se devem ou não ser civi- de diferentes confissões.
○
○
lizados, mas trata-se de considerá-los cidadãos A partir da década de 1950, insuflados pelos
○
○
Ainda assim, a secular matriz colonial não foi nacionais do trabalho, passaram a ser incorpora-
○
totalmente superada. As atuais leis e regulamen- dos, nos países do chamado Terceiro Mundo, no-
○
○
tos foram produzidos apenas com a audiência dos vos instrumentos jurídicos e novos objetivos para
○
○
índios, ou contaram com a participação das co- a educação escolar das “populações tribais e
○
conceder direitos. Nela, o reconhecimento à di- em todos os níveis (art. 21); a realização de estu-
○
liturgia diferenciada para as suas escolas etc. se- gramas escolares (art. 22); a alfabetização em lín-
○
○
riam como marcos ou garantias de um porvir de gua materna seguida de educação bilíngüe (art.
○
○
cidadania, de respeito e de valorização das socie- 23); e uma campanha de combate ao preconceito
○
se frutificar inúmeras parcerias e cooperações Art. 24. O ensino primário deverá ter por objetivo
○
na busca de novos horizontes para a “causa indí- auxiliem a se integrar na comunidade nacional.
○
○
discurso oficial, que substituiu o antigo “refrão Art. 26 -1. Os governos deverão tomar medidas [...]
○
○
integracionista” por enunciados mais palatáveis com o objetivo de lhes fazer conhecer seus direitos e
○
○
○
○
○
○
1
Para Clastres (1995), a controvérsia residia em afirmar que os índios eram como “criaturas de Deus” e, ao mesmo tempo, promover a sua
○
captura e escravização. A saída legal para esse dilema seria encontrada na declaração (unilateral) de “antropofagia”.
○
○
2
Ribeiro (1978) e Oliveira (1976) utilizam as expressões “problema” ou “problemática indígena”; Lopes da Silva (1981) e outros preferem
○
3
Para Brand (1988: 7), o avanço no arcabouço legal fez-se acompanhar de um crescente “confinamento geográfico e social”. Para ele, o
○
○
esgotamento do modelo integracionista está diretamente ligado ao atual estágio da globalização e do neoliberalismo, que encontrou, como
○
fórmula para solucionar o problema dos supérfluos, o seu confinamento em favelas, acampamentos e reservas. Integrar o índio em quê? –
○
pergunta. Como mão-de-obra, já não é mais necessário. Só se for como consumidores marginais, conclui.
○
obrigações especialmente no que diz respeito ao tra- senvolvidos em Mato Grosso, no Acre e em ou-
○
○
balho e os serviços sociais.4 [Grifos meus.] tros estados.
○
○
Os direitos conquistados nesse período
○
No Brasil, esses dispositivos ingressaram no
○
recolocaram em novas bases o antigo conflito
○
mundo jurídico somente uma década mais tar- entre o oficial e o paralelo, e as “relações perigo-
○
○
de e se materializaram de fato na Constituição sas” entre escola e Estado passaram a ser vistas
○
○
Federal de 1988. Mesmo assim, careciam de como “relações possíveis”.
○
maiores explicitações, o que seria formalizado, Os anos 1990 caracterizaram-se como um
○
○
em meados da década de 1990, com a publica- período de implementação do ideário gestado
○
○
ção da Lei de Diretrizes e Bases da Educação na década anterior. As novas palavras de ordem
○
Nacional (Lei nº 9.394/96).
○
– “educação bilíngüe e intercultural”, “currícu-
○
Ao longo desses 30 anos de maturação jurí- los específicos e diferenciados”, “processos pró-
○
○
dica e política, muitos atores compuseram o ce- prios de aprendizagem” – precisavam ser ma-
○
○
nário da Educação Escolar Indígena. terializadas no cotidiano das escolas. No entan-
○
A década de 1970 foi marcada pela emergên- ○
○
to, nem o poder público estava preparado téc-
cia do chamado “indigenismo alternativo” e por nica e administrativamente para assumir essa
○
○
ensaios dos primeiros movimentos indígenas, ti- tarefa, nem havia legislação específica que ori-
○
○
dos como estratégias de oposição e superação do entasse tal procedimento. No contexto desse
○
colas oficiais foram vistas com cautela, quando comunidades indígenas, dos grupos de apoio,
○
○
não com desconfiança. Propunha-se, em seu lu- de setores da academia e do próprio poder pú-
○
○
gar, a criação de escolas alternativas, mormente blico, o Governo Federal e o MEC passaram a
○
de acepção freireana, desatreladas do espaço do coordenar uma série de iniciativas que resulta-
○
○
Estado e das instituições que o representavam. ram na atual arquitetura jurídica e administra-
○
○
acadêmica e militância indigenista, parceria que • a publicação do Decreto nº 26/91 que trans-
○
○
produziu uma vasta documentação, participou feriu da Funai para o MEC a responsabilida-
○
○
cela de ver as suas bandeiras contempladas na pios a responsabilidade pela execução das
○
○
nova Carta. As articulações surgidas nesse con- ações de Educação Escolar Indígena;
○
○
de Mato Grosso –, esses núcleos deram origem Nacional de Educação Indígena, fórum que
○
○
aos atuais Conselhos de Educação Escolar Indí- viria subsidiar a elaboração dos planos
○
ção Escolar Indígena nos respectivos estados. • a elaboração pelo Comitê Assessor e a publi-
○
○
encontros de Educação Indígena, eventos que cação Escolar Indígena”, a partir do qual de-
○
○
deram suporte à organização dos atuais Progra- finiram-se os principais contornos do aten-
○
○
4 Posteriormente, a Convenção 169, adotada pela 76ª Conferência Internacional do Trabalho (Genebra, junho de 1989), revisou essas propo-
○
○
sições e acrescentou ao texto outras diretrizes, tais como “el derecho a la autoidentificación, a la consulta y a la participación, y el derecho
○
138
PAINEL 5
Legislação escolar indígena
• a sanção da Lei de Diretrizes e Bases da Educa- res “serão planejados com a audiência das comu-
○
○
ção Nacional (Lei nº 9.394/96), em que se esta- nidades indígenas” (art. 79, § 1º – grifo meu). Isto
○
○
beleceram as normas específicas para a oferta é, coube às agências externas – governos, acade-
○
de educação escolar para os povos indígenas;
○
mias, conselhos – o planejamento dos programas
○
• a aprovação, na Comissão de Constituição e das escolas com a audiência indígena, e não o
○
○
Justiça do Senado Federal, em 6 de dezem- inverso: “as comunidades indígenas planejarão
○
○
bro de 2000, após oito anos de tramitação, seus programas com a audiência do poder pú-
○
da Disposição 169 da Organização Interna- blico, dos conselhos e da academia”. 139
○
○
cional do Trabalho, estabelecendo os direi- Dessa forma, a atual legislação deixou de
○
tos dos povos indígenas e tribais (PIT), entre
○
contemplar duas premissas fundamentais para
○
eles o da Educação Escolar Indígena em to-
○
a superação do modelo escolar integracionista,
○
dos os níveis e nas mesmas condições que o
quais sejam, a da iniciativa e a do controle das
○
restante da comunidade nacional.
○
sociedades indígenas sobre o processo de con-
○
○
ceber, planejar, executar e gerir os seus progra-
○
Como vemos, nesta última década, multipli-
○
mas educacionais. Os índios permaneceram na
○
caram-se e aperfeiçoaram-se os instrumentos ju- qualidade de ouvintes, e não de propositores de
○
○
rídicos e administrativos concernentes à criação, suas próprias políticas. Continuaram sendo
○
○
alcance maior apenas nos aspectos operacionais e de outorgar os seus próprios direitos.
○
○
metodológicos e não parecem ter rompido total- Um segundo aspecto problemático desse
○
renciada, bilíngüe e intercultural, isto é, da es- A primeira versão da escola bilíngüe propu-
○
○
cola adaptada formalmente à clientela, não se- nha assegurar “a transição progressiva da língua
○
novos atributos? Ou seria de fato uma escola do para uma das línguas oficiais do país” (OIT, art.
○
○
“outro”, isto é, dirigida às populações indígenas? 23, inciso 2). Essa empreitada seria atribuída, no
○
○
E, nesse caso, qual será a matriz conceitual que Brasil, aos missionários lingüistas do Summer
○
Como vimos, o projeto hegemônico das atuais va, a parceria entre o Estado e o SIL foi tamanha
○
○
escolas indígenas teve a sua origem associada à “que até mesmo as ferramentas analíticas desen-
○
○
Convenção 107 da OIT, que, há cinqüenta anos, volvidas pelos lingüistas do SIL passaram a figu-
○
○
Naquele movimento, a escola e os seus pro- não tardaram, afinal tratava-se da mais “repulsi-
○
○
gramas educacionais foram definidos anterior e va forma de etnocídio”. Mesmo assim, esse mo-
○
exteriormente à participação das sociedades in- delo perdurou por três décadas até que foi
○
○
dígenas. A mesma perspectiva foi explicitada na substituído por sua abordagem antagônica, aqui
○
○
5
Cf. Silva, 1999: 10. Uma análise crítica acerca da atuação do SIL pode ser encontrada também em Barros (1993) e em outros trabalhos da autora.
○
Se antes o aprendizado dos alunos dirigia-se O mesmo ocorre com os dois adjetivos res-
○
○
no sentido de transitarem de uma situação tantes: as escolas indígenas devem ser específi-
○
○
monolíngüe em língua indígena para uma situ- cas e diferenciadas. Mais do que garantir novos
○
○
ação de falantes do Português, agora a situação avanços, esses “direitos compulsórios” ratificam
○
se inverteria. Propunha-se que o bilingüismo a histórica perspectiva discriminatória de
○
○
fosse uma característica inerente às escolas in- desqualificação das minorias étnicas e culturais.
○
○
dígenas, isto é, que essas fossem compulsoria- As escolas indígenas – como também as escolas
○
mente bilíngües. rurais, ribeirinhas e das favelas – devem ser es-
○
○
O documento Diretrizes para a Política Na- pecíficas e diferenciadas para “reproduzir os co-
○
○
cional de Educação Escolar Indígena, produzido nhecimentos próprios”, isto é, para reproduzir a
○
○
pelo Comitê de Educação Escolar Indígena do negação cultural, a negação identitária e a nega-
○
MEC e lançado em 1994, não deixou dúvidas: ção da cidadania, elementos que compõem a
○
○
essência do cotidiano de quem se sabe e se re-
○
A escola indígena tem que ser parte do sistema
○
conhece historicamente discriminado.
○
de educação de cada povo, na qual, ao mesmo ○
Talvez resida aí a razão da dificuldade de os
tempo em que assegura e fortalece a tradição e o
○
dades [...]. Como decorrência da visão exposta, a tários. Como disse o líder xinguano Marawê
○
○
Educação Escolar Indígena tem que ser necessa- Kayabi, “Até agora só sabemos o que é diferencia-
○
o específico e o diferenciado?
○
tione a adoção do bilingüismo em situações Todos nós que atuamos no campo da Edu-
○
co reside na formulação como modelo tipológico ramos com questionamentos para os quais não
○
○
Como se daria o tratamento bilíngüe em es- Relaciono a seguir alguns dos que ainda po-
○
monolíngües? Ou, inversamente, como se faria a compartilhá-los com meus pares e, assim, qui-
○
○
opção por apenas duas línguas em situações de çá, construirmos um caminho mais seguro nes-
○
○
língua indígena e os casos em que a língua indí- mulada por um professor Guarani por ocasião
○
○
gena é a própria língua nacional” (Silva, op. cit.: de uma etapa do curso de formação de profes-
○
○
bilingüismo possa ser atualmente recorrente em gente faz para regularizar uma escola, respeitan-
○
○
muitas escolas. Ora, mais do que uma “adjetivação do o específico e o diferenciado?” Pensando ter
○
bilíngüe deveria constituir-se numa opção das cedimentos recomendados pela legislação etc.,
○
○
comunidades e, como tal, poderia compor ou não mas logo fui interrompido com uma observação:
○
○
o currículo e o cotidiano de suas escolas. Essa “Eu sei, eu sei, mas não é isso que eu preciso sa-
○
munidades e impingida como um “direito obri- pecífica e diferenciada deve ter tudo o que está
○
○
gatório”. Mais uma vez, admite-se a diversidade e escrito nas Diretrizes, nos Referenciais, nos Pa-
○
○
domestica-se a diferença, sem, contudo, abrir râmetros, na Resolução nº 3. Se for preciso tudo
○
140
PAINEL 5
Legislação escolar indígena
pecífica e diferenciada”. O professor Guarani co- culada aos municípios. A administração estadu-
○
○
loca-nos o seguinte problema: como regularizar al não tem intenção de assumir diretamente as
○
○
as escolas sem “disciplinar” a diferença? Seria escolas indígenas e está propondo a consolida-
○
○
pelo caminho dos adjetivos formalizantes? ção do Sistema Único de Educação Básica pre-
○
A segunda indagação tem por nascedouro conizado pela LDB, mas não previsto na Resolu-
○
○
uma pergunta formulada por um professor ção nº 3. Nesse contexto, perguntou-se como
○
○
Parintintim quando se debatia a Resolução nº 3 proceder para que as escolas indígenas não se-
○
da CEB/CNE, no curso de formação de professo- jam prejudicadas em termos de recursos, acom- 141
○
○
res do Alto Rio Madeira. Depois de superar a difi- panhamento, concursos, carreira, serviços etc.6
○
○
culdade de entender a diferença entre “ano civil” Por essa breve amostra, percebe-se que ain-
○
○
e “ano letivo”, um professor perguntou aos cole- da perdura – se não se amplia – a necessidade de
○
gas: “Mas se a minha comunidade resolver que o “normatização” das escolas indígenas, não
○
○
nosso ano letivo deva durar cinco anos, será que obstante as diretrizes, parâmetros, referencial,
○
○
pode?”. Após algum debate, quase todos profes- resoluções etc. Grande parte dessa normatização
○
○
sores concordaram que poderia. Então o profes- seria desnecessária, creio, se mudássemos o es-
○
sor perguntou: “Mas o meu pagamento vai ser pectro de nosso olhar e desistíssemos de ideali-
○
○
pelo ano letivo ou pelo ano civil?” Ninguém sou- zar um único protótipo de escola diferenciada.
○
○
be formular uma resposta que convencesse o pre- Creio que uma política pública de Educação
○
○
feito ou o secretário de Educação a pagar o mes- Escolar Indígena deva apoiar-se em outras ba-
○
mo salário ao professor indígena cujo calendário ses que não a normatização da diferença e a su-
○
○
escolar coincide com o ano civil e ao outro que pressão da alteridade. Elas materializam o dis-
○
○
“demora” cinco anos para concluir um ano letivo. curso e a prática de um direito concedido e de
○
A última indagação veio do curso de formação uma cidadania conferida e, portanto, tornam-se
○
○
estudos sobre o tema “Legislação”, em que nos de- Uma política pública de educação deve nas-
○
○
bruçamos – literalmente – sobre textos da legisla- cer dos professores, das lideranças e das comu-
○
ção estadual de Mato Grosso, que tratavam da car- nidades indígenas e por elas ser controlada. Mas
○
○
reira do Magistério, de concurso público, do siste- isso não significa que o poder público, as insti-
○
○
ma único, dos sistemas próprios, essas coisas. Após tuições acadêmicas e a sociedade civil em geral
○
○
uma semana de estudos, os professores chegaram devem ignorá-la ou eximir-se de sua responsa-
○
também com vocês. A primeira diz respeito à legi- te, discuti-la, consolidá-la, viabilizá-la, e não
○
○
timidade de se “exonerar” um professor indígena apenas implementá-la enquanto tal, o que su-
○
○
quando não há consenso entre o poder público e a põe uma estratégia de ação, que pode expressar-
○
comunidade escolar: o poder público pode exone- se pelos seguintes princípios fundantes:
○
○
de? Ou a comunidade pode “exonerar” um profes- das as etapas de elaboração, execução e ava-
○
municípios cooperarem com os estados na ofer- tuição parceira por meio da avaliação e da
○
○
que a maioria das escolas indígenas esteja vin- Escolar Indígena do Estado de Mato Grosso
○
○
○
○
○
○
6
Até esta data, não obtivemos resposta à consulta formulada ao Conselho Nacional de Educação sobre a aplicação da Resolução nº 3 em
○
○
○
tário composto por instituições e represen-
○
ARRUDA, Rinaldo S. Vieira. Os Rikbaktsa: mudança e tradi-
○
tantes indígenas;
○
ção. 1992. Tese (Doutorado). Programa de Pós-Graduação
○
• a manutenção de vínculo permanente entre em Ciências Sociais. São Paulo, PUC-SP.
○
BARROS, Maria Cândida D. Lingüística missionária: o Summer
○
as atividades escolares e as demais iniciati-
○
Institute of Linguistics. 1993. Tese (Doutorado). Unicamp.
vas do campo da saúde, da regularização
○
Campinas.
○
fundiária e da economia indígena;
○
BATALLA, Guillermo Bonfil. La teoria del control cultural en el
○
estudio de procesos étnicos., Papeles de la Casa Chata.
• a compatibilização dos programas escolares
○
Ciudad de México, año 2, n. 3, 1987.
○
com o calendário sociocultural das socieda-
○
BRAND, Antonio. Autonomia e globalização, temas fundamen-
○
des indígenas; tais no debate sobre Educação Escolar Indígena no con-
○
texto do Mercosul. In: PRIMEIRO ENCONTRO DE EDU-
○
• o compromisso da continuidade e termina-
○
CAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA DA AMÉRICA LATINA.
○
lidade dos trabalhos e da manutenção de 1988, Dourados/MS. Anais... Dourados/MS, 1998.
○
equipes técnicas aptas a acompanhar as CONSELHO DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA DO ES-
○
○
ações de Educação Escolar Indígena desen- TADO DE MATO GROSSO. Urucum, jenipapo e giz: a Edu-
○
1997.
cretaria de Educação;
○
Indígena do Estado de Mato Grosso (CEI/ NIA (Mesa-redonda). São Luís: 47ª SBPC, 1995.
○
Unicamp, 1995.
○
Para concluir, estendo essa reflexão para IANNI, Octávio. Novo paradigma das ciências sociais. In: Estu-
○
além da temática da Educação Escolar Indígena dos Avançados, São Paulo, v. 8, n. 21, 1994.
○
○
Inep/MEC: 1994.
○
Como nos ensina Octavio Ianni, as políti- MELIÀ, Bartomeu. Ação pedagógica e alteridade: por uma pe-
○
cas públicas equacionam-se pela conjugação dagogia da diferença. Cadernos de educação básica (série
○
○
tureza, o alcance e o conteúdo das ações pro- Escolar Indígena. Brasília, 1993 (Cadernos de Educação
○
resses de sua clientela não poderá descon- va contemporânea no Brasil. In: LOPES DA SILVA, Aracy;
○
siderar essa conjugação. No caso específico da GRUPIONI, Luís Donisete B. A temática indígena na esco-
○
○
tras iniciativas, um permanente exercício de Mato Grosso. Cuiabá/MT: PNUD/Prodeagro, 1995. (Mimeo).
○
○
esses exercícios, não acredito ser possível o Educação Escolar Indígena. Cuiabá/MT: Seduc/CEIMT/
○
○
CAIEMT, 1998.
exercício do controle indígena sobre as suas
○
escolas. E, como já foi dito antes, normatização dios aos projetos demonstrativos para populações indíge-
○
○
não é sinônimo de adequação. Para ser uma nas. São Paulo: FFLHC/USP, 1999.
○
boa escola indígena, é preciso antes que ela SILVA, M.; AZEVEDO, M. Diretrizes para a política de Educa-
○
○
142
PAINEL 5
Legislação escolar indígena
Legislação em Educação
○
○
○
Escolar Indígena
○
○
○
○
Vilmar Guarani
○
○
Funai
○
○
○
143
○
○
○
Resumo
○
○
○
○
genas elaborados com a participação ativa dos in-
○
Este resumo apresenta alguns enfoques da le-
○
gislação em Educação Escolar Indígena: dígenas e de suas organizações para que o Estado
○
○
Enfoque histórico. Visa a demonstrar a reali- brasileiro passasse a adotar uma posição mais aber-
○
ta em prol dos direitos indígenas. Ainda, no aspec-
○
dade da Educação Escolar Indígena em sua primei-
○
ra fase na história do Brasil, bem como no passado to da atualidade, buscar-se-á compreender a ques-
○
○
recente, nos moldes da legislação então vigente, tão da coexistência entre o Estado brasileiro e as
○
bre a legislação, observando principalmente a Lei Escolar Indígena como um dos direitos coletivos
○
○
Diretrizes e Bases e o Plano Nacional de Educação, da Educação Escolar Indígena no Projeto de Lei
○
○
OS ETNOCONHECIMENTOS
NA ESCOLA INDÍGENA
Carlos Alfredo Argüello
145
Etnoconhecimento na Escola Indígena
○
○
○
○
Carlos Alfredo Argüello*
○
○
Unicamp – Unemat
○
○
○
○
○
Resumo
○
cartesiano, o reducionismo mecanicista, a
○
disciplinaridade, traz implícita a idéia ou princí-
○
○
pios do progresso, a escrita, o cálculo, a teoria, o
○
O etnoconhecimento é peça fundamental na
○
nossa proposta de construção de uma escola indíge- acúmulo, o consumismo, a competição e, apesar
○
○
na que seja algo mais que uma escola de brancos pen- de propiciar a utilização dos meios globais de in-
○
sada para índios. Propomos uma escola que incor- formação, ignora o seu entorno imediato, ignora
○
○
pore o saber dos anciãos, as características da educa- o conteúdo cultural dos seus alunos e familiares
○
○
ção indígena ancestral, integrada à comunidade, e e tende a uma padronização estéril.
○
que resgate da escola do branco os saberes necessá- As correções de rumo, necessárias, foram re-
○
○
rios a seu empowerment e à prática da educação alizadas dentro do marco da pulverização disci-
○
○
põe alguns professores, muitos alunos, em local A escola como uma estrutura humana,
○
○
determinado. A escola indígena tem o direito le- conceitual, onde se aprende, sempre esteve pre-
○
fere um grau de liberdade para organizar os seus ensino coletivo, e sim uma educação artesanal,
○
○
sibilidade de organização bilíngüe com direito a qual se fomenta o fazer. Professores são a família,
○
e a família estendida.
○
das prefeituras e dos estados e tem que se enqua- ca exaustiva, não pressupõe competitividade, não
○
○
cionais da Federação.
○
A tendência geral hoje é de que os professo- No momento, essa escola está em perigo de
○
○
res das escolas indígenas sejam índios e, priorita- extinção. O recente aparecimento da figura do jo-
○
○
riamente, pertençam à mesma etnia dos alunos. vem professor índio assalariado cria outras instân-
○
branco para o índio. É a mesma escola que o bran- perturbam a estrutura ancestral (Bandeira, 1997).
○
○
co pensou para ele, mas a serviço do índio. Essa Os anciões, os sábios, os antigos mestres sentem-
○
○
escola possuirá, então, muitos dos defeitos que se ignorantes diante dos avanços da “Nova Educa-
○
ticamente, com alguns deles apenas suavizados Passo a relatar duas experiências, duas situa-
○
○
* Coordenador da Área de Ciências Matemáticas e da Natureza das licenciaturas para professores indígenas da Unemat.
○
146
PAINEL 6
Os etnoconhecimentos na escola indígena
Uma, na escola das etnias Baníwa-Coripaco, Os cursos são ministrados em etapas intensi-
○
○
às margens do rio Içana, afluente do rio Negro, vas, no campus de Barra do Bugres, MT, para 200
○
○
nas terras indígenas do Alto Rio Negro, estado do professores índios de 35 etnias diferentes.
○
○
Amazonas, perto da fronteira com a Colômbia, em Nas etapas intermediárias, o professor índio,
○
meados do ano 2000. enquanto leciona na sua escola, realiza tarefas,
○
○
A outra, na etapa de preparação das ativi- trabalhos e pesquisas ligadas ao seu curso univer-
○
○
dades dos cursos de licenciatura para profes- sitário. Também recebe em sua aldeia, na sua es-
○
sores indígenas, no campus de Barra do Bugres cola, a visita e a orientação da equipe de profes- 147
○
○
da Universidade Estadual de Mato Grosso, em sores do curso (docentes), que, desse modo, tam-
○
○
maio de 2001. bém interagem com a comunidade.
○
○
Em ambas as ocasiões, antigas lideranças in- O trabalho, nessa etapa intermediária, visa a
○
dígenas, sábios anciões fizeram discursos pareci- resgatar, para a escola, os conhecimentos ances-
○
○
dos, solicitando publicamente que instruíssemos trais indígenas, valorizar os detentores dos dife-
○
○
os jovens professores das suas etnias, para que es- rentes saberes, diminuir a separação entre escola
○
○
tes não fossem tão ignorantes como eles. Mas não e comunidade, permitir a docentes e professores
○
são esses anciões os detentores do conhecimento indígenas um conhecimento melhor da realida-
○
○
indígena que nenhum deles, enquanto tal, deve de nas aldeias e escolas e o diálogo direto com a
○
○
demia chama de etnoconhecimentos? Não são eles Nesses momentos, o olho atento e treinado
○
os que conhecem os segredos da mata, dos rios, do docente poderá detectar, na comunidade, sa-
○
○
dos animais, os que curam as doenças, os que co- beres, valores, práticas que poderão ser objeto de
○
○
nhecem os segredos do céu, conhecem o calendá- estudo sistematizado com a finalidade de sua in-
○
rio astronômico que rege, na Terra, as chuvas, as corporação escolar. Por exemplo, junto com as
○
○
migrações das aves, as piracemas, as enchentes, o professoras Marta Azevedo e Judite Albuquerque,
○
○
tempo certo de plantar? Não são eles os que co- realizamos na Escola Paanhali, no rio Içana, no
○
○
nhecem os rituais, as danças, as cerimônias, os que Amazonas, da etnia Baníwa, um trabalho de res-
○
falam com os deuses? Não são eles que conhecem gate, com os professores da escola, do calendário
○
○
o segredo da caça e são os melhores artesãos? astronômico Baníwa. Trouxemos para as discus-
○
○
Quem destruiu a sua auto-estima, quem mo- sões vários “anciões”, que deram sua importante
○
○
escola evangelizadora que os queria cristãos? Não Em etapa posterior, reunimo-nos em São
○
○
será a escola integracionista que os queria inte- Gabriel da Cachoeira, AM, com alguns desses pro-
○
○
grados, indiferenciados? Não serão as diferentes fessores indígenas e mais cinco anciões. Trabalha-
○
○
escolas que os queriam tratoristas, cortadores de mos durante vários dias, até estabelecermos, em
○
cana, engrenagens microscópicas na grande má- forma definitiva, um calendário natural circular
○
○
tos e a cultura do branco em detrimento das pró- muitos importantes ensinamentos, como, por
○
○
Quero citar uma experiência que está no co- na sua versão indígena, as constelações Baníwa
○
○
meço e irá frutificar somente dentro de cinco foram “traduzidas” para as constelações acadêmi-
○
anos. Espero então, daqui a cinco anos, poder ter cas e vice-versa, possibilitando o diálogo intelec-
○
○
a oportunidade de informar e prestar contas. tual e a motivação para seguir estudando o céu,
○
○
É nosso trabalho formar professores indíge- os fenômenos astronômicos, climáticos etc., si-
○
○
nas no 3o grau, licenciados em várias áreas do co- multaneamente, a partir dos diversos olhares.
○
ordenar a área de Ciências dessas licenciaturas di- computador e um programa de simulação do céu
○
○
○
○
mento sem constrangimento nenhum. Cito essa a ambos, num processo cuja meta ideal, mas im-
○
○
passagem como um exemplo de saberes comple- possível, seja a união desses mundos individuais.
○
○
mentares. É nossa intenção que a escola seja o espaço
○
Nossa proposta é incorporar, nas atividades da dialógico para a ação mediatizadora. Note-se que
○
○
escola, a comunidade, os velhos mestres, seus sa- essa iniciativa transborda os limites da educação
○
○
beres e ensinamentos, os conhecimentos tribais, em geral, que irá se beneficiar, sem dúvida, da
○
enfim, derrubar os muros1 que a escola do branco experiência indígena na educação. Parafrasean-
○
○
possui e que a separam da comunidade e da reali- do Bartomeu Melià (1998), “Não há um proble-
○
○
dade que a rodeia, o que a escola para índios, como ma de Educação Indígena, há soluções indígenas
○
○
citei anteriormente, herdou em algum grau. ao problema da educação”.
○
Em contrapartida vejo a escola para índios A abertura de 200 vagas para os cursos de li-
○
○
como uma forma de “potencialização” ao estilo cenciaturas, reservadas aos professores indígenas,
○
○
freiriano. Segundo Paulo Freire, potencialização, equivaleriam, na população brasileira, à abertu-
○
○
ou empowerment, é um processo que “permite ao ○
ra de aproximadamente 100 mil vagas, resguar-
estudante interrogar e, seletivamente, se apropri- dando as proporções populacionais.
○
○
ar daqueles aspectos da cultura dominante, que A necessidade de construir o seu próprio ma-
○
○
vão lhe prover as bases para novas definições e terial didático, os textos, os equipamentos, em
○
○
transformações, em vez de meramente servir à constante diálogo com a realidade em volta, in-
○
ampla ordem social estabelecida”. cluindo a pobreza, é um desafio que, uma vez ven-
○
○
Continuando com Paulo Freire, nosso grande cido, como tudo leva a pensar que o será, consti-
○
○
mestre, gostaria de citar, da Pedagogia do opri- tuir-se-á em modelo a ser seguido por outras ins-
○
mido, a seguinte afirmação: “Ninguém educa nin- tâncias fora da Educação Indígena.
○
○
guém. Ninguém educa a si mesmo. Os homens se A revalorização da escola, de uma escola cul-
○
○
educam entre si mediatizados pelo mundo!” turalmente comprometida, mas aceitando a pers-
○
○
Comentar essa sentença inspiradora ocuparia pectiva de Educação Libertadora, poderá servir de
○
horas, mas vamos nos perguntar tão-somente: modelo a outras minorias, movimentos sociais e,
○
○
Qual é esse mundo mediatizador? Intermediador? basicamente, à escola tradicional, qualquer que
○
○
Existem tantos mundos como pessoas há. A seja o nível econômico dos seus alunos, para que,
○
○
experiência de vida da pessoa constrói o seu mun- engajada social, crítica e construtivamente, torne-
○
do, e as comunidades étnicas mais ou menos iso- se uma solução e deixe de ser um problema.
○
○
Bibliografia
○
e Terra, 2002.
mundos que nem sequer ensinam a ler. Será neces-
○
1
Ver Ciranda das Ciências – A Ciência na Escola: Palestra “A escola sem muros”.
○
148
PAINEL 6
Os etnoconhecimentos na escola indígena
○
○
○
reflexões sobre experiências de um
○
○
○
antropólogo militante em
○
○
○
programas de formação de
○
○
○
professores indígenas no Nordeste 149
○
○
○
e em Minas Gerais
○
○
○
○
José Augusto Laranjeiras Sampaio
○
○
Associação Nacional de Ação Indigenista (Anai) – Universidade do Estado da Bahia (Uneb)
○
○
○
○
○
Tomo como ponto de partida para essas re- sões de “autenticação” dos ditos valores por
○
○
flexões a idéia de que a Educação Escolar In- parte do pólo dominado.
○
○
dígena, concebida como “específica” e “dife- Assim, em uma palavra, cabe indagar
○
○
construir, não deixa de inscrever-se em um sabidamente desiguais, e por meio de que ca-
○
○
Nesse campo, as próprias idéias de “dife- da Educação Escolar Indígena – e mesmo para
○
rença”, de “especificidade” e outras do gênero mais além dele –, as definições do que sejam
○
○
aparecem como valores, como objetivos a se- especificidade e diversidade culturais indíge-
○
○
rem alcançados e garantidos e, também, exi- nas e do que podem essas, enfim, estar a sig-
○
○
domínio social por excelência, por meio do Pretendo aqui demonstrar, com base em
○
○
qual tais valores se expressam, e a “escola in- minha própria experiência em programas de
○
○
dígena”, como a via institucional para a sua formação de professores indígenas, como a so-
○
mais que isso, definido pela presença, por um sores formadores, agentes administrativos
○
serviços – formação de professores, infra-es- o pólo indígena tende a dialogar com tais con-
○
○
etc. –, e, por outro, de um pólo “receptor”, o Ao ser convidado para participar, como an-
○
○
das sociedades indígenas, não se deve supor tropólogo “especialista” em povo Pataxó, do
○
○
como “diferença”, “especificidade” e “cultura”, nas em Minas Gerais, descobri que uma das de-
○
diálogos e disputas políticos e simbólicos ine- dirigida a mim e a alguns outros colegas – e
○
○
rentes ao campo, sem que, sobre eles, impri- não infreqüente em circunstâncias semelhan-
○
mam-se as marcas ideológicas do pólo domi- tes que eu próprio teria oportunidade de vir a
○
○
nante, ainda que tais diálogos e disputas re- novamente vivenciar – por parte tanto de pro-
○
○
○
○
dizia respeito à minha possível contribuição dade, permanecendo, pois, etnocêntrica e dis-
○
○
em um processo percebido como necessário às tante da produção de um real diálogo cultural
○
○
ditas formação de professores e implantação com as posições indígenas.
○
de escolas diferenciadas, claramente definido Na modalidade “positivada” das concep-
○
○
por todas as personagens presentes no campo ções etnocêntricas de “culturas indígenas”, as
○
○
como “resgate cultural”. oposições anteriormente referidas dão lugar
○
Em que consistiria, então, o “resgate cul- a outras nas quais tais “culturas” assumem,
○
○
tural” sobre o qual se esperava que pudésse- em relação à cultura de ego, o pólo “favorá-
○
○
mos, eu e outros antropólogos, percebidos vel”, como em autenticidade cultural x dege-
○
○
como “especialistas” em “culturas indígenas”, neração da cultura por colonialismo cultural,
○
intervir favoravelmente? cultura de massa ou globalização; harmonia
○
○
Antes de tentar responder a essa questão, com a natureza x exploração predatória do
○
○
cabem aqui duas digressões: uma, relativa a ambiente; igualitarismo, amor ao próximo e
○
○
como a sociedade brasileira vem reproduzin- ○
altruísmo x desigualdade social, individualis-
do suas concepções a respeito de idéias como mo e competitividade desumana; sabedoria
○
○
nas, de larga aplicação e de eficácia simbólica dável em ambiente “natural”, “mata” x vida
○
○
bastante perceptível, hoje, no campo da Edu- insalubre em ambiente citadino, poluído; vida
○
como essa mesma sociedade e seus agentes etnoconhecimentos x cientificismo estéril etc.
○
○
configuração histórica e social tida como típi- dos agentes do pólo dominante, longe de ha-
○
○
temporâneas em áreas como aquelas em que pólo dominado, apenas projeta sobre este,
○
○
ção, sabe-se que não é difícil à maioria dos percebido como idealmente vivido em uma
○
○
agentes da sociedade nacional ora engajados condição de quase “encantamento”, à qual toda
○
etnocêntricas que negativizam a cultura do in- Aqui, os índices de maior ou menor “auten-
○
dígena em relação à de ego, por meio de opo- ticidade”, vale dizer, de maiores ou menores
○
○
própria plenitude da condição humana. ia dizer mesmo da “pureza” – culturais são se-
○
Por outro lado, ao abandonar tais visões lecionados de acordo com os próprios critéri-
○
○
sociedade nacional dificilmente percebe estar dio – nu, forte, emplumado e cercado de vege-
○
○
com freqüência, ainda assim, arraigada a vi- tação luxuriante – tão cara à nossa consciên-
○
○
sões de “cultura” e de “diferença” muito pró- cia nacional, desde, pelo menos, o Peri, de José
○
150
PAINEL 6
Os etnoconhecimentos na escola indígena
○
○
sive em personagens “reais” de nossa mídia como algo factível de se produzir em proces-
○
○
contemporânea, ao cacique Metuktire Raoni. sos sociais de intensa inter-relação cultural e
○
○
Em suma, são nos sinais diacríticos de “di- simbólica entre os grupos “diferenciados”, e
○
ferença cultural” cuidadosa e interessa- não necessariamente o contrário.
○
○
damente selecionados pela consciência naci- Assim, um tal modelo não consegue pro-
○
○
onal e por grupos organizados de seus agentes duzir a respeito de tais sociedades indígenas
○
que os projetam, em função de suas próprias nada mais do que o que se poderia chamar de 151
○
○
necessidades ideológicas de distinção interna uma “visão lacunar”, por meio da qual essas são
○
○
ou externa, positiva ou negativamente, sobre percebidas apenas como “sociedades da au-
○
○
as sociedades indígenas, em que parecem, em sência” ou “sociedades da perda”. Aqui, vê-se
○
princípio, residir as ditas concepções de “es- nelas não o que elas “são” ou o que elas “têm”,
○
○
pecificidade” e de “cultura” indígenas domi- mas sempre o que elas teriam “deixado de ser”
○
○
nantemente presentes no campo da Educação ou “deixado de ter”, o que teriam “perdido”, que
○
○
Escolar Indígena. é, invariável e genericamente, qualificado
○
Quanto à segunda digressão, quero assina- como tendo sido “a cultura”.
○
○
lar que é justamente no contexto ideológico re- Não é preciso enfatizar muito que, aqui,
○
○
ferido que se deve buscar a inscrição da per- “culturas” não são percebidas como conjun-
○
○
cepção que tem a consciência de tais grupos tos semânticos resultantes de processos so-
○
sociedades indígenas imersas em segmentos dinâmicos, mutáveis, mas como algo dotado
○
○
sociais regionais com longo tempo de consti- de certa “substância original”, perceptível em
○
não raros intensos processos de produção e re- sas próprias ciências, em especial às “da na-
○
○
prias identidades e de seus ordenamentos so- Ora, se sociedades indígenas, como a mai-
○
ciais internos com relação à sociedade envol- oria das do Nordeste e de Minas Gerais, são
○
○
função da imersão ou interpelação mais estrei- processos históricos que, de fato, constituí-
○
○
ta dessas sociedades com segmentos sociais ram-nas são, inversamente, tratados apenas
○
regionais, a percebê-las apenas como resulta- como “processos de perda”, de “perda da cul-
○
○
dos de processos de “corrupção” sociocultural, tura”, não será difícil deduzir qual seja a idéia
○
○
ou como “vítimas” do que costumam definir de “resgate cultural” presente em um tal mo-
○
○
concebe “as verdadeiras culturas indígenas” Também não é difícil imaginar o que, em
○
○
como estados de “encantamento”, de “pureza”, tais circunstâncias, supõe-se que se possa es-
○
○
resultantes de isolamento, devendo ser, pois, perar do antropólogo, ou seja, daquele que é
○
dade” e a “diversidade” são funções desse mes- mento de “culturas” e, portanto, como alguém
○
○
mo distanciamento do “contágio” com outros possivelmente apto a, por seus estudos, desen-
○
○
sistemas culturais, ou do que se costuma defi- volver artes capazes de trazer de volta à “cul-
○
nir como “preservação da cultura”, não pode tura indígena” a sua “substância” perdida.
○
○
mesmo haver lugar para que se percebam cul- Penso que, no âmbito da concepção de cul-
○
○
turas como resultantes de processos históricos, tura inerente ao modelo ideológico tratado, a
○
idéia de “resgate cultural” pode ser percebida indígenas que conheci, ainda como
○
○
como uma espécie de proposição de anulação ingressantes em programas de formação “es-
○
○
da história, um procedimento pelo qual se po- pecífica” e “diferenciada”, a empreitada do “res-
○
○
deria, ao menos em parte, “devolver” às socie- gate cultural” parecia impor-se-lhes como um
○
dades indígenas a sua “essência” perdida e, no desafio e uma missão inquestionavelmente ne-
○
○
limite, fazê-las “retornar” ou “reviver” o seu es- cessários. Egressos, em sua imensa maioria, de
○
○
tado “original” de “encantamento” e de “ver- escolas regionais “indiferenciadas” ou daque-
○
dadeira” “diversidade”. las até recentemente mantidas pelo regime tu-
○
○
Não posso deixar de assinalar também, telar do indigenismo oficial e, enquanto tal, já
○
○
aqui, a presença de uma não infreqüente vi- percebidas por eles como agências de “destrui-
○
○
são, a um só tempo “piedosa” e “culpada”, da ção” de suas culturas, tinham incorporada uma
○
consciência nacional com relação às socieda- aguda consciência de seu papel como agentes
○
○
des indígenas. Ao dispormo-nos a apoiá-las em transformadores do sistema escolar até então
○
○
sua busca do “resgate cultural”, estaríamos vigente, mas sem disporem de uma perspecti-
○
○
também, a um só tempo, contribuindo para o ○
va crítica da idéia do “resgate cultural” que, ao
seu retorno a um estado perdido de autentici- contrário, lhes era apresentada, ainda que mui-
○
○
dade, solucionando, por um lado, o que ten- tas vezes sob formas bastante indiretas, como
○
○
demos a identificar como a causa de sua su- requisito indispensável à própria implementa-
○
○
posta inadaptação ou, mesmo, infelicidade e, ção de uma Educação Indígena de fato “espe-
○
cular pelas “perdas” que lhes causamos. Vê-se, então, assim, como curiosamente as
○
○
De fato, espero que possa estar claro que idéias de “especificidade” e de “diversidade”
○
não percebo aqui mais que a eloqüente expres- podem, de fato, vir a servir justamente ao seu
○
○
são de formas bastante perversas e etnocên- oposto, uma vez que o que se impõe pela de-
○
○
tricas de dominação simbólica – vale dizer manda por “resgate cultural” é, na realidade, a
○
○
“cultural” –, em que das sociedades indígenas adequação de sociedades indígenas de fato di-
○
gens, e sua historicidade, e transmutadas, con- “cultura indígena” imposto pelo sistema ideo-
○
○
bito da ideologia dominante, das concepções oferecida às sociedades indígenas como ins-
○
○
te abaláveis por uma compreensão histórica vente, ao se lhes autorizar, ao contrário, uma
○
mais adequada sobre muitas das sociedades educação “específica” e “diferenciada”, não se
○
○
indígenas contemporâneas – ou mesmo de deixa de se lhes impor, muitas vezes, até mes-
○
○
imagens críticas dessa mesma sociedade, ca- mo sem que se o perceba, a sua redução a um
○
○
ser percebido, como seria de se esperar em sociedades indígenas “reais”, como algumas da
○
○
cepções ideológicas dominantes, nos mesmos Opera aqui, então, um processo de domi-
○
○
termos dessas concepções, ou seja, como algo nação cultural no qual os índios são levados a
○
○
uma idéia reificada de “cultura” e em função plices de seu “seqüestro simbólico”, ou, diria
○
que delas tem a consciência nacional. nesse “seqüestro”, no qual o “resgate” é de fato
○
○
Em especial, para muitos dos professores percebido como um necessário “preço a pagar”
○
152
PAINEL 6
Os etnoconhecimentos na escola indígena
○
○
dade de seus pleitos, sobretudo pleitos por di- ções necessariamente históricas e, portanto, di-
○
○
reitos “diferenciados”. nâmicas, deixando, assim, de ser percebidas
○
○
Não saberia relatar com precisão como re- como referentes a uma suposta “cultura de ori-
○
agi, de início, às diversas formas sob as quais gem”, descontaminada de influências e livre de
○
○
se me apresentavam demandas por contribui- “perdas”.
○
○
ções em processos de “resgate cultural”. Diria De modo geral, um maior interesse de-
○
que tentava tratar “criticamente” tais deman- monstrado no conhecimento de suas históri- 153
○
○
das sem, contudo, dispor de argumentos ou de as não é, por si só, suficiente para pôr em ques-
○
○
outros meios capazes de eliminá-las ou, mui- tão algumas concepções dominantes, como,
○
○
to menos, de atendê-las. por exemplo, a de uma inquestionável conti-
○
É evidente também que não poderia, por nuidade histórica das atuais unidades sociais,
○
○
força apenas de minha própria “consciência ou etnias, desde um período pré-colonial. A
○
○
crítica”, intervir significativamente no quadro consideração de que a própria constituição de
○
○
ideológico que se me apresentava. Assim, foi tais unidades sociais e étnicas possa ser algo
○
de fundamental importância todo um proces- resultante dos próprios processos coloniais
○
○
so de discussão com muitos outros professo- tende, quase sempre, a ser rejeitada como um
○
○
Apesar da “consciência crítica”, não me fur- colar Indígena específica e diferenciada pode,
○
○
tava a colaborar com o “resgate cultural”, apre- sim, caminhar no sentido da produção de um
○
○
sentando aos professores indígenas coisas, conhecimento próprio das sociedades indíge-
○
“antepassados”, relatos dos “seus” costumes, só tempo, informado das concepções teóricas
○
○
feitos por viajantes, e a parca iconografia dis- de nossa História e de nossa Antropologia e,
○
○
ponível sobre a maioria dos grupos da região assim, capaz de livrar-se das perversas tutelas
○
nos períodos colonial e imperial etc. Com isso, simbólicas de ideologias dominantes da soci-
○
○
o interesse inicial, totalmente dirigido à recu- edade nacional, mas capaz também de engen-
○
○
peração de “perdas culturais”, foi se complexi- drar formas próprias de autopercepção de suas
○
○
os próprios processos históricos de tais “per- Se assim for, essa será, certamente, a pe-
○
○
das”, o que se me afigurou como uma tendên- dra angular para o tratamento de quaisquer
○
○
dessa idéia, capaz, por exemplo, de pensar o dora, e não tolamente revivalista, da velha
○
○
○
○
○
Matemática na escola indígena
○
○
○
○
○
Roseli de Alvarenga Corrêa
○
○
Ufop/MG
○
○
○
○
○
O tema proposto “O etnoconhecimento e a da e aprendida?”, “Como trabalhar Matemá-
○
Educação Matemática na escola indígena” tica na escola indígena?” são perguntas feitas
○
○
pode sugerir, num primeiro momento, uma com freqüência no âmbito mais restrito da
○
○
abordagem sobre o modo como os educado- Educação Matemática. As respostas, temos ci-
○
res se utilizam do etnoconhecimento de um ência disso, alojam-se em terreno mais am-
○
○
povo no exercício de sua prática pedagógica na plo e delineiam-se à medida que as idéias se
○
○
te, é um dos focos para tal abordagem. No en- escola indígenas na sua historicidade e com-
○
cação Escolar Indígena pode estar se utilizan- Quando se coloca a possibilidade de criar
○
○
povo, de aspectos de sua cultura, de seus mi- sos de formação de professores indígenas, que
○
tos e crenças, de seu saber e fazer, devo abor- valorizem as experiências de vida dos alunos,
○
○
dar primeiramente a escola indígena, uma ins- o conhecimento de seu povo, sua história e cul-
○
○
tituição garantida legal e constitucionalmen- tura, e que levem em conta suas aspirações,
○
○
te nos dias atuais e pleiteada pela maioria dos impõe-se a necessidade de conhecer tais aspi-
○
povos indígenas. Nessa perspectiva, a aborda- rações e escolhas do povo indígena para a sua
○
○
gem ao tema proposto pede, antes de tudo, que educação específica e como, historicamente,
○
○
se pense e se pergunte e que se levantem al- eles se constituíram. Significa, por um lado, co-
○
○
guns pontos de vista sobre a Escola Indígena. nhecer melhor o indígena que se fez professor
○
A abordagem que farei assenta-se sobre a em sua comunidade: no seu trabalho na aldeia
○
○
minha própria vivência como educadora não- e na escola, na sua relação com as lideranças,
○
○
indígena, que atua em cursos de formação de com os pais dos alunos, com o calendário es-
○
e Educação Matemática. Dúvidas, reflexões, na, cria e constrói para a sua prática pedagó-
○
○
críticas, questionamentos estavam e estão gica e, também, nas suas aspirações como pro-
○
○
sempre presentes no exercício dessa prática, fissional da educação e sujeito ativo de sua co-
○
mas também há espaço para o sonho e o pos- munidade. Por outro lado, significa conhecer
○
○
sível, e, se hoje já temos algumas respostas, o contexto histórico por meio do qual vem se
○
○
elas não se colocam como verdades absolutas, desenvolvendo a Educação Indígena no Brasil
○
○
universais, mas como verdades relativizadas e no qual se insere o modo de ser da escola e
○
que uma das direções a ser trilhada para a Edu- por sua vez, estrutura-se e articula-se também
○
cação Indígena aponta para modos de apren- a partir das visões e das concepções dos dife-
○
○
dizagem abertos – para as experiências e os co- rentes segmentos − além daquelas das comu-
○
○
indígena?”, “Que Matemática deve ser ensina- desse educador não-indígena – seu modo de
○
154
PAINEL 6
Os etnoconhecimentos na escola indígena
ver e entender a Educação Indígena – são con- cie de detalhamento e sofisticação e têm
○
○
cebidas como influenciadas e influenciando como fundo a diversidade de situações, de
○
○
outras representações e práticas. Na sua tota- cultura e de propostas oferecidas pelas co-
○
○
lidade, esses modos de ver e conceber a Edu- munidades indígenas.
○
cação Indígena e a Educação Matemática na No entanto, embora se considere o peso de
○
○
escola indígena dos diferentes segmentos que tais constatações, a questão que ainda se co-
○
○
dela se ocupam são também vertentes do ma- loca, segundo o indigenista e lingüista Wilmar
○
nancial histórico das concepções educacionais da Rocha D’Angelis, é: “Para que uma comuni- 155
○
○
brasileiras e universais. dade indígena quer escola? Que função a es-
○
○
No momento atual, essa história se faz cola tem ou a comunidade está disposta a lhe
○
○
por meio das idéias de educadores influen- conferir?” (D’Angelis, 1999: 20).
○
ciados pelos novos ares e rumos que toma- Essas perguntas, aliadas à nossa sobre a ne-
○
○
ram, no século XX, algumas áreas de conhe- cessidade da escolarização formal para as po-
○
○
cimento, como a Antropologia, a Sociologia, pulações indígenas, não tinham como ser for-
○
○
a Psicologia, a Lingüística e outras. Esse mo- muladas no contexto e pensamento sobre Edu-
○
vimento, que eu diria em espiral, chamando- cação Indígena até a primeira metade do sécu-
○
○
nos à reflexão sobre a escolarização formal lo passado. Antes da década de 1970, mais pro-
○
○
para as comunidades indígenas, remete-nos priamente, a escola indígena foi usada como um
○
○
a uma nova interrogação, qual seja: “É neces- dos principais instrumentos para a descarac-
○
sária a escolarização formal para as popula- terização e destruição das culturas indígenas na
○
○
Uma pequena incursão na história da Edu- “definida e gerida desde fora, imposta e estra-
○
cação Indígena no Brasil assegura-nos que as nha aos índios” (Lopes da Silva, 1995: 10), as
○
○
década de 1970, época em que começaram a o índio” tinham como objetivo reforçar os pro-
○
○
surgir neste país os movimentos propriamente jetos integracionistas gerados pelo pensamen-
○
começam a produzir seus frutos. No final dos Se a escola, desde o início da colonização
○
○
anos 1980, as várias experiências de implanta- até poucas décadas passadas, foi imposta de
○
ção de escolas indígenas com currículos e pe- fora para dentro das comunidades indígenas,
○
○
dagogias próprias já aconteciam juntamente hoje a escola torna-se, para essas mesmas co-
○
○
com a produção de materiais didáticos especí- munidades, “uma espécie de necessidade ‘pós-
○
○
ficos e produzidos pelos próprios índios. contato’, que tem sido assumida pelos índios,
○
A partir dos anos 1990, além da intensifi- mesmo com todos os riscos e resultados con-
○
○
cularmente entre lingüistas, antropólogos e (Dias da Silva, 1999: 64-66). Segundo a autora,
○
○
sociólogos, essa pesquisa torna-se mais re- a escola pode vir a ser, “hoje”, 1 um instrumen-
○
dias atuais têm sido marcados por uma ava- identidades, apoiada que está pelo texto legal
○
○
liação crítica das experiências educacionais que superou a perspectiva integracionista e re-
○
○
riores. Os debates, temas e problemas tor- E é nas idéias que se originaram nesse pe-
○
○
nam-se mais específicos, sofrem uma espé- ríodo, pós-década de 1970 e, principalmen-
○
○
○
○
○
1
Esse “hoje” significa que, após a Constituição de 1988, se inaugurou no Brasil a possibilidade de uma nova fase nas relações entre os povos
○
indígenas, o Estado e a sociedade civil. A educação formal indígena está apenas começando a ser pensada e exercida de forma diferencia-
○
○
da, de modo a assegurar “às comunidades indígenas também a utilização de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem”,
○
○
○
estruturar as respostas para a pergunta que tônoma” (Capacla, 1995: 21). A partir daí, for-
○
○
fizemos sobre a necessidade da escolariza- taleceu-se a idéia – ainda não consensual – de
○
○
ção formal para as populações indígenas no que as próprias comunidades indígenas sele-
○
Brasil. cionassem e preparassem seus professores
○
○
A pesquisa realizada nos vários segmen- bilíngües. Algumas comunidades ainda relu-
○
○
tos envolvidos com a Educação Indígena – tavam em querer “uma escola como a dos
○
em particular nessa fase de mudanças e ne- brancos” e reivindicavam o aprendizado mais
○
○
g o c i a ç õ e s q u e, s e g u n d o L o p e s d a Si l va , rápido do Português pela urgência da situa-
○
○
constituiu-se em “processo intenso, rápido, ção de contato.
○
○
política e cr iativamente inovador, [que] Foi nas universidades e nas organizações
○
transformou a escola indígena característi- indigenistas não-governamentais que as idéi-
○
○
ca dos anos anteriores [...] em espaço de ar- as de “fortalecimento cultural” dos povos in-
○
○
ticulação de informações, práticas pedagó- dígenas encontraram campo favorável.
○
○
gicas e reflexões dos próprios índios sobre ○
Aprofundaram-se os debates em torno das
seu passado e seu futuro, sobre seus conhe- questões indígenas e fortaleceu-se, entre os vá-
○
○
cimentos, seus projetos e a definição de seu rios segmentos da sociedade civil brasileira,
○
○
favoráveis à presença da escola nas comu- Assim, pelo menos no meio acadêmico e,
○
○
nidades indígenas, os quais procuramos digamos, ainda na teoria, era unânime a idéia
○
○
tizá-los, direi que a escola é necessária para na passa a ser um instrumento de reafirmação
○
○
identidade cultural;
○
• local de pesquisa de suas próprias neces- ser considerada e expressa pelos próprios
○
○
1998: 58).
○
156
PAINEL 6
Os etnoconhecimentos na escola indígena
○
○
indígena. meio das suas receitas de comida da roça,
○
○
Diz Gazzetta que: dos ornamentos, dos desenhos nos tururis,
○
○
do trançado das redes, dos pacarás, das al-
○
[...] é muito for te a cultura da identidade, deias, da localização e medida de suas ter-
○
○
é muito for te! Depois, as outras coisas. [...] ras, da venda de produtos da roça e artesa-
○
○
desde que os por tugueses chegaram aqui, os nato etc., constituíram-se em elementos
○
povos indígenas estavam condenados a se- vivificadores e significativos, por um lado, 157
○
○
rem extintos, isso até 1988, quando aparece para o “desvendar e despertar” do pensa-
○
a primeira Constituição brasileira, que diz al-
○
mento matemático Ticuna e, por outro, por
○
guma coisa, que garante alguma coisa. Claro
○
demonstrarem as características de um pen-
○
que não é de graça; todo o movimento, prin-
sar e fazer educação que pudessem permitir
○
cipalmente das organizações indígenas lá do
○
à escola indígena, como específica e diferen-
○
Norte, dos povos indígenas lá do Norte, é toda
○
ciada, ocupar os espaços aos quais realmen-
○
uma mobilização; eles não ganham isso de
○
graça, mas você vê que é a primeira vez que te tinha e tem direito.
○
Com o objetivo de discutir as possibili-
○
aparecem numa Car ta oficial alguns direitos.
○
dades desse “como fazer” na escola indíge-
○
Então, o que acontece? De repente, com es- ○
ses direitos, eles começam a ver uma luz no na, mostro, nas linhas a seguir, um breve mo-
○
○
fim do túnel, eles se fortalecem. [...] E quan- mento de um trabalho desenvolvido no Cur-
○
turo deles, a escola hoje faz par te desse pro- pondo idéias de como o etnoconhecimento,
○
○
porado e ressignificado pela maioria dos po- podem, juntos, numa situação de transcen-
○
○
vos indígenas [...]. E esse projeto de futuro é dência, oferecer condições para a promoção
○
○
seguimos criar isso (Gazzetta, entrevista gra- Essa proposta que apresentamos também
○
○
É dentro dessa problemática do “como fa- professor, como criador de estratégias peda-
○
○
zer”, apontada por Gazzetta, que evidenciarei, gógicas com base em seu saber, em elemen-
○
○
neste trabalho, ações pedagógicas estruturadas tos de sua cultura, expressos segundo sua pró-
○
tica voltada para cursos de formação de pro- O trabalho foi desenvolvido com base no
○
○
fessores indígenas e, em particular, para o Cur- texto “História do buriti”, um pequeno livro es-
○
so de Formação de Professores Ticuna da re- crito e ilustrado pela aluna Hermelinda Ahuê
○
○
gião do Alto Solimões, Amazonas – promovido Coelho, em 1996, satisfazendo a uma das dis-
○
○
pela Organização Geral dos Professores Ticuna ciplinas do curso. Contando a história do
○
○
Algumas das ações pedagógicas propos- história do mundo Ticuna em sua relação com
○
○
○
○
buriti”, a autora conta também um pouco da
○
○
2
Hermelinda Ahuê Coelho, aldeia Canimarú, 1996 história de seu povo, fala da relação do homem
○
○
e dos animais com a floresta e com essa espé-
○
O buriti serve para o homem comer e fazer cie de palmeira, muito resistente às inunda-
○
○
vinho. ções. Por meio do texto, o leitor percebe que
○
Serve também para alimentar os animais.
○
derrubar um buriti muito alto para retirar seus
○
Tem buriti no buritizal, na terra firme e nas frutos ainda é uma prática, embora discutível
○
○
restingas.
nos dias atuais, e salienta também, inclusive
○
As pessoas plantam o buriti perto da casa.
○
por meio das ilustrações, alguns aspectos das
○
Os animais que comem o buriti são: anta,
○
relações sociais da aldeia, quando diz da divi-
○
veado,
são dos frutos, de como lidar com eles e, por
○
jabuti, paca, quati, porco-do-mato, arara.
○
fim, de tomar o vinho.
○
O buriti quando está na água não morre.
○
As frutas, quando amolecem na árvore, caem. Para nós, leitores, o texto de Hermelinda
○
○
pretas. Aí as pessoas vão buscar. floresta, quando traz algumas respostas para
○
○
Quando já está preto o buriti, deixa em uma – Quando é tempo de o homem colher os
○
Duas horas e ele já amolece bem. – Como as pessoas fazem para colhê-los e
○
○
Com base nesse texto e em suas ilustrações, Além das questões sociais e culturais en-
○
preparei um material para ser lido e discutido volvendo a relação entre as pessoas da aldeia
○
○
em sala de aula com os alunos. Em sua primei- e a sua vida na floresta, o texto aponta tam-
○
○
ra parte, e tendo em vista os objetivos que pre- bém para questões espaciais, temporais e
○
muitas informações sobre essa espécie de pal- aturás? Quantos dias? São estas as perguntas
○
○
meira chamada buriti. que podem ser feitas quando a intenção é co-
○
ele é encontrado nativo na mata e, também, Podemos fazer muitas outras perguntas.
○
○
que as pessoas o plantam perto de suas casas. Tudo depende do que já conhecemos sobre o
○
○
Fala dos animais que comem seu fruto e da assunto e também de nossa vontade e neces-
○
colhidas pelas pessoas. As frutas são divididas fundo e de ampliar nossos conhecimentos.
○
○
entre as pessoas e levadas para a aldeia. De- Assim, também, os inúmeros textos produ-
○
○
pois de alguns dias, quando já amolecidas, as zidos pelos professores Ticuna e seus alunos,
○
2
Hermelinda Ahuê Coelho é professora de escola indígena e aluna do Curso de Formação de Professores Ticuna. Neste texto, deixo de
○
158
PAINEL 6
Os etnoconhecimentos na escola indígena
com a floresta e os animais, seus mitos e lendas, direção e sentido – e que o estudo das “matemá-
○
○
relatando suas festas, seu artesanato, a culiná- ticas” pode ser realizado com seus alunos, em
○
○
ria, a fabricação de utensílios etc., constituem, sala de aula, apoiado no etnoconhecimento de
○
○
para o leitor indígena e não-indígena, fontes seu povo, retomando, rediscutindo, revitalizando
○
inesgotáveis de conhecimento, de aprendizado, aspectos de sua cultura e redimensionando-os
○
○
de indagações, juntamente com outros textos para o momento presente. Os trabalhos criados
○
○
que trazem o conhecimento de outras culturas. pelos professores nas etapas posteriores do cur-
○
Aí entram os livros, os jornais, as revistas etc. so para as séries iniciais do Ensino Fundamen- 159
○
○
Com esse texto da professora Hermelinda, tal atestam essas afirmações.
○
○
entre muitos outros que poderiam ser coloca-
○
○
dos para nosso estudo, nossas considerações e
Bibliografia
○
nossos questionamentos – e trabalhados em si-
○
○
tuação didática –, pretendemos expressar as CAPACLA, Marta Valéria. O debate sobre a Educação In-
○
dígena no Brasil (1975-1995). Resenhas de teses e
○
idéias que vêm orientando nosso jeito de ser e
○
livros . Brasília: MEC, 1995.
○
agir durante as etapas do curso de formação de
D’ANGELIS, Wilmar da Rocha. Contra a ditadura da escola.
○
professores, as quais visam ao aprendizado da
○
Cadernos Cedes: Educação Indígena e Interculturalidade.
○
Matemática e, neste momento, estruturam tam- Campinas, 2000.
○
○
bém a criação e a organização deste trabalho D’ANGELIS, Wilmar R.; VEIGA, Juracilda (Orgs.). Leitura
○
○
rer saber mais e a pesquisa em novas fontes e nas, ano 19, n. 49, p. 62-75, dez.1999.
○
○
textos. No caso específico da Matemática, re- GRUPIONI, Luís Donisete B. De alternativo a oficial: so-
○
um direcionamento para as questões matemá- LOPES DA SILVA, Aracy. Prefácio. In: CAPACLA, Marta
○
sem, no entanto, nos afastarmos do pensamen- sil (1975-1995). Resenhas de teses e livros . Brasília:
○
○
rão de nossos questionamentos estão imersas, LOPES DA SILVA, Aracy; GRUPIONI, Luís Donisete B.
○
○
envoltas, relacionando-se com idéias que (Orgs.). A temática indígena na escola: novos subsídi-
○
mento dado ao trabalho abre possibilidades para MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. Secretaria de Educação
○
ral do povo indígena, assim como para outras ca- SILVA, Márcio Ferreira; AZEVEDO, Marta Maria. Pensan-
○
R o ra i m a e A c r e. I n : L O P E S DA S I LVA , A ra c y ;
texto proporcionaram-lhe novas perspectivas so-
○
EXPERIÊNCIAS DE FORMAÇÃO
DE PROFESSORES INDÍGENAS
Jussara Gomes Gruber
Marlene de Oliveira
161
O Curso de Formação
○
○
○
de Professores Ticuna
○
○
○
○
○
Jussara Gomes Gruber
○
○
Organização Geral dos Professores Ticuna Bilíngües (OGPTB)
○
○
○
○
○
Resumo
○
○
○
○
Em 1993, os professores membros da Organi- O curso de formação faz parte do Projeto Edu-
○
○
zação Geral dos Professores Ticuna Bilíngües cação Ticuna, que envolve um conjunto de ativida-
○
(OGPTB) reuniram-se para iniciar um curso que des organizadas em programas especiais voltados
○
○
lhes possibilitasse concluir o segundo grau com ○
para as questões de saúde, terra, meio ambiente,
habilitação para o exercício do Magistério. O curso
○
das férias escolares, de modo que todos os profes- capacitação de supervisores índios e a organização
○
sores pudessem freqüentá-lo sem prejuízo de suas do projeto político-pedagógico das escolas Ticuna.
○
○
O Curso de Formação de Professores Ticuna é, tante abrangente, que traz como parte da forma-
○
portanto, promovido pela OGPTB e conta com a par- ção do professor todos os aspectos que devem
○
○
ticipação de 250 professores. Já concluíram o Ensi- constar de uma escola diferenciada, como a pro-
○
○
no Fundamental 225 professores Ticuna, dos quais dução de materiais didáticos específicos, calen-
○
170 completaram o Ensino Médio em agosto de dário, programa curricular, planejamento, estudo
○
○
2001. Em julho de 2002, mais 35 docentes conclui- da legislação, entre outros, com a finalidade de
○
○
etapas, durante oito anos, totalizando 4.120 horas. tiva das escolas Ticuna.
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
A formação de educadores
○
○
○
Introdução
○
estado do Mato Grosso, na região do Rio Xingu e A partir de 1994, foi iniciada a formação de
○
○
seus formadores, tem uma extensão de 2.642.003 professores indígenas no parque, o que resultou
○
Kalapalo, Matipu, Nahukuá, Mehinaku, Waurá, postos. Também participam desse processo pro-
○
○
Aweti, Kamaiurá, Trumai, Ikpeng, Yawalapiti, fessores Panara, que atualmente residem na Ter-
○
○
Suyá, Kaiabi e Yudjá. A população está estimada ra Indígena Panara, vizinha ao parque, e dois
○
162
PAINEL 7
Experiências de formação de professores indígenas
○
ligados à CPI-AC e à Unicamp, UFRJ, PUC-SP,
○
tem como objetivo mostrar o desenvolvimento Universidade de Londrina, Universidade
○
○
desse trabalho, enfatizando as práticas pedagó- Metodista de Piracicaba, Museu Goeldi e
○
gicas da equipe de formadores e dos professores
○
Unifesp.
○
indígenas.
○
○
○
Desenvolvimento
○
Histórico
○
163
do curso de formação
○
○
A primeira referência do processo de esco-
○
○
larização no Parque Indígena do Xingu foi a es- O curso de Magistério desenvolve-se por
○
cola do Posto Indígena (PIN) Leonardo, que, em meio de duas etapas intensivas anuais de trinta
○
○
1976, começou a funcionar com a presença de dias, sendo uma por semestre. Além das etapas
○
○
uma professora não-índia. Os alunos eram, em intensivas, é realizado o acompanhamento pe-
○
sua maioria, filhos de lideranças das aldeias vin- dagógico dos professores nas escolas das aldei-
○
○
culadas a esse posto indígena. Nos outros pos- as. Participam do curso 61 professores indígenas
○
○
tos, esse modelo se repetiu durante a década de de todos os povos do parque e os Panara, que
○
○
1980, sempre de forma intermitente, pois de- lecionam para 1.150 alunos entre crianças e ado-
○
mente monolíngües em Língua Indígena, eram questões ambientais, da valorização das diver-
○
○
No fim da década de 1980, todas as escolas vimento da autonomia dessas comunidades para
○
○
estavam desativadas por falta de professores. Ex- lidar com as relações de contato. A abordagem
○
alunos da escola do Posto Diauarum, das etnias de questões relativas ao meio ambiente tem o
○
○
suas próprias comunidades o que aprenderam, população xinguana para a importância da pre-
○
○
sem nenhuma orientação pedagógica. Eles reivin- servação e do uso racional dos recursos naturais.
○
dicaram um curso para aprender a serem profes- Essa iniciativa está sintonizada com a política de
○
○
sores. Em função dessa demanda, a Fundação vigilância da área e das fronteiras do parque e
○
○
Mata Virgem organizou reuniões com as lideran- com a mobilização em relação à proteção das
○
○
ças do parque, a fim de consultá-las sobre o inte- nascentes dos rios formadores do Xingu, por
○
mação de professores indígenas. Em 1994, deu- ção Terra Indígena Xingu (Atix) e pelo Instituto
○
○
de Professores para o Magistério nos PIN O projeto de educação está voltado à reali-
○
Diauarum e Pavuru, contando com a participa- zação de um intercâmbio entre as várias cultu-
○
○
ção de pessoas enviadas por todas as etnias do ras e à valorização das línguas indígenas, desse
○
○
parque, com exceção da Yawalapiti, cuja comu- modo reavivando o interesse dos jovens pelas
○
nidade deseja ter um professor não-índio. Esse próprias histórias, danças, artesanato, língua,
○
○
projeto, em 1995, ficou sob responsabilidade da pela vida social e cultural da comunidade.
○
○
Associação Vida e Ambiente e, em 1996, passou a Uma das formas de valorização das línguas
○
○
ser desenvolvido pelo Instituto Socioambiental. indígenas vem sendo o processo de construção
○
A equipe do projeto é composta por educa- da sua escrita. Na década de 1980, havia, por
○
○
dores, antropólogos, lingüistas, agrônomos, bi- parte dos povos do PIX, resistência ao desenvol-
○
○
óloga, médicos, muitas dessas pessoas já envol- vimento da escrita em suas próprias línguas. O
○
○
vidas há vários anos com algum tipo de trabalho referencial de escola para as comunidades
○
na área. Além da equipe do ISA, há consultores xinguanas era baseado nas experiências ante-
○
○
riores, em que professores não-índios ensinavam tes centrava-se apenas no seu aprendizado in-
○
○
Português e Matemática, por isso a escrita fazia dividual, mas aos poucos começaram a atuar
○
○
sentido apenas na Língua Portuguesa. Além dis- como professores em suas aldeias.
○
○
so, o argumento das comunidades era de que Passamos a observar, então, que os temas tra-
○
ninguém esqueceria a própria língua. O deslo- balhados durante as etapas do curso eram refe-
○
○
camento da Língua Trumai pela Língua Portu- rência para os professores atuarem em sala de
○
○
guesa e da Língua Yawalapiti pela Língua Kuikuro aula. Em função disso, priorizamos a questão
○
vem servindo de exemplo para enfatizar a neces- metodológica de ensino no desenvolvimento dos
○
○
sidade de valorizar o ensino da Língua Indígena conteúdos em todas as disciplinas. Buscamos dar
○
○
também nas escolas. Em assembléias de lideran- ênfase à reflexão pedagógica, ao planejamento
○
○
ças de todo o parque, vários chefes têm reafir- de aulas, ao registro destas no diário de classe e
○
mado a necessidade de se aprender Português e à produção de materiais didáticos.
○
○
Matemática; entretanto, começam também a Um caminho interessante que vem sendo
○
○
apontar a necessidade de fortalecimento da Lín- desenvolvido na abordagem de temas e conteú-
○
○
gua Indígena. Esse discurso tem sido mais ○
dos novos, relacionado à elaboração de materi-
enfatizado por lideranças e comunidades da re- ais didáticos em Língua Portuguesa, é a criação
○
○
gião do Médio e Baixo Xingu. O uso da escrita de textos pelos professores sobre esses assuntos.
○
○
nas línguas indígenas ainda é bastante A equipe do ISA organiza apostilas, tratando de
○
○
incipiente, restringindo-se ao âmbito escolar, e conteúdos novos, para serem estudadas nos cur-
○
a maioria das comunidades ainda não valoriza sos. Essas apostilas vão sendo reconstruídas pe-
○
○
essa prática, concentrando sua expectativa em los professores, com textos produzidos por eles,
○
○
que a escola ensine a falar e escrever a Língua tornando esses conteúdos mais acessíveis aos
○
Na avaliação dos professores indígenas, é guem imprimir em seus textos uma visão e um
○
○
importante criar materiais didáticos na língua modo próprio de se expressar sobre os temas.
○
○
vários conceitos pelos alunos (transmissão de do Livro de história – volume 1 (publicado pelo
○
○
doenças, alguma operação matemática, por MEC em 1997), que aborda reflexões sobre a im-
○
○
O projeto de formação também tem traba- histórias tradicionais de início do mundo, as his-
○
lhado no sentido de preparar os professores para tórias do contato de cada povo xinguano conta-
○
○
a participação na sociedade nacional como ci- das pelos professores e pelos não-índios
○
○
dadãos, para que possam gerir seu território, (Orlando Villas-Bôas, Karl von den Steinen) e a
○
○
defender seus interesses e direitos. Essa prepa- história da chegada dos europeus ao Brasil. O
○
ração tem envolvido o aprendizado de diversas segundo livro, Brasil e África – uma visão
○
○
habilidades necessárias para as relações de con- xinguana, traz informações sobre a escravidão
○
○
zado do uso da Língua Portuguesa – oral e escri- brasileiras, o intercâmbio entre culturas e a for-
○
do dinheiro nas situações de compra e venda, trar a sua diversidade cultural, com o objetivo
○
○
conhecimento e compreensão de leis etc.). de oferecer uma visão mais ampla do que a usu-
○
○
so de escolarização, muitos aprenderam Portu- [...] Os primeiros moradores do Brasil são os po-
○
○
guês e foram alfabetizados durante as etapas do vos indígenas de várias etnias e idiomas diferen-
○
○
curso. A expectativa da maioria dos participan- tes. Depois apareceram outros moradores de ou-
○
164
PAINEL 7
Experiências de formação de professores indígenas
○
tro país, que foram os portugueses. Através dos
○
portugueses também vieram muitos estrangeiros bora com orientações sobre planejamento de
○
○
de vários países para se instalar no Brasil. Atual- aula, resolução das dificuldades do professor e
○
mente a população brasileira é formada por mui-
○
avaliação do aprendizado dos alunos, como tam-
○
tas nações, línguas, costumes, tradições, conhe- bém procura ouvir a avaliação da comunidade
○
○
cimento e religiões diferentes [...] (Matari Kaiabi) sobre a escola. Esses assessores elaboram rela-
○
○
tórios que fornecem subsídios importantes para
○
Em muitos desses livros, além dos textos dos a avaliação do desenvolvimento do professor. 165
○
○
professores indígenas, temos mantido textos da Como orientação pedagógica nos cursos de
○
○
equipe do ISA ou de outras pessoas (escritores, formação, solicitamos aos professores que regis-
○
especialistas, historiadores, viajantes, pesquisa-
○
trassem suas aulas de maneira detalhada e nar-
○
dores etc.) que possam trazer contribuição à rativa. Inicialmente, somente alguns deles fazi-
○
○
compreensão e à ampliação do tema tratado. am esses registros de forma sintética. Aos pou-
○
○
Outro exemplo de reelaboração de conceitos cos, esse trabalho foi-se solidificando e, atual-
○
foi observado no diário de classe do professor mente, todos os professores fazem registros de
○
○
Jeika Kalapalo. Em seu diário encontramos regis- suas aulas, trazendo os diários aos cursos de for-
○
○
trada uma reelaboração do conceito de lixo orgâ- mação. Esses diários estão servindo de base para
○
Há três tipos de lixo: lixo seco, lixo molhado e lixo sores e também estão fornecendo elementos
○
○
perigoso. O lixo seco é papel, plástico, vidro e lata. para que, a partir do próprio trabalho, os profes-
○
O lixo molhado é resto de comida. O lixo perigoso sores exerçam na prática a reflexão pedagógica.
○
○
é pilha velha, remédio vencido, agulha e seringa Por meio do acompanhamento pedagógico,
○
○
usada, espinha de peixe e veneno de formiga. tem sido possível observar as diferentes estraté-
○
○
Por meio desses exemplos, pode-se observar são realizadas sempre num ritmo bastante lento
○
○
neizadora. Cada professor adapta à sua realida- coletivas, mas se preocupam em dar atenção es-
○
Aturi Kaiabi, em seu diário de classe, relata to individual. Muitas vezes, o professor propõe
○
○
uma aula sobre a Constituição brasileira e os di- aos alunos que façam atividades na lousa, ou
○
○
reitos da criança. Usou nessa aula um texto reti- então o professor se senta com cada aluno para
○
da, ele desenvolveu com os alunos uma reflexão aluno espera tranqüilamente que os outros co-
○
○
sobre os direitos da criança indígena, não se res- legas terminem a atividade proposta, prestando
○
○
tringindo ao livro didático. Ele usou também o muita atenção ao desempenho de cada um dos
○
capítulo “Dos índios” da Constituição, texto es- colegas da classe. Isso acontece sem que haja
○
○
tudado durante uma das etapas do curso. nenhum problema de indisciplina ou desatenção
○
○
No processo de formação, há duas maneiras por parte dos alunos. Sob o ponto de vista dos
○
○
vimento do trabalho do professor nas escolas: o muito lenta, mas acreditamos que ela é própria
○
○
zado por educadores da equipe e a leitura dos processo que ocorre dentro da concepção de
○
○
diários de classe dos professores indígenas. tempo vivenciada no cotidiano das pessoas nas
○
avaliar o resultado da formação desenvolvida por das aulas, existe uma diferença marcada entre
○
nas escolas de suas respectivas aldeias. Durante conteúdos são trabalhados num ritmo mais rá-
○
○
pido em comparação com as aulas dos profes- sendo abordados na escola como temas para a
○
○
sores da região do Baixo Xingu. Em contra- leitura, a produção de textos e as dramatizações.
○
○
partida, os diários de classe demonstram que, na Os professores vêm desempenhando um pa-
○
○
região do Baixo, o número de dias letivos é mai- pel importante no contexto da educação para a
○
or que na região do Alto. Tal situação tem levado saúde. Durante as aulas vêm trabalhando com a
○
○
a equipe a refletir sobre o fato de que os conteú- compreensão das causas, sintomas e medidas de
○
○
dos dentro do currículo das escolas não podem prevenção de doenças como a cárie, as diarréi-
○
estar atrelados ao tempo e que o ano letivo nas as, as DST, a malária, a hipertensão e a obesida-
○
○
escolas do PIX vem sendo cumprido no período de. Os agentes de saúde chegaram a participar
○
○
de um ano e meio a dois anos, pois as escolas de algumas etapas do curso, num trabalho inte-
○
○
param de funcionar no período de festas e ativi- grado, e são convidados pelos professores a par-
○
dades na roça. ticipar das aulas sobre saúde nas escolas. Esse
○
○
O acompanhamento pedagógico e a leitura trabalho articula-se com o da formação de agen-
○
○
dos diários de classe são instrumentos privilegia- tes de saúde e auxiliares indígenas de enferma-
○
○
dos para compreender como o professor escolhe ○
gem, desenvolvido pela Unidade de Saúde e
os temas/conteúdos para trabalhar na escola, as Meio Ambiente da Universidade Federal de São
○
○
atividades que vai utilizar para ensinar esses te- Paulo (antiga EPM).
○
○
mas e a seqüência que pretende dar no desenvol- Outro tema que tem merecido destaque nos
○
○
vimento das aulas. Ambos servem de subsídios cursos é a relação entre recursos naturais, cultu-
○
volvimento de pesquisas pelos professores indí- a refletir sobre as mudanças na economia dos
○
○
genas em suas comunidades. Alguns professores povos no PIX e a influência do dinheiro nas rela-
○
○
dos povos Kuikuro, Matipu, Ikpeng, Kaiabi e Suyá ções sociais, econômicas e políticas. Esse traba-
○
○
começaram a gravar e transcrever histórias nar- lho tem caminhado no sentido de desenvolver
○
radas pelos velhos. Um professor Kaiabi realizou uma análise comparativa das diferenças entre a
○
○
uma pesquisa sobre tatuagem a partir da grava- economia tradicional das comunidades e a eco-
○
○
ção da história sobre as guerras dos Kaiabi contra nomia de mercado e de que maneira a interfe-
○
○
os Apiaká. Ele levantou nomes e desenhos de qua- rência da economia de mercado pode ocasionar
○
volvendo uma pesquisa sobre trançado, assim Mudanças na economia do meu povo
○
○
gos (calendário indígena) a partir das estrelas e turais de acordo com as necessidades da co-
○
○
das flores e os períodos de seca e chuva associa- família, pescávamos, caçávamos para o consu-
○
A maioria dos professores vem trabalhando enfeitar, plantávamos para consumo da família
○
○
com temas relacionados à saúde e ao meio am- e também fazíamos canoa para o seu uso.
○
tuguesa e Matemática, direcionarem o trabalho a gente dava, trocava, pagava ao pajé só com ar-
○
○
tesanato e comida.
da escola na preparação dos alunos para as situ-
○
166
PAINEL 7
Experiências de formação de professores indígenas
○
O que é manejo
○
bre as formas tradicionais de manejo dos recur- Manejo é o jeito de usar os recursos naturais.
○
○
sos naturais e caminhado em conjunto com o iní- Usar pode ser tirar, cuidar, respeitar, queimar,
○
transformar, plantar, guardar, colher, caçar, pes-
○
cio de novas experiências de manejo, como as fle-
○
chas e a taquara usada nas peneiras Kaiabi, ou a car. O manejo de antigamente era melhor do que
○
○
o de agora.
apicultura, promovidas pela Equipe de Alternati-
○
O manejo dos recursos mudou aqui no Par-
○
vas Econômicas do ISA em parceria com a Atix.
○
que do Xingu. Com a demarcação, a região de 167
○
cada povo ficou menor. A entrada do dinheiro in-
○
O cuidado que o meu povo tem com a natureza
○
tensificou a exploração dos recursos naturais. Os
○
Na comunidade eu vejo a preocupação em rela-
○
recursos naturais, que antes eram feitos só para
ção à natureza, como não queimar em volta da aldeia,
○
uso, agora estão sendo vendidos.
○
para não queimar remédios que ficam perto do pátio.
○
Hoje em dia está havendo mudança de inte-
○
Outra preocupação que apareceu agora para
○
resses dos adultos e dos jovens. A cultura não-
o povo Kaiabi: cada um que tem semente da plan-
○
indígena está ficando mais forte do que a indíge-
○
ta da roça é para cuidar e distribuir por família para
○
na. Isso está contribuindo para que o conhecimen-
○
plantar. Assim, as sementes nunca acabarão.
to das formas de manejar os recursos naturais
○
Na época de roçado, eles perguntam uns aos
○
esteja sendo esquecido.
outros: “Quem vai precisar da palha para cobrir a ○
○
palha para ser renovada. Isso eu já vi dentro da cas (agropecuária, garimpo, hotéis de pesca, ci-
○
○
minha aldeia que eu estou morando. dades que jogam esgoto nos rios etc.), que colo-
○
território demarcado.
○
Cada ano o chefe pede para as pessoas não Ocupação do espaço geográfico
○
tocarem o fogo.
○
Também o sapezal que tem em volta da aldeia, ocupam espaço desde o início do primeiro mundo.
○
○
se queimar o sapezal, vai faltar para cobrir casa. Nós, índios, temos 100% de sabedoria de so-
○
O meu povo tem cuidado com os pés de plantar, materiais para fazer artesanato, frutos para
○
○
buritizeiros. Eles não cortam os pés de buritizeiros, comer e caças do mato também.
○
quando eles estão fazendo construção de casa. cursos naturais, sem poluir os rios, ou ar, ani-
○
○
que são muito importantes os buritizeiros para uti- A ocupação do espaço geográfico dos não-
○
○
lizar nos artesanatos, como cesto e abanador. Por índios é muito diferente. Eles já vêm com um pen-
○
○
isso, o meu povo Aweti tem cuidado com os pés samento planejado para destruir a natureza, para
○
○
construir as grandes cidades e com eles trazem
○
muitos tipos de equipamentos que produzem pe- esses professores o mesmo tema, mas de ma-
○
○
tróleo, agrotóxicos. Isso traz muitos problemas neira que o ritmo de aprendizado seja respei-
○
para os moradores do Brasil, que são a poluição
○
tado, com um planejamento de trabalho espe-
○
do ar, água, terra, a contaminação de pessoas, cífico para cada grupo. Assim, em virtude dos
○
○
animais, peixes. Esses equipamentos causam
diferentes ritmos de aprendizagem dos parti-
○
grandes assoreamentos nas bacias dos rios e
○
cipantes do curso, vinte professores foram for-
○
principalmente os incêndios nas matas.
mados até 2000, outros dezesseis concluirão o
○
Isso está cada vez mais trazendo doenças
○
curso em 2001 e outros 25 deverão ser avalia-
○
diferentes para o povo brasileiro.
○
dos ao longo dos próximos dois ou três anos.
○
Depoimento de Aturi Kaiabi
○
Dos vinte professores formados, 19 ingressa-
○
ram no Curso de Licenciatura promovido pela
○
Espera-se que a escola seja um espaço po-
○
Unemat, que deverá habilitá-los no prazo de
○
lítico de reflexão e de informação que instru-
○
cinco anos para lecionar de 5ª a 8ª séries e no
mentalize a população xinguana para a mobi-
○
○
Ensino Médio.
lização política que permita amenizar os im-
○
Histórico da regularização do
○
te previsto com seis anos de duração, consta- Lideranças e professores da maioria das al-
○
○
168
PAINEL 7
Experiências de formação de professores indígenas
presente a maioria das lideranças do parque. A relação com os municípios tem sido di-
○
○
Esse encontro do grupo de professores e lide- fícil: os secretários municipais não participam
○
○
ranças propiciou a discussão sobre a vincu- das reuniões com professores e lideranças in-
○
○
lação das escolas ao estado ou aos municípi- dígenas no PIX; há diferenças salariais entre
○
os. Foi um processo difícil de discussão entre os municípios; algumas prefeituras continu-
○
○
a equipe do ISA, professores e lideranças. Para am enviando merenda escolar inadequada ao
○
○
a equipe de formação, foi um processo per- contexto do parque (sal, açúcar, biscoitos,
○
meado de inquietações, tais como: como ex- carnes enlatadas etc.); não há critérios defi- 169
○
○
plicar da melhor maneira o funcionamento dos nidos para a contratação de índios ou não-
○
○
órgãos governamentais em suas diversas ins- índios como professores, sendo contratados
○
○
tâncias? Como optar por um atendimento me- até missionários; interferências do ponto de
○
lhor, sabendo-se que inexiste ainda uma polí- vista pedagógico (não-aceitação dos diários
○
○
tica adequada para as escolas indígenas? Ao dos professores da forma como vêm sendo
○
○
mesmo tempo, se o processo de regularização elaborados, impressão de livros didáticos ina-
○
○
das escolas não se iniciasse, a demanda por dequados, por exemplo), envio insuficiente de
○
escolarização levaria a um número maior de materiais escolares; falta de clareza na apli-
○
○
crianças e jovens fora do PIX. cação de recursos governamentais no atendi-
○
○
(Gaúcha do Norte, Feliz Natal e Querência). A ensino público, maiores contradições são en-
○
○
intenção das lideranças e dos professores foi contradas no respeito à sua especificidade.
○
experimentar os dois tipos de vínculo. Para as Apesar do avanço da legislação que legitima
○
○
diretores entre os professores índios. Eles têm multiplicam, pois o modelo de atendimento
○
○
contas, além de terem redigido o pedido de au- articulação entre órgãos governamentais e
○
○
CEE/MT, um dos passos burocráticos necessá- na Educação Escolar Indígena e com lideran-
○
rios. Uma das conquistas dos professores in- ças e professores indígenas, concretizando a
○
○
dígenas do PIX foi o direito de adquirir meren- participação destes no processo de gestão
○
○
por intermédio da escola. Para isso, foi flexibi- discussão sobre a escola no PIX vem sendo a
○
○
contas desses recursos. A Secretaria de Estado e lideranças. É importante que haja continui-
○
○
de Educação de Mato Grosso tem-se mostra- dade desse fórum de discussões, porque tem
○
deranças e professores indígenas na gestão das ção de que seu trabalho está inserido num con-
○
○
escolas, apoiando reuniões para discutir o texto maior da política dos povos que vivem
○
○
uma educadora que se integrou à equipe do rio, e que o seu vínculo profissional deve ser
○
○
projeto e que participa dos cursos e do acom- com a sua comunidade, evitando que sua atu-
○
○
○
○
○
Fundamental para professores
○
○
○
indígenas de Minas Gerais
○
○
○
○
○
Zélia Maria Rezende*
○
Seduc/MG
○
○
○
○
O estado de Minas Gerais, constituído por • a aprendizagem como um processo contínuo e
○
global que avança em função das experiências
○
diversos grupos socioculturais, abriga uma plu-
○
ralidade cultural e lingüística, compondo um vivenciadas pelos sujeitos em seu contexto his-
○
○
rico mosaico de diferentes tradições, conheci- tórico e social, sendo o etnoconhecimento o
○
pressuposto metodológico que retrata essa con-
○
mentos, valores e línguas que pode ser sinteti-
○
○
cepção de aprendizagem;
zado na expressão “Minas são várias”. ○
de Escolas Indígenas em Minas Gerais, fruto de lidade e da capacidade de atuação sobre ela;
○
indígenas mineiros, esse programa tinha como transformação da realidade em suas aldeias.
○
○
sor e para as escolas de cada povo indígena. jeto UHITUP (“alegria”, na Língua Maxakali),
○
○
tal para Professores Indígenas, realizado de 1996 • construir propostas específicas para as es-
○
educativas:
○
○
○
○
○
* Licenciada em História pela UFMG. Coordenadora-Geral do Programa de Implantação de Escolas Indígenas em Minas Gerais. Consultora da
○
○
170
PAINEL 7
Experiências de formação de professores indígenas
○
○
lares adequados às necessidades, aos inte- processo de formação são dimensões sempre
○
○
resses e aos projetos de futuro de cada buscadas durante o curso de formação e para isso
○
povo;
○
foi de fundamental importância o exercício do es-
○
• fortalecer os processos interativos nos calen- tudo autônomo, da pesquisa independente, do
○
○
dários naturais, sociais e rituais dos espaços registro individual e sistematizado, seja com a
○
○
em que as escolas estão situadas. presença e a coordenação dos formadores, seja
○
Tendo como base os
○
○
principais problemas vivi-
○
○
dos pelos povos indígenas
Estudo da cultura
○
Múltiplas
○
de Minas Gerais, três e da natureza TERRITÓRIO
linguagens
○
questões foram eleitas • Culturas indígenas
○
ÁGUA • Línguas indígenas
○
para nortear todo o traba- • Geografia • Língua Portuguesa
○
• História CULTURA
○
lho, em uma perspectiva • Literatura
○
• Ciências Químicas, • Artes
○
transdisciplinar, abran-
Físicas e Biológicas
○
gendo três áreas de co- • Educação Física
○
• Uso do território Pedagogia
○
nhecimento indicadas
indígena
○
○
indígena
pelo diagnóstico e nos de-
• Fundamentos
○
da Educação
○
genas, os formadores e os
○
• Iniciação à pesquisa
○
atividades significativas foram algumas das preenchidas tanto pelos cursistas como pelos
○
○
atitudes, valores, conceitos e habilidades são pela coordenação por etnia, por meio de reu-
○
construídos no exercício de resolver questões ou niões registradas em fitas de áudio e/ou vídeo;
○
○
○
○
dão uma idéia de como os cursistas estão vendo consistiu em escolher um tema para desenvol-
○
○
seu processo de formação, em sua etapa formal- ver com os alunos, planejar e executar o plane-
○
○
mente final: jado na sua sala de aula, registrando as diversas
○
etapas; recolher e anexar os trabalhos e as avalia-
○
○
Durante todo este curso aprendi muitas coi- ções dos alunos; avaliar, em grupo, a aplicação e
○
○
sas boas, uma delas foi trabalhar com meus alu- os resultados obtidos individualmente, prepa-
○
nos. Na minha escola o aluno aprende a viver em rando um único relatório crítico de todo o tra-
○
○
comunidade, aprende os ensinamentos do nosso
balho. O formato desse trabalho final para os
○
povo, aprende a resgatar a consciência do cida-
○
Maxakali foi diferente – gravação em vídeo so-
○
dão brasileiro Pataxó e aprende a analisar a his-
○
bre sua cultura.
○
tória de outros grupos sociais. [...] Hoje ainda te-
O Curso de Magistério de Ensino Fundamen-
○
nho algumas dificuldades, mas estou consciente
○
tal para Professores Indígenas foi concebido
○
do que é bom para mim e meu povo. E, além do
○
mais, já tenho uma consciência de qual cidadão como um ciclo único e estruturado em:
○
○
O curso foi acontecendo e os nossos conheci- global de formação em que, partindo de situa-
○
○
mentos foram aumentando, cada módulo que acon- ções-problema reais, os cursistas têm contato
○
“como” se ensina.
○
que a gente participava, com o apoio dos nossos A preparação de cada módulo envolve
○
○
aliados que nos incentivaram, com a tradicional roda toda a equipe docente que, partindo da ava-
○
todo dia a gente fazia, cada avanço e obstáculo do módulo anterior e das demandas propos-
○
○
que via, muita coisa aprendia. [...] Me sinto muito tas pelos cursistas, participa de um movimen-
○
172
PAINEL 7
Experiências de formação de professores indígenas
○
Troca de experiências e convívio com outras
○
ram também atividades de ensino não-pre- culturas. Conheci muita gente diferente e elas,
○
○
sencial. Orientados pelos formadores nas etapas de certa forma, colaboraram para que eu ocu-
○
passe um espaço que nunca havia ocupado an-
○
intensivas, os cursistas desenvolveram ativida-
○
des de pesquisa, literatura e escrita, coleta e pre- tes, dentro e fora da comunidade
○
○
paração de material didático, entre outras. Valmores Conceição da Silva,
○
professor Pataxó em formação
○
O estágio supervisionado constituiu-se em
○
um instrumento de formação em serviço. Após 173
○
○
O trabalho específico por etnia no curso
o quarto módulo intensivo de ensino presencial,
○
de formação mostrou resultados positivos
○
a Secretaria de Estado da Educação criou esco-
○
imediatos no rendimento acadêmico, na
○
las indígenas e designou os cursistas como do-
○
racionalidade de organização dos cursos, na
centes dessas escolas.
○
afirmação étnica e na valorização pessoal.
○
O estágio teve como foco central a reflexão
○
O Conselho Estadual de Educação de Mi-
○
da prática pedagógica incidindo sobre todos os
○
nas Gerais, no Parecer nº 1.109/98, de apro-
○
aspectos da vida cotidiana da escola e possibili-
○
vação do Curso de Magistério de Ensino
tando a construção gradativa de uma pedagogia
○
Fundamental para Professores Indígenas,
○
indígena, com características próprias e adequa-
○
○
considera que “essa escola torna-se real-
das à Educação Escolar de cada povo.
○
indígenas”.
das, interesses e objetivos diferenciados fo-
○
t ro g r u p o s é t n i c o s d e m a n e i ra m a i s
○
Maxakali, Kaxinawá, Kaingang, Bakairi, Guarani, sariamente propõe mudanças, desafios, mais
○
muito grande conhecer todo esse povão. Aprendi ser um bom sinal. Enfim, as questões não apa-
○
○
muitas coisas com as trocas de experiências. recem, a menos que se comece a caminhar.
○
○
○
○
○
iniciais do Ensino Fundamental para
○
○
○
o contexto indígena Xokleng e
○
○
○
Kaingang: igualando oportunidades,
○
○
○
fortalecendo identidades,
○
○
○
consolidando o direito à diferença
○
○
○
○
Marlene de Oliveira
○
○
Seduc/SC
○
○
○
○
○
Resumo
○
○
○
○
O Curso de Formação e Habilitação de Professo- comunidades de origem. Tem a duração de 2.590 ho-
○
○
res de Séries Iniciais do Ensino Fundamental para o ras/aula, sendo que 20% da carga horária de cada disci-
○
○
Contexto Indígena Xokleng e Kaingang vem sendo plina é realizada na modalidade de ensino a distância.
○
desenvolvido pela SED/SC como experiência peda- O trabalho é desenvolvido com base nos pressu-
○
○
gógica em regime especial desde 1999, em cumpri- postos que orientam o Referencial Curricular Nacional
○
○
mento ao que dispõe a LDB nº 9.394/96, no seu artigo para as Escolas Indígenas, no que se refere à elabora-
○
de Educação, no que diz respeito à Educação Escolar que atenda aos anseios e aos interesses da comunida-
○
○
Indígena, bem como atendendo às determinações do de indígena, bem como à formação de educadores ca-
○
Fundo de Desenvolvimento do Ensino Fundamental pazes de assumir essas tarefas e de técnicos capacita-
○
○
e Valorização do Magistério que extingue, no prazo de dos a assessorá-las e viabilizá-las. Além disso, está pau-
○
○
cinco anos, a categoria de professor leigo. tado no documento “Educação Escolar Indígena”, que
○
Foi aprovado pelo Parecer nº 248/98 do Conselho integra a Proposta Curricular de Santa Catarina – Edu-
○
○
Estadual de Educação/SC e destina-se a professores cação Infantil, Ensino Fundamental e Médio: Temas
○
indígenas leigos que já atuam nas escolas indígenas, multidisciplinares, elaborado com a colaboração de
○
○
e as diretrizes do MEC, que apontam para a ela- sociedade democrática envolve, também, o re-
○
○
cação e do Desporto do Estado de Santa tradições das diferentes culturas, faz-se neces-
○
○
ção Indígena (NEI), tem buscado efetuar uma ção a essas comunidades, fortalecendo o pro-
○
ma educacional da sociedade envolvente, va- la esses povos estão excluídos do processo his-
○
○
lorizando as culturas e as tradições das comu- tórico global e atual da sociedade na qual se
○
○
nidades indígenas, em que a maioria de seus cussões promovidas pelo NEI com as comuni-
○
○
membros não possui sequer a escolarização dades, desde 1994, que vimos propondo pro-
○
174
PAINEL 7
Experiências de formação de professores indígenas
gramas específicos visando à formação de re- como à formação de educadores capazes de as-
○
○
cursos humanos para o exercício da docência sumir essas tarefas e de técnicos capacitados a
○
○
entre os próprios indígenas, considerando suas assessorá-las e viabilizá-las. Além disso, está
○
○
tradições socioculturais e estimulando a emer- pautado no documento “Educação Escolar In-
○
gência de métodos de ensino que garantam a dígena”, que integra a Proposta Curricular de
○
○
produção de uma literatura nas línguas nativas. Santa Catarina – Educação Infantil, Ensino Fun-
○
○
O estado de Santa Catarina abriga três damental e Médio: Temas Multidisciplinares,
○
etnias – Kaingang, Xokleng e Guarani – que que considera fundamental a formação de re- 175
○
○
somam 8 mil índios. cursos humanos para o exercício da docência
○
○
Os Guarani não possuem áreas demarcadas, entre os profissionais indígenas, considerando
○
○
o que faz com que ocupem terras de outros gru- suas tradições e estimulando a emergência de
○
pos indígenas. Em virtude da sua grande mobi- métodos de ensino que garantam a produção
○
○
lidade social, não é possível proceder a um de uma literatura na língua nativa.
○
○
mapeamento preciso e definitivo desse grupo. Entre os vários aspectos apontados pela Pro-
○
○
Entretanto, em 1990, registra-se sua presença posta Curricular de Santa Catarina, destaca-se
○
em pelo menos 22 municípios, áreas de ocupa- a discussão sobre o caráter diferenciado da Edu-
○
○
ção tradicional. cação Escolar Indígena, passando pela questão
○
○
Os Kaingang, um dos maiores grupos que da cultura como elemento determinante nas
○
○
sobrevivem no Brasil, somam 4.400 indivíduos, relações educacionais estabelecidas entre a es-
○
có (Municípios de Ipuaçu e Entre Rios), Toldo Propõe que o currículo, entendido como
○
(Seara), Ibirama e Palmas (Abelardo Luz). a forma como são distribuídos os períodos leti-
○
○
Os Xokleng somam aproximadamente 1.800 vos, o material didático, entre outros aspectos
○
○
índios e constituem o único grupo Xokleng do −, seja discutido e elaborado em parceria com
○
○
Brasil. Ocupam a área indígena de Ibirama e a comunidade indígena. Para tanto, trabalha-
○
a essas comunidades, a Secretaria de Estado da nas escolas indígenas, a partir da prática desen-
○
○
la que oferece toda a educação básica a apro- fessores de Séries Iniciais do Ensino Funda-
○
○
ximadamente 505 alunos, totalizando 1.227 mental para o Contexto Indígena Xokleng e
○
alunos. As ações voltadas para essas escolas são Kaingang vem sendo desenvolvido pela SED/
○
○
Indígena (NEI), diretamente vinculado à Dire- especial desde 1999, em cumprimento ao que
○
○
toria de Ensino Fundamental, constituído em dispõe a LDB 9.394/96, no seu artigo 79, e con-
○
Educação, escolas indígenas, universidades e Escolar Indígena, bem como atendendo às de-
○
○
O trabalho é realizado com base nos pres- tério que extingue, no prazo de cinco anos, a
○
○
supostos que orientam o Referencial Curricular categoria de professor leigo. Foi aprovado pelo
○
○
programa de educação que atenda aos anseios genas leigos que já atuam nas escolas indíge-
○
○
e aos interesses da comunidade indígena, bem nas, além de outros índios interessados, indi-
○
cados por suas comunidades de origem. dagógicos e oficinas de produção literária
○
○
Tem a duração de 2.590 horas/aula, e 20% Kaingang e Xokleng.
○
○
da carga horária de cada disciplina é realizada Os docentes do curso integram o NEI como
○
○
na modalidade de ensino a distância. Entre docentes e consultores, contam com reconhe-
○
uma etapa presencial e outra, os alunos desen- cida experiência na área de Educação Indígena
○
○
volvem trabalhos, tais como: estudos orienta- e constituem uma equipe interdisciplinar para
○
○
dos; coleta de dados nas suas comunidades, a elaboração de proposta teórico-metodológica
○
buscando responder ou elucidar questões para cada etapa de ensino, com o acompanha-
○
○
surgidas no período presencial e estágios que mento de dois auxiliares de ensino bilíngüe,
○
○
contemplem observação, participação e regên- responsáveis por atividades extraclasse com
○
○
cia de sala de aula com o respectivo registro Língua Kaingang e Xokleng.
○
dessas práticas. A avaliação perpassa todas as etapas pre-
○
○
Ocorre em etapas concentradas, durante o senciais e não presenciais e é realizada pelo
○
○
recesso escolar – 26 dias em janeiro e 15 dias conjunto dos participantes (cursistas, docen-
○
○
em julho –, no Colégio Estadual Agrícola Cae- ○
tes, coordenação) e pelas instituições envolvi-
tano Costa, e em etapas intermediárias nos das, tendo a função de redimensionar o pro-
○
○
meses de maio e setembro – seis dias, perfazen- cesso educativo, detectando dificuldades, en-
○
○
como professores leigos, não alterando, assim, vidas no curso propõem-se a capacitar o pro-
○
○
para que não fiquem tempo demasiado sem o proposta curricular das séries iniciais especí-
○
○
Todas as disciplinas de base comum, den- seja, uma proposta com organização curri-
○
○
tro do possível, procuram se adequar à ótica cular, conteúdos, metodologia, calendário es-
○
das culturas Kaingang e Xokleng, estabelecen- colar, avaliação e material didático que expres-
○
○
gue-se e busque conhecer mais sobre a sua O curso integra o Programa de Formação
○
Além dessas disciplinas de base comum, o Contexto Indígena, em que se inserem: 96 ho-
○
○
ral, Língua Kaingang/Xokleng, História e Orga- que atuam na Educação Indígena e o Curso Su-
○
longo do curso, computados nas horas de en- am nesse contexto. Inclui no quadro curricular
○
○
sino a distância, realizados em Língua Portu- as disciplinas Língua Indígena Materna e Cul-
○
○
guesa e Língua Kaingang ou Xokleng, com a tura Indígena (Kaingang, Xokleng e Guarani, de
○
minários para apresentação e problematização Metodologia de Ensino. Esse curso foi autori-
○
○
Os cursistas também participam de proje- 98, e inclui a capacitação das equipes vincula-
○
tos especiais de pesquisa e fomento cultural das aos Centros de Educação de Adultos
○
○
em suas comunidades, além de oficinas para (Ceas), assim como a produção de material
○
○
EXPERIÊNCIAS DE FORMAÇÃO
DE PROFESSORES INDÍGENAS
Eunice Dias de Paula
177
Professores indígenas:
○
○
○
processos formativos e algumas
○
○
○
indagações
○
○
○
○
Eunice Dias de Paula*
○
○
Cimi/MT
○
○
○
○
○
As reivindicações por uma escola indígena formativos vivenciados por esse professor nos
○
○
com um ensino que atenda às expectativas dos anos que antecederam a sua prática pedagógi-
○
○
diferentes povos têm na figura do professor in- ca em sala de aula. Há uma concepção de for-
○
○
dígena um dos seus eixos basilares. De fato, ao mação fortemente marcada pela depreciação
pensarmos na longa trajetória desses quinhen- ○
○
○ em relação ao professor que não passou por
tos anos, em que as políticas públicas destina- processos de escolarização seriados, estabele-
○
○
das a essas populações, via de regra, foram cidos por nossa sociedade, em escolas fora das
○
○
pautadas por ações que visavam à assimilação aldeias, e que, portanto, estaria menos apto a
○
e ao apagamento da diversidade étnica presen- cursar um segundo grau com habilitação para
○
○
te neste país, constatamos que os diversos o Magistério em escolas indígenas. Como o que
○
○
agentes educacionais utilizados pelos coloni- se privilegia é a formação dada nos cursos or-
○
veis ao intento maior do projeto colonial. com escolaridade insuficiente. Queremos res-
○
○
Quando uma nova história começou a ser saltar o contra-senso embutido nessa concep-
○
traçada, há cerca de trinta anos, com os povos ção, pois se o que se espera é que ele seja um
○
○
indígenas exigindo escolas que estivessem a bom professor indígena, o processo formativo
○
○
serviço de seus projetos de vida, nada mais proporcionado pelas comunidades é que deve-
○
○
coerente que pessoas das diversas etnias as- ria ser considerado relevante.
○
nio lingüístico e cultural próprio a um mem- rio acarreta responsabilidades variadas, que
○
○
bro interno ao grupo, sem dúvida, superior ao têm que ser contempladas dentro do que as
○
○
boas intenções e preparo técnico, não pode ser tativas do trabalho do professor, responsabili-
○
○
comparado a quem nasceu e foi criado em ou- dades bastante diferentes das que ele pode en-
○
○
tro chão cultural, passando por experiências contrar entre os especialistas de Educação In-
○
○
formativas únicas, como os rituais de inicia- dígena, como “entender a vida dos brancos”, por
○
vência, os conhecimentos mitológicos etc. escola é uma instituição que está sendo apro-
○
○
Entretanto, de modo bastante paradoxal, priada pelos povos indígenas, mas que, nesse
○
○
so e na prática dos detentores do poder, encai- e espaços muito diferentes dos sistemas edu-
○
○
xada nos programas de Educação Escolar Indí- cativos tradicionais. A par dessas considerações,
○
○
gena que se multiplicaram no país, o mesmo ousamos afirmar que a formação dos profissio-
○
não se pode dizer a respeito dos processos nais de Educação Escolar Indígena não pode ser
○
○
○
○
○
○
* Pedagoga, mestre em Estudos Lingüísticos pela UFG, assessora pedagógica da Escola Tapirapé, em Mato Grosso.
○
178
PAINEL 8
Experiências de formação de professores indígenas
○
○
so formativo vivenciado pelos professores em Tapirapé, assessorados pela Profª Dra. Yonne
○
○
suas comunidades, sob risco de continuarmos Leite, do Museu Nacional, UFRJ. No primeiro
○
○
a agir do mesmo modo que os primeiros colo- desses cursos, realizado em 1997, os professo-
○
nizadores. Ou a escola se insere nos sistemas res desejavam tomar decisões ortográficas, mas
○
○
educacionais indígenas, como algo necessário se sentiam inseguros a respeito de determina-
○
○
na realidade de contato com nossa sociedade, das palavras. Na avaliação, solicitaram que os
○
ou ela não será uma escola indígena, como aler- próximos cursos fossem realizados na aldeia, a 179
○
○
ta Melià.1 fim de facilitar a pesquisa com os mais velhos.
○
○
Queremos aqui destacar três experiências Esse fato é bastante significativo, pois demons-
○
○
formativas em que vimos atuando como asses- tra a articulação que pode existir entre novos
○
soria e que têm buscado superar essa contradi- conhecimentos, no caso, a aquisição de um ins-
○
○
ção, por meio de vários caminhos. Entre os trumental de análise lingüística, e o profundo
○
○
Tapirapé, povo com o qual convivemos há um conhecimento da Língua Tapirapé, exercido
○
○
longo tempo, a escolha inicial de pessoas con- pelas pessoas idosas.
○
sideradas aptas a serem professores aconteceu Os professores Kayabi, Apiaká e Mundu-
○
○
após longas discussões com a comunidade e a ruku, da região do rio dos Peixes, município de
○
○
decisão se encaixou num padrão cultural típi- Juara, em Mato Grosso, participaram do Proje-
○
○
co: os primeiros professores pertenciam a fa- to Tucum – Formação para Professores Indíge-
○
mílias tradicionais das quais podiam ser esco- nas – desenvolvido pelo estado do Mato Gros-
○
○
lhidas as lideranças. Após alguns anos, quando so. Entretanto, queriam elaborar a proposta
○
○
necessitaram de novos professores, o critério de curricular de suas escolas, uma vez que preten-
○
escolha utilizado foi o fato de dois rapazes te- dem oficializá-las como escolas indígenas. Para
○
○
rem ficado órfãos de pai. Queremos ressaltar, isso, solicitaram assessoria ao Conselho Indige-
○
○
nesses dois casos, o fato de que os critérios se- nista Missionário (Cimi), Regional MT. O traba-
○
○
letivos discutidos pela comunidade podem ser lho está sendo desenvolvido há dois anos em
○
completamente diferentes do que a simples encontros periódicos, dos quais participam não
○
○
passagem por bancos escolares durante alguns só os professores, mas toda a comunidade.2 São
○
○
anos. A preparação deles foi sendo feita por momentos muito ricos, pois todas as pessoas
○
○
permeado por um processo de reflexão e avali- como querem a escola para seus filhos, definin-
○
○
ação em reuniões com a comunidade. A habili- do todo o planejamento escolar, desde o calen-
○
○
tação para o Magistério aconteceu pela partici- dário até os conteúdos considerados importan-
○
○
pação no Projeto Inajá (I e II), organizado pelas tes no processo de aprendizagem concebido
○
Mato Grosso. Esse curso destinava-se também Os professores Guarani e Kaiowá, organiza-
○
○
a professores leigos das zonas rurais dos muni- dos no Movimento dos Professores Indígenas
○
○
cípios envolvidos, portanto não tinha a carac- Guarani e Kaiowá do Mato Grosso do Sul desde
○
terística de ser voltado exclusivamente a pro- a década de 1980, vinham lutando há muito
○
○
fessores indígenas. Um trabalho de “tradução” tempo para ter um curso de Magistério especí-
○
○
do curso fez-se necessário e, assim, o elo com a fico. O Projeto Ára Verá (“tempo iluminado”),
○
○
vida da aldeia foi se mantendo. Como havia assumido pela Secretaria de Educação do Esta-
○
uma lacuna no tocante à formação lingüística, do em 1999, em parceria com vários municí-
○
○
○
○
○
○
1
Bartomeu Melià, em palestra proferida no I Congresso Latino-Americano de Educação Escolar Indígena, promovido pela UFMS, em Doura-
○
○
2
Esse trabalho é desenvolvido em conjunto com Maria Regina Rodrigues e Maristela Sousa Torres, ambas da equipe de coordenação do Cimi,
○
Regional MT.
○
pios, passou por uma longa gestação, envolven- a presença de D. Júlia, rezadora de Amambaí,
○
○
do professores indígenas, lideranças e aliados foi incrível, pois, além de ela trabalhar na prá-
○
○
dos Guarani e dos Kaiowá e, com certeza, deve- tica os Fundamentos da Educação Tradicional,
○
○
se a esse processo amadurecido a possibilida- realizando diferentes tipos de danças e de ce-
○
de de avanços significativos em relação ao que rimoniais, alternava momentos de exposição
○
○
conhecemos em termos de cursos para profes- teórica para os cursistas, usando cartazes com
○
○
sores indígenas. mitos desenhados. Em todas as etapas, tem
○
Segundo seus autores, o Projeto Ára Verá acontecido a presença desses caciques
○
○
“constitui-se num processo integrado às práti- rezadores, que realizam todas as manhãs um
○
○
cas vivenciadas pelos Guarani/Kaiowá, as quais ritual conhecido como jehovasa, uma bênção
○
○
se baseiam em três grandes fontes – teko (cul- matinal para que tudo corra bem durante o dia.
○
tura), tekoha (território) e ñe’e (língua) – que são Além disso, são consultados sobre assuntos
○
○
também os eixos fundamentais pelos quais vão que os professores, jovens em sua maioria, não
○
○
se articular os conteúdos e a metodologia do dominam. Durante a 5ª Etapa, quando discor-
○
curso”. 3 Essa proposta não ficou só no papel, ○
○
ria sobre as relações entre grafismo e escrita,
concretizando-se de várias formas: os alunos se exemplificando com motivos trançados em ar-
○
○
sentem absolutamente à vontade para se ex- cos e cestos, o Sr. Jofre, cacique rezador de
○
○
pressar em sua própria língua, durante as eta- Panambi, explicou em Guarani os nomes dos
○
○
pas presenciais do curso; às vezes, temos a sen- motivos decorativos. Foi uma surpresa para
○
sação de estar participando de um grande muitos, que não sabiam que havia denomina-
○
○
fórum de debates sobre a situação da língua, os ções diferentes para identificar os desenhos
○
○
valores culturais, ou sobre os sistemas educa- geométricos. Ainda nessa etapa, houve o lan-
○
cionais próprios e o que representa a presença çamento do livro de contos Ñe’ë Poty Kuemi
○
○
da escola; a “aula”, não raras vezes, transforma- (Palavras floridas tradicionais), produzido pe-
○
○
cabe aprender com verdadeiros mestres do nidades. O livro foi batizado pelos caciques
○
A estreita ligação do projeto com a vida cerimônia comovente chamada ñe’ë mongarai.
○
○
Guarani está assegurada também pela possibi- A dimensão desse ato excede qualquer plane-
○
○
lidade da participação constante de caciques jamento curricular que possa ser feito pelos
○
rezadores durante as etapas presenciais do cur- técnicos das Secretarias de Educação, pois sig-
○
○
so, conforme afirmado num dos princípios me- nifica, de fato, algo produzido pela Educação
○
○
criar condições favoráveis para desenvolver o Acreditamos que o breve relato dessas três
○
Durante a etapa de Fundamentos da Edu- sores o direito aos processos próprios de apren-
○
○
3
Projeto Ára Verá – Curso Normal em Nível Médio – Formação de Professores Guarani/Kaiowá, Campo Grande, MS, 1999, p. 13.
○
180
PAINEL 8
Experiências de formação de professores indígenas
Projeto Tucum
○
○
○
Relato de uma experiência de formação
○
○
○
de professores indígenas em Magistério
○
○
○
○
○
Terezinha Furtado de Mendonça*
○
181
○
Seduc/MT
○
○
○
○
○
Resumo
○
○
○
rias de Educação dos estados e municípios a
○
O presente artigo retrata a experiência de for-
○
incumbência de sua aplicação, em consonân-
mação de professores indígenas para o Magisté-
○
cia com a Secretaria Nacional de Educação do
○
rio – Projeto Tucum. Esse projeto foi desenvolvi-
○
MEC. Tal mediação foi resultado do Decreto nº
○
do de 1996 a 2000, em quatro pólos regionais do
○
estado de Mato Grosso: Tangará da Serra, Água 26/91, de 4 de fevereiro de 1991.
○
○
Boa, Rondonópolis e Paranatinga, para 11 etnias Também no mesmo ano, foram publicadas
○
Xavante, Bakairi e Bororo. Dos duzentos cursistas rio da Educação o Comitê de Educação Escolar
○
○
que iniciaram o Projeto Tucum, 176 se formaram Indígena, cuja finalidade é subsidiar as ações
○
em nível médio e, destes, 70% ingressaram nos educacionais indígenas, servindo de referência
○
○
cursos do terceiro grau indígena na Unemat. aos planos operacionais dos estados e municí-
○
○
rou as demandas apresentadas nas questões in- Nacional de Educação Escolar Indígena, nor-
○
○
dígenas, quando colocadas nas discussões; o teando as ações a serem implementadas nas
○
○
ral de 1988, foram assegurados os direitos in- dual de Educação (Seduc), ainda que sem com-
○
dios). Passou-se a reconhecer o direito à dife- indígenas, atendendo a algumas de suas neces-
○
○
do-se a partir daí um novo paradigma rela- Em setembro de 1987, em função das difi-
○
legislar sobre as populações indígenas, com entidades que vinham atuando nessa questão,
○
○
uma nova concepção que não aquela de incor- buscou-se uma articulação dos diferentes tra-
○
○
gena sai da esfera da Fundação Nacional do caráter oficial, o NEI/MT caracterizou-se como
○
○
Índio (Funai) e passa a ser de atribuição do Mi- um fórum de discussão de ações entre as di-
○
○
* Assessora pedagógica na Equipe de Educação Escolar Indígena da Secretaria de Estado de Educação, MT. Atuou na Coordenação-Geral do
○
Projeto Tucum.
○
A partir de 1989, a Secretaria de Estado de nais, bem como para agregar forças e habilitar
○
○
Educação cria a Divisão de Educação Indíge- professores, levando em conta a diversidade
○
○
na e Ambiental, extinta na reestruturação da étnica e suas especificidades culturais, respei-
○
○
Secretaria, no ano de 1992. Essa divisão, em tando, dessa forma, o projeto educacional das
○
sua curta história, procurou desenvolver sua comunidades e sua necessidade de diferencia-
○
○
ação em consonância com o NEI, buscando mento.
○
○
responder às reivindicações das sociedades in- Em 1995, com o objetivo de reunir todas as
○
dígenas, encaminhadas por intermédio das li- agências envolvidas com a Educação Escolar
○
○
deranças de suas comunidades e por entida- Indígena, realizaram-se quatro seminários re-
○
○
des de apoio ao índio. Esse trabalho foi desar- gionais, a fim de pensar uma proposta comum
○
○
ticulado e o grupo esfacelado, sob o argumen- de formação de professores indígenas.
○
to da “modernização do Estado” e da gestão da Criou-se o Projeto Tucum – Programa de
○
○
qualidade total. Formação de Professores Índios para o Magis-
○
○
Com o atual governo, a questão indígena é tério. Tucum é o nome atribuído ao projeto por
○
○
retomada, discutida e analisada sob um novo ○
se tratar de uma palmeira resistente, cujo fru-
enfoque, constatando-se a inexistência de uma to faz parte da matéria-prima na confecção dos
○
○
política indigenista estadual. O tema passa a adornos, em todas as etnias do estado, e é na-
○
○
ser incluído no Plano de Meta. Nesse docu- tiva tanto no cerrado quanto na mata.
○
○
mento, algumas propostas são delineadas, ser- A escolha do nome não foi por acaso. Há
○
vindo como diretrizes para a implantação de uma associação do fazer criativo e cuidadoso
○
○
Estado de Mato Grosso (CAIEMT), órgão liga- educação como técnica, como prática social
○
○
do à Casa Civil, é reativada e orientada pelo e cultural. É uma relação metafórica entre cul-
○
○
Programa de Governo, passando a articular tura e educação como técnica que deve ins-
○
○
indigenista. contato.
○
○
O estado de Mato Grosso congrega 38 soci- Esse nome envolve sentidos, significações
○
○
edades indígenas, perfazendo uma população que se aderem ao projeto, vir tualizando
○
○
41 municípios do estado. No que se refere à re- so de construção do Projeto Tucum, esses sen-
○
○
alidade escolar, essa população dispõe de 150 tidos foram um desafio contínuo.
○
○
escolas, entre estaduais e municipais, atenden- Colocando-se como resposta, como enca-
○
○
Com o objetivo de assessorar as escolas in- pecíficos das populações indígenas no campo
○
○
dígenas, prestar atendimento técnico aos do- educacional, o projeto foi pensado como or-
○
○
com a Educação Escolar Indígena, a fim de de- regime de co-responsabilidade dos diversos
○
liberar sobre a política indigenista estadual na atores em torno do processo de formação di-
○
○
cação Escolar Indígena em Mato Grosso eram instâncias de gestão e execução da pro-
○
○
(Secchi, 1995), Seduc e CAIEMT avaliam a ur- posta pedagógica funcionalmente articuladas,
○
temple uma continuidade das ações educacio- entre elas foi construído pela consciência da
○
182
PAINEL 8
Experiências de formação de professores indígenas
○
○
ação conjunta. Procurou-se superar o nexo de do trabalho, à função socializadora e cultural,
○
○
ligação tradicional, construído segundo uma à afirmação das identidades e dos valores e ao
○
○
concepção funcionalista de organização, por trabalho docente do professor cursista. Assim,
○
meio de funções hierarquizadas. o professor cursista e seu desempenho
○
○
O projeto teve como objetivos a capaci- cognitivo não foram os únicos aspectos a se-
○
○
tação e a habilitação de professores índios, o rem avaliados.
○
acesso e o desenvolvimento escolar por meio O projeto buscou romper com a lógica da 183
○
○
do diálogo intercultural, condições de desen- avaliação somativa, pela qual o aluno precisa
○
○
volvimento do processo educativo fundado nas ter número “x” de pontos para ser aprovado.
○
○
culturas e formas de pensamento indígena, Dessa forma, não se pensou na prova como
○
condições de produção do conhecimento de único instrumento de avaliação. Outros meios
○
○
processos interativos escola/comunidade e precisaram ser construídos, sempre a partir de
○
○
fortalecimento desse processo, valorização do critérios não mais ligados aos números de pon-
○
○
profissional de educação das escolas indíge- tos alcançados em si, mas aos objetivos defi-
○
nas, elaboração de proposta curricular diferen- nidos (idem, ibidem – ver Avaliação).
○
○
ciada, bilíngüe e intercultural para as escolas O curso foi desenvolvido de forma parce-
○
○
indígenas em que os cursistas atuam. lada, para atender à realidade das comunida-
○
○
A proposta pedagógica do projeto visou des, que não permitem ao professor índio au-
○
romper com a concepção dicotômica entre sentar-se de seu lugar de trabalho para fre-
○
○
educação e prática social, constituindo-se em qüentar um curso regular sem, com isso, cau-
○
○
processo de conhecimento integrado às práti- sar-lhe sério prejuízo. Assim, o curso foi
○
vam baseados em seu território, sua língua e férias e recessos escolares, com duração de
○
35).
○
área disciplinar.
○
excluir ou sentenciar, aprovar ou reprovar. Por- sença do monitor que observou, discutiu e
○
○
tanto, a avaliação incidiu sobre aspectos glo- analisou com os cursistas a sua atuação em
○
○
○
regionais, tendo por clientela 200 professores da Educação, o curso de formação de profes-
○
○
indígenas, atingindo indiretamente um públi- sores indígenas para o Magistério assume, ne-
○
○
co aproximado de 4.500 alunos. O primeiro cessariamente, uma qualidade constituinte de
○
pólo, situado no Município de Tangará da Ser- política pública em nível de estado e de muni-
○
○
ra, abrangia um total de seis municípios, en- cípio. O grande desafio a enfrentar, nesse ter-
○
○
volvendo oito etnias. O segundo, situado no reno, tem sido o do envolvimento das prefei-
○
Município de Água Boa, abrangeu quatro mu- turas de municípios com populações indíge-
○
○
nicípios e uma etnia. O terceiro pólo, no Mu- nas. A sensibilização das prefeituras, no senti-
○
○
nicípio de General Carneiro, abrangeu quatro do de aprender a Educação Indígena como
○
○
municípios e uma etnia. Por fim, o quarto pólo dever, conseqüentemente como compromisso
○
situou-se no Município de Paranatinga, abran- público, tem exigido disposição constante.
○
○
gendo três municípios e duas etnias. A invisibilidade dos índios como cidadãos
○
○
As etapas tiveram início em 1996, sendo mediatiza interesses e motivações de profes-
○
○
esse trabalho coordenado pelo estado, por ○
sores, repercutindo, por exemplo, na questão
meio da Seduc e da CAIEMT, com a consultoria da monitoria. O monitor deveria desempenhar
○
○
ticipação da Funai, das prefeituras municipais do projeto, com permissão de observar, acom-
○
○
Missionário (Cimi), Operação Amazônia Nati- índio, como cursista e como profissional da
○
○
tica (SIL), Congregação das Missionárias cendo dados e indicações aos docentes acerca
○
Nacional ( JMN), Congregação das Ir mãs específicas, enfim, colaborando com ajustes de
○
○
das às seguintes instituições: Universidade Fe- ma. Enfrentou-se, ao longo do processo, uma
○
○
deral de Mato Grosso (UFMT), Universidade rotatividade reiterada de monitores, com con-
○
○
Federal de Santa Catarina (UFSC). avaliação proposta. Essa flutuação teve dupla
○
○
Banco Mundial, por meio do Programa de De- da situação funcional dos monitores nas pre-
○
○
com apoio do Programa das Nações Unidas de deslocamento para as aldeias e, de outro, a
○
○
Educação e da Coordenadoria de Assuntos In- to. Essas dificuldades configuravam uma ten-
○
dígenas, em parceria com outros agentes e com dência de acumulação de papéis, até que se
○
○
safios imensos. Sendo a primeira ação sistemá- de docente na sede do município, ou em al-
○
○
184
PAINEL 8
Experiências de formação de professores indígenas
○
○
requisito fundamental, quer fosse sob o posicionamentos em patamares de atualidade
○
○
enfoque das implicações pedagógicas, quer das discussões e decisões. Permitiram ver, no
○
○
sob o enfoque da dispersão geográfica das áre- âmbito dialógico dessas organizações entre si
○
as indígenas e das aldeias no interior dessas e com as outras, que a flutuação de represen-
○
○
áreas, necessitando de deslocamentos perió- tantes dificultou o avanço das discussões, li-
○
○
dicos ao longo de cada mês. mitando a ampliação e o aprofundamento da
○
Cada município deveria oferecer seu qua- interlocução. Permitiram ver que a experiên- 185
○
○
dro de monitores para atuar no projeto. Hou- cia do trabalho coletivo envolveu uma fase do
○
○
ve casos em que prefeituras “importavam” processo, um patamar específico de relação
○
○
monitores, por não disporem de profissionais pedagógica no interior do Projeto Tucum.
○
no município. Essa solução foi inadequada Esses desafios instigaram a capacidade de
○
○
para preencher a vacância de monitoria. Era resolução de dificuldades entre todos os envol-
○
○
imprescindível que o monitor fosse um profis- vidos, permitindo rever passos, lidar com con-
○
○
sional local, com conhecimento da realidade flitos, perceber erros, reconhecer fragilidades
○
e experiência no Magistério. Alguns pólos e contradições.
○
○
vivenciaram essa dificuldade de forma dramá- A avaliação de um projeto como o que ora
○
○
tica, havendo monitor que atendia a cursistas estamos apresentando supõe o tratamento de
○
○
de três povos indígenas diferentes. diferentes enfoques que dão forma a essa com-
○
jeto em parceria com diversas organizações Para efeitos do presente trabalho, destaca-
○
○
não-governamentais de apoio aos índios. Es- rei alguns desses aspectos que tiveram maior
○
das diferenciadas, exigindo, a cada fase do pro- da avaliação pelos diversos segmentos que par-
○
○
trução do projeto, da sua proposta pedagógi- quatro núcleos temáticos, a fim de enfatizar as
○
○
Essa participação mais direta no processo gicos, operacionais, políticos e financeiros. Ve-
○
pedagógico deu-se por intermédio de asses- jamos um pouco de cada um desses núcleos.
○
○
monitoria, ainda que por motivos plenamen- mentos expressou enfaticamente a impor-
○
rência de rotatividade, embora com implica- estudos centrada na pesquisa e nos conhe-
○
○
ções menos dramáticas, uma vez que a ques- cimentos culturais de cada povo. Esses dois
○
educativa.
○
sensíveis, como a questão lingüística. Essas blemas e que, portanto, exigiram maior es-
○
○
idas e vindas permitiram ver diferentes dimen- forço e cooperação interinstitucional para
○
projeto em parceria. Permitiram ver, no con- ria tenha sido um grande avanço nesse pro-
○
○
junto das organizações em si, que a flutuação jeto, a sua concretização no cotidiano não
○
tem sido uma das tarefas mais fáceis. Cada longo do percurso do Projeto Tucum desper-
○
○
instituição tem o seu próprio tempo insti- taram para a necessidade de se elaborar polí-
○
○
tucional, seu ritmo, suas prioridades, en- ticas públicas específicas para a Educação Es-
○
fim, o seu modo próprio de tratar as ques-
○
colar Indígena no Estado de Mato Grosso.
○
tões que lhe são apresentadas. Isso exige Os Cursos de Licenciaturas Específicos
○
um permanente esforço de todos os parcei-
○
para Professores Indígenas, que tiveram iní-
○
ros para valorizar os pontos de consenso e
○
cio em julho de 2001, são exemplos disso. Vi-
○
buscar superar os atritos e os dissensos.
sam à formação e à habilitação de professo-
○
○
Políticos. A implementação de políticas pú- res indígenas para o exercício docente no En-
○
blicas envolvendo diferentes atores exige a
○
sino Fundamental e Médio. Abrangem três
○
consolidação de um relacionamento que
○
áreas diferentes – Ciências Matemáticas e da
○
respeite a diversidade e que transite por di-
Natureza; Ciências Sociais; Línguas, Artes e
○
ferentes administrações, partidos políticos,
○
Literatura – e estão vinculados à Universida-
○
interesses locais e regionais etc. Nesse sen-
○
de do Estado de Mato Grosso em parceria com
○
tido, a realização do Projeto Tucum pode ○
outras instituições. Um dos objetivos do pro-
ser considerada uma iniciativa que conse-
○
projetos nos quais todos podem obter re- turo de cada povo.
○
para atender a tantas demandas acumula- cação Escolar Indígena construída coletiva-
○
○
das ao longo de cinco séculos de domina- mente, que contempla os programas de Ade-
○
ção e de desrespeito para com os assuntos quação Institucional, Fortalecimento das Es-
○
○
mundial etc.), além de reforçar o já consa- balho pedagógico. Cuiabá: SEE/MT, 1996. p. 30-35.
○
próprios para o financiamento dos assun- de Mato Grosso (CEI/MT). Urucum, jenipapo e giz: a
○
○
tos indígenas. Esse aprendizado fez com que Educação Escolar Indígena em debate. Cuiabá: Entre-
○
dores e com diferentes fontes de recursos. Educação Escolar Indígena para Mato Grosso. Cuiabá:
○
○
SEE/MT, 2000a.
Nesse sentido, o Projeto Tucum teve um
○
1
Trata-se de um programa de desenvolvimento agroambiental implementado em Mato Grosso, com recursos do Banco Mundial.
○
P AINEL 9
EXPERIÊNCIAS DE FORMAÇÃO
DE PROFESSORES INDÍGENAS
Bruno Kaingang
Arlene Bonfim
187
Experiência em formação
○
○
○
de professores
○
○
○
○
Bruno Kaingang
○
○
Associação dos Professores Bilíngües Kaingang e Guarani (APBKG)/PR
○
○
○
○
○
Resumo
○
○
○
de qualidade para as mais variadas culturas e
○
○
Este trabalho quer enfocar a situação pela realidades existentes no Brasil. Falando nisso,
○
qual a Educação Indígena passou com a chegada
○
ainda recentemente muitas escolas localizadas
○
dos europeus às Américas, quando houve uma
em terras indígenas encontravam-se fora dos
○
grande desestruturação na educação. Marcado por
○
○ sistemas de ensino dos estados, sendo, portan-
grandes conquistas de terra, esse momento fez
○
Essa nova visão de sociedade imposta obrigou indígenas e a prática da língua materna com a
○
aos novos desafios propostos pela sociedade oci- tuição de 1988. Isso sem contar que o professor
○
○
dental. Nesse sentido, foram organizados vários indígena não conta com estímulos para a sua
○
○
Kaingang, para garantir uma reflexão em face dos A Constituição brasileira garante que a es-
○
○
desafios impostos aos povos indígenas do Brasil. cola indígena tem que ter tratamento diferen-
○
○
A Educação Indígena passou por um proces- sociedade indígena. No artigo 210, estabelece
○
so de desestruturação desde a chegada da co- que o Ensino Fundamental deve ser ministra-
○
○
tos anos. Esse momento de conquista das ter- gurando às sociedades indígenas a utilização de
○
○
ras e extermínio dos povos e suas culturas fez suas línguas maternas. Essa garantia é assegu-
○
com que o mundo indígena passasse por uma rada e regulamentada na Lei de Diretrizes e
○
○
dura transformação política, econômica, social Bases da Educação Nacional, de 1996, que ain-
○
○
e cultural. Assim, a educação tradicional dos da estabelece a articulação dos sistemas de edu-
○
○
povos passou a ter uma nova visão, européia, cação para a oferta da Educação Escolar Indí-
○
uma educação que não respeita as diferenças gena em forma bilíngüe e intercultural, de
○
○
existentes entre as sociedades, dessa maneira modo que garanta a recuperação de sua cultu-
○
○
existe uma educação que busque a formação do na estava vivendo no final do século XX, as co-
○
○
cidadão e sim uma formação voltada para o munidades indígenas, representadas por suas
○
○
remos que, passado o século XX, ainda não te- Kaingang do sul do Brasil. As lideranças e os
○
○
mos uma Educação Indígena estruturada com professores Kaingang começaram uma longa
○
○
suas especificidades e cujos educadores possu- discussão com entidades interessadas na Edu-
○
188
PAINEL 9
Experiências de formação de professores indígenas
○
○
possibilitaram que a educação Kaingang tomas- dro de professores mais críticos no que se refe-
○
○
se rumos mais consistentes, surgindo então o re às questões indígenas e não só à educação,
○
○
primeiro curso de Magistério de Ensino Médio. pois para os índios a educação não está
○
Essa necessidade é visualizada pela histó- desvinculada da vida e de todas as relações exis-
○
○
ria de luta dos Kaingang, pois a população es- tentes no seu mundo. Dessa maneira, formam-
○
○
tava crescendo; hoje, são cerca de 30 mil pes- se as novas lideranças em suas comunidades,
○
soas e com índice de crescimento constante. chamando para si a responsabilidade da cons- 189
○
○
Situando-se em mais de trinta comunidades trução das mais diversas demandas existentes
○
○
Kaingang no sul do país, eles se encontram en- nas terras indígenas. Com o objetivo de fazer
○
○
tre os cinco povos indígenas mais populosos uma educação de qualidade e uma formação de
○
do Brasil. cidadãos críticos na busca de melhoria para to-
○
○
Além disso, o número de professores não- dos, esses professores nunca perdem de vista
○
○
indígenas era superior ao de professores indí- as alianças formadas em torno da educação.
○
○
genas. Grande parte destes professores não tem Com uma clareza maior da Educação Indí-
○
nenhuma formação específica para trabalhar gena, surge a necessidade de aperfeiçoamento
○
○
com Educação Indígena, possuindo somente o desses professores Kaingang e de ampliação do
○
○
Magistério. Isso sem contar que a maioria de- quadro de professores; reiniciam-se as lutas por
○
○
les vê o indígena com a mesma carga de estere- formação continuada e formação inicial. Sur-
○
ótipo que a população regional, o que seria su- gem vários encontros de formação promovidos
○
○
ficiente para prejudicar o desenrolar do proces- pela Secretaria da Educação do Estado e outros
○
○
so escolar sob sua orientação. Para piorar essa realizados pelos próprios professores Kaingang.
○
situação, as escolas das comunidades indígenas Nesses encontros, a participação das lideranças
○
○
tinham a mesma organização curricular e o (caciques) é muito importante, pois são elas que
○
○
material didático das demais escolas da rede vão garantir e dar suporte político para os pro-
○
○
pública. Além disso, muitas escolas ainda con- fessores atuarem e pensarem novas alternativas
○
Educação sem nenhuma especificidade. Por outro lado, o número de professores ain-
○
○
1988, os professores criam a sua própria orga- dígenas continuava sendo maior, como é até
○
nização jurídica, a Associação dos Professores hoje. A tão esperada educação de qualidade es-
○
○
Bilíngües Kaingang e Guarani (APBKG), e come- tava – e permanece – distante, pois a desquali-
○
○
çam uma discussão mais acirrada sobre a im- ficação dos professores para trabalhar com in-
○
○
plantação do ensino específico diferenciado. dígenas ainda não tinha sido superada; para
○
Dessa luta, surge então o primeiro curso de piorar isso, possuem em suas mãos as direções
○
○
Kaingang, já citado, que começa em 1993, gra- Com isso, surge a discussão sobre a auto-
○
○
ças às alianças feitas pela Universidade de Ijuí, nomia nas escolas indígenas, pois as escolas em
○
o Conselho de Missão entre Índios (Comin), o terras indígenas adotavam todo o sistema das
○
○
da Educação do Estado do Rio Grande do Sul e formação ainda é maior, pensando então em
○
○
em 1996, 22 professores, com habilitação espe- garantiria uma aproximação maior às es-
○
○
intercultural nas escolas Kaingang. com maior qualidade do ensino e com a práti-
○
○
○
paço perdido ao longo do tempo na formação dentora, e outro no Município de Benjamin
○
○
dos professores Kaingang, surgiu no ano 2000 a Constant do Sul, RS.
○
○
discussão sobre a formação de novos professo- Mais uma vez, as lideranças dessas comu-
○
res Kaingang. Desse modo, a Funai, a Universi- nidades estão presentes com seu apoio aos pro-
○
○
dade de Passo Fundo, a Universidade de Ijuí, as fessores, acompanhando todas as discussões no
○
○
lideranças indígenas e a APBKG, com o apoio que diz respeito à educação e às questões que
○
da Prefeitura Municipal de Benjamin Constant envolvem suas comunidades, pois a situação
○
○
do Sul, começam o processo de discussão, vi- hoje enfrentada pelos indígenas não é diferen-
○
○
sando atingir a garantia da especificidade da te daquela que todos nós estamos acostumados
○
○
Educação Kaingang e a conquista da autonomia a ver ao longo dos quinhentos anos de nosso
○
educacional nas terras indígenas. país. Certamente, não será essa luta por forma-
○
○
Essa idéia de formação de uma nova turma ção que irá garantir a existência das comunida-
○
○
de professores concretiza-se em janeiro de des indígenas, mas também a insistência na
○
○
2001, sendo iniciada, então, a formação de mais ○
busca por uma sociedade mais justa em que
uma turma de professores com um número de cada professor seja mais um instrumento de
○
○
cem professores Kaingang, divididos em dois luta por melhoria em todos os setores da socie-
○
○
no Estado do Amazonas:
○
○
○
Projeto Pira-Yawara
○
○
○
○
○
Arlene Bonfim
○
○
Seduc/AM
○
○
○
○
○
○
Introdução
○
Integrando-se aos dispositivos legais da des indígenas, que passam a gerir seus proces-
○
○
Constituição de 1988 e à LDB/96, que asseguram sos próprios de aprendizagem e a ocupar seus
○
○
respeito aos processos próprios de aprendiza- mesmo tempo que lhes garante o direito a uma
○
○
gem das sociedades indígenas no processo es- escola com características específicas, que bus-
○
○
colar, é que o estado do Amazonas, por meio da que a valorização de seu conhecimento tradici-
○
○
do Ensino (Seduc/AM), vem garantindo os direi- enfrentar o contato com outras sociedades.
○
○
tos indígenas, ao coordenar e executar a política Para atender a esse grande desafio, elaborou-
○
○
de Educação Escolar Indígena, com prioridade se o Projeto Pira-Yawara, que tem como objeti-
○
○
gais estabelecidos, o estado do Amazonas vem educação básica nas terras indígenas, garantin-
○
○
190
PAINEL 9
Experiências de formação de professores indígenas
○
○
dade que responda aos anseios desses povos. de debate, para que as comunidades indíge-
○
○
nas possam determinar a formulação de uma
○
política lingüística a serviço da qual a escola
○
Ações do Projeto Pira-Yawara
○
estará atuando.
○
○
• Formação inicial de professores indígenas. • A escola indígena deve ser diferenciada, es-
○
○
• Formação continuada de professores indí- pecífica, intercultural, bi/multilíngüe, comu-
○
genas. nitária e de qualidade. 191
○
○
• Formação continuada de técnicos das Se- • Aprendizado via pesquisa como forma de
○
○
cretarias Municipais de Educação. compreensão da realidade, no qual os
○
○
• Assessoria técnico-pedagógica e adminis- etnoconhecimentos se aliem às diferentes in-
○
formações e aos conhecimentos técnico-cien-
○
trativa às Secretarias Municipais de Educa-
○
ção (Semeds). tíficos. Nesse enfoque, a produção do conhe-
○
cimento é mais importante do que sua repro-
○
• Formação continuada de técnicos da Secre-
○
dução. Por meio da pesquisa, os componen-
○
taria de Estado da Educação e Qualidade do
○
tes curriculares passam a ter por função pos-
Ensino (Seduc/AM).
○
sibilitar a reflexão, a compreensão crítica da
○
• Diagnóstico lingüístico e antropológico da ○
○
realidade e a capacidade de atuação sobre a
realidade indígena no estado do Amazonas.
○
Objetivo
○
buição de material didático específico e di- Formar os professores indígenas que estão
○
○
pedagógico.
○
membros.
Formação inicial de professores
○
○
indígenas
○
Forma de execução
○
○
○
as do conhecimento.
meio da participação efetiva dos professo-
○
○
res, em conjunto com suas comunidades. Etapas letivas intermediárias. Atividades de-
○
Etapa letiva
○
complementar superior
○
superior
○
○
2.300 900 – –
○
440
○
○
Formação continuada de professores Formação continuada de técnicos das
○
○
indígenas Secretarias Municipais de Educação
○
○
○
Ao reconhecer a necessidade de formação A Portaria Interministerial nº 559/91, de 16
○
inicial e continuada dos próprios índios para de abril de 1991, determina no seu artigo 7º:
○
○
atuarem como professores de suas comunida-
○
○
des, a Secretaria de Estado da Educação e Qua- [...] que os profissionais responsáveis pela
○
○
lidade do Ensino (Seduc/AM) vem implementar Educação Indígena, em todos os níveis, sejam
○
a Política Estadual de Educação Escolar Indíge- preparados e capacitados para atuar junto às po-
○
○
na, assegurando a autonomia das escolas indí- pulações étnicas e culturalmente diferenciadas
○
○
genas tanto no que se refere à construção de seu
○
projeto político-pedagógico, quanto à partici- sejam eles da Funai, das Secretarias Estadu-
○
○
pação plena de cada comunidade nas decisões ais ou Municipais de Educação e ONG, a fim de
○
○
relativas ao funcionamento dessas escolas.
○
[...] garantir às comunidades indígenas uma
○
Adequado às peculiaridades culturais dos ○
vivenciadas.
colas das terras indígenas está subordinada, ainda
○
Indígena – Seduc/AM.
são reduzidos e não possuem formação adequa-
○
inicial.
nicipais de Educação, capacitando-os no domínio
○
○
de discussão do grupo
○
• Base legal e conceitual da Educação Esco- ções e apoio às escolas indígenas na formulação
○
○
192
PAINEL 9
Experiências de formação de professores indígenas
ção tem como proposta a discussão de temas que Educação e Qualidade do Ensino (Seduc/AM) vem
○
○
possam contribuir para a reflexão e a implemen- desenvolvendo uma política de articulação e de
○
○
tação de novas políticas e de práticas pedagógi- cooperação técnico-administrativa e financeira
○
○
cas e curriculares em áreas indígenas. com os municípios do estado, apoiando e fortale-
○
É executado nas sedes municipais, em cursos cendo, na estrutura organizacional das Secretarias
○
○
de 120 horas/aula, e conta, geralmente, com a par- Municipais de Educação, o desenvolvimento de
○
○
ticipação de diretores e professores de escolas uma política municipal de Educação Escolar Indí-
○
municipais e professores indígenas, bem como de gena, em consonância com a política estadual e 193
○
○
representantes de instituições locais ligadas à pro- com as diretrizes nacionais, política essa que con-
○
○
blemática indígena, sejam governamentais ou sidere a diversidade étnica do estado do Amazo-
○
○
não-governamentais, sob a orientação da Gerên- nas, os diferentes níveis de contato dessas etnias
○
cia de Educação Escolar Indígena (Seduc/AM). com a sociedade local e nacional e as peculiarida-
○
○
des regionais.
○
○
Temáticas básicas do programa Para atender a essa finalidade, a Secretaria
○
○
de Estado de Educação e Qualidade do Ensino
• Projeto Pira-Yawara, fundamentação e
○
(Seduc/AM), por meio da Gerência de Educação
○
operacionalização.
○
Escolar Indígena, vem desencadeando nos mu-
• Base legal da Educação Escolar Indígena, ○
○
genas brasileiras.
○
direitos humanos.
tica de Educação Escolar Indígena Municipal.
○
Assessoria técnico-pedagógica e
○
administrativa às Secretarias
○
Municipais de Educação
○
se, definindo metas e ações de Educação Escolar na, bem como a realização de cursos de for-
○
○
Indígena que atendam às demandas das comuni- mação de professores indígenas nas regiões
○
○
○
tre os vários segmentos locais à problemáti- representa uma grande novidade no sistema edu-
○
○
ca indígena, sejam governamentais ou não- cacional do País e exige das instituições e órgãos
○
governamentais, bem como o estabeleci- responsáveis a definição de novas dinâmicas,
○
○
mento de parcerias, para que juntos possam concepções e mecanismos, tanto para que essas
○
apoiar e garantir o desenvolvimento das
○
escolas sejam de fato incorporadas e beneficia-
○
ações relativas à Educação Escolar Indígena. das por sua inclusão no sistema oficial quanto
○
○
• Incentivo e apoio à criação de uma coorde- respeitadas suas peculiaridades.
○
○
nação ou setor responsável pela implemen-
○
tação de programas de Educação Escolar In- Cabe lembrar, então, que a Educação Indíge-
○
○
dígena na estrutura organizacional das Se- na, por seu caráter diferenciado, requer um qua-
○
○
cretarias Municipais de Educação. dro de técnicos devidamente preparados para atu-
○
ar nas comunidades indígenas. Dessa forma, é fun-
○
• Orientações quanto à política indigenista
○
brasileira e à legislação de ensino atual que damental que o estado disponha de um programa
○
○
trata da Educação Escolar Indígena, desta- ○
de formação para a sua equipe técnica, que sirva
cando a importância de seu cumprimento e de incentivo e apoio à implantação das novas po-
○
○
projetos e programas municipais de Educa- manter e preparar uma equipe de técnicos es-
○
○
ção Escolar Indígena, conforme estabelecem pecialistas das diferentes áreas do conhecimen-
○
○
as Diretrizes para a Política Estadual e Nacio- to para atuar, no âmbito das Secretarias Munici-
○
• Promoção de estudos e discussão sobre as quadros técnicos para a oferta de educação es-
○
○
bases conceituais da educação intercultural. colar bilíngüe e intercultural aos povos indíge-
○
○
indígenas.
○
Escolar Indígena (1995-1998), elaborado pela Secre- periência reconhecida e comprovada no campo
○
○
taria de Educação Fundamental (SEF/MEC) afirma: da Educação Escolar Indígena, composta por
○
○
194
PAINEL 9
Experiências de formação de professores indígenas
○
○
etnoconhecimentos e Educação Escolar Indíge- e antropológico da realidade indígena
○
○
na, os quais realizam atividades temporárias de
no estado do Amazonas
○
○
capacitação da equipe técnica central e de acom-
○
O Governo do Amazonas, por meio da Secre-
panhamento e avaliação das ações de Educação
○
taria de Estado da Educação e Qualidade do En-
○
Escolar Indígena desenvolvidas pela Gerência, ou
○
sino (Seduc/AM), considera necessário realizar
○
mesmo executam trabalhos mais pontuais desti-
○
um diagnóstico da situação da Educação Esco- 195
nados à estruturação e ao desenvolvimento da
○
○
lar Indígena. A intenção é realizar um quadro de
própria Gerência de Educação Escolar Indígena –
○
expectativas para referenciar os procedimentos
○
Seduc/AM.
○
da Gerência de Educação Escolar Indígena e,
○
○
conseqüentemente, levar a bom termo as ações
A formação continuada
○
do governo do estado.
○
e o aperfeiçoamento dos técnicos da
○
O diagnóstico tem como propósito não simples-
○
equipe central dão-se por meio de diversas
○
mente gerar dados, mas inserir a discussão e a ela-
○
providências, de modo que possam:
○
boração das informações no contexto da formação
○
• assessorar os professores indígenas na pro- dos professores. Assim, é possível colocar os pro-
○
○
dução de materiais didático-pedagógicos, na ○
○
fessores indígenas em conexão com outras realida-
construção de currículos, metodologias e sis- des – a aldeia, o povo, a região –, além de estabele-
○
• atuar como docentes em curso de formação balho que vem sendo desenvolvido na formação de
○
○
inicial e/ou continuada de professores indí- professores indígenas, qual seja, a ênfase na pesqui-
○
genas;
○
• colaborar com idéias criativas e buscar solu- blicas à educação escolar esteja em consonância
○
plantar e desenvolver uma educação transfor- querem e necessitam, é preciso que os sistemas
○
○
Indígenas, p. 12).
○
que atuam nas escolas indígenas, bem como os pro- • Realizar um levantamento e estabelecer con-
○
○
○
que reivindicam Educação Escolar Indígena, Matemática na escola em uma Língua Indígena,
○
○
mas que não contam com nenhum apoio ou para elaborar um projeto de piscicultura, pro-
○
institucional.
○
jeto de informática etc.).
○
• A discussão da forma como deve se desen- Tem sido demanda dos povos indígenas no
○
○
volver cada levantamento deve contar com Amazonas, por exemplo, dos Munduruku de
○
a participação de representantes indígenas,
○
Borba, ou dos Desano de São Gabriel da Cacho-
○
que serão colaboradores em todos os senti- eira, bem como dos Mura de Autazes, que o Es-
○
○
dos: poderão dizer qual a melhor época para tado colabore nos seus projetos político-lingüís-
○
a realização dos trabalhos (questões climá-
○
ticos de recuperar, salvaguardar ou fomentar o
○
ticas e atividades econômicas, por exemplo,
○
uso das suas línguas, de modo que elas possam
○
podem influenciar) e poderão ajudar a defi-
efetivamente ser utilizadas no processo educa-
○
nir quais as informações importantes para
○
tivo e em todas as outras situações.
○
constar no levantamento.
○
○
• Realizar um amplo diagnóstico da situação ○
Principais ações
banas de todo o estado. • Responder às demandas dos povos indíge-
○
○
Desenvolvimento e fomento
○
estado do Amazonas
○
grande número de falantes de Português, neces- Esse programa tem como proposta instituir,
○
○
sitam de uma política de desenvolvimento e fo- entre os professores, a formação de índios como
○
○
mento do uso para que possam ser utilizadas pesquisadores de seu próprio universo cultural
○
com plenitude também em áreas outras que não e, igualmente, como escritores e redatores de
○
○
rias para a vida dos índios na e com a sociedade Maternas e/ou Portuguesa, referentes aos
○
○
tos outros países, as línguas indígenas podem ser Encaminhadas pelos vários componentes que
○
○
ocidental, o que permite que continuem sendo sa, como princípio metodológico do programa,
○
utilizadas nas novas condições que vão se colo- desencadeiam a interpretação, a construção e a
○
○
ampliar o campo de uso das línguas minoritárias cultural e lingüística de cada povo indígena en-
○
para que não deixem de ser utilizadas por insu- volvido no processo, em que os etnoconhecimen-
○
○
196
PAINEL 9
Experiências de formação de professores indígenas
tos, aliados às diferentes informações oriundas Tupana Ewowi Urutuwepy é uma obra lite-
○
○
dos conhecimentos técnico-científicos, expres- rária produzida inteiramente na língua Sateré-
○
○
sam claramente a importância da produção des- Mawé. Apresenta cantos religiosos, cantos de
○
○
ses materiais, ao instituir entre os professores não atividades recreativas, de valores que regem a
○
somente a autoria de cada um dos materiais por conduta humana, como a importância da soli-
○
○
eles próprios escritos, mas, principalmente, ao dariedade, da união, da vida, da necessidade do
○
○
eliminar a grande distância entre quem pensa e saber, da felicidade e do trabalho exercido pelo
○
quem executa a prática educativa. professor em sala de aula. 197
○
○
A ênfase dada ao processo de pesquisa per- O livro Poesia Sateré-Mawé apresenta uma
○
○
mite a produção diversificada de materiais, ora literatura em que a sensibilidade, aliada às ques-
○
○
escritos na Língua Materna, ora escritos na Lín- tões étnicas e culturais desse povo, é retratada a
○
gua Portuguesa, por decisão dos próprios pro- partir de cada uma das palavras e mensagens
○
○
fessores, constituindo-se, assim, em instrumen- produzidas. Esse livro reflete a longa trajetória
○
○
tos de construção curricular desenvolvidos a percorrida pelos professores durante o processo
○
○
partir da realidade, prática social e cultural de de produção textual, considerando o desenvol-
○
cada professor indígena e integrados à sua prá- vimento das modalidades da fala e escrita.
○
○
tica docente, para permitir a reflexão sobre seu Sateré-Mawé Mawé Mowe’eg Hap é todo pro-
○
○
e à publicação de literatura indígena realiza-se quais os alunos indígenas irão expressar de for-
○
○
com a distribuição e o acompanhamento desses ma escrita e oral suas idéias e experiências, bem
○
○
materiais nas escolas das aldeias. como reconhecer e aplicar os fatos da língua, de-
○
mes enriquecidos visualmente. Constituindo a pri- sentam tipos de recreações e de lazer hoje prati-
○
○
meira produção escrita, a coleção apresenta, na sua cados pelas crianças, pelos jovens e pelos adul-
○
○
maioria, textos na Língua Portuguesa, por decisão tos das várias aldeias da região.
○
seus temas aborda a fauna e a flora da área indíge- obra que relata o poder da criança e o conheci-
○
○
na Sateré-Mawé, que hoje fazem parte do quadro mento do povo no domínio e na utilização dos
○
○
natural das regiões compreendidas entre os rios recursos oferecidos pela natureza, na construção
○
e forma, à compreensão das inter-relações desse textos informativos, que se harmonizam com as
○
○
povo com a natureza e com a cultura. ricas ilustrações, apresenta os mais variados ti-
○
ampliados a partir de textos produzidos na lín- O poder curativo das ervas medicinais é na-
○
○
aldeias encontradas ao longo dos rios Marau e e uso dos remédios são orientados por meio de
○
○
Urupadi, assembléias indígenas ocorridas na re- dois livros produzidos, sendo um na Língua Por-
○
cotidianos, entre outras. É seu objetivo servir Set Ko’i. O conjunto dessas obras contém ricas
○
○
língua escrita.
○
○
○
retrata de forma descritiva a riqueza mítica e a po em que demonstram sentimentos de digni-
○
○
tradição do povo Sateré-Mawé sintetizadas em dade ao partilharem com alegria a reconquista
○
○
suas crenças, objetos sagrados e conhecimentos de suas terras. A obra apresenta textos diversifi-
○
acumulados. Os textos são produzidos na Lín- cados, ricos em detalhes e ilustrações, de valor
○
○
gua Portuguesa, acompanhados de ilustrações. cultural e histórico para esse povo.
○
○
Produzida na Língua Portuguesa, a obra Cul- Sateré-Mawé E´Ko Nimuaria Ko´i,
○
tura, ambiente e sociedade Sateré-Mawé apresen- Koity´iwuaria E´ko, foi escrito na Língua Indíge-
○
○
ta os valores da cultura tradicional Sateré-Mawé na pelos professores Sateré-Mawé da aldeia Vila
○
○
relacionados aos modos de vida na aldeia, hábi- Batista, Rio Mari-Mari. Foi produzido com a in-
○
○
tos, costumes, território habitado e explorado. tenção de gerar junto aos alunos e à comunidade
○
Apresenta ainda uma visão crítica do processo processos de discussão e reflexão acerca dos há-
○
○
de dominação ao qual os índios foram submeti- bitos e costumes praticados nos dias de hoje pe-
○
○
dos ao longo de sua história. los habitantes da aldeia, em comparação com os
○
○
Histórias de vida é uma obra ilustrada produ- ○
da cultura tradicional dos antigos.
zida na Língua Portuguesa. Apresenta textos que O livro Chegada dos Sateré-Mawé no Rio Mari-
○
○
falam das experiências e dos fatos marcantes ocor- Mari e organização da Aldeia Vila Batista, escrito
○
○
ridos com os professores ao longo de suas vidas. na Língua Portuguesa, inicia-se com um relato so-
○
○
O livro Terras das línguas, ricamente ilustrado, bre os acontecimentos que levaram um grupo fa-
○
é uma produção recentemente publicada pela miliar Sateré-Mawé a deixar a região do Rio Andirá,
○
○
Seduc/AM, produzido no contexto do Programa de aldeia Ponta Alegre, e a se instalar na Terra Indíge-
○
○
Formação de Professores Indígenas de São Gabriel na Coatá-Laranjal, do povo Munduruku, Rio Mari-
○
da Cachoeira. Apresenta textos escritos em onze Mari. Além disso, há uma descrição do caminho
○
○
línguas: Baniwa, Desano, Hupd, Kubeo, Kuripako, percorrido durante a viagem, falando das dificul-
○
○
Nheengatu, Piratapuia, Tariano, Tukano, Tuyuka e dades enfrentadas e da organização da nova aldeia,
○
○
Wanano, possibilitando práticas pedagógicas além dos hábitos e costumes praticados. É uma
○
diversificadas e plurilíngües. Os textos abordam obra baseada em fatos reais, que retrata a realida-
○
○
assuntos diferentes, conforme a opção de cada de vivida pelos índios no Brasil e que permite uma
○
○
etnia, que vão desde receitas de remédios caseiros reflexão mais ampla sobre os conflitos que emer-
○
○
geografia das aldeias, formas de organização, mo- recursos materiais e didáticos, tanto no que se re-
○
○
dos de vida, crenças e costumes práticos do povo. fere ao material de apoio ao trabalho do professor,
○
fundas as relações que com elas estabelecem, os para professores e alunos indígenas:
○
○
Kwata-Laranjal, história e reconquista da terra. lápis preto, lápis de cor, papel sulfite, régua,
○
○
cres praticados contra eles e por eles contra os pincel atômico e régua de 30 centímetros,
○
○
199
Prática de sala de aula
○
○
○
na escola indígena
○
○
○
○
Yolanda dos Santos Mendonça*
○
○
○
○
○
○
Resumo
○
○
aprendizagem combinam espaços e momen-
○
○
Construir uma escola a serviço dos interesses tos formais e informais com concepções pró-
○
○
dos povos indígenas e gerenciada por índios, as- prias sobre o que deve ser aprendido. A comu-
○
sumindo um papel fundamental na medida em
○
nidade é muito importante nesse processo,
○
que se cristaliza como um novo ator social, dinâ-
pois possui sua sabedoria para ser transmiti-
○
mico e atuante, em processo construtivo e infor-
○
○
da e distribuída por seus membros e mostra
mativo, voltado para uma educação específica, di-
○
tências que contribuam para a educação do povo seus atributos, capacidades e qualidades. Há
○
○
articulador para tornar a Educação Escolar Indí- afetiva carrega múltiplos significados econô-
○
○
gena indispensável ao progresso de seu povo, em micos, sociais, técnicos, rituais, cosmológicos.
○
escola num espaço privilegiado para análise, dis- as quais estabelecem relação de cooperação e
○
○
cussão e reflexão da realidade, garantindo o ple- intercâmbio, a fim de adquirir e assegurar de-
○
terminadas qualidades.
○
Graças à mobilização e à união dos profes- movimento de articulação, pois quem faz a
○
○
sores indígenas junto aos Poderes Públicos é Educação Escolar Indígena ser específica, di-
○
○
que hoje já avançamos para a continuidade da ferenciada e de qualidade somos nós, e essa só
○
vida do planeta. A publicação RCNEI me fez será concretizada com a participação direta
○
○
ver, a partir da análise feita nessa obra, que dos interessados para garantir a sua realização.
○
○
seria um ponto de partida para minha profis- Devem ser oferecidas as condições necessá-
○
○
são, na qual tomei como educação transforma- rias para que a comunidade gerencie sua escola,
○
dora aquela que permite que as informações demonstrando a vitalidade e o desejo de forta-
○
○
adquiridas no decorrer do processo de apren- lecer sua identidade. Os direitos dos povos indí-
○
○
dizagem se tornem possibilidades de ações genas são coletivos. Temos o direito de decidir
○
○
para a recriação de uma realidade dramática sobre nossa história, nossa identidade, pensan-
○
que nos interpela quotidianamente. Cada povo do em nossas crianças como parte do presente
○
○
indígena que vive no Brasil é dono de univer- para não destruirmos nosso futuro. Temos que
○
○
sos culturais próprios e memória de percursos ter a escola como projeto próprio, e dela nos
○
○
* Professora na Paraíba.
○
200
PAINEL 10
Prática de sala de aula na escola indígena
com a introdução do ensino escolar. Temos que correndo e fui aos poucos me entrosando com
○
○
ter postura e um trabalho adequado e responsá- as lideranças e as comunidades.
○
○
vel de comprometimento como articuladores, Lembrei-me das músicas de Toré, já que as
○
○
facilitadores, intervindo, orientando, problema- crianças gostavam de cantar outras músicas e
○
tizando, sem desconsiderar a atitude de curiosi- representar outras danças. Então, a música foi
○
○
dade dos alunos para com os novos conhecimen- o meu suporte. Mas músicas que nos fizessem
○
○
tos. Temos que formar uma escola da experiên- tocar no coração à vontade e o pulsar do peito,
○
cia, da convivência e da clareza. por uma versão nova. O Toré é uma cultura sa- 201
○
○
É importante que nossas crianças apren- grada de cada povo. Tive que me desdobrar para
○
○
dam sobre a vida de nossos antepassados e a fazer com que as crianças entendessem que elas
○
○
história mais nova, de mudanças nas aldeias e vivem e viverão nossa cultura, até mesmo por-
○
dos chefes que lideram nosso povo. É impor- que muitos não queriam nem saber, pois já es-
○
○
tante preparar os alunos para que, no futuro, tavam muito influenciados pelo outro modelo
○
○
eles possam continuar nosso trabalho. E a es- educacional. Foi aí que tive que introduzir pro-
○
○
cola pode ajudar a manter nossa cultura, para cedimentos didático-pedagógicos para que eles
○
que nós possamos manter nosso território. É entendessem que somos um todo e, por meio
○
○
preciso abrirmos os olhos e vermos que nesse de leituras e escritas relatadas por eles mesmos,
○
○
território estão plantadas nossas raízes, que juntos buscamos informações na nossa própria
○
○
hoje nasceram e se enramaram com uma for- família. Fomos montando e descobrindo novi-
○
ça enorme, que cada vez mais desabrocham dades que serviram de experiências e motiva-
○
○
para fortalecer a nossa sagrada identidade. São ções para uma realidade da própria criança. No
○
○
inúmeras as falsas informações que distorcem momento em que trabalhamos cada estrofe da
○
conhecer os índios. Grande parte do nosso sempre vem o porquê. Quando vamos cantan-
○
○
dadeiros donos desta terra. Devemos romper nosso povo com clareza e confiança, fazemos
○
com essas informações enganosas, acabar com um trabalho para desenvolver o que elas ouvi-
○
○
esse preconceito que foi e continua sendo res- ram e visualizaram. Aí começa o interesse para
○
○
ponsável por mortes e doenças no mundo in- saber mais: sempre perguntam o que fazer de
○
○
teiro. A terra é nossa subsistência. Ela é supor- agora em diante para não passar pelo que nos-
○
crenças e aos conhecimentos. A terra somos Temos que ter cuidado para não causar im-
○
○
nós. Temos que ser dinâmicos e práticos para pacto, pois muitas crianças se revoltam. O que
○
○
que os alunos desenvolvam suas capacidades temos que fazer é conscientizá-las, para cuidar
○
e aprendam os conteúdos necessários, para do pouco que nos resta. Se assim o fizermos,
○
○
realidade, com participação, e para assumir a não é o suficiente para o muito que nos leva-
○
○
valorização da cultura de sua própria comuni- ram, e só vamos conseguir se juntos lutarmos,
○
dade, respeitando direitos e diferenças dos sem medo de conhecer e buscar nossos direi-
○
○
Por meio de experiências da minha vida co- mos os nossos deveres. O Toré não é uma dan-
○
○
tidiana e de contatos com diversas pessoas de ça qualquer, foi-nos deixada pelos nossos an-
○
outras etnias, percebi que meu povo cada dia cestrais. Deus deu essa sabedoria a eles e tam-
○
○
mais estava sendo enganado e que nossas cri- bém aos velhos e até às pessoas mais novas,
○
○
anças cada dia mais desconheciam quem eram para invocarem os encantados e resolverem
○
○
na verdade. Foi daí que fiz uma análise e to- algo. Isso é prova de que nunca estamos sozi-
○
mei a iniciativa de ajudar meu povo, pois as- nhos, sempre temos alguém do nosso lado.
○
○
sim estarei ajudando a mim mesma. Conver- Mostramos às crianças que a mata é a cobertu-
○
○
sei bastante, mostrei os perigos que estávamos ra da terra. O vento é o respirar dos que já se
○
foram. A água e o rio são o sangue derramado
○
mos, pois ela interfere na política envolvente
○
do nosso povo. A terra é o pó da carne e dos os- e encaracolada, porque, no momento em que
○
○
sos dos nossos parentes que já foram plantados. as crianças e as comunidades descobrem sua
○
○
Gradativamente, fazemos com que as cri- verdadeira história e como ainda estão sendo
○
anças sintam amor pelo que é seu. Mas é pre- tratadas, passam a ter consciência e interfe-
○
○
ciso um trabalho árduo e longo, fazer compa- rem nas tomadas de decisões, como também
○
○
rações entre o que ouviram e o que são no pre- vão sentir curiosidade em se conhecer melhor
○
sente. Essa é a base, e só será feita se quiser-
○
e conhecer seu próprio território.
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
A Pedagogia do Texto na
○
○
○
○
Indígena Tupinikim
○
○
○
○
Preocupados com o resgate da cultura de der com o tempo, caso não seja sistematizado
○
nosso povo, estamos procurando enfocar, nas e passado de uma geração à outra.
○
○
zadas na comunidade indígena de Caeira Ve- Com o passar dos anos e com o crescente
○
○
Durante um mês, desenvolvemos o tema território, o nosso mangue sofreu várias in-
○
sensibilizar a comunidade indígena para a pre- servar uma parte de nossa cultura, nós nos pro-
○
○
servação do mangue que circunda nossa aldeia pusemos a desenvolver um projeto em que cada
○
○
e que vem sendo usado como nosso meio de aluno e seus pais pudessem expor seus conhe-
○
meras atividades que foram realizadas, procu- servação da natureza e de sua riqueza cultural.
○
○
der de que forma nós, moradores da aldeia, Esse manguezal é conhecido por ser um dos
○
○
202
PAINEL 10
Prática de sala de aula na escola indígena
Conama nº 004/85, a Lei nº 6.938/81, a Lei nº ao conhecimento coletivo, tudo isso respeitan-
○
○
4.771/65 e, no Espírito Santo, a Lei Estadual nº do a faixa etária de nossos alunos.
○
○
4.119, de 23/7/1988. Mas acreditamos que essa Durante a sistematização desses conheci-
○
“mina de tesouro” não deve ser preservada só
○
mentos, nossa fonte primeira foi a memória
○
porque a lei assim reza, mas porque é um peda- oral dos alunos, dos pais e dos mais velhos da
○
○
ço de nós, pois aqui aprendemos e descobrimos aldeia, usando para isso entrevistas e pales-
○
○
que a vida está nas coisas simples e ao mesmo tras. Fizemos também algumas visitas ao
○
tempo grandes. manguezal, onde foram recolhidos diversos 203
○
○
Cada espécie encontrada nesse manguezal tipos de recursos.
○
○
tem sua beleza e importância. Nesse espaço, en- Num segundo momento, selecionamos,
○
contramos moluscos e crustáceos variados: os-
○
agrupamos e desenvolvemos aulas contextua-
○
tra, sururu, ameixa (amêijoa), caramujo, buso, lizadas e interdisciplinares nas quais não havia
○
○
papa-fumo, unha-de-velho, craca, chama-maré, fragmentação dos conhecimentos, mas um só
○
○
siri, sapateiro, caranguejo, goiamum etc. Esses saber. Nessa segunda fase, outro princípio da
○
seres vivos podem ser encontrados ao longo de
○
Pedagogia do Texto que nos orientou foi o de
○
toda a extensão do Mangue Piraqueaçu. confrontar o saber empírico dos alunos e da
○
○
A maior parte da fauna do manguezal vem comunidade com outros saberes sistematizados
○
○
do ambiente marinho, o que não exclui o ter- em livros (saberes considerados científicos).
○
constituída pela espécie denominada mangue, variadas, tais como a produção de diferentes
○
○
rada pelos mariscos para sua proteção. Apesar dissertativo etc.), teatro de varas, problemas
○
○
de sua beleza e encanto, o manguezal possui envolvendo medidas, compra, venda, sistema
○
○
também perigos, o que não intimida aqueles monetário, jogos, quebra-cabeças, artesanato
○
○
que dele dependem para o seu sustento. com argila e sementes, desenhos variados.
○
cípios da Pedagogia do Texto, na medida em que Estivemos diante do desafio que foi para
○
○
esta valoriza o conhecimento local, cultural e nós, educadores e educandos, tentar compre-
○
○
até mesmo individual do sujeito numa dimen- ender o mangue a partir de diferentes perspec-
○
○
um primeiro momento, tentamos descobrir o vação do manguezal será de fato uma conquis-
○
○
conhecimento empírico que os alunos deti- ta quando todos se conscientizarem da sua im-
○
○
foram primeiro sistematizados em textos indi- Em suma, trabalhar o manguezal não foi ta-
○
○
viduais e depois em textos coletivos. Buscamos refa árdua e penosa, mas prazerosa tanto para
○
○
relacionar cada saber com o tempo, chegando nós, educadores, quanto para os alunos.
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○