Você está na página 1de 6

RESENHAS

Peculiaridades no Brasil
Silvia Hunold Lara
Thompson, E. P. As peculiaridades dos O interessante é que isso não
ingleses e outros artigos. Organiza- aconteceu apenas com estes arti-
do por Antônio Luigi Negro e gos. O mais importante livro de
Sérgio Silva. Campinas: Editora Thompson, A formação da classe ope-
da Unicamp, 2001. 286 p. rária inglesa, escrito em 1963, foi
traduzido para o português em
Numa edição muito bem cui- 1987, 24 anos depois. No mesmo
dada, vários artigos de Edward Palmer ano, publicou-se também Senhores
Thompson, um dos mais conheci- e caçadores, que contava então com
dos e controvertidos historiadores 12 anos de existência. Antes disso,
ingleses da atualidade, chegam por uma coletânea com vários artigos
fim às livrarias brasileiras; o mais polêmicos editada em 1978 fora
velho tem 35 anos, o mais recente desmembrada e Miséria da teoria, o
só 23. Durante anos, circularam em longo ensaio que dava título ao con-
apagadas fotocópias, feitas a partir junto, surgira em separado em
das obtidas por algum felizardo que 1981, numa péssima tradução... Em
havia conseguido colocar as mãos 1991 temos a publicação, também
nas edições originais — entre elas num português difícil, do artigo “O
uma revista indiana de estudos his- tempo, a disciplina do trabalho e o
tóricos um tanto difícil de ser loca- capitalismo industrial” (de 1967)
lizada. Depois de algum tempo, numa coletânea sobre trabalho e
apareceram em traduções domésti- educação editada no Rio Grande do
cas e logo chegaram a ser impressas Sul. Em 1998 foi a vez da cuidado-
em uma publicação interna do Ins- sa edição de Costumes em comum,
tituto de Filosofia e Ciências Huma- traduzido aos 7 anos de idade. E só.
nas da Unicamp, que ganhou várias Mais que uma peculiaridade do
edições, sempre revistas, aumentadas mercado editorial brasileiro de livros
e rapidamente esgotadas. acadêmicos, este é um balanço reve-

Topoi, Rio de Janeiro, set. 2001, pp. 175-180.


176 • TOPOI

lador. Em Miséria da teoria, Thompson dos caminhos que estavam por ser
entrava em choque frontal com desvendados. Pouco depois foi a vez
Althusser que, desde os anos 70, dos estudos sobre escravidão e abo-
gozava de enorme prestígio nas uni- lição, que desaguaram numa mu-
versidades brasileiras. Por esta épo- dança radical na abordagem da his-
ca, poucos historiadores no Brasil co- tória social do trabalho no Brasil —
nheciam a obra de Thompson, lida em que vem rendendo críticas e deba-
raros exemplares das edições origi- tes até os dias de hoje.
nais ou na tradução espanhola de al- Entende-se, portanto, alguns
guns artigos (que circulavam tam- dos motivos pelos quais livros e ar-
bém através de fotocópias de tigos de Thompson tenham sido
Tradición, revuelta y consciencia de traduzidos somente a partir do final
clase). da década de 1980. Na falta de edi-
Do ponto de vista da historio- toras realmente acadêmicas ou de
grafia brasileira, no entanto, e ape- grupos que consigam espaço edito-
sar da falta de traduções, o impacto rial para intervir no debate intelec-
da obra deste autor foi enorme. No tual, as publicações acabam a rebo-
final dos anos 70, graças a uma pro- que das transformações, apostando
dução concentrada de monografias em terreno já trilhado. Mas é de se
em algumas instituições universitá- perguntar, então, por que seus arti-
rias, o período da chamada Repúbli- gos passaram tanto tempo longe da
ca Velha já havia mudado inteira- língua patrícia — por que não foram
mente de feição. Não apenas o uni- traduzidos e publicados nas revistas
verso operário do início do século acadêmicas que, a partir dos anos
havia sido “descoberto” pelos histo- 80, começavam a se revitalizar?
riadores brasileiros como sua presen- Parte da pergunta pode ser res-
ça na história revolucionara a pas- pondida por timidez ou dificulda-
maceira da política oligáquica do des na negociação dos direitos auto-
café-com-leite. O artigo de Paulo rais. Parte pode residir na diferença
Sérgio Pinheiro publicado em 1978 teórica da maioria dos componen-
na História Geral da Civilização Bra- tes dos comitês editoriais destas re-
sileira, escrito no calor destas trans- vistas, que se inclinavam para outras
formações, mostra bem o quanto já escolhas na seleção de temas e arti-
havia sido feito até ali e a dimensão gos. Parte pode vir do modo mesmo
PECULIARIDADES NO BRASIL • 177

com que Thompson escrevia seus tureza (a já mencionada investida


textos: de seu tom extremamente crítica contra Althusser e dois arti-
polêmico e de sua argumentação gos, de 1960 e 1973, também sobre
tecida de modo cerrado através das os destinos do marxismo no pós-
fontes. Afinal, quem teria tanto in- stalinismo). Textos sem dúvida bas-
teresse em detalhes da história ingle- tante engajados, cuja compreensão
sa do século XVIII? Quem iria que- demanda conhecimento de causas e
rer se meter em polêmicas tão árduas conjunturas. Na edição brasileira de
e ásperas quanto as empreendidas “As peculiaridades”, a tarefa torna-
por Thompson? se bem mais fácil pelo cuidado das
O conjunto de textos reunidos notas explicativas e por três ensaios
e editados por Antônio L. Negro e introdutórios (dos organizadores e,
Sérgio Silva é uma bela mostra dis- um deles, de Hobsbawm).
so. “As peculiaridades dos ingleses” Mais tranqüilos parecem ser os
é um artigo que nasceu de uma in- outros artigos que integram a cole-
tensa briga política sobre os destinos tânea, situados na aparente neutra-
da tradição marxista e as relações lidade das discussões conceituais
entre teoria e história, como réplica (sobre modo de produção ou sobre
indignada a vários artigos de Perry classe e consciência de classe), da
Anderson e Tom Nairn sobre a his- crítica historiográfica ou dos deba-
tória do capitalismo britânico e os tes sobre as relações entre história e
limites da classe operária inglesa. antropologia. Nem tanto, porém.
Mais que uma discordância de inter- “A história vista de baixo” é um ba-
pretações, Thompson expressava lanço engajado da historiografia bri-
também suas insatisfações diante das tânica sobre a história operária. Pu-
mudanças na direção da New Left blicado num suplemento literário
Review — a revista criada em 1959 em 1966, o texto está longe do sen-
que servia de canal para o eferves- so comum que costuma entender a
cente debate político e teórico da expressão como a simples inclusão
esquerda britânica pós-stalinista — de “novos sujeitos” na análise histó-
e da consolidação do estruturalismo rica. Bradando contra a “História
marxista. A reedição deste artigo na Inglesa Oficialmente Correta”, des-
coletânea de 1978 foi acompanha- taca o vigor da história da classe tra-
da por outros textos de mesma na- balhadora e do movimento sindical
178 • TOPOI

na Inglaterra, indicando autores, costumes e protestos populares do


textos, temas, fontes e perspectivas século XVIII, Thompson propõe
de pesquisa — e o quanto sua aná- uma relação renovada com o mate-
lise leva a história social a libertar- rial recolhido pelos folcloristas e dis-
se de velhos entraves e chavões. O cute em profundidade o lugar dos
tema retorna à cena, de certo modo, valores e da cultura na análise histó-
em “Algumas observações sobre clas- rica.
se e ‘falsa consciência’” — notas sin- O tom mais comedido destes
téticas que apareceram em várias ensaios não esconde porém a abran-
versões, como texto independente gência da análise empreendida por
ou parte de artigos publicados no Thompson nem seu alcance políti-
final dos anos 70. Aqui, o desacor- co. Sem dúvida estamos longe da
do de Thompson em relação a ou- disputa imediata sobre questões te-
tros marxistas reaparece no debate óricas, mas a mesma crítica a uma
de um aspecto específico, mas cheio interpretação histórica presidida
de desdobramentos teóricos e polí- pela lógica do capital do final dos
ticos: a relação entre conceitos, teo- anos 60 pode ser reencontrada nes-
rias marxistas e análises históricas. tes textos dos anos 70. Ao contrário
“Modos de dominação e revo- do turista eventual que passeia por
luções na Inglaterra” resulta de um temas curiosos da vida da plebe in-
seminário realizado na França em glesa setecentista, o historiador vol-
1975 e publicado em 1976. Nova- tava-se então para as tradições que
mente reencontramos a crítica aos informavam as lutas dos trabalhado-
modelos interpretativos, ao esque- res: caminhando com eles, retoma-
matismo e ao reducionismo — ago- va o tema das relações entre cultura
ra aplicada na análise da história e economia, e o das lutas de classe
inglesa do século XVIII. O período numa sociedade em que reinava um
é também objeto da análise de “Fol- aparente consenso social. Cami-
clore, Antropologia e História So- nhando com eles, punha mais uma
cial”, surgido de uma palestra pro- vez por terra as interpretações defen-
ferida no Congresso de História da didas pela ortodoxia e por aqueles
Índia em 1976. Explicando as razões que só querem ver consciência ou
para orientar suas pesquisas para pensamento político quando a
tempos anteriores, em direção aos agenda de uma pretensa “missão re-
PECULIARIDADES NO BRASIL • 179

volucionária” estiver sendo cumpri- madinhos, que separa escravos indí-


da. genas de negros, escravos de operá-
Evidentemente, a atualidade rios, e se debruça demoradamente
destes artigos é grande. Das críticas sobre as “transições” de uma condi-
ao Partido Trabalhista inglês às po- ção a outra. Quantas vezes ainda não
lêmicas sobre o conceito de classe, a nos defrontamos com análises que
voz deste importante historiador continuam a afirmar a “falta de
ainda se faz ouvir em alto e bom consciência” dos trabalhadores, a
som. Mesmo depois de mais de uma afirmar as “peculiaridades” do de-
década da queda do muro de Berlim senvolvimento do capitalismo nes-
e quase no refluxo da onda pós- tas terras, a explicar o “sentido” de
moderna, os debates internos da nossa história a partir de uma lógi-
historiografia marxista ainda não ca exterior ao conflito de classes?
perderam o interesse. Seguindo a Nos anos 70 e 80 vários historiado-
tradição radical dos homens e mu- res brasileiros investiram contra nos-
lheres que estudou ao longo de anos sos modelos e paradigmas; hoje as
e anos, a indignação de Thompson vozes estão mais fracas, perdidas
contra as abstrações teóricas e a or- num alvoroço de temas, diluídas
todoxia pode ser ouvida de diversas diante de novos modismos teóricos.
maneiras: circunstanciada em seu Se podemos ouvir ainda algu-
tempo e como metáfora em conjun- mas respostas diferentes para os es-
turas mais recentes. tudos voltados para os séculos XIX
A leitura desta coletânea, po- e XX, em especial no campo da his-
rém, pode nos levar mais longe que tória operária, o silêncio tende a ser
os temas da história inglesa do sécu- avassalador para períodos mais re-
lo XVIII ou da historiografia mar- cuados no tempo. Para quebrar o
xista. O tom inflamado dos debates bloco de homogeneidades em que se
teóricos e políticos e o mergulho transformou o longo período histó-
detalhado em rituais estranhos rico que nos habituamos a chamar
como o da venda das esposas pode de “colonial” ainda é preciso muito
também nos fazer pensar no Brasil. trabalho. Não só uma vigorosa pes-
Sim: nesta nossa historiografia que quisa empírica, mas um olhar como
teima em ficar acomodada em cate- o de Thompson, que procura por
gorias e paradigmas tão bem arru- mudanças e transformações ao lon-
180 • TOPOI

go do tempo, que torna significati- cias históricas — as tradições de


vos os conflitos em que homens e “pretos”, “pardos”, “cabras” e “ín-
mulheres socialmente diferentes es- dios” de procedências tão diversas (e
tiveram envolvidos — um olhar ca- que, literalmente, falavam línguas
paz de fazer com que os valores, as variadas) se formaram e se transfor-
escolhas e as ações dos dominados maram, quais seus significados, suas
ganhem de fato um lugar na inter- tensões internas e suas lutas contra
pretação histórica. Assim, talvez um os senhores e patrões de então. Mais
dia possamos nos dar conta de que que isso, trata-se, sobretudo, de per-
o “nosso” século XVIII não seja tão ceber como fizeram parte da histó-
distante daquele estudado por ria: como suas ações e seus projetos
Thompson e que o aparente consen- imprimiram marcas e ajudaram a
so histórico sirva para ocultar a fer- conformar o mundo em que vive-
mentação intensa da vida e das lu- ram. Não apenas “novos” persona-
tas da gente comum. gens a figurar no processo da colo-
No caso do Brasil, porém, a nização mas sujeitos sociais cuja ação
questão parece-me ainda mais com- impôs contornos específicos a este
plexa que a enfrentada pelo historia- processo. Um desafio que ainda está
dor inglês: aqui temos que lidar com por ser enfrentado e que, talvez,
diferenças de classe associadas a di- possa explicar por que até mesmo
ferenças culturais profundas. Eis o os artigos mais “acadêmicos” de
desafio que estas “peculiaridades” Thompson sobre os plebeus ingle-
provocam quando lidas por historia- ses do século XVIII tenham demo-
dores brasileiros. Não se trata ape- rado tanto tempo a aparecer em por-
nas de procurar traduções locais para tuguês... Nunca é tarde, porém: a
motins de fome ou charivaris. Tra- lista de outros escritos do autor, ofe-
ta-se, isso sim, de investigar, sem as recida ao final do volume pelos
amarras de modelos e esquemas organizadores, contém diversas su-
reducionistas, como — ao longo do gestões para novas iniciativas edito-
tempo e em diferentes circunstân- riais.

Você também pode gostar