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Revista Espaço Acadêmico – Mensal – Nº 101 – Outubro de 2009 – ISSN 1519-6186

DOSSIÊ: 60 ANOS DA REVOLUÇÃO CHINESA


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O maoísmo da Ação Popular


e sua intervenção no noroeste do Paraná
Reginaldo Benedito Dias*

Resumo: Este artigo aborda aspectos da influência do maoísmo na intervenção política


da organização Ação Popular – AP, focalizando sua atuação na região Noroeste do
Paraná, polarizada pela cidade de Maringá.
Palavras-chave: Ação Popular Marxista Leninista, maoísmo, ditadura militar, Maringá.

Do avanço do maoísmo na AP
Foi no segundo semestre de 1967 que a
Ação Popular deslocou um dos
dirigentes de seu Comando Regional
para a região de Maringá, o advogado
trabalhista Edésio Passos, juntamente
com sua esposa, também militante da
No sexagésimo AP, a socióloga e professora Zélia
aniversário da Revolução Chinesa, tema Passos.
deste dossiê organizado pela Revista A organização da AP no Paraná data da
Espaço Acadêmico, é oportuno resgatar primeira metade daquela década, mas
o debate acerca da influência exercida havia ocorrido, a exemplo do que se
sobre a esquerda brasileira nas décadas verificava em âmbito nacional, um
de 1960 e1970. Este artigo aborda processo de desarticulação no imediato
aspectos da influência do maoísmo na pós-1964, consequência da repressão
intervenção política da organização desencadeada pela ditadura civil-militar
Ação Popular – AP, focalizando sua então instaurada. Com estímulo da
atuação na região Noroeste do Paraná, direção nacional, houve a reorganização
polarizada pela cidade de Maringá, onde da AP no Paraná e a constituição do
se implantou, entre 1967 e 1968, sob Comando Regional 2, cuja área de
inspiração da linha chinesa. abrangência também incorporava Santa
Para entender o significado do maoísmo Catarina. Aos remanescentes da fase de
na história da AP, é importante não origem, somaram-se militantes então
apenas abordar as dimensões incorporados, entre os quais Edésio
conceituais, mas também investigar a Passos e o jornalista Walmor
relação da teoria com a prática política Marcellino, que tinham feito parte do
em realidades concretas. Utilizo dados PSB. Ambos integraram a coordenação
coligidos em pesquisas de pós- do CR-2, ao lado de Paulo Gustavo
graduação (DIAS, 2003 e 2004), Barros Carvalho, fundador da AP no
atualizados por questões suscitadas pelo Paraná.
meu interesse permanente pelo tema. Em âmbito nacional, além da
reestruturação orgânica, a AP vivia anos

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de redefinição política e ideológica. rigorosamente popular e revolucionária.


Quando foi fundada em 1963, a AP Embora preservasse a noção de
preconizava, conforme seu Documento socialismo como humanismo, conceito-
base, resolução de seu 1º. Congresso, a chave do DB, a resolução promoveu a
busca de ideologia e caminhos próprios, adesão explícita ao objetivo de
procurando forjar uma espécie de conquistar o poder pela via
síntese entre o humanismo cristão, o insurrecional, por meio da estratégia da
existencialismo e o marxismo. O Revolução Socialista de Libertação
conceito-chave era o de socialismo com Nacional, conceito que sofria influência
humanismo, crítico ao modelo do das revoluções cubana e chinesa. Na
chamado socialismo real. fundamentação dessa concepção, podem
ser lidas abundantes referências a Mao
O DB saudava o avanço do mundo
Tse-tung1 e a Ernesto Guevara (AÇÃO
socialista: “depois da Revolução Russa
POPULAR, 1965).
e da criação das repúblicas populares,
os fenômenos mais importantes foram a Nessa conjuntura dos primeiros anos da
Revolução Chinesa e, na América ditadura militar, tem-se que houve uma
Latina, a Revolução Cubana. De 1917 fase de maior influência da Revolução
até os nossos dias o sistema socialista Cubana. Foram constituídas delegações
atingiu cerca de 1/3 da humanidade que, para conhecer diretamente as
ao que tudo indica, mesmo no caso de experiências revolucionárias. Em pouco
superar a motivação marxista, tempo, prevaleceria a linha chinesa. Em
continuará a desenvolver-se” (In 1967, a AP aprovou duas resoluções de
SOUZA LIMA, 1979, p. 134). A AP grande alcance. A primeira referia-se à
considerava-se parte integrante “da necessidade de construir o partido de
corrente socialista que está vanguarda para a direção do processo
transformando o mundo na atualidade”. revolucionário. A segunda era a
Todavia, explicava: “Esta opção nos resolução sobre o Debate Teórico e
integra na luta contra o capitalismo Ideológico2, convocando a militância ao
internacional, guardando uma atitude estudo e ao debate organizado do
crítica, em relação às experiências marxismo.
socialistas em realização” (In SOUZA Por ocasião da I Reunião Ampliada da
LIMA, 1979, p. 136). O DB advogava a Direção Nacional, realizada em 1968,
tese de que o complexo mundo prevaleceu “a linha chinesa”,
socialista em gestação “poderá sistematizada no “Esquema de 6
comportar experiências as mais diversas pontos”. Os militantes e dirigentes
e com orientações ideológicas distintas” aglutinados em torno dessa posição
(In SOUZA LIMA, 1979, p.134). Não foram identificados como membros da
havia, assim, uma referência
internacional hegemônica.
1 Adota-se a grafia corrente na época.
Depois do golpe de estado de 1964, em
2 O documento Autocrítica da Direção
reavaliação de sua política, a AP passou
por um processo de radicalização de Nacional estima que, no início desse debate,
havia cinco alas internas. Duas delas seriam
horizontes e métodos. Em 1965, reunião antimarxistas, adeptas da sobrevivência do
nacional extraordinária aprovou o reformismo na organização. As outras variavam
documento Resolução política, com o em sua assimilação do marxismo. A contradição
objetivo de inserir a AP em uma nova principal seria entre reformistas e
fase de sua história, definida como revolucionários. A resolução do DTI volta-se
contra os antimarxistas.

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“Corrente 1”. Foram expulsos da AP burguesa, que deveria ser transferida


militantes que divergiam da “linha para o universo da producão, no campo
chinesa”e cujas posições foram e na cidade.4 No âmbito internacional,
associadas ao legado da “linha cubana”, exaltava-se a condição de vanguarda do
tal era a intensidade da disputa. Partido Comunista Chinês e criticava-se
Defendiam que o programa estratégico o revisionismo contemporâneo
da revolução brasileira era a construção capitaneado pela URSS.5
do socialismo. Reconhece-se a Nesse esquema, já se lê o objetivo, que
necessidade de realização de tarefas
seria levado à frente na sequência, de
pré-socialistas, que não teriam, porém, o destruição da “velha AP” para sua
caráter estratégico de uma etapa. Essas
reconstrução em novas bases. Nesse
tarefas pré-socialistas, de natureza anti-
caso, o objetivo último era a
imperialista, seriam simultâneas às reconstrução do partido de vanguarda
tarefas socialistas que pudessem ser da classe operária, processo ao qual a
realizadas imediatamente (AÇÃO AP deveria estar integrada. Com efeito,
POPULAR, 1968). Ficaram conhecidos
a transformação da AP aprofundou-se,
como “Corrente 2”. Seus expoentes acompanhada de uma drástica
viriam a participar da fundação do autocrítica do passado, ideias e práticas.
PRT(Partido Revolucionário dos A dinâmica da morte e recriação é
Trabalhadores), em 1969. explícita em diretriz aprovada na II
O “esquema dos 6 pontos” afirmava o Reunião Ampliada da Direção
maoísmo como a terceira etapa do Nacional, realizada em 1969: “ao
marxismo, o marxismo da atualidade. mesmo tempo em que começava a
Entendendo o Brasil como um país morrer a velha Ação Popular, começava
semicolonial e semifeudal, preconizava a nascer uma nova Ação Popular,
a revolução nacional-democrática. A marxista-leninista, proletária; o
linha militar regia-se pelos parâmetros processo de crise combinava-se com o
da guerra popular, cuja arena principal processo de transformação e
era o campo. O texto refere-se mesmo proletarização do partido” (AÇÃO
ao cerco da cidade pelo campo. Por POPULAR, 1969, p. 3). A ruptura com
isso, embora a condição de vanguarda a história da AP foi detalhada na
do proletariado fosse preservada, formulação de 12 tarefas para
destacava-se a necessidade de mudança reconstrução do partido operário,
do eixo de trabalho para o campo3. Sob sempre dirigidas ao passado da
eco da revolução cultural chinesa, organização. Ao proclamar a morte da
preconizava-se a proletarização da “velha AP” e o nascimento da “nova
militância da AP, de origem pequeno-

4 Especificamente sobre o processo de


3 Sobre a singularidade do maoísmo, anotou “proletarização” da militância da AP, ver:
Daniel Aarão Reis Filho (1991, p.113): “O fato OLIVEIRA, 2005; SANTANA, 2008; DIAS,
é que o maoísmo se caracterizaria pela 2003. Marcelo Ridenti (2002), em conhecido
valorização do camponês, não só como ator ensaio, interpretou essa transformação por meio
principal na luta pela tomada do poder, mas da noção de “romantismo revolucionário”.
também como vanguarda no projeto de 5 Considerava-se como revisionismo clássico o
construção do socialismo. Essa foi, sem dúvida, ocorrido no seio do Partido Social-Democrata
a marca registrada do maoísmo e sua principal alemão, no final do século XIX, quando Eduard
inovação do ponto de vista do pensamento Bernstein propôs uma estratégia de reformas
revolucionário do século XX”. como caminho ao socialismo.

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AP”, o documento procura fundá-la na direta de causa e efeito.8 Outra


tradição marxista, procedendo a um dimensão diz respeito à renovação de
extenso resgate da história do militância no pós-1964, como ocorreu
movimento socialista, desde a época de no Paraná.9 Nesse caso, os dirigentes
Marx e Engels até o período atual, entrevistados, que não tinham vínculos
vívido sob o primado do pensamento de com o processo de origem da AP,
Mao Tse-Tung. Reitera-se o combate ao esclareceram que seu posicionamento
revisionismo contemporâneo, decorria da identificação com o
representado pela nova direção da significado das propostas da “Corrente
URSS e, no Brasil, pelo PCB. 1” e de sua divergência com a “Corrente
2”, cuja estratégia qualificavam como
Na terra dos cafezais
“foquista”.
Os dirigentes da AP do Paraná
Sobre a política de “proletarização”, o
inclinaram-se pelas teses da chamada
"Corrente 1". A adesão ao maoísmo tem ex-dirigente Duarte Pereira, que era
membro da Direção Nacional naquele
ensejado reflexões sobre os fios de
continuidade entre a fase anterior da AP período, salientou, em entrevista
concedida quando doou seu acervo
e essa que começava a ser vivida.
documental para a Unicamp, que a ideia
Herbert de Souza6 popularizou a tese de
que, como boa parte dos militantes tinha de deslocamento e de inserção na
origem nos movimentos leigos do produção fabril é anterior à adesão ao
catolicismo,7 houve a permanência da maoísmo. Evidência disso é o
atitude religiosa, traduzida, por documento Profissionalização de
exemplo, por uma ética militante quadros: necessidade urgente, datado
análoga. Emblema dessa permanência, de 1966, que tematizava essa política
sempre citada nos debates, seria a com significados próprios à conjuntura.
política de “proletarização” da Naturalmente, o avanço do maoísmo
militância. A interpretação é instigante, dotou aquela política de novos sentidos,
pois procura identificar em que medida mas não inaugurou o debate.
a nova opção era informada por uma No Paraná, os deslocamentos iniciam-se
cultura anterior. Cabem, porém, em 1967, demandados pelo objetivo de
algumas ressalvas. implantação da AP em regiões
A “Corrente 2” da AP, que rejeitava a consideradas estratégicas. Não se pode
metodologia da “proletarização”, dizer que a transferência de Edésio
também tinha líderes com passado Passos e Zélia Passos tenha sido
católico. Não havia, assim, uma relação literalmente uma "proletarização". Sem
perder de vista o objetivo de investir no
fortalecimento da organização dos
trabalhadores, ambos continuaram a
exercer suas profissões originais,
6
Nos vários depoimentos e entrevistas que
concedeu, Herbert de Souza consolidou uma
visão bastante ácida sobre essa transformação 8 Por motivações e traduções próprias, correntes
vivida pela AP. Analisei sua interpretação em de origem marxista aproximaram-se do
outro artigo (DIAS, 2007). maoísmo, como o PC do B e sua dissidência, a
7 Essa transformação da AP foi analisada Ala Vermelha.
criticamente por pensadores católicos ou por 9 Conforme a documentação, a maioria dos
intérpretes da história do catolicismo. Ver militantes da AP do Paraná tinha ingressado
DIAS, 2008. nesse período.

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advogado e professora. De qualquer Sindicato dos Colonos e Assalariados


modo, havia a influência dos debates Agrícolas (PRIORI, 1996). Logo em
sobre a linha chinesa nessa decisão. seguida, outros sindicatos de base
urbana foram fundados em Maringá. Da
Para decidir implantar-se na região de
mesma maneira, multiplicou-se, em
Maringá, pesaram dois fatores. O
toda a região, a organização dos
primeiro era a tradição de lutas dos
trabalhadores do campo. Até 1964,
trabalhadores rurais na região,
foram formados 86 sindicatos nesse
sedimentada, antes de 1964, sob a
setor. As entidades veicularam
direção do PCB. O segundo era o perfil
reivindicações trabalhistas por vias
socioeconômico da região, terreno que a
legais e, em casos determinados,
direção da AP considerava fértil para
lideraram greves (SILVA, 2006).
colocar em prática sua concepção de
revolução camponesa. Visava-se, pois, à O horizonte dessa emergente
sedimentação, observadas as muitas organização sindical sintetizava uma
mediações necessárias, da estratégia da pauta abrangente: reforma agrária,
guerra popular. imediata aplicação da legislação social
aos trabalhadores do campo, efetivo
A AP implantava-se em um centro
salário mínimo, abolição do vale-
urbano, com vistas a organizar o
armazém etc. (SILVA, 2006; PRIORI,
movimento operário, mas o horizonte
1996). Entretanto, segundo a inferência
era o campo. Maringá era uma base a
de Priori (1996, p. 86), “os sindicatos de
partir da qual a AP poderia fazer sua
trabalhadores rurais do Norte do Paraná,
política irradiar-se por toda a região,
influenciados pelo PCB, estavam mais
abrindo caminho para o trabalho
preocupados em direcionar a luta para
"camponês". No dizer de Passos, o
conquistar melhores salários e uma
objetivo principal era, em coerência
legislação trabalhista para o campo que
com o maoísmo, o cerco da cidade pelo
propriamente com o projeto de reforma
campo.
agrária”. Essa tradição de lutas sindicais
A região, colonizada recentemente, era era um ponto de partida para a AP, mas
conhecida pela sua economia cafeeira, à sua estratégia deveria ultrapassá-la,
qual correspondiam relações de trabalho visto que era inspirada na revolução
tradicionais, como o colonato. A camponesa.
importância econômica do setor rural e
Na interpretação das características das
essas relações de trabalho alimentavam
estruturas socioeconômicas da região, o
a tese, assumida pela AP, de que havia
debate apresenta dimensões ainda mais
um setor semifeudal na economia e que
complexas. Havia, por um lado, a
a revolução viria do campo.
polêmica sobre as permanências feudais
Na região de Maringá havia uma no Brasil e seus desdobramentos na
tradição de organização e de lutas no definição do caráter da revolução.10 Em
campo. Na década de 1950, o PCB 1968, a própria AP vivia sob tensão
iniciara um processo de organização dos
trabalhadores do campo em toda a
região norte do estado. Foi no bojo 10 Seria dispendioso fazer a genealogia desse
desse processo que se formou, em 1956, debate. Cite-se que é de 1966 o livro A
o Sindicato dos Trabalhadores Rurais de revolução brasileira, em que Caio Prado Jr.
Maringá. O sindicato de Londrina, sistematizou densa crítica à tese do feudalismo
fundado pouco antes, denominava-se no Brasil. Livro, como se sabe, muito influente
no debate daquela geracão de esquerda.

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desse debate, que se atualizaria na modernização ocorrida na agricultura


conjuntura próxima. Havia, por outro correspondia um processo de
lado, a dinâmica do capitalismo no modernização nas atividades
período. econômicas eminentemente urbanas,
pertencentes aos chamados setores
Embora a esquerda revolucionária
secundário e terciário. E existia íntima
considerasse que o capitalismo vivia um
relação entre o perfil das atividades
estrangulamento estrutural e
urbanas que se desenvolviam com a
menosprezasse sua capacidade de
citada modernização do campo, já que a
reprodução ampliada, o país voltaria a
indústria emergente se ligava à
viver uma fase de modernização e de
transformação da produção rural da
crescimento econômico excludente. Na
região.
região de Maringá, tal modernização foi
vista em toda a sua extensão. Essa grande transformação, que ocorreu
em um período muito curto, pôde ser
Em meados da década de 1960, no
vista com mais clareza em meados da
compasso das mudanças que ocorriam
no país, foi impulsionada uma década de 1970,11 mas a tendência de
modificação do modelo de agricultura
reviravolta no perfil econômico da
estava indicada na década de 1960. Em
região. O declínio da cultura cafeeira,
1961, o IBC estabelecera um programa
inserido num processo de exigências do
de substituição da monocultura
mercado internacional em torno de
comercial do café por outras atividades
lavouras que tivessem alto valor
produtivas. A primeira etapa aconteceu
comercial, levou à diversificação da
nos anos agrícolas de 1962/3 e 1967/68
agricultura. Tal mudança se fez sentir
na dimensão das propriedades e na
forma do uso da terra. O aumento de
11 Registre-se que a representação que a AP
produtividade adveio tanto da
alternância de lavouras temporárias em fazia da região guardou parentesco – abstraindo
o contorno ideológico e a distância de objetivos
um mesmo solo quanto da introdução da – com a leitura que agentes de outro campo
mecanização e consecutiva redução da político fizeram para articular um ato visando à
mão de obra. Por sua vez, as relações de pauta nacional. No final de março de 1968,
trabalho adquiriram a feição de Maringá entrou no mapa nacional da oposição
assalariamento explícito, incluindo a por ocasião de um comício da Frente Ampla,
liderada por Carlos Lacerda, ex-governador do
contratação de trabalhadores volantes, estado da Guanabara. Após apoiar a intervenção
os chamados boias-frias. Perderam que depôs o presidente Goulart, Lacerda entrou
importância outras formas de trabalho em rota de colisão com os governos militares.
ligadas às culturas permanentes, como o Articulou, então, a Frente Ampla de oposição,
colonato e a parceria. buscando o apoio dos ex-presidentes João
Goulart e Juscelino Kubistchek, seus antigos
Importante corolário desse processo foi adversários políticos. Uma das principais e
a acentuada urbanização que se efetuou. derradeiras atividades da Frente Ampla foi o
comício realizado em Maringá. A escolha da
Na região de Maringá como um todo, o cidade como palco do ato político foi assim
deslocamento da população rural para explicada por um periódico local: “Reina grande
os centros urbanos foi bastante visível, expectativa em torno da fala do Sr. Lacerda em
conforme assinalam os dados do censo. Maringá, não só pela cidade, como também nos
Os movimentos demográficos meios políticos nacionais. Isto porque Maringá
está sendo considerada ‘zona camponesa do
dirigiram-se aos principais centros Paraná’ e o comício serviria para um teste da
urbanos paranaenses e às novas regiões Frente Ampla junto aos homens do campo”. Cf.
de expansão de fronteira agrícola. À O Jornal de Maringá, 29 de março de 1968.

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e resultou na redução de 433.266ha., categorias profissionais com


26,7% da área de cultivo. Entre 1968 e palavras de ordem políticas (contra
1977, a área ocupada pelo café sofreu a ditadura) foi possível um
redução de 1.187.532ha. para movimento de grandes proporções
698.241ha., 41,2%. Na primeira fase, a para a cidade e região, com
repercussão nacional.13
substituição de atividades era
caracterizada principalmente pela Juntamente com sua esposa, a
expansão da pecuária. Depois, no final professora Zélia Passos, Edésio
da década, houve avanço das culturas desempenhou papel destacado na
associadas da soja e do trigo. Entre rearticulação das lutas sindicais do
1968 e 1977, essas culturas, município, na conjuntura pós-64. Para o
emblemáticas da modernização que se início das atividades da AP, contribuiu a
efetuava, tiveram uma ampliação de condição profissional de advogado
1.735,6% e 1.026,0%, respectivamente trabalhista de seu dirigente, cuja
(LUZ, 1988). atuação, segundo suas próprias palavras,
dividia-se em três níveis. O primeiro era
A implantação na área urbana de
o campo aberto da atuação profissional
Maringá era uma base a partir da qual se
e sindical. O segundo, de dimensões
pretendia construir a organização e dar
organizativas, era a constituição de
suporte à sua irradiação em toda a
sindicatos e entidades estudantis. O
região. Entretanto, embora a estratégia
terceiro, mais difícil porque clandestino,
da AP estivesse centrada na concepção
era a organização da própria AP, tarefa
de revolução camponesa, foi junto aos
para a qual buscava arregimentar
trabalhadores urbanos de Maringá que
operários, camponeses e estudantes.
se verificou sua articulação mais
efetiva, com o desencadeamento de O trabalho foi centralizado nas
ações organizadas e de lutas de massas, entidades em que era possível ter uma
vindo a liderar, em outubro de 1968, base de sustentação mais direta:
uma greve de impacto na conjuntura da motoristas, bancários, trabalhadores da
região e de repercussão estadual.12 construção civil, operários das
indústrias de transformação de
Indique-se, desde já, que a mobilização
alimentos. Procurou-se estabelecer, no
visou a atingir a feição de uma greve
contato com as organizações sindicais
geral. A Ação Popular, esclareceu
dessas categorias profissionais, a
Edésio Passos,
dialética de atingir, a partir das
esboçou plano de deflagração de reivindicações trabalhistas, níveis de
uma greve geral em outubro de consciência política que dessem conta
1968, que abrangia todos os das contradições das políticas da
Estados, mas que surtiu efeito ditadura militar.
somente em alguns setores. Um
desses foi Maringá (...). Unindo Houve maior sedimentação política
reivindicações específicas das junto aos bancários e aos trabalhadores
das indústrias alimentícias. Com uma
diferença: no primeiro caso, houve
12 Em outubro de 1968, a AP manteve parceria com a direção já constituída do
proximidade com a greve dos bancários de sindicato, que estava integrada a um
Curitiba. Todavia, como esclareceu Cláudio
Ribeiro, dirigente sindical que se identificava
com as posições da AP, a greve seguiu uma 13 Cadernos da UPT, Universidade Popular
dinâmica própria. do Trabalho, Curitiba, n. 1, 1993, p. 18.

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calendário estadual e nacional de lutas; de sua campanha reivindicatória, os


no segundo caso, houve esforço para operários da Cia. Norpa, indústria que
articular a constituição da entidade produzia óleos vegetais, suspenderam
sindical da categoria e para estabelecer suas atividades, como planejado. Houve
a pauta e o cronograma de lutas. a não esperada adesão dos operários da
Cia. Cruzeiro, empresa do mesmo setor,
mas a irradiação do movimento
paredista não foi muito além. Somente
no dia 4 o setor bancário de Maringá
promoveu breve paralisação,
interrompida devido à dinâmica das
negociações que a Federação da
categoria entabulava com o patronato.
Em âmbito estadual, a greve dos
bancários, que fora desencadeada em
Curitiba, já havia sido, por conta das
negociações, suspensa. Mesmo
criticando a negociação, o sindicato
local teve que se incorporar ao acordo.
Houve, além disso, ensaio de
mobilização entre os operários da
construção civil, trabalhadores em
empresas de transporte coletivo (urbano
e intermunicipal) e estudantes
secundaristas.
De fato, a dinâmica de lutas dessas duas
categorias foi o suporte principal das
mobilizações verificadas em outubro de
1968. No caso dos bancários, houve
convergência com a data-base da
categoria e com as negociações e
mobilizações que vinham sendo
encetadas em âmbito estadual e
nacional. No caso dos trabalhadores das
indústrias alimentícias, reivindicações
trabalhistas frustradas, a partir de
campanhas desencadeadas pela recém-
fundada associação sindical da
categoria, impulsionaram a
mobilização.
É emblemático que a data de
deflagração da greve tenha sido 1º. de
outubro, aniversário da revolução
chinesa. A paralisação não chegou a
irradiar-se pelo conjunto dos setores que
A greve do setor alimentício,
se encontravam na órbita da
evidenciado o esgotamento do seu papel
mobilização. Insatisfeitos com a sorte

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de irradiação da greve geral no dos setores em que a paralisação se


município, procurou, a partir de sua efetivara e destacava sua possível
pauta de reivindicações, soluções irradiação.
próprias. Entretanto, do ponto de vista
da conquista de reivindicações, a greve
não logrou êxito. As represálias sobre
os trabalhadores envolvidos foram
imediatas, com a perda do emprego. O
processo de organização sindical da
categoria sofreu descontinuidade. A
legalização da Associação como
sindicato exigiu, sob os influxos da
D.R.T. (Delegacia Regional do
Trabalho), que houvesse interrupção
dos passos dados e a constituição de um
novo processo, com a renovação de
dirigentes.

Também são destacadas manifestações


de solidariedade de algumas entidades
sindicais à greve, justamente aquelas
que estavam na órbita da mobilização.
Muito cedo foi constituído um "Comitê
Conquanto as demais paralisações de Apoio aos Operários em Greve",
anunciadas não tenham vingado, pode- composto por entidades sindicais,
se dizer, segundo os registros estudantes e representantes do clero,
investigados, que a cidade viveu esses com o objetivo de dar suporte material e
primeiros dias de outubro de 1968 sob o político ao movimento dos operários
signo da greve geral. Evidência é das indústrias alimentícias. Os panfletos
fornecida por um tablóide que o mais produzidos, dirigidos à população,
tradicional jornal da cidade preparou articulavam discursos de defesa dos
para noticiar os acontecimentos, cuja interesses corporativos com temas da
manchete anunciava: "Maringá pode política nacional, com matizes
parar".14 A reportagem fazia o registro ideológicos: "Vivemos oprimidos pelo
arrocho salarial instituído pela ditadura
para aumentar os lucros dos patrões,
fazendeiros latifundiários e para
14 O Jornal de Maringá, 5 de outubro de aumentar os lucros do imperialismo". O
1968, tablóide. Conforme se pode aferir nos pano de fundo da mobilização foi
arquivos da DOPS/PR, os órgãos de segurança definido da seguinte maneira: "nossa
acompanharam atentamente os desdobramentos
dos acontecimentos. O relatório da polícia
política acusa o periódico de "difundir notícias
tendenciosas e alarmistas, visando ao os líderes da greve mantinham articulação com
alastramento da greve". Era um indício de que a imprensa.

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luta, assim, é a luta do povo operário poucos rastros. A partir do início de


contra o arrocho, é a luta contra o roubo 1969, ante o recrudescimento da
de nossos direitos. Faz parte da luta do repressão, houve a necessidade de
povo brasileiro contra o imperialismo e promover o remanejamento dos quadros
a ditadura". para outras regiões do país. Ocorreu
Ainda que ocorresse em um centro uma combinação da linha política da
organização com a necessidade de
urbano importante apenas no contexto
do estado15 e tivesse repercussão adotar medidas de segurança. Os
desdobramentos levaram a que, até o
regional, a greve sintetizava importantes
características. Primeiro, a mobilização final do primeiro semestre de 1969,
praticamente todos os militantes do CR-
transgredia, especialmente por ter
2 fossem transferidos para outras
aspirado a ser uma greve geral, os
regiões. O fato é que tal situação levou
limites que o universo institucional da
ditadura, por intermédio de expedientes a um novo período na história da
organização regional da AP, marcado
crescentemente coercitivos, estabelecera
por significativa descontinuidade em
para a atuação do movimento sindical e
da sociedade civil em geral. Segundo, seus trabalhos.
colocava em xeque as políticas As reviravoltas e o declínio do
econômicas vigentes, caracterizadas maoísmo
pela introdução de acentuado arrocho O Comando Regional se reorganizou
salarial. Terceiro, havia a participação em 1969. Foram estabelecidos dois
de dirigentes de uma organização Comandos Seccionais para organizar as
revolucionária em sua articulação. atividades da AP no Paraná. O primeiro,
Sobre a implantação no campo, tem-se abrangendo a região de Curitiba, passou
que foi na região polarizada por a ser referido como Canudos. O
Maringá que se verificaram os segundo, abrangendo o norte e o
principais esforços de deslocamentos de noroeste do estado, foi denominado
militantes da AP, oriundos quase Roseira, subdividindo-se nas seguintes
sempre do movimento estudantil da áreas: Ouro (Maringá), Prata (Londrina)
capital, para o mundo do trabalho e Melado (Goio-erê).
rural.16 Qualquer que fosse a
Foi somente em 1969, no município de
potencialidade política desse método de
Goio-erê, distante 170km de Maringá,
proletarização, cuja eficiência suscita
que a AP estabeleceu participação
polêmicas na avaliação dos ex-
efetiva em um movimento de
militantes da AP, os deslocamentos,
trabalhadores rurais. Mais precisamente,
intensificados em 1968, tiveram pouca
teve participação em um movimento de
chance de fincar raízes e deixaram
arrendatários, organizado em torno da
reivindicação de melhores contratos.
15 Em 1970, segundo os dados do censo, Contudo, conforme dizem seus próprios
Maringá totalizava 121.374 habitantes. No documentos de avaliação, a AP não teve
início da década de 1970, o eixo Maringá- papel decisivo na deflagração e na
Londrina era o que apresentava os melhores direção dos acontecimentos, movidos
indicadores de Valor Agregado Fiscal do por interesses bem localizados.
Estado. Cf. IPARDES – Instituto Paranaense de
Desenvolvimento econômico e social. Leituras Na virada da década, após a incursão no
regionais. www.ipardes.gov.br movimento dos arrendatários de Goio-
16 Há exemplos na região rural de Paranavaí,
erê, os militantes da AP promoveram
distante 70km de Maringá.

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autocrítica de sua compreensão das Por um lado, surgiram questionamentos


relações de produção e das estruturas à interpretação do Brasil como um país
econômicas da região. O documento semifeudal e semicolonial e à
Balanço da CS-RoS- acerca do concepção da revolução nacional-
trabalho do partido na seção, datado democrática. Para a ala que formulava
de outubro de 1970, faz o registro dessa essas questões, tornar-se-ia necessário
reavaliação. construir um partido de tipo
inteiramente novo. Por outro lado,
Apesar de orientado pelo discurso da
dirigentes da AP aproximaram-se do PC
Guerra Popular, o documento procura
do B e viriam a defender a incorporação
redefinir a visão sobre o papel dos
a esse partido. Nesse caso, havia
assalariados agrícolas e dos
afinidade quanto ao caráter da
arrendatários. No que se refere aos
revolução, definida como nacional e
primeiros, escreve: “Tivemos uma visão
democrática.
dogmática, quanto à posição de atraso
no campo que nos levou a desprezar os Em 1971, houve uma etapa importante
assalariados agrícolas. E sem dúvida da disputa interna, por ocasião da III
alguma é uma força decidida”(p.6). O Reunião Ampliada da Direção
destino dos arrendatários é assim Nacional. A partir desse momento, a AP
definido: “A tendência dessa classe é o passou a denominar-se Ação Popular
desaparecimento, a evolução no rumo Marxista-Leninista – APML. A
do assalariado agrícola”(p.7). No final resolução dessa reunião, configurada no
de 1970, a militância da Seccional Programa básico, foi considerada pelas
“Roseira” mudou o eixo de sua partes em disputa como uma espécie de
intervenção e procurou se integrar às solução de compromisso. Foram
zonas urbanas, particularmente Maringá incorporados aspectos das posições que
e Londrina. Esse trabalho foi logo polarizavam o debate em curso e as
interrompido pela necessidade de novas definições últimas foram remetidas à
transferências e pelo avanço dos realização do II Congresso da AP, a ser
tentáculos da repressão, que tiveram convocado. No PB, ainda se lê que o
efeito desaticulador. objetivo era construir um partido de tipo
inteiramente novo, marxista-leninista-
Diante das tentativas de explicar a
maoísta.
dinâmica do movimento, enfim, surgiu
o questionamento da caracterização das As disputas internas se acirraram.
estruturas do campo como semifeudais Embora houvesse nuanças, a
e da linha de revolução camponesa. divergência principal pode ser resumida
Depoimentos de militantes revelam que em dois pólos, em torno dos quais
havia influência das teses de Paulo gravitaram posições intermediárias17.
Wright, dirigente nacional com origem Malgrado a intensidade da disputa e os
em Santa Catarina, que foi protagonista termos depreciativos utilizados para
no questionamento da revolução desqualificar a tese concorrente, há
nacional e democrática. De forma mais
ampla, toda a organização da AP vivia
esse debate. Não obstante a definição 17 O documento Viva a nova Ação Popular;
pela linha maoísta em 1968, as disputas Comunicado da III Reunião Ampliada da
teóricas não adormeceram. A própria Direção Nacional, de maio de 1971, relata que
influência do maoísmo assumiu feições havia, nos debates, cinco tendências. O
bastante complexas. afunilamento deu-se em torno da polarização
descrita.

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densos documentos procurando Como essa tese incorporava a defesa da


fundamentar as posições. Constata-se, construção do partido da terceira etapa
inclusive, tentativa de diálogo com as do marxismo, o maoísmo, há um
mudanças em curso no país. aparente paradoxo. Contudo, para os
setores que sustentavam tal posição,
Eis um extrato de um documento
formulado para sistematizar a tratava-se da defesa do método e não da
letra do maoísmo. Afirmava-se que o
compreensão de que o Brasil vivia a
temporalidade da Revolução Socialista. combate ao revisionismo exigia,
também, a recusa do dogmatismo, ou
Na análise estrutural, assevera: “com
segurança, (...) a base econômica da seja, o transplante literal da linha
chinesa para a realidade brasileira
sociedade brasileira em toda sua
(AÇÃO POPULAR, 1972).
história, suas relações de produção,
jamais tiveram um caráter feudal ou A ala que fundamentou a estratégia da
escravista. Apesar do emprego de revolução nacional e democrática
relações de trabalho pré-capitalistas, o elaborou um longo documento,
sistema de plantações no Brasil foi intitulado Contribuição ao estudo
regido pelas leis capitalistas de científico da sociedade brasileira,
produção” (AÇÃO POPULAR, 1972, p. subsidiado por dados estatísticos.
29). No período recente, tais traços Utilizou-se, privilegiadamente, o
teriam ficado mais evidentes. A resultado do censo de 1970. Não é o
economia agrícola era regida pelas leis caso de comentar exaustivamente os
básicas do sistema capitalista e suas vários temas elencados. Cite-se, no
áreas vitais estariam empregando entanto, que o estudo aborda a
principalmente mão de obra assalariada. modernização da economia, o peso
No campo, residia o elo mais fraco das relativo de cada setor da economia, a
forças revolucionárias. Além de a expansão do capitalismo e o processo de
população camponesa não ter suficiente urbanização em curso.19 Conclui que o
densidade para sustentar a revolução,
crescia a proletarização nesse setor da
economia (AÇÃO POPULAR, 1972, p. 19 Detém-se, por exemplo, no fato de o IBGE
29).18 Não havia amparo na realidade, divulgar que 55% da população residia em área
de acordo com essa linha de urbana ou suburbana. Contrasta esse dado com
interpretação, para a defesa da outros critérios de avaliação. Alegando que
revolução democrático-burguesa no convenções internacionais aceitavam como
urbana a população residente em cidades com
Brasil. A revolução deveria ser
mais de 20.000 habitantes, conclui que, usando
imediatamente socialista. Em resumo, esse parâmetro, na proporção de 60% a 40%, o
conclui que "será pela insurreição povo brasileiro ainda se radicaria,
urbana que a revolução triunfará" e que majoritariamente, em áreas rurais (Ação
"o proletariado brasileiro é a força Popular. 1972b). Sem fazer equiparações rígidas
e reconhendo a diferença de motivações
principal da revolução brasileira"
políticas e ideológicas, de ambientação
(AÇÃO POPULAR, 1972, p.44). conjuntural e institucional, cabe citar um extrato
de documento aprovado pela Conferência
Nacional de Desenvolvimento Agrário,
realizada em 2008. Em um dos pontos da
resolução, afirma-se: “O ponto de partida do
18 Jacob Gorender (1987) salientou o fato de Brasil Rural não se limita ao universo composto
essas teses sofrerem influência da teoria da pela população que reside nas áreas rurais
dependência, que gozava de grande audiência delimitadas pelo IBGE ou às atividades
naquela época. agropecuárias nelas desenvolvidas. Nesta nova

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Brasil tem uma formação social que foi visto, por anos, como o principal
complexa, combinando relações representante do maoísmo no Brasil.20
capitalistas, relações semifeudais e A luta interna se acirrou. Após expulsar
feudais com a predominância das dirigentes da chamada “minoria”, a ala
relações capitalistas. No Brasil, majoritária da direção, em 1973,
predominaria o capitalismo, mas restos declarou extinta a AP e comandou a
feudais sobreviveriam com destacada
incorporação ao PC do B.21 Outro setor
importância. Assim, “a tarefa procurou reorganizar a AP, que teve
democrática principal da revolução
existência até o início da década de
brasileira é de extirpar todo o sistema 1980.
latifundiário, o monopólio da
propriedade da terra e o cortejo de suas Logo após a cisão, a Ação Popular
sobrevivências feudais. A revolução viveu um período de grande fragilidade
nacional e democrática é assim anti- organizativa (OLIVEIRA, JR, 2000).
imperialista e agrária” (AÇÃO Na segunda metade de 1973, o aparato
POPULAR, 1972b, p. 78). repressivo provocou uma série de
“quedas” de militantes. Nessa fase da
Essa ala, que formou maioria na direção década de 1970, a AP promoveu um
da AP, defendeu a incorporação ao PC movimento autocrítico, comum às
do B, com base na afinidade de várias organizações de esquerda do
programas e no reconhecimento de que período, acerca do isolamento que a
ele seria o partido histórico da classe radicalização política tinha vivenciado
operária. Para tal, houve autocrítica em em relação aos movimentos de
relação ao maoísmo como terceira fase trabalhadores. Tal autocrítica tomava
do marxismo, condição estabelecida como baliza o marxismo revolucionário
pelo PC do B. Não obstante, ainda que e a dinâmica concreta do movimento de
houvesse algumas atualizações na massas e da classe operária. Propôs-se,
formulação, a defesa da revolução ainda, a constituição da Tendência
nacional-democrática, inspirada na linha Proletária, com organizações da
chinesa, cimentava essa aproximação e
a proposta de incorporação ao PC do B,
20 No final da década de 1960, o PC do B era
reconhecido como representante autorizado do
PCCh no Brasil. Em suas publicações desse
visão, o espaço rural é pensado de forma mais período e do início da década seguinte, O PC do
ampla através da noção de ruralidade. Por isso, B não economizou elogios à experiência chinesa
se adotou o recorte sugerido por vários autores e a seu líder máximo (GORENDER, 1987, 213).
para os municípios rurais, que são aqueles que Todavia, houve uma reviravolta no fim da
possuem menos de 50.000 habitantes e década, quando que se abandonou a China como
apresentam uma densidade demográfica de até referência (REIS FILHO, 1991). Como explicou
80 hab./km2. Com isso, são valorizadas outras Jean Rodrigues Sales, procedeu-se, a partir
dimensões importantes, como a relação com os dessa cisão, a “uma crítica retrospectiva ao
recursos naturais e os ecossistemas, a produção modelo chinês, na qual se procura mostrar que o
de conhecimentos e saberes, o patrimônio partido já demonstrava discordância com este
cultural; a organização social e as inter-relações modelo pelo menos desde 1963” (SALES, 2000,
existentes entre o rural e o urbano e entre as p.114).
atividades agropecuárias, não-agropecuárias e 21 A defesa desse caminho está sistematizada
extrativistas. Disponível no sítio eletrônico do no livro que Haroldo Lima e Aldo Arantes
Ministério do Desenvolvimento Agrário. escreveram sobre a trajetória da AP (LIMA &
http://www.mda.gov.br/condraf/index.php?ctuid ARANTES, 1985). Em outro artigo, fiz uma
=18565&sccid=1756 análise específica desse livro (DIAS, 2006).

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esquerda revolucionária que também se se trata de nada mais que um rito


encontrassem em fase de autocrítica. formal. Havia muito tempo que se
considerava o PB superado.
A AP não perderia sua existência
independente, mas sua intervenção, na Nessa conjuntura, sem abrir mão do
conjuntura próxima, esteve pautada pela objetivo de constituir a TP, a AP propôs
construção da Tendência Proletária.22 a formação de um partido socialista para
Em 1976, o processo de reorganização atuar na nova legalidade, o Partido
da AP atingiria um patamar mais Popular. Em meados de 1979,
elevado. Em fevereiro desse ano, foi inviabilizada a proposta do PP, decidiu
constituído o Núcleo Provisório de participar do Movimento pró-PT,
Reorganização Nacional. A caminho que não foi seguido,
reorganização foi tida como consolidada entretanto, por todos os seus militantes.
em 1977, quando foi aprovado o Após realizar seu II Congresso, a
estatuto, que reafirmava a identidade APML, que vivia um período de crise
com o marxismo-leninismo. orgânica e política, dissolveu-se no
Em março de 1978, o Secretariado interior do PT (OLIVEIRA JR.,2000;
Nacional da AP editou um amplo DIAS, 2009).
documento de avaliação, com vistas à Considerações finais
preparação da IV Reunião Ampliada A relação da AP com o maoísmo não
Nacional. Nesse momento, a AP foi simples nem monocromática. Pelo
relacionava-se com o processo de contrário, apresentou nuanças e
rearticulação dos movimentos sociais. O dimensões que instigam reflexões as
vigoroso movimento sindical incidiria mais diversas, tal é a diversidade de
sobre a pauta da abertura política e da situações e temas que se depreende.
reforma partidária, servindo de suporte Salienta-se o fato de essa relação ter-se
à constituição do Partido dos aprofundado quando a AP se declarou
Trabalhadores. em fase de autotransformação política e
A IV RAN ocorreu em fevereiro de ideológica, interessada em filiar-se à
1979. Em pauta: a conjuntura nacional, tradição revolucionária marxista. Sem
o futuro da AP e a opção partidária menosprezar a influência da cultura
institucional. Revogou-se, finalmente, o política anterior na definição das opções
Programa básico, aprovado pela III em curso no processo de transformação,
RADN, em 1971. Essa revogação foi deve-se levar em consideração o
acompanhada de algumas autocríticas. significado do maoísmo naquela
Principalmente, teria sido cometido o conjuntura internacional. Nos termos
erro de considerar o maoísmo a terceira colocados pelos seus próprios
etapa do marxismo, com suas documentos, o maoísmo representou
derivações de diagnóstico da realidade para a AP, ao mesmo tempo, a tradição
brasileira e de estratégia revolucionária. revolucionária e a atualidade da
O marxismo-leninismo continuaria revolução, contraponto ao que era
sendo a base teórica da AP. A rigor, não chamado de revisionismo
contemporâneo.
O contraste entre a linha estratégica
22 Com esse objetivo, foram estreitados laços maoísta e a dinâmica do capitalismo
com o MR-8, PO e MEP. A revista Brasil brasileiro não passou despercebido para
Socialista, editada no exterior, é uma amostra a AP. Se, em 1968, prevaleceu uma
desse esforço.

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visão bastante decalcada do modelo Referências


chinês, os desdobramentos geraram AÇÃO POPULAR. Documento base. In
situações algo complexas, como SOUZA LIMA, L. S. Evolução política dos
evidencia o fato de o maoísmo servir, católicos e da Igreja no Brasil. Petropólis:
no início da década de 1970, de “pano Vozes, 1979.
de fundo” para posições excludentes, AÇÃO POPULAR, Audácia nos objetivos.
fosse porque representasse a atualidade Rigor nos métodos. 1969.
e vitalidade da revolução, fosse porque AÇÃO POPULAR. Combater o dogmatismo
inspirasse a interpretação da etapa da de direita e isolar os liquidacionistas das
revolução brasileira. De qualquer forma, fileiras do partido. 1972.
sem que isso implique concordar com as AÇÃO POPULAR. Duas posições, 1968.
conclusões, há que se registrar que, AÇÃO POPULAR. Contribuição ao estudo
nesse debate, a AP procurou dialogar científico da sociedade brasileira.1972b
com a dinâmica das mudanças em curso AÇÃO POPULAR. Programa básico. In REIS
no país. FILHO, D. A. & SÁ, J.F. (orgs). Imagens da
A investigação específica da revolução. Rio de Janeiro: marco zero, 1985.
intervenção em uma realidade AÇÃO POPULAR. Resolução política, 1965.
localizada, como no noroeste do Paraná, AÇÃO POPULAR. Resolução sobre o debate
feitas as devidas mediações, permite ver teórico e ideológico, 1967.
dimensões concretas dessas questões. APML. Resoluções políticas da IV RNA,
No contexto desse território, foi 1979.
possível analisar, em detalhes, o sentido DIAS, R. B. A história da Ação Popular nas
da representação que a AP fazia das memórias de Herbert de Souza. In Diálogos, v.
relações econômicas e de trabalho e o 11, nº 3, 2007, p. 163-198. Disponível em
próprio questionamento dos parâmetros http://www.dialogos.uem.br/viewarticle.php?id
que regiam essa política. Enriquece-se, =450
assim, a análise dos contornos mais DIAS, R. B. Da esquerda católica à esquerda
amplos da política da AP. revolucionária. A Ação Popular na história do
catolicismo. Revista Brasileira de História das
Tais experiências podem ser vistas pelo Religiões. Ano I, nº 1, maio 2008, p. 166-195.
parâmetro do que não aconteceu, ou Disponível em
seja, da revolução que não houve. Mas <http://www.dhi.uem.br/gtreligiao/edicoes.html
>.
podem, em contrapartida, ser analisadas
pelas ações ensejadas. Afinal, foi na DIAS, R. B. Sob o signo da revolução
fase em que era influenciada pelo brasileira. A experiência da Ação Popular no
Paraná. Maringá: Eduem, 2003.
maoísmo que a Ação Popular participou
das lutas dos trabalhadores do noroeste DIAS, R. B. A história da Ação Popular na
perspectiva do PC do B. Diálogos, v. 10 nº 1,
do Paraná. Com isso, a AP contribuiu 2006, p. 143-175. Disponível em
para a escrever, naquela conjuntura de http://www.dialogos.uem.br/viewarticle.php?id
ditadura, importante página na história =255&layout=abstract.
das lutas sociais e dos trabalhadores da DIAS, R.B. A cruz, a foice e o martelo e a
região polarizada por Maringá. estrela. A tradição e a renovação da esquerda na
experiência da Ação Popular. Tese de
Doutorado em História e Sociedade. Assis,
Unesp, 2004.
DIAS, R. B. A Ação Popular Marxista-Leninista
e a formação do PT. In Revista Perseu. n.3. São
Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2009.

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GORENDER, Jacob. Combate nas trevas. São REIS FILHO, D.A. O maoísmo e a trajetória
Paulo: Ática, 1987. dos marxistas brasileiros. In: REIS FILHO,
D.A. et alii. História do marxismo no Brasil.
LIMA, H. & ARANTES, A. História da Ação
V. I. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1991.
Popular: da JUC ao PC do B. São Paulo: Alfa-
Omega, 1984, p. 158. RIDENTI, M. Ação Popular: cristianismo e
marxismo. In RIDENTI, M. & REIS FILHO, D.
LUZ, France. As migrações internas no
A. (Orgs). História do marxismo no Brasil, V.
contexto do capitalismo no Brasil: a
5. Campinas: Editora da Unicamp, 2002.
microrregião "Norte Novo de Maringá" -
1950/1980. Tese de doutorado. São Paulo: USP, SALES, Jean Rodrigues. Partido Comunista
1988. do Brasil – Pc do B: Propostas teóricas e
prática política 1961-1976. Dissertação de
OLIVEIRA JR, F. Paixão e revolução:
Mestrado em História. Campinas, Unicamp,
capítulos sobre a história da AP. 2000. Tese de
2000.
Doutorado em História. Recife, Universidade
Federal de Pernambuco, 2000. SANTANA, Cristiane S. de. Maoísmo na
Bahia (1967-1970). Dissertação de Mestrado
OLIVEIRA, Mônica. Militantes operários e
em História. Salvador, Universidade Federal da
operários militantes: a experiência da
Bahia, 2008;
“integração na produção” na história da Ação
Popular (1965-1970). Dissertação de Mestrado SILVA, Osvaldo H. A foice e a cruz:
em História. Campinas, Unicamp, 2005. comunistas e católicos na história do
sindicalismo dos trabalhadores rurais do Paraná.
PRIORI, A. O protesto do trabalho. Maringá,
Curitiba: Rosa de Bassi, 2006.
Eduem, 1996.

*
REGINALDO BENEDITO DIAS é professor do Departamento de História da Universidade Estadual
de Maringá; Doutor em História Política pela UNESP. E-mail: reginaldodias13@gmail.com

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