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Jacques Le Coff

Nicolas Truong

Uma história do corpo


na Idade Média

TRADUÇÃO
Marcos Flaminio Peres

REVISÃO TÉCNICA
Marcos de Castro

-
CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA

Rio de Janeiro
2006
COPYRIGHT © 2003, Éditions Liana Levi Sumário

TÍTULO ORIGINAL
Une histoire du corps au Moyen Age

CAPA
Evelyn Grumach

PROJETO GRÁFICO
Evelyn Grumach e João de Souza Leite

PREFÁCIO: AS AVENTURAS DO CORPO 9

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ. INTRODUÇÃO: HISTÓRIA DE UM ESQUECIMENTO 15

Le Goff, Jacques, 1924-


L528h Uma história do corpo na Idade Média / Jacques Le Goff, Nicolas 1. Quaresma e Carnaval: uma dinâmica do Ocidente 33
Truong; tradução Marcos Flamínio Peres; revisão técnica Marcos de
Castro. - Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.
A GRANDE RENÚNCIA 36

Tradução de: Une histoire du corps au Moyen Age O tabu do esperma e do sangue 38
Inclui bibliografia
ISBN 85-200-0674-4
A sexualidade, ápice da depreciação 41
Teoria e prática 45
1. Corpo humano - Aspectos sociais. 2. Corpo humano - História.
3. Civilização medieval. L Truong, Nicolas. lI. Título. Raizes da repressão: a Antigüidade tardia 47
O cristianismo, operador da grande reviravolta 49
CDD - 306.4
06-1094 CDU - 316.728 A mulher, subordinada 52
Estigmas e {lagelaçâo 55
Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução, armazenamento ou O magro e o gordo 57
transmissão de partes deste livro, através de quaisquer meios, sem prévia
autorização por escrito. A REVANCHE DO CORPO 59

Serpente de pedra contra dragão de vime 61


Direitos desta tradução adquiridos pela
CMLIZAÇÃO BRASILEIRA O trabalho entre castigo e criação 64
Um selo da A dádiva das lágrimas 69
EDITORA RECORD LIDA.
Rua Argentina 171 - 20921-380 - Rio de Janeiro, RJ - Te!.: 2585-2000 Levar o riso a sério 75
Os sonhos sob vigilância 79
PEDIDOS PELO REEMBOLSO POSTAL
Caixa Postal 23.052 - Rio de Janeiro, RJ - 20922-970

Impresso no Brasil
2006
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JACQUES LE GOFF E NICOLAS TRUONG UMA HISTÓRIA DO CORPO NA IDADE MÉDIA

2. Viver e morrer na Idade Média 89 O CORPO EM TODOS OS SEUS ESTADOS 147

A monstruosidade 147
o CAMINHO DA VIDA 93
O esporte? 149
As idades da vida 93
"Eles dormiam juntos?" 96
4. O corpo como metáfora 153
Enfim a criança aparece 99
Prestígio e malignidade da velhice 103 o HOMEM-MICROCOSMO 156

O coração, corpo do delírio 157


A DOENÇA E A MEDICINA 105
A cabeça, função dirigente 158
O doente, rejeitado e eleito 108
O fígado, grande perdedor 159
A "boa mistura" e a teoria dos quatro humores 109
A mão, instrumento de ambigüidade 160
Irmão corpo 111
A urina e o sangue 113 A UTILIZAÇÃO POLÍTICA DA METÁFORA CORPORAL 161

Sob a máscara de Galeno 114 A cabeça ou o coração? 162


Os limites da medicina escolástica 116 Como os olhos na cabeça 163
Uma sociedade de assistência 118 O Estado é um corpo 164
Abrir o corpo 119 A cabeça revirada 167
A cabeça sobre os pés 169
MORTOS E MORIBUNDOS: GLORIOSOS OU ATORMENTADOS 120
O rei e o santo 170
O breviário dos moribundos 121
O corpo da cidade 171
Presença dos mortos 124

CONClUSÃO: UMA HISTÓRIA LENTA 173


3. Civilizar o corpo 131

A GULA E A GASTRONOMIA 133 NOTAS 179

Duas alimentações, duas culturas: um encontro 134


As boas maneiras 138 BIBLIOGRAFIA 193

A ENCENAÇÃO DO CORPO 139


íNDICE ONOMÁSTICO 205
Nu ou vestido? 140
A beleza feminina entre Eva e Maria 142
O banho 144
Uma civilização dos gestos 145

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Prefácio

As aventuras do corpo

"Uma história mais digna desse nome do que os tímidos


ensaios a que hoje nos reduzem nossos meios daria espaço
às aventuras do corpo. "

Marc Bloch, A sociedade feudal (1939)

Por que o corpo na Idade Média? Porque ele constitui uma


das grandes lacunas da história, um grande esquecimento do
historiador. A história tradicional era, de fato, desencarnada.
Interessava-se pelos homens e, secundariamente, pelas mu-
lheres. Mas quase sempre sem corpo. Como se a vida dos
homens se situasse fora do tempo e do espaço, reclusa na
imobilidade presumida da espécie. Com freqüência, tratava-
se de pintar os poderosos, reis e santos, guerreiros e senhores
e outras grandes figuras de mundos perdidos que era preciso
reencontrar, engrandecer e, por vezes, até mitificar, à mercê
das causas e necessidades do momento. Reduzidos a sua par-
te colocada à mostra, esses seres estavam despossuídos de sua
carne. Seus corpos não passavam de símbolos, representa-
ções e figuras; seus atos, apenas sucessões, sacramentos, ba-
talhas, acontecimentos. Enumerados, escritos e inscritos, como

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JACQUES LE GOFF E NICOlAS TRUONG UMA HISTÓRIA 00 CORPO NA IDADE M~DIA

em tantos marcos que pretendem pontuar a história univer- história. A história do corpo na Idade Média é, assim, uma
sal. Quanto a essa maré humana que cercava e concorria para parte essencial de sua história global.
sua glória ou seu fracasso, os nomes plebe e povo bastavam A dinâmica da sociedade e da civilização medievais resulta
para contar sua história, seus arrebatamentos e suas atitudes, de tensões: entre Deus e o homem, entre o homem e a mulher,
seus modos de agir e suas aflições. entre a cidade e o campo, entre o alto e o baixo, entre a riqueza
Michelet é uma exceção e causa escândalo ao atribuir um e a pobreza, entre a razão e a fé, entre a violência e a paz. Mas
papel histórico importante à fístula de Luís XlV. O curioso uma das principais tensões é aquela entre o corpo e a alma. E,
estudo, baseado na hereditariedade, do doutor Auguste ainda mais, as tensões no interior do próprio corpo.
Brachet, médico e positivista, discípulo de Littré - Pathologie De um lado, o corpo é desprezado, condenado, humilha-
mentale des rois de France (1903) -, não exerceu influência do. A salvação, na cristandade, passa por uma penitência cor-
sobre a historiografia. Somente o marxismo, na periferia da poral. No limiar da Idade Média, o papa Gregório, o Grande,
história, antes considerado ideologia e filosofia, quisera sub- qualifica o corpo de "abominável vestimenta da alma". O
verter essa concepção tradicional da historiografia, em parti- modelo humano da sociedade da alta Idade Média, o monge,
cular com a noção da luta de classes. mortifica seu corpo. O uso do cilício sobre a carne é o sinal
Dando espaço à "longa duração" e à sensibilidade, à de uma piedade superior. Abstinência e continência estão en-
vida material e espiritual, o movimento da história chama- tre as virtudes mais fortes. A gula e a luxúria são os maiores
do de "Annales" quis promover uma história dos homens, pecados capitais. O pecado original, fonte da desgraça huma-
uma história total, uma história global. Pois, se a história na, que figura no Gênesis como um pecado de orgulho e um
foi freqüentem ente escrita do ponto de vista dos vencedo- desafio do homem lançado contra Deus, torna-se na Idade
res, como dizia Walter Benjamin, também - denunciava Média um pecado sexual. O corpo é o grande perdedor do
Marc Bloch - foi por muito tempo despojada de seu cor- pecado de Adão e Eva assim revisitado. O primeiro homem e
po, de sua carne, de suas vísceras, de suas alegrias e des- a primeira mulher são condenados ao trabalho e à dor -
graças. Seria preciso, portanto, dar corpo à história. E dar trabalho manual ou trabalho de parto acompanhados de so-
uma história ao corpo. frimentos físicos - e devem ocultar a nudez de seus corpos.
Pois o corpo tem uma história. A concepção do corpo, Dessas conseqüências corporais do pecado original a Idade
seu lugar na sociedade, sua presença no imaginário e na rea- Média tirou conclusões extremas.
lidade, na vida cotidiana e nos momentos excepcionais sofre- No século XIII, entretanto, a maior parte dos teólogos
ram modificações em todas as sociedades históricas. Da ressalta o valor positivo do corpo neste mundo. São Boa-
ginástica e do esporte na Antigüidade greco-romana ao ventura sublinha a excelência dos altares, que, em virtude do
ascetismo monástico e ao espírito cavalheiresco da Idade Mé- primado do movimento de baixo para cima, corresponde à
dia, quanta mudança! Ora, onde há mudança no tempo, há orientação da alma em direção a Deus. Insiste igualmente na

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JACQUES LE GOFF E NICOLAS TRUONG UMA HISTÓRIA DO CORPO NA IDADE MÉDIA

importância da condição sexuada, que colabora para a perfei- seu corpo em suas mortificações. Mas, jogral de Deus, pre-
ção da natureza humana preservada após a ressurreição em gando a alegria e o riso, ele venerou o "irmão corpo" e foi
direção ao Paraíso, não para a concepção, que não tem mais recompensado recebendo os estigmas, marcas de identifica-
razão de ser, mas para a perfeição e a beleza dos eleitos. Mais ção do sofrimento de Cristo.
ainda, para Santo Tomás de Aquino o prazer corporal é um O corpo cristão medieval é de parte a parte atravessado
bem humano indispensável que deve ser regido pela razão por essa tensão, esse vaivém, essa oscilação entre a repressão
em prol dos prazeres superiores do espírito, as paixões sen- e a exaltação, a humilhação e a veneração. O cadáver, por
síveis contribuindo, assim, para o dinamismo do impulso exemplo, é ao mesmo tempo matéria pútrida repugnante,
espiritual. 1 imagem da morte produzida pelo pecado original e matéria a
Por outro lado, o corpo é glorificado no cristianismo me- venerar: nos cemitérios levados do exterior para o interior
dieval. O acontecimento capital da história - a encarnação das cidades ou contíguos às igrejas nas aldeias, o cadáver de
de Jesus - foi o resgate da humanidade pelo gesto salvador cada cristão e de cada cristã é incensado fora da Iiturgia dos
de Deus, do filho de Deus, tomando um corpo de homem. E funerais e, sobretudo, os corpos veneráveis de santos mila-
Jesus, Deus encarnado, venceu a morte: a ressurreição de grosos em seus túmulos e suas relíquias corporais. Os sacra-
Cristo funda o dogma cristão da ressurreição dos corpos, cren- mentos santificam os corpos, do batismo à extrema-unção. A
ça desconhecida no mundo das religiões. No além, homens e eucaristia, centro do culto cristão, é o corpo e o sangue de
mulheres reencontrarão um corpo, para sofrer no Inferno, Cristo. A comunhão é uma refeição. No Paraíso, uma tensão,
para, graças a um corpo glorioso, usufruir licitamente do Pa- uma questão, anima os teólogos medievais, cujas respostas e
raíso, onde os cinco sentidos estarão em festa: a visão na ple- opiniões divergem. Os corpos dos eleitos reencontrarão a
nitude da vista de Deus e da luz celeste, o olfato no perfume nudez da inocência primitiva ou manterão, da passagem pela
das flores, a audição na música dos coros angelicais, o pala- história, o pudor que irá cobri-los com uma veste, certamen-
dar no sabor dos alimentos celestes e o tato no contato com o te branca, mas dissimuladora de um resquício de vergonha?
ar precioso do céu. Enfim, durante a cristandade medieval, o corpo sobre a
Nesse "belo século XIII" do desabrochar do gótico, dois terra foi uma grande metáfora que descrevia a sociedade e as
personagens emblemáticos encarnam a atitude paroxística dos instituições, símbolo de coesão ou de conflito, de ordem ou
cristãos em relação ao corpo. O primeiro é o rei da França de desordem, mas sobretudo de vida orgânica e de harmonia.
Luís IX (São Luís), que humilha seu corpo até o mais alto Ele resistiu igualmente à sua derrocada. Se os estádios e as
grau que sua devoção lhe permite, de modo a fazer jus à sal- termas, os teatros e os circos antigos desapareciam na Idade
vação. O segundo é o grande São Francisco de Assis, seu Média, nas praças públicas, nos sonhos com o país dos praze-
modelo, que foi quem melhor viveu no próprio corpo a ten- res, nas algazarras e nos carnavais, o corpo humano e social
são que atravessa o Ocidente medieval. Asceta, ele subjugou se diverte e se debate, à sombra da Quaresma perpétua dos

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JACQUES lE GOFF E NICOlAS TRUONG

clérigos e ocasional dos leigos. Antes de retomar a esse ponto Introdução


e aprofundar a pesquisa, vamos traçar as grandes linhas desse
esquecimento do corpo pelos historiadores. E refinemos ain- História de um esquecimento
da mais a proposta, do corpo ao corpo imperfeito entre os
historiadores e as práticas corporais até a necessidade de aven-
turar-se nos territórios do corpo na Idade Média, em compa-
nhia daqueles que tentaram remediar essa situação.

o corpo foi esquecido pela história e pelos historiadores. Ora,


ele foi e continua a ser o ator de um drama.
Abrupta, a fórmula ignora a diversidade dos discursos e
dos percursos, a pluralidade das pesquisas históricas. O enun-
ciado da regra despreza a exceção, pois novas abordagens
delinearam-se, desde os trabalhos de Norbert Elias sobre as
civilizações dos costumes, as pesquisas de Marc Bloch e de
Lucien Febvre sobre as mentalidades medievais ou as de Michel
Foucault sobre a loucura na era clássica, o nascimento da pri-
são e da clínica, assim como suas últimas reflexões sobre o
antigo "cuidado de si". Até então, e com a notável exceção de
Jules Michelet - que, no século XIX, desejava "evocar, refa-
zer, ressuscitar as eras" pela "ressurreição integral do passa-
do", já sugerindo alguma coisa nessa passagem -, a história
A Idade Média de que se fala com freqüência aqui é a Idade Média tradicional
dos séculos V ao xv. Jacques Le Goff propôs igualmente que nos interessásse- do corpo foi esquecida. A despeito de algumas descobertas
mos por uma Idade Média que duraria, em sua essência, até o fim do século salutares, como a da história da sexualidade por volta dos
XVIII - até a Revolução Francesa e a Revolução Industrial- e que incluiria
o Renascimento dos séculos XVcXVI, que ele considera um Renascimento me-
anos 1960 e 1970 - tributárias, por vezes até o paroxismo,
dieval. da demanda social expressa pelas preocupações do presente
e que irão tanto mascarar quanto marcar a história do corpo
-, o modo de se vestir, de morrer, de se alimentar, de traba-
lhar, de morar, de habitar sua carne, de desejar, de sonhar, de

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JACQUES lE GOFF E NICOlAS TRUONG UMA HISTÓRIA DO CORPO NA IDADE MÉDIA

rir ou de chorar não atingiu o estatuto de objeto digno de ra de exprimir um mal-estar que se situa 'em alguma outra
interesse histórico. parte' na consciência ou na sociedade e, antes de tudo, no
Na disciplina histórica reinou por muito tempo a idéia de corpo", observa a etnógrafajeanne Favrer-Saada.' "Michelet
que o corpo pertencia à natureza, e não à cultura. Ora, o o detecta - mais fortemente que seus sucessores, historiado-
corpo tem uma história. Faz parte dela. E até a constitui, as- res, etnógrafos e folcloristas - quando declara que as três
sim como as estruturas econômicas e sociais ou as represen- funções da feiticeira referem-se ao corpo: 'Curar, fazer amar,
tações mentais, das quais ele é, de certa maneira, o produto e trazer de volta os mortos. '"
o agente. Em seu penetrante Michelet (1954), Roland Barthes insiste
A exceção notável de Michelet merece atenção.' Expli- na dupla face desse "comedor de história", tão sensível às ma-
cando a atitude singular e solitária que o levou a redigir O nifestações do corpo através da história - ao sangue, particular-
povo (1837), obra destinada a conhecer "a vida do povo, seus mente - que ele mesmo trabalhou para um corpo "doente de
trabalhos, seus sofrimentos", Michelet confessa que os deta- história". Michelet comedor de história: "Ele a 'rói', isto é, ao
lhes esparsos que ele reúne a fim de constituir sua empreitada mesmo tempo ele a percorre e a engole. O gesto corporal que
não são "nem pedra, nem calhau, mas os ossos de meus pais". melhor dá conta dessa dupla operação é a marcha", explica
Exemplo de um método histórico encarnado que se propõe a Roland Barthes. Michelet doente da história: "O corpo inteiro
ressuscitar os corpos dos homens do passado, mas também a de Michelet torna-se o produto de sua própria criação, e esta-
intuição da importância do corpo através das eras, quando belece-se uma espécie de simbiose surpreendente entre histo-
ele escreve, em A feiticeira (1862), que "a grande revolução riador e História", prossegue. ''As náuseas, as vertigens, as
que as feiticeiras realizam, o maior passo às avessas contra o opressões não decorrem apenas das estações e dos climas; é o
espírito da Idade Média, é o que se poderia chamar de reabi- próprio horror da história contada que as provoca: Michelet
litação do ventre e das funções digestivas". E observa que tem dores de cabeça 'históricas'. Não vejam aí nenhuma metá-
havia na Idade Média "partes do corpo que são nobres e ou- fora, trata-se de fato de uma dor de cabeça real: setembro de
tras não, aparentemente plebéias". 1792, as primícias da Convenção, o Terror, tantas doenças
Enquanto a escolástica se fechava na esterilidade da mo- imediatas, concretas como dores de dente. [...] Estar doente da
ral ascética, diz ele, a feiticeira, "realidade quente e fecunda", História é não apenas constituir a História como um alimento,
redescobria a natureza, a medicina, o corpo. Michelet vê na como um peixe sagrado, mas também como um objeto possuí-
feiticeira, portanto, uma outra Idade Média. Não aquela que, do; as 'dores de cabeça' históricas não têm outra finalidade a
"sob o nome de Satã, perseguia a liberdade", mas uma Idade não ser constituir Michelet como devorador, sacerdote e pro-
Média em que se exibe o corpo, tanto em seus excessos como prietário da História."
em seus sofrimentos, tanto em sua pulsão de vida como atra- Foi só a partir de seu mergulho nas ciências sociais, con-
vés de suas epidemias. "Falar de Satã talvez fosse uma manei- tudo, que a história cedeu espaço às "aventuras do corpo"

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JACQUES LE GOFF E NICOLAS TRUONG UMA HISTÓRIA DO CORPO NA IDADE MÉDIA

nas quais Marc Bloch recomendava envolver-se. Na confluên- que essas técnicas que regem o corpo "variam sobretudo con-
cia da sociologia e da antropologia, Marcel Mauss (1872- forme as sociedades, as educações, as conveniências e as mo-
1950) foi o primeiro a se interessar pelas "técnicas do corpo". das, os prestígios".
Em 1934, quando de sua comunicação na Sociedade de Psi- O que Marcel Mauss entrevê e generaliza para a antropo-
cologia, o autor do Essoi sur le dou declara que entende por logia e a sociologia aplica-se igualmente à história e se dirige
essa expressão "os modos como os homens, sociedade por ao historiador. Nascimento e obstetrícia, reprodução, nutri-
sociedade, de uma maneira tradicional, sabem servir-se de seus ção, esfregação, lavagem, ensaboadura ... Enumerando todas
corpos".' Partindo de considerações científicas assim como as "técnicas do corpo" do homem, Marcel Mauss mostra que
de observações empíricas e pessoais - o modo de nadar, de o corpo é e tem uma história.
correr ou de cavar a terra -, Marcel Mauss faz das "técnicas "A noção de que deitar-se na cama é algo natural é com-
do corpo" a entrada ideal para a análise do "homem total" pletamente inexata", escreve a propósito das "técnicas do
através da história e do estudo das sociedades. sono", evocando sobretudo o modo de dormir em pé dos
"Uma espécie de revelação me ocorreu no hospital",' es- massais ou sua própria experiência de sono rudimentar nos
creve. "Eu estava doente em Nova York. Eu me perguntava campos de batalha da Primeira Guerra Mundial. ''A maneira
onde eu já havia visto moças andando como as minhas enfer- de sentar-se é fundamental", observa a propósito das "técni-
meiras. Eu dispunha de tempo para refletir sobre isso. Desco- cas do repouso". Mauss chega até a distinguir "a humanidade
bri enfim que fora no cinema. De volta à França, observei, agachada e a humanidade sentada" e deplorar que nós, oci-
sobretudo em Paris, a freqüência desse andar; as moças eram dentais, "não sabemos mais nos agachar", sinal, para ele, do
francesas e caminhavam também dessa maneira. De fato, os absurdo e da inferioridade "de nossas raças, civilizações e
modos de andar americano, graças ao cinema, começavam a sociedades" em relação ao resto da humanidade que conti-
chegar até nós. Era uma idéia que eu podia generalizar. A nua a adotar essa posição prática e estratégica. "Enfim", diz
posição dos braços, das mãos, enquanto se caminha, forma ele a seu auditório, "é preciso saber que a dança enlaçada é
uma idiossincrasia social, e não somente um produto de não um produto da civilização moderna. O que demonstra que
sei quais arranjos e mecanismos puramente individuais, qua- coisas inteiramente naturais para nós são históricas." O cor-
se inteiramente psíquicos." A técnica é entendida aqui por po tem, portanto, uma história. E a história do corpo talvez
Marcel Mauss como "um ato tradicional eficaz", e o corpo, tenha começado com essa conferência de Marcel Mauss. De
como "o primeiro e mais natural instrumento do homem". qualquer modo, foi o início da antropologia histórica, a que
Recorrendo à noção de "habitus", termo que reencontramos se liga este ensaio.
na escolástica medieval - que designa, segundo Tomás de Em sua "Introduction à l'ouvre de Marcel Mauss", Claude
Aquino, uma "disposição habitual"- e que Mauss retoma, Lévi-Strauss destacou muito bem o quanto o conjunto das
com razão, do "psicólogo" Aristóteles, o sociólogo mostra "ciências humanas" devia ao sobrinho de Émile Durkheim e,

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JACQUES LE GOFF E NICOLAS TRUONG
UMA HISTÓRIA DO CORPO NA IDADE M~DIA

sobretudo, a esse texto sobre "as técnicas do corpo", no qual


Formado em medicina, em filosofia e sobretudo na socio-
é estudado "o modo como cada sociedade impõe ao indiví-
logia de Max Weber na República de Weimar em plena revo-
duo um uso rigorosamente determinado de seu corpo.:" En-
lução psicanalítica, Norbert Elias eleva as funções corporais
tretanto, prossegue Lévi-Strauss, "na verdade ninguém ainda
ao nível de objeto histórico e sociológico. E não importa quais.
abordou essa tarefa imensa de que Mauss sublinhava a neces-
Redigido entre 1936 e 1937 e publicado em 1939, quando
sidade urgente, a saber, o inventário e a descrição de todos os
seu autor já havia fugido da Alemanha nazista, A civilização
usos que os homens, ao longo da história e ao redor do mun-
dos costumes leva a sério o que a inúmeros pesquisadores
do, fizeram e continuam a fazer de seus corpos. Nós colecio-
parecia fútil: os modos à mesa, as maneiras, autorizações ou
namos os produtos da indústria humana; recolhemos os textos
proibições de assoar o nariz, de escarrar, de vomitar, de defe-
escritos e orais. Mas continuamos a ignorar as possibilidades
car, de urinar, de copular ou de lavar-se. Por meio dos manuais
tão numerosas e variadas de que é suscetível esse instrumen-
de civilidade, de que é exemplo o de Erasmo, no século XVI,
to , entretanto universal e colocado à disposição de cada um,
Elias mostra, por sua vez, que essas funções corporais ditas
que é o corpo do homem; nós continuamos a ignorá-Ias, sa~-
naturais são culturais, isto é, históricas e sociais.
vo aquelas, sempre parciais e limitadas, que entram nas eXI-
''A atitude do corpo, os gestos, as roupas, a expressão do
gências de nossas culturas particulares". A constância do
rosto, todo o comportamento exterior que o tratado detalha
esquecimento do corpo está aqui manifesta. A história do
é a expressão do homem em seu conjunto", escreve. Norbert
corpo é, sem cessar, rechaçada, programada, reivindicada. Mas
Elias sabia: além da redução tradicional do corpo à natureza,
tão pouco praticada e assumida.
a resistência ou a repugnância em estudar tais fenômenos,
Entretanto, alguns anos depois das observações funda-
julgados indignos ou ignóbeis no seio de uma dada cultura,
mentais de MareeI Mauss, se difundia uma das maiores con-
talvez seja uma das razões por que a história do corpo levou
tribuições à história do corpo, comA civilização dos costumes
tanto tempo para se realizar.
e A dinâmica do Ocidente, de Norbert Elias (1897-1990),
"Nossa consciência não está sempre a ponto de operar
duas partes de uma mesma obra consagrada ao estudo do
um tal retorno à primeira fase de nossa história", escreve.
"processo civilizador". 5 A obra desse sociólogo alemão re-
"Não temos mais o hábito da franqueza ingênua com a qual
fugiado do nazismo na Inglaterra só seria conhecida mais
Erasmo podia deter-se em todos os domínios do comporta-
tarde." Nessa empreitada de sociologia histórica, Norbert
mento humano: para nossa sensibilidade, ele ultrapassa
Elias busca compreender o "processo civilizador" - que
freqüentemente o limite do tolerável. Mas este, precisamente,
repousa, simplificando, no autocontrole da violência e na
faz parte dos problemas que são o objeto de nosso estudo."
interiorização das emoções - por meio do estudo dos cos-
A incorporação das restrições e das normas sociais evo-
tumes e das "técnicas do corpo", sobretudo na Idade Média
lui: vergonha, constrangimento e pudor têm uma história. E
e no Renascimento.
o "processo civilizador" do Ocidente, que visa a fazer recuar,

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interiorizar e tornar privados os gestos que os homens assimila- bom historiador se assemelha ao ogro da lenda. Lá onde ele
ram de sua condição animal, passa por um corpo igualmente fareja a carne humana, sabe que está sua caça". Pois, "por trás
ator e receptor desse processo. A invenção da escarradeira, dos traços sensíveis da paisagem [os instrumentos ou as máqui-
do lenço ou do garfo, por exemplo, testemunha uma codifica- nas], por trás dos escritos mais desinteressados e das institui-
çâo social das "técnicas" corporais. Pouco a pouco, estas se ções aparentemente mais completamente desligadas daqueles
controlam, se dissimulam, se civilizam: "Profundamente incor- que as estabeleceram, estão os homens que a história quer
porados e sentidos como naturais, esses sentimentos levam à apreender". Uma constante atravessa toda sua obra: Marc
formalização das regras de conduta, que constroem um Bloch se recusa a mutilar o homem de sua sensibilidade e de
consenso em torno dos gestos que convém ou não convém seu corpo. Ora, se é de fato necessário que exista "na natureza
fazer - gestos que contribuem, em contrapartida, para mol- humana e nas sociedades humanas um fundo permanente,
dar a sensibilidade. "7 sem o que os próprios nomes de homem e sociedade não
Até as contribuições fundamentais da "sociogênese" e da diriam nada", prossegue ele, é forçoso constatar que "o ho-
"psicogênese" formuladas por Norbert Elias - "a história de mem também mudou muito: no seu espírito e, sem dúvida,
uma sociedade se reflete na história interna de cada indivíduo", até nos mais delicados mecanismos de seu corpo. Sua atmos-
escreve -, apenas O outono da Idade Média (1919), de Johan fera mental se transformou profundamente; sua higiene, sua
Huizinga, havia, no século XX, aproximado a disciplina his- alimentação, não menos".
tórica de uma atenção particular ao corpo. Como testemunha Desde seu primeiro livro, Os reis taumaturgos (1924),
o capítulo dessa obra tanto científica quanto poética consa- fonte da história das mentalidades e do corpo, dos rituais e
grado ao "amargo sabor da vida", no qual o historiador do gestual, fundamento da antropologia política histórica em
holandês pede ao leitor para "lembrar-se dessa receptividade, que o historiador estuda a cura milagrosa das escrófulas pe-
dessa facilidade de emoções, dessa propensão às lágrimas, dos los reis da França e da Inglaterra através do simples toque das
retornos espirituais se se quiser conceber o amargor do gosto, mãos, até sua Apologia da história, Marc Bloch não deixará
a violência da cor que tinha a vida naquele tempo"." de manifestar sua sensibilidade de historiador em relação às
Mas será preciso aguardar Lucien Febvre (1878-1956) e, "técnicas do corpo". E é em La société [éodale" que ele afir-
sobretudo, Marc Bloch (1886-1944), isto é, os trabalhos da ma que uma história "mais digna desse nome do que os tími-
"escola dos Annales", para que a intuição histórica se benefi- dos ensaios a que hoje nos reduzem nossos meios daria espaço
cie de uma verdadeira atenção e se transforme realmente em às aventuras do corpo". Fuzilado pelos alemães em 1944 sem
um programa de pesquisa. Em sua Apologia da histeria,' tex- ter desenvolvido esse projeto, ele nos deixou, contudo, várias
to inacabado e publicado por Lucien Febvre em 1949, Marc pistas a serem seguidas.
Bloch não deseja separar o homem de suas vísceras. O co- Por acaso ou necessidade, inúmeros intelectuais "mergu-
fundador da revista Annales (1929)1° chega a escrever que "o lhados em tempos sombrios", para retomar a expressão cara

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UMA HISTÓRIA DO CORPO NA IDADE MÉDIA
JACQUES LE GOFF E NICOLAS TRUONG

Lugar, sede e agente do "processo civilizador" em Norbert


a Hannah Arendt, parecem ter atribuído um lugar particular
Elias, o corpo por tanto tempo reprimido é percebido por
ao corpo. Desde seus exílios nos Estados Unidos, quando pro-
Horkheimer e Adorno como a instância de uma vingança, o
curam compreender "por que a humanidade, em vez de se
processo de uma barbárie: "Nesse rebaixamento praticado
empenhar na busca de condições verdadeiramente humanas,"
pelo homem em relação a seu próprio corpo, a natureza se
afunda" em uma nova forma de barbárie", os filósofos e soció-
vinga pelo fato de o homem tê-Ia reduzido ao estado de obje-
logos Max Horkheimer e Theodor Wiesengrund Adorno in-
to de dominação, de matéria bruta. Essa necessidade de ser
sistem também, em uma de suas "notas e esboços", na
"importância do corpo" na história ocidental. cruel e de destruir resulta de um recusa orgânica de toda rela-
Para os dois representantes do Instituto de Pesquisas So- ção íntima entre o corpo e o espírito."
ciais de Frankfurt (1923-1950), "a Europa tem duas histórias: É uma mesma vontade de interrogar e de criticar a raciona-
uma, bem conhecida e escrita; a outra, subterrânea. A segunda lidade ocidental que irá conduzir Michel Foucault (1926-
é constituída pelo destino dos instintos e das paixões humanas 1984) a integrar o corpo em uma "microfísica dos poderes".
rechaçadas, corrompidas pela civilização", escrevem em 1944 De sua História da loucura (1961) aLa Naissance de Ia clinique
na Dialética do esclarecimento. 12 Para os fundadores da Escola (1963) até sua História da sexualidade (1976-1984) e, mais
de Frankfurt, que se propõem a reler o conjunto da cultura particularmente, em Vigiar e punir (1975), obra-prima sobre
ocidental tendo como medida o terror nazista, "o regime fas- "o nascimento da prisão", Michel Foucault se interroga so-
cista atual, no qual tudo o que estava escondido vem à luz, bre a maneira como "o corpo é diretamente mergulhado em
revela a relação entre a história manifesta e a face obscura, um campo político." Pois, escreve, "as relações de poder ope-
negligenciada nas lendas oficiais dos Estados nacionalistas ram nele uma apreensão imediata: elas cercam-no, marcam-
assim como pelos progressistas que os criticam". A história no, educam-no, supliciam-no, submetem-no a trabalhos,
do corpo seria, assim, o impensado da civilização ocidental. obrigam-no a cerimônias, exigem dele sinais".
A meio caminho do marxismo e do freudismo, Hor- Do ritual político do suplício que se estende até a segunda
kheimer e Adorno pensam que "o corpo explorado devia re- metade do século XVIII até a "ortopedia social" que é levada
presentar o mal para os inferiores, e o espírito - ao qual os a cabo na reforma do sistema penal, quando a Europa se co-
outros dispunham de todo o tempo para se dedicar -, o bem bre de prisões, um "saber" do corpo, que é também um po-
supremo. Esse estado de coisas permitiu à Europa realizar der sobre o corpo, Foucault acompanha o movimento de uma
suas criações culturais mais sublimes, mas o pressentimento sociedade que irá tender mais a "vigiar" do que "punir", a
do embuste evidente desde o início reforçou, assim como o educar mais do que castigar. Em uma expressão que não dei-
controle exercido sobre o corpo, o amor-ódio por esse corpo xa de lembrar aquela de Marcel Mauss, Michel Foucault
que impregnou o pensamento das massas ao longo dos sécu- mostra que uma "tecnologia política do corpo" difusa,
los e encontrou sua expressão autêntica na língua de Lutero". irredutível apenas às instituições de coerção, se instala na

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JACQUES lE GOFF E NICOlAS TRUONG UMA HISTÓRIA DO CORPO NA IDADE MÉDIA

Europa. "Trata-se de substituir as técnicas punitivas - que se sofos do que dos médicos. Mas há também continuidades di-
apossam do corpo no ritual dos suplícios ou que se dirigem à retas; o tratado de Basile d'Ancyre sobre a virgindade - seu
alma - na história desse corpo político", escreve ele. autor passa, de resto, por ter sido médico - refere-se a con-
Enquanto os teóricos da Escola de Frankfurt buscam fa- siderações manifestamente médicas. Santo Agostinho ser-
zer emergir "a história subterrânea" da Europa, sobretudo ve-se de Soranus em sua polêmica contra Julien d'Ecbane.
por meio da história do corpo, sucessivamente "objeto de atra- [...] Retendo-se apenas esses traços comuns, pode-se ter a
ção e de repulsão", Michel Foucault se interroga sobre o lu- impressão de que a ética sexual atribuída ao cristianismo ou
gar do corpo no quadro de um "biopoder", isto é, de um mesmo ao Ocidente moderno já havia se instalado, pelo me-
poder "cuja mais alta função a partir de então talvez não seja nos em relação a certos princípios essenciais, na época em
mais a de matar, mas a de cercar a vida de parte aparte", que a cultura greco-rornana atingia seu ápice. Mas isso seria
escreve em A vontade de saber. Em 1984, ano de sua morte, desconhecer as diferenças fundamentais que dizem respeito
Michel Foucault dará uma seqüência inesperada a essa pri- ao tipo de relação e, portanto, à forma de integração desses
meira parte da História da sexualidade, com O uso dos praze- preceitos na experiência que o sujeito tem de si mesmo."
res e O cuidado de si, em que figura sobretudo um capítulo Michel Foucault toca aqui no cerne do problema que nos
sobre o corpo. Michel Foucault estuda aí - à luz do livro de propomos analisar. Ao mostrar a continuidade entre a Anti-
Jackie Pigeaud sobre a doença da alma" - as concepções e güidade e o cristianismo primitivo, ele insiste nas diferenças e
as práticas do corpo a partir da medicina antiga. Mas ele con- nas novidades que separam a ética corporal - aqui, sexual
clui, e convém citar essa passagem tão esclarecedora: "Entre - da religião de Estado que irá se impor na Europa medieval
essas recomendações dietéticas e os preceitos que se poderão daquela dos tempos greco-rornanos.
encontrar mais tarde na moral cristã e no pensamento médi-
co, as analogias são numerosas: princípio de uma economia Impossível mencionar aqui todos os historiadores que, na
estrita tendo em vista a escassez; obsessão pelas infelicidades esteira (ou como crítica aos) dos autores mencionados
individuais ou pelas doenças coletivas que podem ser suscita- anteriormente, farejaram a carne humana como "historiado-
das por um desregramento da conduta sexual; necessidade res ogros", como dizia Marc Bloch. Vários deles acompanha-
de um domínio rigoroso dos desejos, de uma luta contra as rão essa viagem, participarão dessas "aventuras do corpo" na
imagens e de uma anulação do prazer como finalidade das Idade Média. Entre eles, é preciso mencionar Ernst H.
relações sexuais. Essas analogias não são semelhanças distan- Kantorowicz (1895-1968), cujoLes deux corps du roi (1957),
tes. Continuidades podem ser recuperadas. Algumas são in- embora contestável, constitui um monumento no estudo da
diretas e passam pela intermediação das doutrinas filosóficas: teologia medieval e ao qual iremos nos referir ao analisar as
a regra do prazer que não deve ser uma finalidade transitou metáforas corporais da Idade Média; Mikhail Bakhtin (1895-
no cristianismo provavelmente mais por intermédio dos filó- 1975), que, com A cultura popular na Idade Média e no

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JACQUES LE GOFF E NICOlAS TRUONG UMA HISTÓRIA DO CORPO NA IDADE MÉDIA

Renascimento: O contexto de François Rabelais (1970), orien- Idade Média? Primeiramente porque, não importa qual seja
tou a presente obra em direção à oposição entre Quaresma e a novidade na guinada das atitudes em relação ao corpo e à
Carnaval e forneceu preciosas análises do nascimento do riso sexualidade, que, como bem mostraram Michel Foucault,
e do cômico nas praças públicas; Georges Duby (1919-1996), Paul Veyne, Aline Rousselle e Peter Brown, se manifestou
com sua contribuição ao feudalismo e às mulheres (Le no Império Romano antes mesmo da Antigüidade tardia, a
Chevalier, Ia femme et le prêtre, 1981; Dames du XIP siêclei, Idade Média, desde o triunfo do cristianismo nos séculos IV
não necessita mais de explicações e Mâle Moyen Âge, por e V,provocou quase uma revolução nos conceitos e nas prá-
exemplo, irá alimentar nossa reflexão sobre o lugar do corpo ticas corporais. Em seguida, porque a Idade Média aparece,
da mulher no Ocidente medieval. Mais recentemente, Paul mais do que qualquer outra época - ainda que situemos
Veyne e Peter Brown não deixaram de trazer suas contribui- seu término no final do século XV -, como a matriz de
ções críticas para a "renúncia à carne" que marca a Antigüi- nosso presente.
dade tardia e a sociedade romana. Muitas de nossas mentalidades e muitos de nossos com-
A sociologia - sobretudo com Émile Durkheim, que via portamentos foram concebidos na Idade Média. Isto é válido
o corpo como "fator de individuação"ls -, a antropologia também para as atitudes em relação ao corpo, ainda que as
- Maurice Godelier e Michel Panoff recentemente busca- duas reviravoltas principais tenham ocorrido no século XIX
ram compreender como as sociedades representam para si (com o ressurgimento do esporte) e no século XX (no domí-
mesmas "a produção do corpo humano"16 -, a filosofia, que, nio da sexualidade). É de fato na Idade Média que se instala
de Platão a Espinosa, de Diderot a Merleau-Ponry, não dei- esse elemento fundamental de nossa identidade coletiva que
xou de se interrogar sobre as relações entre a alma e o corpo, é o cristianismo, atormentado pela questão do corpo, ao mes-
são disciplinas que a pesquisa histórica não pode ignorar. A mo tempo glorificado e reprimido, exaltado e rechaçado.
psicanálise, igualmente, não pode ser descartada, de tal for- É na Idade Média que vemos se formarem o Estado e a
ma sua preocupação em dar razão ao corpo, do sonho ao cidade "moderna", de que o corpo será uma das mais prolífi-
desejo, da histeria ao prazer, foi essencial para que a história cas metáforas e cujas instituições o irão modelar. Antes de ir
efetuasse sua guinada corporal, como testemunham, entre mais adiante no que diz respeito à importância do corpo na
outros, os trabalhos de Michel de Certeau (1925-1986).17 Uma Idade Média, é preciso lembrar, ainda uma vez, que a Idade
tal lista e tais dívidas relativizam a premissa de partida. Como Média não foi um tempo de trevas nem uma longa transição
escreveu Michel Foucault, "a história do corpo, os historia- estagnada. Os progressos técnicos são aí decisivos: o novo
dores se lançaram sobre ela há muito tempo". arado, o sistema de rotação trienal ou ainda a grade, por exem-
Mas, a despeito desses tributos e contribuições, trata-se plo, que se vê sobretudo na tapeçaria de Bayeux, marcam o
de continuar a reparar esse esquecimento, isto é, de devol- início da agricultura moderna. O moinho é sem dúvida a pri-
ver ao corpo na Idade Média sua razão de ser. Por que a meira máquina do Ocidente, mas a principal fonte de energia

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JACQUES LE GOFF E NICOLAS TRUONG UMA HISTÓRIA DO CORPO NA IDADE M~DIA

continua a ser o corpo humano, tornado mais eficaz e mais glorificado de Cristo. Ela cria novos heróis, santos, que são,
produtivo. As revoluções do artesanato aproximam-se do em princípio, mártires em seus corpos. Mas, a partir do sécu-
nascimento da indústria: o ofício de tecelão se aperfeiçoa, a lo XIII, com a Inquisição, ela também faz da tortura uma
fabricação de tecidos se desenvolve, a construção está em prática legítima que se aplica a todos os suspeitos de heresia,
expansão e surgem as primeiras minas. e não somente aos escravos, como na Antigüidade.
No plano cultural, é na Idade Média que se estabelecem o Por que o corpo na Idade Média? Porque o corpo é o
desenvolvimento urbano e as novas estruturas da cidade, cen- lugar crucial de uma das tensões geradoras da dinâmica do
tro de produção (e não somente de consumo), centro de dife- Ocidente. Naturalmente, o lugar central atribuído ao corpo
renciação social (o corpo do burguês não é o corpo do artesão não é uma novidade no Ocidente: basta lembrar o culto de
ou do operário), centro político (os cidadãos formam um que ele foi objeto na Grécia Antiga, por exemplo, quando seu
corpo), centro cultural em que o corpo não ocupa o mesmo arrebatamento e sua estetização ultrapassaram amplamente a
lugar fundamental que ocupa no campo (a Idade Média é a cultura do corpo praticada na Idade Média pelos cavaleiros
época de uma sociedade composta por 90% de camponeses, nas guerras e nos torneios ou pelos camponeses nos jogos
que executam trabalhos físicos); é também na Idade Média rústicos. Mas, ainda que se assista na Idade Média a uma der-
que se desenvolve a prática da escrita, uma outra prática com rocada das práticas corporais, assim como à supressão ou ainda
as mãos." O teatro, proibido como pagão e blasfemo, renas- ao confinamento dos lugares do corpo da Antigüidade, o cor-
ce em princípio nos conventos e nas igrejas, em torno de te- po se torna paradoxalmente o coração da sociedade medieval.
mas religiosos, como o drama pascal, o drama da crucificação Como sugere Jean-Claude Schmitt, grande historiador dos
e da ressurreição de Jesus Cristo ou, no jogo do Apocalipse, gestos do Ocidente medieval, é necessário defender que "a
como evocação dos corpos massacrados pelo Anticristo e dos partir do século V, a questão do corpo alimentou o conjunto
três cavaleiros da fome, da peste e da guerra salvos à espera dos aspectos ideológicos e constitucionais da Europa medie-
do Juízo Final. Mas renasce sobretudo nas cidades a partir do val"." De um lado, a ideologia do cristianismo, tornado reli-
século XIII. Assim, Arras viu sucederem-se "jogos" teatrais gião de Estado, reprime o corpo e de outro, com a encarnação
que sugerem a imagem de um festival de Avignon medieval. de Deus no corpo de Cristo, faz do corpo do homem "o
No século Xv, diante das catedrais, os mistérios apresentam a tabernáculo do Espírito Santo". De um lado, o clero reprime
história santa em espetáculos corporais. O crítico russo as práticas corporais, de outro, as glorifica. De um lado, a
Mikhail Bakhtin, não sem algum exagero, fez das praças pú- Quaresma se abate sobre a vida cotidiana do homem medie-
blicas urbanas o lugar de renascimento do riso, das brincadei- val, de outro, o Carnaval se entrega a seus exageros. Sexuali-
ras e das farsas improvisadas. dade, trabalho, sonho, formas de vestir, guerra, gesto, riso ...
Essa Idade Média da nossa infância, que não é nem negra O corpo na Idade Média é uma fonte de debates, alguns dos
nem dourada, se instaura em torno do corpo martirizado e quais ressurgem contemporaneamente.

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JACQUES lE GOFF E NICOLAS TRUONG

Provavelmente não é por acaso que o único fundador e


representante da escola histórica chamada dos Annales que
se interessou pela questão do corpo tenha sido um historia-
dor da Idade Média, bem como um dos intelectuais mais sen-
síveis às convulsões do mundo contemporâneo: Marc Bloch.
Este ensaio, modesta tentativa de "conceder espaço às aven-
turas do corpo", traz sua marca, sobretudo por esse preceito
metodológico e ético que o leva a formular que "se a incom-
preensão do presente nasce fatalmente da ignorância do pas- 1. Quaresma e Carnaval:
sado, não é menos verdade que é preciso compreender o
uma dinâmica do Ocidente
passado através do presente".
Pois o corpo é hoje a sede da metamorfose dos novos tem-
pos. Da demiurgia genética às armas bacteriológicas, do tra-
tamento e da abordagem das epidemias modernas às novas
formas de dominação no trabalho, do sistema da moda aos
novos modos de nutrição, da glorificação dos cânones corpo-
rais às bombas humanas, da liberação sexual às novas aliena-
ções, o desvio pela história do corpo na Idade Média pode
permitir compreender um pouco melhor nosso tempo, tanto
por suas convergências surpreendentes como por suas
irredutíveis divergências.

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Na Idade Média o corpo é, reiteremos, o lugar de um para-
doxo. Por um lado, o cristianismo não cessa de reprimi-lo.
"O corpo é a abominável roupa da alma", diz o papa Gregório,
o Grande. Por outro, ele é glorificado, sobretudo por meio
do corpo padecente de Cristo, sacralizado na Igreja, corpo
místico de Cristo. "O corpo é o tabernáculo do Espírito San-
to", diz Paulo. A humanidade cristã repousa tanto sobre o
pecado original - transformado na Idade Média em pecado
sexual- quanto sobre a encarnação: Cristo se faz homem
para redimir os homens de seus pecados. Nas práticas popula-
res, o corpo é contido pela ideologia anticorporal do cristia-
nismo institucionalizado, mas resiste à sua repressão.
A vida cotidiana dos homens da Idade Média oscila en-
tre a Quaresma e o Carnaval, um combate imortalizado por
Pieter Bruegel no célebre quadro de 1559, O Combate do
Carnaval e da Quaresma. De um lado, o magro, do outro, o
gordo. De um lado, o jejum e a abstinência, do outro, ban-
quetes e gula. Essa oscilação tem a ver, provavelmente, com
o lugar central que o corpo ocupa no imaginário e na reali-
dade da Idade Média.
As três ordens que compõem a sociedade tripartite medie-
val,oratores (aqueles que rezam), bel/atores (aqueles que com-
batem) e laboratores (aqueles que trabalham), são em parte

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JACQUES LE GOff E NICOLAS TRUONG
UMA HISTÓRIA DO CORPO NA IDADE MÉDIA

definidas por sua relação com o corpo. Os corpos sadios dos


o esporte, assim como o teatro herdado dos gregos e dos ro-
padres, que não devem ser nem mutilados nem estropiados;
manos; e os próprios anfiteatros, cujo nome passará dos jo-
os corpos dos guerreiros, enobrecidos por suas proezas de
gos de estádio às disputas do espírito teológico no seio das
guerra; os corpos dos trabalhadores, esgotados pela labuta.
universidades. Mulher diabolizada; sexualidade controlada;
As relações entre a alma e o corpo são, por sua vez, dialéticas,
trabalho manual depreciado; homossexualidade no princípio
dinâmicas, e não antagônicas
condenada, depois tolerada e enfim banida; riso e gesticula-
É preciso lembrar: não é a Idade Média que separa a alma
ção reprovados; máscaras, maquiagem e travestimentos con-
do corpo de maneira radical, mas, sim, a razão clássica do
denados; luxúria e gula associados ... O corpo é considerado
século XVII. Ao mesmo tempo alimentada pelas concepções
a prisão e o veneno da alma. À primeira vista, portanto, o
de Platão, segundo as quais a alma preexiste ao corpo - filo-
sofia que irá alimentar o "desprezo pelo corpo" dos ascetas culto do corpo da Antigüidade cede lugar, na Idade Média, a
cristãos, como Orígenes (c. 185-c. 252) -, mas ao mesmo uma derrocada do corpo na vida social.
tempo penetrada pelas teses de Aristóteles, segundo o qual "a São os Padres da Igreja que introduzem e fomentam essa
alma é a forma do corpo", a Idade Média concebe que "cada grande reviravolta conceitual, com a instauração do mona-
homem se compõe, assim, de um corpo, material, criado e quismo. "O ideal ascético" conquista o cristianismo por meio
mortal, e de uma alma, imaterial, criada e imortal".' Corpo e de sua influência na Igreja e se torna o pilar da sociedade
alma são indissociáveis. "Ele é exterior (joris), ela é interior monacal, que, na alta Idade Média, buscará se impor como o
(intus), e se comunicam através de toda uma rede de influên- modelo ideal da vida cristã. Os beneditinos consideram a
cias e signos", resume Jean-Claude Schrnitt.! Vetor dos vícios ascese o "instrumento de restauração da liberdade espiritual
e do pecado original, o corpo também é o vetor da salvação: e de retorno a Deus": "É a libertação da alma da argola de
"O Verbo fez-se carne", diz a Bíblia. Como um homem, Jesus ferro e da tirania do corpo." Existem dois aspectos funda-
sofreu. mentais: "A renúncia ao prazer e a luta contra as tentações.?"
Mas o que se convencionou chamar Idade Média' foi, de Vindo do Oriente e dos Padres do Deserto, o ascetismo
início, a época da grande renúncia ao corpo. beneditino atenua o rigor no tratamento do corpo. Encontra-
se aí a palavra de ordem discretio, isto é, moderação. Diante
da instauração do feudalismo, a reforma monástica do século
A GRANDE RENÚNCIA XI e do início do século XII, sobretudo na Itália, acentuou a
repressão do prazer - e, principalmente, do prazer corpo-
As manifestações sociais mais ostensivas, assim como as ral. O desprezo pelo mundo - palavra de ordem da espiri-
exultações mais íntimas do corpo, são amplamente reprimi- tualidade monástica - é antes de tudo um desprezo pelo
das. É na Idade Média que desaparecem sobretudo as termas, corpo. A reforma acentua a privação e a renúncia no domínio
alimentar (jejuns e proibições de certos alimentos) e a irnpo-
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JACQUES LE GOFF E NICOLAS TRUONG UMA HISTÓRIA DO CORPO NA IDADE MÉDIA

sição de sofrimentos voluntários. Os piedosos leigos (é o caso rianismo - que se materializa a repugnância em relação aos
do rei da França, São Luís, no século XIII) podem se submeter fluidos corporais: o esperma e o sangue. Esse "mundo de
a mortificações corporais comparáveis àquelas que se infligem guerreiros" reprova, com efeito, o sangue. A sociedade medie-
os ascetas: o uso do cilício, a flagelação, a vigília, dormir val é, desse ponto de vista, um mundo de paradoxos. Em um
diretamente sobre O solo ... certo sentido, é possível até afirmar que a Idade Média des-
A partir do século XII, o desenvolvimento da imitação de cobriu o sangue. Em seu Michelet,5 Roland Barthes insiste
Cristo na devoção introduz, entre os leigos, práticas que re- nessa questão decisiva e problemática: "Séculos inteiros se
metem à Paixão de Cristo. Devoto de um Deus sofredor, São acabam nos avatares de um sangue instável", escreve ele. "O
Luís será um Rei-Cristo, um rei sofredor. século XIII na lepra, o século XIV na peste negra."
Essas práticas se manifestam freqüentemente por iniciati- Na Idade Média, o sangue é a pedra-de-toque das rela-
va dos leigos e, em particular, das confrarias de penitentes. É ções entre as duas ordens superiores da sociedade: oratores
o caso em Perugia, em 1260, onde os leigos organizam uma e bellatores. A característica da última categoria, a dos guer-
procissão expiatória ao longo da qual os participantes se reiros, que concorre e se encontra em conflito permanente
flagelam publicamente. A manifestação obtém um grande su- com a primeira, a dos clérigos, é de derramar sangue. Ainda
cesso e se espalha pela Itália central e setentrional. A Igreja as que a proibição nem sempre seja respeitada, os monges,
mantém sob controle, ampliando os períodos em que a ali- guardiães do dogma, não devem lutar. A distinção social entre
mentação dos fiéis é submetida a restrições. A partir do sécu- os oratores e os bellatores se dá, portanto, em torno desse
lo XIII, o calendário alimentar compreende abstinência de tabu. Razão social, estratégica e política, mas também teo-
carne três vezes por semana, jejuns na Quaresma, no Adven- lógica, já que o Cristo do Novo Testamento diz que não é
to, nas Têmporas", na vigília das festas e às sextas-feiras. Por preciso derramar sangue.
meio do controle dos gestos, a igreja impõe ao corpo um po- Cristo é contradição e paradoxo, visto que a prática cristã
liciamento no espaço e, por meio dos calendários de proibi- é fundada sobre o sacrifício de uma vítima, santa, mas ensan-
ções, lhe impõe um policiamento no tempo. güentada. De resto, a eucaristia renova sem cessar esse sacri-
fício: "Este é meu corpo, este é meu sangue", diz Jesus a seus
o tabu do esperma e do sangue discípulos durante a Ceia. A liturgia fundamental do cristia-
nismo, missa e eucaristia, em parte um sacrifício do sangue.
É no alvorecer de um tempo em que se instala, no Ocidente Assim, o sangue se torna o pilar da hierarquia social. Entre
pelo menos, uma religião oficial e uma nova ordem - o cris- clérigos e leigos, já que a nobreza, pouco a pouco, se conver-
te a essa concepção, essa invenção que constitui o único ele-
"Liturgia antiga: três dias de jejum e abstinência no início de cada estação do mento permanente e consubstancial de seu grupo social é
ano. (N. do T.) adotada. Desde a mais alta Idade Média, a antífona aparece:

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UMA HISTÓRIA DO CORPO NA IDADE MÉDIA
JACQUES LE GOFF E NICOLAS TRUONG

"Nasce-se de sangue nobre."! O sangue como definição do


A sexualidade, ápice da depreciação
parentesco entre os nobres, porém, só surge tardiamente. É
É verdade que, como lembra Jacques Rossiaud," os documen-
apenas a partir do século XIV que os descendentes diretos
tos em que se baseiam os historiadores refletem somente o
dos reis serão chamados "príncipes de sangue". É só na
pensamento dos homens que detêm o poder de escrever, de
Espanha de fins do século XV que aparece, em oposição aos
descrever e de depreciar, ou seja, os monges e os eclesiásticos
judeus, a noção de "pureza de sangue".
Mas o tabu do sangue permanece. Uma das várias razões
que, devido a seus votos de castidade, eram largamente ver-
sados no ascetismo. É verdade que os discursos dos leigos
da situação de relativa inferioridade da mulher na Idade
que chegaram até nós são freqüentemente aqueles dos tribu-
Média é imputada a suas menstruações, ainda que Anita
nais em que eles acusam, testemunham e se defendem, incor-
Gueneau-jalabert" tenha observado que a teologia medieval
porando o discurso dominante com a finalidade de pleitear
não retomou as proibições apontadas no Antigo Testamen-
suas causas. Quanto aos romances, contos e fábulas, eles ex-
to a respeito das mulheres menstruadas. A transgressão da
traem suas histórias, farsas e intrigas do dia-a-dia do "ho-
proibição eclesiástica feita aos esposos de copular durante o
mem medieval". Mas, como lembra Georges Duby, esses
período da menstruação teria por conseqüência o nascimento
exemplos se situam "em uma representação convencional do
de crianças com lepra, "a doença do século", dir-se-ia hoje,
amor e da sexualidade"."
que encontra aqui sua explicação mais corrente. O esperma
Assim, é possível afirmar que o corpo sexuado da Idade
também é nódoa. A sexualidade, associada a partir do sécu-
Média é majoritariamente desvalorizado, as pulsões e o dese-
lo XII ao tabu do sangue, é assim o ápice da depreciação
jo carnal, amplamente reprimidos. O próprio casamento cris-
corporal.
tão, que aparece, não sem dificuldade, no século XIII, será
O cristianismo medieval privilegia o pecado em relação à
uma tentativa de remediar a concupiscência. A cópula só é
desonra. O espiritual sobrepuja o corporal. O sangue puro de
compreendida e tolerada com a única finalidade de procriar.
Cristo é mantido a distância do sangue impuro dos homens.
"O adúltero é também aquele apaixonado de modo demasia-
Ele é chamado de Sangue Precioso, que os anjos e Maria
damente ardente por sua mulher", repetirão os clérigos da
Madalena teriam recolhido ao pé da cruz e do qual numero-
Igreja. Prescreve-se, desse modo, o domínio do corpo; as prá-
sas igrejas reivindicavam a propriedade durante a Idade Mé-
ticas "desviantes" são proibidas.
dia, a exemplo de Bruges e, sobretudo, de Mântua. O culto
Na cama, a mulher deve ser passiva, o homem, ativo, mas
do Santo Sangue se deu pelo sucesso do tema literário e cava-
moderadamente, sem arrebatamento. No século XII, apenas
lheiresco do Santo Graal. Entretanto, as fraternidades de san-
Abelardo (1079-1142), pensando talvez em sua Heloísa, che-
gue não existem no Ocidente medieval.
gará a dizer que a dominação masculina "termina no ato con-
jugal, em que homem e mulher detêm igual poder sobre o corpo

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do outro". Mas, para a maior parte dos clérigos e dos leigos, o Estabelece-se uma hierarquia entre os comportamentos
homem é um possuidor. "O marido é proprietário do corpo de sexuais lícitos. No mais alto grau está a virgindade, que, em
sua mulher, ele tem direto de posse sobre ela", resume Georges sua prática, é denominada castidade. Depois vem a castidade
Duby. Toda tentativa contraceptiva é pecado mortal para os na viuvez e, enfim, a castidade no interior do casamento. Se-
teólogos. A sodomia é uma abominação. A homossexualidade gundo o Decreto de Graciano, um monge de Bolonha (c. de
- após ter sido condenada, depois tolerada, a ponto de cons- 1140-113 O), "a religião cristã condena o adultério em ambos
tituir-se no século XII, segundo BosweU, em uma cultura "gay" os sexos do mesmo modo", mas trata-se de um ponto de vista
no próprio seio da Igreja - torna-se, a partir do século XIII, teórico mais do que uma realidade prática: os tratados sobre
uma perversão por vezes associada ao canibalismo. As palavras o coitus falam quase exclusivamente do homem.
fazem as coisas. E novos termos que surgem na Antigüidade Uma regulação sem precedentes da guerra evitará que o
tardia, depois na Idade Média, tais como caro (a carne), luxuria sangue seja vertido de maneira pecaminosa. Mas o pragma-
(a luxúria), fornicatio (a fornicação), forjam o vocabulário cris- tismo é posto em circulação diante das ameaças "bárbaras"
tão da ideologia anticorporal. A natureza humana designada ou "heréticas". Assim, o cristianismo, tornado religião de Es-
pelo termo caro é, dessa maneira, sexualizada e abrirá as por- tado, instala aquilo que Santo Agostinho chama de "a guerra
tas ao "pecado contra a natureza". justa" tbellum justum), que servirá - até nossos dias, aliás -
O sistema será definitivamente ajustado no século XII com para justificar tanto as causas mais nobres quanto as mais vis.
a instalação da reforma gregoriana. "Gregoriana" porque deve Santo Agostinho dirá que a guerra é justa se ela não é
seu nome ao papa Gregório VII (1073-1083). "Reforma" es- provocada "pela vontade de destruir, a crueldade na vingan-
sencial, já que consiste em um grande aggiornamento realiza- ça, o espírito implacável não apaziguado, o desejo de domi-
do pela Igreja cristã a fim de purgar sua instituição do tráfico nar e outras atitudes semelhantes", recomendações retomadas
de funções eclesiásticas (simonia) assim como dos padres e completadas pelo Decreto de Graciano, depois pelo canonista
concubinários (nicolaísmo). Sobretudo, a reforma gregoriana Rufino na Summa decretorum (c. de 1157).
separa os clérigos dos leigos. Os primeiros, em especial a par- Da mesma forma, a Igreja impõe aos leigos a "cópula jus-
tir do primeiro Concílio de Latrão, deverão, no seio do novo ta" - a saber, o casamento. A dominação ideológica e teórica
modelo que é o monaquismo, abster-se de verter o que pro- da Igreja se manifestará, na prática, por meio de manuais desti-
voca a corrupção da alma e que impede o espírito de descer: nados aos confessores, os penitenciais, em que são reperto-
o esperma e o sangue. Instala-se, desse modo, uma ordem, riados os pecados da carne, associando-os aos castigos e às
um mundo de celibatários. Quanto aos segundos, deverão se penitências que lhes correspondem. O manual do bispo de
servir de seus corpos de maneira salutar e salvadora no inte- Worms, intitulado, como outros, Decreto, e escrito no início
rior de uma sociedade aprisionada no casamento e no mode- do século XI, perguntará ao homem casado se ele "se acasala
lo patrimonial, monogâmico e indissolúvel. por trás, à maneira dos cães". E irá condená-Io, se for o caso,

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a fazer "penitência por dez dias a pão e água". Deitar-se com edulcorar excessivamente o Cântico dos Cânticos, obra bíbli-
o marido durante a menstruação, antes do parto ou ainda no ca repleta de erotismo, em um diálogo entre a humanidade
dia do Senhor, por exemplo, levará a castigos semelhantes. pecadora e a santa e salutar divindade. Assim, segundo as
Beber o esperma do marido, "a fim de que ele te ame mais Sentenças de Pierre de Lombard (c. de 1150), os maridos po-
graças a teus procedimentos diabólicos", prossegue esse mes- derão enfim se ligar "conforme o consentimento das almas e
mo Decreto para uso das mulheres, será passível de sete anos conforme a união dos corpos".
de penitência. Felação, sodomia, masturbação, adultério, se-
guramente, mas também a fornicação com os monges, são, Teoria e prática
um a um, sucessivamente condenados. Assim como os supos-
tos fantasmas dos maridos - que ensinam muito mais sobre o que ocorre, no plano da moral sexual da Idade Média,
os delírios dos teólogos do que sobre aqueles dos penitentes justamente com esse lugar-comum a propósito do qual Kant
colocados dessa maneira no índex -, à imagem daqueles su- trouxe uma contribuição inteiramente racionalista e crítica:
postos procedimentos das mulheres que, é estipulado, escon- "Isto é bom na teoria, mas não vale nada na prática"? Antes
dem um peixe vivo em seu sexo, "mantendo-o aí até que ele do século XII, ainda é possível ver - o fenômeno, entretan-
morra e, após tê-lo cozido, o dão de comer a seu marido para to, permanece limitado - clérigos brigando, ainda que por
que ele se apaixone mais por ela[s]". Trata-se aí daquilo que mulheres e concubinas e não com elmos e armas. Da parte
Jean-Pierre Poly chamou de "os amores bárbaros". dos leigos, abundam rixas e combates, e os prazeres da carne
Esse controle sexual matrimonial, preconizando também - irredutíveis apenas à sexualidade - caminham bem. A aris-
a abstinência durante as quaresmas normais (Natal, Páscoa, tocracia permanece o que era então quando de seu período
Pentecostes) e outros períodos de jejum e de continência, in- "bárbaro", isto é, polígama.
fluirá tanto nas mentalidades medievais quanto na demografia, A distinção social determina as práticas corporais e a se-
bastante afetada por esses 180 ou 185 dias, aproximadamen- qüência das proibições. O domínio da luta estende-se já à
te, de liberdade sexual autorizada. No século XII, o teólogo sexualidade. As aventuras extraconjugais brilham nas gran-
parisiense Hugues de Saint-Victor (morto em 1141) chegará des famílias nobres. Do lado dos ricos, a poligamia é pratica-
mesmo a dizer que a sexualidade conjugal decorre da fornica- da e, na verdade, admitida. Do lado dos pobres, a monogamia
ção: ''A concepção das crianças não se faz sem pecado", dis- instituída pela Igreja é mais respeitada. Quanto à abstinência,
para. A vida dos casados revela-se de uma dificuldade sem ela é, como lembra Jacques Rossiaud, "uma virtude muito
igual, mesmo que "a espiritualização do amor conjugal", como rara" e "reservada a uma elite clerical, já que a maior parte
escreve Michel Sot,10"vá salvar o corpo que a teologia iria dos clérigos seculares vive em regime de concubinato, quan-
eliminar". Amor pelo outro corpo e amor por Deus de fato se do não são abertamente casados". O confessor de São Luís,
confundem em numerosos textos, a ponto mesmo de por exemplo, insiste no respeito escrupuloso à abstinência

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conjugal por parte de Luís IX, devido ao caráter excepcional res sexuais. Assim, como escreve Georges Duby, "a guerra
desse comportamento. não é mais entre o carnal e o espiritual, mas entre o natural e
O último rei da França a praticar a poligamia foi Filipe aquilo que o contraria". No entanto, a execração dos homos-
Augusto, cujo reinado (1180-1223) situa-se no auge desse pe- sexuais ou dos "afeminados", por exemplo, se intensificará
ríodo decisivo. Viúvo, casado novamente com a dinamarquesa no século Xv, salvo em lugares específicos, como Florença. A
Ingeburge, ele não pode honrar sua nova mulher. Esse todo- tensão, a dinâmica do Ocidente, ainda é perceptível nessas
poderoso abandona então o leito conjugal, mantém uma rela- oscilações. A nova ética sexual da Igreja se impõe, contudo,
ção fora do casamento e pratica, desse modo, a bigamia. Uma 110 imaginário e na realidade do Ocidente medieval. E isso

atitude inaceitável para a Igreja, que o excomunga. Ele então por muito tempo. Talvez até em nossa era, que conheceu des-
retoma Ingeburge da Dinamarca, sem entretanto levá-Ia para de os anos 1960 uma liberação sexual sem precedentes.
sua cama, mas encerrando-a em um convento. Ela se recusa a
voltar a seu país, como lhe é imposto. Adepta de uma França Raizes da repressão: a Antigüidade tardia
que a adotou, Ingeburge será honrada, não por seu marido,
mas por uma corte que lhe oferece sua deferência, sua confian- A fim de compreender os pilares dessa "grande renúncia", con-
ça e a venera. Essa mulher fora do comum suscitará, de resto, vém voltar ao início. Essa evolução fundamental da história do
a composição, por um artista anônimo, do mais belo saltério Ocidente, que é a recusa da sexualidade e a "renúncia à car-
da Idade Média, o Saltério de Ingeburge - obra de uma força ne", se produziu, de início, sob o Império Romano, no interior
estética e teológica sem igual, em que toda a história da huma- daquilo que se chamou paganismo e que Michel Foucault deci-
nidade cristã é representada, da Criação ao fim da História, frou de modo pioneiro na História da sexualidade.
passando pela Encarnação e o Juízo Final. O historiador Paul Veyne" situa essa mudança precisa-
Por ocasião do milênio medieval, o sistema de controle mente nos últimos anos do século II da era cristã, quando do
sexual e corporal irá evoluir. O triunfo deste com a grande reinado do imperador Marco Aurélio, entre 180 e 200. É
reforma gregoriana no século XII marca igualmente a época certo que, em todo caso, o estoicismo do imperador, banha-
de seu relativo declínio. As práticas sexuais, herdadas do do de ascetismo e fundado no domínio de si, sempre em luta
mundo e do modo de vida greco-latino ou pagão, perduram. contra a depravação das paixões, "adquire acentos pessoais". 12
A castidade dos monges é escarnecida em numerosas farsas O ato sexual, por exemplo, encontra-se reduzido a "uma fric-
populares, em que se ridicularizam os clérigos concubinários, ção de ventres e à ejaculação de um líquido viscoso acompa-
e a virgindade voluntária ou imposta reflui. A Idade Média nhada de um espasmo"." Em seus Pensamentos, em que se
que está acabando oscila entre a repressão e a liberdade sexual dirige a si mesmo, Marco Aurélio (121-180) explica a razão
aceita ou reencontrada. O século XIV em crise irá preferir de tal depreciação. O sábio deve apresentar a sua consciência
repovoar a Terra mais do que o Céu e irá naturalizar os valo- uma verdade nua a fim de melhor subtrair-se a suas paixões

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JACQUES LE GOFF E NICOLAS TRUONG

depravadas: "Assim são essas imagens que vão até as próprias A Idade Média dará um impulso muito mais forte a essa
coisas e penetram nelas de modo a fazer ver o que elas são; e depreciação corporal e sexual por meio de seus ideólogos, na
tal é o modo como é preciso proceder durante toda a vida; lá seqüência de Jerônimo e Agostinho, como Tomás de Aquino,
onde as coisas têm um valor demasiadamente grande, desnudá- assim como por seus praticantes, os monges, que irão instalar
Ias; ver claramente sua vulgaridade, extrair-lhes todos os de- por muito tempo na sociedade o elogio e a prática, global-
talhes de que se ornam." mente respeitada, da virgindade e da castidade.
De algum modo, o terreno já estava bem preparado para
que o cristianismo realizasse essa grande reviravolta do cor- o cristianismo, operador da grande revirava/ta
po contra si mesmo. "Os cristãos não reprimiram absoluta-
mente nada, a coisa já estava feita", chega a declarar Paul É preciso um grande operador ideológico, assim como estru-
Veyne. '~s continuidades muito estreitas que se podem cons- turas econômicas, sociais e mentais correspondentes, para que
tatar entre as primeiras doutrinas cristãs e a filosofia moral a reviravolta se opere. O agente dessa reviravolta, dessa recu-
da Antigüidade", escreve Michel Foucault," testemunham o sa, é o cristianismo. Assim, a religião cristã institucionalizada
fato de que não é "de modo algum exato" pensar que o paga- introduz uma grande novidade no Ocidente: a transforma-
nismo e o cristianismo constituem duas antípodas da teoria e ção do pecado original em pecado sexual. Uma mudança que
da prática sexuais. A caricatura, com efeito, espreita. No pa- é uma novidade para o próprio cristianismo, já que, em seus
ganismo dos gregos e dos romanos, o culto do corpo e a li- primórdios, não aparece traço algum de uma tal equivalên-
berdade sexual. No cristianismo, a castidade, a abstinência e cia, assim como nenhum termo dessa equação figura no Anti-
a busca doentia da virgindade. Os trabalhos de Paul Veyne e go Testamento da Bíblia. O pecado original, que expulsa Adão
Michel Foucault mostram claramente que um "puritanismo e Eva do Paraíso, é um pecado de curiosidade e de orgulho. É
da virilidade" existe antes da guinada decisiva do alto Impé- a vontade de saber que conduz o primeiro homem e a primei-
rio Romano (séculos 1-11) em direção ao cristianismo. "Entre ra mulher, tentados pelo demônio, a comerem a maçã da ár-
a época de Cícero e o século dos Antoninos, * passou-se um vore do conhecimento. A despossuir Deus, de algum modo,
grande acontecimento ignorado: uma metamorfose das rela- de um de seus atributos mais determinantes. A carne perma-
ções sexuais e conjugais; ao sair dessa metamorfose, a moral nece fora dessa queda. "O Verbo se fez carne", pode-se ler no
sexual pagã se encontra idêntica à futura moral cristã do ca- Evangelho de João (I, 14). A carne é assim pouco suspeita, já
samento", escreve Paul Veyne." que foi resgatada pelo próprio Jesus, que, no episódio da Santa
Ceia, assegura a vida eterna àqueles que comerem de sua car-
ne e beberem de seu sangue (o pão e o vinho).
"Nome dado aos imperadores romanos que sucederam os flavianos ou a dinastia Certamente há várias premissas de uma diabolização do
Flávia. São eles: Nerva (96-98), Trajano (98-117), Adriano (117-138), Antonino
Pio (138-161), Marco Aurélio (161-180) e Cômodo (180-193). (N. do T.)
sexo e da mulher em Paulo, provavelmente tributária dos tor-

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mentos de sua vida pessoal. "Se vivêsseis na carne, morreríeis" volúpias impudicas [...], mas investi-vos de Nosso Senhor Je-
(Romanos, VIII, 3-13) pois "é o espírito que vivifica" (VI, sus Cristo e não busqueis contentar a carne em sua avidez."
63), declara. A carne "não serve para nada", já que Deus co- Antes de sua conversão, Agostinho já havia pressentido que
locou à prova seu próprio filho ao lhe dar um corpo humano, "a lei do pecado estava em (seus) membros". Ei-lo conforta-
"demasiado humano", para retomar a fórmula de Nietzsche. do, assim como sua mãe, banhada em alegria por esse ho-
A condenação do "pecado da carne" é assim conduzida por mem novo que agora se aproxima dela e da Igreja. "O homem
uma hábil reviravolta ideológica. Paulo, levado por sua cren- novo" do cristianismo tomará assim o caminho de Agosti-
ça na proximidade do fim do mundo, trará uma nova pedra nho, longe do barulho das tavernas, do furor do desejo e dos
ao edifício doutrinal anti-sexual: "Eu vos digo, irmãos: o tem- tormentos da carne. Dessa forma, a condenação da luxúria
po é curto. Que a partir de agora aqueles que têm mulher (luxuria) será acompanhada freqüentem ente da condenação
vivam como se não a tivessem mais", declara em sua epístola da gula (gula) e do excesso de bebida e de alimentação (crapula,
aos coríntios (I Coríntios, VII, 29). gastrimargia) .
A fornicação, que aparece no Novo Testamento, a concu- A transformação do pecado original em pecado sexual é
piscência de que falam os Padres da Igreja e a luxúria que tornada possível por meio de um sistema medieval dominado
condensa todas as ofensas feitas a Deus no sistema dos "peca- pelo pensamento simbólico. Os textos da Bíblia, ricos e
dos capitais", estabelecidos entre os séculos V e XII, tornam- polivalentes, se prestam de bom grado a interpretações e de-
se pouco a pouco a tríade da reprovação sexual dos clérigos. formações de todos os gêneros. A interpretação tradicio-
Se São Paulo não faz mais do que esboçar essa grande nal afirma que Adão e Eva quiseram encontrar na maçã a
reviravolta, Santo Agostinho (354-430), testemunha e des- substância que lhes permitiria adquirir uma parte do saber
bravador da nova ética sexual do cristianismo na Antigüida- divino. Já que era mais fácil convencer o bom povo de que a
de tardia, lhe fornece sua legitimidade existencial e intelectual. ingestão da maçã decorria da copulação mais que do conhe-
O autor das Confissões e de A cidade de Deus é um con- cimento, a oscilação ideológica e interpretativa instalou-se
vertido, cuja história é bem conhecida. Após anos de prazer, sem grandes dificuldades. "Não lhes bastou delirar em relação
de errância e de transgressão na África romana do século IV, aos gregos, eles também o fizeram em relação aos próprios
entre Tagasta e "Cartago de Vênus", esse filho da piedosa Profetas. O que prova bem claramente que eles não viram a
Mônica (e de Patricius, não nos esqueçamos), esse jovem bol- divindade da Escritura", sublinha Espinosa a propósito des-
sista tornado um administrador arrivista se volta para a reli- ses oradores da Igreja que monopolizaram a religião de Cris-
gião cristã quando de uma experiência mística em um jardim to e "dos quais nenhum tinha o desejo de instruir o povo,
de Milão, onde, doente e torturado, ouve uma voz lhe dizer: mas de embriagá-lo de admiração, de repreender publicamente
"Tome, leia." O que ele lê é o livro do Apóstolo que escreve: os dissidentes, de ensinar apenas coisas novas, insólitas, pró-
"Não vivais nos festins, nos excessos de vinho, nem nas prias para encher o vulgo de espanto"." A influência de San-

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UMA HISTÓRIA DO CORPO NA IDADE MÉDIA

to Agostinho, sobretudo, será grande. Com a notável exce-


gem, à nossa semelhança", isto é, "homem e mulher" (Gênesis,
ção de Abelardo e de seus discípulos, os teólogos e os filóso-
1,26-27), os Padres e os clérigos preferem a versão da mode-
fos reconhecerão que o pecado original é ligado ao pecado
lagem divina de Eva a partir da costela de Adão (Gênesis, 11,
sexual, por intermédio da concupiscência.
21-24). Da criação dos corpos nasce, portanto, a desigualda-
Ao fim de uma longa caminhada, ao preço de ásperas lu-
de original da mulher. Uma parte da teologia medieval segue
tas ideológicas e de condicionamentos práticos, o sistema de
o passo de Agostinho, que faz remontar a submissão da mu-
controle corporal e sexual instala-se, portanto, a partir do
lher antes da Queda. O ser humano é portanto cindido: a
século XII. Uma prática minoritária estende-se à maioria dos
homens e das mulheres urbanos da Idade Média. E é a mu-
parte superior (a razão e o espírito) está do lado masculino ,a
parte inferior (o corpo, a carne), do lado feminino. As Con-
lher que irá pagar o tributo mais pesado por isso. Por muitos
fissões de Agostinho são a narrativa de uma conversão, por
e muitos anos.
meio da qual o futuro bispo de Hipona conta, igualmente,
como a mulher em geral - e a sua em particular - foi um
A mulher, subordinada
obstáculo à sua nova vida de homem da Igreja.
Oito séculos mais tarde, Tomás de Aquino (c. 1224-1274)
A derrota doutrinal do corpo parece, portanto, total." As-
se afastará em parte do caminho traçado por Agostinho, po-
sim, a subordinação da mulher possui uma raiz espiritual, mas
rém sem fazer com que a mulher entre no caminho da liber-
também corporal. ''A mulher é fraca", observa Hildegarde de
dade e da igualdade. Embebido do pensamento de Aristóteles
Bingen no século XII, "ela vê no homem aquilo que pode lhe
(384-322 a.Ci), para quem "a alma é a forma do corpo", To-
dar força, assim como a lua recebe sua força do sol. Razão
más de Aquino recusa e refuta o argumento dos dois níveis de
pela qual ela é submetida ao homem e deve sempre estar pron-
criação de Agostinho. Alma e corpo, homem e mulher foram
ta para servi-lo." Segunda e secundária, a mulher não é nem
criados ao mesmo tempo. Assim, masculino e feminino são ,
o equilíbrio nem a completude do homem. Em um mundo de
ambos, a sede da alma divina. Entretanto, o homem dá pro-
ordem e de homens necessariamente hierarquizado, "o ho-
vas de mais acuidade na razão. E sua semente é a única que,
mem está em cima, a mulher embaixo", escreve Christiane
durante a copulação, eterniza o gênero humano e recebe a
Klapisch-Zuber."
bênção divina. A imperfeição do corpo da mulher, presente
O corpus da interpretação dos textos bíblicos dos Padres
na obra de Aristóteles e na de seu leitor medieval Tomás de
da Igreja dos séculos IV e V (como Ambrósio, Jerônimo, João
Aquino, explica as raízes ideológicas da inferioridade femini-
Crisóstomo e Agostinho) é incansavelmente retomado e re-
na, que, de original, se torna natural e corporal. Tomás de
petido na Idade Média. Assim, a primeira versão da Criação
Aquino, entretanto, mantém uma igualdade teórica entre o
presente na Bíblia é esquecida em proveito da segunda, mais
homem e a mulher, observando que, se Deus quisesse fazer
desfavorável à mulher. Ao Deus criou "o homem à nossa ima-
da mulher um ser superior ao homem, ele a teria criado de

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sua cabeça e, se decidisse fazer dela um ser inferior, ele a teria didamente", escreve Georges Duby. "Pois todos os discursos
criado de seus pés. Ora, ele a criou do meio de seu corpo para que chegam até mim e sobre os quais me informo são feitos
ressaltar sua igualdade. Também é preciso destacar que a re- por homens, convencidos da superioridade de seu sexo. É
gulamentação do casamento pela Igreja irá exigir o consenti- apenas a eles que ouço. No entanto, eu os escuto falando
mento mútuo dos cônjuges e, embora essa prescrição nem antes de tudo de seu desejo e, por conseqüência, das mulhe-
sempre tenha sido respeitada, ela marca um avanço no esta- res. Eles têm medo delas e, para se afirmarem, desprezam-
tuto da mulher. Do mesmo modo, se é possível afirmar que o nas." Boa esposa e boa mãe, as homenagens que o homem
grande impulso do culto da Virgem tem repercussões sobre rende à mulher assemelham-se, por vezes, a desgraças, se le-
uma promoção da mulher, a exaltação de uma figura femini- varmos em conta o vocabulário corrente entre os operários e
na divina só pode reforçar uma certa dignidade da mulher, os artesãos do século Xv, que falam de "cavalgar", "justar",
em particular da mãe e, através de Santa Ana, da avó. "lavrar" ou "roissier" (bater e espancar) as mulheres. "O ho-
A influência de Aristóteles sobre os teólogos da Idade mem se dirige à mulher como se dirige à latrina: para satisfa-
Média não traz benefício à condição feminina. Assim, depois zer uma necessidade"," resume Jacques Rossiaud.
dele, a mulher é considerada "um macho defeituoso". Essa Ao mesmo tempo, os confessores tentam refrear as
fraqueza psíquica tem "efeitos diretos sobre seu entendimen- pulsões masculinas por meio das proibições, mas também
to e sua vontade", ela "explica a incontinência que marca seu controlando a prostituição nos bordéis e nos banhos públi-
comportamento; ela influi em sua alma e em sua capacidade cos, esses lugares de exutório. As prostitutas, cuja "condi-
de elevar-se à compreensão do divino", escreve Christiane ção é vergonhosa", e "não aquilo que elas obtêm", escreve
Klapisch-Zuber. O homem será, por conseqüência, o guia Tomás de Aquino, encontram-se, pois, em grandes ou pe-
dessa pecadora. E as mulheres, que não possuíam voz na his- quenos bordéis comunais ou privados, banhos públicos e
tória, vão oscilar entre "Eva e Maria, pecadora e redentora, outros lupanares, vindas dos arredores da cidade, onde exer-
megera conjugal e dama cortês". 19 cem "o mais antigo ofício do mundo", freqüentemente após
A mulher irá pagar em sua carne o passe de mágica dos terem sido violadas por grupos de jovens que buscam, por
teólogos, que transformaram o pecado original em pecado sua vez, exercer e aguçar sua virilidade. Relegadas, mas igual-
sexual. Pálido reflexo dos homens, a ponto de Tomás de mente reguladoras da sociedade, as prostitutas vivem em
Aquino, que às vezes segue o pensamento comum, dizer que seus corpos as tensões da sociedade medieval.
"a imagem de Deus se verifica no homem de uma maneira
que não se verifica na mulher", ela é subtraída até mesmo em Estigmas e flagelação
sua natureza biológica, já que a incultura científica da época
ignora a existência da ovulação, atribuindo a fecundação ape- Se a dor (dolor) das mulheres depende da teologia e da Bíblia,
nas ao sexo masculino. "Essa Idade Média é masculina, deci- o dolorismo conhecerá, por sua identificação com o Cristo

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sofredor, uma breve e relativa expansão na Idade Média, por cantos sagrados. Essas manifestações eram acompanhadas de
meio dos estigmas e das flagelações. um rito penitencial por excelência, a autoflagelação. Também
Os estigmas são as marcas das feridas de Cristo durante a aconteciam como movimentos pela paz. Esses rituais produ-
Paixão. São Paulo aplica o termo às marcas físicas dos golpes ziam-se sobretudo em períodos de crise social e religiosa, em
que sofreu por amor ao Senhor (Epístola aos gálatas, 6, 17), particular sob a influência dos movimentos milenaristas, espe-
e São Jerônimo lhes atribui um sentido ascético. Eles darão cialmente, no século XIII, aqueles decorrentes das teorias de
lugar, no século XIII, a um fenômeno novo, voluntário ou Gioacchino da Flore. A primeira grande crise de flagelação
involuntário. Uma das primeiras estigmatizações conhecidas aconteceu em 1260 em Perugia e expandiu-se em direção ao
é a da beguina Maria d'Oignies (morta em 1213). A mais norte da Itália e para além dos Alpes, na Provence, até a
célebre, que causou sensação e se inscreveu espetacularmente Alsácia, Alemanha, Hungria, Boêmia e Polônia. Uma outra
na história religiosa, é a de Francisco de Assis, ocorrida em grande crise ocorreu em 1349, provocada pela peste negra,
1224, dois anos antes de sua morte. Dos estigmas da beguina em especial na Alemanha e nos Países Baixos. Os flagelantes
Elisabete de Spalbeck (morta em 1270) jorrava sangue às sex- se entregavam a graves atos de violência, com freqüência
tas-feiras e ela trazia na cabeça marcas de picadas de espi- anticlericais e anti-semitas. A flagelação, que não havia se in-
nhos. Os estigmas de Santa Catarina de Sena (morta em 1380), troduzido entre as práticas ascéticas monásticas do Ocidente,
recebidos durante um êxtase, em 1375, eram invisíveis e se mostra por meio de seu relativo fracasso que o exemplo do
manifestavam por meio de violentas dores internas. Os estig- Cristo sofrendo não resultava em uma martirização impor-
mas são um aspecto do movimento crescente de conformida- tante do corpo. Este permanecia objeto de respeito no Oci-
de psicológica com o Cristo sofredor que tende, a partir do dente, senão de outros prazeres, como o sadomasoquismo.
século XIII, a se tornar um selo de santidade, um signo da
efusão do Espírito Santo. Mas surgem apenas em um peque- o magro e o gordo
no número e têm uma influência reduzida sobre os critérios
de santidade, que permanecem sobretudo no nível da devo- A grande recusa do corpo não é, entretanto, redutível à sexua-
ção e do comportamento e que se encontram em especial entre lidade ou ao sofrimento voluntário de uma minoria atuante
as mulheres. de religiosos. Vimos que a luxúria passa a ser cada vez mais
Tendo também como pano de fundo a invocação da Paixão associada àgula, termo latino cuja tradução habitual, em fran-
de Cristo, a flagelação na Idade Média quase sempre encontra cês "gourmandise", não é inteiramente satisfatória, já que as
hostilidade por parte da Igreja. Manifestações leigas e popula- recomendações da Igreja se dirigem tanto à boca" quanto aos
res, os movimentos de flagelação eram uma espécie de peregri-
nação executada carregando-se uma cruz ou um estandarte, "Sentldo figurado de goela, que é o significado primário de gula, em latim.
pés descalços, o corpo semidesnudo, em meio a aclamações e (N. do T.)

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prazeres alimentares. Pecados da carne e pecados da boca deiro reservatório de peixes de água doce para os dias de
caminham de mãos dadas. Assim, a embriaguez é reprimida, jejum e para a vida de todos os dias.
por um lado, porque as conversões ao cristianismo se davam O jejum é relativamente respeitado mesmo entre os lei-
sobretudo entre os camponeses e os "bárbaros", muito apre- gos, como mostrou Jean-Louis Flandrin-' em seus trabalhos,
ciadores de bebedeiras, que era o caso de conter; por outro, antes dos quais era comum afirmar-se que os períodos de qua-
., e, d a "b oa carne " e d"o sexo "
porque os peca d os d a carne, Isto resma não eram observados. Jean-Louis Flandrin mostra que
se encontram freqüentemente associados à embriaguez. A in- - ainda que os dados que ele analisa digam respeito majori-
digestão é igualmente associada ao pecado. A abstinência e o tariamente às categorias favoreci das da sociedade - a curva
jejum dão o ritmo, portanto, do "homem medieval". O do- dos nascimentos declina nove meses após os períodos de je-
mínio do corpo é acompanhado do domínio do tempo, que, jum, o que prova o respeito às restrições. Pois a Igreja proibia
como o espaço, é uma categoria fundamental da sociedade muito estritamente a prática do sexo durante os dias de
hierarquizada da Idade Média. penitência.
Esse novo mundo, esse novo modo de inscrição corpo- Gordo oposto ao magro, Carnaval que se empanturra
ral, concentra-se na Quaresma, esses 40 dias de penitência e contra Quaresma que jejua, a tensão que atravessa o corpo
de jejum que, desde sua difusão no século IV, precedem e medieval é, portanto, exatamente aquela ilustrada por Pieter
preparam a festa da Páscoa, estendendo-se depois ao Natal Bruegel em O Combate do Carnaval e da Quaresma.
e ao Pentecostes. Nas representações sociais, a Terça-Feira
Gorda é o dia de Carnaval pois precede a Quarta-Feira de
Cinzas, que inaugura o período de jejum. O Carnaval chega A REVANCHE DO CORPO
a ser personificado e se torna um personagem popular, as-
sim como seu contrário, a "velha Quaresma" e seu cortejo A Igreja consegue, portanto, abafar o paganismo. Mas aquilo
de penitentes. Durante os períodos de quaresma, é pratica- que os doutrinários cristãos consideram "a anticivilização"
da a abstinência, ainda que o consumo de peixes ou laticínios, sobrevive e renasce. Os florescimentos populares do corpo
por exemplo, seja permitido. Outros períodos, mais reduzi- seguem, de fato, paralelos às flagelações e mortificações de
dos ou fragmentados, acompanham o período quaresmal ou certos adeptos. "Não se sabe o que pode o corpo", escreverá
tomam seu lugar. Espinosa em sua Ética.22 Do ponto de vista histórico, pode-se
De um certo ponto de vista, pode-se considerar que, para ao menos constatar que ele demonstra repugnância à sua re-
os clérigos, a existência se resume a uma quaresma perpétua. provação, mesmo sob o jugo e o controle ideológico mais
Numerosos conventos, e também aldeias, constroem, então, poderoso do momento.
açudes artificiais nas proximidades, que ainda se podem ob- Disseminadas sobretudo no meio rural- que constitui, é
servar hoje. Charcos e açudes constituem assim um verda- preciso lembrar, 90% do território e da população da Europa

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JACQUES LE GOFF E NICOLAS TRUONG UMA HISTÓRIA DO CORPO NA IDADE MÉDIA

-, as práticas pagãs perduram e se enriquecem. Às vezes, os minar, no século XIII, no próprio coração das cidades. O
devaneios dizem mais sobre isso do que as práticas. Assim, o Carnaval é banquete, a exaltação do burlesco, da boa carne.
país de Cocanha, uma das raras utopias da Idade Média e que Apesar dos trabalhos sobre o mundo rural, ainda faltam
aparece muito precisamente em um fabliau* de 1250, des- informações sobre esses corpos liberados nessas intermináveis
creve um território imaginário onde não se trabalha, onde festas da boca e da carne. Provavelmente porque o aspecto
tudo é luxo e volúpia. Os campos de verduras prontas para sexual não havia adquirido a importância que tem no Carna-
serem consumidas, de sebes formadas de salsichas que, ape- val do Rio, no Brasil, por exemplo. O tempo de Dionísio
nas colhidas e devoradas, brotam em seguida, viram a cabeça retorna, contudo, no Carnaval. Na linha dos trabalhos de
dos habitantes desse país imaginário. As cotovias já caem in- etnólogos fundadores, Emmanuel Le Roy Ladurie mostrou cla-
teiramente assadas nas bocas dos felizes mortais e a semana é ramente corno o Carnaval de Rornans," essa grande festa de
composta de quatro quintas-feiras, esse dia de repouso lega- inverno do século XIv, que ocorre da festa da Candelária até a
do a nossas escolas, antes que a quarta-feira se tornasse o dia Quarta-Feira de Cinzas, é, para os habitantes dessa pequena
de folga nos pátios escolares, como hoje em dia. cidade do Dauphiné", a ocasião de "enterrar suas vidas de pa-
Banquetes em oposição ao corpo flagelado, desregramento gãos", de "entregar-se a uma última intemperança paganizante
contra ascese, as festas do Carnaval burlesco, com essas dan- antes de penetrar nos tempos de ascese" fixados pela Igreja;
ças, as caroles, consideradas obscenas pelo clero, opõem-se à isto é, antes da "entrada na triste Quaresma". Tudo o que a
Quaresma dos jejuns. A civilização do Ocidente medieval é, Igreja reprime se exprime ao longo desse período de ranchos
no nível do símbolo, o fruto da tensão entre Quaresma e Car- de mascarados, em que os valores se invertem e em que se
naval. Quaresma, já o vimos, é esse período de jejum originário pratica a sátira. "O corpo digerindo é rei", prossegue Emmanuel
da nova religião, o cristianismo. E a cultura dessa anticivili- Le Roy Ladurie, à imagem do Bonhomme, esse personagem
zação não encontra melhor maneira para se exprimir do que típico do país de Cocanha, que distribui as mais apetitosas igua-
através do Carnaval, que se instala verdadeiramente no século rias em meio à alegria geral, antes de ser fustigado, e depois
XII, isto é, em pleno triunfo da reforma gregoriana, para cul- morto, à véspera do início do período de jejum.

Serpente de pedra contra dragão de vime


"Palavra de origem picarda que equivale ao frâncico (dialeto da região da fie-
de-France) [able, "fábula". Gênero literário de difícil definição, produzido
entre 1159 e 1340 sobretudo no norte da França, de onde provêm 38 dos 72
O crítico russo Mikhail Bakhtin, em seu famoso estudo sobre
[abliaux cuja origem pode ser determinada. Pode ser um conto em versos Rabelais," mostrou de maneira interessante que a Quaresma
para rir (Ioseph Bédier), um texto breve, de duzentos a quinhentos versos,
que se fecha com uma lição moral (Dominique Boutet) e que valoriza o mara-
vilhoso (Rosanna Brusegan). Cf. Hilário Franco Júnior, Cocanha: a história "Antiga província da França, que corresponde atualmente aos departamentos
de um país imaginário, São Paulo, Companhia das Letras, 1998. (N. do T.) de Isêre, Hutes-Alpes e Drôme. (N. do T.)

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JACQUES lE GOFF E NICOlAS TRUONG UMA HISTÓRIA DO CORPO NA IDADE MÉDIA

deriva da tristeza medieval, enquanto o Carnaval está do lado transportadas para Notre-Dame de Paris onde ficaram jun-
do riso e da Renascença. Essa abordagem é, no entanto, to às de Santa Genoveva.
caricatural. Por um lado, porque a Renascença enquanto tal Ora, no curso da história, São Marcelo será destronado
não existiu." Por outro, porque a oposição entre Quaresma e por um outro santo protetor: São Dionísio, em honra do qual
Carnaval já está presente na Idade Média, como prova a his- () rei Dagoberto (morto em 638) fez construir uma igreja
tória da fachada de Notre-Darne, na qual é conveniente de- abacial, a atual basílica de Saint-Denis, que se tornará a sede
ter-se." Pois essa fachada é dupla. Uma parte é devotada a do culto da monarquia dos Capetos e da ideologia nacional-
São Marcelo; a outra, a São Dionísio. francesa. Assim, o culto de São Marcelo refluiu principalmente
São Marcelo (morto em 436) deveria ter exercido o pa- em torno do século XIII, até ser completamente esquecido. E
pel de primeiro bispo da cidade de Paris, o de santo prote- seu dragão foi o objeto de uma infelicidade e de uma rein-
tor. De sua origem humilde até sua popular santidade, a terpretação que podem ser observadas na fachada de Notre-
história de sua surpreendente ascensão social e episcopal é Dame. Com efeito, o São Marcelo esculpido em 1270 na porta
contada por Venance Fortunat, seu biógrafo e hagiógrafo. de Sainte-Anne mata o dragão enterrando seu cajado na gar-
Como o recrutamento das autoridades religiosas na alta Idade ganta do animal, enquanto no milagre contado por Fortunat
Média se fazia sobretudo no seio da aristocracia, o de São o protetor de Paris não faz mais do que expulsá-lo da cidade.
Marcelo, portanto, beira o milagre. Uma série de milagres, A explicação dessa baixa, desse refluxo, liga-se inteiramente
precisamente, vai permitir a esse santo literalmente incom- à tensão entre a Quaresma e o Carnaval que atravessa a longa
parável conquistar o coração dos parisienses. O mais Idade Média. Pois o dragão merovíngio de São Marcelo tal-
determinante entre eles será o de expulsar um monstro - vez não seja o símbolo diabólico forjado pela Igreja.
uma serpente-dragão - que semeia o pânico nos arredores Com efeito, o sentido da vitória do santo sobre o dragão
de Paris, a futura capital dos Capetos, mais exatamente no - fenômeno lendário real naquilo que revela das mentalida-
vale do Biêvre, que segue o atual bulevar Saint-Marcel, lu- des coletivas - é antes social, popular, psicológico e material
gar do milagre. Diante do povo reunido, São Marcelo de do que espiritual. O santo matador de répteis vence o inimi-
fato expulsa esse animal, considerado pelos clérigos O sím- go público, não o mal evangélico. Através desse gesto, ele
bolo do diabo e de Satã, assim como o indicam os textos do veste o manto de chefe de uma comunidade urbana - não
Gênesis. Esse ato é o ápice de sua carreira taumatúrgica e seus hábitos de bispo. Ele é o caçador, não o pastor. E, mais
social. A despeito de devoções locais por outros Marcelo ainda, domador antes que matador. Pois São Marcelo não
(como pelo santo papa Marcelo, martirizado sob Maxêncio mata o animal, assim como São Jorge derruba o dragão, mas
em 309, ou por São Marcelo de Chalon), o culto de "São doma-o, passando sua estola em torno de sua nuca, como nos
Marcelo caçador de dragão" parecia portanto bem estabele- informa sua biografia. Personificação das forças fertilizantes
cido. Entre os séculos X e XII, suas relíquias chegam a ser e destrutivas da água no Egito, símbolo do sol na China, o

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UMA HISTÓRIA DO CORPO NA IDADE MtOlA
JACQUES lE GOFF E NICOlAS TRUONG

uma obra), operarius (aquele que cria) e que dará mais tarde
dragão comporta numerosas ambivalências, como demons- no francês "ouvrier", isto é, o trabalhador da era industrial.
tra seu estudo antropológico. A serpente-dragão de São Mar- Às palavras laudatórias "obra-prima" e "mestre-de-obras" se
celo aparece antes como aquela do folclore renascente. Louis oporá o pejorativo "mão-de-obra", voltado para os mecanis-
Dumont mostrou (La Tarasque, 1951) que uma domesticação mos do maquinário. Labor (a pena), o labor, o trabalho la-
semelhante de um monstro se encontra no século XV na pro- borioso, está do lado do erro e da penitência. Convém
cissão da tarasca, em Tarascon. acrescentar o termo e a noção de ars (arte), que se declina
Pois a instauração do Carnaval em Paris no século XII irá sobretudo com o de artiflex (artesão), positivo mas limitado
se fazer em torno das procissões de rogação, essas liturgias ao domínio técnico. Em sua acepção moderna, a palavra "tra-
públicas que visavam a afastar um flagelo, durante as quais o balho" só se imporá verdadeiramente em francês nos séculos
povo jovial lança frutas e doces na garganta de uma grande XVI e XVII. Sua origem provém do baixo latim tripalium, o
serpente de vime. Essa serpente é a serpente de São Marcelo, nome da máquina de três pés destinada a ferrar os animais
mas bem distante da representação clerical de Notre-Dame, indóceis, tornada a maneira corrente de designar um instru-
Trata-se de ritos folclóricos, de manifestações da cultura pagã mento de tortura.
que perduram. Essas procissões apóiam-se na lembrança de Os ofícios da Idade Média não escaparão a esse duplo
São Marcelo para evocar, diante da Quaresma, a figura movimento de valorização e desvalorização. Le livre des
contestatória da civilização: o Carnaval. Serpente de pedra métiers ["O livro dos ofícios"], que o preboste real parisiense
da Igreja contra o dragão de vime popular: o combate da Étienne Boilleau redige por volta de 1268, enumera perto de
Quaresma e do Carnaval constitui, de parte a parte, a realida- 130. Mas o tabu do sexo, do sangue e do dinheiro separa os
de e o imaginário do Ocidente medieval. ofícios autorizados das profissões ilícitas. Prostitutas, médi-
cos e comerciantes pagarão a conta da condenação dessas
O trabalho entre castigo e criação várias modalidades de corrupção. Os textos bíblicos forne-
cem inúmeros exemplos de reprovação do trabalho, embora
A tensão entre o corpo glorificado e o corpo reprimido es- com nuanças notáveis. Antes da Queda, "o senhor tomou,
tende-se a todos os domínios da vida social, como o ilustra o pois, o homem, e o colocou no paraíso da felicidade, para
lugar reservado ao trabalho manual, sucessivamente, alterna- que ele o cultivasse e o conservasse", diz o Gênesis (lI, 15).
tivamente e por vezes simultaneamente desprezado e valori- Depois o homem pecador será castigado pelo trabalho: "Tu
zado. A história lingüística da Idade Média é testemunha disso. ganharás teu pão com o suor de teu rosto" (111,17-19). As-
As duas palavras que designam o trabalho são opus e labor. sim, "o Senhor expulsou o homem do paraíso da felicidade
Opus (a obra) é o trabalho criador, o vocábulo do Gênesis para que ele trabalhasse a terra da qual havia sido criado"
que define o trabalho divino, o ato de criar o mundo e o (I1I,23), estabelecendo a partir daí um paralelo entre o traba-
homem à sua imagem. Desse termo derivará operari (criar
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JACQUES LE GOFF E NICOLAS TRUONG UMA HISTÓRIA DO CORPO NA IDADE MÉDIA

lho terrestre e o trabalho paradisíaco. Ao lado do homem ignóbil, isto é, segundo a etimologia, "não nobre". A tensão
condenado ao trabalho manual, a mulher do Gênesis dará à se manifesta entre a espiritualidade e a atividade, como teste-
luz "na dor" (III, 16-19), será condenada aos trabalhos do munha, nos textos dos Evangelhos, a figura de Maria, a
parto. Nas maternidades de hoje, pode-se observar que as contemplativa, oposta à de Marta, a trabalhadora. As ordens
salas de parto às vezes ainda são chamadas de "salas de traba- monásticas chegam até a criar um tipo de sociedade cindida
lho", sobrevivência dessa queda original cristã reinterpretada entre os monges em tempo integral, voltados para a vida es-
na época medieval. piritual, e os irmãos leigos ou convertidos, religiosos de se-
Na alta Idade Média, isto é, do século V ao XI, o trabalho gunda ordem que asseguram a subsistência do grupo através
é considerado uma penitência, uma conseqüência do pecado do trabalho manual. De resto, há sempre irmãos leigos ou
original. O mundo greco-rornano, que separa os escravos tra- convertidos nas Ordens Mendicantes de hoje em dia, verda-
balhadores e os mestres que se entregam ao otium, isto é, ao deiro desafio para numerosos franciscanos e dominicanos
lazer e ao ócio -, otium cum dignitate, ócio louvável, como contemporâneos que se entregam atualmente a essa delicada
o será, diante da voga do trabalho manual, o ócio monástico questão, a qual perpetua uma espécie de "luta de classes" no
-, pesa sobre os comportamentos da sociedade feudal, onde interior do catolicismo. Um compromisso semântico já foi
os eclesiásticos de nível superior (bispos, cônegos, abades) encontrado: o abandono do termo "lai", que é a forma medie-
são, em sua maior parte, oriundos da aristocracia. As práticas val de "leigo", em favor da expressão "monge cooperador",
dos "bárbaros" e dos grupos guerreiros que vivem na abun- considerado mais conveniente neste início de século XXI.
dância do butim subtraído das populações pilhadas influem A partir do século XI e até o século XIII, ocorre uma re-
igualmente na desvalorização social do trabalho manual, as- volução mental: o trabalho é valorizado, promovido, justifi-
sim como o primado da vida contemplativa na civilização ju- cado. Para o melhor e para o pior, aliás. De um lado, os
daico-cristã. Até o século XII, os monges são essencialmente vagabundos são expulsos ou condenados a trabalhos força-
beneditinos. De fato, a Regra de São Bento fixa a prática do dos. De outro, os ofícios vis ou ilícitos até então proibidos
trabalho manual nos mosteiros, mas apenas enquanto peni- aos clérigos e desaconselhados aos leigos são reabilitados,
tência, obediência à lei expiatória imposta ao homem quan- como aqueles que exigem derramamento de sangue, como o
do da queda do jardim do Éden. Os laboratores são os de açougueiro ou cirurgião ou ainda o de limpar a imundície,
camponeses (agricolae, rustici), os trabalhadores do campo. como os tintureiros, assim como aqueles destinados a aco-
A partir do século VIII, os termos originários da palavra la- lher os estrangeiros, a exemplo dos albergueiros, suspeitos
bor, como labores, que designam mais os frutos do trabalho igualmente de freqüentarem as prostitutas. Somente a prosti-
do que castigo, são os signos tangíveis de uma valorização do tuição, cúmulo da concupiscência, e o jogral, arquétipo de
trabalho agrícola e rural. uma prática gestual assimilada à possessão demoníaca, per-
O trabalho oscila, portanto, entre seu caráter nobre e o manecerão, em princípio, proibidas no século XIII.

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JACQUES lE GOFF E NICOlAS TRUONG

UMA HISTÓRIA DO CORPO NA IDADE MÉDIA

A Renascença do século XII, que, além do retorno aos


clássicos da Antigüidade, se funda sobre a razão e faz dos promovido e referendado, sobretudo no seio das universida-
contemporâneos "modernos" inovadores e criadores (o im- des." A divisão do trabalho prossegue, em benefício de uma
pulso escolástico que se manifestará nas universidades vem classe de proprietários que amarra o operário e o camponês à
daí), apóia-se na concepção do homem criado à imagem de terra e à ferramenta.
Deus. O homem que trabalha é concebido antes como um A resposta a essa submissão às ocupações servis se encon-
cooperador do divino, um "homem-Deus", do que como trará uma vez mais no imaginário medieval que, do país de
um pecador. Cada indivíduo, cada categoria, reivindica seu Cocanha ao Roman de Ia Rose, * ressuscitará a Idade de Ouro
estatuto de trabalhador, até o próprio São Luís, que exerce e o ideal da lassidão. Imaginário, mas também existem incli-
seu "ofício de rei": rei pacificador e rei guerreiro." Uma nações revolucionárias, quando um pregador partidário da
verdadeira moda se apodera do trabalho. A ponto de um revolta dos camponeses da Inglaterra, no século XlV, irá de-
provérbio - "o trabalho supera a proeza" - significar cla- clarar: "Quando Adão plantava e Eva fiava, onde estava o
ramente que as peripécias do valente cavaleiro que se entre- fidalgo?" Uma forma de recusar a hierarquia social e sugerir
ga ao combate e ao amor cortês vêm depois da dignidade e que a condição humana repousa no trabalho, do qual a no-
do valor do trabalho. breza se afastou. Em seu próprio proveito.
I
É nesse contexto que Francisco de Assis (c. 1181-1226),
uma das figuras mais impressionantes de uma Idade Média A dádiva das lágrimas
evocadora de modernidade, hesita entre o trabalho e a men-
dicância, considerada vergonhosa pelos leigos. Qual é a me- "Eu tinha uma bela doença que assombrou minha juventude,
lhor coisa a fazer: viver trabalhando ou mendigar recebendo mas muito própria a um historiador. Eu amava a morte. Ha-
esmolas? São Francisco opta pela mendicância porque vê nela via vivido nove anos à porta do cemitério Pêre-Lachaise, en-
uma forma de devoção superior. "Pobreza na alegria": tal será tão o meu único passeio. Depois, morava perto do Biêvre, **
seu preceito, sua palavra de ordem, seu engajamento para no meio de grandes jardins de conventos, outros sepulcros.
seguir "nu o Cristo nu"." Eu levava uma vida que o mundo poderia ter considerado
enterrada, não tendo nenhuma sociedade a não ser a do pas- I
Mas a resistência à valorização do trabalho manual se or-
I
ganiza. "Não sou um trabalhador manual [ouvrier des mains]", sado e, por amigos, os povos sepultos. Refazendo suas len-
declara o poeta Rutebeuf." O que é uma forma de retomar a
seu modo o termo "operário" [ouvrier], que se enobrecera,
recuperando em seu próprio proveito a dicotomia da antiga "Chamado de poesia didática, o Romance da Rosa destinava-se a ensinar as
regras da galanteria, na primeira parte, e o saber da época, na segunda. Gui-
hierarquia. "Eu sou um criador, não um trabalhador manual",
lherme de Lorris escreveu 4.058 octossílabos entre 1225 e 1240, e João de
é o que ele diz, em essência. O trabalho intelectual é, assim, Meung escreveu 17.722 versos entre 1275 e 1280. (N. do T.)
uRio que desemboca nos esgotos de Paris. (N. do T.)

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das, eu despertava neles mil coisas desaparecidas. Certas can- Volúpia das lágrimas por vezes concedidas a um rei desar-
ções de ninar que eu mantinha em segredo eram de efeito mado em face do que se pode qualificar de arrependimento I'

seguro. Pelo sotaque, eles acreditavam que eu era um dos seus. seco. Pois, se São Luís não chora ao longo das biografias, ele
O dom que São Luís pede e não obtém, eu a tenho: 'o dom não deixa de implorar "uma fonte de lágrimas", isto é, um
das lágrimas.'" sinal da graça divina, e não apenas aquilo que a tradição mo-
Esse belo texto é de Jules Michelet. Do historiador român- nástica considera um mérito, uma recompensa, uma sanção
tico, "ressuscitador" de mortos e cavaleiro andante, esse curto da penitência.
extrato do prefácio de 1869 que ele redige para sua MoyenÂge Como a manifestação mais ostensiva da dor e da tristeza
[Idade Média] nos fala do método, inseparável dessa "doença" humanas se tornou um valor? O operador ideológico dessa
de juventude, mas também de uma espécie de graça que ele grande guinada é, uma vez mais, o cristianismo. Como o cha-
obtém, "o dom das lágrimas". Do rei dos Capetos, ele sublinha ma o historiador Piroska Nagy em seu estudo sobre a dádiva
um fato comprovado, revela um ponto sensível, uma espécie das lágrimas, a nova religião de Estado promove uma "inversão
de calcanhar-de-aquiles: São Luís tinha dificuldade de chorar de valores pregada por Cristo"." Valorizadas no Antigo Tes-
e, no entanto, amava o pranto. Pois este era para ele o sinal do tamento - "Bem-aventurados aqueles que choram, pois ele
reconhecimento divino de sua vida de obediência e de penitên- serão consolados", diz Cristo no Sermão da Montanha -, as
cia, a prova de que ele o recompensava por sua devoção, fa- lágrimas inscrevem-se na "renúncia à carne" que ocorre du-
zendo brotar em suas maçãs do rosto a água purificadora. rante a nova história ocidental do corpo que se escreve na
Entretanto, nos diz seu confessor, Geoffroy de Beaulieu, "o rei Idade Média.
abençoado desejava maravilhosamente a graça das lágrimas e Os Padres do Deserto da Síria e do Egito são os primeiros
lamentava a seu confessor que as lágrimas lhe faltavam, e ele a fazer do pranto um dos centros da vida espiritual. Para es-
lhe dizia, bondosamente, humildemente e em particular que, ses cristãos militantes, trata-se de "reconstruir completamen-
quando se recitavam em litania estas palavras: 'Belo Senhor te a estrutura da personalidade humana, agindo diretamente
Deus, rogamos que concedeis fonte de lágrimas', o santo rei sobre os corpos"." Esse ideal ascético, lançado por Antão por
dizia devotamente: 'Senhor Deus, eu não ouso reclamar fonte volta de 270 e por outros monges eremitas dos séculos III ao
de lágrimas, bastam-me pequenas gotas de lágrimas para regar V, torna-se pouco a pouco o modelo do monaquismo medie-
a aridez de meu coração.' E algumas vezes ele admitiu em par- val. Como sublinha Piroska Nagy, "a valorização do pranto e
ticular a seu confessor que o Senhor por vezes lhe concedia o sentido das lágrimas são estreitamente ligados ao destino
algumas lágrimas na prece: quando ele as sentia escorrerem que o cristianismo atribui ao corpo. Se a exortação a chorar
suavemente sobre suas maçãs do rosto até a sua boca, ele as participa da renúncia à carne no cristianismo da Antigüidade
saboreava muito suavemente não apenas com o coração, mas tardia, é antes de tudo porque o pranto se inscreve na econo-
também com o paladar". mia dos líquidos dos corpos que o asceta deve dominar. Be-

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das, eu despertava neles mil coisas desaparecidas. Certas can- Volúpia das lágrimas por vezes concedidas a um rei desar-
ções de ninar que eu mantinha em segredo eram de efeito mado em face do que se pode qualificar de arrependimento
seguro. Pelo sotaque, eles acreditavam que eu era um dos seus. seco. Pois, se São Luís não chora ao longo das biografias, ele
O dom que São Luís pede e não obtém, eu a tenho: 'o dom não deixa de implorar "uma fonte de lágrimas", isto é, um
das lágrimas.''' sinal da graça divina, e não apenas aquilo que a tradição mo-
Esse belo texto é de Jules Michelet. Do historiador român- nástica considera um mérito, uma recompensa, uma sanção
tico, "ressuscitador" de mortos e cavaleiro andante, esse curto da penitência.
extrato do prefácio de 1869 que ele redige para sua Moyen Âge Como a manifestação mais ostensiva da dor e da tristeza
[Idade Média] nos fala do método, inseparável dessa "doença" humanas se tornou um valor? O operador ideológico dessa
de juventude, mas também de uma espécie de graça que ele grande guinada é, uma vez mais, o cristianismo. Como o cha-
obtém, "o dom das lágrimas". Do rei dos Capetos, ele sublinha ma o historiador Piroska Nagy em seu estudo sobre a dádiva
um fato comprovado, revela um ponto sensível, uma espécie das lágrimas, a nova religião de Estado promove uma "inversão
de calcanhar-de-aquiles: São Luís tinha dificuldade de chorar de valores pregada por Cristo"." Valorizadas no Antigo Tes-
e, no entanto, amava o pranto. Pois este era para ele o sinal do tamento - "Bem-aventurados aqueles que choram, pois ele
reconhecimento divino de sua vida de obediência e de penitên- serão consolados", diz Cristo no Sermão da Montanha -, as
cia, a prova de que ele o recompensava por sua devoção, fa- lágrimas inscrevem-se na "renúncia à carne" que ocorre du-
zendo brotar em suas maçãs do rosto a água purificadora. rante a nova história ocidental do corpo que se escreve na
Entretanto, nos diz seu confessor, Geoffroy de Beaulieu, "o rei Idade Média.
abençoado desejava maravilhosamente a graça das lágrimas e Os Padres do Deserto da Síria e do Egito são os primeiros
lamentava a seu confessor que as lágrimas lhe faltavam, e ele a fazer do pranto um dos centros da vida espiritual. Para es-
lhe dizia, bondosamente, humildemente e em particular que, ses cristãos militantes, trata-se de "reconstruir completamen-
quando se recitavam em litania estas palavras: 'Belo Senhor te a estrutura da personalidade humana, agindo diretamente
Deus, rogamos que concedeis fonte de lágrimas', o santo rei sobre os corpos"." Esse ideal ascético, lançado por Antão por
dizia devotamente: 'Senhor Deus, eu não ouso reclamar fonte volta de 270 e por outros monges eremitas dos séculos 11Iao
de lágrimas, bastam-me pequenas gotas de lágrimas para regar V,torna-se pouco a pouco o modelo do monaquismo medie-
a aridez de meu coração.' E algumas vezes ele admitiu em par- val. Como sublinha Piroska Nagy, "a valorização do pranto e
ticular a seu confessor que o Senhor por vezes lhe concedia o sentido das lágrimas são estreitamente ligados ao destino
algumas lágrimas na prece: quando ele as sentia escorrerem que o cristianismo atribui ao corpo. Se a exortação a chorar
suavemente sobre suas maçãs do rosto até a sua boca, ele as participa da renúncia à carne no cristianismo da Antigüidade
saboreava muito suavemente não apenas com o coração, mas tardia, é antes de tudo porque o pranto se inscreve na econo-
também com o paladar". mia dos líquidos dos corpos que o asceta deve dominar. Be-

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UMA HISTÓRIA DO CORPO NA IDADE MÉDIA
JACQUES lE GOFF E NICOlAS TRUONG

ber pOUCOreduz a quantidade de líquidos presentes no corpo Das lágrimas de Cristo aos prantos proféticos de João, o
e, portanto, a incitação ao pecado; do mesmo modo, chorar Novo Testamento fornece uma matéria importante para con-
expele esses líquidos e evita assim seu US0 pecaminoso pelos ferir às lágrimas uma positividade que a Igreja irá explorar
corpos na sexualidade". amplamente. A dádiva das lágrimas tornar-se-á mesmo um
Mas as lágrimas vão adquirir outro sentido no meio mo- critério de santidade a partir do século XI. Mérito ou dádiva,
nástico da reforma gregoriana. A tensão entre a recusa do virtude ou graça, habitus (isto é, segundo Tomás de Aquino,
corpo e a encarnação irá fazer oscilar o significado das lágri- uma "disposição habitual") ou carisma, os homens piedosos
mas em prol de uma certa corporeidade. As lágrimas irão se estão em busca de lágrimas.
tornar o sinal da imitação, da encarnação de Cristo no ho- Entretanto, isso não é verdade para a alta Idade Média-
mem. Jesus chora por três vezes na Bíblia. A primeira vez foi a despeito da regra de São Bento, que prescreve os prantos
pela morte de seu amigo Lázaro. Antes mesmo de ressuscitá- penitenciais -, que de modo algum se volta para a dádiva
10, perturbado por sua emoção, pela de Marta, de sua irmã das lágrimas. Uma situação que se explica "pelo grau de
Maria e a do povo judeu reunido em lágrimas, "Jesus então cristianizaçâo à época: a preocupação principal era mais a cris-
chorou" aoão, 11, 35). A segunda vez foi quando ele entrou tianização exterior, ritual e coletiva, do que a introspecção, à
em Jerusalém e lamentou a sorte dessa cidade fadada à des- qual mesmo seus especialistas, os monges, só irão dar aten-
truição. "Quando ele se aproximou da cidade e a percebeu, ção pouco a pOUCO".33
chorou por ela. Ele dizia: 'Se tu também tivesses sabido, nes- A guinada se dará por volta do ano 1000, com os refor-
se dia, como encontrar a paz ... ! Mas, infelizmente, isso foi madores do monaquismo, como Pedro Damião (1007-1072),
escondido de teus olhos!'" - pode-se ler no Evangelho de monge eremita e depois bispo de Óstia, e João de Fécamp
Lucas. O outro momento em que Cristo chora ocorre às vés- (morto em 1078). Este último, por exemplo, escreverá em
peras da crucificação, no monte das Oliveiras, quando está sua Oração pela graça das lágrimas, uma invocação inteira-
fazendo suas orações. Esse episódio é particularmente impres- mente espiritual cuja ambivalência dos aspectos corporais, para
sionante, pois Cristo chora por si mesmo (Hebreus, 5, 7). não dizer sexuais, não deixará o leitor moderno indiferente:
Trata-se, de algum modo, de um momento de "depressão" ao "Doce Cristo, bom Jesus, assim como te desejo, assim como
longo do qual Jesus chora por sua própria Paixão, pensando oro para ti com todo meu espírito, dá-me teu amor santo e
que pode ser abandonado por seu pai. O Evangelho de Lucas casto, que ele me preencha, me tenha, me possua inteiramente.
apresenta outra versão, na qual Cristo, "tomado de angústia, E me dê o sinal evidente de teu amor, a fonte abundante das
[... ] orava mais intensamente, e seu suor se tornou como coá- lágrimas que escorrem continuamente, e desse modo essas
gulos de sangue que caíam sobre a terra" (22,44). A simbologia mesmas lágrimas darão prova de teu amor por mim."
dos líquidos corporais é, uma vez mais, impressionante. E o Evitemos, contudo, psicanalisar apressadamente tais pro-
corpo torna-se o veículo entre o divino e o humano. postas, de tal modo as categorias mentais da Idade Média são

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irredutíveis a suas gangas históricas, a suas inscrições simbó- são uma dádiva. São Luís em vão as pedia a Deus. O próprio
licas. A certeza é que as lágrimas são percebidas como uma Michelet conheceu o poder germinador das lágrimas; não
espécie de fecundidade de origem divina. Elas possuem, como lágrimas mentais, lágrimas de metáfora, mas lágrimas de água
diz Roland Barthes, um "poder germinador" de que Michelet c sal, que vêm aos olhos, à boca, ao rosto ..." Entretanto, as
será dotado. Dádiva das lágrimas da graça são, assim, estima- lágrimas da Idade Média não são apenas espirituais: elas per-
das e premiadas. Igualmente em relação às lágrimas de prece mitem a Deus passar pelo corpo, elas oferecem a possibilida-
e penitência. "ls qui luget": na Idade Média o monge se defi- de, embora caprichosa e aleatória, de mobilizar o corpo para
ne, portanto, como "aquele que chora". E "aquele que não atingir o divino. ''Alegria, lágrimas de alegria", escreverá Pascal
pode chorar seus pecados não é um monge", responde uma no século XVII. "Pobreza na alegria", repete, no século XIII,
santa mulher ao monge Walter, que deseja adquirir junto dela São Francisco, e Chiara Frugoni pôde chamar São Francisco
a graça das lágrimas. de "o santo que sabia rir". O riso franciscano é uma exceção.
Assim, Michelet tem razão quando escreve que, com as Pois o riso na Idade Média é banido, desterrado, deixado para
lágrimas, "eis todo o mistério da Idade Média". E de ver ne- mais tarde. Ele está do lado do demônio. É da parte do Diabo.
las uma característica maior do período gótico: "uma lágri-
ma, uma só, lançada sobre os fundamentos da Igreja gótica, Levar o riso a sério
basta para evocá-Ia", escreverá igualmente. Pois as lágrimas
não inundam apenas os corpos dos mais devotos e dos santos "O riso é próprio do homem." Essa definição de Aristóteles
tocados pela graça de Deus, "elas escorrem em límpidas len- - autor tão célebre e tão celebrado na Idade Média, sobretu-
das, em maravilhosos poemas e, acumulando-se em direção do a partir dos séculos XII e XIII, a ponto de ser tratado de
ao céu, cristalizaram-se em gigantescas catedrais que querem "o Filósofo", apesar das reticências da Igreja - não será sufi-
elevar-se ao Senhor!". Em 1919, o historiador Johan Huizinga, ciente para resgatar o riso do opróbrio em que foi lançado
prefigurando a história das sensibilidades que estava por vir, pelo menos até o século XII.
não estava enganado ao evocar "essa receptividade, essa faci- Na Idade Média, não é preciso buscar na espécie as cau-
lidade de emoções, essa propensão às lágrimas" próprias da sas da reprovação do riso, mas no espaço. Pois o corpo não
Idade Média, que ele atribui, talvez muito rapidamente, ao escapa a uma visão do espaço dividido entre o alto e o baixo,
"amargor do gosto" e à "violência da cor que tinha a vida a cabeça e o ventre. Corrigindo a tradição filosófica antiga, a
naquele tempo"." E Roland Barthes, como refinado farejador Idade Média repousa, na realidade, mais sobre a oposição
dos sentimentos e dos sedimentos históricos e biográficos, entre o alto e o baixo, o interior e o exterior, do que sobre a
não está equivocado quando interpreta a importância em divisão entre a esquerda e a direita, a despeito do fato de que
Michelet da dádiva das lágrimas recusada a São Luís. "Outro Cristo, no fim dos tempos, fará com que os justos se sentem à
meio de incubação: as lágrimas"," escreve ele. ''As lágrimas sua direita. O gesto de Clemente de Alexandria (morto por

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volta de 215), que, em um texto pioneiro e fundador, O mendava aos monges um uso moderado e temperado da
pedagogo, afasta os estímulos ao riso, lembra aquele de Platão, hilaridade, insistiu bastante nesse fato. "O Senhor, ensina-
que, emA República, joga o poeta para fora da cidade. Pois o nos o Evangelho, tomou para si todas as paixões corporais
riso conduz às ações "baixas". O corpo é separado entre as inseparáveis da natureza humana, como afadiga", escreve
partes nobres (a cabeça, o coração) e ignóbeis (o ventre, as ele nas Grandes regras que redige entre 357 e 358. "Ele se
mãos, o sexo). Ele dispõe de filtros que podem servir para imbuiu dos sentimentos que dão testemunho da virtude de
distinguir o bem do mal: olhos, orelhas e boca. uma pessoa - por exemplo, manifestou piedade pelos afli-
A cabeça está do lado do espírito; o ventre, do lado da tos. Todavia, e as narrativas evangélicas o atestam, ele jamais
carne. Ora, o riso vem do ventre, isto é, de uma parte má do cedeu ao riso. Ao contrário, proclamou infelizes aqueles que
corpo. Hoje ainda, aliás, o riso licencioso, o riso vulgar, é se deixam dominar pelo riso." A questão não é anedótica. No
chamado "abaixo da cintura". A Regra do mestre, na qual se século XIII, a Universidade de Paris reservará a essa questão
inspirou São Benedito no século VI, é aqui muito clara: o riso uma de suas sessões de discussão abertas ao grande público,
caminha através do corpo desde suas partes baixas, passando chamadas "quodlibet", na qual os partidários da definição do
do peito para a boca. Desta última também podem sair tanto Filósofo - "o riso é próprio do homem" - se opõem à ati-
falas de devoção, de piedade e de prece quanto falas desco- tude que a vida de Cristo - que jamais ri - parece induzir.
medidas e blasfemas. A boca é, na Regra do mestre, um "fer- Mas, em face da ameaça do riso que rompe a humildade do
rolho"; os dentes, uma barreira que deve conter a torrente de silêncio (taciturnitas) da vida monástica, a Regra do mestre
insanidades que podem ser veiculadas pelo riso. Pois o riso é será aplicada a partir do século VI.
uma "desonra da boca". O corpo deve ser aqui um escudo Outras regras se seguirão, por vezes com mais nuanças.
diante dessa caverna do Diabo. "O monge raramente deve rir", diz a regra de São Ferréolo
O historiador John Morreall tem razão: é preciso levar o de Uzês, A de [São] Colombano (morto em 615) estipula que,
riso a sério." Pois o riso nasce do corpo e diz muito sobre o "aquele que rir escondido na assembléia, isto é, no ofício,
lugar que o Ocidente medieval lhe atribui. E sua recusa, se- será punido com seis chibatadas. Se gargalhar, ele jejuará, a
guida de sua integração progressiva através do processo de menos que o tenha feito de maneira perdoável". A Regra do
civilização que ocorre no Ocidente, segue os mesmos cami- mestre inscreve a repressão do riso, por muito tempo, em
nhos cronológicos e simbólicos do sonho. Assim, em um pri- uma antropologia e uma fisiologia cristãs: "O instrumento
meiro momento, dos séculos IV ao X aproximadamente, o do gênero humano é nosso pobre pequeno corpo", diz o
riso é abafado. mestre. Resta a esse "pequeno corpo" a possibilidade de fe-
As raízes dessa desvalorização são numerosas. Em primeiro char a porta da boca ao riso diabólico sobre o qual o clero se
lugar, se Cristo chora por três vezes no Novo Testamento, ele concentra. "Quanto às bufonarias, às falas ociosas que levam
não ri. São Basílio, grande legislador grego cristão, que reco- ao riso, nós as condenamos à reclusão perpétua e não permi-

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timos ao discípulo abrir a boca para tais propósitos", prosse- O contraponto ao riso abafado reside já na prática, atra-
gue ele. A Regra de São Bento sublinha o risco de romper o vés dos "jogos de monges" (joca monacorum), esses diverti-
silêncio, de estorvar a humildade do monge, que é um dos mentos escritos na Bíblia que circulam nos mosteiros. Os
fundamentos dos pais do monaquismo. senhores feudais, de resto, nada ficam a dever ao gab, que
Mas, perto do século XII, o riso será pouco a pouco rea- lembra as histórias marselhesas, nas quais os cavaleiros exa-
bilitado, porque mais controlado. Tomás de Aquino segue os geram suas proezas guerreiras. São Luís será mesmo um rei
passos de seu mestre, Alberto Magno que considerava que o risonho, um rei engraçado (rex facetus), como o havia sido
riso terrestre era uma prefiguração da felicidade paradisíaca, Henrique 11, da Inglaterra, cerca de um século antes, diz
e atribui um estatuto teológico positivo ao riso. Sobretudo joinville. Se se ri melhor em língua vernácula, é em parte
porque a Bíblia também fornece razões tanto para recomendá- porque o latim irá entrar em declínio a partir do século XIII.
10 quanto para condená-Io. Uma alternativa que se enraíza Assim, como diz Mikhail Bakhtin, uma "cultura do riso" ins-
nas duas espécies de riso que a língua hebraica admite. A pri- tala-se nas cidades, nas quais o homem medieval "sente a con-
meira é o sâkhaq, o riso alegre; o segundo, o lâag, o riso da tinuidade da vida na praça pública, misturado à multidão
zombaria. durante o Carnaval, onde seu corpo está em contato com o
O Antigo Testamento conta que Sara, companheira do de pessoas de todas as idades e de todas as condições". Antes
velho Abraão, pôs-se a rir quando Deus anunciou-lhe que ela dos períodos de jejum, o riso atravessava os dias alegres das
e seu marido iam ter um filho. Esse anúncio, feito a uma festas populares, festas dos Loucos, festa do Asno e outros
mulher idosa, de oitenta e seis anos, e a um homem centená- carnavais e confusões. Uma "libertação do riso e do corpo"
rio, provocou sua hilaridade. No nascimento do filho prome- que "contrastava brutalmente com o jejum passado ou imi-
tido, um nome lhe será dado: Isaac, que significa "riso", nente", prossegue Bakhtin. A literatura testemunha essa libe-
segundo um vocábulo herdado do termo sâkhaq, isto é, do ração, a exaltação desse "corpo grotesco". O riso de Rabelais
riso alegre e não zombeteiro. Personagem inteiramente posi- no século XVI é, ainda que isso desagrade aos glorificadores
tivo, Isaac é uma figura bíblica que permite a reabilitação do da Renascença, um riso medieval.
riso. Assim, o riso pode ser percebido como o atributo dos
eleitos, ser considerado um estado a que o homem deve se Os sonhos sob vigilância
dedicar e aspirar. Mais do que reprirni-lo, a Igreja, distancian-
do-se da pressão monástica, irá controlar o riso. E separar o Na Antigüidade, a interpretação dos sonhos era uma prática
bom do mau, o divino do diabólico. O riso lícito, o riso dos corrente. Nas feiras, nos mercados, adivinhos populares exer-
sábios, é o sorriso, do qual se pode dizer que foi uma inven- cem seu ofício, interpretam os sonhos dos cidadãos por uma
ção da Idade Média, mas que se pode considerar igualmente soma módica, um pouco à moda de nossas adivinhas do des-
em sua singularidade, ou como um simples riso mitigado. tino e outras cartomantes. Em suas casas ou em um templo,

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intérpretes de ofício davam aos homens da Cidade, como rá, com Ernest jones," psicanalista e biógrafo de Freud, o
verdadeiras especialistas, as chaves das significações de seus pesadelo. O segundo é o uisum, forma de fantasma, de vaga-
sonhos. Os oniromantes talvez não fossem tão estimados quan- bundagem onírica ilusória. São "falsos" sonhos, para reto-
to os agoureiros e os arúspices, esses padres que lêem nas mar as categorias de Homero e Virgílio. Os três outros
entranhas das vítimas ou no vôo das asas e são ouvidos e anunciam o futuro. De modo velado para o sonho enigmáti-
consultados com mais freqüência. co que é o somnium; de maneira segura para o profético uisio;
Aparições, sombras ou fantasmas, os sonhos do paganis- por intermédio dos pais, dos sacerdotes ou mesmo da divin-
mo grego ou romano provêm do mundo dos mortos. Os "fal- dade, que previnem claramente a pessoa adormecida de um
sos" e "verdadeiros" sonhos são cuidadosamente separados, acontecimento que está para ocorrer, no sonho oracular
como em Homero, na Odisséia, onde Penélope percebe as (oraculum).
duas portas do sonho, uma de marfim, de onde saem os so- Na época em que as interpretações pagãs e cristãs se
nhos enganadores, outra de chifre, de onde emanam os so- interpenetravam, isto é, do século II ao IV, os homens osci-
nhos que se realizam. Ou em Virgílio, que, na Eneida e na lam entre o interesse manifesto (sonhos de conversão, de con-
esteira de Homero, distingue sonhos enganadores e sonhos tato com Deus ou de martírio), a inquietude patente e a
anunciadores. Numerosas teorias oscilam entre valorização e incerteza. Um "semi-herético", Tertuliano, propõe entre 210
desqualificação. Pitágoras, Demócrito e Platão acreditam em e 213 o primeiro Tratado sobre os sonhos do Ocidente cris-
sua veracidade. Diógenes e Aristóteles desvalorizam-nos e tão. Fiel às interrogações de seu tempo, esta no man's /and
aconselham a incredulidade a seu respeito. Tipologias estabe- em que se encontram uma alma e um corpo perdido entre o
lecem-se, como a de Cícero, que, em De divinatione (I, 64), sono e a morte o inquieta. Mas ele recusa fazer disso algo
distingue três fontes do sonho: o homem, os espíritos imor- próprio do homem. Pois o sonho é para ele um fenômeno
tais e os deuses. humano universal de que não escapam nem as crianças nem
Os Anciãos classificavam-nos igualmente de acordo com os bárbaros: "Quem poderia ser tão estranho à condição hu-
sua natureza e estabeleciam uma hierarquia entre os sonha- mana para não ter percebido uma vez uma visão fiel?", per-
dores. É no fim do século IV que Macróbio (c. de 360-422) gunta-se em seu De anima. Tertuliano elabora em seguida uma
fornece à cultura pagã seu tratado dos sonhos mais acabado. tipologia dos sonhos que classifica segundo a origem: os de-
Em seu Comentário ao sonho de Cipião, o polígrafo e mônios, Deus, a alma e o corpo. Os sonhos que se produzem
enciclopedista, membro de um grupo de vulgarizadores da ao final do sono são ligados, segundo ele, à posição da pessoa
ciência e da filosofia antigas, distingue cinco categorias de adormecida assim como à sua alimentação. Uma vida sóbria
sonhos: somnium, oisio, oraculum, imsomnium e uisurn, Dois favorece os sonhos de êxtase.
dentre eles não têm "nenhuma utilidade nem significação". Quando o cristianismo se impõe como a ideologia domi-
O primeiro é o insomnium, o sono perturbado, que se torna- nante, a partir do século IV, a questão do sonho, um dos fe-

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nômenos mais enigmáticos da humanidade, não pode ser evi- Agostinho - embora ator do primeiro sonho de conversão,
tada pela religião no poder. A herança da cultura pagã inquieta no célebre episódio do sonho do jardim de Milão - será
e angustia antes de tudo. Pois não há mais bons ou maus de- uma das figuras incontestes. Com certeza, na prática, o povo
mônios, como na época greco-romana. Somente anjos e de- recorreu aos intérpretes, mágicos - e charlatães, o mais das
mônios, isto é, de um lado a milícia de Deus, de outro a malícia vezes - a fim de dar sentido a esse desregramento sensorial.
do Diabo. E é Satã em pessoa que, no mais das vezes, envia Mas a noite dos sonhos vigiados abate-se sobre o Ocidente
aos homens essas "poluções noturnas", interferindo assim por muito tempo. O francês medieval, que brinca com a vizi-
entre Deus e a humanidade, colocando em curto-circuito o nhança de "sonho" (songe) e "mentira" (mensonge), reflete
intermediário eclesiástico. lndissociavelmente ligado ao cor- essa suspeição.
po, o sonho vai ser colocado do lado do Diabo pelo cristia- Condenação moral, mas também distinção social. Pois a
nismo triunfante. igualdade em face do sonho não existe. Apenas uma elite tem
Outro motivo de descrédito: com a religião de Cristo ins- o "direito" de sonhar: os reis e os santos, depois, a rigor, os
tituída, o futuro não pertence aos homens ávidos de conhe- monges. No Antigo Testamento, onde se sonha muito mais
cer seus desdobramentos, como no tempo do paganismo, mas do que no Novo, o faraó sabe num sonho que deve deixar
a Deus, o único a saber: "Que aqueles que observam os augú- partir os judeus se quiser desvencilhar-se das sete pragas do
rios ou os auspícios ou os sonhos ou todo tipo de adivinha- Egito. Constantino e Teodósio, o Grande, os dois fundadores
ção, segundo o hábito dos pagãos, ou que introduzem em da cristandade, frustram as linhas de seus inimigos por meio
suas casas homens que conduzem investigações através da arte da interpretação dos sonhos. "Com esse sinal tu vencerás",
da magia ... que eles se confessem e façam penitência durante ouve Constantino antes de entregar-se à batalha em Maxência,
cinco anos", impõe um cânone do primeiro concílio de na ponte de Milvius, enquanto vê no céu a cruz de Cristo e
Ancira, * em 314. A diabolização do sonho é uma resposta sonha à noite que Deus lhe ordena que faça representar a
hábil a uma cultura pagã das interpretações das verdades ocul- cruz no alto de um estandarte. Da mesma maneira, o Carlos
tas no além, que deve se realizar, no presente, através da me- Magno de La Chanson de Roland sonha de maneira profética
diação e do controle das autoridades eclesiásticas. por quatro vezes, que também é o número de momentos de-
O sexo, enfim, constitui um dos motivos de suspeição mais cisivos. Sonhos reais, mas também sonhos de santos, são ele-
importantes da Igreja no que diz respeito ao sonho. À noite, a vados ao nível divino. Toda a vida de São Martinho é, segundo
carne desperta, palpita, aguilhoa o corpo luxuriante. Tenta- seus hagiógrafos, ritmada pelos sonhos. O primeiro será o da
ções de que Santo Antão será uma vítima exemplar e triun- conversão. Na noite que se segue à partilha de metade de seu
fante. E mal-estar geral diante dos sonhos, de que Santo manto com um pobre, Cristo lhe aparece: "O que fizeste a
um dos mais humildes foi a mim que fizeste", ele lhe diz. O
•Atual Ancara. (N. do T.) segundo é o marco de sua ação de missionário. Outro, conta-

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UMA HISTÓRIA DO CORPO NA IDADE M~DIA

do por Sulpício Severo, será o anúncio de sua morte a fim de


que ele possa se preparar para ela. Os santos e, logo, os mon- recusa em sua retórica, porém, a corporeidade do sonho e,
ges, esses heróis que buscam imitá-Ias, beneficiam-se assim por vezes, até o onirismo. Jean-Claude Schmitt demonstrou
de sonhos cheios de significados. Mas, para o resto da huma- bem a origem dessa "recusa do sonho" que figura em certos
nidade, o sonho é desaconselhado. textos: "Seria preciso que Hildegarde, porque era uma mu-
Sonhos vigiados e corpos controlados: os homens devem lher, dissesse e mostrasse em imagens que ela não havia so-
abster-se de beber demais, pois a embriaguez favorece as vi- nhado, de modo que suas falas, ainda que ela fosse uma
sões pecaminosas. Clérigos e leigos devem igualmente evitar mulher, pudessem ser recebidas como autênticas. "38
ingerir alimentos demais, pois a indigestão alimenta as tenta- A nova interpretação dos sonhos também se liga à teoria
ções. A forma corporal da tentação é a visão, um dos cinco dos humores e à fisiologia dos sonhadores. Contra os "fan-
sentidos mais essenciais na Idade Média, pois um sonho é um tasmas diabólicos", Hildegarde de Bingen aconselha aos so-
ato, uma narrativa em que se vê. De resto, a doutrina cristã nhadores "envolverem o corpo do paciente, em forma de cruz,
distingue a categoria inferior dos "sonhos", designados pelo com uma pele de alce e uma pele de cabrito, pronunciando
substantivo somnium, que provém da raiz latina sommus exorcismos que expulsarão os demônios e reforçarão as defe-
(sono), das nobres "visões" (visiones) que deixam entrever sas do homem"." Sonho e medicina, psicofisiologia e psico-
uma verdade escondida, no estado de vigília ou de sono. O patologia estão, desse modo, imbricados. "Mesmo os sonhos
francês medieval conhece apenas a palavra "songe", à qual se que parecem ilusórios ensinam muito ao homem sobre seu
acrescentará a palavra "rêue" a partir do século XVII. estado futuro", propõe Pascoal, o Romano, em seu Livro do
Uma reviravolta decisiva se dá a partir do século XII, quan- tesouro escondido, que testemunha a reviravolta do cristia-
do ocorre uma democratização dos sonhos. Revolução urba- nismo no que diz respeito à interpretação dos sonhos. A Ida-
na e reforma gregoriana enfraquecem o isolamento e o de Média renascente reata com o sonho, provavelmente sob
prestígio monásticos. Os sonhos escapam do espaço fechado a influência da cultura e da ciência antigas transmitidas pelos
do claustro, se dessacralizam, tornam-se um fenômeno hu- bizantinos, os judeus e os árabes. "Os homens cujos sonhos
mano. Os sonhos ganham corpo e oscilam entre a psicanálise são verdadeiros são sobretudo aqueles de uma constituição
e a medicina. Um renascimento que é acompanhado de teorias temperada", diz, por exemplo, o filósofo árabe Averroé, re-
e interpretações novas. tomado em língua latina. Uma mestiçagem de que é testemu-
Ao mesmo tempo freira visionária e médica, Hildegarde nha a floração dos "chaves dos sonhos" que vêm do Oriente.
de Bingen indica, em seu tratado intitulado Causae et curae Um renascimento em que a literatura será agente e teste-
que o sonho é um atributo normal do "homem de bom hu- munha. Assim, Le Roman de Ia Rase, de Guilherme de Lorris
mor". Portadora de uma concepção do homem e da mulher e João de Meung," bestseller incontestável da Idade Média, é
na qual o espírito não está separado do corpo, a abadessa um romance onírico que se desenrola na primeira pessoa:
"Em meu vigésimo ano de vida, nessa época em que o amor
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reclama aos jovens seu tributo, eu havia me deitado uma noi- elas contam que os terceiros filhos têm essa faculdade de fa-
te como de costume e dormia profundamente quando tive zer isso três vezes por semana; essas feiticeiras se lançam em
um sonho muito bonito e que me agradou bastante, mas nes- todas as casas, não temem nem as chaves nem as trancas e
se sonho não havia nada que os fatos confirmassem ponto entram por fendas, buracos nas portas e através de casas e
por ponto. Quero contar-vos para vos alegrar o coração ..." locais ermos, e o provam dizendo que as estranhezas a que
Trata-se de um artifício literário, mas significativo de uma assistiram não lhes ocorreram em seus leitos, mas são suas
mudança de tom, de estatuto e de concepção. almas que agem e correm assim pelo mundo. E fazem crer às
A autobiografia onírica, que aparece na Antigüidade e no pessoas que, se durante essa viagem noturna virarem os cor-
mundo cristão nascente com as Confissões de Santo Agosti- pos para o outro lado, as almas não teriam como entrar de
nho, desabrocha na Idade Média através de várias narrativas, volta nos corpos. Mas isso é uma loucura horrível e uma coi-
como aquelas das conversões do monge Otloh de Saint- sa impossível, pois o corpo humano é apenas um cadáver
Emmeran (c. de 1010-1070) e do jovem oblato Guibert de quando não carrega mais dentro de si uma alma."
Nogent (c. de 1055-1125). Ou ainda nos sonhos de O Ocidente medieval retoma o onirismo do paganismo,
Helmbrecht pai, esse camponês modelo da literatura alemã modernizando-o e codificando-o. Instaura-se, pouco a pou-
do século XIII, que tenta colocar seu filho delinqüente no co, um gestual onírico. Na maior parte das imagens medie-
bom caminho por meio de quatro sonhos "alegóricos" (isto vais, o sonhador se encontra deitado em um leito, sobre o
é, enigmáticos, mas sem que se lance mão de uma interpreta- lado direito, o braço direito sob a cabeça. Postura do corpo
ção sábia) ou "teoremáticos" (que fazem ver diretamente aqui- dominado contra imposturas do corpo desenfreado: o ges-
lo que anunciam)." A introspecção onírica se estende, a to do sonhador é cuidadosamente codificado pelo imaginá-
"subjetividade literária?" se afirma e o sujeito humano ob- rio medieval, que exprime a expectativa da intervenção
tém reconhecimento. divina. Se as representações e as autobiografias dos sonha-
A nova atração pelo sonho não significa, contudo, o fim dores são freqüentes, será preciso, contudo, aguardar o sé-
de um corpo concebido como o receptáculo da alma. E o culo XVI e a aquarela de Albrecht Dürer (1525) para que
Roman de Ia Rase pode ser lido igualmente como uma pre- apareça uma imagem onírica, aquela de um pesadelo em que
venção contra a alma errante que deixa o corpo adormecido: o pintor vê um dilúvio abater-se sobre sua região. "Quando
"É assim que várias pessoas, em suas loucuras, acreditam ser a primeira tromba-d'água caindo sobre o solo se aproximou,
estries [feiticeiras] errando pela noite com a Dama Abúndia;" ela se precipitou com uma tal rapidez, com um tal mugido,
levantando uma tal borrasca, que fiquei aterrorizado, e, ao
despertar, todo o meu corpo tremia e levei muito tempo
'Rainha de um grupo de fadas muito recorrente no imaginário medieval,
entra à noite nas casas para banquetear-se e puxar as crinas dos cavalos, Ela
para me recompor. Levantando-me de manhã, eu pintei tal
figura, por exemplo, no Roman de Ia Rase. (N. do T.) como vira o que está acima [sobre a tela]. Em cada coisa,

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Deus é perfeito", ele observa embaixo de seu desenho. Ain-


da que humanizado e racionalizado entre os séculos XII e
XIII, o sonho é um Graal, onde Deus permanece a finalida-
de. Ele será decisivo, de resto, na invenção do purgatório,
intermediário entre o inferno e o paraíso, esse terceiro lu-
gar inventado pelo cristianismo na segunda metade do sécu-
lo XII, no qual uma visão arrebata os fiéis.

2. Viver e morrer na Idade Média

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o que é viver e morrer na Idade Média? É certamente difícil
dar uma resposta única e unívoca a essa questão, mesmo que
a história das mentalidades e a antropologia histórica venham
se aventurando nos territórios do corpo e da vida cotidiana
medievais. A maneira de "viver sua vida" modelada pelo es-
tado social e as proibições religiosas variavam no espaço da
cristandade e evoluíram durante a longa Idade Média, mes-
mo se nos detivermos no século xv.
De um lado há o "amargo sabor da vida", de que falava o
livro singular e precursor de Johan Huizinga, Eautomne du
Moyen Âge [O outono da Idade Média]. "Quando o mundo
era cinco séculos mais jovem que hoje", escrevia Huizinga
em 1919, "os acontecimentos da vida se destacavam com os
contornos bem definidos. Da adversidade à felicidade, a dis-
tância parecia grande. Toda experiência tinha ainda esse grau
do imediato e do absoluto que têm o prazer e a dor no espíri-
to de uma criança." Para esse historiador, que não utiliza a
palavra "outono" ao acaso, a vida das mulheres e dos ho-
mens do século XV assemelhava-se a essa estação em que se
exacerbam e se exasperam todas as fecundidades e todas as
contradições da natureza. Como escrevia no século XVI o
poeta Agrippa d' Aubigné, "uma rosa de outono é, mais do
que qualquer outra, refinada". Assim, "contra a adversidade

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e a indigência", prossegue Huizinga, "havia menos atenua- o CAMINHO DA VIDA

ção do que hoje; elas eram mais temíveis e mais cruéis. A


doença e a saúde apresentavam um contraste maior; o frio e A resposta do cristianismo à persistência e à resistência do cor-
as trevas do inverno eram males sentidos de forma mais dura. po, sobretudo através das práticas populares, consistirá, portan-
Usufruía-se mais avidamente da riqueza e das honras, pois to, em civilizar, em enquadrar suas irredutíveis manifestações.
elas contrastavam, mais ainda do que em nossos dias, com a Na impossibilidade de controlá-Io, de domá-Io completamente,
miséria circundante". a Igreja busca codificá-Ia. Dominar a vida e a morte.
Por outro lado, e para não dar apenas um exemplo, há a Mas de que vida falamos? E de qual duração? Nesse pon-
posição do historiador Philippe Ariês sobre a morte na Idade to, as pesquisas históricas desenvolvem-se, reforçadas sobre-
Média, que ele considera menos áspera, menos dura e mais maneira pela investigação arqueológica. As escavações nos
doce do que hoje em dia. ''Assim'', escreve ele em seus Essais cemitérios ainda encontram dificuldades para determinar a
sur l'bistoire de Ia mort en Occident [Ensaios sobre a história expectativa de vida dos homens da Idade Média, mas permi-
da morte no Ocidente] (1975), "morre-se há séculos ou milê- tem considerar que a mortalidade infantil era muito impor-
nios. Em um mundo submetido à mudança, a atitude tradicio- tante. Entretanto, a diminuição de cáries dentárias, por
nal diante da morte aparece como uma massa de inércia e de exemplo, é testemunha de um progresso da alimentação e do
continuidade. A atitude antiga, na qual a morte é ao mesmo saber dietético dos homens daquele tempo, que atribuem uma
tempo familiar, próxima e atenuada, indiferente, opõe-se à nova importância a seus corpos.
nossa, onde a morte assusta a tal ponto que não ousamos O método mais grosseiro para determinar a expectativa de
dizer seu nome." Essa "morte domesticada", de que fala Ariês, vida consistiria em reler o início de A Divina Comédia. No iní-
parece opor-se à aspereza da vida dos homens da Idade Mé- cio desse texto, Dante escreve: "No meio do caminho de minha
dia em seu período final, de Huizinga. vida ... " E o poeta tinha trinta e três anos naquele momento. Mas
Seria muito cômodo dizer que a verdade se situa entre nada de científico pode ser deduzido desses versos. Dante sem
essas duas concepções, voluntariamente reduzidas aqui a suas dúvida escreveu isso porque se trata da idade de Cristo no mo-
caricaturas. Digamos simplesmente que, através do exame da mento de sua crucificação. Com freqüência, os historiadores com
velhice, tomada entre o prestígio da idade e a malignidade formação em demografia estimam que a esperança de vida se
das "velhinhas" ridicularizadas em numerosos textos medie- situava, em média, entre trinta e cinco e quarenta anos.
vais, através da atitude em relação ao doente, ao mesmo tempo
rejeitado e eleito, ou ainda do corpo dos mortos, atormenta- As idades da vida
dos ou gloriosos, é ainda a tensão, que atravessa o corpo de
parte a parte, que permite esboçar o que podia significar viver Por outro lado, as idades da vida dependem, na Idade Média,
e morrer na Idade Média. de um verdadeiro saber herdado da Antigüidade, que será

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reinterpretado pelo cristianismo em um sentido muito mais paralelismo não termina aí. Em Celsus e Galeno, os elementos
escatológico, orientando a vida do homem em direção à his- (água, terra, ar, fogo) e os temperamentos que provêm dos
tória da saúde. Como observa Agostino Paravicini Bagliani, líquidos corporais (sangue, bile, pituíta e atrabílis) corres-
"a cultura medieval acolheu todos os grandes esquemas das pondem igualmente às idades da vida.
idades da vida que haviam sido desenvolvidos pelos Antigos, Essas quatro idades da vida serão encontradas na Idade
sobretudo aqueles que se fundavam nos algarismos 3, 4 e 7".1 Média, sobretudo em Alberto, o Grande, porque tinham "a
O algarismo 3 é o de Aristóteles, que, na Retórica, conside- vantagem de dar conta das mudanças importantes do corpo
ra que a vida é composta de três fases: crescimento, estabilida- humano e de uma visão biológica mais cadenciada (trinta,
de e declínio. Arco biológico no qual a idade madura é o ápice: quarenta e sessenta anos)", lembra Agostino Paravicini Baglia-
"Todas as qualidades úteis que a juventude e a velhice possuem ni. Mas principalmente porque essas especulações antigas se
separadamente, a maturidade as possui reunidas; mas, em re- ajustavam com perfeição às quatro estações que Deus, segun-
lação aos excessos e erros, ela está na medida média e convenien- do o Gênesis, criou no quarto dia da Criação. "O algarismo
te." Uma imagem que a Idade Média em geral, e Dante em 4", prossegue, "permitia, portanto, a perfeita combinação com
particular, vai retomar por sua própria conta. Este último dirá o próprio fundamento da antropologia antiga e medieval,
que "a vida não é mais do que um subir e descer", situando a segundo a qual o homem é um microcosmo, isto é, um cosmo
"perfeita natureza" do homem na idade madura, isto é, aos em miniatura." A simbólica é aqui determinante.
trinta e cinco anos. Com muita freqüência na Idade Média, a O algarismo 7 é igualmente uma herança grega, retomada
idade girando em torno dos trinta anos será considerada "a por Isidoro de Sevilha, que distingue o período que vai do nas-
idade perfeita", pois Cristo, diz Jerônimo, morreu "comple- cimento ao sétimo ano (infantia), dos sete aos quatorze anos
tando o tempo de duração de sua vida em seu corpo". Já (pueritia), dos quatorze aos vinte e oito anos (adulescentia),
Abelardo situa "a idade perfeita e madura" aos trinta anos, dos vinte e oito aos cinqüenta anos (juventus), dos cinqüenta
idade que corresponde à de Cristo quando foi batizado. Assim aos setenta anos (gravitas), depois dos setenta anos (senectus) e
se imporá a idéia de que essa idade do batismo, da morte e da além, com a palavra senium, que corresponde à senilidade.
ressurreição de Cristo seria igualmente a idade ideal do padre. As cinco e as seis idades da vida são um legado dos Padres
O algarismo 4, o mais importante na Idade Média, pro- da Igreja. A Idade Média tardia inventará apenas as 12 idades
vém do filósofo grego Pitágoras, que, de acordo com Diógenes da vida, como ilustra Les douze mais figurez, poema anônimo
Laércio, "divide a vida do homem em quatro partes, atribuindo do século XIV que funda a evolução fisiológica do homem
vinte anos a cada parte". A esses quatro segmentos corres- no transcorrer do ano. A Idade Média conserva assim o biolo-
pondem os quatro humores descritos pela medicina de Hipó- gismo dos Antigos, mas o supera ou o atenua por meio de
crates: a criança é úmida e quente; o jovem é quente e seco; uma releitura simbólica. Os cristãos não falam mais de declí-
o homem adulto é seco e frio; o velho é frio e úmido. O nio, mas de caminhada contínua em direção ao reino de Deus.

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Segundo Agostinho, o velho chega a ser considerado até um necessário que um deixe o outro para trás: eles não devem
novo homem que se prepara para a vida eterna. deixar de navegar até que ambos cheguem juntos ao porto; é
então que eles conhecem o prazer completo."
"Eles dormiam juntos?" Volúpia e licenciosidade, erotismo e carícias, as histórias
corteses são, com freqüência, histórias de adultérios, como
A historiadora Irénée Marrou se interrogava: "Os amantes para Tristão e Isolda ou Ginevra e Lancelote. Mas a Igreja
cantados pelos trovadores dormiam juntos?" Georges Duby velava, por meio das confissões que perseguiam os erros para
se colocava a mesma questão. Ela permanece em aberto. Pois converter os leigos à moral ascética, freqüentemente ajuda-
as relações entre o corpo e o amor não caminhavam juntas na dos pelas famílias que desejavam arranjar casamentos, sub-
Idade Média. De um lado, os romances corteses exaltam o metidos, contudo, ao consentimento mútuo desde o século
amor, de outro a Igreja o parte ao meio ou o limita ao quadro XII. A Igreja concedia, entretanto, esse "tempo para beijar"
estrito do casamento que se regulariza a partir do século XI. de que fala Jean-Louis Flandrin e que se situa entre 91 e 185
Mas a literatura provavelmente embeleza a realidade. O dias por ano. O Carnaval do coração se manifesta sob a Qua-
amor cavalheiresco ou "cortês" era talvez uma maneira de resma do corpo.
aliviar as carências sexuais e passionais de um tempo pouco A fórmula é um pouco abrupta e peremptória, mas a Idade
propício às folias do corpo e aos arroubos do coração tal qual Média sem dúvida ignorou aquilo que chamamos amor. A
os pintavam os romances ou as canções. As guerras e as Cru- palavra chega a ser pejorativa. Amor significa a paixão devora-
zadas deixam pouco espaço ao romance, ainda que vários dora e selvagem. O termo caritas terá preferência, porque
dos cruzados partissem em direção a Jerusalém com a finali- supõe uma devoção que implica formas de sensibilidade em
dade de arranjar esposa, como atesta no século XII o cronista relação ao próximo (com freqüência, pobre ou doente), mas
Foucher de Chartres, diante do celibato que o crescimento livre de toda conotação sexual. Claro que os trovadores
demográfico provocara. cantam o fin'amors, esse amor refinado chamado cortês por-
Nessas narrativas, após a troca de olhares - que mostra que nasceu nas cortes feudais da Provença. Mas a deprecia-
uma vez mais até que ponto a visão é um sentido primordial ção do amor em relação ao caritas não se modificará. O que
na Idade Média - e passada a paixão fulminante, o apaixo- não quer dizer que os homens e as mulheres da Idade Média
nado se mostrava ora enamorado, ora suplicante, amante não conheçam os arroubos do coração ou as folias do corpo,
coroado por um beijo, depois, enfim, amante carnal. O Roman que ignorem o prazer carnal e a afeição pelo ser amado, mas
de Ia Rose dá lições sutis e excelentes de prazer sexual: "E o amor, sentimento moderno, não era um fundamento da
quando eles passam à prática, que cada um faça sua tarefa tão sociedade medieval.
habilmente e com uma precisão tal que o prazer venha no Apenas Heloísa e Abelardo parecem constituir exceção.
mesmo momento tanto para um quanto para outro ... Não é Eles estariam mesmo na origem, já que a autenticidade de sua

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correspondência é quase certa, da expressão do sentimento medieval- que, lembremos, ainda é 800/0 rural - molda de
amoroso. Ambos, por exemplo, escapam às regras habituais parte a parte a realidade e o imaginário. Uma relação de pro-
do casamento. Mas, mesmo no caso dessa união extraordiná- ximidade e de familiaridade se estabelece com os animais,
ria entre uma jovem de quinze anos e um mestre já maduro, mundo privilegiado dos símbolos. E de fantasmas.
oriundo da pequena nobreza e que será castigado por isso O erotismo emerge igualmente nas margens, nas miniatu-
devido à maquinação de Fulbert, o tutor de Heloísa, o amor ras, em que se vê aparecer o corpo sob uma forma jamais re-
jamais é dito em primeira pessoa. E Heloísa e Abelardo dei- presentada em outro lugar. As margens são espaços de prazeres,
xarão de fora de seu amor o filho que tiveram. de divertimentos, de ornamento. Elas são também - e sobre-
Chegou-se até a ver no amor cortês a imagem de uma tudo, talvez - espaços de anticensura, onde os temas escanda-
homossexualidade recalcada. Esta, tolerada entre os gregos e losos ou lúbricos podem florescer. O corpo se liberta nas
os romanos, foi vigorosamente condenada pelo cristianismo. margens." Assim, o erotismo também ilustra bem essa tensão
Mas, em particular no século XII, a homossexualidade pare- que atravessa a Idade Média e combate uma idéia tenaz, a de
ce ter sido tolerada, a ponto de fazer daquele século o século uma época hostil ao corpo. Como escreve um jovem historia-
de Ganimedes.ê Depois, a partir do século XIII, a homosse- dor, citando contribuições decisivas de Huizinga, Bakhtin e Eco,
xualidade foi definitiva e rigorosamente condenada, mesmo "o alegre saber erótico inventado na Idade Média depende da
que, no século Xv, tenha sido largamente praticada em uma ambivalência, isto é, da mistura de gêneros. Os fabliaux parti-
cidade como Florença." cipam ao mesmo tempo da obscenidade e do refinamento, a
Os homens e as mulheres da Idade Média conheciam o ero- lírica ocidental mistura continuamente sentimento e sensuali-
tismo, apesar do anacronismo do termo, pois a palavra - origi- dade, o encontro místico com o divino manifesta-se no corpo
nária do nome da divindade grega do amor e do desejo, Eros- das mulheres entregue ao Senhor penetrante, uma freira aleita
só irá adquirir seu sentido contemporâneo no século XVIII? É um macaco à margem do romance de Lancelote, os claustros
difícil duvidar disso, de tal forma as canções e os [abliaux, as são habitados por monstros de pedra. Então, o espírito vivifica
esculturas e as miniaturas transbordam de figuras obscenas, de a carne. E o corpo tem uma alma.'
posições perturbadoras, de corpos a corpos desenfreados.
Um erotismo inteiramente particular se desenvolve na Enfim a criança aparece
Idade Média: o erotismo animalizado. Os manuais dos confes-
sores atestam o esforço desses fantasmas e dessas práticas que A Idade Média mostra um relativo desinteresse pela mulher
unem os animais entre si ou ainda - metaforicamente, fora grávida, que não é objeto de nenhuma atenção particular. Essa
mesmo dos casos denunciados de bestialidade verdadeira - indiferença, ou, antes, essa neutralidade, pode ser observada
os homens aos animais, uniões que a Igreja condena, perse- tanto entre as mulheres das camadas superiores da sociedade
gue e pune. A presença da floresta e dos campos na sociedade quanto entre aquelas das classes sociais inferiores.

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UMA HISTÓRIA DO CORPO NA IDADE M~DIA

São Luís, por exemplo, leva sua mulher consigo à cruza-


da, durante a qual ela dá à luz em pleno período de guerras. A O autor cita oportunamente a confissão de um pai de famí-
atenção dada à gravidez é tão frágil que, quando ele é feito lia florentino, Filippo di Bernardo Manetti, recolhida em sua
prisioneiro pelos egípcios e sua mulher obtém o resgate para ricordanza e em que ele evoca a perda de seu filho único, leva-
comprá-lo de seus raptores, está grávida de oito meses. do, como sua mulher e sete de suas filhas, pela peste de 1449-
Um episódio da vida da mulher de seu filho e sucessor, 1450. Esse testemunho de ternura paternal é, de forma
Filipe, o Ousado, que seguiu o marido na última cruzada de semelhante, particularmente revelado r da relação que se esta-
São Luís em Cartago, confirma esse interesse. Quando seu belece entre o corpo da criança morta e o de Cristo, assim
marido tornado rei volta para a França, ela, grávida, o acom- como da admiração de um pai por seu filho, que, antes de
panha em seu retorno, que faz por terra, à exceção da passa- morrer, chega a se comportar como um bom cristão perfeito:
gem da Tunísia para a Sicília. E na Calábria, quando atravessa "Chegado a seu fim, foi uma coisa admirável vê-lo, nessa idade
a cavalo uma torrente avolumada pelas chuvas, ela cai e mor- ainda verde e fresca dos quatorze anos e meio, consciente de
re, assim como a criança que carrega. Portanto, não há um que ia morrer ... Por três vezes ele se confessa em sua doença
cuidado particular com a mulher grávida de classe alta. Como com uma grande diligência, pois recebeu o corpo de Nosso
também não há com as camponesas, que continuam a traba- Senhor Jesus Cristo com tanta contrição e reverência que os
lhar durante a gravidez. espectadores ficaram tomados de emoção; enfim, tendo pedi-
O interesse pela criança na alta Idade Média é tão pequeno a do o óleo muito santo e continuando a orar com os religiosos
ponto de Philippe Ariês ter chegado à conclusão de que não que o cercavam, ele entregou pacientemente sua alma a Deus,"!
existia nenhum, o que provocou a indignação de seus leitores e Mas, ao lado do amor paternal e maternal, há o lugar que
de inúmeros medievalistas. Em grandes linhas, é preciso, contu- a criança ocupa na sociedade. Nosso mundo atribuiu-lhe um
do, dar razão a esse "historiador do domingo"," como ele pró- lugar central, sobretudo nos países mediterrâneos, e na Itália
prio se definia. Mas convém distinguir os problemas. De um particularmente, onde seu estatuto decorre daquele da
lado, há o amor maternal e paternal, que constitui um dos raros "criança-rei".
sentimentos eternos e universais que se podem encontrar em Ora, a Idade Média, com toda evidência, não atribuiu à
todas as civilizações, em todas as etnias, em todas as épocas. criança uma tal dimensão. A importância dada à criança irá
Nesse ponto, Didier Lett permitiu "rever a imagem tradicional crescer, no entanto, a partir do século XIII. A princípio, e
do pai medieval" - isto é, do pater familias, que se acreditava como sempre acontece na Idade Média, um sentimento po-
indiferente, autoritário e todo-poderoso sobre o corpo e a alma deroso vai buscar seu fundamento e sua legitimação na reli-
de sua prole -, sobretudo através do estudo das narrativas dos gião. É portanto com a promoção do menino Jesus que se
milagres, em que se vê, ao longo dos episódios trágicos, toda a promove a criança, sobretudo através da redação de inúme-
extensão da afeição paternal na Idade Média," ros Evangelhos apócrifos contando a vida do pequeno Jesus.
Brinquedos de puxar e acalentar igualmente se multiplicam,
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visíveis nas miniaturas ou descobertos nas escavações arqueo- xv, um medo muito forte: o de os bebês morrerem sem terem
lógicas. Acentuam-se as manifestações transbordantes de dor sido batizados. O destino no além, dessas crianças mortas sem
pela morte de uma criança, enquanto, anteriormente, sua fre- batismo, preocupa muito os teólogos e os confessores, prin-
qüência havia produzido não uma indiferença, mas uma au- cipalmente Santo Tomás de Aquino. Os grandes escolásticos
sência de manifestação social a esse respeito. do século XIII concluem que as crianças mortas sem batismo
Esse aumento de atração e de interesse pela criança mani- serão privadas da eternidade do Paraíso. Elas viverão eterna-
festa-se igualmente por meio da extraordinária voga da Nativi- mente no limbo, em um limbo especial, chamado limbus
dade na liturgia e na iconografia medievais. As representações puerorum (limbo das crianças), no qual os pequenos huma-
da Natividade adquirem assim, ao final desse período, um nos não são vítimas de nenhum tratamento ruim, mas são
caráter muito mais realista, irmanando-se nesse aspecto à evo- privados da visão de Deus.
lução da arte medieval em geral. A representação do nasci- Ainda que tenha se multiplicado no século XV aquilo que
mento de Cristo torna-se uma verdadeira cena de parto, com se chamou de "os santuários de extensão da vida", para os
uma virgem dando à luz e servidoras que lavam a criança em quais se levam as crianças natimortas e onde a tradição quer
uma bacia, enquanto nas representações anteriores o espec- que elas reencontrem a vida temporariamente para serem
tador podia ver apenas a presença de um São José com ex- batizadas. As crianças não batizadas beneficiam-se, portanto,
pressão de dúvida, resmungão mesmo, e freqüentemente de uma pausa em relação à morte a fim de escapar ao limbo.
risível, que, em um canto do quadro, tinha o ar de estar se Mais uma vez, e ainda que não consista na imersão em uma
perguntando como esse nascimento havia sido possível. bacia, o batismo das crianças, sacramento fundamental dos
Depois, no fim da Idade Média, o pai desaparece das re- cristãos, permanece mais do que nunca um gesto corporal.
presentações da Natividade. Aproximando-se da realidade
medieval, "o parto é antes de tudo um acontecimento familiar Prestígio e malignidade da velhice
a que os homens não têm o direito de assistir"." Por outro
lado, a criança é mais bem apresentada, com referência im- Como vimos, a expectativa de vida é pequena na Idade Mé-
plícita ao Menino Jesus, cujo culto se desenvolve a partir do dia. Os velhos são mais ou menos considerados uma exceção.
século XIII. A iconografia busca devolver a formosura, senão Certos textos falam com freqüência de uma pessoa ou perso-
a beleza, do corpo e do rosto da criança. Os anjinhos (putti) nagem que é velho quando ele não tem mais do que quarenta
multiplicam-se na arte religiosa. Enfim, a criança aparece. e cinco anos. Se se observar a duração da vida dos reis da
Mais do que nunca no Ocidente medieval, o sacramento França, é excepcional morrer com mais de cinqüenta ou cin-
essencial é o batismo. O costume consiste em batizar a crian- qüenta e cinco anos. Os espaços sociais nos quais os homens
ça o mais cedo possível, em seguida ao nascimento, pois ga- e as mulheres têm vida mais longa adquirem um prestígio
nha corpo, no fim da Idade Média e particularmente no século crescente. Isso é verdade sobretudo nos meios que adotam

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A DOENÇA E A MEDICINA
uma alimentação mais selecionada e seguem uma dieta mais
sadia, a saber, os meios monásticos. Ao longo da Idade Mé-
As epidemias da Idade Média são freqüentemente evocadas,
dia, os velhos beneficiaram-se, assim, dessa imagem dos ve-
mais particularmente a peste. Com razão, aliás, pois essa in-
lhos monges. Além disso, em uma época marcada pela ausência
fecção bacteriana comum aos homens e aos roedores fez nu-
de arquivos ricos, a memória torna-se o apanágio dos velhos.
merosas devastações. Bastaram quatro anos para que a peste
E, como os homens da Idade Média atribuem muita impor-
bubônica, ou "peste negra", dizimasse um quarto da popula-
tância à ancestralidade de um costume ou de uma tradição, a
ção ocidental, entre 1347 e 1352. Como lembra Jacques
população consulta-os a respeito de todos os assuntos, como
Berlioz, essa epidemia "abre e fecha a Idade Média", e a es-
o caso daqueles velhos de um domínio da Ile-de-France a quem
tigmatiza com o selo desse flagelo."
a mãe de São Luís, Branca de Castela, pergunta até quando
A primeira peste bubônica - chamada assim por causa
irá o jugo dos servos, pedindo sua libertação.
da íngua que acusa a presença, sob a pele, do bacilo infeccio-
O caso das mulheres velhas é diferente. Antes de se tornar
so - apareceu pela primeira vez entre 541 e 767, sem encon-
uma feiticeira em potencial, a velha tem, com efeito, má repu-
trar, contudo, as condições para um grande desenvolvimento.
tação. Um termo que se encontra com freqüência nos textos, e
A segunda, a mais devastadora, pode ser claramente datada
em particular nessas histórias edificantes chamadas de exempla,
em razão das circunstâncias de sua aparição. A epidemia se
ilustra essa reprovação: vetula, a saber, a "velhinha", que serve
iniciou na colônia genovesa de Caffa, no mar Negro, levada à
sempre para designar uma personagem maléfica. Por conse-
Itália pelos navios. Em Caffa, com efeito, "bárbaros" mongóis
qüência, e como ocorre freqüentem ente na Idade Média, a ve-
que assediaram a colônia haviam lançado sobre os muros ca-
lhice é objeto de uma tensão - entre o prestígio da idade e da
dáveres empestiados, conscientes do caráter contagioso e
memória e a malignidade da velhice, a feminina em particular.
mortal dessa doença. Graças a essa astúcia mórbida, eles con-
Assim como em relação às crianças, situados entre a inocência
seguiram matar os colonos genoveses e se apossar da fortale-
(jesus disse: "Deixai vir a mim as criançinhas") e a malignida-
za. Os sobreviventes do combate espalharam esse bacilo nas
de suposta daqueles que ainda não entraram naquilo que já se
cidades européias da Península, que, através da expectoração,
chama de "a idade da razão", presas fáceis do diabo tentador, a
se transmite de pessoa a pessoa. 12 Esse combate marca o início
velhice oscila entre a admiração e a reprovação. Do mesmo
da "peste negra" e constitui um dos primeiros episódios da
modo que o Menino Jesus é central na promoção da criança
história da arma bacteriológica, já utilizada, segundo o Anti-
na Idade Média, a imagem dos patriarcas do Antigo Testamen-
go Testamento, durante o episódio da "peste dos Filisteus".
to é muito valorizadora para os velhos. Em todo velho, perce-
Segundo as historiadoras Jole Agrimi e Chiara Crisciani, a
be-se Abraão. Mas, sublinha Didier Lett, "ele é igualmente
peste introduziu na Idade Média, de maneira brutal, "uma morte
denegrido pela imagem de decrepitude física e moral que apre-
de tipo novo, repentina e selvagem. A doença identificava-se,
senta e que lembra aos cristãos o pecado original"."

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assim, com a morte". 13 "Um terço do mundo morreu", chegou ria das doenças é antes de tudo a das endemias, a das doenças
a escrever o cronista francês Froissart sobre essa doença nova. mais constantes. À imagem da "suette", doença que consiste
''As relações entre a comunidade dos vivos e o mundo dos de- em uma febre muito forte, produzindo suores intensos e que
funtos ficaram transtornadas. Os cortejos e as cerimônias tra- apareceu no fim da Idade Média, no século XlV. A exemplo
dicionais de luto tiveram de ser proibidos em numerosas cidades. da tuberculose ou das "escrófulas", isto é, da adenite tuber-
Os mortos eram empilhados diante das portas das casas. O culosa. À imagem também da lepra, que se estende pela Europa
enterro, se fosse possível, era sumário, e o ritual era reduzido a partir do século VII e constitui "o maior problema sanitário
ao mínimo", prosseguem Jole Agrimi e Chiara Crisciani. A da Idade Média". 14 Mas a lepra constitui também uma ques-
imaginação tem dificuldade em ressuscitar um tal clima de medo tão espiritual, pois, na Idade Média, não há doença que atinja
e pânico, de dores corporais e espirituais. As recomendações o corpo como um todo que não seja simbólica.
sanitárias do Tratado da peste (Tractatus de pestilentia), de Pietro O leproso é assim um pecador que busca libertar sua alma
da Tossigno, permitem dar uma idéia das precauções exigidas e seu corpo de suas imundícies, em particular da luxúria. O
para se proteger do flagelo, lembrando aquelas que nossos con- corpo sofredor do leproso é a lepra da alma. Considera-se
temporâneos seguiram quando da epidemia de pneumopatia com freqüência que o leproso foi engendrado por seus pais
atípica (SARS),declarada e provavelmente nascida no sudeste em períodos durante os quais a copulação é proibida aos côn-
da Ásia: "É preciso evitar cuidadosamente os debates públicos, juges (Quaresma, vigílias de dias santos etc.). Propriamente
quando for possível, a fim de evitar que os hálitos se misturem falando, a lepra é o produto do pecado, e do pior deles: o
e que uma só pessoa possa infectar várias. É preciso, portanto, pecado sexual." As raízes dessa degradação vêm de longe:
permanecer só e evitar aqueles que vêm de um lugar cujo ar "Tanto quanto durarem suas feridas", diz o Levítico (13,46),
está infectado." o leproso será "impuro, sim impuro; ele habitará só e sua
Apesar das recomendações, a "peste negra" assinala seus li- casa ficará fora do campo." Os leprosários (havia dois mil
mites, como "a falência da medicina escolástica", que se acha deles na França em 1226) vão se tornar, dessa forma, os lo-
impotente para domar o flagelo, mergulhando assim a profissão cais de desterro - aqueles dos "hereges", de que os leprosos
de médico em uma crise profunda: a corporação entra em com- são uma metáfora -, de segregação e de punição, que, como
petição, naquele momento, com a dos cirurgiões e a dos barbei- Michel Foucault mostrou a propósito da loucura, irá prepa-
ros, que viviam até então em uma relativa complementaridade. rar outros. Pela cerimônia da morte civil, o leproso se torna-
Mas, além do fato de que o foco da atenção sobre a peste va um morto-vivo, privado de seus bens, distanciado de sua
contribui para alimentar uma "lenda negra" da Idade Média, família e de seu ambiente social e material. Autorizado a sair,
ela oculta a realidade do estado sanitário dos "homens frá- ele deveria evitar qualquer contato agitando sua barulhenta
geis" desse tempo, cujos "corpos", escreve Jacques Berlioz, matraca, cujo ruído o identificava. Essa doença e a heresia
"são submetidos aos imprevistos do meio ambiente". A histó- são freqüentemente associadas: "Como a lepra, a heresia é

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uma doença da alma que se exprime simbolicamente através po" é apenas, pensa-se, a parte visível. "Símbolo por excelência
de um corpo doente, a ser extirpado do corpo sadio da Igre- do pecado", o leproso é também "a imagem de Cristo que toma
ja. No século XII, o monge Guilherme, dirigindo-se ao here- para si todas as imundícies do corpo e que se faz o mais abjeto
ge Henrique de Lausanne, o acusa nestes termos: 'Tu também, entre os abjetos para salvar a humanidade"." A tensão aqui é
tu és um leproso, ferido pela heresia, excluído da comunida- manifesta: "O doente é um rejeitado assim como um eleito".
de pelo julgamento do padre, de acordo com a lei, caminhan- Um preceito da Bíbliaé aqui determinante: "Christus medicus";
do com a cabeça descoberta, vestido com farrapos, teu corpo Cristo é um médico: médico do corpo - de que são testemu-
coberto por uma roupa infecta e repugnante, tu deves gritar nhas suas curas miraculosas -, médico da alma - já que ele
continuamente que és um leproso, um herege e um impuro, e mostrou ao homem o caminho da salvação. "Cristo é também
deves viver só, fora do acampamento, isto é, fora da Igreja. "'16 um medicamento, pois ele também foi utilizado para curar as
Como sempre, a metáfora é polivalente. O beijo nos le- feridas de nossos pecados. Enfim [...], ele indica ao doente o
prosos, de que Cristo deu o exemplo, é uma marca de grande valor do sofrimento e da paciência silenciosa enquanto medica-
piedade. São Luís esforçava-se para isso. mento do espírito; e ele nos ensina a paciência da caridade, con-
"Para os médicos da Antigüidade", escreve o grande his- fiando-nos também, através de sua ressurreição, a garantia do
toriador do pensamento médico Mirko D. Grmek, "todas as resgate da carne", resumem Jale Agrimi e Chiara Crisciani. Cris-
doenças eram somáticas. As doenças da alma não passavam, to é igualmente um corpo doente, um corpo que sofre.
para eles, de invenção dos moralistas. O resultado dessa to-
mada de posição era a divisão do campo das doenças psíqui- A "boa mistura" e a teoria dos quatro humores
cas entre os médicos e os filósofos. Mas para o homem da
Idade Média, tanto nas civilizações cristãs quanto no mundo Assim, a arte de curar não está apenas do lado do Diabo, mas
islâmico, não era possível separar os acontecimentos corpo- também do lado de Deus. A Igreja travou um combate obstina-
rais de sua significação espiritual. Concebia-se a relação en- do contra os curandeiros mágicos vindos do paganismo "bárba-
tre a alma e o corpo de uma maneira tão estreita e imbricada ro", seguidores de Satã, que de modo algum se mostra mais
que a doença era necessariamente uma entidade psicos- nefasto do que na possessão dos corpos, numa mistura de sedu-
somática."!" Por essa razão, a maior parte dos milagres atri- ção e violência. Jean-Pierre Poly,aliás, descreveu bem esses "en-
buídos aos santos são milagres de cura. cantos da possessão" e esses "encantamentos do corpo" que a
Igreja combateu. 19 A medicina, portanto, irá se desenvolver prin-
o doente, rejeitado e eleito cipalmente em torno da patologia dos humores, isto é, da "teo-
ria dos quatro humores". Habitualmente atribuída ao médico
A tensão que atravessa o corpo na Idade Média é novamente grego Hipócrates (cerca de 460-377 a.C), a patologia aparece
perceptível nessa doença da alma, da qual "a corrupção do cor- em um texto de seu genro Políbio, igualmente originário da ilha

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de COSo"O corpo do homem contém sangue, fleuma, bile ama- social. "Uma nova 'arte médica' constitui-se justamente com a
rela e bile escui a", escreve ele na Natureza do homem. finalidade de ajudar a natureza humana em seus esforços para
conservar e reencontrar as boas proporções e o equilíbrio, tanto
Eis o que constitui a natureza do corpo; eis o que é a causa no interior do corpo quanto em suas relações com o exterior",
da doença ou da saúde. Nessas condições, há saúde perfeita resume Mirko D. Grmek. Se a medicina hipocrática não reto-
quando esses humores estão em uma justa proporção entre mará a terminologia de Alcmeão, a idéia da "boa mistura" irá
si, tanto do ponto de vista da qualidade quanto da quantida- trilhar seu caminho, sobretudo através do médico grego Galeno
de, e quando sua mistura é perfeita. Há doença quando um (c. 131-c. 201), que permanecerá uma das referências obrigató-
desses humores, em quantidade muito pequena ou muito rias da arte médica medieval. Assim, no século VII, Isidoro de
grande, se isola, e não é apenas o lugar que ele abandonou Sevilha (570-636) poderá afirmar, em suas Etimologias, que to-
que adoece, mas o local em que ele irá se fixar e se acumular das as doenças "nascem dos quatro humores" e que "a saúde é a
- em conseqüência de um entupimento excessivo - tam- integridade do corpo e a boa mistura da natureza no que diz
bém provoca sofrimento e dor. respeito ao quente e ao úmido".
Para retomar essa metáfora sanitária, a "boa mistura" da
Essa maneira de considerar a doença uma perturbação das medicina medieval é a de Galeno e de Aristóteles. Aos quatro
relações entre os quatro humores irá estender-se ao conjunto da humores do galenismo juntam-se, com efeito, as quatro cau-
medicina ocidental. Mas convém lembrar um texto decisivo de sas aristotélicas, simplificadas em numerosos tratados: "a causa
Alcmeão de Croton (c. 500 a.C), médico e filósofo da Itália eficiente é o ato médico ou o próprio médico; a causa mate-
meridional, segundo o qual, recorda seu doxógrafo, "a saúde se rial é o corpo humano; a causa instrumental, a lanceta, o
mantém pelos direitos iguais [isonomia] das qualidades, úmido, escalpelo ou qualquer outro meio terapêutico; e a causa final
seco, quente, azedo, doce e outros, enquanto o reino exclusivo é o restabelecimento da saúde", resume Danielle jacquart."
[monarchia] de um dentre eles produz a doença. As doenças Uma mistura dogmática que as universidades medievais, como
ocorrem, no que diz respeito ao agente, por causa do excesso de a de Salerno em particular, não deixarão de comentar.
calor ou de secura; no que diz respeito à origem, devido à falta
ou excesso de alimentação; no que diz respeito ao lugar, no san- Irmão corpo
gue, na medula e no cérebro [...]. Às vezes, elas também decor-
rem de causas externas, tais como a água, o lugar, as fadigas, a Com a Renascença do século XII - que, como já vimos,
angústia ou coisas análogas. A saúde, conclui Alcrneão, é corresponde ao desabrochar do indivíduo -, o corpo do
a [boa] mistura". Esse texto ilustra da melhor forma possível homem sofrendo em sua carne é levado mais em conta. Antes
que a isonomia, isto é, o equilíbrio dos elementos corporais, do século XII, observa Georges Duby em Mâle Moyen Âge21
assegura a saúde tanto no corpo humano quanto no corpo [Idade Média masculina], "a cultura 'feudal' aparece muito

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pouco preocupada - em todo caso, muito menos que a nossa conselhos dirigidos por Hubert de Romans aos irmãos sobre a
- com os sofrimentos do corpo". Se rejeita a idéia simplifi- necessidade de se evitarem as mortificações físicas e as negli-
cadora da dureza e da rudeza da vida medieval, Georges Duby gências 'higiênicas' que enfraquecem são prova de soberba e
insiste na ideologia militar e masculina da época. "Darás à luz mostram que o corpo se tornou um valor que se deve sempre
na dor", diz Deus a Eva na Bíblia. "Ganharás o pão com o utilizar com fins espirituais, mas através de caminhos que não
suor de teu rosto", anunciou a Adâo. Assim, haverá não so- sejam sempre aqueles do sofrimento e da paciência"."
mente morrer, mas também sofrer. Ao homem o labor, à Em resumo, os homens da Idade Média podem recorrer a
mulher a dolor. "Decorre daí que a dor é, em princípio, as- um outro médico além de Cristo. Pouco a pouco, os médicos
sunto de mulher e que o homem, por conseqüência, deve da alma - os padres - se distinguem daqueles do corpo -
desprezá-Ia. O homem digno desse nome não sofre; em todo os médicos -, que vão se tornar ao mesmo tempo sábios e
caso, ele não deve manifestar que sofre, sob risco de se encon- profissionais, assim como uma corpo ração, um corpo de ofí-
trar desvirilizado, de retroceder, de ser rebaixado ao nível da cio. Surgem escolas de medicina, assim como universidades
condição feminina", prossegue Duby. Mas "essa frieza não em que homens se formam em uma ciência que é considera-
durou". A partir do fim do século XII, com efeito, opera-se o da, sem dúvida, um dom de Deus, mas, igualmente, um ofí-
refluxo. O dolorismo, então, torna-se admissível. cio. Os médicos trabalham, pois, como profissionais pagos
São testemunhas sobretudo a atenção e as louvações de São (mais para os ricos, nada ou quase nada para os pobres), não
Francisco de Assis àquilo que ele chama de "irmão corpo". No devido à terapia ou socorro que trazem (que são dons de
que diz respeito às doenças e à relação com o corpo, São Fran- Deus), mas "devido à preparação e ao trabalho que lhes exi-
cisco é, assim como em relação a numerosos outros assuntos, giram muito zelo e fadiga"."
um personagem fascinante.v Trata-se, em princípio, de um
homem doente, que sofre dos olhos e do sistema digestivo. E, A urina e o sangue
se ele retoma a idéia dominante segundo a qual o corpo é o
instrumento do pecado e até "o inimigo" que é preciso domi- Para o estabelecimento dos diagnósticos, a prática antiga fun-
nar e mortificar, este último permanece um "irmão", e as doen- dada sobre a tomada do pulso e o exame da língua foi eclipsa-
ças, "nossas irmãs". Assim, se São Francisco se reporta ao da por uma técnica nova: a uroscopia, ou exame da urina,
único médico que ele reconhece, Cristo, ele aceita consultar os difundida pelos bizantinos e os salernitanos e melhorada por
médicos do papa diante da insistência de irmão Elias, citando Gilles de Corbeil (1165-1213). Esse método necessitava de um
uma fala do Eclesiastesmais do que significativae determinante recipiente de vidro (matula), que se tornou a insígnia
para o destino e o impulso da medicina: "O AItíssimo criou a corporativa dos médicos, que tenderam a reduzir a semiologia
medicina da terra, e o sábio não a desprezará" (XXXVIII, 4). médica à uroscopia. Ao lado dela, a sangria, outra conseqüência
Assim, "as louvações de São Francisco ao 'irmão corpo', os da teoria dos humores, era larga e sistematicamente praticada.

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Por exemplo, de modo regular nos mosteiros e nos conventos. não é a minha demanda que pleiteio, mas a dos árabes." Quan-
Estamos muito próximos de Moliêre e de seus médicos. do um médico medieval aplica um método que lhe parece novo,
ele declara, portanto, que o leu em Galeno.
Sob a máscara de Galeno Isso supõe que a medicina medieval não ficou tão estag-
nada como se tende a acreditar. Prova isso mesmo que não
Com freqüência, insistiu-se no nível muito frágil da medicina existissem universidades de medicina na época - com a no-
medieval, livresca mais que experimental, e cujos remédios tável exceção da de Salerno, na Itália -, o fato de que os
eram sistematicamente os mesmos de Galeno. Essa visão - grandes personagens demonstram sua preocupação em recor-
popularizada pelo filósofo inglês Roger Bacon, que, em De rer na maior parte do tempo aos grandes médicos, em grande
erroribus medicorum (c. 1260-1270), fustiga a "multidão de parte judeus, o mais das vezes cirurgiões.
médicos" que se dedica a "brigar por questões sem fim e com Ainda que, depois da separação entre a cirurgia e a medi-
argumentos inúteis" - não poderia, contudo, resumir a me- cina através do Concílio de Tours (1163), a cirurgia tenha
dicina escolástica medieval. De um lado porque "os médicos sido progressivamente rebaixada ao nível dos ofícios manuais,
medievais não se desinteressaram da experiência", desde que continuará a haver "grandes" cirurgiões, em particular aqueles
esta estivesse, entretanto, "sustentada pela razão", como de- ligados aos reis e aos papas e lecionando nas universidades,
monstrou Danielle jacquart." De outro lado, porque a atri- tais como Henrique de Mondeville (c. 1260-c. 1320), cirur-
buição a Galeno de numerosos remédios esconde as invenções gião de Filipe, o Belo, e sobretudo Guy de Chauliac (c. 1298-
propriamente medievais. Galeno é uma máscara. Pois, sob a 1368), médico e cirurgião dos papas de Avignon (Clemente
pressão ideológica da Igreja, a Idade Média é uma crítica teó- VI, Inocêncio VI e Urbano VI), formado pela Universidade
rica da novidade. E as descobertas médicas se escondem de- de Montpellier, cuja "grande cirurgia", realizada em 1363, se
trás do biombo dos Antigos. impôs por mais de duzentos anos."
No século XII, um intelectual inglês, Adelardo de Bath, es- Outra preocupação em relação ao corpo: Galeno havia
creveu, com efeito: "Nossa geração tem essa falha enraizada, introduzido a noção de "luta ativa contra o sofrimento e a
que é a de recusar tudo aquilo que pareça vir dos Modernos. Da doença", e os médicos e cirurgiões da Idade Média tentaram
mesma forma, se me ocorre uma idéia pessoal, se quero torná-Ia criar uma anestesia cirúrgica, em particular com uma "esponja
pública, eu a atribuo a algum outro e declaro que 'foi um outro sonífera" embebida em suco de meimendro, de ópio e de câ-
que disse, e não eu' e, para que acreditem inteiramente em mim, nhamo-da-índia. Mas essas técnicas não funcionaram bem, e
digo, a respeito de todas as minhas opiniões, que são de 'um será preciso aguardar o século XIX para se obter uma anestesia
outro inventor, e não minhas'. Para evitar o inconveniente de se geral. Contrariamente à idéia segundo a qual a Idade Média
pensar que eu, ignorante que sou, extraí de mim mesmo as mi- fazia pouco do sofrimento físico, a medicina medieval bus-
nhas idéias, faço crer que as tirei de meus estudos árabes. Assim, cou os meios para atenuá-Io.

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UMA HISTÓRIA DO CORPO NA IDADE M~DIA

Os limites da medicina escolástica conferiram-lhe, enquanto essa arte era ridicularizada ou vili-
pendiada, uma amplitude e uma dignidade sem precedentes.
Assim, "uma das façanhas da Idade Média foi impor à socie- Tanto mais que Deus, os santos, os bispos, os clérigos eram
dade e ao mundo sábio, de maneira irreversível, o estatuto considerados médicos. Proponho defender esse paradoxo:
intelectual da medicina", escreve Danielle jacquart." O diminuída cientificamente e não rebaixada pelo apadrinha-
galenismo, isto é, a remissão quase sistemática às teorias de mento cristão, a medicina, ao mesmo tempo, foi exaltada por
Galeno, permite, na virada dos séculos XI e XII, "lançar nas ele. Isso terá conseqüências para sua história na Idade Média.
trevas do charlatanismo toda prática que não respondesse à [...] Na ordem dos valores e das divisões do mundo, os úni-
doutrina comum ente admitida". cos arcediagos eram, a partir de então, os santos, vivos ou
Entretanto; a despeito de notáveis exceções, como Monde- mortos. Os médicos, cuja presença é atestada nos santuários
ville, a medicina científica demora a decolar na Idade Média. de cura, encontravam-se reduzidos ao nível de simples assis-
Mirko D. Grmek chega a observar que "os procedimentos tentes. A medicina carnal foi, portanto, absorvida pela medi-
diagnósticos dos médicos da Idade Média acusam um recuo cina espiritual. Medicina das almas, ela tomava para si, ao
em relação à prática clínica antiga. O exame de pulso e de mesmo tempo, o corpo pa decente. "
urina foram levados a refinamentos sem ligação com a reali- A hipótese é esclarecedora, pois permite compreender esse
dade patológica. Do mesmo modo, o diagnóstico astrológico duplo movimento de exaltação e distanciamento da medicina
desenvolveu-se como conseqüência prática da idéia segundo científica. A partir do momento em que é preciso cuidar do
a qual os acontecimentos no corpo humano correspondiam corpo tendo em vista a salvação, o recurso ao milagre se mos-
às posições dos corpos celestes". trará fértil. Primado do corpo, mas primado da alma a ser
Uma vez mais, a explicação para isso reside na tensão que salva do pecado. Assim, "se a Idade Média contribuiu muito
atravessa o Ocidente medieval. Na Idade Média, o corpo em pouco para a elaboração do modelo médico da doença, ela
si não existe. Ele é sempre penetrado pela alma. Ora, sua valorizou seu sofrimento. Ligando a etiologia da doença ao
saúde é predominante. Assim, a medicina é antes de tudo uma pecado, fez da doença uma via de redençâo"."
medicina da alma, que passa pelo corpo sem jamais reduzir- Será preciso aguardar um novo contexto ideológico para
se a ele. "Tachada de impotente sem a ajuda divina, a medici- que a medicina entre em um processo científico determinante
na que hoje chamamos científica era minoritária", escreve para o corpo dos homens, com o risco de subtrair-lhe sua
Bernard Lançon em La médecine dans I'Antiquité tardive et
dimensão espiritual e simbólica: o século XVII.
le haut Moyen Âge [A medicina na Antigüidade tardia e na
Mas a medicina medieval trouxe também importantes ino-
alta Idade Média]. "Aarte médica irá extrair daí, porém, uma
vações técnicas, sobretudo no domínio da cirurgia: trepanação,
popularização de seus métodos e uma exaltação de sua ima- redução das fraturas, operação da fístula anal, ligadura das
gem. Pensando medicamente o mundo, os Padres da Igreja
hemorróidas, hemóstase por cauterização, extração de cor-

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pos estranhos metálicos com a ajuda de um ímã, sutura das do hospital medieval, lugar público e gratuito da caridade.
feridas do peito." Igualmente, a farmacologia medieval enri- Bem organizados, sem dúvida alguma, já que os hospitais dis-
queceu-se consideravelmente, em particular com o álcool e o tinguem "os verdadeiros e os falsos pobres, os verdadeiros e
mercúrio. Pois o álcool é uma descoberta da Idade Média. A os falsos doentes, os doentes moralmente aceitáveis e aqueles
destilação do vinho faz-se a princípio nos conventos para fa- que não o são"." Mas, na teoria, o hospital acolhe todos os
bricar medicamentos. A primeira fase da história do álcool é homens e de todas as condições, a exemplo dos domínios
assim uma fase medicamentosa. eclesiásticos aos quais são freqüentemente ligados. A distin-
ção social, contudo, escapa à Regra. De um lado, o espaço
Uma sociedade de assistência privado e doméstico do médico "sábio"; de outro, o socorro
ao pobre doente no hospital, que só mais tarde se tornará um
Esses limites da medicina medieval vão ser temperados pela verdadeiro lugar de cuidados e curas.
sociedade de assistência que surge então, sobretudo através do
desenvolvimento do hospital, em torno de dois valores cardeais Abrir o corpo
da sociedade medieval, que são a caridade (caritas) e a enfer-
midade (infirmitas). Acaritas, elo do amor paternal entre Deus o respeito ao corpo retardou por muito tempo as práticas de
e os homens, decorre igualmente da fraternidade humana, já dissecação: "As primeiras dissecações aparecem no ensino médi-
que, para amar Deus, é preciso amar nossos irmãos, diz a Igreja. co no primeiro quartel do século XIII, em Bolonha, por volta de
Já a infirmitas, mais socialmente desvalorizada porque designa 1340, em Montpellier, e em 1407, em Paris, onde só se tornarão
a fraqueza corporal e a dependência, torna-se pouco a pouco a regulares a partir de 1477", sublinha Marte-josé Imbault.
condição de todos os "homens frágeis" daquele tempo, a con- A lenda negra de uma Idade Média obscurantista é resis-
dição da humanidade após o pecado original. tente em relação a esse assunto, pois "a Igreja nunca proibiu
Mas, numa época em que não é raro encontrar, em uma explicitamente a dissecação do corpo humano", lembra Danielle
estrada, uma praça ou uma igreja, homens doentes e pobres, Jacquart. Somente as violações de sepulturas e os roubos de
a enfermidade e a assistência não se reduzem à virtualidade, à cadáveres eram perseguidos. Não eram tanto os anatomistas
teoria, ao conceito. A Regra de São Bento prega assim a hos- que eram visados pelas proibições eclesiásticas - sobretudo
pitalidade, "a assistência aos enfermos", que devem ser servi- pela decretal promulgada pelo papa Bonifácio VIII em 1299
dos exatamente como se serviria Cristo em pessoa. Pois Jesus -, mas a moda que consistia em distribuir os despojos dos
diz: "Eu estava doente e vós me visitastes." defuntos assim trinchados em vários locais de sepultamento. A
A cantas, primeira das virtudes teologais, assim como a dissecação médica não era proibida. Mesmo Galeno, o mestre
infirmitas, freqüentemente associada à pobreza e à doença, dos médicos medievais, praticava a dissecação de animais. As-
vão se constituir em poderosas alavancas para o nascimento sim, em Bolonha, em Salerno, em Montpellier, em Paris, a dis-

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secação do corpo humano tornou-se uma prática pública e di- Elias, "ao longo dos numerosos séculos da Idade Média, o medo
dática. O saber livresco predomina, entretanto. A abertura dos da morte também não se situava sempre no mesmo nível social.
corpos era freqüentemente destinada a confirmar ou ainda a E aumentou de maneira considerável ao longo do século xrv.
verificar Galeno. Como resume justamente DanielIe Jacquart, As cidades cresciam; A peste se espalhava por toda parte, var-
"o corpo era 'lido' antes de ser visto". ria a Europa e reforçava esse medo. Nos escritos e nas imagens
aparecia o tema das danças macabras. Uma morte tranqüila no
passado? Como essa perspectiva é unilateral!".
MORTOS E MORIBUNDOS: GLORIOSOS OU ATORMENTADOS Trata-se, portanto, de inverter a perspectiva. Ou, antes,
de modificar a abordagem. Pois a morte está em outro lu-
Cada civilização define-se pela maneira como enterra seus gar. Sem remeter as concepções de Ariês ao limbo do ro-
mortos, pelo modo como a morte é vivida e representada. O mantismo e do passadismo, o historiador Michel Lauwers
Ocidente medieval não escapa a essa regra. Desde os traba- tem razão em propor que, "mais do que a morte, os senti-
lhos fundadores de Johan Huizinga a propósito do "lamento mentos e as atitudes que ela suscitou, são os mortos, os cui-
pela brevidade das coisas terrestres" e o "júbilo pela saúde da dados de que são objeto, o lugar e o papel que os vivos lhes
alma", que constituem, segundo ele, os dois extremos do pen- atribuem que parecem constituir, para o medievalista, um
samento clerical medieval em relação à morte, as pesquisas objeto de história pertinente". Pois a morte é apenas um
históricas se enriqueceram com avanços preciosos, como os momento do sistema cristão, que liga este mundo ao além.
de Philippe Ariês," para quem a "morte domesticada" da alta O estudo da atitude em relação ao corpo dos mortos e dos
Idade Média precedeu uma visão mais dramática do faleci- moribundos permite, assim, tentar reencontrar os sentimen-
mente"," a partir dos séculos XII e XIII. tos medievais em relação a esse acontecimento singular e
"Não há dúvida de que na Idade Média", escreve Norbert universalmente partilhado.
Elias em um texto crítico e esclarecedor," "falava-se mais fran-
camente e mais correntemente do que hoje sobre a morte e a o breuiârio dos moribundos
agonia [...], o que não quer dizer que elas fossem mais tranqüi-
las." Para Norbert Elias, com efeito, Philippe Ariês "busca fa- Com o tratado "dos cuidados devidos aos mortos", escrito por
zer com que partilhemos de sua hipótese, segundo a qual os Agostinho em 421 e 422, a Igreja encontra seu breviário dos
homens, outrora, morriam na paz e na tranqüilidade. É so- moribundos e sela "a carta funerária do Ocidente". Orar, cele-
mente na época contemporânea, segundo ele, que as coisas brar a eucaristia e dar esmola por intenção dos defuntos - tais
passam a ocorrer de outra maneira. Com espírito romântico, são as três maneiras de consolar os mortos segundo as regras
Ariês lança um olhar cheio de desconfiança - em nome de um eclesiásticas. Somente a morte da alma parece preocupar a Igre-
passado melhor - sobre um presente ruim". Ora, continua ja, a extinção do corpo significando que a alma se liberta de

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seu invólucro carnal para juntar-se ao reino de Deus. Não é o campos e nas cidades, os cemitérios permaneceram locais de
normal, tolerado pela Igreja em um primeiro momento. refúgio, de asilo, de reunião, de regozijo, lugares em que se
Desde a Antigüidade, com efeito, os vivos se ocupavam dos fazia a justiça, onde se concluíam acordos, onde se negociavam
corpos dos membros de suas famílias. As mulheres, em particu- mercadorias", explica. O corpo social resiste à cristianização
lar, eram encarregadas de lavá-los, de prepará-l os para junta- da morte. A Quaresma controla a vida até o falecimento, mas
rem-se ao reino dos mortos que, segundo a crença, retornavam o Carnaval não arrefece. Dança-se até sobre os restos dos
às vezes para atormentar a alma dos vivos. Com o cristianismo, defuntos, tanto para aproximar-se deles quanto para mantê-
estabelece-se uma hierarquia entre os defuntos, sem colocar em los a distância.
questão as práticas herdadas do paganismo. Somente as sepultu- Nos anos 1030, a fim de unificar e controlar práticas e
ras dos santos, dignificadas e manipuladas de diferentes manei- calendário funerários, monges de Cluny inventam uma festa
ras, podiam ser objeto de celebração e veneração. Reza-se para anual de todos os defuntos, o 2 de novembro. "Graças à nova
os mortos, é certo, mas com a intercessão de novos heróis, os festa", defende Michel Lauwers, "mais nenhum defunto es-
santos. Este mundo e o além comunicam-se. Assim, escreve Peter capava, pelo menos idealmente, à Igreja."
Brown, "a fronteira imemorial entre a cidade dos vivos e a dos Uma mudança ocorre entre o fim do século XII e o início
mortos foi finalmente rompida"." do século XIII: a morte se individualiza. Colocando as con-
Pouco a pouco, entretanto, a Igreja se encarrega dos de- fissões no centro da cristandade por ocasião do concílio de
funtos. Nos séculos VIII e IX, em particular, ela se põe a con- Latrão IV,a teologia estimula a guinada para a individualiza-
denar as práticas funerárias "supersticiosas". Missas dos çâo, o exame de consciência, a introspecção. Fim do anoni-
mortos e orações estendem-se por todo o Ocidente. ''Ao con- mato, túmulos com estátuas deitadas representando os mortos,
trário das necrópoles antigas, que acolhiam todos os mortos desmembramento dos cadáveres reais destinados a multipli-
sem distinção, os cemitérios medievais, consagrados e ben- car os locais de culto ou ainda, ao contrário, defesa da inte-
tos, submetidos à autoridade eclesiástica, foram progressiva- gridade dos despojos, o corpo dos defuntos é objeto de uma
mente reservados apenas aos fiéis", resume Michel Lauwers. atenção particular. Em todo caso, a partir do século XIII, os
Os monges da época carolíngia, eles próprios "mortos no ritos funerários da Igreja triunfam sobre os usos habituais. Os
mundo", intervêm, então, como verdadeiros especialistas na corpos dos defuntos trocam as casas pelas igrejas, que regula-
memória dos defuntos e na separação da alma em relação ao mentam os funerais. Esse fenômeno é igualmente o da urba-
corpo. Tornam-se os intermediários obrigatórios, os agentes nização dos mortos, inseparável da urbanização da sociedade
indispensáveis da "passagem", praticando a última confissão, medieval. O juridismo se impõe, sobretudo através do ressur-
a extrema-unção ou redigindo os testamentos. A Igreja, en- gimento dos testamentos. O recurso ao imaginário ou à ficção
tão, monopoliza o corpo dos defuntos, hierarquizado segun- jurídica permite até distinguir "os dois corpos do rei", como
do o prestígio social. Mas o costume e o uso perduram. "Nos mostrou o grande historiador Ernst Kantorowicz. De um lado,

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o corpo físico do rei (ou do príncipe) extingue-se no dia de é repleta de significados na Idade Média. Na realidade como
sua morte, mas, de outro, seu corpo político perdura e se no imaginário. A partir do século XII, Hellequin, o "rei dos
perpetua." "O rei está morto, viva o rei!", declara-se de ma- mortos", que reina sobre uma horda de cavaleiros danados
neira ritual e solene a partir do século xv. Parece, todavia, e outros anões luciferianos, espreita nos desvios dos cami-
que Kantorowicz exagerou um pouco o uso e a importância nhos, nas beiradas das florestas. É preciso evitar encontrá-
dos dois corpos do rei. Os homens da Idade Média, aí incluí- 10, ele e sua sinistra família - "a mesnie Hellequin"* -, de
dos os clérigos, tinham uma concepção muito mais concreta medo de partir e acabar no inferno. Há apenas uma manei-
do corpo do soberano. Pouco países, aliás, vêem essa concep- ra de escapar disso: preservar em seu corpo, até a morte, a
ção triunfar. Sob esse aspecto, a Inglaterra constitui uma ex- marca, o traço indelével que certifica a autenticidade da
ceção. E provavelmente não é por acaso que a expressão "o aparição. Assim, as narrativas de espectros se desenvolvem,
rei está morto, viva o rei" foi introduzida na França no século sobretudo a partir dos séculos X e XI. Esses espectros que
Xv, quando o país estava sujeito aos ingleses. atormentam os vivos são com freqüência "mortos prematu-
ros" ou "anormais", isto é, fantasmas de pessoas que su-
Presença dos mortos cumbiram violentamente: vítimas de assassinatos, mulheres
dando à luz, crianças não batizadas ou ainda os suicidas. As
No "outono da Idade Média", as epidemias isolam mais que aparições são de mortos que reclamam os "sufrágios" dos
individualizam. Freqüentemente distantes de seus pais ou ex- vivos (missas, esmolas e outras preces) a fim de escapar ao
pulsos de suas terras, os vivos "descobrem" a morte. "Os te- purgatório, objeto de tarifação e mercantilização. Por habi-
mas macabros, representações de corpos em decomposição e lidade e por convergência doutrinal, a Igreja acompanha e
jazendo descarnados, destinados sem dúvida a causar medo, encoraja a difusão dessas narrativas, até então remetidas à
a incitar ou a provocar arrependimento (assim como o faziam superstição e ao paganismo.
numerosas 'artes de morrer', amplamente difundidas a partir Paradoxalmente, o corpo é atingido por suas aparições
de meados do século XV), mostram também o pavor recente fantasmagóricas. "Longe de atingir apenas o espírito do so-
diante da perda da individualidade", escreve Michel Lauwers. nhador ou o do visionário, elas podem agir em seu corpo;
"Talvez representassem o protesto de uma sociedade diante longe de serem totalmente imateriais, elas podem possuir uma
da solidão e do abandono." Talvez estejam aí Ariês e Elias certa corporeidade; longe de serem totalmente indiferentes
reconciliados em uma dupla refutação. Pois se a "morte tran- ao corpo do morto, elas podem, no caso da aparição de um
qüila" do primeiro não parece ter sido o quinhão dos ho-
mens da Idade Média, "a solidão dos moribundos" do segundo
"No imaginário medieval, o Hellequin é o mensageiro do Diabo, que conduz
não é apanágio apenas dos contemporâneos. um grupo de demônios ("a mesnie Hellequin"), Dele teria derivado, já em
Em todo caso, uma coisa é certa: a presença dos mortos uma versão burlesca, o Arlequim da commedia de/l'arte. (N. do T.)

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morto, manter relações com o cadáver", destaca]ean-Claude decomposição é onipresente, como para lembrar a igualdade
Schmitt, em seu grande estudo sobre os espectros." que une os homens de uma sociedade, porém fortemente
De fato, em numerosas narrativas, estes queimam os vi- hierarquizada na morte: "E, se serão comidos por vermes/
vos. Conta-se mesmo, em um famoso exemplum do século Vossos corpos, infelizmente, olhai para vós mesmos/ Mortos,
XIII e em A lenda dourada, de ]acopo da Varazze, que, para apodrecidos, fétidos, descobertos/ Como somos, assim sereis
convencer o mestre universitário Seria da vaidade de seu sa- vós", cantam os poetas. E, para completar a sátira social, diz-
ber, "o espectro deixa cair sobre sua mão uma gota de suor se do cadáver do rei: "Não é nada além de carne para os
incandescente, que, instantaneamente, o atravessa de um lado vermes/ Todos estando aos vermes destinados."
a outro". Os fantasmas saem dos túmulos, atormentam os Mas a arte macabra se estende a todas as formas de repre-
vivos, chegam até a lutar com eles ou bebem seu sangue, em sentação, iconográficas em particular. Afrescos, esculturas,
particular nas impressionantes narrativas de Yorkshire de fins miniaturas, gravuras ou cartas de jogar, a imagem - esse "li-
do século XII. Shakespeare é bem um homem da Idade Média. vro do pobre" - infunde nos espíritos o terror da morte e a
Assim como os dos santos, cujo "odor de santidade" esca- aversão ao cadáver que se desenvolve no século XlV, isto é,
pa dos cadáveres, os corpos dos espectros não se putrefazem. na Idade Média tardia. A peste e a lepra contribuem incon-
Os corpos dos santos e dos ruins escapam assim à dura lei testavelmente para esse medo renovado. Prefere-se então a
fisiológica. Uma nova arte, originária das representações me- representação do cadáver ao esqueleto, até então mais amá-
dievais da morte, frustra também todas as regras da biolo- vel e quase cômico. O transi* (aquele que passou) ou as está-
gia: a arte macabra. tuas de mortos fazem então sua aparição sobre os túmulos e
O tema das "três mortes e das três vidas", de origem incer- sepulturas cristãos, como a do cardeal Lagrange, na França,
ta, estende-se no Ocidente a partir do século XIII. Trata-se de sobre o túmulo do qual se encontra representado um cadáver
um diálogo entre três jovens e três cadáveres com a finalidade que remete à sua vaidade e à sua humildade: "Tu serás logo
de fazê-Ias compreender a sorte de cada um: "O que vós sais, como eu, um cadáver medonho, pasto dos vermes."
nós o fomos", diz o primeiro morto. "O que nós somos, vós o Contrariamente à nossa época, quando o medo parece
sereis." Certos historiadores e semiólogos viram na palavra estar focalizado na dor e na agonia, o maior temor dos ho-
"macabro" uma onomatopéia que daria a entender, na língua, mens da Idade Média era a morte súbita. Com uma morte
o choque de ossos, outros viram uma dança dos esqueletos precipitada, corria-se o risco de morrer em estado de pecado
(mactorum chorea). Seja o que for, a arte macabra, isto é, as mortal e, assim, reforçavam-se as chances de ser condenado
obras relativas ao cadáver, triunfa, sobretudo na dança. ao inferno. Como ensina o Evangelho de Mateus, no fim dos
Como observa André Corvisier, "os poemas dos mortos
são em princípio formas de sermão"." Dirigem-se, portanto, "Figura escultórica da Idade Média ou da Renascença que representa um ca-
à alma em primeiro lugar, mas a obsessão pelo cadáver em dáver devorado pelos vermes. (N. do T.)

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tempos, quando do Juízo Final, Deus separará os maus dos ças mortas sem batismo, que, como vimos, é uma espécie de
justos. De um lado, os "bodes" irão encontrar o caldeirão do peneira destinada a poupá-Ias do suplício do inferno, ruja
diabo e o fogo eterno do inferno, de outro, as "ovelhas" se- metáfora é ainda corporal: a goela.
rão conduzidas ao jardim do paraíso. A conduta da vida de- Pois, como mostrou notavelmente Jérôme Baschet em seu
termina o destino após a morte. Aos pecadores, o inferno; estudo sobre as representações do inferno na França e na Itá-
aos piedosos, o paraíso. As mulheres e os homens da Idade lia, a goela torna-se, a partir do século XI, "o motivo quase
Média são invadidos por esse pensamento, por esse horizon- obrigatório da representação infernal", que se pode observar
te celeste ou funesto. sobretudo nos tímpanos das catedrais de Paris, de Chartres
A essa dualidade do além, o cristianismo do Novo Testa- ou de Bourges." Trata-se, em um primeiro momento, da goe-
mento acrescenta o episódio da ressurreição dos corpos que se la imunda e gigante do Leviatã, monstro da mitologia fenícia
segue ao Juízo Final. Como lembra jérôrne Baschet, "o destino que engole os danados. A pior das dores do inferno é, mais
no além não é apenas a sobrevivência da alma, é também o uma vez, corporal: é a danação, que consiste na privação da
destino eterno do corpo ressuscitado. Os condenados serão, visão da SantÍssima Trindade.
portanto, atormentados, em seu corpo e em sua alma, e os Assim, destaca Jérôme Baschet,
eleitos se beneficiarão, na beatitude celeste, de um corpo glorio-
so, dotado de dons maravilhosos, deslocando-se sem esforço, o inferno aparece como um poder animal, manifestando uma
radiante de luz, de uma perfeita beleza e eterna juventude. Tal hostilidade devoradora sublinhada por suas presas afiadas,
é a redenção que o cristianismo promete, no outro mundo, a sua mandíbula caricata e seu olhar hipnótico. No meio da
agitação das chamas e das serpentes, os demônios, de corpos
esse corpo que ele consagra neste mundo ao desprezo"." A
animalescos e monstruosos, se movimentam com suas gar-
partir da segunda metade do século XII, surge um terceiro lu-
ras e suas armas. Entre os danados, empilhados de maneira
gar, uma espécie de sala de espera, inventada para os pecado-
confusa ou postos a ferver em um caldeirão, reconhece-se
res comuns, isto é, os mais numerosos: o purgatório." com freqüência, por seus barretes, reis e bispos (também os
Nesse lugar subterrâneo, as almas dotadas de um tipo de há no paraíso!), assim como o avaro, com sua bolsa em tor-
corpo eram atormentadas como no inferno, mas com a espe- no do pescoço, e a luxuriosa, mordida nos seios e no sexo
rança de sair, de que o tormento termine. E, pela graça de por serpentes ou sapos.
Deus, mas também com a ajuda da Igreja, que tinha o poder
de diminuir os dias de pena pela outorga das "indulgências", A partir do século XIv, a imagem infernal do Leviatã cede
havia esperança de reencontrar o corpo glorioso do paraíso. cada vez mais espaço ao "imperador da dor", isto é, a Satã, como
A morte torna-se assim "o salário do pecado". A geografia do escreve Dante. "Vê-se igualmente diversificarem-se os suplícios:
além enriquece-se igualmente nos dois limbos, o dos patriar- enforcamento, amputação, castração, o corpo colocado para assar
cas (libertados por Jesus no Antigo Testamento) e o das crian- em um espeto, esfolamentos ... O abundante repertório dos cas-

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tigos da justiça terrestre é convocado e até largamente ultrapas-


sado por esse imaginário sádico", escreveJérôme Baschet. "Além
disso, existe a preocupação de adaptar o castigo à falta cometi-
da: os coléricos se apunhalam mutuamente, os avaros são mar-
cados com ouro fundido, os sodomitas são empalados, os
orgulhosos são esmagados sob os pés de Satã, os luxuriosos,
unidos em uma cópula eterna (no fogo!), os glutões são coloca-
dos diante de uma mesa sem poder comer."
Assim, como diz jean-Claude Schmitt, na Idade Média "os
mortos estavam no centro da vida, como o cemitério estava no
3. Civilizar o corpo
centro da aldeia"." A tensão que atravessa o corpo na Idade
Média é ainda manifesta no caso da morte: "A alma é 'espiri-
tual', mas 'passível': ela é torturada no inferno ou no purgató-
rio por um fogo ou um frio que os homens da Idade Média [...]
imaginam tão concretamente que os chamam de 'corporais'."
De fato, constata jean-Claude Schrnitt, a cristianização
medieval jamais pôde resolver a contradição entre duas de
suas exigências mais profundas: "De um lado, o desejo de
negar o corpo para melhor voltar-se para Deus e, portanto,
assimilar o 'espiritual' ao imaterial; de outro, a necessidade
de imaginar o visível, portanto, de situá-Ia no espaço e no
tempo, de conceber lugares, formas, volumes e corpos de onde
eles deveriam ter sido excluídos."

13 o
Na impossibilidade de controlá-lo completamente, a Igreja irá
dedicar-se a codificar, regulamentar, arregimentar o corpo. Her-
dando comportamentos antigos e pagãos que refuta, recusa,
acompanha ou acomoda, ela se apropria das práticas corporais.
Arte culinária, beleza, gestos, amor, nudez... todos os domínios
da vida social e privada que colocam em jogo o corpo vão ser
inseridos nessa nova ideologia que triunfa na Europa. Mas trata-
se de uma evolução de longa duração. O cristianismo instituído
e a sociedade de corte nascente vão "civilizar o corpo" através
da instituição das boas maneiras. Entretanto, o corpo resiste.
No universo das margens e das narrativas literárias em que o
erotismo e a nudez, por exemplo, se fazem ver. Nas festas popu-
lares em que os homens se divertem. No imaginário do país da
Cocanha. Atravessado por essas contradições e essas oposições,
o corpo em perpétuo movimento irá deixar grandes contribui-
ções para a nossa civilização- a saber, uma certa concepção de
civilização de que retivemos aqui alguns traços, exemplos e do-
mínios entre numerosos testemunhos.

A GULA E A GASTRONOMIA

A tensão que atravessa o corpo no Ocidente medieval perma-


nece viva, apesar de tudo. É pelo corpo que passam a peni-

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JACQUES lE GOFF E NICOLAS TRUONG UMA HISTÓRIA DO CORPO NA IDADE MÉDIA

tência e o ascetismo, a mortificação e os jejuns. Um dos pio- e cultivavam cereais, de onde provinha sua bebida "nacional",
res pecados é a gula (a goela), quase sempre associada à luxú- a cervoise de cevada, que será destronada a partir do século
ria. Os monges desenvolverão, assim, um regime alimentar XIV pela cerveja feita de lúpulo. Por sua vez, os romanos
específico, uma dietética do corpo. Em um primeiro momen- criavam animais e consumiam carne.
to, a carne será proscrita, em proveito dos peixes e, melhor Mas a oposição entre esses dois modelos exacerba-se nos
ainda, dos legumes, isto é, plantas e ervas selvagens para os séculos III e IV,quando o Império Romano é ameaçado. Para
eremitas que pensavam, assim, aproximar-se mais da imagem vários romanos, com efeito, a oposição entre uma civilização
do jardim do Éden. Mas as correspondências e as convergên- do trigo e uma civilização da carne assemelhava-se à oposi-
cias sociais e políticas entre a aristocracia e o alto clero irão ção entre civilização e barbárie. Mais tarde haverá uma na
aos poucos aproximar suas práticas alimentares. A carne rea- oposição entre a cerveja, pagã e popular, e o vinho, cristão e
parecerá nos mosteiros. aristocrático. No entanto, isso não impedirá os franciscanos
Mas, ao mesmo tempo, a alimentação é, como vimos, um de distinguir, no século XIII, os "conventos de vinho" e os
dos principais motivos de prazer. A civilização dos costumes "conventos de cervoise", sem estabelecer hierarquia entre eles.
alimentares irá progredir, portanto, de acordo com dois ca- Como observou Massimo Montanari, "a simbiose entre esses
minhos diferentes. Por um lado, por meio de um regime dois mundos e essas duas culturas irá se dar porque os pró-
dietético, em geral oriundo das práticas alimentares monásti- prios vencedores do conflito, os Bárbaros, que se tornaram a
cas e, por outro lado, através da busca - nas classes superio- classe dirigente na Europa medieval, cedem ao encanto do
res da sociedade, nobres e burguesas, mas também eclesiásticas modelo romano e aceitam seus valores".' Mas não é necessá-
- dessa forma de refinamento que transforma a alimentação rio neglicenciar a força do cristianismo nessa conversão dos
em cultura, a cozinha em gastronomia. E que dará uma res- bárbaros ao modelo alimentar antigo: o pão, o vinho e o óleo
peitabilidade ao prazer. são alimentos sagrados e litúrgicos, essenciais para essa nova
religião que amplia seus domínios.
Duas alimentações, duas culturas: um encontro Dito isto, a tensão permanece manifesta entre esses dois
modelos, sobretudo através da promoção da floresta no es-
A Idade Média herda dois modelos alimentares opostos: a paço e no imaginário medievais.' A Idade Média irá, com
civilização do trigo e a civilização da carne. A primeira, mais efeito, civilizar a floresta, ao mesmo tempo detestável e dese-
precisamente, composta da tríade trigo-vinho-óleo, é a da jável, buscada e evitada. Reserva de caça, espaço de colheita,
Antigüidade mediterrânea dos gregos e dos romanos. A lugar de pesca e de apicultura, caça e criação de animais em
segunda pertence às populações bárbaras, os germânicos em semiliberdade, a floresta em que fervilha todo um mundo de
particular, com freqüência lançadas pelos autores antigos nas "boisilleurs", como diz Marc Bloch, torna-se um local de pro-
trevas da bestialidade. Trata-se, seguramente, de um esquema- dução que completa o modelo agrícola e vitícola. O Grande
tismo, quase uma caricatura. Os bárbaros, igualmente, comiam Porco, animal célebre e celebrado das florestas, torna-se qua-

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se o equivalente da Grande Mãe, a Terra dos povos mediter- O desequilíbrio é antes social do que estritamente nutriti-
râneos. Em resumo, os modelos germânicos e romanos se vo, mais quantitativo que qualitativo. A distinção social passa
encontram, a fim de criar uma cultura alimentar específica na pela alimentação. Prestígio da corpulência e do apetite ("não
Idade Média. Cereais e legumes, carnes e peixes: um modelo é digno de reinar sobre nós aquele que se contenta com uma
misto se estabelece pouco a pouco no Ocidente medieval. refeição frugal", teria dito o arcebispo de Metz ao duque de
Ricos e pobres irão beneficiar-se dessa alimentação equilibra- Spoleto quando este foi reivindicar a coroa do rei dos fran-
da. Sofre-se pouco com escassez e penúria na alta Idade Mé- cos), banquetes e festins: a aristocracia nobre e guerreira exalta
dia, sobretudo devido à fraca pressão demográfica, mas a abundância, de que o país de Cocanha é o equivalente ima-
igualmente porque a alimentação nesse período é sem dúvida ginário e popular.
mais equilibrada do que se acreditou por muito tempo. A Pois, com a expansão demográfica dos séculos IX e X -
horta, local de produção privativo, é isenta de imposto, con- sem dúvida nenhuma, graças a essa situação de relativo equi-
tribuindo assim para as necessidades diárias. Desse modo, a líbrio alimentar -, os recursos silvestres e pastorais, em cons-
Idade Média tende ao equilíbrio alimentar, que, provavelmen- tante diminuição, são pouco a pouco confiscados pelas
te, não é sinônimo de segurança, de tal forma abundam os camadas superiores, que se apropriam dos espaços de produ-
fIagelos, desigualdades e doenças. ção e de caça. ''A abolição ou, pelo menos, a regulamentação
Antes do século IX, a caça era livre. O porco negro, mais muito estrita dos direitos de exploração dos espaços incultos
próximo do javali que do porco que conhecemos hoje, era - que foi perseguida de maneira sempre mais sistemática a
rei. O vinho triunfava, mesmo que a cervoise ainda servisse partir da metade da Idade Média - talvez seja o aconteci-
de símbolo ostentado pelos pagãos diante da sacralidade cris- mento maior da história alimentar", propõe Massimo Mon-
tã. A água era suspeita devido aos germes e às doenças que tanari. Assim, "a alimentação das classes inferiores foi, desde
veicula. Ao trigo dos agricultores romanos, a Idade Média então, essencialmente fundada sobre produtos de origem vege-
dava preferência freqüentemente ao centeio e à aveia, à ce- tal (cereais ou legumes), enquanto o consumo de carne (so-
vada e à espelta, ao milho miúdo e ao sorgo. As aves domés- bretudo de caça, mas também, de modo geral, de carne fresca)
ticas eram particularmente estimadas, enquanto a caça, cujo tornou-se o apanágio de um pequeno número e foi percebido
valor simbólico é muito grande, usufruía de um papel ali- cada vez mais claramente como sinal exterior de prestígio".'
mentar muito menos importante do que se acredita. A socie- No lugar da oposição entre a civilização do pão e a da carne,
dade medieval estava mesmo em busca de um capão, pois que separava a civilização dos antigos e a dos bárbaros, apa-
conhecia o valor gustativo da carne de um galo castrado rece então a oposição entre pobres e ricos, que, de algum
(outro "saber do corpo", animal desta vez). Trata-se de "ci- modo, se reveza com ela ou a substitui. Farinha e vegetais
vilizar o corpo": é lógico, portanto, que a sociedade medie- constituem, então, o regime alimentar comum dos campone-
val seja atraída mais por essas aves domésticas do que pela ses mais humildes. O pão é considerado mais de acordo com
carne "báar b ara " d a caça. o nível e a atividade dos laboratores. Carnes ovinas e até, de

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preferência, bovinas, enfeitam as mesas dos novos e ricos ur- dem das refeições, serviço: uma civilização do corpo instala-
banos. A carne também é assimilada ao poder, à força, aos se com as artes da mesa e as boas maneiras. Proibição de cus-
músculos, obtida graças ao corpo-a-corpo guerreiro e glorio- pir, de assoar o nariz, de oferecer a um conviva um pedaço
so entre o homem e o animal. que se tenha previamente mordido ... a Idade Média civiliza
as práticas alimentares. Não se come mais estirado, como entre
As boas maneiras os romanos, mas sentado. Com os dedos, é verdade, mas de
acordo com regras estritas, à imagem dos comedores de car-
Mas o esforço para civilizar o corpo prossegue. Como mostra- neiro assado em pedaços na esfera cultural islâmica. Uma dis-
ram Norbert Elias, de modo precursor, e Jean-Louis Flandrin," tância conveniente entre os convidados também é algo a
na seqüência, a civilização dos costumes passa pelas boas ma- respeitar. O ápice material dessa "civilização dos costumes"
neiras e as artes da mesa. A preocupação com a distinção social será a invenção do garfo, que, após a Idade Média, virá de
e a busca quase obsessiva dos prazeres, isto é, os excessos Bizâncio, via Veneza.
alimentares da nobreza e da burguesia, conduzirão a essa for-
ma de refinamento que transforma o alimento em cultura, e a
cozinha, em gastronomia. Manuais de receitas culinárias nas- A ENCENAÇÃO DO CORPO
cem entre os séculos XIII e XlV. Sabores (a força dos tempe-
ros, tais como a pimenta, a canela ou o gengibre, a alfazema A civilização dos costumes na Idade Média é uma civilização
ou a galanga, a doçura do mel e das frutas secas, a acidez do dos gestos. Nesse mundo idealmente voltado para a espiritua-
agraço e do suco de limão), cores (o amarelo do açafrão, o lidade, a renúncia à carne e os templos de pedra, o gestual não
branco da amêndoa, o vermelho do purê de morangos ou de tem nada de natural. Nessa sociedade fortemente ritualizada,
cerejas), misturas (doce e salgado), cozidos (os assados são os gestos - as mãos juntas da prece, o beijo de homenagem
com freqüência preferidos às carnes e peixes fervidos), mo- vassala, promessas e contratos orais - os movimentos e as
lhos e doces, toda uma arte da culinária vem juntar-se à arte atitudes do corpo estão no centro da vida social. As represen-
de amar, lisonjear e desejar que anima as mesas burguesas, tações e os hábitos também. O corpo dos eleitos estará nu ou
assim como as das cortes européias.' Se a mulher cozinha nas vestido no Paraíso?, perguntam-se os teólogos medievais. Essa
choupanas populares e aprende com a própria mãe, o cozi- questão, como várias outras que dizem respeito ao corpo, está
nheiro profissional é um coquinarius, isto é, um comerciante longe de ser anódina para uma sociedade que balança entre o
que vende em barracas o fruto de sua arte. O chefe ligado a desprezo e a glorificação do corpo. Assim, a nudez irá oscilar
um mestre, o cozinheiro (coquus em latim) ou mestre-cuca, é entre o apelo à inocência de antes do pecado original, a beleza
uma pessoa importante nas grandes casas. A refeição, comum dada por Deus aos homens e às mulheres e a luxúria. Assim, a
ou excepcional, é um ato social, codificado, hierarquizado, beleza feminina oscilará entre Eva, a tentadora, e Maria, a re-
"que ao mesmo tempo distingue e une"." Plano da mesa, or- dentora. Igualmente, as roupas caminharão entre a armadura

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e o ornamento. Quanto aos banhos e às saunas, que são com Assim, nas representações da ressurreição dos mortos, os cor-
muita freqüência associados à prostituição, se não encontram pos saindo do caixão e do túmulo não são esqueletos, mas já
seu estatuto e sua estatura antigos, constituem, à sua maneira, estão vestidos com seu corpo de carne.
ocasiões de civilizar o corpo, que, por meio de numerosas re- Entretanto, o nu está em geral do lado do perigo, se não
presentações, se coloca em cena. do mal. Ele está do lado da selvageria e da loucura. Quando,
no romance de Chrétien de Troyes, o cavaleiro Yvain enlou-
Nu ou vestido? quece e foge para a floresta, onde vive como um animal, ele
se desfaz de todas as suas roupas. O nu é também uma das
Contrariamente à idéia consagrada, os homens da Idade Mé- principais manifestações de risco moral, que são a falta de
dia não odiavam a nudez. É verdade que a Igreja a condenou. pudor e o erotismo. A roupa, ao contrário, é não somente
Mas o corpo nu permanece no centro de uma desvalorização adorno, mas também proteção e armadura.
e de uma promoção. O cristianismo rompe claramente com À nudez vêm se opor o hábito monástico e o uniforme
as práticas antigas, sobretudo as da ginástica - do grego militar, em particular. A passagem da nudez à roupa faz-se,
gymnos, que quer dizer nu -, que os atletas exerciam despo- para os personagens mais eminentes da sociedade, segundo
jados de toda roupa. Mas, a partir do momento em que o ritos significativos: é a ordenação do monge e do clérigo, a
casamento se institui no horizonte da procriação, os casais investidura do cavaleiro. Quando da consagração dos reis, o
são autorizados a dormirem nus, como atestam várias repre- abandono das roupas anteriores e a adoção de hábitos reais
sentações. Apesar disso, mesmo no estágio do casamento, o constituem um dos ritos de passagem mais importantes. A
nu permanece uma situação perigosa. E a representação de roupa manifesta aí sua natureza contraditória de despojamento
cônjuges nus em um leito pode ser percebida como um sinal e de vestimenta.
de luxúria. Apenas o contexto permite determinar se se trata Um caso particularmente impressionante é o de São Fran-
de licença ou de obediência às leis do casamento e da procria- cisco de Assis, que manifesta sua conversão e seu engajamento
ção. Assim decaída, a nudez oscila entre a beleza e o pecado, no apostolado por meio de dois atos públicos de desnuda-
a inocência e a malignidade. mento. O primeiro, para mostrar sua renúncia solene de seus
Adão e Eva são a encarnação da ambivalência da nudez bens, de sua condição social, de toda a sua riqueza, consistiu
humana na Idade Média. De um lado, são representados ten- em desnudar-se em presença do bispo, de seu pai e do povo
tando esconder sua nudez, punição pelo pecado original. Mas, de Assis. O segundo foi pregar nu no púlpito da catedral. São
de outro, seus corpos - que evocam tanto a inocência origi- Francisco executa, ao pé da letra, a palavra de ordem procla-
nal quanto o pecado - devem ser a ocasião de figurar a bele- mada, na virada do século XII para o XIII, pelos devotos da
za dada por Deus ao homem e à mulher. A partir do século renúncia e da pobreza: "Seguir nu o Cristo nu."
XIII, a freqüência das representações de Adão e Eva testemu- A literatura mostra bem como o ideal da cortesia se exprime
nha essa atração da nudez física humana sobre os medievais. muito especialmente através do jogo entre a nudez e a vestimenta.

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Os heróis corteses, homens e mulheres, são belos. Na mulher, a prio coração da imagem da mulher. De um lado, existe Eva, a
beleza dos cabelos, valorizada por suas tranças, realça a beleza tentadora e, mais particularmente, a pecadora, que provém
do corpo nu, enquanto o corpo do homem cortês se oferece de uma leitura sexuada do pecado original. Mas, ao mesmo
especialmente à admiração e ao desejo de sua dama e das outras tempo, a Idade Média não esqueceu que o Deus do Gênesis
mulheres que podem vê-lo. Lancelote, herói dos romances criou a mulher para que ela fosse a companheira do homem,
arturianos, é belo da cabeça aos pés: cabelos, olhos, boca, pesco- a fim de não deixá-lo só. Eva representa, assim, essa auxiliar
ço e ombros, braços, quadris, coxas e pernas. Mas heróis e heroí- do homem que lhe é necessária. Por outro lado, a Eva da
nas corteses impõem-se também pela beleza de suas roupas, criação e de antes do pecado original está nua, aliás como
favorecendo, assim, o desenvolvimento da moda. A nudez cor- Adão. E a arte medieval, de que o casal da Criação será um
tês é ambígua. Ela pode ser um hino à beleza física, mas também dos grandes temas, introduz o nu feminino na sensibilidade
um aguilhão da sexualidade e da luxúria. É entre a beleza do da época.
corpo nu e a beleza da roupa, entre a inocência e o pecado, que Através dessa referência paradisíaca, dessa presença da
o homem e a mulher da Idade Média se servem de adornos ou nudez, dessa psicologia da tentação, a Idade Média descobre
do despojamento de seus corpos. a beleza feminina. François Villon dirá admiravelmente: "Cor-
A nudez permanece um problema e a sede de uma tensão po feminino que é tão soe] [suave]." Eva é uma das encarnações
mesmo depois da morte, quando os corpos ressuscitados che- da beleza que leva a Idade Média à descoberta do corpo e
gam ao paraíso. Os corpos dos eleitos ficarão nus ou vesti- sobretudo do rosto feminino, em numerosos retratos.
dos? Essa questão atormenta vários teólogos. Pois as duas Diante de Eva, Maria aparece como uma redentora. É a
posições são sustentadas e sustentáveis. A solução mais pura- beleza sagrada diante da beleza profana. E a beleza feminina
mente teológica é a da nudez, já que, após o Juízo Final, o é feita do encontro entre essas duas belezas. Mas, se o corpo
pecado original será apagado para os eleitos. Como a roupa é de Maria não é um objeto de admiração, seu rosto, sim. E é
uma conseqüência da queda, não há nenhuma necessidade de o duplo rosto da mulher Eva e da mulher Maria que produz
usá-Ia. Para outros, a nudez não depende tanto da teologia essa promoção do rosto feminino, que se impõe sobretudo
quanto da sensibilidade e do pudor. Contudo, parece que a a partir do fim da Idade Média, a partir do século XIII, com
maioria dos teólogos optou pela nudez, mas, uma vez mais, o gótico."
enquadrada, codificada e "civilizada" à sua maneira pelo cris- Esse tema e essa oposição são encontrados entre as vir-
tianismo triunfante. gens sábias e as virgens loucas. Esse tema vem de uma pará-
bola de São Mateus (25, 1-13): "Dez jovens aguardam a
A beleza feminina entre Eva e Maria chegada do esposo. Quando ele chega enfim, cinco dentre
elas mantiveram suas lâmpadas abastecidas com óleo e acesas.
Eva e Maria constituem os dois pólos da beleza feminina na _ são as sábias; cinco deixaram-nas se apagar - são as lou-.
Idade Média. A oposição exprime a tensão que existe no pró- cas." O evangelista conclui: "Velai, portanto, pois não sabeis

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JACQUES LE GOFF E NICOLAS TRUON.G UMA HISTÓRIA DO CORPO NA IDADE MÉDIA

nem o dia nem a hora." O tema foi explorado pela escultura parte das cidades da cristandade, aí incluídas as pequenas cida-
gótica para encarnar o duplo rosto da mulher e atrair a aten- des: são os banhos de estufa. Mas eles não recuperarão as prá-
ção para sua presença e seu comportamento físicos. ticas sociais das termas antigas. Eles não são, em sua origem,
locais de encontros, conversações, de bebedeiras, de festins.
O banho Uma derivação bem conhecida das estufas e duramente estig-
matizada pela Igreja na Idade Média é, contudo, a prostitui-
Assim como o desaparecimento dos estádios sublinha a su- ção. Por vezes, explicou-se a diferença do desenvolvimento entre
pressão do esporte na Idade Média, o desaparecimento das os hammans muçulmanos e as estufas cristãs por uma diferen-
termas sublinha a supressão dos banhos públicos. Isso levou ça no sentimento de pudor. Não é nada disso. É preciso aguar-
Michelet a escrever em La sorciêre [A feiticeira]: "Nenhum dar a Renascença para que os homens e as mulheres da Europa
banho durante mil anos." Essa asserção é falsa: os homens da condenem a nudez que praticam cada vez menos em público.
Idade Média banhavam-se. Estamos mal informados sobre as Nos banhos de estufa ou ainda no leito, os homens e as mulhe-
práticas individuais e domésticas do banho na Idade Média. res da Idade Média não recusam a nudez.
Por outro lado, vemos desenvolver-se, particularmente na
Itália, um verdadeiro termalismo. É preciso notar que esse Uma civilização dos gestos
termalismo parece não ter sofrido nenhuma influência do de-
senvolvimento dos banhos públicos que continuam em Bizâncio Antes do século XIII, quando o crescimento do comércio da
e nascem no Oriente no século VII sob os omíadas, e que os cidade e da administração favorece o desenvolvimento da
abássidas difundiram no Magreb, no Oriente próximo e até na escrita, a sociedade medieval é antes de tudo oral. Os gestos
Espanha, a ponto de se poder falar de um "paradigma do vão assim adquirir uma amplitude particular, mesmo que a
universalismo muçulmano". Essa prática termal é o hammam, escrita, propriedade quase exclusiva dos clérigos, seja igual-
ao qual o mundo cristão medieval é impermeável. Mas, por mente um gesto, manual, importante e respeitado. Contratos
outro lado, na Itália, em particular na Toscana, mas também e juramentos são acompanhados de gestos. Quando do ritual
na Espanha cristã, na Inglaterra ou na Alemanha, sítios termais de homenagem vassalar e de investidura, o vassalo coloca suas
aparecem em torno das chamadas bacias. mãos juntas entre as de seu suserano, que fecha as suas sobre
O exemplo mais célebre é o de Pozzuoli, ao norte de Ná- elas: é a imixitio manuum. Depois o beijo (osculum) assinala
poles, cuja reputação é sublinhada no século XIII pela grande e significa que o seu senhor o adotou em sua família," Assim,
difusão de um poema de Pietro d'Eboli, De balneis Puteolaneis, os vassalos o são "de boca e mão". Prece, bênção, incensa-
de que alguns manuscritos são ricamente ilustrados. O corpo mento, penitência ... todos os domínios da liturgia ou da fé
que se banha é bom para se mostrar em um contexto que são investidos pelo gestual.
pode evocar o batismo. As canções de gesta exaltam o gênero literário mais co-
Por outro lado, os banhos públicos desenvolvem-se na maior mum na Idade Média. Pois o gesto envolve inteiramente o

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JACQUES lE GOFF E NICOlAS TRUONG UMA HISTÓRIA DO CORPO NA IDADE MÉDIA

corpo e o ser: a expressão exterior do homem (joris) dá a ver o CORPO EM TODOS OS SEUS ESTADOS
as manifestações e movimentos interiores (intus) da alma. Mas
é preciso distinguir os gestos (gestus) da gesticulação De um lado, o gesto (gestus) é codificado e valorizado pela
(gesticulatio), isto é, das gesticulações e de outras contorções sociedade medieval, de outro, a gesticulação (gesticulatio) é
que lembram o diabo. Aqui, a tensão é ainda percebida. Por associada à desordem e ao pecado. O mesmo vale para as
um lado, o gesto exprime a interioridade, a fidelidade e a fé. contorções e as deformações. Mas o corpo não deixa de estar
Por outro, a gesticulação é o sinal da malignidade, da posses- em movimento, transbordando. No imaginário medieval, os
são e do pecado. Assim, os jograis serão perseguidos; o riso, monstros povoam a literatura e a iconografia, as narrativas
provavelmente devido à deformação da boca e do rosto que de viagens e as margens dos manuscritos. Se se perpetua ao
provoca, será condenado; a dança irá oscilar entre dois mo- longo dos séculos e das civilizações, o monstro desabrocha
delos bíblicos opostos: de um lado, o exemplo positivo da na Idade Média, que talvez tenha "mais necessidade dele",
dança do rei Davi, e de outro, a dança de Salomé diante da propõe o historiador Claude-Claire Kappler, na era da dupla
cabeça decapitada de João Batista, eminentemente negativo. inimiga que o gestus e a gesticulatio formam, na época em
Todavia, a dança jamais será digna aos olhos da Igreja, que que as deformidades e as anormalidades são comuns e comu-
condena as deformações do corpo, as contorções e outros mente depreciadas.
rebolados corporais. Do mesmo modo, condena-se o teatro. O esporte desaparece na Idade Média. Se os jogos subsis-
Jean-Claude Schmitt, grande analista dos gestos medievais, tem, a prática antiga não existe mais: estádios, circos e ginásios
tem razão em dizer, portanto, que "falar dos gestos é, em pri- desaparecem, vítimas da ideologia anticorporal. Entretanto, os
meiro lugar, falar do corpo"." E, em sua tentativa bem-sucedi- homens da Idade Média jogam e fazem esforço físico. Embora
da de identificar "a razão dos gestos" no Ocidente medieval, mais como antes, e ainda menos do que hoje, desde que o sécu-
ele conclui: "Assim, o gesto é ao mesmo tempo exaltado e for- lo XIX, desejando sobretudo reatar com os exercícios antigos,
temente suspeito, onipresente e, contudo, subordinado. Ainda definiu e instaurou aquilo que chamamos de esporte.
que domado pela moral ou pelas regras do ritual, jamais o cor-
po se dá por vencido; quanto mais se fecha sobre ele e seus A monstruosidade
gestos o círculo das normas e da razão, mais exacerbam-se tam-
bém outras formas de gestualidade, lúdicas (com os jograis), Os monstros são onipresentes no imaginário medieval e na
folclóricas e grotescas (com o Carnaval) ou místicas (com os iconografia. Alguns provêm da Bíblia, como Leviatã, outros,
devotos e os flagelantes da Idade Média tardia)." Por trás dos da mitologia greco-romana, como a hidra, e muitos são "im-
gestos, Quaresma e Carnaval travam ainda um corpo-a-corpo. portados" do Oriente. No imaginário da Índia, que foi um
E a fala, como o riso, é também um fenômeno corporal, passa reservatório onírico do Ocidente medieval, existe uma pro-
pela boca, esse filtro imperfeito que deixa escapar os palavrões fusão de monstros que, segundo uma etimologia manipula-
e as blasfêmias tanto quanto as preces ou as prédicas. da, mostra a capacidade de Deus em criar uma infinidade de

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JACQUES tE GOFF E NICOtAS TRUONG
UMA HISTÓRIA DO CORPO NA IDADE MÉDIA

seres além do homem. Como bem analisou Claude-Claire


corpo. São Bernardo, ao condenar os monstros de pedra dos
Kappler, os monstros podem ser classificados segundo sua
particularidade corporal. 10 claustros de Cluny, é testemunha, apesar de tudo, do fascínio
que eles provocam: "O que vêm fazer, nos claustros, sob os
Existem monstros aos quais falta algo de essencial (cabe-
olhos dos irmãos ocupados em rezar, essa galeria de mons-
ça, olhos, nariz, língua etc.), existem aqueles nos quais certos
tros ridículos, essa confusa beleza disforme e essa bela de-
órgãos (orelhas, pescoço, um pé, lábio inferior, órgãos sexuais)
são hipertrofiados, reduzidos à unidade (ciclope ou, ao con- formidade?"
O imaginário do corpo monstruoso tem livre curso nas
trário, multiplicados (duas cabeças, dois corpos, vários olhos,
representações dos dragões, aos quais é confrontado um São
braços, dedos ou artelhos). Existem monstros cujo corpo é
Jorge. Com freqüência, o Diabo toma uma forma monstruo-
de uma grandeza ou pequenez excepcionais: gigantes e anões.
sa para apavorar o homem. E o mundo da monstruosidade é
Os monstros provêm de uma mistura de gêneros (vegetal
bastante vasto para oferecer monstros até ao simbolismo po-
e humano, por exemplo, como a mandrágora, cujas raízes
sitivo, como o licorne, por exemplo, símbolo da virgindade.
têm forma humana, homem ou mulher) ou, sobretudo, são
muitos os monstros por hibridismo, humanos com cabeça de Mesmo aí, existe a tensão.
animal, animais com cabeça ou tronco humanos, tais como as
sereias, as esfinges, os centauros e a interessante Melusina, o esporte?
mulher com cauda de serpente ou de peixe que ela dissimula,
de modo que exerça um papel conjugal, maternal e social." Os historiadores por muito tempo se perguntaram se "o ho-
Existem homens peludos, que podem viver como homens mem medieval" havia praticado esporte. Ora, parece que os
"selvagens", tema iconográfico na moda no século XIV e, exercícios físicos da Idade Média não se ligam nem ao espor-
sobretudo, no século xv. Existem também monstros destrui- te antigo (grego, em particular) nem ao moderno, isto é, tal
dores: antropófagos e dragões devoradores. como ele foi codificado desde o século XIX. O "esporte me-
Se a mistura dos sexos resulta em andróginos encarnando dieval" não apresenta nem o caráter de referência à socieda-
os fantasmas sexuais dos cristãos medievais, as cores julgadas de de organização institucional, nem as condições econômicas
anormais, em particular a da pele negra, permitem entrever que foram as do esporte na Antigüidade ou quando de seu
as tendências racistas ligadas à cor da pele. renascimento, no século XIX.
A Índia do sonho medieval é povoada de ciclopes, de ho- Os exercícios físicos, porém, tiveram grande importância
mens que têm olhos sobre o torso, os ombros ou o umbigo, na Idade Média. Chegaram mesmo a fazer parte daquilo que
homens que têm apenas um pé desmesurado que eles levam à Norbert Elias chamou de o "processo civilizador", que con-
cabeça para fazer sombra - são os ciapodos. E essas criatu- siste sobretudo em "civilizar o corpo". Ora, se aceitarmos a
ras são, em geral, caracterizadas por anomalias físicas, o que definição de esporte que ele oferece em Sport et civilisation, 12
faz do monstro uma testemunha importante da história do parece difícil empregar o termo "esporte" para designar os
jogos corporais medievais. Pois o esporte não é apenas um
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JACQUES lE GOFF E NICOlAS TRUONG UMA HISTÓRIA 00 CORPO NA IDADE MtDIA

"combate físico não violento", mas também uma prática que notoriedade na vida cotidiana dos homens e das mulheres da
postula a igualdade social dos participantes, necessita de um Idade Média. O primeiro, que sempre foi visto como o an-
lugar específico e reproduzível para a sua prática (estádio, cestral do tênis, é o jogo da péla, que de bom grado podemos
ginásio etc.), de regras compartilhadas pelos adversários, assim aproximar da pelota basca. O segundo é a sou/e, em que se
como um calendário de competições que lhe seja próprio. acreditou ver o ancestral do futebol. Ora, nem um nem outro
Como observa Roger Chartier sobre essa obra-prima sempre são praticados como esporte.
discutida, "a continuidade do vocabulário ou a similitude dos Resta que, como Bernard Merdrignac, em particular, des-
gestos, com efeito, não devem confundir: entre os esportes tacou em seu livro contestável, mas sugestivo, Le sport au Moyen
modernos e os jogos tradicionais, as diferenças são mais for- Âge [O esporte na Idade Média]," a civilização medieval con-
tes que as permanências". cedeu bastante espaço ao "corpo em movimento". E é preciso
Uma primeira característica dos exercícios físicos medie- dar todas as dimensões a essas manifestações que, além dos
vais reside na separação quase completa entre os jogos cor- gestos, implicam jogos de bolas, as quais aparecem como aces-
porais cavalheirescos, destinados a adquirir uma formação sórios importantes ligados às práticas do corpo. É preciso acres-
militar e a exibir as práticas particulares das camadas superio- centar - e aqui ainda -, seja no quadro dos divertimentos
res da sociedade, e os jogos populares. Essa distinção social cavalheirescos e senhoriais, seja no quadro das festas popula-
manifestou-se em particular nos torneios, a respeito dos quais res, os exercícios daqueles que eram chamados, em geral, de
Georges Duby sublinhou, em Le dimanche de Bouuines, 13 que jograis. O que implica usos do corpo claramente distintos da-
suscitavam uma vasta organização e respondiam a motiva- queles a que se reduziram os jograis nas épocas moderna e
ções econômicas, pouco diferentes daquelas solicitadas pelo contemporânea, no quadro de uma organização e de uma ati-
esporte moderno e contemporâneo. Em uma palavra, a orga- vidade que aparecerá somente no século XVI: o circo.
nização de um torneio não é a mesma de um jogo. Não há Nada de estádio, nada de circo na Idade Média. Nada de
equipes regulares, nem estádios, para apontar apenas as ca- esporte. Pois não existe lugar específico reservado a essas prá-
racterísticas mais notáveis. ticas. Campos, vilarejos, praças: são sempre espaços improvi-
O outro conjunto de exercícios físicos praticados na Ida- sados que servem de terreno para o desenrolar das fortes
de Média é o das camadas inferiores da sociedade, particular- tensões e das "excitações agradáveis" do corpo, isto é, do
mente dos camponeses. corpo-a-corpo em público, para retomar o vocabulário de
Esses exercícios comportam também um aspecto guerreiro Norbert Elias. É possível hoje, todavia, ver a continuidade
ou indicam no mínimo combates de defesa. Eles se reagrupam dos exercícios e jogos da Idade Média no cabo-de-guerra ou
freqüentemente em torno da luta. Mas as coletividades medie- na luta que se pratica nos campos, quando das indulgências,
vais praticam igualmente outros jogos, que se tornarão, com na Bretanha. Mas, se é preciso reconhecer a importância e a
a competição e a codificação, "esportes". existência das manifestações físicas medievais, não se pode
Entre esses jogos, dois se impõem por sua importância e associá-Ias ao esporte.

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JACQUES LE GOFF E NICOLAS TRUONG

Após seu eclipse na Idade Média, profundas mudanças


sociais e culturais explicam o renascimento do esporte no sé-
culo XIX. A introdução da concorrência, em particular, que,
com a revolução industrial, se estende para além da esfera
econômica. Assim nascem os esportes coletivos de jogos de
bola, que levam à constituição de equipes. Nascidos nos colé-
gios ingleses com a sociedade aristocrática moderna, o rúgbi
e o futebol estendem-se à Europa inteira. Este será mais tar-
de, ainda entre os anglo-saxões, o caso do boxe, com a insti- 4. O corpo como metáfora
tuição de novos locais de exercícios esportivos, como o ringue.
O desenvolvimento da ginástica, essencialmente nos paí-
ses germânicos e escandinavos, com o nascimento da "ginás-
tica sueca", acompanhará a nova cultura e a nova ideologia
do corpo no século XIX, em resposta aos princípios de higie-
ne. Ao higienismo vem juntar-se uma outra ideologia corporal:
a performance, que será mais individual- sobretudo no qua-
dro do atletismo - do que coletiva. O retorno da velha ideo-
logia antiga em um contexto inteiramente diferente: mens
sana in corpore sano (uma mente sadia em um corpo sadio).
Todo esse feixe de fatores econômicos e sociais, simbóli-
cos e políticos, contribui para desenvolver, no século XIX,
uma ideologia que, saltando no tempo por cima da Idade
Média, pretendeu-se ligar à prática e à ideologia da Antigüi-
dade greco-romana e que resultou na criação dos Jogos Olím-
picos, em 1896. Aqui, portanto, a Idade Média não é um
antepassado.

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Estado, cidade, Igreja, universidade, humanidade ... O corpo
torna-se, na Idade Média, uma metáfora. Sem dúvida, isso
não é novidade no Ocidente. EmA República, Platão já havia
imposto um modelo organicista à sua "cidade ideal", distin-
guindo e separando a cabeça (o filósofo rei) do ventre (os
agricultores) e dos pés (os guardas). Mais tarde, Hobbes reto-
mará, em seu Leviatã (1651), a imagem de um Estado simbo-
lizado pelo corpo de um gigante, um soberano formado pelo
corpo da multidão da sociedade humana.
É na Idade Média, contudo, que se enraíza o uso da me-
táfora do corpo para designar uma instituição. A Igreja, como
comunidade de fiéis, é vista como um corpo do qual Cristo
é a cabeça. 1 As cidades, sobretudo através do impulso das
conjurações e das comunidades urbanas, tendem a formar
igualmente um "corpo místico".' As universidades funcio-
nam como verdadeiros "corpos de prestígio";' Mas talvez
seja em torno da questão política que se ligue e se jogue a
sorte da metáfora corporal na Idade Média, enquanto se
desenvolve a analogia entre o mundo e o homem. O homem
torna-se um universo em miniatura. E um corpo nu, como
em uma magnífica miniatura de um manuscrito da cidade
de Lucca do Livres des oeuvres divines de Hildegarde de
Bingen (Liber divinorum operum), datado do século XII,

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JACQUES lE GOFF E NICOlAS TRUONG UMA HISTÓRIA DO CORPO NA IDADE MÉDIA

reproduz em tamanho pequeno o mundo no centro do qual obedecer, pois ele transforma o alimento em sangue, que é
ele se encontra. enviado, pelas veias, a todo o corpo. É desse modo que a
Idade Média herda metáforas antigas.

o HOMEM-MICROCOSMO o coração, corpo do delírio

o tema do "homem-microcosmo" se expande na filosofia Do século XIII ao século Xv, a ideologia do coração se ex-
do século XII, no seio da escola de Chartres com o tratado pande e prolifera através de um imaginário que chega por
de Bernard Silvestre De mundi universitate sive megacosmus vezes ao delírio. No fim do século XII, o teólogo Alain de
et microcosmus [Sobre o universo do mundo ou megacosmo Lille já exalta "o coração, sol do corpo". É como ilustra, so-
e microcosmo), com a extraordinária abadessa Hildegarde bretudo, o tema do coração devorado, que se insinua na lite-
de Bingen e a não menos surpreendente Herade de ratura francesa do século XIII. Do Lai d'Ignauré, amante de
Landsberg, em Hugues de Saint-Victor, em Honorius doze damas que os doze maridos enganados matam após tê-
Augustodunensis. Esse tema será legado à literatura enciclo- 10 castrado e ter-lhe arrancado o coração, dando-o de comer
pédica e didática do século XIII. No mundo sublunar pro- (com o falo) às doze infiéis, ao Roman du châtelain de Couci
veniente de Aristóteles e sob a influência dos astros et de Ia dame de Fayel, em que uma mulher é também vítima
desenvolvida por uma astrologia triunfante, o corpo tornou- de uma cruel refeição, na qual deve comer o coração de seu
se a metáfora simbólica do universo. amante," as narrativas eróticas e corteses testemunham essa
As metáforas corporais se articularam na Antigüidade, presença obsessiva. Na melancolia saturniana do outono da
principalmente em torno de um sistema caput-venter-membra Idade Média, no século Xv, a alegoria do coração inspira ao
(cabeça-entranhas-membros), ainda que, evidentemente, o bom rei Renato o livro do Coeur d'amour épris;' Nesse sécu-
peito (pectus) e o coração (cor), como sedes do pensamento e lo Xv, exaspera-se o tema do martírio do coração, lugar pri-
dos sentimentos, tenham se prestado a usos metafóricos. vilegiado do sofrimento.
Em relação às entranhas, o fígado (hepar, em grego, ou, É preciso ir além dos limites cronológicos da Idade Mé-
mais freqüentemente, jecur ou jocur) desempenhou um papel dia tradicional, o século Xv, para poder avaliar a evolução da
simbólico particularmente importante. A princípio, na adivi- imagem do coração. No fim do século XVI, e sobretudo no
nhação herdada dos etruscos, que faziam dele uma espécie de XVII, um lento "progresso" da metáfora do coração irá levar
órgão sagrado, em seguida, em sua função de sede das paixões. à devoção do Sagrado Coração de Jesus, avatar barroco da
No apólogo de Menenius Agrippa segundo Tito Lívio, é o mística do coração preparada desde o século XII com o "muito
ventre (designando o conjunto das entranhas) que exerce no doce coração de Jesus" de São Bernardo e a transferência da
corpo o papel de coordenação e ao qual os membros devem chaga do Cristo crucificado do lado direito para o lado es-

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L
JACQUES LE GOFF E NICOLAS TRUONG UMA HISTÓRIA DO CORPO NA IDADE MÉDIA

querdo, O lado do coração. Na mesma época, no século Xv, o pio cristão da hierarquia: não apenas Cristo é a cabeça da
coração da Virgem é perfurado pelos gládios das sete dores." Igreja, isto é, da sociedade, mas também Deus é a cabeça de
Desde o século XVI, irrompe na espiritualidade mística, Cristo. "Cristo é o chefe de todo marido, mas o chefe da
no franciscano João Vitrier e no cartuxo João Lansperge, a mulher é o marido. E o chefe de Cristo é Deus", diz Paulo em
importância e a polissemia do vocábulo "coração". A devo- sua primeira Epístola aos Coríntios (11, 3). A cabeça é assim,
ção ao Sagrado Coração de Jesus desenvolve-se na época "bar- de acordo com a fisiologia antiga, o princípio de coesão e de
roca" da Idade Média, nos escritos de Santa Gertrudes de crescimento (Epístola aos Colossenses, 2, 19).
Helfta (morta em BOlou 1302), e de João de Lansperge, O reforço metafórico do coração é ainda maior. Não so-
mestre dos noviços da cartuxa de Colônia de 1523 a 1530.7 mente, como Xavier-Léon Dufour destacou, o coração é, no
É surpreendente ver que, nas instruções deixadas por São Novo Testamento, "o lugar das forças vitais", mas, geralmente
Luís, antes de sua morte, a seu filho, o futuro Filipe I1I, assim empregado em um sentido metafórico, ele designa igualmen-
como à sua filha Isabel, a dupla corpo/alma nunca aparece, e te a vida afetiva e a interioridade, "a fonte dos pensamentos
a metáfora antitética que exprime a estrutura e o funciona- intelectuais, da fé, da compreensão". Ele é "o centro das esco-
mento do indivíduo cristão é a da dupla corpo/coração. O lhas decisivas, da consciência moral, da lei não escrita, do
coração absorveu tudo o que há de espiritual no homem." encontro com Deus".'?
O coração é definido por Aristóteles como a origem da
A cabeça, função dirigente sensação, e o aristotelismo medieval retoma o tema. Santo
Agostinho faz do coração a sede do "homem interior". No
A cabeça (caput) era para os romanos - como para a maior século XII, século da proclamação do amor, afirmam-se pa-
parte dos povos - a sede do cérebro, órgão que contém a ralelamente o amor sagrado, exaltado sobretudo em nume-
alma, a força vital da pessoa e que exerce no corpo a função rosos comentários ao Cântico dos Cânticos, e o amor profano,
dirigente. O historiador Paul-Henri Stahl mostrou bem como que toma as formas do amor cortês. No domínio da simbologia
as práticas de decapitação - muito presentes nas sociedades política do coração, o costume em relação aos reis e aos po-
arcaicas e medievais - testemunham essas crenças nas virtu- derosos de dividir os corpos após a morte multiplica a cons-
des da cabeça. A caça às cabeças foi animada pelo desejo de trução de "túmulos do coração". Filipe, o Belo, em seu conflito
anular e, com freqüência, de apropriar-se - pela posse do com o papado, pratica uma verdadeira "política do coração".
crânio - da personalidade e do poder de um estrangeiro, de
uma vítima ou de um inimigo." O fígado, grande perde dor
O valor simbólico da cabeça se reforça singularmente no
sistema cristão, pois ela é enriquecida pela valorização do alto Há, em contrapartida, um "perdedor" nessa configuração
no subsistema fundamental alto/baixo, expressão do princí- metafórica: o fígado. Não apenas seu papel na adivinhação

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UMA HISTÓRIA DO CORPO NA IDADE M~OIA
JACQUES lE GOFF E NICOlAS TRUONG

- já arcaica e sempre "estrangeira" entre os romanos - ha- proteção e do comando. É antes de tudo o caso da mão de
via sido completamente apagado devido à recusa cristã de Deus saindo do céu para guiar a humanidade. Ela também é a
todas as formas de adivinhação pagãs, como vimos a respeito operadora da prece que define o clérigo e, mais amplamente,
da interpretação dos sonhos, mas seu estatuto "fisiológico- o cristão, cuja figura mais antiga foi a do suplicante. * Ela
simbólico" sofrera uma forte degradação. Segundo Isidoro executa os gestos por excelência.
de Sevilha, representante do saber "científico" de base, mis- Mas é também o instrumento da penitência, do trabalho
turando fisiologia e simbolismo moral no domínio das metá- inferior. É com o duplo sentido contraditório de resgate e de
foras corporais da cristandade medieval, "In jecore autem humilhação que São Bento inscreve o trabalho manual no
consistit voluptas et concupiscentia" ("o fígado é a sede da primeiro nível dos deveres do monge, sem que ele contribua
concupiscência"). Essa frase conclui a definição da função para a reabilitação geral do trabalho. Como já vimos, o poeta
fisiológica desse órgão: Rutebeuf afirmou orgulhosamente no século XIII: "Não sou
trabalhador manual."
o fígado tira seu nome do fato de que é a sede do fogo que Essa ambigüidade da mão encontra-se no gesto simbólico
sobe ao cérebro (etimologia extraída de jacio e jeci, que que- da vassalagem, a homenagem, que se encontra no coração do
rem dizer expelir, lançar ou enviar). Daí ele se espalha para sistema feudal. O vassalo coloca suas mãos entre as do se-
os olhos e para os outros sentidos e membros e, graças a seu
nhor em sinal de obediência mas também de confiança.
calor, transforma o suco tirado do alimento em sangue que
Outra parte do corpo sela a harmonia simbólica do se-
ele oferece a cada um dos membros para que cada um destes
nhor e do vassalo: a boca, por meio do beijo simbólico da
dele se alimente.
paz. E esse beijo é um beijo na boca. Ele passa para o domínio
da vassalagem cortês: é o símbolo do amor cortês entre o
o fígado - diz-se igualmente "ventre" ou "entranhas"
cavaleiro e sua dama.
- é, assim, transferido para um ponto inferior, para abaixo
da cintura, ao lado das partes vergonhosas do corpo. E torna-
se a sede da luxúria, dessa concupiscência que, desde São Paulo
A UTILIZAÇÃO POLíTICA DA METÁFORA CORPORAL
e Santo Agostinho, o cristianismo persegue e reprime.

As concepções organicistas das sociedades fundadas sobre


A mão, instrumento de ambigüidade
metáforas corporais que utilizam ao mesmo tempo partes do

No sistema da simbologia corporal, a mão adquire, na Idade


Média um lugar excepcional, representativo das tensões ideo- "Estátua funerária representando uma pessoa orando, ajoelhada e de mãos
lógicas e sociais do período. Ela é em princípio o signo da postas. (N. do T. )

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JACQUES LE GOFF E NICOLAS TRUONG UMA HISTÓRIA DO CORPO NA IDADE M~DIA

corpo e o funcionamento do corpo humano ou animal em mesma função, do mesmo modo nós todos, tal como somos,
seu conjunto remontam à alta Antigüidade. formamos apenas um corpo em Cristo, sendo cada um, por
O apólogo dos membros e do estômago, que produziu sua vez, membros uns dos outros", afirma Paulo em sua Epís-
uma das mais célebres fábulas de La Fontaine, remonta pelo tola aos Romanos (12,4-5). Paulo faz até um paralelo entre a
menos a Esopo (fábulas 286 e 206) e foi encenado em um dominação do homem sobre a mulher e a de Cristo sobre a
episódio tradicional da história romana: a ida da plebe para Igreja: "O marido é o chefe (cabeça) da mulher, assim como
o monte Sagrado (que foi substituído, nas narrativas mais Cristo é o chefe da Igreja e é o salvador de seu corpo, mas,
tardias, pelo Aventino) em 494 a.c. Segundo Tito Lívio (Il, assim como a Igreja é submetida a Cristo, da mesma forma as
XXXII), o cônsul Menênio Agripa teria dado fim à ocupa- mulheres são submetidas a seus maridos em todas as coisas"
ção lembrando ao povo, com a ajuda dessa fábula, não ape- (5-23). Trata-se aqui de dominação e de sujeição. Estamos no
nas a solidariedade necessária entre a cabeça (o Senado campo do poder, ainda que se trate somente do poder marital.
romano) e os membros (a plebe), mas a subordinação obri- Essa concepção prevalece juntamente com a do corpo
gatória destes àquela. místico de Cristo, isto é, a eclesiologia medieval." Ela insi-
Logo, é provável que a utilização política das metáforas nua-se na ideologia política na época carolíngia: o império,
corporais seja um legado da Antigüidade greco-rornana ao encarnação da Igreja, forma um só corpo do qual Cristo é o
cristianismo medieval. Podem-se notar essas mudanças de chefe e o qual ele dirige na terra por intermédio de duas pes-
configuração dos valores que continuam a se servir de dados soas: "a pessoa sacerdotal e a pessoa real", isto é, o papa e o
pagãos, mas modificando o sentido, deslocando as ênfases, imperador ou o rei."
substituindo certos valores por outros, impondo desvaloriza-
ções e valorizações aos usos metafóricos. Como os olhos na cabeça

A cabeça ou o coração? A utilização metafórica das partes do corpo esboçada duran-


te a alta Idade Média se politiza sucessivamente na época
O sistema cristão de metáforas corporais repousa sobretudo carolíngia, quando da reforma gregoriana, e, enfim, no sécu-
no binômio cabeça/coração. O que dá toda força a essas me- lo XII, que foi particularmente entusiasta dessa comparação.
táforas nesse sistema é o fato de que a Igreja, sendo comuni- Um texto bastante interessante a esse respeito é o tratado
dade de fiéis, é considerada um corpo do qual Cristo é a intitulado Contra os simoníacos (1057), escrito por um mon-
cabeça. Essa concepção dos fiéis como semelhantes a mem- ge loreno que se tornou cardeal, Humbert de Moyenmoutier,
bros múltiplos, levados por Cristo à unidade de um só corpo, um dos principais promotores da reforma dita "gregoriana".
foi estabelecida por São Paulo. 11 ''Assim como temos muitos Ele combina, com efeito, o famoso esquema trifuncional da
membros em um só corpo, e todos esses membros não têm a sociedade, que conhece seu primeiro período de sucesso no

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Ocidente medieval!' - funções do sagrado, do guerreiro e


do trabalhador - com uma imagética organicista. Segundo a não falo dos diretores de prisão, mas dos "condes" do tesouro
ideologia dos padres reformadores do momento, esse monge privado, especifica ele, evocam a imagem do ventre e dos in-
insiste na superioridade dos clérigos sobre os leigos, assim testinos, que, se são sobrecarregados por uma avidez demasiado
grande e se retêm seu conteúdo com muita obstinação, pro-
como na subordinação das massas populares em relação aos
vocam inumeráveis e incuráveis doenças e, por meio de seus
clérigos e aos nobres leigos: ''A ordem clerical é a primeira na
vícios, podem levar à ruína completa do corpo. Os pés, que
Igreja, assim como os olhos na cabeça. É dela que fala o Se-
aderem sempre ao solo, são os camponeses. O governo da
nhor quando diz: 'Aquele que vos toca, toca a pupila de meu
cabeça lhes é tanto mais necessário à medida que são confron-
olho' (Zacarias, 2, 8). O poder leigo é como o peito e os
tados com numerosos desvios em sua caminhada sobre a terra
braços, cuja força está acostumada a obedecer à Igreja e a
a serviço do corpo e têm necessidade do apoio mais justificado
defendê-Ia. Quanto às massas, associáveis aos membros in-
para se manterem em pé, sustentarem e moverem a massa de
feriores e às extremidades do corpo, são submetidas aos po- todo o corpo. Retire do corpo mais robusto o apoio dos pés e
deres eclesiásticos e seculares, mas, igualmente, são-Ihes ele não avançará mais apenas com suas forças, mas ou se ar-
indispensáveis. "15 rastará vergonhosa e deploravelmente e sem sucesso sobre
as mãos ou se deslocará como animais selvagens.
o Estado é um corpo
Essas linhas surpreendem por seu caráter arcaico, mal
A utilização política da metáfora organicista atinge sua defi-
adaptado às realidades institucionais e políticas da Idade
nição clássica no Policraticus de João de Salisbury (1159). "O
Média. O senado e os questores, por exemplo, são anacrôni-
Estado (Respublica) é um corpo", escreve ele. E continua:
cos. De fato, João de Salisbury apresenta esse texto como
parte de um tratado de educação política que Plutarco teria
o príncipe ocupa no Estado o lugar da cabeça, ele é submeti- composto para o imperador Trajano. Essa atribuição é, natu-
do ao Deus único e àqueles que são seus segundos na terra,
ralmente, falsa. Os exegetas desse texto pensam em geral que
pois no corpo humano também a cabeça é governada pela
se trata de um texto grego posterior, traduzido em seguida
alma. O senado ocupa o lugar do coração, que dá seus impul-
sos às boas e más obras. As funções dos olhos, dos ouvidos e para o latim, o qual João de Salisbury teria inserido em seu
da língua são asseguradas pelos juízes e pelos governadores tratado, conservando a falsa atribuição a Plutarco que circu-
das províncias. Os "oficiais" e os "soldados" (officiales e mili- lava nos meios letrados do século XII.
tes) podem ser comparados às mãos. Os assistentes regulares Mas outros comentaristas tendem a pensar que se trata
do príncipe são os fIancos. Os questores* e os escrivães - eu de um plágio de texto antigo forjado pelo próprio filósofo da
escola de Chartres. Em todo caso, o texto chamado Institutio
"Antigos magistrados romanos. (N. do T.) Traiani (a Instituiçãode Trajano) é ao mesmo tempo a ex-
pressão do pensamento político de uma corrente humanista,
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característica do que se chama a Renascença do século XII, e intestinos, definitivamente degradadas, caldeirão de cultura
a exposição de um tema freqüentemente retomado pelos es- das doenças e dos vícios, sede de uma obscena prisão de ven-
pelhos dos príncipes do século XIII e da baixa Idade Média. tre dos estoques reunidos por um Estado parcimonioso, ava-
Pouco importa aqui a atribuição desse texto - que emana, ro, sem generosidade e sem largueza.
aliás, de um dos grandes pensadores políticos da Idade Mé-
dia -, interessante como testemunha do funcionamento A cabeça revirada
medieval da metáfora organicista no domínio político.
As funções superiores são divididas entre a cabeça, o prín- O episódio mais interessante no que diz respeito à utilização
cipe (ou, mais precisamente, nos séculos XII e XIII, o rei) e o política das metáforas corporais situa-se na virada do século
coração, esse hipotético senado. Na cabeça instalam-se os XIII para o século XlV, no quadro do violento conflito que
homens honrados da sociedade, como os juízes e outros re- opôs o rei da França, Filipe IV, o Belo, ao papa Bonifácio
presentantes da cabeça ante as províncias simbolizadas pelos VIII. Como no tempo dos Libelli de lite, isto é, dos Opuscules
olhos, as orelhas, a língua - símbolos expressivos do que se sur les quereles (entre o papa e o imperador), os opúsculos
chamou de monarquia administrativa ou burocrática. Todas nascidos da querela das Investiduras nos séculos XI e XII, a
as outras categorias socioprofissionais são representadas por polêmica fez nascer, sob uma forma mais moderna (pois a
partes menos nobres. Funcionários e guerreiros são assimila- opinião pública estava aí implicada, muito além dos grandes
dos às mãos, parte do corpo de estatuto ambíguo, entre a leigos e eclesiásticos), uma leva de tratados, de libelos e de
desconsideração do trabalho manual e o papel honroso de panfletos. Foi em um tratado anônimo, Rex pacificus,
braço secular. Os camponeses não escapam da comparação composto em 1302 por um partidário do rei, que a metáfora
com os pés, isto é, com a parte mais baixa do corpo humano, do "homem-microcosmo" viu-se empregada de maneira par-
que, entretanto, o mantém de pé e lhe permite caminhar. ticularmente interessante.
O texto insiste igualmente no papel fundamental dessa Segundo esse tratado, o homem-microcosmo da socieda-
base do corpo social, na linha dos escritores eclesiásticos dos de tem dois órgãos principais: a cabeça e o coração. O papa é
séculos XI e XII, que sublinharam a situação dramática das a cabeça que dá aos membros, isto é, aos fiéis, a verdadeira
massas rurais, alimentando as ordens superiores e atraindo doutrina e exorta-os a realizar as boas obras. Da cabeça par-
seu desprezo e sendo objeto de sua exploração. Mas os mais tem os nervos, que representam a hierarquia eclesiástica que
mal localizados são os representantes específicos da terceira une os membros entre si e a seu chefe, Cristo, de quem o
função, aqueles que encarnam a economia e, mais especifica- papa tem o lugar e que assegura a unidade da fé.
mente, a administração do dinheiro. O pensamento antigo e O príncipe é o coração, de onde partem as veias que dis-
o pensamento cristão irmanam-se no desprezo a essa acumu- tribuem o sangue. Igualmente, do rei provêm os decretos, as
lação de riquezas, situada nas dobras ignóbeis do ventre e dos leis, os costumes legítimos que transportam a substância nu-

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trit~va, isto é, a justiça, para todas as partes do organismo do homem, o dos nervos a partir da cabeça, o das veias e das
social. O sangue é o elemento vital por excelência o mais artérias a partir do coração, concepção que autoriza a utiliza-
. ' ção metafórica dessas duas partes do corpo para explicar a
Im.portante de todo o corpo humano, resultando daí que as
velas são mais preciosas que os nervos e que o coração supera estrutura e o funcionamento do corpo social, corresponde
a cabeça. O rei é, portanto, superior ao papa. bem à ciência fisiológica da Idade Média, legada por Isidoro
~rês ?ut~os argumentos vêm completar a demonstração. de Sevilha e reforçada pela promoção simbólica e metafórica
O pnmeiro e tomado da embriologia e prolonga a simbologia do coração na Idade Média. Eis o que diz sobre a cabeça
corporal. No feto, o coração aparece antes da cabeça; o rei- Isidoro de Sevilha: ''A primeira parte do corpo é a cabeça, e
nado, portanto, precede o sacerdócio. Por outro lado as au- ela recebeu esse nome, caput, porque todos os sentidos e os
toridades confirmam a superioridade da cabeça sobre o nervos (sensus omnes et nervi) têm aí sua origem (initium
coração. E o autor do tratado arrola em sua defesa Aristóteles capiunt) e toda fonte de força brota daí. "17 E sobre o coração:
Santo Agostinho, São Jerônimo e Isidoro de Sevilha. ' "O coração (cor) vem de uma palavra grega (kardian) ou de
Enfim, existe uma prova por meio da etimologia, obede- cura (cuidado, preocupação). Nele, com efeito, reside, toda a
cendo a uma outra lógica que não a da lingüística moderna. solicitude e toda a causa da ciência. Dele partem duas artérias,
Em grego, rei se diz basileus, que viria de basis. Por conse- das quais a esquerda tem mais sangue e a direita, mais espíri-
qüência, o rei é a base da sociedade. O autor de Rex pacificus to, e é por isso que tomamos o pulso no braço direito. "18
não se embaraça com esse escamoteamento que faz passar o
príncipe da cabeça ao coração e do coração à base. Por toda A cabeça sobre os pés
parte existe a prioridade do príncipe ou do Estado.
' Para Henri de Mondeville, cirurgião de Filipe, o Belo, quase
A conclusão, portanto, é um compromisso. Apaga-se a
hierarquia entre o coração e a cabeça em prol de uma coabi- I
, '

contemporâneo do autor anônimo de Rex Pacificus e ele mes-


taç~o na autonomia: "De tudo isso resulta claramente que
aS~Imcomo no corpo humano existem duas partes princi- I '?i
mo autor de um tratado de cirurgia, composto entre 1306 e
1320, ao qual Marie-Christine Pouchelle consagrou um belo
livro já citado," o coração adquiriu uma importância primor-
pais, com funções distintas, a cabeça e o coração, ainda que
um não usurpe o ofício do outro, assim no universo também
existem duas jurisdições separadas, a espiritual e a temporal,
I
't 't
dial. Tornou-se o centro metafórico do corpo político. A cen-
tralidade atribuída ao coração exprime a evolução do Estado
tendo atribuições bem distintas." Por conseqüência, prínci- 7- monárquico, no qual o que importa mais não é tanto a hie-
I, rarquia vertical expressa pela cabeça e ainda menos o ideal de
pe~ e papas devem se manter, um e outro, em seus lugares. A
unidade do corpo humano é sacrificada no altar da separação I ;.:
unidade, da ligação entre o espiritual e o temporal, caracte-
rística de uma cristandade ultrapassada que voa em pedaços,
do espiritual e do temporal. A metáfora organicista se desfaz. 16
• mas a centralização que se realiza em torno do príncipe.
A concepção de um duplo circuito que habitaria o corpo i

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Henri de Mondeville apóia essa nova fisiologia política da França conquistou, na Idade Média, um poder tauma-
sobre uma ciência do corpo humano que prolonga o saber de túrgico, o de curar os doentes das afecções cutâneas, das
Isidoro de Sevilha, mas se inclina em favor do coração, gra- escrófulas, nome da adenite tuberculosa. Essa cura é obtida
ças ao qual é possível pensar metaforicamente o estado nas- por meio de uma cerimônia organizada em certos dias e em
cente: "O coração é o órgão principal por excelência, que dá certos lugares (por exemplo, no claustro da abadia de Saint-
a todos os outros membros do corpo o sangue vital, o calor e Denis): o "toque das escrófulas", pelo qual o rei curava O
o espírito. Ele se encontra no meio do peito, como o quer seu corpo do doente.
papel, como o rei no meio de seu reino." Quem é o soberano O santo medieval tem também um poder que passa pelo
do corpo?, pergunta Marie-Christine Pouchelle à obra de corpo e dirige-se com freqüência ao corpo. Como reconheceu
Henri de Mondeville. A resposta é inequívoca: o coração, Peter Brown, o santo é um "morto excepcional": são seu cadá-
isto é, o rei. ver e seu túmulo que curam os doentes que se aproximam de-
Mas, de modo geral, a cabeça permanece ou se torna o les e chegam a tocar seja uma parte de seu cadáver tornado
chefe do corpo político. No início do século Xv, um jurista relíquia corporal, seja seu túmulo. Sua eficácia se exerce sobre-
de Nímes, Jean de Terrevermeille, teórico da monarquia, em tudo em relação ao corpo: cura das doenças, recuperação dos
seus três Tractatus, escritos em 1418 -1419 para sustentar a estropiados - e em particular dos corpos fracos e ameaçados:
legitimidade do delfim Carlos (o futuro CarIos VII) e que, no crianças, mulheres em trabalho de parto, velhos.
fim do século XVI, servirão à causa de Henrique de Navarra Mais ainda, no século XIII, a devoção a Cristo, o desejo
(o futuro Henrique IV), sustenta que "o corpo místico ou de identificação com ele, leva São Francisco de Assis a rece-
político do reino" deve obedecer à cabeça, que representa o ber em seu corpo as marcas de Jesus crucificado: os estig-
princípio de unidade essencial e assegura a ordem na socieda- mas. A partir do século XIII, o desenvolvimento de uma
de e no Estado. Ela é o membro principal ao qual os outros devoção leiga mórbida associa uma elite penitencialleiga à
membros devem obedecer. E, como uma sociedade de duas herança do ascetismo monástico da alta Idade Média: é o
cabeças seria monstruosa e anárquica, o papa é apenas uma caso das práticas de flagelação que se manifestam em 1260
cabeça secundária (caput secundarium), como dirá também e no século XlV.
Jean Gerson." Assim, ousaríamos dizer, eis a cabeça recolo-
cada sobre os pés." o corpo da cidade

o rei e o santo A cidade não se presta tão facilmente quanto a Igreja ou a


Respublica à simbólica corporal. Mas certas concepções me-
Uma utilização simbólica do corpo serve para reforçar o po- dievais da cidade favorecem metáforas anatômicas e biológi-
der dos dois "heróis" da Idade Média: o rei e o santo. O rei cas subjacentes.

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É em princípio a afirmação, vinda da Antigüidade e re- Conclusão


transmitida por Santo Agostinho, segundo a qual não são as
pedras - as das muralhas, dos monumentos e das casas - Uma história lenta
que fazem a cidade, mas os homens que a habitam, os cida-
dãos, os cives. A idéia é retomada com força pelo dominicano
Alberto Magno, em meados do século XIII, em uma série de
sermões pronunciados em Augsburgo e que constituem uma
espécie de "teologia da cidade".
A outra concepção que leva a visão da cidade a uma metá-
fora de tipo corporal é a da cidade como "sistema" urbano."
A metáfora corporal afIora também a respeito de certos com- A história do corpo oferece ao historiador e ao interessado
ponentes essenciais da cidade. A cidade medieval é um centro em história uma vantagem, um interesse suplementar. O cor-
econômico e, mais que um mercado, um centro de produção po ilustra e alimenta uma história lenta. A essa história lenta,
artesanal- os artesãos urbanos organizam-se em "corpos de que é, em profundidade, a das idéias, das mentalidades, das
ofício"." A cidade medieval é também um centro religioso, instituições e mesmo a das técnicas e das economias, esse in-
mais do que no campo, no qual aldeia e paróquia se identifi- teresse dá um corpo, o corpo.
cam, a paróquia urbana, freqüentemente ligada ao bairro, é Não somente desde a pré-história, mas desde os tempos
um "corpo de fiéis", dirigido por um pároco. históricos aos quais podemos remontar, o corpo passa por
Em todas essas abordagens, o que se afirma é a idéia da mudanças, em sua realidade física, em suas funções, em seu
necessidade solidária entre o corpo e os membros. A cidade, imaginário. Mas em relação ao corpo há poucos aconteci-
à imagem do "corpo social", é e deve ser um conjunto funcio- mentos e ainda menos revoluções, como a que a medicina
nal de solidariedades de que o corpo é o modelo. dos séculos XIX e XX, por exemplo, lhe trará. Não há dúvi-
da de que a elaboração bastante diligente de uma dietética
monástica e o surgimento fulminante da peste negra em 1347-
1348 constituem acontecimentos de uma história "rápida"
do corpo. Mas, por outro lado, os acontecimentos fundamen-
tais, que foram o desaparecimento do esporte e do teatro ou
ainda o banimento do nu, já antigo, só foram produzir suas
conseqüências lentamente. Do mesmo modo, a lenta "revo-
lução agrícola" dos séculos X-XII, a introdução de novas cul-
turas e novas formas de cultivo, a evolução dos gostos

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culinários e o desenvolvimento da gastronomia foram acon- cheiro. No Paraíso, é a vista que, dessa vez, recompensa o
tecimentos lentos quanto à sua repercussão sobre o corpo. corpo ressuscitado do eleito, que se entrega à contemplação
Vê-se desenvolver na Idade Média um fenômeno que in- divina. O dramaturgo Feo Belcari de Florença diz no início
troduz mais rapidez em seus efeitos sobre o corpo: a moda. de sua peça Abraão e Isaac, representada em 1449:
Se dispusermos de uma boa documentação, em particular
iconográfica, e de obras pioneiras sobre a história da moda o olho é chamado a primeira de todas as portas,
indumentária na Idade Média, fenômenos sociais e culturais Por onde o Espírito pode aprender e apreciar
mais intimamente ligados ao corpo são ainda um terreno em A orelha vem em segundo, com a fala por guia,
estado bruto para a pesquisa histórica: a cabeleira, o bigode, Que dá à inteligência força e vigor.
a barba.' Conhece-se um pouco melhor a evolução da arte de
enfeitar o rosto, entre as mulheres, e a maquiagem. O feuda- Essa concepção é, sem dúvida, mais intelectual do que
lismo desenvolveu o prestígio e a atração dos homens afetiva. Mas, desde o século XVI, os tempos modernos irão
espadaúdos. O fascínio pelos "grandes dolicocéfalos loiros" representar os cinco sentidos, no seio de um humanismo preo-
fez da louridão um elemento característico da beleza física, cupado em valorizar o homem por inteiro. Esse humanismo,
recusada por esse "pequeno homem negro", Francisco de sistema de um homem dotado de um corpo civilizado, foi a
Assis. A braguilha aparece no século Xv, de modo cada vez Idade Média que criou.
mais provocante, sobretudo depois do uso que fez dela O grande, sábio e pobre François Villon é o maravilhoso
Rabelais, o que inicia uma longa história. e o melhor intérprete daquilo que se tornou a sensibilidade
Falou-se aqui do papel exercido pelas imagens e pela ao corpo no Ocidente do século xv. Com os versos de Villon,
simbologia da cabeça e do coração. No século XV desenvol- exala-se em princípio o testemunho do lugar assumido pelo
ve-se, na literatura e na arte, reflexo sem dúvida da evolução coração na existência e no destino do homem. É ele que se
científica e social, o tema dos cinco sentidos. Um exemplo esforça para dirigir o corpo, um corpo que o poeta, reencon-
espetacular disso é dado pelo simbolismo da célebre tapeça- trando a atitude de Dante, vive em seus trinta anos e que faz
ria da Dame à Ia /icorne, que pode ser observada no museu dialogar com seu coração no poema Le débat du coeur et du
nacional da Idade Média, em Paris. Pode-se dizer que o sentido corps de Villon [O debate do coração e do corpo de Villon]:
predominante na Idade Média foi a visâo.? De fato, a Idade "Tens trinta anos! É a idade de um mulo", a boa idade para
Média inventou, em torno de 1030, os óculos, que, primeira- dobrar seu corpo às recomendações do coração, isto é, da
mente como curiosidade que entrou na moda, depois como consciência. O coração deve então conduzir o jogo da vida
auxiliares da visão, se difundiram rapidamente. No Inferno, humana. Villon mobiliza todos os seus sentidos, todos os seus
é em primeiro lugar a visão que recebe em cheio o fulgor das membros - "olhos, orelhas, boca e nariz, e vós também, sen-
chamas luciferianas, enquanto o olfato é atacado pelo mau tido do toque" - e todo o seu corpo para louvar a corte,

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"felicidade dos franceses" e "reconforto dos estrangeiros" em e de um corpo decrépito e mortal. Esse filho do século e da
sua Louange à Ia cour [Louvor à corte]. Villon canta a inefá- Igreja, que o educou, conhece a Quaresma. Mas canta e exal-
vel beleza e o encanto do corpo feminino, que é tão "soef", ta também o Carnaval. Seu Testament [Testamento] imita os
isto é, doce e suave. Mas Villon se vê assim como condenado, Antigos, mas termina em uma procissão burlesca que anula
como enforcado, encarnando a derrota do coração, o corpo as hierarquias sociais e na qual a pregnância da animalização
cadavérico e pútrido em Épitaphe de Villon en forme de ballade se torna um meio "de introduzir as atividades fisiológicas do
[Epitáfio de Villon em forma de balada]: corpo, de levar tudo ao domínio corporal, que é universal, ao
beber e ao comer, à digestão, à vida sexual"." Máscaras, jogos
"Quanto da carne, que muito comemos, verbais e lexicais, fronteiras permeáveis entre o homem e o
Está hoje devorada e em fermentação, animal, prostitutas, macacos, gesticulações, contorções, me-
E nós, os ossos, a cinza e pó vamos volver.' tamorfoses, risos, choros, ironias e troças ... Villon exacerba
as tensões da Idade Média fenecente. É o respeito ao cora-
E o que dizer do corpo devastado da bela armeira: ção, mas também a vingança do corpo que ele exprime. Medo,
"O que restou dessa fronte lisa, desses cabelos loiros, des- obsessão, sedução da morte e exaltação da beleza física: a
sas sobrancelhas arqueadas, desse grande entreolhas, desse tensão corporal torna-se existencial.
olhar vivo que seduzia os mais malvados, desse belo nariz O corpo tem, portanto, uma história. O corpo é a nossa
reto, nem muito grande, nem muito pequeno, dessas peque-
história.
nas orelhas bem desenhadas, desse queixo com covinha, des-
se claro rosto bem traçado, desses belos lábios vermelhos?
"Desses bonitos pequenos ombros, desses braços longos e
dessas mãos finas, desses pequenos mamilos, desses quadris
carnudos, altos, claros, bem-feitos para os torneios amoro-
sos, desse grande dorso, desse pequeno orifício colocado so-
bre grossas coxas firmes no meio de seu pequeno jardim?
''A fronte vincada, os cabelos grisalhos, as sobrancelhas
caídas, os olhos apagados, que lançavam olhares e risos que
atingiram vários infelizes, nariz adunco, privado de beleza,
orelhas pendentes, peludas, rosto pálido, sem vida e descolo-
rido, queixo enrugado, lábios rachados ..."
No outono na Idade Média, Villon exprime mag- .
.~

nificarnente a tensão exacerbada de um corpo belo e prazeroso

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Notas

Prefácio

1. Édouard-Henri Weber, "Corps", in: André Vauchez, (org.),


Dictionnaire encyclopédique du MoyenÂge, tomo I, Paris, Cerf, 1997.

Introdução: História de um esquecimento

1. Jules Michelet, Oeuvres completes, sob a direção de Paul Viallanei,


Paris, Flammarion, 1971. Igualmente La sorciêre, Paris, Flammarion,
coleção "GF", 1966. Edição brasileira: A feiticeira, Rio de Janeiro,
Nova Fronteira, 1992. Sobre a visão maravilhosa da Idade Média
proposta por Jules Michelet em 1833, depois sombria e tenebrosa, a
partir de 1855, ver Jacques Le Goff, "Le Moyen Âge de Michelet",
in: Un autre Moyen Âge, Paris, Gallimard, coleção Quarto, 1999.
2. Jeanne Favret-Saada, Critique, abril de 1971, retomado em Corps
pour Corps. Enquête sur Ia sorcellerie dans le bocage (com Josée
Contreras), Paris, Gallimard, 1981. Ver também, da mesma. autora,
Les mots, Ia mort, les sorts, Paris, Gallimard, 1977.
3. MareeI Mauss, "Les teehniques du corps", (1934), [ournal de
Psychologie, XXXII, 3-4 (1936), in: Sociologie et antbropologie, Pa-
ris, PUF, 1950; reedição pela coleção Quadrige, 2001. Edição brasi-
leira: Sociologia e antropologia, São Paulo, Cosac & Naify, 2003.
4. Claude Lévi Strauss, "Introduction à l'oeuvre de Mareei Mauss", in
Mareei Mauss, Sociologie et anthropologie, Paris, PUF, 1950. Edição
brasileira: "Introdução à obra de Mareei Mauss", in: Sociologia e
antropologia, São Paulo, Cosae & Naify, 2003.

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UMA HISTÓRIA DO CORPO NA IDADE MÉDIA

5. Norbert Elias, La civilisation des moeurs (1939), Paris, Calmann-Lévy, vontade de saber, 103 ed., 1988; vol. lI, O uso dos prazeres, 63 ed.,
1973, reedição Presses Pocket, coleção Agora, 1976; La dynamique 1990; vol. III, O cuidado de si, 43 ed., 1985; Rio de Janeiro, Graal.
de l'Occident, Paris, Calmann-Lévy, 1975, reedição Presses Pocket, 14. Jackie Pigeaud, La maladie de l'ãme. Étude sur Ia relation de l'ãme et
coleção Agora, 1990; La société de cour, Paris, Calmann-Lévy, 1974, du corps dans la tradition médico-pbilosophique antique, Paris, Les
reedição Flammarion, coleção Champs, 1985. Edição brasileira: A Belles Lettres, 1981.
sociedade de corte, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2001. 15. Émile Durkheim, Les formes élémentaires de la vie réligieuse, Paris,
6. Ver Norbert Elias, La politique et l'histoire, sob a direção de Alain PUF, 1968. Edição brasileira: As formas elementares da vida religio-
Garrigou e Bernard Lacroix, Paris, La Découverte, 1997. sa: o sistema totêmico na Austrália, São Paulo, Paulinas, 1989. Ver
7. Nathalie Heinich, La sociologie de Norbert Elias, Paris, La Découverte, igualmente David Le Breton, Sociologie du corps, Paris, PUF, 2002, e
1997. Edição brasileira: A sociologia de Norbert Elias, Bauru, Edusc, Anthropologie du corps et modernité, Paris, PUF, 1990.
2001. 16. Maurice Godelier e Michel Panoff, La production du corps, Amster-
8. Johan Huizinga, I.:Automne du Moyen Âge (1919), traduzido do ho- dã, Édition des Archives Contemporaines, 1998.
landês por]. Bastin, Paris, Payot, 1932. Nova edição pela coleção 17. Michel de Certeau, Histoire et psychanalyse entre science et
Petite Bibliothêque Payot, precedida de uma entrevista de Claude fiction, Paris, Gallimard, 1987, reedição ampliada, coleção Folio,
Mettra com Jacques Le Goff, 2002. 2002.
9. Marc Bloch, Apologie pour l'histoire ou Métier d'historien, prefácio 18. Ver, sobretudo, Jacques Le Goff, Pour un autre Moyen Âge. Temps,
de Jacques Le Goff, Paris, Armand Collin, 1993 e 1997. Edição bra- trauail et culture en Occident, Paris, Gallimard, 1977, reedição pela
sileira: Apologia da história ou o ofício do historiador, Rio de Janeiro, coleção Tel, 1991. Retomado em Un autre Moyen Âge, Paris,
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2000; Histoire de la sexualité: tomo I, La volonté de savoir (1976); a colaboração de Jean-Maurice de Montrémy), À Ia recherche du
tomo II, Eusage des plaisirs; e tomo III, Le souci de soi, Paris; Moyen Âge, Paris, Louis Audibert, 2003. Edição brasileira: Em busca
Gallimard, 1984. Edição Brasileira: História da sexualidade, vol. I, A da Idade Média, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2005.

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JACQUES lE GOFF E NICOlAS TRUONG UMA HISTÓRIA DO CORPO NA IDADE MÉDIA

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organizada e apresentada por Éric Marty, Paris, Seuil, 1993. Edição 20. Ver, sobretudo, Jacques Rossiaud, La prostitution médiéuale, Paris,
brasileira: Michelet, São Paulo, Companhia das Letras, 1991. Flammarion, 1990 (reedição). Edição brasileira: A prostituição na
6. Ver Andrew W Lewis, Le sang royal: Ia famille capétienne et l'État, Idade Média, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1991.
France Xe_XNe, siêcles, Paris, Gallimard, 1986. 21. Jean-Louis Flandrin, Un temps pour embrasser. Aux origines de Ia
7. Anita Gueneau-Jalabert, "Sang", in: Claude Gauvard, Alain de Libéra morale sexuelle (Vle-XIe, siêcle), Paris, Seuil, 1983.
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Schmitt (orgs.), op. cito 23. Emmanuel Le Roy Ladurie. Le Carnaval de Romans, Paris, Gallimard,
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Paris, Gallimard, 1984.
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15. Paul Veyne, La société romaine, Paris, Seuil, 1991.
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16. Baruch Spinoza, Traité théologico-politique, Paris, Garnier
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Flammarion, 1965. Edição brasileira: Tratado teológico-político, São
Record, 1999.
Paulo, Martins Fontes, 2003.
28. Jacques Le Goff, Saint Prançois d'Assise, Paris, Gallimard, coleção
17. Um resumo dos estudos sobre o corpo na Idade Média produzidos
Bibliothêque des Histoires, 1999. Edição brasileira: São Francisco de
antes desta nova síntese por Jacques Le Goff, e, sobretudo, prove-
nientes de suas pesquisas sobre Elmaginaire médiéval (Paris, Gallimard, Assis, Rio de Janeiro, Record, 2001.

1985 e 1991), figura em Jacques Le Goff, Un autre Moyen Âge, Paris, 29. Rutebeuf, Oeuvres completes, texto estabelecido e traduzido por

Gallimard, 1999. Michel Zink. 2 vols., Paris, Bordas, 1989 e 1990.

1 82 1 83
UMA HISTÓRIA DO CORPO NA IDADE MÉDIA
JACQUES lE GOFF E NICOlAS TRUONG

2. John Boswell, Cbristianisme, tolérance sociale et homosexua/ité. Les


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na Idade Média, Rio de Janeiro, José Olympio, 2003. XN siêcle (1980), Paris, Gallimard, 1985.
31. Piroska Nagy, Le don des larmes au Moyen Âge, Paris, Albin Michel, 3. Ver também o belo livro de Jean-Pierre Poly, Le ehemin des amours
2000. barbares. Genêse médiéuale de Ia sexualité européene, Paris, Perrin,
32. Alain Boureau, prefácio a Piroska Nagy, op. cito 2003.
33. Piroska Nagy, op. cito 4. Michael Camille, Images dans les marges. Aux limites de l'art médiéval
34. Johan Huizinga, I.:Automne du Moyen Âge (1919), traduzido do (1992), Paris, Gallimard, 1997; e Jacques Dalarun (org.), Le Moyen
holandês por J. Bastin, Paris, Payot, 1932. Nova edição pela coleção Âge en lumiêre. Manuscrits en/uminés des bibliothêques de Franee,
Petite Bibliothêque Payot, precedida de uma entrevista de Claude Paris, Fayard, 2002.
Mettra com Jacques Le Goff, 2002. 5. Arnaud de La Croix, I.:érotisme au Moyen Âge, Paris, Tallandier, 1999.
35. Roland Barthes, "Michelet", in: Oeuvres completes, edição organizada 6. Philippe Ariês, Un historien du dimanche, Paris, Seuil, 1980, e, com
e apresentada por Éric Marty, Paris, Seuil, 1993. Georges Duby (org.), Histoire de Ia oie privée, 5 vols., Paris, Seuil,
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38. Jean-Claude Schmitt, Le corps des images. Essai sur Ia culture visuelle </
8. Citado em Didier Lett, "Tendres souverains", in: Jean Delumeau e
au Moyen Âge, Paris, Gallimard, coleção Le Temps des Images, 2002. t
-ir
Daniel Roche (orgs.), Histoire des pêres et de Ia paternité, Paris,
39. Jean-Claude Schmitt, Le corps, les rites, les rêues, le temps. Essais .~
Larousse, 2000.
d'antbropologie médiéuale, Paris, Gallimard, coleção Bibliothêque des 9. Marie-José Irnbault-Huart, La Médecine au Moyen Âge à trauers /es
Histoires, 2001.
manuscrits de Ia Bibliothêque Nationa/e, Éditions de Ia Porte Verte/
40. Guilherme de Lorris e João de Meung, Le Roman de Ia Rase, texto e
Bíbliothêque Nationale, 1983.
tradução de Armand Strubel, Paris, Le Livre de Poche, coleção Lettres
10. Ver também, Georges Minois, Histoire de /a viei//esse en Oecident de
Gothiques, 1992.
/'Antiquité à Ia Renaissance, Paris, Fayard, 1987.
41. Jean-Claude Schmitt acaba de mostrar como, no século XII, o opúsculo
11. Jacques Berlioz, Catastrophes nature//es et calamités au Moyen Âge,
sobre a conversão de Hermann, o Judeu, encadeia a narrativa no
Florença, Edizioni deI Galluzo, 1998; e "Fléaux", in: Jacques Le Goff
sonho: cf La conversion de Hermann le Juif. Autobiographie, histoire
e Jean-Claude Schmitt (org.), op.cit.
et fiction, Paris, Seuil, 2003.
12. jean-Noêl Biraben, Les hommes et Ia peste en France et dans /es pays
42. Michel Zink, La subjectioité littéraire. Autour du siêcle de Saint Louis.
Paris, PUF, 1985.
européens et méditerranéens, 2 vols., Paris-Lá Haye, Mouton, 1975-
1976. Recentemente, deixou de ser levado em consideração o rato
(negro), tido anteriormente como responsável pelo contágio.
2. Viver e morrer na Idade Média
13. Jole Agrimi e Chiara Crisciani, "Charité et assistance dans Ia civilisation
chrétienne médiévale", in: Mirko D. Grmek, (org.), Histoire de la
1. Agostino Paravicini Bagliani, "Les âges de Ia vie", in: Jacques Le Goff pensée médicale en Occident, 1. Antiquité et Moyen Âge, Paris, Seuil,
e Jean-Claude Schmitt (orgs.), Dictionnaire raisonné de l'Occident 1995.
médléuol, Paris, Fayard, 1999.

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184
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14. Ver, sobre esse assunto, Françoise Bériac, Histoire des lépreux au Moyen Seuil, 1977; e Images de l'bomme deuant Ia mort (livro-álbum), Paris,
Âge, une société d'exclus, Paris, Imago, 1988, e a síntese de Hervé Seuil, 1983.
Martin, in: Mentalités médiéuales Il, Paris, PUF, 2001, de onde essa 32. Michel Lawers, "Mortís)", in: Jacques Le Goff e Jean-Claude Schmitt
citação foi extraída. (orgs.), op. cito
15. Ver Saul Nathaniel Brody, The Disease of the Soul: Leprosy in Medieval 33. Norbert Elias, La solitude des mourants, Paris, Christian Bourgois,
Literature, Ithaca, Cornell University Press, 1974. 1987.
16. Roger L Moore, "Heresy as disease", in: The concept of heresy in the 34. Peter Brown, Le Cu/te des saints. Son essor et sa fonction dans Ia
Middle Age, Louvain, Medievalia Lavunentia Iv, 1976. chrétienté latine (1981), Paris, Cerf, 1984.
17. Mirko D. Grmek, "Le Concept de Maladie", in: Mirko D. Grmek 35. Ver Ernst Kantorowicz, Les deux Corps du roi (1957), in: Oeuvres.
(org.), op. cito Paris, Gallimard, coleção Quarto, 2000.
18. Jole Agrimi e Chiara Crisciani, "Charité et assistance dans Ia civilisation 36. Jean-Claude Schmitt, Les revenants. Les vivants et les morts dans Ia
chrétienne médiévale", in: Mirko D. Grmek (org.), op. cito société médiéuale, Paris, Gallimard, 1994.
19. Jean-Pierre Poly, Le Chemin des Amours Barbares, Genêse Médiévale 37. André Corvisier, Les danses macabres, Paris, PUF, 1998.
de Ia Séxualité Européenne, Paris, Perrin, 2003. 38. Jérôme Baschet, "Comment échapper aux supplices de I'enfer", in:
20. Danielle Jacquart, "La Scolastique médicale", in: Mirko. D. Grmek Vivre au Moyen Âge, Paris, Tallandier, 1998.
(org.), op. cito 39. Ver Jacques Le Goff, La Naissance du purgatoire, Paris, Gallimard,
21. Georges Duby, "Réflexions sur Ia douleur physique", in: Mâle Moyen 1981, reedição pela coleção Folio, 1991.
Âge, Paris, Flammarion, 1988. 40. Jérôme Baschet, Les Justices de l'au-delà. Les Représentations de
22. Ver Jacques Le Goff, Saint François d'Assise, Paris, Gallimard, 1999. /'enfer en France et en ltalie (X1Ie-XVesiêcles), Roma, École Française
23. Joel Agrimi e Chiara Crisciani, "Charité et assistance dans Ia civilisation
de Rome, 1993.
chrétienne médiévale", in: Miko D. Grmek (org.), op. cito 41. jean-Claude Schmitt, "Une horde de revenants enrichit l'Église", in:
24. Ibid.
Vivre au Moyen Âge, Paris, Tallandier, 1998.
25. Danielle Jacquart, "La scolastique médicale", in: Mirko D. Grmek
(org.), op. cito
26. Ver Marie-Christine Pouchelle, Corps et chirurgie à l'apogêe du Moyen 3. Civilizar o corpo
Âge, Paris, Flammarion, 1983; e "Médecine", in: Jacques Le Goff e
Jean-Claude Schmitt (orgs.), op. cito 1. Massimo Montanari, "Romains, Barbares, chrétiens: à l'aube de Ia
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(org.), op. cito Montanari (orgs.), Histoire de l'alimentation, Paris, Fayard, 1996.
28. Mirko D. Grmek, "Le concept de maladie", in Mirko D. Grmek, 2. Jacques Le Goff, "Le Désert-fôret dans l'Occident médiéval", in: Un
(org.), op. cito autre Moyen Âge, Paris, Gallimard, coleção Quarto, 1999.
29. Marie-José Imbault-Huart, op. cito 3. Massimo Montanari, "Alimentation", in: Jacques Le Goff e jean-
30. Jole Agrimi e Chiara Crisciani, "Charité et assistance dans Ia civilisation Claude Schmitt, Dictionnaire raisonné de l'Occident médiéual, Paris,
chrétienne médiévale", in: Mirko D. Grmek (org.), op.cit. Fayard, 1999.
31. Philippe Ariês, Essais sur l'bistoire de Ia mort en Occident du Moyen 4. Ver sobretudo Jean-Louis Flandrin, Chronique de platine. Pour une
Âge à nos jours, Paris, Seuil, 1975; I.:Homme deuant Ia mort, Paris, gastronomie historique, Paris, Odile Jacob, 1992; e Jean-Louis Flandrin

, 86 , 87
JACQUES LE GOFF E NICOLAS TRUONG UMA HISTÓRIA DO CORPO NA IDADE MÉDIA

e Jane Cobbi (orgs.), Tables d'bier; table d'ailleurs, Paris, Odile jacob, 3. Jacques Le Goff, Un autre Moyen Âge, Paris, GaIlimard, 1999.
1999. 4. Le Coeur mangé. Récits érotiques et courtois des XIle et XIlIe siêcles,
5. Ver sobretudo Bruno Laurioux, Manger au Moyen Âge, Paris, Hachette vertido para o francês moderno por DanieIle Régnier-Bohler, prefá-
Littératures, 2002. cio de Claude Gaignebet, posfácio de DanieIle Régnier-Bohler, Paris,
6. Ibid. Stock, 1979.
7. Ver igualmente Umberto Eco, Art et beauté dans I'esthétique médiéuale, 5. Marie-Thérêse Gousset, Daniel Poirion e Franz Unterkircher, Le Coeur
Paris, Grasser, 1997. d'amour épris, Paris, Philippe Lebaud, 1981. "Le 'cuer' au Moyen
8. Ver Jacques Le Goff, "Le rituel symbolique", in: Pourun autre Moyen Âge (réalité et signifiance)", Aix-en-Provence, Cuerma, Sénéfiance n?
Âge, Paris, Gallimard, 1977; e Jacques Le Goff, Eric Palazzo, Jean- 30, 1991.
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7. Karl Richstãtter, Die Herz-jesu Verehrung des deutschen Mittelalters,
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10. Claude-Claire Kappler, Monstres, démons et mervei/les à Ia fin du
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n" 29, 1950. André Godin, Spiritualité [ranciscaine en Flandre au
11. Jacques Le Goff, "Mélusine maternelle et défricheuse", in: Pour un
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latini Turonensis, Paris, Vrin, 1980.
mattrisée, Paris, Fayard, 1994.
8 Dar-se-ã preferência ao texto preparado por JoinviIle em sua Vie de
13. Georges Duby, Le Dimanche de Bouuines, Paris, Gallimard, 1973,
saint Louis, o dos "Enseignernents de saint Louis à son fils et à sa
retomado em Féodalité, Paris, Gallimard, coleção Quarto, 1996.
fille", publicados sob a forma original por J. J. O'Connell, The
14. Bernard Merdrignac, Le sport au Moyen Âge, Rennes, Presses
Teachings of Saint Louis, a critical text, Chapell Hill, 1972, e, em
Universitaires de Rennes, 2002.
uma tradução para o francês moderno, David O'ConneIl, Les Propos
de Saint Louis (com um prefácio de J. Le Goff), Paris, Gallimard,
4. O corpo como metáfora 1974.
9. Paul-Henri Stahl, Histoire de Ia décapitation, Paris, PUF, 1986.
1. Ver, a esse respeito, o notável estudo pioneiro e já citado de Marie- 10. Xavier-Léon Dufour, Dictionnaire du Nouveau Testament, Paris, Seuil,
Christine Pouchelle, Corps et chirurgie à l'apogée du Moyen Âge. Sauoir 1975.
et imaginaire du corps chez Henri de Mondevi/le, chirurgien de Philippe 11. Ibid.
le Bel, Paris, Flammarion, 1983. De modo geral, sobre as metáforas 12. Henri de Lubac, Corpus mysticum. I.:eucharistie et l'Église au Moyen
corporais, ver Judith Schlanger, Les métaphores de l'organisme, Pa- Âge, Paris, 1944. Miri Rubin, Corpus Christi. The Eucharist in Late
ris, Vrin, 1971. Medieval Culture, Cambridge, Cambridge University Press, 1991. Yves
2. Jean-Claude Schrnitt, Le corps, les rites, les rêues, le temps. Essais Congar, I.:Ecclésiologiedu haut Moyen Âge, Paris, Cerf, 1968; I.:Église
d'antbropologie médiéuale, Paris, Gallimard, 2001. de saint Augustin à l'époque moderne, Paris, Seuil, 1970.

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1 89
JACQUES lE GOFF E NICOLAS TRUONG UMA HISTÓRIA DO CORPO NA IOAOE MÉDIA

13. Por exemplo, o cânon 3 do Concílio de Paris de 829: Quod ejusdem PUF, 1985) e, para uma legitimação filosófica do corpo como meio
ecclesiae corpus in duabus principaliter dividatur personis ("Que o para pensar a origem do Estado, o belo livro de José Gil, Métamor-
corpo da Igreja se divida principalmente em duas pessoas"), texto phoses du corps, Paris, La Différence, 1985. A ilustração da capa,
redigido pelo bispo Jonas d'Orléans e retomado por ele em seu tratado uma imagem do século XIV representando o homem zodíaco, mostra
De institutione regia - um dos mais antigos tratados políticos ditos a adaptabilidade do corpo humano à evolução do simbolismo. Sabe-
"espelhos dos príncipes". Cf. Ives Congar, op. cito se do sucesso da astrologia e de suas aplicações à política do século
14. Sobre o esquema trifuncional da Idade Média definido por Georges XlV. Cf. Maxime Préaud, Les astrologues à Ia [in du Moyen Âge, Paris,
Dumézil como herança cultural indo-européia, ver sobretudo Georges j.-c. Lattes, 1984.
Duby, Les Trois Ordres ou I'Imagina ire du [éodalisme, Paris, Gallimard, 22. Essa concepção foi particularmente valorizada por Yves Barel em La
1978; Jacques Le Goff, "Les trois fonctions indo-européennes, Ville médievale. Systême social, systême urbain, Grenoble, Presses
l'historien et l'Europe féodale", in: Annales E.s.C., (1979), e Universitaires de France, 1975.
Dominique Iogna-Prat, "Le 'baptême' du schéma des trois ordres 23. O termo corporação, de origem inglesa, só irá se espalhar na França
fonctionnels. L'apport de l'École d'Auxerre dans Ia seconde moitié na época moderna.
du IXe. siêcle", in: Annales E.S.e., 1986. As três funções são,
esquematicamente, a do sagrado, a do guerreiro e a do laborioso. Conclusão: Uma história lenta
Elas são encarnadas por aqueles que rezam (oratores), aqueles que
lutam (bellatores) e aqueles que trabalham (Iaboratores). Cada função 1. O abade cisterciense Buchard de Bellevaux, no Franche-Comté, es-
implica o corpo: pela prece, pelo combate, pelo trabalho. creveu por volta de 1160 um "Éloge des barbes" que foi publicado
15. Humbert de Moyenmoutier, cardeal de Silva Candida, Adversus por R.B.C. Huygens, Apologia de barbis. Corpus christianorum,
Simoniacos (PL, 143, Monumenta Germaniae Historica. Libelli de Continuatio medieualis LXII, Turnhout, Brepols, 1985, com uma longa
lite, I), tradução de André Vauchez, "Les lares dans l'Église à l'époque introdução de Gilles Constable.
féodale", in: Notre histoire, n". 32, 1987, retomado em Les Lates au 2. Quanto ao olho medieval e a importância da visão, convém citar dois
Moyen Âge, Paris, Cerf, 1987. grandes livros: Michael Baxandall, lloeil du Quattrocento, Eusage de
16. Victor Martin, Les Origines du gallicanisme, vol. I, Paris, Bloud et Ia peinture dans l'Italie de Ia Renaissance (1972), Paris, Gallimard,
Gay, 2 vols., 1939. 1985; e Roland Recht, Le Croire et le Voir. Eart des cathédrales (Xlle-
17. Isidore, Étymologies, XI, 25, PL 82, col. 400. XVe siêcles), Paris, Gallimard, 1999.
18. Ibid., XI, 118, PL 82, col. 411. 3. As citações modernizadas de Villon são retiradas da edição de Jean
19. Marie-Christine Pouchelle, op. cito Dufournet, Vil/on, poésies, Paris, Flammarion GF, 1992. E nota váli-
20. Jean Barbey, La [onction royale, essence et légitimité d'aprês le Tractatus da apenas para a edição original, evidentemente.
de [ean de Terrevermeille, Paris, Nouvelles Éditions Latines, 1983. 4. J ean Dufournet, Introdução a Vi/lon, poésies, Paris, Garnier
21. Lembremos os trabalhos pioneiros de Paul Veyne, Michel Foucault e Flammarion, 1992.
Aline Rousselle para a Antigüidade (Aline Rouselle, Porneia. De Ia
maitrise du corps à Ia privation sensorielle. lle-Ive siêcles de l'êre
cbrétienne, Paris, PUF, 1983), de Danielle Jacquart e Claude Thomasset
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JACQUES lE GOFF E NICOlAS TRUONG UMA HISTÓRIA DO CORPO NA IDADE MÉDIA

Eboli, Pietro d', 144 Hipócrates, 94, 109 Macróbio,80 Sainr-Ernmeran, Otloh de, 86
Esopo,162 Hobbes, Thomas, 155 Marcelo (São), 62-64 Sainr-Victor, Hughes de, 44, 156
Homero,81 Marcelo de Chalon, 62 Salisbury, João de, 164-165
Fécamp, Jean de, 73 Honorius Augustodunensis, 156 Marco Aurélio, 47-48 Serlo, 126
Ferréolo d'Uzes (São), 77 Hubert de Romans, 113 Martinho (São), 83 Severo, Sulpício, .84
Filipe II Augusto, 46 Humbert de Moyenmoutier, 163 Mateus (São), 143 Shakespeare, William, 126
Filipe I1I, 158 Maxêncio (imperador romano), 62 Silvestre, Bernard, 156
Filipe IV o Belo, 115, 159, 167, Ingeburge (rainha), 46 Menênio Agripa, 162 Soranus,26
169 Inocêncio VI (Sinibaldo Fieschi), 115 Meung, João de, 69, 85 Spalbeck, Elisabeth de, 56
Flore, Gioacchino da, 57 Isabel (filha de Luís IX), 158 Moliêre (Jean-Baptiste Poquelin, Spinoza, Baruch, 182, 183
Fortunat, Venance, 62-63 Isidoro de Sevilha, 95, 111, 160, dito), 114 Spoleto, duque de, 137
Foucher de Chartres, 96 168-170 Mondeville, Henrique de, 115-
Francisco de Assis (São), 12,56,68, Isolda,97 116,169-170,188,201 Teodósio, o Grande, 83
112,141,171,174,181,199 Terrevermeille, Jean de, 170
Fulbert de Chartres, 98 Jerônimo (São), 49, 52, 56, 94,168 Nogent, Guibert de, 86 Tertuliano, 81
João (São), 49 Tito Lívio, 156, 162
Galeno, 95, 111, 114-116, 119, João Crisóstomo (São), 52 Oignies, Marie d', 54 Tomás de Aquino (Santo), 12, 18,
120 Joinville (Jean de), 78 Orígines, 36 49,53,54,55,73,78,103
Ganimedes, 98 Jorge (São), 65, 149 Tossigno, Pietro da, 106
Gilles de Corbeil, 111 Pascal, o Romano, 85 Trajano (imperador), 48, 165
Ginevra,97 Kant, Immanuel, 45 Paulo (São), 35, 50, 56, 60, 160,162 Tristão,97
Graciano, 43 Pitágoras, 80, 94
Gregório I, o Grande (papa), 11,35 La Fontaine, Jean de, 162 Platão, 28, 36, 76, 80, 155 Urbano VI, 115
Gregório VII (Hildebrando) (pa- Laércio, Diógenes, 94 Plutarco, 165
pa),42 Lagrange (cardeal), 127 Políbio, 109 Villon, François, 143, 175-177
Guilherme (monge), 108 Lancelote do Lago, 97, 99, 142 Virgílio, 80-81
Landsberg, Herade de, 154 Rabelais, François, 28, 61, 79, Vitrier, João, 158
Helfta, Gertrudes, 158 Lansperge, João, 158 174, 183
HelIequin (mesnie), 125 LilIe, Alain de, 155 Renato I, o Bom (rei), 157 Walter (monge), 77
Helmbrecht, 86 Littré, Maximilien, 10 Rufino,41
Heloísa, 41, 97, 98 Lombard, Pierre, 45 Rutebeuf, 68, 161
Henrique de Lausanne, 108 Lorris, Guilherme de, 68, 85
Henrique de Navarra ver Henri- Luís IX (dito São Luís), 12, 46
que IV Luís XlV, 10
Henrique II da Inglaterra, 79 Lutero, Martinho, 24
Henrique rv, 170

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