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Tradução e introdução de
Ernesto Sampaio
H I E N A E D I T O R A
Apartado 2481
1112 LISBOA CODEX

Tí tulo do original
KAFKA
Autor
WALTER BENJAMIN
Tradu ção de
ERNESTO SAMPAIO
Capa de
AUGUSTO T. DIAS
® Suhrtamp verlag

Tiragem 1000 exemplares


Lisboa, Novembro de 1987
i!
I
Franz Kafka e Walter Benjamin
Dois olhares
Que nos interpelam

¡I Com força

Poucos autores haverá onde, como em Walter


I Benjamin, o primado do fragmentário sobre o sis¬
temático seja tão constante: a sua obra é um
mosaico aparentemente desordenado cujo sentido
I tem de ser reconstruí do pelo leitor. Interessava-lhe
o marginal, o fora de moda, o levemente anacró¬
nico, citações, evocações que permitissem << pré-
I -historiar» a modernidade, detectar sintomas
remotos da praxis colectiva actual, libertar «o
passado oprimido ». A sua perspectiva de Baude¬
laire é a do poeta «nos esplendores do capi¬
talismo », o seu estudo sobre Kafka procura traçar
o contorno evanescente de «uma fantasmagoria
em busca de objectividade ».
A obra fragmentada de Benjamin coincide
com a sua vida de judeu alemão, também
fragmentada por uma longa série de exí lios e pelo
suicí dio ( para nã o cair em garras nazis), na fron¬
teira hispano-francesa, em Setembro de 1940.
! Essa conjunção entre carácter e destino transfor¬
maria quase todos os seus textos numa espécie de
esconjuros: «Cada um dos meus pensamentos
deve ser arrancado a um âmbito onde reina a
demência ».

I — 7 —
I
1
Esta « sombra profunda » que Victor Hugo
Adorno, editor de alguns dos principais associa às multidões em Les Orientales é so¬
escritos benjaminianos, dirá na primeira intro¬ brenatural e monstruosa, daquela espécie de
dução à recolha que deles fez: «Era intenção de «ámbito onde reina a demência » que Benjamin
Benjamin renunciar a qualquer forma de inter ¬
diz ser o da massificação, o da reijicação dos
pretação manifesta e deixar que as significações indiví duos integrados sem saber como nos novos
viessem à luz por meio da montagem chocante do esquemas de produção e consumo da sociedade
material. Para coroar o seu anti- subjectivismo, ia industrial. Vem daí o interesse do escritor pela
fazer com que a sua obra capital consistisse fotografia, a gravura, a difusão dos jornais, o
unicamente em citações ». cinema, enfim, por todos os produtos reproduzí
if Essa obra seria Das Passagenwerk ( «Obra
das Passagens » ou « Livro das Galerias ») e
veis; caracter í sticos de uma época marcada pela
¬

lili incidia num tema trivial: aquelas «passagens » ou


chegada das massas à vida pública.

I galerias parisienses com tecto de vidro e paredes


de mármore ( percursores dos actuais centros
comerciais) onde se concentrava a «alma da mer¬
a
Com grande arg úcia, Walter Benjamin viria
alargar o problema do fetichismo da mer
cadoria, enunciado por Marx, ao estatuto percep
tivo dos novos produtos culturais. A novidade,
¬

cadoria » da grande cidade e a arte se submetia ao aqui, consistiria na transmutação da aura das
serviço do comércio. Tratava-se de um grandepro- antigas obras de arte ( do per í odo pré-industrial)
jecto: iluminar a construção histórico-filosófica numa nova espécie de sacralização, conferida aos
do século XIX, mostrar o nascimento da socie¬ produtos culturais pela sua entrada no mercado
dade industrial, da mecanização, do capitalismo ( como mercadorias). Sem a patina da vetustez,
selvagem, da repercussão nos gestos humanos da sem a aura do refinamento e sem o seu primitivo
passagem do artesanato à produção em série. O valor mágico, diz-nos Benjamin que os produtos
flàneur é o protagonista da tragicomédia que se artí sticos perderam o peso histórico da singula ¬

representa nas « passagens »: a do «isolamento ridade, mas ganharam um novo tipo de unicidade:
insensí vel de cada um nos seus interesses o que lhes advém, por um lado, da quantidade de
privados », como disse Engels, ou a do «prazer de consumidores, e por outro lado do preço por que
fazer parte de multidões, expressão misteriosa do são cotados no mercado, sendo estas as duas for ¬

gozo que a multiplicação proporciona », como mas de escapar ao anonimato onde se dissolvem
escreveu Baudelaire. grandes quantidades de produtos de cultura que
congestionam o mundo das relações sociais.
r « La nuit avec la foule, en ce rève hideux,
Venait, s’épaississant ensemble toutes deux,
« Balzac foi o primeiro a falar das ruí nas da
burguesia. O desenvolvimento das forças pro ¬

Et, dans ces régions que nul regard ne sonde, dutivas destruiu os sonhos e as ilusões do século
Plus 1‘homme était nombreux, plus 1’ ombre était passado, ainda antes de se terem desmoronado os
profonde » monumentos que a representavam », escreveu Ben-

— —
8 — 9-
.1 !
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r jamin nutn dos seus brilhantes fragmentos. Nestas
palavras, Hegel ressoa como um eco: «Com a crise
drama barroco alemão, é talvez o exemplo mais
revelador. O próprio Benjamin também foi sub ¬

da economia mercantil, começamos a ver os mo¬ metido, no pior sentido, a esse esquartejamento
numentos da burguesia como se fossem ruí nas, por cr í ticos que não lhe « perdoam » o marxismo
muito antes de começarem a cair». ou a teologia. No fundo, não conseguem ver que a
Em Benjamin, o trabalho intelectual é uma verdadeira unidade do seu pensamento não
tarefa de exegese e de comentário aos textos ou a resulta de uma vocação uní voca, apolí nea, mas de
toda a espécie de realidades culturais tomadas uma fragmentação dionisí aca, como todo o «pen ¬

como textos, com o objectivo de mostraras tendên¬ samento em acção ».


cias surgidas em cada situação e as alternativas Benjamin aspirava a que os seus textos
nascidas das suas próprias contradições. A admitissem tantas leituras quanto os textos
leitura, para ele, era não só um princí pio cabalí sticos, nos quais cada uma das palavras
estruturante da realidade, mas também uma devia interpretarse, pelo menos, em 49 sentidos
diferentes. A própria vida do escritor possui a
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forma de nos libertarmos do passado.
Dizia Simmel que «há três categorias de unidade de uma formosa ruí na alegórica que,
filósofos: os primeiros só ouvem bater o coração neste lance final de um século e de um milénio, nos
das coisas, os segundos somente o coração do ensina mais do que qualquer monumento acabado
homem, os terceiros apenas o coração dos con ¬
( por isso mesmo incapaz de interpelar-nos).
ceitos; e há ainda uma quarta categoria, a dos pro
¬
« Existe um acordo secreto entre a nossa e as
fessores de filosofia, que só conseguem ouvir o gerações passadas. Fomos esperados sobre a
bater do coração dos textos ». Relendo algumas terra », escreveu Benjamin, aludindo menos ao
páginas magistrais de Walter Benjamin, julga ¬ apelo dos mortos aos vivos do que à capacidade
mos ver nelas um convite explí cito a dar por con¬ destes em «erguer o olhar » quando se sentem vis ¬

sumado o universo da filosofia. Supomos que foi tos por aqueles. A «leitura » do pensamento de
essa inimizade com a filosofia que lhe permitiu Walter Benjamin, ao mesmo tempo testemunho e
uma concentração tão intensa na obra de um ilustração de uma vida que adquiriu conscien ¬

Proust ou de um Kafka, para já não falar de temente a mais rematada forma de ruí na, é um
Baudelaire, seu alter-ego do século XIX. «olhar » que nos interpela com força.
Como cr í tico, Benjamin submeteu as obras de Como a «leitura » de Kafka, que viveu entre
arte a uma visão alegórica, capaz de ver para além nós, mas expatriado do nosso mundo, ausente em
da falsa unidade aparente que a visão simbólica paragens obscuras, impossí veis, de uma inacessí ¬

do comentador nelas descortina. O modelo de vel e imperiosa soberania. Jorge Luis Borges disse
% Winckelmann esquartejando o torso do Hércules que duas ideias — duas obsessões — dominavam
de Belvedere e descrevendo-o pedaço a pedaço, a obra de Kafka: « A subordinação é a primeira; o
invocado por Benjamin no seu estudo sobre o infinito, a segunda ». Entre os dois extremos, está

- 10 - — 11 —
;
If I a realidade, de que o poeta nunca conseguiu concentra. Como escreve Elias Canetti, no pre¬
separarse completamente: há sempre «uma base fácio à edição das Cartas a Felice; «...temendo o
que infelizmente não pode desligarse da terra ». poder sob todas as suas formas, o verdadeiro
A este pequeno judeu tiranizado pelo pai, objectivo da sua vida consistiu em evitá-lo
parecia-lhe mais importante compreender a exis ¬
igualmente sob todas as formas, pressentindo-o,
tência do que simplesmente viver. Nisso é um sí mil descobrindo-o, nomeando-o e representando-o em
do animal do seu conto O Covil, a quem os breves toda a parte onde os outros não se apercebem
contados com o ar livre da floresta dão uma per- dele ».
cepção da realidade que reduz a sonhos ou a som ¬
Sobre o mundo da Kafka, sem nenhuma pro¬
bras as criações do seu próprio espí rito: «Pa ¬
vidência que lhe valesse, pairava um insondável
rece-me que tenho a faculdade, não só de ver os poder de destruição. Inventando um universo de
fantasmas nocturnos no indefeso e voluptuoso sonhos e visões, Kafka criava a serenidade que na
abandono do sono, mas também, e ao mesmo terra lhe erà recusada. Vivia dentro do seu ego
tempo, na realidade, onde os topo com toda a como no interior de uma prisão, mas só ali podia
lucidez de um espí rito bem desperto e sereno ». observar o pulsar da vida, sabendo que o envio de
ft Kafka não venceu a realidade vivendo-a ou
substituindo-a por uma construção solipsista e
sinais de prisão em prisão implica deformações
inelutá veis e que pretender fundar um sistema
demiú rgica. Não se pode retirar da sua obra filosófico a partir desses sinais ê pura e simples
nenhum sentimento edificante. A parábola da Lei loucura.
como mí tica verdade metafí sica ( arbitrariamente Não hà em Kafka qualquer esperança de
decretada por Deus), invocada pelo padre em O redenção, antes ou depois da morte, e a lei, pre¬
Prqcesso, é ironicamente reduzida por Kafka à sença incontorná vel, é uma ameaça contí nua e
categoria de fábula, de mentira, de «mitologia de angustiante. Para ele, a burocracia não se limita a
mistificação social », como assinalou Michel sufocar o mundo e a tornar a realidade espectral:
Carrouges. existe uma burocracia celeste que exclui toda a
A grandeza do autor de O Castelo deve-se em esperança de libertação. Alguns comentadores
boa parte á indissolú vel unidade do homem e da observaram um paralelo entre os processos
obra, ambos marcados pela mesma e dupla pro ¬
ritualistas da companhia de seguros onde Kafka
blemática: por um lado, uma inaptidão total a trabalhava e o comportamento impenetrá vel dos
estar no mundo; pelo outro, a rejeição de todo o burocratas. Concebidos para garantir a impar¬
poder, fosse qual fosse. A luta contra o pai já era cialidade, os processos da administração imperial
uma forma da luta contra um poder superior. A de Francisco José são transformados por Kafka
luta contra a noiva, o eterno adiamento do em sí mbolo da burocracia e da sua meticulosidade
casamento obedece à mesma motivação, já que, a maní aca. Kafka descreve a vida como um ritual
partir do pai, é na famí lia inteira que o seu ódio se cujas obrigações permanecem desconhecidas dos

— 12 — — —13

L.
II
participantes, onde qualquer evangelho de es ¬ seduzir Walter Benjamim antí tese do flâneur
perança não passa de mais uma ilusão inventada baudelairiano, o herói kafkiano vagueia no meio
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" por um demiurgo impenetrá vel, espécie de deus dos seus concidadãos como um anjo caí do ou um
irmã o gêmeo do diabo, que faz as almas etéreas e exilado clandestino; o seu ritmo de vida não cor¬

I incorruptí veis e os caracteres mecânicos e sór


didos, escravos das absurdas leis deste mundo.
¬

A desolação exalada pelos textos de Kafka é,


responde ao do resto da população, que lhe merece
rancor por desse modo o obrigara tomar consciên
cia da sua pró pria solid ã o. Politzer, um
¬

por outro lado, uma caracterí stica comum á comunista, notou-o com subtil perspicácia: «O
maioria dos escritores alemães que escreveram em director bancário Joseph K é preso na presença
III Praga ou sobre Praga, assim como a ironia com
que se consideram a si próprios, deixando entrever
dos seus subordinados. Ora essa presença só tem
significado se prestarmos atenção aos seus
um verdadeiro ódio ao eu, reflexo prová vel da nomes... O alemão Rabensteiner, o checo Kullich e
desilusão mórbida causada pela atrofia das o judeu Kaminer representam a população de
II energias criadoras da velha Á ustria, num sen
timento que perdurou na parte alemã de Praga
¬ Praga. Joseph K é preso urbi e orbi».

S
| mesmo depois do Império se haver desfeito.
Nenhuma outra cidade suscitou, entre os seus
escritores, tantas e tão veementes condenações da
Ernesto Sampaio
Outubro de 1987
criação e do criador. Neste aspecto, o gnosticismo
de Praga contrastava com o compromisso moral e
polí tico dos intelectuais húngaros em relação ao
seu mundo e ao seu tempo, e também nada tinha a
i ver com o esteticismo de Viena. Apesar do flirt que
mantinham com a morte, os escritores da Jç vem
Viena nunca formularam cosmogonias para jus ¬

tificar o seu mau estar. Enquanto em Budapeste se


preparavem revoluções e em Viena se ia ao teatro
ou aos cafés da moda, em Praga, os alemães e
sobretudo os judeus lutavam contra tudo e contra
todos para preservar a sua cultura. Animava-os
uma mentalidade de cercados. Exprimiam o
desespero das minorias encurraladas que aspiram
b a reduzir ao silêncio o autor dos seus tormen¬
tos.
Franz Kafka tinha fatalmente de interessar e

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Potemkin
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^onta-se que Potemkin sofria de depressões
^ intermitentes, regularmente intervaladas,
durante as quais n ão tolerava a aproximação de
ninguém, ficando proibida em absoluto a entrada
nos seus aposentos. Na corte, nunca se falava deste
morbo: qualquer comentá rio ou alus ão à enfer¬
midade de Potemkin desagradava à Imperatriz
Catarina. Uma das depressões do Chanceler durou
mais do que era costume e causou sérios incon¬
venientes: nas secretárias dos ministros acumu ¬

lava- se documentos que não podiam ser despa ¬

| ii chados sem a assinatura de Potemkin e a respeito


dos quais a czarina reclamava decisões. Os altos
funcioná rios não sabiam que fazer. Estava- se nisto
quando o pequeno e insignificante copista Chu-
valkin chegou por acaso às antecâ maras minis ¬

teriais onde os conselheiros, como de costume, se


encontravam reunidos para se lamentarem e
chorar. « Que aconteceu, excelências? Em que
r posso servir, vossas senhorias? », perguntou, solí¬
cito. Explicaram- lhe a situação, penalizados por
M¡ não poderem valer- se dos seus serviços. « Se é só
FRANZ KAFKA
No décimo aniversário da sua morte
isso, excelências — retorquiu Chuvalkin —
- vos que me passem os documentos ». Os con-
rogo-

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II I — —
19

11
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selheiros, que nada tinham a perder, acederam ao ligeiramente e depis fica de mãos vazias, é o K. de
|i: seu pedido, e Chuvalkin, com o maço de documen¬
tos debaixo do braço, atravessou galerias e cor¬
Kafka Mas Potemkin, que descuidado e sonolento
leva uma vida crepuscular num lugar afastado e
redores e encaminhou-se para o quarto de proibido, é um antepassado desses poderosos que,
Potemkin. Sem bater nem se deter, pôs a mão no em Kafka, são juí zes ou secretá rios habitantes de
puxador a porta não estava fechada. Na penumbra, trapeiras e desvãos; por mais alto que se encon¬
avistou Potemkin sentado na cama, envolto num trem, estão sempre em decadência, em queda, mas
roupão desbotado, a roer as unhas. Chuvalkin em compensação podem aparecer de imprevisto,
aproximou-se da secretária, molhou a pena no tin¬ em pessoa ou através dos seus representantes mais
111 teiro e, sem dizer palavra, tirou um documento ao
acaso, colocou-o sobre os joelhos de Potemkin e
í nfimos e desprezí veis — porteiros, funcion á rios
decré pitos — , em toda a plenitude dos seus
meteu-lhe a caneta na mão. Depois de ter lançado poderes. Em que pensam? Serão porventura
um olhar ausente ao intruso, Potemkin, como num epí gonos dos Atlantes que sustentam o mundo
sonho, assinou maquinalmente, sem os ver, todos sobre a nuca? É acaso por isso que mantêm a
os documentos que o copista lhe pôs a frente. Este, cabeça « tão profundamente enfiada no peito que
quando teve na mão o último, afastou-se sem quase não se lhes podem ver os olhos», como o cas-
cerimónias, tal como tinha chegado, com o seu telão no seu retrato ou Klamm quando fica
dossier debaixo do braço. Com os documentos ao sozinho? Contudo, o que sustentam não é o mundo:
alto, num gesto de triunfo, Chuvalkin entrou na é o quotidiano, tão pesado como o globo terrestre;
antecâ mara e todos os conselheiros se precipitaram «O seu cansaço é o do gladiador depois da luta;
ao seu encontro, arrancando-lhe os papéis das consagra-se ao trabalho de caiar uma parede da
mãos. Contendo a respiração, inclinaram-se sobre sala dos funcioná rios!» Georg Luk ács disse uma
os documentos: ninguém disse palavra; todos vez que só alguém com o gé nio arquitectónico de
ficaram petrificados. Novamente Chuvalkin se um Miguel Ângelo seria hoje capaz de fazer mesas
aproximou, novamente se informou com solicitude decentes. Assim como Lukács pensa em termos de
sobre as causas da consternação geral. Então tam¬ épocas, Kafka pensa em termos de eras. O homem,
bé m os seus olhos viram a assinatura que rematava no acto de caiar, desloca eras inteiras. Arrasta- as
todos os papé is, um após outro: Chuvalkin, sempre que efectúa o mí nimo gesto.
Chuvalkin, Chuvalkin... Esses poderosos aparecem-nos em movimento

IfI,
Esta história é como um arauto que anuncia
com dois séculos de antecipação a obra de Kafka.
O enigma que nela se concentra é o mesmo de
lento e constante de ascensão ou queda, mas jamais
são tão temí veis do que ao emergir da ú ltima das
abjecções: a dos pais. O filho procura acalmar o seu
! Iff Kafka. O mundo das chancelarias, das repartições, velho, obtuso e pueril, a quem acaba de meter na
dos quartos escuros, gastos e hú midos é o mundo de cama. « Sossega, estás bem tapado». « Não! »,
Kafka. O solicito Chuvalkin, que toma tudo gritou o pai, e sem lhe dar tempo a uma resposta

II Ilf — 20 — - 21 -
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destapou-se com tal impulso que por um momento humanidade de que se nutre esta raça Nas
o cobertor ficou suspenso no ar a todo o com¬ estranhas famí lias de Kafka, o pai vive do filho e
primento, antes de cair aos pés da cama. « Querias pesa sobre ele como um grande parasita. N ão con¬
tapar- me, amorzinho, mas ainda não estou tapado. some apenas as forças do filho: suga- lhe também o
Mesmo que nisso esgote o meu último alento, n ão seu direito à existência. O pai é ao mesmo tempo o
!
i te deixo tapar- me, não tens força para tanto. Um juiz e o acusador. O pecado de que acusa o filho
pai não precisa felizmente que lhe ensinem a ler na parece uma espécie de pecado original. Na ver¬
alma do filho». E assim ficou, dando golpes no ar dade, ningué m mais do que o filho pode ver- se
com as pernas. Resplandecia de perspicácia... « Até envolvido na versão que Kafka deu do pecado
agora só sabias o que havia em ti; ficas a saber que original: « A culpa original, o antigo erro cometido
há no mundo coisas que te excedem. Eras pelo homem, consiste no protesto contra o mal que
ill ! realmente um pequenito inocente, mas mais lhe foi feito. O homem n ão desiste de reivindicar
realmente ainda és uma criatura diabólica!» Ao que o pecado original foi cometido contra si pró¬
libertar-se do peso do cobertor, o pai liberta-se de prio». Mas quem é o acusado desta culpa
um peso cósmico. Para reanimar e tomar outra vez —
hereditá ria o pecado de ter engendrado um filho
fecunda a antiquí ssima relação pai-filho, põe em — se não o pai? A acusação, contudo, inculpa tam ¬

movimento eras cósmicas. Relação fecunda? Con¬ bém o filho, embora não seja lí cito deduzir das afir¬
dena o filho a morte por asfixia. O pai é aquele que mações de Kafka a culpabilidade da acusação pelo
castiga. A culpa, como aos funcionários do facto de ser falsa. Kafka nunca diz que se trata de
tribunal, atrai-o. Muitos sinais induzem- nos a pen¬
uma culpa infundada. O que se debate aqui é um
sar que para Kafka, o mundo dos funcionários e o processo sem fim, e não poderia cair pior luz sobre
dos pais é o mesmo. A semelhança n ão os honra: uma causa do que aquela que recai sobre a
partilham o tédio, a degradação e a sujidade. A ves¬ solidariedade que o pai exige destes funcionários,
timenta do pai está de alto a baixo coberta de destes tribunais. Neles, o pior não é a venalidade
nódoas, assim como falta asseio a sua roupa sem limites, já que, dada a sua natureza, a
!?
interior. A porcaria é o elemento vital dos fun¬ venalidade è ainda a ú nica esperança que a
cioná rios. « Não conseguia sequer compreender o humanidade pode alimentar a seu respeito. Os
significado das idas e vindas das partes em lit ígio. tribunais possuem códigos, mas ninguém os co¬
'

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Andam aí só para sujar as escadas , dissera-
-lhe uma vez um funcionário, talvez encolerizado
nhece. « Faz parte deste sistema que se seja con
denado n ão só sem culpa formada, mas também
¬

mas esta resposta parecera-lhe evidente ». A sem o saber », pensa K Na pré- história, as leis e as
sujidade é a tal ponto atributo dos funcionários que normas definidas permanecem como leis n ão
quase poderiam ser considerados como parasitas escritas. O homem pode violá-las sem saber,
gigantescos. Isto não se refere naturalmente às incorrendo assim no castigo. Apesar da crueldade
relações económicas, mas às forças da razão e da com que pode ferir alguém que não o espera, o cas-

1* 1 — —22 — 23 —
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¡ (9 tigo, no sentido do direito, não deriva do acaso, mas


do destino, revelando- se aqui em toda a sua
tras imundices que cobriam o solo. Passaram-se
horas. K. tinha a impressão constante de ir des¬
ambiguidade. Hermann Cohen, numa breve aná lise maiar ou de haver penetrado num paí s estrangeiro,
a concepção antiga do destino, definiu-o como um mais longe do que antes dele nenhum ser humano
«conhecimento a que não podemos furtar- nos », um teria ousado, numa terra desconhecida onde até ao
conhecimento «que tem nas suas próprias regras e próprio ar faltavam os elementos do seu ar natal,
motivações a causa das infracções e desvios ao seu onde se sentia tão estranho que sufocava e onde, no
curso». O mesmo se pode dizer da justiça que pro ¬
entanto, no meio daquelas seduções insensatas, não
cede contra K. Este processo judicial conduz- nos podia fazer outra coisa senão internar- se ainda
muito além dos tempos das doze tá buas, a uma pré- mais, continuar a extraviar- se ». Voltaremos a ouvir
-história sobre a qual o direito escrito foi uma das falar desta estranheza, mas vale a pena avançar que
primeiras vitórias. No caso que nos ocupa, o direito estas mulheres lascivas nunca são formosas. No
escrito certamente que se encontra nos códigos, mundo de Kafka, a beleza só aflora nos lugares
mas a partir deles a pré- história exerce secre¬ mais secretos: nos acusados, por exemplo. « Trata-
tamente um domí nio tanto mais ilimitado. -se de um fenómeno extraordinário, mas fisiológico
Em Kafka, as condições reinantes no escri¬ em certo sentido... N ão pode ser a culpa, nem
tório e na famí lia apresentam muitos pontos co¬ sequer o justo castigo que os toma formosos... É o
muns. A este respeito, na aldeia das imediações do processo contra eles que os transfigura ».
castelo usa-se uma expressão significativa: « As O processo não oferece em geral esperanças
decisões da Administração são tí midas como aos acusados, mesmo quando não lhes retira toda a
rapariguinhas ». « Uma fina observação», comen¬ confiança na absolvição. E é talvez esta ausência
tou K... « Realmente aguda, mas as decisões da de esperança que os torna belos. Isto concorda per ¬

Administração devem ter outras propriedades em feitamente com o fragmento de uma conversa
comum com as raparigas ». A mais destacada è a de —
referida por Max Brod. « Recordo diz ele um —
se prestar a tudo, como as tí midas meninas que diálogo com Kafka cujo ponto de partida era a
tropeçam em K. no Castelo e no Processo , e que sé Europa actual e a decadê ncia da humanidade:
abandonam à lux ú ria no seio da famí lia como se
estivessem na cama. Atravessam-se no caminho de

somos murmurou em dado passo pensamen¬—
tos nihilistas, ideias de suicí dio , que afloramji
K a todo o momento, è o resto apresenta tão mente de Deus. Respondi que não, que o nosso
poucas dificuldades como a conquista da moçoila mundo era apenas um momento de mau- humor de
da cantina. « Abraçaram-se, o corpo roliço ardia Deus, um mau dia, e que deveria haver esperança
nas mãos de K.; num espasmo a que procurava fora do mundo que conhecemos. Kafka sorriu:
incessantemente, mas em v ão, furtar- se, rolaram muita esperança, sem d ú vida, infinita esperança,
pelo chão até embater levemente na porta de mas n ão para nós ». Estas palavras aludem às
Klamm; ali ficaram, entre charcos de cerveja e ou- ú nicas personagens de Kafka, saí das do seio da

- 24 - — 25 —
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famí lia, para quem talvez haja esperança. N ão s ão modo que na penunbra n ão se via no seu cantinho
i os animais, nem esses mutantes ou seres imaginá ¬ mais do que um enorme novelo». Para eles e para
rios como o cordeiro-gato ou Odradek, que também os seus semelhantes, os embrioná rios, os tontos, os
vivem à sombra da famí lia Não è por acaso que inaptos, existe a esperança.
Gregorio Samsa acorda transformado em insecto
I precisamente em cas à de seus pais, e tão- pouco é
por acaso que o estranho animal meio gato, meio
Na liberdade e desenvoltura das ocupações de
tais mensageiros transparece, de forma mais
cordeiro « prové m da herança paterna »; Odrádek, pesada e obscura, a lei do mundo de todas estas

I por seu turno, é « a preocupação do pai ». Quem sai


deste â mbito são os « ajudantes ».
Estes ajudantes pertencem a um ciclo de per ¬
criaturas. Nenhuma tem um posto fixo, nem possui
contornos claros e inconfundí veis; nenhuma se
encontra noutra situação que não seja subir ou cair,
sonagens que atravessa toda a obra de Kafka. São nenhuma que não possa substituir o inimigo ou o
da sua raça o bobo e o desmascarado da Contem ¬ vizinho; nenhuma que não seja entrada em anos e
plação , assim como o estudante que aparece à noite ao mesmo tempo ainda imatura; nenhuma que não
na varanda vizinha de Karl Rossmann e como os se encontre profundamente exausta logo no prin ¬

loucos que vivem naquela cidade do sul e nunca se cipio de qualquer longa tarefa. N ão se pode sequer
cansam. A sua existência crepuscular evoca a luz falar de ordens ou hierarquias. O mundo do mito
incerta que ilumina debilmente as personagens dos convidaria a fazê-lo, mas esse mundo é infinita ¬

contos curtos de Martin Walser, autor da novela O mente mais jovem que o mundo de Kafka, a quem o
ajudante e admirado por Kafka. As sagas indianas mito prometeu já a redenção. A este respeito
têm os gandharva, criaturas embrionarias, seres em sabemos apenas que Franz Kafka não cedeu a essa
estado nebuloso. Ao seu tipo pertencem os ajudan ¬ quimera. Novo Ulissses, «com os olhos fixos no
tes de Kafka, que não correspondem — mas tam¬ horizonte», deixou que « as sereias desaparecessem
bém não s ão estranhos — a nenhum dos outros literalmente face à sua resolução; justamente
quando mais próximas estavam, ele já nada sabia
ambientes ou esferas: trata- se de mensageiros que
estabelecem a comunicação entre os vá rios grupos. delas ». Entre os antepassados que Kafka se atribui
Assemelham- se, como Kafka indica, a Barnabé, e na antiguidade, contam-se os judeus e os chineses,
Bamabé é um mensageiro. Ainda n ão saí ram por mas não devemos esquecer este grego. Ulisses
completo do seio da natureza e por isso « acomoda ¬ encontra-se no limite que separa o mito da f ábula.
ram-se no chão, a um canto, sobre dois vestidos de Razão e ast úcia introduziram no mito as suas
mulher... Toda a sua ambição... consistia em artimanhas; os seus poderes já não são invencí veis.
I ocupar o menor espaço possí vel; fizeram vá rias ten
¬ A fábula é a recordação da vitória sobre esses
tativas com esse fito, sempre acompanhadas de poderes. E Kafka, quando se propôs escrever len ¬

risos e murm ú rios, entrecruzando braços e pernas, das, escreveu f ábulas para dialécticos. Introduziu-
metendo-se literalmente um dentro do outro, de -lhes pequenos truques, a fim de obter a prova de

— 26 — — 27 —
ll !

L.
I) que « até meios insuficientes e pueris podem cent,
duzir à salvação». É com estas palavras que
apresenta a narrativa O Silêncio das Sereias, onde
com a sua decoração, as suas palmeiras, os seus
cavaletes e arabescos, se encontravam a meio
caminho entre a câ mara de torturas e a sala do
elas efectivamente se calam; possuem « uma arma trono. No retrato, apertado num fatinho estreito,
mais terrí vel do que o canto... O seu silêncio». E quase humilhante, sobrecarregado de bordados, um
recorreram a essa arma junto de Ulisses. Mas este, menino com cerca de seis anos destaca-se sobre um
narra Kafka, «era tão astucioso, tão subtil que nem fundo de rí gidas palmeiras. Como se houvesse a ,
sequer a ideia de destino lhe podia penetrar o ideia de tornar mais quentes e sufocantes aqueles
espí rito. Talvez se tenha apercebido, embora o trópicos de fantasia, o menino tem à sua esquerda
fenómeno nos pareça execeder a inteligência um grande chapé u de abas largas, como os dos
humana, que as sereias se calavam; a comédia que espanhóis. Uns olhos infinitamente tristes sobre ¬

lhes opôs ( às sereias e aos deuses) serviu- lhe põem-se à paisagem que lhes foi destinada e a
apenas de escudo». cavidade de uma grande orelha aparece escu ¬

Em Kafka, as sereias calam-se. Talvez porque tando.


nele a m úsica e o canto são uma expressão ou pelo O evidente desejo de se transformar num
p menos um testemunho de salvação. Um sinal de
esperança que nos chega desse pequeno mundo
í ndio talvez se haja alimentado durante algum
tempo desta grande tristeza: « Ser um í ndio, sempre
intermédio, ao mesmo tempo embrionário e trivial, a cavalo, à desfilada, fender o ar, vibrar sobre o
desconsolador e tonto, onde vivem os ajudantes. terreno que vibra, até perder as rédeas, as esporas,
Kafka é como o jovem que partiu para conhecer o o pescoço e a cabeça da montada e nada mais ver à
medo. Chegou ao palácio de Potemkin, mas no frente que o campo, vasta extensão deserta ». Este
final, nos buracos das suas arrecadações, encon¬ desejo conté m muitas coisas, mas a revelação do
trou Josefina, a ratinha cantora, cuja melodia des¬ segredo consuma-se na América A novela Amé¬
creve assim: « Há nela algo da pobre, breve rica possui caracterí sticas particulares, evidentes já
inf ância, algo da felicidade perdida e para sempre no nome do protagonista Enquanto nas novelas
irrecuperá vel, mas também alguma coisa da vida anteriores, apenas o murmú rio de uma inicial servia
activa e presente, da sua pequena inexplicá vel e no ao autor para se dirigir a si próprio, nesta, que se
entanto constante e irreprimivel alegria ». passa no novo mundo, vive uma espécie de renas¬
cimento com o seu nome inteiro no teatro natural de
Um retrato de infância Oklahoma. « Numa esquina, Karl viu um cartaz
com os seguintes dizeres: Hoje no hipódromo de
Existe um retrato de Kafka em criança, e Clayton, das seis da manhã até à meia noite,
"i ' poucas vezes « a pobre, breve infância » se traduziu admite- se pessoal para o Teatro de Oklahoma! O
de forma mais aguda Deve ter sido tirado num grande Teatro de Oklahoma chama- vos, mas só
desses estúdios fotogr áficos do século passado que, hoje, só uma vez. Quem perder esta oportunidade,

'
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— — 29 -
i
II
perde-a para sempre! Quem pensa no seu futuro é f úcio tem sido classicamente encarnado, apaga
connosco que deve estar! Todos são benvindos! todas as possí veis particularidades de carácter. O
Quem quiser ser artista, não falte! O nosso Teatro que distingue o homem chinés è algo diferente do
tem empregos para toda a gente, cada um no seu carácter uma pureza de sentimentos elementar ».
lugar! Não percam tempo! Partam para Clayton! Por mais que isso possa explicar- se teoricamente
Depois da meia noite não se admite mais ninguém!
Ai de quem não acreditar em nós!» O leitor deste
— a pureza de sentimentos talvez seja um equilí brio
excepcionalmente refinado do comportamento

¡I
an ú ncio é Karl Rossmann, a terceira e mais feliz
encarnação do K. herói das novelas de Kafka. A

mí mico , a verdade é que o teatro natural de
Oklahoma nos encaminha para o teatro chinês, que
felicidade espera-o no teatro natural de Oklahoma, é um teatro de mí mica Uma das funções mais
que é um verdadeiro hipódromo, assim como a importantes deste teatro natural consiste em
«infelicidade » o invadira, certa ocasião, sobre o transformar o acontecer em gesto. É possí vel ir
pequeno tapete do seu quarto, onde corria em mais além e sustentar que toda uma sé rie de estudos
cí rculo « como num hipódromo». Desde que e histórias menores de Kafka só ficam plenamente
escrevera as suas considerações « para uso dos iluminadas .se as relacionarmos, por assim dizer
cavaleriços» e tinha feito subir as escadas do como documentos, com «o teatro natural de
tribunal ao « novo advogado», levantando as ancas, Oklahoma ». Só assim se pode descobrir que toda a
com passos ressonantes sobre o má rmore, ou dando obra de Kafka representa um código de gestos que à
grandes saltos e de braços cruzados, fizera trotar no priori não possuem para o autor um claro
campo os seus Rapazes na estrada real, a figura do significado simbólico, constituindo antes interroga¬
hipódromo era-lhe familiar. Na prá tica, pode acon¬ ções que se expressam através de jogos e com¬
tecer até a Karl Rossmann «dar em estado de binações sempre renovadas. O teatro é a sede
sonolê ncia, por distracção, saltos demasiado altos, natural destas experiê ncias. Num comentário
com uma inútil perda de tempo». Assim, o lugar inédito a Fratricí dio , Werner Kraft decifrou
onde alcança a meta dos seus desejos só podia ser agudamente o desenvolvimento desta história como
um hipódromo. acontecer cénico: « A representação pode começar
Este hipódromo é ao mesmo tempo um teatro e e é efectivamente anunciada pelo vibrar de uma
isto constitui um enigma. Mas o lugar enigmático e campainha. O som produz-se da forma mais natural
a figura clara e transparente de Karl Rossmann logo que Wese sai da casa onde se encontra o seu
encontram-se estreitamente ligados. Transparente, escritório. Mas diz-se expressamente que, por
puro, talvez frouxo de carácter, é-o com efeito Karl demasiado sonora, por se difundir sobre a cidade e
Rossmann, e é-o no sentido em que Franz subir até ao céu, essa campainha não é apenas a de
b) Rosenzweig, no seu livro Stern der Erlosung , diz uma porta ». Assim como o som da campainha
que na China o homem interior se acha « privado de ultrapassa a porta e sobe até ao cé u, assim os gestos
carácter, o conceito de s ábio, tal como desde Con- das personagens de Kafka são demasiado fortes

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para o seu ambiente e irrompem num espaço mais -a sobre a palma da mão e, erguendo-a, colocou- a
vasto. À medida que foi aumentando a sua mestria diante dos olhos dos dois. Ao fazer isto, não pen ¬
estilí stica, Kafka foi renunciando progressivamente sava em nada de determinado: agia apenas sob a
a explicar tais gestos, a adaptá-los a situações nor¬ impress ão de que tinha de cumprir aquele gesto um
mais. « É uma mania curiosa
— — diz-se em A
Metamorfose essa de se sentar na secretaria e lá
dia, se conseguisse terminar o grande memorial que
o libertaria da acusação». Este gesto, tal como o
de cima falar ao empregado, o qual, surdo como é, gesto animal, une oT mais simples ao mais
tem de colocar-se- lhe debaixo do nariz ». J á O Pro¬ enigmá tico. É possí vel mergulhar nas histórias de
cesso omitira claramente todas as explicações para animais de Kafka e ler-lhes páginas e páginas sem
situações como esta. No pen último capí tulo, K. descobrir que afinal não é de homens que se trata.
detem-se junto dos primeiros bancos da igreja,
«mas a distância pareceu ainda excessiva ao sacer¬
Quando depara com o nome do protagonista
— —
macaco, o cão ou o rato , o leitor ergue os olhos
o
dote, o qual ergueu a mão e com o indicador espantado e descobre que se encontra já muito
apontou-lhe um sí tio mesmo debaixo do púlpito. K. longe do continente do homem. Kafka, contudo, é
obedeceu, mas daquele lugar era obrigado e sempre assim: retira ao gesto do homem os seus
inclinar a cabeça para trás a fim de poder ver o alicerces tradicionais e desse modo consegue um
padre ». objecto para reflexões sem fim.
Max Brod diz: « Invisí vel era o mundo dos fac¬ Estas reflexões s ão singularmente inter ¬

tos que contavam para ele», mas o certo é que para mináveis, mesmo quando têm origem nas histórias
Kafka era o gesto o mais invisí vel de todos. Cada simbólicas de Kafka. Pense-se na pará bola Perante
gesto é um acontecimento e quase se poderia dizer a lei. O leitor que a encontrou em O médico rural
um drama A cena onde este drama se desenrola é o tocou talvez o ponto nebuloso no seu interior, mas
Teatro do Mundo e o seu pano de fundo é o céu. não teria sequer sonhado com a série intermin á vel
Este cé u, porém, é só um ciclorama investigar a de considerações que surgem desta parábola
sua lei seria o mesmo que querer pendurar um quando Kafka se demora a explicar- lha. Em O Pro ¬

cená rio numa galeria de quadros. Como Greco, cesso , isso acontece por intermédio do sacerdote e é
Kafka abre o cé u a cada gesto, mas também como tão notório que se poderia pensar que a novela não



em Greco que era o santo patrono dos expressio-
nistas , o elemento decisivo, o fulcro da questão
é mais do que a pará bola desenvolvida. O verbo
«desenvolver», no entanto, possui um duplo sen ¬

continua a ser o gesto. Quem ouviu a pancada no tido. A flor é o resultado de um desenvolvimento
portão, caminha encurvado pelo terror. Assim re¬ diferente do barco de papel que se ensina a fazer às
presentada o terror um actor chinês e ninguém se crianças e se desdobra numa folha lisa. Este
II sobressaltaria. Noutro fragmento, o próprio K. se segundo desenvolvimento é o que se adequa à
põe a representar. Quase sem dar por isso, tomou par ábola, ao prazer do leitor em desdobrá-la até lhe
«da mesa uma folha; sem ver o que fazia, manteve- encontrar um significado liso. Mas as pará bolas de

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í
Kafka desenvolvem- se no primeiro sentido, no sen¬ sabilidade pessoal dos construtores. Para os
tido da evolução que culmina na flor. Por isso o seu trabalhos de menos importâ ncia, podia- se empre¬
resultado tem afinidades com a poesia, o que não gar gente do povo ignorante: homens, mulheres,
impede que as narrativas kafkianas se resolvam crianças, todos os que viessem oferecer-se atraí dos
inteiramente nas formas da prosa ocidental e man¬ pelo salário; mas para a direcção de cada grupo de
tenham com a doutrina subjacente uma relação quatro pessoas era necessário um homem inte¬
análoga à da Hagadah com a Halakkah ( na religião ligente, perito em construções. Nós — falo em
judaica, Hagadah é o mundo da lenda, do mito, e —
nome de muitos aprendemos a só nos conhecer¬
Halakkah o da lei sagrada). N ão são par á bolas, mos e reencontrarmos ao executar as ordens dos
mas tão- pouco pretendem ser tomadas em sentido engenheiros supremos, e comprovámos que sem a
literal; estão construí das de modo a poderem ser orientação dos chefes quer o ensino que nos minis¬
citadas, interpretadas como ilustrações. Contudo, tram na escola, quer o nosso intelecto humano,
ignoramos a doutrina que as par á bolas de Kafka seriam insuficientes para a pequena tarefa que nos
acompanham e que ilustram os gestos de K. e os cabe no imenso projecto». Esta organização
movimentos dos seus animais. Descobrimos que assemelha-se ao destino. Meschnikoff, no seu livro
este ou aquele fragmento se lhe podem vincular, A civilização e os grandes rios históricos , serve-se
mas isso é o máximo que podemos dizer a seu res¬ de expressões que poderiam ser de Kafka. « Os
peito. Seja como for, intuí mos que se trata de algo canais do Yang-tse- Kiang e os diques de Hoang- ho
que tem a ver com o problema da organização da — —
escreve são segundo todas as probabilidades
vida e do trabalho na comunidade humana. Por resultado do trabalho comum sagazmente organi ¬

mais que lhe parecesse impenetr ável, essa questão zado de ... várias gerações. O mí nimo descuido na
preocupou Kafka. Se no célebre diálogo que man¬ escavação de um fosso ou no levantamento de um
teve com Goethe em Erfurt, Napoleão colocou a dique, a mí nima negligê ncia, o egoí smo de um

variação —

polí tica no lugar do destino, Kafka fazendo uma
poderia definir a organização como
homem ou de um grupo de homens relativamente
ao problema da riqueza hidráulica comum, trans¬
destino. A organização, com efeito, surge- lhe não forma- se, em condições tão particulares, em fonte
só nas vastas hierarquias de funcioná rios, mas tam¬ de desastres e vastí ssimas calamidades sociais. Daí
bém, de forma mais clara ainda, nos difí ceis e as ameaças de morte que acompanham a exigência
imperscrutáveis empreendimentos de Construção de uma solidariedade estreita e constante entre
cujo modelo esboçou em A muralha da China. massas de população estranhas e frequentemente
« A muralha deve constituir uma protecção hostis entre si. A gigantesca empresa condena cada
para durar séculos, exigindo a tarefa da sua cons¬ homem a penosos trabalhos cuja utilidade só se tor
trução, portanto, como condições fundamentais, o nará patente com o tempo e cujo plano é quase sem ¬

recurso às experiências arquitectónicas de todos os pre incompreensí vel para o homem comum ».
tempos e de todos os povos, e o sentido da respon¬ Kafka pretendia incluir- se entre os homens

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comuns, e cada passo que tentava dar, esboçava-o . O mundo de Kafka é um Teatro Universal.
nos limites da compreensão. E é assim que gosta de Para ele, o homem encontra-se naturalmente em
apresentar as coisas aos outros. Muitas vezes, cena. E a prova é que todos são aceites no teatro
como o Grande Inquisidor de Dostoiewsky, parece natural de Oklahoma. É impossível compreender
não estar longe de dizer « Mas se é assim, há aqui os critérios que regulam as admissões. À aptidão
um mistério e nós não podemos compreendê-lo. E declamatória que em princí pio poderia parecer
se há um mistério, temos o direito de pregá-lo e de importante, não se atribui qualquer importância: só
ensinar aos homens que não é a livre decisão dos se pede aos candidatos que representem o papel de
seus corações, n ão é o amor aquilo que importa, si próprios. Que possam ser seriamente o que dizem
mas sim o mistério: é ao mistério que devem ser, é coisa que sai do campo do possí vel. Os
submeter- se cegamente, dite o que ditar a sua cons
¬ actores com os seus papéis procuram asilo no teatro
ciência ». Kafka nem sempre escapou às tentações natural, tal como as seis personagens de Pirandello
do misticismo. Hà uma nota no seu diá rio, a pro ¬ procuram um autor. Em ambos os casos, o que pro¬
pósito do encontro com Rudolf Steiner, que não curam é o ref úgio derradeiro, e isso n ão exclui que
contém, pelo menos na forma em que foi publicada, esse lugar seja a redenção. A redenção n ão é um
uma tomada de posição precisa por parte de Kafka. prémio atribuido à vida: é antes o ú ltimo ref úgio de
Teria evitado tomá-la? A atitude que manteve em um homem que, como diz Kafka, tem «o' caminho
relação aos seus textos leva- nos a pensar que não é bloqueado pelo seu próprio osso frontal ». A lei
de excluir essa hipótese. Kafka dispunha de uma deste teatro está contida numa frase da Comu ¬

excepcional faculdade para inventar analogias. nicação a uma academia: « Imitava-os porque pro¬
Não obstante, nunca aprofunda o que é susceptí vel curava uma saí da; por nenhuma outra razão». Um
de explicação e tomou mesmo todas as medidas press ágio de tudo isto parece aflorar em K. antes do
possí veis contra a interpretação dos seus próprios fim do seu processo. Volta-se imprevistamente para
textos. Quem neles se aventure, deve fazê- lo com os dois senhores de chapé u alto que vêm buscá-lo e
cautela e desconfiança, tendo sempre presente a pergunta- lhes: « Em que teatro trabalham? » —
forma de ler própria de Kafka e a disposição do tes
¬
«Teatro? », admira- se um deles, enquanto se volta
tamento em que ordenava a destruição da sua obra para o outro, como que a pedir-lhe conselho.
póstuma; essa vontade, se bem a considerarmos, é Depois ficam ambos mudos. N ão respondem à
tão dificilmente compreensí vel e exige um exame pergunta, mas tudo leva a crer que os deixou
tão minucioso como as respostas do guardião impressionados.
perante a lei. Talvez Kafka, que em cada dia da sua Sobre uma grande mesa, coberta por uma
vida teve de atender a comportamentos inex ¬ toalha branca, oferece-se um banquete aos novos
plicáveis e a declarações ambí guas, tivesse querido aderentes ao teatro natural. « Todos estavam exci¬
pagar aos seus contemporâneos, pelo menos à hora tados e alegres ». Os antigos comparsas fazem de
da morte, com moeda idêntica. anjos, empoleirados em altos pilares que, envoltos

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I
I

em cartões ondulados, ocultam no interior uma determinada, talvez Zurau, em Erzgebirge. Mas
pequena escada. São preparativos de uma feira naquela terra podemos igualmente reconhecer
camponesa ou, talvez, de uma festa infantil, onde o outra povoação: a mencionada numa lenda talmú¬
rapazinho da fotografia, enfeitado por vistosas dica contada pelo rabino em resposta à pergunta
andainas, teria perdido a tristeza que se lhe vê no que lhe fazem sobre os motivos que ter ão levado o
olhar. Se não tivessem asas amarradas à cintura, judeu a oferecer um banquete na noite de sexta-
aqueles anjos podiam ser verdadeiros. Kafka é o -feira. A lenda refere-se a uma princesa que

seu precursor. Um desses anjos o empresá rio
eleva-se até ao trapezista atingido pela « primeira
— definhava no exí lio, longe da sua gente, numa
aldeia cuja lí ngua ignorava. Certo dia recebe uma
dor» quando cai na rede de protecção, acaricia-o e carta a anunciar- lhe que o noivo não a esqueceu e
encosta a cabeça à do ginasta, «de modo que as que partiu ao seu encontro. O noivo, diz o rabino, é
l ágrimas do á rtista lhe alagaram o rosto». Um outro o Messias; a princesa, a alma; a aldeia do seu des¬
— anjo da guarda ou polí cia — , depois do «fratricí
dio», encarrega-se do assassino Schmar, o qual
¬
terro, o corpo. Como não pode manifestar de outra
forma a sua alegria à gente da terra, que não lhe
« parece querer esmagar a boca contra as costas do entende a lí ngua, oferece-lhe um banquete. Com
polícia, que o arrasta a passo estugado». esta povoação do Talmude, encontramo- nos no
« Como em todos os grandes fundadores de centro do mundo de Kafka. Tal como K na aldeia
religiões — disse-o Soma Morgenstern — há em junto ao castelo, assim vive no seu corpo o homem
Kafka um certo ar de aldeia ». E é oportuno recordar contemporâneo; um corpo que lhe foge e se
aqui a definição de piedade religiosa dada por Lao- transforma em seu inimigo. Pode acontecer que o
- Tsé, de que Kafka deu qma transcrição perfeita em homem acorde de manhã e se veja transformado
A aldeia próxima: «As comunidades vizinhas
podem achar-se ao alcance do olhar e também

num insecto. O alheamento o que em si mesmo
lhe é alheio — tomou conta dele. Kafka pertence ao
podem encontrar- se ao alcance do ouvido o uivo ar da aldeia do castelo, e por isso não caiu na ten¬
dos seus cães e o canto dos seus galos. Isso deveria tação de converter-se num profeta religioso. A essa
contentar os homens, que poderiam morrer de aldeia pertencem também o está bulo de onde saem
velhos sem viajar para mais longe ». Como Lao- os cavalos do médico, o desv ão sufocante onde
-Tsé, també m Kafka era uma autor de pará bolas, Klamm, de charuto na boca, se senta diante dum
mas não era um fundador de religiões. copo de cerveja, e o portão que se abre para as
Consideremos a aldeia no sopé do monte do ruí nas quando se lhe dá uma pancada O ar da
castelo, esse povoado onde a pretensão de K. às aldeia está contaminado de irrealidade e decom ¬

funções de agrimensor é confirmada de forma tão posição, e Kafka tem de respir á- lo toda a vida. Não
misteriosa quanto inesperada. No epí logo a novela, era adivinho nem fundador de religiões. Como con¬
Brod disse que Kafka certamente tomou para mo¬ seguiu resistir?
delo da aldeia vizinha do castelo uma localidade

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r vações muito interessantes. Isso não o salvou de
O homenzinho corcunda uma interpetação da obra no sentido do cliché

teológico. « O poder superior escreve Haas , o —
Como é do conhecimento geral, Knut Ham- reino da graça, foi representado por Kafka na sua
sum costuma enviar de vez em quando cartas -
grande novela O Castelo , o poder inferior, o reino
opinativas ao jornal da pequena cidade em cujos do juí zo e da condenação, na fá bula igualmente
arredores vive. Há alguns anos, realizou-se na co ¬
grande O Processo. O território situado entre
marca um processo contra uma rapariga que tinha ambos os reinos, o destino terreno e as suas difí ceis
morto o filho recém- nascido. Condenaram- na a exigências, procurou pintá- lo, mediante uma severa
uma pena de pris ão. Pouco tempo depois apareceu estilização, em A América , sua terceira novela ».
no periódico uma declaração de Hamsum cujos ter ¬ Segundo Max Brod, o primeiro terço desta inter¬
mos eram mais ou menos os seguintes: uma cidade pretação pode ser considerado património comum
incapaz de aplicar a pena capital a tão desnaturada da exegese kafkiana. Assim escreve, por exemplo,
criatura só era digna de desprezo; a infanticida Bernhard Rang: « Na medida em que pode
merecia, se não a forca, pelo menos prisão perpè- considerar-se o castelo comó sede da graça, todos
rtua. Passaram- se alguns anos e apareceu Bênção esses esforços in úteis e tentativas vãs significam
da Terra , onde o escritor conta a história de uma precisamente — em termos teológicos — que a
criada que comete o mesmo crime e sofre a mesma graça divina não se deixa alcançar e pressionar pelo
pena ( nada de forcas nem de prisões perpétuas). arbí trio e a vontade do homem. A inquietação e a
As reflexões póstumas de Kafka contidas em A impaciência mais não fazem do que impedir e con ¬

Muralha da China convidam a recordar este fundir a sublime quietude do divino». Esta inter¬
episódio. Ainda mal havia saí do o livro, logo sur ¬ pretação è decerto cómoda, mas quanto mais se
giu, apoiada nessas reflexões, uma interpetação de procura alargá- la, mais se vê que é insustentável. A
Kafka que se comprazia em utiliz á-las como evidência da sua falta de fundamento é sobretudo
esponja apagadora do que a obra autêntica diz. Há notória em Willy Haas, quando declara: « Kafka
dois modos de errar completamente na apreciação procede... de Kierkegaard e de Pascal, e pode- se
dos textos kafkianos: um consiste na interpretação inclusivamente consider á-lo o ú nico descendente

natural; o outro na sobrenatural. Ambas a inter ¬ legí timo desses filósofos. Os três têm em comum o
petação psicanalí tica e a teológica — descuram
igualmente o essencial. A primeira é sustentada por
duro e cruel tema religioso fundamental: «o homem
é sempre culpável perante Deus... O mundo
Hellmuth Kaiser, a segunda por vários autores, superior de Kafka, o chamado Castelo , com o seu
entre os quais H. J. Schoeps, Bernhard Rang, exército imperscrutá vel, mesquinho, extravagante
Groethuysen e também Willy Haas, que no entanto e lascivo de funcionários, o cé u misterioso que o
formulou a respeito de Kafka — no referente a cobre, disputa com os homens um jogo terrí vel...
outros aspectos que adiante abordaremos — obser- Seja como for, até mesmo diante deste Deus o

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homem não pode eximir-se à sua profunda culpa ».
O menos que se pode dizer é que esta teologia, com ¬
postergar os acontecimentos. Em O Processo a
parada com a teodiceia de Anselmo de Canterbury, dilação è a esperança do acusado, e o julgamento
não se pode levar muito a sério, incorrendo em transforma-se lentamente num veredicto. O próprio
especulações bá rbaras que nada têm a ver com a patriarca deve aproveitar um adiamento, nem que
letra do texto kafkiano. « Acaso um funcioná rio para isso haja de perder o seu lugar na tradição.
— —
isolado pergunta-se um O Castelo tem o direito
de perdoar? Pode-se admitir que ao colectivo das
« Poderia imaginar outro Abraão, rá pido como um
criado, pronto a satisfazer o pedido do sacrifício
autoridades reunidas seja permitido tomar deci ¬
imediato, mesmo que tal diligência não bastasse
sões, mas mesmo aqui há que distinguir: podem para transformá-lo num profeta ou sequer num
condenar, mas não têm poderes para perdoar ». trapeiro. Um Abraão que no entanto n ão executa o
sacrifício por v árias razões: não pode afastar-se do

Este caminho não leva longe: «Trata-se senten¬
lar, è indispensá vel à economia e ao governo
cia Denis de Rougemont —
não do estado mise¬
domésticos, não tem a casa em ordem e sem a casa
rá vel do homem sem Deus, mas da misé ria de um
homem submetido a um Deus que não conhece, em ordem, sem esse amparo, não pode partir, como
porque não conhece Cristo». a própria Bí blia o reconhece: « E pôs em ordem a
sua casa».
É mais fácil extrair consequência especula¬ « Rá pido como um criado», diz-se deste Abra ¬

tivas da edição póstuma das notas kafkianas do que ão. Para Kafka, algo havia só captá vel pelo gesto. E
esclarecer um ú nico dos temas que despontam nos este gesto, ininteligí vel, é o ponto obscuro e
seus contos e novelas. Mas só eles podem iluminar nebuloso das parábolas, o ponto de onde emana a
as forças pré- históricas que Kafka teve de enfren¬ obra de Kafka, cuja avareza em publicá-la é conhe ¬

tar, forças que também podemos considerar como cida, deixando em testamento a vontade expressa
potê ncias históricas dos nossos dias. Sob que nome que fosse destruí da. Ninguém que se ocupe de
terão aparecido a Kafka? Ninguém sabe. Sabe- se Kafka pode iludir este testamento: faz constar de
apenas que ele não conseguiu orientar- se entre uma vez para sempre a insatisfação do autor
essas forç as, que as não conheceu. No espelho que relativamente à obra, a consideração dos seus
a pré- história lhe apresentava sob a forma da culpa, esforços como inapelavelmente malogrados e a
viu surgir tão- só o futuro como juí zo. Kafka, con¬ convicção de que o fracasso era a sua vocação e o
tudo, não forneceu nenhuma indicação sobre o seu destino. Na verdade, fracassou na grandiosa
modo como tal juí zo deve entender-se. Será o juí zo tentativa de reconduzir a poesia à doutrina, de
final e universal? É o acusado que faz de juiz? O voltar a dar-lhe, como par á bola, a simples
próprio processo n ão constitui o castigo? Kafka inalterabilidade da razão. Nenhum outro poeta foi
esperaria alguma resposta? N ão procurava antes mais rigorosamente fiel ao mandamento: « Nenhu ¬

postergá-la? Nas suas historias, a é pica recupera a ma imagem te farás».


função que desempenhava na boca de Xerazade: « Era como se a vergonha devesse sobreviver-

— 42 — — 43 -
;

-lhe»: com estas palavras se conclui O Processo. A duz numa rede de dormir. E Kafka demora-se inter-
vergonha, que corresponde à sua « elementar minavelmente em considerações sobre a natureza
^ das experiências. Todas cedem,
incerta, flutuante
pureza de sentimentos », é o gesto mais forte de
Kafka. Porém, possui um duplo aspecto: a todas se misturam com as experiências opostas.
vergonha, reacção í ntima do homem é també m uma « Fazia um calor sufocante naquele dia de Agosto
reacção socialmente imperativa. N ão é só vergonha
perante os outros: també m pode ser vergonha pelos
— —
começai Pancada no Portão . Ao regressar a
casa com minha irm ã passámos diante do portão de
outros. A vergonha de Kafka não é assim mais um estábulo. J á n ão sei se de brincadeira ou por dis-
pessoal do que a vida ou o pensamento que ela rege traeção ela desfechou uma punhada no portão ou se
e governa: « não vive a sua vida pessoal, não pensa apenas esboçou o gesto, de punho fechado, sem
o seu pensamente pessoal. É como se vivesse e pen- bater ». A simples possibilidade desta ú ltima
sasse constrangido por uma famí lia... Essa famí lia hipótese faz aparecer as precedentes, que antes
desconhecida... não pode abandoná-lo». Ignora¬ pareciam inócuas, a uma nova luz. Do pântano des¬
mos a composição —homens, animais — dessa -
tas experiências surgem as figuras femininas de
Kafka: criaturas palustres, como Leni, que estende
famí lia, mas distinguimos claramente uma coisa: é

ela que obriga Kafka a remover ao escrever
eras cósmicas, é ela que faz rolar o acontecer his¬
— «os dedos médio e anular da mão direita, unidos
por uma membrana até quase a ú ltima falange».
tórico como Sí sifo a sua pedra. E assim lhe sai à luz « Belos tempos!», exclama a ambí gua Frida, ao
a parte inferior, de visão desagrad á vel e a que —
recordar a sua vida anterior . « Nunca me pergun¬
Kafka não resistiu. «Acreditar no progresso n ão taste nada sobre o meu passado». Isto conduz- nos a
significa que se tenha verificado já progresso obscura matriz dos tempos, onde se realiza o
algum. Fraca fé seria esta ». A época em que vive acasalamento « cuja desenfreada luxú ria

do Bachofen è abominada pelas puras
—pot
segun¬
ê ncias
não significa para ele qualquer progresso sobre os
começos pré- históricos. As suas novelas desen¬ da luz celestial e justifica a express ão Luteae
rolam-se num mundo palustre, onde as criaturas voluptates de que se serve Amóbio».
vagueiam num estádio que Bachofem define como o Só a partir daqui se pode entender a técnica
dos heteras. O facto de ser um est ádio esquecido narrativa de Kafka. Quando outras personagens da
não significa que não subsista no presente. A sua novela têm de comunicar algo a K., fazem- no,
presença deve- se mesmo ao seu olvido, embora a mesmo que se trate da coisa mais grave ou mais
experiê ncia do burguês médio não tenha a profun¬ surpreeendente, de forma incidental e como se ele,
didade suficiente para lhe dar a mí nima ideia disto. no fundo, devesse saber disso há muito tempo. É

primeiros esboços —

«Tenho experiê ncia escreve Kafka num dos seus
e não gracejo se disser que
como se não houvesse nada de novo, como se o pro¬
tagonista apenas fosse tacitamente convidado a
consiste num enjôo de mar em terra firme». N ão é recordar algo que esqueceu. Willy Haas inter¬
por acaso que a primeira « contemplação» se pro ¬ pretou neste sentido o desenvolvimento de O Pro-

— 44 — - 45 —
cesso , ao afirmar com justeza que «o objecto do estão sempre a agregar- se aos antigos, cada um
processo, o verdadeiro protagonista deste livro com o seu nome próprio e diferente dos restantes ».
incrí vel é o esquecimento...cuja... propriedade fun¬ Neste texto, não é de Kafka que se trata, mas da
damental é o olvido de si mesmo... O olvido China. É assim que, em Stern der Erlosung, Franz
converteu-se aqui numa figura muda — na pessoa Rosenzweig descreve o culto chinês dos antepas¬

do acusado , numa figura de intensidade gran
diosa ». A tese de que «este centro misterioso»
¬
sados. Para Kafka, o mundo dos seus antepassa¬
dos, tal como o universo dos factos que para ele
deriva « da religião judaica » deve ser tomada em realmente contavam, era literalmente imperscru¬
consideração. « A memória como piedade desem¬ tá vel, e n ão h á d ú vida de que o referido mundo, à
penha aqui um papel de extraordinária importâ n ¬
semelhança daquele que os primitivos adoravam
cia. N ão é... um entre outros, mas... o mais nas suas á rvores totémicas, aponta para baixo, para
profundo atributo de Jeová, o de recordar, de o reino das bestas. Aliás, não é só em Kafka que os
possuir memória infalí vel até à terceira, à quarta ., animais são depositários do que se esqueceu. Em O
à centésima geração. O acto... mais sagrado do... loiro Eckbert , um profundo conto de Tieck, o nome
rito consiste na anulação dos pecados do livro
da memória ».
— —
esquecido de um cachorro Strohmi é a cifra de
uma culpa enigmá tica. Podem assim compreender-

O esquecido e com esta noção encontramo- -se os motivos por que Kafka continuamente pro¬
- nos num umbral ulterior da obra de Kafka
nunca é puramente individual. Cada particular
— curou captar a presença do esquecido nos animais.
Estes não constituem a meta, mas são indispen¬
objecto de esquecimento confunde- se com o sáveis para alcançá-la. Pense-se no « artista da
esquecido da pré- história, com ele entrando em fome», o qual « para dizê- lo claramente era apenas
inumer á veis combinações, variáveis, incertas, que um obstáculo no caminho que conduzia aos
dão sempre origem a novos abortos. O esque¬ está bulos ». E recorde- se o animal de O Covil ou a
cimento é o recipiente de onde brota o inesgotá vel « toupeira gigantesca », absortos em complicadas
mundo intermédio das histórias de Kafka. « Aqui a cavilações sobre os desconhecidos que lhe escavam
ú nica realidade é a plenitude do mundo. Cada a terra. Os seus pensamentos, por outro lado, são
espirito deve ser objectivo, deve manter-se aparte, algo de muito há bil e incerto, oscilando irresolutos
para ter um lugar e direito a existir. O espiritual, na de preocupação em preocupação, saboreando todas
medida em que ainda desempenha uma função, as angústias com a volubilidade do desespero. Em
resolve-se em espí ritos. Os espí ritos transformam- Kafka até borboletas encontramos: «o caçador
-se em individuos absolutamente particulares, cada Graco» é um culpado que não quer reconhecer a
um deles com o seu nome, especialmente ligado ao sua culpa, «transformando- se numa borboleta ».
nome de quem o venera... Formam uma multidão « N ão se ria », diz o caçador Graco. É verdade:
num mundo jà superpovoado... Uma imensa legião entre todas as criaturas de Kafka, são especial¬
que se multiplica sem escrú pulos... Novos espí ritos mente os animais que se dedicam a reflexão. A cor-

— 46 — - 47 —
f

rupção está para o direito como a angustia para o Gregorio Samsa ou o grande animal, meio gato e
pensar destas criaturas. A angustia confunde os meio cordeiro, para quem provavelmente « a faca
acontecimentos e, não obstante, é sempre a ú nica do magarefe seria uma libertação». Mas todas estas
fonte de esperança. Mas dado que a coisa mais personagens de Kafka estão relacionadas, através

estranha e esquecida é o corpo o nosso próprio de urna vasta sé rie de figuras, com o prototipo da
corpo — compreende- se o que levou Kafka a
designar por « a besta » o acesso de tosse que lhe
deformidade, o corcunda. O gesto mais frequente
dos contos kafkianos é o do homem que inclina pro¬
irrompia das entranhas. Era a primeira ofensiva da fundamente a cabeça sobre o peito, como o fazem,
grande manada. por cansaço, os senhores do tribunal ou, por ser¬
O mais estranho bastardo que a pré- história vilismo, os porteiros do hotel, ou ainda, por causa
engendrou em Kafka mediante a culpa foi Odradek. do tecto ser baixo, os visitantes da galería. Em A
«Ao principio parece um carreto achatado, em Colonia Penal, as autoridades servem-se de um
forma de estrela, onde se enrolam desor¬ mecanismo antiquado para gravar letras muito
denadamente velhas linhas soltas de toda a espécie floreadas ñas costas dos condenados, mecanismo
e cor. Mas é mais do que isso; do centro da estrela que ao acumular ornamentos multiplica as feridas,
parte uma pequena vareta transversal onde se até a carne dos supliciados se tornar clarividente,
encaixa outra em ángulo recto. Mediante esta decifrando directamente o texto através de cujas
segunda vareta, por um lado, e um dos raios da letras aprenderão o nome da sua culpa des¬
estrela, pelo outro, o conjunto d á a impress ão de conhecida As costas são, portanto, algo que se tem
poder aguentar- se como sobre duas pemas». de carregar. E assim foi em Kafka desde sempre,
Segundo os casos, Odradek « aloja- se em desvãos, como o explicita uma velha nota do diá rio: « Para
escadas, corredores, vestí bulos».. Prefere os mes¬ me tomar o mais pesado possí vel, coisa que me
mos lugares do tribunal, que está atrás da culpa. O parece ú til para adormecer, tinha cruzado os braços
chão é o sitio dos objectos abandonados e e posto as mãos atrás das costas, de modo que jazia
esquecidos. A obrigação de comparecer a juí zo carregado como um soldado». Aqui o peso coincide
talvez suscite uma sensação semelhante à de abrir tangencialmente com o esquecimento próprio de
um baú fechado há anos, abandonado no chão, a quem dorme. Uma cantilena popular como O
um canto. De boa mente adiar í amos a empresa até homenzinho corcunda é isso mesmo que simboliza.
ao fim dos tempos, como K ao descobrir que a sua Este homenzinho é o inquilino da vida desfigurada,
memoria « teria servido para manter ocupado o e desaparecerá quando chegar o Mesias, o qual,
espirito pueril de um velho reformado». segundo disse um grande rabino, não pensa vir
Odradek é a forma que as coisas assumem no transformar violentamente o mundo, mas dar-
esquecimento. Deformam- se, tomam-se irreconhe¬ - lhe tão- só uns pequenos ajustes.
cí veis. São assim « a preocupação do pai», que
ningu ém sabe qual é, o bicho que representa

— 48 — — 49 —
que permanecia acocorado no canto mais escuro.*
A conversa incidira sobre os temas mais diversos.
De sú bito, alguém animou o serão com uma
pergunta interessante: qual o desejo que cada um
Chego ao meu quartinho formularia se pudesse satisfazè-lo? Um queria
ao leito de dormir dinheiro, outro um genro, um terceiro uma nova
vejo um marrequinho banca de carpinteiro, e por aí fora, à volta do
que se põe a rir cí rculo. Depois de todos terem falado, sobrou o
mendigo, no seu canto escuro. Hesitante e de má
É o riso de Odradek, que «soa mais ou menos vontade l á acabou por responder também: «Queria
como o crepitar de folhas caídas». ser um rei poderoso, reinar num grande paí s, estar
uma noite a dormir no meu pal ácio enquanto o
Ajoelho-me no banquinho inimigo violava as fronteiras e a sua cavalaria me
para as rezas fazer cercava o castelo antes do amanhecer sem encon¬
vejo um marrequinho trar resistência; desperto pelo terror, sem tempo
que se põe a dizer. sequer para me vestir, fugia em camisa de dormir,
querido menino, sê bonzinho perseguido por montes, vales, bosques e colinas,
reza também pelo marrequinho sem tréguas nem repouso, até chegar são e salvo a
esta terra. Era isso que queria». Os outros olharam-
ível cantiga. Visioná rio
Assim termina a horr no desconcertados. « E que terias ganho com
das profundidades, Kafka atinge uma raiz e um fun ¬ isso? », perguntaram. « Uma camisa», respondeu.
damento que « as intuições da sabedoria mí tica » ou Esta história pode servir de introdução à
«a teologia existencial» não saberiam dar-lhe. E economia do mundo de Kafka Ninguém disse que
essa matriz última é tanto o fundo do povo alemão as deformações que o Messias virá corrigir um dia
como o do povo judaico. Se Kafka não rezou
coisa que não sabemos
— distinguia-se em
— sejam apenas aleijões do nosso espaço. São- no
também do nosso tempo. Kafka certamente que
altí ssima medida por aquilo que Malebranche deve ter pensado nisso quando fez dizer ao seu avô:
define como « a prece natural da alma » : a atenção. « A vida é extraordináriamente curta É tal a sua
Como os santos através das orações, foi através brevidade na minha memória que não compreendo
dela que se solidarizou com todas as criaturas. como é que um jovem, por exemplo, pode decidir ir¬
a cavalo até à aldeia vizinha sem temer que — des
Sancho Pança contado qualquer desgraçado acidente —
o lapso
de uma vida normal e feliz possa ser demasiado
Contasse que uma noite, numa aldeia jasí dica, (*) Na tradição jasí dica, o profeta Elias aparece sob a forma de
no final do Sabat, os judeus estavam reunidos numa vagabundo ou mendigo, continuando no entanto a desempenhar o
papel de mensageiro de Deus: descobri-lo sob a sua aparência e
casa miserá vel. Eram todos do lugar, excepto um, a receber o seu ensinamento ê ser iniciado nos mistérios da
Tora
quem ninguém conhecia, paupérrimo, andrajoso, ( N.T.)

— —50 — 51 —
breve para uma tal viagem ». Um sósia deste velho é pertos. O jejuadoí* jejua, o guardião cala-se e os
o mendigo que « na sua vida normal e feliz » nem estudantes velam. Tão secretamente obram em
sequer encontra tempo para um desejo, mas que na Kafka as grandes regras da ascese.
vida insólita e desditosa da fuga, para onde se Dos anos submersos da infâ ncia, é o estudo
transfere com a sua história, se exime desse desejo, que Kafka evoca. « N ão fora muito diferentemente
trocando-o pela realização.
Entre as criaturas de Kafka, há uma raç a que
— e agora já tanto tempo havia passado
Karl, em casa., sentado à mesa dos pais

fizera
que
os
tem particularmente em conta a brevidade da vida; seus exercícios enquanto o pai lia o jornal, ou fazia
vem da « cidade do sul... da qual se dizia que isso escritas e correspondência para uma firma e a mãe
sim, era gente! Fixem-se nisto: não dormem!» Não se atarefava na sua costura, puxando a linha num
dormem porqu ê? « Porque nunca se cansam. Como gesto largo. Para não incomodar o pai, Karl punha
poderiam cansar-se os loucos? » É evidente que sobre a mesa apenas o caderno e o material
loucos e ajudantes, que também nunca se cansam, necessário para escrever, ordenando os livros de
são espécies afins. Os ajudantes, contudo, ainda que precisava à sua direita e à sua esquerda,
chegam mais alto. A propósito da sua fisionomia, empilhados em cadeiras. Como era grande o silên¬
diz-se em determinado momento que fazem «pen¬ cio que ali reinava! Como era raro entrarem
sar em aduitos, quase em estudantes ». Os estudan¬ estranhos naquele quarto!» Esses estudos talvez
tes, que em Kafka aparecem quando menos se não possuam significado algum, mas estão pró ¬

espera, são com feito os porta- vozes desta raça. ximos do nada que confere significado às coisas,
« Mas afinal quando dorme? », pergunta Karl como no Tao. Era isso que Kafka perseguia com o
maravilhado, contemplando o estudante. « Dormir? seu desejo de « pregar o tampo de uma mesa com
Ah, sim... Dormirei quando terminar os estudos ». habilidade paciente e minuciosa e ao mesmo tempo
As crianças também vão dormir de má vontade; não fazer nada, mas não de modo que se pudesse
enquanto dormem, podem verificar-se aconteci¬ dizer: para ele cravar pregos não é nada!, mas:
mentos que exigem a sua presença. « Não esquecer aquilo sim, é verdadeiramente bater pregos e ao
o melhor » soa como advertência familiar numa mesmo tempo não fazer nada, o que tornaria o acto
obscura massa de antigas histórias, embora talvez ainda mais audaz, mais decidido, mais real e mais
não apareça realmente em nenhuma. O esqueci¬ louco». Igualmente decidida e fanática é a atitude
mento, porém, diz sempre respeito ao melhor, e o dos estudantes em relação ao estudo, e n ão se
melhor é a possibilidade de redenção. « A ideia de poderia imaginar nada mais estranho. Os escribas,
pretender ajudar- me — diz ironicamente o espirito
errante e sem paz do caçador Graco — é uma
os estudantes, estão sempre sem fôlego, sempre
correndo atrás de alguma coisa. « O funcioná rio
doença que leva à cama ». Os estudos obrigam os dita em voz tão baixa que o escriba não consegue
estudantes a velar e é posivel que a sua virtude ouvi-lo se permanecer sentado; por isso tem de
má xima consista precisamente em mantê- los des¬ levantar-se para escutar o que se lhe dita, voltar

— — 52 — 53 —
rapidamente a sentar-se para escrever, tomar a estudo, onde é posivel que reencontre fragmentos
levantar-se para ouvir, e assim por diante. É tudo da sua própria existê ncia, partes do papel que lhe
muito estranho e quase incompreensí vel ». Se pen¬ foi distribuido. É possivel que consiga recuperar o
sarmos nos actores do teatro natural, talvez se gesto perdido, como Peter Schlemihl conseguiu
entenda melhor todos devem responder imedia¬ reaver a sua sombra vendida. É possivel que chegue
tamente à chamada. Há, no entanto, outros aspec¬ —
a compreender-se mas com que esforço! Porque
tos em que os actores se parecem com aquelas o que brota do esquecimento é uma tempestade, e o
personagens diligentes. Para eles, trata- se ver¬ estudo é uma cavalgada que avança contra ela.
dadeiramente de « bater pregos e ao mesmo tempo Assim o mendigo, que corre à desfilada montado
não fazer nada », quer dizer de representar papeis; no seu banco, a um canto escuro, ao encontro do
e mau actor ser á quem, por n ão estudar devi¬ passado, procurando assenhorear- se de si mesmo,
damente o seu papel, se esquece das palavras ou sob a forma de um rei fugitivo. À vida, demasiado
dos gestos que a representação requer. Para os breve para uma cavalgada, corresponde este
membros da companhia de Oklahoma, porém, esse galope, suficientemente longo para uma vida:
papel é a vida precedente de cada um. Daqui a «... até lançar fora as rédeas e não ver mais em
« natureza » deste teatro natural. Os seus actores frente do que um vasto deserto, já sem o pescoço e
são seres redimidos. Mas não o é ainda o estudante sem a cabeça do cavalo». Assim se realiza a fan¬
que Karl observa durante a noite, na varanda, em tasia do cavaleiro venturoso, impetuosamente
silêncio, enquanto «lia no livro, o folheava, con¬ lançado em perseguição do seu passado, numa
sultava de vez em quando um outro livro que
apanhava num gesto rápido, e tomava apontamen¬

viagem alegre e vazia do cavaleiro que deixou de
ser uma carga para o seu corcel. Este cavaleiro é
tos num caderno de que aproximava muito o feliz, mas desgraçado do que permanece amarrado
rosto». à sua pileca, porque se propôs, como fim futuro, o
Nesta representação viva do gesto, por mais mais próximo e imediato: a carvoaria « A cavalo no
extravagante, Kafka é inimitável. Com razão, balde de carvão, de mãos erguidas, segurando a
comparou-se K. ao soldado Schweyk: um espanta- pega, a mais simples das r édeas, desço a escada
-se com tudo; o outro não se espanta com nada. Na fatigosamente; mas ao fundo o balde ergue- se,
época da máxima alienação mú tua dos homens, das radioso: magní fico, magnífico! » Os camelos dei¬
relações infinitamente mediatizadas, que são as tados por terra, agitando- se sob o bastão do
ú nicas que ainda se podem manter, inventaram o cameleiro, não se levantam mais majestosamente.
filme e o disco. No filme, o homem não reconhece o Não há região mais desolada do que a das « Mon¬
seu próprio andar, no disco, não reconhece a sua tanhas de Gelo» onde o cavaleiro do balde de car¬

própria voz. Isso foi confirmado por diversas vão «se perde para nunca mais voltar». Das « mais
experiências, e a situação do sujeito delas é idêntica profundas regiões da morte» sopra o vento que o
à de Kafka. É esssa situação que o reconduz ao arrasta: é o mesmo que tantas vezes em Kafka

— 54 — — 55 —
J
emana da pré- história do mundo, o mesmo que paróquia; os seus estudantes, escolares sem escrita
empurra a barca do caçador Graco. « Por toda a Agora já nada pode detê- los na sua viagem « alegre
— —
parte diz Plutarco , nos misté rios e nos sacrifi
cios, entre os gregos e entre os bárbaros, se ensina
¬ e vazia ». Kafka porém encontrou a lei da viagem
dele: pelo menos uma vez conseguiu adaptar o seu
que devem existir dois seres principais e duas ritmo trabalhoso a uma cadê ncia épica tal como
forças especí ficas opostas, das quais uma puxa a durante toda a vida o procuroa confiando tal lei a
direito, para a frente, enquanto a outra desvia a um esboço que resultou no mais perfeito, e não só
primeira e a faz retroceder». O recuo é a direcção pelo seu carácter de interpretação.
do estudo que transforma a vida em escrita « Sancho Pança nunca se gabou disso, mas
Bucéfalo é o seu mestre, «o novo advogado», o qual com o passar dos anos, consumindo as noites a
sem o grande Alexandre, isto é, sem o grande con¬ devorar histórias de cavalaria e aventuras, tanto
quistador sempre lançado para a frente, empreende conseguiu transtornar o seu demónio que o fez sair
o caminho do regresso. « Livre, os flancos nunca de si e lançar-se desenfreadamente nas empresas
mais apertados pelas pernas do cavaleiro, longe dos mais loucas. Acçôes, aliás, que não faziam mal a
clamores das batalhas alexandrinas, lè e relê as ninguém, à falta do objecto predestinado que
páginas dos velhos livros». Num estudo recente, deveria ter sido precisamente Sancho Pança. Mais
depois de ter analisado minuciosamente todos os tarde, deu a esse demónio o nome de Don Quixote
pormenores do texto, Werner Kraft observa- « Não e, movido por um sentimento de responsabilidade,
existe na literatura uma cr í tica do mito mais seguiu-o calmamente nas suas correrias e desman ¬

poderosa e mais radical ». A palavra «justiça »


pensa Kraft — não é usada por Kafka, mas o que a
— dos, daí extraindo, até ao fim dos seus dias, grande
alí vio e ú til distracção».
crítica do mito efectúa em toda a sua extensão não é Louco pací fico e ajudante não ajudado, Sancho
outra coisa senão justiça. Contudo, poderá ver¬ Pança mandou à frente o cavaleiro. Bucéfalo so¬
dadeiramente o direito ser activado, em nome da breviveu ao seu. Pouco monta distinguir entre
justiça, contra o mito? Não: como jurista, Bucéfalo homem e cavalo: o importante é tirar o peso de
permanece fiel às suas origens. Parece, no entanto cima.
— e nisso talvez consista a novidade para ele e para

a profissão de advogado, no sentido kafkiano que
não exerce a sua profissão. O direito que não é
exercido, mas tão-só estudado, é a porta da
justiça.
A porta da justiça è o estudo. E no entanto
Kafka não se atreve a associar a este estudo as pro ¬

messas que a tradição associava ao estudo da Tora.


Os seus ajudantes são sacristães que ficaram sem

— —56 — —57

I
Colec ção Memória do Abismo
1 — ANGELO DE LIMA
Poemas in Orpheu 2 e outros escritos
2 — JEAN GENET
O fun ámbulo
3— GEORGES BATAILLE
O â nus solar
4— LU Í S CERNUDA
Os prazeres proibidos
5 — ANTONIN ARTAUD
A arte e a morte
6 — CHARLES BUKOWSKI
Dá- me o teu amor
7 — F. SCOTT FITZGERALD
A fenda aberta
8 — LOUIS- FERDINAND CÉ LINE
V ão navios cheios de fantasmas...
9 — FERNANDO PESSOA
Aviso por causa da moral
10 — YUKIO MISHIMA
Genet
11 — ALDOUS HUXLEY
O Cé u e o Inferno
12 — GEORGE MOORE
O outro sexo de Albert Nobbs
13 — ANTONIN ARTAUD
Van Gogh, o suicidado da sociedade
14 — CAMILO CASTELO BRANCO
Maria! N ão me mates, que sou tua m ãe!
15 — JOYCE MANSOUR

16 —

J ú lio César
WALTER BENJAMIN
Historia nociva

Kafka

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1
colecção memória do abismo 16
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