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ESCOLA DE MÚSICA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM MÚSICA
MESTRADO EM MÚSICA – ETNOMUSICOLOGIA
SALVADOR – BAHIA
2001
MÚSICA TRADICIONAL E COM TRADIÇÃO
DA RABECA
Maio – 2001
A Dissertação de Agostinho Jorge Lima foi Aprovada
cultura popular nordestina e de jovens músicos membros de grupos de música popular que atuam
em grandes centros urbanos que, a partir do início da década de 90, passam a tocar rabeca e a
Aspectos do saber e fazer musicais destes rabequeiros foram analisados na busca de uma
da música de rabeca, quando da sua inserção em contextos mais amplos e complexos de produção e
consumo musical.
iii
ABSTRACT
This dissertation is about the current music produced by fiddlers in the Northeast downtown
area, in the states of Paraiba and Pernambuco. On one hand, we have tried to verify the work of the
fiddlers who have traditionally been working in the rural zone and who have started living and
working in the outskirts of big cities for the last decades. On the other hand, we have verified the
musical activity of young musicians who play and produce fiddle music and consider themselves to
The focus of this study is on knowing and knowing how to make musicals typical of those
transmitted as well as at an understanding of what kinds of broad and strictly musical cultural
aspects are transmitted among these generations and how these generations understand this
dynamics.
In addition to that, we try to understand the aspects that serve both as the basis for the
convention - auto and auter attributive – of the fiddlers identity and as reference guidelines in order
for us to understand what this kind of music might be like as well as the musical work of fiddlers in
complex societies.
iv
AGRADECIMENTOS
A Maisa Santos, pelo carinho com que recebe todos estes estrangeiros nos braços da Mãe-
Bahia.
Ao Manuel Veiga, meu caro orientador. Professor exigente, mas pessoa muito amável.
trabalho. Que me ensinaram muito e são os verdadeiros mestres no assunto desta dissertação.
Aos meus filhos Gabriel e Daniel, pelo imenso amor que comungamos.
v
SUMÁRIO
RESUMO............................................................................................................................................iii
ABSTRACT........................................................................................................................................iv
AGRADECIMENTOS.........................................................................................................................v
Capítulo 1
INTRODUÇÃO...............................................................................................................................1
Capítulo 2
RABECA – UM POUCO DA SUA HISTÓRIA E DOS ESTUDOS SOBRE ESTA MÚSICA....6
1. O que veio das arábias.............................................................................................................6
2. A visão desta música por aqueles que não a fizeram..............................................................9
3. A atualidade da música de rabeca no Nordeste do Brasil.....................................................13
4. Os problemas que surgem na identificação destes agentes sociais.......................................14
Capítulo 3
ELEMENTOS PARA UMA ORGANOLOGIA DA RABECA...................................................18
1. Afinação usada pelos rabequeiros.........................................................................................18
2. Cordas usadas e sonoridade da rabeca..................................................................................20
3. Variação no tamanho das rabecas.........................................................................................22
4. Denominação das partes que compõem uma rabeca.............................................................27
5. Do artesanato da rabeca........................................................................................................29
6. Estilo musical e modificação em partes da rabeca................................................................34
Capítulo 4
PRÁTICAS, PRODUTOS E CONCEPÇÕES MUSICAIS..........................................................39
1. O manuseio do instrumento..................................................................................................39
2. Estilo musical e uso do arco entre os rabequeiros.................................................................45
3. Estilo musical, textura e região utilizada no instrumento.....................................................55
4. Melodia e harmonia na música dos rabequeiros...................................................................64
4.1. Harmonias e sonoridade na música de rabequeiros.......................................................64
4.2. A diversidade no fraseado musical................................................................................67
5. Instrumentação na música dos rabequeiros...........................................................................74
6. O uso de recursos eletrônicos e suas influências nas músicas dos rabequeiros....................81
Capítulo 5
O DISCURSO SOBRE MÚSICA E CRIAÇÃO MUSICAL ENTRE OS RABEQUEIROS.......90
1. Termos e conceitos empregados no discurso sobre a música...............................................90
2. Criação musical e concepções sobre criação entre os rabequeiros.......................................94
2.1. Concepções e atividades de criação entre rabequeiros ligados ao cavalo-marinho......97
2.2. Atividades e concepções sobre criação musical entre rabequeiros inseridos no espaço
da música comercial urbana...............................................................................................105
vi
Capítulo 6
ENSINO E APRENDIZAGEM DA MÚSICA DE RABECA....................................................112
1. Vivência musical e formação dos rabequeiros....................................................................112
2. Afinação e aprendizagem da música de rabeca...................................................................116
3. A transmissão do conhecimento musical............................................................................120
3.1. O contexto tradicional da rabeca e as concepções dos rabequeiros antigos sobre a
transmissão do conhecimento.............................................................................................120
3.2. Concepções e práticas de transmissão do conhecimento entre os novos rabequeiros.125
3.3. Três formas de transmissão deste conhecimento........................................................128
Capítulo 7
AS PERSPECTIVAS DA MÚSICA DE RABECA NA CULTURA URBANA ATUAL.........131
1. A perspectiva da música de rabeca no cavalo-marinho e boi-de-reis.................................131
2. A perspectiva da música de rabeca nos “conjuntos de forró”.............................................142
3. A perspectiva da música de rabeca entre os jovens rabequeiros urbanos......................148
ANEXOS..........................................................................................................................................155
LISTA DE REFERÊNCIAS.............................................................................................................193
vii
“Em um colar de pérolas eu admiro o fio que
anonimamente as une e torna um só.”
D. Helder Câmara.
viii
Capítulo 1
INTRODUÇÃO
Este estudo tem sua motivação na constatação de que há um determinado tipo de música de
rabequeiros que gradativamente se transfere para a periferia das médias e grandes cidades, em
função do êxodo rural, provocado pelas sucessivas crises na economia agrária nordestina. Nesse
ínterim, observou-se que jovens músicos de centros urbanos começam a tocar rabeca em grupos
musicais, cuja formação tem por base a guitarra, baixo elétrico, bateria, violão, etc.
tradicionais nos centros urbanos, buscando observar quais tipos de atividades musicais são
efetivadas; quais são as que, advindas da zona rural, ainda se mantêm neste novo contexto; que
tipos de modificações sofrem estas atividades e músicas e compreender como pensam e agem
culturalmente estes rabequeiros, agora alocados em núcleos sociais mais complexos e heterogêneos
Entre uma série de rabequeiros que residem em centros urbanos do Nordeste – que têm nas
manifestações musicais de origem rural e outras forjadas na própria urbanidade – optou-se por
realizar o trabalho de pesquisa com rabequeiros de três cidades da Paraíba, que são reconhecidos
por seus pares e por outras fontes de formação de opinião, como os mais representativos entre eles.
Na cidade de Bayeux,1 a pesquisa foi realizada com o rabequeiro Artur Erminio, o único que
é artesão de rabecas. Em Campina Grande,2 mora Geraldo Idalino Luiz, no bairro do Pedregal. Em
1
Na constatação de que a rabeca começava a ser utilizada por jovens músicos, alguns com
formação conservatorial, buscou-se observar as práticas musicais destes músicos para entender o
estilo da música que fazem com a rabeca e conhecer os tipos de inserção na música urbana
propiciados à rabeca com a atividade deles. Também, para compreender que tipos de laços sócio-
musicais os ligam aos rabequeiros tidos como tradicionais. Ou seja, como se processou esta
transmissão de conhecimento e quais elementos do saber e fazer musicais dos rabequeiros estão
Na pesquisa, optou-se por observar o trabalho musical de dois destes jovens rabequeiros,
ambos de Pernambuco. Maciel Salustiano, que mora em Olinda e Sérgio Roberto Veloso (Siba), de
Recife, mas atualmente residindo em São Paulo. A observação do trabalho de jovens rabequeiros de
Pernambuco é importante, pois foi principalmente neste Estado que, com o impulso dado nos
últimos anos pelo movimento musical denominado Manguebeat, surgiu uma surpreendente
quantidade de novos músicos preocupados com a incorporação e o resgate das músicas de tradição
oral no Nordeste. Por esta razão é que se pode obter uma melhor referência etnográfica para a
compreensão deste fenômeno musical entre os jovens, a partir do movimento que se expande desse
Estado.
A opção por Maciel Salustiano se deveu, principalmente, ao fato de ele ser atualmente o
rabequeiro mais respeitado entre os jovens músicos de Recife e do Nordeste; por ser compositor e
rabequeiro de um importante grupo musical surgido na última década em Pernambuco, além de ter
nascido numa família de grandes rabequeiros e mestres de cavalo-marinho, como o seu pai o Mestre
Salustiano.
Siba Veloso foi o primeiro rabequeiro que, ampliando as perspectivas de Antonio Nóbrega,
conseguiu levar a música de rabeca a um segmento mais amplo da sociedade. Sua música é
consumida por uma faixa expressiva de jovens de classe média urbana, e a atividade deste músico
2
vem deixar claro que é possível inserir a rabeca no circuito da música “pop” urbana e nos conjuntos
Na constatação de que ocorriam distinções entre tipos de práticas musicais, idéias e estilos
entre os rabequeiros – e observando que boa parte da literatura sobre o assunto enfoca o rabequeiro
enquanto um agente cultural estável, de identidade monolítica e sem variabilidade, seja nas práticas
ou idéias – buscou-se apreender, na pesquisa, que elementos sócio-musicais podem servir para a
formatação histórica de tal tipo de concepção sobre os rabequeiros e sua música. Buscou-se
apreender também quais são os aspectos que atualmente orientam uma compreensão de como esta
rabequeiro e no amplo espectro que vai desde o mais antigo rabequeiro de cavalo-marinho da
Paraíba, até dois jovens músicos da atualidade, que têm como base de trabalho os shows para
rabequeiros é buscada a partir da análise das suas músicas e de suas idéias gerais sobre música e
Nos diversos encontros com cada um destes rabequeiros, foram realizadas gravações de
entrevistas que tinham por base roteiros pré-estabelecidos, com vistas ao tipo de conhecimento que
se necessitava sobre determinado assunto. Roteiros estes que consistiam em tópicos gerais flexíveis.
Das músicas gravadas foram transcritas aquelas consideradas, depois de uma apurada
análise, como as mais significativas no repertório de cada rabequeiro; aquelas que fornecem
melhores elementos do estilo e conteúdo musical de cada um. Como acessório necessário a esta
dissertação, foi gravado um CD com algumas músicas que não foram transcritas, mas que são
3
A organização desta dissertação busca responder aos tipos de elementos encontrados na
pesquisa de campo e ao tipo de abordagem que se pretende sobre este assunto. Deste modo, buscou-
se evitar, dentro dos limites possíveis, a formatação desta dissertação em capítulos com uma
rabequeiros em separado da análise das suas concepções, do seu saber musical, e de outras
inferências culturais que tenham influência direta ou indireta nos objetos musicais.
inicial no instrumento rabeca, se passa a orientar o foco da atenção para a música e a cultura do
rabequeiro, vindo o instrumento a se tornar um apêndice destes fatores e não o elemento central
nesta abordagem.
O segundo capítulo traz um breve esboço da história da rabeca e de sua música, e busca
demonstrar como esta música tem sido mencionada por alguns estudiosos em um determinado
Porém, todas as questões relativas a uma organologia da rabeca são diretamente correlacionadas às
No quarto capítulo há uma abordagem direta dos produtos musicais. Questões como
gêneros, harmonias, sonoridade, tecnologia instrumental, instrumentação, etc são discutidas numa
tentativa de estabelecer um diálogo com as questões antropológicas que lhes são próprias.
Os modos de expressão lingüística sobre sua própria música (e o como isto indica tanto
esparsamente esboçados sobre sua música) e as concepções, idéias e atitudes criadoras entre os
4
Como a pesquisa também se pautou em duas gerações de rabequeiros há um capítulo
que jovens e tradicionais rabequeiros têm sobre este assunto. Busca-se entender como um saber e
Por fim, no sétimo capítulo, é esboçada uma breve análise das perspectivas da música de
rabeca nos contextos pesquisados; no espaço da música comercial urbana, nos grupos de forró
5
Capítulo 2
datas em nossa história. Remnant (2001: 696) nos remete à tradição oriental deste instrumento.
[rubãb, rubob, rebab, rabob, robãb, ribãb, rabãba, etc.] Um termo para vários
cordofones, particularmente lutes, ambos tocados com arco, e liras, encontradas
principalmente na África do Norte, Oriente Médio, Irã, Ásia central [etc.]. (...) A
etimologia e origem do termo “rabãb” para designar cordofones não é conhecida
com segurança. Foi mencionado pela primeira vez em um texto arábico medieval
(séculos IX e X) de Al-Jahi Ibn khurdadhbih e Al-Fãrãbi.
No verbete “Rebec” Remnant (2001: 898) faz menção à presença deste instrumento na
[rebeck, rebecke, rebekke] (Fr. Rebec, rebecq, rebequet, rebet; Ger. Rebec; It.
Ribeca; Lat. Rebeca, rebecum; Sp. Rabé, rabel, rabequin). Um instrumento de arco
com cordas de tripa. (...) Derivada da Lurã bizantina e a Árabe RABÃB,
instrumentos tipo rebec são conhecidos na Europa com diferentes nomes e em vários
formatos desde o final do século X e início do XI até os dias atuais, mas seu uso na
arte musical foi principalmente durante a Idade Média e Renascença. (...) A
terminologia das primitivas rebecas européias reflete suas origens Árabe e Bizantina.
Embora por muito tempo arcos não fossem plenamente aceitos nos altos círculos
sociais da Ásia, foram amplamente adotados na Europa depois do estabelecimento
do arco nos séculos X e XI. (p. 901)
E discorrendo acerca das manifestações em que havia a presença da rabeca observa que:
Procissões, sejam sacras ou seculares, muitas vezes incluíam rebecas. [e que] O uso
de rebecas em festas, danças e entretenimentos da aristocracia foram amplamente
documentados. (p. 901)
6
A rabeca foi trazida para o Brasil, provavelmente, por portugueses e espanhóis. Registros da
presença deste instrumento em diversas manifestações populares ou da corte foram realizados por
Em Camêu (1977: 22) há uma referência à presença do arrabil em uma festa de uma
comunidade da região Amazônica. A autora cita um capitão espanhol Francisco Orellana que, numa
expedição em 1541, relatou que presenciara uma festa onde havia “... muitas trombetas, tambor e
Calmon (1988:22) cita a presença de rabecas numa festa pública de sapateiros e corrieiros
ocorrida em 1762 na vila de Santo Amaro na Bahia. O mesmo relatando esta festa diz que “... a sua
demonstração em uma dança de ricas e vistosas farsas, que em nada cedia à dos alfaiates, e
Provavelmente o citado arrabil seria uma das formas do rabãb ou da rebeca medieval. No
introduzida na Europa pelos mouros após o século VII, com número de cordas oscilando de 2 a 5.
Também conhecido por arrabel, ayaeba, rabé, rabel, rabil, rebab, rebebe e vihuela de arco”
(Andrade, 1999: 25). Nos Folhetins de França Júnior (1926), citados em Sandroni (2001: 69), há
uma alusão à presença da rabeca em um baile realizado na Cidade Nova (RJ) onde a rabeca faz
Há bailes de primeira, segunda e terceira classe, como os enterros. ... Passemos aos
bailes de segunda classe. Figurem os leitores um sobrado com janelas de peitoril na
Prainha, Valongo, rua do Livramento ou em qualquer ponto da Cidade Nova.
Entremos pelo corredor mal iluminado e vamos direto à sala, onde uma orquestra,
composta de ophekleid (sic), um piston, uma rabeca e um clarinete manhoso, executa
a polka “Zizinha”.
A grande presença da rabeca na música nordestina, também apontada por Béhague (1980:
221-244), é coerente com o fato de que nesta região muitos elementos musicais de tradição ibérica
3
Este é um tipo de inserção do instrumento que precisa ser melhor averiguado, pois os registros da presença deste
instrumento em conjuntos instrumentais que tocavam polcas, lundus ou maxixes no final do século XIX e início do
século XX são escassos na literatura de folcloristas ou pesquisadores da nascente música urbana popular no Brasil.
7
foram amplamente absorvidos e ainda se mantêm até os dias atuais. Presença registrada em
encontradas em áreas geográficas como o brejo – região que possui um tipo de clima e de solo fértil
séculos que estas áreas são praticamente dominadas pela monocultura da cana-de-açúcar.
Como a colonização desta região foi iniciada pelo litoral é provável que a rabeca tenha
passado por um processo de interiorização aqui no Nordeste. Isto com a própria economia
açucareira e de engenhos que foram as mais importantes atividades econômicas desta região nos
séculos XVII e XVIII na região da mata atlântica, como observa Almeida (1978).
boi-de-reis, teatro de mamulengos e cantorias foi registrada por diversos autores e é mencionada
pelos atuais rabequeiros. Algumas destas formas de atividade eram mais comuns, como os
conjuntos de folguedos e bailes com rabeca, e outras não resistiram ao tempo, como foi o caso dos
bailes com rabeca nas comunidades rurais e a presença deste instrumento nos teatros de
Deste último tipo de atividade há os registros de Rosemberg Cariry no disco Cego Oliveira
editado em 1999 e de Tânia Quaresma no disco Nordeste: Cordel, Repente e Canção editado em
4
O boi-de-reis é um auto popular do ciclo natalino dos mais tradicionais e ainda mantidos no Norte e nordeste do
Brasil. Tal denominação deriva do fato de sua apresentação se entender até a Festa de Reis. É uma das variantes
nominais do bumba-meu-boi, boi calemba, do boi-bumbá encontrado no Maranhão, Pará, Amazonas; do boi de
mamão encontrado em Santa Catarina e Paraná. No seu enredo este folguedo tem o boi como uma das personagens
centrais, além do Mateus, Birico, Catirina, etc, e uma série de outras personagens secundárias que variam em cada
região ou que, na própria história do folguedo, surgiram e depois não foram mantidos por não caírem “nas graças do
povo”.
5
O cavalo-marinho é uma das variantes do folguedo do boi. Com este nome é mais encontrado na da zona da mata de
Pernambuco e em outros estados do Nordeste como a Paraíba, Rio Grande do Norte. No enredo do cavalo-marinho,
que trata de uma festa, um baile em homenagem aos Santos de Reis, com cânticos (toadas) e danças (baiões) em
louvação aos santos, o Mateus e o Birico – os dois os dois vaqueiros negros que compartilham o amor de uma
mesma mulher, a Catirina – encontram trabalho nesta festa onde diversos acontecimentos cômicos e dramáticos se
sucedem até à partilha final do boi entre os participantes. O capitão, o cavalo-marinho, faz a apresentação do
espetáculo usando um apito e montado em seu cavalo. Mas os mestres de cavalo-marinho da Paraíba não costumam
ficar montados no cavalo.
8
1975. Ambos enfocam a atividade do Cego Oliveira, cantador de romances já falecido, que morava
em Juazeiro do Norte no Ceará. Que, também, mantenha-se viva a memória de Fabião das
Queimadas, famoso repentista do Rio Grande do Norte que se acompanhava de uma rabeca e não de
parte, muitos rabequeiros citam que com a popularização da sanfona no interior do Nordeste, a
rabeca foi gradativamente perdendo seu espaço nos bailes de forró. Isto demonstra que a
músicos participantes de conjuntos instrumentais que fazem a música de alguns folguedos. São os
casos da dança de São Gonçalo, como observa Dantas (1976), da dança do Lelê, conforme Ferreti
(1978), do pastoril no Rio Grande do Norte, como afirma Cascudo (1998) e do Reisado no Piauí,
avançados da região, devido às constantes secas e à falência da atividade açucareira e dos engenhos,
a rabeca e sua música percorrem há algumas décadas o caminho inverso e perverso em direção à
periferia de grandes centros urbanos ou a pequenas cidades que se desenvolvem próximas do litoral.
Apesar de sua longa história em nossa cultura grande parte da literatura e de documentos
sobre este instrumento e sua música não passa de citações em romances, crônicas ou poesias ou de
musical mais ampla. Ou seja, salvo raras e importantes exceções, à música de rabeca não foram
ainda dedicados estudos sistemáticos que possibilitem um melhor vislumbre dela e uma
9
Típicas são as referências de passagem como a encontrada em Alvarenga (1982: 356), que
se resume a observar que “as rabecas têm um som tristonho e fanhoso”. Fragmentos de aspectos do
instrumento e da música são encontrados em diversos autores que, por sua própria especificidade,
não fornecem dados suficientes que auxiliem o leitor a uma melhor compreensão deste instrumento
e sua música.
insistentemente remetida a uma comparação com o violino, mesmo que estudos específicos sobre a
música de rabeca ainda não tivessem sido realizados. Nestas abordagens comparativas, à rusticidade
cultural própria da rabeca em um período da historia da nossa cultura é, sutilmente, impressa uma
violino na Europa, ao se referir diretamente à rabeca em um verbete com este título diz que:
Rabeca é como chamam ao violino os homens do povo no Brasil. Nas classes cultas
é voz que não se escuta mais. Desde a vulgarização do instrumento, pelo segundo
quarto do século XIX, o chamaram de rabeca entre nós. (Andrade, 1999: 423).
Ora, temos nesta citação uma inversão dos dados históricos, pois o instrumento trazido por
portugueses e espanhóis foi a rabeca7, que aqui se popularizou, e não o violino – este ainda sendo
Brasileiro segue este viés comparativo e termina por limitar a definição da rabeca como “uma
espécie de violino” que se manteve antigo. Para concluir que “... essa continuidade demonstra a
Alceu Maynard de Araújo nos fornece uma agradável e importante nota sobre a
música de rabeca em uma observação de sua presença na Folia de Reis. Este autor comenta que a
6
Este aspecto de rusticidade só pode ser invocado a um determinado período de tempo e espaço, visto que na Ásia
antiga os antecessores da rabeca eram instrumentos presentes na cultura rústica daquelas sociedades. Mas na Europa
medieval foi instrumento privilegiado pelas elites cortesãs e, no início da colonização brasileira foi este o
instrumento que os degredados e os nobres trouxeram para cá, não foi o violino.
7
Como era denominado em Portugal, conforme E. Oliveira, 1966.
10
rabeca confere “... uma nota característica de beleza e enternecimento no cantochão acaipirado das
violino, dá um depoimento importante sobre a música de rabeca, mas que, infelizmente, se encerra
numa comparação com manchas de discriminação à rabeca e ao rabequeiro. Isto talvez tenha
ocorrido pelo fato de este pesquisador ter-se debruçado, com muita propriedade, sobre assuntos os
Estou lembrando duma noite na zona da mata, em Pernambuco. Depois dum Bumba-
meu-Boi de cinco horas eu me aproximara dos instrumentistas pra tirar um naco de
conversa. Um deles me trazia um violino, feito por ele mesmo, duma sonoridade a
um tempo tão esganiçada e mansa que nem sei! E o violinista era compositor
também. Compositor... descritivo! Não vê que compunha baianos e varsas, feito os
outros! Compunha peças características, descrevendo a vida do engenho e a do
sertão. E tocou para mim escutar uma espécie de monstrengo sublime, que intitulara
'A boiada'. (...) está claro que a peça era horrível de pobreza, má execução,
ingenuidade. Mas assim mesmo tinha frases aproveitáveis e invenções descritivas
engenhosas. E principalmente comovia. Quando se tem um coração bem nascido,
capaz de encarar com seriedade os abusos do povo, uma coisa dessas comove muito
e a gente não esquece nunca mais (Andrade, 1984: 388-89).
Estariam estes autores imbuídos da idéia de que as camadas populares, por uma
incapacidade de criarem objetos genuínos, construiriam suas culturas à base apenas de absorções e
cultura de elite (o violino), é possível que estes autores estejam este aspecto da cultura popular
como sendo resultante de um desnivelamento. Cascudo (1998: 763) beira esta problemática, ao
afirmar que a rabeca é “... uma espécie de violino (...). Tem uma sonoridade roufenha, melancólica
e quase inferior”.
Um outro aspecto a ser observado nas citações de uma parte de estudiosos ou comentaristas
do folclore é a redução de toda a gama de fatores que perfazem esta música ao instrumento – seja a
aspectos de sua sonoridade, forma, timbre etc. Isto é um tipo de consideração que inverte a ordem,
tomando o objeto como núcleo explicador e gerador de cultura e identidade musical. Fatores de
11
caráter mais subjetivo e simbólico, ou mesmo as diferentes práticas musicais são deixadas de lado
As diversas músicas e os múltiplos contextos nos quais elas se estabelecem são deixadas de
lado nas análises destes folcloristas. Ora, entre rabeca e rabequeiro, o que há de culturalmente mais
Em termos de cultura, quem surge primeiro é o rabequeiro e sua música, embora a sua perpetuação
Também, não há apenas um tipo ou formato de rabeca no Brasil e estes diversos tipos foram
contextos e músicos.
Estudos não diretamente dirigidos à música da rabeca, mas que conseguiram uma
abordagem mais completa e reveladora desta música, foram realizados por Kilza Setti e John
Murphy aqui no Brasil. No seu estudo da cultura caiçara paulista do município de Ubatuba, Setti
(1985) dedica um capítulo ao estudo da música dos rabequeiros. É uma etnografia desta música
onde observações acerca do instrumento, da maneira de tocá-lo, construí-lo, das músicas criadas ou
executadas por rabequeiros e dos sentidos “estéticos” e estilísticos etc, são interagidas com o
As comparações entre rabeca e violino que são feitas nesse estudo, além de não sofrerem da
precocidade daquelas encontradas em outras pesquisas, partem também da própria visão dos
rabequeiros e da comunidade pesquisada. Este estudo de Kilza Setti é, além de outras qualidades,
rabeca.
12
Uma etnografia do cavalo-marinho em Pernambuco conduz John Murphy à observação da
música de rabeca na zona da mata de Pernambuco, onde amplia o estudo sobre esta música.
Atualmente, a rabeca e sua música passam por um processo migratório de caráter não
apenas geográfico, mas de um contexto cultural para outro, de um segmento social para outro e para
outros tipos de manifestação musical popular e, até mesmo, erudita. O gradativo aumento da
presença deste instrumento em grupos musicais formados, principalmente, por jovens músicos
residentes em grandes centros urbanos, que produzem uma música genericamente denominada de
Isto traz uma implicação a mais quando se busca um estudo desta música e de sua condição
sócio-cultural: a constituição da identidade dos rabequeiros não é mais passível de ser estabelecida
nos moldes instituídos por folcloristas do século passado. Rabequeiros não são mais apenas sujeitos
Tal como o instrumento rabeca, que histórica e geograficamente sofreu grandes variações no
seu formato e formas de inserção social, a sua música passa atualmente por modificações diversas
que lhe imprimem uma configuração mais complexa e dotam as suas possibilidades de
observados.
alguma maneira, ter despertado o interesse pela música e pelo instrumento entre jovens músicos
urbanos. O movimento Armorial em Pernambuco, que há algumas décadas buscou uma espécie de
conjunção entre linguagens musicais advindas da tradição da música de concerto européia e das
13
músicas de tradição oral nordestinas (cf. Didier, 2000: 83), foi também um importante impulso a
O movimento musical denominado Manguebeat, que teve início nos primeiros anos da
década de 90 em Recife, foi outro momento de estímulo a uma busca das tradições musicais
nordestinas por jovens que, em sua maioria, tinham outras formações e informações musicais.
Numa das vertentes deste movimento a música de rabeca encontrou moradia certa ao lado de
tambores, bateria, guitarras, baixo elétrico, etc. É o caso de grupos como o Mestre Ambrósio, Los
Canalhas Insensibles, Chão e Chinelo, de trabalhos como o realizado pelo DJ Dolores que utiliza
rabeca, groove-box e sons sintetizados, entre outros. São processos de migração, adoção e
transformação de um saber e fazer musical tradicional para o espaço urbano e de ação da indústria
cultural; espaço da urbanidade aparentemente massificada pelo consumo dos produtos da moderna
indústria de cultura.
Casos como os dos rabequeiros Siba Veloso, Maciel Salustiano, Luismario Machado,
Alicio, etc, são exemplos desta migração de conhecimento de uma geração a outra e de um contexto
cultural para outro. Estes rabequeiros são advindos de contextos culturais diversos e com formações
as mais diferentes. Luismario é violista de orquestra sinfônica; Siba Veloso era guitarrista e
A aceitação da diversidade atual no saber e fazer musical dos rabequeiros é um passo inicial
para a elaboração de esquemas conceituais e de identificação mais abertos e flexíveis sobre esta
música.
O problema das notas passageiras sobre a rabeca, encontradas em diversos autores, é que
elas terminaram por se constituir numa formulação oficial de identidade musical pautada em
14
fragmentos dispersos e, sobretudo, focada apenas no instrumento rabeca – ou, quando muito, numa
suposta natureza objetiva do fenômeno musical esboçada pelo pesquisador. Também desconsideram
identidade musical por aqueles que fazem a música de rabeca ou que a consomem, em cada um dos
pensamentos acerca da música. E como, a partir destes pensamentos, constroem aquilo que só existe
musical entre rabequeiros passa pela consideração de suas concepções, práticas musicais e produtos.
Considera-se, também, que é frágil e limitada a tentativa de uma identificação apenas por área
geográfica. Pois, apesar de sua maior presença na faixa da Mata Atlântica, é possível encontrar
rabequeiros. Mas isto também é variável na história das culturas 8. O fato de que, atualmente, jovens
rabequeiros estão imersos no universo da música popular urbana – universo este que em não busca
identificação. Assim, aqui se postula um entendimento da identidade musical dos rabequeiros como
algo que não é monolítica; que não é, em todos os seus aspectos, comum a todos; que é flexível e
Buscar estabelecer uma identidade para os rabequeiros e sua música a partir do encontro de
uma tipicidade objetiva não é muito profícuo, pois não somente desconsidera as formas de pensar
de quem faz a musica, como também que o “típico” não é apenas aquilo que é mais marcante, mas,
8
A própria sonoridade e aspectos da performance de rabequeiros é aceitável como sendo rústica a depender do viés
que se adota para observar. Pois, muitos destes elementos se constituem em manutenções, na atual cultura musical
sertaneja, de aspectos do estilo sonoro-musical próprios barroco musical erudito Europeu do século XVII.
15
manipulação simbólica com vista a produzir para outrem uma “identidade” de si. Marcando, assim,
um território sócio-cultural próprio e simbolicamente controlado. A este respeito, Penna (1992: 77)
observa que:
da música dos rabequeiros e suas formulações de identidade, não apenas no vislumbre de práticas
musicais, mas também, em como estas são pensadas e representadas para si e para outrem. Para
mesma forma que é importante o conhecimento da estrutura social que dá lastro a tais práticas
sociais. Considera-se, também, que uma prática musical pode ser simbolizada e representada de
mas não fornecem, diretamente ou por si, os elementos identificadores do sujeito ou do grupo que
as objetivam. Somente a partir do como são interpretadas e valoradas pelos receptores – através dos
esquemas classificatórios, para forjar interpretações, que possuem os grupos sociais – é que se
das culturas. Identidade não é um dado fixo pré-estabelecedor das relações sócio-musicais, mas algo
que se estrutura na dinâmica das relações sociais. Buscar entender identidade musical como algo
dinâmico e construído, implica em entende-la não como um dado prévio às relações sócio-musicais,
16
Abordando o fenômeno identidade como algo que não se resume às práticas ou aos dados
objetivos, possíveis de “visualização” direta pelo pesquisador, Lévi-Strauss (1975: 369) observa
que identidade é:
Uma espécie de foco virtual ao qual nos é indispensável referir para explicar certo
número de coisas, mas sem que tenha uma existência real. (...) é a existência de um
limite ao qual não corresponde, na realidade, nenhuma experiência.
Mesmo que, dentro de um campo geral de identidade, estes músicos possam ser
deles – e dos segmentos que com eles comungam determinadas idéias, objetos e procedimentos –
resultantes das suas formas de inserção, ação e reação em determinadas situações sócio-musicais
colocadas.
17
Capítulo 3
Nesta pesquisa observou-se que a altura sonora absoluta utilizada pelos rabequeiros advém,
Mesmo sem usar um diapasão para a obtenção da afinação pretendida, cada um dos
rabequeiros pesquisados – exceto os dois rabequeiros mais jovens que usam diapasão eletrônico –
mantinha praticamente a mesma afinação nas diferentes oportunidades em que se fez o registro das
suas músicas. A altura sonora absoluta de cada uma das rabecas registradas nesta pesquisa varia no
espaço de um intervalo de quinta aumentada (exemplo 1). Observando-se aqui que as diferenças
microtonais estão sempre presentes na execução deste instrumento e que o registro das alturas no
relativamente arbitrário9.
Na afinação da rabeca o intervalo sonoro buscado entre as cordas é o de quinta justa, mas
este intervalo nem sempre é obtido, sendo possível observar pequenas alterações microtonais.
Geraldo Idalino afinam as cordas segurando o instrumento com uma mão, apóiam-no nas pernas e,
com a outra mão, dedilham as cordas uma a uma e ajustam as cravelhas na busca do intervalo de
9
A adoção do sistema convencional de notação sem uma adição de sinais diacríticos para a observação de diferenças
microtonais é relativamente eficaz neste trabalho, visto que ao mesmo se faz acompanhar um registro sonoro em CD
que permite ao leitor realizar suas próprias observações acerca destas diferenças. De outra parte, sendo a rabeca um
instrumento de afinação não temperada, no registro em notação da sua música pode-se utilizar boa parte dos
símbolos gráficos usados para a notação da música de instrumentos semelhantes como o violino – isto porque já se
tem uma noção da relatividade entre o que está escrito e o que é tocado por estes instrumentos. A “auralidade” é
capaz de melhor resolver questões como esta onde, por mais que se tente um sistema de notação pleno em todas a
variáveis, sempre haverá brechas de interpretação que somente podem ser apreendidas numa verificação da
performance em seu contexto. No espaço da música erudita um grande problema na notação do microtonalismo se
demonstra na própria utilização do sustenido e do bemol na notação de música executada por instrumentos não
temperados. É larga a proporção em que este semitom varia na história (na execução de música barroca, romântica
ou contemporânea, por exemplo), e nas formações instrumentais como uma orquestra, um duo de um violoncelo e
piano ou em um quarteto de cordas.
18
quinta justa. Após esta etapa da afinação, eles costumam passar o arco em duas cordas
simultaneamente – mas apenas para ratificar a etapa anterior, pois não mexem mais nas cravelhas,
É bastante provável que esta maneira de realizar a afinação do instrumento, seja responsável
pela afinação diferenciada do intervalo de quinta entre as cordas. Este tipo de intervalo obtido, pelo
que se pôde observar, dota a rabeca de uma sonoridade específica se comparada a outros
instrumentos não temperados, mas que possuem uma precisão maior na afinação entre as cordas,
como o violino10.
Siba Veloso e Maciel Salustiano usam micro-afinadores nos seus instrumentos. Para Maciel
Salustiano estes servem “... para dar mais facilidade pra mim. Para mexer na afinação, é só vim aqui
10
O tipo “irregular” de intervalo obtido pelos rabequeiros não é diretamente buscado por uma opção de beleza ou de
performance que se tenha. Também, não consiste numa “desafinação” visto que historicamente tornou-se um padrão
na música deste instrumento. A especificidade sonora e a “beleza” peculiar adquirida nesta música advêm, em parte,
desta suave modificação na afinação das cordas do instrumento.
19
e mexer”. Embora realizando o mesmo procedimento inicial que Artur Erminio e João Alexandre
usam na afinação, é na segunda etapa – a da microafinação com o toque com arco em cordas duplas
– que estes rabequeiros dedicam maior atenção na busca de intervalos mais exatos de quintas entre
as cordas.
A primeira corda, a mais aguda, é sempre a referência para a afinação das outras. Afora os
jovens rabequeiros que usam afinadores eletrônicos como auxílio para a manutenção da afinação da
altura absoluta da primeira corda, os mais idosos não costumam mexer na afinação desta corda, a
não ser que ela desafine completamente. Para rabequeiros de cavalo-marinho como Artur Erminio e
João Alexandre, a altura desta corda está, de algum modo, condicionada à voz dos cantores. Como
estes tocam, quase sempre, com os mesmos cantores, a afinação desta é sempre mantida na mesma
altura.
A noção da altura sonora das cordas para os rabequeiros tradicionais seja descendente e não
ascendente, do grave ao agudo, como o é para a maioria dos músicos com formação conservatorial.
Raramente estes rabequeiros efetuam uma alteração na primeira corda, bem como têm na primeira e
segunda corda, as mais agudas, uma referência, na maioria dos casos, para a execução musical.
tamanho do instrumento11. Isto em conjunção com o peso do arco, seu tamanho e o tamanho da
rabeca, propicia uma sonoridade específica à rabeca. Sonoridade esta que não é “estridente” e
20
comparados os timbres destes três instrumentos nas suas utilizações em seus respectivos contextos
musicais. Quanto maior o tamanho do instrumento, mais “roufenho” se apresenta seu timbre – como
Não há, portanto, uma sonoridade geral e única da rabeca nordestina. Alguns aspectos são
comuns a todas as rabecas, mas os tamanhos dos instrumentos e os materiais usados na sua
confecção pelos rabequeiros, fazem com que, em cada rabeca, se possa observar diferenças de
timbre e de outros aspectos sonoros. O timbre das rabecas pesquisadas à época de Câmara Cascudo,
por exemplo, pode ter sido diferente do atual timbre de rabecas nas quais se usam cordas de aço e
Ou seja, não existe uma rabeca modelar em sua natureza física e sonora, como este
instrumento é passível de alterações, como todos os outros, no tempo e no espaço das culturas.
Maciel Salustiano usa cordas de aço para violão, o que faz com que seu instrumento possua
uma sonoridade mais “encorpada” e densa, visto a corda do violão ser mais grossa que a de um
cavaquinho e, assim, suportar melhor a pressão do arco e não dispersar tantas freqüências em forma
O rabequeiro Siba Veloso relata que depois de muitos experimentos passou a usar cordas
para guitarra de jazz – que são lisas como as usadas em instrumentos de orquestra e mais grossas
que as de violão. Para ele, a opção por estas cordas se deve a um tipo de timbre e sonoridade
buscada para sua rabeca, ao fato de utilizar mais a região média da tessitura e por usar uma afinação
mais baixa que a de costume entre os rabequeiros de cavalo-marinho de Pernambuco12. Isto torna
Conforme este rabequeiro, o uso de cordas de violão numa afinação baixa diminuiria um
pouco a tensão própria e necessária à rabeca, assim como as cordas de violino ou viola de orquestra
dariam à sua rabeca uma sonoridade “adocicada”, o que não é desejado pelo mesmo. Cordas de
12
Em Murphy (1997: 157) observa-se que a altura absoluta da afinação usada por rabequeiros em Pernambuco é
próxima das que se encontrou na Paraíba entre rabequeiros de cavalo-marinho.
21
guitarra dão ao seu instrumento uma sonoridade menos “rasgada”, menos fragmentada, ao passo
que mantêm a tensão e a densidade sonora – um aspecto de sonoridade requerido pelos rabequeiros.
Aliás, a preocupação com timbre e sonoridade em geral entre os jovens rabequeiros não
indica um tipo de busca de adoção da sonoridade do violino para a rabeca. Consiste muito mais na
contextos onde atuam, que são contextos diferentes daqueles onde atuam os rabequeiros
tradicionais.
Nesta pesquisa, encontrou-se rabecas cujas dimensões variam de um pouco maior que uma
viola de orquestra a um pouco maior que um violino13. A rabeca de João Alexandre, a mais antiga
13
É importante frisar que em nenhum momento deste trabalho se pretende uma abordagem comparativa entre o violino
e a rabeca. O uso, em poucos momentos, da referência ao violino para a observação de alguns aspectos da rabeca,
deve-se exclusivamente à necessidade de facilitação de uma compreensão por leitores que, talvez, nunca tenham
visto ou ouvido uma rabeca. Assim, algumas referências ao violino servem como um meio para ilustração do que se
pretende discutir.
14
“Testo” no Novo Dicionário da Língua Portuguesa – Aurélio, é “tampa de barro ou de ferro para vasilha” e numa
acepção popular é aquela parte mais densa de comida que fica grudada no fundo da panela. Sendo os ‘testos’ as
partes que “tampam” a rabeca, esta denominação verbal de uma parte da rabeca parece ainda manter aspectos da
cultura da zona rural nordestina (Ferreira, 2000: 1384).
22
– A cabeça (parte extrema do braço onde se fixam as cravelhas) tem 12 centímetros de
comprimento e 3,4 de largura.
– As almas (nesta rabeca são duas colocadas abaixo de cada uma das laterais do cavalete,
próximo às aberturas dos “S”) medem 6,2 cm. de altura e 1,3 cm. de largura.
– O arco tem 58 centímetros de comprimento e a crina é colocada a 3,5 centímetros de
distância da vareta.
Nesta pesquisa, foi observado que a construção de rabecas com dimensões próximas às de
um violino não é, por si, um indicativo direto de mudança nos procedimentos dos artesãos em busca
de uma aproximação ao modelo do violino. O que se pôde constatar como fato mais importante, é
que as dimensões das rabecas variam conforme cada artesão nas suas tentativas particulares de
Não se desconsidera que, numa troca de informação com outros segmentos culturais, alguns
aspectos do modelo do violino estejam vindo a influenciar a construção de rabecas15. Mudanças nos
procedimentos de construção que poderiam advir de um contato maior dos rabequeiros artesãos
com o violino ou viola de orquestra, ou seja, com a migração de parte dos rabequeiros para as
periferias das grandes cidades nas últimas décadas. Afinal, no processo de homogeneização da
O artesão Manoel Severino Martins que fez as rabecas de Siba Veloso e Maciel Salustiano,
em depoimento a Pacheco (2001: 22) conta que fazia rabecas quadradas, mas, atualmente, faz de
outra maneira – suas rabecas têm dimensões e formatos aproximados de um violino. Diz que essa
Salustiano (Mestre Salú), que tinha contatos em Recife e lhe trouxe um molde para fazer rabecas.
15
Trocas estas gradativamente aceleradas a partir da urbanização de comunidades interioranas, da migração de muitos
para a periferia de grandes centros urbanos e do avanço da indústria da informação.
23
Ele vinha, levava, encomendava, todas daquelas quadradas, foi o tempo. Até que ele
se abusou da rebeca quadrada e foi que ele trouxe o molde pra eu fazer, seu Mané
mesmo foi quem trouxe o molde, e disse: ‘faz a rebeca com esse molde que fica mais
bonita que a rebeca quadrada’. Eu disse: ‘ta certo’, e aí fiquei fazendo, todo dia
assim.
rabecas há poucas décadas, a partir de um violino que viu na televisão. Porém, muitas de suas
Embora saiba da existência do violino e demonstre admiração por este instrumento, Artur
Ermínio é taxativo ao afirmar que há uma diferença entre rabeca e violino e que um dos aspectos
parece haver uma tendência direta e clara para uma adequação da rabeca ao violino. O que é claro é
inferioridade em relação aos violinistas, no diálogo cultural intermitente que travam com outros
segmentos culturais, estes músicos optam por manter aspectos do seu saber e fazer musicais como
formas de manutenção das suas identidades. Tudo indica ser este o caso dos artesãos de rabeca
24
como Artur Ermínio que, apesar da admiração pelo violino, continuam construindo suas rabecas de
Contrapontos como estes que se estabelecem ao longo de toda a nossa história cultural
Também, atualmente, a rabeca tem uma existência própria na cultura popular, não sendo entendida
por aqueles que perfazem esta própria cultura, como um instrumento cuja existência derive da
presença do violino nos centros urbanos, ou pela falta de violinos nas comunidades onde a rabeca é
musicalmente utilizada.
Pretende-se observar que somente a análise das dimensões e de outros aspectos físicos da
rabeca e do violino não é suficiente para uma tentativa de comparação direta da rabeca, colocando-a
O “seu todo”, neste caso, se restringe apenas ao aspecto visual do instrumento e, assim, a
apreensão da rabeca é reduzida à sua dimensão física. Ao som da rabeca – aquilo que lhe é mais
essencial – não é atribuído uma qualidade própria, mas uma “imitação” do som da viola de
orquestra. Demonstra-se, assim, que sem uma ampla abordagem da música, do contexto em que esta
rabequeiro, a rabeca será sempre considerada como instrumento bastardo da nobre família de
instrumentos de orquestra, ou será submetida a uma compreensão dúbia quando entendida como
16
Isto também muito presente em outros estudos ou alusões à rabeca como é o caso de Dias (1977: 44) onde na
referência à rabeca em um folguedo popular o autor a menciona como um “violino artesanal de som áspero”. Este
tipo de menção ou análise apenas reafirma a idéia hegemônica de que os produtos culturais de segmentos populares
da sociedade são resíduos artesanais do que é produzido em um nível “acima” da cultura.
25
No caso da rabeca, esta tendência a uma abordagem comparativa parece ser mais forte que
do nosso país, a rabeca tem um “concorrente” direto no espaço da cultura letrada: o violino, que é
um dos símbolos maiores desta cultura. Estando a cultura musical da rabeca numa contínua situação
estritamente rural para aa periferias dos centros urbanos – é, de certo modo, compreensível que as
abordagens comparativas feitas por estudiosos do passado tenham sido motivadas por esta própria
No presente trabalho busca-se observar que embora o instrumento rabeca, na sua natureza
identificação de cada um destes músicos pode ser mais bem realizada quando da abordagem de seus
17
No caso da rabeca este choque ou fricção entre culturas parece ser mais evidente e efetivo do que em qualquer outro
instrumento ou prática musical erudita ou popular em nossa cultura. A própria denominação de rabeca, e não de
violino popular, parece ser um caso impar de manutenção de uma tendência cultural na nossa música.
18
Estudos comparativos nesta estiveram em voga em um determinado momento da história da etnomusicologia.
Acerca dos problemas da tendência prematura a abordagens comparativas, antes de estudos de cada uma das
culturas a serem comparadas, Mantle Hood – citado em Greber (1975: 14) – faz a seguinte observação: “Las
publicaciones tempranas se preocuparon prematuramente del metodo comparativo. Su conclusiones generales. se
basabam con frecuencia en un muestreo inadecuado y poco representativo (...). Los estudios seguientes basados en
estas suposiciones han conducido a un conjunto de errores. (...) La ansiedad [de encontrar semelhanças e diferenças
entre culturas] condujo a la comparación de dos culturas diferentes antes que ninguma de ellas hubiera sido
comprendida.”
19
Uma abordagem diretamente direcionada ao instrumento rabeca pode conduzir à errônea denominação de alguém
como rabequeiro apenas por tocar numa rabeca, ou de alguém como violinista por tocar música de rabequeiros num
violino. Uma demonstração disto pode ser encontrada numa menção de Wagner Campos quando usa a
denominação “virtuose do violino brasileiro”, no encarte do Cd Caranguejo Danado (2000) para se referir ao
rabequeiro Nelson da Rabeca.
26
4. Denominação das partes que compõem uma rabeca
Estudos como o de Setti (1985) e Araújo (1967) demonstram que quando os rabequeiros
atribuições verbais. Processos que dotam de aspectos próprios do ser humano, como braço, cintura
etc, às partes da rabeca. Tais procedimentos lingüísticos também foram observados entre os
rabequeiros pesquisados neste trabalho. Mas, no caso desta pesquisa, observou-se que este tipo de
rabequeiros mais antigos como Artur Erminio e João Alexandre e menos presente em rabequeiros
com uma vivência urbana maior – como são os casos de Maciel Salustiano e Siba Veloso. Pôde-se
observar que aqueles com um acesso maior a informações e termos usuais nos meios letrados
passam a substituir antigas denominações por outras comuns nos contextos onde trafegam.
Na foto abaixo temos a rabeca de João Alexandre e os nomes dados por ele às partes do
instrumento.
1. Cabeça
2. Caravelhas
3. Dentes
4. Braço
5. texto
6. Língua
7. Cintura
8. Cavalete
9. Esses
10. Repuxo
27
As variações de terminologia entre os rabequeiros têm uma relação direta com o
de cada parte da rabeca parece ser menos importante para um rabequeiro que apenas toca do que
para aquele que é artesão. Acerca de sua relação com nomenclaturas designadoras de partes da
rabeca, Siba Veloso afirma que “... como eu nunca me liguei na parte de construção da rabeca, eu
No quadro a seguir, pode-se observar que Artur Erminio, justamente o único que dentre os
pesquisados é artesão, é o que possui uma denominação específica para todas as partes da rabeca;
Nas extremidades deste quadro, encontram-se os rabequeiros Artur Erminio e Siba Veloso.
O primeiro é o único que se dedica exclusivamente a tocar rabeca no cavalo-marinho e que conhece
possui formação universitária e teve, em boa parte da sua vida, uma formação cultural urbana. Uma
observação dos dois extremos permite observar que este tipo de lastro cultural está na base das
28
5. Do artesanato da rabeca
Artur Erminio relata que começou a construir rabecas quando ainda era menino, juntamente
com seu irmão, a partir da observação de outras rabecas. A observação e a imitação são processos
rabeca e no seu artesanato. Mas talvez Artur Erminio esteja associando atividades lúdicas de
imitação de artefatos usados pelos adultos, como é comum na atividade educativa infantil, ao
primeiro ato de fabricar uma rabeca. O mais provável é que ele, assim como ocorre com a maioria
dos artesãos de rabeca, só tenha realmente começado a fazer rabecas quando já sabia tocá-la, na sua
vida madura.
Este rabequeiro faz o arco da rabeca retilíneo sem curvatura para dentro ou para fora como o
arco moderno do violino. Nas extremidades da vareta é colocada uma crina de nylon sempre
retesada, pois o seu arco, como os de todos os outros rabequeiros, não possui um botão para ajuste
da pressão da crina. A madeira usada na confecção do arco é o “Jatobá”, pois, segundo o próprio
Artur Erminio, ela é mais resistente. Ele diz que passa em torno de dois meses trabalhando para
fazer uma rabeca e comenta que a parte mais difícil de fazer é o braço, porque “... tem muitas
voltas”.
Constituído como uma peça única, o braço é feito de “Pau-Ferro” e na cabeça dele são
colocadas quatro caravelhas feitas de “Jatobá”; o que denominam por “dentes” é uma peça única
feita de osso e interposta entre a língua e a cabeça da rabeca, que serve de passagem para o ajuste
das cordas entre o cavalete e as cravelhas. Na parte superior do braço é fixada a língua, feita de
“Cedro”, que tem uma curva mais acentuada que o cavalete. Esta diferença na curvatura da língua
não traz problemas para a execução da rabeca, visto que toda a música de rabeca é tocada na
primeira posição, com a mão esquerda fixa e, portanto, numa região onde a pressão é mais bem
controlada.
29
As ferramentas utilizadas por ele são uma pequena foice com a qual corta as madeiras e
retira os excessos até chegar ao tamanho adequado, para então começar a dar forma às partes do
instrumento. Depois do trabalho com a pequena foice é feita a raspagem das partes com uma faca
para dar o formato ao instrumento. Após este processo as peças são lixadas e encaixadas.
Os testos, parte por onde começa a fazer a rabeca, são duas peças inteiras feitas com a
madeira do “Pinho” ou do “Cardeiro”. Para a confecção das faixas laterais, nas quais os testos são
encaixados, não é utilizado o procedimento corrente na lutheria de tradição italiana que consiste em
esquentar a madeira e amolecê-la, enquanto se faz o contorno. A forma das “faixas” das rabecas de
Artur Erminio é obtida com a raspagem da madeira e, principalmente, com a utilização de uma
Para o encaixe dos testos, faixas laterais e braço o artesão utiliza cola branca de marcenaria
e pequenos filetes de Jatobá com cerca de dois milímetros de diâmetro e aproximadamente cinco
não facilitar o “descolamento” das partes. No testo superior são feitas as bocas em forma de “S” à
altura da cintura – parte intermediária do texto, cujas cavidades permitem que com o arco se possa
comprimento e quatro milímetros de largura, interposto entre os dois testos – é colocada após o
encaixe completo da caixa de ressonância. Esta peça tem que ser de madeira consistente, pois,
conforme Artur Erminio, é ela que segura o testo evitando que o mesmo afunde.
Este rabequeiro – assim como outros artesãos de rabeca – não tem um modelo desenhado
em papel das partes do instrumento. Ou seja, faz suas rabecas conforme as que viu e assim continua
30
Neste aspecto há uma questão importante a se ressaltar na discussão sobre o instrumento e a
Grande (Paraíba) instrumentos que são muito similares ao violino (v. foto abaixo). O artesão destes
instrumentos – que viveu muitos anos na zona rural do Estado, somente vindo há poucas décadas
para esta cidade – diz que começou a construí-los quando viu um instrumento na televisão e os
interior, de rabecas leva a que estes artesãos entendam que seus instrumentos são rabecas, e eles
rabequeiros. Não há entre a maioria dos rabequeiros tradicionais ou artesãos de rabeca uma
necessidade de se identificar ou ser identificado como violinista ou luthier. Neste ponto é que se
observa que são aspectos culturais e modos de pensar, e não apenas o formato ou o instrumento em
31
A sonoridade do instrumento e sua resistência são os principais fatores que preocupam Artur
Erminio quando da manufatura da rabeca. Ele fala que a raiz da Imburana e o Cedro são as
melhores madeiras para fazer o instrumento, pois “... dá o tom e não lacha [fratura]”. Observa que
não se deve fixar as partes do instrumento com pregos, visto que, se assim feito, o instrumento “fica
uso de outras que, inevitavelmente, trarão mudanças na sonoridade do instrumento. Este é um fator
importante na modificação técnica do artesanato do instrumento nos centros urbanos. Isto pode
mesmo levá-los a parar de tocar por falta de rabecas ou parar de fazê-las e comprar instrumentos
fabricados, como foram os casos de João Alexandre, que passou anos em João Pessoa sem tocar por
falta de uma rabeca e de Geraldo Idalino que, quando trabalhava com pedreiro na década de 70 no
Rio de Janeiro, optou por comprar um violino, por falta de uma rabeca.
rabequeiros como a mais adequada para a construção do instrumento, podem concorrer para
rabequeiros – a própria falta de matéria-prima para construção da rabeca pode acabar com a
É o caso de Manoel Nascimento (ver foto abaixo) que por falta de madeira e por necessidade
de tocar o instrumento e manter um pouco das suas tradições, fez para si uma rabeca cujos testos e
faixas são de papelão. Numa comparação mais grosseira a outras situações pelas quais passam os
cidadãos brasileiros, os rabequeiros residentes nas periferias dos centros urbanos têm que colher no
32
O rabequeiro Manoel Nascimento e sua rabeca com testos de papelão.
contexto da música da rabeca, embora não sejam aspectos diretamente determinantes do estilo
musical dos rabequeiros. O que se configura como o contexto imediato, são as formas como os
agentes sociais reagem a esses e outros aspectos – como os de natureza econômica, por exemplo – e
simbólica e musicalmente agem ante aspectos que são objetivos, mas externos à sua produção
musical.
Mesmo um fator deste tipo tenha influência direta em um dos aspectos do saber e fazer
do tipo de madeira – isto muito dificilmente implicará numa completa alteração ou determinação
direta de um tipo ou estilo musical. Pois, influências deste tipo dificilmente atingem o núcleo
central de um saber musical culturalmente estabelecido. Por isto, quando se pretende observar
implicações desta ordem, também se quer fazer claro que estes se tornam aspectos de um contexto
segmento cultural.
33
6. Estilo musical e modificação em partes da rabeca
Algumas partes do instrumento têm uma significação especial para os rabequeiros. É o caso
da alma que, no entendimento de todos, possui a dupla função de suporte para a pressão das cordas
e de propiciadora de boa sonoridade para a rabeca. A este respeito, João Alexandre diz que “... tem
que ter a alma pra segurar a força das corda e o testo não afundar com o cavalete”.
rabecas, são presos diretamente nos testos. Algumas rabecas possuem duas almas colocadas abaixo
Algumas partes das rabecas apresentam modificações que, provavelmente, refletem uma
Nos cavaletes das rabecas as modificações são mais evidentes. Uma análise dos tipos de atuação
musical e de cada contexto onde atuam estes rabequeiros faz-se necessária para que se compreenda
pois atua como instrumento guia na introdução de toadas e no desenrolar delas quando duplica a
voz dos cantores tocando a mesma melodia (faixa 1 do CD). Também ajuda a preencher o espaço
sonoro do grupo servindo como elemento de ligação entre o canto e o ritmo estabelecido pelos
dos cantores, com esquemas rítmicos próprios que não são os mesmos dos percussionistas, mas
uma razoável potência e densidade sonora. Além disto, a rabeca tem que concorrer com a
toca.
34
Assim, a utilização de outra corda, como um bordão ou como duplicação harmônica da
melodia, na execução das músicas do cavalo-marinho é um traço estilístico dos rabequeiros que, de
certa forma, é motivado pela própria necessidade de maior volume e densidade sonora na música
destes folguedos.
O toque em cordas duplas agudas, na execução de pequenos solos introdutórios no início das
corresponda tanto a um gosto musical dos rabequeiros e de pessoas que assistem aos cavalos-
marinhos, visto a sua manutenção até os dias atuais. O toque em cordas duplas na região grave do
Um rabequeiro de cavalo-marinho como Artur Erminio da Silva (76 anos) tem uma série de
que modificações na estrutura dos instrumentos musicais advêm sempre de exigências ante a
curvatura, por este rabequeiro é indicativo de uma resposta sua à necessidade de realização
A manutenção deste tipo de cavalete pela maioria dos rabequeiros de cavalo-marinho, não se
deva a uma necessidade de realização destes traços estilísticos historicamente sedimentados nestes
É retinho, porque se a gente for fazer alto e baixo dos lados, aí a corda fica descida
pra cá e pra cá [apontando as laterais do cavalete]; tem que ser retinho pra quando o
arco pegar, passa logo nas duas.
bairro dos Novais, na cidade de João Pessoa, teve um passado ligado aos bailes de forró – atividade
esta que ainda mantém de alguma forma, quando toca para os amigos em bares da vizinhança. Nos
35
contatos que foram mantidos este rabequeiro demonstrava espontaneidade quando sempre
procurava tocar alguma música nova que aprendeu através do rádio – o que deixa claro a
continuidade de um apego à música da rabeca solista, como havia em antigos bailes de forró.
Sobre o cavalete de sua rabeca, que possui uma curvatura um pouco mais acentuada que o
da rabeca de Artur Erminio, João Alexandre diz que prefere assim, pois “... não pode ser igual não
A diferença entre Artur Erminio e João Alexandre, em termos de atividades musicais, reside
no fato do segundo manter uma maior convivência diária com gêneros musicais veiculados nas
rádios – principalmente música de forró de Luiz Gonzaga e Jackson do Pandeiro – que ele procura
tocar na rabeca. É bastante provável que a opção deste rabequeiro por um cavalete um pouco mais
curvo – que lhe possibilita executar com mais facilidade uma melodia sem necessariamente tocar
em outra corda – advenha desta influência que tem da música popular urbana. Também, os padrões
musicais daqueles com quem mantém cotidianamente contato e para os quais esporadicamente toca
– padrões estes que têm como referência um tipo de música com melodia acompanhada de forma
clara e explícita – pode ser uma forte influência na postura musical deste rabequeiro. O tipo de som
das cordas duplas da rabeca de cavalo-marinho pode não ser um indicador de boa execução musical
para essas pessoas, mas um sinal de ruído e rusticidade que tendem a renegar20.
reis, vindo o seu estilo de acompanhamento a ser um pouco diferente do estilo de Artur Erminio. O
mesmo usa as duas primeiras cordas sem muitas duplicações, ao passo que mantém o vigor rítmico
necessário à música do cavalo-marinho, tocando com mais freqüência a terceira corda como uma
20
Esta relação entre cordas duplas e simples, enfim, entre aspectos do produto musical dos rabequeiros de cavalo-
marinho e gosto musical nos ambientes em que se mantêm estes folguedos é uma questão complexa que necessita
uma averiguação mais detalhada. Certa vez, uma pessoa que assistia a uma apresentação do cavalo-marinho de Artur
Erminio se referiu ao som da rabeca como sendo um barulho. Pressente-se que este não seja um caso isolado, mas
um sinal de que a mudança nos gostos e referências musicais destas pessoas, quando da sua busca de inserção na
cultura urbana, pode estar se refletindo na rejeição ao estilo performático dos rabequeiros mais antigos.
36
Nas performances de Artur Erminio e João Alexandre há dois tipos de intenção musical para
com a rabeca, quais sejam: o uso do instrumento na produção rítmica, no caso de Artur Erminio, e
para a produção de melodias, no caso de João Alexandre. Estes aspectos também foram analisados
por Setti (1985: 129-130) ao relatar que na música da comunidade caiçara de Ubatuba há várias
funções para as quais se utilizam “diferentes toques” de violino e que é possível abstrair três tipos
básicos de desempenho atribuídos pelos próprios músicos a este instrumento, quais sejam: o de
Geraldo Idalino (59 anos) é o único rabequeiro que ainda toca em bailes de forrós, faz
apresentações em praças públicas e tem seu próprio conjunto formado por violão, pandeiro,
zabumba, triângulo e cantor. Ele diz que há muitas décadas abandonou as atividades musicais nos
Sua música varia entre gêneros para rabeca solista com acompanhamento e outros em que a
rabeca serve como instrumento guia, compartilhando melodias com um cantor. Tem um estilo
melódico claro, com uso comedido de cordas duplas, sendo estas usadas como reforço sonoro em
algumas regiões melódicas ou como forma de realce harmônico para determinadas cadências, e não
possuindo uma função rítmica como possui no estilo dos outros rabequeiros.
Geraldo Idalino critica o estilo, que chama de “barulhento”, dos outros rabequeiros e toca
num violino que ganhou de presente – cujo cavalete, feito artesanalmente, tem a mesma curvatura
de um cavalete usado em violino. Este tipo de cavalete arredondado é útil na obtenção de um som
mais “limpo” e na realização de melodias sem cordas duplas, como esse rabequeiro deixa entender.
costuma se identificar como violinista. Este músico que trafega em setores do mercado fonográfico
onde o estilo e a música tradicional de rabeca não têm espaço, se identifica como violinista por
37
empreendido por ele próprio, como forma de sobrevivência cultural 21. É um conflito que se reflete
na sua performance musical, pois em muitos aspectos o violino de Geraldo Idalino é tocado como
uma rabeca.
Maciel Salustiano e Siba Veloso fazem seus próprios cavaletes e sobre a questão da
O cavalete reto às vezes você tá tocando numa corda e também toca na outra. Aqui
eu toco, mas tem uma diferença, eu toco nessa corda [indicando a primeira] e só toco
na outra se eu quiser; por opção.
E Siba Veloso, que se entende mais como um rabequeiro de cavalo-marinho, justifica o tipo
de tratamento dado ao cavalete de sua rabeca (cavalete feito de osso e não de madeira) pelo fato de
que, em participando de um grupo de música “pop” (as aspas são “gestualizadas” por ele na
tradicionais rabequeiros em boa parte dos aspectos, mas difere no uso das cordas duplas que são
utilizadas como um recurso de densidade sonora em determinados momentos melódicos, mas não
têm a mesma presença que têm na execução de Artur Erminio, por exemplo. Também diferem do
estilo de Geraldo Idalino, quando não usam as cordas duplas apenas na intenção direta de reforço
cadencial harmônico.
O que foi discutido neste capítulo, indica que as opções e procedimentos musicais efetivados
por estes rabequeiros se devem não apenas à força de sua capacidade inventiva pessoal, mas
inventividade pessoal e os condicionantes sociais são fluxos que na sua interação fornecem
elementos para a conformação de identidade dos rabequeiros – a partir do como estes reagem e re-
21
A própria identificação dada ao mesmo pela gravadora Copacabana quando intitulou seu disco como “Um Violino
no Forró” diz sobre o interesse comercial daquela época e local, o Rio de Janeiro. Talvez a esta época rabeca fosse
concebida como instrumento de matuto e desconhecida por quase toda a população com capacidade de consumo nos
centros urbanos. Geraldo Idalino toma para si esta denominação como uma marca de fantasia que dá nome até hoje
ao seu conjunto “O Violino no Forró”.
38
Capítulo 4
Neste capítulo, são discutidas questões referentes às formas de uso e manuseio dos
instrumentos, aos conteúdos musicais como frases, rítmicas, harmonias e à associação da rabeca a
outros instrumentos ou equipamentos tecnológicos, buscando possíveis ligações existentes entre tais
1. O manuseio do instrumento
Nesta pesquisa, verificou-se que os rabequeiros entrevistados mantêm uma postura física
tórax (entre o peito e o ombro), ficando a rabeca inclinada em direção ao chão. A rabeca é
sustentada com a mão esquerda, o que praticamente obriga o rabequeiro a tocar com a mão parada e
condiciona a digitação a uma única região do instrumento – a mais próxima aos dentes da rabeca22.
Esta posição é tida por todos os rabequeiros como a melhor para apoiar o instrumento.
Os rabequeiros demonstram entender que tocar com a mão parada e digitar as cordas com os
dedos médio, indicador e anular não se constitui numa prática restritiva de execução musical. O que
É porque eu peguei o vício de tocar assim. Aqueles músicos que tocam numa corda
só [os violinistas] vêm até aqui [indicando a região mais aguda do instrumento]. Eu
não. Faço tudo com a mão parada.
A isto que Geraldo Idalino denomina como vício adquirido, Maciel Salustiano interpreta
como sendo uma particularidade na execução do instrumento, ao afirmar que “... a rabeca você
22
A primeira posição dos instrumentos de cordas. Aquela cuja referência para a afinação e posição dos dedos é a
própria pestana (ou dentes, no caso da denominação de alguns rabequeiros) do instrumento.
39
apóia ela no peito, pode levantar, colocar de lado, mas que você segura com a mão e com essa mão
O rabequeiro Maciel Salustiano segura o instrumento com a palma da mão esquerda. O braço da
rabeca fica apoiado entre os dedos polegar e indicador e seu corpo apoiado no próprio braço do
músico.
Agora tem uma questão. Tem que ter muita técnica pra você segurar ela com a mão e
tirar as notas, você precisa descobrir isso aí. (...) Na rabeca todas as músicas você
toca, o que você imaginar; depende também do desempenho do rabequeiro.
Os depoimentos destes dois rabequeiros sobre esta questão trazem elementos que servem
para uma análise inicial de como, apesar de objetivamente as práticas musicais serem as mesmas,
40
Por um lado, Maciel Salustiano tenta demonstrar as particularidades da técnica que o
rabequeiro deve possuir e a sua própria distinção enquanto rabequeiro, deixando claro que há uma
diferença em relação à técnica do violino. De outra parte, Geraldo Idalino interpreta esta diferença
A concepção negativa que este rabequeiro tem da rabeca pode ser motivada pelo tipo de
vivência musical que teve, como também por suas tentativas de um engajamento no contexto
musical de mercado nos centros urbanos. Conforme depoimento do próprio Geraldo Idalino (59
anos), na década de 70 ele trabalhava como pedreiro no Rio de Janeiro quando procurou nas lojas
uma rabeca para comprar, mas terminou por comprar um violino visto que “... lá ninguém sabia o
que era uma rebeca”. Durante alguns anos trabalhou como pedreiro, ao mesmo tempo em que
No bairro onde reside, a vizinhança o identifica e reconhece como rabequeiro, mas Geraldo
Idalino, que mantém uma relação próxima com conjuntos do emergente forró de Fortaleza,
constituir num sutil artifício de identificação com os violinistas, embora indique um aparente
distanciamento. Isto porque dilui a especificidade do outro, o violinista, numa categoria mais geral,
a de músicos, na qual ele se inclui sem restrições. Geraldo Idalino anula esta distinção maior e
considera apenas um aspecto menor como elemento distintivo entre ele e um violinista – a forma de
tocar o instrumento.
23
O comumente denominado de “forró de Fortaleza” ou “oxente-music”, tem sua grande manifestação no estado do
Ceará. O seu primeiro grande impulso foi no final da década de 80 quando o empresariado de shows daquele estado
começa a promover por toda a região nordeste um tipo de forró que nas casas de shows de Fortaleza era um grande
atrativo para turistas. Este estilo de forró surge, também, a partir de uma reorientação do trabalho de pequenos
conjuntos de baile que anteriormente realizavam festas de fim de semana, tocando principalmente música
internacional em cidades do interior e na periferia dos grandes centros. A crise na “música de bailes” força
guitarristas, baixistas, tecladistas e bateristas a buscar um engajamento nesta nova onda musical que vem a ocupar o
espaço vazio na produção de musical regional nos centros urbanos. Tem como base uma formação eletrônica com
baixo, guitarra, bateria, órgão e... sanfona, juntamente com cantores e apelativas dançarinas. Na busca de um
atendimento dos gostos musicais da classe média urbana, aspectos de rusticidade e ruralidade do forró são retirados
com vistas a uma apresentação mais “asséptica” e consumível deste gênero musical.
41
A forma de tocar é um aspecto objetivo que é altamente condicionado por outros fatores de
natureza mais subjetiva. Geraldo Idalino empunha o instrumento e o arco como um rabequeiro, mas
Neste caso, o que importa na análise da identidade deste rabequeiro são os fatores objetivos,
É a partir desta problemática que se busca compreender que o instrumento musical é uma
referência objetiva para identificar o instrumentista. Mas o instrumento não é capaz de, apenas por
si ou diretamente, indicar a identidade; isto porque um indivíduo vem a ser rabequeiro não somente
sua ferramenta de trabalho ou lazer e, no caso da rabeca, que tanto são diversas as formas e
tamanhos deste instrumento quanto o são as práticas dos instrumentistas. Desconsidera-se que no
Rohrer que toca rabeca acompanhando músicos como Zeca Baleiros, exemplificam bem esta
discussão. O primeiro não se identifica como rabequeiro, mas como violinista, e o segundo se
entende como um músico que toca rabeca entre outros instrumentos, e não especificamente como
um rabequeiro. Ambos não são reconhecidos pelos colegas de trabalho ou pelo público como
rabequeiros, embora se apresentem quase sempre tocando com rabecas em seus grupos.
42
De outra parte, a origem geográfica ou social dos rabequeiros também é outro aspecto
objetivo que pode ser tomado como elemento de atribuição de identidade. Enfim, um determinado
tipo de som, de instrumento musical, de prática musical, de local de nascimento ou moradia etc, são
elementos importantes na configuração de um quadro analítico que pode fornecer um esboço básico
O problema advém quando, pela sua própria carga objetiva, estes elementos são entendidos
como referenciais “naturais” na discussão acerca de identidade cultural. Porém, eles não consistem
num apriori, pois suas qualidades “naturais” são culturalmente estabelecidas no diálogo social.
Embora pareçam constituir parâmetros mais científicos, pela sua forte dose de objetividade, que
outros de caráter mais subjetivo, estes elementos não são capazes de per si fornecerem um perfil
Desta forma, não basta apenas a observação de dados objetivos (um tipo de som, de
si e de outrem são fatores que vêm imprimir um caráter pouco objetivo e bastante dinâmico ao que
O caso de Geraldo Idalino é bem significativo nesta discussão. De um lado, este rabequeiro
se reconhece como um violinista, mas não é assim reconhecido pelos moradores de seu bairro, nem
43
por uma significativa parcela de seu público 24. Toca em um violino, mas o manuseia, posiciona e
executa da mesma maneira que outros rabequeiros com a rabeca. O caráter relacional da identidade
cultural se demonstra mais claro quando se observa a posição deste rabequeiro na sua tentava de
rabequeiro, um virtuoso da rabeca –como em recente show na cidade de João Pessoa (conforme
caso de Maciel Salustiano (26 anos). Este rabequeiro já teve uma iniciação ao violino e atualmente
encontros mantidos ele demonstrou que sua experimentação com novas sonoridades e formas de
tocar a rabeca esteja motivada por uma busca de aproximação da sonoridade ou postura de um
violinista. Em diversas entrevistas dadas a outros meios de informação, Maciel Salustiano procura
sempre deixar claro que é um rabequeiro e que suas experimentações com a rabeca consistem em
tentativas de buscar continuidade para a música da rabeca, ligando a nova música urbana à
tradicional.
24
Um bairro de periferia que nasce da urbanização de uma favela. Os moradores são, em sua maioria, pessoa que por
motivos diversos deixaram o interior do estado na busca de melhores condições de vida em cidades de maior porte.
25
Maciel Salustiano é membro do grupo Chão e Chinelo, onde toca rabeca. Com este grupo gravou um CD intitulado
Loa do Boi Meia Noite (1998). Atualmente realiza um trabalho paralelo com o DJ Dolores, onde rabeca, guitarra,
baixo elétrico, percussão, groove-box e sampler formam um conjunto para a execução de rap e música nordestina.
44
2. Estilo musical e uso do arco entre os rabequeiros
O arco da rabeca é segurado pela vareta e crina ou somente pela vareta, o que influencia na
produção sonora do rabequeiro26. Sobre esta forma peculiar de segurar o arco, Artur Erminio fala
que:
movimento na mão direita e entre o braço e o antebraço, vindo o manuseio do arco a ser realizado
O tamanho dos arcos também varia muitos entre os artesãos. Porém, a variação no tamanho
dos arcos é compensada no seu manuseio. Em arcos de maior proporção, os rabequeiros costumam
segurá-lo próximo ao meio e utilizar apenas a metade do arco, o que termina por aproximar o
tamanho de cada arco – sejam eles grandes ou pequenos em seus tamanhos originais. Os arcos das
rabecas de Siba Veloso e Maciel Salustiano são pequenos, e as rabecas também e os arcos usados
por Artur Erminio e João Alexandre, cujas rabecas são de maior proporção, são maiores e usados
Um caso interessante é o de Geraldo Idalino que, mesmo usando um arco de violino, segura-
o quase na metade da vareta, utilizando apenas uma pequena parte dele e transformando-o, assim,
em arco de rabequeiro.
aspecto musical é condizente com o tamanho e o tipo de uso do arco pelos rabequeiros27 e com a
26
Desta maneira eram segurados os arcos de instrumentos de cordas friccionadas na Europa dos séculos XV, XVI e
XVII (cf. Remnant, 2001: 771).
27
Diz-se da produção de uma música com um caráter rítmico e de dança muito evidente. Aqui se considera que toda a
contribuição das culturas africanas na estruturação da música nordestina é importante para a compreensão da
vitalidade rítmica que há nesta música, principalmente no que se refere aos baiões, ou baianos, que são, de certa
forma, performances ruralizadas do lundu. Mas quando são comparados alguns fragmentos desta música com outros
45
manutenção de um tamanho de arco em dimensões próximas às que possuíam os arcos na Idade
Média. Os arcos da família do violino é que aumentaram de tamanho com as próprias exigências da
música clássica e romântica européia com frases que requerem uma maior de continuidade entre os
por evidência, da própria melodia enquanto concebida como entidade combinatória entre tempo e
altura sonora. À sua maneira, este rabequeiro procura explicar esta função do arco ao dizer que:
O braço [direito] é quem treina pra pegar a música. Se pegar o tom e não fazer no
braço [movimentando o arco sobre as cordas], não pega a música; tem que fazer o
manejo do braço.
Esta implícita noção do papel de cada braço ou mão está associada a uma possibilidade de
categorização das substâncias rítmica e melódica (os tons) da música, nas explicações dos
provenientes da península ibérica, observa-se que a música de rabeca aqui no Nordeste do Brasil mantém na sua
essência muitos elementos de tradição européia.
46
rabequeiros tradicionais. Mas da mesma forma que no pensamento musical dos rabequeiros
tradicionais não se observa uma separação conceitual ou prática entre melodia e ritmo, também não
há da parte deles um interesse por uma atividade técnica dirigida a cada um dos braços – como é
Entre os rabequeiros existe uma compreensão do papel de cada braço na performance, mas,
Este desinteresse é normal para eles, visto que quando começaram a aprender tocar a rabeca não
Quando questionado sobre o processo de aprendizagem de uma música, João Alexandre não
a melodia e depois o ritmo, por exemplo), nem de atividades separadas para ambos os braços.
Quando solicitado a executar apenas a estrutura rítmica de uma música – com apenas o manejo do
arco – realiza movimentos desconexos dizendo que “... é essa coisa feia assim”.
atividades exclusivas com o braço esquerdo ou direito, é um método habitual entre os rabequeiros
tradicionais. A música também é “construída” sem uma necessidade de separação entre atividades
conclui é que a idéia de atividades “técnicas” é algo não somente inexistente para um rabequeiro
“performance musical” são adotadas no lugar do termo “atividades técnicas” para se referir a este
O ato de manusear com “força” o arco, como exposto anteriormente por Artur Erminio, tem
47
A música do cavalo-marinho e do boi-de-reis, afora algumas toadas e os aboios que têm um
coreográfico do grupo. No exemplo a seguir, tem-se uma transcrição de algumas células rítmicas
mais presentes na música destes folguedos em que é possível observar o acentuado caráter de dança.
O conjunto instrumental que toca nestes folguedos – triângulo, pandeiro, ganzá e até caixa
rítmica e bombo –, aliado a um modo de canto sempre forte do mestre, do Mateus e dançarinos,
exige do rabequeiro um volume sonoro razoável, para seu instrumento não ficar completamente
obscurecido na apresentação, o que implica no uso de uma maior pressão no arco ao tocar28.
Estas condições explicam, em parte, a utilização de pouco arco na execução musical e o uso,
na maioria dos casos, de uma arcada por sílaba da música e toque de arco com poucas ligaduras
entre os sons. O movimento incessante do arco nos baiões deriva da própria necessidade de
manutenção do vigor rítmico da música, vigor este que mais dificilmente seria alcançado com o uso
Lima (1981: 134) esboça um argumento, cuja essência diz respeito a esta problemática.
De acordo com este raciocínio, haveria uma técnica única e absoluta para instrumentos de
cordas friccionadas. Técnica “correta” que talvez, para o autor, seria aquela desenvolvida em uma
28
Isto pode ser observado na audição de “Não Chores Dama do Rei” (faixa 1 do CD).
48
esfera cultural mais avançada e que seria apropriada de forma adequada ou inadequada, por outros
estilo performático se faz refletir na atividade musical mais ampla de um rabequeiro que, como João
Alexandre, toca em outros eventos. Ao tocar um forró, por exemplo, este rabequeiro demonstra uma
tendência à realização de muitas arcadas, poucas ligaduras e uma forte intensidade sonora em toda a
extensão da música.
Este uso mais controlado do tamanho do arco não proporciona apenas um timbre áspero à
rabeca. É necessário observar que um tipo de sonoridade mais suave e doce também é produzido
por estes rabequeiros por meio de umas poucas ligaduras entre os sons, principalmente na execução
de toadas, ou no uso de pouca pressão no deslizamento do arco, o que torna o som menos áspero
Os dois exemplos a seguir consistem em transcrições que buscam demonstrar como são os
a transcrição de um trecho de uma toada tocada por João Alexandre, onde se busca traduzir a
acompanhamento de toadas. Neste exemplo é possível observar que quando cantam os mestres
tendem a realizar mais ligaduras entre os mesmos sons tocados pelos rabequeiros.
quatro semitons. São ligaduras obtidas com os dedos da mão esquerda, com uma mesma arcada ou
em diferentes arcadas. No exemplo 3, é transcrita uma passagem em que João Alexandre utiliza este
29
Quando os caracteres mais profundos de um contexto musical são desconsiderados, as análises tendem a buscar
apoio nas comparações. O problema é que nestas comparações, a rabeca e os rabequeiros têm sido, quase sempre,
concebidos como portadores de uma “cultura degradada” em relação à cultura do violino.
49
Procedimentos como este, consistem em um estilo historicamente construído a partir de
arcadas. O fato é que rabequeiros como Siba Veloso e Maciel Salustiano que tiveram acesso ao
conhecimento das técnicas de arco ensinadas em conservatório realizam arcadas semelhantes às dos
Quando realizam ligaduras entre os sons em gêneros como toadas, cujo caráter evoca uma
maior continuidade entre os sons e uma necessidade de manter alguns deles mais ligados, estes
realizam não serve como elemento de contraste entre frases, mas como ligação de ornamentos a
notas “reais” ou como elemento de unificação interna dos pequenos núcleos melódicos que
50
compõem uma toada. Os fragmentos de toadas executadas por Maciel Salustiano e Siba Veloso
(faixas 5 e 8 do CD) e transcritas nos anexos deste trabalho, demonstram esta peculiaridade.
Mesmo que seu campo de atuação musical esteja mais centrado em um ambiente diferente
daquele dos rabequeiros da zona da mata de Pernambuco, Siba Veloso considera que a maneira de
tocar a rabeca dos rabequeiros mais antigos é uma das particularidades definidoras da condição de
Eu considero isto como uma base estética de uma coisa que eu gosto e defendo. Eu
me propus a explorar a rabeca dentro da estética, inclusive de técnica dela. Eu me
proponho a tocar ela dentro daquele molde ali (...). Não tenho nenhum tesão de tocar
muitas escalas na rabeca, tocar em mais de uma posição.
menor “aspereza” com que os novos rabequeiros produzem os sons, mesmo com muitas arcadas. Os
materiais como cordas de violão ou guitarra e crinas mais espalhadas no arco contribuem para esta
diferença no timbre, mas as próprias exigências sonoro-musicais dos contextos musicais onde eles
atuam devem ser considerados nesta busca de um tipo de timbre diferente na rabeca.
prática dos novos rabequeiros. São os casos da pronúncia sonora sem a separação de um som do
outro e de quando evitam o encurtamento do valor de duração de cada som entre as arcadas. A
separação ou diminuição na duração dos sons somente é realizada em alguns momentos da melodia,
seja como ênfase em uma cadência ou para fazer ressaltar a repetição de cordas duplicadas no meio
ou finais de frase.
51
Na sua performance, Geraldo Idalino costuma realizar uma constante diminuição na duração
de cada som, separando-os entre si por meio de arcadas, o que não é comum entre rabequeiros de
cavalo-marinho nem nos procedimentos performáticos dos rabequeiros mais jovens. A sua ligação
com o choro, o frevo e a marcha de carnaval, gêneros urbanos cuja estrutura rítmica está baseada,
separada de cada som, é um fator condicionador dos procedimentos de execução deste rabequeiro.
entre frases musicais ou de esboçar texturas distintas (nos moldes da música popular urbana).
No exemplo anterior (exemplo 5), é possível observar os tipos contraste buscados por
Geraldo Idalino na utilização de sons encurtados e ligados por arcadas em cada frase musical.
52
Nas performances de Artur Erminio e João Alexandre, a variação de intensidade sonoro-
musical está diretamente condicionada pelo desenrolar de cada parte musical do cavalo-marinho e
do boi-de-reis. É uma variação de dinâmica sonora que ocorre entre um meio-forte, quando
acompanham o mestre cantando e um forte, quando acompanham todo o grupo ou executam baiões.
Os acentos dinâmicos são produzidos principalmente na região grave com o toque em cordas duplas
que, além de forjar os acentos, funciona como marcação dos ciclos rítmicos nos baiões. No exemplo
abaixo (exemplo 6), tem-se um fragmento extraído de “Não Chores Dama do Rei”, onde é possível
observar que o uso de cordas duplas funciona em alguns locais como acento dinâmico e de
53
Tocar com pouca variação de intensidade sonora e com alguns acentos dinâmicos realizados
a partir do uso de cordas duplas na região grave é, também, algo presente na performance de Artur
Entre jovens rabequeiros como Siba Veloso e Maciel Salustiano é possível observar que,
quando tocam forró, este tipo de procedimento também está presente (v. faixa 11 do CD). Mas,
quando executam algumas toadas de caráter mais recitativo, o tipo de acento produzido com o uso
de uma corda dupla mais grave reforça o aspecto improvisativo da performance ao gerar densidades
sonoras que funcionam como deslocamento do acento rítmico normal. É o caso do fragmento
exposto abaixo, onde as cordas duplas formadas pelas notas Si e Sol sustenido reforçam e
Estas se devem à busca de contraste entre as frases musicais, e os acentos dinâmicos encontrados na
sua música se localizam nos finais de frases, com o uso de cordas duplas, ou na segunda colcheia ou
semicolcheia de um grupo – neste caso quando o compositor busca ressaltar o contratempo rítmico
54
Tomando estes procedimentos musicais como referência para a identificação destes
músicos, tem-se que a maneira como apóiam o instrumento, manejam o arco e usam uma
intensidade sonoro-musical preferencialmente linear, são aspectos que se mantêm sem muitas
As diferenças se apresentam nas concepções e nos contextos que envolvem estas práticas.
Em Geraldo Idalino, por exemplo, as poucas variações na intensidade sonora estão diretamente
De outra parte, apesar de suas atividades musicais no circuito de shows em centros urbanos
exigirem uma certa diferenciação estilística, os novos rabequeiros mantêm uma continuidade
estilística em relação aos rabequeiros de cavalo-marinho no que diz respeito ao uso de acentos
dinâmicos, ligaduras e não redução, por “spicatto”, da duração de cada som no decorrer de uma
música, o que faz com que a sonoridade resultante, tanto dos rabequeiros de cavalo-marinho quanto
dos novos, tenha uma textura bem próxima. Aspecto este que é diferente na música e na sonoridade
de Geraldo Idalino.
relação à tessitura e à quantidade de cordas que cada um utiliza na execução musical. Estes fatores,
tal como outros anteriormente referidos, não resultam apenas da opção pessoal de cada músico,
mas, também, refletem suas necessidades, e as dos contextos com os quais cada um interage, de
produção musical.
aguda de suas vozes30. Como o rabequeiro toca as mesmas melodias, se ele as executar na mesma
30
O canto na região mais aguda da voz, explorando a tessitura nos seus limites, é algo comum em diversas
manifestações das músicas de tradição oral no Nordeste. Fato este tão presente que, de um estilo de canto passa a se
constituir num elemento de conteúdo musical destas músicas; um aspecto timbrístico delas que é, em parte,
transferido para as manifestações da música instrumental cultivada nesta mesma região.
55
região de altura dos cantores, o som da rabeca ficará despercebido e a rabeca, que serve apoio
melódico ao cantor, perderá muito da sua eficácia no conjunto. Uma solução de instrumentação e
textura encontrada nestes folguedos é a execução da melodia em uma oitava acima, pelo rabequeiro.
Assim, a rabeca é mais percebida como instrumento do conjunto e a textura musical adquire maior
densidade e expansão.
Erminio usa, principalmente, a primeira e a segunda corda. A terceira é usada quase sempre solta
A este respeito, João Alexandre observa que “... o mais fácil do boi-de-reis é o baião. Só
toca numa corda só [a mais aguda]”. E sobre outras músicas que toca além daquelas do boi-de-reis
diz que “... tem música que toca em duas, outras em três, e outras que tem que afinar no baixo [a
quarta corda]”.
Uma audição das músicas tocadas por Artur Erminio e João Alexandre e uma análise das
corda do instrumento. Estas músicas poderiam ser tonalizadas em qualquer corda ou numa região
mais grave do instrumento, mas são tocadas na região aguda devido a uma solução para a textura
Geraldo Idalino é rabequeiro e compositor de músicas que são, em sua maioria, dirigidas
direcionado à dança exige o uso de uma tessitura mais ampla no instrumento. A música deste
rabequeiro contém melodias que são, em muito, determinadas pela movimentação rítmica, e se
Deste modo, sua música ocupa sempre o espaço de três cordas e a quarta serve como bordão
56
Siba Veloso e Maciel Salustiano não cantam na região mais aguda de suas vozes, mas numa
região mediana, de timbre menos penetrante, e se acompanham da rabeca em boa parte das músicas
que cantam. Estes rabequeiros usam mais a região média do instrumento nas músicas que
compõem, e vêem nisto uma diferença dos seus estilos em relação aos outros rabequeiros.
Considerando que para estes rabequeiros a música do cavalo-marinho e boi de reis foi,
também, uma fonte importante de aprendizagem musical e que, na música destes folguedos, a
utilização das cordas graves da rabeca não tem apenas a função de acompanhamento, mas de apoio
rítmico, de expansão e densidade sonora, pode-se afirmar que entre os rabequeiros pesquisados há
uma manutenção deste aspecto do estilo musical encontrado na música de rabeca do cavalo-
marinho31. De outra parte, em Geraldo Idalino é bastante clara a busca de uma ampliação no uso da
tessitura do instrumento e o uso das cordas graves com uma nítida função harmônico-tonal.
marinho é outro aspecto que assemelha estes rabequeiros. Este tipo de uso propicia à música mais
densidade sonora, sendo algo atualmente mantido entre os rabequeiros e que parece consistir na
uma importância fundamental na observação de identidade musical entre estes rabequeiros32. Este
termo é aqui adotado a partir da observação de que os próprios rabequeiros se referem ao ponto
inicial de uma melodia como sendo o “local”, o “espaço” do tom daquela música. É assim uma
definição advinda, embora com outras palavras, dos próprios rabequeiros e guarda,
31
Na música de rabeca no cavalo-marinho há um tratamento diferente da região grave de um instrumento daquele que
é realizado na música popular urbana. Se na música popular urbana a região grave de um instrumento é utilizada,
principalmente, para o acompanhamento harmônico na edificação de acordes, em músicas como a do cavalo-
marinho a utilização de regiões graves de instrumentos como a rabeca é feita não apenas por questões harmônicas,
mas de densidade sonoro-expressiva.
32
Tonalização, como o termo é proposto neste texto, consiste na qualidade de se executar ou compor uma música a
partir de uma determinada corda ou região da rabeca.
33
É pouco provável que a designação de “tom”, quando os rabequeiros falam de um ponto inicial de uma melodia,
remeta ao significado de tonalidade, como é concebida na teoria musical ocidental. Entre músicos com formação
57
fragmento de transcrições de músicas tocadas por Artur Erminio – demonstra o espaço de
tonalização permanece na sua performance musical. Tal como que há uma preferência deste
rabequeiro pelo uso da segunda corda da rabeca, mesmo quando tocando música do cavalo-
marinho.
conservatorial ou com alguma experiência em conjuntos instrumentais com instrumentos harmônicos, como Siba
Veloso, Maciel Salustiano e, mais confusamente, Geraldo Idalino é que este termo, provavelmente, indique o
conceito de tonalidade quando eles se referem à estruturação harmônica de uma música.
58
No exemplo abaixo, é possível observar que este procedimento de tonalização se verifica
não apenas na performance musical, mas nas próprias composições destes rabequeiros – como é o
Suas composições têm por base uma corda, mas se desenvolvem por todas as cordas através
59
aspecto da tonalização que é explorado, mas o de tonalidade e de uma construção de frases em arcos
cujas curvaturas são semelhantes às de outros gêneros da música popular como o choro e o frevo.
Nos casos de Artur Erminio, João Alexandre, Siba Veloso e Maciel Salustiano, é possível
observar que, independente da extensão entre a nota mais aguda e a mais grave, a densidade maior
de execução ocorre no espaço de um intervalo de sexta, o que indica uma coerência entre o sentido
de tonalização e de região utilizada na execução musical. Diferentemente, com Geraldo Idalino não
ocorre uma localização da música numa determinada região do instrumento, no intervalo entre duas
cordas, mas em toda região da primeira posição do instrumento, como se pode observar no exemplo
a seguir.
tocam em apenas uma posição do instrumento, tonalizar uma melodia implica em optar pela sua
colocação em uma determinada região, o intervalo entre duas cordas, e, assim, lhe imprimir um
determinado timbre. A opção por uma região e timbre de uma melodia é tomada, quase sempre,
devido a aspectos que envolvem desde a instrumentação até os “gostos” musicais de intérpretes e
Nos casos das músicas compostas ou interpretadas por Artur Erminio, Siba Veloso, Maciel
Salustiano e João Alexandre, a região de tonalização pode sofrer algumas alterações, sem que eles
necessitem realizar uma mudança de posição na mão esquerda34. Na música de Geraldo Idalino, a
34
“Posição” é o termo usado no ensino conservatorial para designar os espaços geográficos que podem ser utilizados
com a mão esquerda na execução musical em instrumentos de cordas friccionadas. As “posições” são determinadas
60
mudança de região de uma melodia implicaria, em muitos casos, na mudança de posição na mão
esquerda, aspecto este que não é comum entre rabequeiros. Na sua opção por um estilo
delimita margens entre o núcleo de saber e fazer musicais de rabequeiros e outros núcleos musicais.
O uso de cordas soltas também é um procedimento comum entre rabequeiros. Isto advém do
fato de tocarem em uma única posição no braço do instrumento e, assim, a passagem por estas
cordas torna-se um imperativo na realização de melodias. É a partir de uma corda solta que se
tonaliza uma melodia e esta corda passa a ser uma referência básica em todo o desenrolar de uma
música, como mediadora da afinação geral dos sons de uma melodia e como referência de região a
partir do intervalo de quinta de duas cordas em torno das quais a música será tocada. Estas cordas
também têm importância na produção de sons simultâneos (cordas duplas) que, na maioria dos
casos, são realizados com uma corda solta, vindo esta a adquirir a função de bordão sonoro ou
harmônico.
Mas se isto parece ser um condicionante técnico para os rabequeiros, o que se observou é
que isto se transformou num aspecto do estilo, do gosto musical de muitos deles, principalmente os
de cavalo-marinho. Diz-se isto, devido ao fato de que o toque nas cordas soltas é realizado em um
número maior de vezes do que seria necessário por um condicionante técnico – que seria na
proporção de um som em corda solta para cada cinco sons obtidos por dedilhação, conforme
exemplo abaixo – e em finais ou momentos importantes de uma melodia, onde se busca uma
a partir da pestana localizada na parte superior do braço do instrumento. Entre rabequeiros não há referências
conceituais a este termo visto que estes músicos usam apenas uma posição no instrumento. Isto ocorre devido ao
fato de que, por não usarem uma “queixeira” o “spaleira”, têm que segurar o instrumento com a própria mão
esquerda, o que dificulta em muito a sua movimentação por todo o braço do instrumento.
61
Pelo fato de soarem por mais tempo que as cordas dedilhadas e em zonas estratégicas do
fluxo melódico, as cordas soltas, isoladas ou como um bordão sonoro, terminam por consistir num
dos aspectos sonoros mais presentes na música de rabeca. Produzem uma freqüência sonora que se
mantém por muito mais tempo que o valor “real” que se pode atribuir a um determinado som no
assim envolvidas por sonoridades circundantes, além do som que está sendo executado por
dedilhação. Este tipo de sonoridade peculiar pode ser observado na audição da música “Na Chegada
a viela de roda etc, e a instrumentos tão fortemente identificadores da cultura nordestina como a
viola sertaneja de dez cordas. É, também, um elemento de conteúdo musical que se transmitiu para
Como recurso de tonalização, as cordas soltas estão muito mais presentes nas performances
de rabequeiros antigos como Artur Erminio, João Alexandre (exemplos 15 e 16). Nas suas
execuções, estas cordas são ressaltadas, seja pelo maior valor de duração dos sons emitidos, seja
pelo número maior de vezes que retornam na música a partir do início ou término de trechos.
62
Na execução e na composição musical de Siba Veloso e Maciel Salustiano este aspecto
também é verificado (exemplos 17 e 18). Estas cordas soltas, pelo maior tempo que permanecem
soando, passam a consistir em eixos gravitacionais em torno dos quais todos os outros sons de uma
melodia se movimentam.
Na música de Geraldo Idalino, as cordas soltas aparecem, mas têm uma presença menor e de
modo diferente do que acontece na execução dos outros rabequeiros, anteriormente citados como
63
4. Melodia e harmonia na música dos rabequeiros
Nesta pesquisa, foi possível observar que o estilo de toque do arco e o fato de rabequeiros
tocarem com a mão esquerda sempre numa posição fixa são fatores que concorrem para as
harmonias em cordas duplas, onde os intervalos harmônicos resultam da combinação entre um som
produzido por digitação e outro produzido em uma corda solta. Poucos são aqueles produzidos por
quinta e oitava, que são obtidos quase sempre por movimento oblíquo entre uma melodia que é
tocada (digitada) em uma corda em conjunto com outro som contínuo, simultaneamente tocado em
A realização de harmonias por meio de sons duplicados inicialmente parece consistir numa
imposição técnica ao rabequeiro, devida ao modo de manuseio do arco e o uso de apenas uma
posição do instrumento. Mas parece que isto historicamente tendeu a se transformar numa espécie
de gosto musical destes músicos. Embora a afinação usada pelos rabequeiros pesquisados seja de
deste intervalo harmônico –, este intervalo não parece ser o mais preferido pelos rabequeiros na
uma escala heptatônica entre duas cordas afinadas faz o intervalo harmônico de quinta aparecer
duas vezes em um movimento oblíquo, enquanto os outros aparecem apenas uma vez. Mas, no fazer
64
Constatou-se que o intervalo harmônico de terça é realizado com mais freqüência entre os
rabequeiros, podendo mesmo ser considerado como um elemento estilístico importante nesta
música. A grande presença deste intervalo é observada no decorrer de muitas execuções musicais e
sua colocação em pontos importantes de uma música – tal como em situações onde uma dificuldade
técnica para sua realização é maior, quando é obtido por digitação em duas cordas – são indicadores
de uma sólida opção musical dos rabequeiros por esta sonoridade harmônica.
Nos exemplos abaixo, que consistem em fragmentos de músicas transcritas de três dos
rabequeiros, é possível observar que os intervalos harmônicos de terça são conseguidos por
digitação dupla em boa parte dos casos – uma operação técnica mais complexa para se realizar; fato
este que não ocorre na realização dos intervalos harmônicos de quinta ou oitava. No exemplo 21, há
o uso de uma harmonia de terça nos inícios de frase e um tipo peculiar de resolução sonora de uma
terça harmônica em uma oitava, em alguns finais. Resolução, principalmente, sonora e não apenas
harmônica, porque o efeito pretendido pelo rabequeiro neste momento da música, parece ser muito
mais de expansão sonora e da textura, quando a melodia segue para a região grave com o uso dos
exemplo. Neste caso, o caminho descendente da melodia (Dó, Lá, Fá#) e do arco em direção à
entre o Sol (na corda solta como baixo) e o Fá#. Mas o rabequeiro opta por retirar a dissonância,
realizando um movimento contrário ascendente no arco e obtendo uma terça com Fá# e Lá (corda
solta no agudo). Como este é um tipo de procedimento bastante recorrente em toda esta música, ele
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No exemplo 22, o movimento harmônico provocado pelo direcionamento da melodia (Mi,
Sol, Lá, Si) implicaria na realização de um intervalo de segunda entre o Lá e o Si (corda solta). O
rabequeiro evita esta dissonância e estabelece uma resolução harmônica do intervalo de terça em
da melodia (que é ascendente) para obter um intervalo harmônico de terça, digitando a terceira
corda do instrumento (Ré, Fá#). Neste tipo de movimento, visto que o arpejo é ascendente, o
intervalo mais cômodo seria de uma quarta (Fá, Si corda solta), mas a opção pela terça é tomada
pelo instrumentista.
No fragmento abaixo (exemplo 23), as terças obtidas por digitação dupla (Lá, Dó#) têm
importância pelo tipo de movimento de arco e dedilhado realizado – evitando intervalos de segunda
dissonante – e pelo fato de não apenas servirem como base para resoluções de expansão sonora em
66
Em todos estes exemplos, é possível observar que, mesmo contrariando determinados
encontrados nas músicas resultam do movimento do arco em cordas soltas (com uma intenção mais
através de glissandos, quando a melodia se encontra numa região mais grave e as quintas são
produzidas por um toque, quase involuntário, do dedo na corda solta mais aguda situada acima
Siba Veloso e em “Juazeiro” tocada por João Alexandre, tem implicações no caráter melódico
destas músicas e na sua harmonização. Em boa parte das músicas do cavalo-marinho e do boi-de-
reis uma estrutura escalar de sete tons está implícita, mas não claramente exposta na melodia. Na
música “É Fulô” (transcrição 3), o trajeto escalar é de uma sexta menor (Si, Dó#, Ré#, Mi, Fá#,
Sol#), mas apenas a sétima está ausente para a determinação de uma heptatônica começada em Si.
são encontrados: aquelas das toadas, com curvatura ascendente alcançada por saltos intervalares
ou de intercalação de frases diferentes, mas com pouco contraste entre si. Estruturas do tipo AA’,
BB, CC’, CC’, ou AA’, AA’, BB’ observáveis nas transcrições 1 e 3 são muito comuns em boa
67
A música de Geraldo Idalino é melodicamente estruturada em arpejos de terças ascendentes,
conjuntos com terças em movimento ascendente ou descendente. Este tipo de recurso para
construção melódica, além de ser bastante usual em muitos gêneros da música instrumental popular
urbana é algo também adequado à rabeca afinada em quintas e ao uso de uma posição fixa na mão
esquerda.
Uma leitura da transcrição 2 (em anexo) permite observar que os segmentos de frase têm
quatro compassos, as frases têm oito compassos e os períodos têm dezesseis compassos. Nos três
períodos (A – cps. 1/17, B – cps. 17/23 e C – cps. 33/48) são usados recursos de contrastes, tais
graus estão dispostas em movimentos cadenciais comuns aos ocorrentes na música popular urbana.
João Alexandre o que ocorre com mais evidência é a busca de uma tonalização em uma região onde
de efeitos sonoros na textura. Esta é uma diferença fundamental entre Geraldo Idalino e os outros
No exemplo abaixo (um fragmento de “Juazeiro”, transcrição 7), pode-se observar esta
diferença entre João Alexandre e Geraldo Idalino. Originalmente, a música está composta em Dó
maior com o uso de uma sétima abaixada na escala (Si bemol), o modo mixolídio, e está tonalizada
na terceira corda (a Dó) pelo rabequeiro. O baixo em Fá (quarta corda) inicia e finaliza a frase,
execução desta música, João Alexandre está usando uma afinação incomum (F, C, G, C) com um
intervalo de quarta e não de quinta entre a primeira e a segunda corda, o que acentua ainda mais o
caráter modal da interpretação, ao fixar o eixo gravitacional da textura entre um dó grave e outro
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agudo (compassos 2, 3, 4, 6, 7, 8). De outra parte, a não simultaneidade da fundamental, da terça e
quinta do acorde de dó maior, o acorde de tônica, descaracteriza ainda mais o sentido tonal desta
música.
Uma comparação das transcrições 2, 4 e 7 em anexo desta dissertação, músicas tocadas por
Geraldo Idalino, Siba Veloso e João Alexandre, fornece elementos que, nas questões de harmonia,
O baião tocado por Geraldo Idalino é plenamente tonal e estruturalmente influenciado pela
música urbana nas secções. O baião “Juazeiro” tocado por João Alexandre (sendo coincidentemente
esta a música que os três rabequeiros mais antigos citam como a primeira que tocaram na rabeca)
numa série de pequenas variações sobre a melodia original, propondo um discurso que não solicita
Geraldo Idalino. Na sua performance do baião de Luiz Gonzaga, João Alexandre propõe uma
continuidade “infinita” – aspecto este comum em boa parte da música de rabeca de folguedos como
variações em torno de um único ponto, é mais usada que um discurso pontuado por tensões e
alguns elementos da tradição musical nordestina, quando da opção pela escala menor com o sétimo
69
grau abaixado. O constante uso de uma cadência plagal (cps. 4/5 e 8/9), em associação com
movimentos de marchas harmônicas descendentes (V, IV a I graus nos compassos 21/25), são
Uma música de caráter instrumental solista foi observada, nesta pesquisa, na performance
dos jovens rabequeiros. Trata-se dos fragmentos de toadas de cavalo-marinho que parecem indicar a
manutenção de alguns aspectos de uma antiga tradição da música de rabeca, que não se mantêm
claramente na performance dos rabequeiros mais antigos engajados em folguedos tradicionais como
o cavalo-marinho.
Estes fragmentos de toadas de cavalo-marinho tocados por Maciel Salustiano e Siba Veloso
(transcrições 5 e 8), possuem um caráter recitativo e sua estruturação melódica é conseguida a partir
de curtos motivos que, em um estilo com muitos aspectos improvisativos, são metamorfoseados no
decorrer de cada seção musical. Um tipo de performance musical que claramente combina
simbiose demonstrativa de que ambos os tipos de procedimento performático podem possuir uma
natureza bastante próxima em alguns contextos de performance musical. Uma audição destas
músicas, no contexto da performance, torna difícil a tarefa de separação daquilo que se possa
entender como sendo parte de conteúdos musicais já fornecidos pela tradição aos jovens
rabequeiros, daqueles conteúdos que cada um adicionou ao produto ou está adicionando, por
observar que as seções (cps. 21/39) são estabelecidas por contrastes em diversos níveis. Isto pode
ser um indicativo de que nesta performance há uma quantidade maior de conteúdos culturalmente
no momento da execução.
70
Nesta música, a primeira seção é instaurada a partir de um motivo melódico de curvatura
ascendente (v. exemplo abaixo) que perfaz um intervalo de sexta menor (Dó# - Lá). A frase básica
que se constrói a partir deste motivo possui um caráter de canto bem acentuado. Na segunda seção
(cp. 21), de caráter mais rítmico, o motivo é construído a partir de uma combinação entre a
realização de cordas duplas e a disposição de alguns intervalos que tomam como referência um eixo
sonoro (o Lá). Este som, não coincidentemente, é o mesmo em cuja direção se movimentam as
alturas sonoras e a tensão própria ao motivo da primeira seção. A última parte desta toada (cp. 39)
consiste numa combinação, numa espécie de coda, do motivo da primeira seção com o caráter mais
improvisativo de execução.
No fragmento da toada executada por Siba Veloso (transcrição 8), as seções se estabelecem
quase que exclusivamente devido ao tipo de improvisação empreendido pelo rabequeiro sobre um
71
Em ambas as seções (compassos 1 a 19 e 19 a 30), após o anúncio do elemento de
duplas intercaladas no decurso melódico (o que também é encontrado na toada executada por
Maciel Salustiano), e pela manutenção da duração de determinados sons agudos da melodia numa
espécie de fermata.
improvisativos e de ciclos rítmicos, tal como ocorre nos baiões de cavalo-marinho. O aspecto
diferencial do uso das cordas duplas, nesta execução de toada por Siba Veloso, é que elas aparecem
claramente como norteadoras da percepção auditiva, forjando eixos de gravidade sonora que
conformam o percurso melódico que se desenvolve livre de rigores métricos. De fato, os filtros
perceptivos que estamos habituados a lidar a partir da nossa relação auditiva com a música popular
urbana são pouco eficazes para proporcionar esquemas de interpretação a este tipo de execução de
uma toada.
rabeca no Nordeste. A estrutura deste forró também é obtida a partir de um motivo transformado
dentro de uma performance com aspectos de improvisação no ato da execução, mesmo que a
72
Um outro aspecto peculiar encontrado nas execuções de toadas e na produção composicional
execuções dos rabequeiros mais antigos, quando tocam no cavalo-marinho, consiste basicamente
em trinados. Na execução desta toada Siba Veloso consegue, pela quantidade e variedade de
elementos, que a ornamentação venha a se configurar na própria linha melódica, e não apenas em
Pela própria peculiaridade que esta execução coloca ante a definição do que seja linha
melódica “real” ou artifícios de ornamentação, é que, na transcrição desta música, se optou por
transformar em notas musicais tudo que poderia ser entendido, numa outra ótica, como ornamentos,
Se a este tipo de execução não se encontrou paralelo nas execuções dos mais antigos
nas suas opções de uma música urbana de rabeca. Na música de Geraldo Idalino, a objetividade e o
caráter realista da melodia são sempre pretendidos e neste tipo de interpretação de toadas, como
feito por rabequeiros urbanos como Maciel Salustiano e Siba Veloso, as impressões e uma
É bastante provável que estes dois jovens rabequeiros, ambos de Pernambuco, tenham
absorvido boa parte deste tipo de procedimento na escuta de outros rabequeiros mais antigos da
região. Mas, também, é bem provável que muitos aspectos tenham sido colhidos ou apreendidos em
outros segmentos ou fontes de informação, tais como aqueles que tratam da música Armorial no
Nordeste, ou da música medieval ou renascentista européia. Músicos como Antonio Nóbrega – que
foi um dos primeiros no Brasil a buscar, a partir de estímulos de Ariano Suassuna, uma combinação
73
dos estilos de rabequeiros e violinistas – podem ser referências, mesmo que inconscientes, para este
Nas suas atividades musicais, estes novos rabequeiros estão comprometidos com o resgate
de aspectos da música de rabeca, que estão em franco desaparecimento nas próprias atividades dos
rabequeiros mais antigos do Nordeste. É possível que uma prática bastante antiga de rabequeiros
solistas contivesse estes elementos de conteúdo e estilo musical, mas pouco disto parece sobreviver
o único espaço que a grande maioria deles encontra para atuar nos dias de hoje.
Nas toadas de cavalo-marinho, que foram colhidas entre os rabequeiros mais antigos da
Paraíba, não se observou este estilo de música eminentemente instrumental e com tais aspectos. É
provável que a dilapidação e desintegração por que passou este tipo de folguedo na desestruturação
da cultura e economia rural no Nordeste, e ainda passa nas periferias de alguns centros urbanos, lhe
coloque restrições gerais de manutenção e continuidade que venham, de modo indireto, impor aos
próprios participantes a retirada de alguns conteúdos musicais agora menos funcionais ao folguedo
rabequeiro era demonstrada sem a participação do grupo, podem ter sido gradativamente retiradas
74
5. Instrumentação na música dos rabequeiros
tocam, a posição hierárquica que o músico e o instrumento possuem também apresenta distinções
em cada contexto musical pesquisado. Artur Erminio, por exemplo, estabelece para si uma relação
de dependência para com o cantor das músicas no cavalo-marinho. Em depoimento, ele revela que
“... se o cantor não cantar, eu toco sabe? Mas é mais difícil. É melhor ele cantando, porque eu tô
do cantor e quem, na maioria dos casos, as interliga por meio dos baiões – o que demonstra o
grande papel musical da rabeca na instrumentação da orquestra deste folguedo. Mas a limitação da
atividade musical de Artur Erminio a este tipo de orquestra condiciona sua noção de instrumentação
instrumento para com o folguedo, algo como se a rabeca e o rabequeiro não possuíssem mais
nenhum outro espaço de atuação e caso o folguedo acabasse, acabaria a música de rabeca. Como
nenhum instrumento é mais importante que outro naquele conjunto, e que a música não funciona
A noção de instrumentação de João Alexandre, que tem uma atividade musical um pouco
mais ampla que a de Artur Erminio, é mais centrada na rabeca do que na voz do cantor. Em um
depoimento acerca disto, este rabequeiro deixa entender que o seu instrumento é o eixo da
Pra isso aqui menino [a rabeca], só cabe o pandeiro, o triângulo e, se tiver, o reco-
reco. Botou um bombo dentro, desgraçou tudo. Bombo pode ser pra ciranda, mas pra
rabeca não.
75
Coincidentemente, no grupo de Artur Erminio, onde o mestre do cavalo-marinho é quem
marcação sonora do conjunto, como enfatiza João Alexandre, visto que soa por mais tempo que a de
passos de dança mais complexos – a marcação rítmica necessita de maior precisão, pois não se trata
de música de ciranda, onde o aspecto central é uma melodia única acompanhada por uma rítmica
rabeca demonstram que para ele a música de rabeca tem dois momentos distintos: o da antiguidade
(a tradição) e o atual (o moderno). Ele fala da instrumentação com triângulo, pandeiro e reco-reco
como sendo a de uma extinta e jurássica vida da rabeca no interior do Nordeste, opondo diretamente
35
Este tipo de intervenção do mestre é aceita por todos os membros da orquestra, visto que sua autoridade e
experiência musical consistem num dos pilares centrais destes grupos e são elementos que, nem “de brincadeira”
devem ser questionados neste contexto.
76
a isto as formações elétricas convencionais da atualidade, ao declarar que “... o cara com uma
Geraldo Idalino tem grande importância como rabequeiro porque, além de diversos fatores,
tempo em que busca conscientemente uma negação da cultura tradicional de rabeca, mantém
paradoxalmente, na “renovação” da antiga fórmula dos bailes de forró – onde a rabeca era solista e
acompanhada por instrumentos de percussão – a sua proposta básica de ação musical nos centros
urbanos.
Além de suas experiências anteriores com o mercado fonográfico, este rabequeiro tem forte
convicção de que a produção musical de shows e disco de Fortaleza (CE) é a grande saída para a
sua música de rabeca, numa clara pretensão de um engajamento cada vez maior da sua música nos
Geraldo Idalino e sua banda “Um Violino no Forró”, tocando em praça pública.
36
Entre tantas outras marcas de mediocridade nesta produção musical de forró em Fortaleza está a eletrificação do
forró – vista como sinônimo de atualização para os mesmos – em negação ao “antigo” forró pé-de-serra à base de
sanfona, zabumba e pandeiro.
77
Esta concepção que Geraldo Idalino tem dos instrumentos elétricos como sendo os parceiros
ideais para a rabeca em um conjunto, demonstra um tipo de continuidade da música de rabeca que
não é compartilhada pelos novos rabequeiros – mesmo tendo estes uma ampla vivência anterior
aprofundar a direção proposta há décadas por Geraldo Idalino, de abandono do antigo conjunto
instrumental da rabeca e uma incorporação de instrumentos eletrônicos. Mas o que está acontecendo
é o contrário. Estes novos rabequeiros não tomam os tipos de formação instrumental à base de
guitarras, baixo, bateria e teclado, como sendo, em si, significadores de renovação, inovação ou
No começo a gente ficava muito meio assim com a guitarra; a guitarra não existia
dentro da banda. Aí a gente teve muito cuidado de saber usar e não prejudicar e ferir
o nosso trabalho. (...) Não era aquela guitarra pesada, algumas coisas a gente botava
uns sons distorcidos, mais era pouca coisa. A gente soube combinar essa coisa de
rabeca com a viola e a guitarra.
simplificadora, Siba Veloso observa que a formação instrumental encontrada pelo seu grupo parte,
justamente, de uma crítica sua à formação convencional muito presente na música pop e no rock, e
diz que:
A gente quando começou era muito mais uma banda elétrica, eu tocava muito mais
guitarra, Helder tocava teclados, Hélio tocava bateria (...). Eram instrumentos que
tavam mais próximos do que a gente cresceu tocando. A partir de um determinado
momento eu quebrei com esta história de que baixo, bateria, guitarra e teclado é
realmente a maneira mais evoluída de se fazer música e as outras [as formações
instrumentais tradicionais] eram material de pesquisa pra enriquecer um trabalho
que, bem feito, teria que ser nestas linhas, pra gente [na linha de formação elétrica].
Eu via no jazz, no rock e mesmo na música instrumental brasileira, formas mais
evoluídas de música. Depois eu quebrei com isso.
suas de concepções técnicas e estéticas. A utilização de uma guitarra em timbre não alterado por
78
distorções; de um baixo elétrico fazendo acompanhamentos básicos, sem os malabarismos tão
comuns no pop/rock atual; a pouca utilização da bateria – visto que os instrumentos de percussão
nordestinos são capazes de favorecer uma rítmica mais solta, “gingada”, do que uma bateria – são
O rabequeiro Siba Veloso em uma apresentação numa casa de shows em São Paulo/SP.
Nos grupos de ambos, a rabeca serve como instrumento guia em boa parte das músicas e não
ocupa o lugar de instrumento solista e dos antigos bailes de forró, estes novos rabequeiros buscam
mais uma tentativa de reviver a sua essência do que a retomada desta música ou conjunto
Por outro lado, se tocar rabeca em bandas cujas músicas são consumidas por um público
jovem, urbano e de classe média, não é, por si, entendido por estes rabequeiros como uma atitude de
79
“modernização” da música da rabeca, eles também não pretendem um mero resgate da tradição,
trazendo-a para a urbanidade, em uma nova roupagem – numa tentativa de fazer sobreviver aquilo
Siba Veloso e Maciel Salustiano demonstram possuir uma clara noção da diferença entre a
música que fazem e a que é feita pelos tradicionais rabequeiros de cavalo-marinho da zona da mata
de Pernambuco. E nutrem idéia de que fazem uma música “nova” e os outros rabequeiros fazem
uma música antiga, mas que são músicas de contextos diferentes, geradas a partir de necessidades e
quando se observa que entre rabequeiros mais jovens se processa a continuidade de alguns
antigos, como Geraldo Idalino, procuram manter a antiga fórmula instrumental de rabeca solista,
O “Chão e Chinelo”, grupo de Maciel Salustiano, é um exemplo desta atuação dos jovens
rabequeiros. Se, antes da participação deste rabequeiro, o seu grupo tocava basicamente as músicas
de Jackson do Pandeiro, Luiz Gonzaga e Trio Nordestino, agora tocam suas próprias composições
com um estilo que não é de grupo de forró nem de cavalo-marinho. E Maciel Salustiano demonstra
Eu não vou falar pro pessoal que aquilo ali é a forma de um cavalo-marinho. Eu vou
dizer: é inspirado naquele som, mas modificado. O trabalho que eu faço hoje é
popular, mas não é um maracatu, reisado, cavalo-marinho; é uma banda, um trabalho
diferente. O grupo popular de raiz é de se apresentar em terreiro, a banda é diferente,
é um trabalho de palco, de gente pra dançar e não só assistir.
Siba Veloso ressalta que a combinação instrumental atual do seu grupo é resultado de uma
algumas mudanças de estilo e conteúdo da música. Neste processo de mudança ele buscou um
afastamento dos laços convencionais da música pop urbana, como também não fez a opção de ser
80
um “artista” que serve de ponte entre a urbanidade e a ruralidade no Nordeste, “transferindo” para
os centros urbanos os produtos musicais de um outro contexto de saber e fazer musicais. E diz:
Ele tem clareza de que esta mudança no grupo se deve em muito à presença da rabeca, ao
afirmar que isto “... trouxe um diferencial que ajudou o grupo a conquistar um espaço por ser uma
coisa totalmente inusitada, nova, que talvez nunca ninguém tenha ouvido”.
A discussão acerca do impacto causado pelo atual uso de tecnologias de produção sonoro-
pesquisa de campo que o uso de aparelhos eletrônicos interferem nas práticas musicais cotidianas
dos rabequeiros, e que esta influência ocorre de forma diferente entre eles. Forma diferente esta,
advinda não apenas do próprio uso em si, mas, principalmente, do tipo de uso, das intenções para
com o uso e das possibilidades de envolvimento com tais recursos em cada contexto de atuação
musical.
afetando o campo geral da produção musical em nossa cultura. Afetando esta produção em todos os
setores, seja no espaço da música popular urbana, da música de concerto das orquestras sinfônicas
ou das músicas de tradição oral – espaço este onde até a mínima interferência de um pesquisador
com seu gravador pode ser elemento de influência nas atitudes cotidianas de produção musical.
Se esta aproximação da tecnologia é atualmente inevitável, também não há como negar que
as culturas – em seus segmentos, grupos ou indivíduos, nas suas formas específicas de existência –
81
possuem mecanismos particulares de regulação da transferência e da incorporação e absorção de
informações e produtos tecnológicos. Da mesma forma que em outros campos da cultura não
no âmbito tecnológico, as transferências são mediadas por interesses, não sendo simplesmente
impostas pelos setores dominantes ou absorvidas sem nenhum critério pelos setores dominados –
processo que leva a que um produto ou idéia de um segmento da sociedade seja capaz de influenciar
Embora se aceite que os modos e meios de produção de uma economia tenham grande
influência nas idéias de uma sociedade, não se pode afirmar que ocorra um determinismo
econômico nas formas de manifestação cultural desta mesma sociedade. O fato é que grande parte
das ações culturais cotidianamente efetivadas por uma sociedade ou grupo – as festas, por exemplo
sociedade, como afirma Blacking (1986: 8), e isto não significa que esta sociedade ou grupo tenha
forem, sempre parte de intenções e concepções musicais internas e prévias sobre o próprio fazer
musical existente ou que se pretende empreender. E isto é uma questão importante a se considerar
quando se quer analisar a conjunção entre produção musical e tecnologia de produção de sons.
concerto, Luciano Berio (citado em Dalmonte 1981: 117) faz uma observação que, em alguns
aspectos, pode servir para a análise do que ocorre em muitos outros segmentos musicais, inclusive o
O fato é que o impulso inicial para melhorar os recursos deve vir primeiro de uma
concepção musical, e é só com esta condição que se pode pôr em movimento uma
relação profícua de intercâmbio entre música e tecnologia.
82
Isto conduz ao seguinte entendimento nesta dissertação: assim como as modificações
operadas no artesanato de rabecas têm relação com as intenções culturais e musicais de cada
Se anteriormente buscou-se fazer compreender que o instrumento rabeca é um objeto que foi
também, que os equipamentos eletrônicos por si não são provedores de modificações nas músicas
dos rabequeiros. Embora a presença de artefatos eletrônicos nas práticas musicais dos rabequeiros
seja um elemento a se considerar num esboço dos contextos onde estas se efetivam, tais objetos
eletrônicos passam a ser algo próprio ao contexto musical somente a partir de quando, e de como,
quando o grupo se apresenta em instituições ou festas públicas promovidas por algumas entidades.
O uso de equipamentos eletrônicos é desejado por todos os membros deste grupo, e é um problema
estrutural a ser resolvido pelos próprios participantes, visto que a apresentação do folguedo em
grandes espaços – como habitualmente ocorre quando o grupo tem que se apresentar fora do bairro
da rabeca na condução da música, a maior preocupação do Mestre Gasosa (do cavalo-marinho onde
Artur Erminio toca), na hora da apresentação, é com a amplificação da voz dos cantores, no caso,
ele próprio e o Mateus. Para com os demais participantes que dançam e cantam esta não é uma
preocupação, visto que o volume sonoro do conjunto das vozes já é suficiente. Para os mestres de
cavalo-marinho, o que parece importar é que o público escute bem o que dizem e cantam, pois, para
eles, são os textos e as canções que falam sobre o drama encenado, o aspecto principal a ser
83
Os instrumentos de percussão são naturalmente escutados e têm sua importância para os
mestres e demais participantes por fornecerem a base rítmica necessária para o desenrolar das
danças. Mas a rabeca tem grande importância na efetivação da densidade rítmico-sonora desta
Porém, o som da rabeca não é escutado a mais de dez metros quando os instrumentos de
percussão tocam e os dançarinos cantam numa apresentação ao ar livre e sem microfones para
amplificação. Ou seja, pelo perímetro da brincadeira, boa parte dos participantes e do público pode
não estar escutando a rabeca na maioria das músicas, e isto não afeta o andamento da apresentação
nem o mestre sente como problema a ser resolvido, talvez pelo fato de se encontrar, na maioria dos
Em apresentações do boi de reis onde João Alexandre toca, na sonorização realizada, o nível
de amplificação sonora colocado no microfone individual do mestre, a pedido dele, é sempre maior
que o colocado no outro microfone que serve para todo o conjunto instrumental. Recentemente,
mesmo com a colocação de um microfone exclusivo para a rabeca – isto, talvez, devido a opiniões
de pessoas de fora da comunidade, como pesquisadores intrometidos, por exemplo – era possível
modificação na equalização sonora de forma que a ênfase estivesse na sua voz e nos instrumentos
de percussão.
aumento do volume sonoro de todo o grupo, a rabeca continua não sendo adequadamente escutada,
visto que não há como auditivamente se focalizar o som dela com o aumento geral do volume
sonoro.
37
As brincadeiras de cavalo-marinho e de boi-de-reis acontecem normalmente em ruas do bairro que são parcialmente
interditadas. Bicicletas, motos e carros estão sempre passando e obrigando os foliões a se acomodarem numa
pequena faixa da rua. A orquestra fica sentada em cadeiras bloqueando parte da rua e o grupo se apresenta em duas
fileiras, com o Mestre e o Mateus no centro, de frente para os músicos. No bairro dos Novais (João Pessoa), onde o
cavalo-marinho de João do Boi e o boi-de-reis do Mestre Pirralhinho têm sede, os grupos se apresentam em espaços
cercados, a platéia assiste de fora e a rua é interditada. Em algumas destas apresentações a orquestra fica em um
palco ao lado das fileiras formadas pelos participantes da brincadeira, e não em frente às fileiras como é comum em
apresentações de outros grupos de cavalo-marinho.
84
No caso dos rabequeiros de cavalo-marinho, o atual envolvimento com equipamentos
eletrônicos não interfere significativamente nos seus procedimentos musicais –interferência esta que
talvez venha a ser mais significativa no futuro, com a utilização de um microfone exclusivo para a
rabeca.
rabequeiros. Nos diversos contatos com Artur Erminio, ele nunca esboçou algum tipo de opinião a
este respeito, enquanto João Alexandre, que atualmente tem mais acesso a estes equipamentos,
demonstrava mais satisfação na última apresentação em que estava tocando com um captador de
Geraldo Idalino que tem seu próprio equipamento de som – consistindo este em duas caixas
amplificadas, um captador de som para seu instrumento e um microfone para o cantor – se orgulha
por tocar com grandes equipamentos de sonorização em festas juninas e nos seus depoimentos
considerar que esta é uma das alternativas para continuar fazendo música direcionada a um grande
Maciel Salustiano, que tem uma atividade profissional em palcos com grande aparelhagem
sonora e possibilidades de bons recursos tecnológicos para a sua rabeca, usa apenas um captador de
som e diz preferir “... a rabeca limpa, sem recursos eletrônicos, mesmo no palco”. Este rabequeiro
que tem um maior acesso ao conhecimento sobre tecnologias de produção sonora, através do
contato com técnicos e engenheiros desta área, se preocupa mais com a qualidade sonora obtida a
partir da equalização do instrumento no palco, do que com o próprio volume sonoro. Diz que a
utilização de recursos eletrônicos não tem uma importância fundamental para a melhoria da sua
performance musical, ou que este seja um aspecto importante na diferenciação entre os jovens
rabequeiros e os mais antigos. Ao passo que deixa entender que a tecnologia é apenas um recurso
85
auxiliar a ser utilizado conforme as necessidades sonoras de cada proposta e momento musical. Ele
afirma que:
A rabeca é um instrumento de som rústico mesmo, então tem que tomar muito
cuidado com equalização [nos shows]. Tento tirar um pouco o ruído da rabeca.
Neste depoimento, ele ressalta uma especificidade do instrumento, sua rusticidade, que deve
ser manipulada, mas não suprimida por meios eletrônicos, de acordo com determinados objetivos
musicais momentâneos. Também entende que a utilização de requintados artefatos tecnológicos não
é, por si, solução para continuidade da prática da música da rabeca, mesmo no ambiente musical de
Tento estudar a rabeca sem ligar em um equipamento eletrônico. Vejo aquele som da
rabeca e tento passar para o técnico de som, mais ou menos, a forma de som que eu
quero mais adequado.
Mesmo realizando um trabalho de shows e disco com o DJ Dolores, onde usa sofisticados
recursos de processamento de som (como pode ser observado na faixa 14 do CD), Maciel
Salustiano não toma esta experiência como a proposta central de seu trabalho, mas apenas como
música popular brasileira, tem três discos gravados com seu grupo onde também estão presentes a
guitarra, fole de oito baixos, zabumba, ilu e o baixo elétrico e onde se combinam elementos de
músicas de tradição oral com música popular urbana38. Seu grupo surgiu de uma formação
instrumental “mais elétrica” com órgão eletrônico e bateria – a formação normal de uma banda no
início da década de 90 – até chegar atualmente a uma formação instrumental mais “adequada aos
38
Os últimos discos gravados por este rabequeiro foram: Mestre Ambrósio (1995), Fuá na Casa de Cabral (1998) e
Terceiro Samba (2001).
39
Siba Veloso é um dos responsáveis pela nova música urbana da rabeca no Brasil e também um dos músicos e
animadores culturais marcantes do recente movimento musical, o Manguebeat, que nasce em Pernambuco e,
atualmente, tem suas influências na cultura musical de todo o país. Hoje – por necessidades do trabalho, conforme o
mesmo – reside em diversos estados, mas mantém o vínculo como rabequeiro em um cavalo-marinho de
Pernambuco.
86
Em seu trabalho de palco, usa um afinador eletrônico, pois, conforme ele mesmo diz: “... a
umidade, o calor das lâmpadas, o próprio movimento de palco às vezes desafinam o instrumento e
eu preciso de rapidez”. Usa ainda um pedal de volume para um controle direto sobre a intensidade
sonora da rabeca e para bloquear microfonias e um equalizador particular, pois argumenta que:
Me dá autonomia pra regular meu timbre de rabeca sem precisar pedir pra um cara
da mesa de som, que nem sempre consegue fazer alguma coisa legal. Regulo pra
mim aqui, deixo meu som pronto.
Sobre o pedal delay, equipamento eletrônico que processa o som alterando inclusive o
Eu vou até parar de usar aquilo; foi uma experimentação de uma época, que eu não
tô até nem mais muito interessado, não por ser contra ou a favor. Foi uma época que
eu usei e servia pra o momento, mas agora eu to até um pouco cansado.
principalmente, as idéias que têm sobre estes recursos e sobre a música resultante, são traços
Na atividade de Artur Erminio, o uso de equipamentos eletrônicos pouco afeta sua cotidiana
atividade musical. O que mais tem afetado o aspecto sonoro e a “natureza” rústica desta música em
seus contextos originários são as gravações erroneamente realizadas em estúdios, onde se colocam o
Mestre, o Mateus e a orquestra, tentando reproduzir o “clima” de uma apresentação ao vivo. Muitos
densidade e tímbrica sonora de uma apresentação ao ar livre, se perdem quando se tenta em estúdio
Apesar do apelo que a maioria dos membros do cavalo-marinho de Artur Erminio faz ao uso
de equipamentos eletrônicos, este contexto de produção musical não é, em geral, muito aberto a
inovações desta ordem. Neste caso, é mais provável que um envolvimento com meios tecnológicos
87
venha a afetar mais a parte do canto desta manifestação musical, e apenas indiretamente a atuação
dos rabequeiros40.
e oral com os meios tecnológicos nem sempre é plenamente efetivado, assim como os impactos
resultantes da ação destes meios tecnológicos nem sempre ocorrem homogeneamente ou são
No caso de Siba Veloso, o tipo de música que produz exige um envolvimento com um
considerável aparato tecnológico, mas a sua concepção musical, enquanto rabequeiro, não parece
Poder-se-ia supor que o uso de recursos tecnológicos seria causador de mudanças imediatas
ou diretas em todos os setores de uma manifestação musical tradicional, e que os jovens rabequeiros
urbanos teriam nos meios tecnológicos um suporte imprescindível para a mudança e consolidação
de aspectos centrais do seu estilo de música de rabeca. Mas, pelo que se observou na pesquisa, as
Nos contextos musicais de Artur Erminio e Geraldo Idalino – rabequeiros que se encontram
nos limites do espaço multifacetado da música dos rabequeiros mais antigos – observa-se o
esgotamento de um tipo de relação com os recursos tecnológicos. É uma relação que tem seu limite
equipamentos tecnológicos são mais facilmente capazes de, na sua valoração e apropriação
40
A sonoridade, nos seus aspectos de timbre e intensidade, do canto em folguedos como o cavalo-marinho parece
gravemente afetada pelo tempo. A própria idade dos cantores, os mestres e Mateus, o aumento do barulho nas ruas
próximas onde se apresentam estes grupos e o crescente desprezo social por estes tipos de manifestação e de cantos,
levam com que a “timidez” na emissão sonora seja algo gradativamente mais presente. A busca pelos cantores de
uma amplificação de suas vozes é algo, certamente, também motivado por estes fatores. Gravações antigas feitas
quando estes mestres eram mais jovens e o contexto guardava sentidos mais positivos de manifestação e
continuidade, demonstram que, mesmo sem microfones, estes cantores possuíam uma vitalidade maior no ato de
suas performances.
88
simbólica, atingir as concepções e procedimentos do rabequeiro. E isto pode se constituir em um
A presença desta música em centros urbanos é, por si, um indicativo de uma mudança, pelo
menos geográfica. Mas alterações substanciais nesta tradição musical não se operam apenas, ou
diretamente, a partir de processos migratórios. Por isto, o envolvimento com alguns aspectos da
numa determinada cultura musical como a de rabeca, a partir de como cada segmento ou indivíduo
agente desta cultura re-processa este envolvimento e se posiciona (se identifica) culturalmente. É
neste sentido que se concorda com Blacking (1986: 3), que afirma:
Mudanças musicais e culturais não são causadas pelo contato cultural, movimento
populacional, ou mudanças na tecnologia e nos meios e modos de produção.
Se apenas o contato com a tecnologia de manipulação de sons fosse, por si, causador de
modificações radicais na música da rabeca, estas se verificariam melhor nas atitudes de Maciel
De outra parte, embora tenha um acesso menor à tecnologia –acesso este direcionado apenas
89
Capítulo 5
referem e às ferramentas disponíveis na cultura para a sua formalização, é provável que nosso
repertório de conceitos, definições e termos se estabeleçam, também, a partir daquilo que nos é
genericamente oferecido na cultura. De outra parte, as culturas ou segmentos impõem, aos grupos
que a formam, determinadas formas de expressão lingüística para que se estabeleça não somente a
Esta introdução tem o propósito de servir como aporte para a discussão de aspectos de
linguagem verbal dos rabequeiros que se configuram não apenas como objetivações verbais do
saber musical, mas como elementos geradores de semelhança e diferença entre eles e para aqueles
com os quais compartilham experiências. São termos e conceitos elaborados por eles para falar
Nos depoimentos de Artur Erminio e João Alexandre, foi possível observar que a idéia de
“tom” é um aspecto central do saber sobre a música. Tom, para eles, é um conceito utilizado para
explicar grande parte dos acontecimentos essenciais do fenômeno musical. Assume o sentido de
região de altura onde se localiza uma determinada música, quando Artur Erminio fala que, “... se
90
41
não pegar o tom, eu não toco” ; de parâmetro de intensidade e timbre sonoro quando João
Alexandre diz que “... rabeca com prego não dá tom”, ou “... com essas madeiras a rabeca fica com
um tonzinho”. Também é usado para o entendimento e comunicação sobre alturas sonoras distintas
do espaço mélico, quando ambos falam sobre “... os tons da música”, ou “... o tom quem faz é os
dedos” – categoria similar ao que se entende por notas musicais na teoria ocidental européia.
Quando João Alexandre diz que em algumas músicas, além do uso das três cordas, “... tem
que afinar no baixo”, não está se referindo apenas à necessidade de afinar a quarta corda para tocar
algumas músicas. Ele está usando uma forma de expressão que mescla noções de afinação e
tonalização para designar a região do instrumento onde se localiza uma determinada melodia.
A categoria verbal “tom”, quando implícita ou explicitamente colocada, serve para explicar
e expressar diversos aspectos do saber e fazer musicais destes rabequeiros enquanto núcleo gerador
de sentidos. De outra parte, quando discorre sobre a rítmica musical este rabequeiro associa a idéia
de ritmo à de movimento corporal quando diz que “... o braço [direito] é quem treina pra pegar a
música”.
Observe-se que, para estes rabequeiros, ritmo está associado a movimento e tom a espaço, o
que não é muito diferente da noção de escala musical enquanto conjunto de degraus de “alturas”
sonoras constituintes do espaço mélico. Schurmann (1990: 46), numa análise desta questão no
Estes conceitos dos rabequeiros conduzem ao entendimento de que mesmo havendo entre
eles uma compreensão das diferenças entre aspectos musicais, a música não é concebida como um
“agrupamento” de partes separadas, mas numa unidade que mantém em si uma diversidade de
41
Denomina-se por região de altura visto que o tom de uma música para o rabequeiro não parece ser necessariamente
o som uníssono ou oitavado da melodia que o cantor executa, embora estes sejam os intervalos mais verificados na
performance musical.
91
aspectos. Para eles, a música é apreendida e concebida da mesma forma como é tocada, ou seja,
como um todo uno e complexo. E isto consiste, também, em um importante reflexo do processo de
aprendizagem da rabeca no qual foram imersos e torna a refletir na maneira como cotidianamente se
“exercitam” no instrumento para a apreensão de uma música – processo no qual eles não isolam
Este modo de relacionamento com o real exterior e sua organização mental, apreendendo-o
como uma totalidade e não como uma combinação fragmentada de partes, é definido por Morin
(1982: 268) como sendo um modelo complexo de observação, diferente daqueles modelos
No caso de Geraldo Idalino, quando ele fala sobre sua música demonstra a incorporação de
diversos elementos de comunicação, utilizados por músicos formados no âmbito da música popular
urbana. Ele usa expressões como “... num tom de ré maior, ré bemol sustenido (...). Ela tem muita
complicação, tem muita nota, vai em maior, menor em si bemol” para se referir às especificidades
estruturais de uma música. Suas referências a “tom”, enquanto tonalidade de suas obras, advêm,
provavelmente, de informações colhidas de outros músicos com os quais tocou42. Formas estas de
conhecimento e informação que têm um valor e lhe emprestam um tipo de identificação que ele
Na própria confusão dos termos – aliada a uma incapacidade de explicação destes, quando
questionado – observa-se que eles são “teoricamente” pouco significativos para Geraldo Idalino e
que são vazios de sentido conceitual discursivo, mesmo que sua música seja claramente tonal. A
ênfase dada por Geraldo Idalino a aspectos do conhecimento teórico, quando, por exemplo, diz “...
eu toco em qualquer tom, toda qualidade eu conheço; de mi menor, maior, sustenido menor,
42
A música “Violino no Choro” transcrita neste trabalho, foi tocada em Ré sustenido menor (faixa 6 do CD). Mas o
rabequeiro fala na gravação que ela estava em lá. O que indica que – mesmo optando por um tipo de expressão
verbal derivado da teoria musical ensinada nos conservatórios – o uso do termo tom, no sentido que Geraldo Idalino
quer dar ao mesmo, possui um significado muito mais ideológico, na busca de identificação cultural, que
propriamente teórico-musical para ele.
92
conheço tudo”, é um forte indicador da sua necessidade de se representar como um músico popular
urbano com conhecimentos rudimentares de teoria que o diferenciariam, na sua concepção de si,
As formas de comunicação verbal sobre sua música e sobre si, são importantes para que o
processo de identificação social se efetive, visto que não basta a este rabequeiro, ou a qualquer
outro, apenas a sua performance ou prática musical para que o “circuito se feche”. Isto acontece
porque os ambiente/contexto nos quais estão imersos exigem deles elementos verbais de
comunicação semelhantes aos habitualmente usados pela maioria dos outros indivíduos que
O que se observa, é que as práticas musicais necessitam das expressões verbais e das
compreensões sociais delas para que elas possam se estabelecer como instâncias
instauradoras de identidade. E os rabequeiros estão envolvidos por estas
necessidades de identificação desde o momento inicial da atividade criadora ou
performática até à instauração de procedimentos/comportamentos musicais e a
formulação de conceitos, termos e expressões verbais sobre sua música.
torna-se é mais complexo no caso de Geraldo Idalino, visto que ele transita nas margens de núcleos
culturais distintos. Esta identificação não se estabelece apenas na auto-atribuição, mas, também, no
processo de alter-atribuição que outros sujeitos realizam para com o agente cultural. Entre os
rabequeiros, as identidades postuladas por eles e por seus grupos resultam de representações
simbólicas que lhes permitem apreender a realidade sob determinada ótica, e são uma forma de
social.
43
Embora existam múltiplas definições e conceitos sobre o que seja símbolo e para o estatuto de simbólico, as
definições de Geertz (1978: 105) de que são “... formulações tangíveis de noções, abstrações da experiência fixada
em formas perceptíveis, incorporações concretas de idéias, atitudes”, e de Cohen (1978: 38) que observa que
símbolos são “... objetos, atos, conceitos ou formas lingüísticas que acumulam ambiguamente vários significados
diferentes e que simultaneamente evocam emoções e sentimentos", estão mais próximos do nosso entendimento
visto ressaltarem a qualidade de ser algo público que possuem os símbolos, e sua natureza flexível e de referência.
93
2. Criação musical e concepções sobre criação entre os rabequeiros.
A definição do que seja música de rabequeiros passa pela compreensão de que mesmo
aquelas músicas que não foram diretamente criados por estes são músicas de rabequeiros, quando
adotadas por eles nos seus contextos de ação. Estas músicas, a partir de quando adotadas, servem
identidade, não significa que não haja produção própria ou individual nas culturas de tradição oral,
O problema parece residir no fato de que os conceitos de autoria e anonimato que serviram
para a análise das formas de produção nas culturas de tradição oral foram forjados a partir de
pressupostos recolhidos em culturas de tradição escrita. São conceitos que possuem um lastro
ideológico específico nas suas formações em um determinado contexto, mas que foram
transplantados para a análise de outros contextos sem que se esclarecesse antes a dialógica peculiar
formas peculiares de produção, apreensão e representação desta, nas culturas de tradição oral. Esta
não é tarefa deste trabalho. Aqui apenas se enuncia o problema e aponta umas poucas direções.
A idéia corrente de que o anonimato é um dos pilares identificadores da cultura musical das
camadas populares ainda se mantém presente em algumas formas de entendimento das culturas
populares. Mesmo quando se admite que um indivíduo, em algum momento da história, criou
determinada música, pressupõe-se que todo o processo, que culturalmente se realizou para isto e a
partir disto, seja resultante de uma motivação social anômala. Assim, a idéia de anonimato somente
94
As formas sócio-culturais de organização, que se estabelecem no seio das camadas
populares, cuidam da manutenção e recriação cotidiana dos objetos musicais, intervindo e propondo
modificações, determinando suas funções e o tipo de relação a ser mantida com eles. São
indivíduos. Elas têm uma enorme importância no ato de criação e recriação cotidiana das músicas,
mas são conceitualmente relegadas, nas abordagens acerca das culturas de tradição oral, a uma vaga
cultural. Estas formações são os contextos onde a criação se efetiva e onde se pode observar a
posição do sujeito social. Sujeito criador em torno do qual não residem extratos de anonimato, mas
estruturas identificadoras da cultura sem as quais a própria noção de sujeito ou indivíduo não
música e da identidade musical, quando se oculta os agentes sociais e se busca encontrar a essência
da cultura que gera os objetos numa análise musical centrada exclusivamente nos aspectos
“objetivos” do produto musical. Este tipo de abordagem tem sua relativa importância, mas não é
existência cultura, a profundidade analítica que se pretende termina por consistir em resultados
“profundos”, obtidos no garimpo da mais superficial camada do saber e fazer musicais de uma
determinada cultura. Sobre o que John Blacking (citado em Moraes, 1983: 18) afirma que:
95
As distinções entre a complexidade da superfície de diferentes estilos e técnicas
musicais não nos proporciona nada de útil quanto aos fins e ao poder expressivos da
música, ou quanto à organização intelectual que comporta a criação musical.
Busca-se, neste estudo sobre a música dos rabequeiros, entender que a criação de um objeto
se efetiva de modo social e cotidiano e que não é, ao mesmo tempo, anônima. Assim, o vislumbre
da criação deve ser buscado no contexto das performances musicais cotidianas. Sobre isto Béhague
(1992: 7) diz:
Deste modo, a música do cavalo-marinho onde Artur Erminio toca é a música deste
rabequeiro. É aquela através da qual ele, enquanto executante, representa a sua identidade e através
da qual a comunidade apreende esta identidade. No caso de João Alexandre, aquelas músicas de
outros compositores que ele adota no seu repertório são músicas tornadas próprias à sua cultura de
rabequeiro, a partir de quando escolhidas dentro de um leque de opções como sendo as que
correspondem a preceitos estéticos, técnicos, de estilo e conteúdo, etc, do contexto cultural no qual
este rabequeiro atua. As músicas de Siba Veloso ou de Maciel Salustiano não são apenas aquelas
compostas por eles, mas são, também, aquelas do repertório tradicional que eles executam, embora
Nesta breve discussão, buscou-se fazer entender que, assim como não basta apenas tocar
numa rabeca para ser identificado como rabequeiro, também não é apenas a criação musical que
pode ser isoladamente tomada como elemento único para identificar quem é, ou não, rabequeiro.
Com esta discussão inicial busca-se observar que processos de identificação e representação
– que englobam aspectos como o uso do instrumento musical, práticas sócio-musicais, uso de
termos e conceitos, etc – devem ser buscados na amplitude de um contexto de produção e consumo
musical.
96
Foi observado que, entre os rabequeiros, as idéias sobre criação e suas práticas musicais
criativas são diferentes. Esta diferença não reflete apenas as características pessoais de cada um,
mas derivam do conjunto de idéias, valores etc, que em cada contexto é conferido ao ato de criar
estabelecidos.
relação à criação de novos objetos musicais que são coerentes com o próprio valor coletivo dado a
isso no amplo contexto desta manifestação musical. Artur Erminio entende que criar novas músicas
não é mais importante do que manter aquelas já existentes. Em uma conversa sobre este assunto, diz
que “... só toco uma música quando vejo uma pessoa cantar. Fazer por mim eu não faço”.
estímulo à produção e apropriação coletiva dos bens culturais e a de uma cultura urbana onde há
registro escrito de suas obras. Embora envolto num contexto onde tradicionalmente predomina a
fornecidos há muitas décadas, este rabequeiro entende que criação musical somente ocorre a partir
da ação de um indivíduo e com um registro escrito da música. Ele comenta que “... a pessoa bota a
escrita, faz a música no papel e por aquela música a pessoa vai tocando. Mas eu não sei. Só sei
criadores é algo de pouca importância. E isto é coerente com o consenso mais amplo que há neste
contexto de que a atividade de criação – esta entendida como sendo atividade de inovação – é algo
97
Criar – entendido isto como inovar, objetivar um novo produto musical – não é algo
estimulado em todos os segmentos da nossa cultura, com a mesma intensidade que é na cultura da
qual a plenitude das ações que objetivam socialmente uma música é fragmentada numa tríade
numa ordem valorativa que confere a cada um destes segmentos um determinado capital cultural.
Devido à sua longa presença na história de nossa cultura e de sua enorme força na
idealização desta, tal processo de classificação é, muitas vezes, entendido como consistindo em um
elemento absoluto e “natural” a todas as culturas. Muitos compartilham o esquema forjado por
Aaron Copland quando classifica o instrumentista como o mero reprodutor e o intérprete, como “...
o intermediário da música”. Aquele a partir de cuja ação “... o estilo da peça atinge o ouvinte
nesta tríade. Aquele que é capaz de nos ofertar “... sem referir-se a acontecimentos exteriores, a
Esta concepção é hegemônica em nossa cultura, mas apresenta variação em alguns núcleos e
nem sempre foi presente na nossa história. Schurmann (1990: 95) observa que o sentido de criação,
criador, arte e artista não é o mesmo em toda a história da cultura musical ocidental. Diz que a
concepção de criação enquanto uma atividade individual e de inovação teria se afirmado com o
mecenato no século XV, quando a música que anteriormente tinha um “... papel sócio-tecnológico,
agora passaria a cumprir uma missão sócio-ideológica”. No caso do jazz, por exemplo, a
muitos casos.
98
A noção que João Alexandre tem de criação musical difere da observada em Artur Erminio
apenas no condicionamento que ele estabelece entre o ato criativo e a composição da letra de uma
música. Quando discorre sobre uma possível atividade de criação musical, ele diz que, “... fazer eu
não faço porque não sou poeta. Eu toco o que sei”. Anteriormente já se observou que a música de
rádio é uma fonte importante de informações para João Alexandre. Isto, com certeza, de influenciar
suas atividades e suas idéias sobre música e criação – neste caso especifico da associação a uma
letra.
de improvisação, que não são considerados como atividades de criação ou recriação por ele, nem
pelos membros do conjunto que denominam como “barulho” e “erro” de execução algumas atitudes
A ligação de João Alexandre com o forró de Jackson do Pandeiro 44 e outras músicas tocadas
nas rádios reflete-se na sua performance no cavalo-marinho. As alterações rítmicas geradas a partir
São variações de caráter rítmico que operam modificações melódicas a partir da intensidade
em que acontecem, como ocorre na segunda variação exposta no exemplo abaixo (exemplo 1). Ou
que se realizam na própria escassez de acontecimentos musicais, como ocorre na última variação
onde a melodia é completamente ocultada, restando apenas sons básicos da sua estrutura. Variações
que se operam a partir de uma opção pelo impulso rítmico ao baião, através da ênfase dada ao
contratempo na quarta e quinta variações ou, pasmem, pela apresentação da melodia sem a sua
estrutura rítmica, como ocorre na terceira variação. A utilização do Si grave como um som de
44
Grande músico que, com o seu pandeiro e forma peculiar de cantar músicas nordestinas como o baião, conseguiu
imprimir enormes possibilidades para a execução musical e é tido como um dos grandes influenciadores, em muitos
aspectos, da produção de músicos ligados à bossa-nova, tropicalismo e demais gerações advindas após estes
movimentos musicais.
99
referência no meio de cada variação produz um tipo de dilatação momentânea da textura e uma
Estas intervenções sempre ocorrem quando o conjunto instrumental toca sozinho, nos
baiões. Sem a presença do canto que, no caso do cavalo-marinho, tem uma enorme importância na
condução da música.
não sejam entendidas, neste contexto, como sendo fatores de alteração dos conteúdos musicais
100
variações pouco significativas, para o restante dos participantes no momento da dança, na execução
da música. Isto tornaria estas intervenções mais suportáveis e permitidas neste contexto.
Uma comparação do exemplo anterior com o exposto a seguir permite observar que nas
toadas a ação inventiva do rabequeiro é mais restringida que nos baiões – isto porque a melodia e a
canção são elementos de importância maior nestes folguedos. Sobre elas, que são os fios condutores
da música, poucas intervenções são aceitáveis. E nisto se observa a hierarquia dos elementos
síncopes e na junção entre uma colcheia pontuada e uma semicolcheia dando ênfase ao contratempo
É o caso do fragmento anterior retirado do tema da toada “Não Chores Dama do Rei”, onde
o tipo de modificação, no toque da toada, realizada por Artur Erminio tem importância quando
insere no espaço do canto puramente melódico os elementos rítmicos que foram esboçados pela
mesmas tercinas cantadas pelo mestre, mas quando reapresenta a toada – agora já tendo passado por
momentos onde o conjunto instrumental executou o baião e esteve mais livre – usa síncopes, que
101
dão um caráter mais de dança à sua interpretação da toada, imprimindo, de modo inconsciente e
sutil, um diálogo musical com a autoridade do mestre e da melodia cantada da toada neste folguedo.
Criar, para os participantes destes folguedos, indica uma atividade individual e de inovação
e, de certa forma, de objetivação de uma música com letra. O fato é que em estando a música
especificamente instrumental destes folguedos e contextos mais ligada à dança coletiva – e assim
submetida a uma apropriação maior que a faz perder muito do seu caráter autoral – e a um momento
de diversão onde a atenção da platéia não está focada nos intérpretes, o grau de “seriedade”
atribuído a este tipo de música seria menor que o atribuído àquelas que possuem letra e canto –
quando a atenção da platéia está mais focada para os intérpretes. Talvez por isto, a música
instrumental de dança seja genericamente denominada como música de “pagode”, de “fuzuê”, pelos
Embora as atitudes criativas não sejam aceitas, ou consideradas como tal, elas persistem e
estes rabequeiros estão, de alguma forma, recriando e “re- compondo” estas músicas. Acerca deste
tradição musical; e se as atitudes performáticas criativas dos músicos de cavalo-marinho são pouco
aceitas nos próprios contextos, é provável que parte do interesse interno pela continuidade desta
que suas atitudes devem ser apenas de repetidores de fórmulas anteriormente elaboradas e não como
reapresentadores de algo vivo e, portanto, mutável mesmo que em pequenos detalhes no momento
da performance.
102
Um possível problema para a continuidade destes folguedos é a ausência da compreensão de
que na mutação deles se opera sua própria continuidade, em um processo de criação e recriação de
objetos e significados.
Sobre a existência de estilos individuais não há dúvida. O problema é que não são
tradição musical.
Duas questões são importantes na análise desta situação. Uma diz respeito ao fato de que à
custo, é imposta às culturas urbanas ou semi-urbanas na atualidade também é imposta à cultura uma
reserva de “mercado musical” tradicional-imutável. A alguns núcleos desta mesma cultura que se
cultural que, mesmo sendo intangível, deve, paradoxalmente, se manter inalterado tal como os
patrimônios tangíveis de uma cultura – os seus casarões, por exemplo. O problema surge quando os
A outra diz respeito ao fato de que, como observa Nettl (1983: 30-31), todas as culturas
apresentam variação nos seus e objetos estabelecidos e fornecidos no decorre da história e, com
isto, apresentam diferenças no grau de intervenção criativa requerida aos indivíduos ou grupos. Em
certo aspecto, pode-se dizer que os produtos musicais necessários às práticas musicais destes
uma cultura.
Assim, num consenso interno do próprio núcleo que mantém a música, não se requer nem se
necessário já estar estabelecido – o que pode estar acontecendo atualmente com a música dos
103
cavalos-marinhos onde a ação dos músicos e em especial dos rabequeiros deve se limitar apenas à
manifestações diversas como a de uma tribo indígena que se apresenta nos carnaval e de um grupo
nesta pesquisa, foi possível observar que ambos admitiam que ciranda é lugar de improvisação, de
criação e que cavalo-marinho não é. Ou seja, que há uma noção entre estas pessoas dos limites de
Pode haver, no caso do cavalo-marinho, uma menor flexibilidade contextual para que
mudanças se operem mais fluentemente e com nitidez para os próprios membros do grupo. Sobre a
flexibilidade que cada contexto ou sistema tem na aceitação de intervenções, Béhague (1992: 12)
observa que “... alguns sistemas são mais elásticos ou flexíveis que outros, de modo que a
Não se desconsidera, porém, que exista criação de novos objetos musicais por alguns
rabequeiros que mantêm ligação com o cavalo-marinho. Mas parece que estas atividades
sobrevivem escassamente entre uns poucos rabequeiros que, provavelmente, ainda mantêm boas
Murphy (1997: 158-164) apresenta alguns exemplos de músicas criadas por rabequeiros
pernambucanos. Mas, neste mesmo trabalho, não demonstra a valoração dada a esta atividade pelos
próprios rabequeiros e outras pessoas que perfazem o campo pesquisado, nem se são criações
antigas ou recentes. Assim, não possibilita observar o grau da presença e importância da criação
musical nas atividades sociais destes músicos. O que se pode perceber é que nos cavalos-marinhos
104
2.2. Atividades e concepções sobre criação musical entre rabequeiros inseridos no espaço da
música comercial urbana.
Nesta pesquisa, constatou-se que a atividade de criação musical é maior entre os rabequeiros
na mesma proporção da inserção no espaço da música comercial urbana. Variam, neste caso, apenas
A ligação de Geraldo Idalino com o mercado urbano de música também impõe a ele a
necessidade de uma maior atividade criadora. Isto para que ele mantenha a sua atividade enquanto
rabequeiro nesse espaço. A constante produção de novos objetos musicais é uma exigência básica
para o comércio da música comercial urbana, tal como é um elemento usado como parâmetro
Desta forma, não se trata apenas de talento pessoal, pois Geraldo Idalino não é mais
talentoso ou potencialmente mais criativo que João Alexandre ou Artur Erminio. É a sua inserção
em um outro espaço que lhe possibilita e exige assumir mais claramente esse tipo de atividade e, em
determinados casos, abandonar outras que são requisitadas no contexto das manifestações culturais
A este respeito Béhague (1992: 12) observa que no espaço da cultura urbana e de massas a
própria atividade de criação de novos objetos é maior devido ao fato de que estes “... contextos em
que essas funções se desempenham são tão vastos que as estruturas sonoras podem ser tão variáveis
quanto as estruturas sociais correspondentes”. E que “... o grau de flexibilidade [de um sistema]
corresponde em geral ao tipo de ideologia do grupo social”, tendo isto relação com a própria
funcionalidade de cada contexto ou música. Observando por esta ótica, a atividade de criação de
novos produtos musicais consiste ao mesmo tempo numa exigência e num estímulo social que agem
Das trinta e seis músicas de Geraldo Idalino gravadas nesta pesquisa, umas poucas não eram
suas ou eram em parceria com outros letristas. Criar novas músicas é algo muito importante no seu
105
entendimento como rabequeiro, o exato oposto do que é para Artur Erminio – que é considerado
como um dos melhores da Paraíba entre seus pares e por aqueles que fazem ou escutam a música do
cavalo-marinho. Isto indica que não é a maior atividade de criação de novos produtos que determina
quem é o rabequeiro mais importante para os que fazem esta música. Também possibilita observar
que os contextos possuem instrumentos reguladores deste tipo de procedimento e que a menor
atividades inovadoras.
A atividade criadora de Geraldo Idalino está atualmente direcionada à produção não apenas
de música instrumental para rabeca, no que consiste grande parcela de sua produção antiga, mas
para a produção de um forró cantado com acompanhamento de rabeca. Isto demonstra a grande
capacidade que tem este rabequeiro, e outros que representam esta linha de continuidade da música
música.
Geraldo Idalino é, quando analisado por esta ótica, um rabequeiro desligado de um contexto
rabequeiros na região Nordeste do Brasil. Sobre os procedimentos que usa para a criação musical,
Eu já vim tirando muita música, mas eu não canto, Eu improviso assim, e tem um
menino que copia [a letra]. Aí quando ele copia eu digo agora vamo cantar. Eu boto
a introdução, aí ele canta. Nós toca a música todinha.
Improvisar é um procedimento criativo que tem maior significação para Geraldo Idalino,
Contrariamente Artur Erminio e de João Alexandre, não são consideram que os aspectos de
improvisação presentes em suas performances sejam uma atividade de criação, e isto restringe suas
106
Criar músicas diretamente no instrumento e a partir de suas possibilidades técnicas é um
aspecto que liga Geraldo Idalino a outros rabequeiros tradicionais como Nelson da Rabeca (AL),
Luís Paixão, Manoel Pitunga e João Salustiano de Pernambuco. Este procedimento de criação dota
suas músicas de peculiaridades estilísticas que as diferem de outras compostas para o instrumento
Nos exemplos abaixo, é possível observar que apesar dos gêneros musicais serem diferentes
criação ou execução – alguns aspectos composicionais são comuns a todos os rabequeiros e isto
do CD há uma música composta por Nelson da Rabeca, que permite observar as semelhanças, em
107
Quando discorre acerca do momento da criação musical, Geraldo Idalino diz que:
Ao dizer que “lembra de um tom qualquer”, Geraldo Idalino está usando um tipo de imagem
discursiva que guarda um duplo significado. À medida que reforça a sua ligação com outros
músicos, que possuem alguma informação teórica sobre música, ele está buscando para si uma
compositor que incorpora à atividade composicional a partir do instrumento, uma outra de caráter
subjetivo e teórico.
Maciel Salustiano diz que sua inspiração vem do próprio universo cultural atual de
Pernambuco, “... que é de escutar música de Luiz Gonzaga, Jackson do Pandeiro, maracatu e
108
cavalo-marinho”, e que seu processo de criação é menos ligado ao instrumento. Siba Veloso afirma
que não compõe diretamente na rabeca, mas a partir de motivos melódicos ou poéticos que
Diz que a própria participação da rabeca nas músicas do Mestre Ambrósio é decidida a partir do
instrumentista-rabequeiro, enquanto para Siba Veloso e Maciel Salustiano esta atividade tem
importância na afirmação como músicos e não apenas enquanto instrumentistas. Assim, algumas de
suas composições não são diretamente condicionadas pelas possibilidades técnicas da rabeca e
algumas não contam com a participação deste instrumento, diferentemente do que ocorre com
Geraldo Idalino e Nelson da Rabeca cujas músicas têm sempre a participação da rabeca.
O público que consome a música destes novos rabequeiros, implicitamente exige e solicita
delas uma postura problemática em relação à criação musical. Qual seja a e lhe fornecer objetos
musicais novos, e com caracteres próximos à sua cultura urbana, e, ao mesmo tempo, que eles lhe
alimentem com conteúdos da música tradicional de rabeca. Eles são obrigados a proceder
Isto acontece porque este público, ao mesmo tempo em que busca uma ligação com aspectos
da tradição da rabeca, também busca uma música com uma roupagem menos rústica. Processos
como este parecem sempre ocorrer de modo sutil ou explícito nos rituais de passagem de um
instrumento ou música de um contexto para outro – principalmente nos casos em que se trata de
uma inserção no ambiente urbano de shows, ambiente este que é sempre carente e exigente de
novidades.
que, nestes folguedos, as suas atividades como compositores de música para rabeca os estimule,
109
dentro dos limites permitidos pelo próprio folguedo, a uma ação criativa mais objetiva e intencional.
Quando estes jovens rabequeiros deixam explícito que, na execução de músicas do cavalo-marinho,
o rabequeiro sempre repete, com algumas modificações, as melodias cantadas pelo mestre, estão
dando um sinal da consciência que têm das possibilidades de intervenção criativa nessa música.
Nesta pesquisa, não foi possível observar o impacto da ação destes rabequeiros no contexto da
performance dos grupos de cavalo-marinho onde atuam, mas isto é uma outra questão importante a
ser investigada.
consciência que possuem os jovens – pois não têm como fazer comparações entre si –, é justamente
a possibilidade maior de contato que têm estes novos rabequeiros com os outros que, também,
que possuem um estilo próprio de tocar. Porém, eles não negam a influência que tiveram de alguns
Eu, com o tempo, fiz meu estilo de tocar. Tenho coisas que são minhas e que eu
desenvolvi tocando no cavalo-marinho. Mas foi com Luiz Paixão, principalmente,
que eu aprendi muito, que eu herdei muita coisa do que faço hoje.
Isto leva a que, na própria música destes rabequeiros, estejam presentes muitos elementos da
música tradicional de rabeca. Não propriamente temas ou motivos melódicos “copiados”, mas
compositores nos seus grupos. Mas a composição deles não consiste, apesar disto, numa fusão entre
duas fontes musicais, e sim na objetivação de um tipo de música que não se limita apenas à
combinação entre conteúdos tradicionais e de música urbana. Sobre esta questão, Siba Veloso diz:
110
rabeca também. Tentei buscar esses elementos, o que acho mais bonito, o que é que
todo mundo usa, que todo mundo gosta.
Ressaltar tem um sentido diferente de combinar e/ou fundir. A diferença, nesta atividade
é muito comum no espaço da chamada “world music”, amplamente aceita nos meios de
oral.
tradição rural e o urbano) ao mesmo tempo em que a descontinuidade entre ambos está presente. O
depoimento de Maciel Salustiano elucida um pouco esta questão quando ele diz:
A gente nunca teve um trabalho nem didático nem descritivo de cultura popular.
Descrevendo como muita gente faz, quando quer usar esta linguagem, e não tem
vivência nenhuma e aí pega e começa a descrever, aquela coisa vazia; a gente nunca
puxou muito pra isso.
111
Capítulo 6
avaliar a sua vivência musical. A discussão dessa questão é importante neste trabalho porque,
também, se revela como uma das formas por meio da qual é possível compreender-se o processo de
Este processo é informal e se efetiva numa relação quase indireta entre o mestre rabequeiro e
com um instrumento feito à imitação do que o mestre usava – tentavam, sozinhos, realizar os
S. Oliveira (1994: 15) relata um depoimento do rabequeiro Luís Paixão onde essa situação é
- Tu aprende a tocar isso, nego safado! Era o que ele dizia com eu. Eu tava um
negócio de dez ano, que eu comecei a tocar uma coisinha com doze ano.
E, assim, naquele tempo mais pra trás (...) era tudo brincando, batendo aquele
bombo, pandeiro, aquele chaco-chaco (...). Aí de vez em quando eles fazia um
intervalo e ia tomar aguardente (...). Eles pegava a rebeca, botava em cima da cama,
levava lá pra dentro, né? Eu espiava pra ela:
- É tão bonito! ... Aí eles lá tudo bebendo e eu... pequeno, né? Aí eu roubava de
dentro do quarto (...) pegava na rebeca. Eu ouvia o tom deles, sabe?
Artur Erminio, discorrendo acerca de como começou a aprender a tocar o instrumento, diz
que:
112
Eu aprendi num lugar chamado Caruçu, ali perto de Sapé [zona agrícola/canavieira
localizada a 80 Km. de João Pessoa/PB]. Mais ou menos eu tinha uns dez anos de
idade, era criança. (...) Apareceu um homem lá com uma rebeca, ele tocava e eu
ficava sempre olhando, procurando saber onde é que ele botava os dedos, fazia os
ton, afinava. Fui aprendendo.
Geraldo Idalino, ao dizer que começou a tocar aos cinco anos de idade, quando “... os dedo
ainda tava nascendo”, reitera o que disse Artur Erminio sobre o início da aprendizagem na infância
Foi com oito anos (...). Foi em Araçagi [cidade próxima a Sapé]. Eu via aqueles
homem tocar e fui sentindo gosto. Logo eu tava tocando no Babau, nos baile de forró
que sempre tinha no sítio45.
Em alguns casos, é ressaltado o fato de eles mesmos terem feito suas próprias rabecas ou,
provavelmente, construído instrumentos toscos numa imitação das rabecas que viam nas mãos dos
Aprendi eu mesmo, eu já nasci com aquela sina mesmo. (...) Eu nunca tinha visto um
músico que tocasse no sítio. (...) era adolescente de cinco anos de idade eu já tocava.
O primeiro instrumento quem fez fui eu mesmo. Nunca que vi antes. Fui pro mato,
cortei uma Imburana seca, lavei, cortei com um machado, ai fiz.
com a música na sua manifestação cotidiana, é um fato importante entre as camadas populares que
habitam as periferias dos centros urbanos ou nos vilarejos de interior. No caso da música de rabeca,
este é um aspecto que tem importância na diferenciação entre a antiga forma de transmissão deste
rabequeiros, se entrecruzam em suas memórias com aqueles nos quais têm os primeiros contatos
com o instrumento. Esse processo de educação informal, que interliga em um momento único a
45
Babau é como também são chamados os teatros populares de bonecos muito apreciados no interior nordestino,
principalmente em dias de feira. Alguns têm um enredo determinado, uma estória que se conta, mas, na maioria dos
casos, cada boneco ou dupla de bonecos, tem uma estória particular. O acompanhamento musical era feito por
rabequeiros ou sanfoneiros, pandeirista e zabumbeiro, que normalmente tocavam partes de danças.
113
ainda se mantém. Sem etapas claramente estabelecidas, este processo pode se iniciar a partir da
primeira grande “revelação” que cada indivíduo tem em relação à música e ao instrumento46.
contexto musical. A significação dada a este processo passa a consistir em um elemento do seu
complexo geral de identidade como músico e tem reflexos diretos nos comportamentos musicais e
A aprendizagem da rabeca que se processa através do ver, ouvir e tentar tocar sozinho
diminui a importância de distinção entre as pessoas envolvidas, ao passo que realça a importância
esses músicos perceberem-se como rabequeiros. É necessário compreender-se de que maneira uma
vivência é transformada em elemento de uma tradição, a partir da significação dada a ela. Pois,
tradição não consiste somente em fatos, objetos, lugar ou um estado em si, mas é um complexo de
sentidos que são coletivamente elaborados e comungados, em um determinado espaço e tempo das
Assim, a análise dos fatos vivenciados pelos rabequeiros tem sua importância, quando são
observados nas formas em que significações e resignificações foram empreendidas pelos indivíduos
e pela coletividade, nessa vivência. Diz-se isto na observação de que quando os indivíduos ou a
coletividade realizam, na memória de si, processos desta natureza – de referenciar a tradição a partir
46
A própria denominação de “brincadeira” dada à apresentação dos cavalos-marinhos e outros folguedos pelas pessoas
destas comunidades, guarda, em parte, uma relação simbólica e memorial com esta primeira forma de contato com a
música e o instrumento.
114
experiências e conhecimentos que, dentre outros, são os mais significativos e lhes fornecem um
lastro básico e coerente para a compreensão e formulação de sua tradição e de suas identidades.
Entre os rabequeiros que não nasceram nas áreas geográficas onde se encontram os antigos
rabequeiros, mas que foram em busca da música de rabeca nessas comunidades, a alusão à pessoa
manifestação musical e a outros meios de aprendizagem. Sobre isto, Siba Veloso diz que:
elaboração de sua identidade musical. A absorção de determinados aspectos de uma cultura musical
e, principalmente, o ato de assumir isto como algo seu, faz com que esse músico se identifique
como um rabequeiro – independente de não ter uma origem cultural nas comunidades onde se
115
Assim, a vivência cultural vem a ser um elemento importante na discussão sobre identidade
musical de um grupo ou pessoa. Mas essa vivência não pode ser abordada sem uma referência a
outras questões como os tipos de trocas simbólicas e a rede de relações sociais que estabelecem as
Um caso que demonstra como a abordagem isolada da vivência cultural não é elemento
seguro na análise da identidade de um rabequeiro é o de Geraldo Idalino. Ele teve uma vivência
bem mais ampla e duradoura no contexto tradicional da rabeca no Nordeste e, no entanto, não se
representa ou identifica verbalmente como rabequeiro. Deste modo, não é apenas a vivência em um
O mais custoso do instrumento é a afinação. A pessoa não afinando, ele não toca
(...). O problema é saber afinar, né? Fazendo a afinação dela, ele vai treinando,
pegando o tom da música, botando o dedo e aprende. Quando uma corda ta afinada a
gente sabe.
A comunicação verbal no ensino da rabeca é algo pouco usual entre os mestres rabequeiros.
aprendiz são, na maioria dos casos, indiretas e pouco demarcadas, vindo a ser especialmente
quando do ensino-aprendizagem com pessoas que vêm de outros contextos e com outras formações
e informações musicais. É o que aconteceu com Siba Veloso que, em depoimento, observa:
116
Eu tive alguns rabequeiros da mata norte que foram mais importantes no
aprendizado, mas é um aprendizado muito de ouvir e aprender, não é uma coisa de
faça assim ou faça assado. Foram pessoas de quem eu herdei parte do meu estilo de
tocar.
O tipo de relação mantida entre mestre e aprendiz dificulta mais a aprendizagem da afinação
do instrumento. Deste modo, depoimentos como o de João Alexandre quando diz que “... até hoje
eu tô procurando quem foi que me ensinou a afinação, o toque da rebeca, porque o cara só toca
Trechos de um depoimento de Luís Paixão a S. Oliveira (1994: 15) fornecem algumas pistas
acerca da consolidação deste processo. O rabequeiro relata que, escondido, pegava a rabeca do tio e,
- Eu duvido! Se você tocar um forró, eu lhe ensino a tocar. (...) Aí ele me deu e eu
toquei um chorão.
- Ah, o senhor bebendo mais Zé Aive e pai (...) e eu tocando lá dentro do quarto.
- Cabra safado!
- Afine, afine! Tã, tã, tã, vá pegando a primeira, viu? Tá bom aí... A outra... Tá
bom... bota no juízo! (...).
- Desafine!
Aí ele saiu.
117
Mas as interpretações de cada rabequeiro sobre o processo de aprendizagem da afinação
variam sutilmente. Geraldo Idalino, que usa tarrachas de cavaquinho no lugar das cravelhas de
madeira, demonstra ter uma idéia diferente acerca da dificuldade para aprender a afinação, ao dizer
que:
Afinar foi o mais difícil. Você sabe, naquele tempo o instrumento era de caravilha de
pau, quando afinava ela voltava. Hoje é com tarracha, é mais fácil. Pode tocar a noite
toda que não desafina mais.
tudo aquilo que é próprio a um contexto cultural para a mudança de uma parte do instrumento a
“caravilha de pau”, buscando a superação do dilema tradicional na sua opção pelas tarrachas. Todo
músicas, é desconsiderado por Geraldo Idalino, ao passo que os objetos modernos (como as
tarrachas) são entendidos como meios auxiliares para a continuidade da sua música de rabeca. Essa
é a tônica presente em todo o discurso desse rabequeiro acerca da sua condição e da condição da
música de rabeca.
ensino do violino, é comum que o aluno tenha, por um longo período, o instrumento afinado pelo
rabeca, é possível observar que eles a percebem como um instrumento mais difícil que outros, e que
apenas algumas pessoas possuem o dom para o manejo deste instrumento 47. Um certo grau de
47
A idéia presente no senso comum de que algumas atividades musicais sejam, também, resultantes de uma
intervenção sobrenatural é encontrada em diversas culturas e em outros momentos da história, como observa Nettl
(1983:28). Mas no âmbito da cultura popular isto não é um valor atribuído a todos os instrumentos ou
instrumentistas. À atividade do sanfoneiro, por exemplo, este aspecto não é muito enfatizado – talvez pela
popularização da sanfona em atividades de lazer ou pela própria construção industrial deste instrumento que, em
hipótese, retiraria dela o caráter mágico-simbólico que é atribuído por estas comunidades aos instrumentos que elas
mesmas constroem, fazem nascer. A rabeca e goza de um simbolismo especial destas comunidades – aquele onde
aspectos da compreensão de suas existências se mesclam com os da compreensão da existência de suas músicas.
118
especialidade cerca esse instrumento e instrumentista e a afinação vem a ser parte de um processo
de passagem e consagração, que se conserva nos sentidos de gozo e trauma na memória de cada um
dos rabequeiros.
própria formação ou informações teóricas que têm em música. Em seus depoimentos, deixam claro
que entendem a afinação como uma etapa de formação que, em sendo compreendida nos seus
detalhes, pode ser repassada a outros. Assim, Maciel Salustiano fala que:
Siba Veloso reitera que sua dupla vivência em situações de ensino-aprendizagem (em
Como eu já tinha conhecimento teórico, foi fácil entender que a afinação era em
quintas. Escutava uma gravação e já sabia a altura das cordas. (...) Meu aprendizado
foi oral, mas nem tanto também, porque eu tinha todo um lado formal já processado,
interiorizado que eu não tinha como abrir mão.
Tal como no caso de Geraldo Idalino, o entendimento diferente que têm esses novos
rabequeiros acerca dessa problemática tem reflexos nas suas idéias e atitudes acerca da transmissão
119
3. A transmissão do conhecimento musical.
Em amplos segmentos da nossa cultura, possuir o “dom” – entendido este enquanto uma
dádiva divina – é presumido como um requisito básico para quem queira lidar, principalmente, com
apenas com o instrumento ou com técnicas determinadas para tocá-lo. Isso acentua ainda mais a
Alexandre diz que ninguém nunca aprendeu rabeca com ele e que “... não vai aprender”, visto que
ele mesmo não teve ninguém que o ensinasse. Mas o fato é que esse tipo de transmissão do
Tem sido eficaz porque nos contextos onde se ocorria – até a formação da última geração de
rabequeiros à qual pertence João Alexandre, Artur Erminio, etc – havia a manutenção de um nível
básico de comunicação na cultura e a música tinha uma presença mais significativa e constante no
cotidiano das pessoas. Isto permitia aos jovens a oportunidade de apreciar a música com mais
freqüência e terem acesso ao instrumento – ou construírem o próprio como foi o caso de Artur
120
Como em todo processo dessa natureza, a significação dada ao “dom”, ao “segredo pessoal”
que cada um carrega consigo, como dizem os próprios rabequeiros, é mais complexa. Neste sentido,
é completamente coerente, embora pareça controverso, o seguinte entendimento que tem João
Alexandre:
É sozinho mesmo, e só aprende se nasceu praquilo. Se nasceu pra tocar, toca, se não
nasceu não tem jeito, ele morre com cem anos com ela na mão e não aprende. Quem
descobre o segredo da pessoa é a pessoa mesmo. Se nasceu pra tocar rebeca ele
descobre, que nem eu descobri o meu, e muitos outros.
Depoimento semelhante foi registrado por Rosemberg Cariry (encarte do CD Cego Oliveira)
onde Cego Oliveira demonstra comungar esta visão acerca das origens do saber musical dos
Quando foi no ano de 1929, um tio meu comprou e me deu uma rabequinha. Bem, eu
fui tentando, tentando, comecei a aprender. (...) Aí Nosso Senhor me deu este dote de
eu pegar em cantoria. Meu irmão sabia assinar o nome e lia para mim os versos dos
rumances... Lia uma quadra e eu decorava. Eu cheguei a cantar mais de setenta e
cinco rumances.
compreensível e aceitável que o “dom”, a “dádiva divina” seja entendida como algo com qualidade
superior à prática e exercício diário com o instrumento – pois sem o “dom” esta própria prática seria
vã –, o que torna mais sólida a coerência do argumento desse rabequeiro. Tal peculiaridade na
compreensão do real se demonstra mais profunda, quando se observa que Cego Oliveira confere
qualidades distintas para o fato de tocar a rabeca e o de improvisar numa cantoria. A esta última,
disponível para a formação de esquemas de interpretação musical (de ferramentas simbólicas necessárias à
decodificação do objeto musical e à construção do saber) é ouvir e fazer música diariamente.
121
João Alexandre tocando no cavalo-marinho infantil do Bairro dos Novais em João Pessoa. Talvez
uma possibilidade de preservação do folguedo. Será que da música de rabeca?
Para os que fazem a cultura desses contextos, essa forma peculiar de transmissão indireta do
conhecimento – forma esta que conduz a uma espécie de aceitação desse conhecimento, enquanto
algo metafísico, algo que se “auto-reproduz” sozinho sem a ingerência das pessoas, embora seja o
próprio ser-no-mundo delas – parece ter um valor necessário e identificador no modo de “fazer” a
cultura.
transmissão do conhecimento: Se assim, e com este dom, eu aprendi, assim têm que aprender os que
de não-intervenção nesse aspecto mágico-simbólico, por meio do qual - diz-se isto em hipótese - se
João Alexandre ressalta um outro aspecto deste conhecimento: o que diz respeito ao ato de
tocar como sendo a própria essência do ensinar ou aprender. E diferencia isso, dos acontecimentos
122
Como é que eu vou ensinar, pegar na sua mão pra tocar? Que dizer que quem vai
tocar sou eu! Ensinar é como que seja uma professora ensinar pro aluno fazer uma
cópia, pega até no dedo; porque tem delas que pega até no braço do aluno pra
escrever. E aqui num pode fazer isso, não tem jeito que dê jeito. A única coisa que
tem é o amigo ver e prestar atenção. Mas não aprende se não nasceu pra tocar.
Neste depoimento, ele busca enfatizar que o tipo de saber e fazer musical na tradição da
rabeca possui sua própria forma de transmissão, e que um outro tipo de procedimento não pode
simplesmente ser transplantado para este, sem que o núcleo dessa cultura se desorganize.
Artur Erminio aponta outra questão importante: a particularidade da transmissão oral sem
Pra cavaquinho, violão o senhor vai lá na casa compra um livrinho que ensina tocar.
Isso aqui não tem livro, aquela escala como se diz. Todos instrumento são mais fácil
que esse. Esse aqui é um instrumento jogado, porque não tem quem queira. Pra quê?
Pra pegar e não fazer nada!
marinho e a música dos rabequeiros passam a ter menos presença no cotidiano das pessoas, o que se
verifica atualmente nas periferias dos centros urbanos, onde se localizam essas manifestações
musicais. Com o atual processo de “abafamento” das manifestações musicais populares e com o
avanço dos meios de comunicação de massas no interior do Nordeste, a música se manifesta cada
vez menos entre as pessoas, ao passo em que entre essas mesmas pessoas ainda se mantém a idéia
levam a que este não mais ofereça as condições para que os jovens possam desfrutar dessa música
esses contextos estão habituadas ao surgimento “natural” de indivíduos com capacidade de tocar
rabeca e não ao ensino dirigido/tutorial do instrumento. Esse processo sempre foi eficaz, enquanto
123
era parte de um contexto que na sua amplitude tinha o equilíbrio necessário para fazer esses
que estava culturalmente estabelecido. Esse mecanismo próprio e legítimo dessas comunidades foi
comunicação de massas, entre outros, e a essas comunidades não foram possibilitadas as condições
mínimas para estruturar um outro mecanismo que lhes possibilite dar continuidade à transmissão de
sua cultura.
mas mantém isoladamente a cultura da rabeca na sua atividade mambembe, transfere para o âmbito
do talento individual inato a sua solução particular para tal dilema da cultura. Ao afirmar que uma
pessoa “... toca, se tiver interesse, ele toca. Mas tocar que nem eu nunca mais. Morre de véi e num
toca”, ele está ressaltando a importância do interesse como motor da aprendizagem e possibilidade
Buscando entender esse conhecimento como isolado de seu contexto gerador, Geraldo
Idalino está refletindo sobre a sua vivência musical de “ovelha desgarrada” – que agora se encontra
com o rebanho também desgarrado – pelo processo de desagregação e desgaste que se instaurou na
Mas talvez devido às suas próprias habilidades técnico-musicais (que são muitas) e pela
pessoalidade que confere a todos os acontecimentos ou idéias, esse rabequeiro atribui ao saber as
mesmas peculiaridades da biologia humana: as de desgaste na sua reprodução. Assim, para ele, os
grandes mestres serão sempre pessoas do passado. Mas nessa expressão de eterna melancolia
cultural de indivíduo que se sente isolado do seu “ninho cultural”, ele está, também, implicitamente
124
afirmando que a cultura da rabeca já foi algo de um passado que se desgastou e agora agoniza no
cultural tradicional da rabeca aqui no Nordeste remete Geraldo Idalino a uma postura anti-histórica;
requerida pela cultura de massas – contexto terminal do qual, infelizmente, não conseguirá se
inserção nas “modas” de cada época, sendo esse o fio condutor interno que impulsiona a sua busca
centros urbanos, Shiloah (1986: 91-92) examina um tipo de músico – e de identidade musical – que
tem semelhança com o que aqui é discutido sobre as concepções e procedimentos musicais de
Geraldo Idalino. Esse autor diz que esses músicos têm traços comuns no que diz respeito ao fato de
“... serem condicionados pelo brilho dos refletores ou o esplendor da publicidade nos centros
urbanos”; que aspiram “... ser reconhecidos como artistas, conforme as normas estabelecidas” e
buscam “... ultrapassar as barreiras de sua formação tradicional” nessa tentativa. Mas que “... têm
externa”. Estes são casos estudados cuja problemática é bem próxima do conflito que se estabelece
Por suas próprias características de formação, os jovens rabequeiros têm posturas um pouco
diferentes em relação à questão da transmissão do conhecimento. São posturas diferentes, mas que
se aproximam da mesma compreensão que têm os antigos rabequeiros sobre o assunto, quer seja, a
49
Para uma distinção entre conceitos de cultura popular e cultura de massas, uma indicação preliminar é o primeiro
capítulo da obra de Bosi (1989).
125
de que aprender rabeca implica em conviver com (conhecer) a manifestação musical na sua
totalidade.
teoria musical no Conservatório Pernambucano de Música. Siba Veloso partiu de uma formação em
um curso superior de música para o encontro da música de rabeca. Maciel Salustiano admite a
possibilidade de um método para ensinar rabeca fora do contexto da comunidade, mas entende que
a forma mais eficaz de ensino-aprendizagem é aquela na qual ele esteve envolvido. Assim fala:
Quando as pessoas vêm ter aula comigo eu não tento muitas coisas modernas. Claro
que eu mostro pra eles algumas coisas que eu descobri, mas eu digo, não, a forma de
aprender é essa que eu aprendi [a dos rabequeiros tradicionais]. Eu quero que vocês
aprendam também dessa forma. E o prazer que eu tive de aprender com outros
mestres, eu quero que vocês também procurem aprender com os mestres antigos.
Mas a transmissão do saber fora do contexto da música tradicional não é tão importante para
Por outro lado, pela forma como eu aprendi, eu dou muito valor a esse aprendizado
que o rabequeiro fala, o aprendizado da vivência. Que dizer, tem um contexto onde o
cara de pequeno ta ali vendo, ouvindo. Eu acredito muito e valorizo esse processo de
vivência que foi o que eu tive; por mais que tivesse esse lado de compreender [a
formação teórica], pra mim foi muito mais vivência que outra coisa.
Se a separação entre o conhecimento musical e o seu contexto é uma operação que Geraldo
Idalino usa para realçar o seu talento individual, como fonte de todo o processo de conhecimento, o
contexto é entendido como fonte nuclear do conhecimento para Siba Veloso e Maciel Salustiano
que, de outra parte, não desconsideram a possibilidade de uma ação estruturante do sujeito nesse
contexto50.
50
A reificação do indivíduo concorre para uma postura idealizadora da cultura onde as forças mentais teriam a
capacidade, per si, de mudar e estruturar a realidade. A reificação do contexto conduz à negação da capacidade
estruturadora do indivíduo e a colocação da realidade social como uma entidade acima das próprias relações
interpessoais, como é postulado por Durkheim (1980: 175) ao se referir à sociedade como um “ser especial”. Entre
os novos rabequeiros observa-se uma busca de compreensão da dialógica entre a qualidade do indivíduo como um
ser culturalmente estruturado, na enculturacão, e estruturante na possibilidade de interferir no processo de
transmissão da cultura.
126
O que estes rabequeiros buscam ressaltar é que não é simplesmente um conhecimento
técnico da rabeca que importa ser transmitido, mas um saber e fazer musicais que são de fato
indissociáveis, na totalidade cultural, do contexto. Assim, se é possível ensinar rabeca fora desse
contexto, a essência do aprendizado – e por evidência a essência da própria música de rabeca – não
o é. Ou seja, somente a vivência é capaz de fazer alguém absorver o tipo de expressão musical
própria desse contexto. E esta concepção da música é diametralmente oposta à de Geraldo Idalino
que, tomando o todo pela parte e resumindo a música ao instrumento, se desprende e a desprende de
consistem num eixo central da cultura da rabeca e são elementos importantes para a discussão dos
contornos de suas identidades. Num depoimento de Siba Veloso, esta afirmação anterior parece se
tradicionais tornam-se cada vez mais difíceis (na medida em que as condições necessárias para a
transmissão nos próprios contextos são parcas), uma possibilidade de manutenção dessa música, na
sua transmissão às novas gerações, teria que vir de fora desses próprios contextos.
música dos jovens rabequeiros urbanos – música esta que não é apenas uma reprodução urbana
daquilo que no contexto de origem é realizado. Estas mesmas alterações do saber e fazer operadas
por jovens rabequeiros urbanos permitem não apenas uma renovação dos meios e das concepções,
mas funcionam, neste caso, como reforço para a própria continuidade da tradição.
127
3.3. Três formas de transmissão deste conhecimento.
Uma, onde músicos ligados a setores culturais distintos daquilo que se pode entender como sendo o
ambiente rústico, rural, da cultura de rabeca – como é o caso de Siba Veloso, Luismario Machado,
etc – que por uma série de fatores foram ao encontro deste conhecimento musical tradicional e
tentam uma incorporação dele. Neste processo, ocorre a inevitável adição, à música de rabeca, de
elementos musicais trazidos em suas bagagens culturais, embora o fato imperioso para eles seja a
manutenção da maior parte dos aspectos centrais e basilares constituintes da tradição dessa música.
Outra forma onde este conhecimento encontra brechas para a sua continuidade se verifica
em casos como o de Maciel Salustiano. Este último é integrante de uma família de rabequeiros; tem
suas principais vivências musicais forjadas num dos contextos mais tradicionais da música de
rabeca no Nordeste, mas, por circunstâncias diversas, convive na margem cultural entre este
principalmente a adoção de gêneros ou aspectos destes, como modelos para a criação ou execução
musical. Também aqui se mantém a continuidade dos aspectos centrais do núcleo originário da
música de rabeca. Este movimento apresenta muitas semelhanças com o que foi discutido
anteriormente.
Uma terceira forma de transmissão é aquela cujo movimento se inicia dentro do próprio
contexto originário de rabequeiros, mas com vistas à superação deste próprio núcleo de
conhecimento. É o caso de rabequeiros como Geraldo Idalino, cuja entrada no mercado urbano de
shows, se deu em um momento da cultura nordestina (a década de 80) onde a busca de aspectos
cultura.
128
A convivência, por algumas décadas, na margem entre a cultura tradicional da rabeca e
segmentos de uma cultura urbana conduz este rabequeiro a um gradativo abandono de alguns
sonoridade a que anteriormente se fez referência, que são abandonadas por Geraldo Idalino, em
troca de uma sonoridade mais “clara”, próxima à do violino, instrumento que, talvez, assegure mais
A opção – que se constrói ao lado de algumas imposições culturais dos segmentos urbanos
nos quais transita – por agregar alguns novos elementos de conteúdo e estilo à sua música, assume,
neste caso, a qualidade de negação de outros elementos anteriores próprios à sua formação de
rabequeiro.
Nos três casos, o que se observa é que atualmente ocorrem processos de continuidade e
pode ser verificado, tanto na observação das transferências, agregações e abandonos de conteúdos
É possível encontrar antigos rabequeiros que não mais tocam rabeca, embora ainda as
possuam, e não se consideram mais rabequeiros – mas ainda são considerados como tal pelos
moradores mais antigos da região onde vivem; jovens instrumentistas formados em conservatórios
que buscam os elementos objetivos e subjetivos da cultura de rabeca, mas não parecem estar
Idalino que, em alguns casos, é socialmente identificado como um violinista “exótico” ou como um
rabequeiro virtuose, e que se identifica, ele próprio, na maioria das vezes, como um violinista.
Na formação de identidade de Geraldo Idalino reside um fato positivo. O caminho que ele
traça em busca de uma identificação como violinista, talvez se constitua, para ele e para os
membros de sua comunidade, em motivo de orgulho, pelo fato de ter se formado músico e com tais
129
qualidades, em um ambiente inadequado e sem os equipamentos culturais necessários a essa
formação.
circunstâncias adversas, as do circuito urbano de shows e da música popular veiculada nos meios de
comunicação, que gradativamente impõem a necessidade de que ele escamoteie a sua identidade
primeira como rabequeiro e assuma a de violinista, para que mantenha um nível razoável de
convívio e aceitação pública em centros urbanos mais complexos como as grandes cidades onde ele
Assim, no seu trajeto de vida, ele está demonstrando uma das múltiplas formas de
os segmentos das camadas populares ante os segmentos hegemônicos e dominantes da cultura, qual
Mas a tradição encontra caminhos os mais sinuosos para se manter ante as estreitas linhas
retas traçadas pela indústria cultural na atualidade. No caso em discussão, é provável que a
manutenção desta música venha a resultar, também, das investidas externas aos próprios contextos
tradicionais – investidas de pessoas ou grupos que buscam retomar e re-significar essa música. Este
130
Capítulo 7
diminuído nas últimas décadas. Não há mais registros de bailes de forró tocados por rabequeiros, de
rabequeiros cantadores ou repentistas como foram Fabião das Queimadas e Cego Oliveira, nem da
participação em teatros de bonecos, uma das primeiras atividades de João Alexandre como
rabequeiro.
demonstra uma certa melancolia, quando recorda das suas atividades como rabequeiro no interior
Eu toquei muito nos Reisados (...). Comecei a cantar nas feiras... eu cantava em
casamento, em batizado em aniversário, em festa de renovação dos santos e até em
sentinela de defunto. (...) Quando eu era novo era bom demais51.
A maioria dos antigos rabequeiros não encontra mais espaço para atuação e, literalmente, já
encostou a rabeca em um canto da parede, como são os casos de Manoel Nascimento do município
Alguns rabequeiros, como Artur Erminio e João Alexandre, ainda têm abrigo em folguedos
como o cavalo-marinho, mas suas atividades correm o risco de se extinguirem junto com os
próprios folguedos. Estes folguedos ainda se mantêm escassamente pelo Nordeste e, na Paraíba, são
encontrados apenas nas periferias de alguns centros urbanos, para onde foram levados por pessoas
51
Para um conhecimento de tipo já extinto de atividade de antigos rabequeiros que cantavam romances usando apenas
a rabeca como instrumento de acompanhamento, escute-se a faixa 16 do CD que consiste numa gravação do Cego
Oliveira realizada por Rosemberg Cariry.
131
Mas, mesmo a partir desses folguedos, não há uma disseminação da rabeca para as novas
gerações. Muitas crianças e adolescentes dessas comunidades, onde ainda há grupos de cavalo-
marinho, tocam pandeiro, zabumba e outros instrumentos de percussão. Mas não se registrou, nesta
pesquisa, a ocorrência de um aprendizado de rabeca por parte dessa geração. Ou seja, um estado de
terminalidade parece configurar-se para a música de rabeca no contexto dos folguedos tradicionais.
Há algumas décadas, na zona rural, havia um maior intercâmbio entres esses músicos,
conforme depoimentos deles próprios. Eles relatam que era comum rabequeiros tocarem em várias
cidades e poderem escutar uns aos outros, o que consistia em um forte estímulo para a manutenção
e renovação da música de rabeca. O atual isolamento desses poucos músicos impede que se ativem
Artur Erminio e João Alexandre, que são os dois rabequeiros com maior atividade na região
litorânea da Paraíba, se desconhecem e relatam que hoje em dia só no interior é que ainda pode
continuidade no espaço da cultura popular urbana. Ora, se estes folguedos atualmente passam por
uma grave restrição de manifestação, no âmbito dessa cultura, mais grave ainda se torna a
Por essa razão, os depoimentos de Artur Erminio e João Alexandre, acerca da atual situação
da música de rabeca, sempre se reportam à própria crise desses folguedos. Quando discorrem sobre
as transformações culturais responsáveis por seu declínio, eles sempre apontam o surgimento dos
novos meios de comunicação e de diversão como os fatores que desestabilizam a manutenção dessa
Hoje tem radiola, o som, o rádio. (...) Tá desaparecendo; é difícil existir uma rebeca
porque não existe mais cavalo-marinho, entende? Aqui não, só existe pra o interior.
Só se vim do interior praqui.
132
O rabequeiro Artur Erminio, no alto de seus setenta anos, toca baixinho a rabeca em sua casa.
Talvez seja este o único lugar onde seguramente continue a manter importância como músico.
compreensão para a diminuição atual de sua atividade como rabequeiro, fala que:
A gente quase não recebe mais encomenda de cantoria. (...) Antes de chegar esses
programas de rádio, esses violeiros modernos, eu era convidado pra tudo que era
canto, pra toda a região.
Esses rabequeiros têm consciência de que esta crise na música tradicional se deve, também,
às mudanças ocorridas no próprio gosto musical do povo. Artur Erminio lamenta que:
133
O povo não assiste mais, querem ir prum som, um baile. Não vai deixar de ir prum
conjunto pra ir prum baile de rebeca [embora eles não existam mais]. Essas festas de
rebeca caiu de uso, sabe? No interior era todo sábado, muito animado. Porque não
havia outra direção sabe? A direção que existia era o baile de rebeca, ciranda, coco
de roda era o que havia. O tempo daquelas brincadeiras acabou-se.
rabequeiros. Artur Erminio expressa isto, ao comentar que “... hoje é pior. Só não é pior pra esse
povo que é moço, que gosta de fuluência, que vai brincar; pra quem vive feito um bando de bicho”.
O povo não quer assistir um cavalo-marinho. Quem vai deixar de ir prum som pra
assistir um cavalo-marinho. Um cavalo-marinho vai passar a noite em pé somente
olhando prumas três ou quatro figuras. (...) A garotada não quer ir mais; só querem
esse negócio de som, que é bacana.
dramáticas que não solicitam uma participação direta do público, o que contrariamente acontece
com a ciranda que, sem esse envolvimento, não ocorre a contento. No caso destas danças
dramáticas, apenas são requeridas do público uma compreensão mediana do enredo e da complexa
simbologia de que são portadoras, para que se realize uma interação durante a apresentação.
marinho, que contêm muitos elementos da cultura rústica e rural, e com a própria reorientação dos
gostos e sentidos culturais das camadas populares, a partir de sua interação com os meios de
trocas simbólicas entre a manifestação e o público. E que o “olhar” deste último tenha agora apenas
reis sobre questões gerais dos folguedos e sobre a rabeca, observou-se que boa parte delas não
conhecia nem o enredo dos dramas que estavam sendo encenados, nem o nome dos instrumentos
134
tocados pelos rabequeiros. Apenas as figuras brincalhonas do Mateus e da Catirina é que realmente
conseguiam uma interação maior com as pessoas, principalmente com as crianças. No restante, as
as “brincadeiras”.
O que de fato acontece no contexto destas manifestações nos bairros suburbanos, é que estes
seja, as pessoas somente os apreendem enquanto cenas isoladas, passagens de figuras, de bichos,
sem um sentido claro que as interligue. As apresentações destes folguedos foram gradativamente se
fragmentando, fato este que pode ser comprovado no depoimento dos próprios mestres do cavalo-
marinho e de rabequeiros relatando que, antigamente, na zona rural, uma apresentação durava toda
uma noite e dezenas de personagens passavam pela cena. Atualmente, apenas umas poucas
personagens são apresentadas e a brincadeira não consegue se prolongar por mais de uma hora, sem
importante nesse contexto, mas sua importância nunca deve ser confundida ou maior que a dos
realização musical dos mestres. Esta inventividade nunca deve sobressair-se à linha melódica que
Em algumas conversas com o mestre Pirralhinho (José Vicente do Nascimento Pereira), com
mestre Gasosa e com o mestre João do Boi, eles demonstraram um certo descontentamento em
relação a rabequeiros que não “acompanham direito” as músicas do folguedo. Pôde-se observar que
suas visões sobre o acompanhamento “mal feito” da rabeca estão, em alguns casos, também
dirigidas às intervenções criativas de alguns rabequeiros; intervenções estas que podem não ser, em
135
alguns momentos, interessantes para os mestres, por não coincidirem com suas concepções acerca
Pernambuco, deixa entender que tanto a hierarquia político-musical existe nos folguedos, quanto ela
revela alguns aspectos musicais importantes. Sobre a relação entre o rabequeiro Manoel Pitunga e o
Pitunga e Inácio parecem ter nascido para tocar juntos. A música de um completa a
do outro e o entendimento é perfeito. Pitunga puxa as toadas na ordem que Inácio
mais gosta e julga correta, e seus baianos representam o necessário apoio para os
improvisos do Mestre.
A amplificação sonora na música destes folguedos é um outro caso onde esta hierarquia se
instrumentistas ficam com outro. Como os percussionistas naturalmente tocam em um nível sonoro
mais alto que o rabequeiro, tecnicamente falando, eles não necessitariam de amplificação sonora.
Mas os mestres e foliões precisam da clareza rítmica para as danças e, neste caso, como a rabeca
apenas duplica a voz do mestre, sua amplificação em um microfone isolado não é muito exigida
pelos mestres.
O mestre Gasosa (José Raimundo da Silva), do cavalo-marinho de Artur Erminio, diz que já
utilizou fole de oito baixos e viola nordestina no seu grupo. Atualmente, usa uma sanfona
juntamente com a rabeca e diz que a sanfona é “... uma beleza pro grupo”. Talvez diga isto, dadas a
potência sonora e as possibilidades de harmonização desse instrumento. O mestre João do Boi (João
rabequeiro que acompanhava bem as músicas, dizia que este era tão bom, pois “... tocava bem como
uma sanfona”.
Se o volume sonoro natural da sanfona parece não ser um concorrente para esses mestres, a
demasiada amplificação sonora da rabeca poderia vir a “soar” como uma voz concorrente.
136
Como discutido anteriormente, no início da brincadeira, é costume os instrumentistas
tocarem alguns baiões e, neste momento, o mestre verificar se a altura da afinação da rabeca está
rabequeiro no início de cada toada, ficando depois perto dos percussionistas o que possibilita uma
audição “estereofônica” da melodia cantada por ele e tocada pelo rabequeiro. Uma relação de
apresentação.
O Mestre João do Boi se localiza de modo a escutar bem a percussão e, ao mesmo tempo, oferecer
uma audição “estereofônica” da combinação que faz com o rabequeiro.
mestre em relação ao rabequeiro. Nos primeiros contatos mantidos com Artur Erminio e João
Alexandre, ambos os mestres de seus grupos fizeram questão de participar das entrevistas, mesmo
sabendo que se tratava de uma pesquisa sobre a música de rabeca; apelaram para que as entrevistas
se realizassem em suas casas, em suas presenças, e sempre buscaram uma participação ativa e direta
137
nas discussões. Isto demonstra a compreensão destes mestres de que a música de rabeca não está
dissociada do restante dos acontecimentos do folguedo e que a responsabilidade maior por estes
acontecimentos é deles.
Mestre Gasosa retoma aqui uma das habituais comunicações com o rabequeiro, a cada início de
uma toada.
enfaticamente se aproximavam dos rabequeiros por mais vezes do que habitualmente, como
rabequeiros, como se estes já não as soubessem há décadas. Ocorria, nestes casos, uma busca pelos
conforme eles, realidade político-musical daquele contexto; de darem legitimidade musical ao status
político que os mestres possuem no grupo e conseguirem com que isso fosse transmitido para além
daquelas fronteiras.
Em diversas entrevistas, estes mesmos mestres sempre fizeram questão de enfatizar que
eram eles quem ensinavam todas as músicas para os foliões, inclusive os rabequeiros. Isto é um fato
138
e uma verdade histórica que os mestres, quando em contato com alguém estranho ao contexto,
precisam deixar que fique claro. São aspectos da estrutura político-ideológica desses contextos que,
Diz-se isto, tomando como base as considerações de Gerard Béhague de que a posição
como as suas estruturas hierárquicas e posturas políticas são importantes para a observação de
Béhague (1992: 7) entende que política consiste numa “... visão teórica básica da ordem
social em que se incluem as relações de poder entre os atores sociais de um grupo determinado e as
funções destes atores na rede de interação”. Isto conduz ao entendimento de que todas as atitudes
nesses contextos estão, também, permeadas pelas relações políticas estabelecidas internamente entre
os participantes dos folguedos e as comunidades ou grupos sociais mais amplos com os quais
conta os “gostos” e interesses musicais dos rabequeiros, dos participantes dos grupos, dos mestres,
apresenta alguns aspectos que merecem aqui ser abordados. Os mestres e alguns participantes dos
folguedos consideram os rabequeiros como sendo agentes dotados de uma certa especialidade, e que
139
Aspectos desta especialidade são observados por Setti (1985: 134) entre os Caiçaras de
Murphy (1997: 156), em conclusão semelhante à de Kilza Setti, afirma que para a
mais difícil dos instrumentos (...), tanto por causa da sua técnica de execução, quanto pelo amplo
Há indícios de que para essas pessoas, apenas tocar um instrumento não é significado direto
de posse de dom ou de qualidades especiais, mas essas qualidades parecem ser atribuídas apenas a
alguns músicos. Esta importância está historicamente associada ao fato de a rabeca não possuir
trastes e de ser tocada com um arco, o que torna o seu manuseio mais difícil. De outra parte, este
pessoas “cultas”.
desse conceito sobre o rabequeiro. A produção artesanal da rabeca, o fato de ela ser feita pelo
próprio rabequeiro ou por outra pessoa da comunidade, confere à mesma e a quem a toca uma
Aos instrumentos “paridos” pelas próprias pessoas e nos meandros das suas culturas, parece que a
eles se atribuem uma “aura mágica”; uma qualidade de “ser vivo”, por terem nascido da própria
alma popular em seu encantamento com a natureza. No caso da rabeca, as árvores, as madeiras; mas
outros objetos naturais como peles e ossos, por exemplo, são também “vivificados” quando
52
O termo violino se refere, no trabalho desta autora, ao "violino caiçara", ou rabeca. Ambos os termos são usados
para designar o mesmo instrumento na comunidade pesquisada.
140
Embora o elemento mágico-simbólico costume ser atribuído a determinados instrumentos
musicais que são utilizados em rituais religiosos, também se encontra sutilmente presente no caso
da rabeca, principalmente nos depoimentos de pessoas mais idosas, que mantêm algumas tradições
Esse tipo de simbolização de alguns objetos culturais é também um sinal de preservação, nas
existência espiritual/cultural. A música, talvez por seus caracteres peculiares, parece ser um espaço
simbólico onde, em todas as culturas, esse fenômeno ocorre com mais evidência.
referem à música da rabeca. É o caso de Manoel de Carvalho – citado em Pimentel (1978: 3) – que
numa alusão aos sentimentos populares ante a música da rabeca em um festejo realizado em
E no entender daqueles fiéis simples, os dois apóstolos [São Pedro e São Paulo]
abençoam, rindo, encantados pela audição da barcarola e da rabeca, a satisfação
inocente que lhes vai na alma.
referência anteriormente feita à música de rabeca e ao rabequeiro se contrapõe uma outra, que está
presente entre os adolescentes das comunidades onde esta música se mantém. Para eles, a rabeca e o
rabequeiro têm apenas uma presença decorativa nos folguedos; o rabequeiro é visto como um tipo
exótico; um “velho” tocador de um instrumento barulhento que não tem nenhuma importância para
Nestas comunidades, muitas crianças sabem tocar pandeiro, triângulo e outros instrumentos
de percussão, mas não se constatou que nenhuma delas esteja aprendendo a tocar rabeca. Para os
jovens destas comunidades, a rabeca e o rabequeiro sobrevivem como agentes ou objetos que não
têm “funcionalidade” ou “utilidade” à cultura do dia-a-dia. Sua atividade é vista apenas como uma
brincadeira dos mais velhos, que estão para morrer, afinal de contas.
141
2. A perspectiva da música de rabeca nos “conjuntos de forró”
como Nelson da Rabeca, Geraldo Idalino e seus conjuntos de forró. Diz-se conjunto de forró,
mesmo que estes grupos não toquem apenas forró, porque a formação instrumental, o tipo de
atuação do rabequeiro, as intenções dos músicos e o produto requerido pelos consumidores são
comuns ao que, na mais forte tradição musical nordestina, se instituiu como tal.
No tipo de conjunto musical que eles mantêm o rabequeiro atua como solista ou
alguns casos, são instrumentos acompanhantes. Embora com mudanças de repertório, de contexto
cultural e espaço de atuação, esse tipo de conjunto consiste na continuidade da antiga tradição
interiorana, já dada por extinta neste ambiente, onde o rabequeiro era solista e animava os bailes nos
No atual espaço urbano, Geraldo Idalino e Nelson da Rabeca são os líderes de seus
conjuntos. Mas esta condição não consiste em uma continuidade da prática tradicional e sim por
exigência do público consumidor, que nem sequer tem conhecimento da tradição interiorana.
Esse tipo de formação instrumental, conjunto de forró, sempre teve no sanfoneiro o seu
personagem principal, mesmo nos antigos bailes do interior. Os rabequeiros também eram
condutores desses conjuntos, mas nunca foram os privilegiados ou únicos. Atualmente, conjuntos
com esse tipo de proposta musical permanecem, porém com muitas modificações, principalmente
É provável que o público urbano que consome a música de conjuntos de forró com
rabequeiro, assim se comporta não por buscar a manutenção do tipo de grupo musical, mas a pessoa
e símbolo do rabequeiro. Ou seja, estes conjuntos de forró se mantêm no contexto onde atuam, a
partir da maior visibilidade que é dada ao rabequeiro. As pessoas de classe média, com formação
142
universitária e num espaço onde se cultua a MPB53, que vão assistir aos shows destes conjuntos,
Esse público identifica e representa o rabequeiro enquanto uma pessoa idosa, advindo da
que conseguiu aprender a tocar um tipo rústico de “violino” que ele mesmo construiu. Um misto de
admiração e curiosidade ante o exótico e rústico (o tradicional) estimula estas pessoas, ao mesmo
tempo em que é um alento para a continuidade de suas “lutas” particulares pela manutenção e
preservação das “verdadeiras” tradições do nosso povo. O rabequeiro, ali naquele palco, é um
símbolo de resistência cultural. É um agente cultural que conseguiu não se deixar dizimar pela
cultura de massas, atravessar as margens do seu núcleo e se estabelecer em um outro espaço sócio-
cultural.
Motivado por esses sentimentos e idéias, esse público centra suas atenções na personagem
do rabequeiro e não na cultura musical da rabeca. Mas exige, direta ou indiretamente, que algumas
mudanças sejam realizadas na sua atuação para que a aproximação se dê a contento e que outras
mudanças não sejam permitidas – para que a “tradição”, também vista como algo distante, assim se
pelos rabequeiros.
e a música de Geraldo Idalino é um bom exemplo disso. A sua música demonstra que ele seguiu
compondo, conforme lhe solicitavam os gostos de cada época ou o ambiente cultural onde buscava
se estabelecer como músico. Suas composições inicialmente são de forrós, choros e sambas, que
eram gêneros amplamente cultivados nos cabarés – as únicas casas de show de muitas cidades nas
53
Como MPB busca-se entender o tipo de proposta e de consumidor musical gerados na música popular urbana
produzida no Brasil a partir da década de 50 com a bossa-nova, os festivais, a música de protesto, o tropicalismo,
etc. Para um melhor entendimento desta questão indica-se a leitura de Napolitano (1998: 92-105).
143
prioritariamente de forrós no estilo do que é produzido por mercadores de música, mas que lhe
musicais advêm de ações geradas a partir de processos internos e externos de identificação cultural
de cada grupo ou indivíduo. Para Blacking (1986: 3), mudanças musicais “... são resultantes de
decisões tomadas por indivíduos sobre o fazer musical e música ou sobre uma prática social e
cultural, na base de suas experiências de música e vida social e suas atitudes para com elas em
capacidade de controle dos próprios rabequeiros sobre elas. Aqui o pacto se quebra e um dos grupos
pactuantes assume a força do destino do outro, sem uma consulta prévia ao primeiro.
O que não deve ser modificado para este público são aqueles aspectos básicos de identidade
amplificador, não importa muito para o público; mas se um jovem músico estiver tocando numa
rabeca, ele terá que “rasgar” muito o seu som, e por muito tempo, até que uns poucos passem a
Este público entende a rabeca como um violino rústico, mal-feito, que deve ser mantido
dentro dos limites e “respeito” que ele mesmo impõe à relação com as músicas tradicionais. Assim,
quando comparada ao violino, a rabeca sofre uma apreciação sutilmente negativa, ao ser observada
na cultura rústica do rabequeiro um aspecto positivo, que deve ser mantido sem nenhuma mudança.
Isto também conduz a que rabequeiros como Geraldo Idalino passem a tocar num violino
comprado em loja ou a que Nelson da Rabeca e Manoel Pitunga tenham as suas rabecas compradas
como artigos pitorescos que, em muitos casos, se destinarão à decoração de salas e não a servirem
144
Pela sua idade, origem geográfica, cultural e social, estes atores sociais servem para o
grande público urbano como símbolo de identificação daquilo que possa ser um rabequeiro
tradicional. Acontece que este público possui apenas mecanismos superficiais de referência e,
assim, tende a resumir o corpus identificador da cultura musical da rabeca e do rabequeiro apenas a
Esta complexa situação em que se encontram Nelson da Rabeca e Geraldo Idalino, leva seu
público a assumi-los pela sua rusticidade, mas também a que eles próprios passem gradativamente a
Pernambuco, Geraldo Idalino diz que “... essa turma de véi é tudo fraco de rebeca. Eles ficava tudo
Se, para rabequeiros como Artur Erminio e João Alexandre, os amigos de bairro são a sua
platéia direta e mais próxima – embora escassa e rareando, como eles reclamam –, a convivência
com um outro tipo de público, que pode pagar mais ou acolher melhor, leva Geraldo Idalino a um
abandono dos “fãs” que possui no bairro onde mora. Ele afirma que “... não, eu não toco aqui pro
pessoal do bairro. Só alguma vez, quando doutora Lúcia chama a gente pra fazer uma apresentação
outros rabequeiros e assemelhar-se com a música e os músicos que participam da atual tipo de
Rapaz, não tem diferença não, sabe porque? Porque do jeito que o pessoal daquelas
bandas toca, a gente toca também. Só tem a diferença numa coisa, porque lá tem
mais instrumento, lá tem muito arranjo. Mas a gente toca as músicas do mesmo
jeitinho que eles toca.
145
Para ele, Fortaleza é a capital do forró, pois “... é a terra que tem empresário, estúdio, tudo é
fácil. Eu garantia que se a gente tivesse em Fortaleza hoje, a gente tava aprumado”; os meios de
comunicação de massas são vistos como um benefício para sua música, visto que “... as rádio
Geraldo Idalino e ele entende que parte da sua falta de sucesso se deve à falta de um agente
empresarial quando diz que “... o que atrapalha a gente é a gente não ter um braço forte em cima da
Geraldo Idalino entende que a sua possibilidade de continuar atuando depende única e
exclusivamente do seu talento pessoal e da ajuda dos meios de comunicação de massa. A crise, vista
de uma perspectiva mais ampla da cultura, e assim entendida por outros rabequeiros, é sentida por
ele como a crise do seu projeto particular de vida. Este sentimento se revela,quando diz Geraldo
Hoje eu me sinto mais desclassificado, naquele tempo não. Hoje a gente tá pegando
mais cartaz é em Fortaleza. (...) Mas assim [sem um empresário] a gente vai pra trás.
Se a gente gravar um CD a gente vai ter que vender na praça.
Por um sentimento cultural quase melancólico, o público que freqüenta shows nos grandes
centros urbanos precisa conhecer estes rabequeiros antigos. O sentimento é melancólico porque se
pauta num conviver com algo que, para eles, está localizado no passado, na tradição.
A presença destes músicos no espaço urbano já indica alguma mudança e alguma forma de
transmissão dessa música. Mas as formas e meios de transmissão de conhecimento a que estes
rabequeiros estão acostumados, trazem fortes limitações para que a passagem da música ocorra com
Geraldo Idalino considera que é necessário um “talento” como o seu para aprender a música
de rabeca. Implicitamente, este talento significa capacidade de aprender sozinho, como ele
aprendeu. Desta maneira, ele não vislumbra, no seu contato com jovens que formam a sua platéia,
146
Com Nelson da Rabeca ocorre um processo semelhante. Nas “oficinas” realizadas em
eventos promovidos por instituições diversas, onde participa como rabequeiro ou artesão de rabeca,
os resultados não são satisfatórios e não conseguem efetivar algo mais que o contato pessoal mais
O fato é que “oficinas”, enquanto possibilidades didáticas de trabalho, não fazem parte do
espectro de atividades que os próprios rabequeiros mais antigos têm como próprias para o ensino-
aprendizagem da música. Numa “oficina” de música de rabeca, o rabequeiro não tem mais o que
fazer, a não ser tocar, tocar, tocar... para os alunos escutarem, pois, como estão acostumados em
A prática do artesanato também fica difícil numa atividade de “oficina”, visto que não há
desenhados em papel e nem há medidas de tamanho estabelecidas para cada peça. A atividade se
147
Em ambos os casos, quando a “oficina” acaba, os alunos deixam de lado aquele pouco
conhecimento apreendido, pois não têm como dar continuidade ao processo de aprendizagem,
inclusive pela falta de contato direto com o rabequeiro. Ou seja, a transmissão do conhecimento
musical dos rabequeiros, em moldes organizados como uma “oficina” de música necessita de um
método em que esteja prevista a continuidade do contato com o rabequeiro e o respeito às suas
maneiras de ser e agir, para que a cultura dele – e não um rascunho caricatural de sua técnica – seja
possibilidades de ser ampliados verificam-se quando jovens músicos urbanos vão ao encontro dos
rabequeiros, em seu próprio contexto de manifestação, e mantêm um contato mais intenso com essa
cultura, absorvendo saberes e práticas e incorporando-os às suas atividades musicais nos seus
Por outro lado, jovens como Maciel Salustiano e Leonardo Salustiano (este artesão de
rabeca) partem de uma formação inicial entre rabequeiros mais antigos em direção à música urbana
e têm grandes possibilidades de efetivar uma transmissão da música de rabeca para o complexo
contexto da música urbana, visto que comungam diversos aspectos dessa cultura, se identificam e
são identificados como agentes dela. Na sua relação com o grande público, trazem elementos dessa
cultura para a sua música, resignificando-os e tornando-os “naturais”, levando jovens urbanos, com
informações musicais as mais diversas, a assumirem como também seus os elementos de um saber e
rústico, o tradicional e o efêmero, o rural e o urbano) não é quebrada e, além disto, a distância entre
148
A convivência com elementos e informações de ambos os contextos musicais (do cavalo-
marinho e da música popular urbana) exige e propicia atitudes sócio-musicais mais complexas aos
tradicionais, estão presentes nas suas músicas, procedimentos e concepções. Isto também ocorre no
caso de outros músicos que anteriormente usaram ou fizeram referência à rabeca em suas músicas,
Pernambuco.
oral com aqueles da música erudita de tradição européia. Nessa proposta, a rabeca foi utilizada, mas
rabeca na música urbana tem uma história que os precede. Maciel Salustiano observa que “... há
tempo vem esse movimento de rabequeiro, desde Ariano que teve um trabalho legal aqui. E eu
gosto do trabalho do Nóbrega”. De fato, Ariano Suassuna e Antonio Nóbrega buscaram uma
linguagem artística nordestina, envolvendo música, teatro, literatura etc, e nisto envolveram a
música de rabeca.
elementos da música armorial, mas também se diferencia, quando se torna capaz de atingir um
público maior e ser um produto musical destinado a um tipo mais amplo de diversão, consumo e
formação cultural. No trabalho destes jovens rabequeiros residem elementos do que se pode nomear
e entender como cultura de massas, cultura “pop” e uma forte dose da tradição musical dos
rabequeiros nordestinos.
149
Se a atribuição como violinista é parte da necessidade de estruturação da identidade de
Não adianta porque ele é muito clássico [o violino]. Ele é mais pra música clássica,
né? Claro que você pode até tocar outra coisa, mas é diferente da rabeca, soa
diferente.
rabeca no espaço da música popular brasileira e, além deles, há outros como o compositor Eduardo
Gramani, que estudou e compôs músicas para rabecas, cujo trabalho tem prosseguimento,
Uma grande parcela de consumidores da música popular urbana no Brasil, sabe hoje o que é
uma rabeca e tem a possibilidade de escutá-la. Jovens que tinham como referência de conjunto
instrumental apenas o baixo, a bateria, os teclados e a guitarra, têm hoje na rabeca novas
Durante os contatos mantidos para esta pesquisa, Siba Veloso e Maciel Salustiano, que têm
uma atuação marcante na mais recente produção musical popular no Brasil, fizeram questão de
Pelo que se observou em gravações do Mestre Ambrósio, grupo de Siba Veloso, e do Chão e
Chinelo, grupo de Maciel Salustiano, as composições são de integrantes dos grupos; os arranjos são
coletivamente elaborados e a rabeca não é o instrumento solista exclusivo, mas compartilha espaço
150
com outros instrumentos. É um tipo de estrutura político-musical pactuada, que não mantém nem os
aspectos da hierarquia centrada nos mestres, como no caso de folguedos como o cavalo-marinho,
de Geraldo Idalino.
diferentemente sentida e entendida por estes jovens rabequeiros. Para eles, a música de rabeca não
se encontra em estado terminal – como entendem Artur Erminio e João Alexandre –, mas sim um
quais a rabeca está ligada, nas próprias comunidades, que interfere também na continuidade desse
Hoje você não encontra mais um cavalo-marinho brincando no terreiro. Tem nas
festas de padroeira que uma prefeitura ou outra paga. Perdeu-se a valorização, a
importância que o folguedo tinha para as pessoas foi se perdendo. Hoje você não tem
renovação dos músicos, praticamente.
É importante observar que os jovens rabequeiros têm uma postura crítica diferente sobre a
crise que atinge os folguedos e a sua música. Para eles, vários fatores possibilitaram aos meios de
comportamentos musicais nos contextos das músicas tradicionais. Dentre esses fatores, eles citam
as mudanças na economia rural e as conseqüências do êxodo rural nas formas de lazer, convivência
diária e no trabalho. Siba Veloso enfatiza que a crise da música de rabeca não se estende a toda a
sua amplitude de manifestações e sim apenas no que diz respeito aos folguedos tradicionais.
Maciel Salustiano aponta ainda o descaso dos governos como um dos problemas para a
manutenção dos folguedos e observa que a criação de espaços formais é necessária para o ensino da
música de rabeca. E reclama que “... tem que ter uma escola pra esses mestres ensinar, se não
151
Enquanto nas comunidades onde residem os rabequeiros mais antigos são os jovens os que
mais se afastam da música de rabeca, nos centros urbanos, a partir da ação dos novos rabequeiros,
são, principalmente, os próprios jovens que buscam o consumo desta mesma música. Maciel
Na zona da mata tem muito. Mas a gente sabe que aqui na capital onde tá crescendo
esse movimento é que a gente tá vendo os jovens procurar a rabeca. Na zona da mata
é mais difícil a gente ver um rabequeiro jovem.
contribuíram para uma quebra das tradições musicais das próprias comunidades, o uso destes
próprios meios para veicular a música dos novos rabequeiros pode ser útil para atrair aquelas
pessoas que, mesmo tendo a música de rabeca no próprio bairro, a desprezam. Sendo veiculado por
estes meios de comunicação, um objeto cultural talvez adquira a qualidade de “moderno”, ou venha
a ter importância para as camadas populares, por estar sendo referendado pelas elites sociais. A este
Hoje é muito mais fácil um cara de dezoito anos que tá lá numa cidade onde ele
poderia aprender com um avô, com um velho que toca na esquina, é muito mais fácil
ele ver na televisão alguém tocando rabeca e se interessar pelo instrumento, fazer
uma banda na linha do Mestre Ambrósio ou outra parecida, e tentar esse caminho, do
que ele ver um cavalo-marinho na cidade dele, ir lá e aprender com o mais velho.
Porque nesse caminho da TV, do jovem ele vai tá sendo valorizado. Por esse outro
caminho não! Ele vai tá na ponta da rua como um cortador de cana marginal.
Mas não é apenas através dos meios de comunicação de massa que estes jovens rabequeiros
intercâmbio cultural que mantêm entre os segmentos sociais é um tipo de atividade importante no
entendimento deles e as ações culturais cotidianas nos centros urbanos são compreendidas como os
procedimentos mais importantes para que tal intercâmbio ocorra. Neste sentido, Maciel Salustiano
comenta que:
A gente ta vendo muito jovem e outras pessoas que depois desse movimento chegam
pra procurar no interior da zona da mata, que na realidade é de onde vem essa
152
música. Quer dizer que tem que haver o intercâmbio, tanto lá a gente depende deles
como eles depende da gente. Você pode mostrar um trabalho que é daqui e também
divulgar aqueles mestres antigos pra outras pessoas.
emitindo seus últimos sons. A rabeca não tem mais presença nos teatros de bonecos (Mamulengo,
João Redondo) e os bailes com rabeca há muito se extinguiram no interior do Nordeste. A presença
atual da rabeca na zona rural ou na periferia de algumas cidades depende, quase totalmente, da
manutenção desses folguedos. O que é um problema grave, pois é pouco provável que se
mantenham por mais de uma década, ou seja, após a morte dos mestres.
De outra parte, com o impulso dado à música de rabeca a partir da atuação dos novos
rabequeiros, a música tradicional de rabeca começa a ser buscada por um novo público. Esta
situação pode ser uma importante injeção de estímulo para a música tradicional, pois tanto
elementos desta música são incorporados em outras propostas musicais – o que, em parte, assegura
a sua continuidade – quanto estes novos rabequeiros buscam, nas suas atividades, aproximar o novo
Se esta migração e contato se estabelecerem com eficácia, é possível que algumas danças e
toadas se mantenham, embora não o folguedo na sua totalidade. João Alexandre, em citação
anterior, faz essa profecia, quando se refere às intenções dos jovens na sua relação com as músicas
tradicionais.
Hoje a música de rabeca já realizou sua passagem para o contexto da música urbana. Uma
razoável quantidade de novos rabequeiros está em atividade em grupos de música formados por
parte, como fruto da busca ao “folclórico”, muitas pessoas estão comprando rabecas de artesãos
como Nelson da Rabeca e Manoel Pitunga, apesar de quererem possui-las apenas como objeto de
decoração. Que seja, afinal o piano – o símbolo da música clássica para a classe média – também é
153
Mesmo que a música dos novos rabequeiros e esse tipo de reação cultural entre jovens da
urbanidade não sejam capazes de servir como elementos para a manutenção da música tradicional,
pelo menos já deram claros sinais de que a sua continuidade em novos contextos é uma realidade. A
rabeca, assim como muitos aspectos da música tradicional, definitivamente asseguraram seu espaço
154
ANEXOS
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LISTA DAS MÚSICAS CONTIDAS NO CD
1. “Não Chores Dama do Rei.” Toada e baião apresentada pelo cavalo-marinho do Mestre Gasosa.
Artur Erminio.
12. “Na Chegada desta Casa.” Toada que encerra a primeira parte da apresentação do cavalo-
13. “Lá no Forró de Zé Dantas.” Executada pelo “Chão e Chinelo”. Rabeca e voz – Maciel
Salustiano.
16. “Na Porta dos Cabarés.” Antonio L. Faustino. Rabeca e voz – Cego Oliveira.
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Transcrição 1 – Não Choreis Dama do Rei
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Transcrição 2 – Forró
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Transcrição 3 – É Fulô
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Transcrição 4 – Forró de Pé de Calçada
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Transcrição 5 – Fragmento de uma Toada de Cavalo Marinho (Salustiano)
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Transcrição 6 – Violino no Choro
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187
188
Transcrição 7 – Juazeiro
189
190
191
Transcrição 8 – Fragmento de uma Toada de Cavalo Marinho (Veloso)
192
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