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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

ESCOLA DE MÚSICA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM MÚSICA
MESTRADO EM MÚSICA – ETNOMUSICOLOGIA

MÚSICA TRADICIONAL E COM TRADIÇÃO


DA RABECA

AGOSTINHO JORGE DE LIMA

SALVADOR – BAHIA

2001
MÚSICA TRADICIONAL E COM TRADIÇÃO
DA RABECA

DISSERTAÇÃO SUBMETIDA AO CURSO DE MESTRADO EM MÚSICA DA UNIVERSIDADE FEDERAL


DA BAHIA, COMO REQUISITO PARCIAL PARA A OBTENÇÃO DO GRAU DE MESTRE EM MÚSICA.

AGOSTINHO JORGE DE LIMA

Maio – 2001
A Dissertação de Agostinho Jorge Lima foi Aprovada

UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

Salvador, 28 de maio de 2001


RESUMO

Esta dissertação aborda a atual condição da música de rabequeiros na região Nordeste do

Brasil. Foram pesquisadas as atividades de rabequeiros em manifestações musicais tradicionais da

cultura popular nordestina e de jovens músicos membros de grupos de música popular que atuam

em grandes centros urbanos que, a partir do início da década de 90, passam a tocar rabeca e a

compor músicas com, e para, este instrumento.

Aspectos do saber e fazer musicais destes rabequeiros foram analisados na busca de uma

compreensão de como, atualmente, se processa a transmissão e a reinvenção desta tradição na

região Nordeste. Buscou-se compreender, também, como as concepções, práticas e produtos

musicais são mantidos, incorporados, excluídos, transformados e re-significados na atual dinâmica

da música de rabeca, quando da sua inserção em contextos mais amplos e complexos de produção e

consumo musical.

Busca-se um delineamento de parâmetros básicos que permitam uma melhor compreensão

do processo de construção e re-construção de identidade musical no campo da música popular,

urbana e rural, nordestina.

iii
ABSTRACT

This dissertation is about the current music produced by fiddlers in the Northeast downtown

area, in the states of Paraiba and Pernambuco. On one hand, we have tried to verify the work of the

fiddlers who have traditionally been working in the rural zone and who have started living and

working in the outskirts of big cities for the last decades. On the other hand, we have verified the

musical activity of young musicians who play and produce fiddle music and consider themselves to

be fiddlers in such urban centers.

The focus of this study is on knowing and knowing how to make musicals typical of those

performed by traditional young fiddlers aiming at an understanding of how this knowledge is

transmitted as well as at an understanding of what kinds of broad and strictly musical cultural

aspects are transmitted among these generations and how these generations understand this

dynamics.

In addition to that, we try to understand the aspects that serve both as the basis for the

convention - auto and auter attributive – of the fiddlers identity and as reference guidelines in order

for us to understand what this kind of music might be like as well as the musical work of fiddlers in

complex societies.

iv
AGRADECIMENTOS

A todos os meus colegas da UFRN pelo estímulo e confiança neste trabalho.

Aos competentes professores que encontrei na UFBA e, em especial, à coordenação eficaz

do sempre simpático Dr. Joel Barbosa.

A Maisa Santos, pelo carinho com que recebe todos estes estrangeiros nos braços da Mãe-

Bahia.

A Angelo Castro, compositor experto, pelas poucas conversas e muitas músicas.

A Hugo Ribeiro, sempre generoso, pelas ajudas tecnológicas.

A Zezinho (José Álvaro), grande baiano-amigo. Pessoa sempre solidária e de uma

humanidade sem limites.

A Lúcia Máximo, pelo apoio em momentos difíceis nesta caminhada.

A Sonia Chada, pela paciência e as boas discussões.

Ao Manuel Veiga, meu caro orientador. Professor exigente, mas pessoa muito amável.

A todos os rabequeiros que paciente e generosamente se dispuseram a participar deste

trabalho. Que me ensinaram muito e são os verdadeiros mestres no assunto desta dissertação.

Aos meus filhos Gabriel e Daniel, pelo imenso amor que comungamos.

v
SUMÁRIO

RESUMO............................................................................................................................................iii

ABSTRACT........................................................................................................................................iv

AGRADECIMENTOS.........................................................................................................................v

Capítulo 1
INTRODUÇÃO...............................................................................................................................1

Capítulo 2
RABECA – UM POUCO DA SUA HISTÓRIA E DOS ESTUDOS SOBRE ESTA MÚSICA....6
1. O que veio das arábias.............................................................................................................6
2. A visão desta música por aqueles que não a fizeram..............................................................9
3. A atualidade da música de rabeca no Nordeste do Brasil.....................................................13
4. Os problemas que surgem na identificação destes agentes sociais.......................................14

Capítulo 3
ELEMENTOS PARA UMA ORGANOLOGIA DA RABECA...................................................18
1. Afinação usada pelos rabequeiros.........................................................................................18
2. Cordas usadas e sonoridade da rabeca..................................................................................20
3. Variação no tamanho das rabecas.........................................................................................22
4. Denominação das partes que compõem uma rabeca.............................................................27
5. Do artesanato da rabeca........................................................................................................29
6. Estilo musical e modificação em partes da rabeca................................................................34

Capítulo 4
PRÁTICAS, PRODUTOS E CONCEPÇÕES MUSICAIS..........................................................39
1. O manuseio do instrumento..................................................................................................39
2. Estilo musical e uso do arco entre os rabequeiros.................................................................45
3. Estilo musical, textura e região utilizada no instrumento.....................................................55
4. Melodia e harmonia na música dos rabequeiros...................................................................64
4.1. Harmonias e sonoridade na música de rabequeiros.......................................................64
4.2. A diversidade no fraseado musical................................................................................67
5. Instrumentação na música dos rabequeiros...........................................................................74
6. O uso de recursos eletrônicos e suas influências nas músicas dos rabequeiros....................81

Capítulo 5
O DISCURSO SOBRE MÚSICA E CRIAÇÃO MUSICAL ENTRE OS RABEQUEIROS.......90
1. Termos e conceitos empregados no discurso sobre a música...............................................90
2. Criação musical e concepções sobre criação entre os rabequeiros.......................................94
2.1. Concepções e atividades de criação entre rabequeiros ligados ao cavalo-marinho......97
2.2. Atividades e concepções sobre criação musical entre rabequeiros inseridos no espaço
da música comercial urbana...............................................................................................105

vi
Capítulo 6
ENSINO E APRENDIZAGEM DA MÚSICA DE RABECA....................................................112
1. Vivência musical e formação dos rabequeiros....................................................................112
2. Afinação e aprendizagem da música de rabeca...................................................................116
3. A transmissão do conhecimento musical............................................................................120
3.1. O contexto tradicional da rabeca e as concepções dos rabequeiros antigos sobre a
transmissão do conhecimento.............................................................................................120
3.2. Concepções e práticas de transmissão do conhecimento entre os novos rabequeiros.125
3.3. Três formas de transmissão deste conhecimento........................................................128

Capítulo 7
AS PERSPECTIVAS DA MÚSICA DE RABECA NA CULTURA URBANA ATUAL.........131
1. A perspectiva da música de rabeca no cavalo-marinho e boi-de-reis.................................131
2. A perspectiva da música de rabeca nos “conjuntos de forró”.............................................142
3. A perspectiva da música de rabeca entre os jovens rabequeiros urbanos......................148

ANEXOS..........................................................................................................................................155

LISTA DAS MÚSICAS CONTIDAS NO CD................................................................................156


Transcrição 1 – Não Choreis Dama do Rei.............................................................................157
Transcrição 2 – Forró..............................................................................................................166
Transcrição 3 – É Fulô............................................................................................................170
Transcrição 4 – Forró de Pé de Calçada..................................................................................182
Transcrição 5 – Fragmento de uma Toada de Cavalo Marinho (Salustiano)..........................184
Transcrição 6 – Violino no Choro...........................................................................................186
Transcrição 7 – Juazeiro..........................................................................................................189
Transcrição 8 – Fragmento de uma Toada de Cavalo Marinho (Veloso)...............................192

LISTA DE REFERÊNCIAS.............................................................................................................193

GRAVAÇÕES EM LONG-PLAY e COMPACT DISC..................................................................196

vii
“Em um colar de pérolas eu admiro o fio que
anonimamente as une e torna um só.”

D. Helder Câmara.

viii
Capítulo 1

INTRODUÇÃO

Este estudo tem sua motivação na constatação de que há um determinado tipo de música de

rabequeiros que gradativamente se transfere para a periferia das médias e grandes cidades, em

função do êxodo rural, provocado pelas sucessivas crises na economia agrária nordestina. Nesse

ínterim, observou-se que jovens músicos de centros urbanos começam a tocar rabeca em grupos

musicais, cuja formação tem por base a guitarra, baixo elétrico, bateria, violão, etc.

O interesse etnográfico consistiu em averiguar as condições desta música de rabequeiros

tradicionais nos centros urbanos, buscando observar quais tipos de atividades musicais são

efetivadas; quais são as que, advindas da zona rural, ainda se mantêm neste novo contexto; que

tipos de modificações sofrem estas atividades e músicas e compreender como pensam e agem

culturalmente estes rabequeiros, agora alocados em núcleos sociais mais complexos e heterogêneos

que a zona rural.

Entre uma série de rabequeiros que residem em centros urbanos do Nordeste – que têm nas

suas periferias um ambiente de intensa troca de informações, valores e conhecimentos entre

manifestações musicais de origem rural e outras forjadas na própria urbanidade – optou-se por

realizar o trabalho de pesquisa com rabequeiros de três cidades da Paraíba, que são reconhecidos

por seus pares e por outras fontes de formação de opinião, como os mais representativos entre eles.

Na cidade de Bayeux,1 a pesquisa foi realizada com o rabequeiro Artur Erminio, o único que

é artesão de rabecas. Em Campina Grande,2 mora Geraldo Idalino Luiz, no bairro do Pedregal. Em

João Pessoa, na favela Bola na Rede, reside o rabequeiro João Alexandre.


1
Cidade de porte médio localizada a poucos quilômetros de João Pessoa suportando, por isto mesmo, a histórica
condição de ser identificada como uma espécie de periferia da capital. A maior parte dos habitantes é formada por
industriários, operários da construção civil, trabalhadores de usinas ou ligados à economia informal como
vendedores ambulantes.
2
A segunda maior cidade do estado, geograficamente situada entre o alto sertão e o litoral paraibano, com uma
economia pautada na indústria e no comércio; famosa por ser local de moradia e passagem de grandes repentistas de
viola e pela grande quantidade de músicos de forró.

1
Na constatação de que a rabeca começava a ser utilizada por jovens músicos, alguns com

formação conservatorial, buscou-se observar as práticas musicais destes músicos para entender o

estilo da música que fazem com a rabeca e conhecer os tipos de inserção na música urbana

propiciados à rabeca com a atividade deles. Também, para compreender que tipos de laços sócio-

musicais os ligam aos rabequeiros tidos como tradicionais. Ou seja, como se processou esta

transmissão de conhecimento e quais elementos do saber e fazer musicais dos rabequeiros estão

sendo transmitidos para esta nova geração de músicos urbanos.

Na pesquisa, optou-se por observar o trabalho musical de dois destes jovens rabequeiros,

ambos de Pernambuco. Maciel Salustiano, que mora em Olinda e Sérgio Roberto Veloso (Siba), de

Recife, mas atualmente residindo em São Paulo. A observação do trabalho de jovens rabequeiros de

Pernambuco é importante, pois foi principalmente neste Estado que, com o impulso dado nos

últimos anos pelo movimento musical denominado Manguebeat, surgiu uma surpreendente

quantidade de novos músicos preocupados com a incorporação e o resgate das músicas de tradição

oral no Nordeste. Por esta razão é que se pode obter uma melhor referência etnográfica para a

compreensão deste fenômeno musical entre os jovens, a partir do movimento que se expande desse

Estado.

A opção por Maciel Salustiano se deveu, principalmente, ao fato de ele ser atualmente o

rabequeiro mais respeitado entre os jovens músicos de Recife e do Nordeste; por ser compositor e

rabequeiro de um importante grupo musical surgido na última década em Pernambuco, além de ter

nascido numa família de grandes rabequeiros e mestres de cavalo-marinho, como o seu pai o Mestre

Salustiano.

Siba Veloso foi o primeiro rabequeiro que, ampliando as perspectivas de Antonio Nóbrega,

conseguiu levar a música de rabeca a um segmento mais amplo da sociedade. Sua música é

consumida por uma faixa expressiva de jovens de classe média urbana, e a atividade deste músico

2
vem deixar claro que é possível inserir a rabeca no circuito da música “pop” urbana e nos conjuntos

com instrumentos eletrônicos.

Na constatação de que ocorriam distinções entre tipos de práticas musicais, idéias e estilos

entre os rabequeiros – e observando que boa parte da literatura sobre o assunto enfoca o rabequeiro

enquanto um agente cultural estável, de identidade monolítica e sem variabilidade, seja nas práticas

ou idéias – buscou-se apreender, na pesquisa, que elementos sócio-musicais podem servir para a

formatação histórica de tal tipo de concepção sobre os rabequeiros e sua música. Buscou-se

apreender também quais são os aspectos que atualmente orientam uma compreensão de como esta

identidade socialmente estabelecida se modifica e se reestrutura no âmbito contextual de cada

rabequeiro e no amplo espectro que vai desde o mais antigo rabequeiro de cavalo-marinho da

Paraíba, até dois jovens músicos da atualidade, que têm como base de trabalho os shows para

grandes platéias e a inserção na indústria do disco.

Assim, neste trabalho, a tentativa de compreensão de identidade musical entre os

rabequeiros é buscada a partir da análise das suas músicas e de suas idéias gerais sobre música e

cultura; de suas auto-atribuições e atividades musicais.

Nos diversos encontros com cada um destes rabequeiros, foram realizadas gravações de

entrevistas que tinham por base roteiros pré-estabelecidos, com vistas ao tipo de conhecimento que

se necessitava sobre determinado assunto. Roteiros estes que consistiam em tópicos gerais flexíveis.

Gravações de áudio e vídeo e fotografias foram realizadas nas próprias entrevistas e em

apresentações dos rabequeiros.

Das músicas gravadas foram transcritas aquelas consideradas, depois de uma apurada

análise, como as mais significativas no repertório de cada rabequeiro; aquelas que fornecem

melhores elementos do estilo e conteúdo musical de cada um. Como acessório necessário a esta

dissertação, foi gravado um CD com algumas músicas que não foram transcritas, mas que são

igualmente importantes para um melhor vislumbre desta música.

3
A organização desta dissertação busca responder aos tipos de elementos encontrados na

pesquisa de campo e ao tipo de abordagem que se pretende sobre este assunto. Deste modo, buscou-

se evitar, dentro dos limites possíveis, a formatação desta dissertação em capítulos com uma

abordagem estritamente analítico-musicológica, separados de outros com uma abordagem

preferencialmente antropológica. Também, evitou-se realizar a análise do fazer musical dos

rabequeiros em separado da análise das suas concepções, do seu saber musical, e de outras

inferências culturais que tenham influência direta ou indireta nos objetos musicais.

Os capítulos foram ordenados de forma a constituir uma seqüência onde, de um aporte

inicial no instrumento rabeca, se passa a orientar o foco da atenção para a música e a cultura do

rabequeiro, vindo o instrumento a se tornar um apêndice destes fatores e não o elemento central

nesta abordagem.

O segundo capítulo traz um breve esboço da história da rabeca e de sua música, e busca

demonstrar como esta música tem sido mencionada por alguns estudiosos em um determinado

momento da etnomusicologia no Brasil.

O terceiro capítulo remete a aspectos mais diretamente relacionados ao instrumento em si.

Porém, todas as questões relativas a uma organologia da rabeca são diretamente correlacionadas às

necessidades do fazer musical, e às especificidades estilísticas ensejadas pelos rabequeiros, a partir

de suas vivências sócio-culturais.

No quarto capítulo há uma abordagem direta dos produtos musicais. Questões como

gêneros, harmonias, sonoridade, tecnologia instrumental, instrumentação, etc são discutidas numa

tentativa de estabelecer um diálogo com as questões antropológicas que lhes são próprias.

Os modos de expressão lingüística sobre sua própria música (e o como isto indica tanto

elementos de um processo de elaboração verbal de identidade, quanto de rudimentos “teóricos”

esparsamente esboçados sobre sua música) e as concepções, idéias e atitudes criadoras entre os

rabequeiros, são discutidos no quinto capítulo desta dissertação.

4
Como a pesquisa também se pautou em duas gerações de rabequeiros há um capítulo

dedicado à problemática da transmissão do conhecimento musical. No penúltimo capítulo deste

trabalho são analisadas as formas como se processa o ensino-aprendizagem da rabeca e as idéias

que jovens e tradicionais rabequeiros têm sobre este assunto. Busca-se entender como um saber e

fazer musicais se transmitem e se transformam quando inseridos em um contexto cultural mais

amplo, cujos vetores estimuladores de permanência ou de extinção são diferentes daqueles

existentes na zona rural nordestina ou no ambiente da cultura rústica.

Por fim, no sétimo capítulo, é esboçada uma breve análise das perspectivas da música de

rabeca nos contextos pesquisados; no espaço da música comercial urbana, nos grupos de forró

mantidos por rabequeiros tradicionais e nos folguedos como o cavalo-marinho e o boi-de-reis.

5
Capítulo 2

RABECA – UM POUCO DA SUA HISTÓRIA E DOS


ESTUDOS SOBRE ESTA MÚSICA

1. O que veio das arábias...

A presença da rabeca em manifestações musicais diversas tem sido registrada há longas

datas em nossa história. Remnant (2001: 696) nos remete à tradição oriental deste instrumento.

Neste verbete Rabãb é citado como:

[rubãb, rubob, rebab, rabob, robãb, ribãb, rabãba, etc.] Um termo para vários
cordofones, particularmente lutes, ambos tocados com arco, e liras, encontradas
principalmente na África do Norte, Oriente Médio, Irã, Ásia central [etc.]. (...) A
etimologia e origem do termo “rabãb” para designar cordofones não é conhecida
com segurança. Foi mencionado pela primeira vez em um texto arábico medieval
(séculos IX e X) de Al-Jahi Ibn khurdadhbih e Al-Fãrãbi.

No verbete “Rebec” Remnant (2001: 898) faz menção à presença deste instrumento na

Europa Medieval. A autora observa que:

[rebeck, rebecke, rebekke] (Fr. Rebec, rebecq, rebequet, rebet; Ger. Rebec; It.
Ribeca; Lat. Rebeca, rebecum; Sp. Rabé, rabel, rabequin). Um instrumento de arco
com cordas de tripa. (...) Derivada da Lurã bizantina e a Árabe RABÃB,
instrumentos tipo rebec são conhecidos na Europa com diferentes nomes e em vários
formatos desde o final do século X e início do XI até os dias atuais, mas seu uso na
arte musical foi principalmente durante a Idade Média e Renascença. (...) A
terminologia das primitivas rebecas européias reflete suas origens Árabe e Bizantina.

Sobre a história e desenvolvimento deste instrumento a referida autora diz que:

Embora por muito tempo arcos não fossem plenamente aceitos nos altos círculos
sociais da Ásia, foram amplamente adotados na Europa depois do estabelecimento
do arco nos séculos X e XI. (p. 901)

E discorrendo acerca das manifestações em que havia a presença da rabeca observa que:

Procissões, sejam sacras ou seculares, muitas vezes incluíam rebecas. [e que] O uso
de rebecas em festas, danças e entretenimentos da aristocracia foram amplamente
documentados. (p. 901)

6
A rabeca foi trazida para o Brasil, provavelmente, por portugueses e espanhóis. Registros da

presença deste instrumento em diversas manifestações populares ou da corte foram realizados por

viajantes ou cronistas de época desde o inicio da nossa colonização.

Em Camêu (1977: 22) há uma referência à presença do arrabil em uma festa de uma

comunidade da região Amazônica. A autora cita um capitão espanhol Francisco Orellana que, numa

expedição em 1541, relatou que presenciara uma festa onde havia “... muitas trombetas, tambor e

órgãos que tocam com a boca e arrabis de três cordas”.

Calmon (1988:22) cita a presença de rabecas numa festa pública de sapateiros e corrieiros

ocorrida em 1762 na vila de Santo Amaro na Bahia. O mesmo relatando esta festa diz que “... a sua

demonstração em uma dança de ricas e vistosas farsas, que em nada cedia à dos alfaiates, e

discorreram pelas ruas ao som de várias rebecas destramente tocadas”.

Provavelmente o citado arrabil seria uma das formas do rabãb ou da rebeca medieval. No

Dicionário Musical Brasileiro Arrabil é “instrumento de cordas de fricção, viola de arco

introduzida na Europa pelos mouros após o século VII, com número de cordas oscilando de 2 a 5.

Também conhecido por arrabel, ayaeba, rabé, rabel, rabil, rebab, rebebe e vihuela de arco”

(Andrade, 1999: 25). Nos Folhetins de França Júnior (1926), citados em Sandroni (2001: 69), há

uma alusão à presença da rabeca em um baile realizado na Cidade Nova (RJ) onde a rabeca faz

parte de um conjunto que executa polcas3. Assim fala o comentarista de época:

Há bailes de primeira, segunda e terceira classe, como os enterros. ... Passemos aos
bailes de segunda classe. Figurem os leitores um sobrado com janelas de peitoril na
Prainha, Valongo, rua do Livramento ou em qualquer ponto da Cidade Nova.
Entremos pelo corredor mal iluminado e vamos direto à sala, onde uma orquestra,
composta de ophekleid (sic), um piston, uma rabeca e um clarinete manhoso, executa
a polka “Zizinha”.

A grande presença da rabeca na música nordestina, também apontada por Béhague (1980:

221-244), é coerente com o fato de que nesta região muitos elementos musicais de tradição ibérica

3
Este é um tipo de inserção do instrumento que precisa ser melhor averiguado, pois os registros da presença deste
instrumento em conjuntos instrumentais que tocavam polcas, lundus ou maxixes no final do século XIX e início do
século XX são escassos na literatura de folcloristas ou pesquisadores da nascente música urbana popular no Brasil.

7
foram amplamente absorvidos e ainda se mantêm até os dias atuais. Presença registrada em

pequenas cidades interioranas ou próximas do litoral e em manifestações musicais como o cavalo-

marinho e o boi-de-reis4, onde a rabeca participa do conjunto instrumental.

Nos estados da Paraíba e Pernambuco estas manifestações e a música de rabeca são

encontradas em áreas geográficas como o brejo – região que possui um tipo de clima e de solo fértil

sendo, portanto, propícia à aglutinação maior de pessoas pelas circunstâncias econômicas. Há

séculos que estas áreas são praticamente dominadas pela monocultura da cana-de-açúcar.

Como a colonização desta região foi iniciada pelo litoral é provável que a rabeca tenha

passado por um processo de interiorização aqui no Nordeste. Isto com a própria economia

açucareira e de engenhos que foram as mais importantes atividades econômicas desta região nos

séculos XVII e XVIII na região da mata atlântica, como observa Almeida (1978).

A presença de rabequeiros em atividades musicais como bailes de forró, cavalo-marinho5,

boi-de-reis, teatro de mamulengos e cantorias foi registrada por diversos autores e é mencionada

pelos atuais rabequeiros. Algumas destas formas de atividade eram mais comuns, como os

conjuntos de folguedos e bailes com rabeca, e outras não resistiram ao tempo, como foi o caso dos

bailes com rabeca nas comunidades rurais e a presença deste instrumento nos teatros de

mamulengos e nas cantorias.

Deste último tipo de atividade há os registros de Rosemberg Cariry no disco Cego Oliveira

editado em 1999 e de Tânia Quaresma no disco Nordeste: Cordel, Repente e Canção editado em
4
O boi-de-reis é um auto popular do ciclo natalino dos mais tradicionais e ainda mantidos no Norte e nordeste do
Brasil. Tal denominação deriva do fato de sua apresentação se entender até a Festa de Reis. É uma das variantes
nominais do bumba-meu-boi, boi calemba, do boi-bumbá encontrado no Maranhão, Pará, Amazonas; do boi de
mamão encontrado em Santa Catarina e Paraná. No seu enredo este folguedo tem o boi como uma das personagens
centrais, além do Mateus, Birico, Catirina, etc, e uma série de outras personagens secundárias que variam em cada
região ou que, na própria história do folguedo, surgiram e depois não foram mantidos por não caírem “nas graças do
povo”.
5
O cavalo-marinho é uma das variantes do folguedo do boi. Com este nome é mais encontrado na da zona da mata de
Pernambuco e em outros estados do Nordeste como a Paraíba, Rio Grande do Norte. No enredo do cavalo-marinho,
que trata de uma festa, um baile em homenagem aos Santos de Reis, com cânticos (toadas) e danças (baiões) em
louvação aos santos, o Mateus e o Birico – os dois os dois vaqueiros negros que compartilham o amor de uma
mesma mulher, a Catirina – encontram trabalho nesta festa onde diversos acontecimentos cômicos e dramáticos se
sucedem até à partilha final do boi entre os participantes. O capitão, o cavalo-marinho, faz a apresentação do
espetáculo usando um apito e montado em seu cavalo. Mas os mestres de cavalo-marinho da Paraíba não costumam
ficar montados no cavalo.

8
1975. Ambos enfocam a atividade do Cego Oliveira, cantador de romances já falecido, que morava

em Juazeiro do Norte no Ceará. Que, também, mantenha-se viva a memória de Fabião das

Queimadas, famoso repentista do Rio Grande do Norte que se acompanhava de uma rabeca e não de

uma viola sertaneja, como é mais comum nesta região.

Se poucos são os relatos de rabequeiros repentistas ou cantadores de romances, de outra

parte, muitos rabequeiros citam que com a popularização da sanfona no interior do Nordeste, a

rabeca foi gradativamente perdendo seu espaço nos bailes de forró. Isto demonstra que a

especialização dos rabequeiros aqui no Nordeste do Brasil foi, gradativamente, tornando-se a de

músicos participantes de conjuntos instrumentais que fazem a música de alguns folguedos. São os

casos da dança de São Gonçalo, como observa Dantas (1976), da dança do Lelê, conforme Ferreti

(1978), do pastoril no Rio Grande do Norte, como afirma Cascudo (1998) e do Reisado no Piauí,

como menciona N. Oliveira (1977).

Com a migração de populações interioranas para os centros urbanos economicamente mais

avançados da região, devido às constantes secas e à falência da atividade açucareira e dos engenhos,

a rabeca e sua música percorrem há algumas décadas o caminho inverso e perverso em direção à

periferia de grandes centros urbanos ou a pequenas cidades que se desenvolvem próximas do litoral.

2. A visão desta música por aqueles que não a fizeram

Apesar de sua longa história em nossa cultura grande parte da literatura e de documentos

sobre este instrumento e sua música não passa de citações em romances, crônicas ou poesias ou de

pequenas e passageiras observações sobre a rabeca. Consistem, em sua maioria, em verbetes de

dicionários ou em alusões à presença do instrumento em artigos que enfocam uma manifestação

musical mais ampla. Ou seja, salvo raras e importantes exceções, à música de rabeca não foram

ainda dedicados estudos sistemáticos que possibilitem um melhor vislumbre dela e uma

compreensão das suas peculiaridades no complexo da cultura brasileira.

9
Típicas são as referências de passagem como a encontrada em Alvarenga (1982: 356), que

se resume a observar que “as rabecas têm um som tristonho e fanhoso”. Fragmentos de aspectos do

instrumento e da música são encontrados em diversos autores que, por sua própria especificidade,

não fornecem dados suficientes que auxiliem o leitor a uma melhor compreensão deste instrumento

e sua música.

Casos peculiares são aqueles encontrados em estudos de folcloristas onde a rabeca é

insistentemente remetida a uma comparação com o violino, mesmo que estudos específicos sobre a

música de rabeca ainda não tivessem sido realizados. Nestas abordagens comparativas, à rusticidade

cultural própria da rabeca em um período da historia da nossa cultura é, sutilmente, impressa uma

conotação de inferioridade cultural em relação ao violino6. O próprio Mário de Andrade, que no

verbete anteriormente citado (Arrabil) demonstra a antecedência histórica da rabeca em relação ao

violino na Europa, ao se referir diretamente à rabeca em um verbete com este título diz que:

Rabeca é como chamam ao violino os homens do povo no Brasil. Nas classes cultas
é voz que não se escuta mais. Desde a vulgarização do instrumento, pelo segundo
quarto do século XIX, o chamaram de rabeca entre nós. (Andrade, 1999: 423).

Ora, temos nesta citação uma inversão dos dados históricos, pois o instrumento trazido por

portugueses e espanhóis foi a rabeca7, que aqui se popularizou, e não o violino – este ainda sendo

forjado na recente lutheria italiana do final do século XVI.

Luís da Câmara Cascudo no verbete dedicado à rabeca em seu Dicionário do Folclore

Brasileiro segue este viés comparativo e termina por limitar a definição da rabeca como “uma

espécie de violino” que se manteve antigo. Para concluir que “... essa continuidade demonstra a

velhice da rabeca sertaneja e sua fidelidade ao passado” (Cascudo, 1998: 763-64).

Alceu Maynard de Araújo nos fornece uma agradável e importante nota sobre a

música de rabeca em uma observação de sua presença na Folia de Reis. Este autor comenta que a
6
Este aspecto de rusticidade só pode ser invocado a um determinado período de tempo e espaço, visto que na Ásia
antiga os antecessores da rabeca eram instrumentos presentes na cultura rústica daquelas sociedades. Mas na Europa
medieval foi instrumento privilegiado pelas elites cortesãs e, no início da colonização brasileira foi este o
instrumento que os degredados e os nobres trouxeram para cá, não foi o violino.
7
Como era denominado em Portugal, conforme E. Oliveira, 1966.

10
rabeca confere “... uma nota característica de beleza e enternecimento no cantochão acaipirado das

melodias cantadas pelos foliões pedintes”. (Araújo, 1967: 429).

Mário de Andrade, se entrincheirando no caminho das precoces comparações entre rabeca e

violino, dá um depoimento importante sobre a música de rabeca, mas que, infelizmente, se encerra

numa comparação com manchas de discriminação à rabeca e ao rabequeiro. Isto talvez tenha

ocorrido pelo fato de este pesquisador ter-se debruçado, com muita propriedade, sobre assuntos os

mais diversos da cultura popular. Ele diz:

Estou lembrando duma noite na zona da mata, em Pernambuco. Depois dum Bumba-
meu-Boi de cinco horas eu me aproximara dos instrumentistas pra tirar um naco de
conversa. Um deles me trazia um violino, feito por ele mesmo, duma sonoridade a
um tempo tão esganiçada e mansa que nem sei! E o violinista era compositor
também. Compositor... descritivo! Não vê que compunha baianos e varsas, feito os
outros! Compunha peças características, descrevendo a vida do engenho e a do
sertão. E tocou para mim escutar uma espécie de monstrengo sublime, que intitulara
'A boiada'. (...) está claro que a peça era horrível de pobreza, má execução,
ingenuidade. Mas assim mesmo tinha frases aproveitáveis e invenções descritivas
engenhosas. E principalmente comovia. Quando se tem um coração bem nascido,
capaz de encarar com seriedade os abusos do povo, uma coisa dessas comove muito
e a gente não esquece nunca mais (Andrade, 1984: 388-89).

Estariam estes autores imbuídos da idéia de que as camadas populares, por uma

incapacidade de criarem objetos genuínos, construiriam suas culturas à base apenas de absorções e

remodelações de comportamentos e conhecimentos de segmentos culturais superiores? É pouco

provável. Mas, em se tratando da abordagem de um instrumento que encontra um similar direto na

cultura de elite (o violino), é possível que estes autores estejam este aspecto da cultura popular

como sendo resultante de um desnivelamento. Cascudo (1998: 763) beira esta problemática, ao

afirmar que a rabeca é “... uma espécie de violino (...). Tem uma sonoridade roufenha, melancólica

e quase inferior”.

Um outro aspecto a ser observado nas citações de uma parte de estudiosos ou comentaristas

do folclore é a redução de toda a gama de fatores que perfazem esta música ao instrumento – seja a

aspectos de sua sonoridade, forma, timbre etc. Isto é um tipo de consideração que inverte a ordem,

tomando o objeto como núcleo explicador e gerador de cultura e identidade musical. Fatores de

11
caráter mais subjetivo e simbólico, ou mesmo as diferentes práticas musicais são deixadas de lado

nesta busca de uma identificação para os rabequeiros a partir, e somente, do instrumento.

As diversas músicas e os múltiplos contextos nos quais elas se estabelecem são deixadas de

lado nas análises destes folcloristas. Ora, entre rabeca e rabequeiro, o que há de culturalmente mais

concreto é o rabequeiro, nas suas formas de se representar e ser representado sócio-musicalmente.

Em termos de cultura, quem surge primeiro é o rabequeiro e sua música, embora a sua perpetuação

esteja relacionada ao instrumento/objeto rabeca.

Também, não há apenas um tipo ou formato de rabeca no Brasil e estes diversos tipos foram

objetivados a partir de necessidades e intenções sócio-musicais específicas e concretas. Ou seja, a

“concreticidade” deste objeto é dependente da sua idealização simbólico-cultural na inventiva de

contextos e músicos.

Estudos não diretamente dirigidos à música da rabeca, mas que conseguiram uma

abordagem mais completa e reveladora desta música, foram realizados por Kilza Setti e John

Murphy aqui no Brasil. No seu estudo da cultura caiçara paulista do município de Ubatuba, Setti

(1985) dedica um capítulo ao estudo da música dos rabequeiros. É uma etnografia desta música

onde observações acerca do instrumento, da maneira de tocá-lo, construí-lo, das músicas criadas ou

executadas por rabequeiros e dos sentidos “estéticos” e estilísticos etc, são interagidas com o

contexto social estudado.

As comparações entre rabeca e violino que são feitas nesse estudo, além de não sofrerem da

precocidade daquelas encontradas em outras pesquisas, partem também da própria visão dos

rabequeiros e da comunidade pesquisada. Este estudo de Kilza Setti é, além de outras qualidades,

muito importante para o reconhecimento dos mecanismos de mudança e continuidade na música de

rabeca.

12
Uma etnografia do cavalo-marinho em Pernambuco conduz John Murphy à observação da

centralidade do rabequeiro neste folguedo. Posteriormente, este pesquisador dedica um artigo à

música de rabeca na zona da mata de Pernambuco, onde amplia o estudo sobre esta música.

3. A atualidade da música de rabeca no Nordeste do Brasil

Atualmente, a rabeca e sua música passam por um processo migratório de caráter não

apenas geográfico, mas de um contexto cultural para outro, de um segmento social para outro e para

outros tipos de manifestação musical popular e, até mesmo, erudita. O gradativo aumento da

presença deste instrumento em grupos musicais formados, principalmente, por jovens músicos

residentes em grandes centros urbanos, que produzem uma música genericamente denominada de

“pop” ou popular-urbana, é um fato importante na atual condição histórica da música de rabeca.

Isto traz uma implicação a mais quando se busca um estudo desta música e de sua condição

sócio-cultural: a constituição da identidade dos rabequeiros não é mais passível de ser estabelecida

nos moldes instituídos por folcloristas do século passado. Rabequeiros não são mais apenas sujeitos

residentes na zona rural, de idade avançada, ou analfabetos musicalmente.

Tal como o instrumento rabeca, que histórica e geograficamente sofreu grandes variações no

seu formato e formas de inserção social, a sua música passa atualmente por modificações diversas

que lhe imprimem uma configuração mais complexa e dotam as suas possibilidades de

identificação, e a do rabequeiro, de aspectos que anteriormente não eram possíveis de serem

observados.

A presença de alguns rabequeiros advindos da zona rural em centros urbanos pode, de

alguma maneira, ter despertado o interesse pela música e pelo instrumento entre jovens músicos

urbanos. O movimento Armorial em Pernambuco, que há algumas décadas buscou uma espécie de

conjunção entre linguagens musicais advindas da tradição da música de concerto européia e das

13
músicas de tradição oral nordestinas (cf. Didier, 2000: 83), foi também um importante impulso a

esta atual projeção da música de rabeca.

O movimento musical denominado Manguebeat, que teve início nos primeiros anos da

década de 90 em Recife, foi outro momento de estímulo a uma busca das tradições musicais

nordestinas por jovens que, em sua maioria, tinham outras formações e informações musicais.

Numa das vertentes deste movimento a música de rabeca encontrou moradia certa ao lado de

tambores, bateria, guitarras, baixo elétrico, etc. É o caso de grupos como o Mestre Ambrósio, Los

Canalhas Insensibles, Chão e Chinelo, de trabalhos como o realizado pelo DJ Dolores que utiliza

rabeca, groove-box e sons sintetizados, entre outros. São processos de migração, adoção e

transformação de um saber e fazer musical tradicional para o espaço urbano e de ação da indústria

cultural; espaço da urbanidade aparentemente massificada pelo consumo dos produtos da moderna

indústria de cultura.

Casos como os dos rabequeiros Siba Veloso, Maciel Salustiano, Luismario Machado,

Alicio, etc, são exemplos desta migração de conhecimento de uma geração a outra e de um contexto

cultural para outro. Estes rabequeiros são advindos de contextos culturais diversos e com formações

as mais diferentes. Luismario é violista de orquestra sinfônica; Siba Veloso era guitarrista e

pesquisador, por exemplo. Suas músicas, formas de pensar e procedimentos musicais, se

diferenciam em muitos aspectos da tradição rural da rabeca e, em muitos outros, se assemelham.

A aceitação da diversidade atual no saber e fazer musical dos rabequeiros é um passo inicial

para a elaboração de esquemas conceituais e de identificação mais abertos e flexíveis sobre esta

música.

4. Os problemas que surgem na identificação destes agentes sociais

O problema das notas passageiras sobre a rabeca, encontradas em diversos autores, é que

elas terminaram por se constituir numa formulação oficial de identidade musical pautada em

14
fragmentos dispersos e, sobretudo, focada apenas no instrumento rabeca – ou, quando muito, numa

suposta natureza objetiva do fenômeno musical esboçada pelo pesquisador. Também desconsideram

um importante aspecto do fenômeno, que é a própria capacidade de construção e representação de

identidade musical por aqueles que fazem a música de rabeca ou que a consomem, em cada um dos

contextos onde esta se faz presente.

Ou seja, desconsideram a concepção que os rabequeiros fazem de si próprios e os seus

pensamentos acerca da música. E como, a partir destes pensamentos, constroem aquilo que só existe

objetivamente a partir de interesses sócio-musicais subjetivos.

Nesta dissertação, busca-se considerar que a possibilidade de um esboço de identidade

musical entre rabequeiros passa pela consideração de suas concepções, práticas musicais e produtos.

Considera-se, também, que é frágil e limitada a tentativa de uma identificação apenas por área

geográfica. Pois, apesar de sua maior presença na faixa da Mata Atlântica, é possível encontrar

núcleos importantes de rabequeiros em outras regiões.

Entende-se que a rusticidade foi, a um certo tempo, um aspecto marcante na cultura de

rabequeiros. Mas isto também é variável na história das culturas 8. O fato de que, atualmente, jovens

rabequeiros estão imersos no universo da música popular urbana – universo este que em não busca

representar-se ou identificar como rústico – é um sinal da variabilidade neste aspecto de

identificação. Assim, aqui se postula um entendimento da identidade musical dos rabequeiros como

algo que não é monolítica; que não é, em todos os seus aspectos, comum a todos; que é flexível e

passível de modificações, a partir das relações sócio-musicais estabelecidas.

Buscar estabelecer uma identidade para os rabequeiros e sua música a partir do encontro de

uma tipicidade objetiva não é muito profícuo, pois não somente desconsidera as formas de pensar

de quem faz a musica, como também que o “típico” não é apenas aquilo que é mais marcante, mas,

também, que é algo resultante, em um determinado segmento cultural, de um processo de

8
A própria sonoridade e aspectos da performance de rabequeiros é aceitável como sendo rústica a depender do viés
que se adota para observar. Pois, muitos destes elementos se constituem em manutenções, na atual cultura musical
sertaneja, de aspectos do estilo sonoro-musical próprios barroco musical erudito Europeu do século XVII.

15
manipulação simbólica com vista a produzir para outrem uma “identidade” de si. Marcando, assim,

um território sócio-cultural próprio e simbolicamente controlado. A este respeito, Penna (1992: 77)

observa que:

Quando determinados traços e práticas culturais são selecionados como “símbolos”


de identidade, sua natureza é alterada: sua imutabilidade é enfatizada, pois buscam
reproduzir e representar o autêntico e o tradicional, tornando-se traços descritivos na
construção coletiva da identidade do grupo. (...) Confere novos significados a estas
práticas, ao mesmo tempo em que lhes retira o caráter vivo, mutável e dinâmico,
fixando-as como um fetiche.

Na pesquisa que deu suporte a esta dissertação, buscou-se apreender a complexidade

da música dos rabequeiros e suas formulações de identidade, não apenas no vislumbre de práticas

musicais, mas também, em como estas são pensadas e representadas para si e para outrem. Para

tanto, a consideração de aspectos subjetivos e objetivos destas músicas é igualmente importante; da

mesma forma que é importante o conhecimento da estrutura social que dá lastro a tais práticas

sociais. Considera-se, também, que uma prática musical pode ser simbolizada e representada de

maneiras diferentes por grupos sociais distintos.

As práticas musicais permitem um entrelaçamento de formas sociais de cognição,

mas não fornecem, diretamente ou por si, os elementos identificadores do sujeito ou do grupo que

as objetivam. Somente a partir do como são interpretadas e valoradas pelos receptores – através dos

esquemas classificatórios, para forjar interpretações, que possuem os grupos sociais – é que se

tornam práticas musicais identificadoras de um determinado sujeito ou grupo no espaço e no tempo

das culturas. Identidade não é um dado fixo pré-estabelecedor das relações sócio-musicais, mas algo

que se estrutura na dinâmica das relações sociais. Buscar entender identidade musical como algo

dinâmico e construído, implica em entende-la não como um dado prévio às relações sócio-musicais,

mas que, conforme Penna (1992: 80):

Expressa necessariamente e de modo explícito, quer no nível do grupo quer do


indivíduo, a problemática do reconhecimento social: formas de reconhecimento que
envolvem disputas em torno de critérios de delimitação e qualificação dos grupos.

16
Abordando o fenômeno identidade como algo que não se resume às práticas ou aos dados

objetivos, possíveis de “visualização” direta pelo pesquisador, Lévi-Strauss (1975: 369) observa

que identidade é:

Uma espécie de foco virtual ao qual nos é indispensável referir para explicar certo
número de coisas, mas sem que tenha uma existência real. (...) é a existência de um
limite ao qual não corresponde, na realidade, nenhuma experiência.

Assim, é na interação de concepções, produtos e procedimentos musicais que se pode (cf.

Merriam, 1964) adentrar na complexidade de um fenômeno musical na busca de elementos para a

sua identificação cultural.

Mesmo que, dentro de um campo geral de identidade, estes músicos possam ser

classificados como rabequeiros, existem variações na formação e estruturação de identidade social

deles – e dos segmentos que com eles comungam determinadas idéias, objetos e procedimentos –

resultantes das suas formas de inserção, ação e reação em determinadas situações sócio-musicais

colocadas.

17
Capítulo 3

ELEMENTOS PARA UMA ORGANOLOGIA DA RABECA

1. Afinação usada pelos rabequeiros

Nesta pesquisa observou-se que a altura sonora absoluta utilizada pelos rabequeiros advém,

em parte, da necessidade de obtenção de uma adequada tensão nas cordas.

Mesmo sem usar um diapasão para a obtenção da afinação pretendida, cada um dos

rabequeiros pesquisados – exceto os dois rabequeiros mais jovens que usam diapasão eletrônico –

mantinha praticamente a mesma afinação nas diferentes oportunidades em que se fez o registro das

suas músicas. A altura sonora absoluta de cada uma das rabecas registradas nesta pesquisa varia no

espaço de um intervalo de quinta aumentada (exemplo 1). Observando-se aqui que as diferenças

microtonais estão sempre presentes na execução deste instrumento e que o registro das alturas no

molde convencional de notação adotado na música erudita de tradição ocidental é algo

relativamente arbitrário9.

Na afinação da rabeca o intervalo sonoro buscado entre as cordas é o de quinta justa, mas

este intervalo nem sempre é obtido, sendo possível observar pequenas alterações microtonais.

No processo de afinação do instrumento, rabequeiros como Artur Erminio, João Alexandre e

Geraldo Idalino afinam as cordas segurando o instrumento com uma mão, apóiam-no nas pernas e,

com a outra mão, dedilham as cordas uma a uma e ajustam as cravelhas na busca do intervalo de
9
A adoção do sistema convencional de notação sem uma adição de sinais diacríticos para a observação de diferenças
microtonais é relativamente eficaz neste trabalho, visto que ao mesmo se faz acompanhar um registro sonoro em CD
que permite ao leitor realizar suas próprias observações acerca destas diferenças. De outra parte, sendo a rabeca um
instrumento de afinação não temperada, no registro em notação da sua música pode-se utilizar boa parte dos
símbolos gráficos usados para a notação da música de instrumentos semelhantes como o violino – isto porque já se
tem uma noção da relatividade entre o que está escrito e o que é tocado por estes instrumentos. A “auralidade” é
capaz de melhor resolver questões como esta onde, por mais que se tente um sistema de notação pleno em todas a
variáveis, sempre haverá brechas de interpretação que somente podem ser apreendidas numa verificação da
performance em seu contexto. No espaço da música erudita um grande problema na notação do microtonalismo se
demonstra na própria utilização do sustenido e do bemol na notação de música executada por instrumentos não
temperados. É larga a proporção em que este semitom varia na história (na execução de música barroca, romântica
ou contemporânea, por exemplo), e nas formações instrumentais como uma orquestra, um duo de um violoncelo e
piano ou em um quarteto de cordas.

18
quinta justa. Após esta etapa da afinação, eles costumam passar o arco em duas cordas

simultaneamente – mas apenas para ratificar a etapa anterior, pois não mexem mais nas cravelhas,

continuando a afinação como estava.

É bastante provável que esta maneira de realizar a afinação do instrumento, seja responsável

pela afinação diferenciada do intervalo de quinta entre as cordas. Este tipo de intervalo obtido, pelo

que se pôde observar, dota a rabeca de uma sonoridade específica se comparada a outros

instrumentos não temperados, mas que possuem uma precisão maior na afinação entre as cordas,

como o violino10.

Maciel Salustiano usando micro-afinadores para afinar a rabeca.

Siba Veloso e Maciel Salustiano usam micro-afinadores nos seus instrumentos. Para Maciel

Salustiano estes servem “... para dar mais facilidade pra mim. Para mexer na afinação, é só vim aqui
10
O tipo “irregular” de intervalo obtido pelos rabequeiros não é diretamente buscado por uma opção de beleza ou de
performance que se tenha. Também, não consiste numa “desafinação” visto que historicamente tornou-se um padrão
na música deste instrumento. A especificidade sonora e a “beleza” peculiar adquirida nesta música advêm, em parte,
desta suave modificação na afinação das cordas do instrumento.

19
e mexer”. Embora realizando o mesmo procedimento inicial que Artur Erminio e João Alexandre

usam na afinação, é na segunda etapa – a da microafinação com o toque com arco em cordas duplas

– que estes rabequeiros dedicam maior atenção na busca de intervalos mais exatos de quintas entre

as cordas.

A primeira corda, a mais aguda, é sempre a referência para a afinação das outras. Afora os

jovens rabequeiros que usam afinadores eletrônicos como auxílio para a manutenção da afinação da

altura absoluta da primeira corda, os mais idosos não costumam mexer na afinação desta corda, a

não ser que ela desafine completamente. Para rabequeiros de cavalo-marinho como Artur Erminio e

João Alexandre, a altura desta corda está, de algum modo, condicionada à voz dos cantores. Como

estes tocam, quase sempre, com os mesmos cantores, a afinação desta é sempre mantida na mesma

altura.

A noção da altura sonora das cordas para os rabequeiros tradicionais seja descendente e não

ascendente, do grave ao agudo, como o é para a maioria dos músicos com formação conservatorial.

Raramente estes rabequeiros efetuam uma alteração na primeira corda, bem como têm na primeira e

segunda corda, as mais agudas, uma referência, na maioria dos casos, para a execução musical.

2. Cordas usadas e sonoridade da rabeca.

O aspecto “roufenho” da sonoridade da rabeca se deve, em parte, ao tipo de corda e ao

tamanho do instrumento11. Isto em conjunção com o peso do arco, seu tamanho e o tamanho da

rabeca, propicia uma sonoridade específica à rabeca. Sonoridade esta que não é “estridente” e

“aberta” como a de um violino ou “doce” e “fechada” como a de uma viola de orquestra, se


11
Atualmente, cordas de cavaquinho são usadas pela maioria dos rabequeiros. Fatores como preço, tamanho da corda
e facilidade de encontrá-la no mercado parecem ser imperiosos na escolha dos rabequeiros por este tipo de cordas.

20
comparados os timbres destes três instrumentos nas suas utilizações em seus respectivos contextos

musicais. Quanto maior o tamanho do instrumento, mais “roufenho” se apresenta seu timbre – como

é o caso da rabeca de João Alexandre, a de maior tamanho encontrada nesta pesquisa.

Não há, portanto, uma sonoridade geral e única da rabeca nordestina. Alguns aspectos são

comuns a todas as rabecas, mas os tamanhos dos instrumentos e os materiais usados na sua

confecção pelos rabequeiros, fazem com que, em cada rabeca, se possa observar diferenças de

timbre e de outros aspectos sonoros. O timbre das rabecas pesquisadas à época de Câmara Cascudo,

por exemplo, pode ter sido diferente do atual timbre de rabecas nas quais se usam cordas de aço e

não de tripas ou outros materiais, como no passado.

Ou seja, não existe uma rabeca modelar em sua natureza física e sonora, como este

instrumento é passível de alterações, como todos os outros, no tempo e no espaço das culturas.

Maciel Salustiano usa cordas de aço para violão, o que faz com que seu instrumento possua

uma sonoridade mais “encorpada” e densa, visto a corda do violão ser mais grossa que a de um

cavaquinho e, assim, suportar melhor a pressão do arco e não dispersar tantas freqüências em forma

de “ruído”, quando friccionadas.

O rabequeiro Siba Veloso relata que depois de muitos experimentos passou a usar cordas

para guitarra de jazz – que são lisas como as usadas em instrumentos de orquestra e mais grossas

que as de violão. Para ele, a opção por estas cordas se deve a um tipo de timbre e sonoridade

buscada para sua rabeca, ao fato de utilizar mais a região média da tessitura e por usar uma afinação

mais baixa que a de costume entre os rabequeiros de cavalo-marinho de Pernambuco12. Isto torna

mais cômoda a sua atividade de canto com acompanhamento do instrumento.

Conforme este rabequeiro, o uso de cordas de violão numa afinação baixa diminuiria um

pouco a tensão própria e necessária à rabeca, assim como as cordas de violino ou viola de orquestra

dariam à sua rabeca uma sonoridade “adocicada”, o que não é desejado pelo mesmo. Cordas de

12
Em Murphy (1997: 157) observa-se que a altura absoluta da afinação usada por rabequeiros em Pernambuco é
próxima das que se encontrou na Paraíba entre rabequeiros de cavalo-marinho.

21
guitarra dão ao seu instrumento uma sonoridade menos “rasgada”, menos fragmentada, ao passo

que mantêm a tensão e a densidade sonora – um aspecto de sonoridade requerido pelos rabequeiros.

Aliás, a preocupação com timbre e sonoridade em geral entre os jovens rabequeiros não

indica um tipo de busca de adoção da sonoridade do violino para a rabeca. Consiste muito mais na

utilização de recursos materiais adicionais, a partir de necessidades musicais solicitadas pelos

contextos onde atuam, que são contextos diferentes daqueles onde atuam os rabequeiros

tradicionais.

3. Variação no tamanho das rabecas.

Nesta pesquisa, encontrou-se rabecas cujas dimensões variam de um pouco maior que uma

viola de orquestra a um pouco maior que um violino13. A rabeca de João Alexandre, a mais antiga

de todas, tem as seguintes dimensões:

– Testos14 com 39 centímetros de comprimento, com a parte inferior medindo 23


centímetros e a superior 18 cm de largura.
– A cintura tem 8,5 centímetros de abertura.
– Faixas laterais com quatro centímetros de altura. A altura máxima do instrumento (a
medida entre as extremidades dos testos) é de sete centímetros.
– Os “S” medem 12 centímetros cada. O repuxo mede 12 centímetros.
– O cavalete é colocado a 12 centímetros da língua. Tem 3,5 cm. de altura e 4,5 cm. de
comprimento.
– O braço da rabeca mede 11 centímetros e a língua (parte lisa fixada em cima do braço na
qual as cordas são dedilhadas) 24 centímetros de comprimento, com largura de 2 e 3,4
centímetros em cada extremidade.

13
É importante frisar que em nenhum momento deste trabalho se pretende uma abordagem comparativa entre o violino
e a rabeca. O uso, em poucos momentos, da referência ao violino para a observação de alguns aspectos da rabeca,
deve-se exclusivamente à necessidade de facilitação de uma compreensão por leitores que, talvez, nunca tenham
visto ou ouvido uma rabeca. Assim, algumas referências ao violino servem como um meio para ilustração do que se
pretende discutir.
14
“Testo” no Novo Dicionário da Língua Portuguesa – Aurélio, é “tampa de barro ou de ferro para vasilha” e numa
acepção popular é aquela parte mais densa de comida que fica grudada no fundo da panela. Sendo os ‘testos’ as
partes que “tampam” a rabeca, esta denominação verbal de uma parte da rabeca parece ainda manter aspectos da
cultura da zona rural nordestina (Ferreira, 2000: 1384).

22
– A cabeça (parte extrema do braço onde se fixam as cravelhas) tem 12 centímetros de
comprimento e 3,4 de largura.
– As almas (nesta rabeca são duas colocadas abaixo de cada uma das laterais do cavalete,
próximo às aberturas dos “S”) medem 6,2 cm. de altura e 1,3 cm. de largura.
– O arco tem 58 centímetros de comprimento e a crina é colocada a 3,5 centímetros de
distância da vareta.

Nesta pesquisa, foi observado que a construção de rabecas com dimensões próximas às de

um violino não é, por si, um indicativo direto de mudança nos procedimentos dos artesãos em busca

de uma aproximação ao modelo do violino. O que se pôde constatar como fato mais importante, é

que as dimensões das rabecas variam conforme cada artesão nas suas tentativas particulares de

equalização entre aspectos de sonoridade e beleza visual do instrumento.

Não se desconsidera que, numa troca de informação com outros segmentos culturais, alguns

aspectos do modelo do violino estejam vindo a influenciar a construção de rabecas15. Mudanças nos

procedimentos de construção que poderiam advir de um contato maior dos rabequeiros artesãos

com o violino ou viola de orquestra, ou seja, com a migração de parte dos rabequeiros para as

periferias das grandes cidades nas últimas décadas. Afinal, no processo de homogeneização da

cultura o violino, enquanto instrumento símbolo de um segmento cultural hegemônico, é

apresentado aos outros segmentos como modelo a ser copiado.

O artesão Manoel Severino Martins que fez as rabecas de Siba Veloso e Maciel Salustiano,

em depoimento a Pacheco (2001: 22) conta que fazia rabecas quadradas, mas, atualmente, faz de

outra maneira – suas rabecas têm dimensões e formatos aproximados de um violino. Diz que essa

mudança que ocorreu a partir da influência de um outro rabequeiro pernambucano, o Manoel

Salustiano (Mestre Salú), que tinha contatos em Recife e lhe trouxe um molde para fazer rabecas.

No seu depoimento ele fala que:

15
Trocas estas gradativamente aceleradas a partir da urbanização de comunidades interioranas, da migração de muitos
para a periferia de grandes centros urbanos e do avanço da indústria da informação.

23
Ele vinha, levava, encomendava, todas daquelas quadradas, foi o tempo. Até que ele
se abusou da rebeca quadrada e foi que ele trouxe o molde pra eu fazer, seu Mané
mesmo foi quem trouxe o molde, e disse: ‘faz a rebeca com esse molde que fica mais
bonita que a rebeca quadrada’. Eu disse: ‘ta certo’, e aí fiquei fazendo, todo dia
assim.

O artesão Nelson da Rabeca, do Estado de Alagoas, comenta que começou a construir

rabecas há poucas décadas, a partir de um violino que viu na televisão. Porém, muitas de suas

rabecas têm dimensões e formatos bastante diferentes de um violino.

A variedade de tamanhos e formatos das rabecas de Nelson da Rabeca.

Embora saiba da existência do violino e demonstre admiração por este instrumento, Artur

Ermínio é taxativo ao afirmar que há uma diferença entre rabeca e violino e que um dos aspectos

distintivos entre ambos é o seu tamanho.

Apesar da influência da cultura do violino entre os rabequeiros e artesãos de rabeca, não

parece haver uma tendência direta e clara para uma adequação da rabeca ao violino. O que é claro é

que, embora os rabequeiros apresentem, em determinados momentos, alguns sentimentos de

inferioridade em relação aos violinistas, no diálogo cultural intermitente que travam com outros

segmentos culturais, estes músicos optam por manter aspectos do seu saber e fazer musicais como

formas de manutenção das suas identidades. Tudo indica ser este o caso dos artesãos de rabeca

24
como Artur Ermínio que, apesar da admiração pelo violino, continuam construindo suas rabecas de

maneiras bem diferentes, uns dos outros.

Contrapontos como estes que se estabelecem ao longo de toda a nossa história cultural

permitem observar que a rabeca não é historicamente um instrumento derivado do violino.

Também, atualmente, a rabeca tem uma existência própria na cultura popular, não sendo entendida

por aqueles que perfazem esta própria cultura, como um instrumento cuja existência derive da

presença do violino nos centros urbanos, ou pela falta de violinos nas comunidades onde a rabeca é

musicalmente utilizada.

Pretende-se observar que somente a análise das dimensões e de outros aspectos físicos da

rabeca e do violino não é suficiente para uma tentativa de comparação direta da rabeca, colocando-a

como instrumento musical derivante do violino.

Em Lima (1981: 133), há um interessante e controverso depoimento que revela uma

prematura tendência à comparação entre a rabeca e o violino16. Assim é dito:

A rabeca do grupo pesquisado no seu todo se aproximava muito das características


do violino. Mas o som era de rabeca, tanto que de início tivemos a impressão de
ouvir um som parecido ao da viola de orquestra. (grifos colocados nesta dissertação)

O “seu todo”, neste caso, se restringe apenas ao aspecto visual do instrumento e, assim, a

apreensão da rabeca é reduzida à sua dimensão física. Ao som da rabeca – aquilo que lhe é mais

essencial – não é atribuído uma qualidade própria, mas uma “imitação” do som da viola de

orquestra. Demonstra-se, assim, que sem uma ampla abordagem da música, do contexto em que esta

música se realiza e do amplo complexo cultural que envolve a atribuição identificadora do

rabequeiro, a rabeca será sempre considerada como instrumento bastardo da nobre família de

instrumentos de orquestra, ou será submetida a uma compreensão dúbia quando entendida como

instrumento híbrido resultante de uma fusão entre a viola e o violino.

16
Isto também muito presente em outros estudos ou alusões à rabeca como é o caso de Dias (1977: 44) onde na
referência à rabeca em um folguedo popular o autor a menciona como um “violino artesanal de som áspero”. Este
tipo de menção ou análise apenas reafirma a idéia hegemônica de que os produtos culturais de segmentos populares
da sociedade são resíduos artesanais do que é produzido em um nível “acima” da cultura.

25
No caso da rabeca, esta tendência a uma abordagem comparativa parece ser mais forte que

em outros instrumentos. Enquanto instrumento historicamente alocado no espaço da cultura rústica

do nosso país, a rabeca tem um “concorrente” direto no espaço da cultura letrada: o violino, que é

um dos símbolos maiores desta cultura. Estando a cultura musical da rabeca numa contínua situação

de fricção com a cultura do violino17 - principalmente quando se desloca de um ambiente

estritamente rural para aa periferias dos centros urbanos – é, de certo modo, compreensível que as

abordagens comparativas feitas por estudiosos do passado tenham sido motivadas por esta própria

condição sócio-cultural da rabeca18.

No presente trabalho busca-se observar que embora o instrumento rabeca, na sua natureza

física, seja um elemento objetivo importante na delimitação de identidade dos rabequeiros, a

identificação de cada um destes músicos pode ser mais bem realizada quando da abordagem de seus

procedimentos e idéias musicais. Evita-se, também, uma abordagem de cunho diretamente

comparativo da música de rabeca a outras músicas privilegiando-se a comparação entre os casos e

perspectivas internos à cultura da rabeca19.

17
No caso da rabeca este choque ou fricção entre culturas parece ser mais evidente e efetivo do que em qualquer outro
instrumento ou prática musical erudita ou popular em nossa cultura. A própria denominação de rabeca, e não de
violino popular, parece ser um caso impar de manutenção de uma tendência cultural na nossa música.
18
Estudos comparativos nesta estiveram em voga em um determinado momento da história da etnomusicologia.
Acerca dos problemas da tendência prematura a abordagens comparativas, antes de estudos de cada uma das
culturas a serem comparadas, Mantle Hood – citado em Greber (1975: 14) – faz a seguinte observação: “Las
publicaciones tempranas se preocuparon prematuramente del metodo comparativo. Su conclusiones generales. se
basabam con frecuencia en un muestreo inadecuado y poco representativo (...). Los estudios seguientes basados en
estas suposiciones han conducido a un conjunto de errores. (...) La ansiedad [de encontrar semelhanças e diferenças
entre culturas] condujo a la comparación de dos culturas diferentes antes que ninguma de ellas hubiera sido
comprendida.”
19
Uma abordagem diretamente direcionada ao instrumento rabeca pode conduzir à errônea denominação de alguém
como rabequeiro apenas por tocar numa rabeca, ou de alguém como violinista por tocar música de rabequeiros num
violino. Uma demonstração disto pode ser encontrada numa menção de Wagner Campos quando usa a
denominação “virtuose do violino brasileiro”, no encarte do Cd Caranguejo Danado (2000) para se referir ao
rabequeiro Nelson da Rabeca.

26
4. Denominação das partes que compõem uma rabeca

Estudos como o de Setti (1985) e Araújo (1967) demonstram que quando os rabequeiros

fazem referência a partes da rabeca, eles realizam um processo de antropomorfização no uso de

atribuições verbais. Processos que dotam de aspectos próprios do ser humano, como braço, cintura

etc, às partes da rabeca. Tais procedimentos lingüísticos também foram observados entre os

rabequeiros pesquisados neste trabalho. Mas, no caso desta pesquisa, observou-se que este tipo de

procedimento varia, também, de acordo com o grau de assimilação de denominações adotadas na

cultura letrada para se referir a partes de instrumentos como o violino.

É possível observar que o processo de antropomorfização é algo mais presente entre

rabequeiros mais antigos como Artur Erminio e João Alexandre e menos presente em rabequeiros

com uma vivência urbana maior – como são os casos de Maciel Salustiano e Siba Veloso. Pôde-se

observar que aqueles com um acesso maior a informações e termos usuais nos meios letrados

passam a substituir antigas denominações por outras comuns nos contextos onde trafegam.

Na foto abaixo temos a rabeca de João Alexandre e os nomes dados por ele às partes do

instrumento.

1. Cabeça
2. Caravelhas
3. Dentes
4. Braço
5. texto
6. Língua
7. Cintura
8. Cavalete
9. Esses
10. Repuxo

27
As variações de terminologia entre os rabequeiros têm uma relação direta com o

envolvimento de cada um com o artesanato do instrumento. Também, o conhecimento dos nomes

de cada parte da rabeca parece ser menos importante para um rabequeiro que apenas toca do que

para aquele que é artesão. Acerca de sua relação com nomenclaturas designadoras de partes da

rabeca, Siba Veloso afirma que “... como eu nunca me liguei na parte de construção da rabeca, eu

denomino com alguns termos que escutei de outros rabequeiros”.

No quadro a seguir, pode-se observar que Artur Erminio, justamente o único que dentre os

pesquisados é artesão, é o que possui uma denominação específica para todas as partes da rabeca;

isto não acontecendo com os outros.

Nas extremidades deste quadro, encontram-se os rabequeiros Artur Erminio e Siba Veloso.

O primeiro é o único que se dedica exclusivamente a tocar rabeca no cavalo-marinho e que conhece

plenamente os artifícios da construção do instrumento e o segundo é um jovem rabequeiro que

possui formação universitária e teve, em boa parte da sua vida, uma formação cultural urbana. Uma

observação dos dois extremos permite observar que este tipo de lastro cultural está na base das

diferenciações terminológicas entre os rabequeiros.

Artur João Alexandre Geraldo Idalino Maciel Salustiano Siba Veloso

Braço Braço Braço Braço Braço


Cavalete Cavalete Cavalete Cavalete Cavalete
Cabeça Cabeça Sem termo Cabeça Voluta
Umbigo Umbigo Sem termo Sem termo Umbigo
Língua Língua Palheta Escala Espelho
Alma Alma Alma Alma Alma
Caravelhas Caravelhas Tarrachas Cravilhas Cravilhas
Dentes Dentes Dentes Pestana Pestana
Bocas Esses Éfes Ésses Esses
Passaporte Repuxo Pé Banco Estandarte
Testos Testos Testos Testos Testos
Crina Cabelo Crina Crina Crina
Cintura Cintura Sem termo Sem termo Sem termo

28
5. Do artesanato da rabeca

Artur Erminio relata que começou a construir rabecas quando ainda era menino, juntamente

com seu irmão, a partir da observação de outras rabecas. A observação e a imitação são processos

importantes na educação informal nas camadas populares e isto se verifica no aprendizado da

rabeca e no seu artesanato. Mas talvez Artur Erminio esteja associando atividades lúdicas de

imitação de artefatos usados pelos adultos, como é comum na atividade educativa infantil, ao

primeiro ato de fabricar uma rabeca. O mais provável é que ele, assim como ocorre com a maioria

dos artesãos de rabeca, só tenha realmente começado a fazer rabecas quando já sabia tocá-la, na sua

vida madura.

Este rabequeiro faz o arco da rabeca retilíneo sem curvatura para dentro ou para fora como o

arco moderno do violino. Nas extremidades da vareta é colocada uma crina de nylon sempre

retesada, pois o seu arco, como os de todos os outros rabequeiros, não possui um botão para ajuste

da pressão da crina. A madeira usada na confecção do arco é o “Jatobá”, pois, segundo o próprio

Artur Erminio, ela é mais resistente. Ele diz que passa em torno de dois meses trabalhando para

fazer uma rabeca e comenta que a parte mais difícil de fazer é o braço, porque “... tem muitas

voltas”.

Constituído como uma peça única, o braço é feito de “Pau-Ferro” e na cabeça dele são

colocadas quatro caravelhas feitas de “Jatobá”; o que denominam por “dentes” é uma peça única

feita de osso e interposta entre a língua e a cabeça da rabeca, que serve de passagem para o ajuste

das cordas entre o cavalete e as cravelhas. Na parte superior do braço é fixada a língua, feita de

“Cedro”, que tem uma curva mais acentuada que o cavalete. Esta diferença na curvatura da língua

não traz problemas para a execução da rabeca, visto que toda a música de rabeca é tocada na

primeira posição, com a mão esquerda fixa e, portanto, numa região onde a pressão é mais bem

controlada.

29
As ferramentas utilizadas por ele são uma pequena foice com a qual corta as madeiras e

retira os excessos até chegar ao tamanho adequado, para então começar a dar forma às partes do

instrumento. Depois do trabalho com a pequena foice é feita a raspagem das partes com uma faca

para dar o formato ao instrumento. Após este processo as peças são lixadas e encaixadas.

Os testos, parte por onde começa a fazer a rabeca, são duas peças inteiras feitas com a

madeira do “Pinho” ou do “Cardeiro”. Para a confecção das faixas laterais, nas quais os testos são

encaixados, não é utilizado o procedimento corrente na lutheria de tradição italiana que consiste em

esquentar a madeira e amolecê-la, enquanto se faz o contorno. A forma das “faixas” das rabecas de

Artur Erminio é obtida com a raspagem da madeira e, principalmente, com a utilização de uma

madeira mais flexível como o compensado.

Para o encaixe dos testos, faixas laterais e braço o artesão utiliza cola branca de marcenaria

e pequenos filetes de Jatobá com cerca de dois milímetros de diâmetro e aproximadamente cinco

centímetros de comprimento. Estes filetes atravessam as peças assegurando o encaixe de modo a

não facilitar o “descolamento” das partes. No testo superior são feitas as bocas em forma de “S” à

altura da cintura – parte intermediária do texto, cujas cavidades permitem que com o arco se possa

friccionar isoladamente a primeira e quarta cordas.

A alma – filete cilíndrico de madeira com aproximadamente cinco centímetros de

comprimento e quatro milímetros de largura, interposto entre os dois testos – é colocada após o

encaixe completo da caixa de ressonância. Esta peça tem que ser de madeira consistente, pois,

conforme Artur Erminio, é ela que segura o testo evitando que o mesmo afunde.

Este rabequeiro – assim como outros artesãos de rabeca – não tem um modelo desenhado

em papel das partes do instrumento. Ou seja, faz suas rabecas conforme as que viu e assim continua

a reproduzir as mesmas dimensões. É desta peculiaridade que decorre a variabilidade no tamanho

das rabecas entre os artesãos.

30
Neste aspecto há uma questão importante a se ressaltar na discussão sobre o instrumento e a

identidade do rabequeiro. Na realização da pesquisa de campo foram encontrados em Campina

Grande (Paraíba) instrumentos que são muito similares ao violino (v. foto abaixo). O artesão destes

instrumentos – que viveu muitos anos na zona rural do Estado, somente vindo há poucas décadas

para esta cidade – diz que começou a construí-los quando viu um instrumento na televisão e os

denomina de rabecas e não de violinos.

São rabecas ou violinos estes instrumentos? O artesão os denomina como rabecas.

O aspecto “rústico” do instrumento, o fato de ser feito artesanalmente com poucas

ferramentas e técnicas apreendidas a partir do ensaio/erro e o fato de serem denominados, no

interior, de rabecas leva a que estes artesãos entendam que seus instrumentos são rabecas, e eles

rabequeiros. Não há entre a maioria dos rabequeiros tradicionais ou artesãos de rabeca uma

necessidade de se identificar ou ser identificado como violinista ou luthier. Neste ponto é que se

observa que são aspectos culturais e modos de pensar, e não apenas o formato ou o instrumento em

si, os fatores essencialmente determinantes da identidade de um rabequeiro.

31
A sonoridade do instrumento e sua resistência são os principais fatores que preocupam Artur

Erminio quando da manufatura da rabeca. Ele fala que a raiz da Imburana e o Cedro são as

melhores madeiras para fazer o instrumento, pois “... dá o tom e não lacha [fratura]”. Observa que

não se deve fixar as partes do instrumento com pregos, visto que, se assim feito, o instrumento “fica

sem tom”. Ele reclama que:

As tábua fofa [como o compensado] só dão um tonzinho ao instrumento. Madeira de


rebeca por aqui não existe [nos centros urbanos]. Só no interior é que tem. A gente
faz com essas daqui, mas fica sem tom; tem um tonzinho, mas é pouco, né?

A atual dificuldade de encontrar as madeiras tradicionalmente usadas obriga os artesãos ao

uso de outras que, inevitavelmente, trarão mudanças na sonoridade do instrumento. Este é um fator

importante na modificação técnica do artesanato do instrumento nos centros urbanos. Isto pode

mesmo levá-los a parar de tocar por falta de rabecas ou parar de fazê-las e comprar instrumentos

fabricados, como foram os casos de João Alexandre, que passou anos em João Pessoa sem tocar por

falta de uma rabeca e de Geraldo Idalino que, quando trabalhava com pedreiro na década de 70 no

Rio de Janeiro, optou por comprar um violino, por falta de uma rabeca.

Condições ecológicas como a falta da madeira tradicionalmente tida pelos próprios

rabequeiros como a mais adequada para a construção do instrumento, podem concorrer para

modificações no instrumento e, apenas indiretamente, no tipo de produção musical destes

rabequeiros – a própria falta de matéria-prima para construção da rabeca pode acabar com a

atividade do artesão e interferir na própria transmissão deste conhecimento musical.

É o caso de Manoel Nascimento (ver foto abaixo) que por falta de madeira e por necessidade

de tocar o instrumento e manter um pouco das suas tradições, fez para si uma rabeca cujos testos e

faixas são de papelão. Numa comparação mais grosseira a outras situações pelas quais passam os

cidadãos brasileiros, os rabequeiros residentes nas periferias dos centros urbanos têm que colher no

lixo as matérias-primas para a sua sobrevivência musical.

32
O rabequeiro Manoel Nascimento e sua rabeca com testos de papelão.

Aspectos geográficos, climáticos ou ecológicos podem ser considerados na análise do

contexto da música da rabeca, embora não sejam aspectos diretamente determinantes do estilo

musical dos rabequeiros. O que se configura como o contexto imediato, são as formas como os

agentes sociais reagem a esses e outros aspectos – como os de natureza econômica, por exemplo – e

simbólica e musicalmente agem ante aspectos que são objetivos, mas externos à sua produção

musical.

Mesmo um fator deste tipo tenha influência direta em um dos aspectos do saber e fazer

musical de determinado grupo – no caso as mudanças na sonoridade da rabeca a partir da mudança

do tipo de madeira – isto muito dificilmente implicará numa completa alteração ou determinação

direta de um tipo ou estilo musical. Pois, influências deste tipo dificilmente atingem o núcleo

central de um saber musical culturalmente estabelecido. Por isto, quando se pretende observar

implicações desta ordem, também se quer fazer claro que estes se tornam aspectos de um contexto

musical apenas quando vislumbrados a partir da mediação da atividade simbolizadora de cada

segmento cultural.

33
6. Estilo musical e modificação em partes da rabeca

Algumas partes do instrumento têm uma significação especial para os rabequeiros. É o caso

da alma que, no entendimento de todos, possui a dupla função de suporte para a pressão das cordas

e de propiciadora de boa sonoridade para a rabeca. A este respeito, João Alexandre diz que “... tem

que ter a alma pra segurar a força das corda e o testo não afundar com o cavalete”.

As almas das rabecas consistem em filetes quadrados ou cilíndricos que, em algumas

rabecas, são presos diretamente nos testos. Algumas rabecas possuem duas almas colocadas abaixo

de cada um dos pés do cavalete, como é o caso da rabeca de João Alexandre.

Algumas partes das rabecas apresentam modificações que, provavelmente, refletem uma

busca de adequação das formas do instrumento às necessidades de performance de cada rabequeiro.

Nos cavaletes das rabecas as modificações são mais evidentes. Uma análise dos tipos de atuação

musical e de cada contexto onde atuam estes rabequeiros faz-se necessária para que se compreenda

como estas mudanças se operam.

No cavalo-marinho e boi-de-reis, a rabeca tem grande importância na condução da música,

pois atua como instrumento guia na introdução de toadas e no desenrolar delas quando duplica a

voz dos cantores tocando a mesma melodia (faixa 1 do CD). Também ajuda a preencher o espaço

sonoro do grupo servindo como elemento de ligação entre o canto e o ritmo estabelecido pelos

instrumentos de percussão –combinando a execução de melodias, que têm contornos semelhantes às

dos cantores, com esquemas rítmicos próprios que não são os mesmos dos percussionistas, mas

contraponteiam com estes aumentando a densidade sonora da música.

Este papel de instrumento acompanhante e de ligação entre cantores e percussionistas que a

rabeca tem no conjunto do cavalo-marinho e boi-de-reis exige do instrumento e do instrumentista

uma razoável potência e densidade sonora. Além disto, a rabeca tem que concorrer com a

sonoridade do pandeiro, do triângulo e do bombo no caso do cavalo-marinho que Artur Erminio

toca.

34
Assim, a utilização de outra corda, como um bordão ou como duplicação harmônica da

melodia, na execução das músicas do cavalo-marinho é um traço estilístico dos rabequeiros que, de

certa forma, é motivado pela própria necessidade de maior volume e densidade sonora na música

destes folguedos.

O toque em cordas duplas agudas, na execução de pequenos solos introdutórios no início das

toadas, também é muito comum entre rabequeiros de cavalo-marinho. Provavelmente, isto

corresponda tanto a um gosto musical dos rabequeiros e de pessoas que assistem aos cavalos-

marinhos, visto a sua manutenção até os dias atuais. O toque em cordas duplas na região grave do

instrumento também serve, em determinados momentos, como auxílio no impulso e na sustentação

e manutenção do vigor rítmico nas danças.

Um rabequeiro de cavalo-marinho como Artur Erminio da Silva (76 anos) tem uma série de

condicionantes estilísticos que o orientam na performance musical. Neste sentido – e considerando

que modificações na estrutura dos instrumentos musicais advêm sempre de exigências ante a

facilitação de necessidades performáticas – a manutenção de um cavalete semi-reto, com pouca

curvatura, por este rabequeiro é indicativo de uma resposta sua à necessidade de realização

constante do toque em cordas duplas na música do cavalo-marinho.

A manutenção deste tipo de cavalete pela maioria dos rabequeiros de cavalo-marinho, não se

deve ao desconhecimento de um tipo de cavalete curvado como o do violino. Provavelmente, se

deva a uma necessidade de realização destes traços estilísticos historicamente sedimentados nestes

folguedos. Sobre a curvatura do cavalete, Artur Erminio fala que:

É retinho, porque se a gente for fazer alto e baixo dos lados, aí a corda fica descida
pra cá e pra cá [apontando as laterais do cavalete]; tem que ser retinho pra quando o
arco pegar, passa logo nas duas.

João Alexandre (71 anos), além de ser rabequeiro do cavalo-marinho e do boi-de-reis do

bairro dos Novais, na cidade de João Pessoa, teve um passado ligado aos bailes de forró – atividade

esta que ainda mantém de alguma forma, quando toca para os amigos em bares da vizinhança. Nos

35
contatos que foram mantidos este rabequeiro demonstrava espontaneidade quando sempre

procurava tocar alguma música nova que aprendeu através do rádio – o que deixa claro a

continuidade de um apego à música da rabeca solista, como havia em antigos bailes de forró.

Sobre o cavalete de sua rabeca, que possui uma curvatura um pouco mais acentuada que o

da rabeca de Artur Erminio, João Alexandre diz que prefere assim, pois “... não pode ser igual não

[as extremidades do cavalete]. Tem que ser meio descido”.

A diferença entre Artur Erminio e João Alexandre, em termos de atividades musicais, reside

no fato do segundo manter uma maior convivência diária com gêneros musicais veiculados nas

rádios – principalmente música de forró de Luiz Gonzaga e Jackson do Pandeiro – que ele procura

tocar na rabeca. É bastante provável que a opção deste rabequeiro por um cavalete um pouco mais

curvo – que lhe possibilita executar com mais facilidade uma melodia sem necessariamente tocar

em outra corda – advenha desta influência que tem da música popular urbana. Também, os padrões

musicais daqueles com quem mantém cotidianamente contato e para os quais esporadicamente toca

– padrões estes que têm como referência um tipo de música com melodia acompanhada de forma

clara e explícita – pode ser uma forte influência na postura musical deste rabequeiro. O tipo de som

das cordas duplas da rabeca de cavalo-marinho pode não ser um indicador de boa execução musical

para essas pessoas, mas um sinal de ruído e rusticidade que tendem a renegar20.

Isto tem reflexos na própria performance de João Alexandre no cavalo-marinho e no boi-de-

reis, vindo o seu estilo de acompanhamento a ser um pouco diferente do estilo de Artur Erminio. O

mesmo usa as duas primeiras cordas sem muitas duplicações, ao passo que mantém o vigor rítmico

necessário à música do cavalo-marinho, tocando com mais freqüência a terceira corda como uma

espécie de baixo – como pode ser observado na transcrição de “É Fulô”.

20
Esta relação entre cordas duplas e simples, enfim, entre aspectos do produto musical dos rabequeiros de cavalo-
marinho e gosto musical nos ambientes em que se mantêm estes folguedos é uma questão complexa que necessita
uma averiguação mais detalhada. Certa vez, uma pessoa que assistia a uma apresentação do cavalo-marinho de Artur
Erminio se referiu ao som da rabeca como sendo um barulho. Pressente-se que este não seja um caso isolado, mas
um sinal de que a mudança nos gostos e referências musicais destas pessoas, quando da sua busca de inserção na
cultura urbana, pode estar se refletindo na rejeição ao estilo performático dos rabequeiros mais antigos.

36
Nas performances de Artur Erminio e João Alexandre há dois tipos de intenção musical para

com a rabeca, quais sejam: o uso do instrumento na produção rítmica, no caso de Artur Erminio, e

para a produção de melodias, no caso de João Alexandre. Estes aspectos também foram analisados

por Setti (1985: 129-130) ao relatar que na música da comunidade caiçara de Ubatuba há várias

funções para as quais se utilizam “diferentes toques” de violino e que é possível abstrair três tipos

básicos de desempenho atribuídos pelos próprios músicos a este instrumento, quais sejam: o de

cantar, de tocar e de fazer sapateado.

Geraldo Idalino (59 anos) é o único rabequeiro que ainda toca em bailes de forrós, faz

apresentações em praças públicas e tem seu próprio conjunto formado por violão, pandeiro,

zabumba, triângulo e cantor. Ele diz que há muitas décadas abandonou as atividades musicais nos

cavalos-marinhos, babau e boi-de-reis.

Sua música varia entre gêneros para rabeca solista com acompanhamento e outros em que a

rabeca serve como instrumento guia, compartilhando melodias com um cantor. Tem um estilo

melódico claro, com uso comedido de cordas duplas, sendo estas usadas como reforço sonoro em

algumas regiões melódicas ou como forma de realce harmônico para determinadas cadências, e não

possuindo uma função rítmica como possui no estilo dos outros rabequeiros.

Geraldo Idalino critica o estilo, que chama de “barulhento”, dos outros rabequeiros e toca

num violino que ganhou de presente – cujo cavalete, feito artesanalmente, tem a mesma curvatura

de um cavalete usado em violino. Este tipo de cavalete arredondado é útil na obtenção de um som

mais “limpo” e na realização de melodias sem cordas duplas, como esse rabequeiro deixa entender.

Quando se apresenta em programas de rádio, principalmente os de música regional, ele

costuma se identificar como violinista. Este músico que trafega em setores do mercado fonográfico

onde o estilo e a música tradicional de rabeca não têm espaço, se identifica como violinista por

causa de uma imposição externa do ambiente de mercado e de um interessado jogo de representação

37
empreendido por ele próprio, como forma de sobrevivência cultural 21. É um conflito que se reflete

na sua performance musical, pois em muitos aspectos o violino de Geraldo Idalino é tocado como

uma rabeca.

Maciel Salustiano e Siba Veloso fazem seus próprios cavaletes e sobre a questão da

curvatura e do resultado musical pretendido, Maciel Salustiano explica que:

O cavalete reto às vezes você tá tocando numa corda e também toca na outra. Aqui
eu toco, mas tem uma diferença, eu toco nessa corda [indicando a primeira] e só toco
na outra se eu quiser; por opção.

E Siba Veloso, que se entende mais como um rabequeiro de cavalo-marinho, justifica o tipo

de tratamento dado ao cavalete de sua rabeca (cavalete feito de osso e não de madeira) pelo fato de

que, em participando de um grupo de música “pop” (as aspas são “gestualizadas” por ele na

entrevista) tem que produzir uma sonoridade mais clara.

O estilo destes rabequeiros, quando tocam músicas do cavalo-marinho, é semelhante ao dos

tradicionais rabequeiros em boa parte dos aspectos, mas difere no uso das cordas duplas que são

utilizadas como um recurso de densidade sonora em determinados momentos melódicos, mas não

têm a mesma presença que têm na execução de Artur Erminio, por exemplo. Também diferem do

estilo de Geraldo Idalino, quando não usam as cordas duplas apenas na intenção direta de reforço

cadencial harmônico.

O que foi discutido neste capítulo, indica que as opções e procedimentos musicais efetivados

por estes rabequeiros se devem não apenas à força de sua capacidade inventiva pessoal, mas

demonstram as influências de seus universos específicos de música e cultura. Assim, a

inventividade pessoal e os condicionantes sociais são fluxos que na sua interação fornecem

elementos para a conformação de identidade dos rabequeiros – a partir do como estes reagem e re-

elaboram fluxos em formas de ação social.

21
A própria identificação dada ao mesmo pela gravadora Copacabana quando intitulou seu disco como “Um Violino
no Forró” diz sobre o interesse comercial daquela época e local, o Rio de Janeiro. Talvez a esta época rabeca fosse
concebida como instrumento de matuto e desconhecida por quase toda a população com capacidade de consumo nos
centros urbanos. Geraldo Idalino toma para si esta denominação como uma marca de fantasia que dá nome até hoje
ao seu conjunto “O Violino no Forró”.

38
Capítulo 4

PRÁTICAS, PRODUTOS E CONCEPÇÕES MUSICAIS.

Neste capítulo, são discutidas questões referentes às formas de uso e manuseio dos

instrumentos, aos conteúdos musicais como frases, rítmicas, harmonias e à associação da rabeca a

outros instrumentos ou equipamentos tecnológicos, buscando possíveis ligações existentes entre tais

práticas e conteúdos musicais e a identidade cultural de rabequeiros.

1. O manuseio do instrumento

Nesta pesquisa, verificou-se que os rabequeiros entrevistados mantêm uma postura física

semelhante no ato de tocar o instrumento. Apóiam a caixa de ressonância na região superior do

tórax (entre o peito e o ombro), ficando a rabeca inclinada em direção ao chão. A rabeca é

sustentada com a mão esquerda, o que praticamente obriga o rabequeiro a tocar com a mão parada e

condiciona a digitação a uma única região do instrumento – a mais próxima aos dentes da rabeca22.

Esta posição é tida por todos os rabequeiros como a melhor para apoiar o instrumento.

Os rabequeiros demonstram entender que tocar com a mão parada e digitar as cordas com os

dedos médio, indicador e anular não se constitui numa prática restritiva de execução musical. O que

difere é a interpretação de cada um acerca desta particularidade na execução musical. Geraldo

Idalino, ao se referir a esta questão, diz que:

É porque eu peguei o vício de tocar assim. Aqueles músicos que tocam numa corda
só [os violinistas] vêm até aqui [indicando a região mais aguda do instrumento]. Eu
não. Faço tudo com a mão parada.

A isto que Geraldo Idalino denomina como vício adquirido, Maciel Salustiano interpreta

como sendo uma particularidade na execução do instrumento, ao afirmar que “... a rabeca você

22
A primeira posição dos instrumentos de cordas. Aquela cuja referência para a afinação e posição dos dedos é a
própria pestana (ou dentes, no caso da denominação de alguns rabequeiros) do instrumento.

39
apóia ela no peito, pode levantar, colocar de lado, mas que você segura com a mão e com essa mão

mesmo você tira as notas. É diferente do violino”.

O rabequeiro Maciel Salustiano segura o instrumento com a palma da mão esquerda. O braço da
rabeca fica apoiado entre os dedos polegar e indicador e seu corpo apoiado no próprio braço do
músico.

E considerando as peculiaridades técnicas dos rabequeiros, comenta:

Agora tem uma questão. Tem que ter muita técnica pra você segurar ela com a mão e
tirar as notas, você precisa descobrir isso aí. (...) Na rabeca todas as músicas você
toca, o que você imaginar; depende também do desempenho do rabequeiro.

Os depoimentos destes dois rabequeiros sobre esta questão trazem elementos que servem

para uma análise inicial de como, apesar de objetivamente as práticas musicais serem as mesmas,

alguns traços distintivos se apresentam no estabelecimento da identidade dos rabequeiros. Estes

traços subjetivos têm a mesma importância que os objetivos diretamente observáveis, na

estruturação de identidade musical.

40
Por um lado, Maciel Salustiano tenta demonstrar as particularidades da técnica que o

rabequeiro deve possuir e a sua própria distinção enquanto rabequeiro, deixando claro que há uma

diferença em relação à técnica do violino. De outra parte, Geraldo Idalino interpreta esta diferença

como um vício adquirido e não uma técnica particular apreendida.

A concepção negativa que este rabequeiro tem da rabeca pode ser motivada pelo tipo de

vivência musical que teve, como também por suas tentativas de um engajamento no contexto

musical de mercado nos centros urbanos. Conforme depoimento do próprio Geraldo Idalino (59

anos), na década de 70 ele trabalhava como pedreiro no Rio de Janeiro quando procurou nas lojas

uma rabeca para comprar, mas terminou por comprar um violino visto que “... lá ninguém sabia o

que era uma rebeca”. Durante alguns anos trabalhou como pedreiro, ao mesmo tempo em que

tocava em um “regional”. Nessa época, gravou um long-play para a Copacabana, intitulado Um

Violino no Forró (1982).

No bairro onde reside, a vizinhança o identifica e reconhece como rabequeiro, mas Geraldo

Idalino, que mantém uma relação próxima com conjuntos do emergente forró de Fortaleza,

identifica-se como violinista em todos os lugares onde se apresenta23.

A expressão lingüística “aqueles músicos”, proferida por Geraldo Idalino, vem a se

constituir num sutil artifício de identificação com os violinistas, embora indique um aparente

distanciamento. Isto porque dilui a especificidade do outro, o violinista, numa categoria mais geral,

a de músicos, na qual ele se inclui sem restrições. Geraldo Idalino anula esta distinção maior e

considera apenas um aspecto menor como elemento distintivo entre ele e um violinista – a forma de

tocar o instrumento.
23
O comumente denominado de “forró de Fortaleza” ou “oxente-music”, tem sua grande manifestação no estado do
Ceará. O seu primeiro grande impulso foi no final da década de 80 quando o empresariado de shows daquele estado
começa a promover por toda a região nordeste um tipo de forró que nas casas de shows de Fortaleza era um grande
atrativo para turistas. Este estilo de forró surge, também, a partir de uma reorientação do trabalho de pequenos
conjuntos de baile que anteriormente realizavam festas de fim de semana, tocando principalmente música
internacional em cidades do interior e na periferia dos grandes centros. A crise na “música de bailes” força
guitarristas, baixistas, tecladistas e bateristas a buscar um engajamento nesta nova onda musical que vem a ocupar o
espaço vazio na produção de musical regional nos centros urbanos. Tem como base uma formação eletrônica com
baixo, guitarra, bateria, órgão e... sanfona, juntamente com cantores e apelativas dançarinas. Na busca de um
atendimento dos gostos musicais da classe média urbana, aspectos de rusticidade e ruralidade do forró são retirados
com vistas a uma apresentação mais “asséptica” e consumível deste gênero musical.

41
A forma de tocar é um aspecto objetivo que é altamente condicionado por outros fatores de

natureza mais subjetiva. Geraldo Idalino empunha o instrumento e o arco como um rabequeiro, mas

sua auto-representação e a representação que procura fazer os outros aceitarem é a de um violinista.

Neste caso, o que importa na análise da identidade deste rabequeiro são os fatores objetivos,

os subjetivos ou a combinação de ambos?

É a partir desta problemática que se busca compreender que o instrumento musical é uma

referência objetiva para identificar o instrumentista. Mas o instrumento não é capaz de, apenas por

si ou diretamente, indicar a identidade; isto porque um indivíduo vem a ser rabequeiro não somente

por empunhar uma rabeca ou tocar em um violino.

A referência objetiva do instrumento musical tem sido um elemento bastante utilizado em

muitas discussões sobre a identidade de um rabequeiro. Ora, quando se toma o instrumento ou as

práticas musicais em si e exclusivamente como referência de identidade, está se resumindo o

complexo de elementos que interagem na formação da identidade de um indivíduo ou grupo social à

sua ferramenta de trabalho ou lazer e, no caso da rabeca, que tanto são diversas as formas e

tamanhos deste instrumento quanto o são as práticas dos instrumentistas. Desconsidera-se que no

processo de formação de identidade é justamente o contrário que ocorre, pois é a ferramenta de

trabalho ou de lazer que gradativamente se “desnaturaliza” e assume caracteres identificadores

específicos, a partir da ação sócio-cultural dos indivíduos ou grupos.

Os casos de Roberto Fiaminghi, músico do grupo “Carcoarco” (Campinas/SP), e de Thomas

Rohrer que toca rabeca acompanhando músicos como Zeca Baleiros, exemplificam bem esta

discussão. O primeiro não se identifica como rabequeiro, mas como violinista, e o segundo se

entende como um músico que toca rabeca entre outros instrumentos, e não especificamente como

um rabequeiro. Ambos não são reconhecidos pelos colegas de trabalho ou pelo público como

rabequeiros, embora se apresentem quase sempre tocando com rabecas em seus grupos.

42
De outra parte, a origem geográfica ou social dos rabequeiros também é outro aspecto

objetivo que pode ser tomado como elemento de atribuição de identidade. Enfim, um determinado

tipo de som, de instrumento musical, de prática musical, de local de nascimento ou moradia etc, são

elementos importantes na configuração de um quadro analítico que pode fornecer um esboço básico

do que seja a identidade musical atual de rabequeiros no Nordeste.

O problema advém quando, pela sua própria carga objetiva, estes elementos são entendidos

como referenciais “naturais” na discussão acerca de identidade cultural. Porém, eles não consistem

num apriori, pois suas qualidades “naturais” são culturalmente estabelecidas no diálogo social.

Embora pareçam constituir parâmetros mais científicos, pela sua forte dose de objetividade, que

outros de caráter mais subjetivo, estes elementos não são capazes de per si fornecerem um perfil

completo da identidade de nenhum fenômeno cultural.

Desta forma, não basta apenas a observação de dados objetivos (um tipo de som, de

instrumento, de prática musical), mas, também, a observação de questões de natureza subjetiva e do

como estas objetividades são intimamente simbolizadas pelos atores sociais.

A este respeito, Brandão (1986: 38) afirma que:

Importa compreender a estrutura e o processo das diferentes trocas de bens materiais,


de serviços e de símbolos entre diversas categorias de sujeitos e o modo como
acontecem aí ações e reações de atribuições de nomes, de títulos de determinação de
semelhanças e diferenças que, afinal, tanto se manifestam na maneira como as
pessoas vivem os códigos de seus contatos umas com as outras, quanto na forma pela
qual representam os seus relacionamentos e o reconhecimento de quem são, a partir
deles. A partir do que eles simbolicamente determinam.

Esta “determinação de semelhanças e diferenças” e estes mecanismos de reconhecimento de

si e de outrem são fatores que vêm imprimir um caráter pouco objetivo e bastante dinâmico ao que

se pretende vislumbrar como identidade cultural de um indivíduo ou grupo social.

O caso de Geraldo Idalino é bem significativo nesta discussão. De um lado, este rabequeiro

se reconhece como um violinista, mas não é assim reconhecido pelos moradores de seu bairro, nem

43
por uma significativa parcela de seu público 24. Toca em um violino, mas o manuseia, posiciona e

executa da mesma maneira que outros rabequeiros com a rabeca. O caráter relacional da identidade

cultural se demonstra mais claro quando se observa a posição deste rabequeiro na sua tentava de

inserção no mercado de shows. Em determinada posição relacional, Geraldo Idalino se obriga, e é

externamente estimulado, a se apresentar como um exótico violinista do interior (no mercado de

forró de Campina Grande/PB e de Fortaleza/CE) e, em outra situação, se apresenta como um

rabequeiro, um virtuoso da rabeca –como em recente show na cidade de João Pessoa (conforme

reportagem de Vicente Filho, 2000).

O entendimento da qualidade relacional da identidade cultural é importante para a

compreensão da mobilidade de identidade entre os rabequeiros. Isto é possível de ser observado no

caso de Maciel Salustiano (26 anos). Este rabequeiro já teve uma iniciação ao violino e atualmente

estuda bandolim no Conservatório Pernambucano de Música25. Porém, em nenhum momento dos

encontros mantidos ele demonstrou que sua experimentação com novas sonoridades e formas de

tocar a rabeca esteja motivada por uma busca de aproximação da sonoridade ou postura de um

violinista. Em diversas entrevistas dadas a outros meios de informação, Maciel Salustiano procura

sempre deixar claro que é um rabequeiro e que suas experimentações com a rabeca consistem em

tentativas de buscar continuidade para a música da rabeca, ligando a nova música urbana à

tradicional.

24
Um bairro de periferia que nasce da urbanização de uma favela. Os moradores são, em sua maioria, pessoa que por
motivos diversos deixaram o interior do estado na busca de melhores condições de vida em cidades de maior porte.
25
Maciel Salustiano é membro do grupo Chão e Chinelo, onde toca rabeca. Com este grupo gravou um CD intitulado
Loa do Boi Meia Noite (1998). Atualmente realiza um trabalho paralelo com o DJ Dolores, onde rabeca, guitarra,
baixo elétrico, percussão, groove-box e sampler formam um conjunto para a execução de rap e música nordestina.

44
2. Estilo musical e uso do arco entre os rabequeiros

O arco da rabeca é segurado pela vareta e crina ou somente pela vareta, o que influencia na

produção sonora do rabequeiro26. Sobre esta forma peculiar de segurar o arco, Artur Erminio fala

que:

Se pegar assim [demonstrando uma forma de segurar o arco, parecida com a de um


violinista] fica com o braço mais mole; e se pegar assim [como habitualmente faz]
fica com mais força.

Quando deslizam perpendicularmente o arco sobre as cordas, os rabequeiros realizam pouco

movimento na mão direita e entre o braço e o antebraço, vindo o manuseio do arco a ser realizado

através do movimento completo do braço na sua ligação com o tronco.

O tamanho dos arcos também varia muitos entre os artesãos. Porém, a variação no tamanho

dos arcos é compensada no seu manuseio. Em arcos de maior proporção, os rabequeiros costumam

segurá-lo próximo ao meio e utilizar apenas a metade do arco, o que termina por aproximar o

tamanho de cada arco – sejam eles grandes ou pequenos em seus tamanhos originais. Os arcos das

rabecas de Siba Veloso e Maciel Salustiano são pequenos, e as rabecas também e os arcos usados

por Artur Erminio e João Alexandre, cujas rabecas são de maior proporção, são maiores e usados

apenas em uma pequena região.

Um caso interessante é o de Geraldo Idalino que, mesmo usando um arco de violino, segura-

o quase na metade da vareta, utilizando apenas uma pequena parte dele e transformando-o, assim,

em arco de rabequeiro.

A música de rabeca que se pôde observar em algumas manifestações culturais é de uma

natureza mais rítmica – principalmente a executada em folguedos como o cavalo-marinho. Este

aspecto musical é condizente com o tamanho e o tipo de uso do arco pelos rabequeiros27 e com a
26
Desta maneira eram segurados os arcos de instrumentos de cordas friccionadas na Europa dos séculos XV, XVI e
XVII (cf. Remnant, 2001: 771).
27
Diz-se da produção de uma música com um caráter rítmico e de dança muito evidente. Aqui se considera que toda a
contribuição das culturas africanas na estruturação da música nordestina é importante para a compreensão da
vitalidade rítmica que há nesta música, principalmente no que se refere aos baiões, ou baianos, que são, de certa
forma, performances ruralizadas do lundu. Mas quando são comparados alguns fragmentos desta música com outros

45
manutenção de um tamanho de arco em dimensões próximas às que possuíam os arcos na Idade

Média. Os arcos da família do violino é que aumentaram de tamanho com as próprias exigências da

música clássica e romântica européia com frases que requerem uma maior de continuidade entre os

sons e, portanto, a ligaduras entre eles.

Geraldo Idalino segurando um arco de violino numa posição típica de rabequeiros.

Ao se referir ao uso do arco, João Alexandre ressalta a importância da rítmica da música e,

por evidência, da própria melodia enquanto concebida como entidade combinatória entre tempo e

altura sonora. À sua maneira, este rabequeiro procura explicar esta função do arco ao dizer que:

O braço [direito] é quem treina pra pegar a música. Se pegar o tom e não fazer no
braço [movimentando o arco sobre as cordas], não pega a música; tem que fazer o
manejo do braço.

Esta implícita noção do papel de cada braço ou mão está associada a uma possibilidade de

categorização das substâncias rítmica e melódica (os tons) da música, nas explicações dos

provenientes da península ibérica, observa-se que a música de rabeca aqui no Nordeste do Brasil mantém na sua
essência muitos elementos de tradição européia.

46
rabequeiros tradicionais. Mas da mesma forma que no pensamento musical dos rabequeiros

tradicionais não se observa uma separação conceitual ou prática entre melodia e ritmo, também não

há da parte deles um interesse por uma atividade técnica dirigida a cada um dos braços – como é

bastante comum nos procedimentos de exercício performático, em instrumentos de cordas

friccionadas, que se realizam no âmbito do ensino conservatorial.

Entre os rabequeiros existe uma compreensão do papel de cada braço na performance, mas,

ao mesmo tempo, há um desinteresse em realizar “estudos” separados de arco ou de mão esquerda.

Este desinteresse é normal para eles, visto que quando começaram a aprender tocar a rabeca não

precisaram se submeter a tais tipos de procedimentos técnicos.

Quando questionado sobre o processo de aprendizagem de uma música, João Alexandre não

demonstrou interesse na discussão acerca de uma atividade compartimentada do processo (aprender

a melodia e depois o ritmo, por exemplo), nem de atividades separadas para ambos os braços.

Quando solicitado a executar apenas a estrutura rítmica de uma música – com apenas o manejo do

arco – realiza movimentos desconexos dizendo que “... é essa coisa feia assim”.

O aprendizado de uma música sem a utilização de procedimentos técnicos seccionados, nem

atividades exclusivas com o braço esquerdo ou direito, é um método habitual entre os rabequeiros

tradicionais. A música também é “construída” sem uma necessidade de separação entre atividades

técnicas e interpretativas. Ante a qualidade do pensamento musical destes rabequeiros, o que se

conclui é que a idéia de atividades “técnicas” é algo não somente inexistente para um rabequeiro

tradicional, mas também inócuo na sua práxis musical.

Por este motivo, neste trabalho as denominações “procedimentos” de realização ou

“performance musical” são adotadas no lugar do termo “atividades técnicas” para se referir a este

campo do fazer musical dos rabequeiros.

O ato de manusear com “força” o arco, como exposto anteriormente por Artur Erminio, tem

relação com as próprias características sonoro-musicais do folguedo onde ele toca.

47
A música do cavalo-marinho e do boi-de-reis, afora algumas toadas e os aboios que têm um

caráter mais melódico, é de uma rítmica vigorosa e necessária à manutenção do desenvolvimento

coreográfico do grupo. No exemplo a seguir, tem-se uma transcrição de algumas células rítmicas

mais presentes na música destes folguedos em que é possível observar o acentuado caráter de dança.

O conjunto instrumental que toca nestes folguedos – triângulo, pandeiro, ganzá e até caixa

rítmica e bombo –, aliado a um modo de canto sempre forte do mestre, do Mateus e dançarinos,

exige do rabequeiro um volume sonoro razoável, para seu instrumento não ficar completamente

obscurecido na apresentação, o que implica no uso de uma maior pressão no arco ao tocar28.

Estas condições explicam, em parte, a utilização de pouco arco na execução musical e o uso,

na maioria dos casos, de uma arcada por sílaba da música e toque de arco com poucas ligaduras

entre os sons. O movimento incessante do arco nos baiões deriva da própria necessidade de

manutenção do vigor rítmico da música, vigor este que mais dificilmente seria alcançado com o uso

de muitas ligaduras entre os sons.

Uma desconsideração destes aspectos estritamente musicais pode conduzir a análises

equivocadas sobre os procedimentos de execução dos rabequeiros. Análises onde a “técnica” de

manuseio do arco é abordada separadamente da compreensão dos contextos específicos de

musicalidade e necessidades musicais que lhes forjam.

Lima (1981: 134) esboça um argumento, cuja essência diz respeito a esta problemática.

Sobre o manuseio do arco por um rabequeiro, o autor afirma que:

Na execução das notas longas, o instrumentista sempre e sempre movimentava o


arco, já que não possuía a técnica necessária para puxá-lo inteiramente.

De acordo com este raciocínio, haveria uma técnica única e absoluta para instrumentos de

cordas friccionadas. Técnica “correta” que talvez, para o autor, seria aquela desenvolvida em uma

28
Isto pode ser observado na audição de “Não Chores Dama do Rei” (faixa 1 do CD).

48
esfera cultural mais avançada e que seria apropriada de forma adequada ou inadequada, por outros

segmentos musicais, como o dos rabequeiros29.

Longe de se constituir numa falta de “técnica necessária” do rabequeiro, isto consiste em um

aspecto importante da sua performance, principalmente no cavalo-marinho e no boi-de-reis. Este

estilo performático se faz refletir na atividade musical mais ampla de um rabequeiro que, como João

Alexandre, toca em outros eventos. Ao tocar um forró, por exemplo, este rabequeiro demonstra uma

tendência à realização de muitas arcadas, poucas ligaduras e uma forte intensidade sonora em toda a

extensão da música.

Este uso mais controlado do tamanho do arco não proporciona apenas um timbre áspero à

rabeca. É necessário observar que um tipo de sonoridade mais suave e doce também é produzido

por estes rabequeiros por meio de umas poucas ligaduras entre os sons, principalmente na execução

de toadas, ou no uso de pouca pressão no deslizamento do arco, o que torna o som menos áspero

apesar da pouca utilização da extensão do arco.

Os dois exemplos a seguir consistem em transcrições que buscam demonstrar como são os

procedimentos dos rabequeiros em relação ao uso de ligaduras em trechos musicais. O exemplo 2 é

a transcrição de um trecho de uma toada tocada por João Alexandre, onde se busca traduzir a

relação proporcional entre as sílabas do canto e as arcadas executadas na rabeca no

acompanhamento de toadas. Neste exemplo é possível observar que quando cantam os mestres

tendem a realizar mais ligaduras entre os mesmos sons tocados pelos rabequeiros.

Um outro importante procedimento de execução dos rabequeiros é o fato de realizarem

ligaduras em determinados trechos de melodias através de glissandos entre intervalos de dois a

quatro semitons. São ligaduras obtidas com os dedos da mão esquerda, com uma mesma arcada ou

em diferentes arcadas. No exemplo 3, é transcrita uma passagem em que João Alexandre utiliza este

tipo de procedimento ao tocar “Juazeiro”, música de Luiz Gonzaga.

29
Quando os caracteres mais profundos de um contexto musical são desconsiderados, as análises tendem a buscar
apoio nas comparações. O problema é que nestas comparações, a rabeca e os rabequeiros têm sido, quase sempre,
concebidos como portadores de uma “cultura degradada” em relação à cultura do violino.

49
Procedimentos como este, consistem em um estilo historicamente construído a partir de

determinadas necessidades e soluções musicais encontradas, e não numa limitação da técnica de

arcadas. O fato é que rabequeiros como Siba Veloso e Maciel Salustiano que tiveram acesso ao

conhecimento das técnicas de arco ensinadas em conservatório realizam arcadas semelhantes às dos

rabequeiros tradicionais nas suas performances.

Quando realizam ligaduras entre os sons em gêneros como toadas, cujo caráter evoca uma

maior continuidade entre os sons e uma necessidade de manter alguns deles mais ligados, estes

novos rabequeiros mantêm procedimentos tradicionais de execução. O tipo de ligaduras que

realizam não serve como elemento de contraste entre frases, mas como ligação de ornamentos a

notas “reais” ou como elemento de unificação interna dos pequenos núcleos melódicos que

50
compõem uma toada. Os fragmentos de toadas executadas por Maciel Salustiano e Siba Veloso

(faixas 5 e 8 do CD) e transcritas nos anexos deste trabalho, demonstram esta peculiaridade.

Mesmo que seu campo de atuação musical esteja mais centrado em um ambiente diferente

daquele dos rabequeiros da zona da mata de Pernambuco, Siba Veloso considera que a maneira de

tocar a rabeca dos rabequeiros mais antigos é uma das particularidades definidoras da condição de

ser do rabequeiro. Assim comenta:

Eu considero isto como uma base estética de uma coisa que eu gosto e defendo. Eu
me propus a explorar a rabeca dentro da estética, inclusive de técnica dela. Eu me
proponho a tocar ela dentro daquele molde ali (...). Não tenho nenhum tesão de tocar
muitas escalas na rabeca, tocar em mais de uma posição.

Um elemento que se apresenta como um diferencial entre os rabequeiros pesquisados é a

menor “aspereza” com que os novos rabequeiros produzem os sons, mesmo com muitas arcadas. Os

materiais como cordas de violão ou guitarra e crinas mais espalhadas no arco contribuem para esta

diferença no timbre, mas as próprias exigências sonoro-musicais dos contextos musicais onde eles

atuam devem ser considerados nesta busca de um tipo de timbre diferente na rabeca.

Alguns procedimentos performáticos de rabequeiros da zona rural têm continuidade na

prática dos novos rabequeiros. São os casos da pronúncia sonora sem a separação de um som do

outro e de quando evitam o encurtamento do valor de duração de cada som entre as arcadas. A

separação ou diminuição na duração dos sons somente é realizada em alguns momentos da melodia,

seja como ênfase em uma cadência ou para fazer ressaltar a repetição de cordas duplicadas no meio

ou finais de frase.

No exemplo anterior, temos um fragmento que demonstra este tipo de procedimento na

música “Forró de Pé de Calçada” de Siba Veloso.

51
Na sua performance, Geraldo Idalino costuma realizar uma constante diminuição na duração

de cada som, separando-os entre si por meio de arcadas, o que não é comum entre rabequeiros de

cavalo-marinho nem nos procedimentos performáticos dos rabequeiros mais jovens. A sua ligação

com o choro, o frevo e a marcha de carnaval, gêneros urbanos cuja estrutura rítmica está baseada,

principalmente, na sucessão de semicolcheias e cujos andamentos rápidos forçam uma pronúncia

separada de cada som, é um fator condicionador dos procedimentos de execução deste rabequeiro.

Na faixa 10 do CD há um frevo composto e tocado por Geraldo Idalino, onde é possível

observar a inter-relação entre performance e gênero musical na música deste rabequeiro. A

realização de ligaduras resulta, na sua música, da necessidade de imprimir um contraste expressivo

entre frases musicais ou de esboçar texturas distintas (nos moldes da música popular urbana).

No exemplo anterior (exemplo 5), é possível observar os tipos contraste buscados por

Geraldo Idalino na utilização de sons encurtados e ligados por arcadas em cada frase musical.

No uso de acentos dinâmico-expressivos e de variações de intensidade sonora também é

possível observar semelhanças e diferenças entre os jovens rabequeiros e os mais antigos.

52
Nas performances de Artur Erminio e João Alexandre, a variação de intensidade sonoro-

musical está diretamente condicionada pelo desenrolar de cada parte musical do cavalo-marinho e

do boi-de-reis. É uma variação de dinâmica sonora que ocorre entre um meio-forte, quando

acompanham o mestre cantando e um forte, quando acompanham todo o grupo ou executam baiões.

Os acentos dinâmicos são produzidos principalmente na região grave com o toque em cordas duplas

que, além de forjar os acentos, funciona como marcação dos ciclos rítmicos nos baiões. No exemplo

abaixo (exemplo 6), tem-se um fragmento extraído de “Não Chores Dama do Rei”, onde é possível

observar que o uso de cordas duplas funciona em alguns locais como acento dinâmico e de

ordenação do ciclo rítmico.

53
Tocar com pouca variação de intensidade sonora e com alguns acentos dinâmicos realizados

a partir do uso de cordas duplas na região grave é, também, algo presente na performance de Artur

Erminio e João Alexandre quando executam outros gêneros musicais.

Entre jovens rabequeiros como Siba Veloso e Maciel Salustiano é possível observar que,

quando tocam forró, este tipo de procedimento também está presente (v. faixa 11 do CD). Mas,

quando executam algumas toadas de caráter mais recitativo, o tipo de acento produzido com o uso

de uma corda dupla mais grave reforça o aspecto improvisativo da performance ao gerar densidades

sonoras que funcionam como deslocamento do acento rítmico normal. É o caso do fragmento

exposto abaixo, onde as cordas duplas formadas pelas notas Si e Sol sustenido reforçam e

evidenciam melhor o deslocamento do acento melódico-rítmico.

Na música de Geraldo Idalino também ocorrem poucas variações de intensidade sonora.

Estas se devem à busca de contraste entre as frases musicais, e os acentos dinâmicos encontrados na

sua música se localizam nos finais de frases, com o uso de cordas duplas, ou na segunda colcheia ou

semicolcheia de um grupo – neste caso quando o compositor busca ressaltar o contratempo rítmico

de alguns gêneros musicais como o “baião” que é apresentado na faixa 2 do CD.

54
Tomando estes procedimentos musicais como referência para a identificação destes

músicos, tem-se que a maneira como apóiam o instrumento, manejam o arco e usam uma

intensidade sonoro-musical preferencialmente linear, são aspectos que se mantêm sem muitas

modificações nas práticas de todos os rabequeiros.

As diferenças se apresentam nas concepções e nos contextos que envolvem estas práticas.

Em Geraldo Idalino, por exemplo, as poucas variações na intensidade sonora estão diretamente

condicionadas pelo tipo de música popular urbana que compõe ou executa.

De outra parte, apesar de suas atividades musicais no circuito de shows em centros urbanos

exigirem uma certa diferenciação estilística, os novos rabequeiros mantêm uma continuidade

estilística em relação aos rabequeiros de cavalo-marinho no que diz respeito ao uso de acentos

dinâmicos, ligaduras e não redução, por “spicatto”, da duração de cada som no decorrer de uma

música, o que faz com que a sonoridade resultante, tanto dos rabequeiros de cavalo-marinho quanto

dos novos, tenha uma textura bem próxima. Aspecto este que é diferente na música e na sonoridade

de Geraldo Idalino.

3. Estilo musical, textura e região utilizada no instrumento

Na performance destes rabequeiros, semelhanças e diferenças podem ser observadas em

relação à tessitura e à quantidade de cordas que cada um utiliza na execução musical. Estes fatores,

tal como outros anteriormente referidos, não resultam apenas da opção pessoal de cada músico,

mas, também, refletem suas necessidades, e as dos contextos com os quais cada um interage, de

produção musical.

No cavalo-marinho, o Mestre e o Mateus cantam sempre em alto volume sonoro e na região

aguda de suas vozes30. Como o rabequeiro toca as mesmas melodias, se ele as executar na mesma
30
O canto na região mais aguda da voz, explorando a tessitura nos seus limites, é algo comum em diversas
manifestações das músicas de tradição oral no Nordeste. Fato este tão presente que, de um estilo de canto passa a se
constituir num elemento de conteúdo musical destas músicas; um aspecto timbrístico delas que é, em parte,
transferido para as manifestações da música instrumental cultivada nesta mesma região.

55
região de altura dos cantores, o som da rabeca ficará despercebido e a rabeca, que serve apoio

melódico ao cantor, perderá muito da sua eficácia no conjunto. Uma solução de instrumentação e

textura encontrada nestes folguedos é a execução da melodia em uma oitava acima, pelo rabequeiro.

Assim, a rabeca é mais percebida como instrumento do conjunto e a textura musical adquire maior

densidade e expansão.

A execução de melodias em uma oitava acima dos cantores vem a imprimir

condicionamentos no uso das cordas e da região do instrumento. Na execução de melodias, Artur

Erminio usa, principalmente, a primeira e a segunda corda. A terceira é usada quase sempre solta

(sem digitação) como um bordão sonoro, e a quarta corda raramente é usada.

A este respeito, João Alexandre observa que “... o mais fácil do boi-de-reis é o baião. Só

toca numa corda só [a mais aguda]”. E sobre outras músicas que toca além daquelas do boi-de-reis

diz que “... tem música que toca em duas, outras em três, e outras que tem que afinar no baixo [a

quarta corda]”.

Uma audição das músicas tocadas por Artur Erminio e João Alexandre e uma análise das

transcrições 1 e 3 em anexo, permite observar que ambos usam predominantemente a primeira

corda do instrumento. Estas músicas poderiam ser tonalizadas em qualquer corda ou numa região

mais grave do instrumento, mas são tocadas na região aguda devido a uma solução para a textura

sonora encontrada nestes folguedos.

Geraldo Idalino é rabequeiro e compositor de músicas que são, em sua maioria, dirigidas

principalmente à dança. No seu caso, a estruturação de melodias dentro de um repertório musical

direcionado à dança exige o uso de uma tessitura mais ampla no instrumento. A música deste

rabequeiro contém melodias que são, em muito, determinadas pela movimentação rítmica, e se

estruturam basicamente em intervalos sucessivos de terças e escalas ascendentes ou descendentes.

Deste modo, sua música ocupa sempre o espaço de três cordas e a quarta serve como bordão

harmônico, sendo quase sempre tocada sem digitação.

56
Siba Veloso e Maciel Salustiano não cantam na região mais aguda de suas vozes, mas numa

região mediana, de timbre menos penetrante, e se acompanham da rabeca em boa parte das músicas

que cantam. Estes rabequeiros usam mais a região média do instrumento nas músicas que

compõem, e vêem nisto uma diferença dos seus estilos em relação aos outros rabequeiros.

Considerando que para estes rabequeiros a música do cavalo-marinho e boi de reis foi,

também, uma fonte importante de aprendizagem musical e que, na música destes folguedos, a

utilização das cordas graves da rabeca não tem apenas a função de acompanhamento, mas de apoio

rítmico, de expansão e densidade sonora, pode-se afirmar que entre os rabequeiros pesquisados há

uma manutenção deste aspecto do estilo musical encontrado na música de rabeca do cavalo-

marinho31. De outra parte, em Geraldo Idalino é bastante clara a busca de uma ampliação no uso da

tessitura do instrumento e o uso das cordas graves com uma nítida função harmônico-tonal.

O uso da corda grave como um bordão em determinados momentos da música do cavalo-

marinho é outro aspecto que assemelha estes rabequeiros. Este tipo de uso propicia à música mais

densidade sonora, sendo algo atualmente mantido entre os rabequeiros e que parece consistir na

permanência de uma linguagem musical mais antiga da rabeca.

Tonalização, enquanto um aspecto peculiar da música tradicional de rabeca, adquire aqui

uma importância fundamental na observação de identidade musical entre estes rabequeiros32. Este

termo é aqui adotado a partir da observação de que os próprios rabequeiros se referem ao ponto

inicial de uma melodia como sendo o “local”, o “espaço” do tom daquela música. É assim uma

definição advinda, embora com outras palavras, dos próprios rabequeiros e guarda,

simultaneamente, os sentidos de geografia e timbre de uma música33. O exemplo abaixo –

31
Na música de rabeca no cavalo-marinho há um tratamento diferente da região grave de um instrumento daquele que
é realizado na música popular urbana. Se na música popular urbana a região grave de um instrumento é utilizada,
principalmente, para o acompanhamento harmônico na edificação de acordes, em músicas como a do cavalo-
marinho a utilização de regiões graves de instrumentos como a rabeca é feita não apenas por questões harmônicas,
mas de densidade sonoro-expressiva.
32
Tonalização, como o termo é proposto neste texto, consiste na qualidade de se executar ou compor uma música a
partir de uma determinada corda ou região da rabeca.
33
É pouco provável que a designação de “tom”, quando os rabequeiros falam de um ponto inicial de uma melodia,
remeta ao significado de tonalidade, como é concebida na teoria musical ocidental. Entre músicos com formação

57
fragmento de transcrições de músicas tocadas por Artur Erminio – demonstra o espaço de

tonalização e a sua preferência pela primeira corda, a mais aguda, na execução.

No exemplo 9, temos um fragmento de uma transcrição de música tocada por João

Alexandre, onde este aspecto observado em Artur Erminio também é recorrente.

O exemplo 10 – retirado de uma execução de Maciel Salustiano – revela que a prática da

tonalização permanece na sua performance musical. Tal como que há uma preferência deste

rabequeiro pelo uso da segunda corda da rabeca, mesmo quando tocando música do cavalo-

marinho.

conservatorial ou com alguma experiência em conjuntos instrumentais com instrumentos harmônicos, como Siba
Veloso, Maciel Salustiano e, mais confusamente, Geraldo Idalino é que este termo, provavelmente, indique o
conceito de tonalidade quando eles se referem à estruturação harmônica de uma música.

58
No exemplo abaixo, é possível observar que este procedimento de tonalização se verifica

não apenas na performance musical, mas nas próprias composições destes rabequeiros – como é o

caso deste fragmento do “Forró de Pé de Calçada” de Siba Veloso.

Na música de Geraldo Idalino, apenas um pequeno aspecto da prática de tonalização

permanece. É o que se pode observar no exemplo abaixo.

Suas composições têm por base uma corda, mas se desenvolvem por todas as cordas através

de arpejos, sucessão de terças e escalas ascendentes ou descendentes. Na sua música, não é o

59
aspecto da tonalização que é explorado, mas o de tonalidade e de uma construção de frases em arcos

cujas curvaturas são semelhantes às de outros gêneros da música popular como o choro e o frevo.

Nos casos de Artur Erminio, João Alexandre, Siba Veloso e Maciel Salustiano, é possível

observar que, independente da extensão entre a nota mais aguda e a mais grave, a densidade maior

de execução ocorre no espaço de um intervalo de sexta, o que indica uma coerência entre o sentido

de tonalização e de região utilizada na execução musical. Diferentemente, com Geraldo Idalino não

ocorre uma localização da música numa determinada região do instrumento, no intervalo entre duas

cordas, mas em toda região da primeira posição do instrumento, como se pode observar no exemplo

a seguir.

A tonalização, enquanto um elemento do saber e do fazer musical, vem a ser um aspecto

objetivo importante na compreensão da identidade destes rabequeiros. Como todos os rabequeiros

tocam em apenas uma posição do instrumento, tonalizar uma melodia implica em optar pela sua

colocação em uma determinada região, o intervalo entre duas cordas, e, assim, lhe imprimir um

determinado timbre. A opção por uma região e timbre de uma melodia é tomada, quase sempre,

devido a aspectos que envolvem desde a instrumentação até os “gostos” musicais de intérpretes e

públicos; enfim, envolve um contexto musical mais amplo.

Nos casos das músicas compostas ou interpretadas por Artur Erminio, Siba Veloso, Maciel

Salustiano e João Alexandre, a região de tonalização pode sofrer algumas alterações, sem que eles

necessitem realizar uma mudança de posição na mão esquerda34. Na música de Geraldo Idalino, a

34
“Posição” é o termo usado no ensino conservatorial para designar os espaços geográficos que podem ser utilizados
com a mão esquerda na execução musical em instrumentos de cordas friccionadas. As “posições” são determinadas

60
mudança de região de uma melodia implicaria, em muitos casos, na mudança de posição na mão

esquerda, aspecto este que não é comum entre rabequeiros. Na sua opção por um estilo

composicional e de execução ele se encontra, no que se refere à tonalização, em uma situação

limítrofe neste campo.

Se aspectos subjetivos e objetivos são referências para uma interpretação da estruturação de

identidade de um individuo ou de um grupo, Geraldo Idalino de fato trafega em um espaço que

delimita margens entre o núcleo de saber e fazer musicais de rabequeiros e outros núcleos musicais.

O uso de cordas soltas também é um procedimento comum entre rabequeiros. Isto advém do

fato de tocarem em uma única posição no braço do instrumento e, assim, a passagem por estas

cordas torna-se um imperativo na realização de melodias. É a partir de uma corda solta que se

tonaliza uma melodia e esta corda passa a ser uma referência básica em todo o desenrolar de uma

música, como mediadora da afinação geral dos sons de uma melodia e como referência de região a

partir do intervalo de quinta de duas cordas em torno das quais a música será tocada. Estas cordas

também têm importância na produção de sons simultâneos (cordas duplas) que, na maioria dos

casos, são realizados com uma corda solta, vindo esta a adquirir a função de bordão sonoro ou

harmônico.

Mas se isto parece ser um condicionante técnico para os rabequeiros, o que se observou é

que isto se transformou num aspecto do estilo, do gosto musical de muitos deles, principalmente os

de cavalo-marinho. Diz-se isto, devido ao fato de que o toque nas cordas soltas é realizado em um

número maior de vezes do que seria necessário por um condicionante técnico – que seria na

proporção de um som em corda solta para cada cinco sons obtidos por dedilhação, conforme

exemplo abaixo – e em finais ou momentos importantes de uma melodia, onde se busca uma

sonoridade e uma textura mais densas, um “ribombar” no dizer de Siba Veloso.

a partir da pestana localizada na parte superior do braço do instrumento. Entre rabequeiros não há referências
conceituais a este termo visto que estes músicos usam apenas uma posição no instrumento. Isto ocorre devido ao
fato de que, por não usarem uma “queixeira” o “spaleira”, têm que segurar o instrumento com a própria mão
esquerda, o que dificulta em muito a sua movimentação por todo o braço do instrumento.

61
Pelo fato de soarem por mais tempo que as cordas dedilhadas e em zonas estratégicas do

fluxo melódico, as cordas soltas, isoladas ou como um bordão sonoro, terminam por consistir num

dos aspectos sonoros mais presentes na música de rabeca. Produzem uma freqüência sonora que se

mantém por muito mais tempo que o valor “real” que se pode atribuir a um determinado som no

decurso melódico e se combinam a outras freqüências constitutivas da linha melódica, deixando-as

assim envolvidas por sonoridades circundantes, além do som que está sendo executado por

dedilhação. Este tipo de sonoridade peculiar pode ser observado na audição da música “Na Chegada

Desta Casa”, tocada por Artur Erminio (faixa 12 do CD).

É um tipo de sonoridade intencional, pois é retomada em muitos momentos da música, e que

se assemelha à emissão sonora de muitos instrumentos medievais ou renascentistas como as violas,

a viela de roda etc, e a instrumentos tão fortemente identificadores da cultura nordestina como a

viola sertaneja de dez cordas. É, também, um elemento de conteúdo musical que se transmitiu para

a performance e composição dos jovens rabequeiros nordestinos, como é possível se comprovar na

audição da faixa 13 do CD.

Como recurso de tonalização, as cordas soltas estão muito mais presentes nas performances

de rabequeiros antigos como Artur Erminio, João Alexandre (exemplos 15 e 16). Nas suas

execuções, estas cordas são ressaltadas, seja pelo maior valor de duração dos sons emitidos, seja

pelo número maior de vezes que retornam na música a partir do início ou término de trechos.

62
Na execução e na composição musical de Siba Veloso e Maciel Salustiano este aspecto

também é verificado (exemplos 17 e 18). Estas cordas soltas, pelo maior tempo que permanecem

soando, passam a consistir em eixos gravitacionais em torno dos quais todos os outros sons de uma

melodia se movimentam.

Na música de Geraldo Idalino, as cordas soltas aparecem, mas têm uma presença menor e de

modo diferente do que acontece na execução dos outros rabequeiros, anteriormente citados como

demonstra o exemplo a seguir.

63
4. Melodia e harmonia na música dos rabequeiros

Nesta pesquisa, foi possível observar que o estilo de toque do arco e o fato de rabequeiros

tocarem com a mão esquerda sempre numa posição fixa são fatores que concorrem para as

harmonias em cordas duplas, onde os intervalos harmônicos resultam da combinação entre um som

produzido por digitação e outro produzido em uma corda solta. Poucos são aqueles produzidos por

digitação em duas cordas. Estes serão os assuntos discutidos a partir de agora.

4.1. Harmonias e sonoridade na música de rabequeiros.

Os intervalos harmônicos mais freqüentes são, em ordem decrescente, os de terça, sexta,

quinta e oitava, que são obtidos quase sempre por movimento oblíquo entre uma melodia que é

tocada (digitada) em uma corda em conjunto com outro som contínuo, simultaneamente tocado em

outra corda solta.

A realização de harmonias por meio de sons duplicados inicialmente parece consistir numa

imposição técnica ao rabequeiro, devida ao modo de manuseio do arco e o uso de apenas uma

posição do instrumento. Mas parece que isto historicamente tendeu a se transformar numa espécie

de gosto musical destes músicos. Embora a afinação usada pelos rabequeiros pesquisados seja de

intervalos de quintas entre as cordas – o que tecnicamente implicaria em um aparecimento maior

deste intervalo harmônico –, este intervalo não parece ser o mais preferido pelos rabequeiros na

maioria dos momentos da execução musical.

Numa abordagem estritamente técnica, como ocorre no exemplo a seguir, a execução de

uma escala heptatônica entre duas cordas afinadas faz o intervalo harmônico de quinta aparecer

duas vezes em um movimento oblíquo, enquanto os outros aparecem apenas uma vez. Mas, no fazer

propriamente musical, não é esta a prática harmônica dominante na música de rabeca.

64
Constatou-se que o intervalo harmônico de terça é realizado com mais freqüência entre os

rabequeiros, podendo mesmo ser considerado como um elemento estilístico importante nesta

música. A grande presença deste intervalo é observada no decorrer de muitas execuções musicais e

sua colocação em pontos importantes de uma música – tal como em situações onde uma dificuldade

técnica para sua realização é maior, quando é obtido por digitação em duas cordas – são indicadores

de uma sólida opção musical dos rabequeiros por esta sonoridade harmônica.

Nos exemplos abaixo, que consistem em fragmentos de músicas transcritas de três dos

rabequeiros, é possível observar que os intervalos harmônicos de terça são conseguidos por

digitação dupla em boa parte dos casos – uma operação técnica mais complexa para se realizar; fato

este que não ocorre na realização dos intervalos harmônicos de quinta ou oitava. No exemplo 21, há

o uso de uma harmonia de terça nos inícios de frase e um tipo peculiar de resolução sonora de uma

terça harmônica em uma oitava, em alguns finais. Resolução, principalmente, sonora e não apenas

harmônica, porque o efeito pretendido pelo rabequeiro neste momento da música, parece ser muito

mais de expansão sonora e da textura, quando a melodia segue para a região grave com o uso dos

baixos, do que propriamente harmônico-funcional.

A preferência pela sonoridade de terças também está ressaltada no compasso 4 deste

exemplo. Neste caso, o caminho descendente da melodia (Dó, Lá, Fá#) e do arco em direção à

região grave do instrumento conduziria mais naturalmente à realização de um intervalo de sétima

entre o Sol (na corda solta como baixo) e o Fá#. Mas o rabequeiro opta por retirar a dissonância,

realizando um movimento contrário ascendente no arco e obtendo uma terça com Fá# e Lá (corda

solta no agudo). Como este é um tipo de procedimento bastante recorrente em toda esta música, ele

passa a se tornar um índice de gosto e estilo musical.

65
No exemplo 22, o movimento harmônico provocado pelo direcionamento da melodia (Mi,

Sol, Lá, Si) implicaria na realização de um intervalo de segunda entre o Lá e o Si (corda solta). O

rabequeiro evita esta dissonância e estabelece uma resolução harmônica do intervalo de terça em

um de quinta (compassos 1 e 2). No terceiro compasso, realiza um movimento de arco contrário ao

da melodia (que é ascendente) para obter um intervalo harmônico de terça, digitando a terceira

corda do instrumento (Ré, Fá#). Neste tipo de movimento, visto que o arpejo é ascendente, o

intervalo mais cômodo seria de uma quarta (Fá, Si corda solta), mas a opção pela terça é tomada

pelo instrumentista.

No fragmento abaixo (exemplo 23), as terças obtidas por digitação dupla (Lá, Dó#) têm

importância pelo tipo de movimento de arco e dedilhado realizado – evitando intervalos de segunda

dissonante – e pelo fato de não apenas servirem como base para resoluções de expansão sonora em

harmonias de quintas ou oitavas, mas de terem usos independentes dentro da música.

66
Em todos estes exemplos, é possível observar que, mesmo contrariando determinados

movimentos melódicos ou de arco, os intervalos harmônicos de terça são reiteradamente usados

estabelecendo um estilo peculiar na música de rabeca.

Os poucos intervalos harmônicos de quinta, e as raras sucessões deste tipo de harmonia,

encontrados nas músicas resultam do movimento do arco em cordas soltas (com uma intenção mais

rítmica que melódico-harmônica), ou, indiretamente, da necessidade de produção de ligaduras

através de glissandos, quando a melodia se encontra numa região mais grave e as quintas são

produzidas por um toque, quase involuntário, do dedo na corda solta mais aguda situada acima

daquela na qual a melodia é digitada.

O uso de um modo escalar menor com a sétima abaixada no “Forró de Pé de Calçada” de

Siba Veloso e em “Juazeiro” tocada por João Alexandre, tem implicações no caráter melódico

destas músicas e na sua harmonização. Em boa parte das músicas do cavalo-marinho e do boi-de-

reis uma estrutura escalar de sete tons está implícita, mas não claramente exposta na melodia. Na

música “É Fulô” (transcrição 3), o trajeto escalar é de uma sexta menor (Si, Dó#, Ré#, Mi, Fá#,

Sol#), mas apenas a sétima está ausente para a determinação de uma heptatônica começada em Si.

4.2. A diversidade no fraseado musical.

Na música dos rabequeiros de cavalo-marinho e boi-de-reis, dois tipos de frases melódicas

são encontrados: aquelas das toadas, com curvatura ascendente alcançada por saltos intervalares

descendentes em graus conjuntos (v. compassos iniciais da transcrição 3); e as de caráter

predominantemente rítmico, encontradas nos baiões.

Nas toadas, a estrutura melódica é organizada, normalmente, a partir de repetições de frases

ou de intercalação de frases diferentes, mas com pouco contraste entre si. Estruturas do tipo AA’,

BB, CC’, CC’, ou AA’, AA’, BB’ observáveis nas transcrições 1 e 3 são muito comuns em boa

parte das outras músicas destes folguedos.

67
A música de Geraldo Idalino é melodicamente estruturada em arpejos de terças ascendentes,

compensadas com articulações descendentes em graus conjuntos, ou por combinações de graus

conjuntos com terças em movimento ascendente ou descendente. Este tipo de recurso para

construção melódica, além de ser bastante usual em muitos gêneros da música instrumental popular

urbana é algo também adequado à rabeca afinada em quintas e ao uso de uma posição fixa na mão

esquerda.

Uma leitura da transcrição 2 (em anexo) permite observar que os segmentos de frase têm

quatro compassos, as frases têm oito compassos e os períodos têm dezesseis compassos. Nos três

períodos (A – cps. 1/17, B – cps. 17/23 e C – cps. 33/48) são usados recursos de contrastes, tais

como o caráter ascendente do primeiro, o descendente do segundo e a combinação entre intervalos

de terças e de segundas com ligaduras de arco no terceiro. As funções harmônicas de I, IV e V

graus estão dispostas em movimentos cadenciais comuns aos ocorrentes na música popular urbana.

Enquanto na música de Geraldo Idalino há este tipo de harmonização, na música de Artur e

João Alexandre o que ocorre com mais evidência é a busca de uma tonalização em uma região onde

os encadeamentos se realizam, não a partir de explícitas necessidades funcionais, mas de efetivação

de efeitos sonoros na textura. Esta é uma diferença fundamental entre Geraldo Idalino e os outros

dois rabequeiros mais antigos que foram pesquisados.

No exemplo abaixo (um fragmento de “Juazeiro”, transcrição 7), pode-se observar esta

diferença entre João Alexandre e Geraldo Idalino. Originalmente, a música está composta em Dó

maior com o uso de uma sétima abaixada na escala (Si bemol), o modo mixolídio, e está tonalizada

na terceira corda (a Dó) pelo rabequeiro. O baixo em Fá (quarta corda) inicia e finaliza a frase,

corrompendo, assim, o sentido de movimentação e harmonização tonal da música. Curiosamente, na

execução desta música, João Alexandre está usando uma afinação incomum (F, C, G, C) com um

intervalo de quarta e não de quinta entre a primeira e a segunda corda, o que acentua ainda mais o

caráter modal da interpretação, ao fixar o eixo gravitacional da textura entre um dó grave e outro

68
agudo (compassos 2, 3, 4, 6, 7, 8). De outra parte, a não simultaneidade da fundamental, da terça e

quinta do acorde de dó maior, o acorde de tônica, descaracteriza ainda mais o sentido tonal desta

música.

Uma comparação das transcrições 2, 4 e 7 em anexo desta dissertação, músicas tocadas por

Geraldo Idalino, Siba Veloso e João Alexandre, fornece elementos que, nas questões de harmonia,

indicam diferenças práticas na atitude musical dos rabequeiros.

O baião tocado por Geraldo Idalino é plenamente tonal e estruturalmente influenciado pela

música urbana nas secções. O baião “Juazeiro” tocado por João Alexandre (sendo coincidentemente

esta a música que os três rabequeiros mais antigos citam como a primeira que tocaram na rabeca)

caminha em sentido contrário na proposição harmônica e no tipo de desenvolvimento – que se pauta

numa série de pequenas variações sobre a melodia original, propondo um discurso que não solicita

uma resolução de tensão estrutural, diferentemente do que ocorre na estruturação musical em

Geraldo Idalino. Na sua performance do baião de Luiz Gonzaga, João Alexandre propõe uma

continuidade “infinita” – aspecto este comum em boa parte da música de rabeca de folguedos como

o cavalo-marinho e na própria música de caráter modal onde a circularidade – através de sutis

variações em torno de um único ponto, é mais usada que um discurso pontuado por tensões e

relaxamentos, como no tonalismo.

Na transcrição 4 do forró de Siba Veloso, observa-se uma tendência para a manutenção de

alguns elementos da tradição musical nordestina, quando da opção pela escala menor com o sétimo

69
grau abaixado. O constante uso de uma cadência plagal (cps. 4/5 e 8/9), em associação com

movimentos de marchas harmônicas descendentes (V, IV a I graus nos compassos 21/25), são

elementos de harmonização peculiares neta música.

Uma música de caráter instrumental solista foi observada, nesta pesquisa, na performance

dos jovens rabequeiros. Trata-se dos fragmentos de toadas de cavalo-marinho que parecem indicar a

manutenção de alguns aspectos de uma antiga tradição da música de rabeca, que não se mantêm

claramente na performance dos rabequeiros mais antigos engajados em folguedos tradicionais como

o cavalo-marinho.

Estes fragmentos de toadas de cavalo-marinho tocados por Maciel Salustiano e Siba Veloso

(transcrições 5 e 8), possuem um caráter recitativo e sua estruturação melódica é conseguida a partir

de curtos motivos que, em um estilo com muitos aspectos improvisativos, são metamorfoseados no

decorrer de cada seção musical. Um tipo de performance musical que claramente combina

processos criativos improvisativos com conteúdos musicais culturalmente estabelecidos, numa

simbiose demonstrativa de que ambos os tipos de procedimento performático podem possuir uma

natureza bastante próxima em alguns contextos de performance musical. Uma audição destas

músicas, no contexto da performance, torna difícil a tarefa de separação daquilo que se possa

entender como sendo parte de conteúdos musicais já fornecidos pela tradição aos jovens

rabequeiros, daqueles conteúdos que cada um adicionou ao produto ou está adicionando, por

improviso, à tradição cultural naquele momento da execução.

Na transcrição 5 (fragmento de uma toada tocada por Maciel Salustiano), é possível

observar que as seções (cps. 21/39) são estabelecidas por contrastes em diversos níveis. Isto pode

ser um indicativo de que nesta performance há uma quantidade maior de conteúdos culturalmente

ofertados ao rabequeiro do que aqueles momentaneamente improvisados e adicionados à tradição

no momento da execução.

70
Nesta música, a primeira seção é instaurada a partir de um motivo melódico de curvatura

ascendente (v. exemplo abaixo) que perfaz um intervalo de sexta menor (Dó# - Lá). A frase básica

que se constrói a partir deste motivo possui um caráter de canto bem acentuado. Na segunda seção

(cp. 21), de caráter mais rítmico, o motivo é construído a partir de uma combinação entre a

realização de cordas duplas e a disposição de alguns intervalos que tomam como referência um eixo

sonoro (o Lá). Este som, não coincidentemente, é o mesmo em cuja direção se movimentam as

alturas sonoras e a tensão própria ao motivo da primeira seção. A última parte desta toada (cp. 39)

consiste numa combinação, numa espécie de coda, do motivo da primeira seção com o caráter mais

rítmico da segunda seção.

As primeiras seções (A e B) têm formatos semelhantes, pois se ordenam a partir da repetição

por quatro vezes de um motivo básico transformado, e um posterior desenvolvimento em estilo

improvisativo de execução.

No fragmento da toada executada por Siba Veloso (transcrição 8), as seções se estabelecem

quase que exclusivamente devido ao tipo de improvisação empreendido pelo rabequeiro sobre um

motivo básico (exemplo 26).

71
Em ambas as seções (compassos 1 a 19 e 19 a 30), após o anúncio do elemento de

improvisação não há uma busca de repouso do desenrolar melódico. A necessidade de repouso

parece residir somente no esgotamento das possibilidades improvisativas e de demonstração de

habilidades musicais do executante.

Os repousos encontrados em cada momento de improvisação são obtidos através de cordas

duplas intercaladas no decurso melódico (o que também é encontrado na toada executada por

Maciel Salustiano), e pela manutenção da duração de determinados sons agudos da melodia numa

espécie de fermata.

As cordas duplas assumem, neste caso, o papel de delimitadoras dos instantes

improvisativos e de ciclos rítmicos, tal como ocorre nos baiões de cavalo-marinho. O aspecto

diferencial do uso das cordas duplas, nesta execução de toada por Siba Veloso, é que elas aparecem

claramente como norteadoras da percepção auditiva, forjando eixos de gravidade sonora que

conformam o percurso melódico que se desenvolve livre de rigores métricos. De fato, os filtros

perceptivos que estamos habituados a lidar a partir da nossa relação auditiva com a música popular

urbana são pouco eficazes para proporcionar esquemas de interpretação a este tipo de execução de

uma toada.

Uma observação do “Forró de Pé de Calçada” (transcrição 4 e faixa 4 do CD) demonstra que

a composição deste rabequeiro também mantém importantes aspectos da música tradicional de

rabeca no Nordeste. A estrutura deste forró também é obtida a partir de um motivo transformado

dentro de uma performance com aspectos de improvisação no ato da execução, mesmo que a

música seja previamente composta pelo rabequeiro.

72
Um outro aspecto peculiar encontrado nas execuções de toadas e na produção composicional

destes novos rabequeiros é a abundante ornamentação melódica. A ornamentação encontrada nas

execuções dos rabequeiros mais antigos, quando tocam no cavalo-marinho, consiste basicamente

em trinados. Na execução desta toada Siba Veloso consegue, pela quantidade e variedade de

elementos, que a ornamentação venha a se configurar na própria linha melódica, e não apenas em

um adereço momentaneamente colocado a uma melodia.

Pela própria peculiaridade que esta execução coloca ante a definição do que seja linha

melódica “real” ou artifícios de ornamentação, é que, na transcrição desta música, se optou por

transformar em notas musicais tudo que poderia ser entendido, numa outra ótica, como ornamentos,

visto estes formatarem consistirem o próprio decurso melódico.

Se a este tipo de execução não se encontrou paralelo nas execuções dos mais antigos

rabequeiros de cavalo-marinho, ela também se coloca em um pólo oposto ao tipo de intenção

composicional – estruturada num fraseado rítmico e melódico esquadrinhado à base de

semicolcheias e numa métrica rigorosamente definida – e postura performática de Geraldo Idalino,

nas suas opções de uma música urbana de rabeca. Na música de Geraldo Idalino, a objetividade e o

caráter realista da melodia são sempre pretendidos e neste tipo de interpretação de toadas, como

feito por rabequeiros urbanos como Maciel Salustiano e Siba Veloso, as impressões e uma

permanente instabilidade e fluidez discursiva são, contrariamente, mais requeridas.

É bastante provável que estes dois jovens rabequeiros, ambos de Pernambuco, tenham

absorvido boa parte deste tipo de procedimento na escuta de outros rabequeiros mais antigos da

região. Mas, também, é bem provável que muitos aspectos tenham sido colhidos ou apreendidos em

outros segmentos ou fontes de informação, tais como aqueles que tratam da música Armorial no

Nordeste, ou da música medieval ou renascentista européia. Músicos como Antonio Nóbrega – que

foi um dos primeiros no Brasil a buscar, a partir de estímulos de Ariano Suassuna, uma combinação

73
dos estilos de rabequeiros e violinistas – podem ser referências, mesmo que inconscientes, para este

profícuo estilo musical de rabequeiros como Siba Veloso e Maciel Salustiano.

Nas suas atividades musicais, estes novos rabequeiros estão comprometidos com o resgate

de aspectos da música de rabeca, que estão em franco desaparecimento nas próprias atividades dos

rabequeiros mais antigos do Nordeste. É possível que uma prática bastante antiga de rabequeiros

solistas contivesse estes elementos de conteúdo e estilo musical, mas pouco disto parece sobreviver

atualmente – principalmente na música de rabequeiros ligados a folguedos como o cavalo-marinho,

o único espaço que a grande maioria deles encontra para atuar nos dias de hoje.

Nas toadas de cavalo-marinho, que foram colhidas entre os rabequeiros mais antigos da

Paraíba, não se observou este estilo de música eminentemente instrumental e com tais aspectos. É

provável que a dilapidação e desintegração por que passou este tipo de folguedo na desestruturação

da cultura e economia rural no Nordeste, e ainda passa nas periferias de alguns centros urbanos, lhe

coloque restrições gerais de manutenção e continuidade que venham, de modo indireto, impor aos

próprios participantes a retirada de alguns conteúdos musicais agora menos funcionais ao folguedo

em novas condições sócio-culturais.

Se esta análise está correta, as toadas puramente instrumentais, onde a “virtuosidade” do

rabequeiro era demonstrada sem a participação do grupo, podem ter sido gradativamente retiradas

destes folguedos no nordeste do Brasil.

74
5. Instrumentação na música dos rabequeiros

Na mesma proporção em que variam os agrupamentos instrumentais onde os rabequeiros

tocam, a posição hierárquica que o músico e o instrumento possuem também apresenta distinções

em cada contexto musical pesquisado. Artur Erminio, por exemplo, estabelece para si uma relação

de dependência para com o cantor das músicas no cavalo-marinho. Em depoimento, ele revela que

“... se o cantor não cantar, eu toco sabe? Mas é mais difícil. É melhor ele cantando, porque eu tô

vendo ele cantando e eu pego o tom na rabeca”.

Na apresentação do cavalo-marinho é o rabequeiro quem inicia as toadas, um pouco antes

do cantor e quem, na maioria dos casos, as interliga por meio dos baiões – o que demonstra o

grande papel musical da rabeca na instrumentação da orquestra deste folguedo. Mas a limitação da

atividade musical de Artur Erminio a este tipo de orquestra condiciona sua noção de instrumentação

a uma compreensão restrita das possibilidades da rabeca – a uma sensação de dependência do

instrumento para com o folguedo, algo como se a rabeca e o rabequeiro não possuíssem mais

nenhum outro espaço de atuação e caso o folguedo acabasse, acabaria a música de rabeca. Como

também o permite desenvolver uma interessante noção homogênea de instrumentação – a de que

nenhum instrumento é mais importante que outro naquele conjunto, e que a música não funciona

somente com um deles, ou sem um deles.

A noção de instrumentação de João Alexandre, que tem uma atividade musical um pouco

mais ampla que a de Artur Erminio, é mais centrada na rabeca do que na voz do cantor. Em um

depoimento acerca disto, este rabequeiro deixa entender que o seu instrumento é o eixo da

orquestra, quando diz:

Pra isso aqui menino [a rabeca], só cabe o pandeiro, o triângulo e, se tiver, o reco-
reco. Botou um bombo dentro, desgraçou tudo. Bombo pode ser pra ciranda, mas pra
rabeca não.

75
Coincidentemente, no grupo de Artur Erminio, onde o mestre do cavalo-marinho é quem

determina a instrumentação, há um bombo tocando35. A percussão do bombo realmente “embola” a

marcação sonora do conjunto, como enfatiza João Alexandre, visto que soa por mais tempo que a de

um pandeiro. Na música do cavalo-marinho – onde há vozes e rabeca, contrapontos rítmicos e

passos de dança mais complexos – a marcação rítmica necessita de maior precisão, pois não se trata

de música de ciranda, onde o aspecto central é uma melodia única acompanhada por uma rítmica

menos variável que no cavalo-marinho.

A orquestra do cavalo-marinho onde Artur Erminio toca, no município de Bayeux/PB.

Os depoimentos de Geraldo Idalino sobre o conjunto instrumental mais adequado para a

rabeca demonstram que para ele a música de rabeca tem dois momentos distintos: o da antiguidade

(a tradição) e o atual (o moderno). Ele fala da instrumentação com triângulo, pandeiro e reco-reco

como sendo a de uma extinta e jurássica vida da rabeca no interior do Nordeste, opondo diretamente

35
Este tipo de intervenção do mestre é aceita por todos os membros da orquestra, visto que sua autoridade e
experiência musical consistem num dos pilares centrais destes grupos e são elementos que, nem “de brincadeira”
devem ser questionados neste contexto.

76
a isto as formações elétricas convencionais da atualidade, ao declarar que “... o cara com uma

bandinha bem organizada, um violão elétrico, a guitarra, um baixo e teclado dá um show”.

Geraldo Idalino tem grande importância como rabequeiro porque, além de diversos fatores,

consegue sobreviver musicalmente no complexo ambiente da cultura de massas onde as

contradições e “coerências” são direta e rapidamente confrontadas. Este rabequeiro, ao mesmo

tempo em que busca conscientemente uma negação da cultura tradicional de rabeca, mantém

paradoxalmente, na “renovação” da antiga fórmula dos bailes de forró – onde a rabeca era solista e

acompanhada por instrumentos de percussão – a sua proposta básica de ação musical nos centros

urbanos.

Além de suas experiências anteriores com o mercado fonográfico, este rabequeiro tem forte

convicção de que a produção musical de shows e disco de Fortaleza (CE) é a grande saída para a

sua música de rabeca, numa clara pretensão de um engajamento cada vez maior da sua música nos

meandros da indústria fonográfica36.

Geraldo Idalino e sua banda “Um Violino no Forró”, tocando em praça pública.
36
Entre tantas outras marcas de mediocridade nesta produção musical de forró em Fortaleza está a eletrificação do
forró – vista como sinônimo de atualização para os mesmos – em negação ao “antigo” forró pé-de-serra à base de
sanfona, zabumba e pandeiro.

77
Esta concepção que Geraldo Idalino tem dos instrumentos elétricos como sendo os parceiros

ideais para a rabeca em um conjunto, demonstra um tipo de continuidade da música de rabeca que

não é compartilhada pelos novos rabequeiros – mesmo tendo estes uma ampla vivência anterior

com bandas de rock ou conjuntos instrumentais eletrificados.

Uma análise mecanicista conduziria à idéia de que os novos rabequeiros tenderiam a

aprofundar a direção proposta há décadas por Geraldo Idalino, de abandono do antigo conjunto

instrumental da rabeca e uma incorporação de instrumentos eletrônicos. Mas o que está acontecendo

é o contrário. Estes novos rabequeiros não tomam os tipos de formação instrumental à base de

guitarras, baixo, bateria e teclado, como sendo, em si, significadores de renovação, inovação ou

revitalização da música de rabeca. A este respeito, Maciel Salustiano comenta:

No começo a gente ficava muito meio assim com a guitarra; a guitarra não existia
dentro da banda. Aí a gente teve muito cuidado de saber usar e não prejudicar e ferir
o nosso trabalho. (...) Não era aquela guitarra pesada, algumas coisas a gente botava
uns sons distorcidos, mais era pouca coisa. A gente soube combinar essa coisa de
rabeca com a viola e a guitarra.

Contrariando o que se poderia pressupor a partir de uma análise esquemática ou

simplificadora, Siba Veloso observa que a formação instrumental encontrada pelo seu grupo parte,

justamente, de uma crítica sua à formação convencional muito presente na música pop e no rock, e

diz que:

A gente quando começou era muito mais uma banda elétrica, eu tocava muito mais
guitarra, Helder tocava teclados, Hélio tocava bateria (...). Eram instrumentos que
tavam mais próximos do que a gente cresceu tocando. A partir de um determinado
momento eu quebrei com esta história de que baixo, bateria, guitarra e teclado é
realmente a maneira mais evoluída de se fazer música e as outras [as formações
instrumentais tradicionais] eram material de pesquisa pra enriquecer um trabalho
que, bem feito, teria que ser nestas linhas, pra gente [na linha de formação elétrica].
Eu via no jazz, no rock e mesmo na música instrumental brasileira, formas mais
evoluídas de música. Depois eu quebrei com isso.

A precaução na utilização de instrumentos eletrônicos reflete, entre os novos rabequeiros, as

suas de concepções técnicas e estéticas. A utilização de uma guitarra em timbre não alterado por

78
distorções; de um baixo elétrico fazendo acompanhamentos básicos, sem os malabarismos tão

comuns no pop/rock atual; a pouca utilização da bateria – visto que os instrumentos de percussão

nordestinos são capazes de favorecer uma rítmica mais solta, “gingada”, do que uma bateria – são

componentes importantes e significativos na concepção destes músicos.

O rabequeiro Siba Veloso em uma apresentação numa casa de shows em São Paulo/SP.

Nos grupos de ambos, a rabeca serve como instrumento guia em boa parte das músicas e não

ocupa o lugar de instrumento solista e dos antigos bailes de forró, estes novos rabequeiros buscam

mais uma tentativa de reviver a sua essência do que a retomada desta música ou conjunto

instrumental em centros urbanos.

Por outro lado, se tocar rabeca em bandas cujas músicas são consumidas por um público

jovem, urbano e de classe média, não é, por si, entendido por estes rabequeiros como uma atitude de

79
“modernização” da música da rabeca, eles também não pretendem um mero resgate da tradição,

trazendo-a para a urbanidade, em uma nova roupagem – numa tentativa de fazer sobreviver aquilo

que possivelmente estaria morrendo no contexto rural de origem.

Siba Veloso e Maciel Salustiano demonstram possuir uma clara noção da diferença entre a

música que fazem e a que é feita pelos tradicionais rabequeiros de cavalo-marinho da zona da mata

de Pernambuco. E nutrem idéia de que fazem uma música “nova” e os outros rabequeiros fazem

uma música antiga, mas que são músicas de contextos diferentes, geradas a partir de necessidades e

gostos que são semelhantes e diferentes ao mesmo tempo.

A complexidade da cultura de rabeca no Nordeste, e da transmissão desta, se torna evidente

quando se observa que entre rabequeiros mais jovens se processa a continuidade de alguns

elementos de conteúdo, de estilo e de concepções do saber musical tradicional, e rabequeiros

antigos, como Geraldo Idalino, procuram manter a antiga fórmula instrumental de rabeca solista,

mas abandonar seus conteúdos e concepções musicais.

O “Chão e Chinelo”, grupo de Maciel Salustiano, é um exemplo desta atuação dos jovens

rabequeiros. Se, antes da participação deste rabequeiro, o seu grupo tocava basicamente as músicas

de Jackson do Pandeiro, Luiz Gonzaga e Trio Nordestino, agora tocam suas próprias composições

com um estilo que não é de grupo de forró nem de cavalo-marinho. E Maciel Salustiano demonstra

ter consciência crítica deste fato ao comentar:

Eu não vou falar pro pessoal que aquilo ali é a forma de um cavalo-marinho. Eu vou
dizer: é inspirado naquele som, mas modificado. O trabalho que eu faço hoje é
popular, mas não é um maracatu, reisado, cavalo-marinho; é uma banda, um trabalho
diferente. O grupo popular de raiz é de se apresentar em terreiro, a banda é diferente,
é um trabalho de palco, de gente pra dançar e não só assistir.

Siba Veloso ressalta que a combinação instrumental atual do seu grupo é resultado de uma

busca de sonoridade própria, onde a mudança de instrumentação esteve associada, também, a

algumas mudanças de estilo e conteúdo da música. Neste processo de mudança ele buscou um

afastamento dos laços convencionais da música pop urbana, como também não fez a opção de ser

80
um “artista” que serve de ponte entre a urbanidade e a ruralidade no Nordeste, “transferindo” para

os centros urbanos os produtos musicais de um outro contexto de saber e fazer musicais. E diz:

A gente partiu primeiro de um forró pé-de-serra, de um repertório que aprendi com


os rabequeiros da mata norte. Com o forró a gente não experimentava muito, não se
preocupava, e nem precisava; tinha lá a zabumba, o triangulo, a percussão, a rabeca
fazia a linha melódica e acompanhava a voz.

Ele tem clareza de que esta mudança no grupo se deve em muito à presença da rabeca, ao

afirmar que isto “... trouxe um diferencial que ajudou o grupo a conquistar um espaço por ser uma

coisa totalmente inusitada, nova, que talvez nunca ninguém tenha ouvido”.

6. O uso de recursos eletrônicos e suas influências nas músicas dos rabequeiros

A discussão acerca do impacto causado pelo atual uso de tecnologias de produção sonoro-

musical em práticas musicais tradicionais é necessária neste trabalho, porque se observou na

pesquisa de campo que o uso de aparelhos eletrônicos interferem nas práticas musicais cotidianas

dos rabequeiros, e que esta influência ocorre de forma diferente entre eles. Forma diferente esta,

advinda não apenas do próprio uso em si, mas, principalmente, do tipo de uso, das intenções para

com o uso e das possibilidades de envolvimento com tais recursos em cada contexto de atuação

musical.

De um modo geral, não há como negar que atualmente as ferramentas tecnológicas no

campo da engenharia de produção e manipulação eletrônica de sons terminam, de algum modo,

afetando o campo geral da produção musical em nossa cultura. Afetando esta produção em todos os

setores, seja no espaço da música popular urbana, da música de concerto das orquestras sinfônicas

ou das músicas de tradição oral – espaço este onde até a mínima interferência de um pesquisador

com seu gravador pode ser elemento de influência nas atitudes cotidianas de produção musical.

Se esta aproximação da tecnologia é atualmente inevitável, também não há como negar que

as culturas – em seus segmentos, grupos ou indivíduos, nas suas formas específicas de existência –

81
possuem mecanismos particulares de regulação da transferência e da incorporação e absorção de

informações e produtos tecnológicos. Da mesma forma que em outros campos da cultura não

ocorrem transferências automáticas e imediatas de idéias ou produtos de um grupo a outro, também

no âmbito tecnológico, as transferências são mediadas por interesses, não sendo simplesmente

impostas pelos setores dominantes ou absorvidas sem nenhum critério pelos setores dominados –

vindo os interesses sócio-culturais mais amplos a ter um importante papel na organização do

processo que leva a que um produto ou idéia de um segmento da sociedade seja capaz de influenciar

ou ser absorvido pelos demais.

Embora se aceite que os modos e meios de produção de uma economia tenham grande

influência nas idéias de uma sociedade, não se pode afirmar que ocorra um determinismo

econômico nas formas de manifestação cultural desta mesma sociedade. O fato é que grande parte

das ações culturais cotidianamente efetivadas por uma sociedade ou grupo – as festas, por exemplo

– ocorre, mesmo que contrariando as necessidades básicas de sobrevivência econômica de uma

sociedade, como afirma Blacking (1986: 8), e isto não significa que esta sociedade ou grupo tenha

tomado uma opção “aparente” de vida.

Da mesma forma, a absorção de tecnologias, seja por quais segmentos sócio-musicais

forem, sempre parte de intenções e concepções musicais internas e prévias sobre o próprio fazer

musical existente ou que se pretende empreender. E isto é uma questão importante a se considerar

quando se quer analisar a conjunção entre produção musical e tecnologia de produção de sons.

Embora enfocando esta questão no âmbito da produção contemporânea de música de

concerto, Luciano Berio (citado em Dalmonte 1981: 117) faz uma observação que, em alguns

aspectos, pode servir para a análise do que ocorre em muitos outros segmentos musicais, inclusive o

da música de rabequeiros. Ele diz que:

O fato é que o impulso inicial para melhorar os recursos deve vir primeiro de uma
concepção musical, e é só com esta condição que se pode pôr em movimento uma
relação profícua de intercâmbio entre música e tecnologia.

82
Isto conduz ao seguinte entendimento nesta dissertação: assim como as modificações

operadas no artesanato de rabecas têm relação com as intenções culturais e musicais de cada

contexto, também esta operação acontece quando da necessidade de uso de determinados

equipamentos eletrônicos por estes músicos nas suas atividades musicais.

Se anteriormente buscou-se fazer compreender que o instrumento rabeca é um objeto que foi

histórica e culturalmente construído a partir de intenções musicais prévias, é necessário observar,

também, que os equipamentos eletrônicos por si não são provedores de modificações nas músicas

dos rabequeiros. Embora a presença de artefatos eletrônicos nas práticas musicais dos rabequeiros

seja um elemento a se considerar num esboço dos contextos onde estas se efetivam, tais objetos

eletrônicos passam a ser algo próprio ao contexto musical somente a partir de quando, e de como,

são simbolicamente valorados, representados e incorporados pelos segmentos culturais.

No cavalo-marinho de Artur Erminio, a utilização de amplificação sonora é feita somente

quando o grupo se apresenta em instituições ou festas públicas promovidas por algumas entidades.

O uso de equipamentos eletrônicos é desejado por todos os membros deste grupo, e é um problema

estrutural a ser resolvido pelos próprios participantes, visto que a apresentação do folguedo em

grandes espaços – como habitualmente ocorre quando o grupo tem que se apresentar fora do bairro

– requer este tipo de auxílio tecnológico.

Embora todos os mestres de cavalo-marinho reiteradamente afirmem a grande importância

da rabeca na condução da música, a maior preocupação do Mestre Gasosa (do cavalo-marinho onde

Artur Erminio toca), na hora da apresentação, é com a amplificação da voz dos cantores, no caso,

ele próprio e o Mateus. Para com os demais participantes que dançam e cantam esta não é uma

preocupação, visto que o volume sonoro do conjunto das vozes já é suficiente. Para os mestres de

cavalo-marinho, o que parece importar é que o público escute bem o que dizem e cantam, pois, para

eles, são os textos e as canções que falam sobre o drama encenado, o aspecto principal a ser

comunicado – o que é correto, pois se trata de uma brincadeira com encenação.

83
Os instrumentos de percussão são naturalmente escutados e têm sua importância para os

mestres e demais participantes por fornecerem a base rítmica necessária para o desenrolar das

danças. Mas a rabeca tem grande importância na efetivação da densidade rítmico-sonora desta

música, como se pôde observar na pesquisa de campo.

Porém, o som da rabeca não é escutado a mais de dez metros quando os instrumentos de

percussão tocam e os dançarinos cantam numa apresentação ao ar livre e sem microfones para

amplificação. Ou seja, pelo perímetro da brincadeira, boa parte dos participantes e do público pode

não estar escutando a rabeca na maioria das músicas, e isto não afeta o andamento da apresentação

nem o mestre sente como problema a ser resolvido, talvez pelo fato de se encontrar, na maioria dos

casos, próximo à orquestra37.

Em apresentações do boi de reis onde João Alexandre toca, na sonorização realizada, o nível

de amplificação sonora colocado no microfone individual do mestre, a pedido dele, é sempre maior

que o colocado no outro microfone que serve para todo o conjunto instrumental. Recentemente,

mesmo com a colocação de um microfone exclusivo para a rabeca – isto, talvez, devido a opiniões

de pessoas de fora da comunidade, como pesquisadores intrometidos, por exemplo – era possível

observar que o mestre impulsivamente buscava, em alguns momentos da apresentação, uma

modificação na equalização sonora de forma que a ênfase estivesse na sua voz e nos instrumentos

de percussão.

Como a utilização de equipamentos eletrônicos funciona nestas apresentações apenas para o

aumento do volume sonoro de todo o grupo, a rabeca continua não sendo adequadamente escutada,

visto que não há como auditivamente se focalizar o som dela com o aumento geral do volume

sonoro.
37
As brincadeiras de cavalo-marinho e de boi-de-reis acontecem normalmente em ruas do bairro que são parcialmente
interditadas. Bicicletas, motos e carros estão sempre passando e obrigando os foliões a se acomodarem numa
pequena faixa da rua. A orquestra fica sentada em cadeiras bloqueando parte da rua e o grupo se apresenta em duas
fileiras, com o Mestre e o Mateus no centro, de frente para os músicos. No bairro dos Novais (João Pessoa), onde o
cavalo-marinho de João do Boi e o boi-de-reis do Mestre Pirralhinho têm sede, os grupos se apresentam em espaços
cercados, a platéia assiste de fora e a rua é interditada. Em algumas destas apresentações a orquestra fica em um
palco ao lado das fileiras formadas pelos participantes da brincadeira, e não em frente às fileiras como é comum em
apresentações de outros grupos de cavalo-marinho.

84
No caso dos rabequeiros de cavalo-marinho, o atual envolvimento com equipamentos

eletrônicos não interfere significativamente nos seus procedimentos musicais –interferência esta que

talvez venha a ser mais significativa no futuro, com a utilização de um microfone exclusivo para a

rabeca.

A variabilidade no tipo de envolvimento com equipamentos eletrônicos é um dado

significativo na observação de mudanças de comportamentos ou concepções musicais de

rabequeiros. Nos diversos contatos com Artur Erminio, ele nunca esboçou algum tipo de opinião a

este respeito, enquanto João Alexandre, que atualmente tem mais acesso a estes equipamentos,

demonstrava mais satisfação na última apresentação em que estava tocando com um captador de

som colocado no instrumento. E dizia se sentir mais “... dentro do grupo”.

Geraldo Idalino que tem seu próprio equipamento de som – consistindo este em duas caixas

amplificadas, um captador de som para seu instrumento e um microfone para o cantor – se orgulha

por tocar com grandes equipamentos de sonorização em festas juninas e nos seus depoimentos

pode-se observar um certo sentimento de admiração à modernidade tecnológica – talvez por

considerar que esta é uma das alternativas para continuar fazendo música direcionada a um grande

público e em ambientes abertos.

Maciel Salustiano, que tem uma atividade profissional em palcos com grande aparelhagem

sonora e possibilidades de bons recursos tecnológicos para a sua rabeca, usa apenas um captador de

som e diz preferir “... a rabeca limpa, sem recursos eletrônicos, mesmo no palco”. Este rabequeiro

que tem um maior acesso ao conhecimento sobre tecnologias de produção sonora, através do

contato com técnicos e engenheiros desta área, se preocupa mais com a qualidade sonora obtida a

partir da equalização do instrumento no palco, do que com o próprio volume sonoro. Diz que a

utilização de recursos eletrônicos não tem uma importância fundamental para a melhoria da sua

performance musical, ou que este seja um aspecto importante na diferenciação entre os jovens

rabequeiros e os mais antigos. Ao passo que deixa entender que a tecnologia é apenas um recurso

85
auxiliar a ser utilizado conforme as necessidades sonoras de cada proposta e momento musical. Ele

afirma que:

A rabeca é um instrumento de som rústico mesmo, então tem que tomar muito
cuidado com equalização [nos shows]. Tento tirar um pouco o ruído da rabeca.

Neste depoimento, ele ressalta uma especificidade do instrumento, sua rusticidade, que deve

ser manipulada, mas não suprimida por meios eletrônicos, de acordo com determinados objetivos

musicais momentâneos. Também entende que a utilização de requintados artefatos tecnológicos não

é, por si, solução para continuidade da prática da música da rabeca, mesmo no ambiente musical de

shows, como acontece em Recife. Sobre esta questão, diz que:

Tento estudar a rabeca sem ligar em um equipamento eletrônico. Vejo aquele som da
rabeca e tento passar para o técnico de som, mais ou menos, a forma de som que eu
quero mais adequado.

Mesmo realizando um trabalho de shows e disco com o DJ Dolores, onde usa sofisticados

recursos de processamento de som (como pode ser observado na faixa 14 do CD), Maciel

Salustiano não toma esta experiência como a proposta central de seu trabalho, mas apenas como

uma possibilidade a mais de se fazer música de rabeca.

Siba Veloso, que atualmente é o principal divulgador da música de rabeca no circuito da

música popular brasileira, tem três discos gravados com seu grupo onde também estão presentes a

guitarra, fole de oito baixos, zabumba, ilu e o baixo elétrico e onde se combinam elementos de

músicas de tradição oral com música popular urbana38. Seu grupo surgiu de uma formação

instrumental “mais elétrica” com órgão eletrônico e bateria – a formação normal de uma banda no

início da década de 90 – até chegar atualmente a uma formação instrumental mais “adequada aos

propósitos de brasilidade”, como ele mesmo afirma39.

38
Os últimos discos gravados por este rabequeiro foram: Mestre Ambrósio (1995), Fuá na Casa de Cabral (1998) e
Terceiro Samba (2001).
39
Siba Veloso é um dos responsáveis pela nova música urbana da rabeca no Brasil e também um dos músicos e
animadores culturais marcantes do recente movimento musical, o Manguebeat, que nasce em Pernambuco e,
atualmente, tem suas influências na cultura musical de todo o país. Hoje – por necessidades do trabalho, conforme o
mesmo – reside em diversos estados, mas mantém o vínculo como rabequeiro em um cavalo-marinho de
Pernambuco.

86
Em seu trabalho de palco, usa um afinador eletrônico, pois, conforme ele mesmo diz: “... a

umidade, o calor das lâmpadas, o próprio movimento de palco às vezes desafinam o instrumento e

eu preciso de rapidez”. Usa ainda um pedal de volume para um controle direto sobre a intensidade

sonora da rabeca e para bloquear microfonias e um equalizador particular, pois argumenta que:

Me dá autonomia pra regular meu timbre de rabeca sem precisar pedir pra um cara
da mesa de som, que nem sempre consegue fazer alguma coisa legal. Regulo pra
mim aqui, deixo meu som pronto.

Sobre o pedal delay, equipamento eletrônico que processa o som alterando inclusive o

timbre do instrumento, que até então usava, Siba Veloso comenta:

Eu vou até parar de usar aquilo; foi uma experimentação de uma época, que eu não
tô até nem mais muito interessado, não por ser contra ou a favor. Foi uma época que
eu usei e servia pra o momento, mas agora eu to até um pouco cansado.

As formas como se envolvem com a tecnologia, os resultados musicais daí advindos e,

principalmente, as idéias que têm sobre estes recursos e sobre a música resultante, são traços

instauradores de diferenças entre os rabequeiros pesquisados.

Na atividade de Artur Erminio, o uso de equipamentos eletrônicos pouco afeta sua cotidiana

atividade musical. O que mais tem afetado o aspecto sonoro e a “natureza” rústica desta música em

seus contextos originários são as gravações erroneamente realizadas em estúdios, onde se colocam o

Mestre, o Mateus e a orquestra, tentando reproduzir o “clima” de uma apresentação ao vivo. Muitos

aspectos importantes da brincadeira, como a própria espontaneidade, o improviso, a própria

densidade e tímbrica sonora de uma apresentação ao ar livre, se perdem quando se tenta em estúdio

uma montagem artificial de uma encenação.

Apesar do apelo que a maioria dos membros do cavalo-marinho de Artur Erminio faz ao uso

de equipamentos eletrônicos, este contexto de produção musical não é, em geral, muito aberto a

inovações desta ordem. Neste caso, é mais provável que um envolvimento com meios tecnológicos

87
venha a afetar mais a parte do canto desta manifestação musical, e apenas indiretamente a atuação

dos rabequeiros40.

O fato é que o envolvimento de qualquer grupo ou manifestação musical de tradição popular

e oral com os meios tecnológicos nem sempre é plenamente efetivado, assim como os impactos

resultantes da ação destes meios tecnológicos nem sempre ocorrem homogeneamente ou são

diretamente sentidos em toda a música e atividade de um grupo.

No caso de Siba Veloso, o tipo de música que produz exige um envolvimento com um

considerável aparato tecnológico, mas a sua concepção musical, enquanto rabequeiro, não parece

ser afetada diretamente por este envolvimento.

Poder-se-ia supor que o uso de recursos tecnológicos seria causador de mudanças imediatas

ou diretas em todos os setores de uma manifestação musical tradicional, e que os jovens rabequeiros

urbanos teriam nos meios tecnológicos um suporte imprescindível para a mudança e consolidação

de aspectos centrais do seu estilo de música de rabeca. Mas, pelo que se observou na pesquisa, as

duas suposições acima mencionadas não se verificam nos casos estudados.

Nos contextos musicais de Artur Erminio e Geraldo Idalino – rabequeiros que se encontram

nos limites do espaço multifacetado da música dos rabequeiros mais antigos – observa-se o

esgotamento de um tipo de relação com os recursos tecnológicos. É uma relação que tem seu limite

na amplificação sonora, enquanto uma possibilidade de expansão e manutenção desta música no

ecossistema sonoro, barulhento, fragmentado e deslealmente concorrente da cultura urbana.

É neste espaço específico da música da rabeca, o urbano, na sua influência/confluência com

os equipamentos tecnológicos onde, principalmente no caso de Geraldo Idalino, observa-se que os

equipamentos tecnológicos são mais facilmente capazes de, na sua valoração e apropriação
40
A sonoridade, nos seus aspectos de timbre e intensidade, do canto em folguedos como o cavalo-marinho parece
gravemente afetada pelo tempo. A própria idade dos cantores, os mestres e Mateus, o aumento do barulho nas ruas
próximas onde se apresentam estes grupos e o crescente desprezo social por estes tipos de manifestação e de cantos,
levam com que a “timidez” na emissão sonora seja algo gradativamente mais presente. A busca pelos cantores de
uma amplificação de suas vozes é algo, certamente, também motivado por estes fatores. Gravações antigas feitas
quando estes mestres eram mais jovens e o contexto guardava sentidos mais positivos de manifestação e
continuidade, demonstram que, mesmo sem microfones, estes cantores possuíam uma vitalidade maior no ato de
suas performances.

88
simbólica, atingir as concepções e procedimentos do rabequeiro. E isto pode se constituir em um

elemento causador, também, de descontinuidades na vertente da música tradicional de rabeca no

Nordeste – aquela mais diretamente ligada a folguedos como o cavalo-marinho.

A presença desta música em centros urbanos é, por si, um indicativo de uma mudança, pelo

menos geográfica. Mas alterações substanciais nesta tradição musical não se operam apenas, ou

diretamente, a partir de processos migratórios. Por isto, o envolvimento com alguns aspectos da

“modernidade” urbana (como os equipamentos eletrônicos), somente passa a operar mudanças

numa determinada cultura musical como a de rabeca, a partir de como cada segmento ou indivíduo

agente desta cultura re-processa este envolvimento e se posiciona (se identifica) culturalmente. É

neste sentido que se concorda com Blacking (1986: 3), que afirma:

Mudanças musicais e culturais não são causadas pelo contato cultural, movimento
populacional, ou mudanças na tecnologia e nos meios e modos de produção.

Se apenas o contato com a tecnologia de manipulação de sons fosse, por si, causador de

modificações radicais na música da rabeca, estas se verificariam melhor nas atitudes de Maciel

Salustiano e Siba Veloso, o que não é um fato.

De outra parte, embora tenha um acesso menor à tecnologia –acesso este direcionado apenas

ao sentido de expansão amplificada do som da rabeca, visto os equipamentos que possui – as

atitudes e concepções musicais de Geraldo Idalino indicam um direcionamento mais claro em

sentido contrário à música tradicionalmente acústica da rabeca.

89
Capítulo 5

O DISCURSO SOBRE MÚSICA E CRIAÇÃO MUSICAL


ENTRE OS RABEQUEIROS

1. Termos e conceitos empregados no discurso sobre a música

Estando as formas de expressão lingüísticas relacionadas aos conteúdos do saber a que se

referem e às ferramentas disponíveis na cultura para a sua formalização, é provável que nosso

repertório de conceitos, definições e termos se estabeleçam, também, a partir daquilo que nos é

genericamente oferecido na cultura. De outra parte, as culturas ou segmentos impõem, aos grupos

que a formam, determinadas formas de expressão lingüística para que se estabeleça não somente a

comunicação, mas a semelhança entre os indivíduos e a distinção para com outros.

Como o processo de identificação implica, de certo modo, em um jogo de interesses

pessoais ou coletivos em torno de um conhecimento de si e da realidade externa na própria base de

construção do conhecimento – que em si traz em si a possibilidade de identificação/comunhão entre

indivíduos – reside um interesse e uma motivação identificadora que se projeta, posteriormente, no

processo de elaboração de termos e conceitos, que socialmente expressam este conhecimento.

Esta introdução tem o propósito de servir como aporte para a discussão de aspectos de

linguagem verbal dos rabequeiros que se configuram não apenas como objetivações verbais do

saber musical, mas como elementos geradores de semelhança e diferença entre eles e para aqueles

com os quais compartilham experiências. São termos e conceitos elaborados por eles para falar

sobre música que foram detectados em entrevistas realizadas nesta pesquisa.

Nos depoimentos de Artur Erminio e João Alexandre, foi possível observar que a idéia de

“tom” é um aspecto central do saber sobre a música. Tom, para eles, é um conceito utilizado para

explicar grande parte dos acontecimentos essenciais do fenômeno musical. Assume o sentido de

região de altura onde se localiza uma determinada música, quando Artur Erminio fala que, “... se

90
41
não pegar o tom, eu não toco” ; de parâmetro de intensidade e timbre sonoro quando João

Alexandre diz que “... rabeca com prego não dá tom”, ou “... com essas madeiras a rabeca fica com

um tonzinho”. Também é usado para o entendimento e comunicação sobre alturas sonoras distintas

do espaço mélico, quando ambos falam sobre “... os tons da música”, ou “... o tom quem faz é os

dedos” – categoria similar ao que se entende por notas musicais na teoria ocidental européia.

Quando João Alexandre diz que em algumas músicas, além do uso das três cordas, “... tem

que afinar no baixo”, não está se referindo apenas à necessidade de afinar a quarta corda para tocar

algumas músicas. Ele está usando uma forma de expressão que mescla noções de afinação e

tonalização para designar a região do instrumento onde se localiza uma determinada melodia.

A categoria verbal “tom”, quando implícita ou explicitamente colocada, serve para explicar

e expressar diversos aspectos do saber e fazer musicais destes rabequeiros enquanto núcleo gerador

de sentidos. De outra parte, quando discorre sobre a rítmica musical este rabequeiro associa a idéia

de ritmo à de movimento corporal quando diz que “... o braço [direito] é quem treina pra pegar a

música”.

Observe-se que, para estes rabequeiros, ritmo está associado a movimento e tom a espaço, o

que não é muito diferente da noção de escala musical enquanto conjunto de degraus de “alturas”

sonoras constituintes do espaço mélico. Schurmann (1990: 46), numa análise desta questão no

âmbito da teoria musical ocidental, observa que:

A referência específica a diferenças ou distâncias parecem [sic] basear-se numa


categoria de espaço que a rigor seria própria a outros objetos que não sonoros. (...) A
associação entre alturas sonoras se dá muito freqüentemente mediante uma
conotação espacial.

Estes conceitos dos rabequeiros conduzem ao entendimento de que mesmo havendo entre

eles uma compreensão das diferenças entre aspectos musicais, a música não é concebida como um

“agrupamento” de partes separadas, mas numa unidade que mantém em si uma diversidade de

41
Denomina-se por região de altura visto que o tom de uma música para o rabequeiro não parece ser necessariamente
o som uníssono ou oitavado da melodia que o cantor executa, embora estes sejam os intervalos mais verificados na
performance musical.

91
aspectos. Para eles, a música é apreendida e concebida da mesma forma como é tocada, ou seja,

como um todo uno e complexo. E isto consiste, também, em um importante reflexo do processo de

aprendizagem da rabeca no qual foram imersos e torna a refletir na maneira como cotidianamente se

“exercitam” no instrumento para a apreensão de uma música – processo no qual eles não isolam

elementos rítmicos de elementos melódicos; atividades direcionadas ao arco ou à dedilhação com a

mão esquerda para a execução de uma música.

Este modo de relacionamento com o real exterior e sua organização mental, apreendendo-o

como uma totalidade e não como uma combinação fragmentada de partes, é definido por Morin

(1982: 268) como sendo um modelo complexo de observação, diferente daqueles modelos

simplificadores e fragmentários de sentido.

No caso de Geraldo Idalino, quando ele fala sobre sua música demonstra a incorporação de

diversos elementos de comunicação, utilizados por músicos formados no âmbito da música popular

urbana. Ele usa expressões como “... num tom de ré maior, ré bemol sustenido (...). Ela tem muita

complicação, tem muita nota, vai em maior, menor em si bemol” para se referir às especificidades

estruturais de uma música. Suas referências a “tom”, enquanto tonalidade de suas obras, advêm,

provavelmente, de informações colhidas de outros músicos com os quais tocou42. Formas estas de

conhecimento e informação que têm um valor e lhe emprestam um tipo de identificação que ele

busca, por isto as usa buscando este sentido.

Na própria confusão dos termos – aliada a uma incapacidade de explicação destes, quando

questionado – observa-se que eles são “teoricamente” pouco significativos para Geraldo Idalino e

que são vazios de sentido conceitual discursivo, mesmo que sua música seja claramente tonal. A

ênfase dada por Geraldo Idalino a aspectos do conhecimento teórico, quando, por exemplo, diz “...

eu toco em qualquer tom, toda qualidade eu conheço; de mi menor, maior, sustenido menor,

42
A música “Violino no Choro” transcrita neste trabalho, foi tocada em Ré sustenido menor (faixa 6 do CD). Mas o
rabequeiro fala na gravação que ela estava em lá. O que indica que – mesmo optando por um tipo de expressão
verbal derivado da teoria musical ensinada nos conservatórios – o uso do termo tom, no sentido que Geraldo Idalino
quer dar ao mesmo, possui um significado muito mais ideológico, na busca de identificação cultural, que
propriamente teórico-musical para ele.

92
conheço tudo”, é um forte indicador da sua necessidade de se representar como um músico popular

urbano com conhecimentos rudimentares de teoria que o diferenciariam, na sua concepção de si,

dos outros rabequeiros tradicionais.

As formas de comunicação verbal sobre sua música e sobre si, são importantes para que o

processo de identificação social se efetive, visto que não basta a este rabequeiro, ou a qualquer

outro, apenas a sua performance ou prática musical para que o “circuito se feche”. Isto acontece

porque os ambiente/contexto nos quais estão imersos exigem deles elementos verbais de

comunicação semelhantes aos habitualmente usados pela maioria dos outros indivíduos que

perfazem sujeitos a cultura ali objetivada.

A necessidade de inserção no segmento social que cultua o tipo de música popular


urbana que ele produz faz com que Geraldo Idalino se obrigue (ou tenha o prazer) a
usar recursos de expressão verbal que – mesmo que estes sejam confusos para ele
mesmo –servem como um artifício simbólico de inserção neste segmento social43.

O que se observa, é que as práticas musicais necessitam das expressões verbais e das
compreensões sociais delas para que elas possam se estabelecer como instâncias
instauradoras de identidade. E os rabequeiros estão envolvidos por estas
necessidades de identificação desde o momento inicial da atividade criadora ou
performática até à instauração de procedimentos/comportamentos musicais e a
formulação de conceitos, termos e expressões verbais sobre sua música.

O uso de termos e conceitos verbais como elementos de identificação cultural e musical

torna-se é mais complexo no caso de Geraldo Idalino, visto que ele transita nas margens de núcleos

culturais distintos. Esta identificação não se estabelece apenas na auto-atribuição, mas, também, no

processo de alter-atribuição que outros sujeitos realizam para com o agente cultural. Entre os

rabequeiros, as identidades postuladas por eles e por seus grupos resultam de representações

simbólicas que lhes permitem apreender a realidade sob determinada ótica, e são uma forma de

assegurar interesses, demarcar diferenças, similaridades, reconhecimento e poder na interação

social.
43
Embora existam múltiplas definições e conceitos sobre o que seja símbolo e para o estatuto de simbólico, as
definições de Geertz (1978: 105) de que são “... formulações tangíveis de noções, abstrações da experiência fixada
em formas perceptíveis, incorporações concretas de idéias, atitudes”, e de Cohen (1978: 38) que observa que
símbolos são “... objetos, atos, conceitos ou formas lingüísticas que acumulam ambiguamente vários significados
diferentes e que simultaneamente evocam emoções e sentimentos", estão mais próximos do nosso entendimento
visto ressaltarem a qualidade de ser algo público que possuem os símbolos, e sua natureza flexível e de referência.

93
2. Criação musical e concepções sobre criação entre os rabequeiros.

A definição do que seja música de rabequeiros passa pela compreensão de que mesmo

aquelas músicas que não foram diretamente criados por estes são músicas de rabequeiros, quando

adotadas por eles nos seus contextos de ação. Estas músicas, a partir de quando adotadas, servem

como referenciais coletivos na representação e apreensão da identidade musical dos rabequeiros.

Mas este processo de apropriação coletiva e de individualização de uma música – de

destinação a algum agente social desta propriedade – dotando-lhe de um certo aspecto de

identidade, não significa que não haja produção própria ou individual nas culturas de tradição oral,

ou que o anonimato seja a marca principal da produção entre as camadas populares.

O problema parece residir no fato de que os conceitos de autoria e anonimato que serviram

para a análise das formas de produção nas culturas de tradição oral foram forjados a partir de

pressupostos recolhidos em culturas de tradição escrita. São conceitos que possuem um lastro

ideológico específico nas suas formações em um determinado contexto, mas que foram

transplantados para a análise de outros contextos sem que se esclarecesse antes a dialógica peculiar

entre indivíduo e coletividade nos contextos investigados.

A busca de formação de um conceito “êmico” implica no estudo e no entendimento sobre as

formas peculiares de produção, apreensão e representação desta, nas culturas de tradição oral. Esta

não é tarefa deste trabalho. Aqui apenas se enuncia o problema e aponta umas poucas direções.

A idéia corrente de que o anonimato é um dos pilares identificadores da cultura musical das

camadas populares ainda se mantém presente em algumas formas de entendimento das culturas

populares. Mesmo quando se admite que um indivíduo, em algum momento da história, criou

determinada música, pressupõe-se que todo o processo, que culturalmente se realizou para isto e a

partir disto, seja resultante de uma motivação social anômala. Assim, a idéia de anonimato somente

persiste, quando se é incapaz de alcançar os indivíduos ou as organizações que comportam, regulam

e assumem as criações musicais.

94
As formas sócio-culturais de organização, que se estabelecem no seio das camadas

populares, cuidam da manutenção e recriação cotidiana dos objetos musicais, intervindo e propondo

modificações, determinando suas funções e o tipo de relação a ser mantida com eles. São

instituições que agem no interstício como mediadoras entre a macro-estrutura sócio-cultural e os

indivíduos. Elas têm uma enorme importância no ato de criação e recriação cotidiana das músicas,

mas são conceitualmente relegadas, nas abordagens acerca das culturas de tradição oral, a uma vaga

idéia de espaço “anonimizado” da sociedade.

Há formações sócio-culturais intermediárias entre indivíduo e macro-estrutura sócio-

cultural. Estas formações são os contextos onde a criação se efetiva e onde se pode observar a

posição do sujeito social. Sujeito criador em torno do qual não residem extratos de anonimato, mas

estruturas identificadoras da cultura sem as quais a própria noção de sujeito ou indivíduo não

poderiam se estabelecer, sequer a de indivíduo criador de música. Adorno (1983: 264-265) já se

preocupava com esta condição a afirmar que:

A parte da obra que “pertence” ao compositor, como qualquer outro artista


produtivo, é incomparavelmente menor do que supõe a opinião vulgar, orientada
ainda pela noção de gênio. (...). O sujeito da composição não é individual, mas
coletivo. Toda música, que seja a mais individualista pelo estilo, tem uma substância
irredutivelmente social: qualquer tom diz “nós”.

De outra parte, na defesa de um anonimato individual e social, opera-se “objetificação” da

música e da identidade musical, quando se oculta os agentes sociais e se busca encontrar a essência

da cultura que gera os objetos numa análise musical centrada exclusivamente nos aspectos

“objetivos” do produto musical. Este tipo de abordagem tem sua relativa importância, mas não é

suficiente para dar cabo da problemática da criação e re-criação cultural da música.

Quando pautada na colocação apenas da obra como eixo significador da criação e da

existência cultura, a profundidade analítica que se pretende termina por consistir em resultados

“profundos”, obtidos no garimpo da mais superficial camada do saber e fazer musicais de uma

determinada cultura. Sobre o que John Blacking (citado em Moraes, 1983: 18) afirma que:

95
As distinções entre a complexidade da superfície de diferentes estilos e técnicas
musicais não nos proporciona nada de útil quanto aos fins e ao poder expressivos da
música, ou quanto à organização intelectual que comporta a criação musical.

Busca-se, neste estudo sobre a música dos rabequeiros, entender que a criação de um objeto

se efetiva de modo social e cotidiano e que não é, ao mesmo tempo, anônima. Assim, o vislumbre

da criação deve ser buscado no contexto das performances musicais cotidianas. Sobre isto Béhague

(1992: 7) diz:

A obra musical só adquire sentido total no contexto de suas execuções. Portanto, a


etnografia da execução musical deve representar a fonte primária de estudo do
processo de criação. A obra musical não é nem uma partitura, um manuscrito ou uma
transcrição. Ela só existe em relação à percepção dos receptores. Daí a importância
de uma abordagem analítica que tenha como foco principal o contexto da execução e
os processos cognitivos do ouvinte.

Deste modo, a música do cavalo-marinho onde Artur Erminio toca é a música deste

rabequeiro. É aquela através da qual ele, enquanto executante, representa a sua identidade e através

da qual a comunidade apreende esta identidade. No caso de João Alexandre, aquelas músicas de

outros compositores que ele adota no seu repertório são músicas tornadas próprias à sua cultura de

rabequeiro, a partir de quando escolhidas dentro de um leque de opções como sendo as que

correspondem a preceitos estéticos, técnicos, de estilo e conteúdo, etc, do contexto cultural no qual

este rabequeiro atua. As músicas de Siba Veloso ou de Maciel Salustiano não são apenas aquelas

compostas por eles, mas são, também, aquelas do repertório tradicional que eles executam, embora

não sejam os autores.

Nesta breve discussão, buscou-se fazer entender que, assim como não basta apenas tocar

numa rabeca para ser identificado como rabequeiro, também não é apenas a criação musical que

pode ser isoladamente tomada como elemento único para identificar quem é, ou não, rabequeiro.

Com esta discussão inicial busca-se observar que processos de identificação e representação

– que englobam aspectos como o uso do instrumento musical, práticas sócio-musicais, uso de

termos e conceitos, etc – devem ser buscados na amplitude de um contexto de produção e consumo

musical.

96
Foi observado que, entre os rabequeiros, as idéias sobre criação e suas práticas musicais

criativas são diferentes. Esta diferença não reflete apenas as características pessoais de cada um,

mas derivam do conjunto de idéias, valores etc, que em cada contexto é conferido ao ato de criar

novos objetos musicais ou de manter ou operar leves modificações em objetos tradicionalmente

estabelecidos.

2.1. Concepções e atividades de criação entre rabequeiros ligados ao cavalo-marinho.

Os rabequeiros, diretamente envolvidos com o cavalo-marinho, têm idéias e atitudes em

relação à criação de novos objetos musicais que são coerentes com o próprio valor coletivo dado a

isso no amplo contexto desta manifestação musical. Artur Erminio entende que criar novas músicas

não é mais importante do que manter aquelas já existentes. Em uma conversa sobre este assunto, diz

que “... só toco uma música quando vejo uma pessoa cantar. Fazer por mim eu não faço”.

Artur Erminio convive na confluência de duas matizes culturais: a da cultura rústica, de

estímulo à produção e apropriação coletiva dos bens culturais e a de uma cultura urbana onde há

nomeação e individualização do criador e onde a legitimação da criação é se realiza através do

registro escrito de suas obras. Embora envolto num contexto onde tradicionalmente predomina a

transmissão oral e ação coletiva em torno de objetos musicais coletivos e culturalmente já

fornecidos há muitas décadas, este rabequeiro entende que criação musical somente ocorre a partir

da ação de um indivíduo e com um registro escrito da música. Ele comenta que “... a pessoa bota a

escrita, faz a música no papel e por aquela música a pessoa vai tocando. Mas eu não sei. Só sei

pegar uma música se for de ouvido”.

Para os rabequeiros que atuam apenas no cavalo-marinho, admitirem-se e agirem como

criadores é algo de pouca importância. E isto é coerente com o consenso mais amplo que há neste

contexto de que a atividade de criação – esta entendida como sendo atividade de inovação – é algo

relativamente prescindível à manutenção das práticas musicais cotidianas.

97
Criar – entendido isto como inovar, objetivar um novo produto musical – não é algo

estimulado em todos os segmentos da nossa cultura, com a mesma intensidade que é na cultura da

música comercial urbana.

Na ótica predominante sobre criação na cultura ocidental há um processo de classificação no

qual a plenitude das ações que objetivam socialmente uma música é fragmentada numa tríade

hierárquica de categorias como as de instrumentistas, intérpretes e compositores que se estabelecem

numa ordem valorativa que confere a cada um destes segmentos um determinado capital cultural.

Devido à sua longa presença na história de nossa cultura e de sua enorme força na

idealização desta, tal processo de classificação é, muitas vezes, entendido como consistindo em um

elemento absoluto e “natural” a todas as culturas. Muitos compartilham o esquema forjado por

Aaron Copland quando classifica o instrumentista como o mero reprodutor e o intérprete, como “...

o intermediário da música”. Aquele a partir de cuja ação “... o estilo da peça atinge o ouvinte

através de sua refração na [sua] personalidade”. O compositor é o verdadeiro e essencial criador

nesta tríade. Aquele que é capaz de nos ofertar “... sem referir-se a acontecimentos exteriores, a

quintessência de si mesmo – a expressão mais profunda de sua experiência de ser humano”

(Copland, 1974: 158-161).

Esta concepção é hegemônica em nossa cultura, mas apresenta variação em alguns núcleos e

nem sempre foi presente na nossa história. Schurmann (1990: 95) observa que o sentido de criação,

criador, arte e artista não é o mesmo em toda a história da cultura musical ocidental. Diz que a

concepção de criação enquanto uma atividade individual e de inovação teria se afirmado com o

mecenato no século XV, quando a música que anteriormente tinha um “... papel sócio-tecnológico,

agora passaria a cumprir uma missão sócio-ideológica”. No caso do jazz, por exemplo, a

improvisação do intérprete ou instrumentista vem a ser a própria atividade criadora da música em

muitos casos.

98
A noção que João Alexandre tem de criação musical difere da observada em Artur Erminio

apenas no condicionamento que ele estabelece entre o ato criativo e a composição da letra de uma

música. Quando discorre sobre uma possível atividade de criação musical, ele diz que, “... fazer eu

não faço porque não sou poeta. Eu toco o que sei”. Anteriormente já se observou que a música de

rádio é uma fonte importante de informações para João Alexandre. Isto, com certeza, de influenciar

suas atividades e suas idéias sobre música e criação – neste caso especifico da associação a uma

letra.

Paradoxalmente, sua performance no cavalo-marinho está permeada por alguns elementos

de improvisação, que não são considerados como atividades de criação ou recriação por ele, nem

pelos membros do conjunto que denominam como “barulho” e “erro” de execução algumas atitudes

musicais de João Alexandre.

A ligação de João Alexandre com o forró de Jackson do Pandeiro 44 e outras músicas tocadas

nas rádios reflete-se na sua performance no cavalo-marinho. As alterações rítmicas geradas a partir

da sua forma de acompanhamento com a rabeca imprimem contribuições criativas à música do

cavalo-marinho e, em alguns momentos, a se constituir em pequenos fragmentos melódicos

adicionais às melodias já estabelecidas das toadas.

São variações de caráter rítmico que operam modificações melódicas a partir da intensidade

em que acontecem, como ocorre na segunda variação exposta no exemplo abaixo (exemplo 1). Ou

que se realizam na própria escassez de acontecimentos musicais, como ocorre na última variação

onde a melodia é completamente ocultada, restando apenas sons básicos da sua estrutura. Variações

que se operam a partir de uma opção pelo impulso rítmico ao baião, através da ênfase dada ao

contratempo na quarta e quinta variações ou, pasmem, pela apresentação da melodia sem a sua

estrutura rítmica, como ocorre na terceira variação. A utilização do Si grave como um som de

44
Grande músico que, com o seu pandeiro e forma peculiar de cantar músicas nordestinas como o baião, conseguiu
imprimir enormes possibilidades para a execução musical e é tido como um dos grandes influenciadores, em muitos
aspectos, da produção de músicos ligados à bossa-nova, tropicalismo e demais gerações advindas após estes
movimentos musicais.

99
referência no meio de cada variação produz um tipo de dilatação momentânea da textura e uma

modificação na estrutura da dança que potencializa o seu “gingado”.

Estas intervenções sempre ocorrem quando o conjunto instrumental toca sozinho, nos

baiões. Sem a presença do canto que, no caso do cavalo-marinho, tem uma enorme importância na

condução da música.

Na performance de Artur Erminio e João Alexandre, a atitude criativa está centrada,

principalmente, na rítmica da música. Provavelmente, estas intervenções criativas no âmbito rítmico

não sejam entendidas, neste contexto, como sendo fatores de alteração dos conteúdos musicais

tradicionalmente estabelecidos. Ou não se configurem como um ato de criatividade, mas como

100
variações pouco significativas, para o restante dos participantes no momento da dança, na execução

da música. Isto tornaria estas intervenções mais suportáveis e permitidas neste contexto.

Uma comparação do exemplo anterior com o exposto a seguir permite observar que nas

toadas a ação inventiva do rabequeiro é mais restringida que nos baiões – isto porque a melodia e a

canção são elementos de importância maior nestes folguedos. Sobre elas, que são os fios condutores

da música, poucas intervenções são aceitáveis. E nisto se observa a hierarquia dos elementos

musicais na música do cavalo-marinho e boi-de-reis.

Nestas circunstâncias de restrição, as pequenas atitudes inventivas que se observam,

consistem em pequenas modificações rítmicas na estrutura de tercinas originais melodia, em

síncopes e na junção entre uma colcheia pontuada e uma semicolcheia dando ênfase ao contratempo

típico dança do baião.

É o caso do fragmento anterior retirado do tema da toada “Não Chores Dama do Rei”, onde

o tipo de modificação, no toque da toada, realizada por Artur Erminio tem importância quando

insere no espaço do canto puramente melódico os elementos rítmicos que foram esboçados pela

orquestra no decorrer da apresentação da música. No início da toada, o rabequeiro executa as

mesmas tercinas cantadas pelo mestre, mas quando reapresenta a toada – agora já tendo passado por

momentos onde o conjunto instrumental executou o baião e esteve mais livre – usa síncopes, que

101
dão um caráter mais de dança à sua interpretação da toada, imprimindo, de modo inconsciente e

sutil, um diálogo musical com a autoridade do mestre e da melodia cantada da toada neste folguedo.

Criar, para os participantes destes folguedos, indica uma atividade individual e de inovação

e, de certa forma, de objetivação de uma música com letra. O fato é que em estando a música

especificamente instrumental destes folguedos e contextos mais ligada à dança coletiva – e assim

submetida a uma apropriação maior que a faz perder muito do seu caráter autoral – e a um momento

de diversão onde a atenção da platéia não está focada nos intérpretes, o grau de “seriedade”

atribuído a este tipo de música seria menor que o atribuído àquelas que possuem letra e canto –

quando a atenção da platéia está mais focada para os intérpretes. Talvez por isto, a música

instrumental de dança seja genericamente denominada como música de “pagode”, de “fuzuê”, pelos

próprios membros das comunidades pesquisadas.

Embora as atitudes criativas não sejam aceitas, ou consideradas como tal, elas persistem e

estes rabequeiros estão, de alguma forma, recriando e “re- compondo” estas músicas. Acerca deste

processo, Béhague (1992: 9) observa que:

Se se inclui na composição todo nível de inovação musical (maior ou menor), toda


execução musical teria alguma coisa que ver com composição, já que sempre há
algum estilo individual consciente ou inconsciente. Por conseguinte, o improvisador
e o executante estariam, de uma forma ou de outra, envolvidos no processo de
criação.

Se a combinação entre atividades de repetição, renovação, manutenção, modificação de

objetos e significações é um aspecto necessário à permanência de qualquer tipo de música ou

tradição musical; e se as atitudes performáticas criativas dos músicos de cavalo-marinho são pouco

aceitas nos próprios contextos, é provável que parte do interesse interno pela continuidade desta

tradição tenha se perdido. Isto porque os participantes assumem, consciente ou inconscientemente,

que suas atitudes devem ser apenas de repetidores de fórmulas anteriormente elaboradas e não como

reapresentadores de algo vivo e, portanto, mutável mesmo que em pequenos detalhes no momento

da performance.

102
Um possível problema para a continuidade destes folguedos é a ausência da compreensão de

que na mutação deles se opera sua própria continuidade, em um processo de criação e recriação de

objetos e significados.

Sobre a existência de estilos individuais não há dúvida. O problema é que não são

considerados e estimulados nestes contextos, e isto é um problema para a da continuidade da

tradição musical.

Duas questões são importantes na análise desta situação. Uma diz respeito ao fato de que à

própria necessidade de “modernização” à base do consumo e do “inovacionismo” que, a qualquer

custo, é imposta às culturas urbanas ou semi-urbanas na atualidade também é imposta à cultura uma

reserva de “mercado musical” tradicional-imutável. A alguns núcleos desta mesma cultura que se

“moderniza” são impostas as condições de se manterem como tradição; como um patrimônio

cultural que, mesmo sendo intangível, deve, paradoxalmente, se manter inalterado tal como os

patrimônios tangíveis de uma cultura – os seus casarões, por exemplo. O problema surge quando os

próprios núcleos a que se impõem estas condições, os folguedos de cavalo-marinho e boi-de-reis, as

tomam como maneiras próprias de ser na cultura.

A outra diz respeito ao fato de que, como observa Nettl (1983: 30-31), todas as culturas

apresentam variação nos seus e objetos estabelecidos e fornecidos no decorre da história e, com

isto, apresentam diferenças no grau de intervenção criativa requerida aos indivíduos ou grupos. Em

certo aspecto, pode-se dizer que os produtos musicais necessários às práticas musicais destes

rabequeiros podem já estar praticamente estabelecidos em um determinado momento da história de

uma cultura.

Assim, num consenso interno do próprio núcleo que mantém a música, não se requer nem se

estimula a criação de novos objetos musicais, devido ao fato de o repertório culturalmente

necessário já estar estabelecido – o que pode estar acontecendo atualmente com a música dos

103
cavalos-marinhos onde a ação dos músicos e em especial dos rabequeiros deve se limitar apenas à

intervenção estilística de caráter rítmico e em pequenos momentos da música.

Na mesma comunidade onde há o cavalo-marinho do Mestre João do Boi, existem

manifestações diversas como a de uma tribo indígena que se apresenta nos carnaval e de um grupo

de cirandeiros. Num debate entre um mestre de cavalo-marinho e um mestre de ciranda registrado

nesta pesquisa, foi possível observar que ambos admitiam que ciranda é lugar de improvisação, de

criação e que cavalo-marinho não é. Ou seja, que há uma noção entre estas pessoas dos limites de

intervenção permitidos aos membros de cada um destes grupos.

Pode haver, no caso do cavalo-marinho, uma menor flexibilidade contextual para que

mudanças se operem mais fluentemente e com nitidez para os próprios membros do grupo. Sobre a

flexibilidade que cada contexto ou sistema tem na aceitação de intervenções, Béhague (1992: 12)

observa que “... alguns sistemas são mais elásticos ou flexíveis que outros, de modo que a

possibilidade de inovação depende dessa flexibilidade”.

Não se desconsidera, porém, que exista criação de novos objetos musicais por alguns

rabequeiros que mantêm ligação com o cavalo-marinho. Mas parece que estas atividades

sobrevivem escassamente entre uns poucos rabequeiros que, provavelmente, ainda mantêm boas

lembranças da atividade solista do rabequeiro nos antigos bailes de forró.

Murphy (1997: 158-164) apresenta alguns exemplos de músicas criadas por rabequeiros

pernambucanos. Mas, neste mesmo trabalho, não demonstra a valoração dada a esta atividade pelos

próprios rabequeiros e outras pessoas que perfazem o campo pesquisado, nem se são criações

antigas ou recentes. Assim, não possibilita observar o grau da presença e importância da criação

musical nas atividades sociais destes músicos. O que se pode perceber é que nos cavalos-marinhos

de Pernambuco ainda existe uma pequena parcela de rabequeiros solistas.

104
2.2. Atividades e concepções sobre criação musical entre rabequeiros inseridos no espaço da
música comercial urbana.

Nesta pesquisa, constatou-se que a atividade de criação musical é maior entre os rabequeiros

na mesma proporção da inserção no espaço da música comercial urbana. Variam, neste caso, apenas

os procedimentos de criação e o sentido desta ação para estes próprios músicos.

A ligação de Geraldo Idalino com o mercado urbano de música também impõe a ele a

necessidade de uma maior atividade criadora. Isto para que ele mantenha a sua atividade enquanto

rabequeiro nesse espaço. A constante produção de novos objetos musicais é uma exigência básica

para o comércio da música comercial urbana, tal como é um elemento usado como parâmetro

definidor de capacidades do músico na economia das trocas simbólicas neste contexto.

Desta forma, não se trata apenas de talento pessoal, pois Geraldo Idalino não é mais

talentoso ou potencialmente mais criativo que João Alexandre ou Artur Erminio. É a sua inserção

em um outro espaço que lhe possibilita e exige assumir mais claramente esse tipo de atividade e, em

determinados casos, abandonar outras que são requisitadas no contexto das manifestações culturais

onde atua Artur Erminio, por exemplo.

A este respeito Béhague (1992: 12) observa que no espaço da cultura urbana e de massas a

própria atividade de criação de novos objetos é maior devido ao fato de que estes “... contextos em

que essas funções se desempenham são tão vastos que as estruturas sonoras podem ser tão variáveis

quanto as estruturas sociais correspondentes”. E que “... o grau de flexibilidade [de um sistema]

corresponde em geral ao tipo de ideologia do grupo social”, tendo isto relação com a própria

funcionalidade de cada contexto ou música. Observando por esta ótica, a atividade de criação de

novos produtos musicais consiste ao mesmo tempo numa exigência e num estímulo social que agem

sobre a pessoa de Geraldo Idalino.

Das trinta e seis músicas de Geraldo Idalino gravadas nesta pesquisa, umas poucas não eram

suas ou eram em parceria com outros letristas. Criar novas músicas é algo muito importante no seu

105
entendimento como rabequeiro, o exato oposto do que é para Artur Erminio – que é considerado

como um dos melhores da Paraíba entre seus pares e por aqueles que fazem ou escutam a música do

cavalo-marinho. Isto indica que não é a maior atividade de criação de novos produtos que determina

quem é o rabequeiro mais importante para os que fazem esta música. Também possibilita observar

que os contextos possuem instrumentos reguladores deste tipo de procedimento e que a menor

variabilidade na estrutura social que comporta o cavalo-marinho conduz à necessidade de menos

atividades inovadoras.

A atividade criadora de Geraldo Idalino está atualmente direcionada à produção não apenas

de música instrumental para rabeca, no que consiste grande parcela de sua produção antiga, mas

para a produção de um forró cantado com acompanhamento de rabeca. Isto demonstra a grande

capacidade que tem este rabequeiro, e outros que representam esta linha de continuidade da música

de rabeca, de inserção e adaptação a novas situações e exigências do mercado e do consumo de

música.

Geraldo Idalino é, quando analisado por esta ótica, um rabequeiro desligado de um contexto

geográfico, mas profundamente envolvido com a manutenção e renovação da atividade de

rabequeiros na região Nordeste do Brasil. Sobre os procedimentos que usa para a criação musical,

este rabequeiro diz que:

Eu já vim tirando muita música, mas eu não canto, Eu improviso assim, e tem um
menino que copia [a letra]. Aí quando ele copia eu digo agora vamo cantar. Eu boto
a introdução, aí ele canta. Nós toca a música todinha.

Improvisar é um procedimento criativo que tem maior significação para Geraldo Idalino,

pois é conscientemente entendido por ele como um processo de objetivação musical.

Contrariamente Artur Erminio e de João Alexandre, não são consideram que os aspectos de

improvisação presentes em suas performances sejam uma atividade de criação, e isto restringe suas

possibilidades de intervenção musical.

106
Criar músicas diretamente no instrumento e a partir de suas possibilidades técnicas é um

aspecto que liga Geraldo Idalino a outros rabequeiros tradicionais como Nelson da Rabeca (AL),

Luís Paixão, Manoel Pitunga e João Salustiano de Pernambuco. Este procedimento de criação dota

suas músicas de peculiaridades estilísticas que as diferem de outras compostas para o instrumento

rabeca por compositores que não são rabequeiros.

Nos exemplos abaixo, é possível observar que apesar dos gêneros musicais serem diferentes

– e isto implica em formações estruturais, contornos melódicos e rítmicos impostos ao ato de

criação ou execução – alguns aspectos composicionais são comuns a todos os rabequeiros e isto

deriva de suas posturas, enquanto criadores de música a partir de um instrumento.

Os exemplos 3 e 4 são fragmentos recolhidos de transcrições realizadas por Murphy (1997:

163-164) de um “baiano” executado por Manoel Pitunga e de um “Baiano do Cego” de autoria de

Luís Paixão e o exemplo 5 é um fragmento de “Violino no Choro”. de Geraldo Idalino. Na faixa 15

do CD há uma música composta por Nelson da Rabeca, que permite observar as semelhanças, em

alguns aspectos, na criação destes rabequeiros.

107
Quando discorre acerca do momento da criação musical, Geraldo Idalino diz que:

Às vezes, o cabra ta tocando assim, lembra de um tom qualquer e inventa uma


música. Assim, num tom ré maior, ré bemol sustenido, lembra daquele e faz um
forró. Eu tando tocando eu me lembro de muitas coisas.

Ao dizer que “lembra de um tom qualquer”, Geraldo Idalino está usando um tipo de imagem

discursiva que guarda um duplo significado. À medida que reforça a sua ligação com outros

músicos, que possuem alguma informação teórica sobre música, ele está buscando para si uma

qualificação como um tipo de compositor diferente daqueles outros rabequeiros. Um tipo de

compositor que incorpora à atividade composicional a partir do instrumento, uma outra de caráter

subjetivo e teórico.

Maciel Salustiano diz que sua inspiração vem do próprio universo cultural atual de

Pernambuco, “... que é de escutar música de Luiz Gonzaga, Jackson do Pandeiro, maracatu e

108
cavalo-marinho”, e que seu processo de criação é menos ligado ao instrumento. Siba Veloso afirma

que não compõe diretamente na rabeca, mas a partir de motivos melódicos ou poéticos que

posteriormente são desenvolvidos com o auxílio de um instrumento, não necessariamente da rabeca.

Diz que a própria participação da rabeca nas músicas do Mestre Ambrósio é decidida a partir do

arranjo instrumental a que cada música é submetida pelo grupo.

Para Geraldo Idalino a atividade criadora é importante na sua afirmação como

instrumentista-rabequeiro, enquanto para Siba Veloso e Maciel Salustiano esta atividade tem

importância na afirmação como músicos e não apenas enquanto instrumentistas. Assim, algumas de

suas composições não são diretamente condicionadas pelas possibilidades técnicas da rabeca e

algumas não contam com a participação deste instrumento, diferentemente do que ocorre com

Geraldo Idalino e Nelson da Rabeca cujas músicas têm sempre a participação da rabeca.

O público que consome a música destes novos rabequeiros, implicitamente exige e solicita

delas uma postura problemática em relação à criação musical. Qual seja a e lhe fornecer objetos

musicais novos, e com caracteres próximos à sua cultura urbana, e, ao mesmo tempo, que eles lhe

alimentem com conteúdos da música tradicional de rabeca. Eles são obrigados a proceder

criativamente a partir destas limitações e exigências; a serem inovadores e portadores de um estilo

antigo e novo de música e toque da rabeca.

Isto acontece porque este público, ao mesmo tempo em que busca uma ligação com aspectos

da tradição da rabeca, também busca uma música com uma roupagem menos rústica. Processos

como este parecem sempre ocorrer de modo sutil ou explícito nos rituais de passagem de um

instrumento ou música de um contexto para outro – principalmente nos casos em que se trata de

uma inserção no ambiente urbano de shows, ambiente este que é sempre carente e exigente de

novidades.

Siba Veloso e Maciel Salustiano também são rabequeiros de cavalo-marinho. É provável

que, nestes folguedos, as suas atividades como compositores de música para rabeca os estimule,

109
dentro dos limites permitidos pelo próprio folguedo, a uma ação criativa mais objetiva e intencional.

Quando estes jovens rabequeiros deixam explícito que, na execução de músicas do cavalo-marinho,

o rabequeiro sempre repete, com algumas modificações, as melodias cantadas pelo mestre, estão

dando um sinal da consciência que têm das possibilidades de intervenção criativa nessa música.

Nesta pesquisa, não foi possível observar o impacto da ação destes rabequeiros no contexto da

performance dos grupos de cavalo-marinho onde atuam, mas isto é uma outra questão importante a

ser investigada.

Se o atual isolamento dos rabequeiros tradicionais os impossibilita de desenvolver o tipo de

consciência que possuem os jovens – pois não têm como fazer comparações entre si –, é justamente

a possibilidade maior de contato que têm estes novos rabequeiros com os outros que, também,

possibilita o desenvolvimento desta consciência formal sobre o papel e os limites de atuação

criativa dentro dos cavalos-marinhos.

Um outro aspecto importante na elaboração da identidade destes jovens é a consciência de

que possuem um estilo próprio de tocar. Porém, eles não negam a influência que tiveram de alguns

rabequeiros mais antigos, como demonstra Siba Veloso ao comentar que:

Eu, com o tempo, fiz meu estilo de tocar. Tenho coisas que são minhas e que eu
desenvolvi tocando no cavalo-marinho. Mas foi com Luiz Paixão, principalmente,
que eu aprendi muito, que eu herdei muita coisa do que faço hoje.

Isto leva a que, na própria música destes rabequeiros, estejam presentes muitos elementos da

música tradicional de rabeca. Não propriamente temas ou motivos melódicos “copiados”, mas

elementos do estilo desta música.

Já se observou que eles são executantes da música de rabeca nos cavalos-marinhos e

compositores nos seus grupos. Mas a composição deles não consiste, apesar disto, numa fusão entre

duas fontes musicais, e sim na objetivação de um tipo de música que não se limita apenas à

combinação entre conteúdos tradicionais e de música urbana. Sobre esta questão, Siba Veloso diz:

Foi na consciência desses elementos [da música tradicional dos rabequeiros] e na


tentativa de ressaltar eles, que eu fiz o meu estilo como rabequeiro e compositor da

110
rabeca também. Tentei buscar esses elementos, o que acho mais bonito, o que é que
todo mundo usa, que todo mundo gosta.

Ressaltar tem um sentido diferente de combinar e/ou fundir. A diferença, nesta atividade

composicional, pode ser melhor entendida quando comparada a determinados procedimentos

composicionais, que se pautam apenas na combinação/fusão de conteúdos musicais diversos; o que

é muito comum no espaço da chamada “world music”, amplamente aceita nos meios de

comunicação de massa como alternativa globalizadora e “modernizadora” das músicas de tradição

oral.

A música destes jovens rabequeiros apresenta elementos de dois contextos e estilos (o de

tradição rural e o urbano) ao mesmo tempo em que a descontinuidade entre ambos está presente. O

depoimento de Maciel Salustiano elucida um pouco esta questão quando ele diz:

Mesmo que eu tenha alguma modernidade, de fazer algumas coisas diferentes, eu


tento também não fugir muito da origem, da raiz. Agora eu não vou ficar assim como
um grupo popular, porque o trabalho que eu faço hoje não é de um grupo popular, é
do povo, mas não é assim um boi de reis, um cavalo-marinho, um maracatu; não é
nada disso.

A própria crítica de Siba Veloso aos procedimentos de alguns grupos para-folclóricos

demonstra sua posição em relação à tradição, ao mencionar que:

A gente nunca teve um trabalho nem didático nem descritivo de cultura popular.
Descrevendo como muita gente faz, quando quer usar esta linguagem, e não tem
vivência nenhuma e aí pega e começa a descrever, aquela coisa vazia; a gente nunca
puxou muito pra isso.

111
Capítulo 6

ENSINO E APRENDIZAGEM DA MÚSICA DE RABECA

1. Vivência musical e formação dos rabequeiros

O processo de aprendizagem da rabeca é importante para rabequeiros, quando estes buscam

avaliar a sua vivência musical. A discussão dessa questão é importante neste trabalho porque,

também, se revela como uma das formas por meio da qual é possível compreender-se o processo de

transmissão do conhecimento e de continuidade dessa tradição musical.

Este processo é informal e se efetiva numa relação quase indireta entre o mestre rabequeiro e

o aprendiz de rabeca. Inúmeros são os depoimentos de rabequeiros que relatam momentos de

quando eram aprendizes e observavam o mestre rabequeiro tocando e depois – às escondidas, ou

com um instrumento feito à imitação do que o mestre usava – tentavam, sozinhos, realizar os

primeiros toques no instrumento.

S. Oliveira (1994: 15) relata um depoimento do rabequeiro Luís Paixão onde essa situação é

bem clara. Assim diz o rabequeiro:

- Tio Antoe Paixão, me ensina a tocar rebeca?

- Tu aprende a tocar isso, nego safado! Era o que ele dizia com eu. Eu tava um
negócio de dez ano, que eu comecei a tocar uma coisinha com doze ano.

E, assim, naquele tempo mais pra trás (...) era tudo brincando, batendo aquele
bombo, pandeiro, aquele chaco-chaco (...). Aí de vez em quando eles fazia um
intervalo e ia tomar aguardente (...). Eles pegava a rebeca, botava em cima da cama,
levava lá pra dentro, né? Eu espiava pra ela:

- É tão bonito! ... Aí eles lá tudo bebendo e eu... pequeno, né? Aí eu roubava de
dentro do quarto (...) pegava na rebeca. Eu ouvia o tom deles, sabe?

Artur Erminio, discorrendo acerca de como começou a aprender a tocar o instrumento, diz

que:

112
Eu aprendi num lugar chamado Caruçu, ali perto de Sapé [zona agrícola/canavieira
localizada a 80 Km. de João Pessoa/PB]. Mais ou menos eu tinha uns dez anos de
idade, era criança. (...) Apareceu um homem lá com uma rebeca, ele tocava e eu
ficava sempre olhando, procurando saber onde é que ele botava os dedos, fazia os
ton, afinava. Fui aprendendo.

Geraldo Idalino, ao dizer que começou a tocar aos cinco anos de idade, quando “... os dedo

ainda tava nascendo”, reitera o que disse Artur Erminio sobre o início da aprendizagem na infância

ser algo comum a muitos rabequeiros. E João Alexandre fala que:

Foi com oito anos (...). Foi em Araçagi [cidade próxima a Sapé]. Eu via aqueles
homem tocar e fui sentindo gosto. Logo eu tava tocando no Babau, nos baile de forró
que sempre tinha no sítio45.

Em alguns casos, é ressaltado o fato de eles mesmos terem feito suas próprias rabecas ou,

provavelmente, construído instrumentos toscos numa imitação das rabecas que viam nas mãos dos

mestres, como exemplifica Geraldo Idalino:

Aprendi eu mesmo, eu já nasci com aquela sina mesmo. (...) Eu nunca tinha visto um
músico que tocasse no sítio. (...) era adolescente de cinco anos de idade eu já tocava.
O primeiro instrumento quem fez fui eu mesmo. Nunca que vi antes. Fui pro mato,
cortei uma Imburana seca, lavei, cortei com um machado, ai fiz.

A aprendizagem musical realizada na infância ou na pré-adolescência, numa relação direta

com a música na sua manifestação cotidiana, é um fato importante entre as camadas populares que

habitam as periferias dos centros urbanos ou nos vilarejos de interior. No caso da música de rabeca,

este é um aspecto que tem importância na diferenciação entre a antiga forma de transmissão deste

conhecimento e os processos que envolvem a formação de novos rabequeiros.

Nestes relatos, os momentos iniciais de pura diversão, quando escutavam outros

rabequeiros, se entrecruzam em suas memórias com aqueles nos quais têm os primeiros contatos

com o instrumento. Esse processo de educação informal, que interliga em um momento único a

diversão e o aprendizado é bastante comum em ambientes onde a tradição da música de rabeca

45
Babau é como também são chamados os teatros populares de bonecos muito apreciados no interior nordestino,
principalmente em dias de feira. Alguns têm um enredo determinado, uma estória que se conta, mas, na maioria dos
casos, cada boneco ou dupla de bonecos, tem uma estória particular. O acompanhamento musical era feito por
rabequeiros ou sanfoneiros, pandeirista e zabumbeiro, que normalmente tocavam partes de danças.

113
ainda se mantém. Sem etapas claramente estabelecidas, este processo pode se iniciar a partir da

primeira grande “revelação” que cada indivíduo tem em relação à música e ao instrumento46.

Esta discussão adquire um caráter etnomusicológico, quando se observa que os rabequeiros

reelaboram a sua forma de enculturacão, a partir do processo de ensino-aprendizagem, no seu

contexto musical. A significação dada a este processo passa a consistir em um elemento do seu

complexo geral de identidade como músico e tem reflexos diretos nos comportamentos musicais e

na transmissão dessa música e conhecimento para outras gerações.

A aprendizagem da rabeca que se processa através do ver, ouvir e tentar tocar sozinho

diminui a importância de distinção entre as pessoas envolvidas, ao passo que realça a importância

do conhecimento em torno do qual o processo se revela.

A vivência musical, enquanto um meio de aprendizagem, é um elemento importante para

esses músicos perceberem-se como rabequeiros. É necessário compreender-se de que maneira uma

vivência é transformada em elemento de uma tradição, a partir da significação dada a ela. Pois,

tradição não consiste somente em fatos, objetos, lugar ou um estado em si, mas é um complexo de

sentidos que são coletivamente elaborados e comungados, em um determinado espaço e tempo das

culturas, a partir de processos de significação a que as vivências culturais são submetidas.

Assim, a análise dos fatos vivenciados pelos rabequeiros tem sua importância, quando são

observados nas formas em que significações e resignificações foram empreendidas pelos indivíduos

e pela coletividade, nessa vivência. Diz-se isto na observação de que quando os indivíduos ou a

coletividade realizam, na memória de si, processos desta natureza – de referenciar a tradição a partir

de alguns dados da vivência – estão selecionando e valorando elementos identificadores de sua

tradição (que é construída e reconstruída a cada dia).

Como esse processo se efetiva a partir da memória, e a memória pessoal ou coletiva é um

mecanismo de seleção, significação e valoração, esses rabequeiros estão selecionando determinadas

46
A própria denominação de “brincadeira” dada à apresentação dos cavalos-marinhos e outros folguedos pelas pessoas
destas comunidades, guarda, em parte, uma relação simbólica e memorial com esta primeira forma de contato com a
música e o instrumento.

114
experiências e conhecimentos que, dentre outros, são os mais significativos e lhes fornecem um

lastro básico e coerente para a compreensão e formulação de sua tradição e de suas identidades.

Entre os rabequeiros que não nasceram nas áreas geográficas onde se encontram os antigos

rabequeiros, mas que foram em busca da música de rabeca nessas comunidades, a alusão à pessoa

do rabequeiro-mestre em que se inspiraram é mesclada com referências ao contexto da

manifestação musical e a outros meios de aprendizagem. Sobre isto, Siba Veloso diz que:

Na verdade eu já era músico, já tocava guitarra, e aí veio o interesse pela rabeca. Eu


comecei a aprender a tocar rabeca, a tocar as coisas do cavalo-marinho, ouvindo as
gravações, vendo o pessoal tocando e sozinho em casa. Aí comecei a aprender com
mais pessoas.

Neste caso, a vivência de elementos culturais diferentes é positivamente assumida na

elaboração de sua identidade musical. A absorção de determinados aspectos de uma cultura musical

e, principalmente, o ato de assumir isto como algo seu, faz com que esse músico se identifique

como um rabequeiro – independente de não ter uma origem cultural nas comunidades onde se

efetiva a música de rabeca.

O rabequeiro Sérgio Roberto Veloso (Siba).

115
Assim, a vivência cultural vem a ser um elemento importante na discussão sobre identidade

musical de um grupo ou pessoa. Mas essa vivência não pode ser abordada sem uma referência a

outras questões como os tipos de trocas simbólicas e a rede de relações sociais que estabelecem as

bases para a auto e alter atribuição de identidade.

Um caso que demonstra como a abordagem isolada da vivência cultural não é elemento

seguro na análise da identidade de um rabequeiro é o de Geraldo Idalino. Ele teve uma vivência

bem mais ampla e duradoura no contexto tradicional da rabeca no Nordeste e, no entanto, não se

representa ou identifica verbalmente como rabequeiro. Deste modo, não é apenas a vivência em um

determinado espaço geográfico que importa, mas, principalmente, a qualidade e a significação

dadas a essa vivência.

2. Afinação e aprendizagem da música de rabeca

Conseguir afinar o instrumento é, para os rabequeiros mais antigos, o momento do processo

de aprendizagem musical onde alguém é considerado como capacitado a tocar o instrumento e

aceito como rabequeiro. A este respeito, Artur Erminio diz que:

O mais custoso do instrumento é a afinação. A pessoa não afinando, ele não toca
(...). O problema é saber afinar, né? Fazendo a afinação dela, ele vai treinando,
pegando o tom da música, botando o dedo e aprende. Quando uma corda ta afinada a
gente sabe.

A comunicação verbal no ensino da rabeca é algo pouco usual entre os mestres rabequeiros.

A aprendizagem ocorre em um processo eminentemente aural, ou seja, as relações entre mestre e

aprendiz são, na maioria dos casos, indiretas e pouco demarcadas, vindo a ser especialmente

mediadas pelo contexto da manifestação musical.

Esse modo de transmissão do saber e fazer na música de rabeca também se apresenta

quando do ensino-aprendizagem com pessoas que vêm de outros contextos e com outras formações

e informações musicais. É o que aconteceu com Siba Veloso que, em depoimento, observa:

116
Eu tive alguns rabequeiros da mata norte que foram mais importantes no
aprendizado, mas é um aprendizado muito de ouvir e aprender, não é uma coisa de
faça assim ou faça assado. Foram pessoas de quem eu herdei parte do meu estilo de
tocar.

O tipo de relação mantida entre mestre e aprendiz dificulta mais a aprendizagem da afinação

do instrumento. Deste modo, depoimentos como o de João Alexandre quando diz que “... até hoje

eu tô procurando quem foi que me ensinou a afinação, o toque da rebeca, porque o cara só toca

rabeca se ele souber afinar”, são plenamente coerentes nesse universo.

O aprendizado da afinação parece ser fruto de um longo processo onde, gradativamente,

também se aprende algumas músicas. Assim, é compreensível que o aprendizado da afinação

consista, para os próprios rabequeiros, no próprio aprendizado da rabeca e na aceitação coletiva da

condição de alguém como rabequeiro.

Trechos de um depoimento de Luís Paixão a S. Oliveira (1994: 15) fornecem algumas pistas

acerca da consolidação deste processo. O rabequeiro relata que, escondido, pegava a rabeca do tio e,

só depois de muito tempo, chegou o momento da consagração. Ele diz:

Aí, quando foi um dia eu disse:

- Tio Tonho (...) se o senhor me dá a rebeca eu toco um forró.

- Eu duvido! Se você tocar um forró, eu lhe ensino a tocar. (...) Aí ele me deu e eu
toquei um chorão.

- Ôxe! Aprendeu isso aonde, heim?

- Ah, o senhor bebendo mais Zé Aive e pai (...) e eu tocando lá dentro do quarto.

- Cabra safado!

Aí, desafinou a rebeca (...) Mandou afinar.

- Afine, afine! Tã, tã, tã, vá pegando a primeira, viu? Tá bom aí... A outra... Tá
bom... bota no juízo! (...).

- Desafine!

Aí ele saiu.

- Você afine aí e toque o que você quiser!

117
Mas as interpretações de cada rabequeiro sobre o processo de aprendizagem da afinação

variam sutilmente. Geraldo Idalino, que usa tarrachas de cavaquinho no lugar das cravelhas de

madeira, demonstra ter uma idéia diferente acerca da dificuldade para aprender a afinação, ao dizer

que:

Afinar foi o mais difícil. Você sabe, naquele tempo o instrumento era de caravilha de
pau, quando afinava ela voltava. Hoje é com tarracha, é mais fácil. Pode tocar a noite
toda que não desafina mais.

Neste depoimento, o rabequeiro realiza um deslocamento da problemática, quando transfere

tudo aquilo que é próprio a um contexto cultural para a mudança de uma parte do instrumento a

“caravilha de pau”, buscando a superação do dilema tradicional na sua opção pelas tarrachas. Todo

o processo que envolve a aprendizagem de uma técnica, simultaneamente com o aprendizado de

músicas, é desconsiderado por Geraldo Idalino, ao passo que os objetos modernos (como as

tarrachas) são entendidos como meios auxiliares para a continuidade da sua música de rabeca. Essa

é a tônica presente em todo o discurso desse rabequeiro acerca da sua condição e da condição da

música de rabeca.

Instrumentos não temperados, como a rabeca, oferecem mais dificuldades no início do

processo de aprendizagem do que instrumentos temperados ou com trastes como o violão. No

ensino do violino, é comum que o aluno tenha, por um longo período, o instrumento afinado pelo

professor. A rabeca, pelas próprias peculiaridades do processo de aprendizagem e pela dificuldade

na afinação, adquire, deste modo, uma aura especial.

Nas entrelinhas do discurso de todos aqueles que participam de manifestações onde há

rabeca, é possível observar que eles a percebem como um instrumento mais difícil que outros, e que

apenas algumas pessoas possuem o dom para o manejo deste instrumento 47. Um certo grau de
47
A idéia presente no senso comum de que algumas atividades musicais sejam, também, resultantes de uma
intervenção sobrenatural é encontrada em diversas culturas e em outros momentos da história, como observa Nettl
(1983:28). Mas no âmbito da cultura popular isto não é um valor atribuído a todos os instrumentos ou
instrumentistas. À atividade do sanfoneiro, por exemplo, este aspecto não é muito enfatizado – talvez pela
popularização da sanfona em atividades de lazer ou pela própria construção industrial deste instrumento que, em
hipótese, retiraria dela o caráter mágico-simbólico que é atribuído por estas comunidades aos instrumentos que elas
mesmas constroem, fazem nascer. A rabeca e goza de um simbolismo especial destas comunidades – aquele onde
aspectos da compreensão de suas existências se mesclam com os da compreensão da existência de suas músicas.

118
especialidade cerca esse instrumento e instrumentista e a afinação vem a ser parte de um processo

de passagem e consagração, que se conserva nos sentidos de gozo e trauma na memória de cada um

dos rabequeiros.

Os jovens rabequeiros entendem diferentemente a questão da afinação. E isto advém da

própria formação ou informações teóricas que têm em música. Em seus depoimentos, deixam claro

que entendem a afinação como uma etapa de formação que, em sendo compreendida nos seus

detalhes, pode ser repassada a outros. Assim, Maciel Salustiano fala que:

A rabeca é um instrumento complicado. Quando você vai aprender um violão a


primeira coisa que a pessoa faz é saber quais as notas da afinação. Na rabeca, a gente
não tem as notas, mas a gente afina da primeira pra segunda, tim, don, a segunda pra
terceira [solfejando intervalos de quintas descendentes]. Meu avô afinava a rabeca e
perguntava a mim se tava afinada. Desafinava e me pedia pra afinar. Depois que
você afina o instrumento, você vai passar o arco. Se vê que os sons tão uns dentro
dos outros, então tá afinada.

Siba Veloso reitera que sua dupla vivência em situações de ensino-aprendizagem (em

conservatório e entre os rabequeiros) lhe possibilita compreender mais claramente a questão da

afinação e a natureza do processo, observando que:

Como eu já tinha conhecimento teórico, foi fácil entender que a afinação era em
quintas. Escutava uma gravação e já sabia a altura das cordas. (...) Meu aprendizado
foi oral, mas nem tanto também, porque eu tinha todo um lado formal já processado,
interiorizado que eu não tinha como abrir mão.

Tal como no caso de Geraldo Idalino, o entendimento diferente que têm esses novos

rabequeiros acerca dessa problemática tem reflexos nas suas idéias e atitudes acerca da transmissão

do conhecimento musical, como veremos adiante.

119
3. A transmissão do conhecimento musical.

3.1. O contexto tradicional da rabeca e as concepções dos rabequeiros antigos sobre a


transmissão do conhecimento.

Em amplos segmentos da nossa cultura, possuir o “dom” – entendido este enquanto uma

dádiva divina – é presumido como um requisito básico para quem queira lidar, principalmente, com

a música. Isso se verifica em segmentos letrados da cultura, em contextos onde a "auralidade" é um

aspecto central na transmissão do conhecimento. E isto é também requerido como “pré-requisito”

necessário para quem quer tocar rabeca.

O diferencial, no caso da música de rabeca, reside no fato de que o ensino-aprendizagem

exige o envolvimento do sujeito-aprendiz com o amplo espectro da manifestação musical e não

apenas com o instrumento ou com técnicas determinadas para tocá-lo. Isso acentua ainda mais a

suposição cultural da necessidade de um “dom”, pois o processo de enculturação musical adquire

uma maior complexidade ao envolver todo o contexto no qual a música se manifesta.

Ressaltando essa problemática no processo de transmissão do conhecimento, João

Alexandre diz que ninguém nunca aprendeu rabeca com ele e que “... não vai aprender”, visto que

ele mesmo não teve ninguém que o ensinasse. Mas o fato é que esse tipo de transmissão do

conhecimento musical da rabeca tem se mostrado eficaz na história.

Tem sido eficaz porque nos contextos onde se ocorria – até a formação da última geração de

rabequeiros à qual pertence João Alexandre, Artur Erminio, etc – havia a manutenção de um nível

básico de comunicação na cultura e a música tinha uma presença mais significativa e constante no

cotidiano das pessoas. Isto permitia aos jovens a oportunidade de apreciar a música com mais

freqüência e terem acesso ao instrumento – ou construírem o próprio como foi o caso de Artur

Erminio e Geraldo Idalino – e dar início a um processo “autodidático” de aprendizagem da rabeca48.


48
No caso do aprendizado autodidático no contexto das músicas de tradição oral a formação de esquemas de
interpretação, ou instrumentos de percepção, parece ser mais importante que no caso do ensino formal e “escrito” da
música. No ensino formal as explicações verbais – tão comuns nas primeiras classes de teoria musical – funcionam
como um “auxílio” para a relação pretendida com o fato sonoro-musical. No caso dos rabequeiros o único recurso

120
Como em todo processo dessa natureza, a significação dada ao “dom”, ao “segredo pessoal”

que cada um carrega consigo, como dizem os próprios rabequeiros, é mais complexa. Neste sentido,

é completamente coerente, embora pareça controverso, o seguinte entendimento que tem João

Alexandre:

É sozinho mesmo, e só aprende se nasceu praquilo. Se nasceu pra tocar, toca, se não
nasceu não tem jeito, ele morre com cem anos com ela na mão e não aprende. Quem
descobre o segredo da pessoa é a pessoa mesmo. Se nasceu pra tocar rebeca ele
descobre, que nem eu descobri o meu, e muitos outros.

Depoimento semelhante foi registrado por Rosemberg Cariry (encarte do CD Cego Oliveira)

onde Cego Oliveira demonstra comungar esta visão acerca das origens do saber musical dos

rabequeiros. Esse rabequeiro assim fala:

Quando foi no ano de 1929, um tio meu comprou e me deu uma rabequinha. Bem, eu
fui tentando, tentando, comecei a aprender. (...) Aí Nosso Senhor me deu este dote de
eu pegar em cantoria. Meu irmão sabia assinar o nome e lia para mim os versos dos
rumances... Lia uma quadra e eu decorava. Eu cheguei a cantar mais de setenta e
cinco rumances.

Numa cultura, como a "sertaneja-nordestina", onde aspectos de divinização são

extremamente importantes na cosmologia e compreensão da condição humana, é perfeitamente

compreensível e aceitável que o “dom”, a “dádiva divina” seja entendida como algo com qualidade

superior à prática e exercício diário com o instrumento – pois sem o “dom” esta própria prática seria

vã –, o que torna mais sólida a coerência do argumento desse rabequeiro. Tal peculiaridade na

compreensão do real se demonstra mais profunda, quando se observa que Cego Oliveira confere

qualidades distintas para o fato de tocar a rabeca e o de improvisar numa cantoria. A esta última,

que consiste em uma atividade estritamente subjetiva e “mental”, é implicitamente atribuída um

maior grau de “divinização”.

disponível para a formação de esquemas de interpretação musical (de ferramentas simbólicas necessárias à
decodificação do objeto musical e à construção do saber) é ouvir e fazer música diariamente.

121
João Alexandre tocando no cavalo-marinho infantil do Bairro dos Novais em João Pessoa. Talvez
uma possibilidade de preservação do folguedo. Será que da música de rabeca?

Para os que fazem a cultura desses contextos, essa forma peculiar de transmissão indireta do

conhecimento – forma esta que conduz a uma espécie de aceitação desse conhecimento, enquanto

algo metafísico, algo que se “auto-reproduz” sozinho sem a ingerência das pessoas, embora seja o

próprio ser-no-mundo delas – parece ter um valor necessário e identificador no modo de “fazer” a

cultura.

Talvez seja possível atribuir aos rabequeiros a seguinte forma de entendimento da

transmissão do conhecimento: Se assim, e com este dom, eu aprendi, assim têm que aprender os que

me seguirem, pois entre eles e a comunidade é firmado, consciente ou inconscientemente, um pacto

de não-intervenção nesse aspecto mágico-simbólico, por meio do qual - diz-se isto em hipótese - se

ordena e regula a sua cultura.

João Alexandre ressalta um outro aspecto deste conhecimento: o que diz respeito ao ato de

tocar como sendo a própria essência do ensinar ou aprender. E diferencia isso, dos acontecimentos

ocorrentes no espaço do ensino formal, ao dizer que:

122
Como é que eu vou ensinar, pegar na sua mão pra tocar? Que dizer que quem vai
tocar sou eu! Ensinar é como que seja uma professora ensinar pro aluno fazer uma
cópia, pega até no dedo; porque tem delas que pega até no braço do aluno pra
escrever. E aqui num pode fazer isso, não tem jeito que dê jeito. A única coisa que
tem é o amigo ver e prestar atenção. Mas não aprende se não nasceu pra tocar.

Neste depoimento, ele busca enfatizar que o tipo de saber e fazer musical na tradição da

rabeca possui sua própria forma de transmissão, e que um outro tipo de procedimento não pode

simplesmente ser transplantado para este, sem que o núcleo dessa cultura se desorganize.

Artur Erminio aponta outra questão importante: a particularidade da transmissão oral sem

um método escrito para o ensino da rabeca. Ele comenta que:

Pra cavaquinho, violão o senhor vai lá na casa compra um livrinho que ensina tocar.
Isso aqui não tem livro, aquela escala como se diz. Todos instrumento são mais fácil
que esse. Esse aqui é um instrumento jogado, porque não tem quem queira. Pra quê?
Pra pegar e não fazer nada!

O problema dessa forma de transmissão de conhecimento se apresenta quando o cavalo-

marinho e a música dos rabequeiros passam a ter menos presença no cotidiano das pessoas, o que se

verifica atualmente nas periferias dos centros urbanos, onde se localizam essas manifestações

musicais. Com o atual processo de “abafamento” das manifestações musicais populares e com o

avanço dos meios de comunicação de massas no interior do Nordeste, a música se manifesta cada

vez menos entre as pessoas, ao passo em que entre essas mesmas pessoas ainda se mantém a idéia

de um aprendizado aural da rabeca. Ou seja, as profundas transformações ocorridas no contexto

levam a que este não mais ofereça as condições para que os jovens possam desfrutar dessa música

com a intensidade necessária e contato diário com os rabequeiros, e assim desenvolvam um

interesse pela música e pelo instrumento.

A desorganização interna a que tais contextos foram gradativamente submetidos afeta

diretamente um dos pilares do processo de transmissão do conhecimento. As pessoas que perfazem

esses contextos estão habituadas ao surgimento “natural” de indivíduos com capacidade de tocar

rabeca e não ao ensino dirigido/tutorial do instrumento. Esse processo sempre foi eficaz, enquanto

123
era parte de um contexto que na sua amplitude tinha o equilíbrio necessário para fazer esses

músicos surgirem “naturalmente”, nas manifestações cotidianas da cultura.

Existia um mecanismo de auto-regulação da transmissão e manutenção do conhecimento

que estava culturalmente estabelecido. Esse mecanismo próprio e legítimo dessas comunidades foi

gradativamente desestruturado com os processos de migração e de avanço dos meios de

comunicação de massas, entre outros, e a essas comunidades não foram possibilitadas as condições

mínimas para estruturar um outro mecanismo que lhes possibilite dar continuidade à transmissão de

sua cultura.

Geraldo Idalino que é um rabequeiro desligado de ambientes geográficos ou comunitários,

mas mantém isoladamente a cultura da rabeca na sua atividade mambembe, transfere para o âmbito

do talento individual inato a sua solução particular para tal dilema da cultura. Ao afirmar que uma

pessoa “... toca, se tiver interesse, ele toca. Mas tocar que nem eu nunca mais. Morre de véi e num

toca”, ele está ressaltando a importância do interesse como motor da aprendizagem e possibilidade

de transmissão do conhecimento e, sutilmente, buscando fazer convencer que o conhecimento é

algo que sobrevive isolado do contexto que o gera.

Buscando entender esse conhecimento como isolado de seu contexto gerador, Geraldo

Idalino está refletindo sobre a sua vivência musical de “ovelha desgarrada” – que agora se encontra

com o rebanho também desgarrado – pelo processo de desagregação e desgaste que se instaurou na

cultura e no saber tradicional da rabeca.

Mas talvez devido às suas próprias habilidades técnico-musicais (que são muitas) e pela

pessoalidade que confere a todos os acontecimentos ou idéias, esse rabequeiro atribui ao saber as

mesmas peculiaridades da biologia humana: as de desgaste na sua reprodução. Assim, para ele, os

grandes mestres serão sempre pessoas do passado. Mas nessa expressão de eterna melancolia

cultural de indivíduo que se sente isolado do seu “ninho cultural”, ele está, também, implicitamente

124
afirmando que a cultura da rabeca já foi algo de um passado que se desgastou e agora agoniza no

seu estado terminal.

A busca de anulação de qualquer vínculo pessoal ou do instrumento com o segmento

cultural tradicional da rabeca aqui no Nordeste remete Geraldo Idalino a uma postura anti-histórica;

a uma existência centrada em si e no instrumento que, em última análise, é a própria condição

requerida pela cultura de massas – contexto terminal do qual, infelizmente, não conseguirá se

desvincular49. A diferenciação estilística na produção musical dele é resultado da sua tentativa de

inserção nas “modas” de cada época, sendo esse o fio condutor interno que impulsiona a sua busca

de continuidade e mudança da música de rabeca.

Em um estudo acerca da problemática das formas de integração de músicos tradicionais em

centros urbanos, Shiloah (1986: 91-92) examina um tipo de músico – e de identidade musical – que

tem semelhança com o que aqui é discutido sobre as concepções e procedimentos musicais de

Geraldo Idalino. Esse autor diz que esses músicos têm traços comuns no que diz respeito ao fato de

“... serem condicionados pelo brilho dos refletores ou o esplendor da publicidade nos centros

urbanos”; que aspiram “... ser reconhecidos como artistas, conforme as normas estabelecidas” e

buscam “... ultrapassar as barreiras de sua formação tradicional” nessa tentativa. Mas que “... têm

poucas chances de obter reconhecimento, porque estão totalmente dependentes da apreciação

externa”. Estes são casos estudados cuja problemática é bem próxima do conflito que se estabelece

no caso de Geraldo Idalino.

3.2. Concepções e práticas de transmissão do conhecimento entre os novos rabequeiros.

Por suas próprias características de formação, os jovens rabequeiros têm posturas um pouco

diferentes em relação à questão da transmissão do conhecimento. São posturas diferentes, mas que

se aproximam da mesma compreensão que têm os antigos rabequeiros sobre o assunto, quer seja, a
49
Para uma distinção entre conceitos de cultura popular e cultura de massas, uma indicação preliminar é o primeiro
capítulo da obra de Bosi (1989).

125
de que aprender rabeca implica em conviver com (conhecer) a manifestação musical na sua

totalidade.

Maciel Salustiano é de uma família de rabequeiros e, na sua adolescência, teve aulas de

teoria musical no Conservatório Pernambucano de Música. Siba Veloso partiu de uma formação em

um curso superior de música para o encontro da música de rabeca. Maciel Salustiano admite a

possibilidade de um método para ensinar rabeca fora do contexto da comunidade, mas entende que

a forma mais eficaz de ensino-aprendizagem é aquela na qual ele esteve envolvido. Assim fala:

Quando as pessoas vêm ter aula comigo eu não tento muitas coisas modernas. Claro
que eu mostro pra eles algumas coisas que eu descobri, mas eu digo, não, a forma de
aprender é essa que eu aprendi [a dos rabequeiros tradicionais]. Eu quero que vocês
aprendam também dessa forma. E o prazer que eu tive de aprender com outros
mestres, eu quero que vocês também procurem aprender com os mestres antigos.

Siba Veloso reitera esta possibilidade de ensino ao dizer que:

Poderia ta dando aula de rabeca, disseminando o instrumento. Num vejo nada de


errado nisso, e acho que isso poderia realmente multiplicar o instrumento.

Mas a transmissão do saber fora do contexto da música tradicional não é tão importante para

ele, quando comenta que:

Por outro lado, pela forma como eu aprendi, eu dou muito valor a esse aprendizado
que o rabequeiro fala, o aprendizado da vivência. Que dizer, tem um contexto onde o
cara de pequeno ta ali vendo, ouvindo. Eu acredito muito e valorizo esse processo de
vivência que foi o que eu tive; por mais que tivesse esse lado de compreender [a
formação teórica], pra mim foi muito mais vivência que outra coisa.

Se a separação entre o conhecimento musical e o seu contexto é uma operação que Geraldo

Idalino usa para realçar o seu talento individual, como fonte de todo o processo de conhecimento, o

contexto é entendido como fonte nuclear do conhecimento para Siba Veloso e Maciel Salustiano

que, de outra parte, não desconsideram a possibilidade de uma ação estruturante do sujeito nesse

contexto50.
50
A reificação do indivíduo concorre para uma postura idealizadora da cultura onde as forças mentais teriam a
capacidade, per si, de mudar e estruturar a realidade. A reificação do contexto conduz à negação da capacidade
estruturadora do indivíduo e a colocação da realidade social como uma entidade acima das próprias relações
interpessoais, como é postulado por Durkheim (1980: 175) ao se referir à sociedade como um “ser especial”. Entre
os novos rabequeiros observa-se uma busca de compreensão da dialógica entre a qualidade do indivíduo como um
ser culturalmente estruturado, na enculturacão, e estruturante na possibilidade de interferir no processo de
transmissão da cultura.

126
O que estes rabequeiros buscam ressaltar é que não é simplesmente um conhecimento

técnico da rabeca que importa ser transmitido, mas um saber e fazer musicais que são de fato

indissociáveis, na totalidade cultural, do contexto. Assim, se é possível ensinar rabeca fora desse

contexto, a essência do aprendizado – e por evidência a essência da própria música de rabeca – não

o é. Ou seja, somente a vivência é capaz de fazer alguém absorver o tipo de expressão musical

própria desse contexto. E esta concepção da música é diametralmente oposta à de Geraldo Idalino

que, tomando o todo pela parte e resumindo a música ao instrumento, se desprende e a desprende de

possíveis ligações com o seu contexto de origem.

O modo de aprendizagem e a posterior concepção sobre a transmissão deste conhecimento

consistem num eixo central da cultura da rabeca e são elementos importantes para a discussão dos

contornos de suas identidades. Num depoimento de Siba Veloso, esta afirmação anterior parece se

encontrar nas entrelinhas do que diz:

O aprendizado da rabeca, a forma como eu aprendi foi vendo, ouvindo, gostando e


tentando tocar aquilo. E nisso é uma das coisas que eu me acho mais rabequeiro.

Se as possibilidades de transmissão da música de rabeca a partir dos próprios rabequeiros

tradicionais tornam-se cada vez mais difíceis (na medida em que as condições necessárias para a

transmissão nos próprios contextos são parcas), uma possibilidade de manutenção dessa música, na

sua transmissão às novas gerações, teria que vir de fora desses próprios contextos.

Descontinuidades existem neste processo de transmissão e podem ser verificadas na própria

música dos jovens rabequeiros urbanos – música esta que não é apenas uma reprodução urbana

daquilo que no contexto de origem é realizado. Estas mesmas alterações do saber e fazer operadas

por jovens rabequeiros urbanos permitem não apenas uma renovação dos meios e das concepções,

mas funcionam, neste caso, como reforço para a própria continuidade da tradição.

127
3.3. Três formas de transmissão deste conhecimento.

Três formas de transmissão do conhecimento musical da rabeca se apresentam nestes casos.

Uma, onde músicos ligados a setores culturais distintos daquilo que se pode entender como sendo o

ambiente rústico, rural, da cultura de rabeca – como é o caso de Siba Veloso, Luismario Machado,

etc – que por uma série de fatores foram ao encontro deste conhecimento musical tradicional e

tentam uma incorporação dele. Neste processo, ocorre a inevitável adição, à música de rabeca, de

elementos musicais trazidos em suas bagagens culturais, embora o fato imperioso para eles seja a

manutenção da maior parte dos aspectos centrais e basilares constituintes da tradição dessa música.

Outra forma onde este conhecimento encontra brechas para a sua continuidade se verifica

em casos como o de Maciel Salustiano. Este último é integrante de uma família de rabequeiros; tem

suas principais vivências musicais forjadas num dos contextos mais tradicionais da música de

rabeca no Nordeste, mas, por circunstâncias diversas, convive na margem cultural entre este

conhecimento e os outros saberes e fazeres musicais advindos de núcleos distintos, dentro da

cultura musical popular e urbana.

Neste caso, o que ocorre é a absorção de aspectos da música popular urbana –

principalmente a adoção de gêneros ou aspectos destes, como modelos para a criação ou execução

musical. Também aqui se mantém a continuidade dos aspectos centrais do núcleo originário da

música de rabeca. Este movimento apresenta muitas semelhanças com o que foi discutido

anteriormente.

Uma terceira forma de transmissão é aquela cujo movimento se inicia dentro do próprio

contexto originário de rabequeiros, mas com vistas à superação deste próprio núcleo de

conhecimento. É o caso de rabequeiros como Geraldo Idalino, cuja entrada no mercado urbano de

shows, se deu em um momento da cultura nordestina (a década de 80) onde a busca de aspectos

significativos de “modernização” era mais importante que a manutenção de aspectos tradicionais da

cultura.

128
A convivência, por algumas décadas, na margem entre a cultura tradicional da rabeca e

segmentos de uma cultura urbana conduz este rabequeiro a um gradativo abandono de alguns

elementos básicos de conteúdo e estilo originários na sua formação. É o caso da textura e

sonoridade a que anteriormente se fez referência, que são abandonadas por Geraldo Idalino, em

troca de uma sonoridade mais “clara”, próxima à do violino, instrumento que, talvez, assegure mais

“elementos” identificadores de modernidade a este rabequeiro.

A opção – que se constrói ao lado de algumas imposições culturais dos segmentos urbanos

nos quais transita – por agregar alguns novos elementos de conteúdo e estilo à sua música, assume,

neste caso, a qualidade de negação de outros elementos anteriores próprios à sua formação de

rabequeiro.

Nos três casos, o que se observa é que atualmente ocorrem processos de continuidade e

descontinuidade na música de rabequeiros nordestinos. De outra parte, a mobilidade própria a todo

processo de formação de identidade cultural se demonstra em momentos limiares de definição. Isto

pode ser verificado, tanto na observação das transferências, agregações e abandonos de conteúdos

musicais, quanto nos meios cotidianos de comunicação e denominação de agentes ou indivíduos.

É possível encontrar antigos rabequeiros que não mais tocam rabeca, embora ainda as

possuam, e não se consideram mais rabequeiros – mas ainda são considerados como tal pelos

moradores mais antigos da região onde vivem; jovens instrumentistas formados em conservatórios

que buscam os elementos objetivos e subjetivos da cultura de rabeca, mas não parecem estar

dispostos a se identificar ou serem identificados como rabequeiros, e rabequeiros como Geraldo

Idalino que, em alguns casos, é socialmente identificado como um violinista “exótico” ou como um

rabequeiro virtuose, e que se identifica, ele próprio, na maioria das vezes, como um violinista.

Na formação de identidade de Geraldo Idalino reside um fato positivo. O caminho que ele

traça em busca de uma identificação como violinista, talvez se constitua, para ele e para os

membros de sua comunidade, em motivo de orgulho, pelo fato de ter se formado músico e com tais

129
qualidades, em um ambiente inadequado e sem os equipamentos culturais necessários a essa

formação.

Uma outra possibilidade é a da própria conformação deste rabequeiro a símbolos e

denominações resultantes de segmentos culturais dominantes, numa estratégia de sobrevivência em

circunstâncias adversas, as do circuito urbano de shows e da música popular veiculada nos meios de

comunicação, que gradativamente impõem a necessidade de que ele escamoteie a sua identidade

primeira como rabequeiro e assuma a de violinista, para que mantenha um nível razoável de

convívio e aceitação pública em centros urbanos mais complexos como as grandes cidades onde ele

atua como músico.

Assim, no seu trajeto de vida, ele está demonstrando uma das múltiplas formas de

resistência – mesmo que através da conformação e da negação momentânea de si – que encontram

os segmentos das camadas populares ante os segmentos hegemônicos e dominantes da cultura, qual

seja a de se adequar à cultura da elite.

Mas a tradição encontra caminhos os mais sinuosos para se manter ante as estreitas linhas

retas traçadas pela indústria cultural na atualidade. No caso em discussão, é provável que a

manutenção desta música venha a resultar, também, das investidas externas aos próprios contextos

tradicionais – investidas de pessoas ou grupos que buscam retomar e re-significar essa música. Este

é o assunto do próximo capítulo.

130
Capítulo 7

AS PERSPECTIVAS DA MÚSICA DE RABECA NA


CULTURA URBANA ATUAL

1. A perspectiva da música de rabeca no cavalo-marinho e boi-de-reis

A atividade de rabequeiros em manifestações musicais tradicionais tem gradativamente

diminuído nas últimas décadas. Não há mais registros de bailes de forró tocados por rabequeiros, de

rabequeiros cantadores ou repentistas como foram Fabião das Queimadas e Cego Oliveira, nem da

participação em teatros de bonecos, uma das primeiras atividades de João Alexandre como

rabequeiro.

Cego Oliveira, em registro de Rosemberg Cariry no encarte do CD Cego Oliveira (1999),

demonstra uma certa melancolia, quando recorda das suas atividades como rabequeiro no interior

do Nordeste, ao dizer que:

Eu toquei muito nos Reisados (...). Comecei a cantar nas feiras... eu cantava em
casamento, em batizado em aniversário, em festa de renovação dos santos e até em
sentinela de defunto. (...) Quando eu era novo era bom demais51.

A maioria dos antigos rabequeiros não encontra mais espaço para atuação e, literalmente, já

encostou a rabeca em um canto da parede, como são os casos de Manoel Nascimento do município

de Santa Rita/PB, de João Feliciano e Manoel de Brito, ambos do município de Mari/PB.

Alguns rabequeiros, como Artur Erminio e João Alexandre, ainda têm abrigo em folguedos

como o cavalo-marinho, mas suas atividades correm o risco de se extinguirem junto com os

próprios folguedos. Estes folguedos ainda se mantêm escassamente pelo Nordeste e, na Paraíba, são

encontrados apenas nas periferias de alguns centros urbanos, para onde foram levados por pessoas

que migraram há décadas de regiões agrícolas do Estado.

51
Para um conhecimento de tipo já extinto de atividade de antigos rabequeiros que cantavam romances usando apenas
a rabeca como instrumento de acompanhamento, escute-se a faixa 16 do CD que consiste numa gravação do Cego
Oliveira realizada por Rosemberg Cariry.

131
Mas, mesmo a partir desses folguedos, não há uma disseminação da rabeca para as novas

gerações. Muitas crianças e adolescentes dessas comunidades, onde ainda há grupos de cavalo-

marinho, tocam pandeiro, zabumba e outros instrumentos de percussão. Mas não se registrou, nesta

pesquisa, a ocorrência de um aprendizado de rabeca por parte dessa geração. Ou seja, um estado de

terminalidade parece configurar-se para a música de rabeca no contexto dos folguedos tradicionais.

Há algumas décadas, na zona rural, havia um maior intercâmbio entres esses músicos,

conforme depoimentos deles próprios. Eles relatam que era comum rabequeiros tocarem em várias

cidades e poderem escutar uns aos outros, o que consistia em um forte estímulo para a manutenção

e renovação da música de rabeca. O atual isolamento desses poucos músicos impede que se ativem

os mecanismos necessários à revitalização dessa música dentro dos ambientes tradicionais.

Artur Erminio e João Alexandre, que são os dois rabequeiros com maior atividade na região

litorânea da Paraíba, se desconhecem e relatam que hoje em dia só no interior é que ainda pode

haver rabequeiros – porém, fora de atividade.

A manutenção da música de rabequeiros ligados ao cavalo-marinho ou boi-de-reis depende

diretamente da sobrevivência destes folguedos e dos direcionamentos tomados na tentativa da sua

continuidade no espaço da cultura popular urbana. Ora, se estes folguedos atualmente passam por

uma grave restrição de manifestação, no âmbito dessa cultura, mais grave ainda se torna a

manutenção da música de rabeca.

Por essa razão, os depoimentos de Artur Erminio e João Alexandre, acerca da atual situação

da música de rabeca, sempre se reportam à própria crise desses folguedos. Quando discorrem sobre

as transformações culturais responsáveis por seu declínio, eles sempre apontam o surgimento dos

novos meios de comunicação e de diversão como os fatores que desestabilizam a manutenção dessa

música. A este respeito, Artur Erminio diz que:

Hoje tem radiola, o som, o rádio. (...) Tá desaparecendo; é difícil existir uma rebeca
porque não existe mais cavalo-marinho, entende? Aqui não, só existe pra o interior.
Só se vim do interior praqui.

132
O rabequeiro Artur Erminio, no alto de seus setenta anos, toca baixinho a rabeca em sua casa.
Talvez seja este o único lugar onde seguramente continue a manter importância como músico.

E Cego Oliveira, em depoimento transcrito por Rosemberg Cariry, buscando uma

compreensão para a diminuição atual de sua atividade como rabequeiro, fala que:

A gente quase não recebe mais encomenda de cantoria. (...) Antes de chegar esses
programas de rádio, esses violeiros modernos, eu era convidado pra tudo que era
canto, pra toda a região.

Esses rabequeiros têm consciência de que esta crise na música tradicional se deve, também,

às mudanças ocorridas no próprio gosto musical do povo. Artur Erminio lamenta que:

133
O povo não assiste mais, querem ir prum som, um baile. Não vai deixar de ir prum
conjunto pra ir prum baile de rebeca [embora eles não existam mais]. Essas festas de
rebeca caiu de uso, sabe? No interior era todo sábado, muito animado. Porque não
havia outra direção sabe? A direção que existia era o baile de rebeca, ciranda, coco
de roda era o que havia. O tempo daquelas brincadeiras acabou-se.

Sentimentos de abandono, rejeição e resignação se mesclam nos depoimentos dos

rabequeiros. Artur Erminio expressa isto, ao comentar que “... hoje é pior. Só não é pior pra esse

povo que é moço, que gosta de fuluência, que vai brincar; pra quem vive feito um bando de bicho”.

O sentimento de João Alexandre é de compreensão com a mudança, embora esta seja

contrária aos seus interesses. Ele diz que:

O povo não quer assistir um cavalo-marinho. Quem vai deixar de ir prum som pra
assistir um cavalo-marinho. Um cavalo-marinho vai passar a noite em pé somente
olhando prumas três ou quatro figuras. (...) A garotada não quer ir mais; só querem
esse negócio de som, que é bacana.

Para o rabequeiro, o termo “olhando” parece significar um modo mais passivo de

relacionamento com o folguedo. De fato, o cavalo-marinho e o boi-de-reis são manifestações

dramáticas que não solicitam uma participação direta do público, o que contrariamente acontece

com a ciranda que, sem esse envolvimento, não ocorre a contento. No caso destas danças

dramáticas, apenas são requeridas do público uma compreensão mediana do enredo e da complexa

simbologia de que são portadoras, para que se realize uma interação durante a apresentação.

Com o processo de descontextualização pelo qual passaram folguedos como o cavalo-

marinho, que contêm muitos elementos da cultura rústica e rural, e com a própria reorientação dos

gostos e sentidos culturais das camadas populares, a partir de sua interação com os meios de

comunicação de massa, seria inevitável que diminuíssem as possibilidades de comunicação e de

trocas simbólicas entre a manifestação e o público. E que o “olhar” deste último tenha agora apenas

o pouco lume da passividade.

Em conversas com pessoas que assistiam às apresentações do cavalo-marinho e do boi-de-

reis sobre questões gerais dos folguedos e sobre a rabeca, observou-se que boa parte delas não

conhecia nem o enredo dos dramas que estavam sendo encenados, nem o nome dos instrumentos

134
tocados pelos rabequeiros. Apenas as figuras brincalhonas do Mateus e da Catirina é que realmente

conseguiam uma interação maior com as pessoas, principalmente com as crianças. No restante, as

pessoas se comportaram passivamente, num misto de incompreensão e curiosidade passageira com

as “brincadeiras”.

O que de fato acontece no contexto destas manifestações nos bairros suburbanos, é que estes

folguedos só conseguem se comunicar com o público apenas como fragmentos de um drama. Ou

seja, as pessoas somente os apreendem enquanto cenas isoladas, passagens de figuras, de bichos,

sem um sentido claro que as interligue. As apresentações destes folguedos foram gradativamente se

fragmentando, fato este que pode ser comprovado no depoimento dos próprios mestres do cavalo-

marinho e de rabequeiros relatando que, antigamente, na zona rural, uma apresentação durava toda

uma noite e dezenas de personagens passavam pela cena. Atualmente, apenas umas poucas

personagens são apresentadas e a brincadeira não consegue se prolongar por mais de uma hora, sem

que o público se disperse.

Na hierarquia do cavalo-marinho e do boi-de-reis, o mestre é o ator sócio-musical mais

importante. É o coordenador musical e político do grupo e a pessoa em torno da qual residem as

possibilidades de manutenção e continuidade do próprio grupo. O rabequeiro é outro agente

importante nesse contexto, mas sua importância nunca deve ser confundida ou maior que a dos

mestres. As inventivas estilísticas de cada rabequeiro estão condicionadas às necessidades de

realização musical dos mestres. Esta inventividade nunca deve sobressair-se à linha melódica que

canta o mestre; antes deve manter-se como um auxílio a ela.

Em algumas conversas com o mestre Pirralhinho (José Vicente do Nascimento Pereira), com

mestre Gasosa e com o mestre João do Boi, eles demonstraram um certo descontentamento em

relação a rabequeiros que não “acompanham direito” as músicas do folguedo. Pôde-se observar que

suas visões sobre o acompanhamento “mal feito” da rabeca estão, em alguns casos, também

dirigidas às intervenções criativas de alguns rabequeiros; intervenções estas que podem não ser, em

135
alguns momentos, interessantes para os mestres, por não coincidirem com suas concepções acerca

da condução de toadas e baiões.

O rabequeiro Siba Veloso, na sua monografia acerca da música de rabeca no Estado de

Pernambuco, deixa entender que tanto a hierarquia político-musical existe nos folguedos, quanto ela

revela alguns aspectos musicais importantes. Sobre a relação entre o rabequeiro Manoel Pitunga e o

Mestre Inácio, S. Oliveira (1994, 10) diz que:

Pitunga e Inácio parecem ter nascido para tocar juntos. A música de um completa a
do outro e o entendimento é perfeito. Pitunga puxa as toadas na ordem que Inácio
mais gosta e julga correta, e seus baianos representam o necessário apoio para os
improvisos do Mestre.

A amplificação sonora na música destes folguedos é um outro caso onde esta hierarquia se

apresenta. Quando há amplificação, os mestres têm, normalmente, um microfone próprio e os

instrumentistas ficam com outro. Como os percussionistas naturalmente tocam em um nível sonoro

mais alto que o rabequeiro, tecnicamente falando, eles não necessitariam de amplificação sonora.

Mas os mestres e foliões precisam da clareza rítmica para as danças e, neste caso, como a rabeca

apenas duplica a voz do mestre, sua amplificação em um microfone isolado não é muito exigida

pelos mestres.

O mestre Gasosa (José Raimundo da Silva), do cavalo-marinho de Artur Erminio, diz que já

utilizou fole de oito baixos e viola nordestina no seu grupo. Atualmente, usa uma sanfona

juntamente com a rabeca e diz que a sanfona é “... uma beleza pro grupo”. Talvez diga isto, dadas a

potência sonora e as possibilidades de harmonização desse instrumento. O mestre João do Boi (João

Antonio do Nascimento), do cavalo-marinho em que João Alexandre toca, quando se referia a um

rabequeiro que acompanhava bem as músicas, dizia que este era tão bom, pois “... tocava bem como

uma sanfona”.

Se o volume sonoro natural da sanfona parece não ser um concorrente para esses mestres, a

demasiada amplificação sonora da rabeca poderia vir a “soar” como uma voz concorrente.

136
Como discutido anteriormente, no início da brincadeira, é costume os instrumentistas

tocarem alguns baiões e, neste momento, o mestre verificar se a altura da afinação da rabeca está

adequada às suas possibilidades vocais. Na apresentação do drama, o mestre se aproxima do

rabequeiro no início de cada toada, ficando depois perto dos percussionistas o que possibilita uma

audição “estereofônica” da melodia cantada por ele e tocada pelo rabequeiro. Uma relação de

complementação e dependência musical se estabelece entre o mestre e o rabequeiro, durante a

apresentação.

O Mestre João do Boi se localiza de modo a escutar bem a percussão e, ao mesmo tempo, oferecer
uma audição “estereofônica” da combinação que faz com o rabequeiro.

Em diversos momentos deste trabalho, foi possível observar a superioridade hierárquica do

mestre em relação ao rabequeiro. Nos primeiros contatos mantidos com Artur Erminio e João

Alexandre, ambos os mestres de seus grupos fizeram questão de participar das entrevistas, mesmo

sabendo que se tratava de uma pesquisa sobre a música de rabeca; apelaram para que as entrevistas

se realizassem em suas casas, em suas presenças, e sempre buscaram uma participação ativa e direta

137
nas discussões. Isto demonstra a compreensão destes mestres de que a música de rabeca não está

dissociada do restante dos acontecimentos do folguedo e que a responsabilidade maior por estes

acontecimentos é deles.

Mestre Gasosa retoma aqui uma das habituais comunicações com o rabequeiro, a cada início de
uma toada.

Quando das primeiras gravações realizadas na apresentação das brincadeiras, os mestres

enfaticamente se aproximavam dos rabequeiros por mais vezes do que habitualmente, como

posteriormente se pôde constatar; e se aproximavam sempre cantando as melodias para os

rabequeiros, como se estes já não as soubessem há décadas. Ocorria, nestes casos, uma busca pelos

mestres de serem também registrados neste estudo; de passarem ao pesquisador a verdadeira,

conforme eles, realidade político-musical daquele contexto; de darem legitimidade musical ao status

político que os mestres possuem no grupo e conseguirem com que isso fosse transmitido para além

daquelas fronteiras.

Em diversas entrevistas, estes mesmos mestres sempre fizeram questão de enfatizar que

eram eles quem ensinavam todas as músicas para os foliões, inclusive os rabequeiros. Isto é um fato

138
e uma verdade histórica que os mestres, quando em contato com alguém estranho ao contexto,

precisam deixar que fique claro. São aspectos da estrutura político-ideológica desses contextos que,

inevitavelmente, agem como mecanismos de preservação, ampliação ou restrição da música dos

rabequeiros nos folguedos.

Diz-se isto, tomando como base as considerações de Gerard Béhague de que a posição

política-ideológica de um grupo social é elemento importante na análise do contexto de uma

manifestação musical. É necessário, portanto, no caso da música dos rabequeiros, compreender

como as suas estruturas hierárquicas e posturas políticas são importantes para a observação de

fatores que interferem direta ou indiretamente no produto musical e nas possibilidades de

manutenção desse saber musical.

Béhague (1992: 7) entende que política consiste numa “... visão teórica básica da ordem

social em que se incluem as relações de poder entre os atores sociais de um grupo determinado e as

funções destes atores na rede de interação”. Isto conduz ao entendimento de que todas as atitudes

cotidianas são políticas, inclusive as musicais.

Entendidas desta maneira, as escolhas e opções estritamente sonoro-musicais engendradas

nesses contextos estão, também, permeadas pelas relações políticas estabelecidas internamente entre

os participantes dos folguedos e as comunidades ou grupos sociais mais amplos com os quais

dialogam. As escolhas musicais de cada grupo, mestre ou rabequeiro inevitavelmente levam em

conta os “gostos” e interesses musicais dos rabequeiros, dos participantes dos grupos, dos mestres,

no caso dos cavalos-marinhos e, principalmente, dos ouvintes.

O reconhecimento dos rabequeiros por pessoas ou segmentos alheios aos folguedos

apresenta alguns aspectos que merecem aqui ser abordados. Os mestres e alguns participantes dos

folguedos consideram os rabequeiros como sendo agentes dotados de uma certa especialidade, e que

sem a rabeca “o boi não vai” como diz o mestre Pirralhinho.

139
Aspectos desta especialidade são observados por Setti (1985: 134) entre os Caiçaras de

Ubatuba. Esta autora afirma que:

Para o grupo produtor de música, o violino 52 é considerado instrumento de mais


difícil execução, o que confere ao seu executante uma posição privilegiada em
relação aos demais músicos.

Murphy (1997: 156), em conclusão semelhante à de Kilza Setti, afirma que para a

comunidade e participantes do cavalo-marinho em Pernambuco, a rabeca “... é considerada como o

mais difícil dos instrumentos (...), tanto por causa da sua técnica de execução, quanto pelo amplo

repertório de toadas e baianos requeridos do rabequeiro”.

Há indícios de que para essas pessoas, apenas tocar um instrumento não é significado direto

de posse de dom ou de qualidades especiais, mas essas qualidades parecem ser atribuídas apenas a

alguns músicos. Esta importância está historicamente associada ao fato de a rabeca não possuir

trastes e de ser tocada com um arco, o que torna o seu manuseio mais difícil. De outra parte, este

instrumento é indireta ou inconscientemente associado ao violino, instrumento de elite ou de

pessoas “cultas”.

A capacidade de construir o próprio instrumento é outro fator significativo na formação

desse conceito sobre o rabequeiro. A produção artesanal da rabeca, o fato de ela ser feita pelo

próprio rabequeiro ou por outra pessoa da comunidade, confere à mesma e a quem a toca uma

importância diferente da que é dada a um instrumento comprado em uma loja ou industrializado.

Aos instrumentos “paridos” pelas próprias pessoas e nos meandros das suas culturas, parece que a

eles se atribuem uma “aura mágica”; uma qualidade de “ser vivo”, por terem nascido da própria

alma popular em seu encantamento com a natureza. No caso da rabeca, as árvores, as madeiras; mas

outros objetos naturais como peles e ossos, por exemplo, são também “vivificados” quando

transformados em instrumentos musicais.

52
O termo violino se refere, no trabalho desta autora, ao "violino caiçara", ou rabeca. Ambos os termos são usados
para designar o mesmo instrumento na comunidade pesquisada.

140
Embora o elemento mágico-simbólico costume ser atribuído a determinados instrumentos

musicais que são utilizados em rituais religiosos, também se encontra sutilmente presente no caso

da rabeca, principalmente nos depoimentos de pessoas mais idosas, que mantêm algumas tradições

e valores da cultura rural de origem.

Esse tipo de simbolização de alguns objetos culturais é também um sinal de preservação, nas

culturas populares, de um mínimo de valores básicos necessários à manutenção da identidade e

existência espiritual/cultural. A música, talvez por seus caracteres peculiares, parece ser um espaço

simbólico onde, em todas as culturas, esse fenômeno ocorre com mais evidência.

Em alguns cronistas, é possível observar esse tipo de operação ideológica, quando se

referem à música da rabeca. É o caso de Manoel de Carvalho – citado em Pimentel (1978: 3) – que

numa alusão aos sentimentos populares ante a música da rabeca em um festejo realizado em

Mamanguape, no Estado da Paraíba, comenta que:

E no entender daqueles fiéis simples, os dois apóstolos [São Pedro e São Paulo]
abençoam, rindo, encantados pela audição da barcarola e da rabeca, a satisfação
inocente que lhes vai na alma.

Porém, no contexto tradicional da música de rabeca, as concepções não são homogêneas. À

referência anteriormente feita à música de rabeca e ao rabequeiro se contrapõe uma outra, que está

presente entre os adolescentes das comunidades onde esta música se mantém. Para eles, a rabeca e o

rabequeiro têm apenas uma presença decorativa nos folguedos; o rabequeiro é visto como um tipo

exótico; um “velho” tocador de um instrumento barulhento que não tem nenhuma importância para

o cotidiano musical deles.

Nestas comunidades, muitas crianças sabem tocar pandeiro, triângulo e outros instrumentos

de percussão, mas não se constatou que nenhuma delas esteja aprendendo a tocar rabeca. Para os

jovens destas comunidades, a rabeca e o rabequeiro sobrevivem como agentes ou objetos que não

têm “funcionalidade” ou “utilidade” à cultura do dia-a-dia. Sua atividade é vista apenas como uma

brincadeira dos mais velhos, que estão para morrer, afinal de contas.

141
2. A perspectiva da música de rabeca nos “conjuntos de forró”

A música de rabeca continua presente na cultura urbana através da atuação de rabequeiros

como Nelson da Rabeca, Geraldo Idalino e seus conjuntos de forró. Diz-se conjunto de forró,

mesmo que estes grupos não toquem apenas forró, porque a formação instrumental, o tipo de

atuação do rabequeiro, as intenções dos músicos e o produto requerido pelos consumidores são

comuns ao que, na mais forte tradição musical nordestina, se instituiu como tal.

No tipo de conjunto musical que eles mantêm o rabequeiro atua como solista ou

instrumentista-guia para um cantor ou cantora e a zabumba, triângulo, pandeiro e o violão, em

alguns casos, são instrumentos acompanhantes. Embora com mudanças de repertório, de contexto

cultural e espaço de atuação, esse tipo de conjunto consiste na continuidade da antiga tradição

interiorana, já dada por extinta neste ambiente, onde o rabequeiro era solista e animava os bailes nos

sítios e comunidades rurais.

No atual espaço urbano, Geraldo Idalino e Nelson da Rabeca são os líderes de seus

conjuntos. Mas esta condição não consiste em uma continuidade da prática tradicional e sim por

exigência do público consumidor, que nem sequer tem conhecimento da tradição interiorana.

Esse tipo de formação instrumental, conjunto de forró, sempre teve no sanfoneiro o seu

personagem principal, mesmo nos antigos bailes do interior. Os rabequeiros também eram

condutores desses conjuntos, mas nunca foram os privilegiados ou únicos. Atualmente, conjuntos

com esse tipo de proposta musical permanecem, porém com muitas modificações, principalmente

incorporando instrumentos eletrônicos e investindo em uma modificação na “roupagem” do forró.

É provável que o público urbano que consome a música de conjuntos de forró com

rabequeiro, assim se comporta não por buscar a manutenção do tipo de grupo musical, mas a pessoa

e símbolo do rabequeiro. Ou seja, estes conjuntos de forró se mantêm no contexto onde atuam, a

partir da maior visibilidade que é dada ao rabequeiro. As pessoas de classe média, com formação

142
universitária e num espaço onde se cultua a MPB53, que vão assistir aos shows destes conjuntos,

estão em busca de contato com o rabequeiro.

Esse público identifica e representa o rabequeiro enquanto uma pessoa idosa, advindo da

zona rural, autodidata, e, principalmente, a partir de um sentimento de admiração por um indivíduo

que conseguiu aprender a tocar um tipo rústico de “violino” que ele mesmo construiu. Um misto de

admiração e curiosidade ante o exótico e rústico (o tradicional) estimula estas pessoas, ao mesmo

tempo em que é um alento para a continuidade de suas “lutas” particulares pela manutenção e

preservação das “verdadeiras” tradições do nosso povo. O rabequeiro, ali naquele palco, é um

símbolo de resistência cultural. É um agente cultural que conseguiu não se deixar dizimar pela

cultura de massas, atravessar as margens do seu núcleo e se estabelecer em um outro espaço sócio-

cultural.

Motivado por esses sentimentos e idéias, esse público centra suas atenções na personagem

do rabequeiro e não na cultura musical da rabeca. Mas exige, direta ou indiretamente, que algumas

mudanças sejam realizadas na sua atuação para que a aproximação se dê a contento e que outras

mudanças não sejam permitidas – para que a “tradição”, também vista como algo distante, assim se

mantenha. Este conjunto de interesses contraditórios também é comungado, de alguma maneira,

pelos rabequeiros.

As mudanças que gradativamente acontecem no repertório se devem a esta “fricção” cultural

e a música de Geraldo Idalino é um bom exemplo disso. A sua música demonstra que ele seguiu

compondo, conforme lhe solicitavam os gostos de cada época ou o ambiente cultural onde buscava

se estabelecer como músico. Suas composições inicialmente são de forrós, choros e sambas, que

eram gêneros amplamente cultivados nos cabarés – as únicas casas de show de muitas cidades nas

décadas de 70 e 80 –, seguem para o frevo e marchinhas de carnaval e no momento atual é

53
Como MPB busca-se entender o tipo de proposta e de consumidor musical gerados na música popular urbana
produzida no Brasil a partir da década de 50 com a bossa-nova, os festivais, a música de protesto, o tropicalismo,
etc. Para um melhor entendimento desta questão indica-se a leitura de Napolitano (1998: 92-105).

143
prioritariamente de forrós no estilo do que é produzido por mercadores de música, mas que lhe

garante algum público.

Em si, isto não é um problema. Modificação e manutenção de procedimentos ou concepções

musicais advêm de ações geradas a partir de processos internos e externos de identificação cultural

de cada grupo ou indivíduo. Para Blacking (1986: 3), mudanças musicais “... são resultantes de

decisões tomadas por indivíduos sobre o fazer musical e música ou sobre uma prática social e

cultural, na base de suas experiências de música e vida social e suas atitudes para com elas em

diferentes contextos sociais”.

O problema advém justamente quando a dinâmica dessas modificações coloca-se acima da

capacidade de controle dos próprios rabequeiros sobre elas. Aqui o pacto se quebra e um dos grupos

pactuantes assume a força do destino do outro, sem uma consulta prévia ao primeiro.

O que não deve ser modificado para este público são aqueles aspectos básicos de identidade

do rabequeiro. Apenas como exemplo, se um rabequeiro tradicional estiver tocando com um

amplificador, não importa muito para o público; mas se um jovem músico estiver tocando numa

rabeca, ele terá que “rasgar” muito o seu som, e por muito tempo, até que uns poucos passem a

ouvi-lo e identificá-lo como a um rabequeiro.

Este público entende a rabeca como um violino rústico, mal-feito, que deve ser mantido

dentro dos limites e “respeito” que ele mesmo impõe à relação com as músicas tradicionais. Assim,

quando comparada ao violino, a rabeca sofre uma apreciação sutilmente negativa, ao ser observada

sob o aspecto da tecnologia de construção de instrumentos. Paradoxalmente, este mesmo público vê

na cultura rústica do rabequeiro um aspecto positivo, que deve ser mantido sem nenhuma mudança.

Isto também conduz a que rabequeiros como Geraldo Idalino passem a tocar num violino

comprado em loja ou a que Nelson da Rabeca e Manoel Pitunga tenham as suas rabecas compradas

como artigos pitorescos que, em muitos casos, se destinarão à decoração de salas e não a servirem

como instrumentos musicais.

144
Pela sua idade, origem geográfica, cultural e social, estes atores sociais servem para o

grande público urbano como símbolo de identificação daquilo que possa ser um rabequeiro

tradicional. Acontece que este público possui apenas mecanismos superficiais de referência e,

assim, tende a resumir o corpus identificador da cultura musical da rabeca e do rabequeiro apenas a

formulações de tipicidade do que seja um rabequeiro.

Esta complexa situação em que se encontram Nelson da Rabeca e Geraldo Idalino, leva seu

público a assumi-los pela sua rusticidade, mas também a que eles próprios passem gradativamente a

realizar comparações diferenciadoras entre si e os outros rabequeiros que não conseguiram

ultrapassar as barreiras de seu núcleo cultural. O contexto lhes impôs determinados

comportamentos e concepções culturais e musicais que, em alguns casos, levam-nos a um choque

com sua história de vida.

Referindo-se a outros rabequeiros que participaram com ele de um encontro em

Pernambuco, Geraldo Idalino diz que “... essa turma de véi é tudo fraco de rebeca. Eles ficava tudo

roendo comigo, porque não sabe que nem eu”.

Se, para rabequeiros como Artur Erminio e João Alexandre, os amigos de bairro são a sua

platéia direta e mais próxima – embora escassa e rareando, como eles reclamam –, a convivência

com um outro tipo de público, que pode pagar mais ou acolher melhor, leva Geraldo Idalino a um

abandono dos “fãs” que possui no bairro onde mora. Ele afirma que “... não, eu não toco aqui pro

pessoal do bairro. Só alguma vez, quando doutora Lúcia chama a gente pra fazer uma apresentação

no colégio, a gente vai”.

Neste processo de reestruturação de identidade, Geraldo Idalino busca diferenciar-se de

outros rabequeiros e assemelhar-se com a música e os músicos que participam da atual tipo de

produção de forró. Ele comenta que:

Rapaz, não tem diferença não, sabe porque? Porque do jeito que o pessoal daquelas
bandas toca, a gente toca também. Só tem a diferença numa coisa, porque lá tem
mais instrumento, lá tem muito arranjo. Mas a gente toca as músicas do mesmo
jeitinho que eles toca.

145
Para ele, Fortaleza é a capital do forró, pois “... é a terra que tem empresário, estúdio, tudo é

fácil. Eu garantia que se a gente tivesse em Fortaleza hoje, a gente tava aprumado”; os meios de

comunicação de massas são vistos como um benefício para sua música, visto que “... as rádio

reconhece a gente”. Os produtores musicais são personagens extremamente importantes para

Geraldo Idalino e ele entende que parte da sua falta de sucesso se deve à falta de um agente

empresarial quando diz que “... o que atrapalha a gente é a gente não ter um braço forte em cima da

gente. Se a gente tivesse um empresário, um braço que ajudasse a gente ia”.

Geraldo Idalino entende que a sua possibilidade de continuar atuando depende única e

exclusivamente do seu talento pessoal e da ajuda dos meios de comunicação de massa. A crise, vista

de uma perspectiva mais ampla da cultura, e assim entendida por outros rabequeiros, é sentida por

ele como a crise do seu projeto particular de vida. Este sentimento se revela,quando diz Geraldo

Idalino lamenta que:

Hoje eu me sinto mais desclassificado, naquele tempo não. Hoje a gente tá pegando
mais cartaz é em Fortaleza. (...) Mas assim [sem um empresário] a gente vai pra trás.
Se a gente gravar um CD a gente vai ter que vender na praça.

Por um sentimento cultural quase melancólico, o público que freqüenta shows nos grandes

centros urbanos precisa conhecer estes rabequeiros antigos. O sentimento é melancólico porque se

pauta num conviver com algo que, para eles, está localizado no passado, na tradição.

A presença destes músicos no espaço urbano já indica alguma mudança e alguma forma de

transmissão dessa música. Mas as formas e meios de transmissão de conhecimento a que estes

rabequeiros estão acostumados, trazem fortes limitações para que a passagem da música ocorra com

mais fluência de um contexto para outro.

Geraldo Idalino considera que é necessário um “talento” como o seu para aprender a música

de rabeca. Implicitamente, este talento significa capacidade de aprender sozinho, como ele

aprendeu. Desta maneira, ele não vislumbra, no seu contato com jovens que formam a sua platéia,

nenhum tipo de atividade ou “método” de ensino possível.

146
Com Nelson da Rabeca ocorre um processo semelhante. Nas “oficinas” realizadas em

eventos promovidos por instituições diversas, onde participa como rabequeiro ou artesão de rabeca,

os resultados não são satisfatórios e não conseguem efetivar algo mais que o contato pessoal mais

direto entre alguns jovens, o rabequeiro e seu instrumento.

O rabequeiro Nelson da Rabeca em uma oficina de rabeca realizada na Paraíba

O fato é que “oficinas”, enquanto possibilidades didáticas de trabalho, não fazem parte do

espectro de atividades que os próprios rabequeiros mais antigos têm como próprias para o ensino-

aprendizagem da música. Numa “oficina” de música de rabeca, o rabequeiro não tem mais o que

fazer, a não ser tocar, tocar, tocar... para os alunos escutarem, pois, como estão acostumados em

seus ambientes de origem, entendem que assim se opera a transmissão do conhecimento.

A prática do artesanato também fica difícil numa atividade de “oficina”, visto que não há

madeira necessária e suficiente para os alunos construírem os instrumentos, não há modelos

desenhados em papel e nem há medidas de tamanho estabelecidas para cada peça. A atividade se

resume, ou se efetiva, a um processo de imitação por um curto período de tempo e as possibilidades

de manutenção deste conhecimento após o término da oficina são poucas.

147
Em ambos os casos, quando a “oficina” acaba, os alunos deixam de lado aquele pouco

conhecimento apreendido, pois não têm como dar continuidade ao processo de aprendizagem,

inclusive pela falta de contato direto com o rabequeiro. Ou seja, a transmissão do conhecimento

musical dos rabequeiros, em moldes organizados como uma “oficina” de música necessita de um

método em que esteja prevista a continuidade do contato com o rabequeiro e o respeito às suas

maneiras de ser e agir, para que a cultura dele – e não um rascunho caricatural de sua técnica – seja

transmitida em suas qualidades mais profundas.

3. A perspectiva da música de rabeca entre os jovens rabequeiros urbanos

Casos onde a transmissão de conhecimento da música de rabeca já se deu e têm

possibilidades de ser ampliados verificam-se quando jovens músicos urbanos vão ao encontro dos

rabequeiros, em seu próprio contexto de manifestação, e mantêm um contato mais intenso com essa

cultura, absorvendo saberes e práticas e incorporando-os às suas atividades musicais nos seus

grupos. Estes são os casos de Siba Veloso, Luismario Machado e Alicio.

Por outro lado, jovens como Maciel Salustiano e Leonardo Salustiano (este artesão de

rabeca) partem de uma formação inicial entre rabequeiros mais antigos em direção à música urbana

e têm grandes possibilidades de efetivar uma transmissão da música de rabeca para o complexo

contexto da música urbana, visto que comungam diversos aspectos dessa cultura, se identificam e

são identificados como agentes dela. Na sua relação com o grande público, trazem elementos dessa

cultura para a sua música, resignificando-os e tornando-os “naturais”, levando jovens urbanos, com

informações musicais as mais diversas, a assumirem como também seus os elementos de um saber e

fazer musicais que migraram de um outro contexto cultural.

Na atuação destes jovens rabequeiros, a alteridade entre as culturas (entre o moderno e o

rústico, o tradicional e o efêmero, o rural e o urbano) não é quebrada e, além disto, a distância entre

a intenção e o gesto é diminuída.

148
A convivência com elementos e informações de ambos os contextos musicais (do cavalo-

marinho e da música popular urbana) exige e propicia atitudes sócio-musicais mais complexas aos

novos rabequeiros. Elementos de continuidade e descontinuidade, em relação aos rabequeiros

tradicionais, estão presentes nas suas músicas, procedimentos e concepções. Isto também ocorre no

caso de outros músicos que anteriormente usaram ou fizeram referência à rabeca em suas músicas,

como é o caso de Antonio Nóbrega e de outros que participaram do movimento Armorial em

Pernambuco.

O trabalho de Antonio Nóbrega e a música do movimento Armorial tiveram um caráter

camerístico, direcionado à apresentação em teatros. Consistiu, em muitos aspectos, na busca de uma

linguagem musical nordestina, a partir da combinação de elementos musicais populares de tradição

oral com aqueles da música erudita de tradição européia. Nessa proposta, a rabeca foi utilizada, mas

esses músicos buscaram, principalmente, incorporar aspectos de sonoridade, de ornamentação e de

técnicas peculiares de rabequeiros ao seu quinteto de cordas clássico.

Os novos rabequeiros também reconhecem que a inserção de alguns elementos da música de

rabeca na música urbana tem uma história que os precede. Maciel Salustiano observa que “... há

tempo vem esse movimento de rabequeiro, desde Ariano que teve um trabalho legal aqui. E eu

gosto do trabalho do Nóbrega”. De fato, Ariano Suassuna e Antonio Nóbrega buscaram uma

linguagem artística nordestina, envolvendo música, teatro, literatura etc, e nisto envolveram a

música de rabeca.

A música de Siba Veloso, Maciel Salustiano e Luismario Machado mantém alguns

elementos da música armorial, mas também se diferencia, quando se torna capaz de atingir um

público maior e ser um produto musical destinado a um tipo mais amplo de diversão, consumo e

formação cultural. No trabalho destes jovens rabequeiros residem elementos do que se pode nomear

e entender como cultura de massas, cultura “pop” e uma forte dose da tradição musical dos

rabequeiros nordestinos.

149
Se a atribuição como violinista é parte da necessidade de estruturação da identidade de

Geraldo Idalino, para os novos rabequeiros a ligação à tradição e à especificidade da rabeca é um

forte elemento constitutivo de identidade. A este respeito, Maciel Salustiano diz:

Não adianta porque ele é muito clássico [o violino]. Ele é mais pra música clássica,
né? Claro que você pode até tocar outra coisa, mas é diferente da rabeca, soa
diferente.

Ao que Siba Veloso adiciona o seguinte depoimento:

Na verdade, eu praticamente me considero um rabequeiro de cavalo-marinho, porque


é o que eu realmente gosto de tocar na rabeca. É o que eu aprendi, onde eu realmente
me sinto no meu mar musicalmente. (...) Quando eu toco com eles, acho que
realmente eu tô, como instrumentista da rabeca, acho que eu tô no meu melhor.

Os novos rabequeiros contribuíram decisivamente para ampliar a inserção da música de

rabeca no espaço da música popular brasileira e, além deles, há outros como o compositor Eduardo

Gramani, que estudou e compôs músicas para rabecas, cujo trabalho tem prosseguimento,

atualmente, sob a responsabilidade dos professores Esdras Rodrigues e Roberto Fiaminghi, da

UNICAMP, com o grupo “Cacoarco”.

Uma grande parcela de consumidores da música popular urbana no Brasil, sabe hoje o que é

uma rabeca e tem a possibilidade de escutá-la. Jovens que tinham como referência de conjunto

instrumental apenas o baixo, a bateria, os teclados e a guitarra, têm hoje na rabeca novas

possibilidades de instrumentação, assim como em outros instrumentos musicais tradicionais

utilizados na música nordestina, principalmente os de percussão.

Durante os contatos mantidos para esta pesquisa, Siba Veloso e Maciel Salustiano, que têm

uma atuação marcante na mais recente produção musical popular no Brasil, fizeram questão de

observar, reiteradamente, que o resultado musical obtido é fruto de um trabalho coletivo, do

conjunto das pessoas com as quais trabalham.

Pelo que se observou em gravações do Mestre Ambrósio, grupo de Siba Veloso, e do Chão e

Chinelo, grupo de Maciel Salustiano, as composições são de integrantes dos grupos; os arranjos são

coletivamente elaborados e a rabeca não é o instrumento solista exclusivo, mas compartilha espaço

150
com outros instrumentos. É um tipo de estrutura político-musical pactuada, que não mantém nem os

aspectos da hierarquia centrada nos mestres, como no caso de folguedos como o cavalo-marinho,

nem é plenamente centrada na atuação do rabequeiro, como é o caso da proposta político-musical

de Geraldo Idalino.

A problemática da continuidade da música de rabequeiros nos folguedos tradicionais é

diferentemente sentida e entendida por estes jovens rabequeiros. Para eles, a música de rabeca não

se encontra em estado terminal – como entendem Artur Erminio e João Alexandre –, mas sim um

determinado tipo de manifestação dessa música encontra-se numa encruzilhada histórico-cultural

onde problemas, os mais diversos para a sua permanência, se apresentam.

Para Siba Veloso, é a perda do sentido de algumas manifestações musicais tradicionais às

quais a rabeca está ligada, nas próprias comunidades, que interfere também na continuidade desse

tipo de música. Ele comenta que:

Hoje você não encontra mais um cavalo-marinho brincando no terreiro. Tem nas
festas de padroeira que uma prefeitura ou outra paga. Perdeu-se a valorização, a
importância que o folguedo tinha para as pessoas foi se perdendo. Hoje você não tem
renovação dos músicos, praticamente.

É importante observar que os jovens rabequeiros têm uma postura crítica diferente sobre a

crise que atinge os folguedos e a sua música. Para eles, vários fatores possibilitaram aos meios de

comunicação como a televisão exercer um papel importante na reorientação de concepções e

comportamentos musicais nos contextos das músicas tradicionais. Dentre esses fatores, eles citam

as mudanças na economia rural e as conseqüências do êxodo rural nas formas de lazer, convivência

diária e no trabalho. Siba Veloso enfatiza que a crise da música de rabeca não se estende a toda a

sua amplitude de manifestações e sim apenas no que diz respeito aos folguedos tradicionais.

Maciel Salustiano aponta ainda o descaso dos governos como um dos problemas para a

manutenção dos folguedos e observa que a criação de espaços formais é necessária para o ensino da

música de rabeca. E reclama que “... tem que ter uma escola pra esses mestres ensinar, se não

quando eles morrerem, acabou-se”.

151
Enquanto nas comunidades onde residem os rabequeiros mais antigos são os jovens os que

mais se afastam da música de rabeca, nos centros urbanos, a partir da ação dos novos rabequeiros,

são, principalmente, os próprios jovens que buscam o consumo desta mesma música. Maciel

Salustiano comenta que:

Na zona da mata tem muito. Mas a gente sabe que aqui na capital onde tá crescendo
esse movimento é que a gente tá vendo os jovens procurar a rabeca. Na zona da mata
é mais difícil a gente ver um rabequeiro jovem.

Se os meios de comunicação de massa – quando transformados em principal eixo de

referência para a formação cultural da maioria da sociedade e, principalmente, para os jovens –

contribuíram para uma quebra das tradições musicais das próprias comunidades, o uso destes

próprios meios para veicular a música dos novos rabequeiros pode ser útil para atrair aquelas

pessoas que, mesmo tendo a música de rabeca no próprio bairro, a desprezam. Sendo veiculado por

estes meios de comunicação, um objeto cultural talvez adquira a qualidade de “moderno”, ou venha

a ter importância para as camadas populares, por estar sendo referendado pelas elites sociais. A este

respeito, e falando da sua vivência, Siba Veloso diz que:

Hoje é muito mais fácil um cara de dezoito anos que tá lá numa cidade onde ele
poderia aprender com um avô, com um velho que toca na esquina, é muito mais fácil
ele ver na televisão alguém tocando rabeca e se interessar pelo instrumento, fazer
uma banda na linha do Mestre Ambrósio ou outra parecida, e tentar esse caminho, do
que ele ver um cavalo-marinho na cidade dele, ir lá e aprender com o mais velho.
Porque nesse caminho da TV, do jovem ele vai tá sendo valorizado. Por esse outro
caminho não! Ele vai tá na ponta da rua como um cortador de cana marginal.

Mas não é apenas através dos meios de comunicação de massa que estes jovens rabequeiros

entendem que podem contribuir decisivamente para a continuidade da música de rabeca. O

intercâmbio cultural que mantêm entre os segmentos sociais é um tipo de atividade importante no

entendimento deles e as ações culturais cotidianas nos centros urbanos são compreendidas como os

procedimentos mais importantes para que tal intercâmbio ocorra. Neste sentido, Maciel Salustiano

comenta que:

A gente ta vendo muito jovem e outras pessoas que depois desse movimento chegam
pra procurar no interior da zona da mata, que na realidade é de onde vem essa

152
música. Quer dizer que tem que haver o intercâmbio, tanto lá a gente depende deles
como eles depende da gente. Você pode mostrar um trabalho que é daqui e também
divulgar aqueles mestres antigos pra outras pessoas.

É possível que um tipo de presença da rabeca, nos cavalos-marinhos e boi-de-reis, esteja

emitindo seus últimos sons. A rabeca não tem mais presença nos teatros de bonecos (Mamulengo,

João Redondo) e os bailes com rabeca há muito se extinguiram no interior do Nordeste. A presença

atual da rabeca na zona rural ou na periferia de algumas cidades depende, quase totalmente, da

manutenção desses folguedos. O que é um problema grave, pois é pouco provável que se

mantenham por mais de uma década, ou seja, após a morte dos mestres.

De outra parte, com o impulso dado à música de rabeca a partir da atuação dos novos

rabequeiros, a música tradicional de rabeca começa a ser buscada por um novo público. Esta

situação pode ser uma importante injeção de estímulo para a música tradicional, pois tanto

elementos desta música são incorporados em outras propostas musicais – o que, em parte, assegura

a sua continuidade – quanto estes novos rabequeiros buscam, nas suas atividades, aproximar o novo

público das músicas e dos músicos tradicionais.

Se esta migração e contato se estabelecerem com eficácia, é possível que algumas danças e

toadas se mantenham, embora não o folguedo na sua totalidade. João Alexandre, em citação

anterior, faz essa profecia, quando se refere às intenções dos jovens na sua relação com as músicas

tradicionais.

Hoje a música de rabeca já realizou sua passagem para o contexto da música urbana. Uma

razoável quantidade de novos rabequeiros está em atividade em grupos de música formados por

jovens. Em alguns discos de produção independente, é significativa a presença da rabeca. De outra

parte, como fruto da busca ao “folclórico”, muitas pessoas estão comprando rabecas de artesãos

como Nelson da Rabeca e Manoel Pitunga, apesar de quererem possui-las apenas como objeto de

decoração. Que seja, afinal o piano – o símbolo da música clássica para a classe média – também é

um móvel decorativo em muitas residências.

153
Mesmo que a música dos novos rabequeiros e esse tipo de reação cultural entre jovens da

urbanidade não sejam capazes de servir como elementos para a manutenção da música tradicional,

pelo menos já deram claros sinais de que a sua continuidade em novos contextos é uma realidade. A

rabeca, assim como muitos aspectos da música tradicional, definitivamente asseguraram seu espaço

na música popular urbana produzida no Nordeste.

154
ANEXOS

155
LISTA DAS MÚSICAS CONTIDAS NO CD

1. “Não Chores Dama do Rei.” Toada e baião apresentada pelo cavalo-marinho do Mestre Gasosa.

Artur Erminio.

2. “Baião” (sem título). Geraldo Idalino.

3. “É Fulo” – Dança apresentada no boi-de-reis do Mestre Pirralhinho. João Alexandre.

4. “Forró de Pé de Calçada.” Siba Veloso.

5. Fragmento de uma “Toada” de cavalo-marinho. Maciel Salustiano.

6. “Violino no Choro.” Geraldo Idalino.

7. “Juazeiro.” Música de Luiz Gonzaga. João Alexandre.

8. Fragmento de uma “Toada” de cavalo-marinho. Siba Veloso.

9. “Forró” (sem título). Maciel Salustiano.

10. “Frevo” (sem título). Geraldo Idalino

11. “Zé.” Siba Veloso

12. “Na Chegada desta Casa.” Toada que encerra a primeira parte da apresentação do cavalo-

marinho. Artur Erminio.

13. “Lá no Forró de Zé Dantas.” Executada pelo “Chão e Chinelo”. Rabeca e voz – Maciel

Salustiano.

14. “Shopping.” DJ Dolores. Rabeca – Maciel Salustiano.

15. “Caranguejo Danado.” Composição e rabeca – Nelson da Rabeca.

16. “Na Porta dos Cabarés.” Antonio L. Faustino. Rabeca e voz – Cego Oliveira.

156
Transcrição 1 – Não Choreis Dama do Rei

157
158
159
160
161
162
163
164
165
Transcrição 2 – Forró

166
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168
169
Transcrição 3 – É Fulô

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173
174
175
176
177
178
179
180
181
Transcrição 4 – Forró de Pé de Calçada

182
183
Transcrição 5 – Fragmento de uma Toada de Cavalo Marinho (Salustiano)

184
185
Transcrição 6 – Violino no Choro

186
187
188
Transcrição 7 – Juazeiro

189
190
191
Transcrição 8 – Fragmento de uma Toada de Cavalo Marinho (Veloso)

192
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