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CEGOS E CINEMA: REVENDO ALGUMAS CONCEPÇÕES SOBRE A CEGUEIRA 61

CEGOS E CINEMA: REVENDO ALGUMAS


CONCEPÇÕES SOBRE A CEGUEIRA*

BLIND PEOPLE AND THE MOVIES: REVIEWING


SOME IDEAS ON BLINDNESS

Maria Eduarda Silva LEME1

RESUMO

Este trabalho tem por objetivo abordar aspectos da representação de uma realidade eminentemente
visual – um filme de cinema - por parte de sujeitos cegos desde o nascimento. O referencial teórico
adotado é a perspectiva histórico-cultural em psicologia, segundo a qual o psiquismo humano se
constitui socialmente, tendo a linguagem como elemento central nesse processo. O material
empírico foi obtido a partir de uma situação em que jovens cegos assistiram a um filme de cinema
e em seguida o narraram em uma entrevista. O presente estudo analisa aspectos desse material
enfocando a constituição do conhecimento pela linguagem.
Palavras-chave: Cegos; Linguagem; Cinema.

ABSTRACT

This paper is designed to provide insights on the representation from an eminently visual
reality – a movie – by people who are blind from birth. The theoretical referential used is a
psychology-based historical-cultural approach, according to which, the human psyching is socially
built, with language playing the key role in this process. The empirical material was taken from a
situation where blind young people watched a movie and then told what they had perceived in an
interview. This paper analyzes elements from such material by focusing on the development of
knowledge through language.
Key words: Blind People; Movie; Language.

(*)
O tema apresentado neste trabalho foi abordado na dissertação de mestrado “A Representação da Realidade em Pessoas
Cegas desde o Nascimento”, elaborada na Faculdade de Educação da Unicamp, sob orientação do Prof. Dr. Angel Pino
Sirgado.
(1)
Psicóloga nas instituições: Previdência Social – Setor de Trabalho: Unidade Técnica de Reabilitação Profissional INSS
Campinas e Centro Cultural Louis Braille de Campinas. E-mail: eduardaleme@uol.com.br

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Introdução observam em algumas pessoas cegas, que não


apenas não apresentam dificuldade alguma na
Como os cegos conhecem o mundo? realização de tarefas intelectuais, quanto mostram
Como podem saber sobre os objetos sem vê-los? perspicácia e engenho em contornar o
É preciso que toquem ou tenham alguma impedimento visual de acesso à realidade.
experiência sensorial sobre os objetos para Muitas pesquisas dedicam-se a investigar
adquirirem conhecimento sobre eles? Essas a maneira como os cegos constituem represen-
questões do senso comum permeiam o imaginário tações mentais da realidade, considerando a
social sobre a cegueira e vêm sendo objeto de privação do importante canal sensorial da visão.
curiosidade e reflexão ao longo da história. A Observa-se como tendência na literatura sobre
filosofia se ocupou desse tema desde a representações mentais em pessoas com
Antigüidade: em alguns períodos entendida como deficiência visual uma predominância de
fonte essencial de conhecimento, em outros, investigações sobre as representações do espaço
descrita como enganosa e ilusória, ou relegada (MILLAR, 1976; FLETCHER, 1980, 1981;
a um estatuto secundário perante a supremacia HOLLYFIELD & FOULKE, 1983; ZIMMERMAN,
do espírito e da razão e, mais recentemente, 1992; BIGELOW, 1991; HUERTAS & OCHAITA,
envolvida na busca da superação do dualismo 1992), aspecto em que os cegos têm particular
sensibilidade-razão, a visão sempre instigou os dificuldade, como referem Ochaita e Rosa (1995).
pensadores a compreender sua essência e sua
relação com o conhecimento (CHAUÍ, 1988). Alguns autores que investigam as
representações espaciais em crianças e adultos
A questão da cegueira remete ao problema cegos enfatizam a necessidade de treinamentos
da construção do conhecimento pelo ser humano. e da apresentação sistemática, por meio de
A falta, desde o início da vida, desse canal de programas, de situações que possibilitem
apreensão sensível dos sinais do mundo experiências sensoriais e motoras para melhorar
certamente determina formas peculiares de a o nível de desenvolvimento dessas representações
pessoa cega relacionar-se com a realidade e (WHEELER et al., 1997; EASTON & BENTZEN,
adquirir conhecimento. Mas essa peculiaridade 1999).
implica prejuízo na constituição das funções
psíquicas superiores necessárias ao A metodologia da maioria desses trabalhos
conhecimento, ou são apenas especificidades? adota, de modo geral, uma perspectiva compa-
rativa: compara-se, por exemplo, o desempenho
É freqüente encontrar-se, tanto em crenças de sujeitos com deficiência visual e o de sujeitos
do senso comum como em estudos e pesquisas, videntes, ou o desempenho de sujeitos cegos
concepções que apontam dificuldades no com o de sujeitos com baixa visão. Outra
desenvolvimento de pessoas cegas. A afirmação, característica das pesquisas é a elaboração de
por exemplo, de que “80% das informações condições experimentais bem delimitadas, que
sobre o mundo nos chegam pela visão”, está possibilitam resultados mensuráveis, nas quais
presente não só no imaginário popular quanto em se propõem aos sujeitos tarefas a serem
textos de psicologia e de outras áreas do executadas em situações de teste e reteste, e
conhecimento. Um bom número de pesquisas analisam-se quantitativa e qualitativamente os
sobre cegos tem sido realizado numa perspectiva resultados.
comparativa, em que seu desempenho em deter- Muitos estudos referem que o desenvolvi-
minadas tarefas é comparado ao de pessoas mento cognitivo no cego congênito tem atrasos
que vêem, e as conclusões, com grande (HALL, 1981). Tais pesquisas concluem que
freqüência, mostram atrasos ou desvantagens problemas no raciocínio espacial observados em
no desenvolvimento dos cegos. alguns cegos congênitos podem estar relaciona-
Esses dados, no entanto, não se harmoni- dos ao fato de utilizarem sistemas de representa-
zam com os altos níveis de competência que se ção não tão eficientes para esse tipo de raciocínio

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quanto o sistema de representação icônico, que atribuí-los, de modo simplista, à cegueira (ibid.,
envolve imagens, utilizado pelos videntes. 1994).
A depender da perspectiva que se adota na Segundo suas concepções, os atrasos
investigação do desenvolvimento do psiquismo e relatados em número expressivo de pesquisas
dos aspectos envolvidos nas representações, a se relacionam com o fato freqüente de não se
pessoa com deficiência visual, particularmente a oferecer à criança com deficiência visual a
pessoa cega desde o início da vida, fica em oportunidade de ter experiências ricas e
desvantagem em relação aos videntes. Além socialmente significativas. Salienta que o fator
disso, se a ênfase é colocada sobre a relação da interação social é que faz a diferença entre um
criança com os objetos no que tange ao desenvolvimento deficitário e um desenvolvimento
desenvolvimento do psiquismo, negligenciando- adequado. Pesquisas que relata evidenciam que
se o aspecto das interações sociais, como se crianças que têm um ambiente físico rico de
observa na maioria das pesquisas sobre estímulos e que são encorajadas a explorá-lo, e
representações, a criança sem visão desde o além disso puderam estabelecer um vínculo
nascimento é vista como tendo prejuízo satisfatório com as figuras de apego, mostram
irrecuperável em seu desenvolvimento. um nível de desenvolvimento mais alto do que
Mas há, por outro lado, pesquisas e outras crianças para as quais esses fatores
concepções que apontam em outra direção. estão prejudicados. Assim, o que se depreende
Anderson (1984), Mills (1993), Norgate (1997), da análise de Warren é que as interações sociais
Landau (1997) e Warren (1994) são alguns dos têm papel fundamental e decisivo sobre como se
autores que têm assumido uma perspectiva desenvolverá a criança cega, e podem determinar
diferente em seus trabalhos e têm constatado se esse desenvolvimento será adequado ou se
desempenho muito mais favorável em crianças e será drasticamente prejudicado.
adultos com cegueira congênita. A ênfase dada por Warren à importância da
David Warren é um autor de importância interação social para o desenvolvimento das
significativa na área da deficiência visual que tem crianças cegas guarda afinidade com as
realizado amplas revisões da literatura sobre o concepções de Lev Semenovich Vygotsky sobre
tema (WARREN, 1984, 1994) e abordado o a cegueira, apresentadas no conjunto de textos
problema sob uma perspectiva inovadora em reunidos sob o título Fundamentos de
relação à pesquisa mais tradicional. Assume Defectologia (1997). Vygotsky defendeu a idéia
uma posição crítica em relação a pesquisas que de que as deficiências físicas afetam primor-
avaliam o desempenho de crianças com dialmente as relações sociais das pessoas, e
deficiência visual pela média, tendo como não sua relação com o mundo físico, pois entre
referência a norma para crianças videntes. os seres humanos e o mundo há o meio social,
Argumenta que mesmo que uma só criança, em que intermedeia suas relações com esse mundo.
um grupo de sujeitos, apresente habilidades Este autor enfatiza a importância da educação
próprias de determinados estágios do desenvol- social das crianças com deficiência e seu
vimento ou encontre-se no limite superior de um potencial para um desenvolvimento normal, e
ranking, como mostram certas pesquisas, isso salienta que o problema social é o problema
é suficiente para invalidar a hipótese, central decorrente da deficiência.
habitualmente aceita, de que dificuldades e atrasos Vygotsky (1997) desenvolveu a idéia de
se devem à cegueira em si; é preciso procurar que a cegueira, assim como outras deficiências,
outras causas. Acredita que os princípios e a pode promover uma reorganização completa no
dinâmica básica do desenvolvimento são os funcionamento psíquico, de modo a possibilitar
mesmos para crianças videntes e não videntes, uma compensação do impedimento. Enfatizou
mas é necessário compreender que fatores que o problema da cegueira é meramente
determinam que ocorram atrasos, em vez de instrumental, e se se proporcionarem ao cego

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formas alternativas de acesso aos aspectos da depois como algo psicológico; primeiro
cultura inacessíveis a ele devido à ausência de entre as pessoas, como uma categoria
visão, o problema será contornado, como no interpsíquica, depois, dentro da criança,
caso do sistema braile, que permite ao cego o como uma categoria intrapsíquica.
acesso à linguagem escrita. Para Vygotsky, a (VYGOTSKY, 1987a, p.161).
fonte da compensação para o cego está na Nesse movimento de constituição do sujeito
linguagem, na experiência social e na relação tem importância fundamental o conceito de
com os videntes. Por meio da linguagem o cego internalização, referida por Vygotsky como “trans-
pode ter acesso às significações da cultura e ferência de funções para o interior” (VYGOTSKY
participar das práticas sociais. Assim, as relações & LURIA, 1994, p.156). Durante esse processo
sociais são de fundamental importância para a de internalização ocorrem mudanças radicais na
criança cega superar o impedimento orgânico e atividade das mais importantes funções psíquicas,
seguir o curso de seu desenvolvimento cultural. como a percepção, a memória, a atenção; os
Como se observa a partir das diferentes processos psicológicos naturais, tal como se
perspectivas de pesquisa e dos diferentes encontram nos animais, deixam de existir e são
resultados que se obtêm, a maneira como se reconstruídos sobre uma base psicológico-
concebe o homem determina a marca que se cultural.
imprime à investigação, influenciando as Por meio da interação com as outras
conclusões em uma determinada direção. pessoas, a cultura passa a constituir o psiquismo
e a determinar sua estrutura. Mas o que articula
a cultura com o pensamento? Uma concepção
A perspectiva histórico-cultural: o papel
fundamental da teoria de Vygotsky vem responder
fundamental da linguagem
a essas questões: as relações dos seres
humanos uns com os outros e com seu próprio
Este trabalho assume os pressupostos
pensamento são mediadas pelos signos.
teóricos da perspectiva histórico-cultural em
Enquanto os instrumentos medeiam a relação do
psicologia, mais particularmente as concepções
homem com a natureza e são utilizados para
de Vygotsky, segundo as quais o psiquismo
controlar e transformar os objetos, os signos
humano é socialmente constituído: sobre a base
medeiam a relação do ser humano com seu
biológica desenvolvem-se, a partir da interação
psiquismo, controlando e organizando as ações
com os outros homens, as funções psíquicas
psicológicas. É através da mediação semiótica
superiores, que caracterizam a mente humana.
que o ser humano se apropria da cultura e, nesse
Os adultos atribuem às experiências vividas pela
processo, transforma seu pensamento. “A
criança os significados próprios da cultura em
internalização de formas culturais de comporta-
que estão imersos, e a criança gradualmente se
mento envolve a reconstrução da atividade
apropria desses significados por meio de um
psicológica tendo como base as operações com
processo ao mesmo tempo transformador e
signos” (VYGOTSKY, 1998, p.75). Por ter criado
constitutivo de seu psiquismo. Desta maneira, o
esse instrumento psicológico mediador da sua
ser humano transcende sua natureza biológica e
relação com o mundo é que o homem emerge de
se constitui como ser cultural e histórico. sua natureza biológica e alça-se à condição de
Vygotsky postula que as funções superiores ser cultural e histórico.
têm sua origem nas relações entre os seres Com o uso de signos, as reações passam
humanos e foram um dia funções sociais. Formula de imediatas a mediadas, a ação impulsiva é
uma lei genética geral do desenvolvimento cultural: inibida em favor de uma ação planejada, o indivíduo
Qualquer função no desenvolvimento cultural passa a poder deslocar-se em pensamento no
da criança aparece em cena duas vezes, tempo e no espaço – enfim, o comportamento
em dois planos: primeiro como algo social, submete-se à sua vontade e não apenas aos

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estímulos externos, o que implica liberdade. coletivos e têm seus significados compartilhados
Entre a realidade e a captação sensível de nessas interações -, mais particularmente a
estímulos introduz-se o signo que, graças à ação linguagem, que promove as profundas
reversa, que consiste na propriedade de o signo modificações no psiquismo que caracterizam o
agir sobre o próprio indivíduo modificando desenvolvimento cultural da criança (VYGOTSKY
qualitativamente seu pensamento, instaura-se e LURIA, 1994).
uma nova forma de relação com o mundo, própria Remetendo agora às pessoas cegas desde
do ser humano. o início da vida, algumas questões se apresentam.
O mais importante sistema de signos é a Se se adota uma concepção que atribui à intera-
linguagem, e Vygotsky confere a ela estatuto ção social papel fundamental na constituição
fundamental em sua teoria do desenvolvimento das funções psicológicas, abre-se a possibilidade
cultural do ser humano. Ao mesmo tempo que é de que o caminho de acesso ao mundo possa ser
instrumento de intercâmbio social, é também oferecido e adaptado à criança pelas pessoas à
instrumento do pensamento. O significado é sua volta, particularmente por aquelas mais
componente indispensável da palavra para cumprir significativas, como os pais e familiares. O papel
sua função de comunicação, mas ao mesmo central que Vygotsky atribui às relações sociais
tempo é uma generalização, que é um fenômeno e à linguagem no desenvolvimento das funções
do pensamento. Quando se nomeia algo com psíquicas superiores permite que se compreenda
uma palavra, ao mesmo tempo se está realizando a problemática da cegueira sob um ponto de vista
uma categorização e uma generalização, o que otimista no que se refere às possibilidades de
organiza o pensamento e impulsiona o psiquismo desenvolvimento das crianças cegas e de acesso
para formas mais elaboradas e complexas de ao mundo por parte dessas pessoas.
.funcionamento (VYGOTSKY, 1996). Assim, o O papel atribuído às relações sociais na
signo lingüístico tem dupla função – comunicação constituição do psiquismo permite vislumbrar a
e pensamento – o que lhe possibilita articular a possibilidade de um desenvolvimento sem
cultura com o psiquismo humano. problemas para a criança cega congênita ou
Vygotsky postula que, quando começa a cega desde o início da vida, desde que ela esteja
falar, a criança muda sua relação com o mundo imersa na cultura e participe das práticas sociais.
e com seu próprio psiquismo. A mediação da fala É através da linguagem que o homem internaliza
lhe possibilita maior domínio sobre seu as formas culturalmente dadas de organizar o
pensamento e seus impulsos, e lhe permite real e se apropria das significações de seu meio.
planejar suas ações. A ação da criança, até Assim, a posição central que ocupa a palavra na
então impulsiva, passa a dividir-se em duas concepção de Vygotsky sobre o desenvolvimento
etapas: uma de planejamento, de previsão da psíquico abre um universo de possibilidades aos
solução de um problema prático com o qual cegos em geral e particularmente às pessoas
esteja lidando, e outra de realização motora da sem visão desde o nascimento. Na coletânea
solução previamente idealizada. A linguagem, Fundamentos de Defectologia o autor exalta a
portanto, ao mesmo tempo que se constitui possibilidade de a linguagem fornecer ao cego
como um meio de comunicação com as outras tudo que ele necessita para conhecer o mundo,
pessoas, tem também o papel de influir sobre o pois o conhecimento se dá fundamentalmente
comportamento da criança, transformando-a, pela significação, que é da ordem do semiótico.
impulsionando-a para formas mais elaboradas
de ação sobre o mundo. Portanto, o processo de
desenvolvimento das funções psíquicas O cinema
superiores está intrinsecamente relacionado ao
meio social e à interação com as outras pessoas, Tendo como referencial teórico as
na medida em que é o uso dos signos – que são concepções da perspectiva histórico-cultural e

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adotando a posição de focalizar as competências conhecimento; entre elas, a linguagem, condição


e não as dificuldades das pessoas cegas, imprescindível para a aquisição de conhecimento
abordaremos neste trabalho alguns aspectos por parte de todo ser humano. A situação de
relativos à maneira como quatro jovens cegos cinema permite investigar outras vias de acesso
desde o nascimento representam uma realidade à significação, as quais o cego utiliza em sua
eminentemente visual, reconstituindo a narrativa realidade cotidiana, nas práticas sociais.
de um filme de cinema. Uma questão bastante abordada nos
O cinema, justamente pela posição central estudos sobre cinema diz respeito à idéia de
que a imagem visual ocupa em sua constituição, (re)construção da narrativa pelo espectador.
é instrumento muito rico para se investigar Quem assiste a um filme não o faz passivamente,
aspectos da relação do cego com o mundo pois, mas reconstitui sua própria narrativa a partir de
embora seja um produto cultural baseado em sua história, sua imaginação, sua memória,
imagens visuais, é constituído também por sinais suas emoções, seu lugar social, enfim, sua
de outra natureza. Por outro lado, utilizar filmes subjetividade, que por sua vez é constituída
de cinema possibilita investigar aspectos da socialmente e está eivada pelos significados da
apreensão da realidade por parte de cegos em cultura. Muitos estudiosos do cinema abordaram
uma situação significativa, relativa às práticas essa questão e referiram-se a essa construção,
sociais de nossa cultura, mobilizadora de elaborando conceitos como participação afetiva,
interpretação e produção de sentidos. O cinema jogo de projeção-identificação (MORIN, 1983),
é uma prática social que produz e reproduz objetivação (LAVRADOR, 1983), construção
significados culturais; suas narrativas e signifi- subjetiva, atividade mental construtiva, ficção
cados evidenciam como nossa cultura dá sentido coletiva (SALIBA, 1983), que se referem à forma
a si própria (TURNER, 1997). peculiar como cada espectador interpreta o filme,
Embora um filme de cinema seja constituído ao mesmo tempo compartilhando das
por imagens visuais, não se resume a elas; tais significações coletivas.
imagens são condição necessária para o filme, Almeida (1999) refere-se ao conceito de
mas não suficiente. Outros signos, além dessas intervalo de significação – intervalo entre as
imagens, constituem o filme, sendo os signos cenas, aquilo que é estabelecido pelos cortes e
lingüísticos de fundamental importância para a não está materialmente no filme. Isto permite que
narrativa fílmica. Assim, os cegos se defrontam se narre uma história ocorrida durante anos ou
com uma situação eminentemente visual, porém mesmo séculos, em cem minutos - ou quinze, no
passível de ser apreendida por eles de alguma caso dos filmes de curta-metragem. Esse intervalo
forma, o que possibilita investigar que estratégias é preenchido com as significações do espectador,
utilizam para realizar essa apreensão. que costura uma cena à outra com seus próprios
Ao lado disso, a analogia visual e auditiva significados e sentidos. Esse intervalo de
entre o cinema e a realidade às quais se refere significação, portanto, é da ordem do simbólico,
Metz (1977) oferecem uma situação que, em e não apenas do sensorial. Abordando o processo
alguma medida, remete à relação dessas pessoas de inteligibilidade da narrativa em geral, Almeida
com a própria realidade. Pode-se considerar que salienta que é a relação entre as cenas que
a situação do cego diante de um filme falado é, possibilita haver sentido. Uma narrativa não é
em alguns aspectos, similar a sua relação com uma mera justaposição de eventos isolados,
a realidade na medida em que as imagens visuais mas é a relação entre eles que constitui o enredo,
compõem parte da informação sobre o mundo, e essa relação é construída pelo espectador, que
assim como constituem parte das informações traz para essa construção sua história pessoal,
de um filme de cinema. Nas duas situações, que é ao mesmo tempo história social.
entretanto, outras informações, acessíveis às Bakhtin (1997a, 1997b), ao teorizar sobre a
pessoas privadas de visão, possibilitam o interação verbal e sobre o enunciado, salienta a

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noção de compreensão responsiva ativa: toda As entrevistas individuais foram gravadas em fita
compreensão já contém em si uma resposta, cassete, e a entrevista grupal foi gravada em
uma réplica, mesmo que não seja dita. Quem vídeo, sendo esses registros posteriormente
ouve um enunciado – postulado por Bakhtin transcritos.
como a unidade real da comunicação verbal – não Esses jovens são cegos em decorrência da
o faz passivamente, mas orienta-se em relação a retinopatia da prematuridade, patologia que
ele, ‘encaixa’ esse enunciado na sua própria rede acomete crianças prematuras de baixo peso que
de significações e coloca-se em uma atitude precisam receber oxigênio em incubadoras, o
responsiva. Este autor faz referência à obra de que muito freqüentemente danifica a retina
arte como enunciado, perante o qual o fruidor ocasionando a cegueira (ROCHA, 1987). São
assume também uma atitude responsiva ativa. duas garotas e dois rapazes e sua idade, por
Assim, frente a um filme – que é um enunciado ocasião da realização da pesquisa, estava na
ou uma seqüência de enunciados – o espectador faixa compreendida entre os 19 e os 23 anos; o
adota tal atitude, formula suas respostas, suas de menor escolaridade tinha na ocasião o ensino
construções, a partir de sua própria rede de fundamental completo, e o mais adiantado nos
significações, que por sua vez é social, histórica estudos cursava jornalismo.
e ideológica, nela ecoando as muitas vozes que
constituem o contexto em que o indivíduo está
inserido.
O conhecimento construído pela
Pode-se pensar que no caso do cego é linguagem
necessário que ele amplie o preenchimento entre
as cenas, pois além dos intervalos a que o Assumindo os pressupostos teóricos da
espectador vidente estaria exposto, defronta-se perspectiva histórico-cultural, particularmente as
com lacunas determinadas pela não visão de concepções de Vygotsky, em que a linguagem
imagens. Se completamos os textos, os enun- ocupa papel fundamental, analisaremos excertos
ciados, com nossas imagens e significações, do material empírico de modo a dar visibilidade
como o cego elabora essa construção e preenche analítica à importância da linguagem na
as lacunas de modo a encontrar significação na constituição do conhecimento por parte das
narrativa do filme? pessoas cegas.
Os jovens cegos mostram de maneira muito
clara que a busca por atribuir sentido aos
Assistindo a um filme
elementos apresentados, interpretar sinais,
Para problematizar e investigar a questão compreender o contexto, entender o enredo,
da representação da realidade por pessoas cegas enfim, encontrar significação naquilo a que
que nunca tiveram qualquer experiência visual, assistiram é que norteia a reconstrução que
ou seja, que não dispõem de memória visual, fazem da narrativa do filme. Pode-se observar em
realizamos uma pesquisa em que quatro jovens um trecho da narrativa de um dos sujeitos o
com cegueira desde o nascimento assistiram trabalho de síntese que realiza, em que é dada
individualmente a um filme brasileiro de curta- uma interpretação global da significação da
metragem, narrativo, e em seguida, em uma história:
entrevista também individual, narraram a história João: Mas assim, o que deu pra perceber
do filme e descreveram como imaginaram cenas em geral, assim, é que ele na verdade está
e detalhes. Esse procedimento foi realizado contando a história de um amigo dele, né... de
também em grupo, sendo que nessa outra faculdade... Eles acabaram se encontrando, e
situação os jovens assistiram conjuntamente a devido à confusão que rolou dentro da rua que
um outro curta-metragem narrativo brasileiro e tinha sido cercada, né, com grades, então, eles
em seguida narraram coletivamente a história. acabaram indo um pra um lado e o outro pro

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outro, e depois, com a confusão do cachorro, Júlio: É, a rua escura, né, o som... E aí eles
eles acabaram saindo correndo. E depois, o começaram a correr, a correr, e aí o som do
parceiro dele, o colega dele, acabou sumindo, cachorro começou a ficar longe, a ficar mais
né... Ele diz que... No final, ele conta que ele ia baixo.
acabar indo viajar, ia acabar indo cuidar da vida Pesquisadora: Certo...
dele, né, e acaba não procurando mais o amigo
Júlio: Pelo que a rua começou a ficar
dele.
escura, porque não se ouvia mais o barulho do
Embora não tenha visto as imagens dessas cachorro, mais, nem deles, por isso eles tinham
cenas, e portanto tenha sido privado de boa parte deixado o cachorro pra trás, já, depois da cerca.
das informações transmitidas por elas, João
Pesquisadora: A rua ficou escura?
pode compreender o filme e construir sua própria
narrativa, norteando-se pela busca da significação, Júlio: É, porque já era noite, né, então... E
pela compreensão do todo da história. A era deserto ali, e porque só se ouvia o som do
linguagem presente no filme, nas falas do narrador cachorro... E eles pularam a cerca depois.
e dos personagens, lhe permite reconstituir a Diante da pergunta da pesquisadora se o
narrativa, e no contexto de significação que som o teria levado a deduzir a seqüência, Júlio
assim se institui, João pode atribuir sentido a assinala que foi a inferência sobre a rua escura,
sinais e pistas que passam, então, a ter o além do som, que o auxiliou nessa dedução.
estatuto de signos, ou seja, a ter significação e Explica que a dedução sobre a cena se deve ao
a permitir uma interpretação. A linguagem lança fato de a rua ter começado a ficar escura e pelo
luz sobre os outros sinais sonoros, que se fato de já não se ouvir o latido do cachorro.
tornam signos, remetendo à realidade que
Infere que a rua ficou escura em função do
representam. A idéia de desencontro, isolamento,
fato de ser noite (fato de que teve conhecimento
precariedade dos vínculos interpessoais contida
pela palavra, pelo que foi dito no filme antes), de
no filme foi captada por João, como se observa
o local ser deserto (fato que deduz porque só se
em trechos de sua fala: (...) eles acabaram indo
ouve o som do cachorro) e silencioso (fato que
um pra um lado e o outro pro outro; (...)E depois,
constata porque não há ruídos de veículos e
o parceiro dele, o colega dele, acabou sumindo,
pessoas). ‘Escura’ é um atributo visual, mas
né...; (...) ia acabar indo cuidar da vida dele, né, Júlio chega ao conhecimento desse atributo por
e acaba não procurando mais o amigo dele. outras vias. Embora nunca tenha tido a experiência
É porque participa das práticas sociais, visual do que é algo ‘escuro’, participa da cultura
compartilhando os significados da cultura em em que esse atributo é significado de determinada
que vive, que João pode organizar as imagens maneira a depender do contexto – no caso da
sonoras, interpretar os indícios, relacioná-los cena em questão, trata-se de uma rua escura,
uns aos outros e constituir a narrativa mesmo que nos espaços urbanos de nossa cultura
não tendo acesso aos aspectos visuais. Pode associa-se a um local de pouco movimento,
compreender, imaginar, interpretar uma realidade deserto e, portanto, silencioso. Assim, Júlio
constituída eminentemente por estímulos visuais chega ao conhecimento de que a rua é escura por
por meio da palavra, da busca de significação. meio da interpretação e significação dos indícios
e informações a que tem acesso, e produz
Pode-se constatar a força da palavra
sentidos a partir de sua experiência pessoal e de
analisando-se um trecho da entrevista de Júlio,
em que ele narra uma cena e dá detalhes sua participação na cultura, ambas entretecidas
de maneira indissociável. Porque está imerso na
descritivos do local.
cultura apreende as imagens auditivas de pouco
Júlio: Eles pularam a cerca. ruído significando-as como relacionadas a lugar
Pesquisadora: Então pelo som você deduziu deserto e, portanto, escuro, e teve acesso a
essa seqüência? essas significações pela linguagem, nas

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interações discursivas com pessoas de seu João – Com base nas chave, né... com
contexto social. Por meio da linguagem, que dá base nas chaves que o amigo dele foi indicando
sentido aos sinais e indícios auditivos captados pra ele, “tal chave...” e ainda... e os portões ele
no filme, Júlio reconstitui a trama da narrativa. foi abrindo porque, eh... não teria como passar a
Pode-se observar esse processo nas chave pro amigo dele, tanto é que numa hora o
narrativas de outros sujeitos da pesquisa. amigo dele fala “continua abrindo você, que...
Selecionemos um trecho da entrevista de Denise, não joga a chave...”
em que ela reconstitui toda uma seqüência de Embora não veja, João refere-se a
ações que o filme mostrou em imagens visuais, localizações espaciais (Era num andar superior.
captando pela linguagem a significação da cena. Ele estava num andar bem abaixo...), descreve
Denise: Pelo que deu pra entender, ele movimentos e ações (a chave cai no chão e ele
estava fora, assim, e o cara jogou a chave pra se abaixa, pega e passa ali por um dos portões
ele, porque ele ainda pegou o elevador... E aí ele (...) Aí ele sobe (...) Antes de chegar na porta da
pegou o elevador e foi até a casa do Ângelo, abriu casa do amigo dele tem ainda mais alguns
a porta, e aí os dois, né... E ele comendo... cadeados, onde ele vai abrindo...).
falando que estava com fome e o amigo dele
Reproduz as falas dos personagens que
ofereceu uma bolacha... E ele comendo bolacha...
lhe deram pistas sobre a seqüência dos
Aí eles pegam e saem pra uma boate, e eles vão
acontecimentos, sobre ações e localizações. A
pra lá.
dedução de que o amigo que jogou a chave
Embora não tenha tido acesso visual às estava num andar superior relaciona-se com a
imagens, Denise constitui seu conhecimento fala do personagem a respeito de que o amigo
sobre a seqüência pelas falas dos personagens,
não deveria pegar a chave porque faria doer a mão
que dão significação a outros indícios presentes
devido ao impacto. (ele fala pro amigo dele não
no filme, e todo esse conjunto lhe permite a
pegar porque senão dói a mão.) Outras falas dão
compreensão da história.
informações sobre o percurso que o personagem
Ainda um último excerto, extraído da faz, abrindo portões e aproximando-se da casa
entrevista de João: do amigo: O amigo dele foi indicando pra ele: “tal
Eu imagino assim... Vou tentar explicar chave...” (...) O amigo dele fala: “continua
essa cena. O amigo dele na porta, só que de abrindo você, que... não joga a chave...”
onde o amigo dele estava, era num andar superior.
Na narrativa feita por João, ele reproduz
Ele estava num andar bem abaixo, né, e de onde
mas também cria falas e diálogos para os
ele estava dava pra eles se comunicarem, né.
personagens pertinentes à trama da história,
Diz pra o amigo ficar ali na porta e joga a chave
num processo integrado de interpretação,
pra ele, imagino que seja até pelo mesmo buraco
apropriação e reconstrução, regido pela busca
por onde ele passou a bolacha, e daí ele fala pro
da significação, em que a palavra exerce função
amigo dele não pegar porque senão dói a mão,
essencial.
por causa do impacto da chave. A chave cai no
chão e ele se abaixa, pega, e passa ali por um
dos portões, que vai dar acesso depois a um dos
Considerações finais
elevadores. Aí ele sobe, e aí tem mais. Ao invés
de... Antes de chegar na porta da casa do amigo As reflexões que o material da pesquisa
dele tem ainda mais alguns cadeados, onde ele nos proporcionou estimulam que se revejam
vai abrindo, né, uma grade pra tentar, pra chegar sentidos cristalizados no imaginário social sobre
até a porta do apartamento do amigo dele. a deficiência visual e sobre a extensão dos
Pesquisadora – E por que... E onde que limites que ela determina, assim como se
você concluiu que têm vários portões que ele foi repensem certas práticas pedagógicas e de
abrindo? Com base em quê? reabilitação muitas vezes equivocadas. Os

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70 M.E.S. LEME

sentidos estabilizados sobre a cegueira e as psicológicas são historicamente produzidas, e


(im)possibilidades das pessoas cegas de certo que as mentalidades são inexoravelmente
modo acabam avalizando a exclusão social e o marcadas pela cultura em que estão imersas.
alijamento dessas pessoas dos bens culturais, Essas concepções, que trazem a marca do
na medida em que instituem como naturais relativismo, mobilizam a reflexão de que é
certos impedimentos que na verdade não existem, necessário que os profissionais e pesquisadores
ou pelo menos não na forma e extensão com que que trabalham com o homem abandonem uma
são habitualmente concebidos. posição auto-centrada e possam olhar o outro a
Naturalizou-se a noção de que a visão é partir do referencial desse outro. Só se podem
primordial para a aquisição de conhecimento, e compreender grupos, indivíduos, condutas,
que por isso as pessoas cegas têm uma hábitos, discursos, a partir da compreensão do
impossibilidade “natural” de acesso a grande contexto em que estão inseridos.
parte das produções da cultura. Naturalizou-se
Assim, devemos estar alertas para poder
também a idéia de que o cinema é a “arte da
compreender as pessoas com deficiência a partir
imagem”, o que se deve questionar, pois embora
de seu referencial, entendendo suas especifici-
um filme seja constituído por imagens visuais, há
dades e diferenças, seus significados. É
outros elementos que compõem sua significação.
necessário também estarmos conscientes de
Um filme é uma narrativa, e suas significações
que o técnico ou o pesquisador estão imbuídos
estão nas relações que se estabelecem entre os
diversos signos – relações entre as imagens de sua própria cultura, de seu lugar social, o que
visuais, entre as imagens visuais e as imagens inevitavelmente afeta seu olhar sobre esse outro.
sonoras, entre essas imagens e a linguagem No que se refere às pessoas cegas, deve-se
verbal, entre as cenas, entre as seqüências -, procurar entender sua relação com o mundo não
portanto, diz respeito à ordem do simbólico, a partir do referencial das pessoas que vêem,
transcendendo a mera sensorialidade das mas a partir de sua posição.
imagens visuais. Neste estudo procuramos O imaginário social é muito poderoso e nos
assumir uma posição que favorecesse a quebra afeta a todos, inclusive às próprias pessoas com
dessas naturalizações através da investigação deficiência, que muitas vezes não acreditam em
de uma questão insólita – a relação de cegos
suas possibilidades, o que acaba sendo
com o cinema –, buscando aprofundar a com-
corroborado por práticas pedagógicas que
preensão de certos temas para além do discurso
negligenciam suas capacidades e enfatizam as
estabelecido.
dificuldades. Se o homem é um ser cultural, se
Alguns autores têm desenvolvido con- seu psiquismo é de natureza semiótica, então a
cepções que abordam a diversidade dos apreensão do mundo se dá sobre bases
costumes e dos valores nas diferentes culturas, simbólicas; não importa qual seja o aporte
como Geertz (1978), rompendo com a noção de sensorial de estímulos, o importante é que haja
sujeito universal, idêntico ao longo da história e a possibilidade de significar e interpretar.
nas diferentes culturas; Elias (1994), que expôs
de maneira esplêndida a não universalidade das O ser humano, seja cego ou não, adquire
emoções humanas e a poderosa determinação conhecimento por meio de sistemas de símbolos,
do contexto social e político sobre a conduta sendo o mais importante deles a linguagem, e
humana e sobre a própria dinâmica psicológica isso é perfeitamente acessível aos cegos.
dos indivíduos, em O Processo Civilizador; Duby Portanto, o que é essencial para seu desenvol-
(1999), e ainda Chartier (1990), com a concepção vimento é ter acesso ao convívio social e participar
de que, além dos costumes e das condutas, o das práticas sociais de seu meio, de modo a
próprio espírito humano se modifica por influência apropriar-se das significações que permeiam
do contexto sócio-histórico, que as categorias sua cultura e poder compreender o mundo.

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CEGOS E CINEMA: REVENDO ALGUMAS CONCEPÇÕES SOBRE A CEGUEIRA 71

Finalizo este trabalho com uma frase lapidar FLETCHER, J.F. Spatial representation in blind
de Vygotsky, que lança luz sobre os caminhos children 3: effects of individual differences. Journal
que se devem oferecer às pessoas com deficiência of Visual Impairment and Blindness. V. 75,
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