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Revista Interfaces: Saúde, Humanas e Tecnologia. Ano 1, v. 1, n.3, jun, 2013.

Artigo Científico
Faculdade Leão Sampaio ISSN 2317 – 434X

DIFERENÇAS EXPERIENCIAIS ENTRE PESSOAS COM CEGUEIRA CONGÊNITA


E ADQUIRIDA: UMA BREVE APRECIAÇÃO

DIFFERENCES EXPERIENCIAIS BETWEEN PEOPLE WITH CONGENITAL AND


ACQUIRED BLINDNESS: ONE SOON APPRECIATION

ALMEIDA, Tamires. S.
Faculdade Leão Sampaio
ARAÚJO, Filipe. V.
Faculdade Leão Sampaio

RESUMO

A deficiência visual pode ser vista em diferentes graus, podendo ser caracterizada como
cegueira congênita e cegueira adquirida. A primeira refere-se àquela que a pessoa já nasce
com ela, ou seja, ocorre antes ou durante o nascimento. A segunda, a pessoa adquire em
qualquer outro período da vida. Desse modo, o trabalho tem como objetivo compreender as
diferenças experienciais entre pessoas com cegueira congênita e adquirida. Para a consecução
do objetivo utilizaram-se entrevistas semiestruturada, com uma amostra de duas (2) pessoas
cegas, sendo uma (1) com cegueira congênita e uma (1) com cegueira adquirida. Os dados da
pesquisa foram coletados mediante a gravação da entrevista semiestruturada que, em seguida,
foi descrita na integra. Após a obtenção das informações, os dados foram analisados com
base no método comparativo, sendo analisados em quatro categorias. Para assegurar o
anonimato dos entrevistados, estes foram caracterizados como João para o cego congênito e
Junior para o cego adquirido. Conclui-se que existem diferenças experienciais entre cegos
congênitos e adquiridos, uma vez que o cego congênito não apresenta sentimentos de perda,
pois ele nunca teve essa experiência, a cegueira para eles não é algo insuperável, trágico, pois
se desenvolveu e aprendeu sem esse sentido. Entretanto a cegueira adquirida causa uma
ruptura nos padrões já constituídos de comunicação, mobilidade, trabalho, recreação, e
sentimentos, acerca de si próprio, tornando-se uma experiência inevitavelmente traumática.

Palavras-chave: Experiência. Cegueira congênita. Cegueira adquirida

ABSTRACT

The visual deficiency can be seen in different degrees, being able to be characterized as
congenital blindness and acquired blindness. The first one mentions that one to it that the
person already is born with it, that is, occurs before or during the birth. Second, the person
acquires in any another period of the life. In this manner, the work has as objective to
understand the experienciais differences between people with congenital and acquired
blindness. For the achievement of the objective interviews had been used semistructuralized,
with a sample of two (2) blind people, being one (1) with congenital blindness and one (1)
ALMEIDA, Tamires. S
Rua José Raimundo Oliveira, n° 114. Grossos. Várzea Alegre, Ceará.

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with blindness acquired. The data of the research had been collected by means of the writing
of the semistructuralized interview that, after that, was described in integrates. After the
attainment of the information, the data had been analyzed with base in the comparative
method, being analyzed in four categories. To assure the anonymity of the interviewed ones,
these had been characterized as João for the congenital blind person and Júnior for the
acquired blind person. It is concluded that experienciais differences between congenital and
acquired blind people exist, a time who the congenital blind person does not present loss
feelings, therefore it never had this experience, the blindness for they is not something
insuperável, tragic, therefore it was developed and it learned without this direction. However
the acquired blindness cause a rupture in the consisting standards already of communication,
mobility, work, recreation, and feelings, concerning proper itself, becoming an inevitably
traumatic experience.

Keywords: Experience. Congenital Blindness. Acquired Blindness

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1 INTRODUÇÃO experienciais. Logo a pergunta que
instigou a realização da pesquisa foi: qual
As pessoas que nascem com a diferença experiencial entre pessoas que
deficiência visual, bem como as que nascem com deficiência visual e as que a
adquirem ao longo da vida, são adquirem ao longo da vida?
continuamente privadas de oportunidades Durante as pesquisas percebeu-se
de convivência com a família e seus que existem poucas publicações acerca do
próximos, da vida escolar, do trabalho, das tema, desse modo, o tema é relevante no
atividades de lazer e cultura, entre outros sentido de propor uma nova
(CUNHA; ENUMO, 2003). inteligibilidade ao conhecimento em
Para González (2007) é preciso questão, pois a temática ainda permanece
considerar, entre outros fatores, se a pouco investigada. Dessa forma o estudo
cegueira é congênita ou adquirida, pois um tem como objetivo compreender as
sujeito cego de nascença não é igual àquele diferenças experienciais entre pessoas com
que adquire essa condição ao longo da cegueira congênita e adquirida; investigar
vida. Em função desse momento, seus o que uma amostra de pessoas com
condicionantes pessoais e suas deficiência visual congênita e adquirida
aprendizagens serão completamente tem a dizer sobre a experiência de nunca
diferentes. Desse modo, sugere-se a ter tido visão e de ter perdido; comparar o
hipótese de que existem diferenças sentido captado das experiências vividas
qualitativas nas experiências de pessoas das pessoas com deficiência visual
que nascem com deficiência e as que as congênita e adquirida.
adquirem ao longo da vida, já que na Para a consecução do objetivo
deficiência congênita os indivíduos foram realizadas entrevistas
adquirem conhecimentos por meio de semiestruturadas, com uma amostra de
experiências que não incluem a visão, duas (2) pessoas cegas, sendo uma (01)
diferentemente dos que a adquiriram com cegueira congênita e uma (1) com
durante o ciclo evolutivo, pois de alguma cegueira adquirida. Os dados da pesquisa
maneira tiveram experiências visuais. foram coletados mediante a gravação da
Tendo em vista a observação da entrevista semiestruturada que, em
autora durante a vivência com pessoas seguida, foi descrita na integra. Após a
cegas, surge a necessidade de obtenção das informações, os dados foram
aprofundamento dos conhecimentos da analisados com base no método
mesma acerca da cegueira em termos comparativo, sendo analisados em quatro
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categorias para indicar a representação da pela dimensão biológica é, na verdade,
realidade vivida pelos participantes. Para fortemente influenciada pela dimensão
assegurar o anonimato dos entrevistados, cultural (MACEDO, 2008).
estes foram caracterizados com as siglas De modo geral, as pessoas com
SC (sujeito congênito) para o congênito e deficiência sentem-se discriminalizadas no
SA (sujeito adquirido) para o adquirido, contexto social, isso ocorre em função de
para citar trechos das falas no dois aspectos: primeiramente a lei que
desenvolvimento dos resultados da supostamente as protegem, mas ao mesmo
referente pesquisa. tempo as denomina como frágeis e
Assim a pesquisa contribuiu não só inferiores, e segundo pelo fato de serem
para o meio científico, mais também para a desrespeitadas por pessoas que não
sociedade, para o meio acadêmico, compartilham com as mesmas
profissionais de saúde e pacientes cegos, necessidades da pessoa com deficiência
pelo conhecimento de suas particularidades (BRUMER; PAVEI; MOCELIN, 2004).
e melhoria na qualidade da assistência e de Ainda para os autores essa
vida, favorecendo a inclusão social. inferiorização para com o deficiente não
parte apenas da sociedade, mas também do
2 REFERENCIAL TEÓRICO próprio contexto familiar, no qual a pessoa
deficiente na maioria das vezes é tratada
2.1 DEFICIÊNCIA VISUAL como alguém incapaz de realizar
atividades, ou decidir por si só, onde as
As pessoas com deficiência potencialidades da pessoa acabam por
costumam apresentar um conflito entre o serem subestimadas e isso tem como
que realmente são e o que pensam que são: consequência uma identidade social tardia.
“deficientes”. Isso ocorre pela visão social Segundo os dados do Instituto
que foi construída em torno da deficiência, Brasileiro de Geografia e Estatística
como sinônimo de doença (SOUZA, (IBGE), no Brasil o percentual de pessoas
2008). Assim, as pessoas com deficiência com deficiência é de aproximadamente
parecem estar mais sujeitas a condições de 24,6 milhões, dos quais 8,3% possuem
opressão social e estigmatização cultural, deficiência mental, 4,1% física, 22,9%
resultando em rejeição e exclusão social, motora, 48,1% visual e 16,7% auditiva
pela maioria dos povos. Desse modo o que (IBGE, 2000 apud MALHEIROS, 2009).
se observa é que a identidade do deficiente Desta forma, nota-se claramente que a
apesar de ser frequentemente justificada deficiência visual é a maior dentre as
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citadas pelo IBGE. Segundo Menescal harmonia com tudo o que está ao seu redor.
(apud TOSIM et al., 2008), a deficiência A pessoa cega tem a necessidade de
visual pode ser vista em diferentes graus, planejar, educar o seu corpo sem a
podendo ser caracterizada como cegueira percepção visual (AZZINI, 2010).
congênita e cegueira adquirida. A primeira
refere-se àquela que a pessoa já nasce com 2.2 CEGUEIRA ADQUIRIDA
ela, ou seja, ocorre antes ou durante o
nascimento. A segunda, a pessoa adquire Para Blank (1957 apud
em qualquer outro período da vida. AMIRALIAN, 1997) a cegueira adquirida
Assim, as diferenças entre cegos causa uma ruptura nos padrões já
congênitos e adquiridos se dão pelo constituídos de comunicação, mobilidade,
acontecimento de distintos modos de trabalho, recreação e sentimentos, acerca
representação, que resultam em diferentes de si próprio, tornando-se uma experiência
capacidades de processamento cognitivo. A inevitavelmente traumática. Existem dois
lacuna na apreensão dos estímulos devido tipos de cegueira adquirida: a cegueira
à ausência da percepção visual é uma das súbita e a progressiva. A primeira pode ser
principais dificuldades que os cegos divida em dois estágios: o choque imediato
congênitos enfrentam (CUNHA; ENUMO, e a recuperação subsequente, esse estágio
2003). consiste em despersonalização seguida de
Dessa forma é preciso considerar, depressão, parece ser uma defesa
entre outros fatores, se a cegueira é emergente contra a ameaça de dissolução
congênita ou adquirida. Para González do ego, os afetos são afastados para
(2007): emergir passo a passo por um ego em
Os sujeitos com deficiências visuais são pedaços.
heterogêneos, se levarmos em conta duas
características importantes: por um lado, o Nos casos de cegueira progressiva,
resíduo visual que possuem, e por outro, o
momento de aquisição de sua deficiência, o processo de despersonalização pode não
pois um sujeito cego de nascimento não é
igual àquele que adquire essa condição ao
ocorrer e a depressão não é severa, pois a
longo da vida. Em função desse momento, fase de lamentação acontece antes da
seus condicionantes pessoais e suas
aprendizagens serão totalmente diferentes cegueira, onde a pessoa tem um tempo
(GONZÁLEZ, 2007. p. 102).
para digerir suas perdas. Por um lado esse
Portanto, o individuo com
tipo de cegueira pode facilitar o acesso e
deficiência visual, seja ela congênita ou
apoio antes de a pessoa se tornar cega;
adquirida encontra dificuldades de
contudo pode causar um estado de
estabelecer uma convivência com
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contínua ansiedade pela ameaça de perder visual se aperfeiçoa, ou seja, em que a
a visão. acuidade visual da criança se iguala à do
Desse modo, verifica-se que nas adulto. Perdendo a visão até essa idade,
situações de cegueira progressiva o não existe retenção de imagens visuais,
impacto da perda de visão pode estar pois a criança não poderá ter como base
parcialmente ausente. No entanto, os uma memória visual para suas construções
sofrimentos implicados nos casos em que a mentais (ORMELEZI, 2006).
perda de visão é súbita, de modo abrupto, Acredita-se que na vida de pessoas
como uma fulminação em que largamente que nascerem cegas inexiste a premência
se cumprem as denotações psicológicas, das ideias de perda, de tragédia e de
associam-se à ideia de experiência infortúnio, não há um mundo
traumática. empobrecido, pois nele se pode apreender,
A perda da visão pode ocorrer por não existindo um constrangimento em
diversas condições, várias formas, e em relação aos modos de realizar, nem tão
diferentes faixas etárias. Em alguns casos a pouco uma confrontação com as coisas que
cegueira é causada por doenças que parecem impossíveis de fazer. Portanto,
atingem o aparelho ocular, como por nos cegos congênitos não há uma
exemplo, o glaucoma, a catarata e as experiência de uma ruptura e/ou perda,
distrofias periféricas e centrais, e as que pois as privações provocadas pela cegueira
são associadas a problemas orgânicos, são apreciadas na relação com as
como diabete, ou síndromes neurológicas experiências de quem vê, permitindo uma
que afetam o nervo óptico. Nestes casos a maior adaptação pessoal ao encontro das
cegueira é progressiva. No que diz respeito capacidades que coabitam com a cegueira
à cegueira adquirida súbita, as principais (MARTINS, 2006).
causas são por acidentes, que podem Ainda de acordo com o autor, os
acontecer em todas as idades (BRITO; cegos de nascença apresentam uma noção
VEITZMAN, 2000). do lapso que os separam de quem vê, e
esse é presente no cotidiano de quem
experiência, na comparação com os outros,
2.3 CEGUEIRA CONGÊNITA e na percepção que eles têm em relação às
facilidades que a visão possibilita na
A cegueira congênita se manifesta apreensão de elementos da realidade, e na
do nascimento até os cinco anos de idade, efetivação de algumas atividades.
pois é nessa faixa etária que a maturação
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As causas de cegueira congênita se sentimentos, o que pode gerar atitudes
referem a condições genéticas (exemplos: preconceituosas que influenciam
distrofias retinianas hereditárias, atrofia diretamente nas relações interpessoais,
óptica, microftalmia, catarata e glaucoma ocasionando o sofrimento psíquico que
congênito, retinoblastoma) ou adquiridas impede a manifestação própria de cada ser.
no período intrauterino (rubéola, Isso porque as pessoas percebem a
toxoplasmose, citomegalovírus, exposição cegueira como escuridão, impossibilidade,
a tóxicos como fumo, álcool, drogas, tristeza, solidão e/ou habilidades
medicamentos ou radiação, distúrbios superdotadas. Desse modo, o meio social
metabólicos) ou extrauterino (hemorragia tende a se projetar no cego, ou seja, como
intracraniana, asfixia intraparto, oftalmia se sentiriam se fossem cegos. Tais
neonatal - conjuntivite, retinopatia da projeções dizem respeito aos estigmas e
prematuridade) (BRITO; VEITZMAN, estereótipos da representação da cegueira.
2000) Para Vygotsky (1993 apud
ORMELEZI, 2000), a cegueira não é
2.4 POSSÍVEIS IMPACTOS apenas a ausência da visão, pois requer
PSICOSSOCIAIS DA CEGUEIRA uma total reestruturação do organismo
como um todo, assim cria uma nova matriz
De acordo com Ormelezi (2006), a da personalidade, pois refaz e forma a
cegueira não implica apenas nos aspectos mente do individuo, estimula novas forças
orgânicos, mas também nas questões e reorienta o desenvolvimento da psique,
psicossociais, que por sua vez desencadeia de maneira criativa e orgânica. Desta
aspectos na subjetividade. A dimensão forma a cegueira traz uma vida nova, que
psicossocial da cegueira provoca atitudes e dá origem a novas habilidades, a estrutura
crenças referentes a um imaginário orgânica e suas funções se reorganizam de
coletivo, que percebem o cego como maneira singular.
coitado, pecador ou como sábio e isso No entanto, a cegueira causa
repercute sobre a constituição e o alterações nas formas sociais de conduta,
desenvolvimento psíquico da pessoa cega pois todas as características psicológicas
que se relaciona com um mundo instituído da pessoa com deficiência têm como base
pela visão. o social e não o biológico. Portanto tornar-
Ainda para a autora supracitada, as se cego é perder valor perante os outros e
construções sociais acerca da cegueira de si, ser impossibilitado de operar diante
regem as imagens, conceitos e do sistema de valores de todos, e isso pode
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provocar um esvaziamento, pois é o juízo qualitativa. As pesquisas qualitativas não
dos outros que possibilita a construção do buscam enumerar ou medir eventos, não
eu (LIRA; SCHLINDWEIN, 2008). empregam instrumentos estatísticos para
Observa-se que a deficiência não só a analisar os dados. Baseiam-se na produção
visual, mas todas as outras ostentam na de sentido mantido entre pesquisador e
sociedade uma diferença que é considerada pesquisado, considerando não só o que o
uma desvantagem, na qual a pessoa cega sujeito fala, mas também o sentido dessa
fica tão restrita à limitação visual, que fala. O material necessário para a
deixa de ser vista como um ser humano realização da pesquisa qualitativa é o relato
integral e passa a ser percebida das vivências do cotidiano em todas as
frequentemente como um ser imperfeito, relações desenvolvidas (REY, 2005).
frágil, incapaz e faltante. Na pesquisa descritiva os fatos são
É certo que a cegueira impõe observados, registrados, analisados,
limites e consequentemente demanda interpretados, sem a interferência do
adaptações, pois acredita-se que na vida pesquisador, ou seja, tomar conhecimento
cotidiana a visão é o sentido mais do que, com quem, como e qual a
importante e usado. Entretanto, o cego frequência com que um fenômeno ocorre,
possui infinitas possibilidades de conhecer expõe as características de determinada
o mundo em que vive por meio dos outros população ou fenômeno, estabelece
sentidos. Desse modo, o cego tem correlações entre variáveis e define sua
capacidades de desenvolvimento como natureza (FERNANDES; GOMES, 2003).
qualquer pessoa, mas esse processo não se A pesquisa exploratória é o passo
dá de maneira automática, como uma inicial pela experiência e auxílio que traz
substituição de um sentido por outro, pois na formulação de hipóteses para
se trata de um processo de aprendizagem posteriores pesquisas, ou seja, acontece
como outro qualquer. (NUNES; antes do planejamento formal. Busca
LOMONACO, 2008). proporcionar maior familiaridade com o
problema, visando torná-lo explícito, tendo
3 METODOLOGIA como objetivo principal o aprimoramento
de ideias ou a descoberta de intuições
3.1 DELINEAMENTO DA PESQUISA (GIL, 2009).

O estudo se caracterizou como 3.2 MÉTODO DE COLETA DE DADOS


descritivo-exploratório de abordagem
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Para a realização da pesquisa, foi
utilizado como método de coleta de dados 3.4 POPULAÇÃO
a entrevista semiestruturada. A entrevista é A amostra do estudo foi construída
um excelente instrumento para coletar por duas (2) pessoas cegas, ambas do sexo
informações, sendo um dos métodos mais feminino, sendo uma (1) com cegueira
utilizados para a coleta de dados, pois congênita e uma (1) com cegueira
permite a obtenção de dados dos mais adquirida.
diversos aspectos da vida social, oferece Os critérios de inclusão foram:
flexibilidade, posto que o entrevistador sujeitos cegos, ambos os sexos; maiores de
pode esclarecer o significado das 18 anos, que concordem voluntariamente
perguntas, possibilita captar a expressão em participar da pesquisa, mediante
corporal do entrevistado, bem como a assinatura do termo de Consentimento
tonalidade de voz e ênfase nas respostas Livre e Esclarecido. Os critérios de
(GIL, 2009). exclusão foram: apresentarem dificuldades
As entrevistas semiestruturada emocionais para responder o guia, algum
utilizam um roteiro simples que norteia transtorno mental que impeça a
através dos princípios tópicos, oferecendo participação na pesquisa e desistir de ser
liberdade pra o pesquisador fluir com a participante da entrevista.
pesquisa para a direção que lhe possibilite
explorar amplamente o assunto pesquisado 3.5 PROCEDIMENTOS DE COLETA DE

(MARCONI; LAKATOS, 2006). DADOS

3.3 LOCAL Os dados da pesquisa foram


coletados mediante a gravação da

A pesquisa foi realizada na cidade entrevista semiestruturada, em seguida a

de Várzea Alegre/Ceará, que está distante entrevista foi descrita na integra. Ressalta-

467 km de Fortaleza compreendendo uma se que, após a análise dos dados, a

área de 835,71 km2 e uma população total gravação foi incinerada.

de 37.740 habitantes (VÁRZEA ALEGRE,


2010). Amostra foi selecionada 3.6 MÉTODO DE ANÁLISE DE DADOS

aleatoriamente, em ambientes públicos,


sendo realizada com pessoas cegas que A análise de dados foi feita com

obedeceram aos critérios de inclusão e base nas informações adquiridas pelos

exclusão da pesquisa. sujeitos da pesquisa, mediante a entrevista


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semiestruturada. A análise teve como base desenvolvimento dos resultados da
o método comparativo que procede pela referente pesquisa.
investigação de indivíduos, para ressaltar João nasceu com visão, mas foi
as diferenças e semelhanças entre eles, privado com 1 ano e seis meses de vida,
possibilita o estudo comparativo de deste modo o mesmo é considerado cego
grandes agrupamentos sociais (GIL, 2009). congênito, pois segundo Ormelezi ( 2006)
3.7 COÉTICA a cegueira congênita se manifesta do
nascimento até os cinco anos de idade. A
A pesquisa foi realizada mediante o cegueira teve como causa “dor dóia” (não
consentimento dos participantes da foi encontrado o significado dessa doença).
pesquisa. A pesquisa seguiu as questões O SC é casado, tem filhos, não trabalha e o
éticas contidas na Resolução 196/96 do nível de escolaridade é fundamental
CNS, que houve uma garantia de sigilo e incompleto.
integridade moral e que existiu um termo Junior perdeu a visão aos 36 anos,
de consentimento livre e esclarecido. sendo acometido por um problema na
retina, chamado retinose pigmentar que
4 RESULTADOS E DISCUSSÃO segundo Soares (2011) é um grupo de
desordens que são caracterizadas por
A pesquisa foi realizada com dois disfunção progressiva, perda celular e
(2) sujeitos cegos, que foram escolhidos eventual atrofia do tecido retiniano. O
aleatoriamente. Os dados levantados acometimento inicial dos fotoreceptores
permitiram à pesquisadora ter acesso a leva à destruição das camadas internas
algumas diferenças experienciais entre retinianas. Junior é casado, não tem filhos,
cegos congênitos e adquiridos. A partir dos o nível de escolaridade é ensino médio
dados colhidos mediante entrevista, os incompleto.
mesmos foram analisados em quatro
categorias para indicar a representação da 4.1 LIMITAÇÕES DE LOCOMOÇÃO E
realidade vivida pelos participantes. Para MOBILIDADE
assegurar o anonimato dos entrevistados na
citação de trechos de suas falas no Por meio dos dados obtidos,
desenvolvimento dos resultados estes observou-se que as pessoas cegas
foram caracterizados como João para o dependem da ajuda de outras para se
cego congênito e Junior para o cego locomover, encontrar ruas e endereços,
adquirido, para citar trechos das falas no
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obstáculos e outras referências que “Fiz curso de orientação e mobilidade, eu
ando com a minha bengala” (Junior).
necessitam da visão.
“Ando com uma companhia, pegado na “Quando eu era pequena minha mãe
mão” (João). ensinou, então para lugar perto eu vou
sozinha” (João).
“Eu sempre procuro alguém pra me levar”
(Junior). No relato dos sujeitos verificou-se
que o cego congênito desenvolve a
Nota-se que tanto o cego congênito
capacidade de se locomover sem realizar
quanto o adquirido se utilizam da
cursos de orientação para auxiliá-lo no
experiência dos videntes para ter acesso às
desenvolvimento motor e de locomoção.
significações da cultura e participar das
De acordo com Nakata e Yabe (2001 apud
práticas sociais. Para Merleau-Ponty (1999
AZZINI, 2010), o sujeito com cegueira
apud SOUZA, 2008. p. 55) “uma pessoa
congênita não exibe oscilação postural e
com visão pode mediar o mundo a uma
perda do controle do equilíbrio, pois estas
pessoa cega, pois ver é entrar em um
pessoas nunca tiveram elementos visuais e,
mundo que se mostra atrás de mim e dos
portanto, desenvolveram o sistema motor e
outros”, pois é sendo no mundo com outros
a capacidade de se locomover sem o
homens e outros seres que o homem se
sentido da visão.
projeta e essa relação é indissociável da
Percebe-se assim que João sente-se
subjetividade e intersubjetividade que se
mais seguro, confiante, com menos medo,
formam pela retomada das experiências
possivelmente isso aconteça pela maior
passadas e das experiências presentes, ou
adaptação pela qual o mesmo passou
seja, da experiência do outro na minha
durante o desenvolvimento, provavelmente
(SOUZA, 2008).
recebeu as estimulações necessárias, neste
Considera-se, assim, que o cego
caso por parte da mãe. Isso fica claro
tem a possibilidade de usar a visão de outra
quando João menciona:
pessoa como instrumento para ver,
“Quando eu era pequena minha mãe
possibilitando a formação de uma
ensinou” (João).
personalidade. No entanto, a pessoa cega
Já para o cego adquirido, é
deve ser orientada e passar por devidos
perceptível que o mesmo necessita de uma
treinamentos e vivências que possam
reestruturação para estabelecer novas
auxiliá-la na busca da melhora da
estratégias para contornar essa falha
qualidade de vida e na reorganização das
sensorial, de maneira a se reorganizar e
habilidades motoras (LIRA;
reeducar o corpo na procura de novas
SCHLINDWEIN, 2008).
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habilidades motoras. É necessário passar sujeitos da pesquisa estão relacionadas
por cursos de treinamentos para aprender a com o deslocamento, seja pela falta de
se locomover sem a visão. Contudo, na acessibilidade, seja pela dependência de ir
visão de Azzini (2010), a pessoa que e vir, pois ambos necessitam da ajuda de
adquiriu a cegueira tem a possibilidade de outros.
associar imagens previamente instituídas “Quando é cinco horas eu já tô acordada
pra cuidar na luta e quando é no horário
para desenvolver algum tipo de habilidade
de tomar banho eu vou só, não encontro
motora. dificuldades, faço toda a luta da casa
sozinha, que quando eu era pequena
Observa-se que no que diz respeito
minha mãe ensinou eu a fazer essas coisas
à mobilidade e locomoção, o cego tudinho” (João).
adquirido diferencia-se do cego congênito, “O serviço lá em casa faço com
pois o primeiro já teve experiências visuais tranquilidade, eu lavo, passo, cozinho,
cuido de casa, esposo, isso aí eu faço com
o que permite criar imagens das ruas, das tranquilidade, eu me saio bem, graças a
calçadas, das praças, da casa onde mora, Deus” (Junior).
dentre outros. O segundo imagina como A partir dos relatos, notou-se que
sejam essas vias sem nunca tê-las visto, ou tanto João como Junior não apresentam
seja, fazem associações não visuais limitações na realização das atividades
constituídas por adaptação à compreensão pessoais realizadas no dia-a-dia, ambos
de mundo, partindo dos outros sentidos. A apresentaram autonomia. No entanto, a
partir dos relatos dos sujeitos nota-se que pessoa cega, independente de ser congênita
os cegos adquiridos têm uma percepção ou adquirida, tem competências para se
diferente em relação às dificuldades de desenvolver como qualquer pessoa, desde
locomoção e mobilidade. que lhe sejam oferecidas as condições
“Há falta de acessibilidade, apropriadas para tal. Isto é, é
principalmente nas ruas, nos transportes,
enfim, em todo lugar, porque a gente não imprescindível que o ambiente onde ela
vê acessibilidade pra nada” (Junior). conviva seja adaptado para sua limitação e
“A dificuldade é que eu não enxergo pra lhe permita o acesso às informações
andar só, eu só posso andar assim em visuais por outras vias. Assim o
lugar pertinho. A dificuldade é só a vista
mesmo, porque os calçamentos não é rompimento das barreiras em torno da
ruim” (João). acessibilidade é essencial para permitir que
Por meio da análise dos essas pessoas sejam incluídas na sociedade
depoimentos, observou-se que as (NUNES; LOMONACO, 2008).
principais limitações vivenciadas pelos

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4.2 INCLUSÃO/EXCLUSÃO NO Nos relatos de João e Junior
CONTEXTO SOCIAL E FAMILIAR observou-se que no contexto familiar de
ambos, não existe uma diferenciação para
Considerou-se neste item a com os mesmos, pelo contrário, nas falas é
percepção dos sujeitos da pesquisa em notável a autonomia diante das relações
relação à inclusão do cego tanto na familiares, assim não apresentaram
sociedade quanto no contexto familiar. exclusão e superproteção por conta da
Assim Lira e Schlindwein (2008) trazem cegueira. Contudo, na convivência social,
que na sociedade atual a visão tem uma as pessoas cegas são vítimas de
função significante nas relações com o estereótipos e discriminações, classificadas
ambiente, pois grande parte da como desviantes do que se considera o
categorização da realidade toma como base padrão de normalidade dos seres humanos.
o meio perceptivo, que é inacessível para a Conforme Ventura (2001 apud BRUMER;
pessoa com deficiência visual. PAVEI; MOCELIN, 2004) é comum
Ainda para as autoras acima expressões como “tão bonitinho e cego”,
citadas, qualquer distorção, seja a cegueira, “pobrezinho coitado” e “coitado do
ou outra modalidade de deficiência, ceguinho”.
especialmente, nas relações com as “Assim de pena, de achar que a gente é
coitadinho, geralmente isso acontece,
pessoas. Até mesmo na família, a pessoa
aquela coisa ainda de ter pena do
considerada diferente é dado um ceguinho, da ceguinha na rua isso
acontece muito” (Junior).
tratamento exclusivo, distinto do que se dá
aos outros, e isto não acontece unicamente Ao realizar a análise dos
nas famílias em que esta pessoa é depoimentos, em relação ao preconceito e
considerada uma carga pesada e um à exclusão, chamou a atenção a ênfase
castigo, mas também quando é rodeado de negativa presente nos depoimentos de João
um amor dobrado ou um cuidado com expressões envolvendo a palavra
superprotetor que o afasta dos demais. “não”. Notou-se que o sujeito esquiva-se
“Meus irmãos nunca me xingaram, meus em relação ao assunto abordado. Esse fato
filhos tudo gosta deu se eu disser quero ir pode evidenciar dificuldades ou
pra uma canto meus filhos me
acompanham eles nunca dizem que não impossibilidades em lidar com situações de
vão” (João). exclusão.
“Eu tenho uma família maravilhosa, que Não... (João)
graças a Deus me deu todo suporte, me
tratam como uma pessoa normal”
(Junior).
Rev. Interfaces. Ano 1, v. 1, n.3, jun, 2013.
Assim de acordo com Santos experienciar e experimentar as coisas;
(2007), as dificuldades não são elencadas procura e descobre sua organização
apenas pela cegueira propriamente dita, autônoma, coordenando-se nas interações
mas também da relação com o outro, pois é com os demais indivíduos, deficientes
a partir dessa relação que a subjetividade visuais ou não; vive sua existência junto
do sujeito é constituída. Desse modo o aos fenômenos que no momento o
despreparo e o desconhecimento da circundam.
sociedade no que diz respeito ao cego, No relato de Junior, percebeu-se
criam preconceitos, sentimentos de que o mesmo não apresenta dificuldades
aceitação e inclusão no meio social. em se relacionar com o mundo e com os
outros, procura estar se atualizando, para
4.3 RELACIONAMENTO COM O não ficar perdido nesse mundo dominado
MUNDO E COM OUTRAS pelos videntes, busca conhecer e se
PESSOAS relacionar com os outros, sem colocar a
deficiência como ponto determinante para
Nessa categoria, buscou-se o isolamento e a não socialização. O
compreender como o cego se relaciona sujeito em questão apresentou segurança
com o mundo e com os outros, já que na maneira como interage com outros,
atualmente atribui-se aos olhos uma busca relacionar-se da forma mais normal
enorme parte das experiências na relação possível.
com o mundo e com o outro. Diante disso, “Bem... Principalmente na informática, a
gente tem um grupo de amigos do Brasil
começaram a surgir alguns
inteiro, fora do país e assim todo dia eu
questionamentos: o que cego faz para estou em contato com as pessoas, onde eu
sei que tem alguma coisa que eu possa
tornar-se parte de um mundo que é todo
fazer a respeito da inclusão, como no caso
instituído, projetado e habitado em sua você agora, essa entrevista é muito
importante, eu gosto de participar das
maior parte por videntes? Como ocorre a
coisas, onde eu sei que tem alguma coisa
relação entre o cego e o vidente? Como o eu tento levar a vida o mais normal
possível, me engajar em grupos,
cego se relaciona com outras pessoas? Tais
associações. Eu tenho me socializar o
questionamentos possibilitaram a melhor possível” (Junior).
compreensão da maneira de relacionar-se No que diz respeito à forma de
da pessoa cega. relacionar-se com o mundo e com outro,
Desse modo, Porto (2002) sugere João não apresentou dificuldades em se
que o cego, ao constituir relação com o relacionar com outras pessoas. No entanto,
mundo, cria e recria atos efetivos de
Rev. Interfaces. Ano 1, v. 1, n.3, jun, 2013.
na relação com o mundo o mesmo manteve sociedade, nunca frequentou a escola e não
o silêncio, esquivando-se, apresentando gosta de sair de casa.
insegurança, medo e falta de Para Porto (2002), o cego tem uma
conhecimento, isso pode se dar pela falta percepção própria do mundo, que é igual à
de escolaridade do mesmo. de qualquer outra pessoa. Essa percepção
De acordo com Amiralian (2003), o individual tem como base as experiências
cego congênito, na relação com o mundo, que vão sendo acumuladas ao longo da
terá experiências somáticas peculiares, ou vida e a diferença é que o deficiente visual
seja, adentrará em contato com o ambiente constrói o mundo sem a percepção visual.
externo por meio do conjunto sensorial que Ressalta ainda que o deficiente visual não
lhe foi concebido, isso porque na ausência deve ser visto como alguém inferior, mas
da visão, os outros sentidos (audição, tato, sim como possibilidade de estar no mundo.
olfato e paladar) passam a funcionar sem
as informações que ela proporciona, pois 4.4 IMAGEM CORPORAL
não pode ser considerada separadamente e
sim por sua contribuição ao funcionamento A cegueira atribui às pessoas
sensorial global, e seu psiquismo terá limitações na maneira como percebem o
como alicerce essas vivências. próprio corpo. Merleau-Ponty (1975 apud
Assim, tanto Junior como João MASINI, 2003) considera o sujeito no
consegue manter relações saudáveis com mundo como corpo no mundo, sendo o
os outros, a diferença é que o primeiro é corpo o sujeito da percepção e não apenas
mais comunicativo, busca novas relações, a consciência separada da experiência
participa de associações, se utiliza da vivida. Portanto, o corpo é reflexo da
internet, que é um dos melhores meio de experiência perceptiva. O autor acredita
comunicação, talvez isso deva aos que uma pessoa que nunca enxergou tem
ambientes que o mesmo costuma uma experiência perceptiva diferente de
frequentar, pois é alfabetizada e faz curso uma que ficou cega ao longo da vida.
de inglês, isso pode ter possibilitado essa Desse modo, a partir das experiências que
maior inter-relação com os outros e com o lhes foram concebidas, cada uma delas foi
mundo. O segundo, apesar de conseguir se conhecendo o mundo e é por meio da
relacionar com outras pessoas, apresentou- reflexão do que se é vivenciado e da
se mais pacato, não procura estar em experiência perceptiva que surgem os
contato com o meio, se esquiva da significados da pessoa no mundo.

Rev. Interfaces. Ano 1, v. 1, n.3, jun, 2013.


Desse modo, ao ler acerca do corpo defasagem na percepção do próprio corpo.
do cego surgiu a necessidade de conhecer Diante do exposto, surgem alguns
as experiências tanto do congênito quanto questionamentos: Como o cego congênito
do adquirido, buscou-se compreender imagina os órgãos do corpo? Como é para
como cada um percebe seu corpo. Por o cego sentir o corpo que não vê? Como é
meio do relato pode-se evidenciar que o e como acontece, para estas pessoas cegas,
João não tem uma percepção do corpo “o olhar”, “o ver”, o revelar e o perceber o
enquanto estética, não construiu a imagem corpo?
do seu próprio corpo. Contudo, notou-se claramente a
“Eu percebo quando tô grudado percebo o diferença entre as experiências de João e
mau cheiro de suor, me sinto bem” (João).
Junior, o primeiro nunca teve uma
De acordo com Rebouças (2005), percepção visual do corpo, apenas com o
os cegos, assim como os videntes, não tato quando tem que realizar as
estabelecem sozinho o esquema corporal. necessidades de higiene. O segundo teve
Nos cegos congênitos, além da necessidade essa visão do corpo o que possibilitou uma
do toque corporal, há também a criação da imagem corporal, no entanto
necessidade de conversa verbal, com os esse processo é mais doloroso, requer uma
pais ou responsáveis, a respeito da imagem adaptação, uma reconstrução da imagem
do seu próprio corpo. Entretanto, se esta corporal. Junior em seu relato apresenta
conversa não for bem estabelecida, pode uma percepção visual do corpo nos moldes
ocorrer a perda de elementos não falados estéticos, o mesmo se preocupa com o
da comunicação oral como posturas, gestos ganho de peso, com a mudança do corpo,
e expressões faciais, onde a imagem do procura manter o corpo da mesma forma
corpo do cego congênito poderá ficar de quando ainda tinha a visão, pois com
corrompida. ele se sente bem.
Sobre este aspecto poderia se “Não, não, minha percepção de copo não
pensar que pelo fato de João ter se mudou, porque a gente cria a imagem e o
tato da gente, até mesmo ajuda. Eu
desenvolvido em um contexto familiar converso com você aqui, eu já crio uma
muito pobre, onde buscavam a imagem de você, e geralmente o cego ele
acerta como são as pessoas. Eu tenho essa
sobrevivência, a mãe sempre deu ênfase sensibilidade, a gente usa muito o tato,
aos afazeres do lar e talvez o sujeito em num me preocupo muito assim com o
aparente das pessoas, mais eu tento criar
questão nunca tenha tido um diálogo com aquela imagem. Meu corpo eu acho que da
seus pais sobre o desenvolvimento do época que eu ceguei pra cá está da mesma
forma porque eu uso muito o tato, procuro
corpo, o que pode ter ocasionado essa está em forma e tudo” (Junior).
Rev. Interfaces. Ano 1, v. 1, n.3, jun, 2013.
Dessa forma, Junior em seu relato Desse modo, no que diz respeito à
apresentou segurança em relação à percepção corporal do cego, é
construção da imagem corporal, poderia se imprescindível levar em consideração se a
pensar que isso acontece pelo fato de o cegueira é congênita ou adquirida, pois
mesmo ser cego progressivo o que pode ter uma pessoa que nasceu cega e outra que
possibilitado uma perda menos sofrida, perde a visão apresentam experiências
pois teve tempo para se adaptar a essa nova perceptivas diferentes, ambas foram
modalidade de existir e se perceber percebendo e se relacionando com o
enquanto corpo. mundo por meio dos sentidos de que
Ao refletir sobre a percepção da dispunham, assim, consequentemente,
corporeidade do cego surge uma reflexão criam uma percepção corporal diferente.
acerca do corpo na atualidade, pois
vivemos em uma sociedade do belo, onde 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
o corpo perfeito é aquele que apresenta as
condutas e as regras estéticas. Para Porto Durante o desenvolvimento da
(2002), o corpo nos moldes da cultura pesquisa, percebeu-se que o tema era
existente não se desenvolve sem o papel da pouco desenvolvido, não dispondo de
visão, pois o corpo ocupa um lugar de produções que possibilitassem a
visibilidade, não se trata de um corpo que fundamentação teórica, contemplando as
se esconde. Entretanto o autor acredita que diferenças experienciais entre cegos
o corpo na ausência da visão se constitui congênitos e adquiridos, o que se percebe é
por outros recursos sensitivos, como por que as pesquisas existentes embasam as
exemplo o tato, assim, o cego tem um diferenças entre cegos e videntes.
modo diferente de construir uma imagem Com base nisso o presente estudo
de corpo, ou seja, o modo de subjetivação pretendeu compreender as diferenças
é diferente. experienciais entre cegos congênitos e
Por meio do relato de Junior adquiridos. A partir da experiência de
descrito acima torna-se perceptível que é campo chegou-se a algumas considerações
através do tato que o mesmo integra as importantes: primeiramente é impossível
experiências e constrói uma memória compreender a experiência do cego
pessoal em relação ao corpo, é obvio que a centrado na falta, ou comprando a
relação com o mundo, auxilia na percepção experiência dele com a sua, o cego deve
dos eventos corporais, bem como na ser percebido enquanto sujeito que se
formação do eu. constitui subjetivamente diferente, pois
Rev. Interfaces. Ano 1, v. 1, n.3, jun, 2013.
não tem a visão como referência. Deste Verificaram-se também diferenças
modo verificou-se que existem diferenças entre o cego congênito e adquirido na
nas experiências dos cegos congênitos e percepção do corpo notou-se claramente
adquiridos, no entanto as diferenças não que pelo fato de o primeiro nunca ter tido
foram tão preponderantes uma vez que o uma percepção visual do corpo, não
cego adquirido era progressivo, e essa conseguiu criar uma percepção do corpo
modalidade de cegueira não se diferencia enquanto estética, não construiu a imagem
muito do cego congênito, pois ambos não do seu próprio corpo. O segundo teve essa
apresentam uma ruptura nos padrões já visão do corpo o que possibilitou a criação
existentes. da imagem corporal nos moldes estéticos,
Assim percebeu-se que cego o mesmo se preocupa com o ganho de
congênito não apresenta sentimentos de peso, com a mudança do corpo, procura
perda, pois ele nunca teve essa experiência, manter o corpo da mesma forma de quando
a cegueira para eles não é algo insuperável, ainda tinha a visão.
trágico, pois se desenvolveu e aprendeu No entanto nos relacionamentos
sem esse sentido. O cego adquirido tanto João quanto o Junior não apresentou
progressivo não é tão diferente uma vez dificuldades em se relacionar com outras
que ele não apresenta um quebra na pessoas, ambos mostraram autonomia na
experiência já existente, é notável que ele relação familiar. Porém Junior expôs mais
sofra mais do que o congênito, pois requer segurança na relação com o mundo, o
toda uma reorganização e reestruturação mesmo procura estar se atualizando, para
dessa nova forma de ser no mundo. não ficar perdido nesse mundo dominado
No que diz respeito à locomoção e pelos videntes, sem colocar a deficiência
mobilidade do cego percebeu-se que como ponto determinante para o
existem algumas diferenças nas isolamento e a não socialização. No que
experiências de João e Junior, o primeiro diz respeito à forma de relacionar-se com o
sente-se mais seguro, confiante, com mundo o mesmo manteve o silêncio,
menos medo. Já o cego adquirido necessita esquivando-se, apresentando insegurança,
de uma reestruturação para estabelecer medo e falta de conhecimento, isso pode se
novas estratégias para contornar essa falha dar pela falta de escolaridade do mesmo.
sensorial, de maneira a se reorganizar e Portanto conclui-se que existem
reeducar o corpo na procura de novas diferenças nos modos de experienciar a
habilidades motoras. cegueira congênita e adquirida, pois um
sujeito cego de nascimento não é igual
Rev. Interfaces. Ano 1, v. 1, n.3, jun, 2013.
àquele que adquire essa condição ao longo BRITO; P. R. VEITZMAN, S. Causas de
cegueira e baixa visão em crianças. ARQ.
da vida. Em função desse momento, seus
BRAS. OFTAL. v. 63, n.1, p. 49-54, fev.
condicionantes pessoais e suas 2000.
aprendizagens serão totalmente diferentes,
BRUMER, A.; PAVEI, K.; MOCELIN,
assim o cego adquirido sofre mais do que o D. G. Saindo da “escuridão”: perspectivas
da inclusão social, econômica, cultural e
congênito, isso porque o que adquire ao
política dos portadores de deficiência
longo da vida seja de maneira súbita ou visual em Porto Alegre. Sociologias, Porto
Alegre, v. 6, n. 11, p. 300-327, jan/jun.
progressiva, necessita se adaptar ao mundo
2004.
sem o sentido mais importante. O
CUNHA, A. C. B.; ENUMO, S. R. F.
congênito não consegue diferenciar a
Desenvolvimento da criança com
experiência de ser cego ou não, por que ele Deficiência visual (dv) e interacção mãe-
criança: Algumas considerações.
nunca teve a visão, deste modo ele não
Psicologia, Saúde & Doenças, Rio de
sofre tanto, pois não sabe como é ser Janeiro, v. 4, n. 1, p. 33-46, jul. 2003.
vidente.
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