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Sobre Ser São em Lugares Insanos


D. L. Rosenhan

Se a sanidade e a insanidade existem, como podemos reconhecê-las?


A questão não é nem fantasiosa nem insana. Não importa o quanto nós possamos estar
pessoalmente convencidos de que podemos distinguir o normal do anormal, as evidências desta
distinção não são sempre determinantes. É comum, por exemplo, lermos sobre julgamentos de
assassinato onde os psiquiatras da defesa e os da promotoria não chegam a um acordo em relação à
sanidade do réu. Freqüentemente, existem muitos dados conflitantes a respeito da integridade,
utilidade, e significado de termos como “sanidade”, “insanidade”, “doenças mentais”, e
“esquizofrenia”. Finalmente, em 1934, Benedict já sugeria que a normalidade e a anormalidade não são
universais. O que é visto como normal em uma cultura pode ser visto como aberrante em outra. Então,
as noções de normalidade e anormalidade não podem ser tão precisas quanto as pessoas acreditam que
sejam.
Levantar questões referentes à normalidade e à anormalidade não significa, de nenhuma forma,
questionar o fato de que alguns comportamentos são errados ou estranhos. Assassinato é errado. Então
as alucinações também são. Levantar tais questões tampouco nega a existência da angústia pessoal que
é freqüentemente associada com “doença mental”. A ansiedade e a depressão existem. O sofrimento
psicológico existe. Porém a normalidade e a anormalidade, a sanidade e a insanidade, e os diagnósticos
que fluem entre estas podem ser menos substanciais do que muitos acreditam que sejam.
No fundo, a questão de que o são pode ser distinguido do insano (e se os graus de insanidade
podem ser distinguidos um do outro) constitui um simples problema: as características marcantes que
determinam o diagnóstico residem nos próprios pacientes ou nos ambientes e contextos em que os
observadores as encontram? Bleuler e Kretchmer, os formadores de uma das edições do Diagnostic
and Statistic Manual da Associação Americana de Psiquiatria, têm reforçado a crença de que pacientes
apresentam sintomas os quais podem ser categorizados e - implicitamente - que os sãos podem ser
distinguidos dos insanos. Recentemente, contudo, essa crença tem sido questionada. Baseado
parcialmente em considerações teóricas e antropológicas, mas também em filosóficas, legais, e
terapêuticas, vem crescendo a visão de que a categorizarão psicológica de doenças mentais usada de
forma taxativa é prejudicial, enganosa, e pejorativa. Nesta perspectiva, os diagnósticos psiquiátricos
estão nas mentes dos observadores e não são resumos válidos das características mostradas pelos
observados.
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Propusemo-nos a investigar como se dá a decisão de qual dos possíveis diagnósticos é mais


exato ou aproximado submetendo pessoas normais (isto é, pessoas que não sofrem e nunca sofreram
sintomas significativos de desordens psiquiátricas) à admissão em hospitais psiquiátricos, e observando
se elas seriam ou não descobertas como saudáveis. Se a sanidade de tais pseudopacientes fosse sempre
detectada, existiria evidência prima facie de que um indivíduo são pode ser destinguido do contexto
insano em que ele é encontrado. A normalidade (e presumidamente a anormalidade), seria tão distinta
que poderia ser reconhecida sempre, porque seria carregada dentro da pessoa. Se, por outro lado, a
sanidade dos pseudopacientes nunca fosse descoberta, dificuldades sérias surgiriam para aqueles que
apoiam os métodos tradicionais do diagnóstico psiquiátrico. Contando com o fato de que a equipe do
hospital não seria incompetente, de que o pseudopaciente se comportasse de forma tão sã quanto se
comportava fora do hospital, sem que nunca lhe tivesse sido sugerida uma internação em um hospital
psiquiátrico, tal resultado duvidoso apoiaria a visão de que diagnósticos psiquiátricos analisam pouco
sobre o paciente e muito sobre o ambiente em que o observador o encontra.
Este artigo descreve tal experimento. Oito pessoas sãss tiveram admissão secreta em 12
hospitais diferentes. Suas experiências diagnósticas constituem os dados da primeira parte desse artigo;
o restante é dedicado à descrição de suas experiências em instituições psiquiátricas. Poucos psiquiatras
e psicólogos, mesmo os que trabalharam em tais hospitais, sabem como é esta experiência. Eles
raramente falam sobre isso com seus pacientes, talvez por desconfiarem de informações fornecidas por
pessoas previamente classificadas como insanas. Aqueles que trabalharam em hospitais psiquiátricos
são suscetíveis a terem se adaptado tão completamente ao cenário que se tornaram insensíveis ao
impacto dessa experiência. Embora existam relatórios ocasionais de pesquisadores que se submeteram
à hospitalização psiquiátrica, normalmente estes pesquisadores permanecem nos hospitais por
pequenos períodos, freqüentemente com o conhecimento da equipe do hospital. É difícil saber até que
ponto eles foram tratados como pacientes ou como companheiros de pesquisa. No entanto, seus
relatórios sobre o interior do hospital psiquiátrico foram validados. Este artigo estende esses esforços.

Pseudopacientes e Seus Cenários


Os oito pseudopacientes deste estudo formavam um grupo variado. Um era estudante de pós-
graduação de psicologia na faixa dos 20 anos. Os sete restantes eram mais velhos e “estabelecidos”.
Entre eles estavam três psicólogos, uma pediatra, um psiquiatra, um pintor, e uma dona de casa. Três
pseudopacientes eram mulheres e cinco eram homens. Todos usaram pseudônimos para que seus
diagnósticos não lhes trouxesse problemas no futuro. Aqueles que estavam em profissões relacionadas
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à saúde mental alegaram alguma outra ocupação para evitar qualquer atenção especial que pudesse ser
concedida pela equipe como medida de cortesia para com colegas afligidos. Com a exceção da minha
pessoa (eu fui o primeiro pseudopaciente e a minha presença - até onde sei - foi comunicada somente
ao administrador do hospital e psicólogo chefe), a presença dos pseudopacientes e a natureza do
programa de pesquisa não foi comunicada às equipes hospitalares.
Os cenários eram variados. Para generalizar os dados obtidos, procurou-se admissão em uma
variedade de hospitais. Os 12 hospitais do programa estavam localizados em cinco estados diferentes
nas costas Leste e Oeste. Alguns eram antigos e se encontravam em más condições, outros eram novos
e bem instalados. Alguns eram orientados para pesquisa, outros não. Alguns tinham boa relação
profissional-paciente (quantitativamente falando), outros tinham poucos empregados. Somente um era
um hospital estritamente particular. Todos os outros tinham o apoio de fundos estaduais ou federais ou,
em um dos casos, fundo universitário.
Depois de ligar para o hospital marcando uma consulta, o pseudopaciente chegava no centro de
admissão queixando-se de estar ouvindo vozes. Quando perguntado sobre o que diziam as vozes, ele
respondia que eram muitas vezes sem clareza, mas que quando podia escutar elas diziam “vazio”,
“oco” e “golpe”. As vozes não eram familiares e eram do mesmo sexo do pseudopaciente. A escolha
destes sintomas foi ocasionada pela similaridade aparente a sintomas existenciais. Alega-se que tais
sintomas surgem de preocupações doloosas sobre a insignificância da vida de uma pessoa. É como se a
pessoa “alucinada” dissesse, “Minha vida é vazia e oca”. A escolha destes sintomas também foi
determinada pela falta de um simples relatório de psicose existencial na literatura.
Além de alegar os sintomas e falsificar nome, vocação, e emprego, não foram feitas alterações
adicionais de pessoa, historia, ou circunstância. Os eventos significativos da história de vida do
pseudopaciente foram apresentados como realmente ocorreram. Relações com pais e irmãos, esposo e
filhos, pessoas no trabalho e na escola, consistentes com as exceções já citadas, foram descritas como
eram ou como tinham sido. De fato, frustrações e transtornos reais foram descritos, bem como alegrias
e satisfações. É importante frisar que tais relatos foram feitos, pois teoricamente, eles influenciariam
fortemente os resultados subseqüentes em favor do diagnóstico de normalidade, já que nenhuma dessas
historias pessoais ou comportamentos correntes eram patológicos.
Imediatamente após a admissão à custódia psiquiátrica, o pseudopaciente parava de simular
qualquer sintoma de anormalidade. Em alguns casos, houve um período breve de nervosismo e
ansiedade, já que nenhum dos pseudopacientes realmente acreditava que seria admitido tão facilmente.
De fato, geralmente eles temiam ser descobertos, expostos e envergonhados. Além disso, muitos deles
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nunca tinham visitado uma instituição psiquiátrica; e mesmo os que já tinham, apresentaram algum
medo em relação ao que aconteceria a eles. Seu nervosismo, então, era bem apropriado à novidade do
cenário hospitalar e foi abatido rapidamente.
Apesar daquele nervosismo de curta duração, o pseudopaciente se comportou na instituição
como ele se comportava “normalmente”. O pseudopaciente falava com pacientes e equipe como falaria
ordinariamente. Porque existe muito pouco para fazer numa instituição psiquiátrica, ele tentava engajar
os outros em conversações. Quando questionado pela equipe sobre como estava, ele respondia que
estava bem, e que não tinha mais sintomas. Ele obedecia às instruções dos atendentes, atendia à
chamadas para tomar medicamentos (que não eram engolidos), e seguia instruções das normas de
acesso e de uso do refeitório. Além de participar de tais atividades oferecidas pela instituição, ele
passava seu tempo anotando suas observações sobre a instituição, os pacientes, e a equipe. Inicialmente
essas anotações eram escritas “em segredo”, mas como logo se tornou claro que ninguém se importava,
elas passaram a ser escritas em blocos de papel em tais lugares públicos como as salas comunitárias.
Nenhum segredo foi feito sobre tais atividades.
O pseudopaciente, muito como um verdadeiro paciente psiquiátrico, entrou num hospital sem
nenhum saber prévio de quando seria liberado. Cada um foi notificado que teria que sair por seus
próprios meios, essencialmente convencendo à equipe de que era são. Os estresses psicológicos
associados com a hospitalização eram consideráveis e quase todos, exceto um dos pseudopacientes,
queriam ser liberados quase imediatamente após a admissão. Eles estavam então motivados não só a se
comportarem de forma saudável, mas a serem modelos de cooperação. Os relatórios das respectivas
enfermarias, obtidos para a maioria dos pacientes, confirmaram que seus comportamentos não eram de
nenhuma maneira disfuncionais. Estes relatórios indicam uniformemente que os pacientes foram
“amigáveis” e “cooperativos”, e não exibiam nenhuma indicação de “anormalidade”.

Os Normais Não São Detectados como Sãos


Apesar das manifestações públicas de sanidade, os pseudopacientes nunca foram descobertos.
Admitidos, exceto em um caso, com o diagnóstico de esquizofrenia, cada um foi liberado com um
diagnóstico de esquizofrenia “em remissão”. O termo “em remissão” não deve ser interpretado como
uma formalidade, já que em nenhum momento da hospitalização foi levantada a questão sobre a
simulação de qualquer dos pacientes. Tampouco existe qualquer indicação nos relatórios hospitalares
de que o status do pseudopaciente era suspeito. Ao contrario, há forte evidência de que, uma vez
denominado esquizofrênico, o pseudopaciente ficou marcado com este “rótulo”. Se o pseudopaciente
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seria liberado, ele deveria naturalmente estar “em remissão”; entretanto, aos olhos da instituição, ele
não estava são nem nunca o havia sido.
A inabilidade uniforme para reconhecer a sanidade não pode ser atribuída à qualidade dos
hospitais, já que, apesar de haver algumas variações entre eles, alguns eram considerados excelentes.
Nem se pode alegar que houve pouco tempo para observar os pseudopacientes. O tempo de duração da
hospitalização foi de 7 à 52 dias, com uma média de 19 dias. Os pseudopacientes não foram, de fato,
observados cuidadosamente, mas este erro fala claramente mais das tradições de hospitais psiquiátricos
do que de falta de oportunidade.
Finalmente, não se pode dizer que a inabilidade em reconhecer a sanidade dos pseudopacientes
tenha se derivado do fato de que eles não estavam se comportando de forma saudável. Enquanto havia
claramente alguma tensão presente em todos eles, seus visitantes diários não detectaram nenhuma
conseqüência séria de comportamento – da mesma forma, outros pacientes também não percebiam
qualquer alteração. Era muito comum outros pacientes “detectarem” a sanidade dos pseudopacientes.
Durante as primeiras três hospitalizações, quando registros exatos foram mantidas, 35 de 118 pacientes
na área de admissões declararam suas suspeitas, alguns vigorosamente. “Você não é louco. Você é um
jornalista, ou um professor” [referindo-se à anotação contínua]. “Você está espionando o hospital.”
Embora a maioria dos pacientes foi insistentemente assegurada pelo pseudopaciente de que ele já
estava doente antes de entrar no hospital mas que agora ele estava bem, alguns continuaram a acreditar
que o pseudopaciente estava são por toda a sua hospitalização. O fato de que os pacientes reconheciam
normalidade com freqüência enquanto a equipe não a reconhecia levanta questões importantes.
A inabilidade em detectar a sanidade durante o curso da hospitalização talvez se deva ao fato de
que os médicos operam com uma tendência forte ao que os estatísticos chamam de erro tipo 2. Isto
quer dizer que os médicos estão mais inclinados à chamar uma pessoa saudável de doente (uma
positiva falsa, tipo dois) do que uma pessoa doente de saudável (uma negativa falsa, tipo 1). As razões
para isso não são difíceis de entender: é claramente mais perigoso diagnosticar doenças erradas do que
errar no diagnóstico da saúde. É melhor errar no campo da precaução.
Porém o que faz sentido para a medicina geral não faz igual sentido para a psiquiatria. Doenças
médicas, ainda que infelizes, não são pejorativas. Os diagnósticos psiquiátricos, ao contrário, carregam
estigmas pessoais, legais, e sociais. Portanto, tentou-se verificar se a tendência em diagnosticar os sãos
como insanos poderia ser revertida. O experimento seguinte foi arranjado em um hospital de pesquisa e
ensino no qual a equipe fora advertida destas conclusões mas tinham dúvidas de que tal erro pudesse
ocorrer em seu hospital. A equipe foi informada que em algum tempo durante os próximos três meses,
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um ou mais pseudopacientes tentariam ser admitidos no hospital psiquiátrico. Cada membro da equipe
deveria avaliar cada paciente que se apresentasse na admissão ou no hospital de acordo com a
possibilidade de que se tratasse de um pseudopaciente. Uma escala de 1 a 10 foi usada, com um 1 e um
2 refletindo alto nível de certeza de que o paciente era um pseudopaciente.
Obtivemos julgamentos para 193 pacientes que foram admitidos na instituição. Todos os
membros da equipe que haviam mantido contato ou responsabilidade primária pelo paciente –
atendentes, enfermeiras, psiquiatras, médicos, e psicólogos – tiveram que emitir julgamentos. Quarenta
e um pacientes foram apontados, com alto índices de certeza, como pseudopacientes por pelo menos
um membro da equipe. Vinte e três foram considerados suspeitos por pelo menos um psiquiatra.
Dezenove foram suspeitos por pelo menos um psiquiatra e um outro membro da equipe. Na verdade,
nenhum pseudopaciente (ao menos não do meu grupo) se apresentou durante este período.
O experimento é instrutivo. Ele indica que a tendência a designar pessoas sãs como insanas
pode ser revertida quando as conseqüências (nesse caso, prestígio e sagacidade no diagnóstico) são
altas. Mas o que pode ser dito das 19 pessoas suspeitas de serem “sãs” por um psiquiatra e um outro
membro da equipe? Essas pessoas eram realmente “sãs”, ou a equipe que, para evitar o erro tipo 2,
estava mais propensa a cometer o erro do primeiro tipo – chamando os loucos de “sãos”? Não existe
nenhuma maneira de saber. Mas uma coisa é certa: qualquer processo de diagnóstico que se rende tão
facilmente a erros deste tipo não deve ser um meio estritamente confiável.

A Viscosidade das Denominações Psicodiagnósticas


Além de denunciar a tendência de tomar os saudáveis como doentes – uma tendência que se
refere mais ao comportamento do paciente na admissão do que depois de um longo período de
exposição – os dados adquiridos se referem também ao papel da denominação na avaliação psicológica.
Tendo uma vez sido chamado de esquizofrênico, não há nada que o pseudopaciente possa fazer para
superar este rótulo, o qual colore profundamente a as percepções dos outros sobre ele e sobre seu
comportamento.
De um ponto de vista estes dados não são surpreendentes, porque há tempos se sabe que atribui-
se significados aos elementos de acordo com o contexto em que ocorrem. A psicologia da Gestalt
enfatizou este ponto vigorosamente, e Asch demonstrou que existem traços “centrais” da personalidade
(como “afetuoso” versus “frio”) tão poderosos que eles influenciam o significado de outras
informações, formando a impressão de uma personalidade específica. “Insano”, “esquizofrênico”,
“maníaco-depressivo”, e “louco” estão provavelmente entre os mais poderosos de tais traços centrais.
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Uma vez que uma pessoa é diagnosticada como anormal, todos seus outros comportamentos e
características são coloridos por essa denominação. De fato, essa denominação é tão poderosa que
muitos comportamentos normais dos pseudopacientes foram ignorados inteiramente ou profundamente
mal interpretados. Alguns exemplos podem esclarecer este assunto.
Indiquei anteriormente que não havia sido feita nenhuma mudança na história pessoal dos
pseudopacientes além de nome, emprego, e, quando necessário, vocação. Ao contrário: uma descrição
verídica da história pessoal e circunstâncias foi oferecida. Essas circunstâncias não eram psicóticas.
Como foram elas acomodadas em diagnósticos de psicose? Ou foram os diagnósticos modificados de
forma a ficarem de acordo com as circunstâncias da vida do pseudopaciente, conforme descritas por
eles?
Até onde posso determinar, os diagnósticos não foram afetados pela relativa saúde das
circunstâncias da vida de um pseudopaciente. Na verdade, o oposto ocorreu: a percepção de suas
circunstâncias foi moldada inteiramente pelo diagnóstico. Um exemplo claro de tal contaminação da
percepção está no caso do pseudopaciente que tinha tido uma relação muito próxima com sua mãe mas
era um pouco afastado de seu pai durante sua infância. Durante a adolescência e depois, no entanto, seu
pai se tornou um amigo íntimo, enquanto seu relacionamento com sua mãe tornou-se mais distante. Sua
relação atual com sua esposa era caracteristicamente íntima e calorosa. Apesar de alguma brigas
ocasionais, a fricção era mínima. As crianças quase nunca tinham apanhado. Certamente não há nada
de especialmente patológico em tal história. Na verdade, muitos leitores devem ver um padrão similar
em suas próprias experiências, sem nenhuma conseqüência prejudicial. Observem, no entanto, como tal
história foi traduzida no contexto psicopatológico, neste resumo de caso preparado após a liberação do
paciente.
Este homem branco de 39 anos ... manifesta uma longa história de ambivalência considerável em relações
próximas, que teve início na infância. Uma relação calorosa com sua mãe esfria durante sua adolescência.
Uma relação distante com seu pai é descrita como tornando-se muito intensa. Estabilidade afetiva está
ausente. Suas tentativas de controlar emoções com sua esposa e filhos são pontuadas por explosões de
raiva e, no caso das crianças, espancamentos. E enquanto ele diz possuir vários bons amigos, se pode
sentir uma ambivalência considerável embutida nesses relacionamentos também...

Os fatos do caso foram distorcidos pela equipe de forma não intencional para conseguir uma
coerência com a teoria popular da dinâmica de uma reação esquizofrênica. Nada de natureza
ambivalente havia sido descrito sobre relações com pais, esposa, ou amigos. Por mais que essa
ambivalência pudesse ser inferida, ela provavelmente não era maior do que a encontrada em relações
humanas comuns. É verdade que a relação do pseudopaciente com seus pais mudou ao longo do
tempo, mas no contexto ordinário isso pouco seria surpreendente – na verdade, poderia até ser algo
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esperado. Fica claro que o significado atribuído à suas verbalizações (isto é, ambivalência,
instabilidade afetiva) foi determinado pelo diagnóstico: esquizofrenia. Um significado totalmente
diferente teria sido atribuído se soubessem que o homem era “normal”.
Todos os pseudopacientes fizeram anotações extensivas em público. Em circunstâncias
ordinárias, tal comportamento teria levantando questões nas mentes dos observadores, como de fato
ocorreu entre os outros pacientes. Na verdade, parecia tão certo que as anotações iriam levantar
suspeitas que precauções elaboradas eram tomadas para removê-las do hospital a cada dia. Porém,
estas precauções se fizeram desnecessárias. O mais perto que qualquer membro da equipe chegou
de questionar estas anotações ocorreu quando um pseudopaciente perguntou ao seu médico que tipo
de medicação ele estava recebendo e começou a escrever a resposta. “Você não precisa anotar”, o
doutor disse gentilmente. “Se você tiver problemas para lembrar, pode me perguntar de novo”.
Se nenhuma pergunta foi feita aos pseudopacientes, como foram interpretadas as suas
anotações? Relatórios sobre três pacientes indicam que a anotação era vista como um aspecto do
seu comportamento psicológico. “Paciente se empenha em comportamento de fazer anotações” era
o comentário diário sobre um dos pseudopacientes que nunca foi questionado sobre seus registros.
Já que o paciente está no hospital, ele deve ter perturbações psicológicas. E se ele apresenta
perturbações, anotações contínuas devem ser uma manifestação comportamental de tal distúrbio,
talvez um derivado dos comportamentos compulsivos, às vezes relacionados à esquizofrenia.
Uma característica tácita do diagnóstico psiquiátrico é que ele localiza as fontes de
aberrações dentro do indivíduo e somente raramente no complexo de estímulos que o cerca. Como
Conseqüência, comportamentos que são estimulados pelo ambiente são normalmente atribuídos à
desordem do paciente. Por exemplo, uma enfermeira gentil achou um pseudopaciente andando
pelos corredores do hospital. “Nervoso, Sr. X?” ela perguntou. “Não, entediado,” ele disse.
As anotações feitas pelos pseudopacientes são repletas de exemplos de comportamentos dos
pacientes os quais eram mal interpretados pela bem intencionada equipe. Freqüentemente, um
paciente teria uma ataque de indignação por ter sido mal tratado por um atendente. Uma enfermeira
chegando à cena raramente perguntaria sobre o que causou tal indignação. Ao contrário, ela assumia
que seu incômodo era derivado de sua patologia, e não das suas interações com outros membros da
equipe. Ocasionalmente, a equipe assumia que a família do paciente (especialmente quando ela
havia visitado) ou outros pacientes haviam estimulado a explosão. Mas a equipe nunca achou que
um dos seus membros ou a estrutura do hospital poderia ter influenciado o comportamento do
paciente. Um psiquiatra apontou para um grupo de pacientes que estava sentado fora da entrada do
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refeitório meia hora antes da hora do almoço. Para um grupo de residentes jovens ele indicou que
tal comportamento era característico da natureza oral da síndrome. Não lhe ocorreu que havia
poucas coisas que agradassem aos pacientes do hospital psiquiátrico além de comer.
Um rótulo psiquiátrico possui vida e influência próprias. Uma vez formulada a impressão de
que o paciente é esquizofrênico, a expectativa é de que ele continue a ser esquizofrênico. Quando
uma quantidade suficiente de tempo se passa e o paciente não faz nada de estranho, ele é
considerado um paciente em remissão e apto a ser liberado. Mas a rotulação permanece além da
liberação, pontuando a expectativa não confirmada de que ele se comportará como um
esquizofrênico novamente. Tais denominações conferidas por profissionais de saúde mental
influenciam profundamente não só o paciente, mas também seus pais e amigos, e não deve ser
surpresa para ninguém que o diagnóstico atue em todos eles como uma profecia auto-realizadora.
Eventualmente, o próprio paciente aceita o diagnóstico, com todos os seus significados exagerados
e expectativas, e se comporta de acordo.
As inferências a serem feitas sobre estes assuntos são simples. Tal como Zigler e Phillips
demonstraram, há uma enorme sobreposição dos sintomas apresentados por pacientes que foram
diagnosticados de formas variadas, o que significa que comportamentos saudáveis e anormais
também se sobrepõem. Os sãos não são “sãos” o tempo todo. Nós perdemos o controle de nosso
temperamento “sem nenhuma boa razão”. Ficamos ocasionalmente deprimidos ou ansiosos,
novamente sem razão aparente. E talvez nós achemos difícil conviver com uma ou outra pessoa –
novamente sem uma razão que possamos especificar. Similarmente, os insanos não estão sempre
insanos. Na verdade, a impressão dos pseudopacientes na convivência com doentes mentais era a de
que eles permaneciam sãos por longos períodos de tempo – que os comportamentos estranhos que
seus diagnósticos acusavam constituíam somente uma fração pequena de todo o seu
comportamento. Se faz sentido denominar a nós mesmos como depressivos permanentes baseado
numa depressão ocasional, então é preciso ter melhor evidência do que existe no momento para
denominar todos os pacientes sãos, insanos ou esquizofrênicos baseado em comportamentos
estranhos ou cognições. Parece mais útil, como Mischel apontou, limitar nossas discussões a
comportamentos, aos estímulos que os provocam, e suas correlações.
Não se sabe porque impressões poderosas de traços de personalidade, como “louco”, ou
“insano” surgem. Naturalmente, quando as origens e os estímulos que causam um comportamento
são remotos ou desconhecidos, ou quando um comportamento nos marca como imutável, surgem
denominações de traços da pessoa que se comporta. Por outro lado, quando as origens e estímulos
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são conhecidos e disponíveis, o discurso é limitado ao comportamento em si. Desta forma, posso
alucinar por estar dormindo, ou por ter ingerido uma droga diferente. Estas são chamadas de
alucinações induzidas pelo sono, ou sonhos, e alucinações induzidas por substâncias,
respectivamente. Mas quando os estímulos das alucinações são desconhecidos, chama-se de
loucura, ou esquizofrenia – como se essa inferência fosse tão clara quanto as outras.

A Experiência da Hospitalização Psiquiátrica


O termo “doença mental” é de origem recente. Ele foi criado humanistas cuja intenção era
elevar a percepção social dos psicologicamente perturbados, vistos como “pirados” ou bruxos, para
uma percepção que fosse semelhante à dos doentes fisiológicos. Eles foram parcialmente bem
sucedidos, pois o tratamento dos doentes mentais melhorou consideravelmente com os anos.
Entretanto, embora o tratamento tenha melhorado, é duvidoso que as pessoas realmente percebam
os doentes mentais da mesma forma como vêm os doentes fisiológicos. Uma perna quebrada é algo
que pode ser curado, mas doenças mentais (aos olhos leigos) duram para sempre. Uma perna
quebrada não ameaça ao observador, mas e um esquizofrênico louco? Existe agora um conjunto de
evidências de que as atitudes para com os doentes mentais são caracterizadas por medo, hostilidade,
distância, suspeitas, e receio. Os doentes mentais são os leprosos da sociedade.
Não é surpreendente mas aborrecedor o fato de que tais atitudes infectam a população geral.
Entretanto, o fato de afetarem também profissionais de saúde – atendentes, enfermeiras, médicos,
psicólogos, e assistentes sociais – que tratam e lidam com doentes mentais é muito mais
desconcertante, já que tais atitudes são evidentemente perniciosas e limitantes. A maioria dos
profissionais de saúde mental insiste em declarar-se delicada com os doentes mentais, e não
ausentes ou hostis. Mas é mais provável que uma ambivalência marcante caracterize suas relações
com pacientes psiquiátricos, tanto que seus impulsos declarados são somente parte de sua atitude
total. As atitudes negativas também estão lá e podem ser facilmente detectadas. Tais atitudes não
devem nos surpreender. Elas são derivadas naturais das denominações que os pacientes carregam e
dos lugares em que são encontrados.
Considere a estrutura de um hospital psiquiátrico típico norte-americano. Equipe e pacientes
estão estritamente segregados. A equipe tem seu próprio espaço para viver, incluindo seu próprio
refeitório, banheiros, e lugares de assembléia. As redomas de vidro onde fica a equipe profissional,
as quais os pseudopacientes chamaram de “a gaiola”, se encontram em todos os saguões. A equipe
sai basicamente com o propósito de cuidar – dar remédios, conduzir terapia ou encontros de grupo,
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instruir ou reprimir um paciente. De outra forma, a equipe se mantém afastada, como se a doença
que aflige aos pacientes fosse contagiosa.
O tempo médio passado pelos atendentes fora da gaiola foi de 11.3 % (de 3 a 52 %). Este
dado não representa somente o tempo de interação com pacientes, mas também inclui tempo gasto
com afazeres como dobrar roupa suja, supervisionar pacientes enquanto se barbeiam, dirigir a
faxina da área, e mandar pacientes para atividades externas. Era muito raro um atendente que
passasse tempo falando com os pacientes ou jogando com eles. Provou-se impossível obter uma
porcentagem de “tempo de interação” para enfermeiras, já que o tempo que passavam fora da gaiola
era muito breve. Então, contamos as vezes em que saíam das gaiola. Na média, enfermeiras diurnas
saíam da gaiola 11.5 vezes por turno, incluindo momentos em que saíam da área inteiramente (de 4
a 39 vezes). Enfermeiras da tarde e noturnas eram ainda menos acessíveis, saindo uma média de 9.4
vezes por turno. Dados sobre as enfermeiras da madrugada, que chegavam pouco depois da meia-
noite e partiam às 8 a.m. não existem porque os pacientes estavam dormindo neste período.
Médicos, especialmente psiquiatras, eram ainda mais inacessíveis: raramente eram vistos nas
áreas de pacientes. Muito comumente, eles eram vistos somente nos momentos em que chegavam e
que partiam, passando o tempo restante dentro de seus escritórios ou na gaiola. Na média, médicos
saíam para a área dos pacientes 6.7 vezes ao dia (de 1 a 17 vezes). Provou-se difícil fazer uma
estimativa realista neste caso, já que médicos freqüentemente mantinham horários que os
permitissem ir e vir em momentos diferentes.
A organização hierárquica do hospital psiquiátrico já foi citada anteriormente, mas o
significado latente desse tipo de organização merece ser notado novamente. Aqueles com mais
poder têm pouca interação com os pacientes, e aqueles com menos poder intervêm menos com eles.
Lembre-se, no entanto, que a aquisição de comportamentos apropriados para posições ocorre
principalmente através da observação dos outros, com os mais poderosos tendo a maior influência.
Conseqüentemente, é compreensível que os atendentes não somente passem mais tempo com
pacientes que qualquer outro membro da equipe – o que é requerido por sua posição na hierarquia –
mas apesar disso, conforme aprenderam com seus superiores, passam o mínimo de tempo possível
com os pacientes. Atendentes são vistos principalmente dentro da gaiola, local onde os modelos, a
ação e o poder estão.
Viro-me agora para um grupo diferente de estudos: aqueles que lidam com a reação da
equipe ao contato iniciado pelos pacientes. Há muito se sabe que a quantidade de tempo que uma
pessoa passa com você pode ser indicadora do seu significando para ela. Se ele inicia e mantém
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contato visual, existe razão para acreditar que ele se importa com seus pedidos e necessidades. Se
ele pára para conversar, existe ainda mais razão para inferir que ele esta lhe individualizando. Em
quatro hospitais, o pseudopaciente se aproximou de um membro da equipe com um pedido no
seguinte formato: “Com licença, Sr. [ou Dr. ou Sra.] X, poderia me dizer quando eu serei elegível
para privilégios da ala?” (ou “... quando serei apresentado numa reunião de equipe?” ou “... quando
poderei ser liberado?”). Enquanto o conteúdo da pergunta variava de acordo com a adequação do
alvo e das necessidades atuais do pseudopaciente, o formato era sempre um pedido de informação
cortês e relevante. Foi tomado cuidado para nunca se aproximar de um certo membro da equipe
mais de uma vez por dia, para que o membro da equipe não ficasse com suspeitas ou irritado.
Quando examinar os dados, lembre-se que o comportamento dos pseudopacientes não foi nem
bizarro nem perturbador. Seria fácil se engajar em uma boa conversa com eles.
Os dados para este experimentos são mostrados na Tabela 1, separadamente para médicos
(coluna 1) e para enfermeiras e atendentes (coluna 2). Diferenças pequenas entre estas quatro
instituições foram minimizadas pelo alto nível de contínua evitação da equipe a qualquer contato
iniciado pelos pacientes. Em geral, sua reação mais comum consistiu em uma resposta breve à
questão, oferecida enquanto estavam “passando”, e a cabeça virada, ou nenhuma resposta.

Tabela 1. Iniciada pelos pseudopacientes com psiquiatras, enfermeiras e atendentes, comparado a contatos com outros
grupos.
Campus Centro Médico Universitário
Hospitais psiquiátricos universitári
o
Médicos
Contato (1) (2) (3) (4) (5) (6)
Psiquiatr Enfermeiras e Faculdade “Procurando “Procurando Nenhum
as atendentes um por um comentário
psiquiatra” interno”
Reações
Continua andando, sem olhar (%) 71 88 0 0 0 0
Faz contato visual (%) 23 10 0 11 0 0
Pára e fala (%) 2 2 0 11 0 10
Pára e conversa (%) 4 0.5 100 78 100 90
Numero médio de questões * * 6 3.8 4.8 4.5
respondidas (de 6)
Reações (no.) 13 47 14 18 15 10
Tentativas (no.) 185 1283 14 18 15 10
* Não aplicável.

O encontro freqüentemente tomava uma forma bizarra: (pseudopaciente) “Com licença, Dr.
X. você poderia me dizer quando serei elegível para os privilégios da razão?” (médico) “Bom dia,
Dave, como está hoje?” (continua a andar sem resposta.)
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É instrutivo comparar estes dados com dados obtidos recentemente na Universidade de


Stanford. Já foi alegado que as grandes universidades são caracterizadas por professores que são
ocupados e que não têm tempo para os alunos. Em função desta comparação, uma jovem mulher se
aproximava de indivíduos do corpo docente que pareciam estar andando para alguma reunião ou
classe e fazia as seguintes perguntas.
1) “Com licença, poderia me encaminhar ao Encina Hall?” (Na escola de medicina: “... ao Centro
de Pesquisa Clínica?”).
2) “Você sabe onde fica o anexo Fish? (não há nenhum anexo Fish na Stanford).
3) “Você leciona aqui?”
4) “Como se inscrever para admissão para a universidade?” (na escola de medicina: “... para
a escola de medicina?”).
5) “É difícil entrar?”
6) “Existe ajuda financeira?”
Sem exceções, como se pode ver na Tabela 1 (coluna 3), todas as perguntas foram
respondidas. Não importa o quanto apressadas eles foram, todos os questionados não só
mantiveram contato visual, mas também param para conversar. De fato, muitos dos questionados
saíram dos seus caminhos para encaminhar, levar a moça para o lugar procurado, tentar localizar o
“anexo Fish”, ou discutir com ela as possibilidades de ser aceita na universidade.
Dados semelhantes, também mostrados na Tabela 1 (colunas 4, 5 e 6), foram obtidos no
hospital. Aqui, também, a jovem mulher veio preparada com seis perguntas. Depois da primeira
pergunta, no entanto, ela falava para 18 dos questionados “Estou procurando por um psiquiatra”, e
para outros 15, “Estou procurando um interno”. Outros 10 questionados não receberam nenhum
comentário adicional (coluna 6). O grau geral das reações cooperantes é consideravelmente mais
alto para esses grupos universitários do que foi para os pseudopacientes nos hospitais psiquiátricos.
Mesmo assim, as diferenças são aparentes dentro do cenário da escola de medicina. Uma vez tendo
indicado que ela estava procurando um psiquiatra, o grau de cooperação foi menor do que quando
ela procurava um interno.

Impotência e Despersonalização
Contato visual e contato verbal refletem a preocupação e a individuação; sua ausência,
reflete a evitação e a despersonalização. Os dados que apresentei não fazem justiça aos encontros
ricos e diários que cresceram em torno da despersonalização e da evitação. Possuo arquivos de
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pacientes que apanharam de membros da equipe pelo pecado de terem iniciado contato verbal.
Durante a minha própria experiência, por exemplo, um paciente apanhou na presença de outros
pacientes por ter se aproximado de um atendente e dito “Eu gosto de você”. Ocasionalmente,
punições dadas ao pacientes por mau comportamento pareciam tão excessivas que não podiam ser
justificadas pelas mais radicais interpretações do campo psiquiátrico. Mesmo assim, elas pareciam
passar desapercebidas. Os temperamentos eram freqüentemente tempestuosos. Um paciente que não
ouvia a chamada para medicamentos seria redondamente escoriado, e os atendentes da manhã
freqüentemente acordariam os pacientes com, “vamos, seus f-----d-p---, fora da cama!”
Nem dados anedóticos nem realistas podem transmitir o sentido inundador de impotência
que invade o indivíduo enquanto ele é continuamente exposto à despersonalização do hospital
psiquiátrico. Quase não importa qual o hospital psiquiátrico – os excelentes hospitais públicos e os
pomposos hospitais privados eram melhores que os rurais, mas as características comuns destes
hospitais ofuscaram suas aparentes diferenças.
A impotência era evidente em todos os lugares. O paciente é privado de muitos de seus
direitos legais por meio de seu compromisso psiquiátrico. Ele é despido de credibilidade por causa
de seu rótulo diagnóstico. Sua liberdade de movimento é limitada. Ele não pode iniciar contato com
a equipe, mas somente pode responder às poucas aberturas que ela faz. A privacidade pessoal é
mínima. A área do paciente pode ser invadida e seus pertences examinados por qualquer membro da
equipe, por qualquer razão. Sua história pessoal e aflição está disponível para qualquer membro da
equipe que escolhe ler seu arquivo, não importando sua relação terapêutica com ele. Sua higiene
pessoal e evacuações são freqüentemente monitoradas. As cabines de toaletes muitas vezes não tem
portas.
Às vezes, a despersonalização chegou a tais proporções que os pseudopacientes tinham a
sensação de serem invisíveis, ou pelo menos não merecedores de atenção. Quando fomos admitidos,
eu e outros pseudopacientes fizemos os primeiros exames físicos em um quarto semi público, onde
membros da equipe fizeram suas tarefas como se nós não estivéssemos ali.
No pátio, os atendentes abusavam seriamente os pacientes, tanto verbal quanto fisicamente
na presença de outros pacientes observadores, alguns dos quais (pseudopacientes), estavam
anotando tudo o que se fazia em seus blocos de papel. Comportamentos abusivos, por outro lado,
terminavam abruptamente quando outros membros da equipe apareciam. Os funcionários do
hospital são testemunhas com credibilidade. Os pacientes não são.
Uma enfermeira desabotoou sua camisa para ajeitar o sutiã em frente à um pátio cheio de
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homens. Não se podia concluir que ela estava tentando ser sedutora. Na verdade, ela não nos
percebia. Um grupo de funcionários poderia apontar para um paciente no saguão e discutir sobre ele
animadamente, como se ele não estivesse lá.
Um instante iluminador de despersonalização e invisibilidade ocorreu em relação aos
medicamentos. Foram ministradas para os pseudopacientes cerca de 2100 pílulas, incluindo Elavil,
Stelazine, Compazine, e Thorazine, entre outras. (Vale atentar para o fato de que tal variedade de
medicamentos teria sido administrada para pacientes apresentando os mesmos sintomas) Somente
duas foram engolidas. O resto foi embolsado ou depositado no toalete. Os pseudopacientes não
estavam sós nisso. Mesmo não tendo dados precisos sobre quantos pacientes rejeitavam seus
remédios, os pseudopacientes freqüentemente achavam os remédios de outros pacientes no toalete
antes de jogarem os seus próprios. Contanto que cooperassem, seu comportamento, assim como o
dos pseudopacientes, nessa como em outras finalidades, também era totalmente ignorado.
Reações à despersonalização entre pseudopacientes eram intensas. Apesar de terem vindo ao
hospital como observadores participantes e de estarem inteiramente à par de que eles não
“pertenciam” àquele ambiente, ainda assim eles se encontraram lutando contra o processo de
despersonalização. Alguns exemplos: um estudante de pós-graduação em psicologia pediu à sua
esposa para lhe trazer livros ao hospital para que ele pudesse “fazer o dever de casa” – isto, mesmo
tendo tido o cuidado de omitir sua profissão. O mesmo estudante, que tinha treinado por bastante
tempo para entrar no hospital, e que tinha tido muitas expectativas sobre a experiência, lembrou-se
de um campeonato que queria ver no fim-de-semana e insistiu que fosse liberado naquele dia. Um
outro pseudopaciente tentou ter um romance com uma enfermeira. Subseqüentemente, ele informou
à equipe que estava se inscrevendo para admissão em uma escola de pós-graduação em psicologia e
que muito provavelmente seria admitido, já que um professor da escola era um dos seus visitantes
regulares. A mesma pessoa começou a se engajar em psicoterapia com outros pacientes – tudo isso
como uma forma de se tornar uma pessoa em um ambiente impessoal.

As Fontes da Despersonalização
Quais são as origens da despersonalização? Já mencionei duas. Em primeiro estão as
atitudes que todos nós temos para com os doentes mentais – incluindo aqueles que os tratam –
atitudes caracterizadas por medo, desconfiança, expectativas ruins por um lado, e intenções
benevolentes por outro. Nossa ambivalência leva à evitação destas pessoas.
Em segundo lugar, e não inteiramente separada, a estrutura hierárquica do hospital
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psiquiátrico facilita a despersonalização. Os profissionais do topo desta hierarquia pouco interagem


com os pacientes, e seu comportamento inspira o restante da equipe. O contato médio diário com
psicólogos, residentes, e médicos juntos foi de 3.9 à 25.1 minutos, com uma média geral de 6.8
(seis pseudopacientes sobre um total de 129 hospitalizados). Incluídos nesta média está o tempo
passado na entrevista de admissão, encontros no pátio com a supervisão de um membro superior da
equipe, contatos de psicoterapia em grupo ou individuais, conferências de apresentação do caso, e
reuniões de liberação. Claramente, os pacientes não passam muito tempo em contato interpessoal
com a equipe médica, que serve como modelo para as enfermeiras e atendentes.
Existem provavelmente outras fontes. Instalações psiquiátricas estão atualmente em
situações financeiras precárias. As equipes estão menores, e o seu tempo está mais caro. O contato
com pacientes é diminuído. No entanto, embora o estresse financeiro seja realidade, muito pode ser
feito com ele. Eu tenho a impressão de que as forças psicológicas que resultam na
despersonalização são muito mais fortes que as fiscais e que a contratação de mais funcionários não
melhoraria o cuidado com o paciente neste caso. A incidência de reuniões da equipe e a enorme
quantidade de relatórios sobre pacientes, por exemplo, não diminuíram como o contato com
pacientes. As prioridades existem, mesmo durante tempos difíceis. O contato com os pacientes não
é uma prioridade significativa no hospital psiquiátrico tradicional, e pressões fiscais não respondem
por isso. Evitação e despersonalização são as respostas.
A confiança pesada na psicofarmacologia contribui tacitamente para a despersonalização por
convencer a equipe de que o tratamento está de fato sendo conduzido, tornando qualquer contato
extra com o paciente desnecessário. Mesmo assim, no entanto, a precaução precisa ser exercida na
compreensão do papel das drogas psicotrópicas. Se os pacientes fossem poderosos ao invés de
fracos, se eles fossem vistos como indivíduos interessantes ao invés de entidades diagnósticas, se
fossem socialmente significantes ao invés de leprosos sociais, se suas aflições realmente
comovessem nossas simpatias e preocupações, não procuraríamos contato com eles, apesar da
disponibilidade dos medicamentos? Eles nos seriam agradáveis?

As Conseqüências da Rotulação e da Despersonalização


Sempre que a relação entre o que se sabe com o que se precisa saber se aproxima de zero,
nós tendemos a inventar “sabedoria” e assumimos que entendemos mais do que realmente
entendemos. Nós parecemos incapazes de assumir que simplesmente não sabemos. A necessidade
do diagnóstico e do remédio para os problemas comportamentais e emocionais é enorme. Mas ao
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invés de reconhecermos que estamos somente embarcando na compreensão, nós continuamos a


denominar pacientes “esquizofrênicos”, “maníaco-depressivos”, e “insanos”, como se nessas
palavras tivéssemos capturado a essência da compreensão. A base do problema é que já sabemos há
muito tempo que diagnósticos são freqüentemente não são úteis ou confiáveis, mas mesmo assim
continuamos a usá-los. Nós agora aprendemos que não podemos distinguir a insanidade da
sanidade. É deprimente considerar como essa informação será usada.
Não somente deprimente, mas assustador. Como muitas pessoas, me pergunto, mesmo sendo
sãs, não são reconhecidas como tal em nossas instituições psiquiátricas? Quantos já foram
desnecessariamente privados de seus privilégios de cidadania, de seu direito de votar e de dirigir e
de lidar com seus próprios problemas? Quantos já fingiram insanidade para evitar as conseqüências
criminais de seu comportamento, e inversamente, quantos não prefeririam passar por um
julgamento à viver em um hospital psiquiátrico – mas são erradamente considerados doentes
mentais? Quantos já foram estigmatizados por diagnósticos bem-intencionados mas, ainda assim,
errados? Lembre-se novamente de que um “erro do tipo 2” em diagnósticos psiquiátricos não tem as
mesmas conseqüências que teria em diagnósticos médicos. Um diagnóstico de câncer que se prova
errado é uma causa para comemoração. Mas diagnósticos psiquiátricos raramente se provam
errados. A denominação fica como uma marca de inadequação para sempre.
Finalmente, quantos pacientes podem ser “sãos” fora do hospital psiquiátrico mas parecem
insanos dentro dele – não porque a loucura vive neles, mas porque estão reagindo à um cenário
bizarro, que parece ser exclusivo de instituições que abrigam pessoas consideradas inferiores?
Goffman chama o processo de socialização de tais instituições de “mortificação” – uma metáfora
apta que inclui os processos de despersonalização incluídos aqui. E enquanto é impossível saber se
as reações dos pseudopacientes a estes processos são características a todos os pacientes – eles,
apesar de tudo, não eram pacientes reais – é difícil acreditar que estes processos de socialização em
um hospital psiquiátrico estimulem atitudes úteis ou reações adaptativas para se viver no “mundo
real”.

Sumário e Conclusões
Ficou claro que não podemos distinguir os sãos dos insanos em hospitais psiquiátricos. O
próprio hospital impõe um ambiente especial em que os significados dos comportamentos podem
facilmente ser mal interpretados. As conseqüências para os pacientes hospitalizados em tal
ambiente – impotência, despersonalização, segregação, mortificação, e autodenominação – parecem
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sem dúvida anti-terapêuticas.


Mesmo agora, não compreendo este problema bem o suficiente para perceber soluções. Mas
duas questões parecem vir a se desenvolver. A primeira se trata da proliferação de instituições de
saúde mental na comunidade, de centros de intervenção em crise, do movimento do potencial
humano, e das terapias comportamentais que, mesmo com todos seus problemas, tendem a evitar as
denominações psiquiátricas, focalizando problemas e comportamentos específicos, mantendo o
indivíduo em um ambiente relativamente não-pejorativo. Fica claro que, se pudermos evitar
mandar os afligidos para lugares insanos, nossas impressões deles terão menos probabilidade de
serem distorcidas. (O risco de percepções distorcidas, me parece, está sempre presente, já que nós
somos muito mais sensíveis ao comportamento e verbalização de um indivíduo do que aos
estímulos contextuais sutis que freqüentemente os promovem. Em questão aqui está um problema
de magnitude. E, como mostrei, a magnitude da distorção é excessivamente alta no contexto
extremo que é um hospital psiquiátrico.)
A segunda questão que pode que pode se provar promissora fala da necessidade de
aumentar a sensibilidade dos trabalhadores de saúde mental à posição humilhante dos pacientes
psiquiátricos. Simplesmente ler material neste tema pode ser uma ajuda para alguns desses
trabalhadores e pesquisadores. Para outros, experimentar diretamente o impacto da hospitalização
psiquiátrica poderá ser de uma utilidade enorme. Claramente, pesquisa futura na psicologia social
de tais instituições psiquiátricas duplamente facilitaria o tratamento e aprofundaria a compreensão
geral.
Eu e outros pseudopacientes no cenário psiquiátrico tivemos reações distintamente
negativas. Nós não pretendemos descrever as experiências subjetivas dos pacientes reais. As deles
podem ser diferentes das nossas, particularmente com a passagem do tempo e o processo necessário
de adaptação ao seu ambiente. Mas podemos e falamos dos índices relativamente mais objetivos de
tratamento dentro do hospital. Poderia ser um erro muito infeliz considerar que o que aconteceu
conosco se derivou da malícia e estupidez da equipe. Ao contrário, nossa impressão deles foi de que
realmente se importavam, sendo dedicadas e bastante inteligentes. Suas falhas, que às vezes foram
muito dolorosas, seriam melhor atribuídas ao ambiente em que eles também se encontravam do que
a defeitos pessoais. Suas percepções e comportamento eram controlados pela situação, ao invés de
serem motivados por uma disposição maliciosa. Em um ambiente mais benigno, alguém que fosse
menos ligado aos diagnósticos globais, poderia ter emitido comportamentos e julgamentos mais
benignos e efetivos.
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(Extraído da revista Science, vol. 179, p. 250-258, 1973. Notas e referências não incluídas.
Traduzido por Renata F. Brasileiro)

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