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Universidade Federal do Rio de Janeiro

Faculdade de Letras – Departamento de Vernáculas


Rio de Janeiro, 17 de novembro de 2016
Professora Mônica Fagundes – Poesia Portuguesa
Autora: Fabiana Emerick – DRE: 114036739
Trabalho 1: Análise de uma Cantiga de Amigo

Cantiga de Amigo: Um passeio pelas entrelinhas

O presente trabalho tem como objetivo realizar uma breve análise sobre a cantiga de
amigo Vaiamos, irmana, vaiamos dormir de Fernando Esquio. Pouco se sabe sobre este
trovador, que é galego, deve ter vivido por volta do Século XIII e teve nove poesias atribuídas a
ele até hoje, dentre elas, quatro cantigas de amigo, três de escárnio e uma de amor. A seguir, a
cantiga discutida aqui e uma edição realizada por mim com algumas traduções de palavras:

a Vaiamos, irmana, vaiamos dormir Nas margens do lago onde eu vi andar,


b nas ribas do lago u eu andar vi seu arco na mão às aves atirar,
R a las aves meu amigo. às aves meu amigo.

a’ Vaiamos, irmana, vaiamos folgar Seu arco na mão as aves ferir


b’ nas ribas do lago u eu vi andar e as que cantavam deixa-las viver,
R a las aves meu amigo. às aves meu amigo.

b Nas ribas do lago u eu andar vi, Seu arco na mão às aves atirar
c seu arco na mão as aves ferir, e as que cantavam não as quer matar
R a las aves meu amigo. às aves meu amigo.

b' Nas ribas do lago u eu vi andar,


c’ seu arco na mão a las aves tirar,
R a las aves meu amigo.

c Seu arco na mão as aves ferir


d e las que cantavan leixá-las guarir,
R a las aves meu amigo.

c' Seu arco na mão a las aves tirar


d’ e las que cantavan non nas quer matar
R a las aves meu amigo.
Fernando Esquio, (CV902, CBN 1246)

Vamos, irmã, vamos dormir


nas margens do lago onde eu andar vi
às aves meu amigo.

Vamos, irmã, vamos folgar


nas margens do lago onde eu vi andar
às aves meu amigo.

Nas margens do lago onde eu andar vi,


seu arco na mão às aves ferir,
às aves meu amigo.
Quanto a cantiga em si, uma simples edição modernizada pode nos trazer
esclarecimentos quanto ao conteúdo, já que a leitura em galego português possui alguns itens
lexicais que caíram em desuso ou evoluíram com a língua, como o adverbio de lugar onde que
era assinalado como u, ou o vocábulo deixar que era grafado como leixar, além da sintaxe e
gramática utilizadas que são estranhas ao nosso século. Sem um auxílio adequado, exemplos
como estes nos fazem sentir dificuldades ao ler, entender a forma e o que está subentendido no
conteúdo da cantiga.

No campo da forma, podemos perceber que a cantiga possui seis estrofes com três
versos cada, sendo o terceiro verso o refrão da cantiga, pois se repete em todas as estrofes.
Estas, por sua vez, são divididas em pares, chamadas de paralelismo, e comuns neste tipo de
cantiga. Outra característica muito presente é o leixa-pren, que consiste em repetir um verso da
copla1 como o primeiro da copla seguinte. Este tipo de composição é notado nesta cantiga com a
repetição do segundo verso no início de sua respectiva copla paralelística.

Uma análise superficial pode nos trazer a interpretação de que o eu-lírico nesta cantiga é
uma voz feminina que convida sua irmã a dormir e descansar nas margens de um lago. Neste
lago, ela já sabe que encontrará seu amigo caçando aves com arco e flechas. As duas estrofes
finais marcam um certo encantamento quanto a “eu-lírica” quando esta afirma que ele não
pretende matar as aves que cantam.

Numa análise mais profunda e contextualizada com a época e a sexualidade implícita


nas cantigas de amigo de um modo geral, podemos realizar outro tipo de interpretação possível.
Em primeiro lugar, devemos encontrar no texto o que remete ao masculino e ao feminino. Ao
longo do texto, percebemos que o eu lírico não tem problemas em compartilhar o seu amigo
com outras mulheres. Nas duas primeiras estrofes, a voz feminina desafia sua irmã (não
necessariamente de sangue) para dormir e folgar nas margens do lago. Dormir, aqui como
eufemismo para o ato do prazer, substituído, na estrofe dois, pelo vocábulo folgar que pode
conotar o descanso pós ato. Nas ribas do lago, traz a sensação do feminino junto do masculino,
nas margens do lago, sendo as margens, o feminino e pertencentes ao lago, masculino, o que
pode dar a ideia de “ao redor do corpo do amigo”, “a pele que o envolve”, ou mesmo como o
local onde ele costuma visitar e pode possuir muitas mulheres. Por fim, a las aves,
representando aqui a companhia feminina. Sendo assim, poderíamos ter a seguinte interpretação
das duas primeiras estrofes: vamos, irmã, vamos ter prazer às margens do lago onde eu vi meu
amigo andar com as mulheres/ Vamos, irmã, vamos descansar às margens do lago onde eu vi
meu amigo andar com as mulheres.

A seguir, o ato de estar com o arco na mão – aqui, arco como objeto fálico segurado em
apenas uma das mãos – pode dar a ideia do ato sensual que o amigo está realizando, “ferindo”,
que traz a ideia de penetração no corpo feminino, e atirando não em aves como caça, mas nas
mulheres após chegar ao seu ápice de prazer. O ato presente nas duas últimas estrofes corrobora
com a ideia de que este “atirar” não mata as aves que cantam, ou seja, que estão ali realizando
uma ação, como o canto do prazer, o arfar, os gemidos rítmicos. Pelo contrário, o amigo tem a
intenção de não as machucar.

Esta análise aprofundada nos permite observar a forma como o ato sexual era
representado nas cantigas de amigo: em um primeiro plano, uma leitura inocente;
compreendendo as referências, a consciência e a liberdade carnal. O uso da voz feminina
falando de sexo é uma grande quebra de paradigmas para uma época em que qualquer ato
1
Estrofe.
sexualmente explícito ou implícito, mesmo os mais simples e que hoje em dia não tem tanto
valor, era escandaloso, principalmente partindo de uma mulher, mesmo que as autorias dos
poemas fossem masculinas. Em se tratando deste tipo de cantiga, é importantíssimo que seja
realizada esta análise aprofundada e entender os principais elementos subjetivos e referenciais,
muito comuns nesta fase.

Referências:

CANTIGAS medievais galego-portuguesas. FSCH – Universidade Nova de Lisboa. Disponível


em: http://cantigas.fcsh.unl.pt/index.asp. Acessado em 16/11/16

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