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MAX SCHELER

SITUAÇÃO DO HOMEM NO COSMOS

Título Original: Die Stellung des Menschen im Kosmos


Autor: Max Scheler
Tradução: Artur Morão
Grafismo: Cristina Leal
Paginação: Vitor Pedro

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Impressão e acabamento:
Papelmunde, SMG, Lda.
1.ª edição, Junho de 2008

ISBN: 978-989-95689-6-9
Depósito Legal n.º 278384/08

Esta obra está protegida pela lei. Não pode ser reproduzida
no todo ou em parte, qualquer que seja o modo utilizado,
sem a autorização do Editor.
Qualquer transgressão à lei do Direito de Autor
será passível de procedimento judicial.
É em torno da ideia de conhecimento articulado com as
necessidades de aquisição de uma cultura geral consistente que
se projecta a colecção “Biblioteca Universal”.
Tendo como base de trabalho uma selecção criteriosa de
autores e temas – dos quais se destacarão as áreas das ciências
sociais e humanas –, pretende-se que a colecção esteja aberta a
todos os ramos de saber, sejam de natureza filosófica, técnica,
científica ou artística.
APRESENTAÇÃO

O presente escrito de Max Scheler poderia, de


certo modo, olhar­‑se quase como um “mani-
festo”. Com ele se traçam, de facto, as linhas
fundamentais de uma nova disciplina que, mais tarde, viria
a figurar no currículo de muitas faculdades universitárias sob
o nome de “Antropologia filosófica”. É, a esse título e apesar
da sua brevidade, um texto fundamental da filosofia contem-
porânea, e fruto igualmente de uma das mentes alemãs mais
atentas, enérgicas e radiosas da primeira metade do século
XX. Representa, ao mesmo tempo, o resumo coeso, denso e
brilhante, de um projecto antropológico muito mais vasto que
o autor tinha em mente realizar, que por ele foi repetidamente
anunciado e prometido, mas nunca de todo levado a efeito. Em
parte devido à morte prematura do filósofo em 1928, com a
idade de 54 anos; em parte ainda devido ao espírito inquieto,
quase vulcânico, de Max Scheler, fonte perene de ideias e de
intuições geniais, mas talvez sem paciência e concentração para
o trabalho lento de as organizar numa obra sistemática.
No seu estado definitivo, mas de índole programática,
este escrito é o desenvolvimento de uma conferência dada
pelo autor em 24 de Abril de 1927, numa jornada rotulada
de “Escola da sabedoria” (“Schule der Weisheit”) e organi-
zada pelo Conde Hermann Keyserling em Darmstadt à volta
do tema “Homem e Terra”, na qual participaram também,
entre outros, C. G. Jung e Leo Frobenius. Dentro da evo-
lução intelectual do filósofo, situa­‑se naquele que é habitual
e consentâneo reconhecer como o segundo período do seu
pensamento, que vai de 1920/22 a 1928 e representa uma


SITUAÇÃO DO HOMEM NO COSMOS

inflexão ­ significativa em relação aos anteriores motivos e


núcleos da sua reflexão, graças aos quais Max Scheler havia
conquistado um lugar de grande destaque na cena filosófica
da Alemanha.
De facto, o primeiro período, desdobrado ao longo do arco
temporal de 1897 a 1920, centrara­‑se nos temas das emo-
ções humanas, do amor, da natureza da pessoa, dos valores
e da sua respectiva hierarquia, do “eterno no homem”, ou
seja, do “divino”; insistira, ao mesmo tempo, numa crítica
virulenta a Kant, a Husserl e às noções de razão e consciên-
cia puras, próprias do idealismo alemão, contrapondo­‑lhes o
lugar central do coração, do homem como “ens amans”, na
linha agostiniana (do “ordo amoris”) e pascaliana (das “raisons
du coeur”).
O segundo período, em contrapartida, desenha uma
viragem dramática no itinerário scheleriano; por um lado,
o filósofo distancia­‑se da fé católica, de que antes fora um
paladino muito apreciado e a cuja sombra desentranhara uma
notabilíssima filosofia da religião; por outro, continua atento
ao problema do “divino”, mas agora inserido numa visão do
processo cósmico universal, em que adquirem realce os temas
da energia vital (‘impulso’) e do ‘espírito’. Mas este é olhado
como “impotente”, como necessitando das condições vitais,
da história e das dimensões culturais para se realizar como
‘espírito’, num processo evolutivo de ‘teomorfose’ de cunho
panteísta, englobando todas as esferas da vida, desde a planta
até ao elemento espiritual.
Aqui se inscreve A situação do homem no cosmos. Depois
de constatar na cultura europeia três ideias irreconciliáveis
do ‘homem’, que inspiraram respectivamente uma antro-
pologia teológica, outra filosófica e uma terceira científico­
‑natural, Max Scheler apresenta o seu projecto de uma dou-
trina englobante do ser humano. Começa por fazer uma
distinção entre o conceito sistemático­‑natural e o conceito


APRESENTAÇÃO

essencial de ‘homem’, que possibilite o seu enquadramento


e faça sobressair a sua posição específica no todo cósmico.
A filosofia, ao encarar o homem terrestre, deve igualmente
atender à organização vital do sujeito de conhecimento e à
sua vontade de domínio. Em virtude da sua participação no
impulso vital biopsíquico, o homem encontra­‑se radicado na
série gradual das forças e capacidades psíquicas que, desde a
planta, passando pelos animais mais insignificantes, chega ao
nível dos animais superiores. No entanto, a sua especificidade
não radica em ulteriores estádios do ser orgânico e vital, mas
na dimensão espiritual, radicada no cosmos. Enquanto pes-
soa, as suas características são a abertura ao mundo, a cons-
ciência de si, a capacidade de objectivação. Enquanto espírito,
dispõe de actos emocionais e volitivos, do poder de ideação e
da intuição de fenómenos originários, que o capacitam para
a “redução fenomenológica” e a consequente apreensão de
conteúdos essenciais, autónomos, autógenos e inderiváveis de
outras realidades. Nesta idoneidade reside o critério de toda
a configuração cultural, mas cujo cumprimento só é possível
através da fantasia impulsiva determinadora de imagens sob
a direcção e o controlo do espírito. Se este é, na sua forma,
originariamente desprovido de força, o impulso vital, por seu
lado, carece de direcção no seu movimento. Por isso, a meta
de todo o ser e acontecer finitos é a recíproca compenetração
do espírito originariamente impotente e da força avassaladora
do impulso, cego perante todas as ideias e valores espirituais –
a espiritualização da vida e o revigoramento vital do espírito.
Neste drama metafísico, que resume e condensa todo o acon-
tecer cósmico, o homem torna­‑se ‘colaborador de Deus’, em
cujo ser absoluto, também ele em processo de auto­‑realização,
têm o seu fundamento a natureza e o espírito.

***


SITUAÇÃO DO HOMEM NO COSMOS

O texto original, a partir do qual se fez a tradução aqui pro-


posta, encontra­‑se no volume IX das Obras Completas [Gesam‑
melte Werke] de Max Scheler, editadas pela Francke Verlag de
Berna/Munique, 1976, pp. 7­‑71, sob a supervisão de Manfred
S. Frings.

Artur Morão

***

Nota do Editor:
Os títulos das secções e subsecções [entre parêntesis
rectos] não aparecem no texto de origem; indicam­‑se para
orientação do leitor e para uma identificação mais fácil dos
conteúdos, à medida que vão sendo expostos.

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PREFÁCIO À PRIMEIRA EDIÇÃO

E ste trabalho constitui um resumo breve e muito


conciso das minhas ideias sobre alguns pontos ful-
crais da antropologia filosófica; dela me ocupo desde
há anos e aparecerá no início de 1929. As questões – Que é o
homem, e qual é a sua situação no ser? – assediaram­‑me, desde
o despertar da minha consciência filosófica, de um modo mais
essencial do que qualquer outra questão filosófica. Os esforços
de longos anos com que em todas as vertentes abordei o pro-
blema condensaram­‑se, desde 1922, na elaboração de uma obra
mais vasta consagrada a este tema; e vi, com satisfação cres-
cente, que a maior parte de todos os problemas da filosofia, por
mim já tratados, desembocava cada vez mais nesta questão.
De muitos lados me expressaram o desejo de que a minha
conferência “A situação peculiar do homem” (ver também Der
Leuchter, VIII, 1927) que fiz em Darmstadt em Abril de 1927,
na jornada da Escola da Sabedoria, aparecesse publicada à
parte. Aqui se responde a tal desejo.
Se o leitor se quiser informar sobre o desenvolvimento das
minhas ideias em torno deste grande tema, recomendo­‑lhe a
leitura sucessiva de: – 1. O ensaio Zur Idee des Menschen [Sobre
a ideia do homem], que apareceu pela primeira vez na revista
Summa em 1914 e foi, mais tarde, inserido na minha colectâ-
nea de ensaios e de artigos Von Umsturz der Werte (A subver-
são dos valores) 3.ª ed., 1927, Leipzig, 1923. Em seguida, na
mesma obra, o meu ensaio (1912) O ressentimento na génese das
morais. – 2. As secções correspondentes no meu livro Formalis‑
mus in der Ethik und die materiale Wertethik [Formalismo na
ética e ética material dos valores] (1913/1916), 3.ª ed., Leipzig

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SITUAÇÃO DO HOMEM NO COSMOS

1927 1. Em seguida os capítulos relativos à especificidade da


vida emocional no homem em Wesen und Formen der Sympa‑
thie [Essência e formas da simpatia], 3.ª ed., Bona. – 3. Sobre
a relação do homem com a teoria da história e da sociedade,
deveria referir­‑se o meu artigo Mensch und Geschichte [Homem
e História] na Neue Rundschau de Novembro de 1926 (que
aparecerá provavelmente no Outono de 1928 numa brochura
especial, na editora da Neue Schweitzer Rundschau, Zurique, e
também a minha obra Die Wissensformen und die Gesellschaft
[As formas do saber e a sociedade], Leipzig 1926. Sobre a
relação do homem, do saber e da cultura, comparem­‑se Die
Formen des Wissens und die Bildung [As formas do saber e a
cultura], Bona, 1915. – 4. Quanto às possibilidades de evolu-
ção do homem, expressei­‑me na conferência Der Mensch im
kommenden Zeitalter des Ausgleichs [O homem na era futura do
compromisso], impressa na colectânea que em breve aparecerá:
Ausgleich als Aufgabe und Schicksal [Compromisso como tarefa
e destino], editada pela Escola Superior alemã de política, na
série “Ciência política”, Berlim, 1928.
Nas lições que, entre 1922 e 1928, dei na Universidade de
Colónia sobre os “fundamentos da biologia”, a “antropolo-
gia filosófica”, a “teoria do conhecimento” e a “metafísica”, já
várias vezes expus, de modo pormenorizado – e muito além
do fundamento aqui proposto –, os resultados das minhas
investigações.
Posso constatar, com satisfação, que os problemas de
uma antropologia filosófica se tornaram hoje na Alemanha o


  Nesta obra, importa ler, entre outros, os capítulos dedicados à
teoria da realidade, da experiência e da percepção, p. 109 ss.; à crítica das
teorias naturalistas do homem, p. 278 ss; ao estrato da vida emocional,
p. 340 ss; e à pessoa, p. 384 ss. Cf. também no índice analítico dos
assuntos, acrescentado à 3.ª ed., as referências indicadas pelos termos
“homem”, “físico”, “psíquico”, etc, etc.

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PREFÁCIO À PRIMEIRA EDIÇÃO

v­ erdadeiro centro de todas as pesquisas [no campo] da filosofia,


e que fora dos círculos filosóficos especializados, também os
biólogos, os médicos, os psicólogos e os sociólogos se esforçam
por constituir uma nova imagem da estrutura essencial do
homem.
E todavia nunca na história, de todos nós conhecida, o
homem foi, tanto como hoje, um problema para si mesmo. No
momento em que reconheceu que, menos do que nunca, possui
um conhecimento rigoroso do que ele é, e em que a resposta
possível a esta questão, seja ela qual for, a esta questão não o
atemoriza, o homem parece animado de uma nova coragem: a
coragem da verdade; ousa então levantar esta questão essencial
de um modo novo, sem a associar, mais ou menos consciente-
mente, como até aqui era habitual, a uma tradição teológica,
filosófica e científico­‑natural; e, firmando­‑se no tesouro con-
siderável de saberes particulares, que as diferentes ciências do
homem constituiram, atreve­‑se a elaborar uma forma nova da
sua autoconsciência e da intuição de si próprio.

Francoforte, fim de Abril, 1928


Max Scheler

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INTRODUÇÃO

S e a um europeu culto se perguntar que entende ele


pela palavra ‘homem’, quase sempre começam, na sua
cabeça, a defrontar­‑se três âmbitos de ideias de todo
inconciliáveis. Primeiro, o universo intelectual da tradição
judeo­‑cristã de Adão e Eva, da criação, do paraíso e da queda.
Em segundo lugar, o círculo de ideias da Grécia antiga em que,
pela primeira vez no mundo, a autoconsciência do homem se
elevou a um conceito da sua situação particular, mediante a
tese de que o homem é homem pela posse da “razão”, logos,
phronesis, ratio, mens, etc. – Logos significa aqui tanto o discurso
como a aptidão para apreender a ‘quididade’ de todas as coisas.
Estreitamente unida a esta ideia está a doutrina segundo a qual
existe também, subjacente ao todo integral, uma “razão” sobre­
‑humana, da qual o homem, e só ele entre todos os seres, par-
ticipa. O terceiro círculo intelectual, também ele já há muito
transformado em tradição, é o da ciência moderna da natureza
e da psicologia genética: o homem seria o resultado final, muito
tardio, da evolução do planeta Terra – um ser que se distingue
das formas animais que o precederam só pelo grau de complica-
ção das combinações de energias e de capacidades que, em si, se
encontram já na natureza infra­‑humana. Estes três círculos de
ideias não têm entre si unidade alguma. Possuímos assim uma
antropologia científico­‑natural, uma antropologia filosófica e
uma antropologia teológica, que mutuamente se ignoram – do
homem, porém, não possuímos nenhuma ideia unitária. Ademais,
por valiosa que possa ser a multiplicidade sempre crescente
das ciências especiais que tratam do homem, ela, em vez de
elucidar, oculta a sua essência. Se pensarmos também que os

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SITUAÇÃO DO HOMEM NO COSMOS

três referidos sistemas de ideias da tradição se encontram hoje


muito abalados, que a solução darwiniana do problema da
nossa origem foi afectada de um modo muito especial, pode
dizer­‑se que nunca como agora, em época alguma da história,
o homem se tornou para si mesmo tão problemático.
Decidi, por isso, sobre uma base mais ampla, fornecer
um novo ensaio de antropologia filosófica. No que se segue,
discutir­‑se­‑ão apenas alguns pontos que concernem à essência
do homem em relação ao animal e à planta, em seguida, à sua
peculiar situação metafísica e indicar­‑se­‑á uma pequena parte
dos resultados a que cheguei.

Não se pode atacar a questão da situação peculiar do ser


humano sem perscrutar a insidiosa ambiguidade encerrada já
na palavra e no conceito “homem”. A palavra especificará, em
primeiro lugar, as características particulares que o homem, no
plano morfológico, possui, enquanto subgrupo dos vertebrados
e dos mamíferos. É evidente, seja qual for o resultado desta
construção conceptual, que o ser vivo denominado homem,
não só permanece subordinado ao conceito de animal, mas
constitui também um rincão, relativamente muito pequeno,
do reino animal. Tal continua ainda a ser verdade mesmo se,
com Lineu, se designar o ser humano como “o pico da série
dos vertebrados mamíferos” (o que, aliás, é muito discutível
no domínio factual e conceptual), pois este pico, como toda
a sumidade de uma coisa, pertence ainda à coisa de que ele
é pico. De um modo totalmente independente de semelhante
conceito, confluem na unidade do homem a marcha vertical,
a transformação da coluna vertebral, o equilíbrio do crânio, o
poderoso desenvolvimento do seu cérebro e as configurações
orgânicas suscitadas pelo andar erecto (como a mão preênsil
com o polegar oponível, a regressão da mandíbula e dos den-
tes); mas o próprio termo “homem” designa, na linguagem
de todos os dias e em todos os povos civilizados, algo de tão

16
INTRODUÇÃO

inteiramente diverso que só com dificuldade se encontrará na


linguagem humana um outro vocábulo, que ostente análoga
ambiguidade. Deve ele significar igualmente um conjunto de
coisas que se opõem do modo mais estrito ao conceito de “ani-
mal em geral” e, por conseguinte, a todos os mamíferos e ver-
tebrados. E opõe­‑se a estes no mesmo sentido que, porventura,
ao infusório stentor, embora seja difícil contestar que o ser vivo
apelidado de “homem” é, do ponto de vista morfológico, fisio-
lógico e psicológico, incomparavelmente mais semelhante a um
chimpanzé do que o homem e o chimpanzé a um infusório.
Este segundo conceito deve, claro está, ter um sentido intei-
ramente diverso, uma origem de todo diferente do primeiro 2.
É desejo meu chamar ao segundo conceito o conceito eidético
do homem, em oposição ao primeiro, de cunho sistemático­
‑natural. Será em geral legítimo este segundo conceito, que
atribui ao homem enquanto tal uma situação peculiar, incom-
parável a qualquer outra posição específica de uma espécie?
Tal é o nosso tema.


  Cfr., a este respeito, o ensaio “Sobre a ideia de homem” (1914), na
obra Von Umsturz der Werte. Demonstro aí que o conceito tradicional
do homem é constituído pela semelhança com Deus; que, portanto,
pressupõe já a ideia de Deus como centro de referência.

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[I – HIERARQUIA DO SER
PSICOFÍSICO]

S ó nos é possível clarificar a situação peculiar do homem,


se examinarmos a estrutura global do mundo bio­
psíquico. Tomarei então como ponto de partida uma
série gradual das forças psíquicas e das capacidades, que a ciência,
pouco a pouco, destacou. Quanto ao limite do psíquico, ele
coincide em geral com o limite do vivo 3. Além das proprie-
dades essenciais objectivas que se manifestam nas coisas que
dizemos “vivas”, como o automovimento, a autoformação, a
autodiferenciação, a autodelimitação no espaço e no tempo
(não há aqui que entrar nos seus pormenores), é um facto que os
seres vivos não só são objectos para observadores externos, mas
também possuem um ser para­‑si e uma interioridade (Fürsich
und Innensein) em que se apreendem a si mesmos, uma carac-
terística a eles essencial – a cujo respeito se pode mostrar que
ela tem a mais íntima comunhão, na estrutura e na forma de
fluxo, com os fenómenos objectivos da vida. É o lado psíquico
da autonomia, do movimento espontâneo, etc., do ser vivo em
geral – o fenómeno originário psíquico da vida.

[Impulso afectivo (planta)]


O grau ínfimo do psíquico – ao mesmo tempo o vapor
que tudo impele até às alturas mais luminosas da actividade
espiritual e fornece a energia eficaz aos mais puros actos do


  Revelou­‑se errónea a doutrina segundo a qual o psíquico só
começa com a “memória associativa”, ou somente no animal − ou até
só no homem (Descartes). Mas é arbitrário atribuir um psiquismo ao
inorgânico.

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SITUAÇÃO DO HOMEM NO COSMOS

pensamento e aos mais ternos gestos da bondade irradiante – é


constituído pelo “impulso afectivo” (Gefühlsdrang) inconsciente,
privado de sensação e de representação. Nele não há ainda sepa-
ração entre “sentimento” (Gefühl) e “pulsão” (Trieb) (que, como
tal, tem já sempre uma orientação específica e uma finalidade
“para” algo, por exemplo, alimento, satisfação sexual, etc.). Um
simples “movimento de aproximação”(Hinzu), por exemplo em
direcção à luz, e “um movimento de retirada” (Vonweg), um
prazer e uma dor sem objecto, os seus dois únicos estados. Mas
o impulso afectivo é já muito afastado dos centros e campos
de forças subjacentes às imagens transconscientes, que deno-
minamos corpos “anorgânicos”; em nenhum sentido se pode
atribuir a estes uma interioridade.
Este primeiro estádio do devenir psíquico, tal como se apre-
senta no impulso afectivo, devemos e podemos atribuí­‑lo já à
planta. A impressão de que a esta falta um estado interno nasce
apenas da lentidão dos seus processos vitais; frente à lupa do
tempo, esmorece esta impressão. Mas não se trata de à planta
atribuir já a “sensação” e a “consciência”, como fez Fechner.
Quem, como ele, considera – erroneamente – a “sensação” e a
“consciência” como as componentes básicas mais elementares
do psíquico deveria recusar à planta a ocorrência anímica. O
impulso afectivo da planta está já, sem dúvida, ordenado ao
seu meio, a um crescimento nela segundo as orientações fun-
damentais do “em cima” e do “em baixo”, para a luz e para
a terra; todavia, está apenas ordenado ao todo indeterminado
dessas direcções do meio, às possíveis resistências e realidades
nelas presentes – importantes para a vida do organismo vegetal
–, mas não a determinadas componentes e estímulos do meio
ambiente, a que corresponderiam particulares qualidades sen-
soriais e elementos imaginais. Por exemplo, a planta reage espe-
cificamente à intensidade dos raios luminosos, mas não altera
a sua reacção segundo as cores e as orientações dos raios. De
acordo com investigações aprofundadas feitas, não há muito,

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[I – HIERARQUIA DO SER PSICOFÍSICO]

pelo botânico holandês Blaauw, à planta não se podem atri-


buir tropismos específicos, sensações, nem sequer os mínimos
começos de um arco reflexo; também não associações e reflexos
condicionados, por conseguinte, nenhuma espécie de “órgãos
dos sentidos”, como os que Haberlandt tentou circunscrever.
Demonstrou­‑se que os fenómenos motores desencadeados por
estímulos, e que anteriormente se referiam a semelhantes coi-
sas, são componentes dos movimentos gerais de crescimento da
planta. Se perguntarmos o que é o conceito mais geral de
“sensação” – nos animais superiores, as estimulações exercidas
sobre o cérebro pelas glândulas de secreção interna poderiam
representar as sensações mais primitivas e estar na base tanto
das sensações orgânicas como das dos processos externos –,
então ele é o conceito da réplica específica de um momentâneo
estado orgânico e motor do ser vivo a um centro e a possibili-
dade de, graças a esta réplica, modificar os movimentos que se
vão seguir no próximo momento temporal. No sentido desta
determinação conceptual, a planta não tem nenhuma sensação,
nenhuma “memória” específica que ultrapasse a dependência
dos seus estados vitais relativamente ao todo da sua pré­‑história,
e nenhuma genuína capacidade de aprendizagem, como a que
já apresentam até os mais simples infusórios. As investigações
que, supostamente, atribuíram às plantas reflexos condiciona-
dos e uma certa aptidão para a domesticação, poderiam muito
bem ter­‑se transviado.
Do que nos animais chamamos “vida instintiva” existe, na
planta, apenas a geral pulsão para o crescimento e a reprodução,
ínsita no impulso afectivo. A planta demonstra, pois, com a
máxima clareza, que a vida não é essencialmente “vontade de
poder”, mas, sim, que o impulso para a reprodução e para a
morte é o impulso originário de toda a vida. Não escolhe por
si o alimento, não se comporta activamente na fecundação; é
fecundada passivamente pelo vento, pelas aves, pelos insectos
e, como em geral prepara o alimento de que necessita a partir

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SITUAÇÃO DO HOMEM NO COSMOS

da matéria inorgânica que, em certa medida, existe em toda a


parte, não precisa, como o animal, de procurar sítios determi-
nados para encontrar alimentos. A planta não tem a margem
do movimento local espontâneo do animal, não tem nenhuma
sensação ou pulsão específica, não tem nenhuma associação ou
reflexo condicionado, não tem nem sistema motor nem sistema
nervoso, é um todo de carências, que se apreendem claramente
e sem equívoco a partir da sua estrutura de ser. Pode mostrar­‑se
que, se a planta possuísse uma só que fosse destas coisas, deveria
possuir também outra e todas as outras. Como não há sensação
sem impulso e sem início de uma acção motora, é forçoso que
onde falta o sistema motor seja também inexistente um sistema
de sensações. A multiplicidade das qualidades sensoriais, que
um organismo animal possui, nunca é maior do que a diversi-
dade da sua mobilidade espontânea – e é função da última.
A orientação essencial da vida, designada pelo termo “vege-
tal”, “vegetativo” – os múltiplos fenómenos de transição, já
conhecidos de Aristóteles, entre a planta e o animal, provam
que não lidamos aqui com conceitos empíricos – é uma pulsão
exclusivamente dirigida para fora. Por isso, falo, a respeito da
planta, de impulso afectivo “extático”, para indicar a carência
total de réplica, típica da vida animal, dos estados orgânicos a
um centro, a ausência plena de um retorno da vida a si mesma,
de uma re­‑flexio primitiva, do mais débil estado interno “cons-
ciente”. Pois a consciência só aparece na primitiva re­‑flexio da
sensação, e tal sempre por ocasião de resistências – toda a cons-
ciência assenta na dor e todos os graus superiores da consciência
na dor crescente – com que depara o movimento espontâneo
originário. Juntamente com a consciência, com a sensação, falta
à planta toda a “vigilância” vital, que dimana apenas da função
vígil da sensação. Mas a planta pode dispensar as sensações,
justamente porque – sendo o maior químico entre os seres vivos
– prepara ela própria, a partir das substâncias inorgânicas, o
material da sua construção orgânica. A sua existência é assim

22
[I – HIERARQUIA DO SER PSICOFÍSICO]

absorvida pela nutrição, pelo crescimento, pela reprodução e


pela morte (sem duração vital específica).
Na existência vegetal, encontra­‑se já, todavia, o fenómeno
originário da expressão, uma certa fisionomia dos seus estados
internos, das condições circunstanciais do impulso afectivo do
ser interno da sua vida, como murcho, vigoroso, luxuriante,
pobre. A “expressão” é um fenómeno primigénio da vida – de
nenhum modo, como pensava Darwin, um conjunto de acções
teleológicas atávicas. Em contrapartida, o que de todo falta à
planta são as funções de notificação, com que deparamos em
todos os animais, e que determinam toda a interacção entre
eles; tornam o animal já bastante independente da presença
imediata das coisas necessárias à sua vida. Só no homem é que,
nas funções de expressão e de notificação, se edifica a função
representativa e denominativa dos signos. Não encontramos no
mundo vegetal o duplo princípio, essencial a todos os animais
que vivem em grupo, de pioneiro e seguidores, de ostentação
e imitação.
Em virtude da ausência de centralização da vida vegetal,
sobretudo da inexistência de um sistema nervoso, a dependên-
cia dos órgãos e das funções orgânicas é nas plantas, por natu-
reza, mais íntima do que nos animais: cada estímulo, graças
ao sistema reticular de condução das estimulações, presente
na planta, altera nela todo o estado vital em maior medida
do que acontece no animal. Por isso, a planta presta­‑se com
maior, e não menor, dificuldade a uma explicação mecânica da
vida do que o animal (em geral). Pois, só com o aumento da
centralização do sistema nervoso no animal cresce também a
independência das suas reacções parciais – e, assim, uma certa
aproximação do corpo animal à estrutura da máquina.
Além disso, a individualização, isto é, a medida da consis-
tência espacial e temporal, é muito menor na planta do que
no animal. A planta não é capaz de uma adaptação activa ao
ambiente morto e vivo; por isso, no caso das suas efectivas

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SITUAÇÃO DO HOMEM NO COSMOS

relações teleóclinas 4 com o contexto anorgânico do seu meio,


e ainda com os insectos e com as aves, etc., pode dizer­‑se que
ela atesta, em maior medida do que o animal, não só a unidade
da vida em sentido metafísico, ínsita em todos os fenóme-
nos figurais morfológicos, mas também o devir progressivo de
todo o tipo de elaborações das formas de vida em complexos
compactos de matéria e energia. É descabido o princípio de
utilidade, tão desmedidamente valorizado pelos darwinistas e
teístas – como se, num sentido objectivamente teleológico, a
planta existisse ali “para” o animal, o animal “para” o homem,
como se na natureza existisse um anelo que tem por fim o
ser humano; despropositado é também o lamarckismo. Além
disso, as formas luxuriantes das suas partes folhosas indicam,
na sua plenitude, ainda de modo mais enfático do que a riqueza
de formas e cores dos animais, a presença de um princípio
que actua ludicamente e domina só de modo estético, na raiz
desconhecida da vida.
O primeiro estádio da vertente interna da vida, o impulso
afectivo, está presente não só em todos os animais, mas tam-
bém no homem. (Este – como veremos – congrega em si todos
os graus essenciais da existência em geral, em particular da
vida, e nele a natureza inteira, pelo menos quanto às suas
regiões essenciais, chega à unidade mais concentrada do seu
ser). Não há nenhuma sensação, nenhuma percepção, nenhuma
representação, que não assente neste impulso obscuro, e que
este não sustenha com o seu fogo que se imiscui incessante-
mente nos tempos do sono e da vigília – inclusive, a sensação
mais elementar nunca é só efeito da excitação, mas é sempre
também função de uma atenção pulsional. O impulso repre-
senta ao mesmo tempo a unidade de todas as tendências e
emoções humanas, na sua rica articulação. Segundo alguns

  Palavra composta, de origem grega, que significa “inclinar-se para




um fim”. N. do T.

24
[I – HIERARQUIA DO SER PSICOFÍSICO]

sábios modernos, ele poderia estar localizado no nosso tronco


cerebral que, provavelmente, é também o centro das funções
das glândulas endócrinas, mediadoras dos processos somáticos
e anímicos. Ademais, o impulso afectivo é, no homem, o sujeito
da vivência primária de resistência, a qual constitui a raiz de
toda a noção de “realidade” e de “ factualidade”, sobretudo da
unidade e da impressão de realidade efectiva, prévia a todas
as funções representativas. A representação e o pensamento
mediato (raciocínio) nunca nos podem indicar coisa alguma
excepto o “ser­‑assim” (Sosein) e o “ser­‑outro” (Anderssein) da
realidade efectiva. Esta, enquanto “ser­‑real” do real, só nos é
dada numa resistência geral ligada à angústia, a saber, numa
vivência da resistência 5.
Do ponto de vista “organológico”, o sistema nervoso “vege-
tativo”, que regula sobretudo a distribuição do alimento, repre-
senta no homem, como já o seu nome indica, o que nele ainda
subsiste de natureza vegetativa. Uma subtracção periódica de
energia no sistema animal, que regula o comportamento dinâ-
mico exterior, em benefício do sistema vegetativo é, prova-
velmente, a condição fundamental do ritmo dos estados de
sono e de vigília. O sono é, assim, um estado relativamente
vegetativo.

[Instinto (animal)]
A segunda forma anímica essencial, que se segue ao impulso
afectivo extático na hierarquia objectiva da vida, é por nós vis-
lumbrada no que designamos como “instinto” – palavra obscura,
muito controversa segundo a sua interpretação e o seu sentido.
Subtrair­‑nos­‑emos a esta obscuridade, abstendo­‑nos, antes de
mais, de toda a definição por meio de ­ conceitos ­ psicológicos


  Cfr. os meus ensaios “Erkenntnis und Arbeit” in Die Wissensfor‑
men und die Gesellschaft (1926) e “Idealismus – Realismus” in Philoso‑
phischen Anzeiger, 2, Fasc. 3, Bona 1927.

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SITUAÇÃO DO HOMEM NO COSMOS

e determinando o instinto (e os subsequentes estádios essen-


ciais) só a partir do chamado “comportamento” do ser vivo. Tal
“comportamento” é sempre objecto de observação externa e
presta­‑se à descrição. Pode determinar­‑se sem atender às uni-
dades fisiológicas do movimento que o suportam, e também
sem introduzir na sua característica conceitos de excitação física
ou química. Independentemente de toda a explicação causal,
quer fisiológica quer psicológica, e antes dela, podemos apreen-
der unidades e mudanças da conduta de um ser vivo, quando
se alteram os elementos do meio, e obtemos assim relações
regulares, que são já significativas na medida em que apre-
sentam um carácter holístico e teleóclino. Os “behavioristas”
erram quando, no conceito de comportamento, incorporam já
o processo fisiológico da sua ocorrência. O valor deste conceito
consiste precisamente em ele ser um conceito psicofisicamente
indiferente. Ou seja, todo o comportamento é sempre também
expressão de estados internos; pois, nada há de intrapsíquico
que não se “expresse”, imediata ou mediatamente, na conduta.
Por conseguinte, ele pode e deve explicar­‑se sempre, ao mesmo
tempo, de dois modos, fisiológico e psicológico: é tão erróneo
preferir a explicação psicológica à explicação fisiológica como a
segunda à primeira. O “comportamento” é o campo de obser-
vação, descritivamente “médio”, de que devemos partir.
Nesta acepção, chamamos “instintivo” a um comporta-
mento que possui as seguintes características: primeiro, deve
ter um sentido, quer dizer, ser de tal modo que relativamente ao
todo do portador da vida, à sua alimentação e reprodução, ou
ao conjunto de outros portadores da vida, possua um carácter
teleológico (ao serviço de interesses próprios ou estranhos).
Deve, em segundo lugar, desenrolar­‑se segundo um ritmo fixo,
inalterável. Depara­‑se com este ritmo, não nos órgãos que
se usam para a conduta e que, com a remoção de qualquer
um deles, se podem alterar; também não na combinação de
movimentos singulares, que podem mudar, segundo a situação

26
[I – HIERARQUIA DO SER PSICOFÍSICO]

de partida do corpo animal numa tarefa ou operação seme-


lhante. A natureza amecânica do instinto, a impossibilidade de
o reduzir a combinações de reflexos isolados ou em cadeias (a
“tropismos”, como Loeb fez), está assim garantida. Este ritmo,
esta forma temporal, cujas partes reciprocamente se exigem,
também não os têm os movimentos significativos, adquiridos
por associação, por exercício e hábito – segundo o princípio
que Jennings designou de “tentativa e erro”. O nexo de sen-
tido não precisa de se vincular a situações presentes, mas pode
igualmente visar situações muito afastadas no tempo e no
espaço. Por exemplo, os preparativos de um animal em vista
do inverno ou da postura dos ovos não são, decerto, carentes
de sentido, embora se possa demonstrar que ele, enquanto indi-
víduo, jamais viveu situações semelhantes, e que aí se encontra
excluída a informação, a tradição, a imitação dos congéneres;
comporta­‑se, como o faz já o electrão, segundo a teoria dos
quantos: “como se” previsse um estado futuro.
Um terceiro rasgo do comportamento instintivo é que ele
responde somente a situações que se repetem de modo típico,
que são importantes para a vida da espécie enquanto tal, mas
não para a experiência peculiar do indivíduo. O instinto está
sempre ao serviço da espécie, quer da própria quer de outra,
com a qual a primeira se encontra numa importante relação
vital (as formigas e os seus hóspedes; formações de fungos nas
plantas; insectos e aves, que fecundam os vegetais, etc.). Esta
característica distingue nitidamente a conduta instintiva, pri-
meiro, do “treino espontâneo” por “tentativa e erro” e de toda
a “aprendizagem”; em segundo lugar, do uso da “inteligência”
– porque, como veremos, são ambos originariamente úteis ao
indivíduo, e não à espécie. A conduta instintiva nunca é, pois,
uma reacção aos conteúdos peculiares do meio, que variam de
indivíduo para indivíduo, mas apenas a uma estrutura muito
especial, a um tipo específico de organização dos possíveis ele-
mentos do ambiente. Enquanto os conteúdos ­ particulares

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SITUAÇÃO DO HOMEM NO COSMOS

podem ser profundamente modificados, sem que o instinto


se transvie e induza a enganos, a mínima mudança da estru‑
tura suscitará erros. Eis o que se caracteriza como “rigidez”
do instinto, em contraste com os modos de comportamento
extremamente plásticos, que se baseiam no treino, na auto­
‑instrução e na inteligência. Na sua poderosa obra, Souvenirs
entomologiques, J.‑H. Fabre aduziu, com a máxima precisão,
uma multiplicidade ingente de semelhante comportamento
instintivo. A esta subserviência à espécie é inerente o facto de o
instinto, nos seus rasgos fundamentais, ser inato e hereditário: e
decerto enquanto aptidão especificada para tal comportamento,
e não apenas enquanto aptidão geral para adquirir modos de
conduta, como também o são, naturalmente, o hábito, o treino
e a inteligência. Aliás, o carácter inato não significa aqui que o
comportamento, que importa apelidar de instintivo, se deveria
desenrolar logo após o nascimento, mas somente que ele está
ordenado a períodos determinados de crescimento e de matu-
ridade, e até eventualmente a formas diversas dos animais (no
caso de polimorfismo).
Por fim, uma característica muito importante do instinto
é esta: ele representa uma conduta que é independente do
número das tentativas feitas por um animal para enfrentar uma
situação: pode, neste sentido, designar­‑se como previamente já
pronto. Se não é possível conceber a genuína organização do
animal como suscitada por meio de pequenos passos de varia-
ções diferenciadas, também não se pode explicar o “instinto”
mediante a adição de movimentos parciais bem sucedidos.
Pode, sem dúvida, o instinto ser especializado pela experiência
e pela aprendizagem, como se vê, por exemplo, nos instintos
dos animais predadores, aos quais é inato o perseguir uma
determinada presa, mas não a arte de levar a bom termo tal
exercício. Mas o que o exercício e a experiência aqui realizam
corresponde apenas, por assim dizer, às variações de uma melo-
dia, não à aquisição de outra nova. O instinto está, ­portanto,

28
[I – HIERARQUIA DO SER PSICOFÍSICO]

já ­incorporado na morfogénese dos próprios seres vivos e actua,


na mais estreita ligação, com as funções fisiológicas configu-
radoras, que constituem as formas estruturais do corpo do
animal.
Deveras relevante é a relação do instinto com as sensações,
com a actividade das funções sensoriais e com os órgãos dos
sentidos, e também com a memória. Exclui­‑se que o instinto
surja só graças às experiências sensoriais externas (sensualismo).
O estímulo da sensação desencadeia apenas o decurso ritmica-
mente firme da actividade instintiva, sem determinar que ele
ocorra de um certo modo. Estímulos de sensações olfactivas
e visuais podem aqui desencadear a mesma actividade – mas
não devem ser sequer da mesma modalidade, e menos ainda
da mesma qualidade, as sensações que fomentam tal desen-
cadeamento. Antes se verifica a proposição inversa: o que um
animal para si pode representar e sentir é, em geral, regido e
determinado a priori pela relação dos seus instintos inatos à
estrutura do meio ambiente. O mesmo vale acerca das suas pro‑
duções mnésicas: emergem estas sempre no sentido e no âmbito
das suas tarefas instintivas predominantes, da sua sobredeter-
minação; e só de modo secundário é importante a frequência
das ligações associativas dos reflexos condicionados e dos exer-
cícios. O animal, que pode ver e ouvir, vê e ouve apenas o que é
relevante para a sua conduta instintiva – inclusive, em análogos
estímulos e condições sensoriais da sensação. Na história da
evolução, as vias nervosas aferentes e os órgãos receptores só
se formaram todos após o estabelecimento das vias nervosas
eferentes e dos órgãos efectores. No homem é ainda subjacente
ao ver o impulso para ver e, a este, o impulso geral para a
vigília; o impulso para o sono encerra os órgãos e as funções
sensoriais. Por isso, a memória, tal como a vida sensorial, está
totalmente rodeada pelo instinto, nele imersa. As chamadas
acções “impulsivas” do homem são nele o absoluto contrário

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SITUAÇÃO DO HOMEM NO COSMOS

da acção instintiva; olhadas na sua inteireza, podem ser de todo


absurdas (por exemplo a busca de um veneno tóxico).
Demonstrou­‑se já como impossível (Jennings – Alverdes)
toda a derivação dos modos instintivos de comportamento
a partir de tropismos e taxias 6 mecanicamente concebidos
(Loeb) – que são, antes, instintos mais simples –, toda a redu-
ção a combinações de reflexos isolados das vias motoras (que,
segundo investigações recentes, não existem; nem sequer o
reflexo patelar ou o reflexo de fechar as pálpebras é um reflexo
mecânico) e a reflexos em cadeias. Igualmente impossível,
porém, é reduzir o instinto à herança de modos de conduta
que assentam no “hábito” e no “treino espontâneo” (Spencer),
ou seja, em última análise, na regularidade associativa e no
reflexo condicionado, ou ver nele uma automatização ulterior
do comportamento “inteligente” (Wundt). O devir do instinto
de uma espécie é um produto parcial da própria formação
específica; o instinto é, “em linha pura”, de todo inalterá-
vel. Passos parciais, como os do hábito e do exercício, não o
podem modificar, como também não a “arquitectura” de um
animal. O instinto é, sem dúvida, uma forma mais primitiva
do ser e acontecer do que as formações anímicas complexas
determinadas por associações. É­‑nos possível mostrar que os
fluxos psíquicos, subsequentes à regularidade associativa (de
harmonia com o hábito), se localizam no sistema nervoso bas-
tante mais acima, são, portanto, geneticamente mais tardios
do que os modos instintivos de conduta. De facto, os modos
comportamentais sensorialmente unitários (agarrar uma coisa,
cantar uma melodia) podem ainda ter lugar em manifestações
patológicas de deficiência, onde já não se consegue extrair
algo de sensorialmente menos articulado (movimentos isola-
dos, como mover apenas um dedo; ou cantar a escala). Estas

  Palavra de origem grega, ligada à biologia, que significa “ordena-
ção”, “classificação”. N. do T.

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ÍNDICE

APRESENTAÇÃO ........................................................ 7
PREFÁCIO À PRIMEIRA EDIÇÃO . .......................... 11
INTRODUÇÃO ............................................................ 15
[Impulso afectivo (planta)] ................................................. 19
[I – HIERARQUIA DO SER PSICOFÍSICO] . .................. 19
[Instinto (animal)] .............................................................. 25
[Memória associativa] ......................................................... 32
[Inteligência prática (animais superiores)] . ......................... 40
[II – DIFERENÇA ESSENCIAL ENTRE O HOMEM
E O ANIMAL] .............................................................. 47
[Essência do espírito] .......................................................... 49
[Exemplos de categorias “espirituais”] ................................ 54
[O espírito como actualidade pura] .................................... 59
[III – O ACTO FUNDAMENTAL DO
ESPÍRITO] – [Ideação] ................................................. 61
[Redução fenomenológica] .................................................. 64
[O homem como “asceta da vida”] ..................................... 67
[IV – TEORIA “NEGATIVA” E TEORIA “CLÁSSICA”
DO HOMEM] .............................................................. 69
[Crítica da teoria negativa] ................................................. 70
[Crítica da teoria clássica] ................................................... 76
[Relação do espírito e da vida] ........................................... 80
[V – IDENTIDADE DO CORPO E DA ALMA] ............... 85
[Crítica das concepções naturalistas] .................................. 95
[Crítica de Klages] .............................................................. 98
[ VI – CONTRIBUTO PARA A METAFÍSICA
DO HOMEM] .............................................................. 103

111

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