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agrupam, sendo, portanto, facultativo ser membro de um Estado» ( 1940, 3.a secção,
§ 258). Ora, contrariamente a esta perspectiva, que é a do jusnaturalismo contratua-
lista (Hobbes, Locke, Kant), Hegel sustenta que o Estado "é o racional em si e para
si», a «finalidade absoluta», e «tem um direito soberano face aos indivíduos. para
os quais o dever mais elevado é ser membro do Estado» (ibid.. id.). Como justa-
mente observa Norberto Bobbio, o «motivo, enfim, pelo qual Hegel pôs o conceito
de Estado acima daquele em que se detiveram os seus antecessores tem de ser
procurado na necessidade de dar uma explicação da razão pela qual se reconhece
ao Estado o direito de pedir aos cidadãos o sacrifício dos seus bens (mediante
impostos) e mesmo da vida (quando se declara a guerra), explicação esta que em
vão se pede às doutrinas contratualistas, em que o Estado nasce por um acordo que
os contraentes podem dissolver quando lhes convém, ou às doutrinas eudemo-
noI6gicas, nas quais o fim supremo do Estado é o bem estar dos sUbditos» (Bobbio,
1989, p. 168).
2. Apontando o Estado como o «racional em si e para si», Hegel celebrava a
reconciliação do Universal e do Particular que se efectivaria nas in.~tituições
modernas, através das quais a liberdade e emancipação dos indivíduos. garanti~la
pelos direitos universais. perdia o carácter de fortnulação abstracta para incamar na
«vida ética», na moralidade objectiva de uma pólis sem escravos. No Estado, a
Sociedade encontrava a sua razão de ser e o seu ser racional. A hartnonia da cidade
grega via-se, assim, transposta para a sociedade industrial, onde o conflito entre os
~, particulares era superado pelo Estado, manifestação suprema do espírito objectivo.
Longe de ser a continuação do poder transcendente, escorado na violência ()U na
sem razão dos mitos e das tradições, o Estado moderno aparecia nesta arquitectura
como incarnação do direito dos cidadãos, não o direito abstracto que reivindicaram
os revolucionários de 1789 e que só produziu «o caos e a carnificina», mas o direito
materializado nas instituições.
A reabilitação hegeliana do Estado vinha, porém, ao arrepio do «espírito do
tempo», menos propício a consagrar a organização política como lugar da raciona-
lidade do todo social do que a encará-la como instrumento de um sector da
sociedade para coarctar ou até negar a liberdade de todos os outros. A afirtnação dos
direitos humanos e da autonomia do indivíduo, referência maior da «filosofia das
Luzes», somada à descoberta das leis económicas e ao desenvolvimento industrial,
conjugavam-se para inverter a antiga concepção do Estado, e para procurar os meios
teóricos e práticos de limitar a sua actuação coerciva. «Desta inversão - observa
~ N. Bobbio - nasce uma das ideias dominantes do século XIX, comum tanto ao
~ socialismo utópico como ao socialismo científico, tanto às várias fortnas do pensa-
~ mento libertário como ao pensamento liberal nas suas expressões mais radicais: a
ideia da inevitável extinção do Estado, ou, pelo menos, da sua redução aos tertnos
mínimos» (ibid., p, 221).
a) A ideia de extinção do Estado, propugnada pelo socialismo utópico e desen-
volvida por Marx em tertnos renovados, tem como pressuposto uma análise da
sociedade civil que pretende ver no seu funcionamento - pelo menos na sua versão
capitalista - o veredicto que a levará irremediavelmente a ser superada por uma
sociedade sem classes, Nesta perspectiva, as instituições políticas vigentes no
mundo moderno garantem apenas os interesses da classe dominante, ao mesmo
tempo que mascaram o fenómeno da dominação, Teoricamente, o cidadão comum
participa do mundo da liberdade e da universalidade, do Estado, em suma, atra-
vés do exercício do Yoto. Na prática, a sua vida decorre no mundo da neces-
sidade, do trabalho e das leis do mercado ditadas pelo patrão na sociedade civil,
Só pela abolição da propriedade privada dos meios de produção - já inscrita,
aliás na própria lógica interna da sociedade capitalista, a acreditar em Marx - de-
sapareceriam as razões da conflitualidade e, nessa medida, a produção de bens
processar-se-ia segundo um plano racional decidido e aceite por todos os in-
divíduos. Ou seja, a reconciliação entre o Universal e o Particular não é um dado,
está em curso e, quando se realizar, terá demonstrado a inutilidade do Estado. Como
será esta sociedade sem classes e sem Estado? Como se efectivará nela a forma-
ção e a coordenação da vontade comum? Sobre isso, as fortnulações de Marx,
destituídas do arsenal de categorias utilizado por Hegel na análise da organiza-
ção política, limitam-se à intuição utópica de uma vida colectiva hartnonizada
espontaneamente e sem mediação institucional, Albrecht Wellmer exprime assim
esta insuficiência: «No que diz respeito ao problema hegeliano da instituciona-
lização da liberdade sob os condicionalismos da modemidade, poderia dizer-se
que, tendo criticado a solução hegeliana com poderosos argumentos, Marx, atra-
SOCiedade, Estado e Razao .
II
menoridade» a que aludia Kant, vem a dar numa despersonalização das relações
sociais, submetendo a vida humana à 16gica impessoal de sistemas racionalizados,
an6nimos e administrativos, que retiram sentido à pr6pria ideia de liberdade e
autonomia individual. Afastada a hip6tese de recorrer a uma racionalidade global-
mente considerada, onde se poderimn fundmnentar as no~as e valores e, por
~ . conseguinte, a crítica dos factos, qualquer perspectiva de «revolução», qualquer
~, alternativa às sociedades capitalistas, estará, à partida, desqualificada. O socialismo,
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como Weberjá prognosticava, não pode ser senão a fo~a acabada desta burocracia
implícita na racionalidade fo~a1 ou instrumental que a hist6ria moderna teria posto
em acção.
Esta imagem de uma sociedade «burocrática», «desumanizada» e «unidi-
mensional» vai inspirar uma parte importante do pensmnento político na pri-
meira metade do século xx, em particular o da chmnada «Escola de Frankfurt».
Horkheimer, Adorno e, especialmente, Marcuse subscreverimn o diagn6stico da so-
ciedade industrializada apresentado por W eber, considerando igualmente que a
hist6ria cmninha, não no sentido da emancipação do homem, como tinha preten-
dido a Filosofia das Luzes, bem como Hegel e Marx, mas sim no sentido de
uma cada vez maior alienação, reificando progressivmnente a consciência dos indi-
vIduos submetidos à 16gica do sistema: «enquanto a hist6ria universal seguir o seu
cmninho 16gico, jmnais atingirá o seu destino humano», escreve Horkheimer
(1974a, p. 352).
Um taldestino, porém, não se afigura obrigat6rio, a avaliar pelas tentativas dos
fi16sofos de Frankfurt e dos seus discípulos até aos dias de hoje para soerguer uma
alternativa a essa visão da «barbárie burocrática». Ultrapassada a visão optimista de
Marx, que pretende ler na sociedade capitalista os simomas do seu irremediável
desapaIiecimento e que desvirtua outras clivagens sociais para além da que separa
os exploradores dos explorados, nem por isso a filosofia de Frankfurt abandona o
projecto «revolucionário» destinado a abolir a 16gica da dominação e a salvar
a autonomia do indivIduo, a reconciliar, enfim, o universal e o particular, a justiça
e a liberdade, a razão e os sentidos. Mas esse projecto já pouco mais é do que um
suporte para uma «teoria crítica». Na medida em que a razão «incarnou» na hist6ria
e a ciência administra em definitivo o futuro do mundo e dos homens, que hipóteses
restmn ao pensmnento senão procurar na genealogia da razão as origens do mal? «A
doença da razão - escreve Horkheimer - está em que a razão nasceu da tendência
impulsiva do homem para dominar a natureza, e o seu restabelecimento depende do
conhecimento da natureza da doença original, não da cura dos seus sintomas mais
tardios» ( 1974 b, p. 182). Adorno, por seu turno, vê na obra de arte de vanguarda
o Ultimo resíduo da razão e a prefiguração de um modelo de sociedade em que o
universal não se afi~e como aniquilação do particular. Mas poder-se-á conceber a
estética e a racionalidade instrumental como fo~as alternativas de integração
social? E a escolha da síntese estética como modelo de reconciliação não conterá,
pelo menos tanto como a racionalidade instrumental, os gé~ens da negação de uma
relação dia16gica entre os indivIduos que salve, ao mesmo tempo, a individualidade
e a alteridade absolutas de uns face aos outros? Decididamente, «sem a valorização
optimista que Marx faz da 16gica dos modemos processos de racionalização,
o intuito de sustemar uma ideia de razão que compreendesse as ideias de verdade,
justiça e felicidade s6 pode entender-se como um protesto fundamental contra o
veredicto impotente que Max Weber fez do destino da razão no mundo moderno»
(Wellmer, 1988, p. 87).
Sociedade, Estado e Razão
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Estado e Razão
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pelasluzes no horizonte de uma acção guiada pela razão não é outra coisa senão um
novo rosto da ordem que o poder necessariamente projecta. J. F. Lyotard, por sua
// vez, aponta a pr6pria ideia de uma razão fundamentada, de uma razão com preten-
// sões a autolegitimar-se radicalmente e, por conseguinte, a legitimar em Ultima
instância todos os seus postulados, como a origem da tragédia totalitária. E, em seu
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dos cidadãos e à «crise de legitimidade» contemporânea, sendo, por
necessário restaurar a primacia da racionalidade comunicacional.
que isto supõe duas coisas: primeiro, que se mantenha
Notar-se-á, de passagem, humanidade é permeável ao consenso e racional-
que as normas a obter que são unicamente fruto da aculturação, ou seja, valores
irremediavelmente imersos na hist6ria?
Esta mesma suspeita levanta-se também à «Teoria da Justiça» elaborada por
John Rawls. Como se sabe, Rawls recupera a teoria moderna da fundação da
sociedade como produto de um acordo ideal entre os seus membros sobre o modo
a principal das quais se centra em saber se ele remete ou não para um «sujeito
universal» e para um eu «não-empírico» como aquele em que se fundamenta a
moral kantiana. Lendo, porém, como faz Rorty, os trabalhos mais recentes de
Rawls, em especial o seu artigo «Justice as Fairness: Political non Metaphisical»
(1985; veja-se a leitura de Rorty in Rorty, 1987), parece forçoso atenuar-se uma tal
atitude. Aliás, já na pr6pria Teoria da Justiça, há passagens que alertam no mesmo
sentido: «quando n6s abordamos os princípios necessários, é preciso atermo-nos aos
conhecimentos actuais tal como eles são admitidos pelo senso comum e pelo
consenso dos cientistas. Devemos reconhecer que, uma vez que as convicções
existentes mudam, os princípios de justiça, que nos parecem racionais podem
igualmente mudar» (Rawls, 1971, p. 548).
pretensas resoluções.
Diogo Pires Aurélio