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SOCIEDADE, ESTADO E RAZÃO

Diogo Pires Aurélio

1. A contraposição entre o Estado e a sociedade, mais exactamente, entre o


Estado e a sociedade civil, é uma constante da filosofia política desde que Hegel a
integrou como chave e cUpula da sua doutrina do direito. Antes, a sociedade civil
aparecia com um significado equivalente ao que tem para n6s o Estado, fosse na
tradição aristotélica, em que se contrapunha ao agregado familiar, fosse na tradição
jusnaturalista, em que se contrapunha ao «estado natural» nos termos em que
Hobbes o teoriza. Dito de outra forma, a sociedade, até aí, era sin6nimo de
comunidade organizada e auto-suficiente, quer se entendesse que a génese dessa
organização estava inscrita na natureza do indivíduo - o homem animal social,
impensável fora da pólis - quer se pensasse, como, a certa altura, passou a ser
corrente, que tal organização resultava de uma conquista - o contrato social - dos
indivíduos sobre a sua natureza «selvagem».
O que Hegel introduz no pensamento político não é, no entanto, apenas uma
simples distinção terminol6gica ou conceptual: é uma tentativa de redefinir a
pr6pria essência do Estado, reconhecendo-lhe funções que não se esgotam naquelas
que lhe eram atribuídas antes do estabelecimento da dicotomia por ele reivindicada.
Com efeito, «se se confunde o Estado com a sociedade civil e se aquele se destina
à segurança e protecção da propriedade e da liberdade pessoais, então o interesse
dos indivíduos enquanto tais é a finalidade suprema em ordem à qual estes se

agrupam, sendo, portanto, facultativo ser membro de um Estado» ( 1940, 3.a secção,
§ 258). Ora, contrariamente a esta perspectiva, que é a do jusnaturalismo contratua-
lista (Hobbes, Locke, Kant), Hegel sustenta que o Estado "é o racional em si e para
si», a «finalidade absoluta», e «tem um direito soberano face aos indivíduos. para
os quais o dever mais elevado é ser membro do Estado» (ibid.. id.). Como justa-
mente observa Norberto Bobbio, o «motivo, enfim, pelo qual Hegel pôs o conceito
de Estado acima daquele em que se detiveram os seus antecessores tem de ser
procurado na necessidade de dar uma explicação da razão pela qual se reconhece
ao Estado o direito de pedir aos cidadãos o sacrifício dos seus bens (mediante
impostos) e mesmo da vida (quando se declara a guerra), explicação esta que em
vão se pede às doutrinas contratualistas, em que o Estado nasce por um acordo que
os contraentes podem dissolver quando lhes convém, ou às doutrinas eudemo-
noI6gicas, nas quais o fim supremo do Estado é o bem estar dos sUbditos» (Bobbio,
1989, p. 168).
2. Apontando o Estado como o «racional em si e para si», Hegel celebrava a
reconciliação do Universal e do Particular que se efectivaria nas in.~tituições
modernas, através das quais a liberdade e emancipação dos indivíduos. garanti~la
pelos direitos universais. perdia o carácter de fortnulação abstracta para incamar na
«vida ética», na moralidade objectiva de uma pólis sem escravos. No Estado, a
Sociedade encontrava a sua razão de ser e o seu ser racional. A hartnonia da cidade
grega via-se, assim, transposta para a sociedade industrial, onde o conflito entre os
~, particulares era superado pelo Estado, manifestação suprema do espírito objectivo.
Longe de ser a continuação do poder transcendente, escorado na violência ()U na
sem razão dos mitos e das tradições, o Estado moderno aparecia nesta arquitectura
como incarnação do direito dos cidadãos, não o direito abstracto que reivindicaram
os revolucionários de 1789 e que só produziu «o caos e a carnificina», mas o direito
materializado nas instituições.
A reabilitação hegeliana do Estado vinha, porém, ao arrepio do «espírito do
tempo», menos propício a consagrar a organização política como lugar da raciona-
lidade do todo social do que a encará-la como instrumento de um sector da
sociedade para coarctar ou até negar a liberdade de todos os outros. A afirtnação dos
direitos humanos e da autonomia do indivíduo, referência maior da «filosofia das
Luzes», somada à descoberta das leis económicas e ao desenvolvimento industrial,
conjugavam-se para inverter a antiga concepção do Estado, e para procurar os meios
teóricos e práticos de limitar a sua actuação coerciva. «Desta inversão - observa
~ N. Bobbio - nasce uma das ideias dominantes do século XIX, comum tanto ao
~ socialismo utópico como ao socialismo científico, tanto às várias fortnas do pensa-
~ mento libertário como ao pensamento liberal nas suas expressões mais radicais: a
ideia da inevitável extinção do Estado, ou, pelo menos, da sua redução aos tertnos
mínimos» (ibid., p, 221).
a) A ideia de extinção do Estado, propugnada pelo socialismo utópico e desen-
volvida por Marx em tertnos renovados, tem como pressuposto uma análise da
sociedade civil que pretende ver no seu funcionamento - pelo menos na sua versão
capitalista - o veredicto que a levará irremediavelmente a ser superada por uma
sociedade sem classes, Nesta perspectiva, as instituições políticas vigentes no
mundo moderno garantem apenas os interesses da classe dominante, ao mesmo
tempo que mascaram o fenómeno da dominação, Teoricamente, o cidadão comum
participa do mundo da liberdade e da universalidade, do Estado, em suma, atra-
vés do exercício do Yoto. Na prática, a sua vida decorre no mundo da neces-
sidade, do trabalho e das leis do mercado ditadas pelo patrão na sociedade civil,
Só pela abolição da propriedade privada dos meios de produção - já inscrita,
aliás na própria lógica interna da sociedade capitalista, a acreditar em Marx - de-
sapareceriam as razões da conflitualidade e, nessa medida, a produção de bens
processar-se-ia segundo um plano racional decidido e aceite por todos os in-
divíduos. Ou seja, a reconciliação entre o Universal e o Particular não é um dado,
está em curso e, quando se realizar, terá demonstrado a inutilidade do Estado. Como
será esta sociedade sem classes e sem Estado? Como se efectivará nela a forma-
ção e a coordenação da vontade comum? Sobre isso, as fortnulações de Marx,
destituídas do arsenal de categorias utilizado por Hegel na análise da organiza-
ção política, limitam-se à intuição utópica de uma vida colectiva hartnonizada
espontaneamente e sem mediação institucional, Albrecht Wellmer exprime assim
esta insuficiência: «No que diz respeito ao problema hegeliano da instituciona-
lização da liberdade sob os condicionalismos da modemidade, poderia dizer-se
que, tendo criticado a solução hegeliana com poderosos argumentos, Marx, atra-
SOCiedade, Estado e Razao .

vés da sua estratégia te6rica, enterra o problema em vez de o resolver.» (Wellmer.


1988, p. 70)
b) A ideia da redução do Estado, sustentada pela tradição liberal, pressupõe,
pelo contrário, uma h~onia entre a liberdade e a organização social, de modo a
erradicar a presença do Estado na esfera económica e a remetê-lo para as simples
funções de vigilante e garantia da livre circulação de ideias e bens materiais.
Enquanto para o marxismo as contradições patentes na sociedade de economia
de mercado ditam o seu desaparecimento pr6ximo, porque derivam do princípio da
exploração do homem pelo homem, para o pensamento liberal elas exprimem
o avanço da liberdade e a racionalização progressiva das relações entre os homens
e destes com a natureza. Onde Marx vê o agravamento das desigualdades, Tocque-
ville, por exemplo, observa o avanço e as consequências da igualdade. Para este,
como refere R. Aron, «as sociedades modernas são essencialmente económicas,
dominadas pelo espfrito empreendedor. Mas o espfrito empreendedor, a obsessão
pelas riquezas e a criação de riqueza são, para Tocqueville, subprodutos da revolu-
ção democrática. O facto inicial, o mais importante, é a atenuação das desigualdades
hereditárias, a igualdade face à lei. A principal actividade dos homens é de natureza
econ6mica porque eles são iguais perante a lei» (Aron, 1981, p. 35).
As diferenças na consideração da sociedade detenninam a diferença na
consideração do Estado. E esta poderia resumir-se assim: para o marxismo o Es-
tado é um mal a eliminar, para o liberalismo o Estado é um mal necessário.
Uma tal necessidade não deriva sequer de considerações como as de Hobbes, para
quem o homem é o lobo do homem. Mesmo que o homem fosse anjo do homem,
como observa Karl Popper ao explicitar a referida classificação do Estado para os
liberais, seria necessário garantir ao fraco «o direito de viver e de reivindicar
legitimamente a protecção face ao poder dos fortes», em vez de o deixar perante
estes na situação de devedor (Popper, 1972, p. 511). O problema, portanto, deixa
de ser o de saber quem deve governar, para passar a ser o de como conter o go-
verno nos limites estritamente necessários. Tocqueville pressentia este mesmo
problema ao interrogar-se sobre a possibilidade de evitar que a igualdade cres-
cente viesse a acarretar o poder tirano da maioria. E Benjamim Constant, numa
f6nnula porventura mais moderada e confonne ao espírito liberal do que aquela
que viria a ser consagrada por Lord Acton - «todo o poder corrompe, o poder
absoluto corrompe absolutamente» - enuncia a questão com que se debate a
política nos tempos modernos: «Assim que o Govemo sai da esfera que lhe é
pr6pria, torna-se um mal e um mal incalculável. O mal não está no Governo em si
mesmo, está na usurpação» (1980, p. 567). Quais os verdadeiros contomos daquela
esfera? Eis o problema.

3. Os efeitos conjugados do desenvolvimento industrial, da igualitarização e da


concomitante recusa da tradição e da transcendência, sinais irrecusáveis da moder-
nidade, serão lidos por Max Weber como um processo de «racionalização» progre.~-
siva. Simplesmente, a racionalização, tal como Weber a entende, não cauciona
nenhuma perspectiva ut6pica. É verdade que ela comporta um acréscimo de eficácia
econ6mica, de fonnalização e universalização das leis e de objectividade científica.
Mas, exactamente porque é um processo de «ilustração», ela comporta ainda um
«desencantamento do mundo», uma destruição dos sistemas de significado «objec-
tivo» e uma impossibilidade de fundar racionalmente os valores em que assenta a
estrutura social. Dito de outro modo, o processo de emancipação, a «saída da
- . . -l - ~.-

II
menoridade» a que aludia Kant, vem a dar numa despersonalização das relações
sociais, submetendo a vida humana à 16gica impessoal de sistemas racionalizados,
an6nimos e administrativos, que retiram sentido à pr6pria ideia de liberdade e
autonomia individual. Afastada a hip6tese de recorrer a uma racionalidade global-
mente considerada, onde se poderimn fundmnentar as no~as e valores e, por
~ . conseguinte, a crítica dos factos, qualquer perspectiva de «revolução», qualquer
~, alternativa às sociedades capitalistas, estará, à partida, desqualificada. O socialismo,
,~
como Weberjá prognosticava, não pode ser senão a fo~a acabada desta burocracia
implícita na racionalidade fo~a1 ou instrumental que a hist6ria moderna teria posto
em acção.
Esta imagem de uma sociedade «burocrática», «desumanizada» e «unidi-
mensional» vai inspirar uma parte importante do pensmnento político na pri-
meira metade do século xx, em particular o da chmnada «Escola de Frankfurt».
Horkheimer, Adorno e, especialmente, Marcuse subscreverimn o diagn6stico da so-
ciedade industrializada apresentado por W eber, considerando igualmente que a
hist6ria cmninha, não no sentido da emancipação do homem, como tinha preten-
dido a Filosofia das Luzes, bem como Hegel e Marx, mas sim no sentido de
uma cada vez maior alienação, reificando progressivmnente a consciência dos indi-
vIduos submetidos à 16gica do sistema: «enquanto a hist6ria universal seguir o seu
cmninho 16gico, jmnais atingirá o seu destino humano», escreve Horkheimer
(1974a, p. 352).
Um taldestino, porém, não se afigura obrigat6rio, a avaliar pelas tentativas dos
fi16sofos de Frankfurt e dos seus discípulos até aos dias de hoje para soerguer uma
alternativa a essa visão da «barbárie burocrática». Ultrapassada a visão optimista de
Marx, que pretende ler na sociedade capitalista os simomas do seu irremediável
desapaIiecimento e que desvirtua outras clivagens sociais para além da que separa
os exploradores dos explorados, nem por isso a filosofia de Frankfurt abandona o
projecto «revolucionário» destinado a abolir a 16gica da dominação e a salvar
a autonomia do indivIduo, a reconciliar, enfim, o universal e o particular, a justiça
e a liberdade, a razão e os sentidos. Mas esse projecto já pouco mais é do que um
suporte para uma «teoria crítica». Na medida em que a razão «incarnou» na hist6ria
e a ciência administra em definitivo o futuro do mundo e dos homens, que hipóteses
restmn ao pensmnento senão procurar na genealogia da razão as origens do mal? «A
doença da razão - escreve Horkheimer - está em que a razão nasceu da tendência
impulsiva do homem para dominar a natureza, e o seu restabelecimento depende do
conhecimento da natureza da doença original, não da cura dos seus sintomas mais
tardios» ( 1974 b, p. 182). Adorno, por seu turno, vê na obra de arte de vanguarda
o Ultimo resíduo da razão e a prefiguração de um modelo de sociedade em que o
universal não se afi~e como aniquilação do particular. Mas poder-se-á conceber a
estética e a racionalidade instrumental como fo~as alternativas de integração
social? E a escolha da síntese estética como modelo de reconciliação não conterá,
pelo menos tanto como a racionalidade instrumental, os gé~ens da negação de uma
relação dia16gica entre os indivIduos que salve, ao mesmo tempo, a individualidade
e a alteridade absolutas de uns face aos outros? Decididamente, «sem a valorização
optimista que Marx faz da 16gica dos modemos processos de racionalização,
o intuito de sustemar uma ideia de razão que compreendesse as ideias de verdade,
justiça e felicidade s6 pode entender-se como um protesto fundamental contra o
veredicto impotente que Max Weber fez do destino da razão no mundo moderno»
(Wellmer, 1988, p. 87).
Sociedade, Estado e Razão

4. A Escola de Frankfurt ilustra exemplarmente o debate político no interior


da filosofia moderna. No fundo, a questão central nesse debate é a da legitimação
dos argumentos em defesa da «sociedade justa», questão esta que se desenvolve no
interior de uma outra mais geral, mas não menos pertinente, qual seja a da legiti-
mação de qualquer argumento. A tão citada fómlula de Foucault resume a essência
do problema: «filosofia moderna é a filosofia que tenta responder à pergunta que tão
imprudentemente se faz há dois séculos: Was ist Aufklarung? (cf. Rakinow, ed.,
1984, p. 32).
Sabe-se que o iluminismo, nas suas intenções explicitadas, reivindicava a
separação entre o poder, o saber e a lei, como fomla de garantir, por um lado,
a submissão do poder ao tribunal da razão, por outro, a universalidade da lei. Em
Marx, a universalidade da lei era impugnada e reduzida a simples disfarce dos
interesses da classe detentora do poder, ficando então apenas o saber no seu
pedestal, de onde alegadamente verificaria e mobilizaria o trabalho dialéctico da
razão. A ideia de que esta empurrava, por assim dizer, a hist6ria no bom sentido,
a ideia de progresso, em suma, mantinha-se inalterada, senão reforçada. O que
ficava em causa era apenas a instância aonde Hegel vira a realização da razão, ou
seja, o Estado. A pergunta sobre a essência das Luzes irá, no entanto, radicalizar-
-se, quer no âmbito da filosofia, quer no das ciências humanas, designadamente a
sociologia, a antropologia e a psicanálise, ao mesmo tempo que sucessivas
catástrofes políticas revelem o quociente de irracionalidade que pode acobertar-se
sob o programa de emancipação e do progresso.
De facto, sob esta Ultimo aspecto, a Escola de Frankfurt é apenas um exemplo,
porventura o mais sintomático. Porque a verdadeira crítica do iluminismo fora J'a.
antecipada em obras como as de Nietzsche e Freud, que puseram em dUvida a
unidade do sujeito e comprometeram, consequentemente, todo o sentido de uma
política apostada em devolver o indivíduo a si mesmo, em libertá-lo dos vínculos
do passado por fomla a que recuperasse a sua autenticidade num mundo despido de
superstição, violência e injustiça. No mesmo sentido, Heidegger aprofundaria o

processo da razão ocidental como um todo, imputando-lhe a responsabilidade pelo


«esquecimento do ser» logo no seu momento inaugural - a filosofia plat6nica -
«esquecimento» que, na sua opinião, levou à situação actual, em que «a técnica, n~
sua essência, é algo que o homem não domina» e em que «já s6 um Deus nos pode
ainda salvar» (Heidegger, 1990, pp. 120-122). E outro tanto se poderia dizer de
nomes como Leo Strauss ou Hannah Arendt, que impugnam igualmente o pensa-
mento moderno para este abolir a transcendência dos valores relativamente aos
factos, a partir do momento em que recusa a visão teleol6gica da natureza e do

homem, e por apostar na necessidade de realização do ideal a todo o custo, perdendo


assim de vista a margem de contingência e de acaso que é inerente à política.
No pensamento das Ultimas décadas, o problema tem suscitado vários desenv ol-
vimentos que se posicionam, ora na sequência deste processo movido à razão, em
particular à razão teorizada pelas luzes, ora no p6lo oposto, isto é, na tentativa de
reactivar a filosofia setecentista.
a) No primeiro caso, poderíamos inscrever uma parte importante da filosofia
francesa que se seguiu ao movimento estruturalista e que é animada por aquilo que
vulgarmente se designa por desconstrução da modernidade. Assim, por exemplo,
Michel Foucault considera a razão ocidental como o suporte de um discurso
repressivo, o qual, representando-se como orientador e guia de acção, afimla-se, na
realidade, como dispositivo de exclusão e proibição, como instrumento da ordem.
Saber e poder são, nesta perspectiva, inteiramente cUmplices: a liberdade antevista.~ ~

l
Estado e Razão

./

pelasluzes no horizonte de uma acção guiada pela razão não é outra coisa senão um
novo rosto da ordem que o poder necessariamente projecta. J. F. Lyotard, por sua
// vez, aponta a pr6pria ideia de uma razão fundamentada, de uma razão com preten-
// sões a autolegitimar-se radicalmente e, por conseguinte, a legitimar em Ultima
instância todos os seus postulados, como a origem da tragédia totalitária. E, em seu

/ lugar, propõe o abandono de todas as fonnas sistematizadas dessa razão ou saber


i absoluto - as metanarrativas - bem como dos respectivos conceitos nucleares -
autonomia, emancipação, sujeito - substituindo-as por um pensamento confinado
a «jogos de linguagem» incomensuráveis, a partir do qual se torna impossível a
proposição de uma «práxis» não redutível a «jogos de força», ainda que disfarçada
de argumentação.
Diferente nos seus pressupostos e contrário até às mUltiplas das suas teses, o
pragmatismo norte-americano, designadamente o de Richard Rorty, faz uma apre-
ciação das tentativas para encontrar a derradeira fundamentação da ordem política
que, em substância, vem a coincidir com aquela que apresenta o p6s-estruturalismo
francês. O objectivo expresso de Rorty é fazer em relação às ideias filos6ficas o
mesmo que Thomas Jefferson sugeria que se fizesse às ideias teo16gicas: remetê-las
para a esfera privada e abandonar qualquer tentativa de restabelecimento de uma
fundamentação racional da política, já porque esta estaria votada ao fracasso, já
porque nela residiriam os gérmens da intolerância. Nonnas e valores são por Rorty
associados irremediavelmente a um detenninado conjunto s6cio-cultural, sendo
l impossível sustentá-los numa racionalidade trans-hist6rica.
t, Escusado será acrescentar que Rorty assume integralmente a consequência
~i desses princípios, isto é, o etnocentrismo, uma vez que é impossível uma justifica-

, ção transculturale transcivilizacionaldos valores e dos pr6prios critérios de valida-


ção16gica que são inerentes à minha cultura e à minha civilização. O etnocentrismo
de Rorty, porém, pretende-se clarificador de uma situação como aquela em que nos
encontramos, em que já não é possível «aproveitar as vantagens da metafísica sem
lhe assumir as responsabilidades»: não pretende, de modo algum, ser um etnocen-
trismo fanático e intolerante. E isto porque a tolerância é a pr6pria «essência» da
democracialiberal, uma essência que se capta existencialmente e que leva a preferi-
-la sem que dela se possua uma certeza dogmática: «afinnar que devemos trabalhar
segundo as nossas pr6prias ideias, que devemos ser etnocentristas, é simplesmente
afIrmar que as crenças sugeridas por uma outra cultura devem ser avaliadas na sua
relação com as crenças que previamente possuímos... Culturas alternativas não
devem ser pensadas segundo o modelo das geometrias alternativas. Estas são
irreconciliáveis porque têm estruturas axiomáticas e axiomas contradit6rios. As
culturas não têm estruturas axiomáticas. (Rorty, 1988, p. 51) Daí que Rorty prefira,
à objectividade, a solidariedade. Confonne ele pr6prio explicita, «para os pragma-
tistas o desejo de objectividade não é um desejo de escapar às limitações da
comunidade, mas simplesmente o desejo de maior acordo intersubjectivo possível,
o desejo de alargar o mais possível a referência do nós. A distinção que os
pragmatistas fazem entre conhecimento e opinião é apenas a distinção entre temas
nos quais o acordo é relativamente fácil de obter e temas em que o acordo é bastante
difícil» (ibid., pp. 47-48).
b) Do lado oposto a estes vários tipos de inserção do político na hist6ria, no
contexto cultural ou na «episteme», situam-se as tentativas para reencontrar um
consenso, uma base universalmente aceite, aonde escorar a le~itimação dos valores
e nonnas e tomar viável a fundamentação racional da lei. E esta reactivação do
pensamento iluminista que explicitamente prosseguem fi16sofos contemporâneos
Sociedade, Estado e Razão

como Jurgen Habermas e John Rawls. Antes, porém, de referirmos, em síntese. o


que um e outro dizem a este respeito, convirá atentar no caso de Karl Popper, sem
dUvida um dos primeiros a insurgirem-se contra, por um lado, o dogmatismo de
Platão e Hegel, em sua opinião as duas sUmulas do poder totalitário, e, por outro
lado, contra o historicismo.
A tese central de Popper traduz-se pela afirmação de que o progresso é possível
sem um critério Ultimo da verdade. A razão, em seu entender, é essencialmente
polémica, mas, exactamente por isso, exclui a hipótese de recurso à violência para
resolver os conflitos e determinar a verdade ou a lei. Em ciência, isto significará a
aceitação do risco de ver as teorias refutadas pela experiência; em política, signi-
ficará o risco de cada um ver as suas propostas recusadas pelos outros, através da
confrontação democrática dos projectos. Ou seja, o falibilismo intrínseco à natureza
da razão postula obrigatoriamente o funcionamento democrático da sociedade. Mas
não s6, uma vez que é necessário garantir a eficácia deste funcionamento e passar
da simples troca, livre e aberta, de argumentos à deliberação, sob pena de se per-
manecer na anarquia. E aqui, o essencial é garantir que o processo decisório,
estando fundado apenas numa técnica formal e não traduzindo qualquer distinção
substancial entre govemantes e govemados, estabeleça os seus pr6prios limites.
0 problema da política e o critério para distinguir os Yários regimes não reside, pois,
em saber quem deve govemar, mas em saber como podem os sUbditos destituir o
soberano, seja ele quem for: com ou sem derramamento de sangue, por eleições ou
por revoluções.
A argumentação cerrada de Karl Popper em defesa da democracia e daquilo a
que chama «a sociedade aberta» ficou quase sem eco no pensamento europeu de
meados do século, manifestamente dominado, até quase aos nossos dias, pelo
marxismo. 0 mesmo sucedeu, aliás, em larga medida, a obras como a de Raymond
Aron, onde se proclama igualmente a necessidade de pensar a prioridade do político
e a função das instituições, contra a nebulosa de um pensamento todo ele virado
para a reconciliação do universal e do particular sem mediações. Nos Ultimos
tempos, porém, a filosofia política abandonou esse tópico oitocentista e reinstalou-
-se de novo nas grandes questões das origens da modemidade. E aí, o contrato
social, tão clamorosamente criticado a partir de Hegel, reapareceu como tema
fulcral da política nas sociedades contemporâneas, ou, pelo menos, nas sociedades
«não tribalistas», como lhes chamaria Popper, isto é, nas sociedades liberais e de-
mocráticas.
Habbermas é um herdeiro do pensamento de Frankfurt, mas afasta-se dos seus
antecessores, a quem critica o terem-se ficado por uma concepção unilateral da
racionalização. Atendo-se ao conceito Weberiano de racionalidade instrumental.
não detectaram a diferença entre a racionalização que se manifesta na economia
capitalista, na ciência e na administração burocratizada e aquela que se revela nas
formas democráticas de organização política, nas constituições modemas fundadas
sobre princípios universais e na separação da lei relativamente à moral. Porque há.
de facto, segundo Habbermas, no fenómeno democrático uma racionalização do
poder político, mas esta é ambivalente. Por um lado, significa a incorporação da
razão instrumental, que visa a eficácia na gestão da economia e da sociedade; por
outro, significa a incorporação da razão comunicacional na estrutura do poder.
obrigando a que este legitime as suas decisões, por forma a suscitar uma adesão
racionalmente motivada por parte daqueles a quem elas se destinam. Habbermas
sugere mesmo, num eco evidente da Escola de Frankfurt, que o primeiro destes
tipos de racionalidade tende. cada vez mais. a limitar , ~p~"nrl" n a"P lpv~r~~ ~

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dos cidadãos e à «crise de legitimidade» contemporânea, sendo, por
necessário restaurar a primacia da racionalidade comunicacional.
que isto supõe duas coisas: primeiro, que se mantenha
Notar-se-á, de passagem, humanidade é permeável ao consenso e racional-

o princípio iluminista de que a


motivável pelo melhor argumento; segundo, que a comunicação empírica
~~~t: lastrada ou referenciada por uma «situação ideal de fala», por uma instância
onde se possa ancorar a universalização das normas, ou seja, a constituição, através

do discurso, de uma vontade geral. A dificuldade, frequentemente apontada a


Habermas, estaria em saber até que ponto esta solução não tem latente a reconsti-
tuição de uma racionalidade absoluta que seria contrária ao princípio democrático
da absoluta ausência de «verdade». Além disso, será possível escapar à suspeita de

que as normas a obter que são unicamente fruto da aculturação, ou seja, valores
irremediavelmente imersos na hist6ria?
Esta mesma suspeita levanta-se também à «Teoria da Justiça» elaborada por
John Rawls. Como se sabe, Rawls recupera a teoria moderna da fundação da
sociedade como produto de um acordo ideal entre os seus membros sobre o modo

«justo» de viver em comum. Tratar-se-ia de uma experiência imaginária, em que os


indivíduos escolhem sob o «véu da ignorância», isto é, no desconhecimento dos
«papéis» e hip6teses que lhe podem estar reservados, garantindo assim opções em
função apenas de «considerações gerais» sobre a sociedade e não em função de
interesses particulares e egoístas. Em tais condições, Rawls pensa que os participan-
tes escolhem dois princípios que vão passar a ser intocáveis e ficar arredados das

" negociações futuras: primeiro, o princípio da liberdade individual compatível com


~ a liberdade alheia; segundo, o «princípio da diferença», à luz do qual as desigual-
II dades s6 serão justificáveis quando e na medida em que propiciam a melhoria da
, situação dos mais desfavorecidos. Destes princípios, o primeiro prevalecerá, em
derradeira instância, sobre o segundo, visto a liberdade ser a condição essencial da
justiça. Todavia, em condições normais, o segundo deverá servir para morigerar
eventuais consequências nefastas do primeiro.
Coloca-se entretanto, a questão: de que indivíduo se está aqui a falar e de que
«posição originária» arranca a escolha dos princípios? O texto da Teoria da Justiça,
ao reivindicar a herança iluminista, deu e continua a dar lugar a polémicas várias,

a principal das quais se centra em saber se ele remete ou não para um «sujeito
universal» e para um eu «não-empírico» como aquele em que se fundamenta a
moral kantiana. Lendo, porém, como faz Rorty, os trabalhos mais recentes de
Rawls, em especial o seu artigo «Justice as Fairness: Political non Metaphisical»
(1985; veja-se a leitura de Rorty in Rorty, 1987), parece forçoso atenuar-se uma tal
atitude. Aliás, já na pr6pria Teoria da Justiça, há passagens que alertam no mesmo
sentido: «quando n6s abordamos os princípios necessários, é preciso atermo-nos aos

conhecimentos actuais tal como eles são admitidos pelo senso comum e pelo
consenso dos cientistas. Devemos reconhecer que, uma vez que as convicções
existentes mudam, os princípios de justiça, que nos parecem racionais podem
igualmente mudar» (Rawls, 1971, p. 548).

5. No domínio genuinamente político, os confrontos mais pertinentes com


Rawls surgem a respeito do segundo princípio, também conhecido por princípio da
igualdade. Com efeito, apesar de toda a prioridade concedida pelo autor ao princípio
da liberdade, o neocontratualismo mais recente será levado a desconfiar desta
alegada via para manter indevidas funções do Estado e a reelaborar o contrato a
partir apenas da vontade de segurança que sente o indivíduo, seja sob a inspiração
de Locke, como acontece com Robert Nozick (1974), seja sob a inspiração de
Robbes, reivindicada pelo movimento da Public Choice e pelo seu representante
mais conhecido, James Buchanan (veja-se, Buchanan, 1975)- Este pretende clara-
mente levar o contrato às suas Ultimas consequências, mas abandona de uma vez por
todas a tentativa de o assentar numa situação artificial de igualdade, já que. em seu
entender, é a condição de desigualdade que gera penTlanentemente a insegurança e
a vontade de contratar. Quanto a Nozick, o seu método consiste em verificar o ponto
até onde podem chegar os indivíduos actuando segundo os seus direitos para, só a
partir daí, deduzir aquele mínimo que é necessário pedir ao Estado, um Estado que,
forçosamente, se terá de confundir com uma simples «agência de segurança».
Há, no entanto, quem comece a considerar todo este debate como que inquina-
do à partida, porquanto procederia ainda de uma tradição que tende a encarar a
política como o centro ou o vértice da sociedade. Está neste caso Niclas Luhman,
que concebe a sociedade moderna como um sistema sem centro, onde o subsistema
político tem a função específica de transmitir «decisões vinculantes». O poder, nesta
perspectiva, será apenas o meio de que um ou vários indivíduos dispõem para
definir as alternativas possíveis para outros indivíduos. A sua legitimidade, essa
radica nos procedimentos - legislativo, judicial, eleitoral - através dos quais se
dilui a insatisfação e se absorvem os protestos latentes na sociedade, como fonTla
de garantir a governabilidade.
Numa apreciação porventura impressionista, poder-se-ia dizer que esta análise

da sociedade contemporânea, somada às observações do pragmatismo sobre a


impossibilidade de um ponto de observação racionalmente aceitável e exterior
à circunstância democrática e liberal que perfilhamos, esvaziaria de sentido a inter-
rogação da filosofia modema pelo fundamento desses mesmos valores que o ilumi-

nismo incorporou na história. A verdade é que, sem essa mesma interrogação,


continuará por explicar a legitimidade daqueles que os reivindicaram face a um
poder pretensamente fora de causa, como foi o caso dos iluministas. E, em Ultima
instância, o problema inibir-se-á apenas por razões estratégicas, ou seja, por impos-
sibilidade de o resolver e por verificação dos efeitos trágicos que implicaram as suas

pretensas resoluções.
Diogo Pires Aurélio

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