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O que torna uma vida realizada

Comissão Científica

Prof. Dr. Carlos Henrique Soares (ESDH)

Profa. Dra. Cláudia Maria Rocha de Oliveira (FAJE)

Prof. Dr. Delmar Cardoso (UNICAP)

Prof. Dr. Edvaldo Antônio de Melo (FDLM)

Prof. Dr. Elton Vitoriano Ribeiro (FAJE)

Prof. Dr. Émilien Vilas Boas Reis (ESDHC)

Profa. Dra Maraluce Maria Custodio (ESDHC)

Profa. Dra. Patrícia Carvalho Reis (UFMG)

Profa. Dra. Raquel Virgínia Rocha Vilela (UFMG)

Prof. Dr. Valter Ferreira Rodrigues (UFPB)


O que torna uma vida realizada

Homenagem aos 100 anos de Henrique Cláudio de Lima Vaz

Organizadores:
Cláudia Maria Rocha de Oliveira
Marcelo Antônio Rocha
Diagramação: Marcelo A. S. Alves
Capa: Carole Kümmecke - https://www.conceptualeditora.com/
Fotografia de Capa: @flotography_91

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


OLIVEIRA, Cláudia Maria Rocha de; ROCHA, Marcelo Antônio (Orgs.)

O que torna uma vida realizada: homenagem aos 100 anos de Henrique Cláudio de Lima Vaz [recurso eletrônico] / Cláudia
Maria Rocha de Oliveira; Marcelo Antônio Rocha (Orgs.) -- Porto Alegre, RS: Editora Fi, 2020.

321 p.

ISBN - 978-65-5917-062-3
DOI - 10.22350/9786559170623

Disponível em: http://www.editorafi.org

1. Henrique Cláudio de Lima Vaz; 2. Realização; 3. Filosofia; 4. Ética; 5. Brasil; I. Título.

CDD: 100
Índices para catálogo sistemático:
1. Filosofia 100
Sumário

Apresentação ............................................................................................................. 9
Grupo de pesquisa Estudos Vazianos

Capítulo 1 .................................................................................................................. 12
Consideração antropológico-metafísica da realização em Lima Vaz
Edmar José da Silva

Capítulo 2 ................................................................................................................ 42
A vida realizada na contemporaneidade: desafios e consequências
Patrícia Carvalho Reis

Capítulo 3 .................................................................................................................54
Sobre o problema da autorrealização na situação pós-humana
Marco Heleno Barreto

Capítulo 4 ................................................................................................................ 68
Releitura de Finitude e Situação na Ética de Henrique Cláudio de Lima Vaz: analogias
com a práxis existencialista
Magda Guadalupe dos Santos

Capítulo 5 ................................................................................................................ 83
Realização: um desafio ético e político
João A. Mac Dowell

Capítulo 6 ............................................................................................................... 100


Realização e Razão Prática
Cláudia Maria Rocha de Oliveira
Edvaldo Antônio de Melo

Capítulo 7 ............................................................................................................... 123


Intersubjetividade em Lima Vaz como consenso e reconhecimento fundamentam a
ação ética?
Paulo César Nodari
Manuel Melo
Capítulo 8 ............................................................................................................... 143
A Comunidade Ética como condição de realização segundo Lima Vaz
Elton Vitoriano Ribeiro

Capítulo 9 ............................................................................................................... 152


O Desafio Contemporâneo da Vida Ética em Lima Vaz
Maria Celeste de Sousa

Capítulo 10 .............................................................................................................. 170


Sociedade Democrática: lócus para a realização humana
Manoel dos Reis Morais

Capítulo 11 .............................................................................................................. 188


Justiça e Realização na República de Platão: considerações a partir da obra de Lima Vaz
Bruno Amaro Lacerda

Capítulo 12 ............................................................................................................. 204


O Marxismo como uma não realização política em Lima Vaz
Émilien Vilas Boas Reis

Capítulo 13 ............................................................................................................. 222


Realização humana e afirmação do absoluto: Lima Vaz diante do drama da
modernidade
Álvaro Mendonça Pimentel

Capítulo 14 ............................................................................................................. 243


A experiência espiritual da união mistérica na Antropologia Filosófica de Henrique
C. de Lima Vaz
Samuel Dimas

Capítulo 15 .............................................................................................................. 271


A questão de uma referência última nos atos supremos do existir próprio do ser
humano em Lima Vaz
Marcelo F. de Aquino

Capítulo 16 .............................................................................................................. 297


Experiência religiosa e experiência de Deus em Lima Vaz
Juliano de Almeida Oliveira

Sobre os autores ..................................................................................................... 317


Apresentação

Grupo de pesquisa Estudos Vazianos 1

Em vinte e quatro de agosto de 1921, nascia Henrique Cláudio de


Lima Vaz. Próximo do centenário de seu nascimento, este livro tem por
objetivo fazer memória e render homenagem a um dos mais importantes
filósofos: jesuíta, brasileiro, do século XX. Para ele, a filosofia não poderia
ser compreendida apenas como mero exercício intelectual, mas deveria
sim ser assumida como exigente modo de vida, que confere a quem o
exerce grande responsabilidade social.
Intelectual cristão, Lima Vaz desenvolve uma filosofia em sintonia
com o humanismo personalista cristão. Autor de importantes obras filo-
sóficas e de inúmeros artigos, inspirou grande número de pensadores
brasileiros. Os seus textos constituem um importante legado que precisa
ser ainda investigado e explorado para revelar de modo pleno todo o vigor
e riqueza.
A obra sistemática, considerada como obra de maturidade, se estru-
tura a partir de três grandes temas que estão intimamente articulados: a
antropologia, a ética e a reflexão sobre o Absoluto. Ao partir de uma inves-
tigação a respeito de quem é o ser humano, a proposta sistemática lima
vaziana o afirma como pessoa. Contudo, a natureza ontológica do ser hu-
mano precisa ser realizada, existencialmente, através de atos pessoais. O
discurso antropológico cede, então, lugar para o discurso ético-político.
Trata-se, portanto, num segundo momento, do desenvolvimento de uma
reflexão que ajude na compreensão dos invariantes ontológicos que possi-
bilitam definir o agir e a vida éticos. Estes, no entanto, apenas podem ser

1
(GEVaz)
10 | O que torna uma vida realizada: homenagem aos 100 anos de Henrique Cláudio de Lima Vaz

adequadamente compreendidos como agir e vida que se realiza no interior


de uma comunidade e que se orienta a partir de critério objetivo. Este cri-
tério é o bem que se apresenta, ao mesmo tempo, como bem para o
indivíduo e como bem objetivo, constituindo-se assim como bem real. Por
fim, a ética nos lança na direção da necessidade de pensar o Bem absoluto
que se apresenta como polo intencional do dinamismo da vontade hu-
mana. Sendo uma noção transcendental, convertível com a noção de
Verdade, o Bem nos remete a uma realidade transcendente, origem, sus-
tento e, ao mesmo tempo, telos do dinamismo da vida humana.
Este livro possui como tema central a questão da realização. Para
Lima Vaz a categoria de realização deve ser capaz de exprimir o modo pelo
qual o ser humano se torna capaz de unificar a própria vida, vivendo uma
vida propriamente humana. A realização da própria vida é um desafio per-
manente. Somente ao ser humano é dado atualizar, por meio do próprio
agir, aquilo que se é por essência. Assim, a vida se apresenta como tarefa
nunca completamente cumprida. Cada um de nós deve assumir a respon-
sabilidade de significar a própria vida e, desse modo, encontrar o caminho
da própria realização.
Sabemos que embora a categoria de Realização tenha sido desenvol-
vida na obra Antropologia Filosófica, para Lima Vaz a realização do ser
humano como pessoa apenas é possível através do exercício de atos pes-
soais. Além disso, a abertura ao transcendente se constitui como condição
fundamental para a realização do ser humano como pessoa. Em conse-
quência, neste livro nos propomos a pensar o tema da realização à luz das
três principais obras de Lima Vaz: Antropologia, Ética e Raízes da Moder-
nidade.
O livro encontra-se organizado seguindo a seguinte lógica. Nos qua-
tro primeiros capítulos, os autores assumiram o desafio de pensar a
realização a partir, prioritariamente, do exame da Antropologia Filosófica.
A questão orientadora pode ser formulada nos seguintes termos: o que
significa uma vida realizada? Do quinto ao décimo segundo capítulo, o ob-
jetivo consiste em retornar o conceito de realização, presente na
Grupo de pesquisa Estudos Vazianos | 11

Antropologia, procurando articulá-lo com a Ética e com a Política. Tratar-


se, portanto, de pensar a realização como desafio ético e político. Final-
mente, nos capítulos restantes, o tema da realização é abordado a partir
de uma reflexão que gira em torno das questões relacionadas ao mistério
e ao Absoluto.
Que a leitura desse livro possa nos motivar a aprofundar os estudos
sobre Lima Vaz e também nos incentive a viver uma vida cada vez mais
una, expressão da nossa mais radical humanidade: uma vida realizada!
Capítulo 1

Consideração antropológico-metafísica
da realização em Lima Vaz

Edmar José da Silva

Como sabemos, Lima Vaz organiza o seu discurso antropológico a


partir das categorias. O termo “categoria”, de inspiração aristotélica, é
muito sugestivo, visto que categoria é um modo de ser do ser, mas não
responde pela totalidade do ser. Portanto, cada categoria antropológica de
Lima Vaz diz algo sobre este ser específico que é o ser humano, mas ne-
nhuma delas o diz na sua completude e riqueza ontológica. É a totalidade
das categorias que definirá o ser humano como pessoa.
A solicitação que me foi feita é que fizesse uma exposição sobre o
tema da realização, uma das categorias antropológicas de Lima Vaz e que
se situa no último polo categorial da sua antropologia, denominado uni-
dade. O tema da realização unifica no nível da existência concreta de cada
indivíduo humano os dois polos categoriais anteriores: o polo categorial
estrutural, que responde pelo aspecto da identidade e da ipseidade do ho-
mem, e o polo categorial relacional, que responde pelos aspectos
relacionais “ad extra” do homem.
Como sabemos, o tema da realização, tão caro a diversas áreas do
conhecimento humano, pode ser abordado sob diversas perspectivas: me-
tafísica, antropológica, ética, psicológica, teológica, etc. O que farei aqui é
apresentar a categoria da realização, este modo de ser e agir próprio do
ser humano, a partir da perspectiva antropológico-metafísica, tendo como
Edmar José da Silva | 13

base as duas obras de Antropologia filosófica de Lima Vaz, a saber, Antro-


pologia filosófica I e Antropologia filosófica II. Portanto, o meu recorte
sistemático se situa no limite destas duas áreas da filosofia: a Antropologia
filosófica e a Metafísica, a partir do enfoque do grande filósofo brasileiro,
Henrique Cláudio de Lima Vaz.
Dissertar sobre a realização é tocar em uma temática autoimplicativa,
que diz respeito a todo o ser humano porque esta é, do ponto de vista da
vontade e da razão, o seu desejo e a sua busca mais profunda, o télos (fim)
ao qual pretende existencialmente alcançar. Aristóteles afirmava que: “a
autorrealização é um bem que todos buscam” 1. Portanto, a felicidade é a
grande e maior aspiração de todo ser humano e que revela o seu desejo
constitutivo de plenitude e de perfeição:

A felicidade é aquilo a que todos aspiramos, ainda que sem sabê-lo, pelo mero
fato de vivermos. Acontece assim, simplesmente porque “a felicidade é para as
pessoas o que a perfeição é para o ser” (Leibniz). Felicidade significa para o
homem, plenitude, perfeição. Por isso, toda pretensão humana é “pretensão de
felicidade”, todo projeto vital é sua busca; todo sonho, a aspiração por encon-
trá-la. 2

Para Lima Vaz, o desejo de felicidade ou de realização nasce da aber-


tura constitutiva do ser humano que é estruturalmente um ser espiritual,
portanto, origina da sua constituição ontológica, da sua abertura à infini-
tude do ser que está dada no seu em-si mais próprio. É do excesso
ontológico do seu ser que nasce a sua abertura para a realização e é por ele
que homem se sobrepõe ao mundo e à história e avança além do seu ser-
no-mundo e do seu ser-com-os- outros na busca de alcançar uma inteligi-
bilidade última para o Eu Sou primordial 3.
Dissertaremos sobre o tema da realização seguindo o itinerário refle-
xivo e metodológico feito pelo próprio Lima Vaz. Primeiramente,

1
Cf. Aristóteles, Ética a Nicômaco, Livro I, 1-13.
2
R. Y. Stork; J. A. Echevarria. Trad. Patrícia Carol Dwyer, Fundamentos de Antropologia: um ideal da excelência
humana, São Paulo, Instituto Brasileiro de Filosofia e ciência “Raimundo Lúlio”, 2005, p. 223.
3
Cf. H. C. L. Vaz, Antropologia filosófica II, 2ª ed., São Paulo, Loyola, 1995, p. 93.
14 | O que torna uma vida realizada: homenagem aos 100 anos de Henrique Cláudio de Lima Vaz

apresentaremos a realização como um desafio constante e uma tarefa per-


manente na vida do ser humano. Depois, num segundo momento, faremos
uma apresentação breve das duas regiões categoriais com as quais se cons-
trói o tema da realização: o polo categorial estrutural (corpo próprio,
psiquismo e espírito) e o polo categorial relacional (objetividade, intersub-
jetividade e transcendência). Por fim, trataremos do tema da realização na
perspectiva antropológico-metafísica, a partir da frase que explicita bem o
que é a natureza e as características desta categoria: “torna-te o que és”.

1. Realização humana: desafio constante e tarefa permanente

A realização é o desejo mais profundo do ser humano, mas é ao


mesmo tempo o maior desafio da sua vida e a tarefa que deve afrontar
cotidianamente na sua existência concreta. A busca da realização é tarefa
individual, concernente a cada pessoa, portanto, não pode ser delegada a
outro, na medida em que surge como uma inquietação própria de cada ser
humano e como uma realidade que deve ser alcançada durante a sua curta
existência neste mundo, visto que a vida do sujeito na história é única e
precisa adquirir um sentido, uma certa perfeição, enquanto faz o seu per-
curso existencial. Assim afirma Lima Vaz:

uma das experiências mais constantes e mais profundas do homem é a de que


a realização da própria da vida, sendo para ele um desafio permanente, é, ao
mesmo tempo, uma tarefa nunca acabada: é o risco supremo de ser ou não
ser, não no domínio do simplesmente existir, mas no domínio do sentido da
vida, no qual a sua existência está lançada como existência propriamente hu-
mana e que se desenrola no signo da insecuritas. 4

Não há como separar o tema da realização humana com o da busca


de sentido para a vida humana. A investigação sobre um tema nos faz ne-
cessariamente nos confrontar com o outro porque ambos se entrelaçam
na existência concreta de cada ser humano:

4
Ibidem., p. 146.
Edmar José da Silva | 15

Na antiguidade, a questão do sentido punha-se em geral, em termos do “fim


último” do homem. Dava-se por assentado que era “a felicidade”. Logo, porém,
surgia a pergunta sobre em que consistia a felicidade, e a discussão retomava.
Segundo Agostinho, Varrão tinha chegado a elencar pelo menos 288 respostas
possíveis à questão da felicidade, reduzindo-as em seguida a três: o prazer
(Epicuro), a tranquilidade (estoicismo) e a virtude (ele mesmo, Varrão). Seja
como for, o doutor africano reconhece que a questão da felicidade é uma ope-
rosíssima disputatio. Acrescenta que sobre ela os filósofos discutiram entre si
longamente e de diversas maneiras. 5

Aristóteles afirma que a felicidade é o fim último e máximo ao qual


todos aspiramos e que todos os demais fins, bens e valores os escolhemos
por ele 6. A felicidade seria, portanto, o bem incondicional, que dirige todas
as nossas ações e preenche todos os nossos desejos. Diante disso, podería-
mos nos interrogar: que bens fazem o homem feliz? Em se tratando de
uma visão antropológico-metafísica, a realização não pode ser vista apenas
como posse de bens finitos que trazem mais ou menos satisfação pessoal
ou, nem mesmo, como escolha certa de um percurso de felicidade, dentre
as múltiplas possibilidades que se apresentam neste mundo plural. A ques-
tão é mais profunda. Trata-se de buscar uma explicação na própria
realidade essencial e existencial do ser humano, a partir da unidade in-
terna e da própria constituição ontológica do seu ser. Trata-se de
concretizar na existência concreta de cada sujeito humano, aquilo que ele
é por essência. Portanto, não se trata apenas de uma visão utilitarista, ética
ou psicológica da realização, mas uma visão que compromete todo o ser
do ser humano a partir da sua estrutura constitutiva e da sua abertura ao
outro externo (ad extra). A realização consiste em atualizar na existência
aquilo que se é por essência. Esta é a tarefa e o desafio da realização hu-
mana do ponto de vista antropológico-metafísico.
Lima Vaz, mostra bem o drama da realização humana quando fala
das três experiências que se entrelaçam indissoluvelmente no próprio
âmago da vida consciente do ser humano:

5
C. Boff, O livro do sentido, Vol. I, São Paulo, paulus, 2014, p. 54.
6
Aristóteles, Ética a Nicômaco, 1094 a 20.
16 | O que torna uma vida realizada: homenagem aos 100 anos de Henrique Cláudio de Lima Vaz

a) de que a vida apresenta-se como tarefa (érgon) que ele deve inelutavelmente
cumprir; b) a de que essa tarefa não é predeterminada pela natureza nem por
nenhuma força que nos seja exterior; sua execução não procede de uma vis a
tergo que fatalmente venha impelir-nos numa só direção, mas desenrola-se a
partir de nós mesmos e orienta-se para um fim que nos cabe livremente esco-
lher; c)finalmente, a de que a necessidade da escolha do fim e, por
conseguinte, da vida que lhe corresponde, coloca-nos continuamente em face
da imensa, variada e incessante procissão de “modelos” que nos são oferecidos
pela tradição cultural e ética da comunidade humana na qual vivemos 7.

Diante desta tarefa, o Eu deve ser tematizado como síntese dialética


entre o Eu estrutural (sujeito em si mesmo, na sua ipseidade constitutiva
e indivisível) e o Eu relacional (sujeito na sua abertura para o outro, cuja
ipseidade constitui negativamente pelo fato de não-ser o outro). A realiza-
ção humana está situada no campo da ipseidade dinâmica (em si aberto às
relações concretas) em que o Eu, na ipseidade estrutural, se abre ao outro,
no campo próprio do existir concreto; é aqui que está situada a realização
humana. É desta síntese dinâmica e viva que resulta o processo de autor-
realização do sujeito. Assim afirma Lima Vaz:

Dessa síntese de ser-em-si e de ser-para o que resulta é, portanto, a figura do


Eu no processo do seu auto-realizar-se, processo orientado intrinsecamente
pelo alvo da vida realizada ou da vida impelida pela exigência do melhor, que
Aristóteles designou como “vida perfeita (bios téleios) 8.

2. Realização humana como unificação da própria vida

Não é possível tratar da categoria 9 realização em Lima Vaz, do ponto


de vista antropológico-metafísico, sem recorrer ao estudo das categorias

7
H. C. L. Vaz, Antropologia Filosófica II, p. 153-154.
8
Ibidem., p. 154.
9
Na nota 21, da página 170, assim se expressa Lima Vaz: “O termo ‘categoria’ (de kategrein, acusar) designa, na
terminologia aristotélica, o conceito universal em seu gênero atribuído a um ‘sujeito’ (hypokeimon). Na acepção em
que o usamos aqui significa, de acordo com o significado aristotélico original, um atributo fundamental entre os que
exprimem o ser do sujeito e, portanto, é atributo no discurso ontológico sobre o mesmo sujeito” (H.C.L. Vaz, Antro-
pologia filosófica I, 11ª ed., São Paulo, Loyola, 2011, p.170).
Edmar José da Silva | 17

anteriores, a saber, as categorias estruturais, que respondem pelo aspecto


constitutivo ontológico do ser humano, pela sua ipseidade (em-si mais pró-
prio) e as categorias relacionais que dizem respeito ao aspecto da ontologia
relacional do ser humano, ao seu ser-para enquanto abertura. Isso porque
a categoria de realização é exatamente a unidade entre as categorias estru-
turais e as categorias relacionais do ser humano, no nível da existência
concreta de cada indivíduo humano.
Em se tratando das categorias estruturais, Lima Vaz afirma que o ser
humano possui uma constituição ontológica tríplice. Neste sentido, ele usa
o esquema trial, de inspiração mais bíblico-cristã, e não o esquema dual
grego. Para ele, o ser humano é constituído de corpo próprio, psiquismo e
espírito. É a unidade destas três categorias estruturais que responde pela
identidade ou ipseidade do ser humano, pelo seu aspecto constitutivo-on-
tológico.

2.1 O ser-em-si do ser humano: ontologia estrutural

Segundo Lima Vaz, a primeira experiência que o homem faz de si


mesmo consiste em reconhecer-se como ser corporal. O corpo o coloca em
contato com a exterioridade do mundo. A pré-compreensão desta catego-
ria nos leva a afirmar o corpo na sua tríplice modalidade: como substância
material, chamado de corpo físico; como organismo vivo, chamado de
corpo biológico e como totalidade intencional (corpo próprio) 10. Pelo
corpo, o homem está presente à exterioridade do mundo como presença
natural, numa situação puramente passiva do estar-aí (corpo físico-bioló-
gico), mas também como presença intencional, em situação
fundamentalmente ativa como ser-no-mundo (corpo vivido, corpo pró-
prio) 11. No movimento dialético do qual o Eu passa da natureza à forma, o
sujeito que procura expressar-se, assume o seu corpo físico-biológico e dá

10
Entende-se aqui o corpo não no sentido físico nem no sentido puramente biológico, mas no sentido de ser corpo
humano, ou seja, como estrutura fundamental do ser do homem. Conferir nota de rodapé 1 (H. C. L. Vaz. Antropo-
logia Filosófica I, p. 177)
11
Cf. Ibidem., p. 179
18 | O que torna uma vida realizada: homenagem aos 100 anos de Henrique Cláudio de Lima Vaz

a ele significado intencional através dos sinais, gestos, percepções corpo-


rais, etc. Portanto, o corpo humano tem um caráter que ultrapassa as
dimensões e determinações físico-biológicas dos outros corpos. Na com-
preensão explicativa ou científica, quando o corpo é tomado no seu aspecto
físico-biológico, nem assim é possível tratá-lo apenas como um objeto
qualquer porque é sempre corpo humano, vivido e intencional:

Com efeito, embora sendo o seu objeto o corpo tal como é dado na natureza e
não o corpo próprio, o processo de objetivização do corpo - mesmo no caso da
total redução do corpo a um objeto como no cadáver - não suprime a referên-
cia humana do corpo e sua integração na totalidade do fenômeno da vida
enquanto vivido pelo indivíduo 12.

No nível da compreensão filosófica, o eidos do corpo deve ser afir-


mado como constitutivo, estrutural e expressivo do ser humano. Não é
possível afirmar a existência do homem sem o corpo, portanto, este faz
parte da sua essência. A partir do princípio dialético da identidade e da
diferença, Lima Vaz afirma que o homem é o seu corpo (identidade), na
medida em que o ser humano se identifica com o seu corpo, mas afirma
também que ele não é o seu corpo, na medida em que o corpo não res-
ponde pela totalidade do seu ser (diferença). Na dialética temos:

o homem é o (seu) corpo” e “o homem não é o (seu) corpo”, cabendo, dora-


vante à totalização, a afirmação de que a “presença imediata do homem no
mundo pelo corpo (...) não é, portanto, a presença total do homem a si mesmo
ou ela não implica a plena relação de identidade do homem consigo mesmo
que exprime o seu ser. É preciso avançar para além das fronteiras do corpo na
busca dessa identidade 13

A autoexpressão do sujeito humano vai além dos limites da corporei-


dade e reclama, portanto, outra categoria, a saber, o psiquismo. “A
categoria do psiquismo, por sua vez, anuncia, em toda a sua complexidade,

12
H.C.L. Vaz, Antropologia Filosófica I, p. 178.
13
Ibidem., p. 187.
Edmar José da Silva | 19

que o homem não pode ser reduzido apenas ao seu aspecto somático. A
corporeidade (ou somaticidade) aponta, pois, para a existência de uma
vida interior” 14.
Se pelo corpo próprio o homem faz a experiência do contato imediato
com o mundo externo, pelo psiquismo, Lima Vaz chama a atenção para o
mundo interno do ser humano. O discurso sobre o psiquismo assinala o
início do homem interior. O psiquismo se apresenta como uma categoria
que está numa posição mediadora entre a exterioridade do corpo próprio
e absoluta interioridade do espírito e esta posição que ocupa na estrutura
humana que o constitui como uma categoria antropológica: “Desde o iní-
cio, pois, de nossa reflexão sobre o psíquico ele aparece como situado
numa posição mediadora entre o corporal e o espiritual (...). É justamente
esta posição estrutural mediadora do psiquismo que se trata de elevar ao
nível da categoria e de assumir no discurso da Antropologia filosófica” 15.
O psiquismo é a captação do mundo exterior e tradução ou recons-
trução no mundo interior edificada sobre dois grandes eixos: o imaginário
e o afetivo. Porém, neste nível do discurso a plena unificação consciente
do mundo interior não é alcançada, embora os estados inconscientes se
definam a partir da unidade fundamental assegurada pela consciência psi-
cológica:

O domínio do psíquico apresenta igualmente toda uma face voltada para a ex-
terioridade objetiva do mundo por meio do “corpo próprio” e do corpo como
organismo. O psiquismo está constitutivamente ligado a órgãos e funções cor-
porais, mas aqui é considerado como primeiro estágio de interiorização do
mundo no sujeito ou de constituição de um mundo interior. A presença do
homem no mundo como situação fundamental não se fará mais, desde o ponto
de vista do psiquismo, como imediatidade do corpo, mas pela mediação deste
mundo interior, no qual o corpo é suprassumido dialeticamente 16.

14
G. F. Martins, Realização humana em Lima Vaz, Belo Horizonte, FAJE, 2016, p. 51.
15
H.C .L. Vaz. Antropologia Filosófica I, 190.
16
Ibidem., p. 189, nota de rodapé 1.
20 | O que torna uma vida realizada: homenagem aos 100 anos de Henrique Cláudio de Lima Vaz

A presença do homem no mundo pelo corpo próprio é presença ime-


diata porque o corpo tem uma dimensão de exterioridade que coloca o ser
humano no mundo da objetividade. No entanto, a presença do homem no
mundo pelo psiquismo é uma presença mediatizada:

O psíquico se apresenta, pois, como domínio de uma presença mediata do ho-


mem no mundo e como primeiro momento da presença do homem a si
mesmo, presença essa mediatizada pelo mundo interior do próprio psiquismo.
Podemos dizer, portanto, que estruturalmente o psiquismo é o sujeito expri-
mindo-se na forma de um Eu psicológico, unificador de vivências, estados e
comportamentos. 17

Na compreensão explicativa, as diversas vertentes da psicologia se


apresentam como a ciência do psiquismo, mas a vida psíquica não pode
ser plenamente objetivada. Na compreensão filosófica, o psiquismo é visto
como presença mediatizada do homem no mundo (mediatizada pelo pró-
prio mundo interior do psiquismo) que tem um caráter egocêntrico. Se
pelo corpo próprio o homem se exterioriza e se expressa objetivamente no
mundo, “pelo psiquismo o homem plasma sua expressão ou figura inte-
rior, de modo que se possa falar com propriedade do Eu psíquico ou
psicológico 18”.
No momento dialético, o psiquismo é visto como parte constitutiva
do ser humano, como fazendo parte do seu eidos, porém o discurso sobre
a estrutura humana, em virtude da sua amplitude transcendental, se abre
a um mais, não se reduz ao psiquismo. Lima Vaz afirma que “o homem é
o (seu) psiquismo” no momento da limitação eidética, reconhecendo que
o psiquismo é um momento categorial da afirmação transcendental de seu
próprio ser, e afirma também que “o homem não é o (seu) psiquismo”,
no momento da ilimitação tética, reconhecendo a impossibilidade de esgo-
tar no psíquico o movimento dialético de autoafirmação do sujeito19. No

17
Ibiem., p. 198.
18
Ibidem., p.
19
Cf. Ibidem., p. 199.
Edmar José da Silva | 21

princípio de totalização, o discurso é impelido para além das fronteiras do


somático e do psíquico rumo ao último passo dialético na constituição das
estruturas do ser- homem, esses momentos devem ser assumidos na es-
trutura espiritual ou noético-pneumática.
A categoria do Espírito é chamada por Lima Vaz de noético-pneumá-
tica e coloca em relevo a abertura própria que existe no ser humano como
um ser de inteligência/razão e de liberdade 20. Pela razão, o ser humano se
abre à verdade e pela liberdade, se abre ao bem. É nesta categoria estrutu-
ral que o ser humano alcança a unidade profunda de seu ser, cuja
constituição espiritual é o supremo polo de referência dos atos do sujeito.
Partindo da constatação de que a noção de espírito não é univoca-
mente antropológica, Lima Vaz a trata como noção que é coextensiva ou
homóloga à noção de ser e de seus transcendentais: unidade, verdade e
bondade. Portanto, é na categoria de espírito que se dá o elo conceptual
entre a Antropologia filosófica e a metafísica.

Em sua estrutura espiritual, o homem se abre enquanto inteligência (nous) à


amplitude transcendental da verdade e, enquanto liberdade (pneuma) à am-
plitude transcendental do bem: como espírito ele é, pois, o lugar do
acolhimento e manifestação do Ser e do consentimento ao Ser: capax entis. O
espírito não pode, por conseguinte, ser considerado, em sua amplitude trans-
cendental, uma estrutura ontológica do homem irrevocavelmente ligada à sua
contingência e finitude, como o são o somático e o psíquico. O espírito é, se-
gundo a terminologia clássica, uma perfectio simplex (..) Por isso mesmo, é
pelo espírito que o homem participa do infinito ou tem indelevelmente gra-
vada em seu ser a marca do Infinito 21

Na pré-compreensão, recorrendo à tradição ideo-histórica, Lima Vaz


apresenta quatro grandes aspectos da compreensão do termo “espírito”:
princípio de vida (pneuma), inteligência (nous), ordem da razão (logos) e

20
Na nota de rodapé de nº 29, na página 200, Lima Vaz fala do sentido dado por M. Blondel aos termos noético e
pneumático, depois mostra qual em qual sentido pretende usar os termos: “em sua acepção antropológica, o noético
exprime a universalidade da inteligência, enquanto o pneumático exprime a singularidade da liberdade” (H. C. L.
Vaz, Antropologia Filosófica I, p. 200).
21
H. C. L. Vaz, Antropologia Filosófica I, p.215.
22 | O que torna uma vida realizada: homenagem aos 100 anos de Henrique Cláudio de Lima Vaz

consciência de si (synesis). A unificação destes quatro traços fundamentais


do espírito que constituem a chamada “experiência espiritual” 22.
Na compreensão científica ou explicativa da categoria do espírito,
Lima Vaz afirma que não existe uma ciência propriamente do espírito por-
que a estrutura noético-pneumática não se apresenta como objeto da
ciência, pois não é possível aplicar procedimentos metodológicos próprios
das ciências a esta estrutura. Porém, toda ciência é ciência do espírito na
medida em que revela esta dimensão propriamente do ser humano. Se o
ser humano não fosse um ser espiritual, ele não faria obra propriamente
humana, inclusive a ciência 23.
Ao tratar da compreensão filosófica do espírito, Lima Vaz apela para
o conceito de suprassunção dialética para mostrar o movimento duplo do
espírito em contato com as duas categorias anteriores, do corpo próprio e
do psiquismo, garantindo a unidade estrutural do ser humano. Através de
um movimento descendente, o espírito desce e assume as categorias do
corpo e do psiquismo, e no momento ascendente, os eleva a uma dimensão
superior, dando a eles um estatuto propriamente humano. É importante
notar que suprassumir não significa suprimir a categoria anterior, mas
assumi-la elevando-a. Este movimento dialético salvaguarda a unidade es-
trutural do ser humano e evita cair em reducionismos antropológicos:

Essa posição de Padre Vaz quer evitar dois extremos: a) de um lado, a absorção
do espírito no complexo psicossomático, o que seria a anulação do espirito na
compreensão do homem e a afirmação quer do materialismo, quer do psico-
logismo; b) de outro lado, o espiritualismo, resultado da anulação da dimensão
psicossomática, que é na verdade, constitutiva do homem 24.

Desse modo, “a suprassunção dialética não é pura supressão da espe-


cificidade eidética do somático e do psíquico, mas sua conservação na
unidade ontológica do ser homem” 25. Portanto, afirmar que o ser humano

22
Cf. Ibidem., p. 205-207.
23
Cf. H.C.L. Vaz, Antropologia Filosófica I, p. 213.
24
E. F. M. Júnior, As condições de possibilidade da metafísica segundo Vaz. Belo Horizonte: FAJE, 2011, p.
25
H.C. L. Vaz, Antropologia Filosófica I, p. 204.
Edmar José da Silva | 23

é um ser espiritual é chegar ao ápice do discurso antropológico. Neste mo-


mento, descobrimos a identidade constitutiva mais profunda do ser
humano. Porém, esta sua identidade ou ipseidade, ao invés de fechá-lo em
si mesmo, o abre para as relações. É esta estrutura constitutiva espiritual
do ser humano que o permite abrir-se ao outro entendido como mundo,
sociedade ou absoluto. Esta abertura constitutiva aos diversos tipos de re-
lações não anula a identidade do sujeito na afirmação do seu Eu Sou, mas
faz parte desta mesma identidade. Neste sentido, as relações assumidas
pelo sujeito não são realidades extrínsecas a ele, mas fazem parte da sua
autoexpressão. 26 É do excesso ontológico do seu ser espiritual que nasce
a possibilidade de abertura ao outro. Aqui o discurso antropológico passa
do ser-em-si do ser humano para o ser-para-o-outro, inaugurando assim
um novo polo categorial: o das relações. Assim afirma Lima Vaz:

Essa estrutura é, enquanto tal, perfeição (enérgeia) mas é, por outro lado, es-
sencial abertura à realidade na qual o homem se situa, ou seja, é
estruturalmente esse ad aliud. É exatamente enquanto o homem se constitui
como relação consigo mesmo (ipseidade ou identidade reflexiva) que ele é
igualmente abertura à realidade exterior na forma de relação ativa. Em outras
palavras, o relacionar-se com o outro (relação de alteridade) é, para ele, igual-
mente, ato, perfeição, enérgeia. 27

Na compreensão de Lima Vaz, o homem se constitui plenamente na


medida em que se abre para as relações. As relações não diminuem o em-
si do ser humano, mas o aperfeiçoa do ponto de vista existencial:

Ora, enquanto abertura para um horizonte de relações, o homem está situado


frente ao risco de alienação (tornar-se outro) como algo inerente à sua ipsei-
dade. Porém, para Lima Vaz “sendo uno estruturalmente e abrindo essa
unidade ao acolhimento do outro ser na forma da relação ad extra”, o homem

26
“Portanto, para Lima Vaz, somos necessariamente seres de relação. Isso significa que as relações não são acrescen-
tadas extrinsecamente a nós. Não temos a opção de escolher nos relacionar ou não. Mas as relações nos definem.
Elas nos constituem no nosso ser mais próprio. Nesse sentido, somos necessariamente ser-no-mundo, ser- com- os-
outros e ser-para-a-transcendência” (C. Oliveira, Mergulho na natureza humana pelo reconhecimento do outro, Ins-
tituto Humanitas Unisinos, julho, 2016)
27
H. C. L. Vaz. Antropologia Filosófica II, p. 12
24 | O que torna uma vida realizada: homenagem aos 100 anos de Henrique Cláudio de Lima Vaz

poderá ter sua unidade assegurada- ser ele mesmo (ipse) e manifestar o Eu
sou primordial que o constitui. Pois para Lima Vaz, é exatamente na abertura
ao outro que o homem pode afirmar-se como um eu. É exatamente no hori-
zonte das relações que que o homem pode expressar sua interioridade,
exprimir sua essencialidade e, assim, transcender os limites que o constitui.

2.2. O ser para o outro do ser: ontologia relacional

Em se tratando de sua abertura constitutiva, Lima Vaz afirma que o


ser humano é um ser situado e sua presença no mundo é, em última ins-
tância, presença espiritual, sendo assim o espírito é o determinante último
da situação do homem no mundo. Existem três regiões do ser que confi-
guram a situação fundamental do homem no mundo: as esferas da relação
de objetividade, da relação de intersubjetividade e da relação de transcen-
dência. Para cada um destes tipos de relação há a primazia de uma das
estruturas que integram a totalidade do ser- homem:

na relação de objetividade a primazia é dada ao corpo próprio, na relação de


intersubjetividade a primazia é dada ao psiquismo, e na relação de transcen-
dência a primazia é dada ao espírito. Mundo, História, Absoluto são os três
termos das relações constitutivas da abertura do homem à realidade, vem a
ser, da sua situação fundamental. (...) O homem é, pois, ser-em-relação se-
gundo a totalidade estrutural que o constitui como corpo, psiquismo e
espírito 28

O termo objetividade pode ser entendido no sentido lógico, gnosioló-


gico, epistemológico, dialético, moral ou antropológico. Interessa a Lima
Vaz a sua acepção antropológica, em que objetividade designa

a abertura do homem à realidade com a qual ele estabelece uma relação não-
recíproca que se representa, gnosiologicamente, pelo esquema S- O. No sen-
tido antropológico a objetividade é a propriedade que diferencia
especificamente (ou categoricamente) a relação do homem com as coisas (tá
pragmata) ou com a totalidade das coisas que constituem o mundo. 29

28
Ibidem, p. 14.
29
H.C. L. Vaz, Antropologia Filosófica II, p. 15.
Edmar José da Silva | 25

A compreensão explicativa apresenta o mundo como natureza ofer-


tado à utilização e transformação pela técnica, à explicação e compreensão
pela ciência e à contemplação pela filosofia. Diante do mundo-natureza, o
homem tem a dupla tarefa de conhecer e contemplar (teoria) e de fazer
(poiésis). 30
Na compreensão filosófica, Lima Vaz apresenta o ser humano como
ser-no- mundo. Através da mediação empírica e abstrata, o sujeito vê o
mundo descortinar-se à sua frente como uma tarefa (agir sobre ele) e
como um destino (realidade espaço-temporal da vida humana). No movi-
mento de totalização do discurso dialético sobre a categoria de
objetividade, assim conclui Lima Vaz:

o nível eidético da relação de objetividade implica, de um lado, a afirmação da


identidade (dialética) entre o ser do homem e o para da sua relação com o
mundo-natureza, e que pode ser expressa na proposição: “Eu sou para o
mundo-natureza”; de outro, a diferença (dialética) ou negação instalada no
interior da identidade em virtude do dinamismo da afirmação que, ultrapas-
sando as fronteiras conceptuais (ou da limitação eidética) do mundo-natureza,
para visar a infinidade do Ser, nega a identidade entre o sujeito e o para da
sua relação com o mundo- natureza. Essa negação pode ser expressa, por sua
vez, na proposição “Eu não sou para o mundo-natureza. 31

Ao afirmar o Eu sou que se dilata às dimensões do Ser, o discurso da


Antropologia Filosófica percebe a impossibilidade radical de separar essa
afirmação dos limites da objetividade mundana ou natural, mas também
percebe que a relação de objetividade, de cunho não-recíproco, é signifi-
cada pela linguagem e esta supõe um outro tipo de relação, a relação
intersubjetiva, visto que a linguagem é:

essencialmente anúncio, mensagem, interrogação, interpretação, atestação,


promessa ou ainda demonstração ou narração. Ela pressupõe e postula, por-
tanto, uma relação recíproca entre sujeitos ou suscita o aparecimento do perfil

30
Cf. Ibidem., p. 24.
31
Ibidem., p. 34-35.
26 | O que torna uma vida realizada: homenagem aos 100 anos de Henrique Cláudio de Lima Vaz

do outro no horizonte do mundo(..). É no medium da linguagem, portanto,


que se faz presente a relação de intersubjetividade, como nova forma de rela-
ção fundamental do ser humano. 32

A relação de intersubjetividade, em Lima Vaz, é entendida como re-


lação recíproca entre duas totalidades ou infinitudes intencionais e se dá
entre um Eu- Tu, constituindo o círculo originário do Nós ou um Eu-Nós
(grupos sociais), sob a mediação da linguagem, nas mais diversas formas
que o sujeito se anuncia ao outro 33. Duas características básicas marcam
este tipo de relação: a reciprocidade e o reconhecimento: “A reciprocidade
constitutiva da relação com o outro mostra, assim, a impossibilidade do
solipsismo (solus ipse)” 34 e o reconhecimento é conhecer o outro como
sujeito e não como objeto. A relação com o outro não deve ser apenas de
conhecimento objetivo, mas deve ser uma relação de reconhecimento, ou
seja, “de relacionar-se com o outro sujeito o qual, por sua vez, é igualmente
ele mesmo no seu ser-conhecido e no conhecer seu outro” 35.
Em se tratando da compreensão explicativa, a relação de intersubje-
tividade é tematizada pelas “ciências humanas”, de modo especial, no
pensamento clássico pelas duas disciplinas normativas da Ética e da Polí-
tica. Na modernidade, com o conceito de “Sociedade” apareceram duas
ciências que tratam indiretamente da relação de intersubjetividade, a sa-
ber, a História e a Sociologia. 36
No momento da compreensão filosófica da relação de intersubjetivi-
dade, Lima Vaz apresenta uma questão: “é possível a relação entre os
sujeitos sem atribuir de alguma forma a um dos termos a primazia sobre
o outro?” 37. Como resposta, apresentam-se no terreno da filosofia da in-
tersubjetividade, dois extremos: Husserl, com a egologia radical, e Lévinas,
com a heterologia radical. Há uma tensão entre o para-si do sujeito que

32
Ibidem., p.35-36.
33
H.C.L. Vaz, Antropologia Filosófica II, p. 50.
34
Ibidem., p. 55.
35
Ibidem., p.55.
36
Cf. Ibidem., p. 61.
37
Ibidem., p. 65
Edmar José da Silva | 27

não se deixa exaurir na heterologia (para-o-outro) e o em- si que nega o


egocentrismo para-si do sujeito. São visíveis o conflito entre o solipsismo
e o altruísmo, o individualismo e o coletivismo. Cabe ao discurso da An-
tropologia Filosófica encontrar a mediania, não caindo em nenhum dos
extremismos. A saída está em que “o sujeito acolhe o outro e deixa-o afir-
mar-se sem perder-se na heterologia” 38.
No momento da unidade dialética, o eidos da relação de intersubjeti-
vidade é definido através da proposição: “O Eu é um Nós”. Nesta
perspectiva, a relação de intersubjetividade faz parte da autoafirmação e
autoexpressão do sujeito. Porém, considerando o amplo horizonte univer-
sal do ser, não se pode reduzir a abertura relacional do sujeito a apenas à
comunidade ou à sociedade, há uma abertura muito mais profunda que
está intimamente ligada à sua estrutura espiritual. Daí a negação da rela-
ção de intersubjetividade como possibilidade de abertura para a relação
com a transcendência: “O Eu não é um nós.” 39 Como se percebe, há uma
abertura da subjetividade ao ser, isso significa haver uma suprassunção da
intersubjetividade na transcendência.
Na categoria de intersubjetividade há um encontro fecundo entre a
Antropologia filosófica e a Ética em Lima Vaz. Ele mesmo explica como se
dá esta articulação do seguinte modo:

Ao termo da compreensão filosófica ou transcendental da relação de intersub-


jetividade convém voltar nossa atenção para o fato de que a categoria do existir
intersubjetivo é terreno fundamental da articulação conceptual entre a Antro-
pologia Filosófica e a Ética (...). Desta forma a relação de intersubjetividade,
categoria antropológica fundamental, transpõe-se em categoria ética, na me-
dida em que o ser-com-o-outro apresenta-se originariamente como uma
estrutura normativa que se configura como um dever-ser no sentido ético e à
qual Kant, como é sabido, deu uma forma rigorosamente universal no impe-
rativo categórico (...). A comunidade humana é pois, na sua gênese,
constitutivamente ética, e essa eticidade se explica, na sua razão última, pela

38
Ibidem., p. 66
39
H.C.L.Vaz, Antropologia filosófica II, p. 75.
28 | O que torna uma vida realizada: homenagem aos 100 anos de Henrique Cláudio de Lima Vaz

submissão, tanto dos sujeitos como da relação intersubjetiva que entre eles se
estabelece, à primazia e à norma do ser. 40

Como o horizonte último da relação do ser humano não é a História,


surge então a abertura para a tratativa da categoria de transcendência, no
âmbito do polo categorial relacional. Lima Vaz assim define a relação de
transcendência:

O termo transcendência (como antes objetividade e intersubjetividade) pre-


tende designar aqui a forma de uma relação entre o sujeito situado enquanto
pensado no movimento de sua autoafirmação - ou da construção dialética da
resposta à interrogação sobre o seu próprio ser- e uma realidade da qual ele
se distingue ou que está para além (trans) da realidade que lhe é imediata-
mente acessível, mas com a qual necessariamente se relaciona ou que deve ser
compreendida no discurso com o qual ele elabora uma expressão inteligível do
seu ser. 41

De onde nasce a exigência da relação do sujeito com a transcendên-


cia? Lima Vaz deixa claro que nasce da própria estrutura constitutiva
espiritual do sujeito. Ela não se realiza somente na sua abertura para o
Mundo e a História, mas há uma abertura mais profunda para uma reali-
dade que transcende os limites do mundano e do histórico. Assim explica
Lima Vaz:

A relação de transcendência resulta, na verdade, do excesso ontológico pelo


qual o sujeito se sobrepõe ao Mundo e à História e avança além do ser-no-
mundo e do ser-com-o-outro na busca do fundamento último para o Eu sou
primordial que o constitui e do termo último ao qual referir o dinamismo
dessa afirmação primeira. É desse excesso ou dessa superabundância ontoló-
gica do sujeito, expressos estruturalmente na categoria do espírito que
procede, de resto, o dinamismo mais profundo da História e a inexaurível ges-
tação de formas de busca ou expressão do Absoluto que acompanha o curso
histórico e que é a atestação mais evidente da presença da relação de trans-
cendência na constituição ontológica do sujeito. 42

40
Ibidem., p. 77,
41
Ibidem., p. 93.
42
H.C.L.Vaz. Antropologia Filosófica II, p. 93-94.
Edmar José da Silva | 29

A relação de transcendência pode ser considerada a suprassunção di-


alética final da oposição entre a exterioridade, própria do corpo próprio e
da relação de objetividade e a interioridade, próprio do psiquismo e do
espírito. O transcendente, que é exterior ao sujeito, se manifesta também
como a realidade que lhe é mais íntima e interior. A síntese desta oposição
entre interioridade e exterioridade é corroborada em verdadeira identi-
dade na diferença, ou seja, identidade em-si e diferença para-nós, entre o
sujeito e o totalmente outro.

A transcendência, desde esse ponto de vista, apresenta-se como o lugar con-


ceptual no qual o sujeito pensa o Transcendente como exterior à sua finitude
e à sua situação no mundo e, segundo a mesma razão, ou seja, exatamente
como transcendente, interior ou imanente (inmanens, o que permanece no in-
terior) ao mesmo sujeito como espírito. Essa síntese de interioridade e
exterioridade, que Santo Agostinho exprimiu na dialética do superior summo
e interior íntimo, ou seja, identidade na diferença (identidade em-si, diferença
para-nós) entre o transcendente e o imanente apresenta-se para o sujeito,
como estrutura conceptual fundamental do pensamento do Absoluto. 43

Há também na categoria de transcendência, a suprassunção dialética


da oposição entre reciprocidade e não reciprocidade. A relação do sujeito
com o Mundo, na categoria de objetividade, é não-recíproca devido à abun-
dância de ser do sujeito com relação ao Mundo. O Mundo não responde
intencionalmente à presença e atuação do sujeito. É o excesso ontológico
do sujeito com relação ao Mundo que não permite que a relação seja recí-
proca. Já a relação do sujeito com os outros sujeitos, na relação de
intersubjetividade, é uma relação entre duas ou mais totalidades intencio-
nais, portanto, é marcada pela reciprocidade. O ser humano responde ao
outro intencionalmente. Já a relação de transcendência é reciproca e não
reciproca. A não reciprocidade se dá exatamente por causa do excesso on-
tológico do transcendente com relação ao sujeito, mas é recíproca porque,
de algum modo, o transcendente está imanente no sujeito. Assim se ex-
pressa Lima Vaz:

43
Ibidem., p. 95.
30 | O que torna uma vida realizada: homenagem aos 100 anos de Henrique Cláudio de Lima Vaz

A relação de transcendência é, pois, a suprassunção da não-reciprocidade da


relação de objetividade e da reciprocidade da relação de intersubjetividade.
Nela, a não- reciprocidade tem lugar justamente na transcendência do Abso-
luto e na infinitude do seu ser que exclui qualquer relação real ou de
dependência ad extra. Já a relação de reciprocidade é suprassumida na ima-
nência do Absoluto ao sujeito de sorte que, no seu movimento para a
transcendência, o sujeito é, na verdade, participação no mais íntimo do seu ser
da infinita generosidade do Absoluto. Essa generosidade é a outra face do ex-
cesso ontológico do Absoluto que está presente, como princípio e fonte do ser,
nas raÍzes do ato de existir do sujeito. Desta sorte, o sujeito existe como ser-
para-a-verdade, ser-para-o-bem; ser para a Transcendência. 44

Na pré-compreensão da relação de transcendência, Lima Vaz afirma


que a primeira tematização do tema da transcendência na filosofia se deu
na segunda navegação (Metafísica) de Platão. A partir dos paradigmas da
filosofia e da teologia, a experiência da transcendência pode ser experi-
mentada de três grandes formas: a) experiência noética da verdade que
deu origem à Metafísica como “filosofia primeira”; b) a experiência ética
do bem, que deu origem à Ética como “ciência da práxis”; c) a experiência
noético-ética do Absoluto que deu origem à teologia como “ciência do di-
vino”, sendo esta experiência a transposição da filosófica da experiência
religiosa. 45
Há uma impossibilidade de total objetivação ou explicação adequada
da relação de transcendência, porém, algumas ciências humanas podem
ser consideradas como formas indiretas de compreensão explicativa da re-
lação de transcendência: a Antropologia cultural, a História das religiões,
a Fenomenologia da Religião, a História da cultura, a Psicologia religiosa
são ciências que têm a vida espiritual dos indivíduos e das comunidades
humanas como objeto.
Como importante constitutivo do ser-para do homem, a relação de
transcendência é uma categoria antropológica e deve ser tematizada filo-
soficamente. A problemática crítica interroga: como exprimir no conceito

44
H.C.L.Vaz, Antropologia Filosófica II, p. 96.
45
Cf. Ibidem., p. 102-112.
Edmar José da Silva | 31

o transcendente real? Em resposta, Lima Vaz afirma que a compreensão


da transcendência caminha através do “âmbito da inteligência espiritual e
estrutura-se como um conhecimento por analogia” 46. Prosseguindo a re-
flexão filosófica sobre a relação de transcendência, somos impelidos ao
momento eidético da transcendência onde é gerida a dialeticidade entre
finito e infinito. Obedecendo ao princípio da limitação eidética, temos: “de
um lado, a essencial finitude do sujeito humano em face do absoluto, e, de
outro, sua essencial e constitutiva abertura para o Absoluto na qual é su-
prassumida e, portanto, fundada, sua relação com a natureza e com a
História” 47. A relação com a história e a natureza adquirem sentidos na
medida em se correlaciona com a relação com a transcendência. Sem esta
referência, as relações de objetividade e intersubjetividade ficam esvazia-
das do seu sentido mais profundo. No momento tético, o sujeito pode se
afirmar como “Eu sou - neste sentido há uma inversão da ordem normal
da negação própria do momento tético - na medida em que sua relação
com o transcendente, com o ser, desvela seu fundamento último, qual seja
ser posto pelo Absoluto na relação de criaturalidade e na relação de men-
surante a mensurado” 48. Na totalização temos – “o homem é porque o
absoluto é”: como causa primeira, Perfeição Infinita e Fim; ou ainda, “O
sujeito é para o absoluto e esse ser-para suprassume as relações de objeti-
vidade e intersubjetividade, compreendendo assim (momento de
totalização) todos os aspectos do ser-para do homem, constituindo-o como
expressão adequado do seu ser-em-si.” 49
Terminado o discurso sobre as categorias de estrutura e relação, che-
gou-se ao momento da síntese dialética entre o ser-em-si e o ser-para,
unidade buscada na última região categorial do discurso antropológico-
filosófico. Nesta região categorial se encontram as categorias finais da re-
alização e da pessoa. “A síntese do ser-em-si e do ser-para é, dialeticamente

46
Ibidem., p. 121.
47
H.C.L. Vaz, Antropologia Filosófica II, p. 123.
48
Ibidem., p. 123.
49
Ibidem., p. 124.
32 | O que torna uma vida realizada: homenagem aos 100 anos de Henrique Cláudio de Lima Vaz

falando, a tarefa para o homem de construir a sua unidade. Uma unidade


que já é, como estrutura e relações, mas que deve tornar-se o que é como
realização.” 50

3. Categoria de realização: Torna-te o que és

Finalmente, podemos nos perguntar: do ponto de vista antropoló-


gico-metafísico, o que é a realização humana? Não é possível responder a
esta questão autoimplicativa, sem se ter uma visão adequada e integral de
ser humano. Portanto, a pergunta sobre a realização, que parece apontar
para uma experiência ética, na reflexão filosófica de Lima Vaz, ela requer,
necessariamente, um grande aprofundamento sobre a essência do ser hu-
mano. Isso justifica o percurso feito até o momento para se chegar à
compreensão da categoria de realização: “Na (obra) Antropologia Filosó-
fica, estruturas e relações são regiões categoriais que nos permitem uma
definição de ser humano. Ora, é apenas ao compreender quem é o homem
que conseguimos pensar a respeito da questão da realização.” 51
Ao tratar da categoria de realização, Lima Vaz parte do terreno do
discurso universal (essencial) sobre o ser humano, entendendo-o como
unidade estrutural e unidade relacional, para o nível do existir concreto de
cada indivíduo humano. Isso revela que a categoria de realização não se dá
no nível da especulação teórica ou abstrata, mas é a busca na qual todo ser
humano se depara na sua existência concreta: “A pergunta sobre a felici-
dade é sempre de caráter existencial: não é algo que nos envolva em teoria,
mas na prática.” 52
Agora o discurso se volta para a realidade concreta do indivíduo que,
situado e finito, está em constante busca da sua realização. A realização é
sempre tarefa e desafio para um homem concreto, existente individual-
mente, que busca a unificação entre o seu ser estrutural e o seu ser

50
Ibidem., p. 124.;
51
G.F.M. Rocha, Realização humana em Lima Vaz, Belo Horizonte, FAJE, 2016, p.50.
52
R. y. STORK e J.A. ECHEVARRÍA, Fundamentos de Antropologia: um ideal de excelência humana, SP: Raimundo
Lullio, p. 224.
Edmar José da Silva | 33

relacional. A compreensão vaziana de realização completa, em vista desta


definição, a ideia de uma unificação progressiva da vida humana no qual
o indivíduo se constitui exatamente como sujeito, vivendo concretamente
sua unidade enquanto ser-em-si e ser-para. “O homem é, pois, dotado de
uma essência que deve ser atualizada na existência, sendo essa atualização
o que Lima Vaz conceitua, enfim, como movimento de realização hu-
mana.” 53
O grande desafio da categoria de realização é promover a unificação
das estruturas e das relações fundamentais do homem no plano do existir
concreto, onde o ser que é (estruturas e relações) deverá atualizar sua es-
sência no horizonte da existência.

Com a categoria de realização, o discurso da Antropologia Filosófica opera a


síntese dinâmica entre as categorias de estrutura e de relação. Ela assinala,
portanto, a entrada da dialética que rege o discurso no domínio da existência
propriamente dito, pois é evidente que o homem se realiza agindo, isto é, exis-
tindo na ação e pela ação: existentes enin est agere. 54

Como vimos, o ser humano possui uma estrutura constitutiva trial:


corpo, psiquismo e espírito. No movimento dialético da sua autoafirmação,
descobrimos que o ser humano é estruturalmente um ser espiritual e que
produz atos espirituais, atos em que concorrem a razão e a liberdade. Esta
é ipseidade do ser humano, o seu ser-em-si mais próprio, a sua realidade
ontológico-estrutural que o define constitutivamente como pessoa hu-
mana e o distingue dos demais seres vivos. A tarefa da realização passa
necessariamente pelo empenho do homem na totalidade do seu ser-em-si
também do ponto de vista estático da sua estrutura. Portanto, do ponto de
vista da estrutura, o homem se constitui como ser-uno pela suprassunção
do corpo próprio e do psiquismo no espírito. Vimos também que de estru-
tura constitutiva própria do ser humano, nasce a sua abertura para as

53
G.F. M. Rocha, Realização humana em Lima Vaz, Belo Horizonte: FAJE, 2011, p. 58.
54
HC.L. Vaz, Antropologia Filosófica II, p. 162.
34 | O que torna uma vida realizada: homenagem aos 100 anos de Henrique Cláudio de Lima Vaz

relações. Portanto, as relações são realidades que brotam da própria estru-


tura constitutiva do ser humano. O ser humano é ser-para-o outro: para o
Mundo, para a História e para o Absoluto. Assim Lima Vaz resume o dis-
curso sobre as duas regiões categoriais de estrutura e relação:

As duas grandes regiões categoriais que percorremos até aqui no itinerário


discursivo da Antropologia Filosófica delinearam a figura conceptual do ser do
homem segundo a sua estrutura e segundo as suas relações fundamentais, ou
seja, no seu ser-em-si (esse in se) e no seu ser-para-outro (esse ad alium vel
aliud). A região categorial da estrutura corresponde ao domínio do ser subs-
tancial do homem ou da sua ousía (para usar a terminologia aristotélica). À
estrutura corresponde, pois, a unidade ontológica primeira do homem, se-
gundo a qual ele é indivisível em si mesmo, sendo assim capaz de subsistir na
sua identidade (ou na sua ipseidade, se consideramos o caráter explicitamente
reflexivo dessa unidade), na sua relação com os outros seres dos quais se dis-
tingue. À região categorial das relações correspondem os domínios da
realidade que se abrem à finitude e situação do homem. 55

Logo no início do discurso sobre a realização, refletindo sobre o em-


si e para-outro do sujeito, Lima Vaz apresenta um problema: “Sendo uno
estruturalmente e abrindo essa unidade ao acolhimento do outro ser nas
formas das relações ad extra, como poderá o homem preservar a sua uni-
dade ou ser ele mesmo (ipse) nesse permanente afã de ser-outro?” 56. A
resposta aparece logo em seguida e já nos oferece preciosas reflexões sobre
a categoria de realização:

Sendo, portanto, a autorealização do homem uma forma original da dialética


do mesmo (autós) e do outro (héteron), ela não é senão a efetivação existencial
do paradoxo segundo o qual o homem se torna ele mesmo (ipse) na sua aber-
tura constitutiva ao outro (alius vel aliud), abertura atravessada pelo apelo
profundo a uma generosidade no dom de si mesmo que podemos denominar
como razão metafísica, na medida em que ela é, em nós, o signo de que não
podemos realizar-nos a nós mesmos senão como seres abertos à infinitude do
Ser. Por conseguinte, os atos que traçam o itinerário de uma vida que se realiza

55
Ibidem., 141.
56
H.C.L. Vaz, Antropologia Filosófica II, p. 143.
Edmar José da Silva | 35

são atos que procedem do homem pensado na integralidade da sua estrutura


e tendo diante de si o horizonte inteiramente aberto das suas relações funda-
mentais. 57

Desta explicação de Lima Vaz sobre a unidade dialética do em-si e do


para-outro na categoria de realização, podemos chegar a várias conclusões
importantes sobre a concepção antropológica metafísica da realização:

1ª) A realização humana enfrenta um paradoxo: quanto mais o sujeito humano se


abre ao outro, como generosidade e dom de si, mais ele se autorrealiza. Desta afir-
mação, decorre que a abertura ao outro, no nível existencial, é condição essencial
para a realização. Apesar de ser constitutivamente aberto no nível da essência, na
sua existência concreta (própria da categoria de realização), o sujeito humano pode
tender a fechar-se em si mesmo, na sua própria ipseidade. Seguindo a lógica do
raciocínio de Lima Vaz, isso geraria frustração e infelicidade;
2ª) A abertura ao outro no movimento de doação de si é, no sentido mais profundo,
a abertura do sujeito humano à infinitude do Ser. Talvez isso explique porque ne-
nhum ser humano é plenamente realizado, visto que o Ser ultrapassa em muito a
capacidade humana de possuí-lo. Na medida em que se abre aos entes finitos, o
ser humano encontra um certo grau de realização, mas a felicidade plena seria
realmente o encontro pleno com o Ser na sua infinitude, o que é impossível du-
rante a existência terrena;
3ª) Os atos que podem levar o sujeito humano a uma vida realizada devem ser atos
que procedem do homem pensado na integralidade da sua estrutura. Disso decorre
que qualquer ato humano que não considera a unidade estrutural do ser humano,
o seu em-si mais profundo, tende a sacrificar a sua própria realização. Isso explica
a necessidade de se ter uma compreensão adequada e muito profunda da estrutura
constitutiva do ser humano. Qualquer ato humano marcado por reducionismos ou
fragmentação antropológicos sacrificam a realização do ser humano envolvido
nele. 58
4ª) Qualquer ato humano que queira levar à realização deve considerar também o
horizonte aberto das relações fundamentais do ser humano. Qualquer ato humano
que se fecha em algum tipo de relação, desconsiderando o horizonte de abertura

57
Ibidem., p. 145.
58
“Parece lógico dizer que todo homem encontra o seu sentido à medida que realiza aquilo que é a própria essência
do seu ser. Mas será que sabemos o que é a essência daquilo que chamamos de ser humano? O problema perma-
nece.(...) Parece que a essência daquilo que é o ser humano não se acha de maneira tão fácil, simplesmente definida
e pronta” (R. BLANK, Encontrar sentido na vida, propostas filosófica, São Paulo: Paulus, 2008, p. 7-8)
36 | O que torna uma vida realizada: homenagem aos 100 anos de Henrique Cláudio de Lima Vaz

mais profundo a abertura do ser humano do ponto de vista relacional, pode sacri-
ficar a sua felicidade.

Existe uma ciência da realização? Lima Vaz responde que não. O certo
é que se existisse a ciência da realização, talvez ela fosse a mais estudada e
a mais procurada pelo ser humano: “qualquer tentativa de compreensão
explicativa deste processo seria, pela sua própria natureza, inadequada.
(...) Não há, pois, rigorosamente falando, uma ciência da realização (...)”
A problemática filosófica 59 da categoria de realização situa-se na
“oposição entre a normatividade ideal do modelo (essência do ser que deve
ser) e a facticidade contingente do indivíduo (a essência do ser que é). Nisso
se revela o drama do ser humano que na sua essência é feito para ser-mais
(o seu excesso ontológico o impele a esse mais), mas na facticidade da sua
existência concreta encontra tantas realidades que podem imobilizá-lo e
impedi-lo de ser mais:

A aporética crítica da categoria de realização, coloca-nos em face do drama


existencial que só ao homem é dado viver: a oposição entre tendência consti-
tutiva a ser-mais, apontando para um polo ideal de realização no qual se
atualizem todas as virtualidades do seu poder-ser e o peso das limitações exis-
tenciais imobilizando o indivíduo na rotina do simplesmente ser. 60

No ápice do discurso sobre a estrutura humana, na autoafirmação do


sujeito como “Eu sou”, Lima Vaz conclui que o ser humano é um ser espi-
ritual, portanto, aberto para a verdade, para o bem (atributos essenciais
do ser) e capaz de relacionar-se com a transcendência (o Absoluto). Isso
significa que na sua existência concreta e na busca de realização, o ser hu-
mano não pode ignorar ou descartar as realidades transcendentais e
metafísicas. Nenhum ser humano se realiza apenas no horizonte estreito
das relações de objetividade e de intersubjetividade. A sua estrutura cons-
titutiva o impulsiona para um mais. Portanto, na sua existência concreta,

59
H.C.L. Vaz, Antropologia filosófica II, p. 161-162.
60
Ibidem., p. 171.
Edmar José da Silva | 37

ao buscar a realização, deve considerar estes elementos da sua essência,


do seu em-si.

Assim, ao realizar-se no horizonte da Natureza (tecnociência) e da História


(política) o homem tem em si mesmo a medida de sua perfeição e a aplica à
sucessão de modelos ideais do homo technicus e do homo politicus, ao avançar
em direção ao horizonte da Transcendência deve submeter-se a uma medida
que é, exatamente, uma medida transcendente. 61

Não é qualquer ato que leva o sujeito à realização, são apenas os que
o levam à perfeição do seu ser. Neste sentido, somente os atos espirituais,
que são os mais elevados no nível do existir humano é que podem levá-lo
à realização.

Como tal o ato é, como toda propriedade, perfeição, e assim o descrevem Aris-
tóteles e Tomás de Aquino. Na sua orientação profunda e essencial, o
movimento de autorrealização do homem está voltado para a excelência e per-
feição do seu ato - ou para o bem que lhe advém da perfeição do ato - e que
Platão e Aristóteles designaram com o nome de areté, impropriamente tradu-
zido por “virtude”. É esse um fundamental ponto de junção entre Antropologia
e Ética. 62

Unidade entre ser que é e ser que dever ser: este é o percurso que o
sujeito deve fazer para alcançar a autorrealização. Neste sentido, a realização
não se dá apenas no nível da constituição ontológico-metafísica do ser hu-
mano, mas se abre também ao nível ético: 63

Quando o homem unifica em si o que é, ele deve também buscar o que deve
ser. A unificação da própria vida não é, para o homem, um processo que se
desenrola apenas na ordem de ser, mas que se perfaz sob o signo do dever-ser
e, nela tem lugar a passagem permanente da necessidade ontológica para a
necessidade moral. O homem é um ser constitutivamente ético e esta eticidade

61
Ibidem., p. 173.
62
H.C.L. Vaz, Antropologia Filosófica II, p. 145-146.
63
O objetivo deste artigo é tratar do tema da realização do ponto de vista antropológico- metafísico, por isso não
trataremos deste aspecto da realização em Lima Vaz. A consideração ética da realização em Lima Vaz será tema de
outro artigo.
38 | O que torna uma vida realizada: homenagem aos 100 anos de Henrique Cláudio de Lima Vaz

é ou deve ser o primeiro predicado da sua unidade existencialmente em devir-


ou do imperativo da sua autorrealização. 64

Considerações finais

Partindo do pressuposto que a realização humana é a perfeita uni-


dade entre o ser que é e o ser que deve ser, entre a essência que o sujeito
é e a realização desta na sua existência concreta, entendemos melhor por-
que para o homem a realização é sempre uma busca nunca alcançada
plenamente, uma tarefa inacabada. Nele, não há perfeita coincidência en-
tre essência e existência, entre aquilo que é e o que deve ser, realidade que
acontece somente em Deus. Para o grande Tomás de Aquino, somente em
Deus, essência (entendida como princípio de perfeição) e existência (en-
tendida como ato puro de ser) são plenamente unificadas 65. O próprio
Lima Vaz reconhece que a consumação da unidade entre essência e exis-
tência, no ser humano, é uma realidade limite que a filosofia pode apenas
postular:

A consumação desta unidade (ou o seu facto esse) permanece um conceito-


limite que à filosofia é dado apenas postular como alvo enfim alcançado da
identidade (mediatizada pela vida vivida) entre a estrutura e as relações ou
entre a essência e a existência, ou ainda, como vitória definitiva da vida no
embate abissalmente profundo com a morte, cuja vitória assinalaria, ao con-
trário, a dissolução final da unidade realizada do homem. 66

Na perspectiva antropológica e metafísica, quando o ser humano se


nega a ser o que é por essência, automaticamente caminha para a infelici-
dade. Quando não aceita na sua existência concreta, o que é por essência,
isso sacrificará a sua realização. O problema é que, não raras vezes, encon-
tramos pessoas que envolvidas num materialismo cego e num hedonismo

64
H.C.L. Vaz, Antropologia Filosófica II, p. 146.
65
Tomás de Aquino, Suma Teológica I, q.3,a.4: “Deus não somente é sua essência, como foi demonstrado, mas tam-
bém seu ser”. “Se a essência e a existência não coincidirem em Deus, seu ser será entendido como atualização de
uma potência em relação a sua essência, mas em Deus não há potencialidade” (Idem, Suma Teológica I, q. 3. a.4)
66
Ibidem., p. 144.
Edmar José da Silva | 39

exagerado, ignoram os aspectos mais profundos da sua constituição me-


tafísica que se abre para um “mais”, buscando nas realidades finitas e
passageiras o sentido último para sua existência. 67 Ou, ao contrário, pes-
soas que mergulhadas num espiritualismo desenraizado da realidade,
ignoram na existência concreta as realidades somática e psíquica, caindo
numa alienação e num espiritualismo perigoso. Tudo isso é um desafio
para a busca da realização.
Depois do percurso feito, percebemos que em Lima Vaz não se pode
compreender adequadamente a categoria de realização, sem um conheci-
mento adequado e profundo do ser humano. Isso equivale a afirmar que
não há verdadeiro discurso ético, sem uma adequada fundamentação me-
tafísica do ser humano. “A dimensão ética, porém, se fundamenta em Vaz
na dimensão metafísica. O filósofo afirma que o homem deve fazer uma
passagem permanente da necessidade metafísica para a necessidade ética.
O caminho que permite esta passagem, Vaz encontra no célebre axioma:
Torna-te o que és” 68.
Um dado bonito que brota da reflexão de Lima Vaz sobre a realização
é o fato de que a realização pressupõe a abertura do “eu” ao “outro”, sem
que o mesmo perca a sua própria identidade. É na doação de si e na aber-
tura ao infinito horizonte do ser que o ser humano vai se realizando. É
preciso dar um salto existencial entre o puro egoísmo, a abertura ao outro
e abertura ao totalmente outro:

Que inicialmente o ser humano busque mais o prazer sensível que seu bem
verdadeiro, isso pertence à dinâmica do seu desenvolvimento psicológico e
moral. Como mostrou Freud, primeiro temos a criança narcísica, que segue o
“princípio do prazer”, e depois o homem maduro, que rege pelo “princípio da
realidade”, ou melhor, pela abertura aos outros. (...) Do mesmo modo, nos
termos de Teilhard Chardin, o homem se realiza primeiro “se autocentrando”,

67
Felicidade é um estado de perfeição que o ser humano não alcançará ao tomar posse de um bem material ou ao
ter momentos fugazes de prazer. Para Tomás de Aquino, o prazer é parte constitutiva da felicidade, mas não é seu
fundamento. Para ele, a essência da felicidade está na posse do sumo bem. Cf. Suma Teológica I-II, q. 3, a.4, c; q. 4,
a.1-2.
68
F. K. Kozen, O conceito de pessoa em Lima Vaz, São Leopoldo, 2017, p. 94 (disponível em PDF)
40 | O que torna uma vida realizada: homenagem aos 100 anos de Henrique Cláudio de Lima Vaz

depois se “descentrando” em outrem, para terminar “se sobrecentrando” em


algo maior.” 69

Ao final do itinerário percorrido, uma pergunta se torna inevitável: é


possível ser realizado neste mundo? Tomando o percurso feito por Lima
Vaz, em que a realização se torna possível na medida em que o ser humano
consegue na sua existência concreta ser o que é por essência, podemos
afirmar que há a realização humana na terra, mas ela se dá de modo im-
perfeito, visto que não há uma unidade dialética perfeita entre essência e
existência nos indivíduos humanos. Neste sentido, Lima Vaz se coloca na
mesma perspectiva dos grandes filósofos cristãos como Agostino e Tomás
de Aquino que admitem uma felicidade terrena, mas de modo imper-
feito. 70

Referências

AQUINO, Tomás, Suma Teológica, São Paulo, Loyola, 2ª ed, 2003.

ARISTÓTELES, Ética a Nicômaco, 4ª ed., São Paulo, Nova cultural, 1991 (Os pensadores).

BLANK, Renold, Encontrar sentido na vida: propostas filosóficas, São Paulo, Paulus, 2ª ed.,
2010.

BOFF, Clodovis, O livro do sentido, Vol. I: crise e busca de sentido hoje (parte crítico- ana-
lítica), São Paulo, Paulus, 2014.

______. O livro do sentido, vol. II: Qual é, afinal, o sentido da vida? (parte teórico- constru-
tiva), São Paulo, Paulus, 2018.

69
C. BOFF, O livro do Sentido II, Qua é, afinal, o sentido da vida?, São Paulo, Paulus, 2018, p. 259.
70
“Eis como Santo Tomás descreve, entre outros, os limites da felicidade possível neste mundo: a insatisfação surda
e difusa que lateja, inerradicável, no fundo do coração humano, mesmo no seio da maior satisfação; o sentimento de
instabilidade presente em toda alegria, por mais segura que pareça; os erros e defeitos de que a vida humana está
cheia; a ameaça do sofrimento e do infortúnio que, de longe ou de perto, persegue qualquer mortal; o temor que
acompanha os humanos em face das desgraças inarredáveis, como a doença, a velhice e a morte; por fim, o pouco
tempo que nos restaria, caso atingíssemos a maturidade, para gozar dos frutos adquiridos por um longo e duro
tirocínio intelectual, moral e espiritual (...) Inspirando- se em Plotino, Agostinho define este mundo como “região da
dessemelhança”, ou seja, o lugar da desarmonia” (C. Boff, O livro do Sentido II, p. 273-274)
Edmar José da Silva | 41

JÚNIOR, Elílio de Faria Matos, As condições de possibilidade da metafísica segundo Vaz,


Belo Horizonte, FAJE, 2011.

KOZEN, Filipe Klafke, O conceito de pessoa em Lima Vaz, São Leopoldo, 2017.

OLIVEIRA, Cláudia, Mergulho na natureza humana pelo reconhecimento do outro, Belo Ho-
rizonte: Instituto Humanitas Unisinos, 2016.

ROCHA, Gabriel Filipe Martins, Realização humana em Lima Vaz, Belo Horizonte: FAJE,
2016.

STORK, Ricardo Yepes; ECHEVARRÍA, Javier Aranguren, Fundamentos de Antropologia:


ideal de excelência humana, São Paulo, Inst.Brasil. Fil. e ciência “Raimundo Lúlio”,
2005.

VAZ, Henrique Cláudio de Lima, Antropologia Filosófica I, São Paulo, Loyola, 11ª ed., 2011.

VAZ, Henrique Cláudio de Lima, Antropologia Filosófica II, São Paulo, Loyola, 2ª ed., 2005.
Capítulo 2

A vida realizada na contemporaneidade:


desafios e consequências

Patrícia Carvalho Reis

A categoria “realização” pode ser analisada sob várias perspectivas.


Podemos investigar o que uma sociedade em determinado tempo histórico
considera, de modo geral, ser uma vida realizada. Também podemos pes-
quisar o que uma pessoa específica, em dado momento, pensa ser uma
vida realizada para ela ou para outrem. Tais questionamentos estão liga-
dos a um olhar – seja da sociedade, seja de uma pessoa – e a um tempo
determinado.
Além disso, poderíamos investigar o que significa ter uma vida reali-
zada de modo geral, ou seja, sem especificarmos o contexto histórico ou
quem faz tal questionamento. Vida realizada seria uma vida feliz? E o que
é uma vida feliz? Aristóteles, por exemplo, já mencionava a dificuldade em
definir a felicidade, uma vez que o seu significado não é igual para todo o
mundo. 1
Não bastasse isso, cabem outras indagações: pode-se chegar à vida
realizada após conseguirmos alcançar nossos objetivos ou ela está mais
associada com uma constante procura e renovação de propósitos e con-
quistas? E de qual natureza seriam estes? Objetivos espirituais, materiais
ou psíquicos? Poderíamos afirmar que uma vida realizada varia depen-
dendo da pessoa e do contexto no qual ela está inserida? Feitas essas
considerações, tentaremos, neste momento, aprofundar nossas reflexões

1
ARISTÓTELES, 1095 b 15 - 1103 a 10.
Patrícia Carvalho Reis | 43

sobre o conceito de realização tendo como marco teórico o pensamento de


Henrique Cláudio de Lima Vaz.

1. Vida realizada

Como afirma Lima Vaz, o homem está presente no mundo pelo


corpo. Entretanto, há uma distinção entre o corpo como totalidade físico-
orgânica e o corpo como totalidade intencional. No primeiro caso, confi-
gura-se o que o Vaz denomina “estar-aí”, o homem está no mundo ou na
natureza em situação fundamentalmente passiva. Enquanto que, no se-
gundo caso, configura-se o “ser-aí”, posição ativa do homem 2. É nessa
posição que podemos falar no sujeito como portador de pensamentos, seja
em relação ao mundo, seja a si próprio, seja aos outros. O ser humano se
constitui no mundo por esses dois modos. Os animais, por outro lado, es-
tão no mundo, mas não têm pensamentos, não têm a alma racional.
Como nosso autor afirma, a categoria da realização se mostra como
passagem do ser que é ao ser que se torna 3. Em decorrência disso, a reali-
zação só pode existir nos seres humanos. É preciso razão e vontade para
se falar em realização. Portanto, só a humanidade tende a “ser-mais”. Ao
tentar explicar esse conceito, Vaz ainda nos diz que:

A realização existencial da pessoa não é senão a formação da sua personali-


dade, tarefa que, em meio a condições favoráveis ou adversas – tradição,
educação, situações –, cabe ao indivíduo enfrentar como o desafio mais radical
da sua vida. 4

Em outro trecho, Vaz nos dá mais pistas sobre o que entende por
realização:

Analogamente, no terreno da realização humana, ipseidade e alteridade,


opondo-se dialeticamente como estrutura e relação, são suprassumidas no

2
H.C. de LIMA VAZ, Antropologia Filosófica I, p. 176.
3
H.C. de LIMA VAZ, Antropologia Filosofica II, p. 165.
4
H.C. de LIMA VAZ, Introdução à Ética Filosófica 2, p. 171.
44 | O que torna uma vida realizada: homenagem aos 100 anos de Henrique Cláudio de Lima Vaz

movimento da realização, no qual o ser é existência que se efetiva como ope-


ração. O ser-em-si da estrutura e o ser-para-outro da relação são
suprassumidos no ser para si da realização na conquista, pelo sujeito, da uni-
dade profunda que ele é como essência, mas que deve tornar-se como
existência 5.

Desse modo, percebemos que a realização está relacionada não só


com o ser-em-si nem com o ser-para-outro, mas com o ser para si, com a
conquista da unidade que ele é, tanto como essência como existência. As-
sim, a realização está no domínio do sentido da vida, da formação da
personalidade, não no domínio do existir simplesmente.
Mas, como Lima Vaz salienta, embora só os humanos possam sentir
a realização, existe o peso das limitações existenciais imobilizando o indi-
víduo na rotina de simplesmente “ser”. Nesse caso, não há uma
inquietação, uma vontade de mudar, de transformar, seja nós mesmos seja
o que está ao nosso redor. Como prossegue nosso autor, sem o aguilhão
do “ser-mais” a aventura humana não se teria lançado nos caminhos pro-
digiosos da história 6. Ao interpretar essa ideia, observamos que a ideia de
realização está relacionada com uma mudança positiva, uma superação,
um aprimoramento.
Vaz relata que o excesso ontológico significa em cada indivíduo a es-
sencial abertura, assim como uma profunda exigência em relação ao ser.
Como ele sustenta, é pelo excesso ontológico que o homem se abre ao ho-
rizonte ou à amplitude transcendental da Verdade e do Bem 7. E é,
justamente, do excesso ontológico do sujeito que procede aquilo que pode-
mos denominar o essencial e inquietante desejo humano de ser-mais ou
avançar sempre mais na busca da realização da sua vida. Ao fazer essas
considerações, constatamos que, para Vaz, a vida realizada está intima-
mente associada com o horizonte da Verdade e do Bem.

5
H.C. de LIMA VAZ, Antropologia Filosofica II, p. 165.
6
H.C. de LIMA VAZ, Antropologia Filosofica II, p. 171.
7
H.C. de LIMA VAZ, Antropologia Filosofica II, p. 93-94.
Patrícia Carvalho Reis | 45

Desse modo, podemos afirmar que a realização é um não contenta-


mento com o simples existir, é uma inquietude para “ser mais”, é um
movimento, não é passividade. Vaz ainda afirma que a categoria da reali-
zação corresponde ao “dever-ser” do homem ideal, mas pensado a partir
do “estar-no-mundo”, ou seja, da sua situação relativizada pelas coorde-
nadas naturais, histórico-culturais e existenciais que circunscrevem o
lugar do seu “ser-no-mundo” 8. Ora, desse modo, observamos existir uma
dificuldade formada pela oposição entre a normatividade ideal do mundo
e a faticidade contingente da pessoa. Há, portanto, um paradoxo: o homem
é limitado, mas, ao mesmo tempo é aberto à transcendência. Nas palavras
de Cláudia Oliveira, o excesso ontológico do homem o coloca em relação
com uma realidade que ele não é: o Absoluto 9.
Como afirma Vaz, sendo o homem um ser cuja finalidade é atestada
pelo seu “estar-no-mundo e pelo seu estar-com-o-outro, o ser humano é
um ser estruturalmente situado” 10. A situação, desse modo, aponta para a
condição concreta na qual o sujeito se encontra. Segundo as palavras de
Gabriel Rocha, ela define o momento da particularidade humana onde
cada indivíduo busca transcender a sua própria condição finita. Vaz, ao
tratar da alegoria da caverna presente no livro A República, de Platão, cita
um exemplo em que o homem tem um desejo por transcender uma situa-
ção na qual estava vivenciando 11.
Também não podemos deixar de mencionar que a vida realizada não
é algo que se alcança uma vez, mas é uma procura e uma conquista cons-
tante, é uma tarefa nunca acabada. Como consequência, há um processo
contínuo de autorrealização. Seguindo o pensamento de Aristóteles, uma
andorinha só não faz verão 12. Um homem feliz e venturoso depende da
prática da virtude durante toda a vida. Um raciocínio semelhante pode ser

8
H.C. de LIMA VAZ, Antropologia Filosofica II, p.171.
9
C.M.R de OLIVEIRA, Metafísica e Liberdade no pensamento de H.C. de Lima Vaz, 2014, p. 128.
10
H.C. de LIMA VAZ, Introdução à Ética Filosófica 2, p. 159.
11
H.C. de LIMA VAZ, Introdução à Ética Filosófica 2, p. 161.
12
ARISTÓTELES, 1098 a 15.
46 | O que torna uma vida realizada: homenagem aos 100 anos de Henrique Cláudio de Lima Vaz

aplicado à noção de vida realizada. Nós não alcançamos algo e conquista-


mos a realização.
Após fazermos essas considerações, acrescentamos que é impossível
afirmar, de modo categórico, o que seja uma vida realizada. Isso varia de
pessoa para pessoa. Alguns podem se sentir realizados ao exercer deter-
minados papeis, enquanto outros podem considerar que estão perdendo
seu tempo nessas mesmas funções. Uma passagem marcante de Lima Vaz
expressa essa noção:

Nenhuma frustração maior e mais penosa para o homem do que aquela que
nasce da sensação de uma vida não realizada, da dispersão e da perda do
tempo da vida que não foi recuperado pela linha harmoniosa de um cresci-
mento sempre unificante 13.

Ora, esse sentimento é particular, de um indivíduo específico que faz


uma avaliação do sentido de sua vida. Se Lima Vaz reconhece a impossibi-
lidade de afirmar qual é a receita para se ter uma vida realizada, ele dá
alguns indícios do que podemos fazer para que a tenhamos. Como ele diz,
a realização é uma categoria que deve estar relacionada com as ideias de
transformação, de ser-mais, de Verdade, de Bem, e, por fim, de tarefa
constante.
Uma vez que o homem é ser situado e finito, ou seja, nasce em deter-
minado lugar e é um ser mortal, é oportuno demonstrarmos quais os
valores relacionados com a ideia de vida realizada estão presentes em cer-
tos períodos e lugares. No próximo item, trataremos um pouco desse
assunto.

2. Vida realizada e história

Vaz nos lembra de que a ideia de uma vida realizada, na perspectiva


do que a sociedade considera como vida boa ou felicidade, varia depen-
dendo do contexto histórico. Assim, em determinados momentos, o ideal

13
H.C. de LIMA VAZ, Antropologia Filosofica II, p. 146.
Patrícia Carvalho Reis | 47

de uma vida realizada está relacionado com certos atributos ou conquistas


das pessoas. Mesmo sabendo que, num idêntico lapso temporal, uma vida
realizada para alguém pode não ser para outrem, é importante averiguar-
mos o que, de modo geral, determinada cultura considera como vida
realizada.
Como afirma Vaz, o problema antropológico, ao longo do século V
a.C., sobrepõe-se pouco a pouco ao problema cosmológico como centro
teórico de interesse na filosofia grega 14. Assim, alguns pensadores desse
século passam a exaltar a superioridade do homem sobre os outros seres
vivos. Os sofistas, por exemplo, exercem uma função relevante ao ressal-
tarem as capacidades do homem, como o poder da fala e do logos. Em seus
diálogos, Sócrates enfatiza a vida interior do homem. Segundo Aristóteles,
o ser humano não é simplesmente um ser da natureza, uma vez que é
dotado da atividade racional, superior às atividades ligadas ao crescimento
e aos sentidos. Diante dessas ideias, o questionamento sobre a vida reali-
zada passa a ter sentido.
Vaz ainda nos lembra de que, na Antiguidade mais tardia, a areté
aristocrática e guerreira, característica da figura do herói, prevalecerá
como ideal de realização humana. Na Idade Clássica e Helenística, a areté
do sábio passa a ocupar o lugar desse ideal 15.
Na Idade Média, há outro ponto de inflexão: a vida realizada passa a
ser aquela de submissão à fé. Assim, o saber e a política não têm um lugar
de destaque. Como afirma Vaz, tal ideal de santidade permanecerá como
paradigma dominante até o início dos tempos modernos 16.
A valorização da vida política será observada nos escritos dos huma-
nistas da Renascença. Para os humanistas, existe uma primazia da vida
ativa sobre a contemplativa, da práxis sobre a theoría 17. Seguindo os pas-
sos de Vaz, observamos que o ideal do honnête homme, no século XVII,

14
Isso teve como fundamento as transformações da sociedade grega aceleradas pelas guerras pérsicas e pela conso-
lidação do regime democrático em Atenas e outras cidades H.C. LIMA VAZ, Antropologia Filosófica I, p. 31.
15
H.C. de LIMA VAZ, Antropologia Filosofica II, p. 166.
16
H.C. de LIMA VAZ, Antropologia Filosofica II, p. 166.
17
H.C. de LIMA VAZ, Antropologia Filosofica II, p. 168.
48 | O que torna uma vida realizada: homenagem aos 100 anos de Henrique Cláudio de Lima Vaz

acentua o traço cartesiano do homem moderno: a confiança na razão e a


regularidade na organização da vida do indivíduo e da sociedade. Já o ho-
mem da Ilustração é caracterizado pela convicção de ter alcançado uma
maturidade histórica que se traduz na ruptura com toda forma de tradi-
ção. O ideal da humanidade do século XIX apresenta os traços do “burguês
conquistador”, tendo em vista a expansão universal da civilização do Oci-
dente. Por sua vez, ao longo do século XIX e na primeira metade do século
XX, ocorre uma fragmentação sempre maior do ideal de realização hu-
mana 18.
Após esse breve percurso histórico, resta-nos analisar o que a socie-
dade contemporânea considera como forma de realização. Ao afirmarmos
isso, partimos do princípio de que, no nosso tempo, a contemplação ou a
ação política não são pensadas como atividades tão dignas de respeito ou
de valorização como o trabalho e a fabricação. Analisar os motivos dessa
hipótese fugiria do propósito do nosso artigo. Entretanto, não parece exis-
tir apenas uma justificativa para ela. O modo de produção capitalista
exerce, certamente, uma influência para isso. Não podemos esquecer que,
em nossa sociedade, o trabalho tem um papel de destaque em relação às
outras atividades do ser humano, não porque as pessoas o escolhem, mas,
muitas vezes, por uma questão de sobrevivência.
Apesar disso, não podemos nos esquecer de que, mesmo para aqueles
que têm condições satisfatórias de vida, há, hodiernamente, uma sobrepo-
sição da atividade de fabricar coisas e usufruí-las em relação às outras
atividades desempenhadas pelo homem. Estes procuram condições cada
vez mais confortáveis de vida 19. Segundo os defensores da tecnocracia, ao
valorizarmos esse último tipo de coisas, demonstramos uma expectativa
de que os progressos da técnica tragam a solução dos problemas huma-
nos 20. Entretanto, concordamos com Vaz que a realização da vida humana

18
H.C. de LIMA VAZ, Antropologia Filosofica II, p. 168.
19
Alexis de Tocqueville, na obra Democracia na América (capítulo segundo do volume II), apresenta considerações
originais sobre o individualismo nas democracias.
20
H.C. de LIMA VAZ, Antropologia Filosofica II, p. 27.
Patrícia Carvalho Reis | 49

não poderá se limitar apenas no âmbito dos bens finitos e situados, o que
irá revelar uma tendência contínua à transcendência 21.
Outra característica da pós-modernidade é o niilismo, assunto pelo
qual Lima Vaz demonstrou bastante interesse. Como afirma Oliveira, o ni-
ilismo metafísico 22 inviabiliza a afirmação do sentido para a existência
humana ao igualar o ser e o nada 23. Diante disso, é difícil encontrar orien-
tação ética para o nosso agir na história.
Uma sociedade que valoriza o pensamento dá condições para as pes-
soas buscarem uma vida realizada. Nela, há o respeito pela singularidade.
A vida realizada requer autonomia, uma postura ativa. Esses também são
requisitos do pensamento filosófico. Nesse sentido, a vida realizada seria
aquela em que o homem tem o domínio de si. Isso não significa que ele
esteja imune às adversidades ou que possa fazer o que deseja sem cumprir
ordens de ninguém. Significa que há, no seu íntimo, vontade de alcançar
algo, há autoconsciência. Mas, se esse contato do ser humano consigo
mesmo é imprescindível para se ter uma vida realizada, há pressupostos
para isso.
Consideramos que o preceito socrático “conhece a ti mesmo” é um
primeiro passo para se ter uma vida realizada, mas não podemos deixar
de levar em consideração que há outros requisitos relacionados com a ca-
tegoria da realização. Nesse sentido, para nós, a política propicia condições
significativas para que as pessoas tenham uma vida realizada. Basta lem-
brarmos que uma sociedade na qual não se respeitam os direitos básicos
das pessoas é difícil ter esse tipo de vida. Diferentemente de pensadores da
Antiguidade, como Epicuro, consideramos que o universo interior de al-
guém não é suficiente para o alcance da realização. Portanto, os campos
da política e da ética estão intimamente relacionados com o da vida reali-
zada. A afirmação de Vaz mencionada acima, de que a realização da vida

21
H.C. de LIMA VAZ, Antropologia Filosofica II, p. 172.
22
Segundo Oliveira, a filosofia de Lima Vaz não se reduz a responder ao niilismo ético, mas ao niilismo metafísico
também. C.M.R de OLIVEIRA, Metafísica e Ética, p. 15.
23
C.M.R de OLIVEIRA, Metafísica e Ética, p. 14.
50 | O que torna uma vida realizada: homenagem aos 100 anos de Henrique Cláudio de Lima Vaz

humana não poderá se limitar apenas no âmbito dos bens finitos e situa-
dos, demonstra a vinculação – ainda que não absoluta – entre vida
realizada e tais bens.
Feitas essas considerações, teremos condições de avaliar quais os re-
sultados da concepção de vida realizada que parece ser predominante no
nosso tempo.

3. Desafios e consequências do ideal de vida realizada na


contemporaneidade

Uma vida realizada, no nosso século, parece ser aquela relacionada,


exclusivamente, com a satisfação oriunda da posse de bens materiais. Em
decorrência disso, há uma valorização do conhecimento técnico, aquele re-
lacionado com a produção de objetos, com a descoberta de instrumentos
úteis à sociedade no campo da natureza e do corpo humano. Os outros
tipos de saberes, como os das humanidades, ligados à formação dos sujei-
tos, são desprezados. Ao seguirmos esse caminho, constatamos que há
uma valorização da relação entre sujeito e coisa em detrimento da relação
entre sujeito e sujeito. Isso nos impele a pensar se, nesse tipo de sociedade,
há, de fato, sentido em falar de realização. Como mencionamos anterior-
mente, a realização está relacionada com o tornar-se, com um ideal, com
um vir a ser. Segundo Vaz, numa sociedade de massas, em que vigora o
“ser-igual”, não há lugar para o “ser-mais”. Nesse tipo de sociedade, os
homens simplesmente existem assim como os animais 24.
Ora, o estudo do ser humano e das relações entre as pessoas tem uma
metodologia própria; ele não é dócil à manipulação experimental, como
ocorre nas ciências relacionadas com a fabricação. Em decorrência disso,
a epistemologia das ciências humanas continua sendo objeto de grandes
discussões, uma vez que relaciona-se com as coisas-enigma. 25

24
H.C. de LIMA VAZ, Antropologia Filosofica II, p. 172.
25
Segundo Vaz, existem dois tipos de coisas: as coisas-utensílios – o que pode ser manipulado, estando ao alcance
das mãos para o uso e não tendo, portanto, segredo para o homem; e as coisas-enigma, o que nele provoca admiração
e espanto. O primeiro tipo de coisa relaciona-se com os eventos repetíveis (cíclicos ou previsíveis), que permitem ao
Patrícia Carvalho Reis | 51

Por meio das atividades relacionadas com a contemplação e com a


ação – diferentemente das concernentes à fabricação –, podemos adquirir
e consolidar conhecimentos sobre questões espirituais, éticas, políticas,
psicológicas, entre outras. Consideramos importante as pessoas se questi-
onarem se o que a sociedade considera como vida realizada, lhes traz, de
fato, o sentimento de realização. Somente esse questionamento íntimo
pode fazer com que uma vida verdadeiramente realizada surja. Ao termo
esse pensamento crítico em relação à atividade de fabricação, não quere-
mos desmerecer as atividades relacionadas com esse saber. É claro o valor
de se conhecer as técnicas e de usufruir de certos bens materiais. Como
mencionamos acima, a presença de condições dignas de sobrevivência é
um pressuposto para termos uma vida realizada. Além disso, a possibili-
dade de termos conhecimentos e aprendizados sempre é melhor do que
não termos oportunidades dessa natureza. Nesse sentido, acompanhamos
Lima Vaz, A. Tourraine, Ladrière e Oliveira quando expressam a ideia de
que a tecnologia está a serviço de coisas boas ou ruins, ela é instrumental,
por isso, incapaz de conferir inteligibilidade e norma para a existência e
para as ações humanas 26.
Portanto, o saber técnico não deveria ser separado daquele das hu-
manidades. Fato é que uma sociedade em que a posse de bens é mais
importante do que a formação do ser humano não terá motivos para se
preocupar com uma educação voltada para o engrandecimento pessoal do
sujeito. Assim, o ensino de disciplinas como filosofia e humanidades é visto
como desnecessário. Seguindo a terminologia de Adorno, nesse caso, a
educação não é voltada para a emancipação 27.
Não bastasse isso, nas sociedades em que tecnocracia é vista como o
principal saber, há grandes chances de haver um esquecimento da política.
Alguns profissionais são responsáveis por essa esfera e os cidadãos seguem

homem fixar pontos de referência na sucessão dos acontecimentos. Por outro lado, as coisas-enigma estão relacio-
nadas com os eventos insólitos, enigmáticos ou inesperados, com os quais o homem nunca se familiariza totalmente,
como o nascimento e a morte. H.C. de LIMA VAZ, Antropologia Filosofica II, p. 23.
26
C.M.R de OLIVEIRA, Metafísica e Ética, p. 59.
27
T. W. ADORNO, Educação e Emancipação, p. 172.
52 | O que torna uma vida realizada: homenagem aos 100 anos de Henrique Cláudio de Lima Vaz

suas vidas particulares sem interesse pela esfera pública. De nosso ponto
de vista, isso faz com que o ser humano se afaste do verdadeiro sentido de
realização e crie expectativas fantasiosas de que o “ter” possa fazer com
que ele se torne melhor.
À guisa de conclusão, defendemos que uma educação voltada para as
humanidades assim como uma valorização da esfera pública podem trans-
formar não só o mundo que nos rodeia, mas a complexa vida interior de
cada pessoa – um mundo maior e, de nosso ponto de vista, o único capaz
de oferecer possibilidades de uma verdadeira realização.

Referências

ADORNO, Theodor W. Educação e Emancipação. Tradução Wolfgang Leo Maar. Rio de Ja-
neiro: Paz e Terra, 1995.

ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. 1ª ed. São Paulo: Abril Cultural, 1973.

ARENDT, Hannah. A Condição Humana. 10ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária;
2005.

LADRIÈRE, J. Les enjeux de la rationalité: le défi de la science et de la technologie aux cul-


tures. Paris, Aubier/Montaigne, 1977.

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______. Metafísica e liberdade no pensamento de H.C. de Lima Vaz. Sapere Aude. Belo
Horizonte, v. 5, n. 10, p. 123-138, 2° sem. 2014.

ROCHA, Gabriel Felipe Martins. Realização humana em Lima Vaz. 2016. Dissertação (Mes-
trado em Filosofia).123 f. Faculdade de Filosofia e Teologia, FAJE. Belo Horizonte,
2016.

VAZ, Henrique C. L., Antropologia Filosófica I. São Paulo: Loyola, 1992

______. Antropologia Filosófica II. São Paulo: Loyola, 1995.


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______. Escritos de filosofia V: Introdução à ética filosófica 2. São Paulo: Loyola, 2000.

TOCQUEVILLE, Alexis de. A Democracia na América. Tradução de Eduardo Brandão. Pre-


fácio: François Furet. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005. 2 v.

TOURAINE, A. Crítica da modernidade. Petrópolis, Vozes, 2002.

YASPERS, Karl. Iniciação filosófica. Lisboa: Guimarães Editores, 1981.


Capítulo 3

Sobre o problema da autorrealização


na situação pós-humana 1

Marco Heleno Barreto

O discurso antropológico-filosófico sistemático construído por Hen-


rique Cláudio de Lima Vaz consuma-se com a tematização da unidade
fundamental do ser humano, que é pensada à luz das categorias de reali-
zação e de pessoa, 2 as quais possuem uma vinculação interna: a realização
(ou autorrealização) corresponde à efetivação existencial da unidade e uni-
cidade pessoal do sujeito reflexivo, que se depara com o mistério de sua
ipseidade e se vê convocado à tarefa de dar um conteúdo concreto à afir-
mação fundamental “Eu sou” através de seus atos pessoais, segundo a
diversidade aberta de suas dimensões estruturais e relacionais, mutua-
mente implicadas. A célebre máxima enunciada na Grécia antiga por
Píndaro - “Torna-te o que és” - enfeixa perfeitamente a indissolúvel uni-
dade do aspecto dinâmico-existencial (tornar-se) e do aspecto estrutural-
essencial (o que se é) no processo vivido do realizar-se como pessoa. Trata-
se de um processo aberto, que se desenrola ao longo da vida inteira, sem
jamais atingir o seu termo final visado: a plena realização da unidade fun-
damental da pessoa, como lembra Henrique Vaz, “permanece um
conceito-limite que à filosofia é dado apenas postular como o alvo enfim

1
Este texto baseia-se na contribuição apresentada por ocasião do XII Colóquio Vaziano: “A realização. Um chamado
ao ‘torna-te o que és’”, realizado na Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE) em 22 e 23 de agosto de 2019.
Optei por não sacrificar inteiramente o nível didático e coloquial original da palestra.
2
Cf. Vaz, H.C.L. Antropologia Filosófica II. São Paulo: Loyola, 1992, pp. 139-252.
Marco Heleno Barreto | 55

alcançado da identidade (mediatizada pela vida vivida) entre a estrutura e


as relações ou entre a essência e a existência” 3.
A autorrealização necessariamente exige o espaço aberto do mundo
para efetivar-se. A categoria antropológica de situação descortina a dimen-
são de ser-no-mundo e realça a relacionalidade constitutiva da existência
humana. A realização efetiva será, portanto, necessariamente situada, isto
é, será sempre determinada pela situação concreta que delimita o cenário
ou modo de ser-no-mundo em que se joga a tarefa existencial do “torna-
te o que és”. E a situação concreta conforma-se de acordo com as linhas de
força histórico-culturais que convergem na configuração particular do
mundo da vida (Lebenswelt) em um dado momento da linha do tempo
histórico. Assim sendo, a passagem ou retorno da compreensão sistemá-
tico-reflexiva da realização para o esclarecimento de suas modalidades,
impasses e dilemas concretos no mundo da vida exige que, de partida, le-
vemos em consideração a configuração particular deste mundo.
Sabemos que “uma transformação profunda da objetividade
mundana traz consigo uma transformação não menos profunda do
estatuto natural ou ôntico do nosso ser-no-mundo e, portanto, da sua
inteligibilidade ontológica.” 4 Ora, uma transformação de tal amplitude
verificou-se justamente no processo histórico fatídico que deságua na
configuração civilizacional abreviadamente designada como modernidade.
A modernidade, como forma definitiva de um novo modo de ser-no-
mundo, é “a forma do existir sob a norma da tecnociência regendo todos
os campos da nossa atividade: o conhecimento, o agir ético, o agir político,
a criação artística, o trabalho.” 5 A tecnociência, por sua vez, define-se por
uma forma de racionalidade historicamente revolucionária, que exclui por
princípio e método tudo o que pertence à alçada subjetiva, almejando um
tipo de objetividade - a objetividade tecnocientífica - que seja expurgada
das interferências indesejáveis das tendências subjetivas na explicação

3
Vaz, Antropologia Filosófica II, p. 144.
4
Vaz, H.C.L. Escritos de Filosofia VII. Raízes da Modernidade. São Paulo: Loyola, 2002, p. 254.
5
Vaz, Escritos de Filosofia VII, p. 255.
56 | O que torna uma vida realizada: homenagem aos 100 anos de Henrique Cláudio de Lima Vaz

científica de um dado campo fenomênico. Por conseguinte, um mundo que


seja construído e configurado segundo a norma da tecnociência tende a
desconsiderar “aquelas exigências e tendências que se manifestaram
historicamente e se justificaram reflexivamente como constitutivas de
uma autêntica existência humana”. 6 A questão que se nos coloca, nesta
situação, é: será que o predomínio dessa norma poderá ainda salvaguardar
aquelas exigências e tendências, preservando no interior do mundo que
ela configura um espaço para a realização de uma autêntica existência
humana? Ou será que tal norma terá um efeito corrosivo e revolucionário
sobre o que até aqui se concebeu como sendo uma existência humana,
levando à substituição dos ideais que nortearam a autorrealização por um
projeto de existência que desconsidera aqueles mesmos ideais?
Esta última alternativa não é apenas mera possibilidade ou pressen-
timento referido a um momento futuro da linha de evolução do espírito
moderno. Ela se manifesta explicitamente em nosso tempo, causando per-
plexidade e inquietação. A entrada em uma época em que a cibercultura
atinge a todos e se espalha irresistivelmente, submetendo todas as formas
de atividade e relação a seu campo gravitacional inexorável, é hoje uma
realidade consumada: vivemos no momento avançado da Idade da Téc-
nica, do qual é permitido afirmar que veio para ficar, incidindo
inexoravelmente sobre o modo de ser-no-mundo. As transformações ge-
radas por essa nova modalidade de existência e convivência
essencialmente tecnológica e virtual afetam todos os domínios do mundo
da vida. Trata-se de uma verdadeira revolução na instalação humana no
mundo, que justamente põe em causa a inteligibilidade ontológica do
nosso ser-no-mundo. Não por acaso a forma de vida que se desenvolve
nessa nova situação tem sido frequentemente designada pela expressão
pós-humano. Assim, cabe-nos refletir sobre a viabilidade e as formas pos-
síveis da autorrealização no contexto expansivo da situação pós-humana.
Podemos começar tomando em consideração a tão alardeada crise
ética que marca a vida contemporânea, crise de valores e ideais referidos

6
Ibid.
Marco Heleno Barreto | 57

tanto à noção de um bem comum como às razões de viver. Percebemos de


imediato como a tarefa existencial de tornar-se o que se é resta inteira-
mente impactada por tal crise sem precedentes. Pois, sendo a eticidade um
predicado essencial do imperativo da autorrealização, 7 segue-se que toda
desestruturação ou convulsão fundamental que afete o ethos necessaria-
mente torna problemáticos, incertos e nebulosos os parâmetros que
fornecem as referências culturais que balizam o processo de autorrealiza-
ção. Poderíamos dizer que, em consequência da crise ética que afeta e
caracteriza a existência na situação pós-humana que se instala com a Idade
da Técnica, todo o domínio do sentido da vida, ao qual a tarefa da autor-
realização está ordenada, é posto radicalmente em questão. A possibilidade
de fracasso em tal tarefa fica exponencialmente acentuada na indefinida e
incerta situação contemporânea. Donde o alastrar-se angustiante daquela
sensação de uma vida não realizada, em função “da dispersão e da perda
do tempo da vida que não foi recuperado pela linha harmoniosa de um
crescimento sempre mais unificante”. 8 Os sinais dessa generalizada sen-
sação subjetiva de frustração podem ser lidos na escalada crescente dos
variados sintomas subjetivos, sociais e culturais que manifestam de forma
crua e direta o ônus existencial do mal-estar da modernidade, escanca-
rando assim o que tende a permanecer ocultado pelos entusiastas da
entrada na situação pós-humana.
Se, por um lado, os riscos que ameaçam a autorrealização, entendida
como a “experiência fundamental da unificação de nossa vida”, 9 decorrem
“da própria complexidade estrutural do homem”, 10 possuindo, portanto,
uma dimensão ontológica, por outro lado podemos dizer que, na situação
pós-humana contemporânea de profunda crise ética, esses riscos ganham
uma assustadora e inaudita amplificação no próprio modo de ser-no-

7
Cf. Vaz, Antropologia Filosófica II, p. 146.
8
Ibid.
9
Ibid, p. 147.
10
Ibid.
58 | O que torna uma vida realizada: homenagem aos 100 anos de Henrique Cláudio de Lima Vaz

mundo proposto pela modernidade tecnocientificamente configurada.


Que traços nos permitem corroborar e descrever tal amplificação?
A extensão da vontade de poder técnica a todos os âmbitos da vida
contemporânea assinala o triunfo universalizado da lógica da dominação.
Já no nível da relação de objetividade, ao qual pertence de direito a forma
da dominação tomada em seu mais amplo sentido, a versão particular da
dominação tecnológica moderna faz sentir seu impacto revolucionário. A
dominação técnica da natureza desenvolvida pela humanidade ao longo de
toda a sua trajetória histórica deixava intocada a noção mesma de um li-
mite infranqueável para a transformação cultural da esfera natural, esta
última permanecendo sempre preservada em sua essência. Já a moderna
intervenção tecnológica reveste-se de um poder verdadeiramente demiúr-
gico e, redefinindo a natureza como matéria-prima ilimitadamente
manipulável, faz recuar radicalmente a fronteira de uma ordem natural,
impondo-lhe configurações e desígnios que transgridem de modo fla-
grante a ideia de uma natureza soberana e intocável em seus fundamentos
últimos. Instalando-se na posição titânica de um “deus de prótese”, se-
gundo a expressão de Freud em O Mal-estar da Civilização, o homem
moderno não reconhece um limite intransponível a seu projeto de domi-
nação da natureza. A percepção angustiada das possibilidades contidas
nesta nova posição transparece já na consciência do século XIX, em obras
como o Frankenstein, de Mary Shelley, e A Ilha do Dr. Moreau, de
H.G.Wells. A marcha subsequente da ampliação do poderio tecnológico (da
intervenção na ordem atômica ao desenvolvimento das nanotecnologias)
veio apenas confirmar aquela transformação profunda da objetividade
mundana aludida anteriormente, comunicando-se a todas as esferas do
modo de ser-no-mundo. Sobre essa transformação, comenta Henrique
Vaz:

Com o advento e o predomínio da tecnociência, a transformação cultural do


ser humano passa a apresentar uma assimetria crescente entre os dois termos
do processo, a natureza e a cultura. Assistimos, com efeito, a uma ruptura, que
Marco Heleno Barreto | 59

se aprofunda, do equilíbrio até então trabalhosamente mantido pela humani-


dade entre o natural e o cultural, e que tem subsistido não obstante o processo
histórico contínuo que vai ampliando o domínio da cultura sobre a esfera da
natureza. Tal ruptura representa um evento de civilização, cujo imenso al-
cance apenas começamos a medir e que será sem dúvida olhado um dia como
o evento inaugural de uma modalidade do existir histórico radicalmente nova,
a ser vivida por aquele que será conhecido como sendo propriamente o homem
moderno. 11

Os efeitos dessa nova modalidade do existir histórico sobre os vários


aspectos da realização humana podem ser descritos. Assim, se o risco es-
trutural que acompanha a experiência da autorrealização na dimensão do
corpo próprio relaciona-se à “relativa independência com que, no âmbito
do corpo, desenvolvem-se os processos físico-químicos e especificamente
biológicos da vida”, 12 confrontando a unidade do sujeito, sempre provisó-
ria e penosamente alcançada, com a dispersão espaciotemporal do
mundo, 13 o novo risco que acompanha a extensão da dominação técnica à
experiência contemporânea da corporalidade está na ruptura do laço on-
tológico de identidade relativa do sujeito ao seu corpo próprio. Ao invés de
suporte identitário, base corpórea do Eu sou, o corpo tornado objeto de
dominação técnica ilimitada é apenas mais uma coisa que entra no campo
de deliberação de um eu tirânico, que lhe impõe seus desígnios, e não mais
se experimenta verdadeiramente como sendo corpo, mas apenas como
tendo um corpo, que ele submete ao seu arbítrio, avesso a qualquer consi-
deração de limites exteriores. 14
No que diz respeito à dimensão do psiquismo, a postura de
dominação tirânica manifesta-se exemplarmente na intenção de controle
técnico da afetividade, que alimenta tanto a multimilionária indústria dos
psicofármacos, como a programação comportamental-cognitiva do
imaginário psicológico, numa aliança coerente entre a psiquiatria

11
Vaz, Escritos de Filosofia VII, p. 254.
12
Vaz, Antropologia Filosófica II, p. 147.
13
Cf. ibid.
14
A respeito das formas contemporâneas de experiência do corpo, vejam-se as reflexões de David Le Breton em Adeus
ao Corpo (Campinas: Papirus, 2003).
60 | O que torna uma vida realizada: homenagem aos 100 anos de Henrique Cláudio de Lima Vaz

exclusivamente biológica, as terapias do condicionamento


comportamental e a instituição moderna da publicidade. Todo o sentido
ontológico, existencial e terapêutico da cisão da vida interior, que
informava a visão psicológico-profunda (da Tiefenpsychologie) de ser
humano e instruía seu respectivo projeto de cura (que implicava uma
postura ética bem definida), é posto de lado em nome da programação
normatizada da dimensão afetivo-imaginária. A cisão subjetiva é
simultaneamente risco e condição para a unificação possível do sujeito na
experiência da autorrealização em sua dimensão psíquica, e o perscrutar
de suas manifestações psicológicas contribui para uma orientação
personalizada e subjetivamente objetiva quanto às vias da autorrealização
(que Jung denominava “processo de individuação”). Já a programação
técnica da afetividade e do imaginário, ao contrário, desconsidera toda a
dimensão do sentido e contenta-se em (tentar) implantar um padrão
comportamental conformado por uma norma exterior ao sujeito.
Incidentalmente, esta é a mesma base da programação e condicionamento
dos desejos a que se dedica a publicidade, real instituição de conformação
e adaptação das subjetividades aos interesses e imperativos do sistema
econômico. O Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, talvez seja a mais
profética antecipação desse desenvolvimento que se tornou realidade
hegemônica em nosso tempo.
Quanto ao nível estrutural do espírito, no qual a autorrealização
apresenta-se em sua significação mais profunda como “tarefa na qual se
decide a direção do sentido da própria existência”, 15 sentido que se
submete “à medida da Verdade, à norma do Bem e à exigência do
Absoluto”, 16 o risco estrutural é de natureza eminentemente ontológica, e
traduz-se como a possibilidade de submersão no não-sentido. Ora, esta
possibilidade transformou-se em paradoxal horizonte da existência na
época do triunfo do niilismo ético e metafísico, em que aquele risco
ontológico é afirmado como condição inultrapassável, terminal. O ataque

15
Vaz, Antropologia Filosófica II, p. 147.
16
Ibid.
Marco Heleno Barreto | 61

deflagrado às noções de Verdade, Bem e Absoluto é proveniente da


universalização de uma forma de relativismo selvagem, expressão máxima
da razão cínica a que Peter Sloterdijk dedicou sua crítica. 17 A verdade é
negada cinicamente pela consciência que proclama a época da assim
chamada pós-verdade; o bem comum é recusado em favor do interesse
particular e individual concebido abstratamente, sem o reconhecimento de
suas ligações concretas com o todo, resultando em uma autodestrutiva
contradição que só requer algum tempo para levar a suas consequências
fatais, cujos sinais inequívocos já podemos ler em nossa realidade; e o
absoluto, como a própria noção de universalidade, é atacado pela crítica
dos corifeus do fim da metafísica, assimilado sem mais aos horrores do
totalitarismo e da opressão das diferenças, 18 e denegado enquanto polo do
anseio humano por ser-mais, enquanto exigência constitutiva do sentido
da existência. Não é de se admirar que, em tal situação, a própria noção de
espírito conheça seu ocaso, na sua tradução cibernética como conjunto de
informações armazenáveis, programáveis e permutáveis. É neste nível que
todo o problema da autorrealização em nosso tempo encontra sua raiz
última.
Transposta para o plano da relação de intersubjetividade, a lógica da
dominação prevalente na objetividade mundana induz uma perversão ca-
racterística, agravando o risco de um desequilíbrio fatal na constituição da
subjetividade, pela substituição da difícil experiência do reconhecimento,
condição inarredável da verdadeira autorrealização, pela instrumentaliza-
ção do outro, reduzido ao estatuto de complemento ou objeto do desejo do
eu. No capítulo IV da Fenomenologia do Espírito Hegel expôs magistral-
mente as condições para a verdadeira afirmação da consciência de si em
sua liberdade e autonomia: não posso tornar-me humano só com minhas
próprias forças, encerrado em mim mesmo; preciso do outro, de seu reco-
nhecimento como ser livre não submetido ao meu domínio, para realizar

17
Cf. Peter Sloterdijk. Crítica da Razão Cínica. São Paulo: Estação Liberdade, 2012.
18
Para uma lúcida crítica às contradições internas da recusa da dimensão da universalidade pela afirmação irrefletida
da diferença, veja-se o capítulo 4 (“A coruja e o sambódromo”) em Sérgio Paulo Rouanet. O Mal-estar da Moderni-
dade. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
62 | O que torna uma vida realizada: homenagem aos 100 anos de Henrique Cláudio de Lima Vaz

minha plena humanidade enquanto ser livre. Mas a verdade do projeto de


existência proposto na Idade da Técnica encontra-se no exato oposto do
reconhecimento apontado por Hegel: dominação do outro, instrumentali-
zação das relações intersubjetivas, individualismo solipsista camuflado
pela aparente comunicação universal, solidão real mal disfarçada pela
compulsividade de contatos superficiais e estereotipados, fomentados pela
participação quase obrigatória nas redes sociais.
Finalmente, a relação de transcendência fica eclipsada e virtualmente
bloqueada no espaço mundano projetado e construído como imagem e ex-
pressão do poderio técnico. Para onde quer que se volte no interior de tal
espaço, o sujeito só encontra reflexos de si mesmo, enquanto participante
dos sistemas do saber, da técnica, da economia, novas hipóstases objetivas
da subjetividade transcendental. Não há lugar lógico em tal espaço para o
termo que consolidaria uma real relação de transcendência - seja a Natu-
reza antiga, agora decaída em mera matéria prima submetida à dominação
humana, seja alguma das formas tradicionais do Sagrado, postas sob sus-
peita pela razão crítica, ou banalizadas e transformadas em mercadoria
espiritual, alívio paliativo para as carências produzidas pela vida moderna.
A absolutização da vontade de poder técnica, assentada no triunfo
hegemônico da racionalidade instrumental, é correlativa à redução da
experiência do sujeito à condição de Eu desejante, que vem substituir-se
ao sujeito ético, ao Eu-pessoa que expressa a primazia da razão teleológica
e que se autorrealiza segundo a complexidade de suas estruturas e
relações, conforme a experiência fundamental que a antropologia
filosófica transcreve em seu discurso sistemático. Sobre o modelo humano
ideal resultante da substituição da razão teleológica pela razão
instrumental, sendo esta, então, sua forma inteligível, Vaz comenta: “Esse
[modelo] teria então alcançado o que poderíamos talvez denominar uma
universalidade aritmética, ou seja, resultante da igualdade numérica com
que o modelo, matematicamente programado, se tornaria repetível em
série.”19 E acrescenta: “Porém, sobre esse mundo pós-humano (de ficção?)

19
Vaz, Antropologia Filosófica II, p. 170.
Marco Heleno Barreto | 63

a filosofia não teria mais nada a dizer, pois ela mesma teria, finalmente,
desaparecido.” 20
Definido pelo desejo, o sujeito ordenado ao modelo ideal pós-humano
está enclausurado na dimensão da má infinitude, que Hegel mostrou ser
estruturante do dinamismo do próprio desejo. Isso significa que a infini-
tude que está na raiz da atividade propriamente espiritual do ser humano
é programaticamente defletida para a esfera da imanência, com seus obje-
tos finitos, e passa a percorrê-los infindavelmente, em busca de uma
satisfação que, por princípio, está excluída do campo de seus investimen-
tos relacionais. Em outras palavras: a hegemonia da razão instrumental
projeta como horizonte fechado para a autorrealização a dimensão da ex-
terioridade, da imanência absolutizada e reduzida ao conjunto de objetos
e relações tecnicamente construídos e oferecidos ao consumo, e encontra
sua expressão concreta e correspondente modo de vida na nossa sociedade
da realização dos desejos. Mas o desejo aqui não será entendido com a
profundidade que a análise de um Santo Agostinho nele revela, ou antes,
tal profundidade - a infinitude do espírito humano em sua raiz ontológica,
que sustenta um dinamismo interminável na direção do ser-mais - não
será reconhecida e vivida como sinal de sua abertura constitutiva ao hori-
zonte ilimitado do ser, condição para que se estabeleça a real relação de
transcendência. Henrique Vaz expõe a condição para essa reorientação ra-
dical do desejo humano:

Somente um “fim da História” pensado como abolição de qualquer polo ideal


de realização humana, substituído pela uniformidade linear e pela igualdade
aritmética do homem-massa, pode ser projetado como solução-limite da apo-
ria do ser-mais, eliminada, nesse caso, pela utopia do ser-igual, o que
significaria a solução da dificuldade pela supressão dos seus termos. A possi-
bilidade de podermos pensar essa solução-limite aparece, de resto, como a
prova a contrario da natureza metafísica (e que exprimimos dialeticamente
com a categoria da realização) da tendência que impele o homem a ser-mais,

20
ibid.
64 | O que torna uma vida realizada: homenagem aos 100 anos de Henrique Cláudio de Lima Vaz

e que só uma iniciativa do próprio homem, pensável apenas como solução-


limite, pode tentar reduzir à fixidez animal de simplesmente ser. 21

A “tendência que impele o homem a ser-mais”, suporte da relação de


transcendência, índice de sua capacidade de autotranscendência, ao ser
enclausurada na má infinitude do desejo circunscrito à dimensão da ima-
nência absolutizada, faz com que o homem fique como que atolado no
mundo que lhe é dado, não lhe restando outra via para realizar-se dentro
desse limite empobrecido, segundo a configuração dominante no mundo
contemporâneo pós-humano, do que entregar-se à lógica do consumo
(ter-mais) e do hedonismo individualista (gozar-mais). A tradição ética vê-
se substituída pelo mercado dos valores que se oferecem ao consumo do
Eu desejante, sinal cristalino da ação do niilismo ético sobre as estruturas
da autorrealização. 22 Esta deixa de ser vivida e/ou tentada no espaço ori-
ginário da praxis, para lançar-se no espaço da poiesis regido pela
racionalidade instrumental. A absorção histórica da praxis pela poiesis
atesta, assim, a condição fundamental que dita a forma substitutiva de au-
torrealização na situação pós-humana.
A utopia do ser-igual aludida por Henrique Vaz não é apenas uma
fantasia que antecipa uma realidade futura. Ela pode ser percebida na forte
tendência de homologação que se propaga a partir da sociedade de massas,
e a ela corresponde em primeira instância a atitude de conformismo, que
Umberto Galimberti arrola entre os “novos vícios” característicos do pa-
norama contemporâneo, sombra fiel e inevitável do modelo ideal pós-
humano (ao conformismo aliam-se o consumismo, o despudor, a sexoma-
nia, a sociopatia, a denegação e o vazio, compondo um retrato pelo
negativo do modo de vida proposto na Idade da Técnica). 23
A “morte do homem” que sinaliza a tendência pós-humana, no
entanto, não é um fato consumado. Para a plena realização do modelo ideal
pós-humano seria necessária a superação definitiva do mal-estar da

21
Ibid., p. 171-172.
22
cf. ibid., p. 180, nota 71.
23
Cf. Umberto Galimberti. Os vícios capitais e os novos vícios. São Paulo: Paulus, 2004.
Marco Heleno Barreto | 65

modernidade, manifestado em suas disfuncionalidades - violência


disseminada em todos os domínios da existência e das relações
intersubjetivas; vazio gerador de angústia, depressão, atuações
psicopáticas, escalada crescente de suicídios; as várias formas de vícios
contemporâneos, que simultaneamente testemunham o anseio
inextirpável pela experiência do Absoluto e o fracasso de todos os
simulacros que se oferecem como seus sucedâneos. Essa superação
permanece sendo não mais que uma aspiração, ou uma promessa não
cumprida pelos vários dispositivos criados para eliminar os persistentes e
insidiosos “efeitos colaterais” da forma de vida pós-humana. 24 Ali onde
esta forma falha, insinua-se tudo aquilo que ela despreza, reprime ou nega.
É lícito dizer que esse verdadeiro “recalcado da modernidade” expressa
justamente “aquelas exigências e tendências que se manifestaram
historicamente e se justificaram reflexivamente como constitutivas de
uma autêntica existência humana”. 25
Se é assim, então descortina-se uma consequência prática, sobre a
qual é urgente meditar. A via da restituição da experiência da
transcendência (ou do Absoluto) passa pela consideração cuidadosa da
zona obscura do sofrimento humano na Idade da Técnica, que vem
reclamar o ultrapassamento do pós-humano na direção de um reencontro
do humano com seus fundamentos, recalcados pela hegemonia da forma
inteligível do modelo ideal da modernidade niilista. Para além da
exterioridade totalitária, regida pela vontade de poder, que escraviza
sedutoramente as consciências, a reabertura da via da interioridade -
seguindo a experiência agostiniana do noli foras ire - tem como primeira
e dialética condição de possibilidade a restauração da atitude/experiência
do reconhecimento. Expresso nos termos da sabedoria do Evangelho
cristão, o ultrapassamento que aqui temos em mente consistiria na

24
Veja-se, a título de exemplo, a estarrecedora exposição de Robert Whitaker acerca da realidade do tratamento das
desordens psiquiátricas sustentado pela indústria dos psicofármacos, em suas sombrias relações com a psiquiatria,
em Anatomy of an Epidemic. Magic Bullets, Psychiatric Drugs and the Astonishing Rise of Mental Illness in America
(New York: Random House, 2010).
25
Vaz, Escritos de Filosofia VII, p. 255.
66 | O que torna uma vida realizada: homenagem aos 100 anos de Henrique Cláudio de Lima Vaz

experiência que realiza o significado profundo da indissolúvel relação


entre o preceito de amar a Deus sobre todas as coisas e o de amar ao
próximo como a si mesmo. Poderíamos talvez avançar e dizer que,
partindo da situação pós-humana, a via para o possível reencontro do
absoluto tem como primeira estação o reconhecimento do outro, perdido
na instrumentalização que invade o campo das relações intersubjetivas em
toda a amplitude de suas expressões. Em uma carta endereçada a
Fernando Sabino, Hélio Pellegrino sintetiza a possibilidade que se abre ao
homem moderno, confrontado com a inanidade de sua vontade de poder:

O homem, quando jovem, é só, apesar de suas múltiplas experiências. Ele pre-
tende, nessa época, conformar a realidade com suas mãos, servindo-se dela,
pois acredita que, ganhando o mundo, conseguirá ganhar-se a si próprio.
Acontece, entretanto, que nascemos para o encontro com o outro, e não o seu
domínio. Encontrá-lo é perdê-lo, é contemplá-lo na sua libérrima existência, é
respeitá-lo e amá-lo na sua total e gratuita inutilidade. O começo da sabedoria
consiste em perceber que temos e teremos as mãos vazias, na medida em que
tenhamos ganho ou pretendamos ganhar o mundo. Neste momento, a solidão
nos atravessa como um dardo. É meio-dia em nossa vida, e a face do outro nos
contempla como um enigma. Feliz daquele que, ao meio-dia, se percebe em
plena treva, pobre e nu. Este é o preço do encontro, do possível encontro com
o outro. A construção de tal possibilidade passa a ser, desde então, o trabalho
do homem que merece o seu nome. 26

Merecer o nosso nome - a nossa condição autenticamente humana -


talvez seja a finalidade mais urgente que se nos apresenta no momento
histórico em que esse nome mesmo é posto em causa e apresentado como
ultrapassado, obsoleto. Só o futuro dirá se a “utopia do ser-igual” prevale-
cerá sobre a “tendência que impele o homem a ser-mais”. O cenário
contemporâneo convida ao pessimismo quanto às possibilidades de atua-
lização dessa tendência, em um mundo que parece ser-lhe avesso,
indiferente, quando não francamente hostil. Apostar nessas possibilidades,
sob a forma de uma lúcida dedicação à verdadeira autorrealização de nosso

26
Citado como epígrafe em Fernando Sabino. O Encontro Marcado. Rio de Janeiro: Record, 1981.
Marco Heleno Barreto | 67

ser social e individual, parece insensatez. Seja como for, é uma insensatez
que, no sentido literal da expressão, vale a pena, pois nela, paradoxal-
mente, o sentido do existir humano é afirmado e assumido. E se algum
representante da consciência cínica que afirma o triunfo da pós-verdade e
do pós-humano nos interpelar, insistindo em que nossa aposta não tem
futuro, poderemos responder com o verso do poeta alemão contemporâ-
neo Hans Magnus Enzensberger, em sua Instrução a Sísifo, dando-lhe a
entonação de um enigma oracular: “Faltam homens que realizem em si-
lêncio aquilo que não tem futuro”.
Capítulo 4

Releitura de Finitude e Situação na


Ética de Henrique Cláudio de Lima Vaz:
analogias com a práxis existencialista

Magda Guadalupe dos Santos

A obra de Henrique Cláudio de Lima Vaz tem sido lida de diversos


prismas, como o da metafísica, da política, da epistemologia e, sobretudo,
com ênfase nas bases ético-antropológicas da cultura. Vaz sempre se pre-
ocupou em delimitar conceitos e categorias, dentre os quais o de “finitude”
e “situação” do ser humano e, ao mesmo tempo, voltou-se para a apuração
do sentido da vida dialeticamente expressa na compreensão da transcen-
dência, na busca ativa da verdade e do Bem. No exercício dialético de
estruturar um conhecimento lógico e a expressão racional da realidade, ele
investiga a categoria da “realização” humana, vinculando as noções de “fi-
nitude” e de “situação” como delimitações específicas do ser-no-mundo ou
ser-em-situação 1. Enquanto domínio de realidade, ser finito e ser em situ-
ação são distinções que tornam o ser humano interligado aos outros seres
no mundo, em relação de intersubjetividade.
Quando iniciei esta análise, uma pergunta logo se me apresentou: o
que nos leva no mundo de hoje, mundo de ceticismo cognitivo, de pande-
mia, de estado de exceção de certos direitos individuais e coletivos, com
evidente aumento de poderio dos governos 2, no processo de mobilização

1
H. C. L. Vaz, Antropologia Filosófica II, São Paulo, Loyola, 1992, p.141.
2
G. Agamben, La invención de uma epidemia. In: Sopa de Wuhan. Pensamiento contemporaneo en tiempos de pan-
demias. Buenos Aires, Editorial ASPO, 2020. p.19.
Magda Guadalupe dos Santos | 69

social que resulta apenas em autocentramento e no confinamento 3 em


2020, a buscar a investigação antropológica e ética realizada por H. C. de
Lima Vaz na segunda metade do século XX? Como responder a este ques-
tionamento e que se verte de um autoquestionamento?
Enquanto um pensamento profundo, Vaz tanto problematiza as
questões éticas centrais da contemporaneidade, quanto nos ensina a posi-
cionar o entendimento humano no caminho da filosofia e da
temporalidade histórica, nas trilhas de uma leitura filosófica da história
ocidental e dos perfis humanos que se consagram ao longo dos tempos.
Nada disso parece simples, ultrapassado ou anacrônico. Entretanto, se te-
mos hoje tantos outros modelos interpretativos da realidade, o que
devemos seguir? Quais as vias metodológicas de leitura dos textos de filo-
sofia? Como ler seus textos hoje?

1. Método de pensamento

O próprio Vaz alerta que, anteriormente à abordagem dos problemas


a serem investigados, é preciso considerar os “níveis de leitura” que em
um texto de filosofia cumpre identificar. É que o texto, como recorte do
real, apresenta uma profunda e complexa relação entre planos de conhe-
cimento e de vias de ação, provocando em cada leitor ou leitora um
contínuo processo de autoindagação sobre os desígnios do ser perante o
saber: o que somos e podemos ser diante de nossos projetos de conheci-
mento? Esta é uma constante indagativa que surge, mesmo que
reconhecida apenas implicitamente, na abordagem textual de seus escri-
tos.
Assim, se no universo filosófico a “leitura do texto” leva em conside-
ração, em primeiro lugar, a sua materialidade temática, também se impõe
considerar uma leitura histórico-conceitual enquanto verificação, no texto,

3
S. López Petit. El coronavirus como declaración de guerra. In: Sopa de Wuhan. Pensamiento contemporaneo en
tiempos de pandemias. Buenos Aires, Editorial ASPO, 2020. p. 57-58.
70 | O que torna uma vida realizada: homenagem aos 100 anos de Henrique Cláudio de Lima Vaz

das experiências ocorridas no tempo da escrita, das interrogações do exer-


cício da escrita e da variação dos signos ali representados. Enfim, num
terceiro nível de leitura, o ato interpretativo nos remete para o cerne do
nomeado “círculo hermenêutico”, em que, como leitores intérpretes, so-
mos também interpretadas e interpretados pelos desígnios da cultura e de
certa teorização da situação histórica em que nos encontramos. Nesse úl-
timo nível, Vaz nos instiga a verificar como estamos inseridas e inseridos
no movimento interpretativo provocado por nossos próprios questiona-
mentos, sempre em busca de novos espaços de significação, numa
experiência existencial profunda e desafiadora 4.
Ele reconhece nas obras dos grandes filósofos, de Platão a Hegel e
seus leitores contemporâneos, justamente as linhas fundamentais de uma
pedagogia filosófica que persegue os direitos do ser humano como norma
rectrix do ethos das sociedades políticas e da regulação de seu desempenho
histórico 5. A passagem do ser ao dever-ser também se registra nos modos
como a estrutura metodológica da atividade de pensamento da filosofia
ocidental se edifica. No que tange ao círculo hermenêutico, às vivências
interpretativas que nos levam como leitoras e leitores às exigências de
compreensão de nossas condições de possibilidade, vislumbrar correlações
conceituais parece algo compulsivo que nos remete tanto às exigências do
rigor epistemológico indicado por Vaz, quanto às preocupações de corre-
lacionar existência e pensamento.

2. No percurso das analogias

Busquemos algumas comparações como meio de aguçar as vias me-


todológicas de entendimento dos textos de Vaz. Sabemos que desde
Aristóteles, a analogia é um pressuposto metodológico. Penso que não pre-
cisamos neste momento investigar em profundidade, à luz dos

4
H. C. L. Vaz. Por que ler Hegel Hoje? Boletim SEAF n.1, Belo Horizonte, SEAF n.1, 1982.p. 61-62.
5
H. C. L. Vaz, Ética e Direito, Escritos de Filosofia II. 3. ed. São Paulo, Loyola, 2000, p.139.
Magda Guadalupe dos Santos | 71

ensinamentos de Pierre Aubenque 6, por exemplo, como a doutrina da ana-


logia do ser na Metafísica de Aristóteles se torna uma ideia satisfatória para
legitimar as diversas sínteses acerca dos momentos fundamentais da his-
tória da Filosofia. Vamos aqui apenas tentar perseguir duas ou mais teses
que portam traços comuns e verificar se, no confronto analógico entre for-
mas e funções, tal como entendia o velho Aristóteles, conseguimos
desenvolver também um raciocínio epistemológico.
Nos domínios da realidade humana, o pensamento de H. C. de Lima
Vaz, retomado da ótica da analogia, nos conduz a algumas indagações so-
bre as condições da existência humana. Buscando amparo também na
filosofia existencialista, de Soeren Kierkegaard 7, no final do século XIX, em
seu confronto com as teses de Hegel, transitando pelos teóricos existenci-
alistas do Século XX, como Karl Jaspers 8, em língua alemã, Simone de
Beauvoir 9 e Jean-Paul Sartre 10, em língua francesa, entre outros, a díade
finitude e situação se revela alvo de preocupação teórica nas especificida-
des centrais do indivíduo humano, sustentada sempre pela condição de
liberdade e responsabilidade. Mas o que difere as teses conceituais de Vaz
daquelas dos existencialistas?
Em um primeiro momento, o que H. C. de Lima Vaz tem em mente
é uma categoria de pensamento bem mais ampla, que verte sua luz à filo-
sofia de Hegel, em sua originalidade metodológica, com rastros teóricos
que remetem às bases da paideia grega, especialmente na concepção de
Platão e Aristóteles. Educar-se à luz do logos apodeiktikós, da razão de-
monstrativa, equivale a reconhecer como a busca pelo significado da vida
tem-se movido em torno do sol ou da luz como metáfora do conhecimento;

6
P. Aubenque, Le problème de l’être chez Aristote, Paris, PUF, 1990.
7
S. Kierkegaard, El concepto de la angustia, Madrid, Espasa-Calpe, 1982, p. 103-104. A angústia é tomada como um
momento de transição da vida individual e que para Kierkegaard faz frente tanto à lógica quanto ao sistema hegeli-
ano.
8
K. Jaspers, Iniciação filosófica, Lisboa, Guimarães Editores,1998.
9
S. de Beauvoir, Uma existencialista observa os americanos, In: BEAUVOIR, Simone de. Brigitte Bardot e a síndrome
de Lolita e outros escritos, Belo Horizonte, Quixote + Do, 2018, p.140. Beauvoir analisa como o trabalho do ser hu-
mano diz respeito apenas a ele e não a entidades supra-humanas e se registra no plano finito de suas possibilidades.
10
J.-P. Sartre, O Existencialismo é um Humanismo, 4. ed. Lisboa, Presença,1978, p. 254-255. A ideia de situação e de
escolhas é aqui analisada por Sartre da perspectiva da responsabilidade e do compromisso com outrem.
72 | O que torna uma vida realizada: homenagem aos 100 anos de Henrique Cláudio de Lima Vaz

com suas “linhas de força estendendo-se ao infinito”, na medida em que o


universo da razão se expande de forma admirável, tornando visível como
as “certezas milenarmente imóveis”, tais como crenças, costumes, repre-
sentações, se demonstram atraídas para seu campo de atração e
significação. 11 Da atividade do pensamento lógico e científico, como um
estilo de compreensão do mundo, cria-se o ethos da atividade e esforço
epistemológico como verdadeiro ethos pedagógico do Ocidente 12. Entre-
tanto, é na passagem de um conceito metafísico, como o de finitude, à
complexidade da compreensão antropológica de situação 13, que os termos
interagem sob o impacto das categorias humanas de ser e pensar, ser-no-
mundo e pensar de forma prodigiosa para além dos limites do âmbito fí-
sico, acerca das exigências do sentido e da reflexividade da razão lógica. 14
Num segundo momento, se os existencialistas sempre foram leitores
críticos da tradição racionalista e, especialmente, de Hegel, e por especial
intermédio de Kierkegaard, não seria mesmo descabido buscar na obra de
Vaz os vestígios conceituais de teorias filosóficas que perseguem, no século
XX, a compreensão da relação dialética do mesmo e do outro, da dimensão
paradoxal entre o que se torna o ser humano para si mesmo e sua aber-
tura, mesmo que conflituosa, ao problema da alteridade 15. Se para Vaz,
nesse encontro dialético, evidencia-se sobretudo, na unidade estrutural do
ser humano, uma dimensão ontológica 16, para o Existencialismo, especial-
mente o de Karl Jaspers, torna-se necessário compreender amplamente a
noção de situação. Segundo Jaspers, há situações fundamentais da nossa
existência, as quais ele denomina de “situações-limite” 17, impossíveis de
serem transpostas ou alteradas, tais como a morte e o sofrimento. Em

11
H. C. L. Vaz. Ética e Ciência. Escritos de Filosofia II. Ética e Cultura. São Paulo, Loyola, 2000, p.182
12
H. C. L. Vaz. Ética e Ciência. Escritos de Filosofia II. Ética e Cultura. São Paulo, Loyola, 2000, p. 213
13
H. C. L. Vaz. Antropologia Filosófica II, São Paulo, Loyola, 1992, p.141-142. Vaz relaciona tais conceitos de situação
e finitude aos conceitos e uno e múltiplo presentes na metafísica de Platão e Plotino.
14
H. C. L. Vaz. Ética e Ciência. Escritos de Filosofia II. Ética e Cultura. São Paulo: Loyola, 2000, p.182-183.
15
H. C. L. Vaz. Nota histórica sobre o problema filosófico do “outro”. In: H.C. L. Vaz. Escritos de Filosofia VI. Ontologia
e História. 2. ed. São Paulo: Loyola, 2012, p. 242-243.
16
H. C. L. Vaz. Antropologia Filosófica II, São Paulo: Loyola, 1995, p.144.
17
K. Jaspers, Iniciação Filosófica, Lisboa, Guimarães Editores,1998, p. 26.
Magda Guadalupe dos Santos | 73

tempos de pandemia, tais “situações-limite” nos remetem ao projeto hu-


mano existencial e a inúmeras indagações atuais sobre a condição de
vulnerabilidade em que nos encontramos sob a roupagem de certos gru-
pos sociais e sob a titularidade de condição de fragilidade do humano,
como lembra B. S. Santos 18.
Ainda neste segundo momento, no entendimento de Simone de Be-
auvoir, ambiguidades e paradoxos só podem se constituir no plano da
análise ético-política que condiciona a existência humana em seu compro-
misso com vivências históricas e em busca da efetivação de liberdade e
compromisso com o mundo. Se as categorias antropológicas da história
cindiram o universo cultural humano em gêneros, arrogando-se um a se
pensar como o sujeito da história, relegando o outro a uma condição ne-
gativa deste transitar dos tempos, a ideia conceitual de situação em
Beauvoir não ultrapassa os limites da facticidade e imanência, condicio-
nando as correlações de gênero a uma práxis cultural na qual o ser mulher
é pensado culturalmente como um segundo sexo, num âmbito de limita-
ções sem reciprocidade 19.
De uma sintética perspectiva no plano das abordagens lógicas e cul-
turais, por um lado, para Lima Vaz, a realização humana ocorre nos
confrontos entre estruturas e relações, como categorias dialéticas que
tanto expressam o universo humano como ser-em-si quanto ser-para-ou-
tro. Em outros termos, é na dialética da identidade na diferença 20 que a
constituição ontológica do ser humano se posiciona nas categorias do
corpo próprio, do psiquismo e do espírito.
Vaz toma a dimensão espiritual enquanto unidade do ser humano
como sujeito, incluindo tanto o em-si (enquanto variações do humano),
quanto o para-si (como uma identidade reflexiva do voltar sobre si a com-
preensão de estar presente no mundo). Esse sujeito espiritual esbarra com

18
B. S. Santos, A cruel pedagogia do vírus, Coimbra, Almedina, 2020. p. 6.
19
S. de Beauvoir, Le Deuxième sexe, Paris, Gallimard, 1986, p. 14.
20
H. C. L. Vaz, Antropologia Filosófica II, São Paulo: Loyola, 1992, p.143.
74 | O que torna uma vida realizada: homenagem aos 100 anos de Henrique Cláudio de Lima Vaz

outros sujeitos, com os quais se relaciona como ser finito e situado 21. É,
pois, enquanto sujeito histórico e sempre em busca de transcendência, que
sua compreensão do humano se consagra na dialética da essência e da
existência, bem como da compreensão e sentido de sua realização en-
quanto ser do humano.
Por outro lado, se para os existencialistas, especialmente, os france-
ses, Beauvoir e Sartre, essa dimensão de essência é conceito tomado como
um constante devir, pois sempre precedido da condição fático-existencial
do indivíduo humano 22. Tal como se observa no entendimento de Sartre,
“temos sempre que partir da subjetividade” 23 e esta equivale ao conceito
de humano, pois cada um é um “exemplo particular de um conceito uni-
versal”, no qual a essência humana precede essa existência histórica” 24.
Já para Lima Vaz o que justifica o processo de desenvolvimento da
vida humana não é apenas o que se qualifica na ordem do ser, mas o que
se consuma “sob o signo do dever-ser” 25 e o que torna possível a passagem
da “necessidade ontológica para a necessidade moral”, tornando-se esta a
condição do próprio devir humano, como o “imperativo de sua autorrea-
lização” 26, ou seja, enquanto uma questão ética por excelência.

3. Desafios Humanos

Vaz chama, contudo, a atenção para os desafios humanos que se


encontram também no “domínio do existir simplesmente”, num modo de
ser em que o sentido da vida, que sempre se apresenta enquanto “tarefa
nunca acabada” 27, parece escapar dos caminhos traçados e dando mesmo

21
H. C. L. Vaz, Antropologia Filosófica II, São Paulo: Loyola, 1992, p.144.
22
J.-P. Sartre. O Existencialismo é um Humanismo, 4. ed. Lisboa, Presença, 1978, p. 254-255.
23
J-P. Sartre. O Existencialismo é um Humanismo, 4. ed. Lisboa, Presença, 1978, p. 213.
24
J-P. Sartre. O Existencialismo é um Humanismo, 4. ed. Lisboa, Presença, 1978, p. 213; p. 215.
25
H. C. L. Vaz, Antropologia Filosófica II, São Paulo: Loyola, 1992, p.146.
26
H. C. L. Vaz, Antropologia Filosófica II, São Paulo: Loyola, 1992, p.146
27
H. C. L. Vaz, Antropologia Filosófica II, São Paulo: Loyola, 1992, p.146.
Magda Guadalupe dos Santos | 75

a sensação de uma vida não realizada 28. Este risco ou este desafio se
apresenta, conforme Vaz, porque vivido somente na experiência dispersa
da corporalidade ou no âmbito apenas do tecido psíquico, sem garantias
para o mundo interior 29. Somente ao se realizar no nível do espírito o
sentido da existência se constitui na construção do humano em sua relação
de transcendência, definindo-se “o ser-para do ser humano” como “ser-
para-a-Verdade”, “ser-para-o-Bem” ou para o Absoluto 30. Neste
transcurso de agir conforme exigências deônticas, a feição ética do sujeito
humano se eleva a uma dimensão de exigência intrínseca de sua realização
verdadeira.
No contraste com o existencialismo de Simone de Beauvoir, é sobre-
tudo no corpo vivido, na experiência fenomenológica do corpo em situação
que a experiência existencial das mulheres se apresenta como experiência
efetiva 31. Nessa vertente hermenêutica, abre-se à interlocução epistemoló-
gica a necessidade de repensar o lugar dos discursos de mulheres no
horizonte da filosofia contemporânea e, nas dificuldades atuais, também o
lugar de categorias de identidades generalizadas, como o ser homem ou o
ser mulher. Também para o existencialismo de Beauvoir, cada sujeito hu-
mano, feminino ou masculino, passa por experiências individuais de
opressão e exclusão, de articulação dialética entre o geral e o particular,
desenhando o quadro valorativo das experiências corpóreas vividas. Ao re-
definir os sentidos de alteridade, aquela entre os iguais e outra entre os
diferentes, Beauvoir entende não haver lugar para a reciprocidade entre
os sexos, até meados do século XX. Na tensão entre o cultural e o que pa-
rece ser natural, a biologia é, segundo Beauvoir, naturalizada como base

28
H. C. L. Vaz, Antropologia Filosófica II, São Paulo: Loyola, 1992, p.146.
29
H. C. L. Vaz, Antropologia Filosófica II, São Paulo: Loyola, 1992, p.147.
30
H. C. L. Vaz, Antropologia Filosófica II, São Paulo: Loyola, 1992, p.147.
31
S. Heinämaa, Les souces phénoménologiques: le corps vécu et ses expressions. In: C. Delphy; S. Chaperon, Cin-
quantenaire du Deuxième sexe, Paris, Syllepse, 2002, p. 49-50. Segundo Heinämaa, os estudos beauvoirianos da
diferença sexual constituem uma elaboração crítica da descrição de corpos viventes (corps vécu -Leib), tal como se
encontra nas obras de Merleau-Ponty e de Husserl. Embora Beauvoir se sirva de uma metodologia fenomenológica,
especialmente em O Segundo sexo, seus escritos se voltam para as relações de gênero em corpos vividos diferente-
mente em situação histórica e em condições de possibilidade no mundo.
76 | O que torna uma vida realizada: homenagem aos 100 anos de Henrique Cláudio de Lima Vaz

de opressão feminina, reduzidas as mulheres a uma substância essencial-


mente outra dos paradigmas substanciais da história da masculinidade
ocidental 32.
Desta feita, se a sensação da vida não realizada é um dado forçado
culturalmente ao reducionismo da condição de imanência continuada, de
tarefas nunca valorizadas, de uma cognição infantilizada a que são reme-
tidas culturalmente as ações do feminino na cultura, como pensar nos
propósitos da realização humana, na esquadria normativa em que se inse-
rem as mulheres ao longo da história? Esta é uma das perguntas em que
se funda O Segundo sexo, obra escrita em 1949 por Simone de Beauvoir 33.
Se tanto a condição de essência se inviabiliza na leitura do humano
nos escritos beauvoirianos, quanto a noção dialética da imanência e trans-
cendência não ultrapassa os limites das próprias ações humanas; em seu
senso de finitude, não se pode almejar atribuir a uma entidade divina a
crença e a responsabilidade pelas decisões e falhas humanas. Jamais ousar
referendar o sentido humano fora de si próprio, não condicionar nos limi-
tes da finitude humana Verdade e Bem, Verdade e Absoluto, como modelos
de perfeição humana, por sermos seres ambíguos, dotados de corpo e es-
pírito, materialidade e idealidade.
Se as analogias nos deixam os rastros, ao pensar o sentido da cultura
ocidental, está-se também a transitar por diferentes versões sobre a rela-
ção entre ética e natureza, em vários momentos da filosofia ocidental. A
complexa relação entre hábitos e costumes e seu suposto espelhamento na
condição natural ou da physis, não encontrará registro na filosofia exis-
tencialista francesa, de Beauvoir e Sartre, a não ser sob uma roupagem
crítico-indagativa. Nada há de natural na forma como a existência consti-
tui-se a si mesma nos moldes das relações intersubjetivas, nas
constatações dos projetos e fracassos da aventura humana 34.

32
S. de Beauvoir, Le Deuxième sexe I. Paris: Gallimard, 1986, p.14-15.
33
S. de Beauvoir, Le Deuxième sexe I. Paris: Gallimard, 1986, p. 31.
34
S. de Beauvoir, Por uma Moral da Ambiguidade, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2005, p. 16.
Magda Guadalupe dos Santos | 77

4. Dos conflitos ao bios philosophikós

Segundo Vaz, nas sociedades contemporâneas, sob o impacto dos


conflitos entre sociedade civil, em sua esfera dos interesses privados, e so-
ciedade política, novas formas de razão e sua correspondência a novas
imagens do ser humano inauguram uma distinta imagem do indivíduo e
de teorias morais e políticas. Na era do fazer, em sua relação técnica, ser
humano e mundo se submetem a esta nova ordem da tecnologia 35. Tam-
bém para Beauvoir, constata-se a dimensão ambígua da humanidade, na
medida em que as “exigências da ação obrigam todos a se tratarem uns
aos outros como instrumentos ou obstáculos: como meios”, em plena era
da tecnocracia. Neste sentido, “quanto mais cresce o domínio humano so-
bre o mundo”, mais (todos os seres) se encontram “esmagados por forças
incontroláveis” 36. Tanto a grandeza dos feitos, quanto formas atrozes de
ultrajes da dimensão humana se dispõem na contemporaneidade. A ambi-
guidade humana se posiciona de forma bastante enfática no século XX,
momento em que se identificam liberdades engajadas, subjetividades que
se realizam apenas como presença no mundo, do ser- para si que é para
outrem 37.
Como ela escreve em Por uma moral da ambiguidade, em 1947,
tempo de revisão conceitual, de distintas bases axiológicas e de novos
valores interpretativos da realidade no cenário após a Segunda Grande
Guerra, constata-se ali como o indivíduo histórico é, ao mesmo tempo,
sujeito para si objeto para outrem 38. Esta é a trágica ambiguidade por
todos experimentada, ser de projeto histórico e de construções finitas.
Contudo, segundo Beauvoir, muito embora as experiências humanas
sejam evidentes no plano da existência, a filosofia tem mascarado esta
condição ambígua alimentando uma leitura ora somente idealista, ora

35
H. C. L. Vaz, Ética e Direito. Escritos de Filosofia II. 3. ed. São Paulo, Loyola, p. 160-161.
36
S. de Beauvoir, Por uma Moral da Ambiguidade, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2005, p.17.
37
S. de Beauvoir, Por uma Moral da Ambiguidade, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2005, p.15.
38
S. de Beauvoir, Por uma Moral da Ambiguidade, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2005, p. 13-14.
78 | O que torna uma vida realizada: homenagem aos 100 anos de Henrique Cláudio de Lima Vaz

somente materialista, ora propondo uma substância unitária. O paradoxo


da condição humana não pode mais ser camuflado no século XX, pois do
“conhecimento das condições autênticas de nossa vida que é preciso tirar
a força de viver e razões para agir” 39. Esta tese coaduna com o
entendimento de Vaz de que é “no espaço do ethos que o logos se torna
compreensão e expressão do ser da humanidade como exigência radical
de dever-ser ou do bem” 40, ou seja, pelo agir humano o perfil humano se
demonstra no espaço deontológico em busca de formas adequadas de ser
humano.
Não se pode ter em mente que as analogias entre aspectos da filosofia
ética de H. C. de Lima Vaz e aqueles de Simone de Beauvoir possam ser
tomados em bases epistemológicas idênticas. Não é esta a nossa posição,
muito embora sejam ambos leitores da tradição filosófica e os conceitos de
finitude e situação sejam construídos ao longo dos entendimentos concei-
tuais. Na especificidade hermenêutico-axiológica de cada um deles, Vaz
desenvolve os conceitos de uma ótica metafísico-antropológica, e Beauvoir
os utiliza como referência principiológica ao longo de seus escritos sobre a
existência humana. Competirá a ambos, de perspectivas específicas, reto-
mar princípios e conceitos nos moldes de uma prática filosófica. Em
ambos, a filosofia sempre se referendou como uma prática de vida ou
como pauta para ação.
Da perspectiva de H. C. de Lima Vaz, a vida filosófica (bios philoso-
phikós) se expressa na sua leitura pessoal e ética do mundo. A título de
ilustração, apenas para aclarar o modus operandi do nosso filósofo, ao re-
tomar a obra de Pierre Hadot 41 em forma de resenha crítica, Vaz ressalta
como a conversão filosófica em novo modo de vida era o centro de preo-
cupação dos Antigos. Tanto para Hadot, quanto para Vaz, o que se lia de
grandioso na filosofia da Antiguidade grega era a forma como discurso e

39
S. de Beauvoir. Por uma Moral da Ambiguidade, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2005, p.17.
40
H. C. L. Vaz. Fenomenologia do Ethos. Escritos de Filosofia II. 3. ed. São Paulo, Loyola, 2000, p.13.
41
H. C. L. Vaz. O que é Filosofia Antiga? Síntese, Nova Fase, V. 23, n.75, 1996, p. 549.
Magda Guadalupe dos Santos | 79

vida se tornavam “inseparáveis e irredutíveis um ao outro” 42, como num


processo dialético que se apresentava tanto nos exercícios espirituais,
quanto na prática contemplativa.
Esta era também a tese de vida de H. C. de Lima Vaz e o “círculo
hermenêutico” aqui se evidencia. Nos corredores e nas salas de aula da
velha FAFICH.UFMG, no final da década de 1970 e início de 1980, em que
tive a oportunidade de assistir a suas aulas, conferências e debates, a práxis
filosófica sempre sustentou a sua posição como verdadeiro philo-sophós,
amigo reiterado, sobretudo, do saber ético. Na especificidade de sua prá-
tica existencial, alinhada a uma vida dedicada à filosofia, tínhamos, como
estudantes, verdadeira veneração pelo mestre, não apenas em função de
seu conhecimento e de seus ensinamentos teóricos, mas, sobretudo, de sua
postura ética de vida. Em tempos de ditadura militar no país, ao invés de
um contexto de medos e temores, tínhamos diante de nós um saber vivo e
atuante enquanto compromisso exemplar de vida. Ao parafrasear Kant,
sua concepção e atividade de vida muito bem se iluminavam e Vaz escreve:
“a vida filosófica sem o discurso é cega; o discurso sem a vida filosófica é
vazio”! 43
Em Simone de Beauvoir, pode-se, sobretudo, verificar como se con-
figuram as teses existencialistas aplicadas aos feminismos como prática
pedagógica de vida, na forma como a cultura vai-se educando à luz dos
direitos reconhecidos a ambos os gêneros, em moldes de comprometi-
mento ou de engajamento ético-político. A tese que prevalece em O
Segundo sexo, de que as mulheres são o outro 44 da cultura, teve grande
impacto ético-pedagógico após a década de 1960, na interlocução de suas
ideias com os movimentos feministas dos EUA e posteriormente da Eu-
ropa e em todo o mundo ocidental. Em base dialógica suas ideias serviram
de esteio para a revisão da situação e das condições de possibilidade para

42
H. C. L. Vaz. O que é Filosofia Antiga? Síntese, Nova Fase, V. 23, n.75, 1996, p. 549-550.
43
H. C. L. Vaz. O que é Filosofia Antiga? Síntese, Nova Fase, V. 23, n.75, 1996, p. 550.
44
S. de Beauvoir, Le Deuxième sexe I. Paris: Gallimard, 1986, p. 15.
80 | O que torna uma vida realizada: homenagem aos 100 anos de Henrique Cláudio de Lima Vaz

o humano em sua roupagem feminina ao longo da história contemporâ-


nea.

À guisa de conclusão.

Ter sempre em mente que a finalidade do bem comum deve nortear


a relação entre costumes e natureza, tanto exterior quanto interior ao ser
humano, mais do que nunca, em pleno cenário de pandemia, deveria ser
o elemento normativo maior, que nos fará escapar tanto do capitalismo
exploratório, quando das injustiças sociais e de gênero que provocam a
sensação ou a confirmação de que o vírus é discriminatório. Contudo, este
vírus é também pedagógico, pois nos ensina a sobreviver nas expectativas
de que o mundo possa um dia ser, tal como idealizava H. C. de Lima Vaz,
a expressão do ethos como a transcrição da physis na peculiaridade da
ação humana 45. Na projeção de autonomia e liberdade, as ações humanas
se ressignificam na abertura para o outro e na recepção das diferenças,
assumindo, contudo, como imagem ou parâmetro normativo, a razão da
physis, o respeito ao que se tem como natural. Como um referencial não
distorcido pela cultura, mas assumido pelas bases axiológicas e lógicas de
sua evidência e importância, o natural será, pois, referendado pelo espaço
da liberdade das ações humanas. A physis, a natureza, torna-se espelho da
práxis humana, determinando-se na ordem da ação lógica e do viver-em-
comum. Nos costumes se reitera a prática incansável de remodelar um
perfil humano de exigências lógicas e éticas, como idealidade que acompa-
nha o desenvolvimento da filosofia no Ocidente. Reconhecer tais
propósitos como referencial dos motivos antropológicos na cultura é saber
traçar as linhas demarcatórias para que o sentido da vida possa ocorrer no
horizonte do dever-ser.
Se sustentamos ou não o senso deontológico no horizonte existencial,
esta é a grande questão que, à luz dos ensinamentos de Henrique Cláudio
de Lima Vaz, deveríamos sempre tentar responder na forma de vida que

45
H. C. L. Vaz. Fenomenologia do Ethos. Escritos de Filosofia II. 3. ed. São Paulo: Loyola, 2000, p.11.
Magda Guadalupe dos Santos | 81

idealizamos e nos comprometemos a construir culturalmente. Se somos


indivíduos existenciais, assumidos apenas nos limites da situação e da fi-
nitude da nossa subjetividade, como entende Simone de Beauvoir, ou se
nos pensamos em processo de uma contínua reconstrução espiritual de
nossos projetos e possibilidades deônticas, como entende Vaz, será, pois,
o tropos – o modo decisório que haverá de contar. Sobre o longo percurso
que teremos que desbravar em relação a nós mesmas e mesmos no seio
da coletividade e dos contextos atuais, visualizam-se nossas expectativas
de vida de construção da estrutura existencial do ethos histórico.

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Capítulo 5

Realização:
um desafio ético e político

João A. Mac Dowell

Introdução: A pré-compreensão da realização humana

O termo “realização” é hoje frequente em nossa linguagem cor-


rente. Ele assume um significado existencial. Todo mundo deseja ter uma
vida realizada, quer ser sempre mais. Não só. Sabe também que sua rea-
lização está intimamente conexa com seu contexto social. Sonha assim
com um mundo novo, um mundo melhor, no qual todos tenham condi-
ções de viver dignamente, de realizar a sua vida. Lima Vaz transforma,
porém, “realização” em termo técnico, numa categoria fundamental de
sua Antropologia Filosófica. Para tanto, parte justamente dessa experiên-
cia humana para a qual a palavra aponta. Vejamos.
A vida apresenta-se a nós como uma tarefa, fundamental, mas de
desfecho incerto: pode ser bem ou mal sucedida. Equivale a um empre-
endimento de risco, que tem seu atrativo, mas está sujeito a toda sorte de
vicissitudes. Constitui um verdadeiro desafio, desafio ético, em primeiro
lugar. Nem todos o percebem claramente. Mas é o que mostrará a análise
vaziana da categoria de realização. Desafio também político, para a nação
brasileira, para a humanidade: Como organizar a nossa convivência so-
cial na justiça e na paz?
Embora o saldo de cada vida se decida no espaço entre nascimento e
morte, o seu valor não corresponde evidentemente à sua maior ou menor
84 | O que torna uma vida realizada: homenagem aos 100 anos de Henrique Cláudio de Lima Vaz

extensão temporal. O que importa é o sentido dado à própria existência.


Ela pode desenvolver-se em diversas direções. Ainda que nem sempre de
modo constante e coerente e com frequência de maneira meramente im-
plícita, todo mundo persegue em sua vida algum objetivo último,
imanente ou transcendente, que orienta as suas atitudes e decisões: ri-
queza material, poder e prestígio social, prazer pelo prazer, família, pátria,
ciência, arte, honestidade moral, sabedoria, amor e serviço do próximo,
atitude religiosa, que pode, aliás, ser entendida de diferentes maneiras.
Sem dúvida, o nosso destino é condicionado por inúmeros fatores
que escapam mais ou menos ao nosso querer. Trata-se de elementos de
ordem natural, biológica, psicológica, social, cultural, econômica, política,
de tudo enfim já dado e posto como inelutável, em cada momento de nossa
existência. Somos conscientes, porém, de que depende de nós a maneira
como nos situamos ante as diversas circunstâncias em que nos encontra-
mos, quaisquer que sejam. Esta capacidade de escolha, a liberdade, pode
encontrar-se cerceada em maior ou menor grau. Resta, porém, sempre,
em quem dispõe ainda do uso da razão, do poder de posicionar-se, em
última instância, com aceitação ou revolta, empenho ou resignação, pe-
rante a vida.
É a alternativa radical entre ser ou não-ser, propriamente, o que
queremos ou podemos ser, que nos mantém em permanente busca e ten-
são a respeito do desfecho de nossa existência. Misto variável de atenção
cuidadosa e de preocupação ansiosa pela própria sorte, é esta tensão que
explica todas as conquistas, tanto do ponto de vista individual como cole-
tivo, na história da humanidade. É verdade que ela pode ser abafada na
medida em que, envolvidos por objetivos e preocupações imediatas, ol-
vidamos que o tempo de que dispomos para a realização de nossa vida,
além de limitado, é imprevisível quanto à sua duração. É possível, por-
tanto, deixar a vida correr sem mais, levado pelas circunstâncias, sem
assumir lucidamente a responsabilidade do próprio futuro, sem tomar por
si mesmo um rumo determinado.
João A. Mac Dowell | 85

Conforme a experiência humana mais universal, nem qualquer meta,


nem qualquer meio de alcançá-la, caracteriza uma realização autentica-
mente humana. Essa realização implica certos requisitos que lhe
conferem dignidade, plenitude e excelência, enquanto correspondem ao
sentido da vida humana, reconhecido como tal. A história da humanidade
oferece numerosos modelos de excelência propostos como paradigma
nas diversas culturas ou construídos por diferentes pensadores.
A realização pode ser considerada ou como processo de desenvolvi-
mento, movimento em busca de determinado fim, ou como este mesmo
alvo já atingido mais ou menos plenamente durante a vida de cada um.
Sob este aspecto, a realização humana corresponde àquilo que Aristóteles
chamou de eudaimonia, traduzido muitas vezes por “felicidade”. Mas o
significado que assume ordinariamente este termo na linguagem atual não
equivale ao da categoria aristotélica em questão. Este coincide antes com
a ideia de autorrealização, enquanto fim, perfeição, plenitude ideal, na sua
execução efetiva. Felicidade seria então uma consequência da realização, a
sua repercussão afetiva.

1. A realização da existência individual como atualização das


potencialidades da essência humana

A experiência humana que acabamos de descrever corresponde à


pré-compreensão daquilo que Lima Vaz analisa filosoficamente como ca-
tegoria da realização. Categoria na terminologia vaziana corresponde à
explicitação sistemática numa perspectiva dialética do sentido dos ele-
mentos constitutivos da experiência humana, como tal. Trata-se na sua
terminologia da passagem da natureza (N) à forma (F) pela mediação do
sujeito (S), segundo o esquema do processo fundamental de seu método
dialético (AF I p.163s). Ele parte da realidade como é dada na experiência
espontânea, mais ou menos explícita, dos fenômenos fundamentais da
existência (natureza), em vista da determinação de sua estrutura ontoló-
gica (forma) pela reflexão do sujeito.
86 | O que torna uma vida realizada: homenagem aos 100 anos de Henrique Cláudio de Lima Vaz

1.1 A essência humana na unidade dialética de seu ser-em-si e ser-


para-outro

A questão da realização é abordada já no final de sua Antropologia


Filosófica, depois de ter percorrido o caminho que o levou a explanar dia-
leticamente a essência do ser-humano nas duas dimensões básicas,
estrutural e relacional (AF II p.141-174). 1 Esta circunstância é fundamen-
tal, porque ela estabelece que o ser-humano possui uma essência, um
modo de ser determinado e comum a todos os que pertencem à espécie. E
é essa essência que orientará a sua realização.
O específico do ser-humano em relação a tudo mais que compartilha
com ele a realidade mundana consiste para Lima Vaz em primeiro lugar
na sua reflexividade (AF I p.206-207). Ele não é simplesmente ser-em-
si, enquanto substância com suas propriedades, algo simplesmente idên-
tico a si mesmo e como tal distinto de outros seres. Caracteriza-se
justamente como ser-para-si, capaz de voltar-se sobre si mesmo e reco-
nhecer-se na sua originalidade e na sua distinção de tudo mais. Constitui
assim um “eu”, um sujeito, consciente de sua identidade (idem) em virtude
de sua ipseidade (ipse), ou seja, de sua reflexão sobre si mesmo (AF II
p.142-143). Entretanto, ao contrário do que se pode conceber como um
puro espírito, na absoluta transparência de seu ser, a reflexividade hu-
mana, enquanto própria de um espírito no mundo, só se constitui como
tal, enquanto expressividade, ou seja, à medida que o sujeito se expressa
a si mesmo através de seus atos, que o relacionam com o distinto de si
mesmo (AF I p.163-164). O ser do homem apresenta-se assim, ao mesmo
tempo, como ser-em-si e ser-para-outro (AF I p.161-162). Enquanto em-

1
A referência às obras de Lima Vaz constará no próprio texto através da sigla da obra respectiva mas a(s) página(s)
correspondentes. VAZ, Henrique C. L. Antropologia Filosófica I. Coleção Filosofia. São Paulo: Edições Loyola, 1991
(AF I). IDEM. Antropologia Filosófica II. Coleção Filosofia. São Paulo: Edições Loyola, 1992 (AF II). IDEM. Escritos de
Filosofia II. Ética e Cultura. Coleção Filosofia. São Paulo. Edições Loyola, 1988 (EF II). IDEM. Escritos de Filosofia III.
Filosofia e Cultura. Coleção Filosofia. São Paulo. Edições Loyola, 1997 (EF III). IDEM. Escritos de Filosofia V. Intro-
dução à Ética Filosófica 2. Coleção Filosofia. São Paulo. Edições Loyola, 2000 (EF V).
João A. Mac Dowell | 87

si, na sua unidade substancial, ele consiste na integração de três elemen-


tos, que representam três graus de participação na plenitude do ser: corpo
próprio, psiquismo, espírito. Eles se integram numa estrutura complexa
pela referência reflexa ao mesmo sujeito, que medeia dialeticamente as
suas interações. Por outro lado, enquanto se percebe como distinto de ou-
tros seres, um entre muitos, o homem não só experimenta a sua finitude,
“mas defronta-se constitutivamente com a multiplicidade dos seres orga-
nizada na forma de um mundo” (AF II p.141). Como tal ele se constitui
como ser em situação, relativo a outros na alteridade de uma tríplice re-
lação: relação de objetividade, enquanto ser-no-mundo, de
intersubjetividade, enquanto ser-com-o-outro, de transcendência, en-
quanto ser-para-o-Absoluto. Elas correspondem respectivamente às três
dimensões estruturais: relação de objetividade à dimensão corporal, de in-
tersubjetividade à dimensão psíquica, de transcendência, à dimensão
espiritual (AF II p.142).

1.2 Realização como unificação dialética das dimensões constitutivas


da essência humana

Foi necessária esta referência extremamente sintética à compreensão


da essência do ser-humano segundo Lima Vaz, para evidenciar como ele
situa a categoria da realização humana no contexto de sua Antropologia
Filosófica. Ele a interpreta sob dois aspectos básicos, como unidade e
como perfeição, correspondentes ao processo de aperfeiçoamento ou
crescimento na realização de seu ser, que é alcançado pela unificação,
enquanto articulação dialética das várias dimensões constitutivas de sua
essência. Esta é a tarefa que compete a cada indivíduo humano em virtude
de seu próprio modo de ser, como foi descrito. A sua estrutura constitu-
tiva é sem dúvida unitária pela suprassunção das dimensões corporal e
psíquica no espírito, que lhes comunica seu sentido propriamente hu-
mano. Como conciliar, porém, esta unidade estrutural com a alteridade
proveniente da relação com o múltiplo? Ao voltar-se para uma pluralidade
88 | O que torna uma vida realizada: homenagem aos 100 anos de Henrique Cláudio de Lima Vaz

de objetos e de certo modo identificar-se com eles pelos atos intencionais


de conhecimento, desejo e outras formas de envolvimento com o ente in-
tramundano e com o outro humano, não corre o sujeito o risco de
desintegrar-se? (AF II p.143). Não deixa de ser ele mesmo na busca cons-
tante de ser-outro?
Segundo Lima Vaz, é o para-si do sujeito que assegura a sua unidade
face ao em-si dos diferentes objetos que ele visa intencionalmente, seja
quanto ao corpo próprio ante o risco de dispersão no espaço do mundo,
seja quanto ao psiquismo superando a fragmentação do mundo interior
no tempo, seja sobretudo quanto ao espírito que se espraia no universo
das significações. “A categoria de realização – continua ele – deve mostrar
exatamente os caminhos através dos quais a unidade estrutural do homem
se cumpre efetivamente nas formas de relação com que ele se abre às gran-
des regiões do ser que circunscrevem o lugar ontológico da sua situação e
finitude” (AF II p.144), ou seja, Mundo, História, Transcendência.
A realização consiste, portanto, na efetivação, no plano da existên-
cia, da unidade essencial do ser humano. Corresponde ao dito antigo:
“Torna-te o que és” (AF II 146, 163-164). Trata-se de um devir, cuja con-
sumação constitui um conceito-limite, enquanto síntese jamais
plenamente alcançada entre estrutura e relações, mesmo e outro, essência
e existência (AF II p.144, 164). Com efeito, é enquanto existente que o ho-
mem realiza a sua essência. Existir como realizar-se, é, portanto, ação,
transformação, passagem do poder-ser ao ser. Existência não significa
aqui o fato de estar aí presente no seio do universo, no âmbito da realidade,
como algo estático, ao lado de outros seres. Ela é o próprio viver enquanto
história. É um processo dinâmico, que acontece no tempo de cada um
através da sucessão de seus atos. Ato no significado original de enérgeia
implica perfeição, ou seja, a expressão das potencialidades essenciais de
uma substância, no caso do sujeito humano, ao completar o seu movi-
mento de vir-à-existência (AF II p.145). À medida que se adeque à
totalidade de sua estrutura, cada ato representa um passo na efetivação
João A. Mac Dowell | 89

existencial da unidade do sujeito na linha de seu aperfeiçoamento e re-


alização.

1.3 Realização como perfeição do indivíduo que atinge o fim


transcendente de sua essência

Qual seria, porém, esta linha do aperfeiçoamento humano? Como já


se mencionou, o ser-humano descobre em si mesmo um impulso irresis-
tível a ser, a ser-mais, inclusive na duração da vida, concebendo algum
tipo de existência pós-mortal. Mais ainda, ele compreende essa meta de
sua existência, que o atrai para sempre mais, não como algo simples-
mente empírico, mas como um valor, que os gregos denominaram areté,
O termo traduzido impropriamente por virtude, significa na verdade a ex-
celência, o esplendor, do modo de ser e agir plenamente humano (AF II
p.166). Por outro lado, nas mais variadas culturas nota-se a crença em uma
realidade superior, misteriosa, sagrada, da qual depende de algum modo
a origem e o destino do mundo humano.
Deve-se ao gênio de Platão, sublinha Lima Vaz, a primeira interpre-
tação filosófica sistemática dessas experiências fundamentais, pensamento
que marcou profundamente toda a civilização ocidental (AF II p.149-151).
Ele traçou com admirável perspicuidade a via ascensional que leva o es-
pírito pela contemplação (theoria) da verdade desde os objetos de nossa
experiência empírica até a ideia suprema de Bem, fonte transcendente
de toda a realidade intramundana. Revela assim que o ser-humano se abre
constitutivamente para um horizonte transcendente, para além do
mundo sensível (meta-físico), que fundamenta toda a sua existência. Em
função desta descoberta, ele afirma que o mais, a excelência, que todos
buscam ou devem buscar consiste justamente na adesão crescente a este
bem supremo que se torna a medida de toda ação consciente e livre. Su-
posta a relação de transcendência como constitutiva da essência humana,
enquanto suprassumida na dimensão do espírito, o sujeito humano cresce,
tanto quanto seus atos de conhecer e querer se conformam com a medida
90 | O que torna uma vida realizada: homenagem aos 100 anos de Henrique Cláudio de Lima Vaz

da verdade, a norma do bem e a exigência do absoluto (AF II p.147).


Nisto consiste a verdadeira sabedoria (sophia), cultivada pelo filósofo,
que, por esse motivo, se credencia a governar a cidade (pólis), promo-
vendo o desenvolvimento dos cidadãos (paideia/educação) em direção à
vida plena (eudaimonia).

2. O caráter ético da realização humana

No entanto, segundo Lima Vaz, a compreensão platônica da reali-


zação humana, de base metafísica, deve ser completada pela reflexão
ética de Aristóteles (AF II p.151-153). Para este, o caminho da vida hu-
mana deve sim ser traçado pela razão, à luz da ideia do bem, mas não
num plano meramente ideal, antes no aqui e agora das circunstâncias em
que ela ocorre efetivamente.

2.1 Realização como adesão ao bem como tal na particularidade das


situações humanas

Com efeito, o itinerário de realização na busca da sabedoria não se-


gue uma via expressa, livre de qualquer contingência. Percorre, ao invés,
um caminho repleto de encruzilhadas, desvios e oportunidades, que carac-
terizam a complexidade e riqueza da situação humana nas suas múltiplas
dimensões não só naturais, mas históricas, culturais e sociais. É nesse con-
texto variegado que o indivíduo inscreve o seu perfil singular (AF II p.148).
A universalidade da essência humana não traz consigo nenhuma unifor-
midade na realização da vida. Pelo contrário, a abertura ao horizonte
ilimitado do ser oferece inúmeras possibilidades de sentido e de con-
cretização mais ou menos válida do projeto de cada um. Tendo em vista,
as três relações fundamentais constitutivas da essência humana, a obje-
tividade voltada para o mundo, a intersubjetividade construtora da
história e a transcendência orientada para o absoluto no horizonte univer-
sal do ser, podem detectar-se três espécies fundamentais de atividades
João A. Mac Dowell | 91

às quais correspondem outros tantos modos de conhecer (AF II 151-152).


Trata-se, em primeiro lugar, do fazer (póiesis), enquanto transformação
da realidade natural, do mundo, em função de interesses humanos medi-
ante um saber fazer (techné). Em seguida, temos o agir (práxis), um
aspecto próprio de toda atividade humana, consciente e livre, enquanto se
inscreve no plano social ou intersubjetivo. 2 O saber que orienta a práxis é
a sabedoria prática (phrónesis), que permite ao indivíduo discernir o
bem e o melhor na situação histórica concreta. Finalmente, vem o âm-
bito fundamental do conhecimento da verdade (theoria), ao qual
compete simplesmente o saber que é algo (nóesis), sua essência e a uni-
dade ordenada do seu todo (sophia), em função da relação de
transcendência para o ser.
O âmbito da atividade técnica abrange as múltiplas modalidades de
intervenção na natureza para conformá-la, desde a pedra polida e a agri-
cultura até os mais sofisticados produtos tecnológicos. A esse âmbito
pertence também, segundo Lima Vaz, a própria ciência moderna, en-
quanto de natureza hipotético-dedutiva, obra humana, como já a arte para
os antigos. Mas a qualificação técnica de uma obra, segundo padrões es-
tabelecidos, ainda que revele o valor do autor e o realize mais ou menos
sob tais aspectos, não se situa no nível da perfeição humana propriamente
dita.

2.2 A vida ética como práxis medida pela ideia de bem

Esta só tem lugar no âmbito da transcendência, próprio da theoria,


que tem como padrão o próprio ser, como horizonte universal que abre o
homem na sua finitude ao real no seu todo infinito. Ele faz a experiência
da transcendência, segundo Lima Vaz, sob três modalidades fundamen-
tais. Trata-se da experiência da verdade, que deu origem à metafísica, a
experiência do bem, sistematizada na ciência ética, e a experiência do ab-
soluto, elaborada pela teologia como ciência do divino (AF II p.102). A

2
O agir/práxis é fundamentalmente social, enquanto normado pelo ethos, como se verá mais adiante.
92 | O que torna uma vida realizada: homenagem aos 100 anos de Henrique Cláudio de Lima Vaz

experiência transcendental do bem remete ao caráter positivo, por assim


dizer, atrativo, desejável, inerente ao próprio ser, que corresponde à ten-
dência constitutiva do ser-humano, enquanto vontade, para ser, ser-mais.
Destarte, o ser como bem apresenta-se em primeiro lugar como fim, alvo
necessário do dinamismo da vontade. É esta orientação para o bem como
tal que fundamenta o livre arbítrio, a capacidade de escolher entre bens
particulares. Mas justamente enquanto fim verdadeiro, o ser como bem
constitui-se também norma ou medida (métron) dos atos livres que con-
duzem até ele. Institui-se assim um dever-ser derivado da intuição
teorética da ideia de bem. É à sua luz que o indivíduo discerne pela phróne-
sis o que aqui e agora é bom e melhor para ele segundo a sua constituição
essencial. Entretanto, esta obrigação, como norma da razão, não necessi-
dade natural, longe de anular a liberdade, a pressupõe, porque só,
enquanto livre, seu agir é verdadeiramente humano. De fato, no seu livre
arbítrio, o sujeito pode assumir ou rejeitar o bem que se lhe impõe, como
norma. Com estas considerações já nos encontramos em pleno terreno da
práxis. Ela não representa outro tipo de atividade, ao lado do fazer (póie-
sis) e do conhecer (theoria). Trata-se antes de um aspecto de toda ação,
enquanto consciente e livre, especificamente humana. Corresponde,
como se viu, à dimensão ética da existência. Refere-se à integração do
agir no movimento de unificação e aperfeiçoamento da própria essên-
cia, ou seja, na consecução de seu próprio fim, sua realização. Assim como
o conhecimento intelectual pode ser verdadeiro ou falso conforme cor-
responda ou não àquilo que é, todo ato voluntário é bom ou mau
conforme corresponda ou não àquilo que deve ser, ao bem manifestado
pela razão (lógos) na consciência (reta). Este bem da ação, de caráter mo-
ral, situa-se na ordem dos meios da realização humana, que conduzem
a tal fim, o bem, enquanto transcendental. Entretanto, as ações humanas,
enquanto morais, não consistem em meios relacionados de maneira me-
ramente extrínseca com o fim último. Configuram antes um crescimento
orgânico. Com cada ato de virtude o agente torna-se mais virtuoso, mais
João A. Mac Dowell | 93

próximo da perfeição da virtude e, assim, de sua realização no bem (AF II


p.155s).
Surge aqui a necessidade de esclarecer a interação entre práxis e the-
oria, enquanto relação transcendental com o ser como bem. A realização
do indivíduo ao longo da existência consiste numa sucessão de atos que
levam progressivamente à atualização da essência humana pela unifica-
ção de suas diversas dimensões. Como tal, ela é uma atividade prática,
correspondente à ética como ciência. Todavia, enquanto é comandada pela
ideia de bem funda-se numa atividade teorética, no âmbito da metafí-
sica. Com efeito, como explica Lima Vaz: No “que diz respeito ao dever-
ser do agir, a experiência do Bem requer um fundamento absoluto que não
pode ser encontrado no âmbito do próprio agir e do seu mundo, submeti-
dos que são a uma essencial contingência” (AF II p.107). Trata-se de um
bem não mais medido simplesmente pelas exigências de nosso agir, mas
identificado com o próprio ser, como tal, na sua positividade. Verifica-se
assim a passagem do categorial da ação humana, enquanto ética, ao
transcendental de seu fundamento metafísico.

2.3 O bem enquanto particularizado no ethos de cada cultura

Dito isto, abordamos finalmente uma última característica da reali-


zação humana, conforme pensada por Lima Vaz. Ao longo da história se
sucedem inúmeros modelos de realização humana. A pluralidade de tais
modelos “mostra, de um lado, o enraizamento da imagem do homem ideal
no solo histórico onde o homem concreto, como ser-em-situação encontra
seu mundo natural e constrói seu mundo cultural” (AF II p.170). Manifesta,
por outro, “o excesso ontológico, pelo qual, ser finito e situado, o homem
transgride os limites de sua situação e da sua finitude projetando intenci-
onalmente no horizonte ilimitado do ser sempre novos modelos ou tipos
ideais do ser-homem (AF II p.170s). É importante notar aqui a oposição
entre o perfil finito e situado dos modelos que se oferecem como alvo
de auto-realização nas diversas épocas e culturas e o caráter ideal do
94 | O que torna uma vida realizada: homenagem aos 100 anos de Henrique Cláudio de Lima Vaz

mesmo modelo, que, enquanto traçado no horizonte transcendente do


ser, dele recebe a normatividade com a qual se impõe ao indivíduo com a
exigência do dever-ser (AF II p.171). Na verdade, o modelo é sempre duplo.
De um lado, consiste na própria essência humana, enquanto se exprime
nas categorias de estrutura e relação; de outro, equivale a essa mesma re-
alidade, enquanto percebida e projetada pelo homem a partir da
situação concreta, relativizada pelos fatores naturais e histórico-culturais,
que circunscrevem o lugar de seu ser-no-mundo. Ora, conforme Lima Vaz,
é sob este segundo aspecto, enquanto diferenciado nas diversas culturas
e sempre aquém da riqueza ontológica, à qual o ser humano se sente cha-
mado, que o modelo se torna um ideal historicamente efetivo e impõe
seu dever-ser à existência humana (EF V p.218-226). A essência, como
tal, enquanto aberta à plenitude do ser, não pode ser plenamente temati-
zada. Atua, por assim dizer, apenas de maneira negativa e implícita,
enquanto, ao impulsionar para sempre mais, leva a questionar a perfeição
e racionalidade dos modelos alcançados em cada momento, proporcio-
nando o aprofundamento da compreensão da dignidade humana (AF
II p.172-174).
Tais modelos de caráter histórico-cultural, que pretendem corres-
ponder, em cada sociedade, ao ideal da realização humana, constituem o
que os gregos chamaram de ethos. Trata-se dos costumes, de caráter nor-
mativo, aceitos como válidos, enquanto regulam as ações dos membros da
comunidade e conformam o seu perfil humano, promovendo a perfeição
de cada um e a harmonia entre todos. Neste sentido, a realização do indi-
víduo consiste na vivência do ethos vigente na sua comunidade. Lima
Vaz tende assim a um comunitarismo, intrinsecamente matizado, porém,
por sua fundamentação no absoluto do bem. Trata-se, sem dúvida, de uma
realização relativa, seja porque o indivíduo não é capaz de viver perfeita-
mente o ideal proposto, seja porque esse mesmo ideal situado
historicamente não representa a plenitude de verdade e de bem para a
qual tende o ser-humano na sua abertura para o ser. Neste sentido, a rea-
lização humana, enquanto ética, situa-se no plano da práxis, quanto a seu
João A. Mac Dowell | 95

processo e a sua finalização histórica, mas no plano da theoria, quanto


a seu fundamento, já que baseada na intuição da ideia de bem, como
norma e fim. O fato de tal realização residir formalmente no plano ético,
não anula, porém, o valor intrínseco das conquistas humanas nas dimen-
sões de sua operosidade criativa (póiesis) e de sua penetração
compreensiva no mistério do ser (theoria).

3. A realização da existência coletiva pela lei fundada no livre


consenso legitimado pela razão

Ético será também, para Lima Vaz, o fulcro da realização não já do


indivíduo, mas das comunidades humanas enquanto políticas. A socie-
dade política, segundo ele, surge do intento de desvincular da força, que
resvala facilmente na violência, o exercício do poder, implícito no pacto
social que reúne os indivíduos em grupos estáveis. (EF II p.136s). Assim
como a práxis individual autenticamente humana é regida pela razão ine-
rente à liberdade, assim também o existir e agir em comum tornam-se
humanos na medida em que se fundam no livre consenso legitimado pela
razão.

3.1 O indivíduo na universalidade racional de sua existência política

Esta legitimação é dada pela lei que regula de maneira justa os di-
reitos e deveres dos membros da comunidade entre si e em relação ao
todo social. Esta regulamentação normativa que constitui a forma da so-
ciedade política corresponde à ideia de ser-humano implícita na
consciência social, i. e. no ethos, do corpo político. (EF II p.138) Ela exige,
continua Lima Vaz, a definição de “uma ideia de direito, segundo a qual o
indivíduo, como membro da comunidade política, passa a ser pensado não
na particularidade empírica de sua existência natural, mas na universali-
dade racional de sua existência política, como sujeito livre de direitos e
deveres.” (EF II p.139)
96 | O que torna uma vida realizada: homenagem aos 100 anos de Henrique Cláudio de Lima Vaz

Não pode ser, porém, na particularidade do seu ser físico ou do seu


ser biológico, como centro de referência para a satisfação de suas necessi-
dades imediatas, “que o homem se abre ao movimento de passagem à
universalidade da existência política” (EF II p.142). Trata-se necessaria-
mente da forma de particularidade que acarreta por si mesma a sua
negação como particularidade. Tal é o “terreno do lógos como espaço de
comunicação, como estrutura de interpretação e expressão” (EF II p.142).
É nele que o indivíduo como particularidade se eleva à universalidade e ao
questionamento sobre o bem e o mal, o justo e injusto (EF II p.143). Ins-
taura-se assim a dialética constitutiva da existência política a partir de
dois polos: de um lado, o indivíduo natural dotado de lógos na particu-
laridade da existência histórica e, de outro, a universalidade objetiva
do lógos como lei e direito. É a negação dialética da particularidade do
indivíduo na sua situação natural através do movimento universalizante
do lógos que implementa a sua singularidade como universal concreto,
capaz de tornar-se sujeito de valores e de articular-se com seus seme-
lhantes na forma da vida política (EF II p.143). Realizar efetivamente essa
síntese que eleva o indivíduo à condição de cidadão, animal político (zôon
politikón), enquanto socializado, não no círculo fechado das sociedades
gregárias, mas no espaço livre da existência política, é a tarefa, eminente-
mente pedagógica, que cabe às sociedades políticas (EF II p.144s).

3.2 Universalidade nomotética e hipotética

Ora, de tudo o que foi dito, podemos concluir que o potencial huma-
nizante de determinada sociedade política “reside no nível de
universalização que o Direito nela vigente permite ao indivíduo particular
alcançar” (EF II p.146). Lima Vaz identifica na história do Ocidente duas
formas de universalidade, correspondentes a outras tantas antropolo-
gias políticas. Ele as designa como universalidade nomotética e
universalidade hipotética. A primeira, própria das teorias clássicas do Di-
reito natural, é aquela que tem como fundamento uma ordem do mundo,
João A. Mac Dowell | 97

contemplada pela razão teorética, que se reflete na lei (nómos) da cidade


como forma de vida dos membros da comunidade política (EF II p.146).
Neste caso, a política mantém uma íntima relação com a ética. “A univer-
salidade hipotética, ao invés, pressuposto epistemológico das teorias
modernas do direito natural, é aquela cujo fundamento permanece oculto
e requer uma explicação a título de hipótese inicial não verificada empiri-
camente e que deve ser confirmada definitivamente por suas
consequências” (EF II p.146s). A diferença entre as duas concepções resulta
do emprego na fundamentação da universalidade do direito do novo
conceito de natureza e dos procedimentos metodológicos próprios da ci-
ência moderna, que se tornou a forma dominante de racionalidade,
substituindo a razão teleológica pela instrumental. A relação técnica
com a natureza estende-se à organização sociopolítica, tendo em vista a
satisfação das necessidades psicobiológicas do indivíduo. A incapaci-
dade de satisfazê-las gera a lógica do “mau infinito”, na terminologia de
Hegel, o infinito “em potência” do desejo jamais satisfeito, que submete a
liberdade à necessidade, a fins fora dela mesma (EF II p.176s). Ora, a liber-
dade é fim em si mesma, enquanto se autofinaliza no consentimento ao
bem, sendo, essencialmente, liberdade ética. A liberdade política, por
sua vez, a pressupõe, não constituindo senão “a expressão socialmente
mais elevada da liberdade ética” (EF II p.177).
Nesse sentido o problema central da reflexão ética e jurídica
contemporânea permanece a universalização efetiva das normas éticas
e jurídicas, superando o bloqueio do movimento dialético pelo qual o
homem se eleva de sua particularidade à singularidade concreta, ou seja,
à universalidade efetiva de seu ser ético e político (EF II p.176). Hegel teve
o mérito, segundo Lima Vaz, de reconhecer que a natureza da relação
indivíduo-sociedade própria do modelo de universalidade hipotética não
oferece um suporte conceptual adequado à relação entre ética e direito, de
modo a integrar a universalidade subjetiva da pessoa como liberdade na
universalidade objetiva do direito como lei. Ele vê no pensador alemão
uma tentativa grandiosa, mas afinal insatisfatória, de restaurar a
98 | O que torna uma vida realizada: homenagem aos 100 anos de Henrique Cláudio de Lima Vaz

universalidade nomotética, deslocando o seu fundamento conceptual da


natureza para a história, da ordem eterna da physis ou da criação divina
para o conceito de Estado (EF II p.171)

Conclusão: O desafio ético e político contemporâneo

Esse é o grande desafio ético e político do mundo atual, no qual o


“niilismo ético sob as formas mais diversas” difunde-se “no campo inteiro
das ideias e das práticas sociais” (EF II p.179). De fato, mesmo os recentes
estudos sobre o reconhecimento, segundo ele, enquanto partem do pos-
tulado da autonomia do indivíduo, de sua prioridade lógica e axiológica
sobre o existir comunitário, suprimindo a categoria lógico-ontológica de
natureza humana, são incapazes de assegurar as razões do reconheci-
mento e, portanto, de fundamentar a comunidade ética (EF II p.175). 3
Estritamente falando, o problema não consiste apenas na estruturação de
um ethos comum para a sociedade globalizada. Sem dúvida, a expansão
da cultura moderna ocidental na sua fase avançada ou pós-moderna im-
plica o confronto com as culturas tradicionais vigentes em diversas
regiões do globo. O mundo, globalizado já do ponto de vista da razão téc-
nica, não pode alcançar uma convivência pacífica na justiça e no
reconhecimento das diversidades, sem a constituição de uma comunidade
ética, a partir de valores, direitos e deveres, assumidos por todas as cultu-
ras.
O desafio é, porém, ainda mais radical. A absolutização do
indivíduo, dos seus gostos e interesses, gerada pela cultura moderna e
característica da mentalidade atual, equivale à negação de qualquer
ethos. A noção de ethos, desenvolvida por Lima Vaz, conforme se viu,
corresponde aos costumes e normas universais em cada cultura, como
explicitação mais ou menos racional do bem na particularidade das
situações históricas. Ora, a autonomia individual absoluta exclui

3
Lima Vaz cita neste contexto a teoria da justiça de John Rawls (p.175) e a razão comunicativa de Apel e Habermas
(p.176). É importante ter presente que o livro (1988) refunde neste capítulo um artigo publicado em 1977 (cf. p.8).
João A. Mac Dowell | 99

qualquer normatividade, critério, padrão ético, modelo de humanidade,


deixando o agir inteiramente ao arbítrio de cada um. Certamente, no
plano individual, é possível viver eticamente, na contramão da cultura
dominante, adotando o ethos ou a “forma de vida” tradicional de
determinado grupo, religioso ou não, no interior da sociedade global. No
plano coletivo da vida política de uma sociedade a vigência de um ethos
comum é, porém, indispensável para que a lei e o direito
institucionalizados não se tornem letra morta, mas configurem
efetivamente a convivência social.
Ante tal situação, a única solução que Lima Vaz entrevê será

retomar o pensamento de uma ordem própria da liberdade como ordo amoris


(...), ordem na qual a primazia absoluta e o princípio ordenador são atribuídos
ao livre reconhecimento do outro, ao consenso em torno do melhor ou do mais
justo, à virtude, enfim, como télos imanente da liberdade. (EF III p.179s).

Ele não chega a elaborar expressamente esta proposta. Tem claro,


porém, na linha de toda a sua concepção da realização humana, que o fun-
damental é superar a mera contraposição indivíduo-sociedade,
compreendendo esta relação a partir de um princípio absoluto e trans-
cendente. Ainda que este princípio não transpareça diretamente no
horizonte mental do homem hodierno, enquanto secularizado, ele pode
ser experimentado de algum modo em toda forma de reconhecimento do
outro como alter ego, especialmente na entrega total de si mesmo no
amor oblativo. De fato, embora irredutível à imanência do sujeito, o Outro
transcendente, divino, torna-se próximo, enquanto se faz presente no ca-
ráter absoluto da relação de reconhecimento. Nessa atitude de respeito
absoluto pelo outro na doação gratuita consiste, na situação atual, a pos-
sibilidade da realização do ser-humano, no plano pessoal, tornando-se,
assim, imagem do Deus, que é amor (EF III p.151). E é na medida dessa
conversão pessoal de seus membros, em vista do bem comum, que a
comunidade política poderá instituir-se como reflexo da comunhão in-
tertrinitária na justiça e na solidariedade.
Capítulo 6

Realização e Razão Prática

Cláudia Maria Rocha de Oliveira


Edvaldo Antônio de Melo

Para Henrique Cláudio de Lima Vaz, a categoria de realização é uma


categoria capaz de exprimir o processo de unificação da própria vida. O
ser humano é, constitutivamente, ser de estrutura e ser de relações, isto é,
ele é ser-em-si (esse in se) e ser-para-outro (esse ad alium vel aliud). A
estrutura torna possível afirmar o homem como ser subsistente, isto é, a
partir de uma identidade fundamental. A categoria de relação permite pen-
sar o homem como ser finito e situado. Como ser-no-mundo, o ser
humano é, necessariamente, ser-com-os-outros e ser-para-a-transcen-
dência. Somos, portanto, constituídos intrinsecamente, ou melhor,
ontologicamente, a partir de uma dialética entre ipseidade e alteridade 1. A
categoria de realização exprimirá, então, justamente, o processo de unifi-
cação no ser humano das “formas da sua autoexpressão como ipseidade
(ad seipsum) e como alteridade (ad alterum)” 2. Com outras palavras: “a
categoria de realização deve mostrar exatamente os caminhos através dos
quais a unidade estrutural do homem se cumpre efetivamente nas formas
de relação com que ele se abre às grandes regiões do ser que circunscre-
vem o lugar ontológico da sua situação e da sua finitude” 3.
A categoria de realização exprime, portanto, o processo de unificação
da própria vida. Trata-se de um “processo” a partir do qual o sujeito

1
C.M.R. de OLIVEIRA, 2013, p. 164.
2
H.C. de LIMA VAZ, Antropologia Filosófica II, p.144.
3
H.C. de LIMA VAZ, Antropologia Filosófica II, p.144.
Cláudia Maria Rocha de Oliveira; Edvaldo Antônio de Melo | 101

estabelece progressivamente a unidade entre o que ele “é estruturalmente”


e o que ele “é relacionalmente”. Ora, esse processo se constitui ao longo de
toda a vida e se dá através da mediação de atos propriamente humanos.
Estes atos, Lima Vaz denomina como “atos da pessoa”, ou ainda, “atos
pessoais”. Ao compreender o ato como “perfeição”, Lima Vaz pensa a
realização como um processo através do qual “o torna-te o que és” se
apresenta como critério orientador da ação. Aquilo que somos
ontologicamente, precisamos realizar existencialmente. Através de atos
propriamente humanos podemos, portanto, realizar o que somos. A
realização da própria vida se apresenta a nós, então, como um processo
contínuo que se caracteriza como “desafio permanente” e “tarefa nunca
acabada” 4.
Diante dessa tarefa há sempre o risco de nos perder e não conseguir
nos realizar. A esse respeito, Lima Vaz afirma não haver “frustração maior
e mais penosa para o homem do que aquela que nasce da sensação de uma
vida não realizada, da dispersão e da perda do tempo da vida que não foi
recuperado pela linha harmoniosa de um crescimento sempre mais unifi-
cante” 5. Diante da “grande aventura de viver” 6, o desafio da
autorrealização pode se apresentar a partir de várias formas, mas todas
elas estão relacionadas à exigência de uma progressiva unificação da pró-
pria vida através de atos pessoais. Portanto, ser ou não-ser apresenta-se
como um desafio que é colocado diante de cada um de nós. O processo de
unificação da própria vida é aquele no qual o ser humano, ao optar por ser
mais, confere através de atos pessoais sentido ao próprio existir.
Ora, um dos atos pessoais por excelência é o ato ético. Em consequên-
cia, a realização se constitui também como desafio ético. O ser humano
unifica a própria vida à medida que é capaz de agir bem, de agir orientado
pela razão prática. Com o objetivo de explicitar a noção de realização a

4
H.C. de LIMA VAZ, Antropologia Filosófica II, p.146.
5
H.C. de LIMA VAZ, Antropologia Filosófica II, p.146.
6
H.C. de LIMA VAZ, Antropologia Filosófica II, p.147.
102 | O que torna uma vida realizada: homenagem aos 100 anos de Henrique Cláudio de Lima Vaz

partir do ponto de vista ético, neste capítulo, procuremos então compre-


ender melhor o que Lima Vaz entende por razão prática 7.

1. A dimensão subjetiva da razão prática

1.1 A razão ordenada à ação (práxis)

Para Aristóteles, a noção de fim e, portanto, de bem deve ser pensada


em termos analógicos. Cada realidade possui um fim específico que cor-
responde ao cumprimento de uma “função” (ergon) própria 8. Tomás de
Aquino, em seu comentário a esta passagem da Ética a Nicômaco, afirma:
“o fim não é outro senão aquilo em vista do qual se fazem [todas] as outras
coisas. [...] tal fim será, sem dúvida o bem realizado”. E continua: “Este
único fim último do homem vem a ser chamado o bem humano, e é a
felicidade” 9.
Ora, se o cumprimento de uma tal “função” (ergon) implica no bem
realizado, do mesmo modo pode-se interpretar que, no que diz respeito à
realização humana, tal fim identifica-se com a felicidade. Sob o viés da fe-
licidade, portanto, é preciso também entender que, no mundo grego, o
ideal da razão “subjetiva” que deseja a felicidade, não se configura como o
ideal da razão “pura”, a saber, de uma ética deontológica a modo moderno
kantiano. Conforme interpreta Mario Vegetti, em seu estudo L’ética degli
antichi 10, no pensamento antigo – originário do pensamento socrático – a
felicidade (eudaimonia) surge no âmbito da ética teleológica indicando o
fim desejável. No caso específico do pensamento aristotélico, a felicidade
consiste na “vida ativa da razão” 11 que se desenvolve com base a uma fun-
ção específica (ergon). Em se tratando do ser humano, tal função não

7
Para tal, revisitaremos, em linhas gerais, a Ética a Nicômaco de Aristóteles, bem como passagens de Tomás de
Aquino em seu Commento all’Etica nicomachea di Aristotele, volumes 1 e 2 da edição em italiano, Bologna: Studio
Domenicano, 1998. A tradução para os referidos textos será nossa.
8
ARISTOTELES, EN I, 7, 1097b 23-30.
9
T. AQUINO, Commento all’etica nicomachea di Aristotele, vol.1, p.96-97.
10
M. VEGETTI, L’ética degli antichi, p.173.
11
ARISTOTELES, EN, I, 7, 1098a 5-10.
Cláudia Maria Rocha de Oliveira; Edvaldo Antônio de Melo | 103

consiste em simplesmente viver, que é comum a todos os seres vivos. A


função (ergon) específica diz respeito à atividade (energeia) da alma. Em
outras palavras, trata-se de uma vida “segundo a virtude” (kat’areten) que
indica a perfeição 12.
Nesse sentido, ainda de acordo com Vegetti 13, Aristóteles assume o
termo arete em sentido arcaico, “homérico”, indicando a excelência do ins-
trumento, da função. Conforme se interpretava no mundo antigo,
partindo desta compreensão, ou seja, do entendimento da felicidade a par-
tir de tal função (ergon) ou da parte melhor da alma, tem-se como
consequência uma visão de felicidade separada do prazer (hedone) e con-
figurada na sua autossuficiência (autarkeia). E assim, entende-se o porquê
de Aristóteles articular os três tipos de vida, a saber, a vida guiada pelo
prazer, a das honras, no caso da vida política, e finalmente, dando primazia
à vida “segundo a virtude”, algo que emergirá de modo mais visível no
último livro da Ética, a saber, o Livro X. No entanto, mesmo levando em
consideração esta tendência de uma “autossuficiência” radical, é preciso
evidenciar que a felicidade para Aristóteles se dá na vida ativa radicada
socialmente, pois o ser humano é, por excelência um ser social e político.
Para adentrar na vida “segundo a virtude”, conforme interpreta Ve-
getti, pode-se recorrer também ao que afirma Marcello Zanatta, um dos
tradutores da Ética a Nicômaco em italiano, segundo o qual, para atingir a
felicidade, que é o bem supremo do agir (azione), requer a compreensão
do que Aristóteles considera como “vida” em dois sentidos: um para de-
signar a hexis, ou seja, a disposição habitual do vivente para a virtude; e
outro no sentido próprio da energeia, como a sua atividade vital 14. E de
acordo com a leitura fenomenológica moderno-contemporânea, sobretudo
a de matriz heideggeriana, pode-se interpretar que é na sabedoria prática,
a saber, na phronesis, que se encontra o sentido do ser como ato (ener-
geia), ou mesmo uma determinação prática fundamental do ser humano.

12
M. VEGETTI, L’ética degli antichi, p.173.
13
M. VEGETTI, L’ética degli antichi, p.173.
14
M. ZANATTA, Note, p.408, nota 6.
104 | O que torna uma vida realizada: homenagem aos 100 anos de Henrique Cláudio de Lima Vaz

Atribuímos esta interpretação à leitura que Franco Volpi 15 faz de Heide-


gger, retomando a interpretação aristotélica: “na determinação do modo
fundamental da vida consciente humana, entendida como dasein [esserci],
Heidegger se apropria das determinações práticas fundamentais que Aris-
tóteles oferece no VI livro da Ética a Nicômaco”. E continua Volpi
afirmando que existem conceitos aristotélicos correspondentes no voca-
bulário heideggeriano “como Gewissen, seja a ‘tradução’ de phronesis,
como Sorge recorda a orexis aristotélica e como talvez Entschlossenheit
seja o cálculo alemão de phohairesis”.
Em nosso entendimento, tais interpretações contribuem para a afir-
mação da tese de Lima Vaz, segunda a qual a “Razão prática pode ser
considerada a ideia diretriz da Ética filosófica” 16. De fato, o agir humano
consiste justamente nesta disposição para viver segundo a atividade da in-
teligência. Tem-se, portanto, aqui a pressuposição da definição do homem
como “animal dotado de logos, ou seja, de linguagem e razão (zoom logon
echon) bem como de inclinações e paixões (orexia kai pathe) – sendo esse
o fundamento antropológico da Ética e da Política aristotélicas” 17. É justa-
mente nesta pressuposição que se entende a estrutura da razão ordenada
à ação (práxis), ou seja, uma razão essencialmente “prática” 18.

1.2 A atuação da inteligência e da vontade no dinamismo do agir

Afirmar o dinamismo do agir humano significa admitir a ação con-


junta da inteligência e da vontade. Em consequência, a realização
(eudaimonia) diz respeito à capacidade de exercer a função que compete a
cada ser. Logo, se queremos pensar no que torna a vida humana uma vida
realizada, torna-se necessário identificar qual é a função específica que dis-
tingue o ser humano dos demais seres. Para Aristóteles, a diferença

15
F. VOLPI, Heidegger e Aristotele, p.13-14.
16
H.C. de LIMA VAZ, Introdução à Ética Filosófica II, p.25.
17
H.C. de LIMA VAZ, Introdução à Ética Filosófica I, p.115.
18
H.C. de LIMA VAZ, Introdução à Ética Filosófica II, p.5.
Cláudia Maria Rocha de Oliveira; Edvaldo Antônio de Melo | 105

específica do ser humano é a alma racional 19. De fato, a felicidade é uma


operação humana 20. Deste modo, seria inútil e ilógico, que o ser humano
existindo segundo a sua natureza racional, fosse privado de uma operação
que é própria da racionalidade humana.
No entanto, para o Estagirita, a alma humana possui uma parte raci-
onal e outra privada de razão. A parte racional encontra-se subdividida em
duas, uma parte científica, capaz de contemplar as realidades invariáveis,
e uma parte calculativa, capaz de contemplar realidades variáveis 21. A
parte irracional, por sua vez, é constituída por uma dimensão nutritiva e
outra desiderativa.
A partir dessa compreensão da alma, Aristóteles distingue então, a
sabedoria teórica da sabedoria prática 22. A primeira é alcançada a partir
de uma espécie de articulação entre conhecimento científico, isto é, de ju-
ízos sobre coisas universais e necessárias, e a intuição, ou melhor, a
apreensão dos primeiros princípios 23. Já a segunda diz respeito à capaci-
dade verdadeira e raciocinada de agir com respeito às coisas que são boas
ou más para o homem 24. Em consequência, ela versa sobre coisas huma-
nas, objeto de deliberação 25. Ora, é justamente este segundo tipo de
sabedoria que nos interessa, pois é ela que está diretamente ligada à ação
(à praxis).
Em se tratando da sabedoria prática que orienta o agir humano, aqui
entra em jogo a deliberação, mediante o uso da inteligência e da vontade.
Eis um dos pontos fundamentais da Ética e que Aristóteles chamou de “si-
logismo prático”. Conforme interpreta Santo Tomás 26 – na esteira

19
ARISTÓTELES, EN I, 7, 1098a 1-8.
20
T. AQUINO, Commento all’etica nicomachea di Aristotele. vol. 1, p.105-106.
21
ARISTÓTELES, EN VI, 1, 1139a 2-14. É interessante recordar que, na obra De Anima III, 430a 10-15, Aristóteles
distingue também dois tipos de intelecto: o “agente” que tem como função “fazer” todas as coisas com a abstração, e
o intelecto “possível” que tem como capacidade de “tornar” todas as coisas. T. AQUINO, Commento all’etica nicoma-
chea di Aristotele. vol. 1, p.16.
22
ARISTÓTELES, EN VI, 7, 1141a 9 -1141b8.
23
ARISTÓTELES, EN VI, 7, 1141a 17-20.
24
ARISTÓTELES, EN VI, 5, 1140b 20-23.
25
ARISTÓTELES, EN VI, 7, 1141b 6-7.
26
T. AQUINO, Commento all’etica nicomachea di Aristotele. vol. 2, p.15.
106 | O que torna uma vida realizada: homenagem aos 100 anos de Henrique Cláudio de Lima Vaz

aristotélica – o “silogismo prático” se dá de modo atuante na parte da alma


dotada de razão, no esforço de reflexão (ragionamenti) e de deliberação.
Ao explicitar a estrutura subjetiva do agir ético, Lima Vaz 27 entende que o
“silogismo prático” – conforme interpreta Aristóteles 28 – diz respeito às
“ações a serem realizadas”, exprimem a lógica imanente da razão prática,
a saber, da estrutura formal do agir intencionado para o fim que é o Bem.
Tal estrutura vem articulada de modo circular entre inteligência e vontade,
no ato humano da deliberação: “a inteligência julga a retidão da vontade e
a vontade impera o assentimento da inteligência” 29.
Para Aristóteles, em linhas gerais, três coisas determinam o agir e a
verdade: a “percepção sensorial” (aisthesis), o “intelecto” (nous) e o “de-
sejo” (orexis). Os animais, por exemplo, embora sejam dotados de
sensação, não participam de nenhuma ação porque não têm o domínio do
próprio ato. Os animais são movidos pelo instinto da natureza, mas não
pela própria iniciativa. Deste modo, “são duas as atividades que se apre-
sentam como atividades próprias do homem, ou seja, o conhecimento da
verdade e a ação enquanto tal, ou seja, o homem age como senhor de seu
próprio ato e não como se a ação fosse de um outro” 30.
De fato, a sabedoria prática para Aristóteles é a virtude própria do
intelecto prático. Este se constitui a partir da inter-relação entre razão e
desejo, que são princípios de ação. Conforme afirma Aristóteles: “[...] os
homens desembaraçam-se frequentemente da ciência para seguir a sua
imaginação; os outros animais, pelo contrário, não possuem nem intelec-
ção nem raciocínio, possuem apenas imaginação. Estas duas faculdades –
o intelecto e o desejo – são, portanto, os princípios do movimento local” 31.
Ora, o desejo, embora faça parte da dimensão irracional da alma, quando
orientado pela razão se constitui como vontade. Neste sentido, Aristóteles
afirma em sua Ética:

27
H.C. de LIMA VAZ, Introdução à Ética Filosófica II, p.35.
28
ARISTÓTELES, EN, VI, 12, 1144a 30-35.
29
H.C. de LIMA VAZ, Introdução à Ética Filosófica II, p.35.
30
T. AQUINO, Commento all’etica nicomachea di Aristotele. vol. 2, p.20.
31
ARISTÓTELES, De Anima, III, 433a 9-12.
Cláudia Maria Rocha de Oliveira; Edvaldo Antônio de Melo | 107

O buscar e o evitar no desejo são o que a afirmação e a negação são no inte-


lecto. Por conseguinte, na medida em que a virtude moral é um estado que diz
respeito à prévia escolha [proairetiké], e esta é desejo deliberado [orexis bu-
leytiké], conclui-se que ela deve ser boa, a razão precisa ser verdadeira e o
desejo correto, ficando este último obrigado a buscar as mesmas coisas afir-
madas pela primeira 32.

Conforme esclarece Reeve, em Aristóteles, “a vontade é um ‘desejo’


que envolve cálculo” 33. Ela é o “‘desejo envolvendo deliberação’ que cons-
titui a escolha deliberada” 34. Portanto, “quando [...] há cálculo ou
deliberação envolvido, o desejo que se une ao entendimento em afirmar
ou negar, buscar ou evitar, é a vontade” 35. Causa eficiente da escolha, a
vontade torna possível a realização efetiva do ato. Ora, para Aristóteles,
apenas o intelecto prático é capaz de mover, pois apenas ele possui como
princípios a razão e o desejo deliberado. Em consequência, o intelecto prá-
tico torna possível deliberar a respeito dos meios, tendo em vista a
realização do bem agir e do bem viver.
Ao comentar a passagem do De Anima 36 sobre o “desejo” (orexis)
como princípio movente, Tomás interpreta que Aristóteles tira a conclusão
de que, sendo a escolha, um desejo deliberativo, é ela a causa eficiente, mas
não em razão do seu fim. No entanto, no que diz respeito aos princípios da
própria escolha, neste caso, o desejo e a razão pelo qual se faz tal coisa,
vem ordenado em razão de seu fim. Neste sentido, entende-se “o motivo
pelo qual a escolha depende seja do intelecto ou da mente, seja do hábito
moral que aperfeiçoa a força do desejo, de tal modo que a escolha não
existe se não interferirem conjuntamente estes fatores” 37.

32
ARISTÓTELES, EN VI, 2, 1139a 22-26.
33
C.D.C REEVE, Ação, contemplação e felicidade, p.46.
34
C.D.C REEVE, Ação, contemplação e felicidade, p.47.
35
C.D.C REEVE, Ação, contemplação e felicidade, p.66.
36
ARISTÓTELES, De Anima, III, 433 a 31-b1.
37
T. AQUINO, Commento all’etica nicomachea di Aristotele. vol. 2, p. 23.
108 | O que torna uma vida realizada: homenagem aos 100 anos de Henrique Cláudio de Lima Vaz

De fato, o homem delibera sobre os meios para atingir tais fins que
são já postos. Os fins não são escolhidos, mas os meios que, por sua vez,
são contingentes. Segundo Tomás de Aquino 38, o conhecimento dos con-
tingentes enquanto tais, se dá através da ciência prática, pois as ciências
especulativas, como já afirmamos trata daquilo que é necessário.

1.3 Estrutura dialética da Razão prática

A concepção aristotélica de intelecto prático está na base da razão


prática desenvolvida por Lima Vaz. Contudo, o filósofo jesuíta, ao levar em
consideração os desdobramentos históricos dessa noção, e também a sua
apropriação pelo pensamento cristão, a reinventa a partir de uma nova
concepção antropológica. Se em Aristóteles do ponto de vista teorético, es-
tamos diante de uma visão hilemórfica da realidade 39, a partir da qual o
ser humano também pode ser afirmado como sendo uma substância cons-
tituída de matéria e forma, por outro lado, de acordo com Lima Vaz, o ser
humano é pessoa. Ao contrário do esquema “dual” – corpo e alma – que
está na base da posição aristotélica, Lima Vaz assume um esquema “trial”
que procura pensar o ser humano a partir da articulação entre as dimen-
sões do corpo, da alma e do espírito40.
Enquanto pessoa, o ser humano possui uma estrutura constitutiva.
Somos corpo-próprio, psiquismo e espírito 41. O psiquismo é o lugar do de-
sejo e da imaginação. O espírito se constitui como razão e vontade. Aparece
aqui outra distinção importante entre Aristóteles e Lima Vaz. Ao propor
uma compreensão antropológica pensada dialeticamente, Lima Vaz parece
diferir desejo e vontade. A vontade se apresenta, para ele, como princípio
causal da ação. Os desejos, por sua vez, podem ser assumidos como prin-
cípios condicionantes. Procuremos, então, explicitar melhor essa distinção.

38
T. AQUINO, Commento all’etica nicomachea di Aristotele. vol. 2, p. 32.
39
ARISTÓTELES, Metafísica, VII, 3, 1029a 4-6.
40
H.C. de LIMA VAZ, Antropologia Filosófica I, p.187.
41
Para uma visão mais aprofundada das três categorias estruturais da pessoa, permita-nos reenviar ao livro Metafí-
sica e ética: a filosofia da pessoa em Lima Vaz, escrito por C.M.R. de OLIVEIRA, p. 172-178.
Cláudia Maria Rocha de Oliveira; Edvaldo Antônio de Melo | 109

O psiquismo se caracteriza como “mundo interior que se edifica sobre


dois grandes eixos: o imaginário e o afetivo, ou o eixo da representação e
o eixo da pulsão” 42. A dimensão do imaginário e dos afetos é assumida, no
entanto, a partir de um “caráter egocêntrico”. Este “deverá ser superado
por uma forma superior de objetividade no plano do noético ou espiri-
tual” 43. Enquanto ser espiritual, por sua vez, o ser humano possui uma
estrutura noético-pneumática que torna possível a experiência da pre-
sença a si mesmo e da presença ao mundo. Esta estrutura constitui o
espírito a partir de um movimento imanente como “uma regiratio ou cir-
culatio” entre inteligência e vontade 44. Neste sentido, Lima Vaz esclarece
que, enquanto espírito, o ser humano é inteligência e liberdade. Enquanto
inteligência, ele “deve ser definido ser-para-a-verdade”. Enquanto liber-
dade, o ser humano “deve ser definido ser-para-o-bem”. Contudo, “essas
duas intencionalidades do espírito (ou do homem como espírito) enquanto
inteligente e livre se cruzam na unidade do movimento espiritual: pois a
verdade é o bem da inteligência, e o bem é a verdade da liberdade” 45. A
essa inter-relação constitutiva entre inteligência e liberdade, Lima Vaz de-
nomina “quiasmo do espírito finito” 46.
Diante dessas considerações, é possível perceber que ao tratar da di-
mensão dos afetos, Lima Vaz os liga ao eixo das pulsões. Contudo, por
estarem marcados, na dimensão do psiquismo, por um carácter egocên-
trico, esses afetos não tornam, por si mesmos, possível a realização do
homem. Os desejos, afirmados a partir desta dimensão, embora condicio-
nem a ação, não fazem dela uma ação da pessoa. Para Lima Vaz, é como
espírito que o ser humano se exprime na sua própria humanidade. Com
outras palavras, “a forma especificamente humana ou a expressão e ma-
nifestação do ser no homem pertencem originariamente ao espírito, e só

42
H.C. de LIMA VAZ, Antropologia Filosófica I, p.189.
43
H.C. de LIMA VAZ, Antropologia Filosófica I, p.193.
44
H.C. de LIMA VAZ, Antropologia Filosófica I, p.209.
45
H.C. de LIMA VAZ, Antropologia Filosófica I, p.212.
46
H.C. de LIMA VAZ, Antropologia Filosófica I, p.212-213.
110 | O que torna uma vida realizada: homenagem aos 100 anos de Henrique Cláudio de Lima Vaz

pela mediação do espírito dela participam o somático e o psíquico” 47. Em


consequência, o ato pessoal deve ter como princípio causal a própria es-
trutura constitutiva do espírito, que para Lima Vaz, deve ser pensada a
partir da inter-relação dialética entre inteligência e vontade. Portanto, o
desejo não deve orientar a ação, mas sim a vontade livre. Isso porque, para
Lima Vaz, “a liberdade é racional e a razão é livre” 48.
O ato pessoal supõe justamente o que, por definição, Lima Vaz en-
tende como razão prática, a saber, “um ato racional e livre”. E continua o
autor, afirmando que tal ato “encontra sua gênese dialética no nível de
uma universalidade abstrata em que tem lugar a intuição dos princípios
normativos mais gerais do agir, a inclinação da vontade para o Bem uni-
versal e a atuação do hábito inato (sindérese) que orienta esses princípios
para a ação concreta” 49.
Ora, a antropologia limavaziana encontra-se como pressuposto fun-
damental da ética filosófica desenvolvida pelo pensador ouro-pretano. Ao
definir a razão prática como invariante constitutivo da ação ética, ele a irá
pensar a partir dos níveis da universalidade, da particularidade e da sin-
gularidade. O ato ético, pensado a partir da perspectiva do sujeito, é
necessariamente aquele orientado pela razão prática. No nível da univer-
salidade, esta é definida justamente a partir da inter-relação constitutiva
entre razão e vontade. Razão e vontade se particularizam na situação como
processo de deliberação e escolha que se realiza no aqui e agora da situa-
ção. No momento da particularidade interferem os princípios
condicionantes. Paixões, situação histórico-social e outras tópicas apresen-
tam-se como condição de possibilidade e, ao mesmo tempo, limitação para
a realização concreta do ato que se singulariza como ato da consciência
moral, compreendida como “reflexão final judicativa do sujeito sobre seu
ato” 50.

47
H.C. de LIMA VAZ, Antropologia Filosófica I, p.204.
48
H.C. de LIMA VAZ, Antropologia Filosófica I, p.213, n.63.
49
H.C. de LIMA VAZ, Introdução à Ética Filosófica II, p.45.
50
H.C. de LIMA VAZ, Introdução à Ética Filosófica II, p.92.
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112 | O que torna uma vida realizada: homenagem aos 100 anos de Henrique Cláudio de Lima Vaz

2. A dimensão intersubjetiva da razão prática

2.1 A passagem do Eu “abstrato” ao Eu como um “nós”

Como vimos, para Lima Vaz, a categoria de realização é uma catego-


ria filosófica fundamental. A partir dela é possível pensar o ser humano
num contínuo processo de atualização da própria natureza. Através de atos
pessoais, o ser humano se vê diante da possibilidade, ou não, de realizar
existencialmente aquilo que, ontologicamente, é. Ora, como dissemos, um
dos atos pessoais por excelência é o ato ético. Este, por sua vez, constitui-
se a partir da orientação da razão prática que pensada no momento da
universalidade como inter-relação entre razão e vontade, se particulariza
como processo de deliberação e escolha e se singulariza como ato da cons-
ciência moral.
Contudo, a razão prática pensada a partir do ponto de vista do sujeito
é, para Lima Vaz, abstrata. O ser humano é, necessariamente, ser-com-os-
outros. Portanto, a razão prática deve ser afirmada como intersubjetiva. A
partir daqui, ao buscar inspiração na dialética do reconhecimento de He-
gel, Lima Vaz vai além de Aristóteles. Hegel, por sua vez, desenvolve essa
perspectiva a partir da defesa de que somente a partir da relação com o
outro, o Eu toma consciência de si 51, e portanto, torna-se capaz de se auto
afirmar como sujeito.
Embora defenda que o ser humano não é capaz de alcançar a eudai-
monia de modo solitário, Aristóteles não aprofunda, estritamente falando,
a compreensão da razão prática a partir de uma perspectiva da intersub-
jetividade. De todo modo, ao compreender o ser humano, como um ser
social, voltado para a polis, podemos indicar na proposta aristotélica uma
perspectiva que contém em germe o caráter intersubjetivo. Isto pode ser
evidenciado na exigência de uma vida justa que emerge da relação com o

51
Na dialética hegeliana da obra Fenomenologia do Espírito, “a autoconsciência é livre na medida em que realiza a si
mesma. [...] O que a dialética servo/senhor evidencia é a impossibilidade de uma autêntica forma de reconhecimento:
haveria autêntico reconhecimento somente no momento no qual cada autoconsciência ‘oferecesse’ livremente à outra
a própria independência em uma relação de mútuo reconhecimento”. (L. ILLETTERATI; P. GIUSPOLI; G. MENDOLA,
Hegel, p.86).
Cláudia Maria Rocha de Oliveira; Edvaldo Antônio de Melo | 113

outro, conforme sua abordagem no livro V da Ética a Nicômoco, bem como


na exigência da relação com o outro, na relação de “amizade” – Ética a
Nicômaco, Livros VIII e IX. Tais temas, a saber, a justiça e a amizade, indi-
cam elementos que podem ser configurados no espaço “intersubjetivo” da
vida ética em Aristóteles. Nesse sentido, pode-se afirmar que tanto a jus-
tiça quanto a amizade sejam elementos fundamentais para entender a
dimensão intersubjetiva do agir humano. Em se tratando de modo especí-
fico da justiça, esta exige a disposição de caráter que é próprio da virtude
moral, mas não se reduz a esta disposição individual, pois tem-se também
a justiça no sentido legal e normativo da vida da polis, sendo justo aquele
que obedece a lei e que é equitativo 52. Nesse sentido, Aristóteles fala de
“justiça perfeita”, não sem sentido absoluto, mas em relação aos outros
(pros eteron), a ponto de ser considerada a melhor das virtudes 53.
Em seu Commento all’Ética nicomachea di Aristotele, Tomas de
Aquino 54 afirma que a justiça é a “síntese de todas as virtudes”, justamente
por estar direcionada não somente a si mesmo, mas dizer respeito “a todos
os indivíduos”. Deste modo, constata-se que se trata de temas que emer-
gem arraigados na estrutura ontológico do próprio ser humano, mas de
implicação essencialmente social e política. Ainda de acordo com Tomás
de Aquino, a justiça é por excelência um tema da alteridade que por sua
vez se identifica com o Bem comum, em sua preeminência sobre o bem
particular dos indivíduos. Conforme afirma o Aquinatense: “O nome de
justiça implica igualdade; por isso, em seu conceito mesmo, a justiça com-
porta relação com outrem” 55. Lima Vaz, por sua vez, defende que “a ideia
de justiça deve ser considerada como a categoria universal suprema que
preside inteligivelmente ao exercício da vida ética na sua dimensão inter-
subjetiva ou enquanto vida na comunidade ética” 56.

52
ARISTÓTELES, EN, V, 1, 1129a 33-34.
53
ARISTÓTELES, EN, V, 1, 1129b 25-27.
54
T. AQUINO, Commento all’etica nicomachea di Aristotele. vol. 1, p.531.
55
T. AQUINO, Suma Teológica, IIa IIae, q.58, a.2.
56
H.C. de LIMA VAZ, Introdução à Ética Filosófica II, p.182. Sobre esta questão ver o artigo intitulado: “Ética e edu-
cação em Lima Vaz”, publicado em Conjectura: Filos. Educ., v. 23, n. especial, dossiê “Educação, Ética e Religião” de
114 | O que torna uma vida realizada: homenagem aos 100 anos de Henrique Cláudio de Lima Vaz

Após ter descrito o elemento da justiça, segue-se com o tema da ami-


zade. Ao afirmar que “ninguém, com efeito, preferiria viver sem amigos,
mesmo que possuísse todos os outros bens” 57, Aristóteles acentua a condi-
ção social do ser humano. Tomás de Aquino, em seu Comentário à Ética 58
afirma que “a amizade reveste um alto valor social porque é igual à con-
córdia”, do contrário, tornaria inútil a virtude da justiça e o seu exercício.
Enquanto racionais, somos dotados da capacidade discursiva. Somos seres
políticos, por natureza. Em consequência, a sociabilidade é constitutiva do
nosso próprio ser. Logo, a eudaimonia não pode ser alcançada pelo indiví-
duo pensado numa perspectiva solitária. Ela supõe necessariamente a
relação entre pessoas capazes de estabelecer entre si relações recíprocas,
que tenham em vista o bem mútuo. A eudaimonia, portanto, pode ser al-
cançada apenas quando há conhecida “benevolência” recíproca 59. Neste
sentido, Lima Vaz defende que “na filosofia antiga, o reconhecimento apa-
recia sobretudo na reflexão sobre a amizade (philia), um dos tópicos
fundamentais da Ética clássica”. Ele esclarece, então, que foi “no contexto
de seu tratado sobre a amizade que Aristóteles criou a expressão ‘outro
eu’: [(...) tòn dè phílon héteron autoû ónta... (Et. Nic., IX, 9, 1169b7)]” 60.
Lima Vaz assume o pressuposto fundamental da proposta aristoté-
lica. Ele também defende a sociabilidade natural do ser humano. Como ele
mesmo afirma, “o indivíduo humano monadicamente isolado em qualquer
das manifestações de sua existência é uma abstração” 61. Ao contrário, o
sujeito está sempre “envolvido numa rede de relações, desde as relações
elementares com a Natureza até as relações propriamente inter-humanas
que definem as condições de possibilidade de sua autoafirmação como
Eu” 62. Contudo, Lima Vaz, ao propor pensar a própria estrutura da razão

2018, p. 219, nota 6. Disponível em: http://www.ucs.br/etc/revistas/index.php/conjectura/article/view/6230.


Acesso: 25 maio 2020.
57
ARISTOTELES, EN VIII, 1, 1155a 5-6.
58
T. AQUINO, Commento all’etica nicomachea di Aristotele. vol. 2, p. 227.
59
ARISTÓTELES, EN, VIII, 2, 1155b 27-1156a 5.
60
H.C. de LIMA VAZ, Introdução à Ética Filosófica II, p.72.
61
H.C. de LIMA VAZ, Introdução à Ética Filosófica II, p.67.
62
H.C. de LIMA VAZ, Introdução à Ética Filosófica II, p. 67.
Cláudia Maria Rocha de Oliveira; Edvaldo Antônio de Melo | 115

prática a partir da dimensão intersubjetiva, vai além de Aristóteles. Ele


aprofunda a perspectiva aristotélica assumindo em sua reflexão elementos
importantes da dialética do reconhecimento desenvolvida por Hegel. Para
ele, o Eu apenas se torna capaz de se afirmar como sujeito na medida que
é com-o-outro. O Eu, portanto, é “indissoluvelmente, um Nós” 63. Neste
sentido, “o primeiro passo para a efetivação concreta da autoafirmação do
sujeito como Eu é seu encontro com o Outro” (LIMA VAZ, 2000, p.67).
Deste modo, levando em consideração o método hegeliano, entende-se que
a essência do espírito é designada como intersubjetividade 64, sendo esta,
resultado de um processo no qual a consciência é de suma importância.

Para nós, portanto, já está presente o conceito do espírito. Para a consciência,


o que vem-a-ser mais adiante, é a experiência do que é esse espírito: essa subs-
tância absoluta que na perfeita liberdade e independência de sua oposição – a
saber, das diversas consciências-de-si para si essentes – é a unidade das mes-
mas: Eu, que é Nós, Nós que é Eu 65.

Ao defender essa posição hegeliana, Lima Vaz faz referência direta à


dialética do reconhecimento desenvolvida por Hegel na Fenomenologia do
Espírito. Para ele, ela tem uma “significação heurística” à medida que in-
dica “o caminho para passar do indivíduo ético abstrato, ou seja,
considerado na estrutura conceptual que o define na sua identidade em-si,
ao indivíduo ético concreto existindo no seio da comunidade ética e alcan-
çando aí sua plena ipseidade” 66. A dialética hegeliana é assumida por Lima
Vaz, à medida que torna possível pensar a constituição da consciência de
si a partir da relação dialética entre o eu e outro. Neste sentido, ele escla-
rece que para Hegel “a consciência primeiro emerge e se forma na relação
não-recíproca com o mundo. Ela avança, sem seguida, para a relação recí-
proca com outra consciência pelo reconhecimento. É então que se constitui

63
H.C. de LIMA VAZ, Introdução à Ética Filosófica II, p.67.
64
Sobre esta questão, indicamos o livro: HÖSLE, Vittorio. O sistema de Hegel: o idealismo da subjetividade e o pro-
blema da intersubjetividade. São Paulo: Loyola, 2007.
65
G.W.F. HEGEL, Fenomenologia do Espírito, p. 142.
66
H.C. de LIMA VAZ, Introdução à Ética Filosófica II, p.68.
116 | O que torna uma vida realizada: homenagem aos 100 anos de Henrique Cláudio de Lima Vaz

como consciência-de-si (Eu) que, como consciência propriamente histó-


rica, é igualmente consciência de um Nós [...]” 67.

2.2 O reconhecimento e o consenso

A universalidade da razão prática caracteriza-se por sua ordenação


ao horizonte do bem. Esta ordenação se apresenta como condição de pos-
sibilidade do encontro ético com o outro. Esse tipo de encontro torna
possível a realização do sujeito como pessoa. Em consequência, podemos
dizer que, para Lima Vaz, o ato da razão prática, compreendido como per-
feição (enérgeia) do sujeito, está na base do itinerário existencial que todos
temos que percorrer para alcançar a autorrealização. Ora, o encontro ético,
tornado possível pela ordenação da razão prática ao bem, é pensado por
Lima Vaz a partir das categorias de reconhecimento e consenso. Como ele
mesmo esclarece, “o encontro com o outro como ato ético exige, como pri-
meira condição de sua possibilidade ou como primeiro momento de seu
movimento dialético, o reconhecimento do horizonte comum de universa-
lidade o qual o Eu acolhe o Outro como Outro Eu” 68.
Neste sentido, a ideia de universalidade se concretiza e se particula-
riza no agir ético. Do ponto de vista antropológico, “tal condição significa
que só me é possível afirmar o outro ou acolhê-lo no espaço intencional do
meu sentir, entender e querer na medida em que for por ele também afir-
mado. Do contrário recairíamos na relação de objetividade, ou no caso
extremo da coisificação do outro” 69.
Deste modo, a inter-relação entre inteligência e vontade que define a
razão prática pensada a partir da perspectiva do sujeito, reaparece agora
como processo de “reconhecimento do Outro no horizonte do Bem” 70.

67
H.C. de LIMA VAZ, Introdução à Ética Filosófica II, p.68.
68
H.C. de LIMA VAZ, Introdução à Ética Filosófica II, p.70. Fazendo uma aproximação entre a ética e a proposta do
Evangelho, Lima Vaz entende que a noção de “próximo” (plesíon) que aparece, por exemplo em Lc 10, 25-37, exprime
a “manifestação mais perfeita do alter ego” e continua o autor afirmando que tal manifestação “dá origem igualmente
à mais perfeita forma do encontro com o outro na gratuidade do amor-dom (agápê)”.
69
H.C. de LIMA VAZ, Antropologia Filosófica II, p. 65.
70
H.C. de LIMA VAZ, Introdução à Ética Filosófica II, p.71.
Cláudia Maria Rocha de Oliveira; Edvaldo Antônio de Melo | 117

Razão e vontade se entrelaçam, aqui, a partir da face intersubjetiva do


“reconhecimento” e do “consenso”. Forma-se, então, “um único espaço
intencional de acolhimento do Outro, na sua individualidade singular e
única, em sua dignidade de fim e em sua aceitação como participante
racional e livre da universalidade do Bem” 71.
O reconhecimento é compreendido, por Lima Vaz, como fruto da di-
mensão cognoscitiva da razão prática. Ele se exprime na “linguagem”.
Sendo assim, o encontro com o outro constitui-se como “uma interlocução
em que duas razões se comunicam: diá-logos” 72. Isso significa que “o diá-
logo é fundamentalmente um evento de natureza ética e é por ele que a
estrutura intersubjetiva do agir primeiramente se realiza” 73. Lima Vaz de-
fende que a linguagem se constitui como “diálogo” apenas quando a
relação entre os sujeitos é mediada pela razão prática. Nesse sentido, “a
irradiação e transposição numa comunidade de interlocutores da forma
primordial do diálogo na relação Eu-Tu é que torna possível, finalmente,
a formação de uma comunidade ética, cujas múltiplas realizações históri-
cas têm como condição de possibilidade a interlocução dialogal” 74.
O consenso, por sua vez, também tem origem a partir da razão prá-
tica. Ele está vinculado a sua dimensão volitiva. Lima Vaz esclarece que
“uma vez reconhecido o outro no horizonte do Bem, a inclinação da von-
tade segue-se necessariamente ao reconhecimento para consentir na
comunidade entre o Eu e o Outro sob o signo da bondade” 75. Ora, quando
a vontade se inclina ao bem e a ele adere, ela se constitui propriamente
como livre. Logo, se o reconhecimento torna possível pensar o exercício da
razão prática como racional, por outro lado, o consenso torna possível
pensá-lo como exercício de uma liberdade que se exprime no interior de
uma comunidade ética.

71
H.C. de LIMA VAZ, Introdução à Ética Filosófica II, p.72.
72
H.C. de LIMA VAZ, Introdução à Ética Filosófica II, p.74.
73
H.C. de LIMA VAZ, Introdução à Ética Filosófica II, p.74.
74
H.C. de LIMA VAZ, Introdução à Ética Filosófica II, p.74.
75
H.C. de LIMA VAZ, Introdução à Ética Filosófica II, p.75.
118 | O que torna uma vida realizada: homenagem aos 100 anos de Henrique Cláudio de Lima Vaz

2.3 O exercício concreto da razão prática pensada de modo


intersubjetivo

Reconhecimento e consenso, no entanto, se realizam efetivamente a


partir da mediação particular das situações concretas que condicionam a
ação. As “situações” psicológica, socioeconômica, cultural e histórica dos
agentes apresentam-se como condições que tornam possível que o reco-
nhecimento se particularize como causa formal e o consenso como causa
eficiente da ação. Em consequência, como esclarece Lima Vaz, “o reconhe-
cimento como causa formal especifica o consenso que resulta do
movimento da vontade, e o consenso, como causa eficiente, move o reco-
nhecimento no sentido da aceitação ativa do outro” 76. Ao atuarem como
princípios e causas da ação, reconhecimento e consenso operam “no
mundo complexo das condições e dele recebe[m] os traços fenomenais
com que o encontro do outro se apresenta à observação empírica” 77.
Em se tratando do reconhecimento, a partir dos traços fenomênicos
da vida ética, Jakub Gorzyca, na apresentação dos fundamentos da ética
filosófica, afirma: “a verdade moral provém originariamente do encontro
com o rosto do próximo e encontra o seu fundamento último no ser do
Outro [Altro] de bondade infinita” 78. Trata-se aqui da descrição da “feno-
menologia da experiência ética” 79. Tal descrição não se dá meramente sob
o viés de uma ideia abstrata do agir ético, mas sim a partir do “evento do
encontro” com o outro – conforme se pode ver na parábola do “bom Sa-
maritano”. É no “evento encontro” que se dá a experiência da presença do
outro “eticamente exigente”, a saber, do “sujeito” que se descobre na rela-
ção ética e ao mesmo tempo torna-se consciente [consapevole] da sua
responsabilidade pelo outro 80.

76
H.C. de LIMA VAZ, Introdução à Ética Filosófica II, p.79.
77
H.C. de LIMA VAZ, Introdução à Ética Filosófica II, p.79.
78
J. GORZYCA, Essere per l’altro, p. 164-165.
79
Sobre esta questão ver também o primeiro capítulo da obra Introdução à ética filosófica 1, de Lima Vaz, p. 35-43.
80
J. GORZYCA, Essere per l’altro, p. 53.
Cláudia Maria Rocha de Oliveira; Edvaldo Antônio de Melo | 119

O que fora afirmado anteriormente pode ser associado ao método no


qual Lima Vaz 81 intui a “significação heurística” descrita como sendo o
“caminho” para passar do indivíduo ético “abstrato” ao indivíduo ético
“concreto”, vivente no seio da comunidade ética. Nesse sentido, no encon-
tro com o homem caído à beira do caminho, conforme a descrição da
parábola, evidencia-se propriamente uma descrição fenomenológica da
experiência ética, na qual o “bem absoluto” aparece como uma “qualidade
objetiva da responsabilidade pelo outro, que se ‘imaterializa’, expressa, em
um determinado modo de agir” 82. Tal significação pode ser vista como o
reconhecimento do outro “enquanto outro”, para além das conotações re-
ligiosas, políticas, de raça ou mesmo de parentesco. Nesse sentido, o alter
ego não é meramente o “outro eu” do psiquismo, mas o “outro enquanto
outro”, na sua alteridade 83.
Na perspectiva limavaziana, pode-se distinguir “na consciência moral
social, que se constitui a partir do encontro com o outro, níveis estruturais
que se ampliam concentricamente até abranger a consciência moral da so-
ciedade como um todo” 84. Desse modo, entende-se como o momento da
particularidade, por sua vez, é suprassumido pela singularidade que torna
possível afirmar o ato na sua plena concretude. Nela “todo o movimento é
interiorizado na consciência moral social dos participantes da comunidade
ética” 85. A existência de uma consciência moral social, que apenas pode ser
pensada em analogia com a consciência moral subjetiva, pode ser compro-
vada “pela aceitação de um mesmo sistema de normas, valores e fins
interiorizado em maior ou menor profundidade na consciência moral dos

81
H.C. de LIMA VAZ, Introdução à Ética Filosófica II, p. 68.
82
J. GORZYCA, Essere per l’altro, p. 58.
83
Pode-se remeter aqui, por exemplo, à perspectiva ética levinasiana, na qual “o absolutamente Outro é Outrem; não
faz número comigo” (E. LÉVINAS, Totalidade e Infinito, p.26), daí o sentido de se pensar a relação inter-humana a
partir da responsabilidade radical por outrem (E. LÉVINAS, Ética e Infinito, p.79-84).
84
H.C. de LIMA VAZ, Introdução à Ética Filosófica II, p.87. A título de enumeração, vale ressaltar que Lima Vaz
(2000, p.87-89), enumera vários níveis estruturais na consciência moral, o do encontro pessoal, o do encontro co-
munitário e o do encontro societário.
85
H.C. de LIMA VAZ, Introdução à Ética Filosófica II, 2000, p.84.
120 | O que torna uma vida realizada: homenagem aos 100 anos de Henrique Cláudio de Lima Vaz

indivíduos” 86. Um exemplo seria a defesa moderna pelos direitos humanos


como valores inalienáveis. A razão prática, portanto, pensada a partir da
dimensão intersubjetiva do ato ético, se singulariza como consciência mo-
ral social.

Considerações finais

Como vimos, para Lima Vaz, a realização da própria vida se apresenta


como uma tarefa permanente, nunca completamente concluída, que pode
ser exercida através de atos pessoais. Ao buscar realizar progressivamente
a unificação daquilo que somos, assumimos os riscos dessa difícil aven-
tura. Ora, um dos atos pessoais por excelência é o ato ético. Um dos
invariantes fundamentais que o caracteriza é o fato de ser orientado pela
razão prática. Em consequência, com o objetivo de compreender melhor
de que maneira podemos buscar a realização, procuramos aprofundar a
compreensão a respeito da razão prática.
A noção de razão prática assumida por Lima Vaz nos conduziu à ética
aristotélica. Contudo, como vimos, embora tenha aprendido muito com
Aristóteles, ao partir de uma compressão antropológica distinta da
compreensão aristotélica, e de uma realidade histórico e social nova, Lima
Vaz propõe uma atualização dessa noção. Esta atualização é orientada pelo
método dialético que torna possível pensar a razão prática através dos
momentos da universalidade, particularidade e singularidade. Pensada a
partir da interrelação entre razão e vontade, a razão prática se
particulariza como processo de deliberação e escolha e se singulariza como
ato da consciência moral. Contudo, pensar a razão prática do ponto de
vista do sujeito é uma abstração. O eu apenas se constitui na relação com
o “outro eu”. Em consequência, a razão prática é constitutivamente
intersubjetiva. A partir da perspectiva intersubjetiva, a razão prática é

86
H.C. de LIMA VAZ, Introdução à Ética Filosófica II, p. 86. Lima Vaz também enumera várias esferas dos indivíduos
que passam a ser ordenados pelas leis e normas éticas, como a esfera da necessidade ou do agir econômico, a da
efetividade, a da realização pessoal e a da obrigação cívica no âmbito social-político. H.C. de LIMA VAZ, Introdução à
Ética Filosófica II, p.90-92.
Cláudia Maria Rocha de Oliveira; Edvaldo Antônio de Melo | 121

pensada como reconhecimento e consenso que se particularizam como


deliberação e escolha e se singularizam como ato de uma consciência
moral social, afirmada em analogia com a consciência moral individual.
Pensar, portanto, a realização do indivíduo significa levar em consi-
deração o agir ético tanto na sua estrutura subjetiva quanto intersubjetiva.
A realização se constitui como um desafio ético e político. Trata-se de um
desafio que empenha o ser humano na sua inteireza e se constitui como
uma tarefa inacabada: “é o risco supremo de ser ou não-ser, não no domí-
nio do existir simplesmente, mas no domínio do sentido da vida, no qual
a sua existência está lançada como existência propriamente humana e que
se desenrola sob o signo da insecuritas” 87.

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87
H.C. de LIMA VAZ, Introdução à Ética Filosófica II, p.146.
122 | O que torna uma vida realizada: homenagem aos 100 anos de Henrique Cláudio de Lima Vaz

ILLETTERATI, Luca; GIUSPOLI, Paolo; MENDOLA, Gianluca. Hegel. Roma: Carocci editore,
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Capítulo 7

Intersubjetividade em Lima Vaz como consenso


e reconhecimento fundamentam a ação ética?

Paulo César Nodari


Manuel Melo

É perceptível a importância dada à Ética no desenvolvimento da filo-


sofia de Lima Vaz. Dá-se em toda sua Ética e Antropologia um rico e
profundo diálogo entre o discurso moral e o discurso metafísico, permeado
pelo discurso antropológico. Por um lado, é analisada a estrutura do ser
do homem em toda sua riqueza ontológica, e, por outro, também, essen-
cial, para a constituição do ser do homem, há o âmbito normativo do dever
ser.
A ética sistemática leva três aspectos em consideração: antropologia,
metafísica e epistemologia. A antropologia mostra-se fundamental, pois
deve abarcar a totalidade do fenômeno humano, para que se evitem os
reducionismos verificáveis nas diversas ciências humanas e biológicas.
Nos dois volumes de sua Antropologia Filosófica (volume I: 1991 e volume
II: 1992), Lima Vaz demonstra como as várias categorias que fazem parte
da constituição do indivíduo, quando pensadas em sua totalidade, são
constitutivamente éticas. A metafísica é fator determinante para funda-
mentação moral. Não só para afirmação do ser, mas também para o
reconhecimento do outro. Lima Vaz demonstra como o Bem universal
deve ser valor condicionante na instauração de uma vida essencialmente
ética. Em sentido epistemológico, o sistema ético também busca, aos mol-
des aristotélicos, oferecer em relação com a práxis, uma ciência do ethos,
124 | O que torna uma vida realizada: homenagem aos 100 anos de Henrique Cláudio de Lima Vaz

que, pensado de modo universal, é responsável por fornecer normativi-


dade à ação. Daí decorre a relação entre práxis e ethos. Afirma-se, pois:

[…] a inteligibilidade da práxis como objeto da ciência do ethos pressupõe a


normatividade imanente do fim, tal como se apresenta na experiência do
ethos. […] Da estrutura normativa do Fim decorre a peculiaridade epistemo-
lógica da Ética de ser, ao mesmo tempo, teoria da práxis e ciência prática ou
norma do agir, em analogia com Física, que é, ao mesmo tempo, teoria da
natureza e norma do fazer técnico 1.

A esfera da intersubjetividade se mostra fundamental na constituição


e vida moral do indivíduo exercendo grande importância no rumo e cami-
nho para uma comunidade ética. A relação intersubjetiva, por definição,
evidencia, em sua imprescindibilidade, as noções de reconhecimento e con-
senso. Reconhecimento do outro sempre embasado e possibilitado pelo
consenso e inclinação ao Bem universal. Porém, para ser possível entender
o processo reflexivo e chegar ao reconhecimento e ao consenso, segundo
parece, é urgente traçar algumas balizas imprescindíveis para o entendi-
mento da pessoa moral que está envolta neste processo. Dar-se-á, por isso,
ênfase, neste momento, ao aspecto ético de algumas das categorias que
fazem parte constitutiva da pessoa moral. De todo modo, não se pode es-
quecer que a Ética, em Lima Vaz, é a interpretação ética do agir humano,
que, por si só, já comporta todas as categorias antropológicas estruturais,
relacionais, bem como a categoria da realização que culmina na categoria
de pessoa em sentido antropológico. Sublinha Lima Vaz:

A concepção de pessoa moral que aqui a presentamos não é senão a interpre-


tação ética da categoria de pessoa que foi exposta em nossa Antropologia
Filosófica. Ela exclui, em princípio, qualquer ideia da pessoa moral em que esta
é pensada em contradistinção com a natureza, caracterizando a singularidade
e originalidade do ser humano como ens morale enquanto oposto aos entia
naturae […]. O processo de personalização envolve a totalidade de nosso ser,
do corpo próprio ao espírito, e todas as modalidades de nosso abrir-nos à re-
alidade exterior, do mundo à transcendência. Ora esse processo é

1
H.C. de LIMA VAZ, Introdução à Ética Filosófica II, p. 08.
Paulo César Nodari; Manuel Melo | 125

constitutivamente ético e todo o nosso ser inscreve sua gênese e sua história
no destino de uma pessoa moral 2.

É importante ressaltar que apesar de as categorias antropológicas e


éticas serem apresentadas de modo sistemático e seguindo uma ordem ló-
gica de construção, seus passos não podem ser considerados separada e
isoladamente. Não há, por exemplo, como desconsiderar as categorias an-
tropológicas da estrutura do sujeito para, em seguida, analisar,
separadamente, o aspecto intersubjetivo, que constitui a segunda das ca-
tegorias antropológicas de relação. Seria, também, implausível 3,
considerar apenas as categorias do agir ético, sem falar da vida ética, que
se configura como a existência ética concreta do indivíduo na comunidade
e não enquanto mera abstração. É preciso ter em mente a dinamicidade
do fenômeno humano sempre permeado pela totalidade do ser.

A Ética filosófica, como ciência fundamental do ethos, define-se, pois, [...]


como discurso sistemático sobre a estrutura lógica e o movimento dialético da
Razão prática segundo a qual a práxis efetivamente se realiza, seja considerada
enquanto ato, seja enquanto continuidade dos atos na vida 4.

Nesta perspectiva, há a necessidade de explicitar, ainda que breve-


mente, o conceito de ethos universal, ao qual deve a ação estar de acordo,
buscando nele seus invariantes conceituais (ou categorias), para que possa
haver uma unidade de significação ou universalidade do ponto de vista
ético. Em outras palavras, quando o indivíduo se eleva à universalidade do
ethos, ele está agindo também de acordo com a normatividade do ethos, o
qual é responsável por abarcar, segundo Lima Vaz, “[...] os costumes, os
hábitos, as normas e os interditos, os valores e ações [...]” 5, que são refe-
renciais para os domínios do dever-ser ou do Bem. Acentua Lima Vaz:

2
H.C. de LIMA VAZ, Introdução à Ética Filosófica II, p. 239.
3
H.C. de LIMA VAZ, Antropologia Filosófica II, p. 51.
4
H.C. de LIMA VAZ, Introdução à Ética Filosófica II, p. 208.
5
H.C. de LIMA VAZ, Ética e Cultura, p. 13.
126 | O que torna uma vida realizada: homenagem aos 100 anos de Henrique Cláudio de Lima Vaz

Ora, ao se constituir no momento lógico da universalidade, a inteligibilidade


fundamental do ethos transcende necessariamente a particularidade dos ethea
históricos. Ela deve exprimir a razão primeira de possibilidade da formação
histórica do ethos e, portanto, da forma de razão segundo a qual o indivíduo
age de acordo com o ethos ou ordena a sua práxis segundo as prescrições do
ethos e que se denomina justamente Razão prática 6.

Ethos, em sua etimologia, contém a definição tanto de costume,


quanto de hábito, sendo fundamental, em Lima Vaz, a relação entre as
duas definições. Orientando as ações a partir da racionalidade do ethos
enquanto costume o sujeito adquire o hábito ético ou disposição de caráter
conforme o exercício da virtude moral 7. Assim, verifica-se, segundo Lima
Vaz, uma circularidade dialética entre ethos (costume) e ethos (hábito) que
“[...] procede do ethos como do seu princípio objetivo e a ele retorna como
a seu fim realizado na forma do existir virtuoso” 8. Afirma-se, pois:

O conjunto de tradições, normas, costumes de um grupo social explicita, atra-


vés do conjunto de valores compartilhados por seus membros, a racionalidade
implícita no ethos. Logo, um primeiro nível de formação, que se dá a partir da
mais tenra idade, supõe a elevação do sujeito à universalidade dos valores da
comunidade. Ora, ao elevar-se à universalidade do ethos, a práxis do sujeito se
constitui como práxis ética. O sujeito torna-se, pois, capaz de fazer o que deve
ser feito à luz dos costumes e tradições de determinada comunidade 9.

Percebe-se, pois, aqui, a característica de universalidade do ethos,


através dos momentos históricos da humanidade. Ao analisar os diversos
ethea históricos (costumes das diversas sociedades no decorrer da histó-
ria), pode-se constatar a frequente inclinação humana, enquanto o ser
humano se caracteriza como ser racional e livre, à procura da vida boa, ou
então, à busca do Bem como causa final de sua realização individual, e,
também, enquanto realização na comunidade. Sublinha-se, por conse-
guinte:

6
H.C. de LIMA VAZ, Introdução à Ética Filosófica II, p.142-143.
7
C. OLIVEIRA; E. MELO, Ética e Educação em Lima Vaz, p. 214.
8
H.C. de LIMA VAZ, Ética e Cultura, p. 15-16.
9
C. OLIVEIRA; E. MELO, Ética e Educação em Lima Vaz, p. 214.
Paulo César Nodari; Manuel Melo | 127

Sem referência a esse Bem, não seria possível pensar, por um lado, a unidade
ética da natureza humana e, de outro, a unidade dos ethea num conceito uni-
versal do ethos. Para exercer essa causalidade final unificadora o Bem deve
(por necessidade lógica) gozar de uma objetividade imanente, pois ele se
apresenta como Fim último e idêntico a si mesmo da tendência da RP. Por
conseguinte, a vida ética (vivida na imensa variedade dos tempos e lugares e
marcada com tantas diferenças) apresenta-se, na determinação do seu hori-
zonte objetivo, a partir da perspectiva de um ethos particular, mas que é
possibilitado por uma razão última, na qual consiste a universalidade obje-
tiva do mundo ético, que deriva da ordenação constitutiva do sujeito ético (que
age guiado pela RP através da inteligência e vontade) para o Bem que é igual-
mente Fim e que dever ser acolhido como Valor fundamental 10.

1. Intersubjetividade: consenso e reconhecimento

Tanto ética quanto antropologicamente, a intersubjetividade se mos-


tra como um dos passos essenciais no processo de afirmação plena do ser
e traz um peso moral determinante e norteador no âmbito do dever ser. É
na relação intersubjetiva na qual e com a qual o outro é efetivamente re-
conhecido. Segundo Lima Vaz, duas infinitudes intencionais se relacionam
e é rompida a mera relação de objetividade, ou seja, o modo como o mundo
e as pessoas primariamente se apresentam ao indivíduo. O conceito de in-
finitude intencional carrega consigo todo peso ontológico da unidade
individual do sujeito, descrita pelas categorias antropológicas de estrutura
do indivíduo: corporalidade, psiquismo e espírito.
Na relação de intersubjetividade compreende-se a importância da al-
teridade no discurso ético e antropológico de Lima Vaz. Percebe-se que a
relação intersubjetiva ética é fator necessário para que o indivíduo chegue
a sua realização, como pessoa moral. Para demonstrar como se dá a inter-
subjetividade na constituição do sujeito, é crucial atentar para a
organização, e, principalmente, à formalidade, presentes no raciocínio do
referido autor.

10
F. J. HERRERO, A ética filosófica de Henrique Cláudio de Lima Vaz, 2012, p. 429 (RP: Razão prática).
128 | O que torna uma vida realizada: homenagem aos 100 anos de Henrique Cláudio de Lima Vaz

Na sistematização de cada uma das categorias estão inclusas as con-


cepções histórico-culturais, ou também, o discurso baseado em crenças
extraídas de experiências naturais que o homem faz de si mesmo (pré-
compreensão) e das ciências (compreensão explicativa), suprassumido na
compreensão filosófica. A antropologia configura-se, assim, de acordo com
Lima Vaz, como uma ontologia do ser humano 11. Cada categoria ética, tam-
bém, é sistematizada tendo presente e diante dos olhos os mesmos passos
dados na antropologia. Em outras palavras, nenhum aspecto é desconsi-
derado, como ocorre no caso das ciências particulares, as quais buscam
dar, cada uma por si e a partir de seu interesse particular e peculiar de
pesquisa, uma explicação, muitas ou na maioria das vezes, isolada e sepa-
rada do aspecto ético, com a pretensão de esgotar o fenômeno a partir e
por meio de seu objeto e método de pesquisa.
Pois bem, adentrando, mais especificamente, na intersubjetividade,
ainda, em seu nível de pré-compreensão, tem-se o encontro. Este confi-
gura o nível da pré-compreensão da categoria de intersubjetividade. Ou
seja, o outro emerge em sua irredutível originalidade perante a simples
relação de objetividade. “Ou seja, da relação objetiva para a intersubjetiva
o homem passa do ser-no-mundo para o ser-com-o-outro” 12. Assinala
Herrero com muita propriedade:

[...] assim como a pré-compreensão do agir ético individual tem lugar no nível
do saber ético, assim também a pré-compreensão do mesmo agir na sua es-
sencial relação de intersubjetividade (ou enquanto implica a vida na
comunidade ética), tem lugar na participação ao saber ético como saber soci-
almente partilhado, sobretudo na forma da sabedoria da vida, que garante a
coesão do ethos nas formas espontâneas de reconhecimento recíproco e de
consenso. A relação de intersubjetividade como terreno do encontro com o
outro e, mais amplamente, do ser-com os outros, dá origem a ricas e variadas
formas de presença recíproca dos sujeitos: a relação recíproca da proximi-
dade, que se exerce na relação Eu-Tu no amor, na amizade, na vida em

11
H.C. de LIMA VAZ, Antropologia Filosófica I, p. 162.
12
P. ANDRADE, Antropologia Filosófica de Henrique Cláudio de Lima Vaz como superação do reducionismo antropo-
lógico, p. 83.
Paulo César Nodari; Manuel Melo | 129

comum; a relação de convivência, que se exerce como relação Eu-Nós no con-


senso, na obrigação, na fidelidade; a relação de permanência, que se exerce
como relação Eu-outros na tradição, no costume, na vida social e política 13.

E, passando para o nível da compreensão explicativa ou científica,


verifica-se uma impossibilidade de objetificação segundo Lima Vaz. Aqui,
tem-se, justamente, o momento no qual ocorre a reciprocidade espiritual
enquanto reciprocidade e liberdade e as tentativas da ciência explicativa,
por sua vez, acabam sempre por esbarrar em seus limites metodológicos.
Afirma-se, nesse sentido:

Levantou-se assim imperativamente o problema de uma ciência do agir hu-


mano, ou de uma teoria de operar (Handlungstheorie) que passou a ser,
aparentemente, o problema dominante do pensamento contemporâneo. No
entanto, como já observamos, o florescer recente das teorias da linguagem
como ação (Sprachliches Handeln) e da competência comunicativa assinala,
com inequívoca clareza, os limites da compreensão explicativa aplicada à rela-
ção de intersubjetividade, e a necessidade da transgressão desses limites e da
entrada no domínio da compreensão filosófica 14.

Por sua vez, na compreensão filosófica, o outro indivíduo agora é re-


conhecido através da dialética de identidade na diferença. É possível o
diálogo legítimo dentro de um horizonte de reconhecimento e consenso. A
relação de intersubjetividade é caracterizada pela suprassunção dialética
da relação de objetividade como identidade na diferença: O eu na sua re-
flexividade, nega sua identidade com o outro, que por sua vez, configura-
se igualmente como um ele mesmo. Sublinha-se, então:

[…] a dialética da alteridade ou a essencial e constitutiva relação do sujeito,


enquanto situado e finito, ao seu outro (esse ad, ou relação de alteridade que
é equioriginária, em ordem à compreensão do sujeito, com seu esse in estru-
tural) implica necessariamente a passagem do outro-objeto (tematizado na
relação de objetividade) ao outro-sujeito, ou seja, implica o paradoxo da reci-
procidade, segundo o qual o sujeito é ele mesmo (ipse) no seu relacionar-se

13
F. J. HERRERO, A ética filosófica de Henrique Cláudio de Lima Vaz, p. 408.
14
H.C. de LIMA VAZ, Antropologia Filosófica II, p. 64.
130 | O que torna uma vida realizada: homenagem aos 100 anos de Henrique Cláudio de Lima Vaz

com outro sujeito o qual, por sua vez, é igualmente ele mesmo (ipse) no seu
ser-conhecido e no conhecer seu outro: em suma, no reconhecimento 15.

Evidencia-se, aqui, a necessidade formal do reconhecimento do ou-


tro. Só é possível afirmar o outro, quando há seu acolhimento no espaço
intencional do meu ser, que, por sua vez, precisa ser afirmado também
pelo outro em uma relação de reciprocidade. Enquanto sujeito unificado,
ao se deparar com um outro sujeito, analogicamente, torna-se preciso seu
reconhecimento como outro sujeito unificado. E essa forma de pensar a
relação Eu-Tu se transfere também para a relação Eu-Nós. Todo sujeito
formal (unificado em suas relações de estrutura) é idêntico, pois a forma
da estrutura do sujeito é universal. Daí, por analogia evidencia-se a neces-
sidade de reconhecimento legítimo de qualquer outro como sujeito
idêntico a mim, e não como mero objeto. Dessa maneira, a possibilidade
de coisificação de outros indivíduos se extingue, ao menos, em teoria. A
intersubjetividade promove a migração da individualidade do sujeito para
existir e conviver em comum. Ao reconhecer o outro, o ser humano per-
cebe-se como ser de relações em uma comunidade. Percebe-se que a ação
ética, só pode ser pensada como expressão de um sujeito em relação ao
outro. Por isso, no âmbito da categoria de intersubjetividade está inexora-
velmente contido o agir ético. Estando a relação intersubjetiva
formalmente demonstrada, ela se eleva ao estatuto de universalidade. O
homem possui abertura ao absoluto, ou acesso às formas puras da abstra-
ção, portanto é um ser universal. A intersubjetividade representa as
relações entre sujeitos universais dentro de uma comunidade ética. Afirma
Lima Vaz:

A estrutura intersubjetiva do agir ético constitui-se, portanto, inicialmente, no


âmbito da universalidade da razão prática, em que o encontro com o outro
tem lugar segundo as formas universais do reconhecimento e do consenso.
Reconhecer a aparição do outro no horizonte universal do Bem e consentir em

15
H.C. de LIMA VAZ, Antropologia Filosófica II, p. 55.
Paulo César Nodari; Manuel Melo | 131

encontrá-lo em sua natureza de outro Eu, eis o primeiro passo para a explici-
tação conceptual da estrutura intersubjetiva do agir ético 16.

A antropologia e ética vazianas têm como base as estruturas formais,


e, portanto, universais da antropologia do sujeito, bem como o reconheci-
mento por analogia (o que constitui a abertura ao absoluto através da
categoria do espírito) dos conceitos, como bem, liberdade e justiça. Assim,
a relação de intersubjetividade só é possível através da apreensão dos con-
ceitos universais do reconhecimento e consenso. E essas noções são a base
do existir humano em sociedade, ressaltando que reconhecimento e con-
senso estão não só intimamente relacionados, mas também dependem da
abertura ao transcendental que se demonstra como característica intrín-
seca do ser humano, pois a abertura ao Bem universal atua como causa
final da ação ética. Afirma Lima Vaz:

Implícita em todo o agir ético, a autoafirmação do sujeito na sua relação ao


Bem fundamenta-se, por um lado, na abertura intencional da Razão prática ao
Bem universal definido em homologia com o Ser e, por outro, na objetividade
do mesmo Bem como causa final do agir. A singularidade do agir ético, medi-
atizada pela situação mundano-histórica do sujeito, é determinada, por
conseguinte, na sua inteligibilidade intrínseca, pela situação metafísica que o
refere estruturalmente ao horizonte do Bem universal 17.

Para sumarizar os passos discorridos até o momento: no momento


do reconhecimento de si como sujeito unificado, tendo em vista as relações
de estrutura e sua suprassunção na dimensão espiritual, o indivíduo, situ-
ado no mundo, defronta-se com outras infinitudes intencionais, análogas
a si mesmo, isto é, são como ele é. O reconhecimento deve ser recíproco e
ocorre quando há uma relação com o outro percebido no horizonte do
Bem, que, por sua vez, deve reconhecer-me do mesmo modo. Por analogia
percebe-se o Outro como sendo, ele também, o mesmo. Consenso é ato
intencional e imprescindível, para que se efetive a comunidade entre o Eu

16
H.C. de LIMA VAZ, Introdução à Ética Filosófica II, p.70-71.
17
H.C. de LIMA VAZ, Introdução à Ética Filosófica II, p. 197.
132 | O que torna uma vida realizada: homenagem aos 100 anos de Henrique Cláudio de Lima Vaz

e o Outro. Consenso é pressuposição do reconhecimento do Outro no hori-


zonte do Bem. Configura-se, desse modo, como um ato intrinsecamente
livre, pois vislumbrar o horizonte do Bem, ou possuir vontade ao Bem (es-
senciais para o reconhecimento), é processo contido dentro da esfera da
liberdade do indivíduo 18. Dito de outro modo:

O reconhecimento e o consenso constituem-se, pois, como a base de origem


da comunidade ética. E esta, por sua vez, tem a missão de tornar possível a
convivência ética entre os homens, sendo, porém, possível em caráter de pos-
sibilidade duradoura, sob a forma reflexiva e judicativa da norma, como
resposta ao desafio da permanência ou duração no tempo da própria comuni-
dade ética e da instituição, na medida em que ela é uma grandeza social
essencialmente normativa e constitutivamente uma grandeza ética 19.

O reconhecimento é obra da razão prática enquanto razão cognos-


cente. O consenso, por sua vez, é obra da mesma razão prática em sua
atividade volitiva. Reconhecimento e consenso permitem, assim, uma rela-
ção intersubjetiva não meramente formal, mas promovem diálogo ético
em uma relação de comunidade (Eu-Tu). Assim há a passagem do indiví-
duo ético abstrato (estrutura subjetiva) para o indivíduo ético concreto
(relações), que se efetiva em uma comunidade ética 20.
Como demonstrado acima, reconhecimento e consenso são conceitos
essenciais para a formação de uma comunidade ética, alicerçando a estru-
tura dialética da intersubjetividade. Reconhecimento e consenso acabam
por possibilitar um convívio justo, ou seja, são condição de possibilidade
do agir ético, que, por conseguinte, deve ser verificado na vida ética. A im-
portância desses conceitos é perceptível também em direitos como a
dignidade humana, que só emerge como um direito intrínseco ao ser hu-
mano, se engendrada em uma comunidade de reconhecimento do outro e
consenso ao Bem. Afirma, portanto, Lima Vaz:

18
H.C. de LIMA VAZ, Introdução à Ética Filosófica II, p. 71.
19
P. C. NODARI, Reconhecimento e consenso em Lima Vaz, p. 37.
20
H.C. de LIMA VAZ, Introdução à Ética Filosófica II, p. 77.
Paulo César Nodari; Manuel Melo | 133

Ou ainda, exprimindo-nos nas categorias propriamente éticas, a forma uni-


versal da virtude (por exemplo, a justiça) como atributo da vida ética subjetiva
pensada em sua universalidade só se concretiza numa vida justa respondendo
ao desafio das situações particulares que traçam o caminho do indivíduo na
exterioridade do mundo e da história. Ora, do ponto de vista da estrutura in-
teligível da vida ética, a primeira e fundamental relação de exterioridade que
caracteriza como uma vida-em-situação é a relação de recíproca com o outro
reconhecido e aceito no horizonte do Bem, ou seja, vivendo igualmente a vida
ética 21.

Chamando atenção ao aspecto teleológico e metafísico inerente na


obra de Lima Vaz (2000, p. 8), não se pode esquecer que a busca do Bem
como valor universal perpassa toda sua reflexão ética. Lima Vaz conclui
sua Ética Filosófica afirmando que uma prática ética só é justificável à luz
e por meio de uma ciência da prática embasada em uma metafísica do
Bem 22. Ou seja, em outras palavras:

Sendo, pois, a operação na qual inteligência e vontade operam sinergicamente


– o ato inteligente e livre – aquela que exprime adequadamente a interioridade
mais profunda de nosso ser ou o Eu sou primordial, é como ato inteligente e
livre que o agir ético se eleva à forma mais alta de autoexpressão do Eu. Nela,
com efeito, o ser humano se autoexprime justamente enquanto na sua relação
com o bem se autodetermina em vista do Fim de todos os outros fins – a sua
eudaimonia ou “viver bem” (eu zên) no dizer de Aristóteles – ou seja a sua
autorrealização no Bem 23.

Quando evocados, os conceitos de consenso e reconhecimento apare-


cem inerentemente unidos à noção de justiça. Justiça, para Lima Vaz,
possui dois âmbitos que se dão e se conectam de modo indissociável. Sendo
o ser humano, constitutivamente, um ser social, percebe-se que a justiça
ocupa foco e lugar essenciais, convertendo-se em virtude do agir e viver
comunitários. Justiça como subjetividade converte-se em virtude. Da vir-
tude subjetiva fundamental para a existência e a coexistência, em

21
H.C. de LIMA VAZ, Introdução à Ética Filosófica II, p. 174.
22
H.C. de LIMA VAZ, Introdução à Ética Filosófica II, p. 242.
23
H.C. de LIMA VAZ, Introdução à Ética Filosófica II, p. 19.
134 | O que torna uma vida realizada: homenagem aos 100 anos de Henrique Cláudio de Lima Vaz

sociedade, faz-se necessário transpor a virtude do âmbito subjetivo para o


domínio objetivo. Aqui, por sua vez, a justiça se exerce e se movimenta
como fundamento da lei. Percebe-se que o consenso e o reconhecimento
impõem normatividade. Assim sendo, o consenso e o reconhecimento do
outro como uma outra infinita intencionalidade convertem-se em busca
pela justiça como virtude, e, posteriormente, como base da lei. Acentua
Cardoso:

A comunidade ética se baseia numa concepção de igualdade que exige o reco-


nhecimento da mesma dignidade entre os sujeitos e o consenso de todos em
vista da realização da tarefa da vida em comum. Na base da comunidade ética
está a primazia da liberdade que se liga à bondade e à formação da consciência
moral social, que será fruto da consciência moral dos indivíduos 24.

Nessa perspectiva, segundo Lima Vaz, o agir ético deve passar por
três momentos dialéticos que se dão dentro do âmbito do ethos, ou seja:

A transposição, portanto, da estrutura do agir ético nas suas dimensões cons-


titutivas que são o sujeito, a comunidade e os fins, para o nível gnoseológico
da Ideia exige o cumprimento dessa delicada operação dialética que é a nega-
ção do estatuto puramente empírico do ethos, a sua suprassunção ou elevação
ao plano do inteligível ou do conceito e enfim a sua recondução ao sensível,
considerado não já na fluidez do seu simples acontecer mas ordenado segundo
o dever ser da Ideia ou da norma ideal 25.

É importante delimitar o campo abarcado pelo ethos em relação à


práxis. O ethos representa a situação contextual do indivíduo, e, por sua
vez, a práxis, suas ações dentro desse contexto. A comunidade ética se dá,
assim, dentro de um conjunto de normas e valores (ethos), no qual os in-
divíduos exercem a práxis (conduta, ação), e, dentre os quais, ocorre, ou
seja, dá-se a relação intersubjetiva 26. O âmbito prático da justiça surge
como importante aspecto na reflexão ética, instituindo papel fundamental

24
D. CARDOSO, Ética dialética de Henrique Cláudio de Lima Vaz, p. 250.
25
H.C. de LIMA VAZ, Ética e justiça: filosofia do agir humano, p. 448.
26
H.C. de LIMA VAZ, Introdução à Ética Filosófica II, p. 231.
Paulo César Nodari; Manuel Melo | 135

para o Direito. A lei e Direito devem ser entendidos levando em conside-


ração o aspecto teleológico do paradigma ideonômico da tradição, e, por
isso, são impassíveis de uma redução à mera ciência jurídica. Com outras
palavras, segundo Lima Vaz, mesmo e inclusive, na lei deve estar implícito
o consenso ao Bem. A lei, portanto, deve obedecer a uma normatividade
que deriva da busca pelo Bem universal. Subjetivamente, o consenso ao
Bem promove a virtude da justiça, e, objetivamente, essa virtude deve ser
convertida em leis que visem ao bem comum. Salienta-se, portanto:

[…] a lição socrática nos ensina que somente a ideia da consciência moral, ou
seja, da interioridade do sujeito racional orientada para o bem, nos permite
pensar o ato moral e a comunidade ética segundo o modelo ideonômico. Ora,
é segundo esse modelo que o reconhecimento e o consenso encontram seu
lugar como momentos dialéticos universais na ideia da comunidade ética e, ao
alcançar sua expressão objetiva na Lei e no Direito, institucionalizam-se como
formas universais do bem-comum. Na vida segundo a Lei e o Direito define-
se, por sua vez, o perfil de uma consciência moral inter-subjetiva, que se ma-
nifesta eficazmente sobretudo quando alguma ameaça pesa sobre os
fundamentos éticos da comunidade 27.

Lima Vaz também discorre sobre a importância da dignidade hu-


mana, a qual deve ser considerada atributo essencial e inalienável do ser
humano 28. A dignidade só pode ser afirmada tendo em vista o consenso e
o reconhecimento, e, por isso, perpassa os âmbitos da justiça como virtude
e como lei. A dignidade então, para ser efetiva, deve ser exercida na esfera
individual e social simultaneamente. Ela precisa ser vivida e experimen-
tada na vida de cada um e precisa, evidentemente, ser reconhecida na vida
de todos os seres humanos. Afirma-se:

Desta sorte, apenas a dignidade reconhecida entre seus membros pode realizar
na vida ética concreta da comunidade o universal da justiça como virtude e
como lei. Apresenta-se aqui um encadeamento necessário entre as duas pro-
posições: Eu sou para o Bem (sujeito ético = dignidade individual) → Nós

27
H.C. de LIMA VAZ, Ética e justiça: filosofia do agir humano, p. 450.
28
H.C. de LIMA VAZ, Introdução à Ética Filosófica II, p. 202.
136 | O que torna uma vida realizada: homenagem aos 100 anos de Henrique Cláudio de Lima Vaz

somos para o Bem (comunidade ética = dignidade comunitária). Em outras


palavras, a dignidade tem sua origem e o seu fundamento no estatuto que de-
nominamos metafísico do indivíduo e da comunidade e que decorre da sua
ordenação transcendental ao Bem 29.

Ainda sobre as possibilidades de um bom convívio ético, provenientes


de uma comunidade de convívio, tal possibilidade é oportunizada, quando
houver consenso e reconhecimento, proporcionando, por conseguinte, um
convívio em que é muito significativo falar de equidade e igualdade. Ambos
se relacionam diretamente com a justiça. Equidade e igualdade seguem-se
como consequência, no momento em que se toma o consenso e o reconhe-
cimento em sua universalidade. O ethos deve estar permeado de equidade
e igualdade nas relações para um bom convívio dos indivíduos inseridos
em uma comunidade ética, que seguem as mesmas normas e valores.
Equidade e igualdade seguem-se como consequência, no momento em que
se toma o consenso e o reconhecimento em sua universalidade. Afirma
Lima Vaz:

Vale dizer, para repeti-lo ainda uma vez que a vida ética comunitária só é pos-
sível como vida justa. É mesmo permitido dizer que a ideia de um ethos
universal, hoje uma das aspirações mais profundas da nossa civilização, só é
pensável na perspectiva da concepção e da prática de uma justiça universal,
codificada numa nova e ampliada versão do jus gentium e que se estenda a
todos os campos onde indivíduos e nações se inter-relacionam 30.

2. Ética e Realização: Pessoa

A ética permeia por diversos pontos na constituição antropológica do


sujeito exercendo papel fundamental na trajetória em direção à sua reali-
zação como pessoa. Parece ser de suma importância a explanação da
categoria da realização para o entendimento da teoria ético-antropológica
de Lima Vaz. É também no processo da realização em que ocorre a ação

29
H.C. de LIMA VAZ, Introdução à Ética Filosófica II, p. 203.
30
H.C.de LIMA VAZ, Introdução à Ética Filosófica II, p. 185-186.
Paulo César Nodari; Manuel Melo | 137

humana que começa a se desenrolar a vida ética. É aí que se efetiva a uni-


dade dialética entre ser-em-si (estrutura do indivíduo) e ser-para-o-outro
(relações do indivíduo), unificando a experiência do indivíduo em seu ope-
rar humano.
Ao recuperar a noção aristotélico-escolástica de enérgeia, ou ativi-
dade, Lima Vaz demonstra que está na ação, isto é, no desenrolar de sua
existência no mundo, precisamente, o horizonte passível de realização
plena do indivíduo. Realização deve ser entendida como vida virtuosa
(areté), que busca o bem advindo da perfeição de sua ação. Através da
compreensão da condição humana (categorias estruturais e relacionais), o
indivíduo agora tem condições de perceber que, além da ontologia do ser,
a realização da própria vida revela uma necessidade moral, ou seja, um
dever ser. Esse é um dos pontos em que ocorre intersecção entre antropo-
logia e ética. Assevera, por isso, Lima Vaz:

É lícito concluir, pois, que a unidade existencial do homem, síntese da sua uni-
dade estrutural e dos seus atos – existentis enim est agere –, edificando-se
sobre um fundamento ontológico, tem necessariamente um conteúdo ético. A
unificação da própria vida não é, para o homem, um processo que se desenrola
apenas na ordem do ser, mas que se perfaz sob o signo do dever-ser, e nela
tem lugar a passagem permanente da necessidade ontológica para a necessi-
dade moral. O homem é um ser constitutivamente ético e essa eticidade é ou
deve ser o primeiro predicado da sua unidade existencialmente em devir – ou
do imperativo da sua autorrealização 31.

Um dos aspectos propostos pela antropologia de Lima Vaz parece ser


a união entre o muito criticado essencialismo estático da tradição filosófica
com o puro dinamismo de um existencialismo que deixou de lado a con-
cepção de sujeito. O ser humano, pensado como expressividade, está
sempre em movimento entre o ser que simplesmente é e o ser que se sig-
nifica na constituição em-si (estrutura) e na sua conversão ao outro
(relações). Assim sendo, a realização é o processo de automanifestação do
próprio ser que o constitui como sua existência em ato (energéia). O operar

31
H.C.de LIMA VAZ, Antropologia Filosófica II, p. 146.
138 | O que torna uma vida realizada: homenagem aos 100 anos de Henrique Cláudio de Lima Vaz

propriamente humano constitui-se como síntese entre estrutura e relações


que se dá na categoria de realização. Acentua Lima Vaz:

A realização se mostra, portanto, como uma passagem do ser que é (identidade


ou unidade = idivisum in se) ao ser que se torna ele mesmo pela negação dia-
lética do outro no ativo relacionar-se com ele, o que implica a suprassunção
do outro no desdobrar-se da unidade fundamental (alteridade ou unificação =
divisum ab omni alio) […] Analogamente, no terreno da realização humana,
ipseidade e alteridade, opondo-se dialeticamente como estrutura e relação, são
suprassumidas no movimento da realização, no qual o ser é existência que se
efetiva como operação. O ser-em-si da estrutura e o ser-para-o-outro da rela-
ção são suprassumidos no ser-para-si da realização na conquista, pelo sujeito,
da unidade profunda que ele é como essência, mas que deve tornar-se como
existência 32.

Percebe-se que a ação humana que tem lugar na categoria de realiza-


ção opera a suprassunção dos âmbitos estruturais e relacionais do ser
humano. Por isso, uma ética que englobe o todo da experiência humana
deve ser pensada levando em consideração a subjetividade e a intersubje-
tividade como domínios inseparáveis e que encontram no agir ético sua
verdadeira unificação. A efetivação de uma ética intersubjetiva é impres-
cindível para o processo de realização do indivíduo. Logo, o momento
intersubjetivo nas categorias de relação estabelece as condições para ins-
tauração de uma convivência propriamente ética. Convivência essa que
será efetivada pelo indivíduo consciente de sua condição no mundo, rumo
à sua realização. A compreensão filosófica da relação intersubjetiva é, por-
tanto, passo importante no caminho da realização do ser humano. Afirma-
se, pois:

À luz dessa articulação entre Antropologia e Ética, podemos considerar o des-


dobramento dos níveis da relação de intersubjetividade pois, em cada um
deles, deverá manifestar-se uma forma própria de relação do homem com a
transcendência. Se a constituição desses níveis é antropológica, sua efetivação
existencial é sempre ética, de tal sorte que o agir dos sujeitos em cada um deles

32
H.C.de LIMA VAZ, Antropologia Filosófica II, p. 165.
Paulo César Nodari; Manuel Melo | 139

não pode ser pensado adequadamente senão na perspectiva de uma perfeição


ou virtude (areté), a ser praticada como forma ética da relação de intersubje-
tividade 33.

Com isso, fica evidente que, ao refletir sobre a categoria de intersub-


jetividade, Lima Vaz, muito provavelmente, tinha em mente a questão da
realização, e, posteriormente, da constituição do indivíduo como pessoa
ou pessoa moral, permeando por toda a reflexão ética e antropológica do
ser humano. É importante ressaltar que a categoria de pessoa moral na
ética de Lima Vaz não difere da concepção de pessoa na categoria antro-
pológica. Afirma Lima Vaz:

O processo de personalização envolve a totalidade de nosso ser, do corpo pró-


prio ao espírito, e todas as modalidades de nosso abrir-nos à realidade
exterior, do mundo à transcendência. Ora, esse processo é constitutivamente
ético e todo o nosso ser inscreve sua gênese e sua história no destino de uma
pessoa moral 34.

A categoria de pessoa moral representa o indivíduo como constituti-


vamente ético. O que não quer dizer que é um fenômeno que venha
ocorrer espontaneamente durante algum momento da vida individual.
Mostra-se, novamente, aqui e agora, a importância da realização. “Em ou-
tras palavras, a pessoa deve manifestar-se dinamicamente, num processo
contínuo de autorrealização, em formas distintas de personalidade. A ca-
tegoria de pessoa exprime o núcleo essencial permanente do indivíduo, as
personalidades definem as linhas de sua expansão dinâmica” 35.
Por personalidade Lima Vaz se refere aos tipos distintos de expressi-
vidade, presentes no fenômeno humano, como por exemplo, a
personalidade psicológica ou a social. A personalidade moral constitui a
verdadeira autenticidade humana, pois é constituída em duplo movimento
do “[...] livre-arbítrio à liberdade (adesão ao Bem) e o aprofundamento

33
H.C.de LIMA VAZ, Antropologia Filosófica II, p. 77.
34
H.C.de LIMA VAZ, Introdução à Ética Filosófica II, p. 239.
35
H.C.de LIMA VAZ, Introdução à Ética Filosófica II, p. 238.
140 | O que torna uma vida realizada: homenagem aos 100 anos de Henrique Cláudio de Lima Vaz

constante da consciência moral (autojulgamento do teor moral do próprio


ato)” 36. A personalidade moral é molde para o qual as outras personalida-
des devem se referir, garantindo-as, por conseguinte, enquanto
autenticidade humana. As diversas formas de personalidade são âmbitos
pelos quais a realização é levada a cabo, recordando, entretanto, que o
ponto axial e guia de toda a conduta é sempre a personalidade moral.
Afirma Lima Vaz:

Na formação da personalidade moral a pessoa opera diretamente por sua


dýnamis própria, na ordem da causalidade formal e final pela razão e na or-
dem da causalidade eficiente pela vontade. A pessoa é o sujeito primeiro da
atribuição de todos os atos da vida ética à qual compete em rigor o predicado
da dignidade. Por extensão analógica, a designação de pessoa se aplica à co-
munidade ética, que não sendo uma pessoa física, é dita pessoa moral 37.

Percebe-se, então, que uma eticidade personalista genuína constata-


se em todas as manifestações do fenômeno humano: psicologia, sociedade,
política, direito, entre outras. A pessoa moral representa a síntese da es-
sência (estrutura, subjetividade) com a existência (relações, objetividade)
na esfera ética. “O processo de personalização envolve a totalidade do ser
humano e todas as modalidades de sua abertura à realidade exterior que
vai desde a realidade do mundo, passa pela realidade da história e alcança
a realidade da transcendência” 38. O ser humano, como pessoa, constitui-
se finalmente como um ser ético.

Considerações finais

Por fim, para concluir, é importante recordar, de acordo com Lima


Vaz, o domínio das relações com o outro por um viés de reciprocidade. Foi
discorrido sobre a necessidade do reconhecimento e do consenso para a
efetivação de uma ética intersubjetiva, bem como seu papel na apreensão

36
H.C.de LIMA VAZ, Introdução à Ética Filosófica II, p. 238.
37
H.C.de LIMA VAZ, Introdução à Ética Filosófica II, p.239.
38
D. CARDOSO, Ética dialética de Henrique Cláudio de Lima Vaz, p. 252.
Paulo César Nodari; Manuel Melo | 141

do conceito de ser através do método dialético. Foi ressaltado também o


teor universal presente na ética de Lima Vaz. Reconhecimento recíproco
entre alteridades implica a percepção do outro no horizonte do Bem uni-
versal, na medida em que o consenso é ato intencional e imprescindível
para o reconhecimento, possibilitando a comunidade entre o eu e o outro,
e, por sua vez, vontade ao Bem se compreende como liberdade, conferindo,
por isso, ao consenso o status de ato intrinsecamente livre.
Percebe-se que há uma normatividade ética perpassando o caminho
para a realização plena do indivíduo. Normatividade esta, embasada na
noção platônica e aristotélica de areté, que diz respeito à perfeição do ato.
A partir da sua unidade estrutural e dirigindo-se às relações fundamentais
o homem deve buscar a excelência de sua ação, regida racionalmente con-
forme o espírito, o que confere a característica de uma ação humana
propriamente dita. O sujeito encontra na práxis a possibilidade de efetiva-
ção da virtude. Assim, “existir é viver a unificação progressiva do seu ser
no exercício dos atos que manifestam a ‘vida segundo o espírito’ como vida
propriamente humana” 39. O indivíduo deve, pois, reconhecer no Absoluto
a fonte primeira da Verdade e do Bem. A vida segundo o espírito implica
em um conhecimento da Verdade e consentimento 40 ao Bem 41.
Evidencia-se, assim, a importância do discurso antropológico na
formação do indivíduo, mostrando como a antropologia e a metafísica se
conectam para a elaboração de uma ética intersubjetiva e de uma
comunidade ética. O questionamento sobre a presença do outro na
construção antropológica do indivíduo permite uma expansão da esfera
ética. O acolhimento do outro, percebido em sua plenitude ontológica e
não mais visto como simples objeto, mostrando-se, pois, fundamental para
o verdadeiro agir ético. Por definição, uma comunidade ética só é possível

39
H.C. LIMA VAZ, Antropologia Filosófica II, p. 144.
40
O termo consentimento é usado por Lima Vaz para se referir à inclinação ao Bem universal. Já o termo consenso,
enquanto engloba também a noção de inclinação ou o consentir ao Bem, parece ressaltar o aspecto da relação Ética.
A relação que permeia entre Eu e Outro, onde ambos consentem ao Bem para efetivar uma comunidade ética. Con-
senso implica no fim em comum (comunidade ética) para ambas as partes, que, por conseguinte, devem estar em
consentimento em relação ao Bem universal. H.C. LIMA VAZ, Introdução à Ética Filosófica II, p.70-71.
41
H.C. LIMA VAZ, Antropologia Filosófica II, p.174.
142 | O que torna uma vida realizada: homenagem aos 100 anos de Henrique Cláudio de Lima Vaz

quando a alteridade é considerada em todas as suas particularidades. É


necessário que o outro seja reconhecido em sua constituição ontológica
plena ao mesmo tempo em que se toma o consenso ao Bem como
norteador do processo de reconhecimento. Lima Vaz não apenas considera
o outro em sua filosofia, mas o toma como fundamental e sem o qual não
é possível haver pessoa e nem comunidade genuinamente éticos.

Referências

LIMA VAZ, Henrique Cláudio de. Antropologia filosófica I. São Paulo: Loyola, 1991.

_______. Antropologia filosófica II. São Paulo: Loyola, 1992.

_______. Escritos de filosofia V: introdução à ética filosófica II. São Paulo: Loyola, 2000.

_______. Ética e justiça: filosofia do agir humano. Síntese, v. 23, nº 75, 1996: pp. 437-453.

_______. Escritos de filosofia II: ética e cultura. São Paulo: Loyola, 1993.

ANDRADE, Paulo Raphael Oliveira. Antropologia filosófica de Henrique Cláudio de Lima


Vaz como superação do reducionismo antropológico. 2016. 163f. Dissertação (Mes-
trado) – Programa de Estudos Pós-Graduados em Filosofia, Pontifícia Universidade
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CARDOSO, Delmar. Ética dialética de Henrique Cláudio de Lima Vaz. Revista Estudos Fi-
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HERRERO, F. Javier. A ética filosófica de Henrique Cláudio de Lima Vaz. Síntese, v. 39, nº
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NODARI, Paulo César. Reconhecimento e consenso em Lima Vaz. Revista Direito Ambiental
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OLIVEIRA, Cláudia Maria Rocha de; MELO, Edvaldo Antônio de. Ética e educação em Lima
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222.

OLIVEIRA, Jelson. Negação e poder. Do desafio do niilismo ao perigo da tecnologia. Caxias


do Sul: Educs, 2018.
Capítulo 8

A Comunidade Ética como condição de


realização segundo Lima Vaz

Elton Vitoriano Ribeiro

O problema da Comunidade ética sempre foi um desafio teórico e


prático para a humanidade. Neste texto, comento a perspectiva de Lima
Vaz que entende a Comunidade ética como condição de realização para a
vida humana. Primeiro, buscando compreender este conceito e suas estru-
turas. Depois, analisando os pares conceituais que estão presentes em
todas as Comunidades éticas contemporâneas. Finalmente, atualizando a
compreensão de Lima Vaz a partir dos desafios da contemporaneidade.

1. O que torna possível a existência da comunidade?

A comunidade humana é nossa forma de ser-em-comum, ser-com-


os-outros-no-mundo. Somos comunidade. Nela nascemos, nela vivemos e
morremos. Por ser tão fundamental e cotidiana, muitas vezes não nos per-
guntamos: o que torna possível a existência da comunidade? Ora, para
investigar esta questão, as imagens e narrativas sempre nos ajudam a,
saindo da forma espontânea e direta de existir, passarmos a forma refle-
xiva, propriamente filosófica, onde colocamos em questão, criticamos e
procuramos sentido para a existência e para as nossas construções huma-
nas.
144 | O que torna uma vida realizada: homenagem aos 100 anos de Henrique Cláudio de Lima Vaz

Uma imagem sugestiva é a fábula do porco-espinho 1. Imagine um


grupo de porcos-espinhos numa noite fria de inverno. Juntos, rapidamente
se aglomeram para, através do aquecimento recíproco, suportarem a noite
e não morrerem de frio. Ou seja, os porcos-espinhos, nas noites frias de
inverno, para sobreviverem precisam ficar próximos, juntinhos, para que
um possa esquentar o outro, caso contrário morrem todos de frio. O pro-
blema é que quando chegam muito perto, os espinhos começam a
machucar, a ferir o outro. Isso faz com que eles se afastam. Mas, sozinhos
sentem frio, então precisam juntarem-se novamente. Neste vaivém cons-
tante, em meio aos dois sofrimentos, o frio e os espinhos, pouco a pouco,
eles aprendem que a única forma de sobreviverem é conviver com as pe-
quenas feridas, já que o calor partilhado é importante para a
sobrevivência. Para continuarem vivos eles precisam uns dos outros.
Na fábula anterior já está presente todo desafio e toda beleza da con-
vivência humana. Sempre vivemos juntos. Mas, como somos únicos,
singulares, temos que aprender a conviver uns com os outros, a viver em
comunidade. É nesta convivência, nesta comunidade, que aprendemos a
sociabilidade e formamos comunidades que nos fazem ser quem somos,
seres-com-os-outros-no-mundo.
Existir com os outros, para nós humanos, é formar comunidade. A
palavra comunidade vem do latim Communitas que tem várias significa-
ções. Ela pode ser compreendida como um grupo de seres humanos que
possuem certos elementos em comum, tais como idioma, costumes, valo-
res, visão de mundo, espaço geográfico, mesmo legado cultural e histórico.
Na contemporaneidade o conceito é ampliado para a ideia de interesses
comuns tão própria de nossa época. Atualmente, diante desta realidade de
nossa constituição humana, ser-em-comum possui basicamente duas vi-
sões extremadas, uma idealista e outra pessimista. A visão idealizada,
idealista, entende que toda comunidade é comunhão, concordância, har-
monia. A visão pessimista, por sua vez, aponta para a luta, a fragmentação
e o dissenso. As duas visões possuem algo de correto. Toda comunidade é

1
A. SCHOPENHAUER, A. Parerga e Paralipomena. p.884.
Elton Vitoriano Ribeiro | 145

espaço de vivência ética e política; espaço de costumes e normas; espaço


de discussão e escolhas. Mas, também, é lugar de desencontros, lutas, de-
sentendimentos e abusos. No entanto, e isso é o mais importante, toda
comunidade é lugar de socialização, e é na socialização que nos tornamos
quem nós somos: seres de comunidade.
Ao longo da nossa história encontramos vários tipos de comunidades.
As comunidades tradicionais, fortemente marcadas por uma visão de
mundo comum, possuem um forte ethos, ou seja, fortes costumes que re-
gem a vida das pessoas e proporcionam uma coesão maior entre as
pessoas em torno da comunidade 2. Isto não é mais possível em sociedades
contemporâneas como as que temos nas grandes cidades 3. Hoje, é possível
apenas em comunidades tradicionais que vivem isoladas do resto do
mundo ou sob forte regime de controle. Na atualidade, de modo geral, as
comunidades são de dois tipos: comunidades por afinidades ou comunida-
des por interesses. As comunidades por afinidades são aquelas que nos
unem por fortes afetos, como a família ou por interesses ideológicos como
são os vários grupos aos quais nos associamos ao longo da vida. As comu-
nidades por interesses são aquelas regidas pelas normas da racionalidade
instrumental e que possuem como metas interesses comuns como di-
nheiro, bens e alguns tipos de opções estratégicas. Por isso mesmo,
atualmente, as comunidades são tantas quantas são as possibilidades cri-
ativas de união e necessidades dos seres humanos. Mas em todas elas, o
que as torna possíveis?

2. Estrutura da Comunidade ética

Para Lima Vaz, entender a comunidade humana é ter uma atenção


especial para com a análise filosófica da estrutura da mesma. A filosofia,
com efeito, possui está tarefa de olhar as estruturas e as justificações das

2
H.C.de LIMA VAZ, Ética e Cultura, p.11-35.
3
C. TAYLOR, Ética da Autenticidade, p.11-22.
146 | O que torna uma vida realizada: homenagem aos 100 anos de Henrique Cláudio de Lima Vaz

estruturas que compõem o nosso existir em comum 4. Tarefa difícil porque


como afirma ele mesmo: “Como é possível definir a estrutura e estabelecer
as condições de viabilidade histórica de uma comunidade ética universal,
se a história, até agora, somente conheceu comunidades éticas particula-
res?” 5. E mais, como pensar uma comunidade ética viável se todas elas são
constantemente atingidas e abaladas por todo tipo de ideologias, hoje, es-
pecialmente, pela ideologia individualista? Ora, está é a tarefa do pensar
filosófico.
Nas análises de Lima Vaz, três termos são fundamentais para o esta-
belecimento de uma matriz conceptual que nos ajude a compreender a
comunidade ética. Toda comunidade ética, pensada filosoficamente, deve
ter um princípio ordenador, um modelo de ordem e elementos a serem
ordenados. Foram estes elementos que permitiram, segundo Lima Vaz,
que as comunidades éticas humanas, ao longo da história sobrevivessem.
Lima Vaz chega mesmo a afirmar que:

Sem a articulação destes três termos a Natureza se mostraria como um caos


inabitável para o homem, e a sociedade não poderia constituir-se na sua es-
trutura organizacional; ou ainda, perdidas as coordenadas desse espaço
intencional de referência, a sociedade mergulharia nessa anomia intolerável
que caracteriza justamente a consequência extrema do niilismo ético 6.

A discussão sob os vários aspectos desta citação é longa e não é aqui


o lugar de explicá-la. Vale dizer apenas que, para nosso autor, é necessária
uma assimetria entre os termos em questão para a vida, para o bem viver,
da comunidade. A comunidade precisa de um modelo, ou de modelos que
apontem a direção ou os caminhos que a fazem integrar-se no corpo nor-
mativo do ethos. Este modelo é organizado por um princípio ordenador
que articula os elementos a serem ordenados formando, assim, o existir
comunitário e não o caos da guerra de todos contra todos. No entanto, na
modernidade, este modelo ternário se desfaz.

4
E. RIBEIRO, E. Filosofia para pensar e viver, p.59-68.
5
H.C.de LIMA VAZ, Filosofia e Cultura, p. 144.
6
H.C.de LIMA VAZ, Filosofia e Cultura, p.145-146.
Elton Vitoriano Ribeiro | 147

O desfazer-se deste modelo teórico acontece quando o princípio or-


denador fica associado ao arbítrio do indivíduo. O princípio ordenador é
dado pelo indivíduo. Surge, então, uma matriz binária calcada na relação
indivíduo-sociedade. A partir desta relação surgem várias práticas sociais
que se tornam princípio gerador de valores e de comunidade: a participa-
ção política, a luta revolucionária, o trabalho produtivo, a comunicação, a
atividade científica, a criação artística, etc. São várias as práticas sociais
possíveis desde que tenham como fator comum um pragmatismo genera-
lizado, ou seja, desde que sejam práticas socialmente úteis à comunidade.
Para Lima Vaz, é a universalização da práxis como único princípio que gera
valores para a formação da comunidade ética nas sociedades contemporâ-
neas.

3. Pares conceituais da comunidade ética

No início deste texto, comentei que para Lima Vaz a intersubjetivi-


dade ética, o nosso ser em comum, é que forma a comunidade 7. Somos
com os outros no mundo. Por isso mesmo, a exacerbação da práxis ou a
preponderância do indivíduo não podem ser os fundamentos da comuni-
dade. Mas, por outro lado, acredito ser importante pensarmos as
consequências teóricas e práticas deste nosso ser com os outros em comu-
nidade. No pensamento ético de Lima Vaz, assim eu interpreto, partindo
do dado fundamental que somos seres comunitários, algumas ideias, al-
guns pares conceituais, podem nos ajudar a vivermos nossa Communitas
da melhor forma possível, a saber, (1) Reconhecimento e Consenso; (2)
Virtudes e Justiça e (3) Economia e Política. Não é o lugar aqui de analisar
estes pares conceituais, mas apenas apresentá-los rapidamente.
O primeiro par conceitual é o de Reconhecimento e Consenso 8. A
ideia de reconhecimento tem início no momento em que reconhecemos
que somos todos iguais, portadores da mesma dignidade, membros da

7
H.C.de LIMA VAZ, Antropologia Filosófica II, p.49-80.
8
H.C.de LIMA VAZ, Introdução à Ética Filosófica 2, p.67-94.
148 | O que torna uma vida realizada: homenagem aos 100 anos de Henrique Cláudio de Lima Vaz

mesma humanidade. Nós somos todos humanos. Reconhecer nossa hu-


manidade também presente no outro tem várias implicações nos núcleos
familiares, na sociedade civil e no estado. Em cada âmbito deste constituí-
mos afetivamente e reflexivamente nossas relações, construímos a
realidade e descobrimos o sentido de nossa existência. Autoestima, direito
e solidariedade são os frutos. Por um lado, diante do reconhecimento, o
esforço é o de criar consensos cada vez mais amplos, onde todos os envol-
vidos têm voz e vez. É sentir com, consentir em torno de assuntos básicos
e importantes para todos, saúde, educação, direitos, participação, possibi-
lidades, oportunidades. Os consensos são muitos e variados. Por outro
lado, reconhecimento e consenso, na comunidade, são sempre ameaçados
por patologias. Desrespeito, violências, falta de oportunidades, desigual-
dades sociais, são alguns. As comunidades são sempre fontes de
possibilidades e de limitações 9.
O segundo par conceitual é Virtudes e Justiça 10. As virtudes nós as
aprendemos em comunidades. É em comunidade que aprendemos a amar,
a falar, a relacionar, a discernir. Comunidades virtuosas possuem grande
possibilidade de gerar seres virtuosos, que fazem escolhas com prudência,
discernimento, buscando o bem comum e construindo valores. Por isso a
pergunta, como são nossas comunidades hoje? As comunidades das quais
faço parte. São comunidades onde as virtudes são valorizadas e ensinadas?
São comunidades de bem comum e de justiça, ou seja, onde o bem comum
e a justiça são, ao menos, fonte de questionamento sobre a forma como
vivemos, nos organizamos e distribuímos os bens e as oportunidades? 11
Em comunidades virtuosas, a justiça sempre teve o importante papel
de equilibrar. Diante das diferenças constitutivas, porque nossa igualdade
é uma abstração, somos todos diferentes, a justiça, como lei e como vir-
tude, equilibra a sociabilidade. Por um lado, nas comunidades

9
E. RIBEIRO, Reconhecer-se reconhecido: o problema do reconhecimento enquanto questão antropológica, ética e
política, p.387-400.
10
H.C.de LIMA VAZ, Ética e Justiça: Filosofia do Agir Humano, p.547-592.
11
E. RIBEIRO, A categoria de Justiça: momento fundamental de realização da Comunidade Humana como Comuni-
dade Ética, p.70-78.
Elton Vitoriano Ribeiro | 149

contemporâneas, a justiça social, ou socioambiental como se costuma falar


hoje, nos ajuda a construirmos uma comunidade onde todos têm, ao me-
nos teoricamente, lugar e oportunidade. Por outro lado, a falta de busca
pela justiça social é fonte de muitas patologias, violências e desentendi-
mentos.
Finalmente, economia e política são estruturas organizacionais onde
as comunidades, concretamente, existem. A economia é o reino das neces-
sidades. Ela organiza a comunidade nos seus mais diferentes aspectos e
necessidades. A política, reino das relações humanas, nos possibilita a
busca por consensos mais amplos, em torno de aspectos da nossa vida,
elegendo prioridades e possibilitando oportunidades 12.
Assim, quando os pares conceituais anteriores se relacionam e bus-
cam equilíbrios e caminhos; a comunidade caminha na direção à sua
realização no mundo histórico. Na realização da comunidade, encontra-
mos o espaço propício para a realização da pessoa. Neste aspecto, a
realização da comunidade e da pessoa acontecem quando a estima de si, a
solicitude com o outro e as instituições justas florescem. Nestes momentos,
para alguns raros, mas sempre possíveis, as comunidades são, na imensa
variedade de possibilidades existentes, fontes de realização humana.

4. Desafios

A elucidação anterior nos ajuda a perceber os grandes desafios teóri-


cos para pensar a comunidade ética como lugar de realização humana,
como lugar de florescimento humano. Para Lima Vaz, duas perguntas são
fundamentais. A primeira pode ser assim interpretada: existe uma neces-
sidade profunda de buscar um princípio transcendente para a realização
humana individual e comunitária? A segunda pergunta pode ser assim
formulada: é possível e, se sim, como encontrar uma forma histórica de
efetivação da comunidade ética capaz de assegurar a estruturação de uma

12
E. RIBEIRO, Filosofia política e Sociedade. Uma leitura a partir do pensamento filosófico de Lima Vaz, p.9-15.
150 | O que torna uma vida realizada: homenagem aos 100 anos de Henrique Cláudio de Lima Vaz

comunidade ética universal? Perguntas pertinente e difíceis de serem res-


pondidas. Ainda mais porque, na percepção de Lima Vaz nosso tempo é
caracterizado por uma:

Hipertrofia da estrutura binária indivíduo-sociedade, seja na forma de uma


exacerbação do individualismo, seja na cisão cada vez mais profunda entre
sociedade civil e estado, esse arrastado pela dialética da acumulação do poder,
aquela pela dialética da satisfação cumulativa de necessidades sempre novas 13.

Todas estas questões exigem uma interpretação filosófica de nossa


realidade intersubjetiva, como seres comunitários e, por isso mesmo, éti-
cos. Por um lado, acredito que não seria exagerado pensar em uma
reinterpretação de nossa ontologia social, historicamente situada e her-
deira das tradições que nos formaram. Por outro lado, muitas das
respostas atuais são menos estruturais, como repensar nossa ontologia so-
cial, e mais pragmáticas, como reinterpretar os pares conceituais que
apresentei anteriormente. Esta pragmática ético-filosófica deve ter como
princípio a ideia de Marco Olivetti 14, citado por Lima Vaz, de que a comu-
nidade ética deve ser entendida como um modo de vida em sociedade na
qual as relações intersubjetivas são regradas por leis concebidas como leis
públicas. Eis o grande desafio.
Finalmente, retomando a fábula do porco-espinho, encontro uma
resposta genial, e altamente poética e inspiradora, num texto de Carlos
Drummond de Andrade, do ano de 1952, intitulado Passeios na Ilha. Diz o
poeta: “Minha ilha (e só de a imaginar já me considero seu habitante) fi-
cará no justo ponto de latitude e longitude, que, pondo-me a coberto de
ventos, sereias e pestes, nem me afaste demasiado dos homens nem me
obrigue a praticá-los diuturnamente”. Talvez esteja aqui parte do caminho
de formação da vida comunitária e de realização humana em comunidade.

13
H.C.de LIMA VAZ, Filosofia e Cultura, p.150.
14
M. OLIVETTI, El problema de la comunidade ética, p.209-222.
Elton Vitoriano Ribeiro | 151

Referências

LIMA VAZ, H.C. Antropologia Filosófica II. São Paulo: Loyola, 1992.

LIMA VAZ, H. C. Ética e Justiça: Filosofia do Agir Humano. Síntese - Revista de Filosofia.
1996, n.75, p.547-552.

LIMA VAZ, H.C. Escritos de Filosofia III: Filosofia e Cultura. São Paulo: Loyola, 1997.

LIMA VAZ, H.C. Escritos de Filosofia II: Ética e Cultura. São Paulo: Loyola, 1988.

LIMA VAZ, H.C. Escritos de Filosofia V: Ética Filosófica 2. São Paulo: Loyola, 2000.

OLIVETTI, M. El problema de la comunidade ética. In: SCANNONE, J.C. (Ed.), Sabiduria


Popular, Símbolo y Filosofia. Buenos Aires, Guadalupe Ed., 1984.

RIBEIRO, E. A categoria de Justiça: momento fundamental de realização da Comunidade


Humana como Comunidade Ética. Revista de Filosofia Argumentos, Ano 3, n.6, 2011,
p. 70-78.

RIBEIRO, E. Filosofia para pensar e viver. Cultura e Fé - Revista de Humanidades. Jan./Mar.


2014, n.144, Ano 37, p.59-68.

RIBEIRO, E. Reconhecer-se reconhecido: o problema do reconhecimento enquanto questão


antropológica, ética e política. Síntese - Revista de Filosofia, 2016, n.137, p.387-400.

RIBEIRO, E. Política, Filosofia política e Sociedade. Uma leitura a partir do pensamento


filosófico de Lima Vaz. Revista ANNALES, v.2, n.2, 2017, pp.9-15.

SCHOPENHAUER, A. Parerga e Paralipomena. Milano: Edizioni Adelphi, 2007, Vol.II, Ca-


pitolo XXXI, Sezione 396.

TAYLOR, C. Ética da Autenticidade. São Paulo: É Realizações, 2011.


Capítulo 9

O Desafio Contemporâneo da Vida Ética em Lima Vaz

Maria Celeste de Sousa

A obra filosófica de Lima Vaz expressa uma atitude comprometida


com o tempo presente, com o “aqui e agora” da situação na qual o filósofo
se encontra e sente-se impelido a exercer a sua “vocação de filosofar”. E
um dos temas centrais de seu pensamento é a vida ética em uma sociedade
capitalista, tecnológica, secularizada, individualista, relativista e niilista
como a sociedade contemporânea. Semelhante aos filósofos gregos que
iniciaram a práxis filosófica a partir do admirar-se (thaumazein) diante da
multiplicidade do real e buscaram um princípio (arkhe) inteligível que jus-
tificasse a ordem do todo, Lima Vaz analisa os fenômenos da vida
contemporânea, especificamente o desenvolvimento crescente das rela-
ções sociais no campo das necessidades e dos interesses e questiona a
possibilidade da razão prática como orientação e fim da ação humana.

1. Vida conectada: ligação ou relação?

O fenômeno da redução utilitarista nas relações humanas despertou


a pergunta de Lima Vaz sobre o sentido da práxis na modernidade. Com
efeito, a desconstrução do universo simbólico dos valores e a hegemonia
da tecnociência em sua quarta revolução denota uma profunda mutação
na subjetividade e sociabilidade do homem ocidental evidenciando o im-
pacto da cibercultura na vida cotidiana e sua influência na transformação
do humano e na criação de uma linguagem pós-humana.
Maria Celeste de Sousa | 153

A filósofa portuguesa Maria Assumpta define a cibercultura como a

nova concepção de existência influenciada pela multimídia, pela realidade vir-


tual e pelas redes de comunicação digital, caso da internet, que nos transporta
a grande velocidade para mundos simulados e “on-line” onde podemos pene-
trar e interagir com outras pessoas 1.

A vida conectada ao mundo simulado e on-line se constitui o novo


modelo de relação intersubjetiva. Para o filósofo francês Guy Debord esta
é a sociedade do espetáculo, em que a representação do mundo através do
mass-média vai cedendo espaço para a criação de uma sociedade “que
surge da simulação do mundo, fruto das redes telemáticas, do hipertexto,
da multimídia interativa, da realidade virtual” 2.
O homo zappiens vive permanentemente na vertigem das imagens, é
um homem exteriorizado, voltado para o eterno instante do desejo imedi-
ato, no fascínio pelo fetiche e desfrute do figurativo, na procura por uma
felicidade instantânea. Sua atitude é mais passiva do que reflexiva e ativa.
A filósofa portuguesa comenta:

Este sujeito animado pela instantaneidade tecnológica, compelido pelos fluxos


e atraído para um presente convertido em atualidade, pode consumar a sua
realização pessoal e intersubjetiva no aqui e agora carregado de sensaciona-
lismo e de emoções. Isto o pode fazer cair no paradoxo de que quanto mais se
comunica e se informa, mais se desinforma ou, ainda, arrastá-lo para tornar a
encenação pela realidade, ele se afoga em um oceano de imagens técnicas que,
por sua vez, o podem impedir da distinção entre o que é real e o que é resultado
da manipulação de imagens” 3.

O sujeito se torna um joguete das tribos digitais que controlam a sua


existência, determinando-lhe um estilo de vida e de interesses com regras
que devem ser rigorosamente seguidas. Crianças e jovens são os mais afe-
tados pelo poder da mídia e as consequências são evidentes nos sinais

1
M. A. COIMBRA, (Des)humano, demasiado (des)humano. O homem na era digital uma reflexão com Pierre Lévy.
Porto: Edições Afrontamento, 2010, p. 53.
2
G. DEBORD, A Sociedade do Espetáculo, p. 5.
3
M. A. COIMBRA, (Des)humano demasiado (des)humano, p. 72.
154 | O que torna uma vida realizada: homenagem aos 100 anos de Henrique Cláudio de Lima Vaz

emitidos na “crescente incapacidade de concentração, motivada pela pro-


liferação em excesso de estímulos comunicacionais” 4. Acrescenta-se a
dificuldade no convívio social, pela centralização em interesses pessoais e
egocêntricos que inviabilizam a formação de um consenso social. As-
sumpta afirma: “este modo de produção e de processamento de
informações ou de mensagens, não somente acarreta sofisticação, abun-
dância informativa e diversificação dos emissores como, também,
desencadeia stress e ansiedade” 5. Esta realidade precisa ser compreendida,
refletida e criticada. Como estabelecer os limites na interface homem e
máquina?
Alguns teóricos contemporâneos atentam para o fenômeno da muta-
ção do humano em transhumano pela progressiva transformação do corpo
humano em um corpo digital e o limite em que se situa a imagem do su-
jeito pós-moderno. Katherine Hayles comenta a configuração do homem
em “máquinas inteligentes” cujas características restringem-se a um me-
canismo de processamento de informação, com efeito, o corpo está se
tornando um modelo informacional em detrimento do material e a cons-
ciência um acessório e não um lugar da identidade. O corpo é comparado
à mera prótese manipulável e substituível e não há a diferença entre “a
simulação de computador, mecanismo cibernético e organismo biológico,
teleologia do robot e finalidades humanas” 6. Este corpo digital converte-
se em pura imagem, numa subjetividade desencarnada.
A autora refere-se à transformação cultural sob o impacto das tecno-
logias na avaliação dos níveis das crenças, dos valores, das convicções e da
estruturação da vida individual e coletiva e afirma: “o sujeito pós-humano
é uma amálgama, uma coleção de componentes heterogêneos, uma enti-
dade material-informacional cujos limites sofrem contínua construção e
reconstrução” 7.

4
M. A. COIMBRA, (Des)humano demasiado (des)humano, p. 58.
5
M. A. COIMBRA, (Des)humano demasiado (des)humano, p. 58.
6
R. HAYLES, Haw the Became Posthuman, p. 12. In: M. A. COIMBRA, (Des)humano demasiado (des)humano, p. 108.
7
R. HAYLES, Haw the Became Posthuman, p. 13. In: M. A. COIMBRA, (Des)humano demasiado (des)humano, p. 89,
nota 6.
Maria Celeste de Sousa | 155

O pós-humanismo confere uma ruptura com o “perfil identitário”


transmitido pela tradição antropológica e liberta o humano dos limites do
orgânico, minimizando a transcendência e estabelecendo novas bases para
a construção de identidades funcionais e múltiplas. Maria Assumpta rei-
tera:

atualmente, o sujeito é reduzido à superfície. A tônica é colocada numa des-


centração do humano em favor da máquina. O humano deixa de ocupar o
lugar de destaque porque no paradigma da vida artificial a máquina torna-se
o modelo para compreensão do humano. Assim, o humano é transfigurado em
pós-humano. Preconiza-se a criação de vida dentro da máquina e a capacidade
desta se pautar por um processo evolutivo. Defende-se a co-evolução do ho-
mem e da máquina 8.

Na era digital, o tempo é um “presente dilatado” às fronteiras do


mundo presente e o homem-presente comprime o tempo negando-lhe os
intervalos. O único fato a ter sentido expressa-se no vivido, no perceptível
e representável pela transmissão assincrônica, ou sincrônica essencial-
mente identificada por um conjunto de “nós” interconectados no tempo
presente, caracterizado pelo imediatismo, instantaneidade, simultanei-
dade e urgência. Um “tempo mundial” independente dos aspectos
geográficos e históricos. Os laços intersubjetivos, o reconhecimento do ou-
tro e as tradições são minimizadas. Há mais uma ligação, do que uma
relação.
O mundo ainda é comum? Como perspectivar o futuro do humano
convertido em pós-humano? Esta perspectiva significará a aniquilação do
homem, ou um novo caminho se abre no relacionamento entre homens e
máquinas?
Vallenila reflete a crescente ultrapassagem da concepção moderna e
antropomórfica de técnica para a metatécnica e a formação da linguagem
pós-humana. Ele explica:

8
M. A. COIMBRA, (Des)humano demasiado (des)humano, p. 111.
156 | O que torna uma vida realizada: homenagem aos 100 anos de Henrique Cláudio de Lima Vaz

com a metatécnica emerge uma transracionalidade, caracterizada por ser


‘trans-finita’, ‘trans-humana’ e ‘trans-óptica’, não restringida simplesmente á
violência e evidencia (meramente ópticas) que alimentavam o logos técnico
tradicional. Vislumbra-se o advento de um novo ‘logos’, um ‘logos-metatéc-
nico’, ‘trans-humano’ não de características antropomórficas,
antropocêntricas e geocênctricas” 9.

Este novo “logos” possibilita outras formas de inteligibilidade e de


organização do real, que ultrapassa a propriedade exclusivamente visual,
os limites inatos dos sentidos humanos, porque ele substitui radicalmente
os fundamentos ontológicos e epistemológicos e a própria técnica como
expoente de racionalidade.
O “logos-transhumano” define a função demiúrgica do homem em
seu livre arbítrio e vontade manipuladora da natureza e substitui as cate-
gorias antropológicas da corporalidade, finitude, mortalidade,
contingência e animalidade uma vez que o ser humano cada vez mais se
limita “a um mero processador de informação” sendo a técnica “caracteri-
zada como uma forma de extensão do corpo humano” 10, por conseguinte,
atualmente efetiva-se a desconstrução nas dicotomias tradicionais como:
alma/corpo, imanente/transcendente; matéria/forma; substância/aci-
dente, matéria/espírito, homem/máquina, humano/não humano,
natural/artificial e natureza/cultura.
Para a filósofa Maria Assumpta a padronização do transhumano fora
dos contornos e limites do humano denota a artificialidade dos sentidos e
alteram a explicação da realidade trazendo “inéditas possibilidades, equa-
cionadas para além das limitações físicas, psicossomáticas e das
coordenadas espaço-temporais. Acarreta significativas implicações quer
na definição de “eu”, da verdade e do cogito enfim, quer na própria con-
cepção de homem” 11.

9
E. M. VALLENILLA, Fundamentos da meta-técnica, p. 98.
10
M. A. COIMBRA, (Des)humano demasiado (des)humano, p. 97.
11
M. A. COIMBRA, (Des)humano demasiado (des)humano, p. 105.
Maria Celeste de Sousa | 157

O pós-humano é uma nova representação do homem ou um novo


estágio a alcançar? O mundo simbólico adquire novas formas de expressão
que também precisam ser compreendidas e aprofundadas. Qual o sentido
da linguagem? Será que Deus e o homem estão mortos? Será que o nii-
lismo é total? Ou será que a existência verdadeiramente humana precisa
ser compreendida em sua essência?
O fenômeno da cibercultura desperta a reflexão sobre o ato humano,
que segundo Lima Vaz é um ato total e essencialmente pessoal. O filósofo
brasileiro está convicto de que a vida humana tem sentido e que a “práxis
é, por definição, o lugar da liberdade como princípio de deliberação (boú-
leusis) e de escolha (proaíresis)12, portanto, como um bom educador ele
apresenta ao homem contemporâneo a inteligibilidade da vida virtuosa na
passagem do livre-arbítrio à liberdade.

2. Vida virtuosa: do livre-arbítrio à liberdade

Lima Vaz afirma na Ética Filosófica que o “homem se realiza agindo,


isto é, existindo na ação: existentes enim agere” 13. A singularidade e com-
plexidade da vida humana denota a relação entre metafísica e ética na
conquista diária de sua realização como uma vida virtuosa. Lima Vaz iden-
tifica na Ética Filosófica os invariantes conceptuais ou as categorias que
mostram o fio inteligível de uma vida sensata e definem a identidade na
diferença das suas manifestações históricas. Como um bom dialético, o fi-
lósofo brasileiro reflete o movimento de passagem do livre-arbítrio à
liberdade na constituição de uma vida segundo o Bem.
No primeiro momento ele retoma da tradição a ideia de que a virtude
é a categoria universal que qualifica o exercício da razão prática na vida
ética individual. A virtude expressa o movimento interativo entre o Bem
(agathon) e o indivíduo que assume o bem como forma de viver. É um
movimento progressivo entre o estático (o homem bom) e o dinâmico

12
H.C.de LIMA VAZ, Antropologia Filosófica II, p. 160.
13
H.C.de LIMA VAZ, Antropologia Filosófica II, p.160.
158 | O que torna uma vida realizada: homenagem aos 100 anos de Henrique Cláudio de Lima Vaz

(crescimento contínuo no Bem) caracterizando a vida prática como uma


vida segundo a virtude, isto é, uma vida direcionada para um fim o Bem,
na diferença qualitativa dos múltiplos bens que se oferecem ao indivíduo
ao longo da vida.
Como mediania entre a carência e o excesso, a virtude expressa a di-
fícil tarefa da educação moral como “posse permanente do sujeito ético,
operando, porém, de sorte a torná-lo sempre outro na diferença com que
tende a realizar sempre melhor a enteléqueia ou a perfeição da sua orien-
tação para o Bem” 14. Por conseguinte, a vida segundo o Bem é a forma
mais elevada da vida humana, a essência da resposta socrática à exortação
de Píndaro: torna-te o que és!
O segundo momento denominado de situação constitui o elemento
mediador, caracterizado pela multiplicidade de eventos em que se situa o
sujeito histórico e em que a virtude enquanto potência ativa se concretiza
no existir ético. Este existir manifesta-se como passagem do livre-arbítrio
à liberdade pelo aprofundamento progressivo da consciência de morali-
dade resultando na formação da personalidade moral.
O terceiro movimento é o ato singular da decisão. O sujeito sendo
confrontado pela sucessão de atos que tecem a sua vida deve deliberar e
decidir o que fazer. A vida ética expressa primazia da metafísica do Bem
sobre as experiências que o sujeito vive historicamente no mundo da vida,
pois se ele vive eticamente, seu modo de viver tem como causa a razão
prática, ou o fio condutor da racionalidade livre do agir ético que emerge
do turbilhão das condições empíricas por meio do “juízo de decisão, como
ato do sujeito racional e livre, na sua especificidade ética. (...) Sendo vivida,
a vida ética é um crescimento, e sendo vida no bem é um crescimento no
qual se cumpre a ordenação ontológica do ser humano racional e livre,
para o fim que é o bem” 15.
Lima Vaz diferencia livre-arbítrio da liberdade. Na Ética Filosófica II,
no momento da aporética histórica ele rememora a forma como este dado

14
H.C.de LIMA VAZ, Introdução à Ética Filosófica II, p. 146.
15
H.C.de LIMA VAZ, Introdução à Ética Filosófica II, p. 167.
Maria Celeste de Sousa | 159

se constituiu ao longo do tempo. Ele afirma que a primazia da liberdade


sobre o livre-arbítrio é um tema que inicia com Sócrates quando este
aponta o finalismo do Bem sobre o poder de cada um fazer o que quiser e
sugere “a adesão constante ao Bem na qual consiste propriamente a liber-
dade” 16.
Esta intuição foi assumida pelos estoicos, por Plotino e é enriquecida
por Agostinho que insere o “caminho da liberdade na dialética do uso e
fruição (uti-frui), ao transfundir a sabedoria no amor passando a definir a
virtude como ordo amoris” 17. Tomás de Aquino amplia o tema pela formu-
lação de uma antropologia da liberdade pela qual o aquinate difere entre
voluntas e liberum arbitrium na unidade da mesma potência ativa, isto é,
a vontade. Esta tende à “adesão imediata ao bem desejado como fim, na
qual se realiza a liberdade, ao passo que ao livre-arbítrio cabe a escolha
dos meios” 18.
Com a primazia do sujeito sobre o ser, característica da modernidade
a liberdade passa a ser considerada como forma superior do simples livre-
arbítrio. No entanto, Lima Vaz define a vida ética como o “progresso ou
crescimento na liberdade, na livre adesão ao Bem” 19. Isto significa o pro-
cesso pelo qual o sujeito passa da intencionalidade abstrata para a ação
concreta na formação de uma identidade intencional, que se define pela
homologia entre razão prática e Bem.

Ela se realiza progressivamente na sucessão dos atos do livre-arbítrio (juízos


de decisão) cujos objetos são os bens particulares circunscritos pela situação
do sujeito, e como tais, apresentando-se apenas como meios ou condições no
exercício da Razão prática 20.

Estes atos são, por sua vez, suprassumidos no movimento da razão


prática, pela qual o sujeito assume a sua identidade intencional com o Bem

16
H.C.de LIMA VAZ, Introdução à Ética Filosófica II, p. 168.
17
H.C.de LIMA VAZ, Introdução à Ética Filosófica II, p. 169.
18
H.C.de LIMA VAZ, Introdução à Ética Filosófica II, p. 169.
19
H.C.de LIMA VAZ, Introdução à Ética Filosófica II, p. 170.
20
H.C.de LIMA VAZ, Introdução à Ética Filosófica II, p. 170.
160 | O que torna uma vida realizada: homenagem aos 100 anos de Henrique Cláudio de Lima Vaz

como Fim. “Tal é a vida ética como liberdade realizada, manifestando-se


na constância e progresso de uma vida virtuosa” 21.
O segundo movimento da vida ética se constitui pela passagem da
simples identidade ética ou consciência moral à ipseidade ética ou intensi-
dade reflexiva do ato da consciência moral como ato da pessoa, processo
permanente em que a personalidade moral efetiva a interrelação entre es-
sência e existência. Ele afirma: “do ponto de vista antropológico o ser
humano é essencialmente pessoa. Como pessoa é constitutivamente um
ser ético” 22.
A pessoa é motivada intencionalmente, a tornar-se o que ela é, uma
personalidade moral, tarefa sempre recomeçada em meio às condições ad-
versas em que ela está situada. É por isso que Lima Vaz constata que a
personalidade moral é a forma da vida ética assegurando a identidade na
diferença dos atos do sujeito e expressando o dinamismo que perpassa to-
das as atividades do sujeito. O núcleo de todo este movimento formador é
a consciência moral.
Lima Vaz afirma ainda um último passo para a definição da singula-
ridade da vida ética pelo progresso da consciência moral como ato, à
semelhança do pensamento tomásico, quando Tomás de Aquino refletiu
sobre o juízo judicativo, a saber: a consciência moral desdobra-se sobre si
mesma na constituição de sua identidade moral estabelecendo a diferença
vivida no processo de sua formação moral. Este é o processo que conduz à
constituição da liberdade para o Bem.
A circularidade do silogismo ético demonstrou a inteligibilidade do
ato humano na universalidade da virtude, na particularidade da situação
e na singularidade da decisão livre do sujeito em constituir sua personali-
dade moral, como uma vida segundo o Bem. A vida ética deve ser vivida,
portanto, segundo os parâmetros da elevação da indeterminação do livre-
arbítrio à determinação da liberdade na profunda adesão ao Bem.

21
H.C. de LIMA VAZ, Introdução à Ética Filosófica II, p. 170.
22
H.C. de LIMA VAZ, Introdução à Ética Filosófica II, p. 171.
Maria Celeste de Sousa | 161

O paradoxo em que se encontra a práxis humana no impasse entre


uma vida segundo o livre-arbítrio ou uma vida segundo a liberdade evi-
dencia a necessidade de aprofundamento sobre a forma ética de viver ou
sobre a prática da reciprocidade.

3. Vida ética: o desafio da reciprocidade

A frenética interatividade virtual na sociedade globalizada denota um


paradoxo na relação intersubjetiva quanto ao sentido da relação. Lima Vaz
demonstra na Ética Filosófica que a intersubjetividade é “essencialmente
uma relação recíproca. Ela se realiza no reconhecimento e no consenso” 23.
A primeira experiência é a prática do reconhecimento. O “primum
relacionis”, em que se desenvolve o autoconhecimento na medida em que
as consciências se relacionam e reconhecem o outro como outro eu. O mo-
vimento de passagem do dado ao significado revela a abertura da liberdade
finita à amplitude transcendental do Bem (agathón) evidenciando a parti-
cipação do sujeito na vida do espírito, uma vez que o espírito é a
manifestação do Ser como Verdade e o consentimento do Ser como Bem e
se concretiza historicamente na relação de reciprocidade, constitutiva do
espírito presente nas pessoas. Lima Vaz afirma:

O grande desafio que se apresenta à comunidade ética como lugar concreto de


efetivação do reconhecimento e do consenso é preservar em meio à
ambiguidade das situações, o espaço de uma autêntica reciprocidade no agir
ético de seus membros. Seria arriscado e mesmo ineficaz, como atesta a
experiência de cada um, confiar aos indivíduos, envolvidos na particularidade
das situações infinitamente diversas, a preservação do espaço social da
reciprocidade, ou seja, a permanência no tempo da natureza ética da
comunidade. Daqui a invenção, historicamente decisiva, da norma e da
instituição que, surgindo ao termo do movimento dialético do consenso ao
nível da universalidade do agir ético, comprovam no nível da particularidade

23
H.C. de LIMA VAZ, Introdução à Ética Filosófica II, p. 80.
162 | O que torna uma vida realizada: homenagem aos 100 anos de Henrique Cláudio de Lima Vaz

das situações históricas da comunidade sua função estabilizadora e


mantenedoura do consenso na sua essencial reciprocidade. 24

A segunda experiência é a prática do consenso, inteligibilidade voli-


tiva que expressa conexão de sentido na vida comunitária, na dinâmica
entre o bem universal (ethos), o bem particular (práxis) e o bem singular
o hábito (hexis). Lima Vaz afirma ser a moralidade um pressuposto à so-
cialização e à participação nas instituições sociais, pela aceitação e
cumprimento da Lei, que é a ordenação prática da razão em vista do bem
comum ou consciência moral social. A consciência moral social é essência
da relação intersubjetiva e negação da finitude histórica da comunidade e,
ao mesmo tempo, afirmação do ethos que rege a comunidade. Lima Vaz
reitera:

O consenso fruto da vontade inclinada ao universal do Bem age como causa


eficiente ao realizar a especificidade ética do encontro na complexidade da si-
tuação. Segundo a relação de intercausalidade que, como sabemos, vigora
entre a inteligência e a vontade no desenrolar do agir ético, o reconhecimento
como causa formal especifica o consenso que resulta do movimento da von-
tade, e o consenso como causa eficiente move o reconhecimento no sentido da
aceitação ativa do outro 25.

A terceira experiência é a prática ético-política. Lima Vaz atualiza os


princípios ontológicos da vida política e da prática democrática: Justiça,
Direito, Democracia e Dignidade Humana.
A comunidade ética se sedimenta universalmente na Justiça e no Di-
reito e se efetiva concretamente no plano político, qualidade social da
relação entre ética e política. A Democracia é a melhor forma para esta
relação porque ela não é apenas um regime de governo, mas a essência
ética do político, ou a justiça na alma. Esta é uma ideia reguladora que
enfeixa a unidade do político e, ao mesmo tempo, se constitui uma meta a

24
H.C. de LIMA VAZ, Introdução à Ética Filosófica II, p. 81.
25
H.C. de LIMA VAZ, Introdução à Ética Filosófica II, p. 79.
Maria Celeste de Sousa | 163

ser alcançada pela sociedade, por meio do reconhecimento da dignidade


pessoal dos seus membros no plano ético.
A formação política para a igualdade passa por três níveis de experi-
ências: Na vivência social caracteriza-se a luta pelas satisfações das
necessidades econômicas. A ideia de igualdade é abstrata, uma vez que ela
limita-se ao plano da sobrevivência. Na vivência política esta igualdade
abstrata é suprassumida pela igualdade na diferença perante a lei, ou pelo
reconhecimento do outro, fundamento da sociabilidade. Na vivência de-
mocrática efetiva-se a igualdade participativa, diferença entre o estado de
direito (ato justo) e o estado democrático (ato livre).
O nível mais elevado na inteligibilidade da relação intersubjetiva é a
dignidade humana. O movimento dialético ultrapassa a esfera do lógico e
entra no domínio da existência como estrutura inteligível da ação e da re-
flexão que lhe é imanente sobre a forma de consciência moral e explicita o
exercício da razão prática intersubjetiva, que é a vida ética.
Cada cidadão conscientiza-se da importância de sua práxis pela pas-
sagem do livre-arbítrio ao exercício da liberdade. Tarefa contínua da
Educação já que a liberdade não é doada, mas conquistada diariamente
pela pessoa. Toda comunidade humana é necessariamente uma comuni-
dade ética, uma comunidade personalista. Enfim, a sociedade qualificada
como comunidade ética deve reconhecer “a primazia social e jurídica da
liberdade para o bem e na qual a consciência moral dos indivíduos está
presente de modo eficaz na constituição e na vida de uma consciência mo-
ral social”26.
O pensamento ético-político de Lima Vaz suscita alguns desafios so-
bre a prática da reciprocidade no mundo contemporâneo.
O primeiro refere-se à vida familiar, experiência fundante do pro-
cesso de humanização e efetivação do caráter ético da reciprocidade. A
relação dialógica “mantida pela atitude essencialmente ética da fidelidade,
perseverando pela amizade e encontrando a sua realização mais alta no

26
H.C. de LIMA VAZ, Introdução à Ética Filosófica II, p. 205.
164 | O que torna uma vida realizada: homenagem aos 100 anos de Henrique Cláudio de Lima Vaz

amor” 27, revela a importância destes laços afetivos e gratuitos na vida


humana. A desarticulação familiar minimiza a formação da personalidade
moral e favorece o crescimento do abandono e da violência à criança e ao
adolescente.
O segundo desafio é a vida comunitária. Nesta a reciprocidade se am-
plia para acolher um terceiro (Ele, Ela) afinados pela amizade e pela
aceitação das normas comuns que prescreve a prática da justiça como
equidade e não admite discriminações arbitrárias na participação dos bens
da existência comunitária. Lima Vaz reitera:

o encontro comunitário exerce uma essencial função de mediadora pois é nor-


malmente por meio da experiência da participação comunitária e da forma de
consciência moral social nela vivida que o indivíduo se prepara para elevar-se
ao nível mais alto do encontro na sociedade 28.

Segundo Sousa “a sociedade moral como comunidade de pessoas está


na origem da sociedade política” 29, por conseguinte, o esvaziamento do
sentido da vida comunitária enfraquece os grupos sociais, diminuem as
lideranças e obscurece o engajamento e o compromisso em defesa do bem
comum. O individualismo e o niilismo ocupam os espaços sociais.
O terceiro desafio é a vida social. A compreensão de que na sociedade
civil a reciprocidade é mediada por leis juridicamente elegidas e que as
instituições sociais efetivam a relação entre moralidade e sociabilidade.
Lima Vaz explica: “a sociedade civil exprime o compromisso ético dos seus
participantes do ponto de vista da função social que desempenham e, por-
tanto, do seu ser qualificado na sociedade, como é o caso da consciência
profissional” 30. A fragilidade da organização popular, e a desestruturação
das instituições sociais favorecem a corrupção vigente na sociedade e mi-
nimizam a prática democrática.

27
H.C. de LIMA VAZ, Introdução à Ética Filosófica II, p. 87.
28
H.C. de LIMA VAZ, Introdução à Ética Filosófica II, p. 88.
29
M.C. SOUSA, Comunidade Ética, p. 196.
30
H.C. de LIMA VAZ, Introdução à Ética Filosófica II, p. 90.
Maria Celeste de Sousa | 165

O quarto desafio é a vida política. A sociedade politicamente organi-


zada expressa uma ‘conexão de sentido’ entre seus membros e permite a
formação da consciência cívica “de caráter ético-político, capaz de unir os
indivíduos em sua qualidade de cidadãos no mesmo gesto participativo” 31.
A sociedade para ser humana tem que “transcender os interesses particu-
lares e criar espaços para que os sujeitos sejam consensualmente iguais” 32
na esfera do reconhecimento universal. O Estado é, portanto, uma totali-
dade ética, realização da liberdade de todos. No entanto, a ignorância
política impede a organização popular na luta por políticas públicas que
favoreçam a prática democrática na sociedade. Com o enfraquecimento da
sociedade civil, desfaz-se a conexão de sentido ético e abre espaços para a
corrupção, centralização do poder público em grupos ideológicos e cres-
cente desigualdade social, miséria, fome e morte.
Lima Vaz relaciona liberdade e sistema democrático, igualdade e li-
berdade. “pressupondo a progressiva participação livre e responsável de
todos os cidadãos na reforma moral do estado e na elaboração de um pro-
jeto democrático que atenda as necessidades éticas” 33.

Conclusão

O contraponto entre vida conectada e vida ética levanta algumas con-


siderações sobre o progresso na consciência de liberdade na sociedade
contemporânea.
O homem global da era digital é, de fato, um homem centrado no seu
livre-arbítrio e que solitário e passivamente experimenta o império do co-
tidiano com sua pluralidade de códigos, itinerários e objetivos. O sujeito
imobilizado em um sofá e com o comando eletrônico pode usufruir da in-
teratividade e da virtualidade, tornando-se senhor do tempo e de suas
próprias vontades ao conectar-se aos eventos que lhe interessam e repelir

31
H.C. de LIMA VAZ, Introdução à Ética Filosófica II, p. 89.
32
M.C. SOUSA, Comunidade Ética, p. 196.
33
M.C. SOUSA, Comunidade Ética, p. 197.
166 | O que torna uma vida realizada: homenagem aos 100 anos de Henrique Cláudio de Lima Vaz

aqueles que lhes aborrecem. O mundo restringe-se ao seu ponto de vista,


às suas representações e vontade, enfim ao seu livre-arbítrio. O único fato
a ter sentido expressa-se no vivido, no perceptível e representável pela
transmissão sincrônica, essencialmente identificada por um conjunto de
“nós” interconectados no tempo presente, caracterizado pelo imediatismo,
instantaneidade, simultaneidade e urgência. O humano deixa de ocupar o
lugar de destaque porque no paradigma da vida artificial a máquina torna-
se o modelo para compreensão do humano. Humano ou desumano?
A vida artificial minimiza a subjetividade e sociabilidade e aflora a
pergunta de Lima Vaz sobre o progresso na consciência de liberdade. O
filósofo afirma que a realização daquilo que é o homem em si mesmo re-
mete à consciência de sua intransferível responsabilidade de viver a sua
vida enquanto vida humana. E esta vida vivida é constitutivamente ética,
pois “operar segundo o logos é operar segundo o melhor (eu práttein) 34,
por conseguinte, no momento histórico da era digital, Lima Vaz infere uma
aporia entre o modelo da vida artificial e o modelo da vida ética. O homem
exteriorizado e metamorfoseado pela máquina, se encontra perdido entre
as imagens sem distinguir o que é real e o virtual, mas é justamente na
facticidade contingente do sujeito que o apelo de “ser mais” aflora e incita
a dúvida sobre a verdade da relação humana. Somente ao homem é dado
viver “a oposição entre a tendência constitutiva a ser-mais apontando para
um pólo ideal de realização no qual se atualizam todas as virtualidades do
seu poder-ser e o peso das limitações existenciais imobilizando o indivíduo
na rotina de simplesmente ser”35.
Viver é desenvolver as potencialidades próprias do humano por meio
da ação, e a vida segundo o Bem é a forma mais elevada da vida humana,
a essência da resposta socrática à exortação de Píndaro: torna-te o que és!
Este existir manifesta-se como passagem do livre-arbítrio à liberdade pelo
aprofundamento progressivo da consciência de moralidade na vida pes-
soal e social.

34
H.C. de LIMA VAZ, Antropologia Filosófica II, p. 159.
35
H.C. de LIMA VAZ, Antrologia Filosófica II, p.171.
Maria Celeste de Sousa | 167

Lima Vaz segue a tradição ética ocidental da primazia da liberdade


sobre o livre-arbítrio que desde Sócrates aponta para o finalismo do Bem
sobre o poder de cada um fazer o que quiser e sugere “a adesão constante
ao Bem na qual consiste propriamente a liberdade” 36. Esta é uma tarefa
ética fundamental e contínua em todos os tempos, notadamente no tempo
presente. A passagem da simples identidade ética ou consciência moral à
ipseidade ética ou intensidade reflexiva do ato da consciência moral como
ato da pessoa, é um processo permanente em que a personalidade moral
efetiva a interrelação entre essência e existência.
Lima Vaz demonstra na Ética Filosófica que a intersubjetividade é
“essencialmente uma relação recíproca. Ela se realiza no reconhecimento e
no consenso” 37.
A reciprocidade forma da vida ética é um grande desafio no tempo
contemporâneo. A tendência ao individualismo niilista mina a dimensão
espiritual, lugar propício para a prática da reciprocidade que necessita de
compreensão e vivência. Lima Vaz motiva a educação para a reciprocidade
nos níveis estruturais da vida humana: a vida familiar, a vida comunitária,
a vida social e a vida política.
Estas estruturas existenciais estão interligadas entre si e formam um
todo na identidade e diferença de suas manifestações históricas e na difícil
tarefa educativa da personalidade moral tecida pelos elementos da afeti-
vidade, da responsabilidade e do engajamento político na sociedade.
A formação política para a igualdade passa por estes três níveis de
experiências: na vivência familiar inicia-se o processo da formação hu-
mana. Neste nível a reciprocidade expressa os laços interativos da
fidelidade, da amizade e do amor entre pais e filhos no diálogo e no cui-
dado. Na vivência social a ideia de igualdade é abstrata, uma vez que ela
limita-se ao plano da sobrevivência, na luta pelas satisfações das necessi-
dades econômicas. A reciprocidade expressa o consenso em torno da
exigência da Lei, norma comum para todos. Na vivência política esta

36
H.C. de LIMA VAZ, Introdução à Ética Filosófica II, p.168.
37
H.C. de LIMA VAZ, Introdução à Ética Filosófica II, p. 80.
168 | O que torna uma vida realizada: homenagem aos 100 anos de Henrique Cláudio de Lima Vaz

igualdade abstrata é suprassumida pela igualdade na diferença perante a


lei, ou pelo reconhecimento do outro, enquanto fundamento da sociabili-
dade. Na forma da vivência democrática efetiva-se a reciprocidade
participativa pela diferença entre o estado de direito (ato justo) e o estado
democrático (ato livre).
O pensamento ético-político de Lima Vaz é um convite para a con-
cretização de uma sociedade personalista e comunitária em que
reciprocidade seja concreta e a igualdade se articule com a liberdade pela
participação responsável dos cidadãos na reforma moral do Estado e na
elaboração de um projeto democrático que atenda as exigências éticas da
Dignidade humana. Só assim é possível efetivar-se a essência consensual
da democracia e formar um humanismo político para o nosso tempo com
o apoio instrumental da tecnologia que deve cumprir a sua função de meio
e não de fim da práxis humana.

Referências

LIMA VAZ, H. C. de. Escritos de Filosofia II: Ética e Cultura. São Paulo: Loyola,1993

______. Escritos de Filosofia IV: Introdução à Ética Filosófica I. São Paulo: Loyola, 1999.

______. Escritos de Filosofia V: Introdução à Ética Filosófica II. São Paulo: Loyola, 2000.

______. Antropologia Filosófica II. São Paulo: Loyola, 1992.

ARISTÓTELES, Ética a Nicômaco. Tradução de Leonel Vallandro e Gerd Bornhein de versão


inglesa de W.D.Ross. Nova Cultural, 1987.

DEBORD, G. A Sociedade do Espetáculo, Lisboa: Edições Afrodite, 1998.

COIMBRA, Maria Assumpta, (Des)humano demasiado (des) humano. O homem na Era Di-
gital uma reflexão com Pierre Lévy. Lisboa: Edições Afrontamento, 2010.

HAYLES, R. “Haw the Became Posthuman: Virtual Badies” in Cybernetics, Literature and
informatics, Chicago e Londres: University of Chicago Press, 1999.
Maria Celeste de Sousa | 169

HEGEL, Enciclopédia das Ciências Filosóficas em compêndio (1830), A Filosofia do Espírito.


São Paulo: Edições Loyola, 1995.

SOUSA, Maria Celeste de. Comunidade Ética - Sobre os princípios ontológicos da vida social
em Henrique Cláudio de Lima Vaz, São Paulo: Edições Loyola, 2014.

VALLENILLA, E.M. Fundamentos da Meta-técnica. Lisboa: Edições Colibri, 2004.


Capítulo 10

Sociedade Democrática:
lócus para a realização humana

Manoel dos Reis Morais

O evento comemorativo “Henrique Cláudio de Lima Vaz, 100 anos! O


legado de uma vida realizada” emerge como ocasião singular para reme-
morar sua portentosa obra filosófica. Desse modo, bastante oportuno
revisitar a relação entre democracia e realização a fim de divisar o chama-
mento para uma vida realmente realizada em termos éticos e políticos.
Trata-se de um intento que, de um lado, satisfaz a curiosidade do espírito
enquanto impulso desejante de sempre retornar às lições do “incompará-
vel Mestre” 1 e, de outro, busca cumprir o desiderato filosófico de pensar o
tempo presente da melhor maneira, mormente quando trespassado por
uma crise moral e política sem precedentes na história para, assim, encon-
trar novas razões para viver e para agir.
Essa crise pode ser descrita de várias formas e de múltiplos ângulos,
mas o melhor termo para enunciá-la é a tragédia, como o faz Herrero ao
elencar algumas situações, como: (a) o abismo econômico entre as classes
sociais; (b) uma economia pungente, mas com um IDH dos piores do
mundo; (c) sistema educacional precário; (d) previdência social falida e
atendimento à saúde desumano; (e) sociedade corroída pela corrupção na
política, mas que, como um todo, cultua a esperteza; e, (f) sistema eleitoral
corporativista e manipulado por grupos hegemônicos. E completa: “socie-
dade que perdeu as referências morais, até o valor da vida humana foi

1
C. R. Drawin, Padre Henrique Vaz: um mestre incomparável, p. 375-379.
Manoel dos Reis Morais | 171

banalizado: hoje se matam seres humanos sem o menor escrúpulo, a vio-


lência é o pão nosso de cada dia”. 2 Numa tal ambiência, com efeito, muito
difícil conceber a vigência (ou o vigor) um estado democrático “real” nos
moldes como declarado na Constituição da República (art. 1º).
No entanto, o intento não é o de mostrar a realidade da sociedade
brasileira, mas, a partir dela, refletir sobre as condições de possibilidade
da concretização de uma sociedade democrática e, neste desiderato, a filo-
sofia lima-vaziana é extraordinária, especialmente considerando os
editoriais “Ética e Política” (1983) e “Democracia e Sociedade” (1985), bem
como os artigos “Democracia e Dignidade Humana” (1988) e “Ética e Jus-
tiça: a filosofia do agir humano” (1996). Os dois primeiros textos, como o
próprio Filósofo pontuou em entrevista ao Cadernos de Filosofia Alemã 2
(1997), foram produzidos com base na Politologia Clássica e por ocasião
do problema da transição democrática brasileira. Aliás, neste momento foi
rememorado o ideário democrático como um projeto e, diante do contexto
social então presente, o desafio seria a capacidade e a disposição de se pro-
mover uma reforma estatal para atender às exigências éticas do projeto
democrático.
A questão nodal reside nesse aspecto – exigências éticas –, ou seja,
que há uma relação entre Ética e Política quando se sabe que na Moderni-
dade vige completa dissensão, por conta da primazia da poiesis ou da
racionalidade lógica, onde a Política se transformou num espectro de efi-
cácia operativa do recesso das carências e das necessidades. Logo, levando-
se em conta que a realização se situa no campo do valor e do sentido,
emerge como interrogação a possibilidade de uma sociedade democrática
como locus para realização humana, visto que o espaço político está per-
meado pelo combate quanto às carências e necessidades, deixando pouco
lugar para a efetivação da justiça e da própria participação nas coisas pú-
blicas ou de interesse comum. Por conseguinte, indaga-se “como o Filósofo
dimensiona os problemas relacionados com as carências e necessidades, a

2
F. J. Herrero, Ética na construção da política, p. 69.
172 | O que torna uma vida realizada: homenagem aos 100 anos de Henrique Cláudio de Lima Vaz

realização a justiça e da participação democrática para, assim, render en-


sejo à postulação de uma sociedade democrática onde todos possam se
realizar humanamente?”
A resposta a essa pergunta será desenvolvida privilegiando a pesquisa
bibliográfica, primordialmente os textos do Filósofo acima mencionados,
mas também a Antropologia Filosófica e a Introdução à Ética Filosófica,
explorando três aspectos ou níveis da formação societária: social, político
e democrático. Assim sendo, duas temáticas se mostram imprescindíveis,
uma intitulada Prolegômenos da relação entre a Ética e a Política na Mo-
dernidade, com o intuito de especificar a oposição entre as duas categorias
com a instauração dos tempos modernos, e, a segunda, A dialética do so-
cial, do político e do democrático, objetivando explicitar a resolução
proporcionada pelo Filósofo para as carências e necessidades humanas e,
principalmente, a realização da justiça e a participação democrática. Por
fim, serão assinaladas considerações finais com o intuito de retomar os
pontos principais do percurso e elaborar uma síntese do pensamento lima-
vaziano sobre o tema proposto.

1. Prolegômenos da relação entre Ética e Política na Modernidade

A Ética e a Política na concepção clássica ou aristotélica pertencem a


uma mesma dimensão da vida humana – ética individual e ética política,
denominada politike ou ciência política e, com isso, intentava uma funda-
mentação com o intuito de encontrar o melhor modo de viver e de
conviver; noutros termos, havia uma implicação mútua entre as duas ma-
trizes teóricas, ou seja, “para Aristóteles, assim como para Platão, a ética
não pode ser separada da política, à qual ela parece, às vezes, subordi-
nada”, e mais:

Se, com efeito, o objeto da ética consiste na determinação de um bem supremo,


que é o fim de todas as nossas atividades, e ao redor do qual todos os outros
bens não são senão meios, este objeto é igualmente aquele da política, cuja
Manoel dos Reis Morais | 173

finalidade é dirigir-se em vista do bem comum de todas as atividades humanas


no interior da “pólis”. 3

Entretanto, com os tempos modernos ocorre um certo esvanecimento


da unicidade – ou continuidade – então vigente entre a Ética e a Política,
insurgindo uma nítida distinção e até oposição entre as duas categorias,
situando-se de um lado o agir do indivíduo impelido pelo egoísmo na busca
pelos seus interesses e necessidades e, com isso, instaurando uma “com-
petição calculista” no seio social, onde cada indivíduo “tenta situar-se
bem”, ou seja, “busca o melhor lugar e tenta excluir os concorrentes”. 4 Por
outro, o agir político se configura voltado para a disputa pelo poder, ma-
nifestando-se “antes de tudo como um reino marcado pelo contraste
perene de centros de força em conflito, que combatem pelo poder ser-
vindo-se de toda a gama de meios a que podem ter acesso”. 5
Mencionada viragem – do clássico para o moderno – ou de uma abor-
dagem normativa para uma abordagem realista, tanto do ético quanto do
político, tem sua primeira inscrição com o Príncipe de Maquiavel e, desde
então, “acentua-se, com a identificação entre política e técnica de poder, a
cisão entre Ética e Política”. 6 Opera-se uma verdadeira inversão, pois

Se na Idade Média a técnica foi relegada ao plano inferior das atividades hu-
manas, à aurora da Modernidade a técnica será a quintessência do
conhecimento aplicado, uma redução precisa da teoria adequada ao universo
pragmático. E se sua realização dependeu de alturas intelectuais excelentes, o
Renascimento produziu gigantes. Neste ponto, Maquiavel é um avatar do in-
telectual moderno. A sua altitude teórica, soerguida do chão da prática política
e do esforço espiritual, diz ele, adveio de "tudo o que me ensinaram uma longa
experiência e o estudo contínuo das coisas do mundo". O que já apontava para
a possibilidade da investidura da política como técnica, disposta ao alcance de
todos. 7

3
P. C. Nodari, Ética Aristotélica, p. 406-407.
4
E. Weil, Filosofia Política, p. 95, 96, 101 e 133.
5
S. Petrucciani, Modelos de Filosofía Política, p. 22.
6
H. C. de Lima Vaz, Ética e Política, p. 7.
7
A. J. R. Valverde, Maquiavel: a política como técnica, p. 38.
174 | O que torna uma vida realizada: homenagem aos 100 anos de Henrique Cláudio de Lima Vaz

O vigor da proeminência da poiesis no campo da Política permeia


todo o pensamento daquela quadra histórica e, de forma duradoura, será
o novo paradigma de vida dos modernos, pois “uma nova forma de Razão
e um novo estilo de prática racional” mostrarão os contornos da profunda
originalidade da “revolução cientifica galileana e das revoluções filosóficas
protagonizadas por Descartes e Hobbes”. 8
Essa transformação radical do modus vivendi institui-se como um
“projeto de extrema audácia”, pois “tem em vista a plena reinscrição, teó-
rica e operacionalmente, nos códigos da razão científica, do universo, da
vida, do ser humano e das suas condutas”. 9 Com efeito, implanta-se um
novo ciclo de vida, no qual, desde então, o ser humano irrompe como ator
real da sua história e, imbuído da nova racionalidade (poiética), encarrega-
se de edificar seu “novo” mundo da vida – ou todo o universo simbólico. 10
A razão poiética, eminentemente funcional e operacional, mostrará
seu vigor quanto ao status socialis pela primeira vez com Hobbes que,
tendo como base o bellum omnium contra omnes, ao contrário da postura
filosófica aristotélica – ser humano como animal que fala e discorre (zoon
logikón) e como animal político (zoon politikón) –, 11 propõe a fundação da
comunidade política como passagem do estado de natureza para o estado
de sociedade. O ser humano, na perspectiva hobbesiana, para preservar
seus direitos naturais deve abdicar (ou renunciar) da sua liberdade, 12 o
que conduz Lima Vaz a concluir que “é permitido crer que a face demoní-
aca do poder tenha encontrado seus traços definitivos quando o Estado,
na figuração hobbesiana do Leviatã, tornar-se a única fonte do Direito”. 13
O novel Direito, enquanto conjunto de normas e de regras regentes
do corpo social e base para solução dos conflitos, até então imbuído do

8
H. C. de Lima Vaz, Introdução à Ética Filosófica 1, p. 267-268.
9
H. C. de Lima Vaz, Raízes da modernidade, p. 98-99.
10
Cf. Ibid., p. 28.
11
H. Arendt, A condição humana, p. 31-37.
12
Cf. H. C. de Lima Vaz, Introdução à Ética Filosófica 1, p. 303-304.
13
H. C. de Lima Vaz, Ética e Política, p. 8.
Manoel dos Reis Morais | 175

telos de “dar a cada um o que é seu” (justiça), 14 sofre os influxos da razão


poiética. Sua função primigênia converge para assegurar os direitos natu-
rais dos indivíduos que migraram para o estado de sociedade, soerguido
sobre a base do paradigma científico e, o Estado, realmente passa a ser a
fonte primordial do Ordenamento Jurídico. 15 Neste mister ao menos três
grandes teorias surgiram: jusnaturalista do Direito Natural; positivismo
jurídico; e, pós-positivismo. 16 Cuida-se de um complexo de racionalização
do jurídico cujo objetivo é o de assegurar a funcionalidade do corpo social
e, logicamente, solucionar o problema da conflituosidade; porém, longe do
horizonte do bem da concepção aristotélico-platônica e, sim, numa pers-
pectiva tecnicizante, quer dizer:

(...) a teoria jurídica consegue transformar o conjunto de regras que compõem


o direito em regras técnicas controláveis na comparação das situações vigentes
com as situações idealmente desejadas. Modifica-se, assim, seu estatuto teó-
rico. Não é mais nem contemplação, nem manifestação de autoridade, nem
exegese à moda medieval, mas capacidade de reprodução artificial (laborato-
rial) de processos naturais. Ela adquire, assim, um novo critério, que é o
critério de todas as técnicas: sua funcionalidade. 17

O arquétipo do paradigma do pacto social, desde Hobbes, passando


por Locke, Rousseau, Kant até Rawls, consagra a hipótese do ser humano
como ser de carências e necessidades que, para supri-las, tem que aderir à
passagem do estado pré-político para o estado político (estado de socie-
dade). Noutros termos, assinala o Filósofo que o ser humano é compelido
à associação, ou seja:

A prioridade tanto lógica quanto ontológica é aqui deferida ao indivíduo na


sua particularidade psicobiológica, que se apresenta como elemento simples
que se supõe inicialmente independente na sua suficiência de ser-para-si. A
gênese analítica da sociedade tem o seu segundo momento justamente quando

14
Cf. H. C. de Lima Vaz, Introdução à Ética Filosófica 2, p. 180 (nota n. 18).
15
Cf. H. C. de Lima Vaz, Ética e Cultura, p. 164.
16
Cf. G. Fassó, Dicionário de Política, p. 655-660.
17
T. S. Ferraz Júnior, Introdução ao estudo do direito, p. 69-70.
176 | O que torna uma vida realizada: homenagem aos 100 anos de Henrique Cláudio de Lima Vaz

o indivíduo, na impossibilidade de atender sozinho às suas necessidades ou de


garantir a sua subsistência, é forçado a submeter-se à necessidade extrínseca
do pacto de associação e ao constrangimento do pacto de submissão na vida
social e política. 18

Com isso, a organização social será impulsionada ou estruturada


como um “sistema da satisfação das necessidades que, como sistema polí-
tico, passa a ser regido pela racionalidade instrumental do fazer ou da
produção dos bens”. 19 Porém, sustenta o Filósofo que “o fazer e o produzir
(contradistintos do agir no sentido aristotélico) se tornam fins em si, sub-
metendo todos os meios e rejeitando os fins propriamente éticos na esfera
das convicções subjetivas do indivíduo”. 20 Não é só, tal arquétipo societário
acaba por regressar, em termos, ao móvel primário da associação humana,
esvaziando completamente o espaço público como locus da ação.
Este itinerário patenteou a oposição entre Ética e Política na Moder-
nidade, e mais, quão distintas são as Filosofias clássica e moderna no que
respeita à organização social. A exuberância da razão moderna com seu
telos na eficácia e eficiência do fazer e do produzir para satisfação dos in-
divíduos tem sido admirável, o que pode enlevar o pensamento para uma
realidade desejável e ambicionável. Contudo, uma tal realidade com este
tipo de fundamento não se realiza como comunhão de seres sociáveis, pois
a satisfação das carências e das necessidades, cuja efetivação histórica é a
hodierna sociedade de consumo, nunca é completa ou plena – mas, sim,
“mau-infinito” na dicção hegeliana ou “infinito em potência” na expressão
aristotélica. 21 Logo, a indagação que surge é como o Filósofo alvitra a com-
pleição social, dotando-a das exigências éticas sem resvalar para este
punctum pruriens que se transformou a socialidade moderna.

18
H. C. de Lima Vaz, Ética e Cultura, p. 163-164.
19
H. C. de Lima Vaz, Ética e Política, p. 9.
20
Ibid., p. 9.
21
H. C. de Lima Vaz, Religião e sociedade nos últimos vinte anos, p. 39.
Manoel dos Reis Morais | 177

2. A dialética do social, do político e do democrático

O próprio Filósofo reconhece a dificuldade que radica na questão en-


cimada e é em razão disto que propugna recuperar ao nível de uma
filosofia política rigorosa a “razão de ser do bios politikós”, 22 ou seja, da
“vida política como forma mais alta da convivência entre os homens”. 23
Mencionado resgate é de ser realizado contemplando os três níveis que
compõem a socialidade humana, seja o social – das carências e necessida-
des –, seja o político – das leis justas –, seja o democrático – da participação
política. 24

2.1. Nível social

O nível social é tido como o domínio no qual impera a satisfação das


necessidades naturais e, por isso, tem pertinência com a origem e a natu-
reza das sociedades ou associações de indivíduos. Trata-se de um plano no
qual a “sociedade é a organização de uma luta violenta contra a natureza,
constitutiva do plano das necessidades” 25, ou, na dicção vaziana, cuida-se
do momento em que se dá o “confronto laborioso com a natureza, fonte
de recursos”. 26
Esse confronto caracteriza uma forma de relação intersubjetiva do-
minante, que é a relação de trabalho, tanto que especifica um ciclo
civilizatório – Civilização do Trabalho. 27 Com isso, a sociedade se organiza
como um sistema econômico ou como um sistema de necessidades, no qual
o indivíduo é compelido à luta pela satisfação das suas necessidades. 28
Ocorre, nessa racionalização societária, o surgimento de novas for-
mas de dependência (social), obviadas pela adoção de estatutos que visam

22
H. C. de Lima Vaz, Cadernos de Filosofia Alemã 2, p. 101.
23
H. C. de Lima Vaz, Democracia e Sociedade, p. 6.
24
Cf. H. C. de Lima Vaz, Democracia e Dignidade Humana, p. 17.
25
M. Perine, Ética e Política: irredutibilidade e interação de relações assimétricas, p. 39.
26
H. C. de Lima Vaz, Democracia e Dignidade Humana, p. 18.
27
Cf. H. C. de Lima Vaz, Introdução à Ética Filosófica 2, p. 91.
28
Cf. H. C. de Lima Vaz, Democracia e Dignidade Humana, p. 18
178 | O que torna uma vida realizada: homenagem aos 100 anos de Henrique Cláudio de Lima Vaz

a proteção daqueles que se projetam de forma hipossuficiente, como é o


caso do trabalhador, do consumidor etc. e, também, pela atuação política
reivindicatória no sentido de alterar o status quo. Porém, a esfera da Polí-
tica não pode ser reduzida a “simples epifenômeno do econômico”, pois
deixaria “o campo livre para o maquiavelismo, no sentido mais vulgar e
pior desta expressão”, visto que “a ausência de autonomia do político e da
reflexão política permite qualquer tipo de experimentação, inclusive do to-
talitarismo”. 29

2.2. Nível político

O breve exame do mecanismo social e sua organicidade envolta no


âmbito das carências e necessidades pode deixar à deriva o político, pois
como lembra Lima Vaz, “um Estado-déspota pode perfeitamente apascen-
tar um rebanho humano plenamente satisfeito, constituído de indivíduos
rigorosamente iguais segundo a medida dessa satisfação plena das suas
capacidades”. 30 Portanto, imprescindível a necessidade de que o nível so-
cial ou da igualdade abstrata seja suprassumida pela igualdade perante a
lei.
Trata-se propriamente do operar da igualdade na diferença, onde as
diferenças naturais ou culturais são equalizadas na igualdade perante a lei.
A lei aparece “como o oposto exato da hybris social em todas as suas for-
mas”, pois por um lado seu intuito é aplacar a “associação do poder com a
força”, expressa “primariamente como violência” e, assim, “assumi-las na
esfera legitimadora da lei e do Direito” 31 e, de outro, significa assegurar ao
ser humano, “ser social, uma forma superior de igualdade que o eleva da
particularidade das diferenças individuais à universalidade do ser-reco-
nhecido no universo ético da politeía – ou no reino das leis”. 32

29
M. Perine, Ética e Política: irredutibilidade e interação de relações assimétricas, p. 40.
30
H. C. de Lima Vaz, Democracia e Sociedade, p. 12.
31
H. C. de Lima Vaz, Ética e Cultura, p. 136-137.
32
H. C. de Lima Vaz, Democracia e Sociedade, p. 10.
Manoel dos Reis Morais | 179

A matriz conceitual que explicita o poder legítimo e o ser-reconhecido


no recesso da politeía é a ideia de justiça, pois por ela se torna possível
negar o particularismo do poder arbitrário e, assim, propiciar a “distribui-
ção equitativa do primeiro e maior bem que é o direito ao
reconhecimento”. 33 Cuida-se da experiência na ideia da soberania da lei
(nómos), com suas “propriedades essenciais, a equidade (eunomia) e a
igualdade (isonomia)”, que “recebe sua objetivação no Direito”. 34 O Filó-
sofo, no aspecto, completa:

O Estado no qual o exercício do poder é regido por um sistema fundamental


de leis (politeía) edificado segundo a regra de justiça, é um Estado de direito:
única forma compatível com a sociedade política. A igualdade política, por sua
vez, pertence à essência do Estado de direito. Mas, como se vê, não se trata da
igualdade quantitativa dos indivíduos nivelados pela necessidade universal de
satisfazer suas carências naturais. (...) É no terreno do Estado de direito que o
nascimento da democracia se torna possível. 35

O Estado de direito se configura como o único solo no qual pode pros-


perar a democracia, justamente devido à sua organização como um
sistema normativo com base na ideia de justiça. Porém, necessário expli-
citar que nem todo Estado de direito se traduz como Estado democrático,
mas, todo Estado democrático, rigorosamente, é um Estado de direito. 36
Logo, a prospecção dialética deve prosseguir, a fim de descortinar o que é
que conduz à configuração do nível democrático e, portanto, do Estado de-
mocrático.

2.3. Nível democrático

O florescimento democrático será possível apenas em um solo no qual


haja a base de uma ordenação socio-normativa amparada na ideia de

33
Ibid., p. 10.
34
H. C. de Lima Vaz, Introdução à Ética Filosófica 2, p. 179-180.
35
H. C. de Lima Vaz, Democracia e Sociedade, p. 10.
36
H. C. de Lima Vaz, Democracia e Dignidade Humana, p. 19.
180 | O que torna uma vida realizada: homenagem aos 100 anos de Henrique Cláudio de Lima Vaz

justiça, mas sua corporificação exige um aprofundamento ético, pois “deve


ser conservada na diferença das liberdades que se fazem presentes no
espaço político na singularidade irredutível da sua autonormatividade, na
intransferível carga da sua responsabilidade pessoal”. 37 Assim, se a ideia
geratriz da comunidade política é a ideia de justiça, na perspectiva da
comunidade política será a ideia de liberdade. 38 Neste sentido:

A ideia da liberdade, embora tenha a sua figura histórica na liberdade de um


ser finito, não é pensável senão no movimento infinito da sua autodetermina-
ção, vem a ser, como o universal que se autodetermina. Infinito ou universal
significa, aqui, a perfeita identidade da liberdade consigo mesma no movi-
mento do seu autodeterminar-se. Ou ainda: nenhum sentido pode ser
descoberto na liberdade senão a partir da própria liberdade. 39

Assim sopesada, a liberdade pode ser dita abertura ao bem como


norma cognoscitiva, bem este que se apresenta como bem do indivíduo e,
ao mesmo tempo, como bem de todos. Avaliada no plano ético, referida
abertura se converte em escolha daquele bem como fim e, portanto, mate-
rializa-se como ato moral. O Filósofo avalia

O ato moral, como sinergia de razão e vontade ou liberdade, participa neces-


sariamente do predicado da reflexividade próprio dos atos da razão. Sendo,
porém, um ato livre, a reflexão envolve não apenas a intencionalidade do co-
nhecer, mas igualmente a intencionalidade do querer, ou seja, o vetor
axiológico do ato, sua relação final com o Bem. A reflexão é, pois, aqui, cons-
ciência moral. Ela é um auto-julgamento imanente ao próprio ato e, sendo
racional, obedece a uma norma objetiva que não é senão o próprio Bem pre-
sente ao sujeito sob a forma de razão reta (orthòs lógos ou recta ratio), razão
do Bem conhecido e, como tal, normativo da especificação moral das nossas
ações. 40

37
H. C. de Lima Vaz, Democracia e Sociedade, p. 12.
38
Cf. H. C. de Lima Vaz, Democracia e Dignidade Humana, 20.
39
H. C. de Lima Vaz, Ética e Cultura, p. 77-78.
40
H. C. de Lima Vaz, Crise e verdade da consciência moral, p. 474.
Manoel dos Reis Morais | 181

Uma passagem de Antígona é elucidativa acerca da liberdade, quando


a personagem afirma: “Sei o que o destino fará comigo, o que me espera,
mas desafio o destino e reafirmo minha liberdade”. A personagem reco-
nhece que deve se contrapor à regra estatuída por Creonte quanto ao
sepultamento de seu irmão e, assim procedendo, estava enaltecendo sua
liberdade, quer dizer, sua consciência enquanto em conformidade com o
ethos. O Destino (moira) na tragédia expressa-se como a contraprova da
liberdade, porquanto manifesta-se com o núcleo do sujeito ético no ins-
tante mesmo em que se eleva sobre a obscuridade do Destino para
caminhar sob a luz da Razão ou da consciência moral. 41 Aliás, mesmo no
Estado moderno, “a liberdade (...) não é a de cada um fazer o que bem
entende, cada um fazer o que quer. A liberdade é cada um fazer o que
deve”. A satisfação do desejo não é liberdade, pois esta, muitas vezes, con-
trapõe-se ao desejo. O ser livre é ter consciência de ser livre, quer dizer,
imprescindível que a liberdade se dê leis que são universais, i.é, que dizem
respeito a todos de forma geral. 42
É com esse vetor axiológico que a liberdade responde, segundo o Fi-
lósofo, ao “apelo da comunidade democrática como constitutiva da
consciência moral de cada cidadão” 43 para, assim, constituir uma consci-
ência moral intersubjetiva “de caráter ético-político, capaz de unir os
indivíduos em sua qualidade de cidadãos, no mesmo gesto participativo
quando se trata de definir os rumos da sociedade”. 44
Esse é o limiar propriamente dito da sociedade democrática, que se
ascende na medida em que se acha constituída como politeía – justiça nas
leis, pois a diferença qualitativa agora diz respeito à justiça na alma do
cidadão ou na consciência moral dos partícipes da vida pública. Mencio-
nada convergência entre justiça nas leis e justiça na alma implica na
edificação de uma vida ética – ou democrática –, na qual o ser-em-comum

41
Cf. H. C. de Lima Vaz, Destino e Liberdade: as origens da Ética, p. 467-475.
42
J. H. Santos, Ética e Política: uma tragédia do mundo ético, p. 15
43
H. C. de Lima Vaz, Democracia e Sociedade, p. 13.
44
H. C. de Lima Vaz, Introdução à Ética Filosófica 2, p. 89.
182 | O que torna uma vida realizada: homenagem aos 100 anos de Henrique Cláudio de Lima Vaz

pressupõe que todos os atos estarão informados, “em última instância,


tanto na hierarquia das suas motivações quanto no teor da sua especifici-
dade, pela justiça entendida no seu conceito mais amplo, seja como virtude
seja como lei”. 45
No nível democrático a liberdade participante é expressão da Ética,
enquanto recesso e projeção da virtuosidade do cidadão, e, a Política, como
presença devotada ou empenhativa deste cidadão virtuoso no espaço pú-
blico, especificamente “nas tarefas do bem comum e, primeiramente, na
tarefa fundamental do livre discurso em torno do mais razoável que será,
concretamente, o mais justo”. 46 Consuma-se, assim, “aquele ápice do edi-
fício conceptual do político no qual convergem as linhas entre Ética e
Política”. 47

Considerações finais

O propósito foi desenvolver a ideia de que o lugar apropriado para a


realização humana é a sociedade democrática. Logo, a partir de várias con-
tradições da socialidade moderna (e brasileira), dentre elas a econômica, a
educacional, a previdenciária etc., intentou-se esculpir este lócus; porém,
divisando as enormes dificuldades, por conta mesmo dos contornos da re-
alidade que se apresenta.
Um tal empreendimento poderia apresentar objeção ex radice, visto
resvalar para a idealidade ou para uma espécie de utopia, ao invés de se
refletir sobre a sociedade que aí se encontra. Ocorre que a filosofia, na
perspectiva do Filósofo, “não se propõe a traçar um novo modelo de co-
munidade ético-jurídica nem mesmo intenta reformar as que existem”. A
filosofia tem como tarefa “explicitar as condições teóricas a que as comu-
nidades históricas devem submeter-se para alcançar finalmente seu

45
Ibid., p. 198.
46
H. C. de Lima Vaz, Democracia e Dignidade Humana, p. 20.
47
Ibid., p. 20.
Manoel dos Reis Morais | 183

estatuto de comunidades de seres racionais”. 48 Assim, não se trata de um


discurso utópico (não-lugar), mas de uma formulação atópica (fora-de-lu-
gar), como o próprio ser da filosofia. 49
É com esse atopismo que o Filósofo, no difícil e eufórico momento da
denominada transição democrática, trouxe a lume algumas graves refle-
xões sobre filosofia política, enfrentando, primordialmente, a questão da
democracia e suas intrínsecas exigências éticas, aqui recolhidas e implica-
das com a realização humana. Assim, duas matrizes filosóficas distintas se
entrelaçam e confluem para a ideia de democracia: a Ética e a Realização,
o que distende o discurso para três áreas, a Política, a Ética e a Antropolo-
gia. Trata-se de uma releitura primorosa que o Filósofo empreende com
base na Politologia Clássica para dar conta das mencionadas contradições,
mas não é só, explicitar as conditio sine qua non do próprio projeto demo-
crático.
Na visão do Filósofo a democracia se constitui em um projeto (do la-
tim projectum, que significa “antes de uma ação”) ou algo a ser realizado
e que, de alguma forma, ostenta como objetivo alterar o status quo ou o
modo de vida instalado. Desse modo, impostergável que sejam abarcadas
as exigências éticas deste projeto que, na visão do Filósofo, dependem ba-
sicamente de uma reconexão entre a Ética e a Política como dimensões de
uma mesma e única vida humana, as quais, na Modernidade, restaram
dicotomizadas pela proeminência da razão poiética.
A evidência desse novum emergiu com a proclamação da Política
como técnica para conquistar e manter o poder (Maquiavel) e, depois, com
a hipótese do pacto social como instaurador primigênio da sociedade polí-
tica fundada no conflito humano pela satisfação das necessidades
(Hobbes), tornando-se efetiva e real com a Revolução Científica galileana.
O lebenswelt, com a matematização e a quantificação, foi transformado
num gigantesco sistema tecnicizado objetivando a equalização dos anseios
dos indivíduos. Com isso, esvaziou-se completamente a substância ética

48
H. C. de Lima Vaz, Ética e Justiça: filosofia do agir humano, p. 438.
49
Cf. C. R. Drawin, Henrique Vaz e a opção metafísica, p. 163.
184 | O que torna uma vida realizada: homenagem aos 100 anos de Henrique Cláudio de Lima Vaz

tanto do agir individual quanto do agir social, pois o métron da ideia de lei
(nómos) como regência do virtuoso e disposição da melhor conformação
societária (politeía) foi substituído pelo imperativo da funcionalidade e da
operacionalidade visando o fazer e o produzir com o novo telos: satisfação
das carências e necessidades psicobiológicas.
O próprio Filósofo considera essa existência como “imensos sistemas
mecânicos dos quais a liberdade terá sido eliminada e que se regularão
apenas por modelos sempre mais eficazes e racionais de controle do arbí-
trio dos indivíduos”, pois já estariam “despojados da sua razão de ser como
homens ou como portadores do ethos”. 50 No entanto, contrapondo-se a
este cenário desolador, propõe Lima Vaz a recuperação do liame do existir
ético-político no contexto da sociedade moderna com a dialética do social,
do político e do democrático.
Não se trata de desprezar o problema das carências e necessidades,
estatuído pelas teorias do pacto social como “a” resposta aos conflitos e
móvel para associação humana, mas sim de o situar como fator de agre-
gação primária e não como ratio essendi da sociedade política. Nesta
configuração o político estaria à deriva, pois a igualdade de todos segundo
as necessidades oportuniza a hybris social e rende ensejo ao despotismo e
ao totalitarismo. Por conseguinte, imprescindível que haja a suprassunção
no nível do político.
O nível político é caracterizado pela ideia de lei (nómos) – ou lei justa
– e, assim, promove a suprassunção da igualdade social na igualdade de
todos perante a lei; portanto, abre espaço para o ser-reconhecido e para o
poder legítimo. A lei assume o lugar do tirano ou do déspota para possibi-
litar a igualdade e a equidade na vida política, ou ainda, de “legitimar o
poder pela justiça na perspectiva de uma teleologia do Bem e fazer assim
da vontade política uma vontade instauradora de leis justas – uma nomo-
tética regida pela razão do melhor”. 51

50
H. C. de Lima Vaz, Ética e Cultura, p. 180.
51
H. C. de Lima Vaz, Ética e Política, p. 7.
Manoel dos Reis Morais | 185

Por fim, no nível democrático, sustenta o Filósofo um aprofunda-


mento da igualdade na diferença, com o intuito de se alcançar um status
qualitativamente novo, no qual a igualdade perante a lei deve ser conser-
vada na diferença das liberdades presentes no espaço político. Mas,
liberdade concebida como consciência de ser livre, é dizer, de se dar leis
que esplendam a justiça como virtude (ou justiça na alma). Apenas esta
consciência é que pode responder ao apelo da consciência de cidadão e,
assim, instaurar um ambiente de liberdades participantes, ou seja, verda-
deiramente democrático.
Verdade que esse ambiente se afigura um tanto intangível, em que
pese dogmatizado no art. 1º da Constituição da República, mas é preciso
reiterar que se trata de um projeto, de um propósito ou desígnio da socie-
dade política contemporânea. Neste sentido, um ideal cuja concretização
depende do empenho participante de todos os conviventes, pois apenas
assim será possível “fazer refluir a distância entre a miséria e a riqueza,
entre a necessidade vital e o consumo supérfluo, bem como vencer a
enorme desproporção entre meios e fins”. 52 Trata-se, como refere o Filó-
sofo, do duro aprendizado da liberdade, cujo confronto é de ser permeado
pela (a) solução razoável do problema da satisfação das necessidades, (b)
pelo reconhecimento de todos no âmbito da lei (justiça) e (c) pelo compro-
metimento nas tarefas do bem comum e da justiça social. Um aprendizado
que, ao mesmo tempo em que se põe em marcha, não só compreende o
ideário de uma vida ética como, também, edifica um lócus próprio para a
realização humana.

Referências

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52
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Capítulo 11

Justiça e Realização na República de Platão:


considerações a partir da obra de Lima Vaz

Bruno Amaro Lacerda

Uma das experiências humanas mais profundas, diz Lima Vaz, é a de


realização da própria vida, isto é, a percepção que toda pessoa tem de que
sua existência deve encontrar um sentido. Este fim, embora necessário,
não é predeterminado pela natureza nem por nenhuma força externa e,
como tal, deve ser livremente escolhido por cada um de nós. A realização,
assim, não é algo dado, mas um desafio permanente, uma tarefa que, con-
quanto tenha de ser incessantemente buscada, nunca estará
completamente acabada. No cumprimento dessa tarefa, cada pessoa põe a
totalidade do seu ser, ligando sua estrutura constitutiva ou unidade onto-
lógica às relações que trava com os demais em sociedade. A vida humana,
neste sentido, exprime-se em uma dialética da identidade e da alteridade,
pela qual o indivíduo, praticando atos e se relacionando, unifica-se pro-
gressivamente como pessoa, em obediência ao imperativo de tornar-se o
que é. Em última análise, a realização consiste na busca por uma unidade
existencial paulatina e constante que, limitada apenas pela morte, “se
constrói pelo exercício dos atos que vão traçando o itinerário da vida que
deve ser sempre mais una”1.
A filosofia platônica, na interpretação lima-vaziana, representa uma
das linhas fundamentais da categoria de realização. Na República, o pro-
grama de uma paidéia das virtudes que culmina na contemplação

1
H. C. de LIMA VAZ, Antropologia Filosófica II, São Paulo, Loyola, 1992, p. 144.
Bruno Amaro Lacerda | 189

intelectiva da ideia do bem é a matriz conceitual primeira da civilização


ocidental, assinalando a substituição da cosmonomia pré-socrática pela
ideonomia 2 que perdura até os dias atuais:

É sabido que essa concepção da paidéia, independentemente das peculiarida-


des do projeto político-pedagógico de Platão, terá a mais profunda influência
na idéia de homem que vem guiando a nossa civilização. Nela, com efeito, a
realização do homem é pensada na perspectiva do mais remoto horizonte que
a nossa intuição intelectual pode divisar, abrindo um espaço ilimitado à tarefa
(ergon) da nossa auto-realização. 3

Opondo-se ao convencionalismo dos sofistas e ao humanismo retó-


rico de Isócrates, Platão inaugura “o espaço espiritual que se oferece ao
homem, agindo segundo o predicado do logos que lhe é próprio, para nele
obedecer ao imperativo de tornar-se o que é” 4. Ao elevar a filosofia, pen-
sada como atividade contemplativa das formas inteligíveis, à condição de
norma de realização da vida humana, Platão estipula o mais alto ideal pos-
sível para a existência: o conhecimento do ser verdadeiro, cujo alcance
exige uma “conversão” intelectiva em direção ao plano metafísico. Por isso,
“sendo a paidéia platônica coroada pelo conhecimento do Bem transcen-
dente que só o philósophos pode alcançar, a vida filosófica apresenta-se
necessariamente como o paradigma de realização humana” 5.
Partindo desta concepção do platonismo como um dos caminhos fun-
damentais da categoria de realização, este texto tem uma proposta
simples: mostrar como se desenvolve, na República, a vida filosófica como
“programa de uma paidéia que tem exatamente como paradigma e norma
de seu desenvolvimento a participação do homem à Idéia do Bem pela
forma mais alta de conhecimento que se eleva até a sua plena intuição
(nóesis)” 6. Contra a visão sofística que reduz a justiça a mera conveniência

2
H. C. de LIMA VAZ, Ética e Justiça: Filosofia do Agir Humano, Síntese Nova Fase, v. 23, n. 75, 1996, p. 447.
3
H. C. de LIMA VAZ, Antropologia Filosófica II, p. 156-157.
4
Ibidem, p. 150.
5
Ibidem, p. 150.
6
Ibidem, p. 156.
190 | O que torna uma vida realizada: homenagem aos 100 anos de Henrique Cláudio de Lima Vaz

social, Platão a apresenta como um bem de elevado valor, ou, nas palavras
de Monique Canto-Sperber, como “o mais precioso dos bens que o homem
pode adquirir por si mesmo” 7.
O diálogo inicia-se com um exemplo de vida realizada: o velho Céfalo,
pai de Polemarco, confidencia a Sócrates que, ao contrário da maioria dos
homens de sua idade, é feliz. Não apenas por ser rico, nem por estar livre
dos desejos implacáveis da juventude, mas por ter passado toda a sua vida
praticando a justiça e, assim, não precisar temer as punições que os ho-
mens injustos, de acordo com a crença comum, sofrem após a morte.
Quem diz sempre a verdade e nunca prejudica ninguém, diz Céfalo, des-
fruta de uma velhice de paz e liberdade 8.
Sócrates não rejeita a associação entre justiça e realização, mas ques-
tiona, agora perante Polemarco, o que a justiça é. A definição de
Simônides, segundo a qual “justo é dar a cada qual o que lhe convém”, é
interpretada pelo herdeiro de Céfalo como “fazer bem aos amigos e mal
aos inimigos” 9. Sócrates objeta que quando se causa dano a cavalos e cães
eles se tornam piores em sua excelência; do mesmo modo, sendo uma vir-
tude humana, a justiça não poderia causar dano a ninguém, pois isto
equivaleria a produzir algo ruim por meio de uma coisa boa. Logo, “não é
próprio do homem justo causar dano nem aos amigos nem a quem quer
que seja, porém do seu contrário, o homem injusto” 10.
O sofista Trasímaco, que até então ouvia a conversa, entra abrupta-
mente em cena e afirma que a justiça é “a vantagem do mais forte” 11.
Instado por Sócrates a explicar a definição, ele esclarece que quem detém
o poder em uma cidade faz as leis de acordo com o que lhe convém, im-
pondo o seu cumprimento como justo. Na tirania, por exemplo, o tirano

7
M. CANTO-SPERBER, La vertu individuelle, modèle politique, In: BARANÈS, William, FRISON-ROCHE, Marie-
Anne, La justice: l’obligation impossible, Paris, Autrement, 1994, p. 34.
8
PLATÃO, A República, 329c.
9
Ibidem, 332d.
10
Ibidem, 335d.
11
Ibidem, 338c.
Bruno Amaro Lacerda | 191

promulga leis tirânicas e, declarando-as justas, obriga os governados a ob-


servá-las; de modo similar na democracia e nos outros regimes políticos.
Ou seja: não existe uma essência da justiça, uma justiça em si, mas so-
mente o poder que exige obediência, dando a esta o nome de justiça.
Trasímaco, com isso, se distancia da fala de Céfalo: uma vida bem realizada
não consiste em não mentir e em dar a cada um o devido, mas em con-
quistar o poder político para usá-lo em proveito próprio. Contra Sócrates,
que argumenta que quem domina uma técnica deve empregá-la em prol
dos seus beneficiários, ele sustenta que o governante é como o pastor que
cuida das ovelhas: todo o seu zelo, na verdade, é em seu próprio inte-
resse 12, já que almeja abatê-las mais tarde.
Com o avançar da discussão, Trasímaco passa a elogiar a própria in-
justiça. A realidade, afirma, se encarrega de provar as vantagens auferidas
pelo homem injusto. Enquanto este sempre lucra, o justo com frequência
fica em prejuízo. A injustiça, “mais forte e mais livre e dominadora do que
a justiça” 13, só é censurada porque as pessoas temem ser por ela vitimadas,
não porque a considerem algo intrinsecamente ruim:

Mas o indivíduo que, além de tirar o dinheiro de seus concidadãos, os reduz à


condição de escravos, em vez desses nomes feios, é chamado venturoso e aben-
çoado, e isso não apenas por parte de seus concidadãos, mas por todos os que
ouvem qualquer referência à enormidade de seus crimes. Os que censuram a
injustiça não o fazem com o propósito de não praticá-la, mas de medo de virem
a ser vítimas dela. 14

Esta passagem promove uma completa inversão na realização hu-


mana. A meta da vida bem vivida não é mais a prática da justiça, vista
agora como mera ingenuidade, mas o seu contrário, a injustiça, que a subs-
titui como o valor do governante que, sem qualquer peia, persegue a

12
Ibidem, 343a-c.
13
Ibidem, 344c.
14
Ibidem, 344b-c.
192 | O que torna uma vida realizada: homenagem aos 100 anos de Henrique Cláudio de Lima Vaz

própria conveniência, mesmo que à custa dos governados. Tornar-se in-


justo, buscando exclusivamente o autointeresse, é o caminho que o sofista
indica para a felicidade. A injustiça, então, passa a ser “a verdadeira virtude
para o homem, na medida em que é pela busca da injustiça que os homens
adquirem areté e, assim, eudaimonia, pois só por este caminho eles podem
satisfazer suas necessidades” 15.
Revela-se aqui um problema profundamente ético: como devemos
viver? Buscando a justiça ou o seu contrário? Esta questão fica ainda mais
clara quando Sócrates não permite que Trasímaco se retire do embate,
exigindo-lhe explicações adicionais, pois o que está em jogo não é coisa de
pouca monta: “Acreditas, porventura, que te empenhaste em definir uma
coisinha de somenos importância e não uma norma de conduta, que cada
um de nós deverá seguir para viver a mais conveniente vida imaginá-
vel?” 16. Ou seja: a vida humana não transcorre apenas na ordem do ser,
exigindo também a determinação de um critério de necessidade ética ou
dever ser. Nos quadrantes da ideonomia platônica, observa Lima Vaz, o ser
humano é então “um ser constitutivamente ético e essa eticidade é ou deve
ser o primeiro predicado da sua unidade existencialmente em devir – ou
do imperativo da sua auto-realização” 17. A longa discussão sobre a justiça
no diálogo em exame, portanto, não é mera diatribe, pois está em disputa,
na brilhante dramatização platônica, a norma da vida bem vivida.
O Livro I encerra-se com o argumento socrático de que a justiça mos-
tra-se útil mesmo entre bandos de salteadores e ladrões, os quais, embora
injustos com suas vítimas, procuram ser justos entre si. Isso se dá “porque
a injustiça faz nascer ódio entre os homens, lutas e dissensões, enquanto a
justiça gera amizade e concórdia” 18. Fundamental mesmo entre malfeito-
res, não resta dúvida que a justiça é uma virtude da alma que torna bom

15
G. B. KERFERD, The Sophistic Movement, Cambridge, Cambridge University Press, 1981, p. 122.
16
PLATÃO, A República, 344e.
17
H. C. de LIMA VAZ, Antropologia Filosófica II, p. 146.
18
PLATÃO, A República, 351d.
Bruno Amaro Lacerda | 193

o homem que a pratica. Sócrates admite, porém, que isto não basta. É pre-
ciso, antes de tudo, conhecer o que ela realmente é.
O jovem Glauco, na sequência, manifesta preocupação com o fato das
pessoas comumente pensarem que, por natureza, praticar injustiça é um
bem e ser vítima de injustiça um mal, o que as impele a estabelecerem
acordos, na forma da lei, pelos quais exigem não serem vítimas de injus-
tiça, comprometendo-se em contrapartida a também não praticá-la. Esta
é a “origem e a essência da justiça: uma espécie de compromisso entre o
maior bem, ou seja, a impunidade para todas as malfeitorias, e o maior
mal, isto é, a impotência de vingar-se quem foi vítima de injustiça” 19.
A prática da justiça, nessa visão corrente, deve-se então à fragilidade
dos homens: como ninguém é forte o bastante para buscar o maior bem
(ser injusto sem recear as consequências), nem está disposto a sofrer o
maior mal (ser presa indefesa da injustiça), ajustam entre si um pacto de
igualdade. Mas, se existisse um homem dotado de poder extraordinário,
que não temesse ninguém, certamente violaria o acordo, esmagando todos
os demais. É o que sugere a fábula do anel de Giges 20. O verdadeiro bem,
nesta perspectiva, é a injustiça; a justiça não passa de um substitutivo que
surge para remediar a fraqueza humana.
A exposição de Glauco ecoa a célebre oposição sofística entre natureza
(physis) e lei (nómos). Por natureza, a vida do injusto parece proporcionar
melhores frutos, mas diante da impossibilidade de alcançá-la sem riscos,
os homens aceitam a justiça convencionada pela lei. Os acordos que esta-
belecem, porém, jamais terão a mesma força das disposições naturais, que
prefeririam caso pudessem agir sem recear as consequências. A “expres-
são mais eloqüente dessa oposição”, diz Lima Vaz 21, é o famoso fragmento
do sofista Antifonte, que diz:

Justiça é não transgredir o que a cidade, na qual vive o cidadão, determinou


como justo. Por consequência, um homem colocará em prática a justiça com a

19
Ibidem, 359a.
20
Ibidem, 359c-360c.
21
H. C. de LIMA VAZ, Escritos de Filosofia II: Ética e Cultura, São Paulo, Loyola, 1993, p. 47.
194 | O que torna uma vida realizada: homenagem aos 100 anos de Henrique Cláudio de Lima Vaz

máxima vantagem para si, e na presença de testemunhas julgará soberanas as


leis positivas, ao passo que se estiver sem testemunhas, as disposições da na-
tureza. Com efeito, as disposições das leis são ocasionais, ao passo que as da
natureza são necessárias. E aquelas das leis devidas a um acordo, não são na-
turais. As disposições de natureza que são naturais não dependem de um
acordo 22.

A República, resposta platônica ao problema, introduz uma visão de


physis diferente da pressuposta na exposição de Glauco. Como alguns dos
sofistas, Platão também pensa que as leis do seu tempo não refletem a
verdadeira natureza, mas compreende esta de uma maneira totalmente
diversa. A physis não é a animalidade ou o desejo de dominação, mas a
capacidade da alma de contemplar as ideias ou formas inteligíveis. Ela é a
potência que predispõe o homem à compreensão da ordem do ser 23.
A busca pelo ser verdadeiro, então, norteia o diálogo e dá sentido ao
seu problema inicial: qual via conduz à realização, a justiça ou a injustiça?
Um deslinde para a questão precisa ser encontrado, pois os jovens devem
saber “qual o caminho a percorrer para atravessarem a vida do melhor
modo possível” 24. Os interlocutores, por conseguinte, necessitam desven-
dar a “maneira por que atua a justiça ou a injustiça na alma em que se
encontram, graças à virtude própria” 25. Mas, observa Sócrates, talvez seja
mais fácil ver primeiro o que é a justiça em uma cidade e só depois inves-
tigar como ela se manifesta na alma. Os personagens iniciam, então, a
fundação imaginativa de uma cidade justa, que deverá funcionar como
modelo para a compreensão da justiça no interior do homem. Cidade que,
destaca Sócrates, deve ser “fundada de acordo com a natureza” 26.
Uma cidade surge quando ninguém basta a si mesmo e todos têm
necessidade de muitas coisas, como alimento, moradia e vestuário. A razão
para diversos indivíduos se reunirem em um espaço comum, portanto, é

22
M. UNTERSTEINER, I Sofisti, Testimonianze e frammenti, Fascicolo IV, Firenze, La Nuova Italia, 1962, p. 73-77.
23
M. OSTWALD, Plato on law and nature, In: NORTH, Helen F., Interpretations of Plato, Leiden, Brill, 1977, p. 49.
24
PLATÃO, A República, 365a-b.
25
Ibidem, 366e.
26
Ibidem, 428e-429a.
Bruno Amaro Lacerda | 195

a busca por auxílio mútuo. Não sendo absolutamente iguais, mas dotados
de diversas aptidões, precisam uns dos outros para o suprimento de suas
carências. Na cidade justa, os guardiões devem ser bem formados, o que
requer uma paidéia integral, baseada em música para a alma e em ginás-
tica para o corpo. Assim poderão alcançar as virtudes fundamentais da
coragem e da temperança. Entre os guardiões, uma parte se ocupará da
defesa da cidade (os guerreiros, ou simplesmente guardiões) e a outra,
mais nobre, do seu governo (os governantes). Somados aos agricultores,
comerciantes e artesãos em geral, têm-se três classes: governantes, guar-
diões e produtores. Esta cidade é bela, enfatiza Sócrates, porque suas
classes estão unidas por um propósito comum: assegurar a unidade que
permite que todos, de acordo com suas disposições, sejam felizes. A justiça,
nessa perspectiva, manifesta-se quando cada classe cumpre a própria ta-
refa: “Uma razão a mais, por conseguinte, para definirmos a justiça como
consistindo em conservar cada um o que é seu e fazer o que lhe compete” 27.
Platão, portanto, compreende a justiça como um princípio de ordem
que institui unidade no diverso. A cidade maximamente justa é a que con-
segue unir, do melhor modo possível, suas diversas partes em uma
harmonia, estabelecendo entre os dissonantes a perfeita proporção. A fá-
bula dos “nascidos da terra” esclarece essa unidade: a mãe-terra deu à luz
todos os homens de uma cidade, mas os deuses misturaram junto com a
terra metais diferentes para as gerações. Ouro com terra para os que têm
disposição para o comando, prata para os auxiliares e ferro e bronze para
os que têm aptidão para tarefas manuais. Além disso, como os homens
têm uma origem comum, pode acontecer que de pais de ouro nasça um
filho de prata, ou que de pais de ferro um filho de ouro, o que exigirá, se a
educação revelar essa disposição, sua transferência para classe diversa da
dos seus progenitores.
O mito mostra que, apesar de suas diferentes tendências, todos os
homens possuem laços fraternos e um dever igual para com a comunidade
(“a terra, mãe comum, os dera à luz, razão por que deveriam considerar a

27
Ibidem, 433e-434a.
196 | O que torna uma vida realizada: homenagem aos 100 anos de Henrique Cláudio de Lima Vaz

terra em que ora habitam como mãe e ama de todos eles, defendendo-a no
caso de ser atacada, e considerar irmãos os demais cidadãos” 28) e, neste
sentido, que “as desigualdades dos talentos naturais e habilidades huma-
nas são compatíveis com a igualdade básica e funcional dos homens” 29.
Mas também, como lembra Giovanni Casertano, que as classes da cidade
justa não são “castas fechadas”, pois a pertença de um indivíduo a uma
das três “não é determinada nem pelo nascimento nem por nenhuma con-
dição que não sejam as capacidades individuais” 30.
Uma vez encontrada a justiça na cidade, resta saber como ela se apre-
senta na alma. Trata-se do mesmo princípio estruturante: a alma é justa
quando cada uma das suas três partes (racional, impulsiva e desiderante)
dirige sua atividade própria e não interfere na função das outras duas.
Portanto, um homem é justo quando sua razão comanda, seus impulsos
controlam as atividades afetivas e seus desejos cuidam da nutrição e da
reprodução, e injusto quando estes elementos se desarmonizam. À seme-
lhança do que ocorre na cidade, cabe à razão, aliada à parte impulsiva,
governar o elemento desiderante da alma. Depreende-se, em sentido con-
trário, que a injustiça principia no predomínio indevido dos impulsos ou
dos desejos sobre a razão.
Pode-se, portanto, afirmar que a justiça é a virtude do homem que,
submetido à educação correta, faz com que a razão (e não os impulsos ou
os desejos) governe suas ações, e, ao mesmo tempo, o direcionamento da
pluralidade citadina à unidade. Nesse sentido, ela é “a categoria fundamen-
tal que permite pensar a comunidade humana como comunidade ético-
política” 31.
Esse íntimo paralelismo entre a cidade e a alma não deve ser visto
como metafórico. A analogia é funcional e dinâmica: “a cidade funciona

28
Ibidem, 414e.
29
R. W. HALL, Justice and individual in the “Republic”, Phronesis, v. 4, n. 2, 1959, p. 150.
30
G. CASERTANO, Uma introdução à República de Platão, São Paulo, Paulus, 2011, p. 43.
31
H. C. de LIMA VAZ, Ética e Direito, São Paulo, Landy/Loyola, 2002, p. 298.
Bruno Amaro Lacerda | 197

como uma alma, e a alma funciona como uma cidade” 32. Tanto a primeira
quanto a segunda possuem energias internas que frequentemente estão
em conflito umas contra as outras, causando as graves desarmonias que
ameaçam a unidade do homem e da comunidade. Esse profundo desa-
cordo, todavia, pode ser debelado por meio de uma estratégia educativa
eficaz, que exigirá a conexão entre saber filosófico e poder político. Assim,
em dado momento, os interlocutores se dão conta que a justiça reside den-
tro do homem, pois é um princípio de amizade para consigo mesmo que
“brota do interior de nossa própria natureza” 33. Este princípio, embora
não esteja dado, pode ser alcançado por meio de um conhecimento ade-
quado:

De fato, ao que parece, a justiça é desse jeito, porém, não com respeito às ações
exteriores do homem, mas às interiores, em verdade, que lhe refletem o imo
ser nos seus elementos constitutivos, e o leva, como a homem justo, a não
permitir a nenhum deles fazer nada do que lhe for estranho, nem interferir
uns nos outros os diferentes princípios da alma em suas respectivas atividades,
mas a pôr ordem em sua vida interior, disciplinar-se, tornar-se amigo de si
mesmo e harmonizar essas partes à maneira dos três termos da escala musi-
cal: o alto, o baixo e o médio, como também faz com todos os intermediários
que possam coexistir; e depois de unir todos esses elementos e de múltiplo que
era torna-se uno, temperante e afinado em tudo a que se aplicar, seja no afã
de enriquecer, seja no cuidado com o corpo e em assuntos de política ou em
negócios particulares, em qualquer situação, considera e denomina justa e bela
a ação que mantém e contribui para realizar esse estado da alma, tendo na
conta de sabedoria o conhecimento que determina semelhante norma de con-
duta, de injusta a ação que destrói esse estado de coisas, e de ignorância a
opinião responsável por esta última orientação. 34

Resolve-se assim, como observa Reale, o problema do valor da jus-


tiça: ela é o bem-estar da alma, ao passo que a injustiça (e os vícios em

32
M. VEGETTI, Politica dell’anima e anima del politico, In: Études platoniciennes, IV, Les puissances de l’âme selon
Platon, Paris, Les Belles Lettres, 2007, p. 343.
33
G. B. KERFERD, The Sophistic Movement, p. 123.
34
PLATÃO, A República, 443c-444a.
198 | O que torna uma vida realizada: homenagem aos 100 anos de Henrique Cláudio de Lima Vaz

geral) são “a feiúra e a doença da alma” 35. Por conseguinte, a alma feliz,
bem realizada, é a que exerce suas atividades de modo ordenado, segundo
a justiça e as demais virtudes. A visão corrente recordada por Glauco, se-
gundo a qual a injustiça é por natureza melhor que a justiça, incorre em
grave equívoco: limita os interesses humanos aos bens exteriores, igno-
rando que, se o homem é sua alma, a verdadeira felicidade deve residir (ao
menos como possibilidade) dentro dele. E, se a alma possui três funções,
“em uma disposição hierárquica onde o intelecto deve ocupar o primeiro
posto”, seu bem só pode consistir “na manutenção de uma verdadeira har-
monia entre essas três espécies, e principalmente na contemplação do
inteligível pelo intelecto” 36.
Voltando à descrição da cidade, Sócrates explica, atendendo ao pedido
de Adimanto, que nela as mulheres poderão exercer as mesmas tarefas dos
homens, inclusive governar, desde que tenham as mesmas capacidades.
Esclarece ainda que os filhos e as mulheres serão comuns, ao menos para
as duas primeiras classes. Além disso, as crianças serão educadas coletiva-
mente até que suas disposições tenham se manifestado e, só então, serão
conduzidas à função para a qual estão destinadas. Tudo isso, porém, só
será possível se os filósofos governarem, ou se os que detêm o poder ad-
quirirem apreço pela filosofia. Enquanto não se unirem poder político e
filosofia, ele diz, “não poderão cessar, meu caro Glauco, os males da cidade,
nem, ainda, segundo penso, os do gênero humano” 37.
O problema, agora, passa a ser: quem é filósofo e quem não é? É filó-
sofo quem foge da ignorância e, não se contentando com a opinião, aspira
à sabedoria por completo, comprazendo-se com o espetáculo da verdade 38.
Há, portanto, uma diferença fundamental entre conhecimento, ignorância
e opinião. O primeiro se volta ao ser verdadeiro, a segunda ao não-ser e a
terceira se situa entre o ser e o não-ser. A opinião não alcança de modo

35
G. REALE, Storia della filosofia antica, v. II, Milano, Vita e Pensiero, 1988, p. 304.
36
L. BRISSON, J.F. PRADEAU, Le Vocabulaire de Platon, Paris, Ellipses, 1988, p. 100.
37
PLATÃO, A República, 473d.
38
Ibidem, 475e.
Bruno Amaro Lacerda | 199

pleno o ser porque, dividindo-se entre as coisas que são e as que não são,
termina por se perder na pluralidade, deixando escapar a ideia. É o que
ocorre com o amante de espetáculos, incapaz de captar a beleza em si além
das manifestações particulares do belo (os belos sons, as belas cores, as
belas figuras etc.). O mesmo vale para o conhecimento da justiça, a virtude
fundamental investigada. Assim, caso se deseje viver em harmonia consigo
e com os demais, é imperioso ultrapassar as “sombras da justiça” e buscar
a “justiça em si mesma” 39.
Por serem os únicos capazes de contemplar as ideias inteligíveis, os
filósofos, “amantes do ser e da verdade”, devem governar a cidade. São,
por direito, seus legítimos guardiões. Por isso, sua educação se torna im-
portantíssima. Seu objeto máximo é a “ideia do bem”, que, de difícil
compreensão, é comparada por Sócrates ao sol, “filho do bem”. Há uma
analogia entre o sol e o bem: assim como o primeiro, no mundo visível,
permite que todas as coisas sejam vistas e, além disso, lhes dá vida, cor e
nutrição, o segundo fornece às essências inteligíveis o seu ser próprio e
possibilita que sejam conhecidas. A ideia da justiça, sem a qual não pode
existir verdadeira ordenação da alma e da cidade, deve sua existência e
cognoscibilidade, como todas as demais essências, à ideia do bem: esta,
portanto, é “o mais elevado conhecimento, e que na medida em que dela
participam são úteis e vantajosas a justiça e as demais virtudes” 40. Todos
os objetos devem seu ser e sua cognoscibilidade ao bem, “conquanto o bem
não seja essência, senão algo que excede de muito a essência, em poder e
dignidade” 41.
Mas o que significa exceder ou estar “além da essência”? A ideia do
bem não está no plano do ser? Não é propriamente uma essência? Moni-
que Dixsaut esclarece que, assim como o sol não é somente uma coisa
visível, mas o ente que ultrapassa a essência de todas as demais realidades
visíveis por lhes dar vida e nutrição, “o bem não é somente uma realidade

39
Ibidem, 517d-e.
40
Ibidem, 505a.
41
Ibidem, 509b.
200 | O que torna uma vida realizada: homenagem aos 100 anos de Henrique Cláudio de Lima Vaz

inteligível porque sua potência ultrapassa a de todas as essências que tiram


dele sua maneira de ser. Sob este aspecto, na medida em que é causa de
toda a existência essencial, ele não é, somente, uma essência” 42. Talvez o
intuito de Platão seja indicar que a ideia do bem não é “apenas” a unidade
lógica de uma multiplicidade (as demais formas inteligíveis), “mas tam-
bém e, sobretudo, o sinal de que a realidade é orientada para o bem” 43.
Seja como for, o bem é o “modelo” ou “paradigma” do qual o filósofo deve
se valer para regular sua vida e a vida dos seus concidadãos na cidade,
impondo-se, assim, como “o polo objetivo unificante da práxis” 44. Ele é, ao
mesmo tempo, a “norma ontológica última” e “a norma suprema do
agir” 45. E, como se identifica com o “divino” em seu mais alto grau, “o
Estado platônico resulta, por consequência, na tentativa de organizar a
vida social dos homens sobre a base do mais elevado fundamento teoló-
gico” 46.
Como ilustração da ascese ao bem, o mito no início do Livro VII narra
a história dos homens que, acorrentados em uma caverna, vêem apenas
sombras projetadas na parede, que tomam pela verdadeira realidade.
Quando um deles se liberta e é obrigado a olhar em direção à luz do sol,
reluta, mas quando finalmente sua visão se acostuma consegue enxergar
os objetos que existem no mundo superior, como as sombras, as imagens
dos homens e os reflexos na água, depois os corpos celestes, o céu e, final-
mente, o próprio sol que possibilita que todos estes objetos sejam vistos.
Mas, se este homem retornar à caverna para relatar o que viu, será prova-
velmente mal recebido, podendo até ser morto pelos antigos
companheiros. Trata-se de uma alegoria da vida filosófica: a “ascensão da
alma para a região inteligível” 47, que culmina na conquista intelectiva do

42
M. DIXSAUT, De l’idea du bien à sa lumière, In: CASTEL-BOUCHOUCHI, Anissa et al., Lectures de Platon, Paris,
Ellipses, 2013, p. 81.
43
F. TRABATTONI, Platone, Roma, Carocci, 2009, p. 85.
44
H. C. de LIMA VAZ, Escritos de Filosofia II, p. 54.
45
H. C. de LIMA VAZ, Escritos de Filosofia VIII: Platonica, São Paulo, Loyola, 2011, p. 159.
46
G. REALE, Storia della filosofia antica, v. II, p. 313.
47
PLATÃO, A República, 517b.
Bruno Amaro Lacerda | 201

bem, novamente simbolizado pelo sol, completa a difícil educação filosó-


fica e gera para o filósofo a obrigação de retornar às questões políticas para
ordená-las segundo a nova ordem de conhecimentos que adquiriu. Obri-
gação, porque não é permitido que apenas uma das classes, a governante,
goze da felicidade que a contemplação do inteligível proporciona: “O ‘po-
der político’ supremo, na visão platônica, torna-se, portanto, o supremo e
necessário ‘serviço’ dos que, tendo contemplado o Bem, descem à reali-
dade e, por meio da práxis política, o concedem aos demais” 48.
É por esta razão que, na bela cidade imaginada, após os trinta anos
os melhores são enviados aos estudos de dialética, disciplina que lhes per-
mitirá ter uma visão de conjunto (sinóptica) e, assim, captar a “essência
de cada coisa” 49; dos trinta e cinco aos cinquenta, “voltam à caverna” e
cumprem a tarefa de experiência prática com o governo da cidade; e, a
partir do cinquenta, “depois de contemplarem o bem em si, tomá-lo-ão
como modelo para dirigir a contento a cidade, os particulares e eles pró-
prios o resto da vida” 50. Tudo isso, porém, recorda mais uma vez Sócrates,
só será possível se os filósofos assumirem o poder e passarem a considerar
a justiça “a coisa mais importante e necessária” 51. E, mesmo que essa ci-
dade não seja faticamente possível, ela é o “modelo celestial” para quem
deseja organizar a si mesmo 52.
Como conclusão desta breve e incompleta recapitulação, pode-se afir-
mar que a República, um diálogo sobre a justiça, é na mesma medida um
tratado sobre a realização humana. A vida bem vivida, para Platão, requer
empenho na prática do justo e rejeição dos falsos bens que a injustiça pro-
porciona. Deve-se entender por justiça, contudo, não a opinião comum que
as pessoas têm sobre esta virtude, mas a ideia da justiça, a inteligibilidade
que ultrapassa a pluralidade opinativa e se apresenta à razão como con-
ceito e norma. O conhecimento desta justiça em si viabiliza-se pelo

48
G. REALE, Storia della filosofia antica, v. II, p. 318.
49
PLATÃO, A República, 534b.
50
Ibidem, 540a-b
51
Ibidem, 540e.
52
Ibidem, 592b.
202 | O que torna uma vida realizada: homenagem aos 100 anos de Henrique Cláudio de Lima Vaz

desenvolvimento de uma paidéia diversa da transmitida nos mitos gregos


tradicionais. A educação platônica coincide, como visto, com o longo es-
forço filosófico exposto no curso do diálogo, por meio do qual os homens,
percebendo a orientação de suas almas em direção ao inteligível e, sobre-
tudo, à ideia do bem, compreendem que o fim último da existência é a
adequação à ordem eterna do ser, que unifica e harmoniza o diverso. Com
Platão, portanto, abre-se uma nova via para o problema do destino hu-
mano: a realização não consiste em se submeter aos desígnios dos deuses,
tampouco em se entregar aos prazeres desmedidos e violentos, mas em
escolher viver segundo o lógos. Esta forma de vida maximamente signifi-
cativa não deixa de ser, como diz Lima Vaz, uma “aventura intelectual de
assombrosa audácia” 53.

Referências

BRISSON, Luc, PRADEAU, Jean-François, Le Vocabulaire de Platon, Paris, Ellipses, 1998.

CASERTANO, Giovanni, Uma introdução à República de Platão, São Paulo, Paulus, 2011.

CANTO-SPERBER, Monique, La vertu individuelle, modèle politique, In: BARANÈS, Wil-


liam, FRISON-ROCHE, Marie-Anne, La justice: l’obligation impossible, Paris,
Autrement, p. 28-50, 1994.

DIXSAUT, Monique, De l’idea du bien à sa lumière, In: CASTEL-BOUCHOUCHI, Anissa et


al., Lectures de Platon, Paris, Ellipses, p. 67-83, 2013.

HALL, R. W., Justice and individual in the “Republic”, Phronesis, v. 4, n. 2, p. 149-158, 1959.

KERFERD, G. B., The Sophistic Movement, Cambridge, Cambridge University Press, 1981.

LIMA VAZ, Henrique Cláudio de, Antropologia Filosófica II, São Paulo, Loyola, 1992.

____. Ética e Direito, São Paulo, Landy/Loyola, 2002.

53
H. C. de LIMA VAZ, Escritos de Filosofia VIII, p. 111.
Bruno Amaro Lacerda | 203

____. Ética e Justiça: Filosofia do Agir Humano, Síntese Nova Fase, v. 23, n. 75, p. 437-453,
1996.

____. Escritos de Filosofia II: Ética e Cultura, São Paulo, Loyola, 1993.

____. Escritos de Filosofia VIII: Platonica, São Paulo, Loyola, 2011.

PLATÃO, A República, Belém, Ed. UFPA, 2016.

OSTWALD, Martin, Plato on law and nature, In: NORTH, Helen F., Interpretations of Plato,
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REALE, Giovanni, Storia della filosofia antica, v. II, 6. ed, Milano, Vita e Pensiero, 1988.

TRABATTONI, Franco, Platone, Roma, Carocci, 2009.

UNTERSTEINER, Mario, I Sofisti, Testimonianze e frammenti, Fascicolo IV, Firenze, La


Nuova Italia, 1962.

VEGETTI, Mario, Politica dell’anima e anima del politico, In: Études platoniciennes IV, Les
puissances de l’âme selon Platon, Paris, Les Belles Lettres, p. 343-350, 2007.
Capítulo 12

O Marxismo como uma não


realização política em Lima Vaz

Émilien Vilas Boas Reis

Em 1959, Henrique Claudio de Lima Vaz (1921-2002) publicou na Re-


vista Síntese Política Econômica e Social, nos números 1, 2 e 3, as partes
de um texto intitulado Marxismo e Filosofia. Esses textos serão republica-
dos na obra Ontologia e História, em 1968, com o nome Marxismo e
Ontologia. Nessa obra, Vaz faz uma compilação de publicações ocorridas
entre 1954 e 1963. Em 2001, Ontologia e História é relançada como Escri-
tos de Filosofia VI: Ontologia e História, fazendo parte da coleção Escritos
de Filosofia, que reúne os principais escritos do autor.
Tais datas são importantes para que se possa contextualizar uma vi-
são crítica ao Marxismo feita por Vaz no início de sua trajetória de
intelectual público.
O texto que se segue pretende fazer uma análise do texto Marxismo
e Ontologia, ilustrando a crítica que Vaz faz ao pensamento de Karl Marx
(1818-1883) e, por consequência, ao Marxismo. Ainda serão analisados do
autor outros textos da década de 70 e 80 do século XX, que servirão de
complementos para a reflexão aqui proposta.
O objetivo do texto é mostrar como Vaz foi um crítico à ideologia
marxista enquanto projeto político. As críticas que dirige ao pensamento
de Marx ocorrem no nível intelectual, a partir de exegese dos textos do
autor analisado. Em tempos de críticas rasas e apressadas, Vaz oferece
uma honestidade intelectual ao se debruçar minuciosamente sobre uma
visão política da qual discorda.
Émilien Vilas Boas Reis | 205

A análise irá intercalar uma análise de textos de Vaz e obras do pró-


prio Marx, buscando esclarecer o caminho e as críticas que autor faz ao
pensamento de Marx.

Análise e crítica de Vaz ao pensamento de Marx

Vaz afirma ser o marxismo um fenômeno extraordinário que tem sua


origem com a publicação da obra Manifesto Comunista, em 1848 1. Além
do lado intelectual, era fato que um terço da humanidade vivia, em 1959,
baseado nas teorias marxistas. Entretanto, Vaz ainda questiona o que é
efetivamente o marxismo:

Com efeito, como se apresenta hoje o marxismo? É uma visão de mundo, um


sistema filosófico, uma técnica de análise econômica e política, uma arma ide-
ológica e, sobretudo – singular destino que Marx não previu – uma enorme
mistificação que encobre as finalidades agressivas de um imperialismo perfei-
tamente caracterizado pelos seus atavismos históricos 2.

Pode-se notar que o autor não tem uma posição ingênua ou de fé em


relação ao pensamento marxista. Naquela altura, várias barbaridades dos
regimes totalitários comunistas já haviam se tornado públicas.
Apesar do nome de Marx estar atrelado a Friedrich Engels (1820-
1895), Vladimir Lenin (1860-1924), Josef Stalin (1878-1953) e à revolução
soviética (1917), é fundamental voltar-se ao pensamento do próprio Marx,
pois “(...) nenhuma atitude mais fatal para impossibilitar a compreensão
do marxismo, em sua evolução histórica e em sua significação presente,
do que abandonar a obra de Marx à exegese escolástica dos ideólogos do
Partido” 3.
Essa volta não tem como fim, entretanto, a busca por um pensamento
puro de Marx que se contrapunha aos seus exegetas. A finalidade não é

1
H. C. de LIMA VAZ, Ontologia e História, 2001.
2
H. C. de LIMA VAZ, Ontologia e História, p.121-122.
3
H. C. de LIMA VAZ, Ontologia e História, p. 122.
206 | O que torna uma vida realizada: homenagem aos 100 anos de Henrique Cláudio de Lima Vaz

essa apenas! Vaz tem a pretensão de analisar o pensamento de Marx com


o intuito de verificar uma certa incoerência interna na obra marxiana, que
será vista no decorrer da análise. Pode-se adiantar, no entanto, que, para
Vaz, a inconsistência em Marx estará presente nos marxistas posteriores.
Por outro lado, Vaz leva a sério o pensamento de Marx, não o to-
mando como um autor de pensamento místico e emocional. Apesar da
crítica que fará ao pensamento de Marx, Vaz tem a honestidade de criticá-
lo a partir de seus próprios escritos. Nesse sentido, encara-o como um au-
tor inserido numa tradição hegeliana, que parte de princípios racionais,
mesmo que seu pensamento desague, em sua visão, em aporias. Será a
partir da relação entre dialética e história que o pensamento de Marx deve
ser compreendido, fazendo-o uma espécie de discípulo hegeliano.

O esforço gigantesco de Hegel aplica-se a conciliar a contingência histórica e a


necessidade racional, a situar a razão mesma da história numa história da ra-
zão, que articule em imenso processo dialético os momentos e os planos que
integram a experiência total do espírito no mundo. Ora, deste problema inicial
da reflexão, Marx inverteu a posição dos termos, mas conservou seu conteúdo.
Para ele a razão surgirá da história, e esta encontrará sua razão no movimento
dialético de suas determinações concretas 4.

Será preciso, pois, voltar-se aos textos de Marx para ter um diálogo a
sério com o filósofo alemão. Inicialmente, Vaz se debruça sobre dois tre-
chos dos Manuscritos Econômico-Filosóficos. Do primeiro, enfatiza o
caráter escatológico do comunismo, tomado como “fim da história”. Marx,
ao falar sobre o comunismo como suprassunção (supressão) da proprie-
dade privada, no sentido de estranhamento-de-si (autoalienação) do ser
humano, afirma:

Ele é a verdadeira dissolução (Auflösung) do antagonismo do homem com a


natureza e com o homem; a verdadeira resolução (Auflösung) do conflito entre

4
H. C. de LIMA VAZ, Ontologia e História, p. 122-123.
Émilien Vilas Boas Reis | 207

existência e essência, entre objetivação e auto-confirmação (sic) (Selbstbes-


tätigung), entre liberdade e necessidade (Notwendigkeit), entre indivíduo e
gênero. É o enigma resolvido da história e se sabe como esta solução 5.

O segundo trecho advém do resultado sobre o ateísmo dentro da di-


alética do processo histórico: “O comunismo é a figura necessária e o
princípio enérgico do futuro próximo, mas o comunismo não é, como tal,
o termo do desenvolvimento humano – a figura da sociedade humana” 6.
Para Vaz, por um lado, o comunismo é tomado como o resultado do
processo dialético, por outro, não 7. O que o leva a constatar uma primeira
contradição e hesitação em Marx. Ademais, o fim da dicotomia homem-
natureza pode significar a humanização totalizante da natureza ou a natu-
ralização total do homem, o que, na segunda hipótese, significaria um
retorno do ser humano à vida animal. Aqui, Vaz também percebe uma
profunda aporia:

(...) Marx se vê diante de um imperativo lógico indeclinável. Ele deve, com


efeito, conciliar a ilimitação original da consciência, manifestada na criativi-
dade dialética, e a limitação dos conteúdos naturais determinantes. Se a
progressão linear em que estes se dispõem — mesmo dialeticamente articulada
– deverá terminar na adequação total da consciência e do dado, haverá uma
“supressão” da dialética e, consequentemente (sic), a ameaça de um regresso
à indiferenciação da vida animal. Esta, a aporia mais profunda do huma-
nismo marxista, na qual um imenso e generoso esforço de promoção do
homem encontra-se frente a frente com o risco de uma desumanização
total 8.

Há, entretanto, outra crítica de Vaz sobre Marx que é, talvez, a mais
contundente. Marx tem a pretensão de fazer um socialismo científico, o
que gera um rechaçamento à filosofia: “Os filósofos apenas interpretaram

5
K. MARX, Manuscritos Econômicos-Filosóficos, p. 105.
6
K. MARX, Manuscritos Econômicos-Filosóficos, p. 114.
7
H. C. de LIMA VAZ, Ontologia e História, 2001.
8
H. C. de LIMA VAZ, Ontologia e História, p. 125, grifos nosso.
208 | O que torna uma vida realizada: homenagem aos 100 anos de Henrique Cláudio de Lima Vaz

o mundo de diferentes maneiras; o que importa é transformá-lo” 9. Vaz


questiona tal visão percebendo uma incongruência: “Mas, como transfor-
mar o mundo sem interpretá-lo?” 10. Além do mais, Vaz percebe Marx
como sendo profundo devedor da dialética filosófica hegeliana em seu pre-
tenso materialismo histórico, o que o colocaria necessariamente numa
perspectiva filosófica, e, ainda, o socialismo já seria uma visão de mundo,
e, portanto, filosofia.
Vaz afirma que Marx só pode ser compreendido totalmente a partir
de sua relação com Hegel (1770-1831).

Hoje a importância decisiva da confrontação Hegel-Marx para a inteligência


de nossa conjuntura especulativa e histórica obriga a remontar ao Hegel da
Fenomenologia e dos primeiros anos, pois foi sobretudo com esse Hegel pro-
blemático das nascentes que Marx encetou o diálogo dramático dos irmãos
inimigos 11.

Para Vaz, o problema inicial de Hegel foi avaliar a existência humana


compreendida como alienada da consciência e do ser. A dialética foi a ma-
neira que encontrou para lidar com a alienação. Na Fenomenologia do
Espírito é apresentada uma progressão da consciência sensível até o Saber
absoluto, sendo o filósofo aquele que ilustra o auto reconhecimento do Ab-
soluto. Segundo Vaz:

O Gênio de Hegel – o sentido mais profundo de seu idealismo, do qual, aliás,


não discutimos aqui a validez – concentra-se todo na aguda percepção da ins-
tância da subjetividade como instância última em que a adequação entre o
Saber e a Verdade se verifica no movimento imanente da Consciência abso-
luta 12.

A reflexão dialética em Hegel coloca em evidência o Sujeito, que capta


as manifestações do Espírito, que é anterior a elas. Entretanto, Marx,
mesmo se colocando como discípulo de Hegel, dará primazia às

9
K. MARX; F. ENGELS, A ideologia alemã, p. 535.
10
H. C. de LIMA VAZ, Ontologia e História, p. 126.
11
H. C. de LIMA VAZ, Ontologia e História, p. 129.
12
H. C. de LIMA VAZ, Ontologia e História, p. 134.
Émilien Vilas Boas Reis | 209

manifestações, deixando de lado o Espírito Absoluto 13. Além da dialética


hegeliana, Marx terá Feuerbach (1804-1872) como grande influência. Será
a partir dele que fará uma crítica ao idealismo de Hegel. “Feuerbach é o
único que tem com a dialética hegeliana um comportamento sério, crítico
e [o único] que fez verdadeiras descobertas nesse domínio [ele é] em geral
o verdadeiro triunfador (Überwinder) da velha filosofia” 14.
Marx interpretará a dialética hegeliana como sendo abstrata, tendo
que ser reinterpretada a partir da alienação, através dos processos reais de
produção, além do mais, ele toma a noção de consciência em Hegel como
sendo a consciência humana imanente, objetiva e não como algo espiri-
tual 15.
Isso faz com que não haja qualquer transcendência em Marx, res-
tando o sujeito e sua relação com o mundo material. Assim, para Vaz:

A relação fundamental que liga o homem ao mundo só pode ser, então, a re-
lação econômica de produção. A dialética da Ideia (sic) transmuda-se em
dialética do Trabalho, e este, por seu caráter absoluto, impõe à visão marxista
do mundo um necessário postulado materialista de base. A economia política
(na acepção de Marx), como ciência suprema, é aqui a inversão exata da filo-
sofia 16.

Portanto, Marx tem como método o materialismo dialético, onde a


consciência hegeliana é tomada como consciência humana concreta:

A consciência [Bewusstsein] não pode jamais ser outra coisa do que o ser cons-
ciente [bewusste Sein], e o ser dos homens é o seu processo de vida real. (...)
parte-se dos homens realmente ativos e, a partir de seu processo de vida real,
expõem-se também o desenvolvimento dos reflexos ideológicos e dos ecos
desse processo de vida. (...) Não é a consciência que determina a vida, mas a

13
H. C. de LIMA VAZ, Ontologia e História.
14
K. MARX, Manuscritos Econômicos-Filosóficos, p. 117.
15
K. MARX, Manuscritos Econômicos-Filosóficos.
16
H. C. de LIMA VAZ, Ontologia e História, p. 139.
210 | O que torna uma vida realizada: homenagem aos 100 anos de Henrique Cláudio de Lima Vaz

vida que determina a consciência. (...) parte-se dos próprios indivíduos reais,
e se considera apenas como sua consciência 17.

Vaz alerta para o fato de que o trecho acima ilustra o caráter revolu-
cionário e militante do pensamento marxista. A ressalva de Vaz é que Marx
quer transformar o mundo a partir de uma noção teórica em que o Abso-
luto está no próprio processo de transformação.

Desde este ponto de vista, o materialismo marxista nos aparece como uma
“antropogênese” — uma gênese do verdadeiro ser do homem libertado de suas
alienações —, assim como a Fenomenologia nos aparecia como uma gênese do
espírito — uma superação da “alienação da objetividade”. Ora, sendo o traba-
lho a relação dialética fundamental, a “antropogênese” se operará numa
relação ativa recíproca entre a natureza e o homem 18.

O homem é o criador de si e da natureza enquanto ser capaz de exer-


cer o trabalho. Para Marx, a unidade homem-natureza está relacionada à
sociedade. O homem produz a sociedade, assim como a sociedade produz
o homem. A existência natural humana é a existência social, fazendo com
que haja um elo entre homem, natureza e sociedade: “Portanto, a socie-
dade é a unidade essencial completada (vollendete) do homem com a
natureza, a verdadeira ressurreição da natureza, o naturalismo realizado
do homem e o humanismo da natureza levado a efeito” 19.
Não há uma natureza objetiva em Marx, ela só ocorre na sua relação
com a capacidade transformadora humana:

A indústria é a relação histórica efetiva da natureza e, portanto, da ciência na-


tural com o homem [...] A natureza que vem a ser na história humana – no
ato de surgimento da história humana – é a natureza efetiva do homem, por
isso a natureza, assim como vem a ser por intermédio da indústria, ainda que
em figura estranhada, é a natureza antropológica verdadeira 20.

17
K. MARX; F. ENGELS, A ideologia alemã, p. 94.
18
H. C. de LIMA VAZ, Ontologia e História, p. 141.
19
K. MARX, Manuscritos Econômicos-Filosóficos, p. 107.
20
K. MARX, Manuscritos Econômicos-Filosóficos, p. 112.
Émilien Vilas Boas Reis | 211

A relação homem, natureza e sociedade é aquilo que caracteriza o


materialismo histórico em Marx. Através da produção, o ser humano hu-
maniza a natureza: “Nesta perspectiva essencialmente histórica, os
lineamentos positivos da visão de Marx acabam por convergir num radical
ateísmo e num humanismo absoluto: um humanismo de reconciliação en-
quanto instauração do ser real libertado de suas alienações” 21.
A principal alienação para Marx é a propriedade privada: “A propri-
edade privada material, imediatamente sensível (sinnliche), é a expressão
material-sensível da vida humana estranhada” 22. A maneira que Marx en-
contra para a superação dessa alienação é o comunismo. Em suas palavras:
“O comunismo na condição de suprassunção (Aufheburng) positiva da
propriedade privada, enquanto estranhamento-de-si (Selbstentfremdung)
humano, e por isso enquanto apropriação efetiva da essência humana pelo
e para o homem” 23.
O comunismo é a solução para que o homem supere a alienação e se
torne efetivamente humano. Vaz percebe nessa visão que: “(...) a história
real torna-se o ponto de junção da ‘teoria’ e da ‘práxis’, e o humanismo
absoluto de Marx, essencialmente prospectivo, anima-se de um imenso di-
namismo histórico, de um irresistível otimismo” 24. Essa práxis é o
trabalho humano, capaz de transformar o mundo. Vaz compreende que o
trabalho é um ponto fundamental no pensamento de Marx: “A originali-
dade de Marx constitui, pois, em ter elevado o trabalho à eminente
dignidade de arché – em toda a extensão do significado lógico e ontológico
que tal termo pode assumir na tradição metafísica” 25. Assim, o humanismo
marxista deve ser compreendido como um humanismo do trabalho, como

21
H. C. de LIMA VAZ, Ontologia e História, p. 146.
22
K. MARX, Manuscritos Econômicos-Filosóficos, p. 106.
23
K. MARX, Manuscritos Econômicos-Filosóficos, p. 105.
24
H. C. de LIMA VAZ, Ontologia e História, p. 149.
25
H. C. de LIMA VAZ, Ontologia e História, p. 150.
212 | O que torna uma vida realizada: homenagem aos 100 anos de Henrique Cláudio de Lima Vaz

uma “(...) crítica em ato (revolucionário) do trabalho alienado e uma ins-


tauração do trabalho humanizado” 26. Cabendo ao proletariado a tarefa de
concretizar tal humanismo.
O ponto a ser destacado nessa interpretação sobre o pensamento de
Marx é que, para Vaz, no fim das contas, sendo uma “visão total da reali-
dade”, é uma filosofia 27. Marx questiona a filosofia, mas permanece nela.
E, por isso, seu pensamento está baseado em pressuposições filosóficas:

Não é a consciência que determina a vida, mas a vida que determina a consci-
ência. (...) Esse modo de considerar as coisas não é isento de pressupostos. Ele
parte de pressupostos reais e não os abandona em nenhum instante. Seus
pressupostos são homens, não em quaisquer isolamento ou fixação fantásti-
cas, mas em seu processo de desenvolvimento real, empiricamente observável,
sob determinadas condições 28.

A consciência da qual fala Marx é a do ser humano consciente. Mas


Vaz ressalta, baseado na metafísica clássica, que “(...) toda crítica que parte
da consciência finita deverá de algum modo terminar numa ontologia da
participação a uma Consciência infinita que seja universal concreto. Su-
jeito absoluto” 29. Marx coloca a consciência finita num nível imanente, isto
é, no processo histórico de produção, entretanto, opera o processo de
modo absoluto. Há uma ontologia implícita em seu pensamento. Sobre
esse processo, Marx diz: “O modo de produção da vida material condiciona
o processo de vida social, política e intelectual. Não é a consciência dos
homens que determina o seu ser; ao contrário, é o seu ser social que de-
termina sua consciência” 30.
A produção, que relaciona homem, natureza e sociedade, é o funda-
mento da consciência em Marx. Vaz quer chamar a atenção para o fato de

26
H. C. de LIMA VAZ, Ontologia e História, p. 150.
27
H. C. de LIMA VAZ, Ontologia e História.
28
K. MARX; F. ENGELS, A ideologia alemã, p. 94.
29
H. C. de LIMA VAZ, Ontologia e História, p. 152.
30
K. MARX, Contribuições à crítica da Economia Política, p. 47.
Émilien Vilas Boas Reis | 213

que Marx se coloca contra todo pensamento metafísico e especulativo, mas


não consegue fugir de tal paradigma:

Ora, ao admitir assim um ‘fundante’ absoluto, Marx pronuncia inelutavel-


mente uma afirmação de alcance ontológico. Como afirmação que se basta a
si mesma – no sentido da arché anypóthetos de Platão –, ela assume um cará-
ter ‘especulativo’, isto é, ela se constrói no plano de uma reflexividade total da
consciência 31.

Marx, ao especular de modo totalizante a respeito da realidade, está


no nível de um absoluto, portanto, faz metafísica. Há nele uma visão espe-
culativa que transcende o imanente contingente. O processo histórico
cumpre o papel de absoluto. Aqui encontra-se a principal contradição no
pensamento marxista.

Ora, que faz Marx? Eleva à categoria de absoluto o processo histórico no qual
o “ser consciente” acontece como um “fato”. Como tal, o “ser consciente” não
pode adequar-se ao movimento de transcendência que projeta a história na
dimensão do absoluto, do necessário. Assim a contradição – uma contradição
radical, incapaz de qualquer fecundidade dialética – aparece instalada no co-
ração mesmo do projeto teórico de Marx 32.

Isso não significa, entretanto, que Marx pense num nível de relati-
vismo vulgar, onde cada ser humano individual é uma espécie de
fundamento da verdade. Em Marx, a verdade está ligada às condições exis-
tenciais fáticas:

Se não há, pois, uma verdade absoluta (“dada” de uma vez para sempre), há
um devir absoluto da verdade, que é a verdade mesma deste devir: a verdade
da história como gênese da dialética do homem. É aqui precisamente que
cabe articular a objeção fundamental – aos nossos olhos, invencível – contra a
posição de Marx 33.

31
H. C. de LIMA VAZ, Ontologia e História, p. 153.
32
H. C. de LIMA VAZ, Ontologia e História, p. 154.
33
H. C. de LIMA VAZ, Ontologia e História, p. 154-155, grifos nossos.
214 | O que torna uma vida realizada: homenagem aos 100 anos de Henrique Cláudio de Lima Vaz

Marx coloca o ser humano numa posição capaz de captar o sentido


total da história. Mas o ser humano compreende esse sentido numa dada
situação contingente, onde se encontra a consciência, incrustada num
dado momento histórico. Assim, a afirmação sobre a totalidade da história
transcende a situação contingente em que se depara o indivíduo, e que é a
base do próprio entendimento de Marx sobre o ser humano. Marx propõe
um pensamento baseado na imanência e que, no fim das contas, acaba
transcendendo as suas pressuposições iniciais.
Para Vaz, “(...) Marx não vê que pensar a tensão dialética como Ab-
soluto é transcendê-la. E transcender a tensão dialética é transcender a
história” 34. Essa seria uma ambiguidade presente no marxismo que leva a
um dualismo “(...) nunca superado, por Marx mesmo e por seus melhores
intérpretes, entre o processo dialético como totalidade absoluta e o pro-
cesso histórico como contingência.” Vaz toma essa tensão como
fundamental para a incoerência do pensamento de Marx, ao ponto de afir-
mar: “Dualismo, enfim, que priva a obra de Marx da coerência racional
última e abandona seu destino à força impetuosa dos mitos” 35.
O processo dialético é tomado de maneira absoluta pela consciência,
mas ao fazer isso, ela está transcendendo seu caráter fático, que em Marx
é o mesmo que estar inserido na sociedade. Nesse sentido, há passagem
da absolutização do processo dialético para o absoluto do processo histó-
rico. “Marx diviniza o ‘sentido da história’, ou seja, a sociedade comunista,
mais concretamente o homem comunista (a ‘consciência revolucionária’),
e, enfim, o chefe comunista: o ‘mito’ toma definitivamente a dianteira so-
bre o ‘logos’” 36. Portanto, para Vaz, Marx troca a racionalidade pela crença
em um tipo de sociedade, de indivíduo e de liderança no que tange o de-
senrolar da história e, consequentemente, da política.
Como visto, Marx compreende a história como a relação homem e
natureza, através dos meios de produção. Entretanto, Vaz questiona:

34
H. C. de LIMA VAZ, Ontologia e História, p.155.
35
H. C. de LIMA VAZ, Ontologia e História, p.156.
36
H. C. de LIMA VAZ, Ontologia e História, p. 157.
Émilien Vilas Boas Reis | 215

“Como se explica que, a partir deste fato natural, a história avança para o
nascimento da alienação, a exteriorização e a perda do homem no produto
do trabalho, tornado independente e hostil?” 37. Para Marx, “A história de
todas as sociedades até hoje existentes é a história de luta de classes” 38.
Essa história caminha para a existência da propriedade privada, que, com
o passar do tempo, torna o ser humano alienado da produção do seu tra-
balho. É nesse contexto que o comunismo é tomado por Marx como o
momento de superação da alienação, através da “supressão da proprie-
dade privada” 39. A essa revolução final há uma etapa anterior em que o
proletariado se torna a classe dominante: “Isso só poderá ser realizado, a
princípio, por intervenções despóticas no direito de propriedade e nas re-
lações de produção burguesas (...)” 40. E se o comunismo é o “enigma
resolvido da história” 41, como já supracitado, Vaz interpreta que “Agindo,
em suma, na direção do movimento final da história, a consciência revo-
lucionária reveste necessariamente a ‘forma’ do ‘fim da história’ e se
define, portanto, como a plenitude escatológica de um Absoluto imanente
na história” 42.
Assim, o revolucionário, tendo o discernimento sobre o desenvolvi-
mento da história, visa o comunismo como o fim último dessa mesma
história. Sobre esse ponto volta-se a principal crítica vaziana:

A objeção essencial que atrás formulamos contra o marxismo concentra-se


num alvo concreto: a consciência revolucionária. Também ela vê-se atraves-
sada por um dualismo contraditório, e um inevitável destino acaba por
arrastá-la, por sua vez, pelos caminhos da fabulação mítica 43.

37
H. C. de LIMA VAZ, Ontologia e História, p. 157.
38
K. MARX; F. ENGELS, Manifesto Comunista, p. 40.
39
K. MARX; F. ENGELS, Manifesto Comunista, p. 52.
40
K. MARX; F. ENGELS, Manifesto Comunista, p. 58.
41
K. MARX, Manuscritos Econômicos-Filosóficos, p. 105.
42
H. C. de LIMA VAZ, Ontologia e História, p. 160.
43
H. C. de LIMA VAZ, Ontologia e História, p. 160.
216 | O que torna uma vida realizada: homenagem aos 100 anos de Henrique Cláudio de Lima Vaz

Apesar da crítica à filosofia, não se pode esperar que os “operários”


possam compreender todo o processo da história, que culmina no comu-
nismo. Marx e Engels, dois intelectuais burgueses, interpretaram o
processo revolucionário: “A dialética imanente ao processo histórico, que
deverá conduzir à instauração socialista do homem, reflui inevitavelmente
para a ação consciente dos intelectuais revolucionários: toda a luta de Le-
nin é a prova disto” 44.
Mais uma vez, Vaz enfatiza a contradição que tornaria o marxismo
inconsistente intelectualmente: uma consciência imanente, empírica, que
é capaz de compreender todo o processo histórico, o que ocorre apenas
através de uma noção que transcenda a própria história, e, por isso, abso-
luta. Nas palavras de Vaz:

(...) um Absoluto deverá tecer-se dentro da história com os fios mesmos do


relativo e do contingente, uma consciência deverá ser, ao mesmo tempo, o
resultado – e, portanto, uma determinação empírica – do processo histórico e
a sua compreensão – e, portanto, uma instância transcendente ao processo
mesmo 45.

Ocorre que tal contradição teve como tentativa superar não a razão,
mas noções que foram além da reflexão, fazendo com que o marxismo, no
fim das contas, se voltasse para o mito, com suas crenças e asseclas:

Só um “mito” poderá encarnar tais predicados contraditórios. Como admirar-


se, na trilha do vertiginoso curso histórico da obra de Marx, desfile alucinante
séquito de “mitos”: da classe, do partido, da consciência revolucionária, do
chefe? Tendo largado as velas ao sopro de uma rigorosa intenção de raciona-
lidade, o marxismo vem arribar em pleno continente da mitologia social e
política 46.

Em textos da década de 70 e 80 do século XX, Vaz faz ainda outras


considerações ao pensamento marxista, que valem ser analisadas. Na obra

44
H. C. de LIMA VAZ, Ontologia e História, p. 161.
45
H. C. de LIMA VAZ, Ontologia e História, p. 161.
46
H. C. de LIMA VAZ, Ontologia e História, p. 161.
Émilien Vilas Boas Reis | 217

Escritos de Filosofia II: Ética e Cultura, no capítulo Ética e Direito, publi-


cado originalmente em 1977, após fazer considerações a respeito do
pensamento hegeliano, compreendido como uma tentativa de relacionar
ontologicamente ética e política, mesmo frisando as polêmicas em torno
das soluções da obra política de Hegel, Vaz nos remete à crítica de Marx
sobre a concepção de Estado na obra Filosofia do Direito de Hegel. O ponto
que interessa é a crítica que Vaz faz a Marx, pelo fato dele:

(...) ao recusar a idéia (sic) de uma totalidade ética que enfeixe a dialética entre
ethos e nómos ou entre Ética e Direito na sociedade historicamente existente,
denunciando-a como sublimação idealista e como máscara ideológica de con-
tradições não-resolvidas da sociedade civil, Marx, ao mesmo tempo em que
projeta essa síntese no futuro utópico de uma sociedade sem Estado, leva a
cabo uma dissociação radical do político e do ético na sociedade presente 47.

Nessa concepção, o político em Marx é visto unicamente como técnica


para a revolução, que foi colocado em prática pelo socialismo real, levando
“(...) a formação de um gigantesco aparelho do Estado que não conhece
outra ética senão a sua técnica de poder, e diante do qual o discurso sobre
os direitos humanos só encontra refúgio na contestação solitária e obsti-
nada de alguns intelectuais” 48.
A crítica de Vaz passa por sua constatação de que a política sem ética
se torna apenas técnica de poder, e, por isso, capaz das maiores atrocida-
des. E isso ocorreu com a tentativa de colocar em prática o discurso
marxista.
No capítulo Ética e Ciência, original de 1974, do livro supracitado, Vaz
coloca a obra de Marx ainda dentro de uma tradição logocêntrica, por co-
locar a razão, no caso, científica, como o centro, entretanto, enfatiza: “Não
é necessário dizer que se trata aqui de uma ciência inteiramente submetida
ao pressuposto ideológico que sustenta o projeto revolucionário de criação

47
H. C. de LIMA VAZ, Ética e Cultura, p. 172.
48
H. C. de LIMA VAZ, Ética e Cultura, p. 172.
218 | O que torna uma vida realizada: homenagem aos 100 anos de Henrique Cláudio de Lima Vaz

de uma nova sociedade” 49. O que ilustra, na verdade, uma pretensa cien-
tificidade racional no pensamento de Marx, que acaba em uma visão mítica
de mundo.
No texto Política e História, originalmente de 1987, republicado na
mesma obra, Vaz, ao constatar como a história deixou de ser um magisté-
rio, no sentido de ter uma função pedagógica, por isso, ligada à tradição
ética, ela passou a estar associada a visões ideológicas. O passado é relido
à luz de categorias ideológicas do presente. Nesse sentido, Marx é um dos
precursores de tal posição, na medida em que passa a compreender a his-
tória através da “(...) praxis revolucionária do presente. Essa praxis define-
se necessariamente como negação do passado e como tensão extrema para
suprimir a contingência e incerteza do futuro: para inaugurar um começo
que se perpetua como novidade sempre renovada (...)” 50. A história está
submetida a uma técnica, que, por sua vez, é ideologia. E, Vaz, de maneira
perspicaz, percebe como tal posição impregnou tanto o marxismo prático
quanto os estudos envolvendo historiografia: “Basta pensar no uso da his-
tória nos regimes marxistas e na ideologização da pesquisa e do texto
histórico que se difunde nas universidades do Ocidente” 51. A história é
vista como um ato político, no sentido de técnica do poder, como mencio-
nado anteriormente, e que Vaz associa aos revolucionários políticos do
século XVIII. Mais uma vez, Vaz remete ao mito para caracterizar tal per-
cepção:

Não é preciso ser “progressista” ou “conservador”, é suficiente um pouco de


bom senso para se verificar que o mito do começo absoluto, sendo o mais po-
derosamente sedutor para o homem confrontado com a eterna tentação de ser
o criador único do mundo, é também o mais radicalmente oposto à racionali-
dade e à sensatez da ação política 52.

49
H. C. de LIMA VAZ, Ética e Cultura, p. 200.
50
H. C. de LIMA VAZ, Ética e Cultura, p. 252.
51
H. C. de LIMA VAZ, Ética e Cultura, p. 252.
52
H. C. de LIMA VAZ, Ética e Cultura, p. 252.
Émilien Vilas Boas Reis | 219

Ao se preocupar com um futuro ideológico, que tenta romper com a


tradição, a política revolucionária caminha para uma visão mítica da his-
tória e do mundo. Entretanto, deve-se frisar que Vaz não propõe no lugar
um tradicionalismo, que ele denomina de absolutização ideológica do pas-
sado, que seria uma projeção imaginária do passado.

Conclusão

As críticas de Vaz analisadas até aqui foram baseadas principalmente


no texto Marxismo e ontologia, publicado no final da década de 50 do sé-
culo passado, quando as práticas comunistas dominavam grande parte do
globo terrestre. No calor do momento histórico, em que o marxismo era a
base teórica para boa parcela de um pensamento da esquerda, Vaz, como
intelectual, buscou mostrar as incongruências internas do pensamento de
Marx e do marxismo subsequente.
Uma primeira crítica constatada é o fato de que, apesar de possuir
uma visão contrária à filosofia, enquanto teoria, na verdade, Marx acaba
fazendo filosofia, por possuir pressupostos que tentam abarcar toda a re-
alidade. A consciência humana imanente tem uma visão do processo
histórico através de uma perspectiva absoluta. Marx está preso a uma no-
ção metafísica de mundo, a qual tanto questionou. Há um transcendente
que está além do contingente imanente, o que torna o pensamento mar-
xista contraditório em sua posição.
Ao colocar o resultado do processo dialético histórico no comunismo,
enfatizando o papel do revolucionário e dos líderes, Marx deixa de lado o
nível da racionalidade na política, caindo em perspectivas que se aproxi-
mam do mito. Noções como classe, partido, consciência revolucionária e
chefe ilustrariam como o marxismo desagua numa mitologia política, com
efeitos nefastos.
A perspectiva também de que seriam os proletariados àqueles que
compreenderiam todo o processo histórico, também não tem fundamento,
220 | O que torna uma vida realizada: homenagem aos 100 anos de Henrique Cláudio de Lima Vaz

na medida em que são os intelectuais da revolução que acabam condu-


zindo toda aquela massa.
Outra crítica direcionada à Marx é a sua perspectiva de que a ética,
enquanto tradição, seria apenas ideologia, o que resultaria na separação
entre ética e política. Essa visão torna a política uma técnica de poder para
a revolução, que teve na prática um Estado dominador em todas as ins-
tâncias, resultando em grande terror em países comunistas.
O juízo de Vaz passa por sua constatação de que a política sem ética
se torna apenas técnica de poder, e, por isso, capaz das maiores atrocida-
des. E isso ocorreu com a tentativa de colocar em prática o discurso
marxista.
A noção marxista de que a história é ideologia, faz com que também
seja interpretada como técnica de poder, que tem como fim os atos revo-
lucionários e, portanto, uma visão mítica de futuro.

Referências

MARX, Karl. Contribuição à crítica da Economia Política. 2ª ed. Tradução e introdução de


Florestan Fernandes. São Paulo: Editora Expressão Popular, 2008a.

______. Manuscritos Econômico-Filosóficos, 2ª reimpressão. Tradução, apresentação e no-


tas de Jesus Ranieri. São Paulo: Boitempo Editorial, 2008b.

MARX, Karl. ENGELS, Friedrich. Manisfeto Comunista. 4ª reimpressão. Tradução de Ál-


varo Pina. São Paulo: Boitempo Editorial, 2005.

MARX, Karl. ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã: crítica da mais recente filosofia alemã
em seus representantes Feuerbach, B. Bauer e Stirner, e do socialismo alemão em
seus diferentes profetas (1845-1846). Tradução de Rubens Enderle, Nélio Schneider
e Luciano Cavini Martorano. São Paulo: Boitempo Editorial, 2007.

VAZ, Henrique Claudio de Lima, S.J. Escritos de Filosofia II: Ética e Cultura. 3ª ed. São
Paulo: Edições Loyola, 2000.

______. Escritos de Filosofia VI: Ontologia e História. São Paulo: Edições Loyola, 2001.
Émilien Vilas Boas Reis | 221
Capítulo 13

Realização humana e afirmação do absoluto:


Lima Vaz diante do drama da modernidade

Álvaro Mendonça Pimentel

A categoria antropológica da Realização compõe com a categoria de


Pessoa o termo do discurso da Antropologia Filosófica, ambas definindo a
unidade fundamental do ser humano. O objetivo de nosso artigo é estudar
em Lima Vaz o que chamaremos de “afirmação do Absoluto” como condi-
ção indispensável para pensar a realização humana, dos pontos de vista
“conceitual” e “existencial”. A tarefa conceitual é relativamente simples e
se executa a partir do texto da Antropologia Filosófica, pois o dinamismo
ou movimento processual de realização integra dialeticamente a categoria
relacional de Transcendência. Em relação ao ponto de vista existencial, os
desafios contemporâneos que a negação teórica e, sobretudo, prática do
Absoluto representam para a realização humana encontram-se, embora
presentes, pouco desenvolvidos nesse momento da Antropologia Filosó-
fica. Ao contrário, o refrão constante que encerra vários capítulos de
Raízes da Modernidade desdobra diante de nós a seriedade do problema.
Sente-se nesse contexto da obra de Lima Vaz a urgência de reencontrar a
presença de Deus no corpo articulado de significados em que o homem se
expressa, e que chamamos de cultura. Essa presença, porém, não corres-
ponde apenas ao ressurgimento do fenômeno religioso, mas a uma
presença que se articule de forma refletida e comunique sentido à realiza-
ção humana, opondo-se, pois, ao irracionalismo e à violência que ocupam
com crescente frequência a cena do mundo.
Álvaro Mendonça Pimentel | 223

Recordemos, à guisa de introdução, que a expressividade constitui o


conceito chave da Antropologia Filosófica, cujo discurso une dialetica-
mente as diversas categorias ou determinações transcendentais em que o
homem diz o que ele é. Ora, por um lado, desde as épocas mais remotas e
seguindo uma multidão de testemunhos históricos e pré-históricos, em to-
dos os rincões do planeta, encontramos um dinamismo expressivo
convergente, cujos vetores delineiam, de forma analógica (não idêntica), o
ser humano aberto à transcendência. Por outro lado, a existência humana
joga-se na tensão constante entre trevas e luz, morte e vida, tensão atra-
vessada por um dinamismo que faz de cada pessoa e comunidade um
agente responsável por caminhar na luz rumo à vida.
Para compreender a relação entre essas duas grandezas expressivas
da história e do fenômeno humano, apresentaremos a seguir a articulação
conceitual unindo transcendência e realização na antropologia limavazi-
ana. Localizaremos no texto os pontos salientes em que a Antropologia
aponta para a Metafísica e a solicita. Finalmente, veremos como a Metafí-
sica do ato de existir, desenvolvida por Lima Vaz em sua obra Raízes da
Modernidade, recorda e recomenda a afirmação do Absoluto para o correto
tratamento do enigma humano traduzido na expressão “torna-te o que
és”. Parece-nos que o que Eric Voegelin denominava “ ‘revolta egofânica’,
para designar a atitude que faz da epifania do ego a experiência funda-
mental, eclipsando a epifania de Deus na estrutura da consciência clássica
e cristã” 1, constitui para Lima Vaz um sintoma grave que exige urgente
tratamento metafísico. Sua conclusão humanista, histórica e filosófica
jorra como potente denúncia do esgotamento de tal pretensão de onipo-
tência e o conduz a dirigir-nos um apelo profético de retorno ao Absoluto.
Esse retorno não pode ser coercitivo, nem deduzido de uma necessidade
estritamente lógica ou histórica, mas constitui uma recomendação a nossa
inteligência e liberdade que o filósofo ouro-pretano confiou à sua época
como testemunho e testamento.

1
E. VOEGELIN. Reflexões autobiográficas. São Paulo: É Realizações, 2007. p. 107.
224 | O que torna uma vida realizada: homenagem aos 100 anos de Henrique Cláudio de Lima Vaz

1. A afirmação do Absoluto na estrutura conceitual da Antropologia


Filosófica

Realizar-se significa para o homem acolher-se como corpo, psi-


quismo e espírito, nas relações com o mundo, o outro e Deus. As primeiras
três categorias expressam a unidade estrutural do ser humano. No en-
tanto, não se deve compreendê-las como uniformidade ou como fórmula
de um produto a ser fabricado em série. A unidade é original, ela diferencia
cada ser humano, constituindo-se, portanto, como dom originário de uma
identidade que se expressará somática, psíquica e espiritualmente, na di-
ferença com o mundo, o outro e Deus. Dizer que a identidade pessoal é da
ordem do “dom” opõe-se a toda visão determinista ou meramente mecâ-
nica da formação de nossa identidade pessoal. Este ponto será ampliado e
esclarecido na segunda parte de nosso artigo. Basta-nos agora recordar
que somos obviamente condicionados, situados, mas em nós se expressa
uma liberdade singular 2.
Além disso tal expressividade é mesmo uma unidade: em cada ato
humano está presente a totalidade corpo-psiquismo-espírito desse ser sin-
gular, o que se traduz na categoria de “Pessoa” da Antropologia Filosófica.
Essa totalidade, finalmente, encontra-se implícita no significado da cate-
goria de Espírito, cujo núcleo semântico é urdido por consciência, razão e
liberdade. Portanto, nossos atos espirituais, como perceber o mundo à
nossa volta, pensar e compreender, deliberar e agir criativamente, são atos
também emocionais e encarnados de um ser singular, que se relaciona
com o mundo, o outro e Deus.
Ora, o desafio da realização consiste em que cada ser humano assuma
sua condição finita – ser único na série dos seres – na tensão de suas rela-
ções. Sua essência singular somente se realiza na existência relacional. O
sentido dessa realização encontra-se em tornar-se ator, agente, protago-
nista da criação de um mundo humano, tecido por relações justas. Mas
esse sentido é também vivido como um apelo, pois a história testemunha

2
Cf. C. BRUAIRE. O Ser e o Espírito. São Paulo: Loyola, 2010. Cap. 3.
Álvaro Mendonça Pimentel | 225

uma inadequação entre a tarefa e o resultado. Traduzir a própria essência


numa existência de sentido é a tarefa inescapável e interminável de cada
homem e mulher. Assim, no horizonte espontâneo da realização, como
união entre essência e existência, delineia-se esse “fundo obscuro do exis-
tir” 3, ou seja: o Absoluto como ideal do ser realizado, sempre visado na
existência, embora raramente refletido.
Lima Vaz localiza o ponto de partida (ou “pré-compreensão”) para
uma reflexão filosófica sobre a realização humana, nas figuras inspirado-
ras da filosofia de Platão e Aristóteles 4. Inicialmente, o Absoluto aparece
com o tema da participação do homem na ideia do Bem, medida unívoca
do agir, na qual são ordenadas as dimensões racional, irascível e concupis-
cível da alma. Tal é o ideal platônico, para o qual o homem bem formado,
maduro e realizado torna-se, de fato, a medida para a sociedade, pois Deus
tornou-se a medida de sua alma 5. Ele saberá, portanto, harmonizar a rea-
lidade segundo a inteligibilidade da Verdade e a amabilidade do Bem. Sua
visão crítica da vida na cidade possui um ponto de referência vertical. O
grande desafio será aplicá-lo à realidade onde se deve construir a cidade
aproximando-a do ideal.
A força do pensamento aristotélico está, justamente, em fazer ater-
rissar o Bem no terreno das coisas humanas. Sua racionalidade analógica
permite pensar o bem viver (eu zen) e o viver feliz (eudaimonia) como
possibilidade para todos, numa cidade real. Graças à sabedoria prática
(phrónesis) saturam-se de razão as decisões que tecem a vida em comum
da sociedade. O caminho aristotélico permite, aliás, esboçar uma articula-
ção das categorias de estrutura às categorias de relação, na Antropologia
Filosófica. A realização humana encontra-se no âmbito da práxis e, por-
tanto, no âmbito político. O movimento de autorrealização ocorre no

3
H.C. LIMA VAZ. Raízes da modernidade (Escritos de Filosofia VII). São Paulo: Loyola, 2002, p. 103. Citado doravante
como RM.
4
Cf. H.C. LIMA VAZ. Antropologia Filosófica II. São Paulo: Loyola, 1995. 2ª ed, p. 146-150. Citado doravante como AF
II.
5
E. VOGELIN. Modernity without restraint. In: The collected Works of Eric Voegelin, vol. 5. Columbia and London:
University of Missouri Press, 2000, p. 143.
226 | O que torna uma vida realizada: homenagem aos 100 anos de Henrique Cláudio de Lima Vaz

horizonte do ser-com-os-outros. Mas a práxis possui uma posição inter-


média entre a poiesis e a teoria. Ela submete a necessidade da fabricação
às exigências éticas e se submete à necessidade do inteligível, pela media-
ção da phrónesis, conhecimento prático que, enquanto conhecimento,
“deve submeter-se ao dinamismo intrínseco que conduz o logos à teoria,
contemplação da transcendência da Verdade-Bem” 6. Assim, a questão da
afirmação do Absoluto, como condição da existência humana em seu pro-
cesso dinâmico de realização, já se encontra claramente definida no ponto
de partida tradicional da discussão. Nossa ipseidade ou identidade pessoal
refletida, unificação da essência na existência, segundo formas de vida so-
cialmente aceitas, é uma “ipseidade relacional”. No campo da moral e da
política, o homem realiza-se dinamicamente com o outro, administra o
mundo para alcançar formas de vida justas, mas só é capaz de fazê-lo
abrindo-se a uma dimensão mais elevada, critério último e fonte da ver-
dade e do bem.
Acompanhemos, agora, o emergir da questão do Absoluto no dis-
curso dialético em que se formula filosoficamente a categoria de realização
e o trabalho conceitual que abre a Antropologia Filosófica em direção à
Metafísica. Notemos, inicialmente, as duas imagens utilizadas por Lima
Vaz para conduzir a razão à intuição do sentido da categoria em questão.
Realizar-se consiste em

um abrir-se do sujeito a toda a amplitude intencional do seu ser-para-outro e,


na mesma medida em que tem lugar essa abertura, um aprofundamento e
uma centração maior do seu ser-para-si, ou ainda a conquista, no domínio da
vida vivida, daquela unidade que já está presente no núcleo fontal ou essencial
da vida como indivisão em si e distinção de todo outro ser 7.

A primeira imagem descreve o concomitante movimento de abertura


e aprofundamento ou centração. A segunda insiste na “conquista” e nos
faz pensar no esforço que, no domínio da “vida vivida”, conduz à unidade

6
AF II, 160
7
AF II, 163
Álvaro Mendonça Pimentel | 227

singular do agente. As imagens sugerem que a afirmação do Absoluto não


será um momento isolado no caminho da realização humana, mas inte-
grará o movimento e o esforço de tudo que em nós é essencial, no processo
temporal e histórico de nossa realização no fluxo da existência. Assim, o
sentido primordial da realização conjuga expansão e intensidade crescen-
tes, que partem de uma consciência ainda imatura e pouco diferenciada,
para chegar a uma afirmação ou reconhecimento do Absoluto na harmo-
nia da vida. Contra a crítica existencialista ao essencialismo estático, Lima
Vaz opõe o “movimento incessante de passagem entre o ser que é simples-
mente e o ser que se significa, (...) movimento de automanifestação que
procede do próprio ser e o constitui como sua existência em ato” 8. A rela-
ção entre Essência (o ser que é simplesmente) e Existência (o ser que se
significa em seus atos) levanta-se aqui, novamente, como uma das ques-
tões metafísicas maiores que apoiam o discurso da Antropologia e que
deverá ser examinada adiante.
Essa questão apresenta-se, analogamente, no campo das dificuldades
conceituais ou aporias históricas: a dificuldade de se conciliar a necessi-
dade ou objetividade do logos com a subjetividade da liberdade, na filosofia
antiga; o esforço humano e a graça, no pensamento cristão; a gestação de
uma subjetividade constituidora do mundo e mesmo revolucionária, re-
gida por um princípio de imanência que pretendia alcançar um ideal de
homem universal, mas que termina na fragmentação dos ideais de reali-
zação humana, nos universos culturais do mundo contemporâneo 9. Em
toda essa longa história do Ocidente, no que diz respeito à nossa questão,
há como que um enigma cuja tensão parece sempre e novamente apontar
para o Absoluto como critério interpretativo maior. Nele se integrariam
liberdade e racionalidade, esforço e graça. Sua vigência seria o limite para
a pretensão moderna de construir o Reino de Deus na terra.

8
AF II, 164.
9
AF II, 165-170.
228 | O que torna uma vida realizada: homenagem aos 100 anos de Henrique Cláudio de Lima Vaz

Mas é na formulação dialética da categoria, em seus momentos eidé-


tico e tético, que se define com maior clareza o problema que nos ocupa 10.
Recordemos que nosso contexto histórico é descrito por Lima Vaz como o
de uma fragmentação crescente dos modelos de realização, conduzindo ao
enfraquecimento da exemplaridade efetiva das “formas de vida” que pre-
valeceram na tradição ocidental. Ora, o eidos (ou essência) da categoria de
realização afirma a tensão entre o modelo ideal de realização e a essência
humana, atualizando-se numa existência situada. A mola dessa tensão é o
dinamismo de superação ou o “ser-mais” que constitui a existência. Note-
se, no entanto, que num contexto de fragmentação, o polo do modelo ideal
tende a esvaziar-se e o dinamismo do “ser-mais”, que nos permitimos
agora chamar de desejo, tenderia a perder-se em mil aventuras e errân-
cias. Dizemos “tenderia” pois na realidade a memória de muitos modelos
ideais continua viva e efetiva, enfrentando o turbilhão, embora de fato,
frequentemente, capitule e se fragmente em muitas vidas.
Assim, o momento tético do discurso, ou seja, o Eu que assume seu
ser “nos caminhos da realização humana” e opera “incessantemente a pas-
sagem do ser ao ser-mais”, no horizonte de um modelo ideal, continua
válido, ainda que confrontado aos desafios já citados. Trata-se de uma di-
alética de unificação da essência na ordem da existência, da expressividade
na expressão, em direção ao Absoluto do ser. Por dialética entende-se,
neste contexto, o constante movimento ou processo em que o sujeito cons-
titui a mediação entre o dado da essência e sua realização na existência.
Tal mediação desenvolve uma história individual, numa temporalidade
contínua e constitutiva da ipseidade pessoal, a qual se define no confronto
com as diferenças relacionais (o mundo, o outro e Deus).

10
No método dialético de Lima Vaz, chama-se “limitação eidética” a definição da essência (eidos) do homem que se
expressa numa das categorias ou determinações fundamentais e universais de seu ser. Por exemplo: Eu sou meu
corpo. Mas ao afirmar-se assim, o sujeito se limita e logo compreende que deve completar a definição de sua essência
com outras categorias. Esse movimento visando o todo, próprio ao Eu que se afirma (= Eu sou) é chamado por Lima
Vaz de “Ilimitação tética”. Eu sou e não sou corpo, porque também sou psiquismo, espírito, relação com o mundo,
com o outro e com Deus. Assim, cada categoria é estudada e definida separadamente (= limitação eidética) para ser
costurada dialeticamente às demais (= ilimitação tética), visando um discurso integral sobre o ser humano (= prin-
cípio de totalização). Ora, as categorias finais de realização e pessoa possuem a originalidade de expressar o processo
de unificação do ser humano complexo, nos caminhos da existência. Cf. AF I, 157-168.
Álvaro Mendonça Pimentel | 229

Mas como a relação de transcendência encontra-se implicada nesse


processo, como o fim visado em cada realização efetiva desloca-se no ho-
rizonte rumo à perfeição, podemos conceber, como dizia Pascal, que o
homem ultrapassa infinitamente o homem, que a identidade pessoal re-
fletida (ipseidade) configura um processo aberto 11. Eis como o define Lima
Vaz:

a realização humana (...) só pode ser pensada em conceitos analógicos na me-


dida em que a perfeição (energeia) realizável pelo homem enquanto ser
espiritual e ser-para-a-transcendência mostra-se como o analogado inferior
da perfeição infinita do Absoluto, seja este considerado como Absoluto formal
da Verdade e do Bem, atributos transcendentais do Ser, seja considerado como
o Absoluto real ou o Existente subsistente (Ipsum Esse subsistens) 12.

Se nos campos da técnica e da política a realização humana visa al-


cançar sua meta na imanência da história, no campo da transcendência,
que inclui a experiência mística e religiosa, a realização encontra sua me-
dida no próprio transcendente. Mas este é o fim inalcançável em nossa
existência finita e situada. Há, pois, uma impossibilidade existencial, ou
seja, uma impossibilidade da ação humana, que, no entanto, não anula a
busca e o desejo do infinito. Como pensar tal paradoxo?
Lima Vaz propõe uma “inversão análoga à que se manifestara nas
categorias do espírito e da relação de transcendência” 13, inversão que mo-
difica a compreensão dos princípios da limitação eidética e da ilimitação
tética aplicados ao dinamismo do Eu sou. Assim o sentido limitado que
deveria definir a categoria de realização, deve ser corrigido a partir de uma
ilimitação analógica, pois seu conteúdo semântico integra a categoria de
transcendência e acolhe, pois, a relação com “o absoluto da Verdade, do
Bem e da Existência”: eis o horizonte infinito de nossa realização. A ilimi-
tação tética, por sua vez, se manifesta nas relações de objetividade e

11
Cf. B. PASCAL. Pensées. In: Pascal: Oeuvres Complètes. Paris: Seuil, 1963. (Préface d`Henri Gouhier & Presentation
et notes de Louis Lafuma). Aqui: n.131-434, p. 515.
12
AF II, 173.
13
AF II, 174.
230 | O que torna uma vida realizada: homenagem aos 100 anos de Henrique Cláudio de Lima Vaz

intersubjetividade em um excesso do Eu sou aberto à “infinitude intencio-


nal do ser-mais como horizonte do seu operar poiético e prático” 14, lugares
indubitáveis da iniciativa e da realização humana. No entanto, quando
consideramos a existência em sua dimensão de transcendência, o dina-
mismo ilimitado do Eu sou vê-se invertido, ou seja, uma outra iniciativa
insinua-se no centro do Eu, pois:

(...) a ponta extrema do movimento da realização humana na ordem da theoría


não procede da “posição” (thésis) do Eu sou ou do seu dinamismo imanente,
mas é posta pelo Absoluto ao qual o sujeito constitutivamente se refere (rela-
ção de transcendência) naqueles que são os atos supremos do existir próprio
do homem ou da vida segundo o espírito: conhecer a Verdade, consentir ao
Bem, reconhecer no Absoluto de existência a fonte primeira da Verdade e do
Bem 15.

A categoria de realização nos reenvia, assim, a essa síntese viva e di-


nâmica que se expressa na categoria de Pessoa. Cada pessoa é um “ato
total” 16, união entre essência (estrutura e relações) e existência (realiza-
ção), que se compreende, por um lado, como limitada e situada, objeto de
uma racionalidade unívoca traduzida nas categorias de corpo próprio, psi-
quismo, relação de objetividade e de intersubjetividade. Mas, por outro
lado, afirma-se como abertura, graças à racionalidade analógica própria
ao eidos das categorias de espírito e transcendência. Há uma tensão entre
as duas racionalidades, fazendo que a vida imanente, mesmo em suas re-
alizações mais perfeitas, se depare com uma brecha para a transcendência.
A existência, lugar da ação e da realização, abre-se a uma meta final, en-
contro e união “pela contemplação e pelo amor, com a infinitude real do
Existente absoluto (Ipsum Esse Subsistens)” 17.
Portanto, a análise da categoria de realização, tendo como ponto focal
a questão do Absoluto, nos fornece duas questões metafísicas maiores: a

14
AF II, 174.
15
Ibid., 174.
16
H.C. LIMA VAZ. Antropologia Filosófica I. São Paulo: Loyola, 2001. 6ª ed, p. 168. Citado doravante como AF I.
17
AF II, 226.
Álvaro Mendonça Pimentel | 231

primeira é a da relação entre essência e existência, pensada analogica-


mente por Lima Vaz e tendo como polos o homem que se eleva ao Absoluto.
No entanto, este dinamismo supõe outro movimento, que podemos cha-
mar descendente, uma vez que se afirma que a ponta extrema da
realização humana “é posta pelo Absoluto, ao qual o sujeito constitutiva-
mente se refere” 18. A expressão destacada em itálico pelo autor traduz, de
forma contida e discreta, o problema metafísico da criação. O Eu que se
afirma não é, portanto, a última camada de inteligibilidade. Esta encontra-
se na afirmação do “dom” que o chama à existência, criando-o. Eis as duas
principais saliências que unem a ontologia da Antropologia Filosófica à
metafísica de Raízes da Modernidade.
No entanto, deve-se recordar que a abertura analógica a uma meta-
física do Absoluto não é a única opção teórica enunciada na Filosofia. Lima
Vaz recorda-nos que a modernidade legou-nos uma “metafísica da subje-
tividade, obedecendo ao paradigma de uma racionalidade unívoca regida
pela norma do Eu penso” 19. Essa herança teórico-prática cria o paradoxo
de uma “subjetividade infinita na finitude da situação”, ou seja, uma sub-
jetividade que pretende absorver em si mesma o polo infinito do Absoluto
e desdobrar-se espetacularmente na imanência da história. Este confronto
entre a metafísica do Absoluto e a metafísica da subjetividade constitui o
centro polêmico dos problemas tratados em Raízes da Modernidade. E
constituem o campo de tensão dramática, que acima chamamos de ponto
de vista existencial, do qual passamos a tratar.

2. A afirmação do Absoluto no drama metafísico de Raízes da


Modernidade

Lima Vaz introduz o discurso sistemático da Antropologia Filosófica


citando o filósofo francês Claude Bruaire. Este resumiria a palavra final da
Antropologia filosófica, a ideia de um “humanismo personalista” numa

18
AF II, 226.
19
AF II, 226.
232 | O que torna uma vida realizada: homenagem aos 100 anos de Henrique Cláudio de Lima Vaz

proposição: “o ser que eu sou não é um conjunto de fenômenos empíricos,


mas um ser dado a si mesmo, irredutível aos fenômenos da natureza, uma
substância espiritual como espírito livre” 20. Ora, a mesma citação é evo-
cada ao final da categoria de realização – “um ser dado a si mesmo”. O
sentido último dessa afirmação de Bruaire consiste em dizer que o ser do
homem é “dom” 21. E tal meditação sobre o dom, como já recordamos, nos
liberta da tentação de diferenciar radicalmente os indivíduos por algum
acidente devido à matéria, incluindo aqui a matéria orgânica da biologia,
tampouco a história individual ou o contexto social. Esses fatores condici-
onantes e constituintes da identidade pessoal, embora reais, não fundam
a originalidade de cada pessoa. E toda visão que buscasse explicá-la anali-
ticamente a partir desses ou de outros pontos de vista terminaria por
fragmentar o sujeito e negar-lhe sua “substância espiritual”, ou seja, sua
originalidade singular e inderivável. O ser humano é livre, justamente por-
que não é o resultado de nenhuma necessidade mecânica ou genética, mas
sim um “dom”. Quando nos perguntamos pela inteligibilidade metafísica
dos seres finitos, formulamos, pois, no contexto da obra limavaziana, o
problema da “fonte primeira” 22 que nos traz à existência e, ao mesmo
tempo, do dinamismo que nela nos move com sentido, enfim, a fonte do
dom que cada pessoa é, na história de “seu desenvolvimento existencial,
ou seja, de sua autorrealização” 23.
Raízes da Modernidade formula e trata essa questão apoiando-se na
metafísica tomásica do ser Absoluto compreendido como a “existência por
si mesma subsistente” (Ipsum Esse Subsistens). O ato de existir do dom
que eu sou recebe-se do ato de existir por si mesmo subsistente de Deus,
fonte e doador do ser. Não nos é possível aqui desenvolver os passos se-
guidos por Lima Vaz em Raízes da Modernidade que recobrem o itinerário

20
AF I, p. 168. Cf. C. BRUAIRE. “L’Être et l’Esprit”. In: Encyclopédie Philosophique Universelle, I, p. 36.
21
C. BRUAIRE. O Ser e o Espírito. São Paulo: Loyola, 2010, cap. 3: “O Ser e a Existência”.
22
AF II, 174
23
AF I, 168
Álvaro Mendonça Pimentel | 233

conceptual do ato de existir, nas esferas do Existente Absoluto e dos exis-


tentes relativos. Desejamos apenas destacar os momentos em que a
metafísica confere inteligibilidade ao ser finito e situado, no caminho da
autorrealização. Além disso, desejamos levantar as preocupações que
nosso autor formula diante da doutrina de imanência que marca a moder-
nidade e o mundo contemporâneo e desenha o drama existencial e
metafísico de nosso tempo.
A articulação conceitual da relação de transcendência, na Antropolo-
gia Filosófica, já nos oferece a semente dos dois pontos que passaremos a
abordar. Em relação à definição da essência desta relação, o ser humano
revela, por um lado, sua finitude em face do Absoluto. Este o constitui do-
ando-o a si mesmo. Eis a dimensão de criaturalidade da relação. Por outro
lado, a relação também significa abertura: o ato total que é a pessoa eleva-
se ao Absoluto. A relação de transcendência significa, portanto, o duplo
movimento de criação e retorno, no qual encontram-se implicados o corpo
próprio e o mundo, o psiquismo e a vida em sociedade. É o ato por exce-
lência da vida espiritual, em que a pessoa se realiza como dom e se
reconhece como criatura.
No entanto, se é essa a essência da relação, ela desvela uma presença
no fundo do Eu transcendental, desse Eu que diz: sou corpo, sou psi-
quismo, sou espírito, sou relação etc. A relação não é fruto da posição do
sujeito expressivo, pois esse se afirma agora como ser criado. A consequên-
cia deste reconhecimento, como já mencionamos é a bela inversão ou
conversão do dom ao doador. Uma segunda citação de Lima Vaz a esse
respeito, retirada do capítulo sobre a relação de transcendência, destaca a
presença implícita de uma afirmação do Absoluto, que nós aplicamos aqui
ao processo da realização humana.

A posição do Eu sou ou a relação transcendental do sujeito ao ser desvela, afi-


nal, seu fundamento último, qual seja o ser-posto pelo Absoluto na relação de
criaturalidade e na relação de mensurante a mensurado. (...) Na afirmação
234 | O que torna uma vida realizada: homenagem aos 100 anos de Henrique Cláudio de Lima Vaz

inicial Eu sou, que impele o discurso antropológico a desdobrar-se nas catego-


rias de estrutura e relação, estava implícita, como fundamento ontológico da
sua possibilidade, a relação do sujeito com o Absoluto 24.

O sujeito humano existe, pois, em relação com sua origem real e tam-
bém com a medida da verdade – critério último de nossa inteligência,
apesar de nossos enganos – e com a medida do bem – ao qual se inclina
nossa vontade, ainda que falível. Lima Vaz pode afirmá-lo pois tem em seu
horizonte o Esse Infinito, “atualidade de todos os atos e perfeição de todas
as perfeições” 25. Um breve mergulho na Metafísica de Raízes da Moderni-
dade nos permitirá desdobrar em maiores detalhes o que significa afirmar
que a absoluta transcendência cria e se encontra presente e atuante na
imanência dos seres finitos.
Segundo Lima Vaz, a mais fecunda transcrição filosófica do Deus cri-
ador da revelação cristã consiste na afirmação do Existente por si mesmo
subsistente, o qual é reconhecido ou intuído no fato simples de que alguma
coisa existe. O ser sensível, relativo, contingente, múltiplo existe. E existe
de uma forma determinada, cuja essência pode ser enunciada, como é o
caso do ser humano cuja essência Lima Vaz buscou expressar em sua An-
tropologia Filosófica. Aliás, o ato de existir só é apreensível porque cada
realidade se distingue das demais, se apresenta e se manifesta em seu ser
próprio. Assim, o que faz cada ser vir à existência – o Doador do ser, a
Fonte do ser – só pode ser reconhecido, evidentemente, quando estamos
diante de um ser e, portanto, de algo que existe de determinada forma e
se distingue assim dos demais seres. Ou, numa formulação sintética, tudo
o que existe conforme determinada forma ou essência chama-se “ser”. E
há multidão de seres. Ora, é nessa multidão e graças a ela que se reconhece
aquele Ser cuja essência é existir, ou seja, que é Ele mesmo ato sem potên-
cia, existência em estado puro. Eis o Ipsum Esse Subsistens, unidade entre

24
AF II, 123-124.
25
Tomás de AQUINO. De Potentia, q. 7, a. 2 ad 9m, apud RM, 129
Álvaro Mendonça Pimentel | 235

essência e existência, a que se refere Lima Vaz. É o primeiro ato, a causa


inicial que faz jorrar a existência do universo: o Criador 26.
Em nós, como vimos na categoria de realização, a essência se realiza
na existência histórica, numa diferença que nos é constitutiva. E agora
compreendemos que essa existência é o desenrolar do ato de existir pri-
mordial que nos faz ser com todas as virtualidades que se realizarão no
tempo. Deus cria o homem comunicando-lhe a atualidade de ser e, por-
tanto, a capacidade de atualizar-se e realizar-se livremente na tensão da
história. Mas em Deus essa tensão se encontra excluída, como vimos, uma
vez que sua essência é existir. A análise do ato de existir da multiplicidade
dos seres que surgem, se desenvolvem e desaparecem nos conduz à intui-
ção do ato primeiro 27. Ele é o doador da existência, a fonte de todo dom. E
se há verdade, bondade e beleza nos seres singulares que compõem o cos-
mos, estas vêm do Existente Absoluto. Por ser fonte de todo ser, Ele não
se encontra na generalidade dos seres, que recebem a existência e não a
criam, mas deles se distingue realmente.
Se o chamamos de “ser” é em sentido supereminente, pois todos os
seres existem como realização progressiva de uma essência no tempo, ou
seja, processo que dura da aurora até o ocaso de cada existente. O Ser ou
Existente Absoluto, ao contrário, é a fonte da essência de todo ser 28. Mas
não apenas da essência: ele é a fonte do ato de existir que faz jorrar cada
realidade, segundo sua essência própria. Assim, a metafísica do esse afirma
não apenas a inteligibilidade da essência que nos constitui, seguindo a
longa tradição grega e a primeira filosofia cristã, mas a inteligibilidade do
ato de existir, que é a contribuição original de Tomás de Aquino à história
da metafísica. A essência do homem, que foi definida na Antropologia Fi-
losófica por meio das categorias de estrutura e relação não constitui,

26
RM, 129-132. Cf. também M-J NICOLAS. Introdução. In: Tomás de AQUINO. Suma Teológica. Vol 1. São Paulo:
Loyola, 2001, p. 40-42)
27
Cf. RM, 129-130; 155.
28
RM, 129-138
236 | O que torna uma vida realizada: homenagem aos 100 anos de Henrique Cláudio de Lima Vaz

portanto, toda a inteligibilidade ontológica do sujeito humano 29. O ato de


existir também é inteligível, ou melhor, em Deus, é a fonte de toda inteli-
gibilidade. Ao criar, ao doar existência a cada ser humano, Deus comunica-
lhe um ato de existir único, uma identidade própria, a qual, por ser única,
é inefável. E, no entanto, apesar de indefinível, o único mostra-se na ma-
nifestação pessoal: no encontro e na relação entre um “eu” e um “tu” 30. À
essência universal do ser humano deve-se acrescentar, portanto, o sentido
de originalidade, de singularidade, de criação imprevisível, que permite
pensar a identidade pessoal para além das determinações da matéria, da
história, da cultura, embora não sem elas. Seguindo a ontologia do dom, à
qual se refere Lima Vaz na Antropologia Filosófica, parece-nos que o sen-
tido original que nos é dado no ato de existir compõe com a essência
universal a ipseidade do sujeito humano. Eis como se deve interpretar,
portanto, a seguinte passagem de Raízes da Modernidade, no contexto de
nosso estudo:

(...) a identidade do ser finito é constituída pela suprassunção dos dois princí-
pios, esse e essentia, opostos como ato e potência, na unidade concreta com
que o ser subsiste na sua inteligibilidade eidética (essência), segundo o exem-
plar da Ideia no Esse infinito, e no seu existir tético como esse posto pela
iniciativa da Liberdade absoluta 31.

Deus é a inteligibilidade e a liberdade absolutas cuja verdade e bon-


dade se comunicam no ato criador. E dele participam os seres finitos e
relativos 32. Assim, o ato puro da metafísica cristã não se encontra distante,
mas é o âmago de todo devir, mudança e criatividade. E o desafio especu-
lativo da metafísica inspirada na revelação consistirá em pensar o

29
Cf. C.R.M. OLIVEIRA. Metafísica e Ética: A filosofia da pessoa em Lima Vaz como resposta ao niilismo contempo-
râneo. São Paulo: Loyola, 2013, Cap. 4: A pessoa humana.
30
Cf. RM, 155-158. Cf. C. BRUAIRE, Claude. O Ser e o Espírito. São Paulo: Loyola, 2010, cap 2: O espírito em sua
manifestação. M. BUBER. Eu e Tu. Águeda: Paulinas Editora: 2014, Primeira Parte.
31
RM, 161
32
RM, 147 e cap. 12: “Ser e Participação”.
Álvaro Mendonça Pimentel | 237

transcendente que dá o ser e que se encontra de algum modo presente em


sua criação, nela imanente, embora dela distinguindo-se absolutamente.
Mas esse desafio ultrapassa nosso escopo e encontra-se, felizmente,
afirmado e tratado em Raízes da Modernidade. O que nos interessa é apro-
fundar a relação entre a categoria de realização e a metafísica do Existente
Absoluto. O sentido fundamental dessa relação emerge do problema da
Criação e da distinção entre o ato de existir (esse) e a essência, pois deles
derivam a imagem do homem como co-criador e a mudança radical na
compreensão moderna do tempo, quando a comparamos à concepção an-
tiga do tempo cíclico. Como nos recorda Lima Vaz,

A ideia de um tempo em evolução, onde o novo se mostra sempre na sequência


do antigo e a invenção prevalece sobre a repetição, está ligada essencialmente
à revelação de um Deus criador. A um tempo transcendente e imanente à his-
tória humana, o Criador nela revela-se como uma Presença ativa que suscita
nos indivíduos o imperativo de uma resposta ao seu desígnio de salvação, tra-
duzido numa progressão que caminha no tempo para uma plenitude final 33.

Esta é uma fecunda visão da história, caso mantenha sua abertura


para o infinito. E parece evidente sua relação com a realização humana,
que integra em seu movimento a relação de intersubjetividade e o dever
de criação de um mundo justo que se traduza em relações livres de reco-
nhecimento recíproco 34. O dom de ser, que somos cada um de nós, acolhe-
se e realiza-se na medida em que, prospectivamente, humaniza o mundo
em que vive, tornando-o maleável e permeável à liberdade, ao sentido, à
razoabilidade, enfim, ao ideal do bem comum. Os modelos de realização
dessa tarefa encontram-se simbolizados, por exemplo, nas expressões
“Reino de Deus” e “imagem de Deus”, nas figuras dos santos e dos heróis
inspiradores 35. Não são propriamente padrões de imitação, mas inspiração

33
Cf RM, 138-139. Aqui: p. 139.
34
Cf. E. V. RIBEIRO. Reconhecer-se reconhecido: o problema do reconhecimento enquanto questão antropológica,
ética e política. Síntese – Revista de Filosofia, v. 43, n. 137 (2016), p. 387-400.
35
Cf. AF II, 166-167 . Cf. H. BERGSON. Les deux sources de la morale et de la religion. Paris: Puf, 2018, cap III: La
religion dynamique.
238 | O que torna uma vida realizada: homenagem aos 100 anos de Henrique Cláudio de Lima Vaz

para uma ação criativa e original. O dinamismo orientador do processo de


realização é a superação da diferença entre essência e existência, ou seja,
a conquista da unidade e da harmonia entre as várias dimensões ontoló-
gicas do homem, conquista que se concretiza na ação do sujeito singular,
mas também das comunidades politicamente articuladas.
Assim, a participação na vida divina, expressa na metafísica do ato
criador, apresenta-se como fonte possível de sentido e de equilíbrio para a
realização do homem e da sociedade. A existência histórica não é um aci-
dente, entregue ao acaso ou à necessidade. Ela se oferece como uma tarefa
e um dom, cujo sentido não se fecha em nenhuma definição ou fim ima-
nente da história. Uma história aberta, permeável à liberdade e à justiça:
eis o que nos oferece tal concepção.
No entanto, há um ponto crítico de inversão, na possibilidade concei-
tualmente definida pela metafísica do esse enraizada no tema judaico-
cristão da criação. Trata-se do movimento crescente de imanentização da
imagem do Deus criador na subjetividade humana. Esse fenômeno de
transformação da relação de transcendência numa “projeção do Eu” tem
sido estudado de vários pontos de vista. Cremos que sua compreensão
deve ser situada num mundo que se desenvolve em rapidez vertiginosa e
precisa encontrar sentido em sua construção imanente. Tal desenvolvi-
mento segue o rumo crescente do domínio, próprio da racionalidade
operativa ou instrumental. Seus ganhos são evidentes e devem ser cele-
brados: a cura de doenças, a maior produção de alimentos etc. Mas seus
desafios à ética e, portanto, à realização humana ainda precisam ser en-
frentados 36. Um enorme vazio se interpõe entre as decisões que se
aceleram sob a pressão de gigantescos interesses econômicos e venalizam
as relações interpessoais e políticas. A dominação e o aumento do poder
que não têm outro sentido senão seu próprio crescimento, tornam-se fins
em si mesmos e relativizam a dignidade da pessoa humana e os limites

36
Cf. A. M. PIMENTEL. Racionalidades, culturas e globalização: a ação criativa e a rearticulação dinâmica das culturas.
Síntese – Revista de Filosofia v. 42, n. 133 (2015), p. 181-210.
Álvaro Mendonça Pimentel | 239

ambientais da frágil Terra. Este poderio crescente oculta a finitude hu-


mana e sua ondulação que vai do não-ser ao ser num caminho que retorna
ao não-ser pela morte. Nesse contexto, o Eu transcendental se autoafirma
como instância instituidora de sentido e se transcende nas estruturas do
mundo por ele constituído. Mas tal saída oferece um caminho para a rea-
lização humana?
Uma metafísica da subjetividade fechada, por rigor metodológico, a
qualquer transcendência parece sustentar a tradução do “Eu sou” humano
nos “ sistemas do saber, da práxis e da técnica (....) como subjetividades
universais [e imortais?], no seio das quais o indivíduo pensa, age e produz
(...), que são os sistemas sociopolíticos, as teorias científicas e o sistema
sempre mais abrangente da tecnociência” 37. Neles o indivíduo encontra-se
assumido e coagido aos humores do mercado, à necessidade das leis uni-
versais do cosmos ou das leis que os sistemas tecnológicos lhe impõem.
Mas isso não implica uma unificação de seu ser, ou seja, sua realização
como união entre essência e existência. Ao contrário, ele se experimenta
fragmentado “na multiplicidade dos Eu[s] que as ciências do homem se-
param metodologicamente (o Eu biológico, o Eu psicológico, o Eu social e
político, o Eu cultural etc)” 38.
O homem moderno que avança na construção de um mundo sem
transcendência, se depara, finalmente, com a aporia histórica de uma des-
construção de seu próprio ser, que o lança nas águas contaminadas do
niilismo contemporâneo ou nas escapatórias da diversão ou da violência.
O mundo sem sentido certamente abriga seus heróis, mas salvo aqueles
da ficção literária, haverá algum que não se pergunte por um além da ima-
nência? 39 A vida concebida sem uma participação na vida divina, sem a
tensão que impulsiona à plenitude e lhe confere uma verticalidade ao infi-
nito, horizontaliza-se numa série de “problemas que permanentemente

37
RM 144
38
RM 145.
39
RM 140-145. Pensamos aqui na obra prima de Albert Camus, A Peste, e em seu herói fictício e narrador do livro
Bernard Rieux. Para um questionamento sobre a possibilidade do heroísmo em meio ao total absurdo, cf. JAMES,
William. Vale a pena viver? Tradução de Gabriel Perissé. São Paulo: Editora Nós, 2018.
240 | O que torna uma vida realizada: homenagem aos 100 anos de Henrique Cláudio de Lima Vaz

nos desafiam: participação cultural (esfera do saber), participação política


(esfera da representação), participação jurídica (esfera dos direitos), par-
ticipação econômica (esfera das necessidades) e outras” 40. Lima Vaz nos
recorda como Charles Taylor via no valor da autenticidade uma saída para
a prisão dos sistemas tecnoburocráticos e do “mal estar da modernidade”.
Mas este reconhecimento intersubjetivo e dialógico será suficiente para li-
bertar o homem de uma subjetividade hiperdimensionada e ameaçada
pela ausência de fins substanciais? “A questão de uma Transcendência
meta-histórica acaso não se põe aqui como referência última das atitudes
de autenticidade?” 41
Não por acaso a Antropologia Filosófica conclui-se com uma reflexão
sobre a vida e a eternidade, “a realização final da pessoa”. O filósofo, tendo
discorrido sobre a essência de todos, se inclina diante do “mistério inde-
vassável da existência de cada um” onde reconhece “a presença atuante de
uma Inteligência infinitamente bondosa e de um Amor infinitamente ver-
dadeiro” 42. O olhar contemplativo de Lima Vaz, cuja espiritualidade
encontrava-se profundamente enraizada nos Exercícios Espirituais de
Santo Inácio, une, portanto, a inteligência e o amor, para reconhecer em
tudo o dom, a presença, o trabalho e a plenitude do Deus uno e trino. Neste
contexto, em que saímos do discurso filosófico e nos elevamos à atmosfera
da experiência mística, recordemos o que nos dizia Lima Vaz sobre o ca-
minho de realização cristã: “Se a santidade cristã é uma obra do amor de
Deus, uma resposta do amor do homem, se Deus mesmo não é senão
Amor, como se poderá encontrar a Deus senão pelo amor?” 43

Referências

AQUINO, Tomás de. Suma Teológica. Vol 1, Parte 1. São Paulo: Loyola, 2001. Introdução.

40
RM 191.
41
RM 191.
42
AF II, 236
43
H. C. LIMA VAZ. “Discrição e Amor: a propósito da eleição inaciana nos Exercícios Espirituais”. Itaici: Cadernos de
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242 | O que torna uma vida realizada: homenagem aos 100 anos de Henrique Cláudio de Lima Vaz

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5. Columbia and London: University of Missouri Press, 2000.
Capítulo 14

A experiência espiritual da união mistérica na


Antropologia Filosófica de Henrique C. de Lima Vaz

Samuel Dimas

1. Para uma antropologia integral que inclui a experiência espiritual


da união mistérica com Deus

A antropologia filosófica de Henrique de Lima Vaz atende à realização


humana na sua integralidade, incluindo a atividade psíquica e espiritual
em que se dá a experiência mística ou mistérica. De ordem trans-racional,
esta experiência inefável do Absoluto, que mobiliza as mais poderosas
energias psíquicas, eleva a pessoa às mais elevadas formas de conheci-
mento e de amor alcançáveis em vida. Dá-se de forma única e
absolutamente singular, no plano de uma transcendência real, que implica
a transcensão do plano categorial do mundo e das formas epistemológicas
usuais. Não pode haver uma plena realização do homem sem a experiência
espiritual da união mistérica com o Amor infinito de Deus.
Etimologicamente, o termo mística deriva da palavra μυστήριον e de-
signa na Antiguidade grega e romana as cerimónias e ritos secretos das
religiões de mistérios (de Elêusis e de Dionisio), a que os iniciados μυστής
deveriam observar um rigoroso silêncio, fechando os olhos e a boca para
que pudessem ver espiritualmente o que deveria ser visto. Atualmente, a
mística é concebida como uma experiência fruitiva de um absoluto, que
pode ser o ser em si, a natureza, o todo ou Deus, e consiste num conheci-
mento direto e imediato de natureza beatificante em cujo objeto a alma do
244 | O que torna uma vida realizada: homenagem aos 100 anos de Henrique Cláudio de Lima Vaz

místico se revê e se deleita. O que deveria ser visto era o Mistério, para o
qual não havia uma perfeita correspondência conceptual, havendo neces-
sidade de recorrer ao símbolo e à poesia para o comunicar. A mística irá
depois, por influência gnóstica, ceder às perspetivas ontologistas e visio-
nárias, reclamando a capacidade de uma experiência direta e de uma visão
perfeita da essência divina, que deixa de ser Mistério, mas que é acessível
apenas a alguns iluminados que detêm o segredo de tal acesso.
Resultante de um desejo profundo e incoercível de união com o Ab-
soluto, que na tradição cristã se traduzirá pela noção de desejo natural de
Deus, a mística vai adquirindo formas cada vez mais complexas, de acordo
com o aumento do rigor crítico e da solidez doutrinal das culturas filosó-
fico-religiosas. Em comum, a referência a uma experiência que excede a
razão, que nas mitologias e religiões mistéricas e gnósticas se configura
pela prevalência do irracional e de rituais secretos e que na religião cristã
oscila entre o irracional e o trans-racional e se configura pela referência
aos mistérios e acontecimentos da história pascal da salvação, no sentido
de um conhecimento mais direto e experimental de Deus ou no sentido de
um conhecimento mais analógico e mediado eclesialmente.
De que maneira concebe o autor brasileiro esta experiência humana?
No sentido irracional, associado aos delírios visionários e aos estados psi-
cológicos paranormais; no sentido irracional associado à captação direta e
intuitiva da pura essência divina e associado à união por identidade; ou no
sentido analógico da racionalidade que se transcende a si mesma em ex-
clusiva atenção à contemplação do Absoluto, o qual se manifesta
simbolicamente como tremendum e se revela pela mediação histórica da
criação, da graça e da revelação em Cristo?
A experiência mística é concebida por Lima Vaz como um fenómeno
totalizante em que estão integrados todos os aspetos da realidade humana,
situando-se no plano do encontro com o Outro absoluto, cujo mistério se
reconhece na situações-limite da existência 1. Consiste na experiência do

1
Cf. Henrique C. de Lima Vaz, Experiência mística e filosofia na tradição ocidental, São Paulo, Edições Loyola, 2000,p.
15.
Samuel Dimas | 245

Sagrado, que se caracteriza pela anulação da distância entre o sujeito e o


objeto por via da manifestação do Outro absoluto como tremendum e
como fascinosum, que encerra o apelo a uma forma de união em que pre-
valecem as dimensões participativa e fruitiva numa «quase identidade»
com o divino que é transformadora da vida pessoal. Esta particularidade
da expressão «quase identidade», leva-nos a concluir que o pensador irá
optar pelo terceiro sentido, acima referido, da experiência mística, radi-
cada no tempo e na história, que define de profética e especificamente
cristã e que, por distinção com a mística especulativa neoplatónica, não
concebe a união com o Absoluto por identidade, mas por mediação do es-
pírito do místico que é imagem de Deus invisível, por mediação da graça
da fé que é dom divino, e por mediação da Encarnação de Cristo. Uma
mística de orientação escatológica, da Criação à Parusia, em que a união
com Deus pelo conhecimento e pelo amor encerra um carácter de inefabi-
lidade que só na visão beatífica será superado 2.
Esta experiência fruitiva do Absoluto não pertence ao campo dos fe-
nómenos psíquicos extraordinários ou anormais, mas dá-se no dinamismo
normal da vida cristã visando o Mistério, por um género de conhecimento
do seu objeto e por uma adesão afetivo-volitiva que transcendem o modo
usual e contingente destas faculdades. O objeto desta experiência é o Mis-
tério do Absoluto divino, que está presente, de forma paradoxal, na sua
radical transcendência e na sua radical imanência, no sentido aludido por
Santo Agostinho nas Confissões: «tu autem eras interior intimo meo et su-
perior summo meo» 3. O íntimo do ser humano é o nível ontológico mais
elevado do seu espírito e no seio dessa imanência (interior íntimo) o Ab-
soluto manifesta-se como radical transcendência (superior summo).
Em diálogo com J. B. Lotz, Lima Vaz acusa Heidegger de ter reduzido
o Ser à história do seu acontecer e de ter contribuído para a diluição da
inteligência espiritual e para a impossibilidade do homem poder atingir,

2
Cf. ibidem, pp. 65-72.
3
Agostinho de Hipona, Confissões, livro III, cap. 6, Lisboa, INCM, 2000, p.100.
246 | O que torna uma vida realizada: homenagem aos 100 anos de Henrique Cláudio de Lima Vaz

pela mediação temporal, a eternidade do Ser absoluto, reconduzindo a me-


tafísica para o dizer original da poesia e do mito 4. Mas não será inevitável
que a linguagem da experiência do mistério seja trans-conceptual e poé-
tica? Não entra aqui o autor em contradição?
Para além da vida do corpo e da vida do psiquismo, há a vida do es-
pírito em que os seus atos transcendem o fluxo temporal. Enquanto
abertura transcendental ao Ser, o espírito é inteligência (noesis) e amor
(agape), contemplação e liberdade: «Assim, inteligência espiritual e amor
espiritual se entrelaçam na unidade do apex mentis, o cimo mais alto da
vida do espírito, onde a inteligência se faz dom à verdade que é seu bem,
e o amor se faz visão do bem que é sua verdade» 5. Mas esta estrutura per-
mite a compreensão da experiência mística em diferentes direções. Na
linha platónica, o conhecimento que pressupõe a experiência mística dá-
se pela dialética ascendente do somático ao noético-pneumático, pela me-
diação do psíquico, e neste último plano esse conhecimento dá-se entre o
discurso racional (dianoia) e a intuição intelectual pura (noesis) em que se
consuma a união intencional do inteligente e do inteligível. Para esta cor-
rente platónica em que se inclui a Escola de Alexandria e Plotino, o místico
é concebido como aquele que, recolhido na sua interioridade, abre os olhos
espirituais para o abismo indizível e insondável de si mesmo e da reali-
dade, ou seja, para a realidade essencial do homem e do mundo.
Veremos este esquema na ontologia emanatista de Plotino, com a as-
censão ao Uno inefável e absolutamente transcendente, e na ontologia
criacionista de Santo Agostinho, com o conhecimento das ideias que estão
na mente divina, pela via reflexiva e pela inferência a partir da ordem ra-
cional do mundo, e pela via intuitiva através da purificação da inteligência
e da união a Deus no amor. Mas ao contrário da noção relacional agostini-
ana sobre a união divina como comunhão, o Uno de Plotino, que
permanece para além de todo o entendimento, admite uma consumação

4
Cf. Henrique C. de Lima Vaz, Antropologia Filosófica, vol. I, São Paulo, Edições Loyola, 1998, pp. 264-265.
5
Ibidem, p. 243.
Samuel Dimas | 247

universal e perfeita indistinção do Todo. Na filosofia neoplatónica e gnós-


tica, a mística adquire um caráter salvífico e redentor com instrumentos e
técnicas que visam a união panteísta da alma com a essência divina do
mundo. A sabedoria infinita de Deus é finitizada no poder absoluto do co-
nhecimento humano.
Ora, ao finitismo da perfeição grega, segue-se a infinitude cristã de
Deus pessoal de São Tomás de Aquino, pela articulação da teoria agostini-
ana da iluminação com a noção aristotélica da inteligência ativa (nous). A
ratio corresponde às operações discursivas (ciência) e o intellectus refere-
se às operações intuitivas ou contemplativas (sabedoria), pelas quais a ra-
zão humana está em contiguidade com a inteligência angélica e participa
analogicamente da intelecção absoluta de Deus 6. Em Platão e em São To-
más de Aquino, a inteligência espiritual pressupõe uma correspondência
entre a perfeição do ato de conhecimento e a perfeição do seu objeto, cul-
minando na contemplação pura do inteligível puro: contemplação do Ser
(filosofia) e contemplação de Deus (teologia). Mas podemos falar de uma
correspondência absoluta?
A partir da modernidade, esta tese medieval da adequatio será subs-
tituída pela tese heideggeriana da inadequação entre o pensar e o Ser. Em
que plano se situa Lima Vaz quanto ao conhecimento espiritual de Deus:
na perspectiva tradicional da perfeita inteligibilidade ou adequação entre
a inteligência e o inteligido, ou na perspectiva contemporânea da inade-
quação? A resposta parece já estar dada pela sua escolha de uma mística
que pertence a uma tradição religiosa que exige a mediação da palavra
histórica acolhida na Fé e a mediação na contemplação do Mistério pela
revelação de Cristo 7. Mas não é assim tão simples.
Como temos vindo a verificar, o jesuíta brasileiro opõe-se a Heide-
gger e defende a perspectiva clássica, considerando a experiência mística
como a atividade mais elevada da inteligência espiritual, que coroa a es-
trutura noética da vida humana desde o mundo sensível à contemplação

6
Cf. ibidem, p. 259.
7
Cf. Henrique C. de Lima Vaz, Experiência mística e filosofia na tradição ocidental, p. 65.
248 | O que torna uma vida realizada: homenagem aos 100 anos de Henrique Cláudio de Lima Vaz

metafísica (noesis ou teoria) do puro inteligível (noetón). Assim, concebe


a ascendente descentração do espírito nos seguintes estádios: a) pela razão
categorial e pelo conhecimento lógico objetivo, dá-se o reconhecimento da
distância entre a realidade natural e a realidade humana de espírito-no-
mundo; b) pela razão transcendental e pelo conhecimento analógico per-
corre-se o caminho entre o espírito-no-mundo e o infinito formal ou a
ideia de Ser, estendendo-se depois ao Infinito real ou Existir absoluto (su-
premo Inteligível) pela elevação da intuição apofática; c) esta intuição pode
ser sobrelevada pela graça em intuição mística sobrenatural 8. Ora, de
acordo com esta orientação, a intuição sobrenatural da experiência mística
apresenta-se como um conhecimento superior à inteligibilidade analógica
e parece apontar para um conhecimento direto e perfeito do Absoluto.
Podemos invocar que se trata de um conhecimento legitimado no
pressuposto augustiniano e tomista da iluminação divina da nossa inteli-
gência, que sustenta a tese epistemológica da adequatio. Mas não podemos
deixar de perguntar: o autor defende a legitimidade deste conhecimento
intuitivo sem anular o reconhecimento da incompreensibilidade de Deus,
tematizada por São Gregório de Nissa nos seus escritos Contra Eunómio
que reivindicava a perfeita inteligibilidade da essência divina? Em diálogo
com Tomás de Aquino, considera Lima Vaz que o conhecimento de Deus
dá-se pela via analógica da demonstração (ascensio ad Deum per scalam
creaturarum) e pela via suprarracional e contemplativa da intuição mís-
tica 9, o que nos leva a concluir que concebe a intuição mística como
superior ao conhecimento analógico e que concebe a tematização teológica
como superior à tematização filosófica, pois inclui o saber da Graça. Ora,
na mesma linha platónica e neoplatónica, tudo parece indicar que em To-
más de Aquino também o conhecimento intuitivo noético surge como
superior ao conhecimento racional dianoético, estando a dimensão analó-
gica associada a este segundo.

8
Cf. Henrique C. de Lima Vaz, Antropologia Filosófica, vol. I, p. 265.
9
Cf. ibidem, p. 267.
Samuel Dimas | 249

Mas poderemos nós inserir uma separação entre a racionalidade ana-


lógica e a contemplação mística, admitindo que esta última possibilita um
conhecimento perfeito da essência de Deus, seja pela intuição natural, seja
pela fé na revelação? Poderemos nós separar a teologia da filosofia, sem
cair nos deísmos e nos fideísmos que se disseminaram no pensamento
moderno a partir das obras de David Hume, de Immanuel Kant e Edmund
Husserl? Como conciliar a liberdade humana, cuja perfeição consiste no
consentimento ao bem e cuja imperfeição consiste na indiferença do livre
arbítrio, com a liberdade divina, cuja infinita perfeição consiste na identi-
dade com o Bem, isto é, na identidade entre entendimento e vontade?
Lima Vaz responde que essa unidade entre razão, intelecto e vontade
só é possível pela preservação da noção clássica de inteligência espiritual,
que se constitui como a forma mais elevada do conhecimento filosófico.
Essa conciliação exige a superação da cisão entre filosofia e mística, reali-
zada na filosofia moderna com o desaparecimento do espaço noético da
inteligência espiritual e com o desaparecimento da noção de mística como
experiência de Deus transcendente. Mas permanece a questão: podemos
conceber esse saber noético fora da analogia? O conhecimento de Deus
transcendente encerra, ou não, a noção de Excesso e de Mistério, e implica,
ou não, um conhecimento analógico trans-conceptual, nos termos elabo-
rados pela metafísica contemporânea de autores como Karl Rahner,
Bernard Lonergan e Béla Weismmahr, que afirmam a transcendência ima-
nente de Deus e a impossibilidade do seu conhecimento à maneira da
intuição intelectual de Espinosa e de Bergson? Ou seremos nós conduzidos
para uma separação entre a reflexão filosófico-teológica, que opera com o
conhecimento dianoético da razão lógica e analógica, e a tematização espi-
ritual que opera apenas com a dimensão noético-emocional? O
conhecimento da experiência mística que possibilita a união cognitiva e
amorosa com o Mistério de Deus é mais trans-racional e transconceptual
que o conhecimento analógico da experiência filosófico-teológica que
afirma a existência do mistério de Deus? Então se já não é do domínio da
250 | O que torna uma vida realizada: homenagem aos 100 anos de Henrique Cláudio de Lima Vaz

trans-racionalidade que transcende a lógica, é o quê? É o irracional que se


opõe à lógica e à analogia?
Para darmos resposta a estas questões, continuemos a acompanhar
o percurso do autor na consideração da tradição mística na época contem-
porânea. Lima Vaz elogia os esforços de Schelling, de Hegel e de Bergson
em ultrapassarem o antropocentrismo da filosofia crítica moderna, mas
não aceita a transposição da experiência mística para categorias especula-
tivas da filosofia da imanência 10 e não aceita a redução heideggeriana da
mística à linguagem poética na mais radical imanência do sujeito. No seu
entender, toda a experiência mística, quer a testemunhada pelos místicos,
quer a explicitada na reflexão filosófico-teológica, é edificada sobre uma
antropologia em que o homem está aberto a uma dupla dimensão de
transcendência: a) a transcendência da inteligência espiritual sobre a razão
lógica discursiva, sobre o livre-arbítrio e sobre as atividades psíquicas; b)
e a transcendência ontológica do Infinito Absoluto sobre o sujeito finito 11.
Ora, aqui temos uma primeira resposta do autor às nossas dificuldades:
ele fala de transcensão da lógica e não de oposição ou de irracionalidade.
Podemos associar a noção de inteligência espiritual à atividade transcen-
dente e trans-conceptual da razão analógica (metafísica), por distinção
com a atividade objetiva e subjetiva, conceptual e discursiva da razão ló-
gico-analítica (ciência).
O homem, num primeiro nível relacional de objetividade, pode abrir-
se ao mundo; num segundo nível relacional de subjetividade, pode abrir-
se ao outro e à história; e num terceiro nível relacional de transcendência,
pode abrir-se ao Absoluto formal da universalidade do Ser e ao Absoluto
real de Deus 12. Porque há uma ordenação essencial do ser humano ao Ab-
soluto, que habita no seu universo intencional como origem, curso e
termo, é possível a sua manifestação na experiência mística, quer como

10
Cf. Henrique C. de Lima Vaz, Experiência mística e filosofia na tradição ocidental, p. 20.
11
Cf. ibidem, p. 21.
12
Cf. ibidem, p. 24.
Samuel Dimas | 251

cognoscível (Verdade), quer como amável (Bem), quer como Deus criador
(mística natural), quer como Amor infinito (mística sobrenatural) 13.
Mas, na sequência deste raciocínio, temos de insistir na pergunta: a
união que se dá entre o sujeito finito e Deus infinito, pela experiência mís-
tica, não anula essa transcendência ontológica a que o homem está aberto?
E se anula, não significará reduzir a relação entre Deus e o homem ao pan-
teísmo de autores como Espinosa e ao ontologismos de autores como
Malebranche? Se for uma união no sentido monista panteísta de identi-
dade e indistinção, como tende a mística especulativa neoplatónica,
gnóstica e romântica, antes de anular a relação de transcendência, anula a
própria relação. Mas, como já verificámos, não será essa via de Lima Vaz,
embora recorra à antropologia platónica para fundamentar a sua noção de
inteligência espiritual em que se dá o saber superior da mística.
Esta posição, nas abordagens mais epidérmicas, tem dado origem a
um certo conflito entre o domínio da espiritualidade e o domínio da refle-
xão filosófico-teológica, pois cada uma destas áreas acha-se superior à
outra. Ora, o que temos é uma complementaridade, pois não pode haver
uma experiência mística cristã sem a fixação conceptual e doutrinária da
filosofia e da teologia, tal como também não podemos constituir um saber
filosófico-teológico integral sem a consideração da tradição espiritual.

2. O caráter analógico da experiência mistérica

Cremos que a melhor solução para evitar estes equívocos será conce-
bermos uma perspetiva analógica da própria Realidade e reconhecermos
que na relação entre o Criador e as criaturas, a identidade e a diversidade
não se excluem: quando maior é a Transcendência, maior é a imanência,
quanto maior é a identidade, maior é a diversidade. Como explica Béla
Weissmahr, o primeiro princípio da metafísica, em que se funda o conhe-
cimento analógico e a linguagem mistérica trans-racional do excesso e do
paradoxo, não é o princípio de não contradição, que Lima Vaz diz reger a

13
Cf. ibidem, p. 25.
252 | O que torna uma vida realizada: homenagem aos 100 anos de Henrique Cláudio de Lima Vaz

ontologia abstrata da Metafísica moderna decadente, mas é o princípio de


identidade pelo qual se afirma que tudo coincide no ser e que inclui todas
as diferenças relativas 14. No âmbito analógico do conhecimento supra-con-
ceptual, podemos ascender da univocidade da abstração de uma realidade
construída pelo pensamento à pluralidade do conhecimento metafísico da
realidade concreta do ser, que se dá na apreensão simultânea da sua uni-
dade e diversidade e da sua identidade e diferença 15. E neste pressuposto
já não se pode afirmar que o conhecimento noético da experiência mística
é superior ao conhecimento dianoético e analógico da experiência racional,
pois este é constitutivo daquele: a experiência mística não é irracional e é
analógica, porque o próprio Ser é analógico.
O conhecimento analógico deixa de estar associado à racionalidade
discursiva ou predicativa, a qual é entendida exclusivamente como
atividade lógica, e passa a caracterizar a racionalidade trans-predicativa e
trans-conceptual em que se insere a contemplação intuitiva do Absoluto.
A estrutura antropológica e cognitiva dual de Platão (corpo - alma), num
ordenamento linear que vai do mundo sensível da sensação (pístis) e da
imaginação (eikasía), ao mundo inteligível do raciocínio (dianóia) e da
intuição (nóesis) 16, terá de ser ajustada a um esquema trial (corpo-alma-
espírito), concebendo a atividade espiritual como intrinsecamente
racional: realidade inorgância e orgânica, sensações externas (soma);
atividade psicológica e emocional (psiquê); e atividade espiritual da
intelecção intuitiva, da razão discursiva, lógica, demonstrativa, analógica,
da vontade livre e responsável (pneuma). A contemplação ou intuição de
Deus não pertence à ordem da irracionalidade, porque também a fé e a
graça do espírito não são realidades irracionais. Deixamos de pensar na
tradicional cisão entre razão e intuição e passamos a conceber uma
diferenciação entre a razão lógico-analítica do conhecimento conceptual

14
Cf. Béla Weissmahr, Ontología, Barcelona, Editorial Herder, 1986, p. 84.
15
Cf. ibidem, p. 173.
16
Cf. Platão, República, VI, 511 d-e.
Samuel Dimas | 253

exato e objetivo e a razão analógico-metafórica do conhecimento


transconceptual inexato, intersubjetivo e transcendente.
Para não haver equívocos com o significado tradicional da experiên-
cia mística ou razão mística, associada ao conhecimento adequado da
essência de Deus e à união de identidade com Este, passamos a caracterizar
o conhecimento inadequado do Ser, que reconhece Deus pessoal como
Mistério inefável e indecifrável, com a expressão experiência mistérica ou
razão mistérica. Esta distinção surge como uma exigência da reflexão atual
acerca da inadequação entre o pensamento e o Ser divino. Tradicional-
mente a experiência mística especulativa de origem grega significa uma
absoluta identidade entre o homem e Deus, que se dá por via da intuição
e da contemplação, transformando o mistério de Deus em enigma decifrá-
vel. A experiência mística cristã, fortemente influenciada pelo
neoplatonismo e pelos movimentos gnósticos dualistas e monistas, tende
no mesmo sentido. Mas na sequência de toda a legítima crítica moderna e
contemporânea aos diversos ontologismos místicos, torna-se necessário
retomar a significação originária da experiência mística cristã como comu-
nhão cognitiva e amorosa com o mistério de Deus, que se presentifica no
sujeito como inefável e transcendente.
Ora, a melhor maneira de o fazer é recuperar a significação originária
da experiência espiritual do Mistério com um termo análogo, mas que não
tenha a mesma conotação do termo místico. Tal como sublinha Lima Vaz,
místico e mistério têm a mesma raiz, no sentido em que místico é o sujeito
da experiência, o mistério é o seu objeto, e a mística é a reflexão sobre a
relação mistico-mistério. Estes termos derivam etimologicamente do
verbo mystikós (fechar os lábios ou os olhos), pelo que o iniciado (mýstes)
tem como objeto de iniciação o mystérion17. Acontece que a experiência
mística ou mistérica não significa a visão evidente da essência de Deus e a
plena identificação amorosa do finito com o infinito, como se apresenta
nas místicas especulativas dos monismos filosóficos e teúrgicos de autores

17
Cf. Henrique C. de Lima Vaz, Experiência mística e filosofia na tradição ocidental, p. 17.
254 | O que torna uma vida realizada: homenagem aos 100 anos de Henrique Cláudio de Lima Vaz

como Platão, Estoicos, Plotino, Jâmblico, Mestre Eckhart, Espinosa, Les-


sing, Hegel e Bergson, mas significa a visão do Mistério de Deus, como
realidade infinita e inefável que, pelo seu dinamismo de eterna ação e in-
ventividade, excede a capacidade de compreensão dos seres espirituais
finitos.
Na concepção cristã originária da experiência mística, não podemos
falar de uma intuição simples da Ideia ou do Absoluto ideal, numa captação
da universalidade formal do Ser e numa perfeita e acabada união fruitiva
com a sua realidade absoluta, como defendia Platão, porque as consciên-
cias humanas não são divinas, mas são criaturas contingentes, e essa
diferença ontológica exige uma nova ontologia e uma nova concepção teó-
rica e prática de união mística. Como tal, temos de recuperar as reflexões
de São Gregório de Nissa, Santo Agostinho, São Tomás de Aquino e Karl
Rahner, que desenvolvem uma metafísica analógica e se referem a Deus
como simultaneamente transcendente e imanente, ou seja, como Mistério
que não está sujeito a decifração pela razão lógica ou pela intuição contem-
plativa e cuja revelação ou manifestação encerra um carácter simbólico e
analógico.
O conhecimento intuitivo da experiência mistérica não é o conheci-
mento de vibração simpática da intuição instintiva e divinatória na
interioridade espiritual sem as condicionantes de tempo e lugar, comum a
autores como Schopenhauer e Bergson 18, mas é um conhecimento de visão
aproximativa ou assimptótica do Mistério do Ser. Como salienta Leonardo
Coimbra, não temos acesso a uma visão de intuição pura, e o máximo que
podemos atingir é a visão da razão intuitiva que vê na luz intelectual 19. O
conhecimento intuitivo da inteligibilidade mistérica é um conhecimento
parabólico e tangencial, no sentido apresentado pelas parábolas evangéli-
cas. A experiência mistérica não significa uma pura assimilação da
essência divina, sem a mediação da história e da cultura, como defende

18
Cf. Henry Bergson, La pensée et le Mouvant, Paris, PUF, 1966, p. 121.
Cf. Leonardo Coimbra, O Criacionismo: Esboço dum Sistema Filosófico, Porto, Renascença Portuguesa, 1912, in
19

Obras Completas, vol I, tomo II, Lisboa, INCM, 2004, p. 281 [228].
Samuel Dimas | 255

Bergson na caracterização do êxtase da revelação mística do homem na


comunicação com Deus 20, porque o homem é espírito no mundo e é nessa
radicação de espírito encarnado que realiza a experiência antepredicativa
ou atemática do Ser e que a pode comunicar pela linguagem do excesso e
do paradoxo da experiência transpredicativa ou trans-racional.
A mística especulativa cristã distingue-se da mística especulativa
grega e pagã porque esta fundamenta-se na visão mítica da indiferencia-
ção entre o humano e o divino e aquela fundamenta-se na perspectiva
criacionista e revelacional do Mistério da Trindade que é, simultanea-
mente, absolutamente transcendente e imanente. Daí que Lima Vaz nos
fale da existência de uma dupla transcendência, gnosiológica e ontológica,
na experiência mística cristã, embora considere que entre elas há algo de
comum pela adoção de um mesmo modelo antropológico que aponta para
a capacidade noética de afirmar a existência real do Ser e para a capacidade
de uma união fruitiva com o Absoluto 21. De facto, podemos verificar que a
metafísica grega platónica e neoplatónica e a metafísica cristã agostiniana
e tomista coincidem no labor de uma ontologia, de uma teologia filosófica
e de uma antropologia, que vão para além da multiplicidade sensitiva, ima-
ginativa e conceptual e ampliam-se a uma experiência intuitiva e trans-
racional, mas distinguem-se quanto à natureza desta intuição e união frui-
tiva.
Nos dualismos e monismos gregos, a experiência mística significa
uma identidade ou diluição dos seres no Ser e nos dualismos teístas cris-
tãos, a experiência mística significa uma comunhão dos seres no Ser que
preserva a identidade da subjetividade pessoal e a alteridade inerente à
relação amorosa, pelo que será mais adequado defini-la de experiência
mistérica. A razão mistérica supera a noção de indiferenciação ou indistin-
ção panteísta entre Deus, homem e mundo da configuração mítica do real,
supera a noção de separação e dualidade deísta entre o mundano e o divino

20
Ibidem, p. 101.
21
Cf. Henrique C. de Lima Vaz, Experiência mística e filosofia na tradição ocidental, p. 21.
256 | O que torna uma vida realizada: homenagem aos 100 anos de Henrique Cláudio de Lima Vaz

da configuração lógico-analítica do real, e concebe a união fruitiva e con-


templativa da configuração teísta cristã do real, não como visão irracional
ou intuição simples da pura essência de Deus, mas como visão analógica e
transracional do Mistério infinito de Deus.
A razão mística e a razão mistérica têm o mesmo significado originá-
rio de conceberem como objeto do sujeito cognoscente e agente, o Mistério
de Deus. Mas na histórica do Ocidente, a razão mística transformou esse
Mistério em enigma, decifrável pela dialética ascensional do pensamento
e pela iluminação da Graça num conhecimento pleno da verdade e numa
vivência plena do amor (êxtase). De tal forma, que se instituiu uma certa
oposição entre racionalidade e espiritualidade, teologia e mística, como se
a primeira impedisse o conhecimento de Deus e a segunda o promovesse.
Ora, na história cristã não podemos encontrar tematizações sobre a expe-
riência mística, à margem da teologia e da filosofia, porque a noção de
Deus como Mistério é resultado de uma longa maturação teológico-filosó-
fica.
Em algumas correntes, a metafísica cristã fala de um conhecimento
natural de Deus, enquanto verdade, beleza e bem, pelo labor racional on-
tológico (mística natural) e de um conhecimento pela recepção na Fé da
revelação divina, enquanto Amor criador e redentor (mística sobrenatu-
ral). Mas uma e outra dão-se na mesma estrutura ontológica e
antropológica do espírito racional humano, que encerra a unidade entre
os princípios lógico, discursivo, intuitivo, afetivo, analógico e transracional
ou simbólico. Não há pura naturalidade, porque a origem de tudo é a rea-
lidade espiritual da Infinitude de Deus, pelo que não podemos estabelecer
esta dicotomia: não há revelação sem razão, porque a manifestação de
Deus dá-se na história e na cultura dos homens. Ora, a noção de experiên-
cia mística ainda padece do vício dos dualismos de origem gnóstica
mazdeísta e maniqueísta, estabelecendo uma oposição entre razão e fé, na-
tural e sobrenatural, mundano e divino. Será mais adequado
recuperarmos a perspectiva original da união espiritual e sacramental com
o Mistério infinito Deus, que implica a vida humana na sua integralidade,
Samuel Dimas | 257

traduzindo-a pela noção de experiência mistérica que excede a experiência


empírica e lógico-abstrata e inclui a razão comovida, cordial e mistérica. A
união fruitiva com Deus pela via da conaturalidade implica a graça e pela
vida da graça não se faz sem a conaturalidade, porque esta cisão não per-
tence à estrutura ontológica e antropológica da tradição cristã depurada
dos gnosticismos.

3. A experiência mistérica como união de comunhão entre o homem


e Deus

A vertente mais especulativa da experiência mística ou mistérica cor-


responde ao domínio da metafísica que se ocupa da relação entre o homem
e o Mistério do Ser, naquilo que Lima Vaz considera pertencer às profun-
didades insondáveis e inefáveis que manifestam a fronteira mais
longínqua do pensamento e do logos. Em consonância com a reflexão que
temos feito, adverte o jesuíta que o domínio da experiência espiritual mís-
tica não é o alógico ou o irracional, mas o translógico num passo além do
pensamento conceptual 22.
Desta maneira, podemos confirmar que a sua noção de conhecimento
místico de Deus não corresponde a uma experiência extraordinária e irra-
cional, mas corresponde à experiência cognitiva que se situa no plano
noético da consciência, nos termos definidos por Platão na procura de unir
o entusiasmo e a razão numa theoria que tem sido historicamente inter-
pretada como uma visão terminal da Ideia em descontinuidade com a
ascensão dialética ou como uma intuição da essência que estabelece o co-
roamento dessa ascensão. No entanto, por distinção com Platão, a unidade
com o Absoluto não significa diluição na divindade, mas sim comunhão
com Deus.
Esta estrutura é sustentada por dois eixos fundamentais: a) um sub-
jetivo, que encerra uma ordenação vertical e hierárquica da atividade
cognoscitiva de psyché, anima e noús ou inteligência, a qual tem como ato

22
Cf. ibidem, p. 30.
258 | O que torna uma vida realizada: homenagem aos 100 anos de Henrique Cláudio de Lima Vaz

mais elevado a noésis ou intuição de Deus, e que na mística cristã pressu-


põe a iniciativa sobrenatural da Graça; b) um objetivo, que em homologia
com a capacidade humana de conhecer e amar o Absoluto corresponde à
realidade objetiva desse Absoluto intuído e amado. Estamos em presença
de uma experiência espiritual que se constitui numa plena conciliação en-
tre conhecimento e amor, que está para além da racionalidade discursiva
e que Lima Vaz apelida de atividade supra-racional ou ver transracional
(excessos mentis) 23.
Para falar da contemplação deste objeto divino, que, na mística grega
significa identidade, e na mistérica cristã, significa comunhão, é preciso
transgredir a linguagem ordinária, o que se traduzirá com Proclo no co-
nhecimento apofático ou negativo e com Jâmblico na passagem da theoria
neoplatónica para uma theurgia, recorrendo a práticas mágicas para con-
duzir a ação de Deus na transformação psicossomática daquele que se
entrega à contemplação. A linguagem cristã mistérica também terá várias
expressões culturais e a experiência de vida contemplativa receberá com
São Tomás de Aquino o seu estatuto teológico, nomeadamente através da
noção de conhecimento por inclinação ou conaturalidade 24.
Acontece que neste momento dá-se uma novidade na estrutura hie-
rárquica das atividades cognitivas, em relação ao que fora estabelecido
anteriormente em diálogo com Platão, e o conhecimento intuitivo intelec-
tual não está apenas no termo da ascensão dialética de inteligibilidade,
porque é concebido também como originário e atemático e, nessa condi-
ção, como insuficiente para a aquisição de sabedoria e para a concretização
da felicidade, sendo necessário acrescentar um exercício racional que de-
duza por analogia as perfeições dessa causa primeira e absoluta intuída,
nomeadamente o seu carácter pessoal. Se na linha de Espinosa, a intuição
é um conhecimento de terceiro grau, superando o sensível e o racional
para situar a alma na felicidade e liberdade da presença sub specie aeter-
nitatis, na linha de Tomás de Aquino e de Leibniz significa a apreensão

23
Cf. ibidem, pp. 32-33.
24
Tomás de Aquino, Summa Theologica II-II, 45, a.2.
Samuel Dimas | 259

direta das primeiras e incertas verdades, exigindo uma ulterior justificação


lógica e analógica.
No mesmo sentido, e através de uma visão unitária e integral do ho-
mem, Jacques Maritain considera que este conhecimento por inclinação ou
conaturalidade, que revela a aspiração para o Absoluto, inclui a ação con-
junta da afetividade, vontade e inteligência, mas ainda no plano obscuro
da espiritualidade pré-consciente 25, o qual dará origem aos seguintes ní-
veis de conhecimento: a) por conaturalidade afetiva do tipo prático e
ético 26; b) por conaturalidade intelectual, devida ao habitus da especula-
ção 27; c) conhecimento poético ou por criação, em que se despertam as
profundidades criadoras do sujeito 28; d) conhecimento místico natural e
sobrenatural 29. A esta experiência espiritual atemática de ordem afetiva e
intuitiva, António Dias de Magalhães dá o nome de «estado saudoso» e
«sentimento espiritual» da contingência, que revela no «mais profundo
nível ôntico-psicológico de cognição por co-naturalidade», a aspiração
para a eternidade de Deus infinito 30, constituindo-se como «voz do amor
que une o espírito humano ao Espírito divino» 31.
Também Lima Vaz, em linha com a reflexão antropológica cristã me-
dieval de autores como São Tomás de Aquino e com a antropologia
contemporânea de autores como Bernard Lonergan, acolhe esta noção in-
terrogativa de desejo natural de um fim sobrenatural, que não depende da
vontade ou da educação, nem exige a graça 32, e afirma que a experiência
mística tem como condição a orientação ontológica para o Absoluto que

25
Cf. Jacques Maritain, L’intuition créatrice, dans lárt e la poésie, Paris, Desclée De Brouwer, 1966, p. 217.
26
Cf. idem, Quatre essais sur l'esprit dans sa condition charnelle, Paris, Desclée de Brouwer, 1939, pp. 128-129.
27
Cf. ibidem, p. 29.
28
Cf. ibidem, p. 135.
29
Cf. ibidem, p. 136-137.
30
António Dias de Magalhães, «Da História à Metafísica da Saudade», in Saudade e Ser, in Afonso Botelho e António
Braz Teixeira (organização), Filosofia da Saudade, Lisboa, INCM, 1986, p. 266.
31
Cf. ibidem, p. 270.
32
Cf. Bernard Lonergan, «The Natural Desire to See God», in Collection. Collected Works of Bernard Lonergan, vol
4, Toronto, University Press, 1988, p. 81.
260 | O que torna uma vida realizada: homenagem aos 100 anos de Henrique Cláudio de Lima Vaz

habita o espírito humano (potentia oboedentialis) 33. A experiência mística


ou mistérica cristã tem como fundamento a abertura natural do homem à
Graça (Homo capax Dei) ou a sua vocação natural ao Absoluto, porque
parte do pressuposto de que fomos criados à imagem e semelhança de
Deus: a inquietude do nosso coração é penetrada pelo apelo divino, incli-
nando-se na sua direção 34.
Assim, a experiência mística cristã apresenta-se com uma dupla di-
mensão: a) a radicalidade transcendental antepredicativa ou pré-lógica,
pela intuição ou visão instantânea da contraposição entre vida e morte no
desejo de eternidade e na sede de Absoluto 35; b) a elevação transpredica-
tiva ou trans-racional de caráter analógico, pela intuição ou visão
intelectual do Ser, não no sentido da absoluta compreensão dos seus fun-
damentos, só acessível ao espírito puro, mas no sentido amplo e metafísico
de abertura ao infinito, que oferece a evidência do conhecimento de Deus
como desconhecido ou Mistério, semelhança na maneira de ser só tradu-
zível de forma simbólica. Na condição finita da existência, o máximo que
se pode atingir é a satisfação analógica que se dá pela recepção no intelecto
de uma forma que tem alguma semelhança com o objeto a ser compreen-
dido, mas não plenamente (via affirmationis, via negationis e via
eminentiae). Não é possível ao intelecto finito do homem uma forma apro-
priada ao objeto infinito de Deus, pelo que lhe resta o paradoxo de um
desejo natural de conhecer que se amplia a Deus, mas cuja satisfação só
pode ser dada no plano sobrenatural e escatológico da visão beatífica 36.
Ora, é sobre a evidência obscura desta experiência originária e
primigénia, de direção e abertura ontológica para o Absoluto, que se
desenvolverá a racionalidade lógica e analógica e que atuará a graça
sobrenatural da fé, determinando e iluminando de forma aproximada e
simbólica a realidade transconceptual de Deus, através de conceitos

33
Cf. Henrique C. de Lima Vaz, Experiência mística e filosofia na tradição ocidental, p. 79.
34
Cf. ibidem, p. 82.
35
Cf. ibidem, p. 86.
36
Cf. Bernard Lonergan, «The Natural Desire to See God», in Collection. Collected Works of Bernard Lonergan, vol
4, p. 84.
Samuel Dimas | 261

transcendentais que não se identificam ou confundem com Ele, mas


indicam-nO em perspetiva 37. A experiência mística natural dá-nos a
evidência da nossa dependência contingente e do sentimento saudoso da
condição perfeita e eterna do Ser absoluto, mas só a experiência mística
sobrenatural nos diz que a Unidade plena a que aspiramos é Deus causa
primeira, e só a experiência mistérica natural e sobrenatural nos diz que
essa união é de comunhão com Deus pessoal criador e redentor, que se
manifesta e presentifica na história em Cristo e através da Graça do seu
Espírito Santo. A razão mistérica encerra a tripla dinâmica da unidade
entre o desejo natural de Deus, a razão natural que O reconhece
analogicamente como Ser absoluto transcendente e imanente, e a fé
sobrenatural que o revela como Mistério trinitário encarnado em Cristo.
Isto significa que a experiência mistérica não se reduz a uma mística
especulativa que concebe o divino no sentido formal e abstrato de Ideia ou
de Ser, não se reduz à vivência interior e subjetiva da consciência, mas
estende-se à dimensão objetiva do Mistério na mediação da iniciação reli-
giosa situada no tempo e no lugar e que, no caso da cultura cristã, inclui a
celebração sacramental e a instrução da palavra revelada num contexto
ritual e litúrgico. Esta experiência, na sua dimensão subjetiva, encerra uma
dimensão teodiceica e soteriológica, no sentido do desejo de uma comu-
nhão com o divino (homoíosis theo) que liberte o homem dos males da
vida ou o plenifique na glória da perfeição eterna. Quer no discurso filosó-
fico, quer no discurso religioso, o conhecimento assume um carácter
iniciático e constitui-se em meio de salvação (sôteria): para o filósofo, o
fim da iniciação mistérica pode ser apenas a visão da Verdade; para o reli-
gioso iniciado nos mistérios (mystes), como por exemplo nos mistérios de
Elêusis, o fim do percurso é a visão de deus (epoptía). Nesta dimensão
subjetiva, a experiência mistérica proporciona, não apenas o conheci-
mento de uma verdade superior divina, mas também a transformação do

37
Cf. Joaquim de Sousa Teixeira, «Teologia Filosófica e experiência transcendental», in AA. VV., Os Longos Caminhos
do Ser, Estudos dedicados ao Prof. Doutor Manuel Barbosa da Costa Freitas, Lisboa, Universidade Católica Editora,
2003, p. 690.
262 | O que torna uma vida realizada: homenagem aos 100 anos de Henrique Cláudio de Lima Vaz

iniciado pelo acolhimento do dom divino (theia moira) e pela presença in-
terior de deus (enthousiasmós), naquilo a que historicamente se apelida
de êxtase místico. Esta experiência, também presente na tradição cristã
pela introdução ou iniciação dos mistérios e pela recepção do Espírito
Santo, no batismo, já aparece no diálogo platónico do Fedro com a partilha
divina (theia moira) que possibilita uma forma superior de conhecimento,
culminando no eros filosófico 38.
Na dimensão objetiva desta experiência, o mystérion intuído na visão
final do mýstes apresenta-se como uma realidade inefável que pode ser
desvelada pela gnósis, mas não racionalizada, e que, no caso cristão, é re-
velada por iniciativa divina no abaixamento da Encarnação (kenose) e na
iluminação proporcionada pela descida do Espírito Santo (pentecostes)
após a ressurreição do Verbo incarnado. Na tradição grega, o conteúdo do
mystérion é o mýthos, quer no sentido do mito filosófico, quer no sentido
do mito religioso, mas na tradição cristã do apóstolo Paulo, o conteúdo do
mystérion é Deus revelado em Jesus Cristo. Desta maneira, a tradição re-
ligiosa cristã dá início a um processo de desmitificação, recusando a
identificação entre o humano e o divino no fim do processo iniciático e
afirmando a transcendência de Deus, cuja presença imanente na interiori-
dade do espírito humano apenas se dá pela mediação do Espírito Santo
através da mediação da fé em Cristo. A originalidade mistérica cristã, tra-
duz-se por essa vivência da sinergia entre o nosso espírito e o Espírito de
Deus, que São Paulo enuncia na expressão: «Já não sou eu que vivo, é
Cristo que vive em Mim» (Gl 2, 20).
O termo tà mystéria aparece nos Evangelhos Sinópticos (Mt 13, 11;
Mc 4, 11; Lc 8, 10) no sentido de realidades incompreensíveis ao entendi-
mento vulgar que não podem ser desveladas pelo simples esforço humano
(gnósis), mas que são reveladas pelo Espírito de Deus (1.ª Cor 2, 7-9). Mas
esta revelação não pode ser feita à margem da condição humana corpórea,
emocional e espiritual. Como salienta Lima Vaz, a experiência espiritual

38
Cf. Platão, Fedro, 244 a – 257.
Samuel Dimas | 263

cristã deste mistério é tematizada em torno de três categorias fundamen-


tais: batismo, ressurreição e vida nova 39. A verdadeira vida não é a do
nascimento biológico, mas a vida revelada e oferecida no mystérion de
Cristo pelo batismo. O mystérion anunciado é o desígnio de Deus oculto
deste todos os tempos e agora revelado na plenitude dos tempos (kairós)
em Cristo (Ef 3, 3-12) e no qual serão recapituladas todas as coisas (Ef 1,
10). O mistério objetivo de Cristo manifesta-se na vida, como esperança e
glória, daqueles que o recebem pela fé. Assim, nesta nova vida o mystérion
é sabedoria (sophia) ensinada pelo Espírito (pneuma), proporcionando
uma renovação interior ou espiritual (1 Cor 2, 6-11; Rm 12, 2) que culmina
no amor (ágape) da plenitude (pleroma) de Deus (Ef 3, 18-19).
O amor é a essência da vida do mistério de Deus revelada em Cristo,
a que todo o cristão é convidado a participar, pelo mistério do culto na vida
de fé e pela celebração dos sacramentos (mystéria). Aí, o cristão faz a ex-
periência da ação santificadora do Espírito de Deus, numa dimensão
transpsicológica (fé), que viria a ser tematizada na patrística por uma
forma específica de contemplação (theoria) de estrutura neoplatónica,
como acontece em Pseudo-Dionísio: o sacramento do batismo apresenta-
se como iniciação mistérica (mýesis) que é concluída com a theoria, ou
seja, com a contemplação do mystérion e com a sua celebração sacramen-
tal, de acordo com um modo de ser kairológico transnatural e meta-
histórico.

4. A experiência mistérica enquanto mediada historicamente pela


Palavra revelada da fé em Cristo

Assim, no contexto cristão, podemos concluir que é mistérico todo o


conhecimento das coisas divinas a que acedemos em Cristo, pela ação di-
reta do Espírito que habita na consciência humana e pela ação simbólica
sacramental. É um conhecimento do Mistério de Deus que é transcendente
ao conhecimento racional e discursivo e, por isso, incomunicável por uma

39
Cf. Henrique C. de Lima Vaz, Experiência mística e filosofia na tradição ocidental, p. 52.
264 | O que torna uma vida realizada: homenagem aos 100 anos de Henrique Cláudio de Lima Vaz

linguagem direta e imediata, exigindo o recurso ao símbolo e à metáfora.


Mas, ao mesmo tempo, é um conhecimento do Mistério de Deus que é
imanente ao homem. Como refere Angela Ales Bello, a noção de Deus é
vivida na interioridade do eu como transcendente, porque imanência e
transcendência são momentos correlacionados e não excludentes, mas
face à limitação humana a noção de Deus não esgota a realidade de Deus
que tudo excede 40.
A experiência mística ou mistérica é um conhecimento supra-racio-
nal e afetivo universal, que se encontra nas mais diversas tradições
culturais e religiosas, porque o desejo incoercível de comunicar com o ab-
soluto é ontológico e inerente à condição humana. Mas divide-se em duas
expressões fundamentais: a) de tendência monista e panteísta, específica
das culturas e religiões que aspiram a uma identificação imediata da alma
com o Absoluto divino oculto e inefável no ser de todas as coisas (imanên-
cia); b) de tendência pluralista e teísta, própria as tradições culturais que
defendem a alteridade ontológica entre o Ser e os seres, em que a experi-
ência profunda e contemplativa de si mesmo ou da natureza significa
apenas um meio preparatório para essa união fruitiva, cuja comunhão
plena e definitiva, apenas de dará na condição escatológica meta-histórica
(transcendência e imanência). A comunicação da experiência mistérica e
indizível de Deus, na ordem noético-emocional atemática e antepredica-
tiva do desejo de Absoluto e na ordem noético-emocional analógica e
transpredicativa da intuição do ser de Deus e da fé na sua revelação pessoal
sobrenatural, implica o recurso ao paradoxo e oxímero que abrem cami-
nho ao silêncio e permitem exceder os limites empíricos do Mundo e do já
dito ou constituído.
No nosso entender, a experiência mistérica cristã encerra uma tripla
dimensão metafísica: a) atemática e antepredicativa no estremecimento
estético e espiritual da vida e no desejo natural do Absoluto infinito e
eterno (indiferenciação mítica de teor panteísta ou politeísta); b) temática
e predicativa na exigência especulativa e conceptual da teoria ontológico-

40
Cf. Angela Ales Bello, Edmund Husserl, pensar Deus, crer Deus, São Paulo, Paulus, 2016, p. 107.
Samuel Dimas | 265

teológica (diferenciação lógica de teor deísta); c) transpredicativa e trans-


conceptual pela compreensão analógica e pela escuta pística e amorosa da
palavra revelada de Deus pessoal (compreensão analógica e revelacional
de teor teísta). As duas primeiras dimensões são comuns a qualquer expe-
riência espiritual estética, filosófica e teológica, com destaque para o
ressurgimento espiritual do idealismo romântico, a terceira dimensão é
especificamente cristã, por acrescentar a fé na graça espiritual de Deus
pessoal revelado em Cristo pela ação do Espírito Santo, mas inclui as duas
anteriores como condições universais dos seres criados livres com facul-
dades afetiva, racional, e volitiva.
Lima Vaz institui uma outra ordem estrutural e identifica três géne-
ros distintos de experiência mística: a que corresponde à primeira
dimensão sobre a aspiração à divinização, dá-lhe o nome de «mística mis-
térica» (theíosis); a que corresponde à segunda dimensão sobre a
contemplação e o conhecimento teórico, apelida-a de «mística especula-
tiva» (gnosis ou theoria); e a que corresponde à terceira dimensão sobre
a adesão à fé revelada, chama-a de «mística profética» (pístis e agape) 41,
no sentido de uma hermenêutica espiritual da revelação do Logos que é
fruto da ação do pneuma divino: «A mística profética pode ser assim con-
siderada como fruto amadurecido da ação transformante da Palavra de
Deus no espírito daquele que recebe essa Palavra pela Fé e que, pelo Ba-
tismo, renasce a uma vida nova» 42. Assim, de maneira semelhante,
concebe que a mística profética assume e eleva as místicas mistérica e es-
peculativa, como nós concebemos que a racionalidade analógica e a
iluminação da graça (terceira dimensão) assumem a intuição atemática do
mistério divino (primeira dimensão), depurando-a dos deísmos e panteís-
mos pela exigência da clarificação lógica (segunda dimensão). A
participação na sabedoria divina pela Revelação, como dom do Espírito,
cuja ação se exerce eclesialmente e sacramentalmente, permite-nos con-
ceber a relação com o mistério sagrado, vivida espontaneamente na

41
Cf. ibidem, p. 57.
42
Ibidem, p. 58.
266 | O que torna uma vida realizada: homenagem aos 100 anos de Henrique Cláudio de Lima Vaz

primeira dimensão, no sentido pessoal pela mediação de Cristo que se pre-


sentifica em nós como esperança da glória (Cl 1, 27-28).
Não precisamos de ser religiosos confessionais e cristãos para viver-
mos a experiência mística dos panteísmos míticos e filosóficos, mas para
vivermos a experiência mistérica da relação analógica e pessoal com a di-
vindade, precisamos da mediação religiosa e filosófico-teológica do teísmo,
que se estrutura na dupla dimensão da Palavra como anúncio e do Mistério
como realidade insondável do que é anunciado, pelo conhecimento e pelo
amor. A experiência mistérica, no seu terceiro momento de afirmação te-
ísta, desenvolve-se de forma cristã pela participação da fé na oração e na
contemplação de Deus em Cristo e comunica-se de forma metafísica e me-
tafórica ou alegórica, porque a evidência da Sua verdade permanece oculta
e inefável. A experiência de fé no mistério insondável da sabedoria divina
é um dom informado pela caridade, e cuja visão é traduzida por São João
da Cruz com a expressão «noite escura», referindo-se a um itinerário es-
piritual que, como também concorda Lima Vaz só, na visão beatífica
encontra a iluminação definitiva 43.
A experiência cristã do Mistério de Deus, de modo distinto de outras
experiências espirituais e religiosas, é feita de forma individual e de forma
eclesial, pela mediação da Palavra recebida historicamente na Fé e pela
mediação do mistério da contemplação em Jesus Cristo. A mediação única
do mistério de Cristo encerra três aspetos fundamentais. Em primeiro lu-
gar, a mediação criatural, que recusa a união com Deus pela indiferenciada
identidade e insere o homem na condição de dependência Daquele em que
todas as coisas foram criadas (Cl 1, 16). O Mistério insondável e infinito é
mediatizado pelo verbo encarnado de Cristo que é símbolo ou imagem de
Deus invisível (Cl 1, 15). Deus criou o mundo e fez refulgir nos corações
dos homens a sua luz, levando-o a reconhecer que todas as criaturas vão
na direção do seu infinito Amor. Em segundo lugar, a mediação da graça
enquanto mediação da fé. A experiência espiritual cristã é ao mesmo
tempo revelação e ocultamento, pelo que o desejo do homem em se unir a

43
Cf. ibidem, p. 62.
Samuel Dimas | 267

Deus de forma plena e definitiva só é satisfeito na visão beatífica. Em ter-


ceiro lugar, a mediação histórica do tempo da vida de Jesus e do itinerário
de santificação, numa orientação escatológica essencial para a eternidade,
que que vai da Criação à Parusia. A graça constitui a presença no tempo
da eternidade e conduz o homem para a contemplação do Mistério.
Considera Lima Vaz que este espaço espiritual do Mistério da revela-
ção de Deus em Cristo é circunscrito por três dimensões: iluminação;
união e efusão. A contemplação é conhecimento (iluminação) e amor
(união) que se traduz em ação e serviço (efusão), num movimento de tran-
sição da iluminação da fé, representado nos dogmas, símbolos e teologia,
para o claro-obscuro de um conhecimento intuitivo e fruitivo de Deus
como verdade primeira que exige a ação da caridade. Em diálogo com To-
más de Aquino, entende que o Espírito Santo opera nessa iluminação
contemplativa, que tem a forma mais elevada no conhecimento por cona-
turalidade, pelo dom da inteligência supra-racional que corresponde à
virtude teologal da fé 44.
Ou seja, a experiência atemática do mistério da existência e do desejo
de imortalidade (primeira dimensão) já é possibilitada pela ação do Espí-
rito, embora o homem só o reconheça pela iluminação teológica da
racionalidade analógica e da trans-cracionalidade da fé revelada (terceira
dimensão). Se a iluminação pertence à ordem do conhecimento, a união
concretiza-se na ordem do amor e corresponde à virtude teologal da cari-
dade e que é representada por autores como São João da Cruz e Santa
Teresa pela noção de «mística nupcial». Por fim a contemplação trans-
borda da sua plenitude de união divina para se tornar em princípio de ação
(efusão) no serviço ao próximo. Atingimos a dimensão teísta da experiên-
cia mistérica, na união fruitiva com o mistério de Deus pela mediação
interpessoal e eclesial do espírito de Cristo, quando somos impelidos à prá-
tica da justiça, ao serviço do bem comum e ao serviço de educação amorosa
do próximo.

44
Cf. ibidem, p. 71.
268 | O que torna uma vida realizada: homenagem aos 100 anos de Henrique Cláudio de Lima Vaz

Esta noção que já está presente na alegoria da caverna de Platão, em


que aquele que se liberta e atinge a luz da verdade e do bem é impelido a
regressar às trevas para libertar os companheiros da escravatura da igno-
rância e do mal, adquire na experiência cristã um significado salvífico que
não se centra no esforço gnóstico e na fuga do mundo sensível e corpóreo,
mas centra-se na gratuita iniciativa divina que se revela e envia a graça do
seu Espírito e fundamenta-se na noção de plenificação ou consumação de
todas as criaturas em Deus. Pela experiência mistérica, desenvolve-se uma
superação dos monismos e dualismos que se traduz na procura de Deus,
não na sua imanente degradação emanativa ou na sua transcendente uni-
dade indeterminada e inacessível, mas sim na correlação paradoxal e
analógica da sua transcendência absoluta e da sua imanência radical na
presença fontal de todas as coisas e no mais íntimo do espírito humano,
pela mediação da criação de Deus Pai, da revelação histórica de Cristo filho
e da graça do Espírito Santo.

Referências

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Capítulo 15

A questão de uma referência última nos atos supremos


do existir próprio do ser humano em Lima Vaz

Marcelo F. de Aquino 1

1. A ordem sistemática do discurso lima vaziano na Antropologia


Filosófica

1.1. Lima Vaz expõe nos dois volumes de sua Antropologia Filosófica
um roteiro dialético cujo procedimento sistemático fundamental é o de co-
ordenar a Natureza, o Sujeito e a Forma como núcleos inteligíveis
fundamentais que definem o espaço de compreensão do ser humano na
ordem sistemática do discurso. O sintagma ordem sistemática do discurso
é um bom ponto de partida para ele afirmar o discurso como lógon didó-
nai: ação de dar ou negar razão de algo ou de alguém por parte de um
sujeito. Ordem e sistema são duas categorias de extração metafísica que
ele, fundindo-as, agrega à ação discursiva. Vale lembrar a procedência pla-
tônica e aristotélica da categoria táxis (ordem) com sua respectiva
assimilação agostiniana e tomásica, e a raiz moderna renascimental, ou
seja, suareziana, da categoria sistema que acelerou a transformação da
metafísica no marco referencial teórico da razão hipotético-dedutiva. Cabe
ao procedimento sistemático fundamental da Antropologia Filosófica lima
vaziana coordenar aqueles três núcleos, sem que a ordem sistemática do
discurso se desequilibre em favor de um deles, pois quando um desses nú-
cleos passa a ser privilegiado e a determinar uma direção própria na

1
S.J
272 | O que torna uma vida realizada: homenagem aos 100 anos de Henrique Cláudio de Lima Vaz

ordem do discurso da compreensão do ser humano corre-se o risco de al-


guma forma de reducionismo.
Essa ordem sistemática do discurso, ou seja, o encadeamento dialé-
tico entre Natureza e Forma mediado pelo Sujeito, provavelmente se
inspira no segundo silogismo da arquitetônica do Espírito Absoluto ex-
posto por Hegel na Enciclopédia de 1830. Sua leitura pode ser feita em
duas chaves interpretativas. A primeira corresponde à ordem da inteligi-
bilidade para-nós (ordem da constituição das categorias). Procede
segundo a seriação das categorias e das regiões categoriais onde vigora a
lei da Aufhebung (suprassunção segundo a tradução de Paulo Menezes). A
segunda corresponde à ordem da inteligibilidade em-si (ordem da funda-
mentação das categorias). Acompanha os níveis conceptuais que
exprimem os princípios primeiros constitutivos do ser, essência e existên-
cia. Não é demais sugerir certa inspiração dos estudos eruditos de Joseph
Gauvin sobre a Fenomenologia do Espírito de Hegel nessa dialética do
para-nós (für uns) e do em-si (an sich) no pensamento lima vaziano.
Na primeira ordem de leitura, a lei da Aufhebung aplica-se tanto no
plano intercategorial como no plano inter-regional. Na segunda ordem de
leitura, prevalece a oposição fundamental entre essência e existência, en-
tendidas aqui como momentos lógicos do movimento dialético da
automanifestação com que o ser humano se constitui e se exprime como
ser. Nesse roteiro dialético antropológico-filosófico, a essência é pensada
como momento da manifestação do que o ser humano é nos seus consti-
tutivos ontológicos fundamentais, ou seja, na sua estrutura e nas suas
relações. A existência é o momento da manifestação do que o ser humano
efetivamente se torna na sua realização.
Lima Vaz pensa o ser humano como movimento incessante de medi-
ação entre o ser que é simplesmente e o ser que se significa. Pensa-o como
expressividade, seja no plano da sua estrutura (ser-em-si), seja no plano
das suas relações (ser-para-outro). Mediante a dialética da identidade e da
diferença, ele desenha e articula cadeia ordenada de mediações da inteli-
gibilidade para-nós e da inteligibilidade em-si, pelas quais o ser humano
Marcelo F. de Aquino | 273

se exprime como estrutura e relações. Segundo a análise lima vaziana, as


categorias corpo próprio, psiquismo e espírito, por um lado, e objetividade,
intersubjetividade e transcendência, por outro lado, são formas ou expres-
sões dialeticamente opostas, respectivamente, das regiões categoriais do
ser-em-si e do ser-para-outro do sujeito ontológico.
A ordem sistemática do discurso da Antropologia Filosófica manifesta
singular peculiaridade lógica ao atingir as categorias de espírito e de rela-
ção de transcendência. Graças à racionalidade analógica o discurso
dialético lima vaziano transgride os limites eidéticos destas duas categorias
traçados segundo a finitude e a situação do sujeito. Apresenta uma curva
que manifesta uma singularidade na ordem sistemática do discurso antro-
pológico-filosófico e que consiste na ruptura da univocidade do discurso
que vige nas categorias de corpo próprio, psiquismo, objetividade e inter-
subjetividade. Trata-se da ruptura da finitude categorial pela infinitude
transcendental. O espírito e a relação de transcendência são unívocos com
as categorias, respectivamente, de corpo próprio e psiquismo e de objeti-
vidade e intersubjetividade. Pelo seu terminus ad quem elas penetram no
domínio lógico da analogia.
1.2. O espírito e o terminus ad quem da relação de transcendência
irrompem como domínio semântico em que Lima Vaz propõe-se superar
o interdito kantiano ao em-si do Absoluto no âmbito do cognoscível e sua
redução a cimo ideal do pensável na arquitetônica da Razão pura, e o re-
ducionismo das implacáveis suspeitas ou críticas de um Feuerbach, de um
Marx, de um Nietzsche ou de um Freud.
A dialética que rege o discurso da Antropologia Filosófica nas catego-
rias espírito e relação de transcendência desencadeia uma inversão da
aplicação da limitação eidética e da ilimitação tética ao dinamismo do Eu
sou. Apesar de Lima Vaz falar de inversão, seria mais adequado falar de
inversão da inversão do vetor intencional próprio da Metafísica da subje-
tividade direcionado para o Eu cognoscente. A partir dessa inversão da
inversão a reflexão lima vaziana dá um passo para frente, no sentido da
274 | O que torna uma vida realizada: homenagem aos 100 anos de Henrique Cláudio de Lima Vaz

plenitude de inteligibilidade do próton noetón para o qual se orienta o ve-


tor intencional do conhecimento humano, que para Lima Vaz é o Absoluto
existencial, Deus.
O espírito é uma noção analógica correlativa ou ordenada à univer-
salidade do Ser, que é logicamente convertível com o Verdadeiro e o Bem
que, por sua vez, são pensados como Presença do Ser infinito (Deus) no
espírito finito. A transcendência do Verdadeiro e do Bem graças à dialética
da identidade na diferença não é uma relação de exterioridade, isto é, re-
lação do finito com o finito. Se por um lado implica a finitude do espírito,
por outro lado se compõe com a imanência mais profunda do Infinito no
finito. A abertura e a inclinação para o Verdadeiro e o Bem no ser humano,
espírito finito, são transcendentais porque constitutivas da sua essência.
Essa é a raiz da dualidade estrutural que se manifesta no espírito finito
entre Inteligência/Razão (noûs/intellectus/Vernunft) e Entendimento (di-
ánoia/ratio/Verstand) e entre Liberdade e Livre-Arbítrio. Razão e
Liberdade são os constitutivos da estrutura ontológica do espírito finito.
Com a noção de espírito em sua irredutibilidade ao somático e ao psí-
quico Lima Vaz dá início à conceptualização filosófica do excesso de
inteligibilidade ou superabundância ontológica pela qual o ser humano se
sobrepõe ao mundo. Avança além do ser-no-mundo do espírito finito, em
busca do fundamento último primordial que constitua o Eu sou. Uma in-
versão da articulação da limitação eidética e da ilimitação tética começa a
modelar a dialética do espírito. Cabe à ilimitação tética do sujeito que se
afirma como espírito a prioridade de pôr-se na infinidade que decorre de
sua homologia com o ser. A sentença “o ser humano é espírito” significa
sua abertura transcendental à universalidade do Ser segundo o duplo mo-
vimento do acolhimento e do dom, da Razão e da Liberdade. A denotação
da finitude do ser humano como ser entre os seres, ou ser situado, decorre
de que a universalidade do espírito no ser humano é uma universalidade
intencional. A abertura transcendental ao horizonte universal do Ser,
como Verdade e Bem, impõe ao ser humano a tarefa da sua autorrealiza-
ção segundo as normas dessa universalidade.
Marcelo F. de Aquino | 275

1.3. A expressão da relação de transcendência denota, como já acon-


tecera na categoria do espírito, a ruptura da linha de univocidade nas
categorias do discurso antropológico, ou seja, a ruptura da finitude cate-
gorial pela infinitude transcendental. No seu momento eidético, a relação
de transcendência é constituída pela oposição dialética entre o finito e o
infinito. Trata-se de suprassumir dialeticamente a oposição entre finitude
e infinitude na unidade do ser humano como exigência que se impõe à
ordem sistemática do discurso da Antropologia Filosófica, e contra a qual
se elevam as diversas formas de reducionismo.
Essa suprassunção é possível porque o momento tético na posição da
relação de transcendência pelos sujeitos finitos e situados somente se cum-
pre com a inversão do sentido do seu vetor ontológico. Inversão no que diz
respeito à aplicação dos princípios de limitação eidética e de ilimitação té-
tica ao dinamismo do Eu sou. O sujeito situado na exterioridade do mundo
e da história é, ao mesmo tempo, aberto interiormente à universalidade
do Ser
Lima Vaz conceitua a relação de transcendência como constitutivo
ontológico do ser humano, portanto como categoria antropológico-filosó-
fica que se desenvolve no âmbito da inteligência espiritual como órgão
adequado para exprimir o Absoluto para-nós, e descobre a descontinui-
dade entre o sensível e o inteligível, o que torna possível o método da
proporção ou analogia que permite a expressão do em-si do Absoluto
como Ideia e como Existência, que não pode ser pensado, por definição,
segundo uma relação real ad extra. O sujeito da relação de transcendência
é uma abertura intencional à infinitude do Ser. A relação de transcendên-
cia do ser humano para com o Absoluto é uma relação não recíproca do
Absoluto ao ser humano. A não reciprocidade na relação de transcendên-
cia, segundo a análise lima vaziana, significa que o sujeito nem põe o objeto
para-si como o que se oferece ao seu fazer, como é o caso na relação de
objetividade, nem se põe diante do outro na reciprocidade do agir como
no caso da relação de intersubjetividade. O sujeito é posto na sua situação
276 | O que torna uma vida realizada: homenagem aos 100 anos de Henrique Cláudio de Lima Vaz

de sujeito finito pela superabundância e pela infinita generosidade ontoló-


gica do Absoluto.
Ao avançar até a posição (thesis) do Absoluto no conceito analógico,
enunciando-o como transcendente à sua razão finita, o sujeito, na verdade,
é posto pelo Absoluto imanente ao mais profundo ádito do seu ser, onde
brota a pegé (fonte, ver Fedro 245 c) do espírito, da qual fluem a inteligên-
cia e a liberdade para confluírem como inteligência espiritual e amor
espiritual no movimento de elevação para a transcendência. Nesse hori-
zonte de abertura, em que o sujeito é posto pelo Absoluto, o pensamento
pensa o Absoluto transcendente como Absoluto formal: Ser, Verdade,
Bem; e como Absoluto existencial: Deus.
A inversão da limitação eidética e da ilimitação tética rege o movi-
mento dialético que conduz o discurso à compreensão filosófica da
categoria de relação de transcendência, abrindo passagem às categorias da
unidade, que deverão levar o discurso a seu termo na categoria de pessoa.
Essa inversão permitirá a síntese das categorias de estrutura e relações. A
essência do ser humano, no domínio do ser-em-si da estrutura e do ser-
para-outro da relação, assegura a unidade indivisa do seu ser e a distinção
que o faz ser entre os seres. O movimento da autorrealização que se ex-
prime na sua autoafirmação como sujeito desenrola-se no domínio do ser-
para-si propriamente dito, isto é, da sua reflexividade essencial.
1.4. A categoria de realização assinala a entrada da dialética que rege
o discurso no domínio da existência propriamente dita, operando a síntese
dinâmica entre as categorias de estrutura e de relação. O ser-em-si da es-
trutura e o ser-para-outro da relação são suprassumidos no ser-para-si da
realização na conquista, pelo sujeito, da unidade que ele é como essência,
mas que deve tornar-se como existência. Nesse nível do discurso a Antro-
pologia Filosófica e a Ética se tangenciam.
A ordem sistemática do discurso lima vaziano alcança outro patamar
de inteligibilidade com a unificação no ser humano das formas da sua au-
toexpressão na dialética da ipseidade (identidade da sua presença a si
mesmo) e alteridade (sua diferença do outro do qual se distingue, mas com
Marcelo F. de Aquino | 277

o qual necessariamente se relaciona como finito e situado). A ipseidade


definindo-o como ser-para-si; a alteridade, como ser-para-outro. Em am-
bas o outro está presente tanto como em-si, lugar ontológico da situação e
da finitude do ser humano, e ao qual ele está necessariamente referido,
como na constituição do para-si da sua estrutura nas formas para-o-outro
do seu ser relativo. Vale lembrar que na ontologia dialética de Hegel “eu
sou o outro de mim mesmo”.
A formulação do problema da realização do ser humano diz respeito
à oposição primordial entre Ser e Devir, que penetra no âmago da consti-
tuição ontológica do ser humano. No discurso antropológico-filosófico, ela
se formula como oposição entre a primazia a ser atribuída à essência ou à
existência, à natureza ou à condição, à estrutura ou à situação. A realização
se mostra, portanto, como passagem do ser que é ao ser que se torna ele
mesmo pela negação dialética do outro no ativo relacionar-se com ele, o
que implica a suprassunção do outro no desdobrar-se da unidade funda-
mental. Aqui Lima Vaz se inspira na dialética platônica do autós (mesmo)
e do éteron (outro), da stásis (repouso) e da kínesis (movimento) no seu
entrelaçamento no ser para a formação da mais elementar rede conceptual
para compreender filosoficamente a realização humana. No domínio da
categoria da realização humana, a dialética que rege o discurso da Antro-
pologia Filosófica conhece inversão análoga à que se manifestara nas
categorias de espírito e de transcendência no que diz respeito à aplicação
dos princípios de limitação eidética e de ilimitação tética ao dinamismo do
Eu sou.
A racionalidade analógica refere o conteúdo do eidos da realização
humana ao absoluto da Verdade, do Bem e da Existência. Nessa referência,
o vetor ontológico da ilimitação tética que tem origem no sujeito, e extre-
midade na infinitude intencional do ser-mais como horizonte do seu fazer
(operar poiético) e do seu agir (operar prático), vê no horizonte da teoria
(operar teórico), invertido o seu sentido na acepção de que a ponta ex-
trema do movimento da realização humana na ordem da teoria não
procede da posição (thésis) do Eu sou ou do seu dinamismo imanente. É
278 | O que torna uma vida realizada: homenagem aos 100 anos de Henrique Cláudio de Lima Vaz

posta pelo Absoluto ao qual o sujeito constitutivamente se refere (relação


de transcendência) nos atos supremos do existir humano: conhecer a Ver-
dade, consentir ao Bem, reconhecer no Absoluto de existência a fonte
primeira da Verdade e do Bem.
Na categoria de realização são mostrados os caminhos, mediante os
quais a unidade estrutural do ser humano se cumpre efetivamente nas
formas de relação com que se abre às grandes regiões do Ser que circuns-
crevem o lugar ontológico da sua situação e da sua finitude. Mediante a
categoria de realização, a dialética que rege o discurso lima vaziano da An-
tropologia Filosófica opera a síntese dinâmica entre as categorias de
estrutura e relação. A dialética interna da realização é a da unificação da
essência, ou seja, do ser humano como expressividade, na ordem da exis-
tência ou do ser humano como expressão atual do seu próprio ser. Ela
assinala a entrada da dialética que rege o discurso no domínio da existên-
cia propriamente dito. A ordem da existência é a ordem da realização
humana, conservando, porém, a aporia da tensão entre essência e existên-
cia.
A realização humana é uma forma original da dialética do autós
(mesmo) e do éteron (outro) que unifica no ser humano as formas da sua
autoexpressão como ipseidade e como alteridade. Aquelas definindo-o
como ser-para-si; estas, como ser-para-outro. A realização não é senão a
efetivação existencial do paradoxo segundo o qual o ser humano se torna
ele mesmo na sua abertura constitutiva ao outro. Abertura atravessada
pelo apelo a uma generosidade no dom de si mesmo. Generosidade meta-
física que é signo de que não podemos realizar-nos a nós mesmos senão
como seres abertos à infinitude do Ser.
Com a submissão da categoria de realização ao princípio da
totalização, a ordem sistemática do discurso antropológico-filosófico lima
vaziano, chega ao limiar da afirmação da igualdade inteligível entre o Eu
no movimento da sua automanifestação (=sujeito) e a manifestação do Ser
na ordem das categorias encadeadas pelo discurso. O discurso lima
vaziano, que restitui a primazia da inteligibilidade em-si do sujeito (o
Marcelo F. de Aquino | 279

sujeito afirmado como ser) que ao longo do discurso se desdobrara como


inteligibilidade para-nós, afirma essa igualdade inteligível na categoria de
pessoa. A inteligibilidade em-si tornou possível o discurso. Agora se
mostra como seu verdadeiro Princípio, tendo demonstrado dialeticamente
seu Fim.

2. O programa sistemático dialético-especulativo lima vaziano


em Raízes da Modernidade

2.1. Lima Vaz em Escritos de Filosofia VII - Raízes da Modernidade,


põe-se a questão da constituição de uma forma de pensamento que discuta
tanto a substituição da primazia da inteligibilidade da essência do arqué-
tipo eternista do pensamento antigo pela primazia da inteligibilidade da
existência do arquétipo criacionista das teologias monoteístas, quanto a
substituição da inteligibilidade da existência pela inteligibilidade do mo-
delo ontoteológico (on = ser, theós = deus) moderno, que encerra a
totalidade do Ser na univocidade do sistema do ens commune (ser en-
quanto ser). As raízes desse processo, que caracteriza a transição do século
XIII para os séculos XIV e XV, se encontrariam no retraimento da metafí-
sica tomásica do esse, no aparecimento da metafísica scotista da
univocidade do ser e, posteriormente, na reviravolta noético-epistemoló-
gica desencadeada pelo nominalismo tardo-medieval de Ockham e,
finalmente, na nova compreensão da metafísica como sistema na obra de
Francisco Suarez .
Segundo Lima Vaz, a metafísica do esse de Tomás de Aquino medi-
ante sua estrutura analógica orienta-se para a transcendência do Ipsum
Esse Subsistens integrando ao seu edifício agostiniano-aristotélico o exem-
plarismo das ideias, pedra fundamental do platonismo agostiniano
medieval. A inversão do regime do conhecimento, no caso de Duns Scotus,
confere primazia à representação e submete a ela a face objetiva – o ser –
do objeto conhecido. Esta passagem de um regime noético-especulativo
para outro desencadeia a destruição da metafísica tomásica do esse. Nova
280 | O que torna uma vida realizada: homenagem aos 100 anos de Henrique Cláudio de Lima Vaz

figura da metafísica passa a se organizar em torno do conceito unívoco do


ser. Por sua vez, a destruição da destruição da concepção tomásica de me-
tafísica anteriormente efetuada pela metafísica scotista levada a cabo por
Ockham, obriga esse último a traçar as primeiras linhas do desenho da
teoria do conhecimento e da ontologia sem recorrer à teoria do exempla-
rismo, o que passa a orientar a evolução tardo-medieval e moderna da
metafísica. Suarez reestrutura profundamente o universo simbólico da fi-
losofia no plano metodológico, conferindo uma estrutura sistemática ao
pensamento metafísico. As Disputationes Metaphysicae são, com justiça, o
lugar histórico do marco inaugural da ideia moderna de sistema.
Na 4ª parte do seu Discurso do Método, Descartes reconhece a pri-
mazia da vertente operacional da razão que se torna instrumento
privilegiado da atividade poiética do sujeito, tanto na própria construção
da ciência como na produção de objetos. O vetor ontológico da razão ope-
racional aponta para a imanência da representação. O postulado noético
fundamental de que a razão conhece a realidade na representação da ideia
objetiva como termo intencional do ato do conhecimento estabelece a pri-
mazia da razão operacional. Lima Vaz interpreta o sum do Cogito de
Descartes como expressão da inteligibilidade radical do existir do sujeito
pensante, confirmada pela autorreflexão do sujeito sob sua própria exis-
tência. Essa é uma das significações epocais do Cogito cartesiano e o
desígnio da Metafísica da subjetividade, que guia eficazmente, mas de ma-
neira invisível, os destinos da modernidade pós-renascimental.
A trilha seguida pela metafísica tardo-medieval nos albores da
modernidade a partir do modelo ontoteológico scotista, conforme análise
de Lima Vaz, tem como ponto de chegada a moderna Metafísica da
subjetividade. Ele reflete sobre as implicações metafísicas e teológicas do
aparecimento do Eu na sua estrutura conceptual transcendental como
categoria simbólica matricial do universo simbólico da própria
modernidade. Avança até a substituição levada a cabo por Kant da
instância teonômica do Esse como fonte de inteligibilidade da existência
segundo o modelo criacionista, pela instância antroponômica do sujeito
Marcelo F. de Aquino | 281

transcendental. Desenha atenta hermenêutica do método dialético-


especulativo exposto na Fenomenologia do Espírito de 1807, na 2ª edição
da Ciência da Lógica e na 3ª edição da Enciclopédia das Ciências Filosóficas
de Hegel. A discussão lima vaziana com a exposição hegeliana em sua
desafiadora complexidade subjaz no itinerário lógico-dialético lima
vaziano. É oportuno lembrar que o cerne e a aporia mais desafiadora da
Ética hegeliana está na sua transposição filosófica no conceito moderno de
subjetividade, em que a autárqueia do ser humano se manifesta na
capacidade do seu operari voltado para a transformação do seu mundo.
Com outras palavras, a primazia é definitivamente conferida à vida ativa
sobre a vida contemplativa, à práxis sobre a theoría. Cabe referir que o
conceito de práxis, a partir do empirismo inglês, acaba por se fundir com
o conceito de põiesis, o agir com o fazer.
Lima Vaz se empenha em complexo diálogo com a razão científico-
operacional, ou razão instrumental, que vem substituindo a razão teleoló-
gica como forma inteligível dos modelos de formas de vida que
prevaleceram ao longo da tradição ocidental, e que parecem estar per-
dendo qualquer exemplaridade efetiva aos olhos do ser humano
contemporâneo. A imensa tarefa teórica de erigir o sujeito humano, con-
tingente e finito, em demiurgo de toda inteligibilidade é a tarefa que o
programa da modernidade pós-renascimental impõe à filosofia. O propó-
sito de construção de um Absoluto no interior do próprio devir histórico
do que, mais tarde, Lima Vaz chamará de modernidade pós-cristã tem seu
núcleo teórico mais robusto nesse programa. A construção de um Absoluto
que se exterioriza no movimento mesmo que o constitui torna-se, na Her-
menêutica vaziana da modernidade pós-cristã, o problema fonte de todos
os grandes problemas da filosofia moderna.
O programa sistemático da razão instrumental está intrinsicamente
ligado ao agir humano agora capturado pela poíesis fabricadora em seu
uso operacional. Tem por propósito a plena reinscrição teórica e operaci-
onal do universo, da vida, do ser humano e das suas condutas nos códigos
das múltiplas racionalidades em que a razão moderna se multiplica. Para
282 | O que torna uma vida realizada: homenagem aos 100 anos de Henrique Cláudio de Lima Vaz

tanto, ela observa, estabelece normas, formula hipóteses, enuncia teorias,


verifica leis, propõe modelos, simula sanções, mede e calcula, rege a pro-
dução de objetos. Este programa, por um lado aferido pela sua eficácia na
produção de objetos, persegue uma universalidade aritmética ou, numa
perspectiva mais contemporânea, algorítmica, resultante da igualdade nu-
mérica em que o modelo matematicamente programado se repetiria em
série. Por outro lado, considerado a partir da categoria de universo cultural
consagra, de modo muitas vezes dramático, a fragmentação do ideal de
realização do ser humano. O ser pluriversal é novo campo temático que
reflete a fragmentação dos modelos de vida humana na pluralidade dos
universos culturais.
O todo social eclode em nova formação para além da sociedade de
ordens e da sociedade de classes, organizando-se como uma constelação
de universos culturais como o da profissão, da pesquisa científica, da pro-
dução, da política, regidos por leis próprias de constituição e evolução. São
dotados de uma racionalidade formal própria e de uma racionalidade ide-
ológica em que se alinham as razões que legitimam socialmente o universo
cultural e o mostram como campo onde pode desenvolver-se uma forma
de realização humana socialmente reconhecida. Eles exercem influência
na vida dos indivíduos na medida em que esses universos culturais se fa-
zem presentes no campo das opções subjetivas em torno das formas de
vida ou dos ideais de realização humana que se apresentam a cada um.
2.2. Para fazer frente a esse programa sistemático em seu encadea-
mento lógico-dialético, Lima Vaz revisita a Metafísica do esse de Tomás de
Aquino. Tangencia sua releitura da Metafísica tomásica da existência com
Hegel em busca de uma instância última de inteligibilidade, por ele con-
ceituada inteligibilidade radical, a qual referir a dualidade Uno e Múltiplo.
Com outras palavras, que seja capaz de dar razão do fundamento causal
do Múltiplo (dimensão metafísica) e da sua intrínseca estrutura inteligível
(dimensão ontológica). Recorre à leitura tomásica da versão greco-latina
de Êxodo 3,14 em que Deus se autonomeia como Eu sou o que sou, e à
Marcelo F. de Aquino | 283

tradição neoplatônica do infinitivo substantivado einai como fontes da me-


tafísica tomásica do esse.
O esse ou a existência é efeito próprio ou exclusivo da Causa Primeira
como Ipsum Esse Subsistens. Nele se unificam os níveis constitutivos do
ser: subjectum, essentia, esse, em que o próprio ato de existir apresenta-
se como próton noetón: núcleo mais e fonte primeira de inteligibilidade do
real, que atinge as articulações inteligíveis elementares da interrogação so-
bre a Causa Essendi, situando o dilema do Uno e do Múltiplo em seu nível
metafísico mais, ou seja, no plano da inteligibilidade radical do esse. É
neste plano que Lima Vaz pensa o Princípio Criador como Ipsum Esse Sub-
sistens (Existir Absoluto) e a constituição intrínseca do Múltiplo enquanto
finito.
O esse, ou seja, o ato de existir é o próton noetón, princípio de toda
inteligibilidade das coisas que são ou existem. Nada precede ou condiciona
essa inteligibilidade radical, infinita e absoluta. Lima Vaz interpreta a ini-
ciativa paradoxal por parte da imaginação de uma aparição do esse como
excrescência absurda do Nada como uma perversão profunda e autocon-
traditória da inteligência. A distinção entre o Esse Absoluto, implícito na
inteligibilidade radical do esse, e os entia relativos que se manifestam na
experiência, está presente no conteúdo da intuição inicial. O esse só é pen-
sável como Esse Absoluto segundo a identidade do primum logicum e do
primum ontologicum. Os entia finitos e relativos só são pensáveis a partir
do Esse Infinito e Absoluto que, segundo Lima Vaz, permanece imutável
em sua plenitude inteligível. A afirmação de um Absoluto transcendente é
inerente à inteligibilidade fontal do esse. A intencionalidade noética da in-
tuição do Esse como Absoluto, ou Ipsum Esse Subsistens, explicita-se na
pré-compreensão do Absoluto pessoal, Deus.
A manifestação da inteligibilidade primordial do esse, luz inteligível
que separa o esse do contorno lógico que define os conceitos abstratos,
irradia-se pela intuição mais simples da nossa inteligência na afirmação
do juízo: alguma coisa é. O Ser é! Três faces do esse são distinguidas ime-
diatamente no primeiro momento da análise dessa afirmação primigênia:
284 | O que torna uma vida realizada: homenagem aos 100 anos de Henrique Cláudio de Lima Vaz

actus actuum et perfectio perfectionum (enérgeia), ens commune (on he on,


ens qua ens, ser enquanto ser) e cópula verbal, domínios respectivamente
da metafísica, da ontologia e da lógica. Lima Vaz distingue metodologica-
mente a intuição do esse como ato, que dá início ao itinerário metafísico
per viam compositionis, e a noção de ser como ens commune, que é a noção
primitiva na ordem nocional e, ao mesmo tempo, termo do procedimento
per viam resolutionis. O esse como ato é intuído na separatio judicativa, o
ens commune como noção é fruto da abstração.
O sintagma lima vaziano o Absoluto como Existência Subsistente
(Esse Subsistens) levanta a pretensão de ser uma filosofia da liberdade.
Sua exposição segue o seguinte encadeamento lógico-dialético: o Esse
como subsistente, o Esse Absoluto como estrutura inteligível manifestada
nas Ideias, a estrutura transcendental da inteligibilidade do Esse, o Esse
Subsistens como Fim para si mesmo. O Esse Subsistens é o ponto de par-
tida da exposição desse itinerário lógico-dialético. O Esse Fim para si
mesmo é seu ponto de chegada, como retorno ao ponto de partida.
A Metafísica lima vaziana da existência segue itinerário lógico-dialé-
tico que traduz a lógica intrínseca do conteúdo, o dinamismo da sua
própria inteligibilidade, não se deixando guiar por rígida necessidade em
termos de lógica formal. Com outras palavras, não é um procedimento
formal no qual uma forma lógica é aplicada a um conteúdo que lhe é exte-
rior. Este itinerário metodológico-dialético é o movimento lógico de uma
reflexão que integra dialeticamente cada um dos passos a partir da inteli-
gibilidade primordial do esse. Avança através de opções ontológicas em
que Razão e Liberdade interagem para responder ao desafio das oposições
que se manifestam na realidade. No âmbito da primazia absoluta do esse,
no interior já constituído do horizonte transcendental, surge a negação,
que é sempre bestimmte Negation (negação relativa), possível como mo-
mento lógico do discurso.
No primeiro momento do itinerário da metafísica do esse, o horizonte
transcendental como horizonte último da inteligência, cuja infinitude in-
tencional não pode ser circunscrita nos limites da finitude, abre-se
Marcelo F. de Aquino | 285

imediatamente com a afirmação judicativa do esse como ato. No segundo


momento desenha-se a oposição entre o Esse Absoluto coextensivo à ili-
mitação do horizonte transcendental e os entia relativos que inscrevem um
perfil eidético limitado nesse horizonte. O itinerário do esse estende-se por
duas grandes jornadas especulativas: uma na esfera do Esse Absoluto, ou-
tra na esfera dos entia relativos ou entes finitos. Percorre quatro estágios
conceptuais em cada uma dessas esferas: o noético-metafísico, o noético-
ontológico, o ontológico-formal, o ontológico-real. O método lógico-dialé-
tico lima vaziano permite-lhe organizar estes diversos estágios da
Metafísica tomásica do esse à luz da interrogação fundamental sobre a
Causa Essendi, formulada no terreno matricial da oposição do Uno e do
Múltiplo.
Na esfera do Esse Absoluto Lima Vaz procede, do ponto de vista me-
todológico, per viam compositionis: parte da intuição e afirmação
originária do esse avançando num percurso de natureza lógico-dialética,
no qual desdobrou-se a inteligibilidade intrínseca do esse e completou-se
com o retorno ao ponto de partida. Ao termo do percurso, novamente nos
encontramos no princípio, obedecendo a uma modalidade da via resoluti-
onis que é, ao mesmo tempo, instauração de uma totalidade de estrutura
dialética que realiza de maneira paradigmática, a natureza de um sistema
aberto cujo termo é o reconhecimento de um hiato metafísico infinito, in-
transponível pelo discurso, que, ao mesmo tempo, separa a esfera dos
entia relativos da esfera do Esse Absoluto, e com ela a articula pela via da
causalidade. Na constituição da Metafísica do esse, a via compositionis é
precedida pela via resolutionis que parte do concreto sensível, objeto e
conteúdo primeiro do nosso conhecimento intelectual. A noção mais uni-
versal do ser como ens commune, na qual todas as outras noções se
resolvem, é abstraída do sensível. A intuição do esse não é uma intuição a
priori. É mediatizada pela apreensão do sensível e pela abstração do ens
commune, sobre o qual tem lugar a separatio judicativa e a intuição pro-
tológica do esse como ato.
286 | O que torna uma vida realizada: homenagem aos 100 anos de Henrique Cláudio de Lima Vaz

A reflexão vaziana avança em direção aos conceitos de participação e


analogia. O conceito de participação surge e se impõe no pensamento de
Tomás de Aquino a partir do primeiro ensinamento parisiense (1256-
1259), no contexto do comentário ao De Ebdomadibus de Boécio. Prova-
velmente data da mesma época da Questão Disputada sobre o Bem no De
Veritate, q. 21. A participação implica a imanência do Ser Absoluto nos se-
res relativos. O conceito de analogia na obra de Aristóteles segundo alguns
dos mais prestigiosos estudiosos deste tema não é aplicado ao problema
do Ser. Para P. Aubenque, por exemplo, é uma questão ligada à leitura da
Ética a Nicômaco. Santo Tomás segue uma tradição antiga e medieval de
longa duração, que faz da analogia a pedra angular da metafísica. Para
Lima Vaz, seguindo a leitura tomásica, a analogia postula a transcendência
do Ser Absoluto sobre os seres relativos.
A imagem da participação, conforme a exposição histórico-conceitual
lima vaziana, respondeu, nas representações arcaicas do mundo, à neces-
sidade de se garantir a ordem dos seres contra a ameaça do caos,
distribuindo-os em escala ascendente e hierárquica para formar patama-
res distintos da realidade. A transposição conceptual dessa participação
imaginativa deu-se na obra de Platão. A transcrição ideonômica das ordens
da realidade pela normatividade das Ideias sucede à representação no
campo do imaginário. A ideia de participação está ligada imediatamente à
percepção do todo quantitativo e das suas partes. Aplica-se proporcional-
mente a todo tipo de relação em que duas realidades se comunicam
segundo uma relação de prioridade de uma com respeito a outra. Para ex-
primir a relação entre as coisas sensíveis e as Ideias transcendentes, Platão
recorre ao verbo metéchein (tomar parte em) do qual se originam os subs-
tantivos méthexis e metoché (participação). Introduz a ideia de méthexis
na aplicação do paradigma ideonômico à relação noética e ontológica entre
o sensível e o inteligível.
A ideia de participação cumpre dupla função no nível noético-ontoló-
gico a que foi elevada por Platão: a de articular o sensível e o inteligível em
Marcelo F. de Aquino | 287

termos de cognoscibilidade do segundo a partir do primeiro, e a de esta-


belecer a diferença ontológica entre o sensível, em permanente fluir, e o
inteligível, ao qual cabe propriamente a atribuição do ontôs on, ou ser ver-
dadeiramente tal. Segundo Platão, as formas da causalidade
transcendental (eficiente, exemplar e final), segundo as quais podemos
pensar a pluralidade dos seres finitos na unidade do ens commune me-
deiam nosso conhecimento do Primeiro Princípio.
Platão estrutura dois modelos de participação: a participação vertical
e a participação horizontal. O modelo de participação vertical se estrutura
pela participação do relativo no Absoluto, do finito no infinito; segundo
Tomás de Aquino, dos entia no Esse Subsistens, das criaturas em Deus. Já
o modelo de participação horizontal propugnada por Duns Scotus se es-
trutura pela igualdade da participação do relativo e do Absoluto, do finito
e do infinito, dos entia e do Esse Subsistens, das criaturas e de Deus na
universalidade unívoca do ens commune. A participação horizontal é ar-
rastada pelo fluxo da sucessão temporal que volta tudo a igualar no abismo
sem fundo do passado.
A estrutura transcendental do conceito tomásico de participação é
constituída por duas perspectivas distintas: o Verum e o Bonum. No pri-
meiro caso, a participação é pensada na ordem da causalidade formal: da
necessidade intrínseca da essência que, como tal, participa da Ideia na In-
teligência infinita. No segundo caso, é pensada na ordem da causalidade
final: da livre ordenação com que o esse participa da Liberdade Infinita. A
noção de ens commune, compreendendo a totalidade dos seres finitos e,
como tal, subjectum da metafísica, deve ser entendida segundo a dupla
perspectiva de participação dos seres finitos ao Criador: participação à
Verdade pela sua essência, e participação à Bondade pelo seu fim.
A Verdade e o Bem, seguindo roteiro desenhado por Tomás de
Aquino e retomado por Lima Vaz, constituem o arcabouço conceptual da
Metafísica tomásica da participação. O esse finito se desdobra como ver-
dade e bem e, como tal, retorna participativamente à Verdade e ao Bem no
Esse Subsistens (Primeiro Princípio). A natureza e a criatura são os dois
288 | O que torna uma vida realizada: homenagem aos 100 anos de Henrique Cláudio de Lima Vaz

caminhos seguidos pelo pensamento tomásico. O primeiro é um roteiro


aristotélico, e o segundo é um roteiro cristão com sensível influência neo-
platônica. No roteiro da natureza, a participação aponta para a
transcendência absoluta do Esse Subsistens, do qual os seres na sua tota-
lidade, reunidos na razão do ens commune, recebem o esse participado
segundo a tríplice relação da causa: eficiente, exemplar e final. No roteiro
da criatura, a participação é fundamento da predicação analógica entre o
Esse Subsistens participado (Deus) e os entia participantes (criaturas).
A predicação analógica é a forma lógica da abertura do topo da hie-
rarquia ontológica do universo para a transcendência do Ipsum Esse
Subsistens. Sua estrutura requer que o modo de significação seja predi-
cado, primeiramente, a partir do conhecimento sensível dos entia finitos;
mas que a realidade significada se predique, primeiramente, do Esse Sub-
sistens (Deus) como Causa Primeira do ens commune e sujeito primeiro
das noções transcendentais. A estrutura analógica da participação, na qual
a realidade significada tem finalmente primazia sobre a forma lógica, ma-
nifesta seu teor metafísico nas duas vertentes fundamentais: a presença
inclusiva do Absoluto nos seres finitos e a sua transcendência radical ex-
pressa na tríplice causalidade, eficiente, exemplar e final.
Lima Vaz atribui ao procedimento analógico a transgressão dos limi-
tes conceituais do campo da inteligibilidade metafísica traçados pela
finitude da razão humana, campo semântico das ideias de Ser, Uno, Ver-
dade e Bem. A transgressão analógica da razão finita assegura à ideia de
Deus seu lugar eminente na Metafísica medieval-cristã. A estrutura analó-
gica da Metafísica do esse em Tomás de Aquino estabelece um hiato
ontológico entre o Absoluto e os seres finitos. O Absoluto sendo afirmado
supra intellectum permite o desdobramento do Múltiplo como pluralidade
de seres finitos afirmados nas suas identidades próprias mas mantidos nos
vínculos da dependência causal, que assegura a unidade na pluralidade do
ens commune e sua referência constitutiva ao Uno Absoluto. A transcen-
dência inobjetivável do Absoluto traduz a hyperbolé (excesso) do Ser que
é absolutamente Uno e, como tal, Verdadeiro e Bom.
Marcelo F. de Aquino | 289

Convém destacar que a estratégia argumentativa de Lima Vaz, em


sua análise e interpretação dos albores da modernidade, encontra impor-
tante significação histórico-doutrinal nessa transição da Metafísica da
analogia da noção de Ser (Tomás de Aquino) à Metafísica da univocidade
da mesma noção (Duns Scotus). A constituição do sistema da metafísica
construído por Duns Scotus sobre a univocidade da noção do Ser repre-
senta um primeiro passo no abandono do modelo platônico de
participação vertical na direção de um modelo de participação horizontal
que virá a ser a estrutura básica do sistema simbólico da modernidade.
O advento do modelo ontoteológico da Metafísica de Duns Scotus
ainda conserva o modelo de participação vertical, com a sua distinção fun-
damental entre Deus, o Criador, e as criaturas, e com a distinção entre os
seres criados, organizados em escala ascendente segundo a perfeição da
sua essência. Contudo, induz a um dualismo entre a Metafísica da univo-
cidade do ser e a Teologia da criação, ou entre a participação vertical e a
participação horizontal, à qual caberá a primazia. Trata-se da eclosão de
mudança na ordem da prioridade ontológica que ao priorizar uma estru-
tura horizontal da participação iguala no ens ut ens (ser enquanto ser) o
Absoluto e o relativo, o Infinito e o finito, Deus e as criaturas na universa-
lidade unívoca do ens commune, ou seja, na unidade do subjectum da
metafísica.
A nomeação filosófica do próton noetón, de Platão a Tomás de
Aquino, regeu-se pela prioridade ontológica inerente à estrutura vertical
de participação. O topo da hierarquia ontológica, no modelo de participa-
ção vertical dos entia no Esse Subsistens, abre-se para a transcendência do
Absoluto incircunscritível pela razão conceptualizante, mas pensável e
afirmado como Bem (Platão), como Uno (Plotino), como Verdade (Agosti-
nho), como Esse Subsistens (Tomás de Aquino). Conforme interpretação
lima vaziana, a Metafísica de Duns Scotus confere prioridade ontológica à
estrutura horizontal da participação, segundo a qual a univocidade do con-
ceito de ser abarca todos os seres, incluindo-se Deus, na unidade do ser
290 | O que torna uma vida realizada: homenagem aos 100 anos de Henrique Cláudio de Lima Vaz

enquanto ser. No plano metafísico, Lima Vaz detecta na relação de priori-


dade da participação horizontal relativamente à participação vertical uma
segunda inversão metafísica com importante repercussão na afirmação fi-
losófica de Deus.
Continuando a análise vaziana, os herdeiros de Duns Scotus enfati-
zaram o abandono da concepção da Metafísica como ciência
estruturalmente aberta no seu procedimento mais elevado como ciência
do Ser Absoluto, ou Theologia, pela concepção da Metafísica como sistema
fechado, de natureza axiomático-dedutiva, regido pelos princípios de cau-
salidade e razão suficiente e pela noção unívoca de Ser.
O pensamento de Duns Scotus, na interpretação de Lima Vaz, ainda
permanece no terreno tradicional do pensamento greco-cristão. É preciso
esperar a entrada de Ockham no cenário intelectual do Ocidente latino-
cristão para se avançar além dele. Um certo desinteresse ockhamiano pela
Metafísica deve-se à sua consideração da incompatibilidade do saber me-
tafísico com os princípios de sua lógica e epistemologia. Cabe destacar a
observação lima vaziana que considera o pensamento ockhamiano surpre-
endentemente próximo dos pós-metafísicos contemporâneos, sobre os
quais exerce inegável atração.
Não se deve perder de vista que, segundo Lima Vaz, os fundamentos
do nominalismo ockhamiano são de natureza teológica. Com outras pala-
vras, Ockham assumiu sua profissão de teólogo de maneira bem mais
intransigente que Duns Scotus. Sua crítica radical e sistemática de toda a
infraestrutura filosófica que sustentava as grandes sínteses da teologia
medieval até Duns Scotus seguiu a lógica dessa opção. Em sua crítica à
deterioração do rigor e da pureza da reflexão teológica, Ockham levou às
últimas consequências o antiaristotelismo das condenações de 1277. Lima
Vaz observa que, paradoxalmente, ao levar a cabo seu intento de purificar
a teologia de todo resquício filosófico, sobretudo de procedência aristoté-
lica, Ockham acabou por propor novo paradigma filosófico a partir do qual
será traçada uma das principais rotas seguidas pelo pensamento tardo-
medieval e pelo pensamento moderno: o paradigma nominalista.
Marcelo F. de Aquino | 291

O pensamento propriamente filosófico de Ockham inaugura a grande


vertente nominalista da filosofia ocidental. Define-se em sua originalidade,
ao repropor a teoria do conhecimento e a ontologia em termos radical-
mente novos. Contudo, seu ponto de partida é estritamente teológico. Ou
melhor, ele o encontra no primeiro artigo do Credo cristão: “Creio em
Deus Pai onipotente, Criador...”. A onipotência divina, conhecida pela re-
velação e proclamada pela fé, alicerça as proposições fundamentais da
visão ockhamista do mundo e consequente rejeição de toda filosofia ante-
rior. A certeza da onipotência do Deus criador garantida pela revelação, e
o princípio de não-contradição, único limite à onipotência divina, regem
com lógica rigorosa o desenvolvimento do pensamento de Ockham.
Segue-se da primazia da potentia Dei absoluta dentro do espaço ló-
gico traçado pelo princípio de não-contradição, i. é, da certeza inicial e de
seu teor absoluto, a negação de algumas das teses fundamentais do corpus
doutrinal filosófico-teológico comum a todas as grandes correntes do pen-
samento medieval cristão anterior. Como por exemplo: a Teologia do
Verbo e a teoria das Ideias em Deus, fundamento, mediante o exempla-
rismo, da Teologia da Criação. Consequentemente, Ockham rejeita a teoria
da participação dos seres criados a seu exemplar eterno no Verbo ou nas
Ideias em Deus, pois as coisas encontram o fundamento do seu existir ape-
nas na livre onipotência divina.
Ockham conserva apenas a Lógica dentre as disciplinas filosóficas
tradicionais, atribuindo-lhe importância decisiva. Duas ordens de seres
subsistem no universo okhamiano: os indivíduos singulares e os signos
lógico-gramaticais que os exprimem na linguagem. Ontologia e Semiolo-
gia dividem o campo do saber fundamental segundo Ockham. Os
singulares, uma vez abolidas as Ideias divinas como fundamento de uma
natureza comum expressa gnosiologicamente por um conceito universal e
da qual participariam os singulares, são designados apenas por uma uni-
dade serial, na medida em que formam comunidades de seres
semelhantes, da qual cada membro é um termo discreto absolutamente
292 | O que torna uma vida realizada: homenagem aos 100 anos de Henrique Cláudio de Lima Vaz

único e enunciado por um nome próprio que é tão somente seu signo ló-
gico e não pode ser sujeito da predicação de uma essência comum.
A supressão de todas as mediações conceptuais entre o singular e o
nome que o designa permite a aplicação, aos fundamentos do saber, do
princípio metodológico que Ockham partilha com outros seus contempo-
râneos de tendência nominalista, mas que, pelo rigor com que o aplica,
passou a ser conhecido como “navalha de Ockham”: pluralitas non est po-
nenda sine necessitate eam ponendi. A estrutura fundamental da Teologia
e Filosofia medievais, constituída por um conjunto de distinções reais, for-
mais ou de razão, é assim abandonada como completamente inútil. O
universo ockhamiano, posto pela livre e imperscrutável iniciativa da oni-
potência divina, é habitado apenas pelos indivíduos singulares, cuja
identidade é garantida não mais que pela inviolabilidade do princípio de
não-contradição ao qual se submete a própria onipotência divina.
2.3. A Hermenêutica cultural da modernidade pós-cristã proposta
por Lima Vaz no decorrer de sua terceira jornada filosófica descobre nas
querelas metafísicas da Idade Média as raízes intelectuais a partir das quais
define-se novo sistema de razões e representações que formam a árvore
do mundo pós-cristão da vida. O horizonte da imanência no sistema sim-
bólico da modernidade, em que a participação vertical tende a desaparecer,
torna-se o único horizonte englobante de toda a realidade. O programa da
modernidade pós-renascimental impõe à filosofia a imensa tarefa teórica
de erigir o sujeito humano, contingente e finito, em demiurgo de toda in-
teligibilidade. O propósito de construção de um Absoluto no interior do
próprio devir histórico do que, mais tarde, Lima Vaz chamará de moder-
nidade pós-cristã tem seu núcleo teórico mais robusto nesse programa.
Ao mesmo tempo em que relê a Metafísica do esse de Tomás de
Aquino, Lima Vaz propõe leitura criteriosa de algumas metafísicas tardo-
medievais do ens de alguns dos autores mais importantes do pensamento
filosófico e teológico medieval, tais como Duns Scotus, Ockham, Suarez,
em cujas obras ele detecta os primeiros passos que conduzirão à eclosão
cartesiana da primazia da vertente operacional da razão, posteriormente
Marcelo F. de Aquino | 293

nomeada razão instrumental, que se torna instrumento privilegiado da


atividade poiética do sujeito.
Segundo Lima Vaz, a metafísica scotista promove duas inversões na
metafísica tomásica do esse. A primeira acontece no regime noético-espe-
culativo, conferindo primazia à representação e submetendo à ela a face
objetiva – o ser – do objeto conhecido. O conceito unívoco do ser organiza
nova figura da Metafísica. A Metafísica como ciência estruturalmente
aberta no seu procedimento mais elevado como ciência do Ser Absoluto,
ou Theologia, cede lugar à concepção da Metafísica como sistema fechado,
de natureza axiomático-dedutiva. Lima Vaz detecta na relação de priori-
dade da participação horizontal relativamente à participação vertical uma
segunda inversão metafísica com importante repercussão na afirmação fi-
losófica de Deus. Cabe lembrar que o topo da hierarquia ontológica, no
modelo de participação vertical dos entia no Esse Subsistens, abre-se para
a transcendência do Absoluto incircunscritível pela razão conceptuali-
zante, mas pensável e afirmado por Tomás de Aquino como Ipsum Esse
Subsistens.
Essa segunda inversão, ao priorizar uma estrutura horizontal da par-
ticipação, iguala no ens ut ens, ou seja, na universalidade unívoca do ens
commune, ou ainda na unidade do subjectum da metafísica, o Absoluto e
o relativo, o Infinito e o finito, Deus e as criaturas. Dessas duas inversões
inere um dualismo entre a Metafísica da univocidade do ser e a Teologia
da criação, ou entre a participação vertical e a participação horizontal, à
qual caberá a primazia. Essas duas inversões metafísicas desencadeiam a
destruição da metafísica tomásica do esse fazendo eclodir uma mudança
na ordem da prioridade ontológica.
Por sua vez, Ockham traça as primeiras linhas do desenho da teoria
do conhecimento e da ontologia, negando algumas das teses fundamentais
do corpus doutrinal filosófico-teológico comum a todas as grandes corren-
tes do pensamento medieval cristão anterior, orientando a evolução tardo-
medieval e moderna da Metafísica. Como por exemplo: a Teologia do
294 | O que torna uma vida realizada: homenagem aos 100 anos de Henrique Cláudio de Lima Vaz

Verbo e a teoria das Ideias em Deus, fundamento, mediante o exempla-


rismo, da Teologia da criação; a teoria da participação dos seres criados a
seu exemplar eterno no Verbo ou nas Ideias em Deus, pois as coisas en-
contram o fundamento do seu existir apenas na livre onipotência divina.
Sem recorrer à teoria do exemplarismo, uma vez abolidas as Ideias divinas
como fundamento de uma natureza comum expressa gnosiologicamente
por um conceito universal e da qual participariam os singulares, esses são
designados apenas por uma unidade serial, na medida em que formam
comunidades de seres semelhantes, da qual cada membro é um termo dis-
creto absolutamente único e enunciado por um nome próprio que é tão
somente seu signo lógico e não pode ser sujeito da predicação de uma es-
sência comum. Neste sentido, Ockham destrói a destruição scotista da
concepção tomásica de metafísica. A estrutura fundamental da Teologia e
Filosofia medievais, constituída por um conjunto de distinções reais, for-
mais ou de razão, é assim abandonada como completamente inútil.
Finalmente, Suarez reestrutura profundamente o universo simbólico da
Filosofia no plano metodológico, conferindo uma estrutura sistemática ao
pensamento metafísico. Inaugura a ideia moderna de sistema.
A partir do século XVII, formas de racionalidade, tendo como para-
digma a racionalidade matemática, passam a ratificar o predomínio da
participação horizontal. A Matemática passa a substituir a Metafísica como
scientia rectrix da razão moderna. O predomínio das racionalidades cons-
truídas segundo o modelo horizontal de participação, em que toda uma
classe de fenômenos é igualada na participação ao mesmo modelo e, em
instância mais geral, à mesma lei e à mesma teoria, tem seu padrão na
racionalidade matemática. Implica uma reorganização da realidade na
forma de modelos abstratos que, submetidos a complexos procedimentos
de verificação e devidamente comprovados, passam a traduzir numa su-
cessão rigorosamente homogênea de “casos” determinado aspecto da
realidade.
A Hermenêutica cultural lima vaziana reconhece a gigantesca trans-
formação das condições materiais da vida humana e do próprio universo
Marcelo F. de Aquino | 295

objetivo nestes últimos séculos graças à indiscutível eficácia operacional


desses procedimentos mencionados acima. Mas também ilumina o inegá-
vel mal-estar gerado pela modernidade que tem o todo quantitativo como
paradigma fundamental do modelo de participação horizontal. Nele as
partes são homogêneas à natureza do todo e, como tais, sempre potenci-
almente divisíveis. Para Lima Vaz, uma das causas desse mal estar reside
na multiplicação incessante de objetos dentro do mesmo padrão técnico.
O predomínio do modelo horizontal de participação provoca, entre
outros, dois importantes fenômenos. Em primeiro lugar, a incapacidade
da razão operacional ou instrumental de por si mesma avaliar, ordenar e
hierarquizar no processo linear cumulativo por ela seguido seus próprios
produtos em termos de valores autenticamente humanos. Os produtos da
razão instrumental permanecem submetidos ao único valor exatamente
adequado à homogeneidade da participação horizontal: o valor econômico.
Em segundo lugar, o aparecimento de formas de participação se-
gundo o modelo vertical, dada a inviabilidade biológica, psicológica e
cultural da igualdade universal, suscitado pelo próprio projeto de leitura
horizontal da realidade segundo os códigos da racionalidade matemática.
Essas formas se caracterizam por estarem estruturalmente ligadas ao múl-
tiplo quantitativo, ao qual devem proporcionar expressão teórica
unificada. São elas: o Eu transcendental na filosofia, o Estado na teoria
política, a Comunidade na teoria ética, o Mercado na teoria econômica e
ainda a Razão operacional, a Ciência, o Progresso. A essas formas pode-se
agregar aquelas mencionadas na constelação de universos culturais na An-
tropologia Filosófica: a profissão, a pesquisa científica, a produção, a
política, bem como aqueles problemas que permanentemente se multipli-
cam e nos desafiam: participação cultural (esfera do saber), participação
política (esfera da representação), participação jurídica (esfera do direito),
participação econômica (esfera das necessidades).
Em sua Hermenêutica cultural da modernidade pós-cristã, Lima Vaz
afirma, com razão, que a oclusão da abertura do topo da hierarquia onto-
lógica do universo para a Transcendência meta-histórica que se põe como
296 | O que torna uma vida realizada: homenagem aos 100 anos de Henrique Cláudio de Lima Vaz

referência última para a Verdade e o Bem impossibilita a essas formas de


participação vertical se elevarem a um nível de transcendência ontológica
sobre a imanência da história. Falta-lhes reconhecer no Absoluto de exis-
tência a fonte primeira da Verdade e do Bem nos atos supremos do existir
humano: conhecer a Verdade e consentir ao Bem.
Novo campo temático que reflete a fragmentação dos modelos de vida
humana na pluralidade dos universos culturais se manifesta: o ser pluri-
versal. A noosfera da modernidade é constituída por essas múltiplas
formas de participação que se entrelaçam numa rede de diferentes racio-
nalidades que aprisiona a vida cotidiana, sobretudo se essas racionalidades
se concretizam em tecnoburocracias que acabam sendo o órgão normal de
operar das instituições.
Capítulo 16

Experiência religiosa e experiência de Deus em Lima Vaz

Juliano de Almeida Oliveira

No conjunto dos temas tratados por Lima Vaz, encontra-se aquele do


Absoluto transcendente, que pode ser acessado quer por via teorética, quer
através de vivências. Neste último caso, está-se diante do fenômeno religi-
oso, cujo elemento central não é alguma teoria a ser admitida, nem um
ideal ético a se perseguir, mas propriamente uma experiência, a partir da
qual ganham sentido as reflexões e os mandamentos que a adesão religiosa
pode comportar 1.
A experiência religiosa 2 é uma das modalidades da experiência trans-
cendental 3, em que se relaciona com o Absoluto não visto de modo apenas
formal ou conceitual, mas reconhecido (direta ou indiretamente) como
pessoal: Deus. Não se trata tanto de pensar Deus, como se faz na metafísica
e na teologia (filosófica ou revelada), mas de entrar em efetiva relação com
ele. Assim como no âmbito do conceito de religião podem-se distinguir o
sagrado e o divino, do mesmo modo é possível individuar, no campo da

1
Cf. Bento XVI, Carta Encíclica “Deus caritas est”, 2005, preâmbulo.
2
Para situar e aprofundar esta temática, cf. C. Greco, A experiência religiosa, São Paulo, Loyola, 2009.
3
O conceito de experiência transcendental foi desenvolvido por J. B. Lotz e por K. Rahner, autores jesuítas que estão
à base do uso que Lima Vaz dele fez. O primeiro propõe-se integrar o transcendental kantiano com o escolástico, de
modo que tal experiência se refira às condições de possibilidade do conhecimento humano até atingir o ser e seus
coextensivos, num processo de cada vez maior interiorização do sujeito. Cf. J. B. Lotz, Esperienza trascendentale,
Milano, Vita e Pensiero, 1993. Para Rahner, a experiência transcendental trata simultaneamente da apreensão de si
mesmo feita pelo sujeito (reditio completa) e da abertura deste à totalidade do ser, que se dão em todo ato de conhe-
cimento. Cf. K. Rahner, Corso fondamentale sulla fede: Introduzione al concetto di cristianesimo, Roma, Paoline, 1978,
p. 40.
298 | O que torna uma vida realizada: homenagem aos 100 anos de Henrique Cláudio de Lima Vaz

religião vivida, uma experiência do sagrado e outra do divino 4. Em ambos


os casos, não faltam ambiguidades no uso dos termos, de modo que alguns
autores os tomam como sinônimos, outros os distinguem, dando origem
a abordagens diversas da experiência religiosa.
Neste estudo, buscar-se-á investigar a abordagem deste tema por
Lima Vaz, segundo seu modo específico de tratamento da possibilidade de
um acesso existencial do homem a Deus. A partir de alguns textos repre-
sentativos de seu pensamento, apresentados em ordem cronológica, serão
apresentados os passos dados por ele na interpretação deste fenômeno.
O primeiro texto a ser analisado é “O Absoluto e a história”, publicado
na primeira edição de Ontologia e história (1968) 5. O autor pretende de-
senvolver uma reflexão que, partindo da situação histórico-cultural do
homem, chegue a tematizar o Absoluto divino.
Inicia-se tratando da noção de consciência – que durante algum
tempo polarizou a reflexão vaziana 6. O homem se define pela consciência,
por sua condição de sujeito histórico. Retomando um dos axiomas da fe-
nomenologia, Lima Vaz afirma que “o sujeito não se nos apresentará, em
sua posição primeira, como consciência pura. É consciência do objeto ou,
em geral, consciência-do-mundo” 7. Ao relacionar-se com o mundo, com-
preendendo-o e transformando-o, o homem produz a cultura. A
consciência é, pois, a síntese dialética de dois momentos: (a) a intenção, o

4
“O sagrado é um elemento do profano, em que o sujeito religioso reconhece a ressonância do divino, e com o qual
exprime a sua relação, e aquela da totalidade do profano, com a realidade (ou a super-realidade) do divino”. H. Bouil-
lard, “La categoria del sacro nella scienza delle religioni”. In: E. Castelli (Org.), Il sacro: Studi e ricerche, Roma, Istituto
di Studi Filosofici, 1974, p. 49 – em itálico no original). As indicações acima fazem pensar em duas abordagens da
atitude religiosa, uma centrada na esfera do sagrado e outra naquela do divino. O conceito de sagrado possui uma
extensão lógica maior que o de divino, podendo ser dito deste de modo próprio, como também de realidades “profa-
nas” cuja relação com o divino faz com que se tornem um meio de acesso a ele, uma mediação, geralmente de caráter
cúltico ou ritual, entre o profano e o divino (espaço sagrado, pessoas sagradas, tempo sagrado, livro sagrado, leis
sagradas, canto sagrado etc). O divino é, em primeiro lugar, transcendente: está para além de toda realidade cósmica
e de suas leis, de toda determinação conceitual, de todo domínio ou apropriação. É a Realidade última, mas também
a primeira, arché e télos, a fonte da existência e do sentido de tudo que há. A isso se ajunte aquilo que o a tradição
judaico-cristã aporta como fundamental em sua concepção do divino: é uma Realidade pessoal, com a qual se é capaz
de estabelecer efetiva relação.
5
Cf. H. C. L. Vaz, Escritos de Filosofia VI: Ontologia e História. 2ª. ed. São Paulo: Loyola, 2001, p. 247-278. O texto
será citado aqui a partir da segunda edição da obra (referida doravante como OH).
6
Cf. H. C. L. Vaz, “Filosofia e forma da ação” [Entrevista]. Cadernos de Filosofia Alemã, 1997, n. 2, p. 85.
7
OH, p. 248.
Juliano de Almeida Oliveira | 299

voltar-se do homem ao mundo, tido como objeto, o caráter situado e dire-


cional (intencional) do homem à realidade que o cerca; (b) a expressão,
autoafirmação do sujeito, consciente de sua postura diante do mundo, e
interpretação deste mundo a partir de si, inserindo a realidade exterior no
plano do sentido. Assim, o homem, sujeito consciente, não é mais uma
coisa entre as coisas, mas centro de significação do mundo.
Lima Vaz distingue três níveis da consciência: (a) empírico, que age
desde as experiências sensíveis, percebendo apenas conexões factuais,
numa unidade precária do objeto-mundo; (b) racional, em que o empírico
é mediado por conexões lógicas ou de conceitos, elevando-se ao horizonte
do universal; (c) teórico, cuja principal característica é a intuição intelec-
tual, pela qual o sujeito se faz presente ao todo da realidade e da razão,
unificando as perspectivas parciais numa totalidade de sentido. Este úl-
timo nível, o mais elevado, é o que melhor caracteriza o homem, que se
mostra capaz de contemplação (theoría). Nela, “(...) um sentido unificador
envolve e penetra todo o mundo dos objetos, sentido que exprime para o
homem a compreensão humana do mundo, de si mesmo, e das implica-
ções últimas do seu ser-no-mundo” 8.
A consciência teórica, como afirmação radical do sujeito enquanto tal,
abre a possibilidade do reconhecimento do outro como sujeito, fundando
a dimensão propriamente histórica do homem na reciprocidade de cons-
ciências.
Tudo que foi dito até aqui aponta para a forma especificamente hu-
mana de existir no mundo, que Lima Vaz sintetiza com a expressão
consciência histórica 9. Sendo a presença da razão na história, ela procura
erigir-se como razão da história. De qualquer modo, a história pode ser
vista como um processo de humanização, isto é, “de conquista de uma

8
OH, p. 251.
9
A este tema, Lima Vaz dedicou três substanciosos artigos, presentes em OH (cf. p. 165-187; 189-217; 219-229), que
lhe renderam fama quando publicados (década de 1960), sobretudo entre as jovens gerações. Com o passar dos anos,
o filósofo jesuíta tomou distância de certas posições aí apresentadas. Para a autocrítica de Lima Vaz sobre suas posi-
ções de então, cf. H. C. L. Vaz, Escritos de Filosofia III: Filosofia e Cultura, São Paulo, Loyola, 1997, p. 135, nota 19
(referida doravante como EF III).
300 | O que torna uma vida realizada: homenagem aos 100 anos de Henrique Cláudio de Lima Vaz

progressiva significação humana da natureza e da sociedade” 10 e a consci-


ência histórica é o esforço permanente de descoberta e/ou construção que
“exprime o sentido global no qual se encontram as concepções e as obras
dos homens de determinada época histórica e de determinado mundo de
cultura” 11, seja de forma explícita, seja de forma difusa. A consciência his-
tórica assim entendida torna-se a base da consciência historiadora, ou seja,
de uma dimensão narrativa da própria consciência, que percebe nas vicis-
situdes do tempo a presença de um sentido, de uma verdade ou de uma
significação que ela mesma expressou (razão da história). Pode-se pergun-
tar de onde provém esse sentido: da própria consciência ou de outra
instância?
Com esta interrogação, começa-se a ingressar na meditação sobre o
Absoluto. A princípio, parece que sua entrada em cena seja incompatível
com a afirmação da consciência histórica. Como conciliar o fundamento
transcendente de ser e sentido com a trama imanente e contingente da
história humana, cujo hermeneuta é a consciência? “Como situar, então, a
categoria de ‘consciência histórica’ em face da Consciência absoluta, da
qual a realidade histórica deverá traduzir finalmente, em seu desdobra-
mento, a absoluta necessidade?” 12. Seria a história (universal e individual)
um jogo de cartas marcadas ou uma câmara de espelhos, que daria a ilusão
de ser feita e conduzida pelo homem, mas que na verdade é obra do Abso-
luto, segundo seu desígnio eterno, ou pior, do acaso sem sentido? Ou
ainda: seria a história o processo do devir ou do fazer-se do Absoluto, como
aparece em Hegel?
Diante de todos esses questionamentos, Lima Vaz apresenta sua tese:
“a referência ao Absoluto funda definitivamente o homem como consciên-
cia e a história como criação” 13. Como entender isso? Para Lima Vaz, longe
de ser um convite à fuga ou uma projeção mítica, a afirmação de Deus é o

10
OH, p. 263.
11
OH, p. 264.
12
OH, p. 269.
13
OH, p. 270.
Juliano de Almeida Oliveira | 301

reconhecimento da “presença de um Absoluto autêntico de exigência na


própria contextura da história; na estrutura mesma da consciência, fun-
damento do processo histórico” 14, em outras palavras, uma exigência
absoluta de sentido. Se tal é verdadeiro, é no profundo de sua consciência,
enquanto consciência histórica, que o homem pode perceber (ou experi-
mentar) a presença do Absoluto divino, que não tolhe seu protagonismo
histórico, mas o possibilita e potencializa.
Para comprovar esta tese, Lima Vaz propõe um percurso dialético,
cujo primeiro momento é a presença de uma tensão ao interno da consci-
ência histórica entre a infinitude da intenção e a finitude da expressão.
Com efeito, a consciência possui uma intencionalidade aberta ao todo do
ser, virtualmente infinita. A expressão, porém, acontece segundo a peculi-
aridade de cada ente que o sujeito encontra como objeto real de sua
intencionalidade. Esta dialética deixa entrever o que mais tarde Lima Vaz
caracterizará como princípios de ilimitação tética e limitação eidética15.
A síntese deste primeiro momento (objeto transcendido pela intenção
e intenção circunscrita pelo objeto) é, como já dito, constitutiva da consci-
ência, mas não elimina a tensão, que aponta para um “objeto infinito”, ou
melhor, um Absoluto inobjetivável que, mesmo manifestando-se à consci-
ência, rompe a limitação dos objetos particulares e satisfaz a
intencionalidade virtualmente infinita do sujeito humano. Tal Absoluto é,
portanto, sujeito, consciência-de-si. O homem, contudo, só tem acesso à
sua própria consciência-de-si, a qual pode ser vista como a primeira figura
do Absoluto 16.
O segundo momento parte do fato de que o sujeito humano, como
consciência-de-si, afirma-se como tal pela mediação do objeto, vale dizer
do mundo. A relação intersubjetiva rompe, porém, a barreira do mutismo
das coisas, abrindo novos espaços para a intencionalidade da consciência

14
OH, p. 272.
15
A limitação eidética refere-se à conceptualização dos objetos da experiência; a ilimitação tética, por sua vez, aponta
para o horizonte infinito do ser/existir. Cf. H. C. L. Vaz, Antropologia Filosófica I, São Paulo, Loyola, 1991, p. 164-167
(referida como AF I).
16
Cf. OH, p. 274.
302 | O que torna uma vida realizada: homenagem aos 100 anos de Henrique Cláudio de Lima Vaz

diante de outras consciências. O Absoluto de exigência, que se intui como


sujeito, deve, pois, ser buscado no horizonte da relação intersubjetiva. As-
sim, a história é a segunda figura do Absoluto 17.
A comunicação das consciências passa necessariamente pela media-
ção do mundo físico e simbólico, pois não existe uma recíproca
transparência entre elas, o que possibilita equívocos, manipulações, alie-
nações. “Como possibilidade e risco da alienação do sujeito em objeto, a
história não se constitui no Absoluto real” 18. Se assim é, conclui-se então
que o Absoluto de exigência deve ser buscado ao interno da própria histó-
ria, não como idêntico ao processo histórico, mas exigido por ele como sua
condição de possibilidade. O Absoluto deve ser imanente às consciências
que tecem os fios da história, como seu fundamento; ao mesmo tempo,
deve ser transcendente às limitações dos sujeitos e do mundo, como seu
horizonte mais alto de sentido.

Enquanto funda o sujeito singular e a comunidade dos sujeitos em seu desdo-


bramento dialético (relação reflexiva e relação intersubjetiva), a exigência do
Absoluto é a exigência mesma de um sentido ou de uma inteligibilidade a ser
dada à história como criação humana 19.

O Absoluto é alcançado, desse modo, como uma necessidade estrutu-


ral da consciência histórica e da própria história, mas não se avança na
compreensão da natureza deste Absoluto ou na tentativa de efetiva relação
com ele. Pode-se dizer que é um primeiro passo na experiência do Absoluto
divino, como um prolegômeno bastante abstrato, porém necessário à
aproximação a ele.
Em segundo lugar, toma-se o artigo “A linguagem da experiência de
Deus”, escrito em 1973 e publicado em Escritos de Filosofia I 20. Nele, o

17
Cf. OH, p. 276.
18
OH, p. 277.
19
OH, p. 278.
20
Cf. H. C. L. Vaz, Escritos de Filosofia I: Problemas de Fronteira, São Paulo, Loyola, 1986, p. 241-256 (referida como
EF I). Para a datação dos textos reunidos na obra em questão, cf. EF I, p. 303.
Juliano de Almeida Oliveira | 303

filósofo jesuíta aborda diretamente a noção de experiência e traça um ní-


tido limite entre as concepções de experiência religiosa e experiência de
Deus.
Experiência, no entendimento vaziano, é a confluência de presenças
do sujeito e do objeto, de modo que este venha como que perpassado pelo
pensamento. Além disso, toda experiência deve encontrar um meio de ex-
pressão, já que pertence ao âmbito do logos. Assim, tem-se de um lado o
“(...) acolhimento da manifestação do objeto ao sujeito que o interioriza,
assume a sua presença e, de certo modo, com ele se identifica” 21 e, de outro,
que “(...) toda experiência verdadeiramente tal deve encontrar sua expres-
são, ou seja, sua linguagem; e que toda expressão ou linguagem da
experiência traduz uma presença” 22. Aparecem, portanto, como desafios à
experiência tanto a inefabilidade da presença quanto o formalismo da lin-
guagem. A via média que deve ser percorrida é aquela que conjuga a
exigência de lucidez do discurso e o realismo em relação a seu objeto.
No artigo citado, Lima Vaz afirma que são três os domínios da expe-
riência possível: “a presença das coisas, a presença do outro, a presença de
nós a nós mesmos” 23. Numa leitura a posteriori do conjunto da obra vazi-
ana, delineiam-se respectivamente os âmbitos da relação de objetividade e
de intersubjetividade, bem como a estrutura do espírito, mas não se men-
ciona a relação de transcendência. O pensamento vaziano parece ainda não
estar amadurecido a este respeito quando da redação destes dois artigos
citados. Ainda assim, o autor tenta descobrir dentro de tal horizonte um
lugar para a experiência de Deus 24.
A questão de Deus parece surgir no cenário das grandes concepções
religiosas que povoam a história da humanidade. Propriamente aqui o au-
tor lança uma questão decisiva para sua argumentação: “é certo, no

21
EF I, p. 244.
22
EF I, p. 245.
23
EF I, p. 245.
24
“Se a experiência de Deus é possível, deverá constituir-se no espaço intencional dessa tríplice presença segundo a
estrutura fundamental da manifestação, ou seja, entre os pólos do que aparece (fenômeno) e do sujeito para o qual
a aparição tem lugar. Aí a experiência de Deus deverá encontrar sua linguagem, vem a ser, afinal, sua estrutura
lógica. Ora, Deus pode surgir como fenômeno no espaço fechado das coisas, do outro e do eu?”. EF I, p. 245.
304 | O que torna uma vida realizada: homenagem aos 100 anos de Henrique Cláudio de Lima Vaz

entanto, que a autêntica experiência de Deus é, estruturalmente, uma ex-


periência religiosa?” 25. Em outras palavras, a experiência de Deus é
necessariamente mediada pelos elementos característicos das várias reli-
giões como ritos, símbolos, tradições, entre outros? A resposta de Lima
Vaz é negativa: “a experiência religiosa não é, especificamente, uma expe-
riência de Deus; a experiência de Deus não é, estruturalmente, uma
experiência religiosa” 26. Como entender isso? O filósofo jesuíta enuncia a
tese que deseja defender nestes termos: “a experiência religiosa é uma ex-
periência do Sagrado e a experiência de Deus é uma experiência do
Sentido” 27. A distinção que se fazia acima entre sagrado e divino entra,
pois, com toda força na interpretação vaziana.
Segundo Lima Vaz, a experiência religiosa (ou do sagrado) situa-se
no âmbito das formas simbólicas, próprias do homem, que assim se posi-
ciona diante daquilo que é incompreensível, amedrontador ou fascinante.
Algumas formas religiosas, não todas, admitem um sagrado primordial,
que se identifica com o divino, acoplando assim as duas dimensões na es-
fera do religioso 28. A experiência de Deus, porém, tomada em si mesma,
diz respeito ao sentido radical.

Experiência de Deus como experiência de uma Plenitude ou de um Sentido


radical: eis o risco a correr sem atenuações. Esperamos mostrar que não se
trata de uma Plenitude que nos submerge e nos esmaga, mas de uma Plenitude
que é sentido: que nos liberta e ilumina 29.

O homem é capaz de tal experiência? Não se correria o risco de per-


manecer em um fictício jogo de espelhos nessa busca de um sentido sem
sentido? Ora, se a experiência de Deus é uma experiência do sentido radi-
cal ou frontal de todo outro sentido e se o homem é capaz de formular e

25
EF I, p. 248.
26
EF I, p. 249.
27
EF I, p. 249.
28
Cf. EF I, p. 250.
29
EF I, p. 242.
Juliano de Almeida Oliveira | 305

expressar alguma linguagem com sentido, conclui Lima Vaz, “em toda lin-
guagem dotada de sentido, em que uma realidade é dita, a presença de
Deus é igualmente dita, vem a ser, a experiência de Deus tem lugar na
forma especificamente humana do discurso” 30. Se o homem consegue en-
contrar em sua vida algo de sensato, de belo, de bom, esta experiência
aponta para uma estrutura geratriz de sentido, identificada com Deus,
visto como o fundamento de toda possibilidade de significação do existir
humano. Sendo de alcance radical e universal, ele é imanente e transcen-
dente ao homem e ao mundo, entrando nas esferas da possibilidade da
experiência, mas nelas não se exaurindo. Segundo Lima Vaz,

(...) a experiência de Deus é a experiência da impossibilidade de uma lingua-


gem do absurdo radical do ser. Ela transpassa literalmente (...) a existência
inteira do homem na medida em que existir humanamente é existir logica-
mente: é produção incessante de sentido 31.

Em outras palavras, é permitido dizer que a experiência de Deus é a


experiência do logos, que se expressa como teo-logia. No Cristianismo, ela
adquire uma feição particular, pois numa existência individual intra-his-
tórica se encontra o Logos fundamental: Jesus Cristo – na sua pessoa e na
sua mensagem, o sentido radical entra decisivamente na história. A expe-
riência cristã de Deus é, assim, a experiência da fé em Jesus. Segundo Lima
Vaz, esta atitude se diferencia daquela que se tem diante do sagrado: “em
face do Sagrado não há fé: há fascínio e temor” 32. No ato de fé, por sua vez,

não se trata de um sentimento, de uma representação e menos ainda de uma


demonstração. Trata-se de uma linguagem derivada que fala ou repete – numa
forma original de repetição, a um tempo fiel e criadora, que em linguagem
teológica se diz tradição – a linguagem original 33.

30
EF I, p. 253. Lima Vaz remete à afirmação de Santo Tomás: “Todos os cognoscentes conhecem implicitamente a
Deus em qualquer objeto conhecido” (grifo nosso). Tomás de Aquino, De veritate, q. 22, a. 2, ad primum.
31
EF I, p. 252; 253. As filosofias do absurdo são de per si contraditórias, pois propõem a não-absurdidade do absurdo
e, assim, a possibilidade do sentido. Cf. EF I, p. 253, nota 30.
32
EF I, p. 254.
33
EF I, p. 255.
306 | O que torna uma vida realizada: homenagem aos 100 anos de Henrique Cláudio de Lima Vaz

A experiência cristã de Deus muitas vezes comporta também elemen-


tos da experiência religiosa – como nas formas de vivência religiosa a
partir da grandeza do cosmos que desperta a contemplação, bem como da
profundidade da alma, numa mística da interioridade – mas não se esgota
neles, ao contrário, transforma-os e lhes dá significado novo a partir do
logos da fé recebida e transmitida.
Vê-se que Lima Vaz ainda não entendia a relação de transcendência
como uma dimensão distinta na gama das relações humanas, aparecendo
como uma possibilidade indireta de contato com o divino a partir do reco-
nhecimento da sensatez do conhecimento ou, em geral, da percepção do
mundo, dos outros e de si mesmo, sensatez esta que reclamaria um fun-
damento. Semelhante posição pode parecer excessivamente racionalista,
sem deixar muito espaço para aquelas formas basilares de expressão da fé,
que são a oração e a liturgia. Na verdade, o que se quer salvaguardar é o
caráter não-capturável do divino em relação a todas as formas de simboli-
zação que o homem possa utilizar e que não raro se reduzem aos estreitos
limites de seu horizonte de compreensão ou de comprometimento: Deus
semper maior. De outra parte, contudo, faltava um aprofundamento da já
mencionada relação de transcendência – que vem a se consolidar com a
publicação da Antropologia Filosófica – como também do fato religioso.
Num breve artigo de 1981, intitulado “O problema de Deus no pensa-
mento contemporâneo” 34, após algumas considerações de caráter
histórico, Lima Vaz apresenta três âmbitos em que a questão de Deus pode
encontrar relevância na época contemporânea: (a) a linguagem do sentido:
com a multiplicação das formas linguísticas, desde aquela formalizada das
ciências às mais agressivas das reivindicações – e hoje se poderia acres-
centar a linguagem virtual da internet, em todas as suas variantes – luta-
se permanentemente por buscar e/ou manter uma sensatez, uma coerên-
cia, um sentido que possibilite o mútuo entendimento; nessa sede de
sentido haveria um lugar para Deus; (b) o fundamento da experiência: o

34
Cf. H. C. L. Vaz, “O problema de Deus no pensamento contemporâneo”. Síntese, n. 23, 1981, p. 17-28.
Juliano de Almeida Oliveira | 307

avanço das ciências, que progridem por meio da experiência e dos experi-
mentos, põe em xeque as certezas estabelecidas, já que tudo que é sólido
deve resistir à prova da experiência para não se dissolver no ar dos para-
digmas ultrapassados; dentro desse devir heraclítico, permanecem o
homem e seu desejo de desvendar os segredos do cosmos e da vida, de
modo que nos fundamentos da experiência pode haver lugar para se tratar
de Deus; (c) o destino da liberdade: num mundo cada vez mais dominado
pela tecnociência, a liberdade humana é ameaçada pelos frutos de suas
próprias invenções; a interação humana, que só é autêntica entre sujeitos
livres e responsáveis, requer, pois, uma liberdade com sentido; na base da
capacidade humana de assim agir e interagir surge um espaço para Deus.
Desse modo, Deus poderia ser encontrado no “subterrâneo” das aspirações
humanas de sensatez, de descoberta da verdade, de liberdade e de comu-
nicação. Seu espaço é o de fundamento ou garantia da subjetividade
histórica do homem, como o mais profundo desejo latente no coração hu-
mano.
O tema volta e ganha novos contornos num Editorial publicado na
revista Síntese em 1985, com o título “Cultura e religião” 35. Este texto mos-
tra uma primeira diferenciação na abordagem vaziana da possibilidade de
acesso existencial a Deus que, sem deixar de lado a questão do sentido,
volta-se ao fenômeno da cultura em geral, o qual toma agora o centro das
atenções.
Cultura diz respeito às razões de viver, que não são elementos dados
na natureza, como coisas, mas descobertos, interpretados, recriados pelo
homem, inserindo-se no âmbito simbólico que forja a identidade dos gru-
pos e indivíduos. Cultura é, pois, o “ato de acolhimento e recriação das
significações” 36. As razões de viver se relacionam com o bem-viver, que

35
Cf. H. C. L. Vaz, “Cultura e religião”. Síntese, n. 35, 1985, p. 5-12 (referido como CR). Republicado em Idem, Escritos
de Filosofia II: Ética e cultura, São Paulo, Loyola, 1988, p. 280-288.
36
CR, p. 7.
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não se identifica sem mais com o bem-estar material 37, sendo tal identifi-
cação o maior equívoco da “captação da cultura na lógica do consumo” 38,
presente na dita cultura de massa.
Um dos aspectos da cultura, patente desde as civilizações mais remo-
tas no tempo, é o fato religioso, no qual se encontra um referente último
de sentido, de modo que “os sentidos parciais se ordenam na unidade de
um Sentido primeiro e fundamental” 39. Assim, a religião, integrada no sis-
tema cultural, não aliena o homem da realidade, mas o insere
decisivamente nela a partir de um prisma mais elevado. Afirma Lima Vaz:

Não há contrassenso mais flagrantemente desmentido pela ciência das religi-


ões e pela antropologia cultural que a aplicação da categoria de “alienação”,
arrancada do contexto bem determinado no qual Hegel a situou na Fenome-
nologia do espírito, ao fato religioso em geral. Longe de “alienar” o indivíduo,
a religião opera da maneira mais radical a sua integração na realidade, e essa
é talvez a explicação mais adequada da universalidade antropológico-cultural
do fenômeno religioso 40.

O acolhimento de um Sentido primeiro e basilar não retira do homem


o papel de ser sujeito protagonista da cultura e da civilização, mas lhe con-
fere a possibilidade de harmonizar ordenadamente a multiplicidade dos
significados parciais em que se vê imerso, desde o horizonte da transcen-
dência. Assim, a religião não se conforma aos reducionismos
sociologizantes que lhe são atribuídos na contemporaneidade (alienação,
ideologia), nem mesmo se deixa absorver pelo âmbito das questões socio-
políticas: seu vetor intencional aponta para mais além.
Lima Vaz que, como se viu, havia em precedência avaliado critica-
mente a experiência religiosa ou do sagrado, reformula sua avaliação em

37
“O ‘bem viver’ não é uma consequência necessária do ‘bem estar’”. CR, p. 6.
38
CR, p. 7.
39
CR, p. 8.
40
CR, p. 8.
Juliano de Almeida Oliveira | 309

termos positivos, vendo o sagrado “como a face histórico-cultural do Sen-


tido primeiro” 41 que assim pode ser acolhido pelos homens de uma
determinada sociedade.
Toca-se aqui o cerne da crise da civilização ocidental, cuja pretensão
tem sido prescindir de Deus. É uma crise do sagrado, enquanto forma cul-
tural de relação com o divino, que traz como consequência a secularização:
pensar e agir etsi Deus non daretur. A perda das referências ao sagrado faz
com que a civilização ocidental mergulhe em uma terrível crise de sentido.
Seria este o momento de redescobrir a originalidade do Cristianismo,
em que todas as linhas de força convergem para o mistério do Deus feito
homem: Jesus Cristo. Tornando-se sujeito histórico, o próprio Sentido re-
dime a história desde dentro, suprassumindo até mesmo o absurdo da
morte mediante a ressurreição. Diante dele podem-se colocar as questões
últimas a respeito das razões de viver, pois ele tem uma resposta a essas
radicais interrogações.
Num artigo de 1988, “Religião e sociedade nos últimos vinte anos
(1965-1985)” 42, Lima Vaz continua a reflexão sobre o eclipse do sagrado
na civilização ocidental, encontrando sua raiz no humanismo secular, ca-
racterizado pela “(...) absolutização do tempo histórico, uma divinização
do saeculum (...) pela imanentização radical no tempo de todos os signifi-
cados que exprimem o homem e suas obras” 43. O ateísmo deixa de ser,
assim, uma ideologia tida como perniciosa para se tornar a mentalidade
dominante, o ar que se respira sem se notar, no modo de organização das
sociedades contemporâneas.
Nesse artigo, por outro lado, o filósofo jesuíta trata também, ainda
que brevemente, do chamado retorno do sagrado, fenômeno que come-
çava a interessar os pensadores e que teve seu auge na década de 1990.
Como entender que, na crista da onda da secularização, refloresça a prática

41
CR, p. 9.
42
Cf.H. C. L. Vaz, “Religião e sociedade nos últimos vinte anos (1965-1985)”. Síntese, n. 42, 1988, p. 27-47 (referico
como RS).
43
RS, p. 30.
310 | O que torna uma vida realizada: homenagem aos 100 anos de Henrique Cláudio de Lima Vaz

religiosa com nova e atraente roupagem? Lima Vaz pondera que o revival
religioso em questão se insere na lógica da modernidade, com as marcas
do individualismo e de certa resistência à instituição, de modo que muitos
se dizem crentes ou religiosos sem pertencerem a nenhum grupo religioso
formal. É, em suma, a busca de um sagrado compensador:

Ele vem compensar o indivíduo dos desgastes da vida social e passa ser uma
das formas que têm em mira restaurar no indivíduo o campo importante das
suas satisfações subjetivas, ameaçado pelo anonimato e pelo gigantismo das
estruturas organizacionais da sociedade industrial 44.

Assim, pode-se dizer que, se em tempos recentes via-se o grassar da


dessacralização promovida pela sociologização do religioso, a ressacraliza-
ção que se seguiu teve a forma de uma psicologização do religioso. O
problema está em que, não raro, o sagrado é buscado não por si, por sua
relevância intrínseca, mas por algum efeito imediato que possa causar na
existência dos indivíduos. Isso faz com que deva redobrar a atenção quanto
à autenticidade da experiência religiosa que se realiza nesse contexto.
No desenvolvimento da reflexão vaziana sobre o tema de que se está
tratando, encontra-se o artigo “Religião e modernidade filosófica” (1991),
retomado posteriormente em Escritos de Filosofia III 45. No final desse
texto, Lima Vaz aprofunda o entendimento da vivência religiosa como uma
experiência da transcendência que lança profundas raízes no íntimo do ser
humano e a partir da qual se alimenta o sentido essencial da existência.
Importante é notar que Lima Vaz, mesmo ampliando e afinando sua aná-
lise, jamais renegou a necessidade de uma depuração teo-lógica da
experiência religiosa, já que nem tudo que se apresenta como tal pode ser
aceito como legítimo.
Não obstante a limitada circunscrição do discurso sobre Deus no ho-
rizonte da modernidade, fato é que a vivência religiosa jamais veio a faltar.

44
RS, p. 44.
45
Cf. H. C. L. Vaz, “Religião e modernidade filosófica”. Síntese, n. 53, 1991, p. 147-165. A versão definitiva deste artigo,
publicada em EF III (p. 223-253), é a base para as citações.
Juliano de Almeida Oliveira | 311

Ela se encontra, de certo modo, em relação com os modelos teológicos que


se desenvolvem nesse horizonte, ainda que a relação entre teologia e espi-
ritualidade tenha se fragilizado, ao menos no último século. De qualquer
maneira, o que mais caracteriza a experiência religiosa é a santidade, uma
comunhão profunda com Deus que transfigura radicalmente o ser e o agir
da pessoa, cuja profundidade existencial rompe os esquemas conceituais
costumeiramente usados na época moderna. Referindo-se especificamente
ao Cristianismo, afirma Lima Vaz:

É nas linguagens da experiência cristã dos santos (...) que deve ser buscada a
palavra final e definitiva do anúncio religioso cristão em face da modernidade
que aí está e das modernidades por vir. Ela não é senão o ensaio sempre reco-
meçado e, portanto, sempre novo para reproduzir nas vicissitudes da história
a novidade inesgotável da Palavra feita carne, na qual a fé reconhece o arqué-
tipo da nossa verdadeira e definitiva humanidade 46.

Nos inícios da década de 1990, Lima Vaz deu forma definitiva à sua
Antropologia Filosófica, em que aparece de modo bastante aprofundado a
análise da estrutura do espírito e da relação de transcendência. Interes-
sante é sublinhar aqui alguns aspectos da vida segundo o espírito, que
podem ser úteis para a compreensão do acesso religioso a Deus segundo o
pensamento vaziano.
O espírito é o núcleo ontológico do homem que, em sua estrutura
noético-pneumática, vive num movimento duplo de acolhida ao ser e de
dom ao ser, ou seja, inteligência e amor. Afirma Lima Vaz que “inteligência
espiritual e amor espiritual se entrelaçam na unidade do apex mentis, o
cimo mais alto da vida do espírito, onde a inteligência se faz dom à verdade
que é seu bem, e o amor se faz visão do bem que é sua verdade” 47. No mais
profundo de si, o homem encontra, assim, sua própria incompletude e sua
abertura para o diferente de si mediante o élan vital de sua capacidade de
conhecer e amar, o que, em última instância, só será satisfeito quando

46
EF III, p. 253. Tal perspectiva se desenvolverá na abordagem da experiência mística.
47
AF I, p. 243.
312 | O que torna uma vida realizada: homenagem aos 100 anos de Henrique Cláudio de Lima Vaz

atingir o Absoluto de Verdade e Bem: trata-se de “uma abertura da infini-


tude formal da razão e da liberdade para a infinitude real do Absoluto do
ser” 48.
Esta experiência de si como existencialmente indigente, que a filoso-
fia ajuda a esclarecer, é a porta de entrada do terreno místico, onde se pode
encontrar a resposta não apenas teórica, mas real a esta inquietude. É este
o domínio do que Lima Vaz chama de inteligência espiritual, cujo raio de
alcance pode ser descrito do seguinte modo:

A descentração do espírito e o domínio da inteligência espiritual (...) podem


ser visualizados por meio de uma linha ascendente em cuja base situa-se a
Natureza. Na continuidade da linha aparece o espírito-no-mundo (homem),
sendo a distância entre a Natureza e o espírito humano compreendida pela
razão categorial, e nela vigorando a lei da univocidade; do espírito como ser-
no-mundo, a linha se eleva em direção à noção de Ser como infinito formal,
sendo essa distância compreendida pela razão transcendental, nela vigorando
o regime da analogia, que permite prolongar a linha até o Infinito real ou o
Existir absoluto, conhecido analogicamente, e ao qual o espírito pode elevar-
se por uma intuição apofática. Essa, por sua vez, pode ser sobrelevada pela
graça, em intuição mística sobrenatural. Do transcendental ao místico es-
tende-se o domínio imenso da inteligência espiritual 49.

O próximo passo neste itinerário é, pois, a abordagem da experiência


mística, forma eminente de experiência de Deus, a que Lima Vaz dedicou
um significativo opúsculo, intitulado Experiência mística e filosofia na tra-
dição ocidental 50, que se constitui no único livro (sem contar alguns
artigos) em que trata especificamente da temática religiosa. Segundo Lima
Vaz, a mística vem entendida como:

(...) uma forma superior de experiência, de natureza religiosa, ou religioso-


filosófica (Plotino), que se desenrola normalmente num plano trans-racional

48
AF I, p. 261.
49
AF I, p. 286-287, nota 166.
50
Cf. H. C. L. Vaz, Experiência mística e filosofia na tradição ocidental, São Paulo, Loyola, 2000 (referido como EMF).
Juliano de Almeida Oliveira | 313

– não aquém, mas além da razão –, mas, por outro lado, mobiliza as mais
poderosas energias psíquicas do indivíduo 51.

Na mística, o Absoluto divino não se apresenta como tremendum,


mas somente como fascinans, chamando e acolhendo junto de si o homem
que se deixa interpelar. É um conhecimento a partir de profunda união
(ou de sua sentida ausência, na chamada “noite escura”). Lima Vaz adere
à definição maritainiana de mística como “experiência fruitiva do Abso-
luto” 52, por ele expressa nos seguintes termos:

Como experiência fruitiva, ela se exerce através de um tipo de conhecimento


do seu objeto e de adesão afetivo-volitiva que transcendem o modo usual de
operar das nossas faculdades superiores de conhecer e querer, e visa, em sua
intencionalidade objetiva, ao Absoluto, ultrapassando a contingência e relati-
vidade dos objetos que se oferecem à nossa experiência ordinária 53.

Sendo uma dimensão possível da existência humana, a mística re-


quer como pressuposto uma adequada compreensão antropológica, ou
seja, aquela que reconhece no homem a dimensão de interioridade espiri-
tual. A experiência mística se dá no ou através do espírito, o núcleo mais
profundo do homem e, ao mesmo tempo, seu mais elevado nível ontoló-
gico, como sede da inteligência e da vontade livre.
Estabelecida esta premissa conceitual-antropológica, Lima Vaz passa
a analisar as formas de experiência mística presentes ao longo da tradição
ocidental, organizando-as em três grupos: mística especulativa, mistérica
e profética.
A mística especulativa seria um prolongamento do itinerário metafí-
sico, um passo avante com nova intensidade experiencial ou, em outras

51
EMF, p. 10.
52
Cf. EMF, p. 16. “Entenderemos aqui a expressão ‘experiência mística’, seja dito de uma vez por todas, não num
senso mais ou menos vago (extensível a toda sorte de fatos mais ou menos misteriosos ou preternaturais, ou à sim-
ples religiosidade), mas no sentido de conhecimento experimental das profundidades de Deus, ou seja, no sentido de
paixão das coisas divinas, que leva a alma, por uma sequência de estados e de transformações, até experimentar no
fundo de si mesma o toque da divindade e a ‘sentir a vida de Deus’”. J. Maritain, Distinguere per unire – I gradi del
sapere, 3. ed., Brescia, Morcelliana, 2013, p. 293.
53
EMF, p. 16.
314 | O que torna uma vida realizada: homenagem aos 100 anos de Henrique Cláudio de Lima Vaz

palavras, com envolvimento pessoal. A mística mistérica refere-se à expe-


riência do divino a partir de ritos de iniciação ou de culto. Suas raízes
podem ser encontradas na religião mistérica grega. Nesta modalidade, a
experiência mística não se baseia no crescendo da intensidade do itinerário
metafísico, mas na participação a atos de culto que põem o sujeito em con-
tato com a realidade objetiva do Mistério: o que pertence à esfera divina e
que é intencionado na experiência ritual. A terceira forma de experiência
mística proposta por Lima Vaz é a mística profética, que se constitui em
torno da Palavra da Revelação, ou seja, é especificamente cristã. Trata-se
da dinâmica cristã de escuta de Deus através do que se considera, na fé,
sua revelação, consignada na Sagrada Escritura, bem como de sua atuação
na vida, sobretudo através da caridade. Vê-se que a mística profética seria,
pois, a síntese das duas formas anteriores, que nela são suprassumidas
como “sabedoria de Deus no mistério” (1Cor 2,7).
Ao final desta pequena incursão pelo pensamento vaziano sobre a ex-
periência de Deus, desde suas premissas mais abstratas até sua realização
mais elevada na mística, conclui-se que, se a modernidade exibe como sua
característica o ensimesmamento do homem, relegando a transcendência
do Absoluto a um segundo plano, quando não ao domínio do irreal, isso
faz com que não reste espaço para a autêntica experiência religiosa e mís-
tica, senão para aquela sua caricatura presente em tantas formas de teoria
e prática de auto-ajuda, ou ainda em sua deformação ideológica em termos
de “mística política”54.
Lima Vaz reafirma sua análise segundo a qual se está chegando ao
final de um arco de civilização, cuja parábola infelizmente declina no de-
serto do niilismo, alimentado pela multiplicação sem limites de objetos
técnicos que aprisionam o homem. Por outro lado, é possível ainda hoje,
para aqueles que se atrevem a remar contra a correnteza, o reencontro
com o Absoluto divino, que não rouba nada de autenticamente humano ao
homem, ao contrário, abre-lhe um horizonte de sentido e felicidade,
mesmo em meio aos sobressaltos da história.

54
Cf. EMF, p. 101-113.
Juliano de Almeida Oliveira | 315

Referências

a) Textos de Lima Vaz

VAZ, Henrique Cláudio de Lima. Antropologia Filosófica I, São Paulo, Loyola, 1991.

______. “Cultura e religião”. Síntese, n. 35, 1985, p. 5-12.

______. Escritos de Filosofia I: Problemas de Fronteira. São Paulo: Loyola, 1986.

______. Escritos de Filosofia II: Ética e Cultura. São Paulo: Loyola, 1988.

______. Escritos de Filosofia III: Filosofia e Cultura. São Paulo: Loyola, 1997.

______. Escritos de Filosofia VI: Ontologia e História. 2ª. ed. São Paulo: Loyola, 2001 [ori-
ginal: 1968].

______. Experiência mística e filosofia na tradição ocidental. São Paulo: Loyola, 2000.

______. “Filosofia e forma da ação” [Entrevista]. Cadernos de Filosofia Alemã, 1997, n. 2

______. “O problema de Deus no pensamento contemporâneo”. Síntese, n. 23, 1981, p. 17-


28.

______. “Religião e modernidade filosófica”. Síntese, n. 53, 1991, p. 147-165.

______. “Religião e sociedade nos últimos vinte anos (1965-1985)”. Síntese, n. 42, 1988, p.
27-47.

b) Outros textos

BENTO XVI, Carta Encíclica “Deus caritas est”, 2005.

BOUILLARD, Henri. “La categoria del sacro nella scienza delle religioni”. In: CASTELLI,
Enrico. (Org.), Il sacro: Studi e ricerche, Roma, Istituto di Studi Filosofici, 1974.

GRECO, Carlo. A experiência religiosa, São Paulo, Loyola, 2009.


316 | O que torna uma vida realizada: homenagem aos 100 anos de Henrique Cláudio de Lima Vaz

LOTZ, Johannes Baptist. Esperienza trascendentale, Milano, Vita e Pensiero, 1993.

MARITAIN, Jacques. Distinguere per unire – I gradi del sapere, 3. ed., Brescia, Morcelliana,
2013.

RAHNER, Karl. Corso fondamentale sulla fede: Introduzione al concetto di cristianesimo,


Roma, Paoline, 1978.

TOMÁS DE AQUINO, “Quaestiones disputatae de veritate”. In: ______. Quaestiones dispu-


tatae, v. I, Torino, Marietti, 1949.
Sobre os autores

Álvaro Mendonça Pimentel


Professor titular da Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE), possui graduação em
Filosofia pela FAJE (1995), graduação em Teologia pela Facultés Jésuites Centre Sèvres de
Paris (2001), mestrado em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
(1998) e doutorado em Filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais (2008). Du-
rante a pesquisa de doutorado fez estágio de pesquisa no Centre d’Archives Maurice
Blondel (Université Catholique de Louvain, Bélgica). Em 2014, fez estágio pós-doutoral na
Catholic University of America. É membro da Associação Brasileira de Filosofia da Religião.
Atua na área de Filosofia, com ênfase em ética e filosofia da religião, desenvolvendo suas
pesquisas e cursos em diálogo com os seguintes autores: Henri Bergson, Maurice Blondel,
Jean Ladrière, Claude Bruaire, Eric Voegelin e Henrique Cláudio de Lima Vaz. Seus centros
de interesse são: a racionalidade da fé; os métodos filosóficos de estudo do fenômeno reli-
gioso; Deus como problema filosófico; a racionalidade e a justificação do agir moral; o
perdão e a convivência social.

Bruno Amaro Lacerda


Professor associado da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Colaborador do Pro-
grama de Pós-Graduação em Filosofia (UFJF). Doutor e mestre em Filosofia do Direito pela
UFMG. Coordena o grupo de pesquisa “A ideia de justiça na Grécia Antiga”. Atua nas áreas
de Filosofia do Direito, com ênfase em Teoria da Justiça.

Cláudia Maria Rocha de Oliveira


Professora adjunta e pesquisadora do Departamento de Filosofia da Faculdade Jesuíta de
Filosofia e Teologia (FAJE). Coordenadora do Grupo de pesquisa Estudos Vazianos (GE-
Vaz), da FAJE, e membro do grupo de pesquisa Desafios para a ética contemporânea. Possui
graduação em filosofia (2002) e mestrado em filosofia (2008) pela FAJE. Doutorou-se em
Filosofia pela Pontifícia Universidade Gregoriana, em Roma (2012).

Edmar José da Silva


Professor de Filosofia da Faculdade Dom Luciano Mendes (FDLM/Mariana-MG). Possui
licenciatura em Filosofia pela PUC-MG, graduação em Teologia pelo Instituto Teológico São
318 | O que torna uma vida realizada: homenagem aos 100 anos de Henrique Cláudio de Lima Vaz

José, pós-graduação lato sensu em Filosofia Moderna pela UFOP, especialização em meto-
dologia do Ensino Superior pelo CEPEMG e Newton Paiva, mestrado em Filosofia
Sistemática pela Pontifícia Universidade Gregoriana, de Roma.

Edvaldo Antônio de Melo


Professor de Filosofia da Faculdade Dom Luciano Mendes (FDLM/ Mariana-MG). Possui
mestrado e doutorado em Filosofia pela Pontifícia Universidade Gregoriana, de Roma, pós-
graduação lato-sensu pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP-MG), bacharelado
em Teologia pelo Centro de Estudos Superiores de Juiz de Fora (CESJF), bacharelado e
licenciatura em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG).
Integra o grupo de pesquisa Fenomenologia e genealogia do corpo da Faculdade Jesuíta de
Filosofia e Teologia (FAJE). Tem interesse por questões referente à ética, à linguagem, à
ontologia, à metafísica e à fenomenologia. É membro do Centro Brasileiro de Estudos Le-
vinasianos (CEBEL)

Elton Vitoriano Ribeiro


Professor adjunto e pesquisador do Departamento de Filosofia da Faculdade Jesuíta de Fi-
losofia e Teologia (FAJE). Possui graduação em Filosofia (2000) e Teologia (2005) pela
FAJE, Mestrado em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (2003)
e Doutorado em Filosofia pela Pontifícia Universidade Gregoriana – Roma, Itália (2010).
Possui pesquisas na área de Ética Filosófica (Justiça, Virtudes e Reconhecimento) e Herme-
nêutica Filosófica. É membro da Equipo Jesuita Latinoamericano de Reflexión Filosófica.
Coordena o grupo de pesquisa Desafios para uma ética contemporânea e é membro do
Grupo de Pesquisa Estudos Vazianos (GEVaz), da FAJE.

Émilien Vilas Boas Reis


Professor adjunto da Escola Superior de Ensino Dom Helder Câmara. Possui pós-douto-
rado em filosofia pela Universidade do Porto/Portugal (2014), mestrado (2006) e
doutorado (2010) em filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul,
graduação em Filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais. Atua nas áreas de Filo-
sofia e Direito, com ênfase em Filosofia do Direito, Ética, Bioética, Filosofia Medieval,
Metafísica, História da Filosofia, Filosofia da Cultura, Filosofia Ambiental e Direito Ambi-
ental.

João Augusto A. Mac Dowell


Professor titular da Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE). Possui graduação em
Filosofia pela Faculdade de Filosofia Nossa Senhora Medianeira (1958), graduação e mes-
trado em Teologia pela Philosophische Theologische Hochschule Sankt Georgen
(1962/1963) e doutorado em Filosofia pela Pontifícia Universidade Gregoriana (1968).
Sobre os autores | 319

Membro fundador da Academia Brasileira de Educação (RJ), foi Reitor da PUC-RJ e da Fa-
culdade Jesuita de Filosofia e Teologia (FAJE-BH). Atualmente é Editor de "Síntese - Revista
de Filosofia". Além do estudo do pensamento de M. Heidegger (membro do respectivo GT
da ANPOF), dedica-se especialmente à Filosofia da Religião, com ênfase nos seguintes te-
mas: racionalidade da fé, transcendência, experiência de Deus, cultura moderna e sagrado.

Juliano de Almeida Oliveira


Professor adjunto da Faculdade Católica de Pouso Alegre. Doutor e Mestre em Filosofia pela
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Doutor e Mestre em Direito Canônico pela
Pontificia Università dela Santa Croce (Roma). Licenciado em Filosofia pela Pontifícia Uni-
versidade Católica de Minas Gerais. Bacharem em Teologia pelo Pontificio Ateneo
SantAnselmo (Roma). Dedica suas pesquisas e atividades docentes sobretudo às áreas da
Filosofia, da Teologia e do Direito Canônico, a partir de autores clássicos e contemporâneos.

Magda Guadalupe dos Santos


Professora de Filosofia na Faculdade de Educação da Universidade do Estado de Minas Ge-
rais (FaE. UEMG). Professora da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC
Minas). Pesquisadora de Filosofia e Teorias feministas. Integrante do GT Desconstrução,
Linguagem e Alteridade da ANPOF. Integrante do Conselho Editorial (Editorial Board) de
Simone de Beauvoir Studies.

Manoel dos Reis Morais


Professor na Universidade FUMEC (Faculdade de Ciências Humanas – Filosofia do Direito),
professor na Escola Judicial Desembargador Edésio Fernande (EJEF), formador pela Escola
Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (ENFAM) e desembargador do
Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Doutorando em Direito pela Universidade Federal de
Minas Gerais (UFMG), mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina
(UFSC), mestre em Filosofia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE), especia-
lista em Processo Civil pela Faculdade de Direito de Franca (FDF), graduado em Direito
pela Universidade de Uberaba (UNIBE) e em Filosofia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e
Teologia (FAJE).

Marcelo Antônio Rocha


Professor assistente da Escola Superior Dom Helder Câmara. Bacharel em Direito pela Es-
cola Superior Dom Helder Câmara. Bacharel, Especialista e Mestre em Filosofia pela
Universidade Federal de Minas Gerais. Tem experiência como docente e pesquisador nas
seguintes áreas: Filosofia do Direito, Hermenêutica Jurídica, Direito Ambiental, Filosofia do
Ambiente, Teoria da Constituição, Direito Constitucional, História Geral da Filosofia, Ética
e Sociologia Jurídica.
320 | O que torna uma vida realizada: homenagem aos 100 anos de Henrique Cláudio de Lima Vaz

Marcelo Fernandes de Aquino


Professor titular de Filosofia da UNISINOS, possui graduação em Filosofia pela Faculdade
de Filosofia Aloisianum (1972), graduação em Teologia (1978), mestrado (1979) e douto-
rado (1983) em Filosofia pela Pontifícia Universidade Gregoriana, em Roma. Membro do
Conselho Diretor da Universia Brasil, Conselho deliberativo da ONG Parceiros Voluntários,
Fórum de Reitores das Universidades Jesuítas, da Aliança para Inovação de Porto Alegre.
Tem experiência na área de Filosofia, com ênfase em Idealismo Alemão, atuando principal-
mente nos seguintes temas: dialética, ética, linguagem, metafísica e sistema.

Marco Heleno Barreto


Professor titular do Departamento de Filosofia da Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia
(FAJE). Possui graduação em Psicologia (1986), mestrado (1994) e doutorado (2006) em
Filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais. Tem experiência na área de Filosofia,
com ênfase em História da Filosofia, atuando principalmente nos seguintes campos: antro-
pologia filosófica, filosofia da religião, filosofia medieval, filosofia da cultura. Dedica-se
também ao estudo dos temas: imaginação, simbolismo, psicologia analítica, C. G. Jung.

Maria Celeste de Sousa


Professora de Filosofia da Faculdade Católica de Fortaleza (FCF) e no CEJA Paulo Freire.
Coordenadora do Grupo de Estudos Vazianos (GEVAZ) da FCF. Vice-coordenadora do GT
“Olhar interdisciplinar sobre a Subjetividade Humana” (UECE-FCF). Doutora em Filosofia
pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo-PUCSP (2009). Mestre em Filosofia Prá-
tica (2000) e Especialista em Filosofia da Educação (1995) pela Universidade Estadual do
Ceará-UECE. Tem experiência na área de História da Filosofia, Metafísica, Ética, Antropo-
logia Filosófica e Filosofia da Educação.

Patrícia Carvalho Reis


Professora da Universidade Federal de Minas Gerais. Membro do Grupo de Pesquisa Estu-
dos Vazianos (GEVaz), da FAJE. Possui graduação em direito pela Pontifícia Universidade
Católica de Minas Gerais (2004), mestrado (2010) e doutorado (2017) em Filosofia na linha
Ética e Filosofia Política pela Universidade Federal de Minas Gerais. Atuou como bolsista
da Fapemig no "Memorial Padre Henrique de Lima Vaz", na Faculdade Jesuíta (FAJE). Tem
interesse por temas como, Direitos Humanos, Direito Público, Direito do Trabalho, Socio-
logia do Trabalho, Ética, Iluminismo, História da Filosofia, Filosofia do direito,
Republicanismo e Democracia Representativa.
Sobre os autores | 321

Paulo César Nodari


Professor do Programa de Pós-Graduação em Filosofia e do Programa de Pós-Graduação
em Direito da Universidade de Caxias do Sul. Possui graduação em Filosofia (Bacharelado
e Licenciatura) pela Universidade de Caxias do Sul (1991), graduação em Teologia pela
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (1994), mestrado em Filosofia pela
Universidade Federal de Minas Gerais (1998) e doutorado em Filosofia pela Pontifícia Uni-
versidade Católica do Rio Grande do Sul (2004), com período sanduíche na Universidade
de Tübingen, Alemanha. Realizou estágio de pós-doutorado, em Filosofia, em Bonn, Ale-
manha (2011). Tem experiência nos seguintes temas: ética, liberdade, direitos humanos,
paz, antropologia, educação.

Samuel Fernando Rodrigues Dimas


Professor Auxiliar da Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Católica Portuguesa
(UCP). Assessor Científico do Centro de Estudos de Filosofia e membro da Direção do Ins-
tituto de Filosofia Luso-Brasileira. Possui licenciatura em Teologia, Mestrado e Doutorado
em Filosofia pela Universidade Católica Portuguesa (UCP). Dedica-se à investigação do pen-
samento luso-brasileiro e do pensamento ibérico no âmbito da Filosofia e da Teologia,
através de uma abordagem privilegiadamente metafísica com especial preocupação para
os estudos de Ontologia, Gnosiologia, Antropologia Filosófica, Teologia Filosófica, Filosofia
da Religião e Estética.
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