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Por Antonio Delfim Netto

Neste primeiro "suelto" de 2016 desejo prestar uma homenagem ao bem


apetrechado economista Joaquim Levy. Por motivos internos do
governo e pela falta de apoio da sua base parlamentar, ele não pode
levar a cabo o bom programa de devolver o Brasil aos trilhos do
desenvolvimento social e econômico. E aproveitar para desejar ao
seu substituto, tão bem preparado quanto ele, Nelson Barbosa, que
encontre um ambiente interno mais amigável e externo politicamente
mais pacificado, para que sua ação possa ser frutuosa.
Os seus respectivos asseclas insistem em proclamar suas diferenças
brandindo as fontes ideológicas da "alma mater" de cada um. Levy
seria fruto da fonte do virtuoso neoliberalismo que vive na
Universidade de Chicago. Barbosa seria uma ameaçadora semente
fértil da New School University, de New York. Segundo nossa "elite
cientificista" - com apoio no ignorante mercado -, trata-se de um
perigoso gueto "heterodoxo" onde se pratica uma estranha mistura da
kaleckianismo e desvios pós-keynesianos temperados por um marxismo
"prêt-à-porter"...
É preciso superar tão indigente preconceito. Para os dois, a
economia é um conhecimento empírico cujo uso tem de se submeter às
condições institucionais sob as quais se vive. Quando a "revolução"
está excluída, a solução "ótima" é executar as melhores medidas
econômicas selecionadas dentro do espaço politicamente factível,
como fizeram os países hoje desenvolvidos.
Afinal, o que separa Keynes de Kalecki?
A contribuição de Kalecki é importante e transcende o fato que
antecipou Keynes em alguns aspectos, o que é superdimensionado por
seus admiradores. Para os dois, a determinação do nível de demanda
efetiva depende do nível de investimento. A diferença reside nos
estímulos ao investimento.
Um aspecto interessante em alguns modelos de Kalecki é que ele
introduz, explicitamente, a distribuição de renda, como fizeram
Malthus, Ricardo, Stuart Mill e Marx. Não é possível esquecer,
entretanto, que são proposições axiomáticas com modesto conteúdo
empírico e resultam da manipulação das identidades da contabilidade
nacional numa economia verticalmente integrada.
A despeito do que afirmam alguns economistas, renomados, é preciso
muito cuidado com tais ilusionismos. Num deles Kalecki deduz que o
lucro total é igual à soma do investimento bruto + déficit fiscal do
governo + saldo em conta corrente. Mal interpretado (tudo o mais não
permanece igual), ele pode nos levar ao céu (mais déficit aumenta o
lucro que estimula mais investimento...), ou, mais provavelmente, a
um jogo "Ponzi" (mais déficit para financiar o déficit já feito...).
Empiricamente, os dois caminhos parecem ter o mesmo fim: o inferno!
Mas, afinal, o que separa Keynes de Kalecki? Nada mais simples:
Keynes trabalhou para salvar o capitalismo; Kalecki para provar que
ele não pode ser salvo! O realmente importante é que, para ambos, o
maior pecado de uma organização social é ser incapaz de proporcionar
emprego para todos que querem e podem trabalhar, oferecendo-lhes
salários decentes proporcionais às suas habilidades e bastante para
dar-lhes identidade e recepcioná-los na cidadania.
Ambos sabiam que o nível de atividade da economia (enquanto existem
fatores de produção disponíveis) é função da demanda efetiva, cujo
nível, por sua vez, depende - fundamentalmente - do volume do
investimento (público + privado). Para Keynes, o investimento
privado é função do "espírito animal" do empresário. Se está
desativado, o governo pode emitir dívida pública, capturar a
poupança privada e investi-la em projetos de infraestrutura que
terão efeitos duradouros sobre a produtividade do sistema. Acabarão
modificando a "expectativa" dos empresários e levando-os a voltar a
investir, recuperando a renda e o emprego.
Num famoso e revelador artigo de 1943 ("Political Aspects of Full
Employment") Kalecki, implicitamente, considerou ingênuo o argumento
anterior. Afirma que a "hipótese que um governo manterá o pleno
emprego numa economia capitalista, mesmo se soubesse como fazê-lo, é
uma falácia", por três motivos. Os empresários: 1º) "se oporão ao
pleno emprego produzido pelo governo, porque isso amplia a área de
sua intervenção"; 2º) "não apreciam os investimentos públicos e são
contra os subsídios ao consumo", e, principalmente, 3º) "não gostam
das consequências do pleno emprego porque ele destrói o instrumento
que disciplina o trabalhador: o desemprego". Logo, pleno emprego e
capitalismo se excluem. Se desejamos o primeiro, temos de acabar com
o segundo.
O fato é que Kalecki, no auge do seu prestígio intelectual e poder
(1955-1965), e seus modelos, não produziram um desenvolvimento da
Polônia muito diferente dos demais satélites da URSS. Apenas o mesmo
"pleno emprego" com baixa produtividade que parasitou todo
socialismo "real" e que custou a liberdade de duas gerações de
poloneses...
O leitor deve estar se perguntando: o que essa pedante peroração tem
a ver com o Nelson Barbosa? A boa notícia é: nada! Por que, então
negar-lhe um voto de confiança?
Antonio Delfim Netto é professor emérito da FEA-USP, ex-ministro da
Fazenda, Agricultura e Planejamento.

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