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Impacto das atividades profissionais na saúde física e mental

ARTIGO ARTICLE
dos policiais civis e militares do Rio de Janeiro (RJ, Brasil)

The impact of professional activities on the physical and mental


health of the civil and military police of Rio de Janeiro (RJ, Brazil)

Maria Cecília de Souza Minayo 1


Simone Gonçalves de Assis 1
Raquel Vasconcellos Carvalhaes de Oliveira 2

Abstract In this article, we analyze the physical Resumo Neste artigo, analisamos o adoecimento
and mental stress and illness of military and civil físico e mental de policiais civis e militares do
police force officers in the State of Rio de Janeiro Estado do Rio de Janeiro, segundo condições de
(Brazil) due to their working conditions and pro- trabalho e atividades profissionais. Utilizamos a
fessional activities. The same methodology was used mesma metodologia para o estudo de duas catego-
for the study of two categories, namely a quantita- rias: abordagem quantitativa (amostragem alea-
tive approach (simple random sampling by con- tória simples por conglomerados, alcançando um
glomerates, involving a total of 1,458 civil police total de 1.458 policiais civis e 1.108 policiais mi-
officers and 1,108 military police officers, who litares que responderam a questionários anôni-
answered questionnaires anonymously) and a mos) e abordagem qualitativa (grupos focais com
qualitative approach (focal groups involving 143 143 profissionais e 18 entrevistas com gestores de
professionals and 18 interviews with managers of ambas as polícias). Os dados aqui apresentados
both police forces). The data presented here are all são todos originais. Constatamos sobrepeso e obe-
original. Disorders identified were: overweight and sidade em especial na Polícia Militar; e precária
obesity in both forces but mainly in the Military frequência de atividade física e informação de ele-
Police; low frequency of physical exercise and high vados níveis de colesterol, especialmente na Polí-
levels of cholesterol, especially in the Civil Police. cia Civil. Dores no pescoço, nas costas ou na colu-
The main health complaints are neck, back or spi- na, problemas de visão, dores de cabeça e enxa-
nal cord pain, eyesight complaints and headaches/ quecas foram os principais problemas encontra-
migraines. Sixteen point two per cent of officers of dos. A presença de lesões físicas permanentes foi
both forces reported physical lesions that were more relatada por 16,2% dos membros das duas corpo-
1
Centro Latino-Americano prevalent in the Military Police, among whom rações, sendo mais relevantes entre os militares,
de Estudos sobre Violência
psychic suffering was also more frequent (SRQ- que também apresentam mais elevada frequência
e Saúde Jorge Careli, Escola
Nacional de Saúde Pública 20). The need for changes in the individual and de sofrimento psíquico (SRQ-20). Enfatizamos a
Sergio Arouca, Fundação professional dimensions and in institutional as- necessidade de mudanças nas dimensões indivi-
Oswaldo Cruz. Av. Brasil
pects regarding the conditions and organization dual e profissional e nos aspectos institucionais
4.306, sala 700,
Manguinhos. 21040-361 of work and of health services is emphasized. referentes às condições e à organização do traba-
Rio de Janeiro RJ. Key words Health of police officers, Work and lho e dos serviços de saúde.
cecilia@claves.fiocruz.br
2
Instituto de Pesquisa
health, Work and mental health Palavras-chave Saúde dos policiais, Saúde e tra-
Clínica Evandro Chagas, balho, Saúde mental e trabalho
Fundação Oswaldo Cruz.
2200
Minayo MCS et al.

Introdução de trabalho, com potencial de repercussão sobre


a saúde, e o âmbito da subjetividade e da vivência
Neste artigo, tratamos das condições de saúde profissional.
dos policiais civis e militares do Rio de Janeiro, O trabalho e a profissão têm um caráter po-
aqui entendidas de diversos ângulos: o do prazer sitivo para a realização dos sujeitos, pois o ser
e do sofrimento traduzidos em realização ou des- humano, por meio de suas atividades, transfor-
gaste; o dos riscos vividos e percebidos como es- ma e cria coisas, e ao fazê-lo, transforma-se e se
truturantes da profissão; e o dos agravos físicos recria. Porém, em sua abordagem filosófica,
que associam condições de vida e de trabalho Marx8 chama a atenção, também, para o fato de
com disposições biológicas. Tratamos também que, frequentemente, o trabalho é fator de alie-
as doenças como resultantes dos danos psicos- nação. Assim, as dinâmicas específicas de pro-
sociais que combinam peculiaridades biológicas dução e de relações laborais tanto podem pro-
do sujeito com sofrimento, desgaste e estresse no duzir saúde, bem-estar físico e emocional como
trabalho. podem, também, ser marcadas por insatisfações,
Pesquisando as bases Scientific Electronic Li- estresse, sofrimento. Essa dialética é também tra-
brary Online (SciELO) e Latin American and tada por Dejours et al.9 em vários momentos de
Caribbean Health Sciences (Lilacs), constatamos sua obra.
que pouco tem sido publicado a respeito das con- Para abordar as possíveis relações sinérgicas
dições de saúde física e mental de policiais1-7 no entre processo de trabalho e saúde-doença, bus-
Brasil e na América Latina. Na base Medline, os camos a contribuição de diferentes conceitos hoje
textos sobre o tema são mais abundantes, po- estudados pela área de saúde do trabalhador. Na
rém predominam os que versam sobre ações epidemiologia das doenças do trabalho, “risco” é
policiais, em detrimento dos que dizem respeito o conceito central, entendido como probabilida-
à pessoa e especialmente às suas condições de de, medida de exposição, situação ou fator que
saúde. Buscamos, neste texto, responder em parte determinam efeitos adversos10. Além de ser um
a essa lacuna do conhecimento, por meio da apre- conceito teórico, “risco” é uma noção instrumental
sentação de informações sobre a saúde dos poli- fundamental para a vigilância em saúde, pois,
ciais, assunto que fez parte de uma pesquisa com- como refere Machado10, a identificação consen-
parativa que, além desse tema, tratou de seu pro- sual de um modelo de determinação do agravo per-
cesso de trabalho e de sua qualidade de vida. mite a concepção de estratégias de intervenção e
A hipótese que orientou a pesquisa compa- até a legitima. No caso da saúde dos policiais, no
rativa é de que encontraríamos uma situação entanto, “risco” é mais que uma medida de expo-
mais exacerbada de riscos pessoais e coletivos e sição ou dispositivo técnico: é um conceito estru-
de problemas de saúde entre policiais militares, turante da própria profissão.
tendo em vista a sua exposição ostensiva no pro- Trabalhamos também conjuntamente com as
cesso de trabalho de segurança pública. Isso re- noções de adoecimento físico, de sobrecarga de
almente ficou constatado. No Brasil, a Polícia trabalho e de sofrimento psíquico11 indicando ele-
Civil tem uma função judiciária, sendo o primei- mentos físicos, químicos, mecânicos, fisiológicos
ro elo na produção da justiça criminal, tendo e emocionais que interagem dinamicamente entre
como tarefa principal a investigação e a denúncia si e com o corpo do trabalhador. Mas agregamos
de crimes; e a Polícia Militar realiza vigilância os- também as noções de mecanismos de defesa e de
tensiva e atua na preservação da ordem pública. resistência, individuais e coletivos, pois conside-
As duas corporações, por delegação constitucio- ramos que às pressões do trabalho e às enfermi-
nal, são de cunho estadual, ficando a cargo da dades interpõe-se o indivíduo e o grupo em sua
Polícia Federal atividades de polícia judiciária e potencialidade própria, sendo possuidor da ca-
de repressão aos crimes que dizem respeito ao pacidade de compreender as situações de risco e
âmbito da federação (em fronteiras, portos e perigo, de reagir e de superá-las.
aeroportos, crimes fazendários, tráfico de dro-
gas e outros). Descrevemos a seguir os principais
conceitos que utilizamos neste artigo. Material e método
“Condição de saúde” diz respeito à articula-
ção entre disposições biológicas e situações so- O ponto central desta pesquisa foi o processo de
ciais, culturais e ambientais de existência. Na aná- trabalho como lócus de realização de atividades
lise da interação entre saúde e trabalho, coloca- técnicas, de relações interpares e hierárquicas, de
mos em jogo dois planos: o âmbito do processo criação de representações e de expressão de sub-
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jetividades. Metodologicamente, utilizamos a es- manentes; atendimento emergencial, internações
tratégia de triangulação de métodos12, lançando hospitalares e cirurgias no último ano.
mão, concomitantemente, de técnicas quantita- Também foi utilizada a escala SRQ20 (Self
tivas e qualitativas na abordagem empírica. Report Questionnaire), desenvolvida por Harding
Para a investigação quantitativa, adotamos et al.13, que mede a existência de sofrimento psí-
uma amostra aleatória simples por conglomera- quico, ou seja, sentimento de mal-estar inespecí-
dos. Entendemos como conglomerado a unidade fico, com repercussões fisiológicas e psicológicas
física (delegacia, academia de polícia, batalhão), que podem acarretar limitações severas no dia a
com o seu respectivo grupo de profissionais. Uni- dia, chegando a se transformar em doença pela
dades administrativas e operacionais fizeram parte sua intensidade e cronicidade. A versão aplicada
de cada uma das amostras. As duas foram calcula- foi validada em português por Mari e Williams14,
das de acordo com listagens oficiais, contendo tendo como ponto de corte 7/8 de respostas posi-
todas as unidades policiais da capital do estado tivas para homem e mulher, respectivamente.
do Rio de Janeiro e o efetivo de cada uma delas, No processo analítico, utilizamos uma técni-
especificado segundo cargos. Na Polícia Civil, ca de expansão da amostra, procedimento esta-
selecionamos 38 unidades e 2.746 policiais e inves- tístico que permitiu cobrir a totalidade da popu-
tigamos 39 unidades e 1.458 policiais. Na Polícia lação pesquisada, cerca de 11.000 policiais civis e
Militar, sorteamos 18 unidades e 1.700 policiais e 38.000 policiais militares15. As análises foram fei-
conseguimos pesquisar 19 e 1.108 agentes. O nú- tas com o software SPSS versão 10.0, para descri-
mero menor de entrevistados que o previsto no ção de frequências simples e cruzamento de variá-
cálculo da amostra se deve a vários motivos: gran- veis. No texto, essas diferenças apenas são men-
de inconsistência nas estatísticas de alocação de cionadas quando estatisticamente significativas
pessoal fornecidas pelas corporações; transferên- (p<,05).
cias de policiais de uma unidade para outra du- Para abordagem qualitativa, construímos
rante o período de pesquisa de campo; horários instrumentos como grupos focais, entrevista se-
variados de trabalho das pessoas sorteadas, difi- miestruturada individual e observações de cam-
cultando encontrá-las; realização de atividades po; e triangulamos várias perspectivas: múltiplos
imprevistas pelos policiais e grupos selecionados, informantes, observadores e técnicas de aproxi-
exigindo várias marcações e muitas delas sem su- mação e de compreensão da realidade. Na Polí-
cesso; e, também, recusas por motivos pessoais. cia Civil, fizemos dez entrevistas com gestores
Os instrumentos de pesquisa foram elabora- dos setores operacional e administrativo e gru-
dos coletivamente e criticados por especialistas ad pos focais com 51 profissionais (40 homens e 11
hoc nas áreas de saúde do trabalhador e de segu- mulheres). Na Polícia Militar, realizamos oito
rança pública. Os questionários aplicados conti- entrevistas, sete com gestores de setores operacio-
nham questões sobre: (1) características socioeco- nal, administrativo e de unidade de saúde e uma
nômicas; (2) processo e condições de trabalho; (3) com psicóloga de unidade operacional especial,
condições de saúde; e (4) qualidade de vida. Esse além de grupos focais que envolveram 92 poli-
instrumento foi entregue aos policiais em envelope ciais (84 homens e oito mulheres).
lacrado e autopreenchido anonimamente. A pesquisa qualitativa cumpriu as seguintes
As variáveis utilizadas para a pesquisa quan- etapas: (1) transcrição e digitação das gravações
titativa foram: índice de massa corporal (infor- de entrevistas individuais e grupais; (2) atribui-
mação do profissional sobre peso, dividido pela ção de códigos aos entrevistados e às pessoas por
estatura elevada ao quadrado: baixo peso (<20 eles mencionadas; (3) leitura compreensiva dos
kg/m2); normal (20-24 kg/m2); sobrepeso (15-29 textos transcritos, buscando identificar especifi-
kg/m2) e obesidade (>=30 kg/m2); prática regu- cidades e visão global dos depoimentos; (4) ela-
lar de atividades físicas (frequência com que se boração de estruturas de análise, agrupando tre-
exercita pelo menos por vinte minutos); nível de chos de depoimentos mais ilustrativos sobre pro-
colesterol elevado e de pressão arterial informa- cesso de trabalho, risco e saúde; (5) identificação
do por profissional de saúde ao longo da vida; das ideias centrais presentes nesses eixos; (6) iden-
problemas de saúde apresentados ou tratados tificação dos sentidos atribuídos às ideias; (7)
no último ano (doenças do aparelho respirató- elaboração de sínteses interpretativas.
rio, digestivo, músculos, peles e ossos, proble- Promovemos um exercício de triangulação
mas glandulares e das células sanguíneas, siste- dos achados quantitativos e qualitativos, ativi-
ma nervoso, aparelho urinário, doenças trans- dade que atravessou todo o processo de pesqui-
missíveis, visão, audição e fala); lesões físicas per- sa. No final, procedemos a uma abordagem com-
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Minayo MCS et al.

parativa em dois níveis: dos estratos dentro da ses agentes ocupa um papel decisivo no seu adoe-
mesma corporação (operacionais e administra- cimento, uma vez que compromete danosamen-
tivos) e entre as duas corporações entre si (civis e te sua energia, rouba sua vitalidade e sua eficiên-
militares). Desse processo foram obtidas novas cia profissional.
sínteses interpretativas em torno de cada eixo te- Embora não tenhamos realizado avaliação
mático, segundo especificidades e interseções en- clínica e procedido a exames laboratoriais dos
tre as duas forças policiais. A pesquisa cumpriu pesquisados, algumas respostas dão indício de
todos os pré-requisitos éticos exigidos pelo Con- problemas de saúde: 31% dos policiais civis e
selho Nacional de Saúde do Brasil, tendo sido 26,1% dos policiais militares já foram alertados
aprovada por um Comitê de Ética em Pesquisa. por médicos de que têm níveis elevados de coles-
terol (p<,001). Esse problema entre os policiais
está associado a elevado nível de massa corporal,
Apresentação dos resultados sedentarismo, ingesta hipercalórica e hiperlipídi-
ca e estresse vivido no trabalho. A grande preva-
Problemas e riscos quanto à saúde física lência de distúrbios gastrintestinais encontrada
nos dois grupos se relaciona à baixa qualidade
Na Tabela 1, constatamos que nas duas cor- da dieta alimentar e a sintomas psicossomáticos.
porações há 60% ou mais profissionais acima A hipertensão que atinge atualmente grandes
do peso ideal, e os policiais militares apresentam contingentes populacionais no Brasil também é
um quadro de maior gravidade. relatada por policiais militares e civis (Tabela 3),
A obesidade, observada com maior frequên- associada ao alto nível de tensão e estresse no
cia em policiais militares, constitui relevante fa- trabalho.
tor de risco que se associa à morte por hiperten- A frequência dos vários problemas de saúde
são, ao aumento do colesterol e do açúcar san- referidos pelos policiais pode ser constatada na
guíneo. Assinalamos que a medida do peso cor- Tabela 3, organizada de forma decrescente. Ape-
poral dos policiais (civis e militares) é 32% supe- nas as questões que tiveram frequência superior a
rior à média da população brasileira, segundo a 10% são visualizadas.
Pesquisa Nacional sobre Saúde e Nutrição16; a Constatamos que os três principais proble-
prática de atividade física também é menor do mas de saúde são os mesmos em ambas as cor-
que a encontrada entre vários grupos profissio- porações, predominando dores no pescoço, cos-
nais17 e inclusive do que a observada em policiais tas ou coluna, distúrbios de visão (miopia, astig-
de outros estados brasileiros18. matismo, vista cansada e outros) e dores de ca-
Perguntamos aos entrevistados sobre a prá- beça e enxaquecas. Os dois primeiros sintomas
tica regular de atividades físicas e sobre seu con- são mais comuns entre os policiais civis, e o últi-
dicionamento físico, seja com a finalidade de mo entre os policiais militares.
melhorar a saúde, seja com fins estéticos. A prá- Tanto os policiais militares como os civis nos
tica de exercícios foi mais destacada por policiais grupos focais referiram ainda que muitos são
militares (51,4) em frequência igual ou superior afetados também por doenças que ocorrem na
a uma vez na semana. E um em cada quatro não população em geral, por causa do contato muito
realiza nenhum tipo de atividade física regular. próximo, sobretudo com presos: sarna e con-
Entre os policiais civis, o sedentarismo está ainda juntivite, entre outras.
mais presente (Tabela 2). A vida sedentária des-

Tabela 2. Distribuição proporcional dos policiais civis


Tabela 1. Distribuição proporcional dos policiais civis e militares segundo a frequência de atividades físicas.
e militares segundo o índice de massa corporal.
Frequência de atividades físicas* Civil Militar
Índice de massa corporal *
Civil Militar
Quatro ou mais vezes por semana 7,9% 13,1%
Abaixo do peso 3,5% 1,9% Uma a três vezes por semana 28,2% 38,3%
Normal 37,3% 30,3% Três vezes por mês a poucas vezes 17,5% 23,8%
Sobrepeso 41,7% 48,3% no ano
Obeso 17,5% 19,5% Não pratica atividade física 46,4% 24,8%
*
p<,001. p<,001.
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Os agravos osteomusculares têm posição re-
Tabela 3. Problemas de saúde de policiais civis e militares mais
levante na saúde desses agentes. Entre os polici-
apresentados ou tratados no último ano.
ais militares predominam dores no pescoço, cos-
tas ou coluna, torção ou luxação de articulação e Problemas de saúde Civil Militar
outros agravos relativos a músculos. Os poli- Dores no pescoço, costas ou coluna *
42,0% 38,8%
ciais civis relatam maior frequência de bursites, Defeito na visão*** 50,2% 36,1%
artrites e reumatismos. Constatamos tendência Dores de cabeça frequentes, enxaquecas** 27,6% 31,8%
similar nas duas corporações para alergias e pro- Outro problema do aparelho 12,3% 24,9%
blemas de pele. A predominância de lesões sobre reprodutivo*** (mulheres somente)
músculos, ossos e pele está diretamente relacio- Torção ou luxação de articulação*** 18,3% 23,8%
nada ao exercício profissional. O gestor de saúde Deficiência auditiva em um ou ambos 11,2% 23,7%
da Polícia Militar refere que a maioria dos pedi- os ouvidos***
Rinite alérgica*** 23,4% 22,4%
dos de licença médica se deve a problemas de
Sinusite 19,6% 20,4%
ortopedia porque a natureza da profissão exige
Outro problema de músculos ou tendões 17,0% 18,5%
que os policiais corram, saltem, deem tiro, por Hipertensão arterial 16,1% 17,4%
isso sofrem frequentes traumas físicos. Em se- Alergia de pele, dermatite alérgica, 15,1% 16,0%
guida aos agravos ortopédicos, as intervenções urticária
neurocirúrgicas, as enfermidades cardiovascula- Outro problema de audição em um ou 4,8% 14,3%
res e as demandas de clínica geral são os princi- ambos os ouvidos***
pais motivos para afastamento do trabalho. Os Outro problema de ossos ou cartilagens** 10,2% 13,4%
problemas de saúde apresentados nas corpora- Gastrite crônica 14,2% 12,7%
ções foram encontrados em outras pesquisas, Indigestão frequente 10,6% 12,1%
como as de Bourguignon et al.5 e Rodrigues19. Dengue*** 18,0% 10,9%
Outro problema com os olhos* 9,0% 10,8%
Na abordagem qualitativa, os policiais rea-
Constipação frequente 11,6% 10,6%
firmaram os dados obtidos dos questionários,
Outro problema de pele 9,4% 10,3%
acrescentando o envelhecimento precoce como Artrite ou qualquer outro tipo de 14,8% 9,2%
uma das resultantes de sua vida de trabalho. Um reumatismo***
oficial militar participante de um grupo focal Bursite** 11,0% 8,6%
comentou:
A sobrecarga vai causando um envelhecimen- *
p<,05 ; **p<,005; ***p<,001.
to precoce no homem. Nós temos muitos policiais
hipertensos e com problema de coluna pelo peso do
armamento. Hoje ele leva duas armas curtas de
um quilo, duas pistolas, mais um fuzil de pouco acidentes de trabalho também são frequentes: os
mais de três quilos, dois carregadores de um quilo policiais aqui estão envolvidos em combate diari-
cada um, mais um colete. Ele acrescenta pelo me- amente, e os problemas que eles mais sofrem são os
nos mais quatro quilos ao corpo dele. Quatro qui- danos referentes a esses confrontos, são ferimentos
los para alguém que a cada dois dias está transpor- por projéteis de arma de fogo e fraturas, comenta
tando isso uma noite inteira, o dia inteiro? um dos comandantes de um batalhão. Para o
Problemas de visão, audição e fala são res- gestor de saúde da Polícia Militar, as lesões por
ponsáveis por quatro tipos de agravos nos ór- arma de fogo, os traumas e a hipertensão são
gãos dos sentidos listados na Tabela 3. Os poli- adoecimentos inerentes à profissão. O alto nível
ciais militares têm mais distúrbios nos ouvidos, de tensão no trabalho que gera hipertensão atin-
e os civis, nos olhos. Quanto ao sistema digesti- ge também grandes contingentes dos policiais
vo, ambos os grupos reclamam de gastrite crô- civis, embora em menores proporções. Os depoi-
nica e de desconforto por indigestão. Esses dis- mentos dos policiais coincidem com os dados
túrbios se relacionam com dieta inadequada e que encontramos nos questionários.
com estressores ambientais e profissionais. As vivências do trabalho de confronto osten-
Os maiores riscos à saúde se encontram nas sivo se manifestam na frequência e nos tipos de
atividades de confronto das duas corporações. lesões físicas. As mais comuns são as deformida-
Todos se referem à elevada frequência de feri- des permanentes de membros inferiores e supe-
mentos à bala e fraturas que necessitam de cirur- riores e podem ser visualizadas na Tabela 4. Um
gia como “danos do confronto”, “resultantes da total de 16,2% dos policiais das duas corpora-
atividade diária de combate ao narcotráfico”, se- ções tem lesões físicas permanentes (17,1% entre
gundo disseram vários gestores operacionais. Os militares e 9,3% entre civis, p<,001). A maioria
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dos policiais militares atribui à atividade profis- lação masculina do Brasil, indicando a vulnera-
sional a causa dessas lesões (80,9%); entre os bilidade dos agentes que atuam nas ruas.
policiais civis, essa associação cai para 28,2% Em ambos os grupos, os policiais ressalta-
(p<,001). ram o que mais temem: seu afastamento defini-
Muitos também sofrem incapacidade tem- tivo do trabalho por invalidez provocada por
porária. No último ano estudado por nós, 21,6% agravos ou lesões antes de completar os trinta
dos policiais militares e 6,7% dos civis (6,7%, anos de carreira, quando poderiam se aposen-
p<,001) tiveram que ser afastados do trabalho tar. Geralmente, os que ficam incapacitados de
por esse motivo. Outro indicador importante forma temporária ou permanente para as ativi-
dos riscos vividos no trabalho foi a necessidade dades típicas são encaminhados para atuação
do atendimento de emergência – que, nos últi- interna e administrativa, muitas vezes com pre-
mos 12 meses, também foi muito elevado: 44,9% juízo de promoções e aumento do soldo. Esse
entre militares e 41% entre civis (p=,006) necessi- temor tem fundamento em dados concretos. Na
taram desse tipo de cuidado –, assim como as citada pesquisa, Souza e Minayo2 encontraram
internações hospitalares, que no último ano atin- acelerado crescimento de incapacitados físicos
giram 14,3% dos militares e 16,4% dos civis permanentes e temporários no período de 2000
(p=,003). É importante ressaltar que elevadas a 2004 no Rio de Janeiro. Em 2000, foram 1.118
proporções de policiais civis e militares sofreram praças e 79 oficiais e, em 2004, 3.450 praças e 211
cirurgias no último ano: 4,9% passaram por uma oficiais nessa situação. No caso estudado, desta-
e 1,8% por mais de uma. Muitas dessas interven- camos que o incremento atinge os dois círculos
ções estão vinculadas a acidentes de trabalho ou da corporação militar. E também que ocorrem
são consequências das atividades profissionais. diferenças abissais quanto ao crescimento pro-
Informações sobre o forte impacto das ativi- porcional das vítimas: 166,5% de oficiais e 227,5%
dades laborais sobre a saúde dos policiais já ha- de praças no referido período. São também mui-
viam sido apresentadas por Souza e Minayo em to elevados os dados referentes aos policiais ci-
20052, tomando como base as informações so- vis: de 1994 a 2004 foram aposentados no Rio de
bre hospitalizações. As internações motivadas Janeiro, por laudo médico, 594 desses profissio-
por agressões sofridas em confronto correspon- nais, tendo diagnóstico de lesões temporárias e
deram à taxa de 0,10 por mil habitantes na po- permanentes como uma das principais causas2.
pulação geral e a 0,34 por mil na população mas-
culina. As taxas de lesões e traumas por agres- Problemas psicossociais:
sões não fatais foram de 9,29 para a Polícia Mili- relações entre saúde física e mental
tar, nesse mesmo ano. Comparativamente, a taxa
de morbidade hospitalar da Polícia Militar em A relação entre adoecimento físico, sobrecar-
2000 foi 92,90 vezes maior que a da população da ga de trabalho e sofrimento psíquico é claramente
cidade do Rio de Janeiro e 27,32 vezes a da popu- identificada entre os servidores das duas corpo-
rações. No entanto, observamos maior intensi-
dade de sofrimento psíquico (sintomas psicos-
somáticos, depressivos e de ansiedade) entre po-
liciais militares (33,6%) em relação aos civis
(20,3%) (p<,001). As expressões de sofrimento
Tabela 4. Distribuição proporcional dos policiais civis e podem ser visualizadas na Tabela 5. Elas são tam-
militares segundo os tipos de lesões físicas permanentes. bém mencionadas pelo comandante geral de saú-
Tipos de lesões físicas permanentes Civil Militar de quando fala do grande número de licenças
concedidas por motivos de distúrbios psiquiá-
Deformidade permanente ou rigidez 3,4% 7,7% tricos, embora existam muitas restrições dos che-
constante de pé, perna ou coluna*** fes de unidades para liberar seus subordinados
Deformidade permanente ou rigidez 3,9% 5,2%
para obterem tratamento por esses motivos.
constante de dedo, mão ou braço*
Paralisia permanente de qualquer tipo** 0,8% 2,0%
Oficiais disseram nas entrevistas que as queixas
Dedo ou membro amputado** 0,4% 1,5% de sofrimento psíquico têm “o intuito de conse-
Incapacidade para reter fezes ou urina** 0,3% 1,4% guir dispensa do serviço”, por isso a atenção so-
Seio, rim ou pulmão retirado* 0,4% 1,1% bre esses problemas não constitui prioridade da
Outra incapacidade*** 1,5% 6,5% corporação.
Percentual significativo de profissionais infor-
*
p<,05; **p<,005; ***p<,001. ma “dormir mal”, “sentir-se nervoso”, “triste” e
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“cansado”, tornando mais penosa a realização de Tabela 5. Distribuição proporcional dos policiais civis e militares,
suas atividades profissionais. segundo os sintomas de sofrimento psíquico que ocorrem
Na visão dos policiais operacionais, sobretu- atualmente.
do os que compõem o grupo das praças na Polí-
Sintomas de sofrimento psíquico Civil Militar
cia Militar (o ciclo mais baixo na hierarquia), os
mesmos fatores responsáveis pela sua “péssima” Dorme mal ***
39,5% 53,5%
qualidade de vida afetam sua saúde: ter dois Nervoso(a), tenso(a) ou agitado(a) 48,8% 47,5%
empregos, trabalhar noite e dia, ficar 12 horas na Sente-se triste*** 33,6% 39,0%
rua tendo comido apenas uma refeição, traba- Sente-se cansado o tempo todo*** 24,9% 35,5%
lhar sob pressão, ter que ficar alerta e dormir Dores de cabeça frequentemente*** 24,9% 35,3%
Dificuldade para realizar com satisfação suas 24,5% 34,3%
pouco. Os policiais civis também associam a bai-
atividades diárias***
xa qualidade de vida às condições e situações do
Cansa-se com facilidade*** 27,2% 34,0%
trabalho. Falta de apetite*** 9,6% 14,6%
As escalas de trabalho de oito por 12 horas Má digestão* 23,6% 26,2%
são consideradas pelos entrevistados como alta- Assusta-se com facilidade*** 16,2% 25,6%
mente desgastantes. Dentre os agravos advindos Tem sensações desagradáveis no estômago* 20,8% 23,4%
desse regime, os policiais destacam irritabilida- Tem perdido o interesse pelas coisas*** 18,4% 22,7%
de, insônia e envelhecimento precoce, citados Dificuldade de pensar com clareza*** 16,3% 22,4%
também nos dados quantitativos. São muito Dificuldade no serviço (o trabalho é penoso e 8,4% 20,4%
mais afetados os que têm escala de 24 horas, causa sofrimento)***
porque “sabem que um cochilo significaria mui- Dificuldade para tomar decisões*** 15,2% 19,4%
Tremores na mão*** 9,1% 16,6%
tas vezes a vida deles” (gestor operacional). Se-
Chorado mais que o costume 12,8% 13,6%
gundo os policiais das duas corporações, o ex-
Incapaz de desempenhar um papel útil na vida 33,2% 9,1%
cesso de trabalho, somado às poucas horas de Sente-se uma pessoa inútil, sem préstimo*** 5,7% 9,0%
sono e repouso, é responsável pela fadiga e pelo Tem tido ideia de acabar com a vida* 3,3% 5,0%
cansaço. Por isso consideram que seu trabalho é
fonte de estresse e gerador de enfermidades. Essa *
p<,05; **p<,005; ***p<,001.
visão atravessa os estratos e setores administra-
tivos e operacionais.
Entre os efeitos do não cuidado com as situa-
ções de estresse e de sofrimento mental, destaca-
mos as “formações reativas” sobretudo nos ca- os maiores níveis de estresse psicológico ocor-
sos em que os policiais cometem violências ou ram antes e durante os incidentes críticos.
assistem a cenas de violência que redundam em O gestor da área de saúde da corporação
mortes. Uma delas é a banalização das intercor- militar ressalta que um psicólogo é orientado a
rências; outra é o tratamento jocoso dos episó- acompanhar o policial quando, porventura, ele é
dios de confronto, como bem esclarece o depoi- baleado. Mas essa é uma atividade recente, como
mento de um gestor operacional da Polícia Mili- também é ainda uma novidade o cargo de “psi-
tar: Há uma carga de anormalidade muito grande cólogo militar”. Os policiais não estão acostu-
que nós naturalizamos como normal. Eu volto, a mados com atendimento psicológico, havendo
viatura toda furada, e eles rindo. Falam assim: muito preconceito em relação aos que procuram
“Puxa vida! Quase pegou você!” Outra ainda é a apoio, como se eles estivessem admitindo que
fuga das situações de risco reais ou imaginárias, estão se tornando loucos.
como é comentado por um entrevistado. Um Em resumo, a atividade profissional é repre-
policial operacional faltou ao serviço e, ao retor- sentada pelos agentes de segurança pública de
nar, recebeu a punição de ficar seis dias detido. forma dialética. A maioria a considera como fonte
Ao ser questionado pelo absenteísmo pelo supe- de prazer e de satisfação: “os policiais gostam de
rior, retrucou: Tudo bem, eu faltei aquele dia por- sentir esse medo, essa adrenalina”, disseram al-
que tive um feeling de que eu ia morrer; pelo me- guns dos civis num grupo focal. Até o estresse é
nos não morri. Fico preso, mas não morri. Nesse citado de forma positiva como fonte de excita-
sentido, Anderson et al.20, estudando as relações ção para a realização do trabalho. No caso da
entre agravos físicos e psicológicos em policiais Polícia Militar, os mais jovens, que estão há me-
no desempenho de sua atividade, constataram nos tempo na corporação e fazem atividades os-
que eles sofrem estresse físico e psicológico ante- tensivas, gostam do enfrentamento, falam dele
cipado quando saem para o trabalho, embora com entusiasmo. O sentimento de prazer e de
2206
Minayo MCS et al.

amor à profissão é verdadeiro, e o captamos na casso treinamento e falta de planejamento das


pesquisa: se lhes fosse dado escolher de novo, atividades – com excessiva jornada de trabalho,
mais de 70% dos membros de ambas as corpo- pouco tempo para descanso e lazer, precárias con-
rações escolheriam, outra vez, a mesma profis- dições materiais e técnicas e baixos salários4,15,21,22.
são. No entanto, esse sentido de pertença é con- Do ponto de vista físico, poderíamos escalo-
traposto ao ressentimento pela falta de reconhe- nar os agravos à saúde dos policiais em três ní-
cimento social, o que, segundo os policiais, mais veis. Em primeiro lugar, os que dizem respeito às
os aflige: A verdade é que o policial ama a polícia e chamadas causas externas, que correspondem ao
ama a corporação, disse um praça num grupo número de lesões incapacitantes temporárias e
focal, acrescentando: O policial é apaixonado pela permanentes, ocorridas por questões profissio-
Polícia Militar, mas a Polícia Militar não gosta nais e que ocorrem dentro e fora das corpora-
dele. Tanto não gosta que os nossos governantes ções. Em segundo lugar, os que se referem a seu
não o valorizam. Assim, a maioria considera o estilo de vida, como alimentação desbalanceada,
trabalho também como fonte de sofrimento e de irregularidade de rotina de sono, sedentarismo e
adoecimento. De várias formas, assinalam que o isolamento social. Em terceiro lugar, os que com-
estresse é responsável por doenças subjetivas, não binam os riscos das atividades com o estilo de
reconhecidas pelo médico clínico, tais como as vida, sobretudo os distúrbios osteomusculares,
enxaquecas e as dores de estômago. Dizem que, grastrintestinais e as enfermidades crônico-de-
por se tratar de sintomas subjetivos, não são le- generativas, destacando-se as enfermidades car-
vados em consideração pelas chefias e não são diovasculares. Nosso trabalho mostra a conver-
tomados a sério quando eles se queixam. gência entre problemas médicos com sintomas
de sofrimento mental, o que é confirmado pela
literatura internacional.
Discussão dos resultados Estudos como os de Mohr et al.23, CDC24 e
Cheenan e Van Hasselt25 corroboram nossos
Destacamos, inicialmente, que limitações de or- achados, destacando as condições de maior vul-
dem metodológica são comuns às investigações nerabilidade desses profissionais em relação à
realizadas com a polícia em todo o mundo, espe- população em geral. Numa convergência de diag-
cialmente no Brasil, seja pelas restrições ao aces- nóstico, esses autores indicam a confluência de
so a informações por parte das corporações, seja fatores que contribuem para elevadas taxas de
pelo receio que os policiais têm de serem prejudi- adoecimento. Citam especificamente: problemas
cados quando informam sobre si próprios. No gastrintestinais, hipertensão arterial, doenças
entanto, a reflexão apresentada neste artigo ten- coronárias, mudança de padrão de alimentação
ta superar, em parte, as muitas limitações, na e maior exposição a acidentes. Cheenan e Van
medida em que combina dados quantitativos e Hasselt25 chamam a atenção ainda para a con-
qualitativos e os confronta com os achados da fluência de sintomas físicos com pensamentos
literatura nacional e internacional. intrusivos, desordem pós-traumática, alcoolis-
Os resultados deste estudo indicam: (1) que mo, uso abusivo de drogas, mudanças nas res-
as corporações policiais se destacam da popula- postas emocionais, assalto de pesadelos, estado
ção em geral e de outras categorias profissionais de hipervigilância e dificuldades para dormir. No
pela pesada carga de trabalho e sofrimento, justifi- mesmo sentido, Gershon et al.26 e Vena et al.27
cando, portanto, seu maior desgaste físico e men- ressaltam elevadas taxas de suicídio e de tentati-
tal; (2) que as diferentes ações e condições de traba- vas de suicídio, risco de neoplasias combinadas
lho das duas corporações influenciam suas dife- (câncer digestivo e de tecidos linfáticos), arteri-
rentes formas de adoecer; (3) que o sofrimento osclerose e doenças do coração entre policiais
psíquico derivado das condições e situações de tra- americanos. A pesquisa de Harpold e Feemster28
balho é muito pouco considerado nos cuidados confirma os estudos de Vena et al.27, evidencian-
de saúde oferecidos pelas corporações; (4) que os do nesse grupo de trabalhadores maior susceti-
policiais operacionais estão mais suscetíveis aos bilidade ao adoecimento por câncer, enfermida-
riscos e aos agravos provenientes do trabalho. des do coração, hipertensão, dores de cabeça,
De modo geral, o sofrimento físico e mental é insônia, dores crônicas nas costas e nos pés, pro-
resultante do conjunto de situações vivenciadas blemas sexuais e reprodutivos que também cita-
no cotidiano do trabalho. Nesse contexto, identi- mos em nossa pesquisa.
ficamos fatores que associam problemas de con- Em 2005, indagando-se sobre as lacunas das
dições e organização ocupacional – entre eles, es- pesquisas americanas a respeito da saúde mental
2207

Ciência & Saúde Coletiva, 16(4):2199-2209, 2011


dos policiais, Kelley29 usou um instrumento de vadas do que na população em várias partes do
medição para avaliar as condições de 179 desses mundo. Em alguns países, como é o caso do Bra-
profissionais. A pesquisa convergiu com a de sil e especificamente no Rio de Janeiro, também
Gershon et al.26, evidenciando altas taxas de es- as taxas de mortalidade e de morbidade por cau-
tresse ocupacional, excessivo descontrole emocio- sas externas são muito superiores entre os poli-
nal, doenças físicas associadas e alcoolismo, bai- ciais do que as que se referem à população como
xa expectativa de vida e envelhecimento precoce. um todo e a qualquer outro grupo específico. Do
No entanto, além dos agravos já repetidamente ponto de vista emocional, os estudos internacio-
citados, Kelley29 acrescentou que são comuns nes- nais e também o nosso reafirmaram os efeitos
se grupo a prática de violência doméstica e gran- do risco e do desgaste sobre o psiquismo dos
de quantidade de divórcio e confirmou a forte policiais resultando em alcoolismo e drogadic-
incidência de suicídio e de tentativas, problemas ção, insônia, estado de hipervigilância, aumento
já assinalados por Vena et al.27 e Gershon et al.26 da agressividade ou embotamento da sensibili-
em proporções e severidade muito mais elevadas dade levando a dificuldades conjugais e à violên-
que na população em geral. cia intrafamiliar e perpetração, tentativa ou idea-
O estudo de Gershon et al.26 avança na dis- ção de suicídio. Ressaltamos que os casos de sui-
cussão das especificidades dos agravos à saúde cídios ou de tentativas entre os policiais do Rio
dos policiais, ressaltando a importância do es- de Janeiro necessitariam de um estudo muito mais
tresse cumulativo de cunho laboral. Por meio de específico, pois apenas pudemos assinalar esse
uma pesquisa com policiais americanos acima ponto numa escala de sofrimento mental.
de cinquenta anos, esses autores mostram efei- Por fim, ressaltamos com apoio em várias pes-
tos associados que se manifestam em comporta- quisas internacionais que, na medida de seu enve-
mentos de inadequação como alcoolismo, joga- lhecimento, o policial acumula efeitos associados
tina descontrolada, comportamento agressivo, ao estresse laboral como inadequação de com-
maior exposição a acidentes, ansiedade, insônia, portamento como alcoolismo, jogatina descon-
hipervigilância, sintomas de estresse pós-trau- trolada, comportamento agressivo, maior expo-
mático, episódios de explosão emocional e dores sição a acidentes, ansiedade, insônia, explosões
crônicas. Tudo isso converge para o envelheci- emocionais e vários tipos de dores crônicas. Tudo
mento precoce. isso converge para o envelhecimento precoce.
É bem verdade que os dados sobre a articula- Hoje, o tema relativo à saúde dos policiais no
ção entre problemas físicos e sofrimento mental chamado mundo desenvolvido, de certa forma,
precisam ser vistos com cautela, uma vez que ain- ultrapassou o diagnóstico e entrou numa fase de
da são escassas as fontes para comparação. To- proposições sobre o tipo de condições técnicas,
davia, a relevância do tema fica explícita na de- relacionais, subjetivas e de qualidade de vida que
manda insistente dos policiais para que as cor- o Estado precisa lhes proporcionar, reformando
porações instituam formas eficazes e bem elabo- suas instituições e valorizando seu trabalho. Em
radas de apoio psicossocial para seus membros. vários países, existem programas de avaliação e
de reforma institucional e de apoio social e emo-
cional a esses profissionais, pilares das institui-
Conclusões ções democráticas. No caso dos policiais do Rio
de Janeiro, estamos num patamar ainda inferior
Estrategicamente é importante perguntar, no fi- ao de muitas regiões do mundo. Cumprimos ain-
nal deste artigo, se seria possível, aos policiais, da a fase da análise situacional. Entendemos que
desenvolver outro estilo de vida ou melhorar as evidenciar os problemas concretos de saúde físi-
condições atuais que lhes geram tantos efeitos ca e mental desses servidores permitirá a suas
deletérios à saúde. corporações traçar planos de ação que valori-
Os dados comparativos com outros países, zem seus membros na prática, mediante uma
que apresentamos aqui, nos mostram que exis- crítica corajosa aos processos de trabalho, às
tem problemas comuns ao exercício das ativida- condições gerais de prestação de serviços e à si-
des policiais. Do ponto de vista físico, obesidade, tuação de sua vida fora da instituição.
agravos gastrintestinais, hipertensão arterial, Ressaltamos ainda que, se algum plano de
doenças coronarianas e o desenvolvimento de ação transformadora for realizado pelas corpo-
alguns tipos de câncer, dentre outros agravos, rações policiais a favor de seus membros, é fun-
são alguns que os acometem de forma muito damental destacar a importância da participa-
mais acentuada e em proporções muito mais ele- ção deles. São eles que reconhecem, a despeito de
2208
Minayo MCS et al.

toda sofisticação técnica, as sutis diferenças exis-


tentes entre o trabalho prescrito e o trabalho real
e todos os processos que explicam seu adoeci-
mento. São essas brechas que devem ser modifi-
cadas para obtenção de resultados promissores,
visando à segurança da pessoa que cuida de nos-
sa segurança pública.

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